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Capítulo 1 Revisão de Termodinâmica 1.1 O que é Termodinâmica? A Termodinâmica é uma descrição fenomenológica das propriedades de equilíbrio de sistemas macroscópicos. Ela se baseia em uma série de observações empíricas que são resumidas pelas leis da Termodinâmica. As leis da Termodinâmica só podem ser justificadas por uma teoria mais fundamental (microscópica) da natureza. A Mecânica Estatística permite obter essas leis a partir das equações fundamentais da Mecânica Clássica ou da Mecânica Quântica para sistemas de muitas partículas. 1.2 Sistema, vizinhança e fronteira A Termodinâmica geralmente começa pela divisão do universo em duas partes: o sistema éa parte do universo que queremos estudar; o exterior ou vizinhança é o resto do universo no qual não estamos interessados. Entre ambos sempre há uma fronteira que os separa. A fronteira pode ser real, como a superfície interna de um tanque contendo um gás comprimido, ou pode ser imaginária, como a superfície que limita uma determinada porção de um fluido e o acompanha enquanto o fluxo progride. Figura 1.1: Caracterização genérica de um sistema termodinâmico. Tipos de sistema. A natureza da interação entre o sistema e a vizinhança é uma questão central na descrição do comportamento termodinâmico dos sistemas físicos. Por esse motivo, os sistemas são classificados em vários tipos, de acordo com a maneira como eles interagem com o exterior. sistemas isolados: não trocam energia nem matéria com a vizinhança. sistemas fechados: trocam energia com a vizinhança, mas não trocam matéria. 7

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Capítulo 1

Revisão de Termodinâmica

1.1 O que é Termodinâmica?A Termodinâmica é uma descrição fenomenológica das propriedades de equilíbrio de sistemasmacroscópicos. Ela se baseia em uma série de observações empíricas que são resumidas pelasleis da Termodinâmica. As leis da Termodinâmica só podem ser justificadas por uma teoria maisfundamental (microscópica) da natureza. A Mecânica Estatística permite obter essas leis a partirdas equações fundamentais da Mecânica Clássica ou da Mecânica Quântica para sistemas demuitas partículas.

1.2 Sistema, vizinhança e fronteiraA Termodinâmica geralmente começa pela divisão do universo em duas partes: o sistema é aparte do universo que queremos estudar; o exterior ou vizinhança é o resto do universo no qualnão estamos interessados. Entre ambos sempre há uma fronteira que os separa. A fronteira podeser real, como a superfície interna de um tanque contendo um gás comprimido, ou pode serimaginária, como a superfície que limita uma determinada porção de um fluido e o acompanhaenquanto o fluxo progride.

Figura 1.1: Caracterização genérica de um sistema termodinâmico.

Tipos de sistema. A natureza da interação entre o sistema e a vizinhança é uma questãocentral na descrição do comportamento termodinâmico dos sistemas físicos. Por esse motivo, ossistemas são classificados em vários tipos, de acordo com a maneira como eles interagem com oexterior.

⇧ sistemas isolados: não trocam energia nem matéria com a vizinhança.⇧ sistemas fechados: trocam energia com a vizinhança, mas não trocam matéria.

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8 CAPÍTULO 1. REVISÃO DE TERMODINÂMICA

⇧ sistemas abertos: trocam tanto energia quanto matéria com a vizinhança.

Tipos de fronteira. As fronteiras podem ser restritivas em relação a certas variáveis. Depen-dendo do tipo de restrição, a fronteira pode ser:

⇧ Diatérmica: se permite a passagem de energia sob a forma de calor.⇧ Adiabática: se não permite a passagem de energia sob a forma de calor.⇧ Permeável: se permite a passagem de partículas.⇧ Impermeável: se não permite a passagem de partículas.⇧ Móvel: se permite a mudança de volume e, portanto, permite o intercâmbio de energia sob

a forma de trabalho mecânico.⇧ Fixa: se não permite a mudança de volume e, portanto, não permite o intercâmbio de

energia sob a forma de trabalho mecânico.

Tipos de vizinhança. A vizinhança pode ter diversas características, mas é importante definirum tipo de vizinhança, denominada reservatório, já que será de grande utilidade na definição depotenciais termodinâmicos e de ensembles estatísticos.

⇧ Reservatório de calor: é um corpo com uma capacidade calorífica tão grande que podeabsorver ou perder uma quantidade ilimitada de calor sem que aconteça nenhuma mudançaapreciável na sua temperatura. Por exemplo, a atmosfera ou o oceano podem se comportarcomo reservatórios de calor. Quando um sistema está separado de um reservatório de calorpor meio de uma parede diatérmica, fica a temperatura constante, igual à do reservatório,independentemente de qualquer variação das outras variáveis termodinâmicas do sistema.

⇧ Reservatório de volume: é um corpo com um volume tão grande que pode aumentar oudiminuir o mesmo sem que aconteça nenhuma mudança apreciável na sua pressão. Quandoum sistema está separado de um reservatório de volume por meio de uma parede móvel,fica a pressão constante igual à do reservatório.

⇧ Reservatório de partículas: é um corpo com um número de partículas tão grande que podeabsorver ou perder partículas sem que haja uma mudança apreciável no seu potencialquímico.

1.3 Grandezas termodinâmicasVariáveis de estado. Em termodinâmica, o estado de um sistema é especificado em termos devariáveis de estado, que se referem ao estado macroscópico do sistema. Alguns exemplos são:

⇧ o volume V , a pressão P , a temperatura T , o número de partículas (ou o número de moles)de cada constituinte químico Nk, no caso de uma mistura de gases.

⇧ No caso de um sistema com reações químicas, nucleares ou reações entre partículaselementares, temos várias espécies de partículas que reagem entre si. Neste caso, o númerode partículas de cada espécie Nk, e o potencial químico de cada espécie µk, são variáveisde estado do sistema.

⇧ a tensão superficial � e a área A no caso de uma película de detergente ou para uma gotaliquida.

⇧ a tensão F e o comprimento L para um fio metálico.⇧ o campo elétrico E e a polarização P para um material dielétrico.⇧ o campo magnético B e a magnetização M para um material magnético.

É conveniente classificar as variáveis termodinâmicas em duas categorias: variáveis intensi-vas e variáveis extensivas.

1.4. SISTEMAS EM EQUILÍBRIO E FORA DO EQUILÍBRIO 9

⇧ As variáveis intensivas são invariantes de escala, i.e. independem do tamanho ou daquantidade de matéria do sistema; e.g. temperatura, pressão, densidade, potencial químico.Consideremos, por exemplo, um sistema que apresenta um valor uniforme da temperatura.Se subdividirmos o sistema em vários subsistemas, todos eles terão a mesma temperaturaque o sistema original.

⇧ As variáveis extensivas dependem do tamanho ou da quantidade de matéria do sistema;mais ainda, se o sistema é subdividido em várias partes o valor total de uma propriedadeextensiva é igual à soma dos valores de cada uma das partes; e.g. volume, número departículas, número de moles.

1.4 Sistemas em equilíbrio e fora do equilíbrioA experiência mostra que todos os sistemas físicos isolados evoluem rumo a um estado, chamadode estado de equilíbrio termodinâmico, no qual deixamos de observar mudanças macroscópicasno sistema, i.e. as variáveis de estado não mudam com o tempo.

No caso de sistemas não-isolados também é possível que seja atingido um estado de equilí-brio. Esse equilíbrio está univocamente determinado pelo tipo de fronteira que encerra o sistema.Por exemplo, no caso de fronteiras diatérmicas o estado final de equilíbrio do sistema é chamadode estado de equilíbrio térmico e está caracterizado pela igualdade entre a temperatura do sistemae da vizinhança.

Se a fronteira não for restritiva quanto à troca de energia em qualquer de suas formas - calorou trabalho - mas o for ainda em relação à troca de matéria, atinge-se o equilíbrio térmico emecânico. Neste caso, não apenas as temperaturas mas também as pressões serão iguais. Sea fronteira for diatérmica, móvel e permeável, sendo possível a troca de matéria e/ou reaçõesquímicas, o sistema atingirá o equilíbrio térmico, mecânico e químico.

Um sistema macroscópico em equilíbrio termodinâmico, pode ser caracterizado por umconjunto pequeno de variáveis termodinâmicas. Por exemplo:

⇧ No caso de um sistema composto por uma única substância, um estado termodinâmico deequilíbrio pode ser caracterizado pela temperatura T , o volume V e o número de partículasN .

⇧ Para um sistema composto por r substâncias diferentes, um estado termodinâmico deequilíbrio fica caracterizado pela temperatura T , o volume V e os números de partículasde cada substância N1, N2, . . . , Nr.

⇧ Uma substância magnética pode ser caracterizado pela magnetização M , o volume V e atemperatura T .

1.5 Transformações TermodinâmicasUma transformação termodinâmica (ou processo termodinâmico) é uma mudança de estado dosistema de um estado de equilíbrio para outro estado de equilíbrio. Por exemplo, um sistemacomposto por uma única substância, muda de um estado termodinâmico de equilíbrio inicialcaracterizado pelas grandezas Ti, Vi e Ni para um estado de equilíbrio final caracterizado pelasgrandezas Tf , Vf e Nf .

A mudança pode acontecer por uma ação externa. Por exemplo, uma substância gasosa seencontra dentro de um recipiente de paredes adiabáticas. Inicialmente o estado do sistema écaracterizado por Ti, Vi e N . Em um certo momento, um pistão acionado por uma força externa

10 CAPÍTULO 1. REVISÃO DE TERMODINÂMICA

Figura 1.2: Transformação termodinâmica produzida pela remoção de um vínculo interno dentrode um sistema.

comprime o gás até atingir um estado caracterizado por Tf , Vf e N (estamos supondo que nãohouve mudança no número de partículas..

Uma transformação termodinâmica também pode acontecer pela remoção de um vínculointerno dentro de um sistema. Por exemplo, consideremos um cilindro contendo dois subsistemasseparados por um pistão interno, tal como mostrado na Figura 1.2. As paredes do cilindro sãosempre rígidas, impermeáveis e adiabáticas, i.e., temos um sistema isolado. Inicialmente, opistão também é rígido, impermeável e adiabático. Em um certo momento, removemos umvínculo interno. Por exemplo, o pistão se converte em móvel, e/ou permeável e/ou diatérmica.Quando removemos um vínculo interno o sistema buscará um novo estado de equilíbrio:

⇧ Por exemplo, se liberamos o pistão, ele se converterá numa parede móvel que, em geral,buscará uma nova posição de equilíbrio. Isto leva a uma mudança nos valores das variáveistermodinâmicas que caracterizam ambos subsistemas (e.g. no volume), sem a necessidadede uma ação externa.

⇧ Alternativamente, se removemos o revestimento adiabático do pistão, a parede ficarádiatérmica, e o calor poderá fluir entre os dois sistemas, ocorrendo uma redistribuição deenergia entre eles que levará a novos valores das variáveis termodinâmicas.

A Termodinâmica não é capaz de determinar quanto tempo levará uma transformaçãotermodinâmica, mas pode determinar o estado final atingido, o qual é independente da quantidadede tempo que demora o sistema em alcançar o equilíbrio.

Transformações reversíveis e irreversíveis. Os processos reversíveis são processos nosquais o sistema passa por uma sequência continua de estados de equilíbrio. Claramente, este tipode processo é uma idealização, já que para que qualquer transformação aconteça em um dadosistema, é necessário tirá-lo do equilíbrio. No entanto, se uma transformação for realizada demaneira extremamente lenta, “quase-estática”, é possível que os sucessivos estados de equilíbrioestejam muito próximos entre si, de maneira que o processo se aproxima bastante de um processoreversível.

Em um processo reversível, as variáveis termodinâmicas estão bem definidas em todos osinstantes. Por esse motivo, esses processos podem ser representados por um caminho ou trajetóriatermodinâmica num diagrama que tenha por eixos algumas das grandezas termodinâmicasrelevantes (veja o exemplo da Figura 1.3). Por outro lado, os processos irreversíveis não podemser representados por uma trajetória termodinâmica.

Apesar de não serem reais, os processos reversíveis são muito importantes em termodinâmicajá que nesses casos podemos obter equações bem definidas que descrevem a transformação,enquanto que para as mudanças irreversíveis devem ser usadas desigualdades.

1.6. TRABALHO 11

Figura 1.3: Transformação reversível e transformação irreversível entre os estados A e B. Alinha contínua representa um processo reversível, no qual o sistema passa por uma sequênciacontinua de estados de equilíbrio que podem ser representados no diagrama pela curva C. A linhatracejada representa um processo irreversível. Nesse caso, o sistema se encontra inicialmente noestado de equilíbrio A e durante o processo ele desaparece do diagrama já que, ao ficar fora doequilíbrio, as variáveis termodinâmicas não estão bem definidas. Uma vez finalizado o processo,o sistema atinge o equilíbrio e aparece no estado B.

1.6 TrabalhoEm mecânica clássica, quando um corpo sofre um deslocamento ds devido a uma força F,o trabalho mecânico realizado é dW = F · ds. Na Termodinâmica, existem vários tipos detrabalho. O mais frequentemente analisado e o trabalho mecânico realizado por (ou sobre) umgás. Introduziremos o trabalho mecânico utilizando um exemplo simples: consideremos umgás confinado em um cilindro que possui um pistão móvel (Figura ....). Permitimos que o gásempurre o pistão para cima através de um deslocamento ds (com uma força F para cima). Comoo deslocamento é infinitesimalmente pequeno, a força F pode ser considerada constante duranteo deslocamento. Então, F tem um módulo igual a PA, onde P é a pressão do gás e A é a áreada face do pistão. O trabalho infinitesimal realizado pelo gás durante o deslocamento é:

dW = Fds = (PA)ds = P (Ads) = PdV (1.1)

onde dV é a variação infinitesimal no volume do gás devida ao movimento do pistão. Vejaque o cálculo acima, determina o trabalho realizado pelo gás. Como a força está na direçãodo deslocamento, o trabalho de expansão fica positivo; i.e. o trabalho realizado pelo gás ficapositivo.

Não há um acordo geral sobre o sinal de W . Alguns autores usam a convenção de que W épositivo quando é realizado pelo sistema sobre a vizinhança. Outros preferem definir o trabalhocomo positivo quando é feito pela vizinhança sobre o sistema. Aqui adotaremos a convençãode que W é positivo quando é realizado sobre o sistema, i.e. quando o sistema é comprimido.Como dV < 0 na compressão e a pressão P é sempre positiva, devemos introduzir um sinal(�) na Eq. 1.1 para que dW fique positivo nesse caso. Dessa forma, o trabalho mecânico dWrealizado sobre o gás fica definido como

dW = �PdV. (1.2)

12 CAPÍTULO 1. REVISÃO DE TERMODINÂMICA

Como veremos mais adiante, a ideia por trás da convenção utilizada aqui é adotar o sinal positivoquando o processo aumenta a energia interna do sistema. Convém enfatizar que a expressãodada na Eq. (1.2) é válida apenas para o trabalho realizado sobre o sistema durante um processoinfinitesimal reversível, já que nesse caso o sistema estará sempre em equilíbrio termodinâmicodurante o processo e consequentemente as variáveis termodinâmicas (e.g. a pressão) estarão bemdefinidas. Num processo reversível entre os estados A e B realizado através de uma trajetóriatermodinâmica C o trabalho reversível é dado por:

W =

ZB

A; CdW = �

ZB

A; CPdV. (1.3)

Na prática, para realizar a integral acima, é necessário conhecer a relação entre P e V ao longoda trajetória termodinâmica C.

Outros tipos de trabalho podem ser relevantes dependendo do sistema considerado.Suponhamos, por exemplo, que o sistema possui uma carga elétrica q. Esta carga dá origem

a um potencial elétrico �, de maneira que, se quisermos adicionar no sistema uma carga dq, seránecessário realizar um trabalho

dW = �dq. (1.4)

O sinal nesta expressão é positivo já que adicionar uma carga positiva quando o potencial épositivo corresponde a um trabalho realizado sobre o sistema.

Suponhamos agora que o sistema considerado é composto por um conjunto de dipoloselétricos. Esse conjunto de dipolos, gera um campo elétrico E que dificulta o processo deadicionar novos dipolos ao sistema. Assim, para acrescentar um novo conjunto de dipolos commomento dipolar elétrico dP é necessário realizar um trabalho:

dW = E · dP . (1.5)

No caso de um sistema composto por dipolos magnéticos, o campo magnético B geradopelos dipolos já presentes, dificulta o processo de adicionar um conjunto de novos dipolos commomento magnético dM. O trabalho necessário para efetuar esse processo é:

dW = B · dM. (1.6)

Finalmente, vamos analisar o trabalho necessário para acrescentar uma partícula ou umconjunto de partículas a um sistema termodinâmico. Em princípio, poderia parecer que nãoé necessário nenhum trabalho para isso, pois bastaria introduzir uma partícula em repouso(sem energia cinética) sem nenhum custo energético. Mas, isto não é assim já que estamosconsiderando processos nos quais o sistema deve estar em equilíbrio após a adição de novaspartículas. Isto significa que, se adicionarmos uma partícula em repouso, o sistema deverá gastaralguma energia para colocá-la em equilíbrio com as outras partículas já presentes. Neste caso, otrabalho necessário para adicionar uma quantidade dN de partículas é:

dW = µdN (1.7)

onde µ é denominado potencial químico e representa a resistência do sistema à inclusão de novaspartículas.

De maneira geral, o trabalho realizado num processo infinitesimal reversível, pode serexpresso na forma

dW = Y dX (1.8)

1.7. CALOR 13

Sistema força Y deslocamento X trabalho reversívelfio tensão F comprimento L FdL

membrana, filme, etc. tensão superficial � área A �dAfluido pressão �P volume V �PdV

magneto campo magnético B magnetização total M BdMdielétrico campo elétrico E polarização total P EdP

reações químicas potencial químico µ número de partículas N µdN

Tabela 1.1: Força generalizada Y , deslocamento generalizado X e trabalho reversível dW =Y dX para vários sistemas termodinâmicos.

onde Y é uma grandeza termodinâmica intensiva (que chamaremos de força generalizada) e X éuma grandeza termodinâmica extensiva (que chamaremos de deslocamento generalizado). Agrandeza intensiva Y oferece uma “resistência” à variação da grandeza extensiva X . Na Tabela1.1 apresentamos o trabalho reversível para diferentes tipos de sistema.

1.7 CalorO calor Q é uma forma de energia que pode ser transferida (absorvida ou cedida) caso existauma diferença de temperatura entre duas partes de um sistema, ou entre o sistema e a vizinhança.

Se dQ é uma pequena quantidade de calor absorvido pelo sistema, e dT é a pequena mudançade temperatura que acompanha a absorção de calor, a capacidade de calorífica C é definidaatravés da relação dQ = CdT . É um fato experimental que o calor dQ necessário para produzirum determinado dT , depende da forma utilizada para aquecer o sistema. Por exemplo, para umatransformação infinitesimal reversível a volume constante temos

dQ = CV dT (1.9)

onde CV é a capacidade calorífica a volume constante. Para uma transformação infinitesimalreversível a pressão constante temos

dQ = CPdT (1.10)

onde CP é a capacidade calorífica a pressão constante.As capacidades caloríficas por unidade de massa ou por mol de uma substância são denomi-

nadas calores específicos.É importante enfatizar que as expressões dadas acima são válidas quando a troca de calor é

realizada de maneira reversível, i.e. quando o sistema fica em estados de equilíbrio termodinâmicoenquanto o calor é absorvido ou cedido (o calor trocado nessas condições é denominado calorreversível).

1.8 Diferenciais exatas e inexatasA noção de diferenciais exatas desempenha um papel tão importante na termodinâmica queé de suma importância saber como manipulá-las. Suponha que nos seja dada uma expressãodiferencial da forma M(x, y)dx+N(x, y)dy. Por definição, esta expressão é uma diferencialexata se existe uma função f(x, y) cuja diferencial seja:

df = M(x, y)dx+N(x, y)dy. (1.11)

14 CAPÍTULO 1. REVISÃO DE TERMODINÂMICA

Como df também é dada por

df =@f

@x

����y

dx+@f

@y

����x

dy, (1.12)

concluímos que a expressão diferencial M(x, y)dx+N(x, y)dy é uma diferencial exata se existeuma função f(x, y) tal que:

M(x, y) =@f

@x

����y

, (1.13)

N(x, y) =@f

@y

����x

. (1.14)

A existência de uma função f(x, y) cujas derivadas verifiquem a expressão anterior não é umcritério muito prático para decidir se a expressão M(x, y)dx+N(x, y)dy, com M(x, y) e N(x, y)arbitrárias, é uma diferencial exata. Um critério mais útil na prática pode ser obtido derivando asequações anteriores:

@M(x, y)

@y=

@

@y

✓@f

@x

◆=

@2f

@y@x, (1.15)

@N(x, y)

@x=

@

@x

✓@f

@y

◆=

@2f

@x@y. (1.16)

Como em geral @2f/@y@x = @2f/@x@y, chegamos à conclusão de que a expressão diferencialM(x, y)dx+N(x, y)dy é uma diferencial exata se

@M(x, y)

@y=

@N(x, y)

@x. (1.17)

Uma propriedade das diferenciais exatas que é de enorme importância na Termodinâmica, éque a função “original” f(x, y) (função de estado) verifica

I

Cdf = 0 (1.18)

ao longo de qualquer curva C no plano xy. A demonstração desta propriedade está além doescopo desta revisão introdutória. No entanto, vale a pena mencionar que uma propriedadesimilar é conhecida na mecânica clássica. De fato, para forças conservativas (i.e. quando a forçapode ser obtida de um potencial V (r)) o trabalho ao longo qualquer caminho fechado C é nulo:HC dW =

HC F · dr = 0.

Uma outra propriedade importante pode ser facilmente deduzida a partir deHC df = 0. Se df

for integrado de A até B ao longo de um determinado caminho e posteriormente de B até A aolongo de um caminho diferente, teremos

I

Cdf =

ZB

A; C1df +

ZA

B; C2df = 0, (1.19)

o qual exige que as integrais ao longo de C1 e C2 sejam iguais e opostas. Logo,Z

B

A; C1df =

ZB

A; C2df. (1.20)

1.9. A PRIMEIRA LEI DA TERMODINÂMICA 15

Assim, as integrais são independentes do caminho e, portanto, apenas os estados inicial e finalsão importantes:

ZB

A

df = fB � fA, (1.21)

i.e., f(x, y) será uma “função de estado” na linguagem da Termodinâmica, ou uma "funçãopotencial” na linguagem da mecânica.

Em suma, a expressão M(x, y)dx+N(x, y)dy é uma diferencial exata se se verifica a Eq.(1.17). Nesse caso, podemos afirmar que existe uma função de estado f(x, y) tal que se verificamas Eqs. (1.11), (1.18) e (1.21).

1.9 A primeira lei da TermodinâmicaO princípio de conservação da energia é uma lei fundamental da física que deve valer tanto nonível microscópico quanto no nível macroscópico. A primeira lei da Termodinâmica estabelecea validade desse princípio em qualquer transformação termodinâmica (reversível ou irreversível),incluindo o calor como uma das possíveis formas de energia que podem ser intercambiadas. Po-demos enunciar a primeira lei da Termodinâmica da seguinte maneira: “Existe uma função deestado, denominada energia interna U , cuja mudança em qualquer transformação termodinâmicaé dada por

�U = W +Q, (1.22)

onde �U é a variação de energia interna do sistema devida à transformação, Q e W são o caloradicionado ao sistema e o trabalho realizado sobre o sistema durante o processo termodinâmico”.

Convém enfatizar que a energia interna é uma função de estado, mas Q e W não o são emgeral. Assim, a variação �U é independente do caminho percorrido pela transformação, i.e.depende apenas dos estados termodinâmicos inicial e final, mas Q e W dependem em geral datrajetória termodinâmica percorrida pelo sistema.

Para uma transformação termodinâmica infinitesimal, a primeira lei pode ser escrita como:

dU = dQ+ dW, (1.23)

onde dU pode ser obtida por diferenciação da função de estado U , mas �Q e �W não sãodiferenciais exatas.

1.10 EntropiaCiclo de Carnot para um gás ideal. Um ciclo é um processo termodinâmico onde o sistema seencontra inicialmente em um estado de equilíbrio, é após sofrer uma série de transformaçõestermodinâmicas, retorna ao estado inicial. O ciclo apresentado por Carnot em 1824 é fundamentalpara compreender o conceito de entropia e a segunda lei da termodinâmica. Consideremos umatransformação cíclica de um gás ideal monoatômico, composta por uma expansão isotérmica,uma expansão adiabática, uma compressão isotérmica e uma compressão adiabática (Fig. 1.4). Aanálise do ciclo, feita nos cursos elementares de Termodinâmica, permite demonstrar, utilizandoapenas a primeira lei da Termodinâmica, que:

Qq

Tq

+Qf

Tf

= 0. (1.24)

16 CAPÍTULO 1. REVISÃO DE TERMODINÂMICA

Figura 1.4: Esquerda: O ciclo de Carnot para um gás ideal. As linhas tracejadas são trajetóriasadiabáticas reversíveis e as linhas contínuas são processos isotérmicos. O ciclo é percorrido emsentido horário. Direita: Aproximação de um ciclo arbitrário por uma sequência de ciclos deCarnot.

onde Qq é o calor absorvido na isoterma de temperatura Tq (quente) e Qf é o calor absorvido naisoterma de temperatura Tf (fria).

Ciclo reversível arbitrário para um gás ideal. No caso de um ciclo reversível de formaarbitrária realizado por um gás ideal (Fig. 1.4), sempre podemos traçar um número muitogrande de adiabáticas muito próximas entre si e posteriormente incluir pequenos segmentos deisotermas que coincidam com a trajetória do ciclo (veja Fig. 1.4). Esse procedimento resultanuma sequência de N ciclos de Carnot infinitesimais (com N ! 1) que permite aproximar aforma exata de um ciclo qualquer. Para cada pequeno ciclo de Carnot se verifica

dQqj

Tqj

+dQfj

Tfj

= 0 j = 1, 2, . . . , N (1.25)

onde onde dQqj é o calor absorvido no segmento infinitesimal de isoterma à temperatura Tqj edQfj é o calor absorvido no segmento infinitesimal de isoterma à temperatura Tfj . Somandopara todos os ciclos e substituindo (no limite de N ! 1) a soma por uma integral obtemos

ZB

A

dQq

Tq

+

ZA

B

dQf

Tf

= 0, (1.26)

onde a primeira integral corresponde à parte da trajetória que foi aproximada com segmentosinfinitesimais de isotermas “quentes” e a segunda integral à que foi aproximada com segmentosde isotermas “frias”. A expressão anterior é equivalente a

I

C

dQ

T= 0, (1.27)

onde C é uma trajetória fechada arbitrária, é está subentendido que o ciclo é realizado de maneirareversível. É importante enfatizar que a relação anterior é demonstrada utilizando apenas aprimeira lei da Termodinâmica e a equação de estado do gás ideal.

Entropia. A Eq. (1.27) mostra que, no caso de um gás ideal, existe uma grandeza S, cujadiferencial é dS = dQ/T tal que:

I

CdS = 0, (1.28)

1.11. RELAÇÕES FUNDAMENTAIS E EQUAÇÕES DE ESTADO 17

para qualquer ciclo reversível C. De acordo com a discussão apresentada na Secção 1.8, acondição anterior implica que a grandeza S, à qual denominaremos entropia, deve ser umafunção de estado. Isto significa que a variação de entropia quando um gás ideal sofre umatransformação termodinâmica que o leva de um estado A até um estado B é sempre dada por

�S = SB � SA =

ZB

A

dQ

T, (1.29)

independentemente da trajetória termodinâmica (reversível) percorrida entre os dois estados.A temperatura T é o fator integrante que converte o diferencial inexato dQ num diferencial

exato dQ/T .A existência de uma função de estado S cuja diferencial é dS = dQ/T pode ser demonstrada

de maneira rigorosa no caso de um gás ideal. Mas, esse resultado é muito mais geral. De fato,verifica-se experimentalmente que os resultados apresentados acima são válidos para qualquertipo de sistema (sólido, liquido, gás, etc.).

Finalmente, é importante enfatizar que, como a entropia e uma função de estado, a suavariação entre dois estados de equilíbrio sempre pode ser determinada, mesmo para processosirreversíveis nos quais o sistema passa por situações onde o estado termodinâmico do sistemanão está bem definido (o sistema sai do equilíbrio termodinâmico). Para determinar a variaçãode entropia nesses casos, basta imaginar um processo reversível equivalente (i.e. com os mesmosestados inicial e final) e utilizar a Eq. (1.29).

1.11 Relações fundamentais e equações de estado

Após as considerações da seção anterior, escreveremos a primeira lei da termodinâmica dU =dQ+dW para um processo infinitesimal reversível, mas escrevendo o calor na forma dQ = TdSe o trabalho na forma dW = �PdV + µdN . Por simplicidade, incluímos apenas o trabalhomecânico e o trabalho químico quando o sistema contém apenas uma única substância química;mas, é fácil generalizar a análise para incluir outros elementos químicos e/ou outras formas detrabalho (elétrico, magnético, etc.). Dessa forma obtemos:

dU = dQ+ dW = TdS � PdV + µdN. (1.30)

Note-se que o calor absorvido durante um processo reversível tem a mesma forma Y dX que otrabalho reversível realizado sobre o sistema.

Como a energia interna é uma função de estado, a equação anterior pode ser interpretadacomo a diferencial de uma função U que depende apenas das variáveis extensivas S, V,N , i.e.,

U = U(S, V,N). (1.31)

A relação U = U(S, V,N) é chamada de relação fundamental na representação de energia, e,como veremos mais adiante, contém toda a informação termodinâmica do sistema. Diferenciandoa relação fundamental, temos:

dU =@U

@S

����V,N

dS +@U

@V

����S,N

dV +@U

@N

����S,V

dN (1.32)

18 CAPÍTULO 1. REVISÃO DE TERMODINÂMICA

Comparando as Eqs. (1.30) e (1.32) surgem as relações:

T =@U

@S

����V,N

temperatura, (1.33)

�P =@U

@V

����S,N

pressão, (1.34)

µ =@U

@N

����S,V

potencial químico. (1.35)

As Eqs. (1.33-1.35) fornecem as variáveis intensivas T, P, µ em função das variáveis extensivasS, V,N , e são chamadas de equações de estado na representação de energia. Se conhecemosas equações de estado podemos determinar a relação fundamental, pois teremos um conjunto deequações diferenciais de primeira ordem (só ficará desconhecida uma constante de integração).

Isolando dS na versão da primeira lei da Termodinâmica apresentada na Eq. (1.30) obtemos:

dS =1

TdU +

P

TdV � µ

TdN. (1.36)

Como a entropia é uma função de estado, a equação anterior pode ser interpretada como adiferencial de uma função S que depende apenas das variáveis extensivas U, V,N , i.e.,

S = S(U, V,N). (1.37)

A relação acima é denominada relação fundamental na representação de entropia, e tambémcontém toda a informação termodinâmica do sistema. Diferenciando S = S(U, V,N), temos:

dS =@S

@U

����V,N

dU +@S

@V

����U,N

dV +@S

@N

����U,V

dN (1.38)

Comparando esta última equação com a Eq. (1.36) obtemos as equações de estado na repre-sentação de entropia:

1

T=

@S

@U

����V,N

, (1.39)

P

T=

@S

@V

����U,N

, (1.40)

�µ

T=

@S

@N

����U,V

. (1.41)

1.12 A segunda lei da TermodinâmicaA experiência mostra que existem muitos processos que verificam a conservação da energia(primeira lei) mas que não ocorrem na natureza. Por exemplo, observamos que um objeto quecai no chão sofre um aquecimento devido à conversão de energia cinética em calor. No entanto,não se observa o processo inverso. Isto é, um objeto no chão não se esfria espontaneamente,transformando calor em energia cinética para dar um salto, mesmo que haja conservação daenergia nesse processo. A segunda lei impõe uma condição adicional para que um processotermodinâmico seja possível.

1.12. A SEGUNDA LEI DA TERMODINÂMICA 19

Existem várias maneiras equivalentes de enunciar a segunda lei da termodinâmica.Em alguns enunciados a ênfase é colocada no funcionamento de máquinas térmicas. Nessa

categoria temos, por exemplo, o enunciado de Kelvin: Nenhum sistema pode absorver calor deum único reservatório e convertê-lo inteiramente em trabalho sem que resultem outras variaçõesno sistema e no ambiente que o cerca.

Outros enunciados colocam a ênfase na variação da entropia: para qualquer processo queaconteça em um sistema isolado a entropia não pode diminuir. A variação na entropia totaldo sistema isolado é nula se os processos que acontecem nele são reversíveis, e é positiva seos processos são irreversíveis. Temos então �S � 0, onde o símbolo = vale para processosreversíveis e o símbolo > para processos irreversíveis. Embora a entropia possa diminuir emuma parte de um sistema isolado, sempre haverá um aumento igual ou maior em outra parte dosistema, de modo que a entropia do sistema como um todo nunca diminui.

Um outro enunciado, bastante útil para nosso curso, é apresentado no livro do Callen1. Asegunda lei da Termodinâmica é colocada na forma de um axioma de existência de S juntocom um princípio de máximo: Existe uma função de todos os parâmetros extensivos de umsistema denominada entropia S; i.e. S = S(U, V,N, . . .). S é definida para todos os estados deequilíbrio. Se o sistema está isolado, após a remoção de um vinculo interno nele, os parâmetrosextensivos U, V,N, . . . assumem valores que maximizam a entropia. Isto é, no estado final temos

dS = 0 condição de extremo (1.42)d2S < 0 condição de máximo. (1.43)

Como veremos mais adiante, a condição d2S < 0 está relacionada com a estabilidade termodi-nâmica.

Para completar o enunciado, Callen postula algumas propriedades da entropia:

(a) A entropia de um sistema composto por dois ou mais subsistemas é aditiva. Por exemplo,

S(U1, V1, N1, . . . , U2, V2, N2, . . .) = S1(U1, V1, N1, . . .)+S2(U2, V2, N2, . . .). (1.44)

A aditividade da entropia significa que S é uma função homogênea de primeiro graude suas variáveis, i.e. S(�U,�V,�N, . . .) = �S(U, V,N, . . .), sendo � uma constantearbitrária.

(b) A entropia é uma função contínua, diferenciável e monotonicamente crescente da energia,i.e.

@S

@U

����V,N,...

> 0. (1.45)

Esta condição exprime o fato de que a temperatura absoluta é uma grandeza positiva.

Vários corolários podem ser obtidos a partir da da segunda lei. Em particular, o teorema deClausius, que não demonstraremos aqui, afirma que para qualquer sistema trocando calor comreservatórios externos e passando por um processo cíclico arbitrário (reversível ou irreversível),se verifica

IdQ

T 0, (1.46)

1Herbert B. Callen, Thermodynamics and an Introduction to Thermostatistics, Wiley, segunda edição (1985).

20 CAPÍTULO 1. REVISÃO DE TERMODINÂMICA

onde dQ é a quantidade infinitesimal de calor trocada pelo sistema com o reservatório à tempera-tura T . O símbolo = vale se a integral é realizada sobre um caminho reversível e o símbolo >vale sobre um caminho irreversível.

A partir da expressão anterior, é fácil mostrar que a variação de entropia entre dois estadosde equilíbrio A e B, é sempre

�S = SB � SA �Z

B

A

dQ

T, (1.47)

ou, para processos infinitesimais,

dS � dQ

T, (1.48)

onde, novamente, a igualdade vale para processos reversíveis e a desigualdade para processosirreversíveis.

1.13 Relação de EulerConsideremos, por simplicidade, um gás de um único componente caracterizado pelas variáveisextensivas U, V,N . Como a entropia é uma função homogênea de primeiro grau, temos;

S(�U,�V,�N) = �S(U, V,N) (1.49)

Derivando ambos lados da equação em relação a �, temos:

@S(�U,�V,�N)

@(�U)U +

@S(�U,�V,�N)

@(�V )V +

@S(�U,�V,�N)

@(�N)N = S(U, V,N) (1.50)

Fazendo � = 1, obtemos a relação de Euler:

U = TS � PV + µN (1.51)

E fácil mostrar que no caso geral em que a entropia depende da energia interna U e de umconjunto de variáveis extensivas {Xi}, i.e. S = S(U, {Xi}), a relação de Euler adota a forma:

TS +X

i

YiXi = U (1.52)

onde Yi = @U/@Xi são as forças generalizadas associadas aos deslocamentos generalizados Xi.

1.14 Relação de Gibbs-DuhemTomando a diferencial da relação de Euler temos:

TdS + SdT � PdV � V dP + µdN +Ndµ = dU. (1.53)

Vários termos podem ser cancelados usando a primeira lei da Termodinâmica, com o qualchegamos à relação de Gibbs-Duhem:

SdT � V dP +Ndµ = 0. (1.54)

1.15. A TRANSFORMADA DE LEGENDRE 21

No caso mais geral teríamos obtido:

SdT +X

i

XidYi = 0. (1.55)

A relação de Gibbs-Duhem pode ser integrada para obter µ = µ(T, P ). Para isso, é necessárioconhecer as equações de estado que permitem escrever os Xj em função dos valores de Yj .

Os parâmetros intensivos não são independentes entre si. O número de parâmetros intensivosindependentes se denomina número de graus de liberdade termodinâmicos do sistema. Porexemplo, um sistema simples com r componentes (e.g. r substâncias diferentes) tem r+1 grausde liberdade termodinâmicos. No caso de um sistema simples de um componente podemosadotar T e p como variáveis independentes já que o µ pode ser eliminado pela relação deGibbs-Duhem.

1.15 A transformada de LegendreNas representações de entropia e de energia, os parâmetros extensivos são as variáveis matemati-camente independentes, e os parâmetros intensivos aparecem como conceitos derivados.

No entanto, no laboratório, os parâmetros intensivos são os que se podem medir e controlarmais facilmente.

O caso extremo está representado pelas variáveis conjugadas entropia e temperatura. Nãoexistem instrumentos práticos para medir diretamente a entropia, mas é muito fácil medir econtrolar a temperatura.

Gostaríamos de encontrar uma representação na qual os parâmetros intensivos substituam osextensivos como variáveis independentes; mas sem perder informação termodinâmica.

Do ponto de vista matemático, o problema é o seguinte. Dada uma equação (relaçãofundamental) da forma:

f = f(X0, X1, ...., Xt) (1.56)

queremos encontrar um método pelo qual as derivadas

Pk ⌘@f

@Xk

(1.57)

se convertam nas variáveis independentes, mas sem perder nada da informação contida naequação original.

O procedimento matemático adequado é utilizar uma transformação de Legendre.No caso de funções de uma variável, a transformada de Legendre de uma função diferenciável

f(X), fornece como resultado uma nova função g(P ) onde a nova variável independente éP ⌘ df/dX .

A transformada de Legendre g(P ) = f(X)�P.X pode ser construída segundo o seguintealgoritmo:

1. Suponhamos que conhecemos f = f(X).

2. Derivando, obtemos P = df/dx = P (X). Por inversão obtemos X = X(P ).

3. Escrevemos g = f(X)� P.X e substituímos X = X(P ).

4. Dessa forma obtemos g = g(P ), que é a transformada de Legendre de f = f(X).

22 CAPÍTULO 1. REVISÃO DE TERMODINÂMICA

A função f(X) pode ser reconstruída de maneira única a partir de g(P ), realizando a transfor-mada de Legendre inversa. Para isso calculamos a diferencial de g = f � PX:

dg = df � PdX �XdP (1.58)

Como df = PdX , obtemos dg = �XdP ; portanto:

�X =dg

dP(1.59)

A transformada de Legendre inversa f = g(P ) + PX pode ser construída como segue:

1. Suponhamos que conhecemos g = g(P ).

2. Derivando, obtemos �X = dg/dP = �X(P ). Por inversão obtemos P = P (X).

3. Escrevemos f = g(P ) + PX e substituímos P = P (X).

4. Dessa forma obtemos f = f(X), que é a transformada inversa de Legendre de g = g(P ).

Exercício: Calcule a transformada de Legendre da função quadrática f(X) = aX2 + bX + c

1.16 Potenciais termodinâmicosNa representação da entropia, S(U, V,N, . . .) contém toda a informação termodinâmica dosistema e utilizamos o princípio de entropia máxima para determinar o estado final de equilíbriode um sistema após a remoção de vínculos internos em sistemas isolados:

dS = 0 condição de equilíbrio (1.60)d2S < 0 condição de estabilidade. (1.61)

De maneira equivalente, na representação de energia, a função de estado U(S, V,N, . . .) definidapara todos os estados de equilíbrio contém toda a informação termodinâmica do sistema. Nestaformulação, o princípio de entropia máxima é substituído pelo princípio de energia internamínima que estabelece que, quando um vínculo termodinâmico interno é removido em umsistema isolado, o estado final de equilíbrio é aquele no qual as variáveis independentes extensivasS, V,N, . . . adotam valores que minimizam a energia interna:

dU = 0 condição de equilíbrio (1.62)d2U > 0 condição de estabilidade. (1.63)

Outras representações podem ser construídas realizando a transformada de Legendre da energiainterna U ou da entropia S, de maneira tal que algumas variáveis independentes extensivassejam substituídas pelas variáveis intensivas correspondentes. As transformadas de Legendre daenergia interna são chamadas de potenciais termodinâmicos. As transformadas de Legendreda entropia são chamadas de funções de Massieu.

1.16. POTENCIAIS TERMODINÂMICOS 23

1.16.1 Energia livre de HelmholtzA energia livre de Helmholtz F é obtida realizando a transformada de Legendre da energiainterna em relação à entropia. A partir de uma função de estado U(S, V, {Xi}), onde {Xi}representa um conjunto de variáveis extensivas, podemos obter uma nova função de estadoF (T, V, {Xi}), denominada energia livre de Helmholtz:

F (T, V, {Xi}) ⌘ U � TS = U(T, V, {Xi})� TS(T, V, {Xi}). (1.64)

A função F (T, V, {Xi}) contém a mesma informação física que U(S, V, {Xi}), no entanto,por depender explicitamente da temperatura T , facilita a análise de sistemas com temperaturaconstante.

Variáveis termodinâmicas na representação de Helmholtz: Para simplificar a notação,consideraremos na sequência um sistema simples de um único componente, i.e. F (T, V,N). Asvariáveis termodinâmicas na representação de Helmholtz podem ser obtidas a partir da diferencialdF :

dF =@F

@T

����V,N

dT +@F

@V

����T,N

dV +@F

@N

����V,T

dN. (1.65)

Por outro lado, diferenciando F = U � TS temos dF = dU � TdS � SdT = (TdS � pdV +µdN)� TdS � SdT , logo,

dF = �SdT � pdV + µdN. (1.66)

Comparando as Eqs. (1.65) e (1.66) temos:

�S =@F

@T

����V,N

, �p =@F

@V

����T,N

, µ =@F

@N

����V,T

. (1.67)

Princípio de mínimo na representação de Helmholtz: Consideremos um sistema não-isolado no interior de um banho térmico, i.e. em contato através de uma parede diatérmica comum reservatório de calor à temperatura T .

Qualquer processo (reversível ou irreversível) que aconteça no sistema deve verificar dS �dQ/T . Usando a primeira lei, dU = dQ+ dW temos dS � (dU � dW )/T ; logo:

�dW TdS � dU. (1.68)

Como a temperatura do sistema é constante, TdS � dU = d(TS � U) ⌘ �dF , logo, a equaçãoanterior fica na forma:

dF dW, (1.69)

onde o símbolo = vale para transformações reversíveis e o símbolo < para transformaçõesirreversíveis.

No caso de sistemas isotérmicos que não trocam trabalho com a vizinhança temos dW = 0,i.e.

dF 0, (1.70)

o qual indica que existe um principio de mínimo associado à energia livre de Helmholtz. Esteprincipio estabelece que para um sistema em contato diatérmico com uma fonte de calor a Tconstante, o valor de equilíbrio de qualquer parâmetro interno deve minimizar F .

24 CAPÍTULO 1. REVISÃO DE TERMODINÂMICA

Para entender melhor este principio consideremos um sistema imerso em um banho térmico àtemperatura T . O sistema é composto por dois subsistemas separados por uma parede diatérmica,fixa e impermeável; i.e. pode haver troca de calor através da parede mas, esta é totalmenterestritiva em relação à troca de trabalho mecânico e químico. Nesse sistema, removemos o vinculointerno, fazendo com que a parede se torne móvel e permeável. Logo após a remoção do vínculo,acontecerá uma série de processos no sistema que levarão à diminuição de F (T, V,N); lembre-seque dF 0. Quando o estado de equilíbrio for atingido, F deixará de mudar é consequentementedF = 0. Como não há variação de temperatura, a Eq. (1.66) fica dF = �pdV + µdN . Podemosentão escrever a variação de energia livre do sistema 1 + 2 como a soma da variação de energialivre do subsistema 1 mais a do subsistema 2 (já não precisamos nos preocupar com a vizinhança):

dF = dF1 + dF2 = (�p1dV1 + µ1dN1) + (�p2dV2 + µ2dN2). (1.71)

Mas, dV1 = �dV2 e dN1 = �dN2, logo,

dF = (p2 � p1)dV1 + (µ2 � µ1)dN1 = 0, (1.72)

o qual leva à condição de equilíbrio já conhecida

p2 = p1 e µ2 = µ1. (1.73)

1.16.2 Energia livre de GibbsA energia livre de Gibbs G é obtida realizando a transformada de Legendre da energia internaem relação à entropia S e ao volume V . A partir de U(S, V, {Xi}) podemos obter uma novafunção de estado:

G(T, P, {Xi}) ⌘ U � T.S + PV. (1.74)

A função G(T, P, {Xi}) contém a mesma informação física que U(S, V, {Xi}), no entanto, pordepender explicitamente da temperatura T e da pressão P , facilita a análise de sistemas comtemperatura e pressão constante.

Uma analise similar à realizada para F , permite mostrar que na representação de Gibbs, asvariáveis termodinâmicas são dadas pelas seguintes derivadas de G:

�S =@G

@T

����P,N

, V =@G

@P

����T,N

, µ =@G

@N

����P,T

. (1.75)

Também é possível mostrar que para um sistema em contato com um reservatório a T e Pconstante, e separado deste por uma parede impermeável (N = constante), a energia livre deGibbs G nunca decresce, e após a remoção de um vínculo interno, o estado atingido é aqueleque minimiza G.

1.16.3 Grande potencial termodinâmicoO grande potencial ⌦ é obtido através da transformada de Legendre de U em relação à entropiaS e ao número de partículas N :

⌦(T, V, µ) ⌘ U � T.S � µN (1.76)

1.17. DERIVADAS TERMODINÂMICAS DE INTERESSE FÍSICO 25

Este potencial facilita a análise de sistemas abertos, onde o número total de partículas não éconservado. Por isso, ele é bastante útil para estudar sistemas relativísticos, já que nestes sistemaspartículas podem ser criadas a partir da radiação. As variáveis termodinâmicas são dadas por:

�S =@⌦

@T

����V,µ

, �P =@⌦

@V

����T,µ

, �N =@⌦

����T,V

. (1.77)

Usando a relação de Euler, é fácil mostrar que ⌦ = �PV :

⌦ ⌘ U � T.S � µN = (TS � PV + µN)� T.S � µN = �PV (1.78)

Para processos isotérmicos e a µ constante, ⌦ nunca decresce. O estado de equilíbrio atingidoé aquele que minimiza ⌦.

1.17 Derivadas termodinâmicas de interesse físicoDeterminadas derivadas termodinâmicas são fáceis de determinar experimentalmente, e recebemnomes específicos:

1. O coeficiente de expansão térmica mede a dilatação relativa de um sistema a pressãoconstante, e é definido por:

↵ =1

V

✓@V

@T

P,N

=1

v

✓@v

@T

P

, (1.79)

onde v = V/N é denominado volume específico (volume médio ocupado por uma partículano sistema).

2. A compressibilidade isotérmica

T =�1

V

✓@V

@P

T,N

=�1

v

✓@v

@P

T

, (1.80)

indica quanto muda o volume quando há um aumento da pressão a T e N constante.

3. A compressibilidade adiabática

S =�1

V

✓@V

@P

S,N

=�1

v

✓@v

@P

s

, (1.81)

indica quanto muda o volume quando há um aumento da pressão a S e N constante.

4. O calor especifico (por partícula) a pressão constante é:

cP =1

N

✓@Q

@T

P

=T

N

✓@S

@T

P

, (1.82)

e o calor especifico (por partícula) a volume constante é:

cV =1

N

✓@Q

@T

V

=T

N

✓@S

@T

V

. (1.83)

26 CAPÍTULO 1. REVISÃO DE TERMODINÂMICA

1.18 Relações de MaxwellPara qualquer função f(x, y) bem comportada e as derivadas mistas são iguais entre si: @2f/@x@y =@2f/@y@x. Esta propriedade pode ser aplicada às funções de estado termodinâmicas para obteruma série de igualdades conhecidas como relações de Maxwell.

Por exemplo, no caso da energia interna U(S, V,N, . . .), temos

@2U

@V @S=

@2U

@S@V. (1.84)

Mas,

@2U

@V @S=

@

@V

✓@U

@S

◆=

✓@T

@V

S,N

, (1.85)

@2U

@S@V=

@

@V

✓@U

@V

◆= �

✓@P

@S

V,N

. (1.86)

Temos assim a seguinte relação de Maxwell:✓@T

@V

S,N

= �✓@P

@S

V,N

. (1.87)

O mesmo procedimento pode ser utilizado em qualquer uma das representações apresentadasanteriormente. Por exemplo, na representação de Helmholtz obtemos:

@2F

@N@T=

@2F

@T@N)

✓@S

@N

T,V

= �✓@µ

@T

V,N

, (1.88)

@2F

@V @N=

@2F

@N@V)

✓@P

@N

T,V

= �✓@µ

@V

T,N

, (1.89)

@2F

@V @T=

@2F

@T@V)

✓@S

@V

T,N

=

✓@P

@T

V,N

. (1.90)

1.19 Estabilidade termodinâmicaO movimento aleatório das moléculas faz com que todas as quantidades termodinâmicas, comotemperatura, densidade, pressão, etc., sofram pequenas variações aleatórias em diferentes pontosde um sistema. Essas pequenas variações são denominadas flutuações termodinâmicas. Alémdisso, devido a sua interação com o exterior, o estado de um sistema pode estar sujeito aperturbações constantes. O estado de equilíbrio do sistema deve permanecer estável diante detodas as flutuações e perturbações. Isto significa que, após um certo tempo, as flutuações devemdesaparecer espontaneamente, isto é, devem ser dissipadas pelo sistema. Se isto acontece, osistema é termodinamicamente estável. No entanto, se as flutuações se retroalimentam levandoa um crescimento rápido de algumas grandezas físicas (e.g. a temperatura ou a densidade) osistema é instável.

1.19. ESTABILIDADE TERMODINÂMICA 27

Para um sistema isolado, a entropia atinge seu valor máximo no equilíbrio; assim, em umsistema estável qualquer flutuação só pode reduzir a entropia. Em um sistema estável, processosirreversíveis agem em resposta a uma flutuação, produzem entropia, e levam espontaneamente osistema de volta ao equilíbrio.

Para fixar as ideias, vamos considerar uma pequena flutuação na energia interna de umsistema isolado em equilíbrio. Suponhamos que a energia interna aumenta em uma pequenaquantidade numa pequena parte do sistema, mas sem mudar o volume e o número de partículasdessa pequena região. Após o aparecimento dessa flutuação a entropia total do sistema é:

S = S1(U1 + �U1, . . .) + S2(U2 + �U2, . . .), (1.91)

onde S1 é a entropia da flutuação, S2 é a entropia do resto do sistema, e �U1, �U2 são as variaçõesde energia interna em cada uma das partes. Obviamente, a entropia S1 é uma função apenas deU1, V1, . . . e S2 é uma função apenas de U2, V2, . . .. A entropia do sistema sofrerá uma mudançapequena em relação ao valor de equilíbrio Seq antes do aparecimento da flutuação. Portanto,podemos expandir S em série de Taylor em torno de Seq:

S = Seq +@S1

@U1�U1 +

@S2

@U2�U2 +

@2S1

@U21

(�U1)2

2+

@2S2

@U22

(�U2)2

2+ . . . , (1.92)

onde todas as derivadas são avaliadas no estado de equilíbrio. Como a energia interna total dosistema permanece constante, temos �U1 = ��U2 = �U . Lembrando que (@S/@U)V,N = 1/Tobtemos:

�S = S � Seq =

✓1

T1� 1

T2

◆�U +

✓@

@U1

1

T1+

@

@U2

1

T2

◆(�U)2

2+ . . . . (1.93)

Na expressão anterior, podemos identificar as variações de primeira e segunda ordem da entropia:

�S =

✓1

T1� 1

T2

◆�U, (1.94)

�2S

2=

✓@

@U1

1

T1+

@

@U2

1

T2

◆(�U)2

2. (1.95)

Para flutuações arbitrárias �U na energia interna, a primeira variação na entropia é nula(�S = 0) se e somente se T1 = T2 = T , que é a condição de equilíbrio esperada.

Analisemos agora a variação de segunda ordem na entropia. Na Eq. (1.95), podemos usar:

@

@U

1

T= � 1

T 2

@T

@U= � 1

T 2

1

CV

(1.96)

onde CV = NcV é a capacidade calorífica e cV o calor específico. Logo,

�2S = � 1

T 2

✓1

CV 1+

1

CV 2

◆(�U)2 = � 1

cV T 2

✓1

N1+

1

N2

◆(�U)2. (1.97)

Após a flutuação, as mudanças na entropia são devidas à variação de segunda ordem �2S e àsvariações de ordem superior (que aqui serão negligenciadas). No equilíbrio, uma vez que Sé um máximo, as flutuações só podem diminuir S, ou seja, �2S < 0. Pela equação anterior,concluímos que isto só é possível se o calor específico da substância for positivo:

cV � 0. (1.98)

28 CAPÍTULO 1. REVISÃO DE TERMODINÂMICA

Uma análise similar à anterior mas envolvendo diversos tipos de flutuações permite demons-trar que um sistema em equilíbrio termodinâmico estável deve verificar:

cP � cV � 0, T � S � 0. (1.99)

Isto significa que, em um sistema estável, a adição de calor a pressão ou volume constante,necessariamente deve aumentar a temperatura do sistema. Da mesma maneira, quando o volumediminui em um sistema estável, tanto isotermicamente quanto isentropicamente, deve haver umaumento de pressão.

1.20 Terceira lei da termodinâmicaA versão de Planck da terceira lei da termodinâmica afirma que a entropia de um sistema seanula quando nos aproximamos do zero absoluto de temperatura:

limT!0

S = 0 (1.100)

É possível mostrar (mas não o faremos aqui) que como consequência da terceira lei, algumasgrandezas devem ser nulas a temperatura zero, e.g., os calores específicos e o coeficiente deexpansão térmica:

limT!0

cV = 0, (1.101)

limT!0

cP = 0, (1.102)

limT!0

↵ = 0. (1.103)