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Capítulo 3 Epicurismo e Estoicismo Nesse capítulo, vamos estudar as duas prin- cipais concepções éticas que surgiram com o fim do período clássico grego, a saber, o epi- curismo e o estoicismo. O objetivo principal é que você discuta a relação entre a virtude e a felicidade nessas duas concepções éticas.

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■ Capítulo 3 ■Epicurismo e Estoicismo

Nesse capítulo, vamos estudar as duas prin-cipais concepções éticas que surgiram com o fim do período clássico grego, a saber, o epi-curismo e o estoicismo. O objetivo principal é que você discuta a relação entre a virtude e a felicidade nessas duas concepções éticas.

Epicurismo e Estoicismo ◆ 73

A atitude socrática de desapego às coisas materiais

foi radicalizada pelos filósofos chamados “cínicos”

(cuja origem etimológica vem da palavra “cão”) e é

representada sobretudo por Diógenes, que desprezava

os costumes humanos e procurava viver da forma mais

simples possível.

3 Epicurismo e EstoicismoDurante o período helenista, várias correntes éticas surgiram

dando continuidade e reformulando as idéias de Sócrates, Platão e Aristóteles. Dentre elas podemos destacar o ceticismo, o cinismo, o epicurismo e o estoicismo, que apesar de não apresentarem grandes contribuições metaéticas, direcionaram a ética para o do-mínio prático. O ceticismo de Pirro e Sextus Empiricus sustenta que nada pode ser conhecido em sua essência, pois para cada tese filosófica dogmática (por exemplo, há um mundo independente da minha mente), pode-se contrapor outra (tudo é subjetivo ou relativo a nós humanos). Assim, temos a equipolência entre teses metafísicas opostas e nada pode ser concluído com certeza. O me-lhor a fazer é, então, suspender o juízo (epoché). Essa atitude tem relevância ética, pois supostamente leva o indivíduo a um estado de ataraxia (tranqüilidade e imperturbabilidade da alma).

O epicurismo e o estoicismo são certamente as duas filosofias que se tornaram predominantes durante o Imperário Romano e que ainda têm grande influência na modernidade. É de lastimar, então, que alguns historiadores da ética simplesmente deram pou-ca atenção a essas duas teorias éticas (por exemplo, MacIntyre 1966: 105-8). Como veremos na disciplina Ética II, o utilitarismo herdará fortes influências do hedonismo epicurista, enquanto que a ética de Immanuel Kant terá muitos elementos estóicos. Por isso, nos concentraremos aqui nessas duas concepções éticas.

Diógenes (413 a.C. - 323 a.C.)

74 ◆ Ética I

O epicurismo e o estoicismo são geralmente contrapostos como concepções éticas antagônicas. Por exemplo, Kant caracterizou-as como antitéticas na Crítica da Razão Prática: o epicurismo susten-taria que a vida feliz, prazerosa, é o supremo bem e que a virtude seria apenas um meio para atingi-la; o estoicismo, ao contrário, sustentaria que a virtude é o bem supremo e que a felicidade seria apenas a consciência de ser virtuoso. Como veremos, entretanto, o epicurismo e o estoicismo possuem vários pontos em comum. Com o fim do ideal clássico grego, ambas as teorias éticas enco-rajaram os indivíduos a retrairem-se da arena pública e buscarem ideais pessoais de uma vida boa (felicidade), independente das condições sociais. Tanto o epicurismo quanto o estoicismo são, de algum modo, pessimistas quanto ao ideal de realização pessoal no domínio político. Uma exceção a esse ideal é, como veremos, o estoicismo romano.

3.1 A ética epicuristaEpicuro de Samos sistematizou e defendeu uma idéia corrente

no pensamento moral grego, a saber, a de que o prazer é o único bem intrinsecamente valioso e, portanto, o bem supremo. Sócra-tes, Platão e Aristóteles (conferir os seis primeiros capítulos do Li-vro X da Ethica Nicomachea) tentaram mostrar que essa tese não é verdadeira, mas Epicuro não apenas argumentou que a vida pra-zerosa é a única feliz como vivenciou e ensinou um certo tipo de hedonismo na sua escola filosófica, o Jardim. Como filosofia geral, Epicuro seguiu as teses materialistas do atomismo de Demócrito, mas ele também tentou mostrar que a ação humana é livre pela existência de átomos da alma que de alguma forma se comporta-vam de maneira não previsível. Desse modo, o determinismo era evitado e a ação livre é possível. O indivíduo poderia voluntaria-mente buscar prazeres para alcançar uma vida boa.

Uma condição importante para compreendermos o epicurismo, e em alguma medida o próprio estoicismo, é definir claramente “prazer”. Comumente, o prazer é identificado como um estado positivo, basicamente vinculado a satisfação de um desejo ou de uma necessidade. O prazer é, então, uma efetiva fruição de algo agradável aos sentidos. Raramente, todavia, estados de indiferença

Epicuro (342/41 a.C. - 271 a.C.)

Epicurismo e Estoicismo ◆ 75

Essa versão foi obtida, com algumas pequenas

modificações, na internet no endereço: http://blocosonline.

com.br/literatura/prosa/cl/cl010815.htm. A tradução é

de Álvaro Lorencini e Enzo Del Carratore.

(nem positivamente prazerosos nem doloridos) e muito menos es-tados de simples ausência de dor ou sofrimento são vistos como prazerosos. Todavia, no epicurismo, o prazer também é simples-mente a ausência da dor. Temos que manter isso presente para evitarmos atribuir a Epicuro um hedonismo vulgar tal como ex-presso na máxima: Coma, beba e seja feliz!

Epicuro, além disso, distingue tipos de desejos, a saber, os naturais, que são saudáveis e moderados, dos desejos advindos de prazeres não-naturais tais como a luxúria. A vida boa consiste num controle moderado dos apetites, no cultivo da vida intelectual, filosófica, em conversação com os amigos. A amizade é fundamental para a vida boa. Tal ideal moral é atingido na ataraxia, a qual consiste de pra-zeres naturais e moderados. Essa é a vida feliz e não qualquer tipo de vida baseada exclusivamente nos prazeres sensíveis.

Uma das melhores maneiras de compreender as linhas gerais da ética epicurista é lendo a famosa Carta a Menescau. Apesar de ser uma longa citação, vamos reproduzi-la aqui na sua integridade para, posteriormente, comentarmos os seus principais pontos. Eis o que escreve Epicuro sobre como alcançar a felicidade:

Que ninguém hesite em se dedicar à filosofia enquanto jovem, nem se

canse de fazê-lo depois de velho, porque ninguém jamais é demasia-

do jovem ou demasiado velho para alcançar a saúde do espírito. Quem

afirma que a hora de dedicar-se à filosofia ainda não chegou, ou que ela

já passou, é como se dissesse que ainda não chegou ou que já passou

a hora de ser feliz. Desse modo, a filosofia é útil tanto ao jovem quanto

ao velho: para quem está envelhecendo sentir-se rejuvenescer através

da grata recordação das coisas que já se foram, e para o jovem poder

envelhecer sem sentir medo das coisas que estão por vir; é necessário,

portanto, cuidar das coisas que trazem a felicidade, já que, estando esta

presente, tudo temos, e, sem ela, tudo fazemos para alcançá-la. Pratica e

cultiva então aqueles ensinamentos que sempre te transmiti, na certeza

de que eles constituem os elementos fundamentais para uma vida feliz.

Em primeiro lugar, considerando a divindade como um ente imortal e

bem aventurado, como sugere a percepção comum de divindade, não

atribuas a ela nada que seja incompatível com a sua imortalidade, nem

inadequado à sua bem-aventurança; pensa a respeito dela tudo que for

capaz de conservar-lhe felicidade e imortalidade.

76 ◆ Ética I

Os deuses de fato existem e é evidente o conhecimento que temos de-

les; já a imagem que deles faz a maioria das pessoas, essa não existe: as

pessoas não costumam preservar a noção que têm dos deuses. Ímpio

não é quem rejeita os deuses em que a maioria crê, mas sim quem atri-

bui aos deuses os falsos juízos dessa maioria. Com efeito, os juízos do

povo a respeito dos deuses não se baseiam em noções inatas, mas em

opiniões falsas. Daí a crença de que eles causam os maiores malefícios

aos maus e os maiores benefícios aos bons. Irmanados pelas suas pró-

prias virtudes, eles só aceitam a convivência com os seus semelhantes e

consideram estranho tudo que seja diferente deles.

Acostuma-se à idéia de que a morte para nós nada é, visto que todo

bem e todo mal residem nas sensações, e a morte é justamente a pri-

vação das sensações. A consciência de que a morte não significa nada

para nós proporciona a fruição da vida efêmera, sem querer acrescentar-

lhe tempo infinito e eliminando o desejo de imortalidade.

Não existe nada de terrível na vida para quem está perfeitamente con-

vencido de que não há nada de terrível em deixar viver. É tolo, portanto,

quem diz ter medo da morte, não porque a chegada desta lhe trará

sofrimento, mas porque o aflige a própria espera: aquilo que não nos

perturba quando presente não deveria afligir-nos enquanto está sendo

esperado.

Então, o mais terrível de todos os males, a morte, não significa nada para

nós, justamente porque, quando estamos vivos, é a morte que não está

presente; ao contrário, quando a morte está presente, nós é que não esta-

mos. A morte, portanto, não é nada, nem para os vivos nem para os mor-

tos, já que para aqueles ela não existe, ao passo que estes não estão mais

aqui. E, no momento, a maioria das pessoas a foge da morte como se

fosse o maior dos males, ora a deseja como descanso dos males da vida.

O sábio, porém, nem desdenha viver, nem teme deixar de viver; para ele,

viver não é um fardo e não-viver não é um mal. Assim, como opta pela

comida mais saborosa e não pela mais abundante, do mesmo modo ele

colhe os doces frutos de um tempo bem vivido, ainda que breve.

Quem aconselha o jovem a viver bem e o velho a morrer bem não passa

de um tolo, não só pelo que a vida tem de agradável para ambos, mas

também porque se deve ter exatamente o mesmo cuidado em hones-

tamente morrer. Mas pior ainda é aquele que diz: bom seria não ter nas-

cido, mas uma vez nascido, transpor o mais depressa possível as portas

do Hades. Se ele diz isso com plena convicção, por que não se vai desta

Epicurismo e Estoicismo ◆ 77

vida? Pois é livre para fazê-lo, se for esse realmente seu desejo; mas se o

disse por brincadeira, foi um frívolo em falar de coisas que brincadeira

não admitem.

Nunca devemos nos esquecer de que o futuro não é nem totalmente

nosso, nem totalmente não-nosso, para não sermos obrigados a esperá-

lo como se estivesse por vir com toda a certeza, nem nos desesperar-

mos como se não estivesse por vir jamais.

Consideremos também que, dentre os desejos, há os que são naturais

e os que são inúteis; dentre os naturais, há uns que são necessários e

outros, apenas naturais; dentre os necessários, há alguns que são fun-

damentais para a felicidade, outros, para o bem-estar corporal, outros,

ainda, para a própria vida. E o conhecimento seguro dos desejos leva

a direcionar toda escolha e toda recusa para a saúde do corpo e para

a serenidade do espírito, visto que esta é a finalidade da vida feliz: em

razão desse fim praticamos todas as nossas ações, para nos afastarmos

da dor e do medo.

Uma vez que tenhamos atingido esse estado, toda a tempestade da

alma se aplaca, e o ser vivo não tendo que ir em busca de algo que

lhe falta, nem procurar outra coisa a não ser o bem da alma e do cor-

po, estará satisfeito. De fato, só sentimos necessidade do prazer quando

sofremos pela sua ausência; ao contrário, quando não sofremos, essa

necessidade não se faz sentir.

É por essa razão que afirmamos que o prazer é o início e o fim de uma

vida feliz. Com efeito, nós o identificamos como o bem primeiro e ine-

rente ao ser humano, em razão dele praticamos toda escolha e toda

recusa, e a ele chegamos escolhendo todo bem de acordo com a distin-

ção entre prazer e dor.

Embora o prazer seja nosso bem primeiro e inato, nem por isso esco-

lhemos qualquer prazer: há ocasiões em que evitamos muitos prazeres,

quando deles nos advêm efeitos o mais das vezes desagradáveis; ao

passo que consideramos muitos sofrimentos preferíveis aos prazeres, se

um prazer maior advier depois de suportarmos essas dores por muito

tempo. Portanto, todo prazer constitui um bem por sua própria nature-

za; não obstante isso, nem todos são escolhidos; do mesmo modo, toda

dor é um mal, mas nem todas devem ser sempre evitadas. Convém, por-

tanto, avaliar todos os prazeres e sofrimentos de acordo com o critério

dos benefícios e dos danos. Há ocasiões em que utilizamos um bem

como se fosse um mal e, ao contrário, um mal como se fosse um bem.

78 ◆ Ética I

Consideramos ainda a auto-suficiência um grande bem; não que deva-

mos nos satisfazer com pouco, mas para nos contentarmos esse pouco

caso não tenhamos o muito, honestamente convencidos de que desfru-

tam melhor a abundância os que menos dependem dela; tudo o que é

natural é fácil de conseguir; difícil é tudo o que é inútil.

Os alimentos mais simples proporcionam o mesmo prazer que as igua-

rias mais requintadas, desde que se remova a dor provocada pela falta:

pão e água produzem o prazer mais profundo quando ingeridos por

quem deles necessita.

Habituar-se às coisas simples, a um modo de vida não luxuoso, portan-

to, não é só conveniente para a saúde, como ainda proporciona ao ho-

mem os meios para enfrentar corajosamente as adversidades da vida:

nos períodos em que conseguimos levar uma existência rica, predispõe

o nosso ânimo para melhor aproveitá-la, e nos prepara para enfrentar

sem termos as vicissitudes da sorte.

Quando, então, dizemos que o fim último é o prazer, não nos referimos

aos prazeres dos intemperantes ou aos que consistem no gozo dos sen-

tidos, como acreditam as pessoas que ignoram o nosso pensamento, ou

não concordam com ele, ou o interpretam erroneamente, mas ao prazer

que é a ausência de sofrimentos físicos e de perturbações da alma. Não

são, pois, bebidas nem banquetes contínuos, nem a posse de mulhe-

res e rapazes, nem o sabor dos peixes ou das outras iguarias de uma

mesa farta que tornam doce uma vida, mas um exame cuidadoso que

investigue as causas de toda escolha e de toda rejeição e que remova

as opiniões falsas em virtude das quais uma imensa perturbação toma

conta dos espíritos. De todas essas coisas, a prudência é o princípio e

o supremo bem, razão pela qual ela é mais preciosa do que a própria

filosofia; é dela que originaram todas as demais virtudes; é ela que nos

ensina que não existe vida feliz sem prudência, beleza e justiça sem fe-

licidade. Porque as virtudes estão intimamente ligadas à felicidade, e a

felicidade é inseparável delas.

Na tua opinião, será que pode existir alguém mais feliz do que o sábio,

que tem um juízo reverente acerca dos deuses, que se comporta de

modo absolutamente indiferente perante a morte, que bem compreen-

de a finalidade da natureza, que discerne que o bem supremo está nas

coisas simples e fáceis de obter, e que o mal supremo ou dura pouco,

ou só nos causa sofrimentos leves? Que nega o destino, apresentado

por alguns como o senhor de tudo, já que as coisas acontecem ou por

necessidade, ou por acaso, ou por vontade nossa; e que a necessidade é

Epicurismo e Estoicismo ◆ 79

incoercível, o acaso instável, enquanto nossa vontade é livre, razão pela

qual nos acompanham a censura e o louvor?

Mais vale aceitar o mito dos deuses, do que ser escravo do destino dos

naturalistas; o mito pelo menos nos oferece a esperança do perdão dos

deuses através das homenagens que lhes prestamos, ao passo que o

destino é uma necessidade inexorável.

Entendendo que a sorte não é uma divindade, como a maioria das pes-

soas acredita (pois um deus não faz nada ao acaso), nem algo incerto,

o sábio não crê que ela proporcione aos homens nenhum bem ou ne-

nhum mal que sejam fundamentais para uma vida feliz, mas, sim, que

dela pode surgir o início de grandes bens e de grandes males. A seu ver,

é preferível ser desafortunado e sábio, a ser afortunado e tolo; na prática,

é melhor que um bom projeto não chegue a bom termo, do que che-

gue a ter êxito um projeto mau.

Medita, pois, todas estas coisas e muitas outras a elas congêneres, dia e

noite, contigo mesmo e com teus semelhantes, e nunca mais te sentirás

perturbado, quer acordado, quer dormindo, mas viverás como um deus

entre os homens. Porque não se assemelha absolutamente a um mortal

o homem que vive entre bens imortais.

A seguir, apresentamos uma classificação dos principais tipos de desejos a partir da carta citada para ilustrarmos melhor o pen-samento de Epicuro:

Desejos naturais Desejos frívolos

Necessários Somente naturais Artificiais Irrealizáveis

Para a felicidade

Para o corpo livrar-se da ansiedade

Para a vida (nutrição)

Variações de prazeres, busca

do agradávelRiqueza, glória Desejo de

imortalidade

Para Epicuro, muitas coisas impedem a felicidade humana, mas a principal delas é uma espécie de ansiedade e sua teoria ética é melhor compreendida se vista como uma proposta de cura para males como a ansiedade, o temor, etc. Talvez uma boa forma de resumirmos os principais ensinamentos éticos de Epicuro seja re-produzindo as quatro etapas da cura, que podem ser sintetizadas a partir do poema de Filodemus:

80 ◆ Ética I

Não temas os deuses.

Não temas a morte.

O bem pode ser alcançado.

O mal pode ser suportado.

A seguir, vamos comentar brevemente cada um desses preceitos.

“Não temas os deuses.” Um dos traços fundamentais do epicu-rismo é a idéia de que os deuses são, pela sua própria natureza, felizes e, portanto, não têm preocupações, nem com as necessi-dades humanas. Eles, então, são um modelo de virtude e felicida-de e não devem ser temidos. Segundo Epicuro, os deuses sempre acolhem aquelas pessoas que são como eles, sendo parecidos com suas próprias virtudes. Conta-se que o próprio Epicuro dizia estar preparado para competir com Zeus em felicidade, se ele apenas ti-vesse um pedaço de bolo e um copo de água. Esse pensamento está intimamente ligado à outra idéia ética epicurista, a saber, o ideal de uma vida simples, que apresentaremos a seguir.

“Não temas a morte.” Esse é um princípio ético fundamental do epicurismo. Como vimos acima, Epicuro sustenta que a morte, supostamente a mais atemorizadora das coisas más, nada é, pois quando existimos, a morte não está presente, e quando a morte está presente, então já não existimos. Para ele, a razão para não temer a morte é simples: as coisas boas ou más consistem em ex-periências sensíveis e a morte é a privação da sensibilidade. Muitos vivem com temor da morte e esta é uma das principais causas da sua infelicidade. Todavia, se aplicarmos a tese epicurista, para vi-vermos felizes temos que viver sem temor, inclusive sem temor da morte. O sábio epicurista nem rejeita a vida nem vive com temor da morte.

“O bem pode ser alcançado”. Para Epicuro, é relativamente fácil alcançar o bem. Assim, pouco precisamos para sermos felizes: pre-cisamos comida, água, moradia, segurança contra animais e pes-soas etc. Tais condições da felicidade estão facilmente disponíveis com pouco esforço ou dinheiro. Não precisamos de luxo para ser-mos felizes. Na verdade, quanto mais temos, mais queremos, e esta é uma das principais fontes de ansiedade e, conseqüentemente, de infelicidade. Epicuro recomendava uma vida simples como a mais

Epicurismo e Estoicismo ◆ 81

prazerosa e feliz. Apesar de alguns mal-entendidos que o epicuris-mo produziu, sendo confundido com um simples e tosco hedonis-mo, na verdade Epicuro não recomendava que todos os prazeres deveriam ser procurados, mas somente os moderados, fáceis de alcançar (cf. Epicuro 1994: 30). A auto-suficiência também é um grande bem e esta pode ser alcançada facilmente com um modo de vida simples, sem extravagâncias. Desse modo, a vida filosófica com amigos é facilmente atingível e é constitutiva da verdadeira felicidade.

“O mal pode ser suportado.” Outro ensinamento ético de Epicuro é este: o que causa temor é, na verdade, fácil de suportar. Epicuro não negava que a doença e a dor são desagradáveis, mas sustentava que a natureza nos fez de tal modo que não devemos aumentá-los vivendo com medo. A doença é breve ou crônica, leve ou intensa, mas um desconforto crônico e intenso é muito raro e, por conse-guinte, não precisamos temê-lo. Por isso, o epicurismo sustenta que devemos reconhecer os limites das nossas necessidades, reconhe-cer os limites da nossa capacidade de sofrer e viver sem aumentar a nossa dor pelo constante temor de que seremos infelizes.

Como vimos, contrariamente ao que é comumente sustentado, o epicurismo não recomenda simplesmente uma vida de prazeres. Sobre a relação entre o prazer e as virtudes, Epicuro, como vimos, sustentou que a prudência é o princípio de todos os preceitos éticos e o mais alto bem. É por isso que a prudência é mais valiosa que a filosofia, pois a prudência é a fonte de todas as outras virtudes, ensinando que é impossível viver de forma prazerosa, sem viver prudentemente, com honra e justiça, e é impossível viver pruden-temente, com honra e justiça, sem viver prazerosamente. Pois as virtudes são acréscimos naturais da vida prazerosa e a vida praze-rosa é inseparável delas. Apesar de uma aparente incoerência no pensamento epicurista, a saber, entre a tese de que a vida filosófica é o mais alto bem e a afirmação de que a prudência é mais valiosa que a própria filosofia, é certo que Epicuro, no primeiro parágra-fo da Carta a Menescau, deixa absolutamente claro que nunca é muito cedo nem é muito tarde para filosofar e que nunca se deve impedir alguém de estudar filosofia, seja o jovem ou o idoso, pois ambos devem praticar aquilo que produz a felicidade.

82 ◆ Ética I

3.2 O estoicismo romanoO epicurismo foi introduzido no Império Romano por Lucré-

cio, cuja obra De rerum natura (Sobre a Natureza das Coisas) pos-suiu alto valor literário e filosófico. Todavia, o texto concentra-se na filosofia da natureza epicurista e por isso não será tratado aqui. Mas foi o estoicismo que encontrou um terreno mais propício no Império Romano para florescer. Achar uma explicação para esse fenômeno foge aos objetivos desse capítulo.

Apesar do fato de que o estoicismo tenha sido fundado por Zenão (que ensinava num stoa = pórtico) e de alguma maneira refundado por Cleantes, e ter sido muito influente no período he-lenístico, é no Império Romano que ele encontra a sua elaboração mais completa em Sêneca, Epitetus, Marco Aurélio e, em alguma medida, em Cícero. Apesar de se autodeclarar um cético, Cícero, na verdade, construiu um sistema filosófico eclético tendo a sua ética muitos elementos estóicos. Sua obra De officiis defende as quatro virtudes básicas, que mais tarde serão chamadas “cardiais”, a saber, a sabedoria (basicamente entendida em termos aristotéli-cos, isto é, da vida contemplativa), a justiça (agora entendida como respeito à propriedade, cumprimento dos contratos e do princípio “não causar dano”), a fortitude (compreendida a partir da resistên-cia do filósofo à influência das coisas exteriores) e a temperança (domínio das paixões). A obra de Cícero contribuiu imensamen-te para divulgar a filosofia grega no Império Romano. Por isso, o estoicismo acabou por influenciar mais o pensamento romano do que o próprio epicurismo. Tão influente foi o estoicismo nesse período que ele acabou sendo confundido com a própria filosofia: o estóico era a personificação do próprio ideal do sábio. Todavia, há distinções importantes entre o estoicismo grego e romano: en-quanto o primeiro era “individualista”, o segundo, como veremos, dará grande importância aos deveres cívicos.

Dado que não é possível cobrir todos os pensadores estóicos aqui, nos concentraremos nas principais idéias dos estóicos roma-nos Sêneca e Marco Aurélio e neles procuraremos esclarecer as re-lações entre virtude e felicidade. Ou melhor, procuremos mostrar como, para esses filósofos, virtude é felicidade.

Epicurismo e Estoicismo ◆ 83

A beatitude também não é mera felicidade entendida

como contentamento momentâneo. Nos estóicos

ela tem um sentido maior do que a mera satisfação de

apetites, posição esta que influenciará o cristianismo, o

qual transformará a beatitude numa felicidade divina

alcançável somente na vida pós-morte.

Para compreendermos o lugar da virtude na ética estóica de Sêneca, usaremos aqui, por uma série de razões, o texto De Vita Beata, apesar do fato de que os textos De Constantia Sapientis, o qual trata do ideal da sabedoria, e De Tranquillitate Animi, o qual trata da imperturbabilidade da alma, também possuem importan-tes elementos éticos. Sêneca escreveu muitas Cartas expondo suas idéias éticas, as quais nos reportaremos brevemente a seguir.

Sêneca começa De Vita Beata dizendo que todas as pessoas dese-jam naturalmente viver felizes, mas muitos não sabem o caminho para a felicidade. É esse caminho que é o objeto de sua investiga-ção. Para Sêneca, a vida feliz (beata) não pode ser atingida senão através de uma mente sã (sana mens), constante, forte, corajosa, resoluta diante das circunstâncias da vida, atenta, mas sem obses-são, às necessidades corporais, indiferente frente ao destino (for-tunae) etc. Esse ‘bem’ pode ser expresso de muitas outras formas: “o bem supremo é a mente que despreza as mudanças e se deleita apenas na virtude” ou “é o poder incomparável da mente, com experiência prática da vida, calma em suas ações, e cheia de carinho e cuidado por aqueles a quem ela se associa” ou “o homem feliz é aquele para quem não há bem ou mal exceto uma mente boa ou má” ou “a vida feliz é ter uma mente livre, ereta, sem medo, firme, não dominada por desejos, honrada” etc. (Sêneca 1994: 15s.). Todas essas são formas de dizer que o bem e o mal não estão nas coisas, mas é o pensamento que os faz assim. Esta é uma idéia fundamental de uma ética de virtudes: o valor moral do ato está na intenção. Ou melhor, a virtude é a fonte de tudo o que é bom (Sêneca, Carta LXXIV.25.3-4).

Um dos tópicos mais interessentes do escrito De Vita Beata é a discussão entre prazer e virtude. Contrariamente a muitos estóicos que viam no epicurismo uma simples defesa de uma vida de pra-zeres, Sêneca procura mostrar que, na verdade, os ensinamentos de Epicuro possuem alto valor moral e chegam a recomendar a austeridade (1994: 27). Desse modo, Sêneca argumenta que a vir-tude jamais necessita do prazer como complemento, mas o prazer sim, se não for temperado pela virtude, é fonte de muitos vícios e, portanto, de infelicidade. Por isso, cabe à virtude a função de guiar as nossas escolhas. A exata relação entre o prazer e a virtude é esta: “deixe a virtude ir primeiro estabelecer o padrão; então, tere-

84 ◆ Ética I

Para os estóicos, o fogo, princípio material do universo, transforma-se em diferentes estados materiais gerando ciclos regulares. Todos esses ciclos são idênticos e, portanto, temos o eterno retorno: tudo já aconteceu e acontecerá novamente. Esse determinismo alcança em alguns autores o fatalismo: Ducunt volentem fata, nolentem trahunt.

mos prazer, mas de forma moderada.” (Idem, p.27). O estóico, portanto, não procura eliminar o prazer e as paixões, mas apenas controlá-las racionalmente.

A razão é um instrumento de controle das paixões, mas a razão usa a natureza como guia. E assim chegamos a um princípio fun-damental da ética estóica: viva em conformidade com a natureza. Nas palavras do próprio Sêneca: “Nós devemos tomar a natureza como nosso guia: ela é o que a razão consulta e atende. Assim, vi-ver de forma feliz é o mesmo que viver de acordo com a natureza.” (1994: 21) Esse pensamento mostra claramente que a ética estóica não pode ser desvinculada da cosmologia estóica que infelizmente não podemos tratar de forma detalhada aqui. Mas Sêneca, nova-mente elogiando Epicuro, recomenda que não nos entreguemos a um hedonismo vulgar, achando que a natureza aprova uma vida de excessos. Na verdade, pouco é necessário para satisfazer as ne-cessidades naturais. A moderação é uma virtude fundamental. O princípio ético “viver conforme a natureza” tem que ser compre-endido nesse contexto: trata-se de um princípio racional de con-duta, pois o logos governa o próprio universo.

Para compreendermos melhor, então, esse princípio da ética estóica, é necessário esclarecer o que é a própria virtude. Para Sê-neca, a virtude é adquirida pelo ensino e pela prática e, por isso, possui, assim como a própria filosofia, uma parte especulativa e outra parte prática. Uma pessoa deve primeiro apreender e depois praticar. Dito de outro modo, através da ação a pessoa deve rein-forçar aquilo que apreendeu (Carta XCIV.47.4-6). O hábito é for-mador da virtude: é o constante exercício do controle que leva à virtude do autocontrole.

Sêneca segue a idéia grega de que o mais alto bem é a harmonia da alma e que as virtudes formam um todo e os vícios são um sinto-ma de desacordo. Novamente, entre todas as virtudes, a sabedoria é a que estabelece a possibilidade de alcançar as outras. O ideal do ho-mem sábio (e, para Sêneca, tratava-se mesmo de um ideal, pois ele próprio não se considerava sábio, mas apenas amante da sabedoria, isto é, um filósofo, alguém à procura da sabedoria) estabelece o pa-drão para as virtudes. Por exemplo, os prazeres do homem sábio, ao contrário do homem vulgar, são calmos e moderados. É o sábio que

Tela “The Death of the Seneca” pintada por Luca Giordano, em 1684. Sêneca (4 a.C. - 65 d.C.)

Epicurismo e Estoicismo ◆ 85

controla as paixões; não são as paixões que controlam o sábio. O ide-al estóico é a apathia, um estado de indiferença em relação ao prazer e à dor. Não se trata de estirpar as paixões, mas de controlá-las; não se trata de evitar os prazeres, mas de usufruí-los com moderação; não se trata de evitar emoções, mas de tê-las na medida adequada.

A virtude é, entretanto, a sua própria recompensa. Não devemos procurar a virtude porque ela é vantajosa ou capaz de produzir um tipo mais alto de prazer. Segundo Sêneca,

“você comete um erro quando você pergunta por que eu procuro a virtude, pois você está procurando por algo maior do que o mais alto. Você pergunta o que eu espero da virtude? A própria virtu-de. Pois ela não tem nada melhor para dar: ela é a sua própria recompensa.” (1994: 23)

A virtude é auto-suficiente. A vida virtuosa, baseada numa mente firme, livre, harmônica, elegante etc. é o summum bonum, a própria felicidade. Portanto, erra quem pergunta por algo maior. A verdadeira felicidade é viver de forma virtuosa.

Se queremos, agora, saber mais especificamente quais são as virtudes que o sábio recomenda ou o estóico deve possuir, então teremos uma lista grande e diversificada, o que se torna um pro-blema para uma ética de virtudes, como veremos no capítulo 5. O próprio Sêneca enumera em diferentes lugares do texto De Vita Beata diferentes virtudes: a paciência, a coragem e a perseveran-ça estão ligadas ao enfrentamento com o destino; a generosidade e a mansidão são fundamentais nas relações com os outros seres humanos; a moderação está relacionada com os apetites e assim por diante. Certamente, a justiça, a integridade, a magnimidade etc. também fazem parte da alma virtuosa. É, enfim, necessário apontar para algumas virtudes que são mais caracteristicamente associadas ao estóico: a imperturbabilidade da alma e a indiferen-ça perante as coisas materiais. Como veremos a seguir, Marco Au-rélio apresentará uma lista maior de qualidades, com mais de 40 virtudes, que são recomendáveis.

Há um outro ponto importante a ser destacado a partir do texto de Sêneca De Vita Beata. Assim como o epicurismo, o estoicismo recomenda não temer a morte como condição de uma vida virtuo-sa, feliz. Sêneca comenta o caso de um filósofo epicurista, Diodorus,

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que tirou a própria vida ao cortar-se a garganta. Muitos viam o fato como um ato de temeridade, até mesmo de loucura. Mas Sêneca não o condena e salienta que Diodorus o fez com uma consciência boa e feliz. Ao morrer, Diodorus teria louvado a tranqüilidade com que levou a vida chegando a ancorar num porto seguro e citando as seguintes palavras enquanto morria: “Eu vivi e segui o percurso que o destino estabeleceu.” (Sêneca 1994: 35) Sêneca não apenas não condena o ato de Diodorus, mas recomenda o seu exemplo.

Sidgwick comenta nesses termos o encorajamento estóico ao suícidio:

“Isso, à primeira vista, nos parece inconsistente com a vida vir-tuosa que eles recomendam e com a crença na ordenação divina do mundo. Os seres humanos são comumente levados ao suícidio pelas misérias do mundo, mas, podemos perguntar, como o sábio, aquele para quem a dor não é um mal, pode abandonar o posto que a divina razão estabeleceu para ele? A resposta é que mesmo que a dor não seja um mal, ainda assim é uma alternativa a ser rejeitada, se um estado de ausênsia de dor é, então, alcançado. E, por outro lado, a vida não é um bem do ponto de vista da sabe-doria e embora a sua preservação deva ser geralmente preferida, podem surgir casos nos quais o sábio recebe indicações naturais claras de que a morte é preferível à vida.” (1960: 80)

Não se trata mais apenas de não temer a morte, mas de buscá-la voluntariamente quando viver é pior que morrer.

Com Sêneca, temos visto os principais elementos da ética es-tóica. Ao tratarmos agora de Marco Aurélio, não iremos repetir esses pontos, mas procuraremos discutir algumas das principais contribuições desse pensador que viveu e reinou durante o auge do Império Romano, há quase vinte séculos atrás.

O Livro I das Meditações é impar na história da ética, pois nele encontramos exemplos de pessoas virtuosas que foram modelos para Marco Aurélio. Essa é uma das idéias fundamentais da ética de virtudes: não há outro critério para o correto senão o mode-lo exemplar da pessoa virtuosa e Marco Aurélio assim escreveu um capítulo impressionante da história da ética das virtudes. Os exemplos para a educação moral de Marco Aurélio foram: do avô, modéstia e temperamento; da mãe, reverência e simplicidade; de

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Rusticus, a necessidade de praticar e melhorar constantemente o caráter; de Apollonius, independência e liberdade; de Sextus, o cuidado dos amigos, a tolerância com os simples; de Severus, o amor à verdade e à justiça baseada na igualdade; de Maximus, o autocontrole; etc. A introdução termina com uma longa lista das qualidades do Imperador Pius, o pai adotado de Marco Aurélio: a paciência, a magnimidade, o senso de justiça ao dar a cada um o que lhe é devido, o firme propósito e a constância nas decisões tomadas, indiferença às honrarias, a tenacidade, a consideração pelos outros, a moderação etc. É quase desnecessário ressaltar que Marco Aurélio viu no pai o ideal estóico do cidadão do mundo, não apenas um homem sábio sob o ponto de vista especulativo, mas sobretudo prático, devotado à sua função pública, justo, cal-mo, resoluto, tolerante, piedoso, simples, carinhoso...

Mas a lista de virtudes não para aí. Nas Meditações, vez por outra Marco Aurélio enumera outras virtudes que considera importan-tes tendo destaque a vida racional com certa orientação social. As mais citadas são: “sinceridade, dignidade, força ao suportar a dor, indiferença ao prazer, contentamento, auto-suficiência, mansidão, liberdade, simplicidade, bom senso, magnimidade” (Livro V.5) e “espírito elevado, liberdade e piedade” (Livro V.9) e “encontrar contentamento na simplicidade, auto-respeito, indiferença do que está entre a virtude e o vício; amar a espécie humana; seguir o divi-no.” (Livro VII.31); enfim, aconselha “não pense que porque você perdeu a esperança por ser um lógico ou um cientista natural, você portanto pode perder a esperança de ser livre, ter auto-respeito, ter preocupações sociais e obedecer o divino.” (Livro VII.67) Essas virtudes são frequentemente repetidas de forma não sistemática, como se Marco Aurélio estivesse querendo lembrar-se delas cons-tantemente para as praticar.

É claro que não é possível comentar todas essas qualidades aqui. Talvez seja mesmo humanamente impossível atingir um grau de perfeição em todas, mas os estóicos sustentavam que a virtude é singular e indivisível, isto é, uma pessoa não poderia ter uma vir-tude e não as outras. Ou você é virtuoso ou não! A sabedoria é condição para qualquer ação virtuosa e, por conseguinte, também capaz de “unificar” todas as outras virtudes.

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Para Marco Aurélio, a virtude é o bem maior, a condição suficien-te da felicidade. Num paragráfo famoso das Meditações escreveu:

Se encontras na vida humana um bem mais valioso do que a justiça, a

verdade, a temperança, a coragem, em suma, a satisfação de tua inteli-

gência, de um lado consigo mesma, por prover a que sigas em teus atos

a razão reta, e de outro com o teu destino, nos quinhões independentes

de teu arbítrio – se divisas, digo, um bem mais valioso, entrega-te a ele

de todo coração e desfruta essa ventura suprema que descobriste.

Se, porém, nada te depara mais valioso do que aquele nume alojado

em teu íntimo, que reduziu à obediência os teus impulsos, que escruta

as idéias, que, no dizer de Sócrates, se arrancou às paixões dos senti-

dos, que se subordinou aos deuses e cogita do bem da Humanidade; se

verificas que tudo mais, comparado com ele, é diminuto e desvalioso,

não dês oportunidade a nenhum outro guia que, por te atrair e desviar,

impeça que continues, sem lutas, a honrar com primazia aquele bem

particular, o teu.

De fato, não te é lícito, ao bem segundo a razão e os interesses do Esta-

do, opor seja o que for de natureza diversa, como o louvor da multidão,

o poder, a riqueza, o gozo dos prazeres. Todos esses objetos, embora

pareçam, por algum tempo, quadrar a tua natureza, costumam assumir

de repente o domínio e desencaminhar.

Tu, repito, escolhe franca e livremente o mais valioso e apega-te a ele.

- Mas o mais valioso é o que dá proveito.

- Se tiras proveito como ser racional, adota-o; se como ser animal, con-

fessa-o e guarda modestamente o teu juízo, cuidado para não te enga-

nares no exame (Livro III.6)

É importante observar, inclusive a partir desta meditação, que Marco Aurélio possui uma ética estóica que poderíamos qualificar de social, superando o “individualismo” helenista dos primeiros estóicos e epicuristas e de alguma forma voltando à tese aristotéli-ca da estreita vinculação entre ética e política. Para Marco Aurélio, “o bem de um ser racional é a vida social. Já faz muito tempo que foi mostrado que nós nascemos para a associação na comunida-de.” (Meditações, Livro V.16) Enquanto imperador, os deveres polí-ticos estavam relacionados com Roma, mas enquanto ser humano Marco Aurélio, assim como muitos outros estóicos, compreendia-

Marco Aurélio (121 - 180)

Epicurismo e Estoicismo ◆ 89

se como cidadão do mundo. Escreve Antônio Marco Aurélio, o autor das Meditações: “Minha cidade e meu país, enquanto eu sou Antônio, é Roma; como homem, é o mundo. Portanto, somen-te as coisas que são benéficas para essas comunidades são boas para mim.” (Livro VI. 44) É exatamente a partir da idéia de bem comum que nasce o senso de dever do estóico romano. Uma das principais contribuições de Marco Aurélio é exatamente a de co-locar o dever no centro das discussões éticas. A ética estóica, por conseguinte, dá um peso bastante grande ao conceito de dever, do agir em conformidade com regras morais que são, basicamente, leis da natureza humana. Essa idéia não é apenas importante para a ética, mas fundamenta, através da noção de lei natural, a própria jurisprudência romana e a Filosofia do Direito posterior.

Como é salientado na citação anterior, para Marco Aurélio, o próprio universo, essa “unidade totalmente ordenada,” era com-preendido como uma grande cidade: “O universo é, e sempre foi, uma cidade, pois qual outro governo pode ser dito que é comum a toda a humanidade? Disso, da cidade comum, nós derivamos nos-sa inteligência, nossa razão, nossa lei.” (Livro VI. 4) Esse cosmo-politismo estóico, como veremos no próximo capítulo, inspirará a noção de “cidade de Deus” em Agostinho e será, como veremos em Ética II, uma idéia básica da ética de Kant.

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