cap5 a sociedade no homem, berger

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Cap5 A Sociedade No Homem, Berger

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    Captulo 5 A Perspectiva Sociolgica - A Sociedade no Homem

    No captulo anterior talvez tenhamos dado ao leitor excelentes motivos para crer que a sociologia deva assumir o ttulo de "cincia sinistra", atribudo Economia. Depois de descrevermos a sociedade como uma priso lgubre, devemos agora mostrar ao leitor pelo menos alguns tneis pelos quais possa escapar desse sombrio determinismo. Antes disso, contudo, temos de acrescentar mais algum negrume ao quadro.

    At aqui, abordando a sociedade sobretudo segundo o aspecto de seus sistemas de controles, temos encarado o indivduo e a sociedade como duas entidades antagnicas. A sociedade foi vista como uma realidade externa que pressiona e coage o indivduo. Se essa imagem no for modificada, obteremos uma impresso bastante errnea da relao, ou seja, uma impresso de massas humanas constantemente forando seus, grilhes, cedendo s autoridades coatoras de dentes rilhados, sendo levadas sempre obedincia pelo' medo do que poder ocorrer se agirem de outra forma.. Tanto o conhecimento ordinrio da sociedade como a anlise sociolgica propriamente dita nos mostram que no este o caso. Para a maioria de ns, o jugo da sociedade parece suave. Por qu? Certamente no porque o poder da sociedade seja menor do que indicamos no ltimo captulo. Nesse caso, por que esse poder no nos causa maior sofrimento? J se fez referncia resposta sociolgica pergunta - porque quase sempre desejamos exatamente aquilo que a sociedade espera de ns. Queremos obedecer s regras. Queremos os papis que a sociedade nos atribui. E isto, por sua vez; possvel no porque o poder da sociedade seja menor, e sim porque muito maior do que at agora afirmamos. A sociedade determina no s o que fazemos, como tambm o que somos. Em outras palavras, a localizao social no afeta apenas nossa conduta; ela afeta tambm nosso ser. Para esclarecer esse elemento essencial da perspectiva sociolgica, examinaremos mais trs reas de investigao e interpretao, as da teoria do papel, a sociologia do conhecimento e a teoria do grupo de referncia.

    A teoria do papel foi uma criao intelectual quase inteiramente americana. Alguns de seus germes remontam a William James, mas seus pais diretos so outros dois pensadores americanos, Charles Cooley e George Herbert Mead. No podemos pretender fazer aqui uma introduo histrica a esse fascinante setor da histria Intelectual. Ao invs de tentar sequer esboar essa histria, procederemos mais sistematicamente, comeando a examinara teoria do papel com outra olhada ao conceito de Thomas, a definio da situao.

    O leitor se recordar que Thomas via a situao social como Uma realidade estabelecida por acordo ad /zoc entre aqueles que dela participam, ou, mais exatamente, entre aqueles que a definem. Do ponto de vista do participante individual, isto significa que cada situao lhe apresenta expectativas especificas e exige dele respostas especficas a essas expectativas. Como j vimos, em quase todas, as situaes sociais existem presses poderosas para garantir que as respostas sejam as adequadas. A sociedade existe porque as definies da maioria das pessoas para as situaes mais importantes so mais ou menos as mesmas. Os motivos do editor e do autor dessas linhas podem ser um tanto diferentes, mas as maneiras como ambos definem a situao em que este livro est sendo produzido so suficientemente similares para que a produo seja possvel. Da mesma forma, numa sala de aula podem estar presentes interesses os mais dispares, alguns dos quais tero pouca relao com a atividade educacional que supostamente ali se desenrola; entretanto, na maioria dos casos estes interesses (digamos que um estudante deseja estudar a matria lecionada, ao passo que outro simplesmente se matricula em todos os cursos freqentados por uma certa loura) podem coexistir numa situao sem a destruir. Em outras palavras, h uma certa margem no grau em que a resposta tem de satisfazer a expectativa para que uma situao permanea sociologicamente vivel. E' claro que ser inevitvel alguma forma de conflito ou desorganizao social se as definies das situaes forem excessivamente discrepantes - digamos, se alguns estudantes interpretarem o encontro na sala de aula como uma festa ou se um autor no tiver inteno de produzir um livro, apenas utilizando seu contrato com um editor para pressionar outro.

    Embora um indivduo mdio encontre expectativas muito diferentes em diversas reas de sua vida, as situaes que produzem essas expectativas enquadram-se em certos grupos. Um estudante pode fazer dois cursos diferentes, com dois professores, em dois departamentos universitrios, com considerveis variaes nas expectativas encontradas nas duas situaes (digamos, formalidade ou informalidade nas relaes entre professor e alunos). No obstante, as situaes sero suficientemente semelhantes entre si e a outras situaes escolares anteriores para possibilitar ao estudante dar em ambas situaes essencialmente a mesma resposta geral. Para usarmos outras palavras, em ambos os casos, com apenas algumas modificaes, ele ser capaz de desempenhar o papel de estudante. Um papel, portanto, pode ser definido como uma resposta tipificada a uma expectativa tipificada. A sociedade

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    pr-definiu a tipologia fundamental. Usando a linguagem do teatro, do qual se derivou o conceito de papel, podemos dizer que a sociedade proporciona o script para todos os personagens. Por conseguinte, tudo quanto os atores tm a fazer: assumir os papis que lhes foram distribudos antes de levantar o pano. Desde que desempenhem seus papis como estabelecido no script, o drama social pode ir adiante como planejado.

    O papel oferece o padro segundo o qual o indivduo deve agir na situao. Tanto na sociedade quanto no teatro, variar a exatido com que os papis fornecem instrues ao ator. Tomando como exemplo os papis ocupacionais, o papel do lixeiro envolve um padro mnimo, ao passo que os mdicos, clrigos e oficiais do exrcito tm de adquirir toda espcie de maneirismos caractersticos, hbitos de linguagem e gestos, tais como otimismo diante do doente, palavreado santarro ou garbo militar. Contudo, seria erro grave considerar o papel apenas como um padro regulador para aes externamente visveis. Uma pessoa sente-se mais apaixonada ao beijar, mais humilde ao se ajoelhar e mais indignada ao sacudir o punho. Isto , o beijo no s6 expressa paixo, como tambm a fabrica. Os papis trazem em seu bojo tanto as aes como as emoes e atitudes a elas relacionadas. O professor que representa uma cena de sabedoria a se sentir sbio. O pregador passa a crer no que prega. O soldado descobre pruridos marciais em seu peito ao vestir a farda. Em cada um desses casos, embora a emoo ou atitude j existissem, antes de se assumir o papel, este, inevitavelmente, refora aquilo que j existia. Em muitos casos h bons motivos para se acreditar que absolutamente nada antecedia, na conscincia do ator, o desempenho do papel. Em outras palavras, uma pessoa se torna sbia ao ser nomeado professor, crente ao se entregar a atividades que pressupem crena e pronto para batalha ao marchar em ordem unida.

    Vejamos um exemplo. Um homem recentemente promovido a oficial, principalmente se subiu na hierarquia a partir da graduao mais baixa, "a princpio se sentir pelo menos levemente embaraado com as continncias que agora recebe dos praas que encontra. E' provvel que lhes responda de maneira amistosa, quase como se pedisse desculpas. Os novos distintivos em sua" farda ainda so coisas que ele simplesmente colocou ali, quase como um disfarce. Na verdade, o novo oficial poder at dizer a si mesmo e a outras pessoas que no fundo ele ainda a mesma pessoa, que simplesmente adquiriu novas responsabilidades (entre as quais, en passant, o dever de aceitar as continncias dos subalternos). No provvel que essa atitude dure muito. A fim de desempenhar seu novo papel de oficial, nosso homem tem de manter uma certa atitude _ a qual tem implicaes bastante definidas. Apesar da conversa mole a esse respeito, habitual nos chamados exrcitos, democrticos, como o americano, uma das implicaes fundamentais a de que um oficial um superior, com direito a obedincia e respeito, com base nessa superioridade. Toda continncia prestada por um inferior hierrquico um ato de obedincia, recebido como coisa natural pelo homem que a retribui. Assim, a cada continncia prestada e aceita (juntamente, claro, com uma centena de outros atos cerimoniais que realam sua nova posio), fortifica-se a convico de nosso oficial _ e suas, por assim dizer, premissas ontolgicas. Ele no s age como oficial, como sente-se oficial. Terminaram o embarao, a atitude de desculpas, o meio_ sorriso tranqilizador. Se em alguma ocasio um praa lhe prestar continncia sem a dose adequada de entusiasmo ou mesmo cometer o ato impensvel de no lhe prestar continncia, o oficial no determinar apenas uma punio por violao do regulamento militar. Ser levado com todas as fibras de seu ser a exigir reparao de uma ofensa contra a ordem normal de seu universo.

    E' importante acentuar nesse exemplo que s muito raramente esse processo deliberado ou baseado em reflexo. O oficial no se sentou e imaginou todas as coisas que deveriam acompanhar seu novo papel, inclusive as coisas que deveria sentir. A fora do processo est justamente em seu carter inconsciente, reflexo. Ele se transformou em oficial quase to naturalmente como um menino se torna um rapago de olhos azuis, cabelos castanhos e 1,80m de altura. Tambm no seria correto supor que esse homem deva ser um tanto estpido ou uma exceo entre seus camaradas. Pelo contrrio, o excepcional o homem que reflete sobre seus papis (um tipo, alis, que provavelmente seria mau oficial). At mesmo pessoas muito inteligentes, quando em dvida quanto a seus papis na sociedade, se envolvero ainda mais na atividade que gera a dvida, ao invs de se porem a refletir. O telogo que duvida de sua f rezar mais e freqentar a Igreja com mais assiduidade, o homem de negcios tomado de escrpulos devido presso que exerce sobre os empregados comea a ir ao escritrio tambm aos domingos, e o terrorista que sofre de pesadelos apresenta-se como voluntrio para execues noturnas. E claro que essas atitudes so perfeitamente corretas. Todo papel tem sua disciplina interior, aquilo que os monsticos catlicos chamariam de sua "formao". O papel d forma e constri tanto a ao quanto o ator. E' dificlimo fingir neste mundo. Normalmente, uma pessoa incorpora o papel que desempenha.

    Todo papel na sociedade acarreta uma certa identidade. Como vimos algumas dessas Identidade so triviais e transitrias, como em algumas ocupaes que exigem pouca modificao no ser e seus participantes. No difcil passar de lixeiro a vigia noturno. E' bem mais difcil passar de clrigo a oficial. E' muitssimo difcil passar de negro para branco. E quase impossvel passar de homem para mulher. Essas diferenas na facilidade ou dificuldade com que se muda de papel no deve obscurecer o fato de que at mesmo as identidades que julgamos constituir a essncia de nossas personalidades foram atribudas socialmente. Da mesma forma como se adquire papis raciais e com eles se identifica, h tambm papis sexuais. Dizer "Sou homem" constitui uma proclamao de papel, tanto quanto dizer "Sou coronel do Exrcito dos Estados Unidos". Estamos bem cientes do fato de que

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    uma pessoa nasce com o sexo masculino, ao passo que nem mesmo o militar mais rigoroso e desprovido de humor imagina que haja nascido com uma guia dourada pousada em seu umbigo. Entretanto, o fato de se nascer macho, do ponto de vista biolgico, tem muito pouco que ver com papel especfico, definido socialmente (e, naturalmente, socialmente relativo), que motiva a declarao "Sou homem". Uma criana do sexo masculino no tem de aprendera experimentar uma ereo. Mas tem de aprender a ser agressivo, a ter ambies, a competir com outras pessoas, a desconfiar de uma atitude demasiado gentil de sua parte. O papel masculino em nossa sociedade, entretanto, exige todas essas coisas que se tem de aprender, como exige tambm uma identidade masculina. Ser capaz de ereo no basta _ se bastasse, regimentos inteiros de psicoterapeutas estariam sem trabalho.

    O significado da teoria do papel poderia ser sintetizado dizendo-se que, numa perspectiva sociolgica, a identidade atribuda socialmente, sustentada socialmente e transformada socialmente. O exemplo do homem em processo de se tornar oficial talvez baste para ilustrar a maneira como as identidades so atribudas na vida adulta. Contudo, mesmo papis que so muito mais fundamentais, para aquilo que os psiclogos chamariam de personalidade, do que aqueles ligados a uma, determinada atividade adulta so atribudos, de maneira muito semelhante, por um processo social. Isto j foi demonstrado abundantemente em estudos de "socializao" - o processo pelo qual uma criana aprende a ser um membro participante da sociedade.

    E' provvel que o trabalho terico mais penetrante sobre este processo seja o de Meadi no qual a gnese do eu identificada com a descoberta da sociedade. A criana descobre quem ela ao aprender o que a sociedade. Aprende a desempenhar os papis que lhe so adequados, ao aprender como diz Mead, "a assumir o papel do outro" _ o que, alis, a funo scio-psicolgica crucial da brincadeira, na qual as crianas representam vrios papis sociais e ao assim fazer descobrem o significado dos papis que lhes so atribudos. Todo esse aprendizado ocorre, e s pode ocorrer, em interao com outros seres humanos, quer se tratem dos pais ou de qualquer outra pessoa que eduque a criana. A criana primeiro assume papis ligados quelas pessoas que Mead chama de seus "outros significativos", isto , aquelas que lidam com ela, mais de perto e cujas atitudes so decisivas para a concepo que a criana faz de si mesma. Mais tarde, a criana aprende que os papis que representa so relevantes no s para seu circulo ntimo, como tambm se relacionam com as expectativas da sociedade em geral. Esse nvel mais alto de abstrao na resposta social denominado por Mead de descoberta do "outro generalizado". Ou seja, no s a me que espera que a criana seja boazinha, limpa e que diga a verdade; a sociedade espera a mesma coisa. S quando surge essa concepo geral da sociedade que a criana se torna capaz de formar uma concepo clara de si prpria. Na experincia infantil, "eu" e "sociedade" so o verso e o reverso da mesma medalha.

    Em outras palavras, identidade no uma coisa pr__ existente atribuda em atos de reconhecimento social. Somos aquilo que os outros crem que sejamos. A mesma idia expressa na conhecida descrio de Cooley do eu como o reflexo de um espelho. Isto no significa, claro, que no existam certas caractersticas com as quais um indivduo nasce, que fazem parte de sua herana gentica, a qual se manifesta em qualquer meio social. Nosso conhecimento da biologia humana ainda no nos possibilita uma imagem muito clara da extenso em que isto ser verdade. Sabemos, contudo, que a margem para a formao social dentro desses limites genticos bastante grande. Mesmo sem dispormos de respostas cabais para as questes biolgicas, podemos dizer que ser humano ser considerado humano, da mesma forma que ser um certo tipo de homem significa ser considerado como tal. A criana privada de afeto e ateno humanas torna-se desumanizada. A criana a quem concedido respeito vem a respeitar-se. Um menino tido como bobo torna-se bobo, da mesma forma que um adulto tratado com o temor devido a um deus da guerra comea a se considerar como tal e a agir como compete a tal figura _ e, na verdade, funde sua identidade com a que corresponde a essas expectativas.

    As identidades so atribudas pela sociedade. E' preciso ainda que a sociedade as sustente, e com bastante regularidade. Uma pessoa no pode ser humana sozinha e, aparentemente, no pode apegar-se a qualquer identidade sem o amparo da sociedade. A auto-imagem do oficial como oficial s pode ser mantida num contexto social no qual outras pessoas estejam dispostas a reconhec-la nessa identidade. Se esse reconhecimento for subitamente retirado, geralmente no tardar muito para que a auto-imagem seja abalada.

    Os casos de retirada radical de reconhecimento por parte da sociedade nos ensinam muita coisa a respeito do carter social da identidade. Por exemplo, um homem que da noite para o dia passa de cidado livre a condenado v-se submetido imediatamente a um ataque macio contra a concepo que faz de si mesmo. Pode tentar desesperadamente apegar-se a essa concepo, mas na falta de outras pessoas que confirmem sua velha identidade ser-lhe- quase impossvel mant - la. Com assustadora rapidez, ele descobrir que est agindo como se espera que um condenado aja e sentindo todas as coisas que se espera que um condenado sinta. Seria errneo encarar o processo como uma simples desintegrao de personalidade. Mais correta seria considerar o fenmeno como uma reintegrao de personalidade, em nada diferente, em sua dinmica scio-psicolgica, do processo pela qual a antiga

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    identidade foi integrada. O fato que nosso homem era tratado por pessoas importantes que o rodeavam como um homem responsvel, digno, obsequioso e de gosto apurado. Conseqentemente, ele podia ser tudo isso. Agora, as paredes da priso o separam das pessoas cujo reconhecimento possibilitava a demonstrao dessas qualidades. Cercam-no agora pessoas que o tratam como um irresponsvel, vigarista, egocntrico e desleixado, que exige superviso constante. As novas expectativas tipificam-se no papel de condenado, que constitui resposta a elas, da mesma forma quanto as velhas expectativas integravam-se num diferente padro de conduta. Em ambos os casos, a identidade vem com a conduta, e esta ocorre em resposta a uma situao social especfica.

    Os casos extremos em que um indivduo despojado de maneira radical de sua antiga identidade simplesmente ilustram com mais vigor processos que ocorrem na vida cotidiana. Nossas vidas se desenrolam dentro de uma complexa trama de reconhecimentos e no_ reconhecimentos. Trabalhamos melhor quando estimulados por nossos superiores. E' difcil no sermos desajeitados numa reunio onde sabemos que as pessoas nos consideram ineptos. Tornamo-nos espirituosos quando as pessoas esperam que sejamos engraados, e tipos interessantes quando sabemos que temos tal reputao. Inteligncia, humor, habilidade manual, devoo religiosa e at potncia sexual respondem com igual vivacidade s expectativas alheias. Isto torna compreensvel o processo, j mencionado, segundo o qual os indivduos preferem ligar-se a pessoas que sustentem suas auto_ interpretaes. Em termos sucintos, todo ato de ligao social resulta numa escolha de identidade. Inversamente, toda identidade exige ligaes sociais especficas para. sua sobrevivncia. Os pssaros da mesma plumagem vivem juntos no por luxo, mas por necessidade. O intelectual torna_ se "bitolado" depois de ser seqestrado pelo exrcito. O seminarista perde cada vez mais o senso de humor ao se aproximar a poca da ordenao. O operrio que ultrapassa todas as quotas de trabalho verifica que passa a ultrapass-Ias ainda mais depois de receber uma medalha da administrao. O jovem ansioso com relao sua virilidade torna-se um leo na cama depois de encontrar uma moa que o considera um avatar de Don Juan.

    Para relacionarmos essas observaes com o que ficou dito no captulo anterior, o indivduo se localiza na sociedade dentro de sistemas de controle social, e cada um desses sistemas contm um dispositivo de gerao de identidade. Na medida que for capaz, o individuo tentar manipular suas ligaes (e sobretudo as ntimas) de maneira a fortalecer as identidades que lhe proporcionaram satisfao do passado _ casando-se com uma moa, que o julgue inteligente, escolhendo amigos que o considerem simptico, escolhendo uma ocupao que o mostre como uma pessoa de futuro. Em muitos casos, naturalmente, essa manipulao no possvel. Nesse caso, tem_ se de fazer o melhor possvel com as identidades de que se dispe.

    Essa perspectiva sociolgica do carter da: identidade nos proporciona uma compreenso mais profunda do significado humano do preconceito. Surge, ento, uma percepo deprimente: o pr-julgamento afeta no s o destino externo da vtima nas mos, de seus opressores, mas tambm sua prpria conscincia, na medida em que ela moldada pelas expectativas da sociedade. A coisa mais terrvel que o preconceito pode fazer a um ser humano fazer com que ele tenda a se tornar aquilo que a imagem preconceituosa diz que ele . O judeu num meio anti-semita tem de lutar com afinco para no se tornar cada vez mais parecido ao estereotipo anti-semita, da mesma forma que o negro numa si-tuao racista. Sintomaticamente, essa luta s ter possibilidade de xito se o indivduo for protegido de sucumbir (ao programa traado pelo preconceito para sua personalidade) por aquilo a que chamaramos de contra reconhecimento, por parte de membros de sua comunidade imediata. O mundo gentio poderia ver um homem como apenas mais um judeu desprezvel sem importncia, e trat-lo como tal, mas esse no-reconhecimento de seu valor pode ser neutralizado pelo contra-reconhecimento dentro da prpria comunidade judaica como, digamos, maior especialista no Talmude na Letnia.

    Em vista da dinmica scio-psicolgica desse mortfero jogo de reconhecimentos, no surpreende que o problema da "identidade judaica" s tenha surgido entre os modernos judeus ocidentais depois que a assimilao na sociedade judaica comeou a debilitar o poder da prpria comunidade judaica para atribuir identidades alternativas a seus membros, em oposio s identidades a eles atribudas pelo anti-semitismo. Quando um indivduo obrigado a se ver refletido num espelho construdo de modo a refletir uma imagem deformada, ele tem de procurar freneticamente outros homens com outros espelhos, pois de outra forma chegar a esquecer que um dia j teve outro rosto. Para usarmos palavras um Pouco diferentes, a dignidade humana uma questo de permisso social.

    O mesmo relacionamento entre sociedade e identidade pode ser visto nos casos em que, por um motivo ou outro, a identidade de um indivduo mudada drasticamente. A transformao da identidade, tanto quanto sua gnese e sua manuteno constitui um processo social. J mostramos como qualquer reinterpretao do passado, qualquer alternao de uma auto-imagem para outra, exige a presena de um grupo que conspire para provocar a metamorfose. Aquilo que os antroplogos chamam de rito de passagem envolve o repdio de uma antiga identidade (digamos, ser criana) e a iniciao numa nova identidade (como a de adulto). As sociedades modernas possuem ritos de passagem mais brandos, como a instituio do noivado, pela qual o indivduo gentilmente levado, por uma conspirao de todos

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    os envolvidos, a transpor a linha divisria entre a liberdade do celibato e o cativeiro do casamento. No fosse essa instituio, um nmero muito maior de pessoas seria tomado de pnico ao ltimo momento, diante a enormidade do passo que esto prestes a dar.

    J vimos tambm como a "alternao" transforma identidades em situaes altamente estruturadas como a educao religiosa e a psicanlise. Tomando novamente esta ltima como exemplo oportuno, ele envolve uma tensa situao social em que o indivduo levado a repudiar sua antiga concepo de si mesmo e a assumir uma nova identidade, a que foi programada para ele na ideologia psicanaltica. Aquilo que as psicanalistas chamam de "transferncia", a intensa relao social entre analista e analisando, consiste essencialmente na criao de um meio social artificial dentro do qual possa ocorrer a alquimia da transformao, ou seja, dentro do qual essa alquimia possa tornar-se plausvel ao indivduo. Quanto mais durar a relao e quanto mais intensa se tornar, mais o indivduo se liga sua nova identidade. Finalmente, ao ser "curado", essa nova identidade j se tornou realmente aquilo que ele . Portanto, no h por que negar, com Alma gargalhada marxista, a afirmao do psicanalista de que seu tratamento ser mais eficiente se o paciente o visitar com freqncia, durante muito tempo, e lhe pagar honorrios considerveis. Conquanto seja bvio que isto coincide com o interesse econmico do analista, bem plausvel sociologicamente que a atitude esteja factualmente correta. O que a psicanlise faz na verdade a construo de uma nova identidade. A ligao do indivduo a essa nova identidade aumentar evidentemente na proporo direta do tempo, da intensidade e do investimento financeiro que ele aplicou em sua construo. E' claro que sua capacidade de rejeitar toda a histria como uma impostura se tornar mnima depois de ele haver investido vrios anos de sua vida e uma quantia astronmica de dinheiro.

    O mesmo tipo de meio "alqumico" criado em situaes de "terapia de grupo". A recente popularidade deste mtodo na psiquiatria americana no pode tambm ser interpretada simplesmente em bases econmicas. Ela tem sua base sociolgica no princpio perfeitamente correto de que as presses de grupo atuam efetivamente para fazer o indivduo aceitara nova imagem que lhe proporcionada. Erving Goffman, socilogo contemporneo, fez uma descrio vvida da maneira como essas presses atuam no contexto de um hospital de doenas mentais, com os pacientes finalmente "cedendo" interpretao psiquitrica de sua existncia que constitui o quadro de referncia comum do grupo "teraputica".

    O mesmo processo tem lugar sempre que todo um grupo de indivduos tem de ser "quebrado" e levado a aceitar uma nova definio de si mesmos. Acontece no treinamento bsico dos recrutas de um exrcito, e com muito mais intensidade no treinamento de pessoal para carreira permanente nas foras armadas, como nas academias militares. Acontece nos programas de doutrinao e formao" de funcionrios para organizaes totalitrias como as SS nazistas ou a elite do Partido Comunista. Recentemente, adquiriu preciso cientfica nas tcnicas de "lavagem cerebral" empregadas em prisio-neiros das polcias secretas totalitrias. A violncia desses mtodos, em relao s iniciaes mais rotineiras da sociedade, deve ser explicada sociologicamente em termos do grau radical de transformao de identidade que procurado e da necessidade funcional, nesses casos, de que a aquisio da nova identidade esteja prova de novas "alternaes.

    Quando levada s suas concluses lgicas, a teoria do papel faz muito mais que simplesmente nos proporcionar uma taquigrafia conveniente para a descrio de vrias atividades sociais. Ela nos oferece uma antropologia sociolgica, isto , uma viso do homem baseada em sua existncia na sociedade. Essa viso nos mostra que o homem representa papis dramticos no grande drama da sociedade e que, falando-se sociologicamente, ele as mscaras que tem de usar para representar. Alm disso, a pessoa aparece agora num contexto dramtico, fiel sua etimologia (persona, o termo tcnico com que se designa as mscaras dos atores no teatro clssico). A pessoa percebida como um repertrio de papis, cada um dos quais adequadamente equipado com uma determinada identidade. O mbito da pessoa individual pode ser medido pelo nmero de papis que capaz de desempenhar. A biografia da pessoa se nos afigura agora como uma seqncia ininterrupta de desempenhos num palco, para diferentes platias, s vezes exigindo mudanas totais de roupagens, sempre exigindo que o ator seja o personagem.

    Tal viso sociolgica desafia muito mais radicalmente que a maioria das teorias psicolgicas a maneira como habitualmente nos vemos. Desafia radicalmente um dos mais caros pressupostos acerca do "eu" __ sua continuidade. Visto sociologicamente, o "eu" deixa de ser uma entidade objetiva, slida, que se transfere de uma situao para outra. Ser um processo, criado e recriado continuamente em cada situao social de que uma pessoa participa, mantido coeso pelo tnue fio da memria. Em nossa anlise da reinterpretao do passado vimos quo tnue esse fio. Tampouco possvel, dentro dessa estrutura interpretativa, buscar no inconsciente o contedo "real" da personalidade, uma vez que, como j vimos, o presuntivo ego inconsciente est to sujeito produo social quanto o chamado ego consciente. Em outras palavras, o homem no tambm um ser social; social em todos os aspectos de seu ser aberto investigao emprica. Portanto, ainda falando-se sociologicamente, se algum

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    perguntar quem "realmente" um indivduo nesse caleidoscpio de papis e identidades, s se pode responder atravs da enumerao das situaes em que ele um coisa e das situaes em que outra.

    Ora, claro que tais transformaes no podem ocorrer ad infinitum e que algumas so mais fceis que outras. Um indivduo se habitua a tal ponto com certas identidades que, mesmo quando sua situao social muda, ele encontra dificuldade para acompanhar as novas expectativas. Isto demonstrado com toda clareza pelas dificuldades enfrentadas por indivduos saudveis e ativos quando obrigados a se aposentar. A capacidade de transformao da personalidade depende no s de seu contexto social, como tambm do grau de seu hbito a identidades anteriores e talvez tambm de certos traos genticos. Conquanto essas modificaes em nosso modelo se faam necessrias a fim de evitar uma radicalizao de nossa posio, elas no reduzem apreciavelmente a descontinuidade da personalidade, revelada pela anlise sociolgica.

    Se este modelo antropolgico no muito edificante lembra outro seria o empregado na psicologia do budismo primitivo na ndia, na qual a personalidade era comparada a uma longa fileira de velas, cada uma das quais acende o pavio da seguinte e se extingue. Os psiclogos budistas usavam essa imagem para desacreditar a idia hindu da transmigrao da alma, pretendendo dizer com o smile que no existe nenhuma entidade que passe de uma vela para outra. Entretanto, a mesma imagem se ajusta muito bem a nosso modelo antropolgico.

    Tudo isto poderia deixar a impresso de que na verdade no existe diferena essencial entre a pessoa comum e aquelas acometidas pelo distrbio que a psiquiatria chama de "personalidade mltipla". Desde que se acentuasse o adjetivo "essencial", talvez o socilogo concordasse com isto. A diferena prtica, contudo, que para as pessoas "normais" (isto , aquelas assim consideradas pela sociedade) h fortes presses no sentido de mostrarem coerncia nos vrios papis que desempenham e nas identidades que os acompanham. Tais presses so externas e internas. Externamente, os outros atores com quem se praticam os jogos sociais, e de cujo reconhecimento dependem os papis da prpria pes-soa, exigem que esta apresente ao mundo uma imagem razoavelmente coerente. Um certo grau de discrepncia de papis poder ser permitido, mas se certos limites de tolerncia forem ultrapassados a sociedade retirar seu reconhecimento ao indivduo em questo, definindo- o como ,uma aberrao moral ou psicolgica. Assim, a sociedade permitir que um indivduo seja um dspota no escritrio e um serve no lar, mas no lhe permitir personificar um oficial de polcia e usar as roupas designadas para o sexo oposto. A fim de permanecer dentro dos limites fixados para suas pantomimas, o individuo talvez tenha de recorrer a manobras complicadas para garantir uma segregao de papis. O papel imperial no escritrio ser ameaado pelo aparecimento da esposa numa reunio da diretoria, ou o papel de uma pessoa num crculo onde tida como exmia narradora ameaado pela intruso de um membro do outro crculo onde o exmio narrador tipificado como um sujeito que nunca abre a boca sem meter os ps pelas mos. Essa segregao de papis torna-se cada vez mais possvel em nossa civilizao urbana contempornea, com sua anonimidade e seus rpidos meios de transporte, embora persista o perigo de que pessoas com imagens contraditrias de si mesmas subitamente tropecem uma na outra e faam periclitar suas mtuas representaes. Esposa e secretria poderiam encontrar-se para tomar um caf e em sua conversa pulverizar as imagens do imperador no escritrio e do servo no lar. Nesse ponto, sem dvida, ser necessrio um psicoterapeuta para juntar os cacos do indivduo.

    H tambm presses internas no sentido de coerncia, talvez baseadas em profundssimas necessidades psicolgicas do indivduo de se ver como uma totalidade. At mesmo o ator urbano contemporneo, que representa papis mutuamente irreconciliveis em diferentes reas de sua vida poder talvez sentir tenses internas, embora possa controlar as externas mediante a cuidadosa separa-o de suas diversas mises en scene. Para evitar tais ansiedades, as pessoas geralmente segregam sua conscincia, bem como sua conduta. No queremos dizer com isto que elas "reprimam" suas identidades discrepantes para algum "inconsciente", pois dentro de nosso modelo temos todos os motivos para suspeitar de tais conceitos. Queremos dizer que elas focalizam sua ateno apenas naquela identidade particular de que, por assim dizer, necessitam no momento. As outras identidades so esquecidas enquanto durar essa cena especfica. Este processo poder talvez ser ilustrado pela maneira como atos sexuais desaprovados pela sociedade ou atos moralmente questionveis de qualquer espcie so segregados na conscincia. O homem que pratica, por exemplo, masoquismo homossexual possui uma identidade cuidadosamente construda e guardada apenas para essas ocasies. Quando a ocasio termina, ele devolve a identidade na portaria, por assim dizer, e volta para casa como pai afetuoso, marido responsvel e talvez at amante impetuoso de sua mulher. Da mesma forma, o juiz que sentencia um ru pena de morte segrega a identidade com a qual assim age do resto de sua conscincia, na qual um ser humano bondoso, tolerante e sensvel. O comandante do campo de concentrao nazista que escreve cartas sentimentais aos filhos no passa de um exemplo extremo de algo que ocorre continuamente na sociedade.

    O leitor erraria redondamente se julgasse que lhe estamos apresentando uma imagem da sociedade na qual todos tramam, conspiram e deliberadamente vestem disfarces para enganar-se mutuamente. Pelo contrrio, a representao de papis e os processos formadores de identidade so

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    geralmente irrefletidos e no planejados, quase, automticos. As necessidades psicolgicas de coe-rncia da auto-imagem a que nos referimos garantem isto. A fraude deliberada exige um grau de autocontrole psicolgico de que poucas pessoas so capazes. E' por isso que a insinceridade fenmeno relativamente raro. A maioria das pessoas sincera, porque este o caminho mais fcil, psicologicamente, Isto , elas acreditam no que representam, esquecem convenientemente a representao anterior e seguem pela vida contentes convictas de estarem altura de todas as expectativas. A sinceridade a conscincia do homem que se empolga com sua prpria representao. Ou, como se expressou David Riesman, o homem sincero aquele que acredita em sua prpria propaganda. Em vista da dinmica scio-psicolgica que acabamos de analisar, muito provvel que os assassinos nazistas sejam sinceros ao se descrever como burocratas encarregados de certas tarefas desagradveis, que realmente abominavam, sendo talvez incorreto supor que eles s digam isso para ganhar a simpatia de seus juizes. Seu remorso humanitrio ser provavelmente to, sincero quanto sua passada crueldade. Como observou o romancista austraco Robert Musil, no corao de todo assassino h um ponto em que ele eternamente inocente. As estaes da vida se sucedem, e uma pessoa tem de mudar de rosto como muda de roupa. No momento no estamos interessados nos problemas psicolgicos ou no significado tico dessa "falta de carter". S queremos frisar que este o procedimento habitual.

    Para relacionarmos o que acabamos de dizer sobre a teoria dos papis com o que ficou dito no captulo precedente a respeito dos sistemas de controle, reportamo- nos quilo que Hans Oerth e C. Wright Mills chamaram de "seleo de pessoas". Toda estrutura social seleciona as pessoas de que necessita para seu funcionamento e elimina aquelas que de uma, maneira ou de outra no servem. Se no houver pessoas a serem selecionadas, elas tero de ser inventadas - ou melhor, sero produzidas de acordo com as especificaes necessrias. Dessa forma, atravs de seus mecanismos de socializao e "formao", a sociedade manufatura o pessoal de que necessita para funcionar. O socilogo vira de cabea para baixo a idia comum de que certas - instituies surgem porque existem pessoas em disponibilidade. Pelo contrrio, guerreiros ferozes surgem porque h exrcitos a serem enviados a batalhas, homens piedosos porque h igrejas a construir; eruditos porque h universidades onde lecionar e assassinos porque h crimes a cometer. No correto dizer que cada sociedade tem os homens que merece. Antes, cada sociedade produz os homens de que necessita. Podemos tirar algum consolo do fato de que este processo de produo s vezes enfrenta dificuldades tcnicas. Veremos mais tarde que, alm disso, ele pode ser sabotado. No momento, contudo, podemos constatar que a teoria dos papis e suas percepes concomitantes acrescentam uma importante dimenso nossa perspectiva sociolgica da existncia humana.

    Se a teoria dos papis nos proporciona idias vividas sobre a presena da sociedade no homem, idias semelhantes podem ser obtidas de uma outra direo muito diferente - a chamada sociologia do conhecimento. Ao contrrio da teoria dos papis, a sociologia do conhecimento tem origem europia. O termo foi usado pela primeira vez na dcada de 20 pelo filsofo alemo Max Scheler. Outro pensador europeu, Karl Mannheim, que passou os ltimos anos de sua vida na Inglaterra, foi um dos que despertaram a ateno do pensamento anglo - saxnico para a nova disciplina. No cabe no escopo deste livro esmiuar as interessantes origens intelectuais da sociologia do conhecimento, que remontam a Marx, Nietzsche e ao historicismo alemo. A sociologia do conhecimento entra em nosso raciocnio para demonstrar que, tanto quanto os homens, as idias tm localizao social. Na verdade, isto pode servir como definio da disciplina para nossos propsitos: a sociologia do conhecimento tratada localizao social das idias.

    Com mais clareza que qualquer outro ramo da sociologia, a sociologia do conhecimento elucida o que se quer dizer ao afirmar que o socilogo o homem que pergunta a todo instante: "Quem disse?" Ela rejeita a idia de que o pensamento ocorra isolado do contexto social dentro do qual determinados homens pensam sobre determinadas coisas. Mesmo no caso de idias muito abstratas que aparentemente tm pouqussima conexo social, a sociologia do conhecimento tenta traar a linha que une o pensamento, seu autor e o mundo social deste. Isto pode ser visto com toda facilidade nos casos em que o pensamento serve para legitimizar uma determinada situao social, ou seja, quando ele a explica, justifica e santifica.

    Suponhamos um exemplo simples. Digamos que numa sociedade primitiva algum alimento necessrio s possa ser obtido viajando-se por mares traioeiros, infestados de tubares; Duas vezes por ano, os homens da tribo partem para busc-lo em suas precrias canoas. Suponhamos que as convices religiosas dessa sociedade incluam um artigo de f segundo o qual todo homem que deixar de participar dessa expedio perder sua virilidade, exceto os sacerdotes, cuja virilidade mantida por seus sacrifcios dirios aos deuses. Essa convico cria uma motivao para aqueles que se arriscam na viagem perigosa e proporciona simultaneamente uma legitimao para os sacerdotes, que ficam sempre no bem- bom. E' desnecessrio acrescentar que bem provvel que foram os sacerdotes quem inventaram a teoria. Em outras palavras, suspeitaremos que estamos diante de uma ideologia

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    sacerdotal. Entretanto, isto no significa que ela no seja funcional para a sociedade como um todo - afinal de contas, algum tem de ir, pois de outra forma sobrevir a fome.

    Falamos que existe uma ideologia quando uma certa idia atende a um interesse da sociedade. Com muita freqncia, embora nem sempre, as ideologias destorcem sistematicamente a realidade social com o intuito de sobressair onde isto lhes interessa. Ao examinar os sistemas de controle estabelecidos por grupos ocupacionais j vimos a maneira como as ideologias podem legitimar as atividades de tais grupos. O pensamento ideolgico, todavia, capaz de abranger coletividades humanas muito maiores. Por exemplo, a mitologia racial do Sul dos Estados Unidos serve para legitimar um sistema social praticado por milhes de seres humanos. A ideologia da "livre empresa" serve para camuflar as atividades monopolsticas de grandes companhias americanas, cuja nica caracterstica que tm em comum com o capitalista ao velho estilo a disposio constante de fraudar o pblico. A ideologia marxista, por sua vez, serve para legitimar a tirania praticada pela mquina do Partido Comunista, cujos interesses esto para o de Karl Marx assim como os de Elmer Gentry estavam para os do Apstolo Paulo. Em cada um desses casos, a ideologia tanto justifica o que feito pelo grupo cujo interesse atendido, como interpreta a realidade social de maneira a tornar a justificao plausvel. Essa interpretao muitas vezes parece extravagante a quem est de fora e "no entende o problema" (isto , que no tem interesses a defender). O racista americano capaz de afirmar ao mesmo tempo que as mulheres brancas tm profunda repugnncia ao mera pensamento de relaes sexuais com um negro, e que a mais leve sociabilidade inter-racial levar diretamente a tais relaes sexuais. E o gerente de uma indstria insistir em que suas atividades tendentes a manipular preos so realizadas em defesa do mercado livre. E o funcionrio do Partido Comunista arranjar uma explicao para provar que a limitao de escolha eleitoral a candidatos aprovados pelo partido constitui expresso de verdadeira democracia.

    Convm ressaltar mais uma vez que geralmente as pessoas que manifestam essas opinies esto sendo absolutamente sinceras. O esforo moral necessrio para mentir deliberadamente est alm da maioria das pessoas. E' muito mais fcil iludir a si prprio. Por conseguinte, importante distinguir o conceito de ideologia dos conceitos de mentira, fraude, propaganda ou prestidigitao. O mentiroso, por definio, sabe que est mentindo. O idelogo, no. No nos interessa neste ponto perguntar qual dos dois eticamente superior. Desejamos apenas acentuar ainda uma vez a maneira irrefletida e no pla-nejada como a sociedade normalmente funciona. A maioria das teorias de conspirao exageram grosseiramente a previdncia intelectual dos conspiradores.

    As ideologias tambm podem funcionar "latentemente", para usarmos a expresso de Merton em outro contexto. Voltemos mais uma vez ao Sul dos Estados Unidos como exemplo. Uma das coisas que ele tem de interessante a coincidncia geogrfica entre o Cinturo Negro e o Cinturo da Bblia. Isto , aproximadamente a mesma rea que pratica o sistema racial sulista em sua plena pureza apresenta tambm a maior concentrao de protestantismo ultraconservador, fundamentalista. Pode-se explicar essa coincidncia historicamente, mostrando-se o isolamento do protestantismo sulista em relao s correntes mais amplas do pensamento religioso desde os grandes cismas denominacionais, devido questo escravagista, antes da Guerra da Secesso. Essa coincidncia poderia ser tambm interpretada como expresso de dois aspectos diferentes de barbrie intelectual. No refutaramos nenhuma dessas explicaes, mas argumentaramos que uma interpretao sociolgica em termos de funcionalidade ideolgica daria uma viso melhor do fenmeno.

    O fundamentalismo protestante, conquanto obcecado pela idia de pecado, tem um conceito curiosamente limitado de sua extenso. Os pregadores revivalistas que vociferam. Contra a perversidade do mundo atm-se invariavelmente numa gama um tanto limitado de transgresses morais - fornicao, embriaguez, dana, jogo, pragas. Na verdade, do tanta nfase primeira dessas transgresses que na linguagem comum do moralismo protestante o termo "pecado" quase sinnimo do termo mais especfico "ofensa sexual". Diga-se o que se disser a respeito desse rol de atos perniciosos, todos eles tm em comum seu carter essencialmente privado. Na verdade, se um pregador revivalista chega a mencionar questes pblicas, ser geralmente em termos da corrupo privada dos detentores de cargos pblicos. As autoridades do governo roubam, o que mau. Tambm fornicam, bebem e jogam, o que presumivelmente ainda pior. Ora, a limitao do conceito de tica crist a delitos pessoais tem funes bvias numa sociedade cujas organizaes sociais fundamentais so dbias, para se dizer o mnimo, quando confrontadas com certos princpios do Novo Testamento e com o credo igualitrio da nao que nele acredita ter suas razes. O conceito privado de moralidade do fundamentalismo protestante concentra ateno nas reas de conduta que so irrelevantes para a manuteno do sistema social, e desvia a ateno daquelas reas onde uma inspeo tica criaria tenses para o perfeito funcionamento do sistema. Em outras palavras, o fundamentalismo protestante ideologicamente funcional para a manuteno do sistema social do sul dos Estados Unidos. No necessrio irmos at o ponto em que ele legitima diretamente o sistema, como nos casos em que a segregao racial proclamada como uma ordem natural ditada por Deus. No entanto, mesmo na ausncia de tal

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    legitimao manifesta", as convices religiosas em questo funcionam "latentemente" para manter o sistema.

    Embora a anlise das ideologias ilustre claramente o que se entende por localizao social das idias, seu mbito ainda muito estreito para demonstrar o pleno, significado da sociologia do conhecimento. Esta disciplina no trata exclusivamente das idias que servem a determinados interesses ou que deturpam a realidade social. Ao invs disso, a sociologia do conhecimento reivindica jurisdio sobre todo o reino do pensamento, no, claro, considerando-se como rbitro de validade (o que seria megalomanaco) mas sim na medida em que qualquer pensamento est fundado na sociedade. No queremos dizer com isto (como diria um intrprete marxista) que todo pensamento humano deva ser considerado como "reflexo'" direto de estruturas sociais, nem tampouco que as idias deviam ser vistas como inteiramente impotentes para traar o rumo dos acontecimentos. O que que-remos dizer que todas as idias so examinadas cuidadosamente para se determinar sua localizao na existncia social das pessoas que as cogitaram. Nessa medida, pelo menos correto afirmar que a sociologia do conhecimento seja de tendncia antiidealista.

    Toda sociedade pode ser vista em termos de sua estrutura social e de seus mecanismos scio--psicolgicos, e tambm em termos da cosmoviso que atua como o universo comum habitado por seus membros. As cosmovises variam socialmente, de uma sociedade para outra e dentro de diferentes setores da mesma sociedade. E' nesse sentido que se diz que um chins vive num mundo diferente do mundo de um ocidental. Para ficarmos com este exemplo por um instante MarceI Granet, sinlogo francs fortemente influenciado pela sociologia durkheimiana, analisou o pensamento chins exatamente sob essa perspectiva de investigar seu "mundo diferente". A diferena, naturalmente, patente em questes como filosofia poltica, religio ou tica. Entretanto, segundo Granet, diferenas fundamentais podiam tambm ser encontradas em categorias como tempo, espao e nmero. Afirmativas muito semelhantes tm sido feitas em anlises de outras espcies, como as que comparam os "mundos" da antiga Grcia e do antigo Israel, ou o "mundo" do hindusmo tradicional com o do moderno Ocidente.

    A sociologia da religio constitui uma das reas mais fecundas, para esse tipo de investigao, em parte talvez porque nela o paradoxo da localizao social aparece de forma particularmente incisiva. Parece de todo imprprio que idias concernentes aos deuses, ao cosmos e eternidade estejam localizadas nos sistemas sociais dos homens, presos a todas as relatividades humanas de geografia e histria. Isto tem constitudo uma das pedras de tropeo emocionais da erudio bblica, sobretudo quando esta tenta descobrir o que chama de Sitz in Leben (literalmente, "stio na vida" __ quase a mesma coisa a que demos o nome de localizao social) de fenmenos religiosos particulares. Uma coisa discutir as afirmaes eternas da f crist, e outra muito diferente investigar como essas afirmaes podem estar relacionadas s frustraes, ambies e ressentimentos, muito temporais, de determinadas camadas sociais nas cidades poliglotas do Imprio Romano aonde os primeiros missionrios cristos levaram sua mensagem. Mais que isso, porm, o prprio fenmeno da religio em si pode ser localizado socialmente em termos de funes especficas, tais como legitimao da autoridade poltica e abrandamento de rebelio social (aquilo que Weber chamou de "teodicia do sofrimento" - ou seja, a maneira como a religio empresta sentido ao sofrimento, de modo a convert-lo, de fonte de revoluo a veiculo de redeno). A universalidade da religio, longe de constituir prova de sua validade metafsica, explicvel em termos de tais funes sociais. Ademais, as mudanas dos padres religiosos no decurso da histria tambm podem ser interpretados em termos sociolgicos.

    Tomemos como exemplo a distribuio de filiaes religiosas no mundo ocidental contemporneo. Em muitos pases ocidentais, a freqncia igreja pode ser correlacionada quase rigorosamente com classes sociais, de modo que, por exemplo, a atividade religiosa constitui uma das marcas de status de classe mdia, ao passo que a absteno de tal atividade caracteriza a classe proletria. Em outras palavras, parece haver uma relao entre a f de uma pessoa, digamos, na Trindade (ou pelo menos demonstraes exteriores dessa f) e sua renda anual - abaixo de certo nvel de renda parece que tal f perde toda plausibilidade, ao passo que acima desse nvel ela se torna coisa natural. A sociologia do conhecimento indagar como surgiu essa espcie de relao entre estatstica e salvao. As respostas, inevitavelmente, sero sociolgicas - em termos da funcionalidade da religio nesse ou naquele meio social. O socilogo no poder, naturalmente, fazer quaisquer declaraes sobre questes teolgicas em si, mas ser capaz de demonstrar que essas questes raramente tm sido transacionadas num vcuo social.

    Para voltarmos a um exemplo anterior, o socilogo no ser capaz de dizer s pessoas se lhes convm ligar-se ao fundamentalismo protestante ou a uma verso menos conservadora dessa f, mas poder mostrar-lhes como a escolha funcionar socialmente. Tampouco estar em condies de decidir para as pessoas se devem fazer batizar seus filhos ou se devem protelar esse ato, mas poder inform - las qual a expectativa quanto a isso nesse ou naquele estrato social. Tampouco ele poder sequer estimar a plausibilidade de uma vida alm tmulo, mas poder informar em que carreiras profissionais ser conveniente a uma pessoa pelo menos simular tal convico.

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    Alm dessas questes da distribuio social de religiosidade, alguns socilogos contemporneos (como, por exemplo, Helmut Schelsky e Thomas Luckmann) tm indagado se os tipos de personalidade produzidos pela moderna civilizao industrial permitem a continuao dos padres religiosos tradicionais e se, por vrios motivos sociolgicos e scio - psicolgicos, o mundo ocidental talvez j no esteja num estgio ps-cristo. A anlise dessas questes, entretanto, nos afastaria de nossa linha de raciocnio. Os exemplos religiosos devero ter sido suficientes para indicar a maneira como a sociologia do conhecimento localiza as idias na sociedade.

    O indivduo, por conseguinte, adquire socialmente sua cosmoviso quase da mesma forma como adquire seus papis e sua identidade. Em outras palavras, tanto quanto suas aes, suas emoes e sua auto-interpretao so pr-definidas para ele pela sociedade, da mesma forma que sua atitude cognitiva em relao ao universo que o rodeia. Alfred Schuetz expressou este fato em sua frase "mundo aceito sem discusso __ o sistema de pressupostos (aparentemente bvios e que se auto-ratificam) com relao ao mundo que cada sociedade engendra no curso de sua histria. Essa cosmoviso determinada socialmente j est, pelo menos em parte, incorporada na linguagem usada pela sociedade. E' possvel que certos lingistas tenham exagerado a importncia desse nico fator na criao de qualquer cosmoviso especfica, mas restam poucas dvidas de que a linguagem de uma pessoa pelo menos ajuda a dar forma sua atitude para com a realidade. Alm disso, obviamente, a linguagem no escolhida por ns, sendo-nos imposta pelo grupo social incumbido de nossa socializao inicial. A sociedade pr-define para ns esse mecanismo simblico fundamental com o qual apreendemos o mundo, ordenamos nossa experincia e interpretamos nossa prpria existncia.

    Da mesma forma, a sociedade fornece nossos valores, nossa lgica e o acervo de informao (ou desinformao) que constitui nosso "conhecimento". Rarssimas pessoas, e mesmo essas apenas em relao a fragmentos dessa cosmoviso, esto em condies de reavaliar aquilo que lhes foi assim imposto. Na verdade, no sentem nenhuma necessidade de reavaliao porque a cosmoviso em que foram socializados lhes parece bvia. Uma vez que ela tambm ser considerada assim por quase todos os membros de sua prpria sociedade, essa cosmoviso ratifica-se, valida-se. Sua "prova" est na experincia reiterada de outros homens que tambm a tomam como coisa natural, assentada. Enunciemos essa perspectiva da sociologia do conhecimento numa proposio sucinta: a realidade construda socialmente. Com essa formulao, a sociologia do conhecimento ajuda a sintetizar a afir-mativa de Thomas sobre, o poder da definio social e lana mais luz sobre a imagem sociolgica da natureza precria da realidade.

    A teoria dos papis e a sociologia do conhecimento representam elementos muito diferentes do pensamento sociolgico. Os importantes subsdios que fornecem a respeito dos processos sociais ainda no foram integrados teoricamente, exceto talvez no sistema sociolgico contemporneo de Talcott Parsons, demasiado complexo para ser exposto aqui. Contudo, uma conexo relativamente simples entre, as duas abordagens proporcionada pela chamada teoria do grupo de referncia, outra contribui-o americana. Utilizado pela primeira vez por Herbert Hyman na dcada de 40, o conceito do grupo de referncia foi, desenvolvido por vrios socilogos americanos (entre os quais Robert Merton e Tarnotsu Shibutani). Tem sido muito til na pesquisa do funcionamento de organizaes de vrios tipos, tais como militares e industriais, embora essa utilizao no nos interesse aqui.

    J se fez distino entre os grupos de referncia de que uma pessoa faz parte e aqueles para os quais ela orienta suas aes. Este ltimo tipo atender a nossos objetivos. Um grupo de referncia, nesse sentido, a coletividade cujas opinies, convices e rumos de ao so decisivos para a formao de nossas prprias opinies, convices e rumos de ao. O grupo de referncia nos proporciona um modelo com o qual nos podemos comparar continuamente. Especificamente, ele nos oferece um determinado ponto de vista sobre a realidade social, que poder ou no ser ideolgico no sentido anteriormente mencionado, mas que em qualquer caso ser parte e parcela de nossa participao nesse grupo particular.

    Certa vez a revista The New Yorker publicou um Cartum mostrando um jovem universitrio bem vestido falando a uma moa desgrenhada que desfila numa manifestao, portando um cartaz exigindo o fim dos testes nucleares. A legenda dizia mais ou menos: "Tenho a impresso de que no a verei hoje noite no Clube dos Conservadores Jovens". Esta vinheta demonstra a larga gama de grupos de referncia hoje disponveis a um universitrio. Qualquer estabelecimento de ensino superior, com exceo dos muitos pequenos, oferece uma ampla variedade de tais grupos. O estudante sequioso de participao poder unir-se a qualquer nmero de grupos de definio poltica, poder orientar-se para um bando beatnik, ligar-se a um crculo de gente-bem ou simplesmente andar de um lado para outro com o grupinho formado em torno de um professor popular. E' desnecessrio dizer que, em cada um desses casos, ser preciso cumprir certos requisitos em termos de vesturio e comportamento - entremear a conversa com jargo esquerdista, boicotar a barbearia local, usar palet e gravata ou andar descalo a partir da primavera. Mas a escolha de grupo trar consigo tambm um conjunto de smbolos intelectuais, os quais seria conveniente exibir com um ar de fidelidade __ ler a National Review ou Dissent (conforme ocaso), apreciar a poesia de Allen Ginsberg, lida ao som do jazz mais dissonante possvel,

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    conhecer os nomes de batismo dos presidentes de meia dzia de companhias em que se est de olho ou demonstrar desdm indizvel por algum que admita no conhecer os Poetas Metafsicos. O republicanismo Ia Goldwater, o Trotskysmo, o Zen Budismo ou a Nova Critica _ todas essas augustas possibilidades de Weltansclzauung podem engrandecer ou estragar reunies nos sbados noite, envenenar as relaes com os colegas de quarto ou tornar-se base de fortes alianas com pessoas que antes se evitava a todo transe. E ento se descobre ser possvel "ganhar" certas moas com um carro esporte e outras com John Donne. claro que s um socilogo mal-intencionado poderia julgar que a escolha entre um Jaguar ou a poesia de Donne ser determinada em termos de necessidade estratgica.

    A teoria do grupo de referncia demonstra que a filiao ou a desafiliao normalmente traz consigo compromissos cognitivos especficos. Uma pessoa se liga a um grupo e por isso "sabe" que o mundo isso ou aquilo. Outra troca este grupo por outro e passa a "saber" que devia estar enganada. Todo grupo a que uma pessoa se reporta proporciona um ngulo de viso privilegiado do mundo. Todo papel incorpora uma cosmoviso. Ao se escolher pessoas especficas, escolhe-se um lugar especifico do mundo para viver. Se a sociologia do conhecimento nos oferece um panorama da construo social da realidade, a teoria do grupo de referncia aponta-nos as muitas pequenas oficinas em que "igrejinhas'" de construtores do universo fabricam seus modelos do cosmo. A dinmica scio-psicolgica que condiciona este processo ser presumivelmente a mesma que j examinamos ao analisar a teoria dos papis - o impulso humano de ser aceito, de participar, de viver num mundo junto com outras pessoas.

    Algumas das experincias realizadas por psiclogos sociais sobre a maneira como a opinio de grupo afeta at mesmo a percepo de objetos fsicos do-nos uma idia da fora irresistvel desse impulso. Diante de um objeto de, digamos, 70 cm de comprimento, um indivduo progressivamente modificar sua estimativa inicial, correta, se colocado num grupo experimental em que todos os membros afirmem terem certeza de que o comprimento real ser 30 cm aproximadamente. No de espantar, portanto, que as opinies grupais no tocante a questes polticas, ticas ou estticas exeram fora ainda maior, uma vez que o indivduo assim pressionado no pode recorrer, como ltimo argumento, a um gabarito poltico, tico ou esttico. Se o tentasse fazer, o grupo naturalmente negaria o gabarito. A medida de validade de um grupo o gabarito de ignorncia de outro grupo. Os critrios de canonizao e amaldioamento so intercambiveis. Quem escolhe seus companheiros, escolhe seus deuses.

    Destacamos neste captulo alguns elementos do pensamento sociolgico que nos proporcionam uma imagem da sociedade atuando no homem, ampliando nossa anterior perspectiva do homem atuando na sociedade. Neste ponto, nossa imagem da sociedade como uma enorme priso j no parece satisfatria, a menos que lhe acrescentemos o detalhe de grupos de prisioneiros ocupados ativamente em manter suas paredes intactas. Nosso encarceramento na sociedade j nos parece algo criado tanto por ns prprios quanto pela operao de foras externas. Uma imagem mais adequada da realidade social seria agora a de um teatro de fantoches, com a cortina se levantando e revelando as marionetes saltando nas extremidades de seus fios invisveis, representar do animadamente os pequenos papis que lhe foram atribudos na tragicomdia a ser encenada. Entretanto, a analogia no bastante ampla. O Pierr do teatro de fantoches no tem vontade nem conscincia. Mas o Pierr do palco social nada deseja seno o destino que o aguarda no cenrio - e possui todo um sistema filosfico para prov-lo.

    O termo chave usado pelos socilogos para se referir aos fenmenos discutidos neste captulo "internalizao". O que acontece na socializao que o mundo social internalizado Pela Criana. O mesmo processo, embora talvez num grau mais fraco, ocorre a cada vez que o adulto iniciado num novo contexto social ou num novo grupo social. A sociedade, ento, no apenas uma coisa que existe l, no sentido durkheimiano, mas ela tambm existe "aqui", parte de nosso ser mais ntimo. Apenas uma compreenso da internalizao d sentido ao fato incrvel de que a maioria dos controles externos funcionem durante a maior parte do tempo para a maior parte das pessoas de uma sociedade. A sociedade no s controla nossos movimentos, como ainda d forma nossa identidade, nosso pensamento e nossas emoes. As estruturas da sociedade tornam-se as es-truturas de nossa prpria conscincia. A sociedade no se detm superfcie de nossa pele. Ela nos penetra, tanto quanto nos envolve. Nossa servido para com a sociedade estabeleci da menos por conquista que por conluio. s vezes, realmente, somos esmagados e subjugados. Com freqncia muito maior camos na armadilha engendrada por nossa prpria natureza social. As paredes de nosso crcere j existiam antes de entrarmos em cena, mas, ns a reconstrumos eternamente. Somos aprisionados com nossa prpria cooperao.

    Texto digitalizado da obra:

    BERGER, Peter. Perspectivas sociolgicas: uma viso humanstica. Petrpolis/RJ: Vozes, 1983.