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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE LETRAS PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LITERATURA SUELEN CRISTINA GOMES DA SILVA Cem um tempo que nos caiba: por uma poética do suspenso em Onde vais, Drama-poesia? Niterói, fevereiro de 2021.

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Page 1: C em um tempo qu e no s ca iba

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE LETRAS

PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LITERATURA  

SUELEN CRISTINA GOMES DA SILVA

Cem um tempo que nos caiba:  por uma poética do suspenso em Onde vais, Drama-poesia? 

Niterói, fevereiro de 2021.

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SUELEN CRISTINA GOMES DA SILVA

CEM UM TEMPO QUE NOS CAIBA:  POR UMA POÉTICA DO SUSPENSO EM ONDE VAIS, DRAMA-POESIA?

 

 

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos de Literatura do Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense, subárea Literatura Portuguesa e Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Estudos de Literatura. Orientador: Prof. Dr. Luis Maffei.

Niterói, fevereiro de 2021.

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S586c Silva, Suelen Cristina Gomes da

Cem um tempo que nos caiba : por uma poética do suspenso em

Onde vais, Drama-Poesia? / Suelen Cristina Gomes da Silva ;

Luis Cláudio de Sant'Anna Maffei, orientador. Niterói, 2021.

113 f. : il.

Dissertação (mestrado)-Universidade Federal Fluminense,

Niterói, 2021.

DOI: http://dx.doi.org/10.22409/POSLIT.2021.m.14327620793

1. Literatura Portuguesa. 2. Tempo (Filosofia). 3. Teatro

(Literatura). 4. Llansol, Maria Gabriela, 1931-2008. 5.

Produção intelectual. I. Maffei, Luis Cláudio de Sant'Anna,

orientador. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de

Letras. III. Título.

CDD -

Ficha catalográfica automática - SDC/BCG

Gerada com informações fornecidas pelo autor

Bibliotecário responsável: Sandra Lopes Coelho - CRB7/3389

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SUELEN CRISTINA GOMES DA SILVA

Cem um tempo que nos caiba: por uma poética do suspenso em Onde vais, Drama-poesia?

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-

graduação em Estudos de Literatura do Instituto de Letras

da Universidade Federal Fluminense, subárea Literatura

Portuguesa e Literaturas Africanas de Língua Portuguesa,

como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre

em Estudos de Literatura.

A referida Comissão constituída pelos professores doutores Maria Lúcia Wiltshire de

Oliveira (UFF), Cinara de Araújo (UFSB) e Luis Maffei (UFF, orientador) decidiu

aprovar a Dissertação.

Niterói, 08 de fevereiro de 2021.

Orientador(a):________________________________________________

Luis Maffei

Primeiro(a) Examinador(a):________________________________________

Maria Lúcia Wiltshire de Oliveira

Segundo(a) Examinador(a):_______________________________________

Cinara de Araújo

Profª. Dra. Luci Ruas - UFRJ (Suplente)

Profª. Dra. Ida Ferreira Alves - UFF (Suplente)

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Dedico: A meu futuro e passado. 

Aos meus sobrinhos Lorenzo e Carla. Ao Pietro, em memória de pirulito. 

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AGRADECIMENTOS

A Deus, pelo sopro de vida e viagem.

Ao Luis Maffei, por essa correnteza suave que é seu Poema. Pela (des)orientação.

Ao Bruno Praxedes, por ouvir em prosa, em apoio, enquanto eu ouço em verso.

À Thaís R. Martins, ou tia Thaís, para sempre, por me ensinar a amar - a vida, a escrita, a arte, os estudos. E à sua querida mãe, pai e família.

À Maria Luzia Gomes, “do lar”, e a João Vieira da Silva, lavrador, pelo rizoma que passa o sangue e a minhas irmãs e irmãos: família, a grande interrogação de afeto e força que Deus

decidiu me deixar.

À professora Maria Lúcia Wiltshire, por me (des)fazer ler Llansol como nunca e pelo mergulho no texto na banca, na cena, no meu poema.

À professora Cinara de Araújo, também pelo mergulho de banca, e pela arte que transborda.

À professora Tatiana Pequeno, pela partilha tão intensa que vem de antes e por ter sido banca.

Aos meus amigos e colegas da Pós-graduação, como Michael Weirich, Christine Oliveira e

Rodolpho Amaral, que fizeram tudo ser mais afetuoso ou mais radical.

Às professoras Eurídice Figueiredo e Ida Alves, pelas aulas de fulgor e muitas descobertas sobre a escrita de mulheres e a literatura portuguesa.

Às minhas amigas, amigos e amigues que continuaram a amizade, emanaram afeto, mesmo

sem o contato assíduo.

À Luisa Caron, pelos diversos momentos de parceria llansoliana.

A todas as pessoas pretas, como a Gisele Monteiro, que me incentivam a continuar a caminhada, “mineiramente”, mirando o “logo ali”, como Carolina, Conceição e Lélia.

A todo o corpo da Pós-graduação, por fazerem parte dos sonhos alheios.

À UFF, por me receber de braços largos, desde a primeira vez que pisei em Niterói, vindo do

pico de um dos morros de Cavalcante.

À escola pública, por também dar a ver além da linha do horizonte.

Ao CNPq, pela casa, comida e possibilidade de lavar roupa nestes 2 anos: sem elas, talvez essa dissertação não seria. E eu estaria com as luzes apagadas.

Page 7: C em um tempo qu e no s ca iba

Ao escrever a vida no tubo de ensaio da partida

esmaecida nadando, há neste inútil movimento

a enganosa-esperança de laçar o tempo

e afagar o eterno.

(Ao escrever… Conceição Evaristo)

tudo fora aliás, breve, apesar de tanto ter durado.

(M.G.L.)

Escrevendo, só sei dizer-lhe que acabaremos por nascer.

(M.G.L.)

— Por que não haverá relógio neste quarto? — Não sei... Mas assim, sem o relógio, tudo é mais afastado e

misterioso. A noite pertence mais a si própria... Quem sabe se nós poderíamos falar assim se soubéssemos a hora que é?

(O Marinheiro. Fernando Pessoa)

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Pelo começo: Se silêncio 

morro Se incêndio 

morro  

Com ou sem circun -flexo chão casa asa de avião 

sem cimento ou com limites, nunca devo então abrir a voz, saltar a boca 

verter meu leito em minhas palavras? Mortal 

é seu adjetivo inaugural. 

(14/08/2020)

Pelo fim:

Queda de  

um poema com sono cansado, sequer 

forças para abrir a boca em c maiúsculo para começar 

escorrega pelas folhas de bananeira querendo deixar 

ou deitar 

palavras. 

(05/08/2020)

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Cem um tempo que nos caiba:  por uma poética do suspenso em Onde vais, Drama-poesia? 

 

 Suelen Cristina Gomes da Silva 

RESUMO Esta dissertação desenvolve-se como uma possibilidade de atravessamento experimental e

exploratório do livro Onde vais, drama-poesia? (2000), da escritora portuguesa Maria

Gabriela Llansol, buscando, no rastro do texto em presentes, a compreensão de seu

movimento enquanto criador de uma poética do suspenso. Articulam-se vivências e conceitos

que se colocam em expansão na fricção entre a escrita da autora e a experiência teatral, o que

faz da teoria da literatura e do teatro dois campos teóricos centrais para esta análise, junto de

um pensamento filosófico. No ato de atravessar os diferentes jogos da escrita, miramos, com

Henri Bergson e Gilles Deleuze, na temporalidade presente com a hipótese de que seja uma

desencadeadora da suspensão do texto, de uma (não) poética do suspenso e de uma jornada

para o poema. Por esse tempo “passa” o poema, forma-se a imagem e permanece em

deslocamento a paisagem do texto.

Palavras-chave: Maria Gabriela Llansol; poética do suspenso; suspensão; presente; poema.

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With-out a time where fits us:for a poetics of the suspended in onde vais, drama-poesia?

Suelen Cristina Gomes da Silva

ABSTRACT:

This master thesis presents itself as a possibility of experimental and exploratory crossing of

the book Onde vais, drama-poesia? (2000), by writer Maria Gabriela Llansol, articulating

experiences and concepts that are in expansion in the friction between the author’s writing

and the theatrical experience. In the act of crossing, we look, with Henri Bergson and Gilles

Deleuze, at the present temporality with the hypothesis that it’s a trigger of the suspension of

the text, of a (not) poetics of the suspended and a journey to the poem. By this time the poem

“passes”, the image is formed and remains in displacement the landscape of the text.

Keywords: Maria Gabriela Llansol; poetic of suspended; suspension; present; poem.

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SUMÁRIO

PRÊT, TOUT LE MONDE?............................................................................................. p. 14

CAPÍTULO 1: __ A CENA DE ESCRITA...................................................................... p. 22

1.1 Abrindo as cortinas: jogo de cena e de escrita.................................................... p. 22

1.2 A cena e o presente em cena……………….......................................................... p. 27

1.3 A cena encena ou “o beijo da dupla boca desse enlace"...................................... p. 35

CAPÍTULO 2: NOSSO ENCONTRO-CURVA __......................................................... p. 42

2.1 O que pode uma pergunta?................................................................................... p. 42

2.2 Por uma geografia do vivo……………..…........................................................... p. 47

2.3 Onde vais, nascida? [Escrita de algum si]............................................................ p. 53

CAPÍTULO 3: __ AINDA O PRESENTE __.................................................................. p. 67

3.1 Sentir o tempo, rasurar o cronos, montar a cena................................................ p. 67

3.2 Do fulgor do legente……………………...…........................................................ p. 80

3.3 Do percurso do poema.……………..………........................................................ p. 89

ONDE VAIS, AFINAL? PRINCÍPIO DE CONCLUSÃO…………………….…….. p. 100

REFERÊNCIAS………………………………………………………………………... p. 104

Anexo 1 - BREVE DIÁRIO DAS BORDAS…………………………………………… p. 112

11 

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LISTA DE ABREVIATURAS DAS OBRAS LLANSOLIANAS CITADAS

OVDP - Onde vais, Drama-Poesia?

BMDT - Um beijo dado mais tarde

CLP - O começo de um livro é precioso

F - Finita

FP - Um falcão no punho

L - Lisboaleipzig (edição de 2014, contendo I e II)

LC - O livro das comunidades

SH - O senhor de Herbais

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LISTA DE POEMAS EM PERCURSO

(textos de minha autoria)

“Se silêncio…” - p. 8

“Queda de” - p. 8

“RJ, Niterói, 04/06/2020” - p. 21

“Hoje, em sala de aula” - p. 103

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PRÊT, TOUT LE MONDE?

Nas primeiras páginas do livro que guia, em mapas rasurados, esta escrita que ora se

apresenta como possibilidade de leitura, Llansol nos sobreavisa a respeito do que “quer” o

poema. “O sexo de ler que quer e está certo de encontrar/ não será possessivo,/ porque

libertar-se da posse é o seu movimento” (OVDP, p. 18). Temos, a partir desse querer, uma

dimensão inicial do que poderá querer a escrita, o livro, ou a legência proposta pela autora: a

“despossessão” de que fala Silvina Rodrigues Lopes. “A escrita de Maria Gabriela Llansol faz

renascer esse espaço onde a escrita nada tem a ver com a Regra, a autoridade ou a obediência,

mas com o viver mais chão, com o acompanhamento de todos os nadas que por ela participam

da lucidez do desejo” (LOPES, 1988, p. 16). Com esse horizonte, nosso trabalho se apresenta

como uma possibilidade de atravessamento experimental e exploratório do livro Onde vais,

drama-poesia? (2000), de Llansol, identificando algumas das diversas cenas do presente e

articulando vivências e conceitos que se colocam em expansão na fricção entre a escrita da

autora e a experiência teatral. Na jornada, partimos em direção aos rastros do poema, a ver

onde ou o que suspende.

Entro no universo de Maria Gabriela Llansol por uma razão que só recentemente vi

caracterizada pela própria autora em uma entrevista de 1977. Para ela, seu texto não é

meramente uma ficção tal qual concebemos a ideia, “mas uma pulsão para o aprofundamento

das fontes da alegria de viver” (LLANSOL, 2011, p. 55). Minha busca é, antes de tudo, por

vida, por uma experiência do sensível que me fora negada por muitos anos (gerações) e que,

agora, é meu lugar de escolha e fulgor: ao lado da poesia. Esse projeto comparece ao âmbito

de pesquisa a partir de uma experiência dupla: cênica e textual ou, em outros termos, em uma

via de atuação e outra de legência - a usar um termo llansoliano. Embora se desenvolva em

áreas diferentes, Literatura e Teatro, essa experiência se entrecruza na perspectiva do contato

e da ação proveniente desse contato. No teatro, a ação dramática se desenvolve entre ator/atriz

e o espectador que, para além de espectar, precisa realizar conjuntamente o percurso da trama

para que o contato aconteça e gere experiências outras no espaço e tempo nos quais ele se

encontra. No encontro com a literatura ocorre algo semelhante, principalmente na experiência

literária de Maria G. Llansol que foge para suas margens.

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Dito isto, “Prêt, tout le monde?” era a frase que, proferida por Ariane Mnouchkine, se

fazia ouvir por todos os espaços da sala de ensaio, na preparação de As Comadres

(originalmente Les Belles-soeurs, escrita por Michel Tremblay em 1965), comédia musical

cuja supervisão da direção (a direção em si) foi feita pela diretora do Théâtre Du Soleil, da

qual participei enquanto essa pesquisa germinava. Nem um alfinete sequer poderia estar

desatento ao que viria acontecer após essa convocação à entrada em cena. E entrávamos

todos. Eu, ora sendo “anja” pelas coxias, ora trabalhando o texto com as colegas atrizes ao 1

lado de Ariane, ora vivendo uma fervorosa troca de personagens entre coro, Lisa e Ginette.

Estreamos em Curitiba, fizemos temporadas no Rio de Janeiro e em São Paulo . Enquanto 2

isso, esta pesquisa era desenvolvida. Então, é com a mesma interrogação - em idioma presente

na vida de Llansol - que inicio o percurso desse tecido de escrita que se desenvolverá em uma

busca, antes de tudo, por vida: por uma vida em conjunto, que faça sentido. Em uma troca de

dedos, o destino das palavras é o toque do leitor a folhear o trabalho que se segue. E “o texto,

a novidade decisiva desse sonho […] sugere que comece pelas palavras mais simples”

(OVDP, p. 114). Começaremos, então, pelas palavras “mais simples”.

Foram muitos os títulos rascunhados para a dissertação ainda em projeto. Dentre eles,

“Da cena fulgor ao fulgor da cena: poética cênica da suspensão do tempo em Maria Gabriela

Llansol” e “Tempos a fio à cena do presente: poética cênica da suspensão do tempo em Maria

Gabriela Llansol”. Fica explícita a busca por uma poética cênica, a partir de um olhar no/ao

presente. De qualquer modo, o percurso é o mesmo: da “cena fulgor” llansoliana ao fulgor

característico da cena de escrita e da cena de ação. As duas formas de cena se tocam, mas

também se afastam, na medida em que se compreende Teatro como palavra encarnada e que a

cena de escrita está inicialmente no livro e a de ação em espaços fisicamente fora dele. Nossa

caminhada em direção às cenas fulgor entra em errância inspirada no prefácio “Eu leio assim

este livro”, de A. Borges, para O livro das Comunidades (2014, p. 10): “E sabe-se lá o que é

um Corpo Cem Memórias de Paisagem.”

A multiplicidade do “Cem” que se deixa ouvir “Sem” movimentou indagações que

resultaram - não como resposta, muito menos definitiva - no título que ora lhes é apresentado.

1 “Anja/anjo” foi a forma utilizada no processo para nomear primeiramente atores/atrizes que faziam assistência de cena; depois, para atrizes que, além de estar em cena, também executavam funções como convidar o público a entrar no teatro (com toques de sino no lugar dos tradicionais três sinais de entrada), anunciar a peça e fazer assistência de produção e palco. 2 Estreando em 2019, no Festival de Curitiba, a peça fez temporadas pelo Rio de Janeiro no Sesc Ginástico, Nova Iguaçu e Quitandinha, e em São Paulo no Sesc Consolação.

15 

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“Cem um tempo que nos caiba: por uma poética do suspenso em Onde vais, drama-poesia?”

é, por sua vez, uma fresta por onde se percebem as incertezas entre um corpo-livro que é Sem

garantias e, ao mesmo tempo, com Cem possibilidades. “Que escrita quer?” (OVDP, p. 31).

As possibilidades múltiplas de leitura de OVDP também são notáveis pela sua característica

de ser um corpo, em si mesmo, vazado, estilhaçado para as incontáveis passagens que o

povoam. São muitos os nós que embaraçam a comunidade textual de Llansol: as figuras, as

cenas fulgor, os encontros inesperados entre os três sexos - o homem, a mulher e a paisagem.

E, não menos importante, o nós que se refere ao contato entre escrevente, texto e legente.

Dessarte, para que o tempo comporte o tempo dos nós que habitam o texto, precisará

abandonar antes de tudo a forma cronológica tal qual concebemos a realidade. Esse abandono

da linearidade é percebido nos diversos movimentos que o texto faz e no suspenso a que se (e

nos) arremessa.

Portanto, o tempo, aqui, é uma espécie de compósito da escrita; um tempo que

perpassa o todo. Vemo-lo a partir de sua inscrição na construção verbal da obra, mas também

concebemos o tempo como uma das estruturas por trás das vozes do texto, como instrumento

da metamorfose das paisagens, das figuras e das próprias palavras. Ele é presença, movência,

fuga, pergunta, é cena de escrita, é exercício de leitura e escrita diante desse livro que “está no

texto, escrito em folhas A4” (OVDP, p. 265).

Através de seu projeto de escrita, Llansol deixou a nós, legentes do futuro, a

multiplicidade semeada em texto. Podemos sentir o “efeito de uma gestação que vem do

futuro dar-se num num dos sexos que temos” (idem, p. 265). Temos um texto à mão, aos

olhos, à boca - “as páginas que os leitores haveriam de tocar (como a uma pauta de música),

apenas com o instrumento da sua voz” (idem, p. 11) - que se oferece como caminho que

penetra vários caminhos possíveis; inclusive, no que concerne ao gênero literário. Essa

abertura do texto llansoliano possibilita que nós, pesquisadores, tenhamos leituras de sua obra

tão vastas quanto possíveis, acompanhando a vastidão de como ela mesma pode ser

perspectivada - aproximada tanto de uma estrutura narrativa quanto de uma poética: do diário,

da ficção, do poema e mais.

Um dos questionamentos de partida em direção à suspensão no texto de Llansol é: o

que coloca a escrita em suspensão? Por ora, seguimos as pistas do jogo, da fragmentação, e do

tempo/temporalidade em busca de respostas. Neste cenário, nossa hipótese inicial é de que o

texto alcança o suspenso através da fragmentação e da temporalidade, mais especificamente

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pelo jogo do tempo presente do indicativo e de voz ativa. Além daquela, uma segunda

interrogação de entrada foi: qual a relação da suspensão do tempo, em criação de novos

espaços, da escrita de Maria Gabriela Llansol com a cena teatral e seus elementos

constituintes? Concordamos com uma gama de autores que, como Augusto Joaquim (2014, p.

231) - parceiro de vida e escrita da autora -, pontuam que o domínio do texto de Maria

Gabriela Llansol é “o da estética e o do pensamento”. Para compreensão destes domínios

foram convocados autores que os investiguem em suas obras: o que são e como se elaboram.

Somado às ideias de estética e pensamento, buscamos unir a ideia ou premissa do

comportamento como um outro domínio possível da obra llansoliana. Esse terceiro domínio

será expresso no capítulo 3, no momento em que abordaremos a relação da textualidade com a

legência e seus possíveis frutos.

Numa história, há (ou não há) um momento de desvendamento a que se chama sublime. Normalmente breve. Como penso que um leitor treinado já conhece todos os enredos, quase só esse momento interessa à escrita.

Esse momento, tornado longa sequência sustentadora da vibração explícita, é o nome de escrita. É a face escondida -- mas que me importa desvendar --, das técnicas narrativas já tradicionais” (BDMT, p. 48).

A autora demarca, no Prólogo do capítulo terceiro de Um beijo dado mais tarde, o que

lhe “interessa” mais, nesse momento de reflexão a respeito da escrita em meio à sequência de

cenas e recordações do dia de “hoje, 24 de Janeiro de 1988”, no qual assistira “le festin de

Babette”. É uma pontual reflexão a respeito do que “importa desvendar”. A partir desta

reflexão, é possível considerar que Llansol realize a ação de separar sequências, com sua

escrita? Sedimentar e separar células textuais - tudo isso em busca de fulgor? É conhecido que

sua textualidade não é desenvolvida por enredos, como na narrativa tradicional, mas a partir

de pontos de acesso ao fulgor, o que está diretamente relacionado com a questão dos

diferentes reais que a obra da autora, como um todo, propõe de existência. “Aprendi que o

real é um nó que se desata no ponto rigoroso em que uma cena fulgor se enrola, e se levanta”

(L, p. 137). Talvez seja por isso, também, que a autora escreve “para que o romance não

morra” (L, p. 125). Porque o romance, narrativa tradicional, possui vibração. E é ela - só ela -

que interessa.

Por entre os nós textuais, nosso percurso de leitura de OVDP se dá em três capítulos, a

saber: “__ A CENA DE ESCRITA”, “NOSSO ENCONTRO-CURVA __” e “__ AINDA O

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PRESENTE __”. O primeiro capítulo é dedicado à compreensão da cena de escrita do livro e

da aproximação dos conceitos, provenientes de práxis diferentes, de cena e escrita. Para tal,

no subcapítulo “1.1 Abrindo as cortinas: jogo de cena e de escrita” serão trabalhados o contato

entre literatura e teatro, cena de escrita e o conceito de jogo que, para a arte teatral, é estado

de abertura constante. O subcapítulo “1.2 A cena e o presente em cena” seguirá com

abordagens sobre a conceituação de cena, de presente no teatro e produção de presença -

elaborada por Hans Ulrich Gumbrecht e relacionada tanto ao fato artístico quanto ao ato de

ler. Investigaremos se o presente comparece à escrita de Llansol com efeitos semelhantes aos

da cena teatral. Como terceiro e último subcapítulo, “1.3 A cena encena ou ‘o beijo da dupla

boca desse enlace”’ discorrerá sobre o que a cena llansoliana encena a partir da voz (e da sua

polifonia no texto). Em OVDP, as vozes são várias e se movimentam entre discursos direto,

indireto e indireto livre; a fim de uma compreensão sobre os resultados dessas movimentações

no texto e sobre o estatuto da voz, nosso cerne teórico é Adriana Cavarero com suas Vozes

Plurais.

O capítulo segundo também será tripartido. Em “2.1 O que pode uma pergunta?”

refletiremos acerca do título enquanto dispositivo de movência inicial do livro. O subcapítulo

“2.2 Por uma geografia do vivo” tem como ponto de partida a busca pelo “vivo” segundo a

própria Llansol: é um espaço para a compreensão de como se dão a ver, na paisagem do texto,

as ideias de “vida” e “vivo”, que se constroem a partir de aparições em diferentes partes do

livro. Já em “2.3 Onde vais, nascida? [Escrita de algum si]” abrimos uma reflexão sobre a

cena de nascimento na obra e a possibilidade de inscrição da autora (figurativamente) ou da

autora-figura no espaço do texto, tensionando a questão biográfica.

Por fim, o terceiro capítulo tem seu desenvolvimento a partir de uma conceituação do

presente pela filosofia, com Henri Bergson e Gilles Deleuze. Em “3.1 Sentir o tempo, rasurar

o cronos, montar a cena” damos ênfase ao aspecto criativo da temporalidade presente e a uma

leitura sobre as maneiras como a autora sente e rasura o tempo para a montagem da cena. “3.2

Do fulgor do legente” será o subcapítulo no qual, através do destaque e análise da recorrência

de presentes no texto, intentamos uma compreensão das implicações destas colocações

verbais no fluxo da escrita e no fluxo da leitura/legência. Encerrando as análises, “3.3 Do

percurso do poema” é o momento em que nos debruçamos mais detidamente à ideia da

existência de uma poética do suspenso em OVDP, atrelada a um detalhamento do percurso do

poema no livro.

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Atravessam a pesquisa os diários Um falcão no punho (1988) e Finita (2005), além

dos títulos Um beijo dado mais tarde (1990), O começo de um livro é precioso (2003),

Entrevistas (2011) e Lisboaleipzig- O encontro inesperado do diverso e O ensaio de música

(2014). Seguindo a concepção de Maria Gabriela Llansol de que sua obra é um texto de fluxo

extensivo, “uma só narrativa” dividida em pedaços (LLANSOL in BRANCO, 1993, p. 109) , 3

todos estes livros nos iluminaram e iluminam os caminhos de compreensão das ideias da

autora delineadas em Onde vais, drama-poesia?.

Para melhor entendimento da proposta escritural da autora, contamos com o olhar de

pesquisadores que destinaram e/ou destinam seu fôlego ao universo llansoliano, como Maria

Lúcia Wiltshire, Cinara de Araújo, Tatiana Pequeno, Jorge Fernandes da Silveira, Érica

Zíngano, João Barrento, Maria Etelvina Santos, Lúcia Castello Branco, Carolina Anglada,

Maria de Lourdes Soares e Pedro Eiras. Ademais, os críticos e filósofos Roland Barthes e

Maurice Blanchot. A fim de uma formulação a respeito do tempo em Llansol serão

convocados Bergson e Deleuze, como mencionado. Contamos com Bergson, nessa pesquisa,

também pelo “espírito de descoberta que é a primeira fonte do bergsonismo”, nas palavras de

Merleau-Ponty (1991, p. 202).

São convocados também autores como Eugenio Barba, Nicola Savarese, Peter Brook e

Renato Ferracini, que trarão as conceituações de cena, tempo cênico, ação cênica e jogo,

pertencentes à área teatral. Na abordagem das especificidades do jogo de cena e de escrita,

estará presente Johan Huizinga. Para analisar as consequências da busca pelo presente em

cena, que acaba por resultar em uma “presentificação”, bem como pelo presente em livro,

entra no trajeto Hans Ulrich Gumbrecht com suas considerações acerca da produção de

presença e das materialidades da comunicação. Renato Cohen e Paul Zumthor estão no

fundamento das reflexões sobre presença e performance de leitura e de escrita, bem como

performance artística voltada à cena.

Importa destacar, desde já, que estamos diante de um livro começante: tem em si

diferentes começos, diferentes nós construtivos, diferentes desenvolvimentos e encontros

textuais. Assim como em OVDP é possível perceber trechos, cenas fulgor, frases retornando

na textualidade, aqui também se verão reincidências de citações do livro interligadas em teia

através do texto; cada citação, como cena fulgor, é abertura para uma amplitude de questões.

3 BRANCO, Lúcia Castello. “Encontro com escritoras portuguesas.” In: Boletim do Centro de Estudos Portugueses. Belo Horizonte: UFMG, v. 13, n. 16, jul/dez 1993, p. 103-114.

19 

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A pergunta do título, por sua vez, abre caminho para uma jornada de diferentes entradas. Por

ser um livro onde cada detalhe é possibilidade de mergulho, optamos por indicar que OVDP é

dividido em diferentes seções , cada uma com suas subdivisões particulares, e, se tivesse um 4

sumário, seria mais ou menos assim:

I - Onde vais, drama-poesia? (p. 7 - 38)

II - Oferendas (p. 39 - 47)

III - Em busca da troca verdadeira (p. 49 - 154)

IV - Oferendas (p. 155 - 158)

V - Apoptose (p. 159 - 182)

VI - O poder de decisão (p. 183 - 279)

VII - Oferendas (p. 281 - 287)

VIII - Dioptrias (p. 289 - 306)

Adentrei por Onde vais, drama-poesia? e, após passada a soleira, o universo-casa de

habitação foi colocando suas questões à medida em que eu não sabia para onde ir. Mesmo não

sabendo, perguntando ao texto “onde vais?” a todo instante, sentia os presentes e, com

Llansol, comecei a sentir-pensar essa categoria tão impalpável e que totalmente nos toca: o

tempo. Esta dissertação é um mergulho - ou uma respiração - para dentro e fora do livro.

4 Considerando que o livro não é sumariado e não obedece à lógica do romance, optamos, metodologicamente, por tratar como “seções” estas divisões maiores do livro.

20 

Page 21: C em um tempo qu e no s ca iba

RJ, Niterói, 04/06/2020

Na aba aberta do projeto da qualificação, digito, em vermelho, destacando do preto geral da                             

escrita, uma reflexão sobre o que vemos e o que está a nos olhar com o huberman. [Tremo, com a                                       

perna esquerda, todo o corpo que escreve ligeiro a não deixar passar nada; tudo, porém, passa].                               

Paro na palavra perda; abro com os dedos correndo uma outra aba, a de crônicas, do outro drive.                                   

Abro antes uma outra aba para anotar uma narração, um poema escorrido que ouvi no                             

escorregar da escrita que pulsa dentro. Anoto: é um poema para um filme de 1 minuto, já tenho                                   

a ideia, o como narrar e o que filmar - Mais uma ideia, você precisa fazê-la! Abro a aba de                                       

crônicas, na qual há apenas um poema cronista. E (me) escrevo. E volto ao huberman porque a                                 

qualificação foi marcada e, para hoje, ainda uma crônica precisa ser montada. 

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CAPÍTULO 1: ____A CENA DE ESCRITA

1.1 Abrindo as cortinas: jogo de cena e de escrita

No campo semântico da interrogação - que estará conosco até o fim da jornada -, Paul

Zumthor (2018, p. 19), de forma expressivamente afirmativa, levanta o questionamento que

abre este primeiro capítulo: “Toda ‘literatura’ não é fundamentalmente teatro?”. Nessa

perspectiva, literatura e teatro estabeleceriam entre si contatos profundos mesmo que

imperceptíveis a uma primeira visada. Ainda segundo o autor, “Assistir a uma representação

teatral emblematiza, assim, aquilo ao que tende - o que é potencialmente - todo ato de leitura.

É no ruído da arquipalavra teatral que se desenrola esse ato, quaisquer que sejam os

condicionamentos culturais” (ZUMTHOR, 2018, p. 58). Texto - principalmente o texto

llansoliano - e teatro não seriam, um e outro, um encontro estético e social? Eugenio Barba e

Nicola Savarese, em A arte secreta do ator: um dicionário de antropologia teatral, afirmam

que, na vivência teatral, “não há sintonia entre a ação do ator e a reação do espectador”

necessariamente em toda apresentação, “mas pode haver um encontro. É o efeito do encontro

que decide sobre o sentido e o valor do teatro” (2012, p. 206). O encontro acontece, em ambos

os casos, entre corpos, sendo um corpo a corpo com a cena ou com a linguagem: entre o corpo

do ator e do público e entre o corpo da escrita de Llansol e o corpo legente.

Para a escrevente que nos tornou e torna legentes, “O começo de um livro é precioso.

Muitos começos são preciosíssimos. Mas breve é o começo de um livro - mantém o começo

prosseguindo” (CLP, p. 1). Abrindo as cortinas do texto, o leitor estará face a face com uma

provocação convocatória de legência. Se faz necessário que a olhemos com cuidado. Em

Maria Gabriela Llansol, a cena de escrita está em constante movência e desenvolve-se porque

“é possível, em algum momento, atingir a linguagem, a língua sem impostura. É isso o que o

meu texto quer” (LLANSOL, 2011, p. 48). A primeira parte (I) da primeira seção de OVDP,

cujo título é o mesmo do livro, parece colocar-se como um prólogo: uma abertura inicial antes

do que entendemos como a segunda abertura do texto, que acontecerá duas páginas depois, na

parte II, e tratará do nascimento de uma figura da escrita responsável por acompanhar a voz

em seus caminhos. Esta espécie de prólogo condensa em seu desenvolvimento, curiosamente

com uma estrutura semelhante à versificação do poema, alguns aspectos recorrentes ao longo

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de toda trajetória de leitura do livro. São alguns deles, além do contato com o universo

poético: o caráter reflexivo do próprio texto perante a linguagem, a mudança de sequências

temporais, a estrutura não convencional que foge aos moldes da narrativa tradicional, o

convite à legência e a união de corpos.

o que advém do texto é a construção da frase; o que advém do espaço é o seu sentido; o que advém da manhã é o sentimento de perca; o que advém da noite é o recomeço da frase interrompida; assim cogitando caminhava e abri a porta que dava para o teu rosto legente.

Não disse nada, a ouvir nos teus olhos o som da rua que entrava pelas janelas. Sentei-me nos lugares dispersos do teu silêncio, e esperei por ele __ uniu-se a mim como o oxigênio e o hidrogênio se unem em forma de água, numa união tão rara, imponderável e banal como os nossos corpos unidos a ler __ voltaremos à imagem da água (OVDP, p. 9).

Essa é a primeira página do livro, que se faz imperativa e precisou ser citada por

inteiro. Nesse primeiro momento do texto há, segundo nossa perspectiva, um

desenvolvimento que poderia ser dividido em três momentos: 1ª meditação da figura

escrevente e/ou do próprio texto e caminhada (cinco primeiras linhas - ou versos); 2ª primeiro

encontro com o leitor; o texto vê o leitor, depois, fica em silêncio (da linha seis a oito); e 3ª o

silêncio do texto une-se ao silêncio do leitor (da nona até a penúltima linha). São três

figurações do movimento desse texto que se lança a encarar o legente e “ouvir”, através dessa

relação de olhares, “o som da rua que entrava pelas janelas”. No espaço de uma complexa

cena de escrita e anunciação de devires, os espaços entre os agrupamentos de texto parecem

figurar como as divisas entre as mudanças de perspectivas da imagem (ou quadro) da escrita,

que é repartida em microcenas da paisagem.

Nessa paisagem fragmentária, os traços que enlaçam o texto entre “uniu-se a mim

[...]” e “[...] unidos a ler”, além de figurarem duplamente na grafia - um no início e outro ao

final desse momento da escrita -, podem também ser percebidos mediante uma outra

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possibilidade de leitura, aberta pelo percurso textual. Nessa, lemos um só traço que se abre

para passar o texto e fecha-se novamente - culminando no movimento de "selar" a união entre

silêncio do texto e silêncio legente, união que é reiterada no início e no final do período, em

uma transfiguração de verbo a adjetivo. A respeito do silêncio da obra na leitura, Blanchot vai

dizer que:

Sem dúvida, existe uma espécie de apelo, mas só pode vir da própria obra, apelo silencioso, que no ruído geral impõe o silêncio, que o leitor só escuta respondendo-lhe, que o desvia das relações habituais e o volta para o espaço junto do qual, ao permanecer aí, a leitura torna-se aproximação, acolhimento encantado da generosidade da obra, acolhimento (BLANCHOT, 2011, p. 213).

Além do acolhimento performado pelo texto, esta iniciação do livro é uma cena em

desenvolvimento, "cogitando", o que revela certo caráter intrínseco ao livro: o cogito. Onde

vais, drama-poesia? é um lugar de circularidade de pensamento de início ao fim, desde seu

título. Silvina Rodrigues Lopes (1988, p. 7) diz que “As palavras vivem de serem vivas, [...]

sopros onde os corpos se deslocam e se encontram. Amantes”. Nessa paisagem de escrita, o

"rosto do texto" (OVDP, p. 25) encontra-se com o rosto legente. É um encontro de rostos no

qual o texto vê-ouve o som da rua que entra pelas janelas; ouve “nos teus olhos” legentes. “O

texto vê e não opina, não aconselha” (idem, p. 185). Se não fosse assim e o texto opinasse e

aconselhasse, estaríamos diante de uma camada pré-concebida do texto, com uma finalidade,

o que inviabilizaria a afirmação que ressoa por toda a obra de que “o texto é sem garantias”.

Ao marcar que “o texto vê uma relação amorosa, libidinal, não só degradada mas,

provavelmente/ perdida, entre os sexos humanos e o sexo da natureza” (idem, p. 186), a

escritura llansoliana também nos sugere que vemos o texto. Nas palavras de Didi-Huberman,

Talvez não façamos outra coisa, quando vemos algo e de repente somos

tocados por ele, senão abrir-nos a uma dimensão essencial do olhar, segundo a qual olhar seria o jogo assintótico do próximo (até o contato, real ou fantasmado) e do longínquo (até o desaparecimento e a perda, reais ou fantasmados) (DIDI-HUBERMAN, 2018, p. 161).

No campo de visão da cena, ficamos face a face com o potencial de metamorfose da

duplicidade do olhar que gera a superação do uno visual, daquele que se apresentaria como

indivisível. Ainda de acordo com Didi-Huberman (2018, p. 29), “O que vemos só vale - só

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vive - em nossos olhos pelo que nos olha. Inelutável porém é a cisão que separa dentro de nós

o que vemos daquilo que nos olha. Seria preciso assim partir de novo desse paradoxo em que

o ato de ver só se manifesta ao abrir-se em dois”.

Na abertura de ”Lugar 1” de O Livro das Comunidades (2014, p. 11), Llansol escreve

que “havia uma mulher que não queria ter filhos de seu ventre” e que desenvolvia atividades

pedagógicas em uma casa “de um só quarto e de uma só janela”. Essa mulher, também figura,

“tinha uma maneira distante de fazer amor: pelos olhos e pela palavra”. Desde o primeiro

livro da primeira trilogia que marca um (re)começo da obra llansoliana, os olhos já são órgãos

de encontro, do fazer a dois que origina o “amor ímpar” - elaboração da autora.

O percurso llansoliano de reformulação do tempo começa (na verdade, sempre

(re)começa) desde o início de OVDP. O figurar em percurso do “drama-poesia” já no título e

no primeiro encontro com uma escrevente nascida e por nascer - na página seguinte a esse

primeiro encontro no qual a voz de enunciação abre a porta para o “rosto legente”- elaboram

esse percurso. No encontro de silêncios que enxergam rostos é posta uma distância

observacional, “uma reflexão sobre a distância mesma. Esta é definida como uma ‘forma

espaçotemporal’ - uma ‘trama singular de espaço e de tempo’, poderíamos dizer -, uma forma

fundamental do sentir” (E. STRAUSS apud DIDI-HUBERMAN, 2018, p. 160).

À pergunta da parte II desta primeira seção do livro, “Como? Se a voz me

transformara num poema sem eu?” (OVDP, p. 14), rascunhamos outros questionamentos e,

por conseguinte, possíveis respostas em aberto. A voz transformou o corpo (de escrita ou da

escrita) em um poema? Que voz é essa, com esse “poder”? Através de idas e vindas por entre

a (geo)grafia das páginas, pensamos em uma primeira hipótese para esse movimento: o livro é

um caminho para a trajetória do poema, porque o poema é um corpo (há o corpo do poema)

que “parte a imaginar” pelas ruas da cidade, as “ruas longas” que “quebram-se perdidas”

(OVDP, p. 15). Da trajetória do poema e de sua possibilidade de deixar rastros de um mapa

veremos mais adiante, no último capítulo. Com esta cena, entramos em um jogo que será

construído a partir de sequências de cenas fulgor que seguem um caminho em completo devir.

E, como bem destaca Pedro Eiras (2014, p. 195), “O jogo não é estranho ao texto llansoliano;

é talvez invisível e omnipresente”.

A expressão “jogo de cena”, amplamente conhecida tanto no teatro quanto na

literatura, sugere a perspectiva de que cena é jogo. Por essa razão, antes mesmo de entrarmos

na caracterização de cena, nos lançaremos à identificação da noção de jogo para

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compreendê-lo enquanto um dos elementos que favorece a suspensão do texto llansoliano -

assim como a fragmentação e a temporalidade. O texto, no qual a narradora-enunciadora se

dispõe a “ser uma criança que pára de querer brincar, e brinca” (OVDP, p. 112), escorrega-se

no itálico de “brinca” permanecendo atentamente lançado à descoberta do inesperado e

caminha, porque nos revela que há sempre o caminho: “Acabadas as escadas, abriu-se a porta

do jardim” (idem, p. 132).

De acordo com Johan Huizinga (2019, p. 5), “Encontramos o jogo na cultura como um

elemento dado, existente antes da própria cultura [...]. Em toda a parte encontramos presente o

jogo, como uma qualidade de ação bem determinada e distinta da vida ‘comum’”. Sendo ele

um elemento presente em toda temporalidade que acompanha o humano e “ao se reconhecer o

jogo, se reconhece o espírito, pois [...] ele não é algo material” (p. 4), há relevância em

considerar tal presença na escrita, principalmente em uma escrita como a de Maria Gabriela

Llansol. Com um texto em constante construção de si, com certa desestabilização de

categorias preexistentes e formas de experienciar as palavras, a autora convida o leitor a ser

legente e “entrar” no jogo da criação de imagens, “numa certa ‘imaginação’ da realidade (ou

seja, a transformação desta em imagens)” buscando “captar o valor e o significado dessas

imagens e dessa ‘imaginação’” (idem, p. 5). Para Blanchot (2005, p. 140), a literatura é “o

perigoso poder de ir em direção àquilo que é, pela infinita multiplicidade do imaginário”.

Embora, como argumenta Huizinga (2019, p. 10), o jogo “trata-se de uma evasão da

vida ‘real’ para uma esfera temporária de atividade com orientação própria”, pensamos que os

resultados ou consequências do contato e interação - decerto nem sempre tangíveis - do jogo,

do jogo de cena e da cena de escrita são possíveis de se identificar na experiência da “vida

real”, enquanto influenciadores em potencial de formas de pensamento e ação no meio social -

o comportamento. Tal “influência” também se faz plausível por considerarmos o caráter

expansivo da obra que proponha um jogo, como a de Llansol, de modo que venha a atingir

camadas diferentes da constituição humana. “A própria existência do jogo é uma confirmação

permanente da natureza supralógica da situação humana" (idem, p. 4). A respeito das formas

que revestem a vida social, autor considera ainda que

A vida social reveste-se de formas suprabiológicas, que lhe conferem uma dignidade superior sob a forma de jogo, e é através deste último que a sociedade exprime sua interpretação da vida e do mundo. Não queremos com isso dizer que o jogo se transforma em cultura, e sim que em suas fases mais

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primitivas a cultura possui um caráter lúdico, que ela se processa segundo as formas e o ambiente do jogo (HUIZINGA, 2019, p. 59).

No contexto da cena do livro, “Longe de se deduzir enquanto se constrói, ele joga. O

leitor não pode senão entrar no jogo, confronto gratuito e vital, em que o ser pesa com todo

seu peso” (ZUMTHOR, 2018, p. 59). Pesar “com todo seu peso”, além de tudo o que pode vir

a significar, significa, talvez principalmente, que há uma concretude no encontro de corpos

entre texto e leitor; que o jogo tem sua materialidade garantida: um encontro para além de (ou

não) metafísico. Assim como a estrutura de jogo do texto llansoliano não pressupõe fins,

porque (citação recorrentemente anunciada) “o texto é sem promessa e sem garantia” (OVDP,

p. 188), na experiência teatral o jogo é expressivamente semelhante:

[...] fazer com que um espetáculo seja compreendido não é o mesmo que planejar descobertas, mas desenhar e projetar as margens ao longo das quais a atenção do espectador poderá navegar, e depois deixar que uma vida minúscula, multiforme e imprevista cresça sobre aquelas margens. Os espectadores deveriam ser capazes de afundar seu olhar nessa vida que surge e assim fazer suas próprias descobertas (BARBA; SAVARESE, 2012, p. 300).

Entendemos que em Llansol não dificilmente se encontra esse intento de “desenhar e

projetar as margens” para que os legentes sejam capazes de “fazer suas próprias descobertas”

que os autores pontuam, pois sua textualidade, de acordo com a “intuição fundamental do

texto” (OVDP, p. 263), se constrói ao passo que abre caminhos à legência.

1.2 A cena e o presente em cena

A cena de escrita llansoliana, antes de se dizer o que é (se é que diretamente diz), faz

movimentos de revelar, na forma de fios de textualidade, o que pode não ser. “Na clorofila

não há, de facto, metáfora” (OVDP, p. 31). As últimas frases de Onde vais, drama-poesia?,

antes de “Serra de Sintra, 27 de Agosto de 1999” - inscrição temporal que encerra o livro -,

são: “ah! ah! Ele nasceu!/ veio rasgar a imagem da morte” (idem, p. 306). Quem “nasceu”?

Podemos considerar que o nascimento, em um livro que inicia e termina com essa dinâmica,

pode assumir diversas faces e intenções. De qualquer forma, novamente, quem “nasceu”?

Quem emerge da novidade que o nascimento traz para “rasgar a imagem da morte”? Nasce a

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“rapariga que temia a impostura da língua”, nasce o texto, nascem as figuras, nasce a figura

narradora, também nascem o poema, o drama, o drama-poesia; nasce o livro. Em seu início,

uma figura vem à luz da “existência” através do texto e é necessário que ela nasça para que o

livro nasça e sua textualidade venha “rasgar a imagem da morte”, no “final” - o limite da

borda do texto. Retornando algumas páginas antes desse “desfecho” que não deixa de ser uma

nova abertura, a narradora - figura muito próxima da autora escrevente - destaca que “o texto

não descreve o que existo/ rasga a imagem que trago diante de mim” (OVDP, p. 291).

Fazendo a conexão direta e inevitável entre as passagens, “a imagem que trago diante de

mim” seria, então, “a imagem da morte”? Diante de tantas perguntas que o texto nos leva a

considerar - antes mesmo de respostas -, tentaremos pelo menos abrir janelas com reflexões

em direção a elas nos capítulos que seguem, principalmente no segundo.

Embora a parte primeira da seção VIII, intitulada “Dioptrias”, remeta intensamente a

uma experiência biográfica de uma Llansol que vai à loja de óculos, que tem “53 anos” e que

“treme a separação que vai ocorrer” quando “desaparecer na luz” (OVDP, p. 292), não é

difícil considerar tal experiência também como textual. A idade avançada aproxima esta

figura-narradora-escrevente (que dialoga com a categoria de narradora-personagem) da morte

e/ou da cegueira, ambas situações que, de alguma forma, metem “medo a Gabriela” (OVDP,

p. 291). Logo, a figura que perpassa os limites entre ser ficcional/narrador e vivente traz

diante de si possivelmente a imagem da morte, que também pode ser uma morte figurativa -

aquela “em que não poderá acompanhar a minha velocidade, nem o meu ver” (idem, p. 292).

Da cena-combate: ‘Legente, que diz o texto? Que ler é ser chamado a um combate, a

um drama.” Eis o combate, a força de pulsão que provém desse chamamento: “Um poema que

procura um corpo sem-eu, e um eu que quer ser reconhecido como seu escrevente. Pelo

menos. Esse o ente criado em torno do qual silenciosamente gira toda a criação” (OVDP, p.

18). O lançamento do texto é, portanto, em direção ao “corpo sem-eu”, tendo no horizonte um

corpo que podemos chamar “com-eu”. Esse embate enquanto jogo de forças de “eus” e,

consequentemente, também de vozes, vai reverberar na arquitetura do texto como um todo.

Não à toa, ao invés de um monólogo (interior ou não), o que surge diante de nossos olhos

legentes - e, de certo modo, ouvintes - é uma polifonia. São muitos “eus” envolvidos e

dissolvidos no tecido sulcado da escrita.

Roland Barthes em seu Fragmentos de um discurso amoroso afirma que

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A cena é como a Frase: estruturalmente não há nada que obrigue a pará-la; nenhuma imposição interna a desgasta, porque, como na Frase, uma vez dado o núcleo (fato, a decisão), as expansões são infinitamente conduzíveis. [...] A cena é, pois, interminável, como a linguagem: ela é a própria linguagem, apreendida no seu infinito, essa ‘adoração perpétua’ que faz com que, desde que o homem existe, isso não pare de falar (BARTHES, 1981, p. 38).

Destacado pelo autor, há um desejo do humano em sua relação com a linguagem de

que “isso não pare de falar”. “Se assim não fosse, não haveria mais do que a reconstituição,

não significante, de uma velharia. Escrever é amplificar pouco a pouco” (FP, p. 37). Em

diversos momentos de legência, podemos observar na estrutura da escrita de Llansol - não só

em OVDP - os núcleos constitutivos do fio que entrelaça toda a trajetória do livro (ou nós

constitutivos da linguagem, como diz a autora) se caracterizando metalinguisticamente como

cenas em si, as “cenas fulgor”. Ainda nesse movimento, continuam sendo cenas uma vez que

“Passar da cena para a metacena não é mais do que abrir uma outra cena” (BARTHES, 1981,

p. 38). Segundo a autora, o caminho, pelo qual tem os encontros com suas figuras, se

desdobra “indo de cena em cena” (L, p. 137). Considerando que uma cena é uma “morada de

imagens”, poderíamos dizer que o fluxo da escrevente é de “morada de imagens” a “morada

de imagens”; entre paisagens. Assim começa a jornada llansoliana em O livro das

comunidades, referido em Lisboaleipzig (L, p. 136), e continua para além de Onde vais,

drama-poesia?.

A noção do conceito de cena pode também estar ligada mais concretamente à

materialidade quando percebida pela perspectiva de realizadores teatrais. Segundo Franco

Ruffini na seção “Texto e Cena” que integra o A Arte Secreta do Ator, cena seria “o conjunto

de todas as especificidades humanas, técnicas, materiais, estéticas, entre outros valores, que

permitem a ‘representação’ do texto em si” (BARBA; SAVARESE, 2012, p. 282). É um

conjunto de ação e, como se pode imaginar, não ocorre de forma solitária, pressupondo pelo

menos um outro - assim como a relação entre leitura e escrita.

As “cenas fulgor” são a “nova vida ficcional” dada/atribuída “às palavras e às coisas”,

segundo Jorge Fernandes da Silveira (2004, p. 35). Se estas “cenas fulgor” têm, no centro de

seu movimento, uma busca por vida - para além da ficção -, se faz coerente notar que, em sua

razão de ser, cena é um acontecimento, ação; um recorte suspenso na realidade. Nessa

conjugação llansoliana, como um organismo vivo, dotado de certa autonomia de existência na

textualidade, se forma um duplo que contém em si a instância desse recorte suspenso (cena) e,

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ao mesmo tempo, o “combustível” da suspensão (fulgor). Segundo Paul Zumthor (2018, p.

65), “a noção de enunciação leva a pensar o discurso como acontecimento”.

No âmbito do teatro, acaba sendo mais facilmente notável que seja a cena um

acontecimento, um momento de experiência que pode realocar os sujeitos - ator e espectador -

em posições diversas daquelas ocupadas sensorial e socialmente. Esse movimento acaba por

deslocar um pouco a cena da ideia de uma “segunda natureza” proposta por alguns teóricos do

âmbito teatral.

Para Stanislávski, a cena é realmente uma segunda natureza, porque, assim como na natureza, não pode haver uma ação cênica fisicamente coerente que não seja também psiquicamente coerente (justificada) e vice-versa. É também uma segunda natureza porque, ao contrário do que acontece na natureza, a coerência física e a coerência psíquica devem ser construídas através dos dois aspectos do trabalho do ator sobre si mesmo (BARBA; SAVARESE, 2012, p. 63).

Há, de fato, um trabalho de preparação do atuante que deveria, supostamente, gerar

essa coerência psicofísica. Entretanto, há de se ressaltar que essa coerência referida por

Stanislávski não pode ser vista como um axioma, principalmente se levarmos em conta as

provocações de base do teatro pós-dramático . Nesse lugar de pensamento, Hans 5

Thies-Lehmann afirma que “teatro significa tempo de vida em comum que atores e

espectadores passam juntos no ar que respiram juntos daquele espaço em que a peça teatral e

os espectadores se encontram frente a frente” (LEHMANN, 2007, p. 18). Para Sérgio de

Carvalho, trata-se de “um modo de utilização dos signos teatrais que, ao pôr em relevo a

presença sobre a representação, os processos sobre o resultado, gera um deslocamento dos

hábitos perceptivos do espectador educado pela indústria cultural” (idem, p. 15).

A cena, seja do texto ou do palco, é lugar de ação, de concretude de escolhas frente a

uma miríade de caminhos possíveis para atravessá-la ou experienciá-la. “Esses textos saberão,

ou não, o que estão a fazer // a fazer? Sim, a fazer” (OVDP, p. 87). Por menor que seja o

contato com o texto llansoliano, uma jornada se faz necessária para que o leitor alcance o

mínimo de compreensão da textualidade, porque os textos estão constantemente “a fazer” algo

ou a si mesmos. Dessa forma, dá-se início ao processo de legência tão vivificado pela autora

através da própria forma da escrita. Processo esse que se assemelha tanto à participação, ativa,

5 A obra Teatro pós-dramático, de Hans-Thies Lehmann, surge para analisar os novos modos de se pensar e fazer teatro, também engajados numa “negação estética dos padrões de percepção dominantes na sociedade midiática”, de acordo com Sérgio de Carvalho na apresentação.

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de um espectador em um espetáculo teatral quanto (quiçá mais radicalmente) em uma

performance. Nas palavras de Paul Zumthor (2018, p. 65), “A performance dá ao

conhecimento do ouvinte-espectador uma situação de enunciação. A escrita tende a

dissimulá-la, mas, na medida do seu prazer, o leitor se empenha em restituí-la. A

‘compreensão’ passa por esse esforço”. De acordo com Eugenio Barba,

Quanto mais o espetáculo permite que o espectador faça a experiência de uma experiência, mais deve conduzir também a sua atenção, para que ele não perca, na complexidade da ação presente, o sentido da direção, do passado e do futuro, a história, não como anedota ou historinha, mas como ‘tempo histórico’ do espetáculo (BARBA; SAVARESE, 2012, p. 68).

No texto de Llansol esse “tempo histórico” das cenas muitas vezes aparece de

maneiras diferentes, como um jogo entre tempos, o que favorece, junto da polifonia que

comparece constantemente no jogo, o aspecto de “dificuldade” da linguagem, uma certa

resistência. Discorreremos de forma mais aprofundada sobre esse aspecto em etapas mais à

frente do percurso.

Em suas aberturas, a cena é também o lugar do drama posto em corpos (ou drama em

corpo) sobre um palco. Dentro da amplitude de significações possíveis da palavra, drama é,

em suma, desde sua etimologia, a ação em si ou o texto para a ação. Sendo lançado à ação

como fim, por sua vez, é lugar sempre começante. Como texto que é escrito objetivando sua

encenação, é a estruturação textual (não necessariamente em prosa) pensada em devir-cênico,

articulada para o futuro da vivência no palco. Diante disso, qual seria sua relação “original”

com a poesia? Quais são as origens do poema que o aproximariam desse devir do drama?

Como eram os poemas antes de nós? Não provinham da ou para a oralidade, também em

devir? A relação entre literatura e teatro perpassa a noção de drama desde os gregos. Podemos

dizer o mesmo em relação ao poema: a relação entre literatura e teatro está no poema desde

quando os poemas eram ditos em voz alta, estabelecendo-se uma necessidade de presença e

ação.

Alguns diretores, em razão da necessidade de se estabelecer um contato mais profundo

com o espectador, em suas atividades de olhar a cena “de fora e de dentro” e desenhá-la junto

do ator, por vezes repetem insistentemente frases como a frequentemente lançada pela voz de

Ariane Mnouchkine na sua preparação do elenco de As Comadres: “Estejam no presente!”.

De acordo com a diretora, para o ator, o essencial é

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ainda mais simples. É estar no presente, renunciar a tudo que ele pode ter previsto para captar em cena tudo o que lhe acontece. No instante. Para o ator e seu personagem, existe uma vida anterior, mas não existe um passado psicológico e, nem um futuro previsível. Só mesmo o presente, o ato presente. O teatro é a arte do presente” (MNOUCHKINE, 2011, p. 67).

Na preparação de um(a) ator/atriz, muitas vezes o desafio maior é esse “ainda mais

simples” destacado por Ariane, descortinando-se uma complexa busca em direção à

simplicidade. Estar no presente pressuporia, então, o esclarecimento de que “A presença

cênica é, ao mesmo tempo, física e mental: sendo assim, existe uma mente dilatada”

(BARBA; SAVARESE, 2012, p. 62). De acordo com Ferracini,

Existe uma metáfora bastante utilizada nos meios da arte presencial que vincula diretamente a suposta presença da atuação a uma certa “vida”. Se um ator, dançarino ou performer é potente em sua atuação diz-se, comumente, que ele está “presente” ou ainda que aquela seria uma atuação “viva”, pulsante (FERRACINI, 2013, p. 2).

Em relação de semelhança com os fluxos do texto llansoliano, que parece cavar e furar

a “parede” da escrita, no momento da cena há uma incessante busca pelo vivo, por uma

qualidade que rompa com a quarta parede e una atores e espectadores quase que em uma

mesma energia. Ainda que em energias diferentes, a possibilidade do vivo se revela como a

possibilidade do encontro profundo entre os dois.

Cada tradição teatral possui uma linguagem própria para dizer se o ator, enquanto tal, funciona ou não funciona para o espectador. E para definir esse ‘funcionamento’ existem numerosos termos: no Ocidente, encontramos com frequência energia, vida ou, mais simplesmente, presença do ator (BARBA; SAVARESE, 2012, p. 72).

A experiência do percurso de legência do texto llansoliano teria, por sua vez, uma

semelhança talvez íntima com a experiência do momento presente no teatro, com toda a

perspectiva da suspensão do espaço-tempo. Nesse sentido, seria um caminho aproximado da

consideração de Maria João Cantinho a respeito da caracterização da cena fulgor. “Desliza-se,

assim, de um tempo/espaço de sucessão narrativa para um espaço fulgurizado, onde o tempo

histórico e cronológico, sucessivo, é anulado, fundando o lugar, criando uma epifania, a que

MGL chama cena fulgor” (CANTINHO, 2004).

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Assim como afirma Llansol “Não há literatura. Quando se escreve só importa saber

em que real se entra, e se há técnica adequada para abrir caminho a outros” (FP, p. 55), para

se chegar à presença - que é da ordem da concretude da práxis -, é necessária uma preparação

integral do ator antes mesmo de se entrar em cena, no palco da cena.

O nível pré-expressivo pode ser definido como aquele em que o ator constrói e dirige sua presença em cena, antes mesmo dos seus objetivos finais e dos seus resultados expressivos, e independentemente deles.

Com essa definição, a ‘presença’ fica livre de qualquer conotação metafórica. É literal (BARBA; SAVARESE, 2012, p. 62).

A presença do ator “é uma qualidade discreta que emana da alma, que irradia e se

impõe” (BARBA; SAVARESE, 2012, p. 210). É algo como uma potência energética que

envolve diferentes elementos que venham a convergir para uma ação dramática ou uma

performance estritamente relacionada com a temporalidade. Desse modo, o encontro se dá no

presente. De acordo com Eugenio Barba e Nicola Savarese,

Durante um espetáculo, o ator-dançarino ‘sensorializa’ o fluxo do tempo que, no dia a dia, é experimentado de modo abstrato (o tempo medido pelos relógios ou pelos calendários). O ritmo materializa a duração de uma ação por meio de uma linha de tensões homogêneas ou variadas. [...] Sensorialmente, os espectadores experimentam uma espécie de pulsação, uma projeção orientada para algo que muitas vezes ignoram, um fluir que varia repetidamente, uma continuidade que nega a si mesma. Ao esculpir o tempo, o ritmo faz com que ele se torne um tempo-em-vida (BARBA; SAVARESE, 2012, p. 252).

Assim como no teatro “a atenção do espectador é atraída pela complexidade, pela

presença da ação” (idem, p. 68), o constante chamamento que faz a escrita llansoliana em

direção ao leitor vai além do que está grafado no livro como texto: “eu gostaria que o legente

não temesse encaminhar-se comigo [...]” (OVDP, p. 85). Devemos considerar sempre as

outras grafias - os traços longos ou curtos, as ausências que podem ser presenças de um vazio

significável (ou de um vazio cheio), as vírgulas que finalizam capítulos ao invés de pontos

finais: tudo significa e suspende a experiência da legência. Nesse sentido, “o súbito

aparecimento de certos objetos de percepção desvia a nossa atenção das rotinas diárias em que

estamos envolvidos e, de fato, por um momento, nos separa delas” (GUMBRECHT, 2010, p.

132).

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Page 34: C em um tempo qu e no s ca iba

Em sua busca por uma compreensão das coisas do mundo que vá além da perspectiva

hermenêutica e metafísica, Gumbrecht aposta teoricamente na concretude relacional como

possibilidade de produção de conhecimento. Em seu conhecido Produção de Presença, o

autor destaca: “quando falo [...] sobre a presença refiro-me principalmente a essa sensação de

ser a corporificação de algo” (GUMBRECHT, 2010, p. 167). Ao discorrer sobre o que seria

“um dia perfeito”, ele diz que seria o que tivesse sido preenchido por “aquele breve momento

de alegria imensa que me atingiu, incluindo o meu corpo, em determinado instante” (idem, p.

168). Considerando que essa potência seja “breve”, o autor afirma que

Nancy foi também o primeiro a apontar para a certeza (uma certeza quase ‘prática’, fundada desde logo na experiência, mais do que uma certeza com base na dedução conceitual) de que, pelo menos nas condições atuais, e, nesse sentido, diferentemente da concepção de ‘presença real’ da teologia da Idade Média, a presença não pode passar a fazer parte de uma situação permanente, nunca pode ser uma coisa a que, por assim dizer, nos possamos agarrar (GUMBRECHT, 2010, p. 82).

São os preenchimentos físico e psíquico que compõem a presença do ator em cena e

eles estão ligados, como a presença do texto, a uma concretude. Em uma concretude textual

em deslocamento, a presença acompanha o fluxo da metamorfose do texto, como no caso da

relação entre a narradora-escrevente e o cão Jade: “aprendemos a trocar de presença,/ em mim

é humana,/ nele sou cão” (OVDP, p. 299). Llansol está geralmente entre filósofos e poetas e

sua escrita também desenvolve voos afins a estas figuras textuais e inspiracionais. Com isso,

queremos também colocar em evidência (mais do que em questão) a afinidade da autora com

uma escrita poética, como um(a) poeta que escreve seu poema. Nele, podemos perceber que

[...] suas imagens não nos levam a outra coisa, como acontece com a prosa, mas nos defrontam com uma realidade concreta. [...] O poeta não quer dizer; diz. Orações e frases são meios. A imagem não é meio; sustentada em si mesma, ela é seu próprio sentido. Acaba nela e começa nela. O sentido do poema é o poema em si. As imagens são irredutíveis a qualquer explicação e interpretação (PAZ, 2012, p. 116).

As múltiplas paisagens que compõem a cena de escrita da autora se colocam como

irredutíveis e convidam o legente a “passar olhando” (OVDP, p. 234) e contemplar

ativamente sua metamorfose. Ademais, se o poema “não nasce de uma falta” (idem, p. 17), o

poema, no livro, é presença. Uma presença de escrita (quando tem seu corpo grafado no texto

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das “Oferendas”) e de rastro que passa, “dispara, na esperança de que, na manhã anunciada,

seja reposta a continuidade” (OVDP, p. 15).

1.3 A cena encena ou “o beijo da dupla boca desse enlace”

A imagem da “dupla boca” que enseja o título desse subcapítulo sugere, de entrada,

que não há apenas uma boca ou uma voz única que narraria linearmente o texto; há a

“evidência da luz da voz” (OVDP, p. 209). Também de entrada deixamos o aviso de que não

apenas duas vozes povoam a textualidade deste livro marcado por uma multiplicidade de

vozes que enunciam, desatam e formam novos nós de linguagem. “Essa fala é essencialmente

errante, estando sempre fora de si mesma. (...) Assemelha-se ao eco, quando o eco não diz

apenas em voz alta o que é primeiramente murmurado mas confunde-se com a imensidade

sussurrante” (BLANCHOT, 2011, p.47). Na perspectiva do eco, da reverberação da voz da

textualidade llansoliana, retomando o texto inaugural de sua Geografia de Rebeldes, a figura

de enunciação aponta, em versos, que “A escrita/ era as vozes/ em coro” (LC, 2014, p. 41).

Nessa escrita, a singularidade é plural. E o coro da figura narradora de OVDP é, ao menos,

sua sombra.

A textualidade de Llansol carrega em si diversas rupturas e lacunas a serem

preenchidas ou não pela figura legente, uma vez que o vazio também é cheio de potência.

Assim, é possível observar o texto llansoliano encenando ou performando esses lugares de

fissura: seja por meio de interrupções, movências para a margem ou para o desconhecido, pela

coexistência intercalada de vozes, a atualização da figura narradora, o vislumbramento da

ação do leitor e afins. A enunciação da textualidade não se limita ao que necessariamente se

encontra grafado nas páginas.

É que ela fala como ausência. Onde não fala, já fala; quando cessa, persevera. Não é silenciosa porque, precisamente, o silêncio fala-se nela. O próprio da fala habitual é que ouvi-la faz parte da sua natureza. Mas, nesse ponto do espaço literário, a linguagem é sem se ouvir. Daí o risco da função poética. O poeta é aquele que ouve uma linguagem sem entendimento (BLANCHOT, 2011, p. 47).

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Llansol não vem, com seu título, nos entregar uma mensagem, um entendimento; não

há algo no que possamos nos fixar. “É que ela fala como ausência”, como diz Blanchot da

linguagem poética. Sua ausência não deixa de ser a presença de, ao invés de uma afirmação,

uma interrogação: “Onde vais, drama-poesia?”. Como ausência que chama presença, a voz do

texto realiza, em diferentes momentos da obra, chamamentos na, da e pela escrita. “E o texto

abeirou-se, e entrou-lhe no ventre à procura da voz” (OVDP, p. 255): o texto precisa da voz

para o movimento e a voz chama antes mesmo de o texto iniciar, uma vez que, para existir o

enunciado que dá título ao livro, é preciso uma voz que chame. O jogo vocálico é, então,

profundo, na medida em que o texto precisa adentrar no ventre para acessá-la. Segundo

Adriana Cavarero (2011, p. 18), “O jogo entre emissão vocálica e percepção acústica envolve

necessariamente os órgãos internos: implica a correspondência de cavidades carnosas que

aludem ao corpo profundo, o mais corpóreo dos corpos”.

Diante desses deslocamentos, torna-se importante salientar que o caráter escorregadio

das vozes também faz escorregar uma ideia de autoridade e finitude enunciativa. “O texto

faz-se excepção, apelo do virtual que a autoridade não permite ver, saber, saborear, cheirar,

sonhar, encerrados que somos nos limites do evidente, do adequado, do representável”

(LOPES, 1988, p. 11). Assim como os Lugares de O livro das comunidades possuem uma

pluralidade de presenças falantes e escreventes que compartilham da não autoridade do texto,

os diferentes lugares demarcados de Onde vais, drama-poesia? também se apresentam afins a

uma não autoridade. “Fugir ao destino do vate. Fugir à mediocridade da autobiografia.// A

criança deitada de costas sobre o chão do quarto,” - a mesma que nasce na página 11 - “impõe

ao poema esse contrato. Não se contará, mas também não contará o destino do universo”

(OVDP, p. 18). Silvina ainda pontua que “As vozes, disseminadas na escrita, nada têm de

uma autoridade da presença. Elas participam do anônimo por excelência, a presença que se

perde no nome: o corpo” (1988, p. 23). A figura narradora de OVDP, por exemplo, em um

momento em que acaba de finalizar um segmento de cenas (no qual inscreve a relação entre o

texto, a rapariga e o falcão) e começa outro, questiona-se: “E eu a escrevê-los, sou quem ou o

quê?” (OVDP, p. 249).

No Lugar da decisão (sexta seção do livro), a narradora-enunciadora expressa: “sinto

que um outro eu (meu)/ se forma na nostalgia infinita que eu trazia para este lugar” (OVDP, p.

209). Considerando a afirmação de António Guerreiro (1986, p. 68) não apenas para o diário

da autora (FP), como também para seu OVDP, “O que está em causa, em suma, não é a

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representação de um sujeito, mas a sua abertura especulativa ou crítica no seio do texto”.

Nesse sentido, a escrita encontra ecos na poesia de Pessoa quando o “eu” entra em dissolução

e afastamento: “Longe de mim em mim existo/ À parte de quem sou,/ A sombra e o momento

em que consisto.” (PESSOA, 2016, p. 269). A saída do sujeito é uma abertura (ou um

abrir-se) para o texto. E, nessa aventura, contemplamos não só a Maria Gabriela Llansol,

como também a escrevente (se é que se separam), a figura narradora/enunciadora de OVDP e

todas as outras vozes que habitam o texto. A respeito disso, Silvio Renato Jorge elabora a

reflexão de que

A teoria do texto de Llansol não pode ser vinculada à representação e ao mimetismo, pois o eu aí presente não é autobiográfico nem confessional. Ele é, na verdade, um processo metalinguístico que, em vez de nomear um sujeito da escrita, nomeia possibilidades discursivas. O texto, assim, inicia uma viagem a si próprio, deixando de lado a relação de identificação com o exterior e cumprindo-se como escritura (JORGE, 2002, p. 197).

No empenho de nos aproximarmos do texto respirante de Llansol, tentamos

constantemente “perceber os seus diversos tons de voz porque o texto não tem uma maneira

única de se dizer,/ está todo escrito, mas precisa de ser montado” (OVDP, p. 266), retomando

a citação da introdução para uma outra mirada. Através desse excerto a autora está

indiretamente a nos dizer que seu texto possui várias vozes (ou várias formas de enunciação

de uma mesma voz?), além de reforçar a característica de montagem do mesmo. Um

questionamento que se ergue na observação da performance do texto é: que voz é aquela que,

no título, pergunta “onde vais, drama-poesia?”? Ora, se o texto se inicia por uma interrogação,

há quem o interrogue; há uma voz que vem antes, entre e depois do texto - embora não

necessariamente existam essas distinções no texto de Llansol - e que se apresenta também

como fonte iniciadora de um jogo (a não ser jogado sozinho), que de imediato se desconhece.

O estar em relação, nesse jogo, é peça fundamental. “Ao contrário do olhar, a voz é sempre e

irremediavelmente relacional. Não permite um direcionamento destacado para o objeto

porque, em sentido estrito, não tem objeto. Ela vibra no ar e atinge o ouvido alheio até quando

não tem a intenção de fazê-lo” (CAVARERO, 2011, p. 207).

Em uma das partes iniciais do livro, a narradora nascente, em uma das mais belas

cenas fulgor do texto, destaca:

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- A voz está sozinha - disse minha mãe, eu ainda estava no seu ventre, a ler-me poesia. - Não por muito tempo - responderam àquela que me iniciava na língua. E eu

nasci na sequência de um ritmo. Eu nasci para acompanhar a voz, fazê-la percorrer um caminho (OVDP, p.

11).

A busca já na entrada do livro é no sentido “[d]a palavra a que a voz humana é

constitutivamente destinada” (CAVARERO, 2011, p. 9). A voz, então, por ser

“constitutivamente destinada” à palavra, passa a ser acompanhada pela figura que nasce no

texto, da palavra. A força que as palavras llansolianas têm, sua pujança, faz com que elas

quase saltem das páginas do livro para ir ao encontro da voz humana, no anseio de entrar e

sair pela sua boca - o que é performado pelo texto, principalmente nesse início supracitado no

qual a figura-palavra sai do ventre para ir em direção à voz. São palavras que se apresentam

ao leitor com uma espécie de desejo pelo performar-se. Assim, para que a performance de

metamorfose - de palavra a voz e de voz a palavra - ocorra, se faz necessário que o leitor

também performe-se em legente, sujeito de ação sob e sobre o texto. Fica, desta feita, criada a

cena de escrita de Llansol cuja performatividade carrega um jogo de possíveis incertezas, mas

não bastante perigoso.

Há algo de oral nesses textos, ao mesmo tempo. A voz não está fora do texto. A voz não está dentro nem fora do texto… Ao mesmo tempo é uma voz extremamente corpórea, é muito objetal essa voz. E, quando ela fala, ela provém de um corpo real que sabe perfeitamente qual é a sua experiência, o que viveu… Digamos que ela traz as marcas de sua própria existência… (LLANSOL, 2011, p. 49-50).

Ao percebermos, enquanto leitores/legentes, que “não, o texto é a eflorescência dessa

arte, o beijo da dupla boca desse enlace” (OVDP, p. 174), começamos a nos dar conta de que

a caminhada pela textualidade é também um exercício, sem cessar, de escuta às diferentes

vozes do texto que saem de uma dupla boca - e, por vezes, à sua polifonia. Ouvir as vozes do

texto é, outrossim, ouvir as “marcas de sua própria existência”, ter uma experiência corpórea,

como afirma a autora. O “beijo da dupla boca desse enlace”, enquanto cena fulgor, sugere

uma duplicidade, a consideração de uma “sombra” que existe no texto, de uma “rapariga que

temia a impostura da língua”, Témia, de diversas outras vozes femininas - de forma mais

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expressiva - e masculinas que surgirão ao longo da obra. A cena fulgor em questão aparece

em um primeiro momento, no livro, dentro do corpo do “Poema para Rimbaud”:

Se, pelo contrário, aceitares o dom, beijarás a dupla boca desse enlace. É nos odores que se

realizam as trocas, sobretudo, nos sabores incomunicáveis.

Não há maneira mais alta de dar vida (OVDP, p. 158).

A ausência-presença do ponto que finalize o poema, seja questão de edição ou não,

nos deixa a possibilidade de retorno ou de que esse poema deslize, em seu itálico, por entre o

livro e chegue na citada página 174, por exemplo. São bocas que se tocam e vozes que vão

dando a vitalidade ao texto de uma experiência concreta, abrindo caminhos por entre o livro e

dando maior autonomia à linguagem. “Há uma potencialidade eversiva na voz, em relação aos

códigos da metafísica, que se reduplica quando a voz mesma vibra com o universo dos sons

em vez de limitar-se a revestir acusticamente o conceito” (CAVARERO, 2011, p. 190). Dessa

forma, o processo do conhecimento engendrado pelo texto é vocalizado, em subversão, uma

vez que, ainda conforme Cavarero (idem, p. 198), “Desvocalizando o logos, a metafísica quer

precisamente imunizar-se dessa potência. O privilégio da theoria sobre a palavra, como bem

sabia Platão, é acima de tudo, um apagamento da voz” (ibidem). Para a figura narradora de

OVDP, “a linguagem do ser, utilizada na metafísica e na linguagem corrente, é capciosa,// o

fulgor não fala a linguagem do ser” (OVDP, p. 191).

No contexto de OVDP, a voz pode ser considerada mais uma das estratégias

llansolianas para a fuga da impostura da língua por assumir um caráter subversivo no texto. A

partir de uma análise que tente compreender suas múltiplas estruturas, é possível percebê-lo

como um livro altamente vocalizado: “altamente” porque o volume vocal é aumentado diante

das diversas formas de aparição ou existência da voz. Seja no pressuposto da enunciação do

título, seja no anúncio da voz no início do texto, seja nas diferentes vozes que aparecem

enunciando pelo livro, seja também pela forma (sem linearidade) com que elas aparecem.

Dessarte, a dicotomia entre ser um texto escrito ou falado (vocalizado, com base primeira na

oralidade) acaba sendo desconstruída em um texto como o de Llansol no qual reconhecemos

que a inscrição da voz na cena de abertura do livro instaura um lugar específico para a

vocalização. Talvez seja seu primordial pressuposto da unicidade que é “transferida” à

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palavra, seu “destino essencial” (CAVARERO, 2011, p. 28), visto que, recuperando Barthes,

“a voz trabalha com a língua” (idem, p. 30).

Uma pergunta fundamental para o atual momento do trabalho seria: por que Llansol

traz “a voz, corporeidade do falar”, situada na “articulação do corpo e do discurso”

(BARTHES apud CAVARERO, 2011, p. 30), para seu texto? Que isso implica? Já citada sua

potencialidade eversiva, nos resta continuar com Adriana Cavarero (ibidem) para ressaltar que

“A tarefa da voz é funcionar, então, como trâmite, ou melhor, como ramal entre corpo e

palavra”. A voz está, portanto, entre os corpos de afeto que habitam a textualidade (as figuras)

e os que passam a habitá-la através do livro (legentes). Em Llansol, as palavras têm certa

autonomia com relação à função semântica da língua. O campo visual da escrita pode parecer

insonoro em um primeiro momento de contemplação, mas sua própria constituição parece

buscar um retorno à vocalização/emissão.

Podemos dizer que o jogo llansoliano desenvolve-se por várias frentes e uma delas

(talvez uma das principais) é a do atravessamento - que começa por um atravessar-se. Em teor

diarístico, Llansol escreve em uma passagem de “O poder de decisão” (seção VI de OVDP)

que “No livro que estou a escrever, aparece uma figura a que o texto chama Quimera. Não sei

bem que figura é” (p. 262-263). Mais à frente, a voz narradora vai assinalar que lhe custa o

trabalho de escrever a Quimera: “Custa-me escrever esta figura. Gostaria, portanto, de não ter

de a atravessar” (p. 263). A partir desses trechos de escrita, há pelo menos duas questões que

saltam. A primeira é que é o texto quem nomeia as figuras - logo, essa nomeação estaria para

além do sujeito biográfico que escreve. A segunda questão é que uma figura, para ser

desenvolvida, precisa antes ser atravessada. Para que a escrita surja, a partir de seus nós

constitutivos que são as figuras, a mão escrevente precisa atravessar aquilo que “o texto

chama”, nomeia ou convoca. O atravessamento referido à Quimera pode também ser levado

em conta para suas demais figuras, incluindo a figura Maria Gabriela Llansol que se faz

presente no texto.

Llansol desenvolve seu texto com diversos espaços, como sulcos ou buracos abertos,

por onde respiram escrita, escrevente e legente e, daí, transparece uma performance de escrita

e uma performance de leitura. Nesse transparecer, está também o princípio de duplicidade que

é abertura e se desfaz em mais. O lugar da captação da “nossa história do universo” (OVDP,

p. 34), expandida e em constante ampliação: “basta, meu jovem céptico, que um vulto se

levante da areia para que eu me interrogue:/ ‘Tem voz de dizer, ou voz cheia de lodo,

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ininteligível?’” (idem, p. 213). A expressão da escritura de Llansol nos parece

recorrentemente ligada a uma interioridade exterior ou, em outras palavras, a uma

exteriorização das multiplicidades de concepção do real. Desse modo, alguns

questionamentos bergsonistas a respeito da permanente mutação do ser se fazem necessários

desde já.

Se nossa existência fosse composta por estados separados cuja síntese tivesse que ser feita por um "eu" impassível, não haveria duração para nós. Pois urn eu que não muda, não dura, e urn estado psicológico que permanece idêntico a si mesmo enquanto não é substituído pelo estado seguinte tampouco dura. Assim sendo, podemos alinhar à vontade esses estados uns ao lado dos outros sobre o "eu" que os sustenta, esses sólidos enfieirados no sólido nunca resultarão na duração que flui. A verdade é que obtemos assim uma imitação artificial da vida interior, um equivalente estático que se prestará melhor às exigências da lógica e da linguagem, justamente porque o tempo real terá sido dele eliminado. Mas, quanto à vida psicológica, tal como se desenrola por sob os símbolos que a recobrem, percebe-se sem dificuldade que o tempo é o tecido mesmo de que ela é feita.

Não há, aliás, tecido mais resistente nem mais substancial. Pois nossa duração não é um instante que substitui um instante [...] (BERGSON, 2005, p. 4-5).

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CAPÍTULO 2: NOSSO ENCONTRO-CURVA____

2.1 O que pode uma pergunta?

Recomeçando a jornada pelo livro, neste segundo capítulo, mostra-se necessário e

expressivo um olhar ao primeiro objeto estético ao qual o leitor tem acesso: seu título. Onde

vais, drama-poesia? é a pergunta do século, ou melhor, da virada do século, e acaba por

grafar no texto do tempo localizado nos anos 2000 a passagem de Llansol por esse mesmo

tempo. “Passa é o seu acto fundamental” (OVDP, p. 17). Morre um século, nasce outro, e a

escrita passa; é o que está sempre a passar, indicando tanto a projeção ao futuro quanto

presentes que deixam de sê-lo, tornando-se passados. O que nos diferencia das coisas

“inanimadas” do mundo - vejamos que até essa categoria Llansol vai subverter e tudo terá o

poder de “se animar” no texto - é, de certo modo, nossa capacidade de querer, de desejar e,

por conseguinte, de agir em função desse desejo. Para Maurice Blanchot, citando o final das

Elegias de Rilke, poeta que comparece em OVDP como figura,

Todas as coisas são perecíveis, mas somos as mais perecíveis, todas as coisas passam, transformam-se, mas queremos a transformação, queremos passar e o nosso querer é essa ação de passar adiante, de deixar para trás. Daí o apelo Wolle die Wandlung, ‘Queiram a metamorfose’. Não devemos ficar, mas passar, Bleiben ist nirgends, ‘Não permanecer em parte alguma’. ‘O que se encerra no fato de permanecer já está petrificado’ (BLANCHOT, 2011, p. 151).

A escrita de Llansol, é sabido, funda e projeta seu caminhar na metamorfose,

“fugindo” da metáfora e dos seus apoios, por isso diz, em frase amplamente conhecida e

citada, que interrompe “aqui o texto porque desliza para a metáfora” (FP, p. 32). No jogo de

atravessamentos da escrita, tudo pode (e deve) ser metamorfoseado, inclusive as vozes com

quem Llansol dialoga. Em função disso também que a autora pede um apoio outro para sua

escrita: “peço apoio ao ambo, ao texto, à floresta e aos animais [...]/ peço apoio aos que não

têm onde se apoiar,/ àqueles que conhecem com mais qualidade a força da sombra e da

exclusão” (OVDP, p. 167). Neste cenário, até mesmo a interrogação em Llansol pode ser lida

como elemento favorável à metamorfose: ela é sem apoio. No livro, é ela também que

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transforma. “Estas interrogações transformam a gota num vivo, num sexo que se vem situar

em relação aos nossos” (OVDP, p. 216). Dada a ocasião da cena de escrita, se a gota é

transformada em um “vivo”, é transformada em linguagem, em potência enunciativa, em

significação, como a palavra. Sabendo que a figura narradora, no início do livro, nasce para

“acompanhar a voz” (idem, p. 11), o questionamento interno das figuras do texto “Porque não

sobe ela aos nossos lábios?” (idem, p. 216) sugere que, de fato, esteja a gota no âmbito da

palavra que “deve” ir à boca - não apenas para enunciar, mas para ser “bebida”.

Ainda entre curvas pela escrita, um regresso ao poeta dos mares: por entre as Rimas de

Luís de Camões, há uma instigante (e conhecida) interrogação que pode ser vista também

como grafismo lúdico, como movimento de um jogo proposto pela linguagem. O último

terceto de “Amor é um fogo que arde sem se ver” (CAMÕES, 1973, p. 119) finaliza o soneto

com uma interrogação, após um percurso de recorrentes afirmações que estão entrelaçadas por

vírgulas, ponto e vírgulas e pontos finais. “Mas como causar pode seu favor/ nos corações

humanos amizade,/ se tão contrário a si é o mesmo amor?”. Como em Llansol - autora que

tornou Camões uma de suas figuras - até mesmo a interrogação pode constituir-se como um

elemento lançado ao fulgor, é possível que tenhamos, no soneto, um ápice em seu fim. Este

cume acaba por fazer o texto voltar a si, diluir as certezas e reiniciar o jogo da leitura.

O título “Onde vais, drama-poesia?”, por si só, já é um movimento de fulgor, de

transformação. Uma cena fulgor. Transporta em si uma interrogação que transforma

(trans-forma) a “coisa” do romance tradicional canônico ou da experiência corrente de escrita

em “vivo”, através do fulgor. Como ponto de trans-formação - formação de um novo trânsito,

re-formação - do ser ou da “coisa” do livro, coloca-se diretamente em relação com o humano,

assim como o “sexo do texto” também. Em uma das anotações em seu primeiro diário de

escrita publicado, de “Lisboa 3 de Junho de 1983”, Maria Gabriela Llansol afirma não ser

“portadora de uma verdade” mas sofrer “o impulso de formular perguntas à verdade que veio

como ajuste” (FP, p. 129). A partir disso, surge um novo questionamento da ordem de uma

concretude para o qual tentaremos encontrar respostas até o final da escrita que segue: o que é

estar em relação? Antes de mais, é um dirigir-se (não neutro) do livro: “O livro não pode ser

neutro, uma vez que é ‘literatura’, e se dirige a ele, ao leitor, pela leitura, um apelo, uma

demanda insistente” (ZUMTHOR, 2018, p. 63). De todo modo, consideramos que OVDP

contém um texto com expressivas recorrências de presente, de atualização e de reconfiguração

da experiência leitora e toda performance do texto começa pelo título.

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Embora ao longo da trajetória de escrita llansoliana muitas lacunas sejam abertas pelo

teor questionador e desestabilizante que seus demais livros carregam, o título que é a principal

fonte para nosso trabalho é o único que possui semântica e graficamente marcado o elemento

interrogativo. Considerando que nada seja gratuito e, principalmente ao se falar de Maria

Gabriela Llansol, que toda proposta pode ser produtora de sentido, o que pode uma pergunta,

afinal? De acordo com Maurice Blanchot (2011, p. 229), “A resposta autêntica é sempre vinda

da pergunta. Pode-se fechar sobre esta mas a fim de a preservar mantendo-a aberta”. E, em

um texto llansoliano que se inicia por uma pergunta, é relevante considerar que sua busca não

é por um fim absoluto, ou mesmo um “fim”, porque sua interrogação “fulgoriza-se” também

como “um mundo por vir contido numa semente semântica de mostarda” (OVDP, p. 98).

“Entretanto, se, cada vez que lhe é dada uma resposta, indiferente a essas respostas, ela se

formula de novo, cumpre ver nesse ‘de novo’ uma exigência que, em primeiro lugar, nos

surpreende” (BLANCHOT, 2011, p. 229). A pergunta é uma espécie de “exigência” do novo.

Na parte XVI da seção “Em busca da troca verdadeira (1982-1992)”, Llansol nos abre,

literalmente, sua casa. E, retornando ao título, fazer uma pergunta pode também abrir uma

casa, o livro; uma casa em dissolução. E sabemos, com o livro, que “a casa era a gramática

daquela língua" (OVDP, p. 22).

Abro-vos a Casa numa interrogação. A Casa é esta____ lugar e corpo dividido, onde meu corpo se interroga, reunindo os fragmentos das coisas [...] (OVDP, p. 82). A casa em que vivíamos ia desmoronar-se ao fim desse tempo _____ (OVDP, p. 51). o facto é que a Casa flutua, à beira de desfazer-se, (OVDP, p. 169).

Poderíamos, de fato, ler essa “interrogação” como a abertura da casa - a chave ou a

porta? Seria o livro a Casa? “É verdade que o papel range quando se manipula a página./

Imaginemos agora uma porta que se abre. O sujeito da/ Frase gira nos gonzos, [...]/ Range?

Precisa de óleo nas dobradiças” (CLP, p. 352). Levando em conta, decerto, que “Dentro, e ao

lado das nossas casas, estão várias casas” (OVDP, p. 81), entrar na casa corresponderia a

entrar no movimento da casa, porque ela não é estática nem única. Se Llansol pergunta “Onde

vais, drama-poesia?”, é possível induzir que, para que a pergunta viesse a surgir, fora

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constatado pela autora (ou pela voz que abre o texto) que o “drama-poesia”, algo que está

diretamente atrelado ao drama e ao poético, estava indo a algum lugar. A pergunta que dá

título ao livro (um título-curva) é uma expressão, uma cena fulgor, cujo vocativo é em dupla e

não solitário. Uma dupla que, através da sua união, vai formar uma terceira coisa - algo para

além ou após a interrogação. A pergunta talvez seja uma forma vocal e textualmente

elaborada de acompanhar o sentido do poético, uma vez que, embora não se saiba exatamente

o sentido (por isso se pergunte “onde vais..?”), sabe-se que este sentido há, existe. Uma

segunda pergunta que surge, a partir de então, é: que lugar é esse? Não sabemos. A dúvida da

interrogação como sinalização ao desconhecido é, em si, uma abertura ao encontro

inesperado: “São João da Cruz diz melhor: <<Chegaremos aonde não sabemos por caminhos

que não sabemos.>> (FP, p. 135). O texto sabe que “o pássaro está de passagem, não se sabe

de onde veio/ nem para onde vai/ nem talvez se veio” (OVDP, p. 152).

Por que, no título de uma obra que, segundo a tradição, era para ser “classificada” na

categoria de romance, estão o “drama” e a “poesia” de mãos dadas por um traço que os une?

Por qual razão precisa o texto (título é parte da textualidade) se expressar em pergunta?

“Porque o texto cresce quando pode enunciar, sem obstáculo, as fulgurâncias que cabem na

frase, fulgurância e linguagem, uma na outra, numa só flecha. Mas quando as fulgurâncias se

chocam, teme que se anulem, mas não teme menos que o façam explodir” (L, p. 172). O

crescimento do texto, por sua vez, se desenvolve, para além do elemento interrogativo já

tensionado, pela aproximação entre as categorias que possuem cada uma a “sua linguagem”.

De acordo com Huizinga (2019, p. 188), “Só o drama, devido a seu caráter intrinsecamente

funcional e ao fato de constituir uma ação, continua permanentemente ligado ao jogo”.

Pensando nisso, ao aproximar o drama da poesia na formulação “drama-poesia” (formulação

que está presente desde o título do livro até suas entranhas), Llansol vai articular uma

reaproximação entre a ação, o âmbito da necessidade performativa/performática, e o poético -

ou a palavra poética.

O que pode uma pergunta, ainda? Pode também suspender, relativizar certezas e

nomenclaturas. Nesse fluxo de possibilidades, podemos levantar a afirmação de que o texto de

Llansol não é ficção, mas fricção entre gêneros. A própria autora afasta-se da categoria

literária quando afirma: “mesmo se habitualmente lhe chamam ficção, eu acho que essa

escrita não é ficção. É o produto de uma experiência que se aprofunda e de uma transmissão

em texto dos mundos que eu atravesso" (LLANSOL, 2011, p. 54). De acordo com Lucia

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Helena, “Esta é uma escrita-laboratório, que goza das prerrogativas da metalinguagem e que

reúne, sob um mesmo impulso criador, as características do ensaio, do lirismo, da epicidade,

da dramatização, do testemunho, da ficção, do diálogo e do diário” (HELENA, 1991, p. 37).

Correspondendo a um “tu” em posição de vocativo, o “drama-poesia” do título é

questionado na perspectiva de um presente. É um indicativo que interroga mais do que afirma.

Outra questão que formulamos (e, certamente, não apenas nós) em relação ao título é: por que

não há a pressuposta preposição “para” em sua configuração, uma vez que o verbo ir (“vais”)

é um verbo de movimento? Talvez, pela aproximação de “para” preposição com o “para”

verbo. Assim, na textualidade, na escrevência, lugar de poder - não o de aniquilamento do

outro - e potência da palavra, não há espaço ou lugar para formas que proponham o estático

na e da língua. Por isso mesmo, “esse poder da escritura é um poder de ordem paradoxal”, de

acordo com Tatiana Pequeno (2011, p. 145). “Onde vais, drama-poesia?” interrogam o título,

a primeira seção do livro e esta pesquisa que segue. Talvez uma das respostas possíveis do

drama-poesia poderia ser “venho de longe,/ mas não de onde”. Entretanto, pelas diferentes

vozes que habitam a textualidade Llansol, não poderíamos conceber que apenas o

drama-poesia nos dê essa resposta, uma vez que a narradora também ressoa, desfazendo-se de

uma personalidade justamente na “Apoptose”:

___________ mas a sombra não só me aproxima daquele sou de que sou o eco sustentado, como me guarda a intensidade de saber que venho de longe, mas não de onde; o texto quer dizer-me que, no poema, a sombra misteriosamente me guarda o real e que, deste, o texto é, de facto, uma eflorescência mas sem ramo (OVDP, p. 169).

O título do livro, em si, é já uma construção de antíteses: “onde” e “vais”, imobilidade

e(m) movimento, são a primeira expressão da dissonância do sintagma que nomeia o livro. E,

nessa dissonância, menos responsiva do que mantenedora de interrogações, a autora, no ano

anterior à publicação do livro em questão (Dossier nº 17, p. 3, Sintra, maio de 1999), registra:

DRAMA POESIA porque a Poesia é sempre deficitariamente lançada

e representada em qualquer contexto. De facto, não tem apresentação nem representação possível na narrativa viva, excepto se for interrogada pelo próprio percurso que faz:

- “Onde vais, Drama-Poesia?” (LLANSOL apud FENATI, 2014, p. 343).

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2.2 Por uma geografia do vivo

Como tentativa de compreensão do âmbito estrutural de OVDP, pensar em “uma

geografia do vivo” é, de imediato, considerar a existência de um “vivo” que atravessa toda sua

estrutura e, além disso, buscar pistas das formas como seus deslocamentos afetam a

textualidade llansoliana. Nesse sentido, trata-se de um “vivo” do texto, que surge a partir dele,

com ele, e não necessariamente remete a uma exterioridade de seres vivos que se vincularia

ao uso denotativo de “geografia”. Perceber a geografia do vivo pode ser, de certo modo,

percorrer os percursos emancipatórios das palavras que geram na memória uma vida

(HOOKS, 2020, p. 223).

A despossessão da língua operada por Llansol, com sua escrita, implica frontalmente

uma despossessão do eu, um “eu” criado ou criável por ela, à qual nos referimos na terceira

parte do primeiro capítulo. Podemos considerar como um de seus intuitos de escrevente a

nossa observação crítica, enquanto leitores (por isso legentes), de sua performance literária

para que possamos realizar uma performance de leitura capaz de quebrar paradigmas, quebrar

a posse de poder que ronda a língua e a linguagem, o que geraria a compreensão inicial de

“como nós agimos inconscientemente, em cumplicidade com uma cultura de dominação”

(HOOKS, 2020, p. 230-231).

“Não exclusivamente humano, o texto,/ [...] há, com efeito, uma força que o move,/

uma força de vida” (OVDP, p.190). Sendo movido por “uma força de vida”, o texto é uma

espécie de fonte geradora de energia, de onde emana fulgor. Em um registro um pouco mais

(e não apenas) biográfico, porque diarístico, Llansol reflete: “Um dia acordarei,/ e viverei/

toda a minha vida;/ não a minha vida de meu nome,/ mas essa também/ com toda a minha

vida” (F, p. 222). Ainda assim, a narradora-enunciadora de OVDP adverte que “a vida não é

essencialmente nem principalmente humana;” (OVDP, p. 190). E, como a vida não é única, o

vivo também não o é, “não tem uma forma estável e, com clareza, identificável” (ibidem).

Para pensar o vivo presente em OVDP, “voltaremos à imagem da água” (idem, p. 9) dando

passos mais largos a uma espécie de “fonte” dessa “água de escrita” (F, p. 223), a procurar

“uma cena,/ uma verdadeira cena que vive na água” (OVDP, p. 150-151).

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De acordo com a autora em seu diário Finita, O livro das comunidades - publicado

após Os pregos na erva (1962) e Depois de os pregos na erva (1973), seus dois primeiros

livros - “não é um livro como os outros, é um livro-fonte” (F, p. 215). “Sobre O Livro das

Comunidades desejava uma escrita viva que pudesse tomar por um encontro” (idem, p.

216). Em material de folhas avulsas datiloscritas/manuscritas de seu espólio, publicado em

Partilha do incomum sob a organização de Maria Carolina Fenati, a autora deixou escrito que

“O Livro das Comunidades é o início/ ponto de partida de uma espiral [...]” (LLANSOL apud

FENATI, 2014, p. 319). E mais: “publico O Livro das Comunidades em 1977. Verifico que o

meu período de escrever ficção terminou. A ficção, embora atribuída à imaginação, tece um

tecido que se apoia no normativo” (idem, p. 320).

Atravessada por uma semântica de vida e morte, evolução e involução, ascendência e

constante construção, a espiral aproxima-se, também, da pluralidade dos movimentos do texto

de OVDP. Embora, após um livro que abre caminhos para uma extensa jornada de escrita, a

autora compreenda que seu período de “escrever ficção terminou”, a catalogação de obras

como o próprio OVDP segue como “ficção portuguesa”. “E como a define?// Antes de mais é

uma forma de escrita, uma espécie de literatura não ficcional” (OVDP, p. 197). Em uma

vigorosa entrevista concedida a Graça Vasconcelos para a Radiodifusão Portuguesa, em 18 de

fevereiro de 1997, Maria Gabriela Llansol (2011, p. 55) reitera: “Por isso, eu não lhes chamo

ficção, mas uma pulsão para o aprofundamento das fontes da alegria de viver”. Ainda hoje,

por enquanto, não há um nome único, enquanto gênero ou segmento literário, que abarque

essa “pulsão” llansoliana, esse corpo de vida-escrita que se constrói implicado entre as

experiências de vida e de escrita, ambas caminhantes lado a lado.

Em que daria essa pulsão? Considerando que OVDP acaba sendo também uma

continuidade do que começara em O livro das comunidades - ou parte do Livro maior a que a

autora se refere quando diz, em entrevista a Lucia Castello Branco em 1993, “O que escrevo é

uma narrativa, uma só narrativa que vou partindo, aos pedaços” (LLANSOL, 2011, p. 48) -

temos, no livro, reflexos dessa pulsão que abre Lugares. A estrutura textual contida em OVDP

é uma espécie de “agenciamento” novo (em busca do novo) que se fundamenta na linguagem

e se apresenta à língua e à narratividade como possibilidade da construção de um texto que

respire, seja intrinsecamente propositivo (porque repleto de fragmentos sem um específico

fim) e tenha em suas entranhas, também, um mecanismo de pensamento. É um texto de

pensamento, de elucubrações imagéticas a partir de uma paisagem muito vasta que, além de

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estar constantemente em reflexão e enunciação, convida o leitor a pensar; e, pelo movimento

do pensamento, torna-se legente.

o há do texto é problemático; o que ele afirma é que qualquer vivo que se forme em qualquer dos sexos de ler, é responsável por todo o vivo, a partir dos modos particulares de existir desse sexo ________ o Jade é responsável, o pinheiro Letra é responsável, Prunus Triloba é responsável; (OVDP, p. 187).

Problemático, dissonante, é o modo de existir do texto. Nele, o vivo se forma e não é

formado, o que se faz coerente em uma realidade textual na qual “as palavras são vivos/ e não

instrumentos” (OVDP, p. 82). Ao longo de sua obra, é possível reconhecermos que Llansol

desenvolve, em certos livros, sua textualidade com as figuras e cenas fulgor (o que seria o

espaço da ficção, na conceituação literária tradicional) e, em outros textos, faz reflexões a

respeito dos livros em si, como nos diários, por exemplo. Em OVDP, o espaço do livro

comporta o encontro das diferentes formas que constituem o texto, a sua metamorfose. Estão

presentes neste espaço a textualidade proveniente de uma narrativa figural (aquela a qual, sem

outro nome que a contemple, daria-se o nome de ficção), o texto que revela o processo de

escrita, e o texto que pensa sobre a criação do texto - o pensamento que redefine o universo

literário da autora. A geografia do vivo pode ser, como existe em O livro das comunidades, o

Lugar do vivo, ou seja: a construção do espaço do livro como uma outra coisa.

A geografia do vivo pode abranger também o desenho de mapa deixado pelo poema

que “passa” a todo instante pelo texto. Porém, pensando na poética do suspenso como uma

anti-não-poética, uma dissolução de uma ideia de poética em si (como veremos melhor no

subcapítulo 3.3), a rasura de múltiplas linhas pode ser considerada um mapa? Talvez, um

mapa sem fim, labiríntico e rizomático.

concentro-me na percepção deste facto nu que escapa, na totalidade, ao texto literário corrente, e acrescento ___________ o vivo não tem uma forma estável e, com clareza, identificável, tende a ser matéria leve e não coisa, algures, entre o orgânico, o construído e o concebido, por exemplo, Coração do Urso em O Livro das Comunidades, a Casa, em Hölder, de Hölderlin, e Em Busca da Troca Verdadeira, Ana a ensinar a ler a

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Myriam, enquanto estatueta de Um Beijo Dado Mais Tarde, o caderno de Ardente Texto, Potropato de Contos do Mal Errante, ou a Quimera de O Ensaio de Música não são coisas ou metáforas, mas vivos ” (OVDP, p. 190).

Nesse momento, em que o texto cita o próprio livro que se está a desenvolver (“a

Casa, em [...] Em Busca da Troca Verdadeira”) e referencia livros anteriores da obra da

autora, há uma reflexão llansoliana a respeito do “texto literário corrente” e uma relação de

presença do vivo. Este, por sua vez, figura na página do texto (que é também a habitação dos

vivos), é apresentado, dito por meio da escrita: “todos os que me acompanham são vivos seja

qual for o momento e a felicidade da sua metamorfose” (OVDP, p. 151). Daí que: as palavras

são vivos, as figuras são vivos, a paisagem é viva. Diante disso, como não ser essa habitação

de vivos também um Vivo? “e esse ar-onde é o vivo mais precioso que conheço” (idem, p.

221).

Por entre a resistência do texto que foge à impostura da língua, o legente aprende a

resistir - no sentido deleuziano. Para Deleuze, o ato de criação é um “ato de resistência”.

“Resistência à morte, antes de tudo, mas também resistência ao paradigma da informação, por

meio do qual o poder é exercido naquelas que o filósofo chama de ‘sociedades de controle’”.

Para o filósofo, “Cada ato de criação resiste a algo: [...] a música de Bach é um ato de

resistência à separação entre o sagrado e o profano” (AGAMBEN, 2018, p. 59), por exemplo.

Apoptose - ou a autodestruição celular em termos científicos - que faz parte da estrutura de

OVDP nos aponta ou sugestiona para uma compreensão do “vivo” como o próprio corpo do

texto. A geografia do vivo, então, pode ser uma proposição de nova geografia para a escrita a

partir justamente de seu processo e de uma compreensão do corpo do livro como um corpo

vivo; por isso, mutável, aberto à metamorfose. De acordo com a textualidade, “É vital

conhecer a paisagem” (OVDP, p. 45). Vital é ato de conhecimento, é, em perspectiva

etimológica de cognoscere, ver e, ainda, “aprender a conhecer” (HOUAISS, 2001, p. 802).

Assim, podemos considerar que estar em contato com a paisagem do texto, repleta de imagens

mutáveis ou mutantes, é estar em processo de aprender - um aprender que não nos leva a um

fim específico.

A seção intitulada “Apoptose” é o enunciado de um fim, porém não em caráter de

encerramento, uma vez que nos referimos a um encontro que, enquanto legentes/leitores,

temos no meio da encruzilhada do texto. No meio do livro, entre duas seções iniciais já

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passadas (“Onde vais, drama-poesia?” e “Em busca da troca verdadeira) e mais duas por

seguir (“O poder de decisão” e “Dioptrias”), a única diferença organizadora entre os dois

blocos de texto separados por essa morte ou autodestruição celular é que, no primeiro, há duas

“Oferendas” e, no segundo, apenas uma. Como suspiro último - ou de recomeço -, a seção

denominada “Apoptose”, também nos dando a ver uma apoptose do texto, encerra-se em uma

subdivisão “VIII” que nos apresenta, mais uma vez, em cena, a possibilidade do múltiplo para

o texto. Metalinguisticamente o texto se encerra, mas retorna para “O poder de decisão”.

__________________ estava eu na cama trocando palavras de ternura quando acordei por ouvir abater uma árvore; sentei-me fora da minha natureza, e reparei que o pinheiro abatido, envolto em hera, me entregava uma mensagem “um eu é pouco para o que está em causa” (OVDP, p. 182).

É um texto que des-começa a todo tempo, performa sua presença como performa a

palavra do começo ou do fim. Em seu movimento não fechado, acaba por operar em si mesmo

uma reiniciação constante que reelabora as sequências de leitura em sequências de escrita - de

espaço para o respiro sem fôlego do legente. O texto se desfaz, dilacera a unicidade do “eu”

para retornar, uma vez mais, se oferecendo à legência, porque “o vivo aparece sempre em

fluidez”, estando “à beira de um precipício” (OVDP, p. 263), entre morte e vida (como uma

das ideias da espiral).

Sua textualidade desenha-se em “uma arquitetura para a aventura da água (o quê?, é

uma maneira de dizer vivo em português. Sabe, o vivo aparece sempre em fluidez, num

extremo, à beira de um precipício)” (OVDP, p. 263). Em diversos momentos de sua escrita e,

principalmente, de Onde vais, drama-poesia?, o vivo comparece à superfície do texto,

assumindo formas e sentidos diferentes, embora estejam alinhados ao sentido da novidade. A

citada “aventura da água” não só alude à história portuguesa intimamente ligada ao mar e ao

seu “desbravamento”, o que faz com que a história literária também seja altamente aquosa,

como também a uma proposta de destacar que a mesma não se configura como única maneira

de se “dizer vivo em português”. Em trecho conhecido de seu diário Um falcão no punho,

publicado pela primeira vez em 1985, 15 anos antes de OVDP, a autora revela que “Queria

desfazer o nó que liga, na literatura portuguesa, a água e os seus maiores textos. Mas esse nó é

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muito forte, um paradigma frontalmente inatacável” (FP, p. 32). Se é “frontalmente

inatacável”, podemos considerar que seu movimento de acesso a esse paradigma do mar não é

frontal, mas sim através de uma submersão - que, trocado o “m” de mar pelo “v” de vivo, se

torna subversão.

Após a apoptose do texto, que é seguida pelas Oferendas, aludindo aos oferecimentos

(principalmente flores) que fazemos aos mortos, nos deparamos com “O poder de decisão”

como uma forma de nova origem ou nascimento do texto, uma vez que, como considera João

Barrento, “Origem não é causa nem genealogia, é o lugar onde nasce uma decisão”

(BARRENTO apud ARAÚJO, 2008, p. 202). E, de acordo com Maria de Lourdes Soares

(2011, p. 243), “Quando se escreve importa saber em que origem se decide nascer”. Decidir

origina-se do latim decidere, que tem também o sentido de cortar, separar. Considerando

essas origens, podemos contemplar o vivo “em fluidez”, no lugar mesmo do precipício - entre

vida e morte (ou, para alguns, entre uma vida e outra). A metamorfose provocada pela

performance de nascimento que se dá na escrita, por sua vez, tem novamente a oportunidade

de refundar a própria escrita. E o nascimento, em si, se dará sempre que existirem figuras que

estejam a povoar a comunidade do texto:

A escrita não se refere apenas aos indivíduos e personalidades rejeitadas. A escrita não pratica a monocultura humana. [...] Seja como for, eu não invento a escrita, como eles também não a inventarão. Eu re-nasço dela e, escrevendo, re-sisto, re-existo, na minha forma singular de existência. Eu constato que sou assim, que não me quero separar do facto de ser um ser por vir, e que empresto a minha voz a esta espécie (que é, no fundo, a minha) de vindouros por mansa insistência. Há muito que estamos nascendo” (ODVP, p. 211).

Com esse trecho, estamos diante da origem, da decisão, do “empréstimo” da voz a

partir da perspectiva da narradora-escrevente, do nascimento e, além de outras questões que se

possam desvelar, da resistência. Para Tatiana Pequeno (2012, p. 89-90), “se escrever coincide

com a tensão original da resistência, significa dizer que há no ato da escrita uma

fundamentação da sobrevivência, [...] o júbilo e a potência na necessidade de combater”.

Retornando à cena teatral, assim como o corpo é a “ferramenta” do ator, mas é também, em

estado de duplicidade, expressão da própria arte em performance, é possível que

consideremos o livro como a ferramenta que também performa ferramentas. E, como uma

“ferramenta” ou agenciamento de combate, “Não há diferença entre aquilo de que um livro

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fala e a maneira como é feito” (DELEUZE & GUATTARI, 2000, p. 12). Outrossim, Aossê

(figura de Fernando Pessoa na escrita llansoliana, que perde o “p” de pessoa e é invertido),

fazendo reflexo à figura narradora-enunciadora-escrevente, toma sua decisão no texto:

a maior parte de nós vai morrer nesse futuro, pensa ele, ou porque não evoluiu, ou porque evoluiu numa direção que não encontrou sentido; toma, então, uma decisão absolutamente radical __________ transformar o seu poema no receptáculo de vários futuros, um poema que, sendo quimérico, abra o humano para a prática jubilosa do imprevisível, única maneira, crê ele, de a espécie se reproduzir muito menos, e ser muito mais viável; (OVDP, p. 264).

2.3 Onde vais, nascida? [Escrita de algum si]

Escrevendo, só sei dizer-lhe que acabaremos por nascer.

M. G. L.

O questionamento inicial de movência para esse momento do trabalho, “Escrevendo,

só sei dizer-lhe que acabaremos por nascer” (OVDP, p. 212), é justamente emitido pela

própria voz enunciadora do texto, a figura da narradora que possui um espelhamento

biográfico em rastro: “E eu --- a guardiã do texto?” (idem, p. 133). Ainda que com esse rastro

em perspectiva, é importante ressaltar que, longe de se declarar como autoficção, a escrita da

autora é recheada por diversos “eus” que escorregam pelo percurso, alternando-se em

presenças ou vazios. Na medida em que o texto faz essa dupla curvatura na qual a voz

narradora lança um questionamento para fora e para dentro da estrutura do texto, fá-lo saltar

do/no âmbito no qual está inscrito: o livro. Como o mutante que “é o fora-de-série, que traz a

série consigo” (LC, p. 9), o elemento interrogativo da passagem - importante no contexto do

corpus dessa pesquisa - desloca a “série” e encaminha-se para o legente de forma direta e sem

amarras. “Eu eu?” questiona a voz do texto se colocando face a face com o legente e,

consequentemente, com suas próprias margens.

Jorge Fernandes da Silveira, em O beijo partido (2004, p. 22), afirma que “na casa da

rua Domingos Sequeira, onde Maria Gabriela Llansol nasceu e foi criada, assistida por uma

criada, vai ser montada uma outra casa para que ela assista ao crescimento e à educação de si

mesma através da ‘figura’ de Témia, a rapariga que temia a impostura da língua”. Neste

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cenário, é possível perceber que Llansol, para além do deslocamento que opera em suas

figuras cujos nomes se ligam a certos existentes historicamente reconhecíveis, vai também

deslocar-se para “se ver” através da textualidade - considerando que o ver a si não seja ligado

necessariamente à Llansol do documento de identidade, mas à autora, escrevente. Ao passo

que a obra não é “só o texto mas o corpo” (FP, p. 141), inscrever o corpo é escrever o texto e

criar novos lugares para que o corpo deixe de ser estático ou “muito menos original” (ibidem).

A criação dessa “casa” dos anos 1990 de Um beijo dado mais tarde vai desdobrar-se, ao longo

da (d)obra da autora, em não apenas uma casa, mas em um conglomerado de lugares possíveis

para se ver, enxergar, assistir: a figura que na escrita llansoliana vai aproximar-se da

biográfica Llansol passeia pela cidade, caminha por lugares (im)possíveis à sua existência.

Tal existência - que só é viável e “concretizada” no texto pelas mãos que escreviam e

possuíam uma digital específica identificada socialmente como Maria Gabriela Llansol - já

tem no deslocamento sua fonte primária.

“Jamais conseguiremos remeter para a biografia da autora sem remetermos para os

seus textos” (LLANSOL, 2011, p. 8). Com esse comentário, entre as Entrevistas de Llansol,

António Guerreiro nos chama a atenção a uma radicalidade epistemológica alcançada,

nascida, pela escrita llansoliana. Enquanto o senso comum aponta para uma tendência de

leitura de textos à luz de biografias, em Llansol, autora de uma geografia invertida que chega

até mesmo ao alcance dessa tendência, para o acesso à biografia é aconselhável recorrer ao

texto, à “pulsão” de escrita como caracteriza a autora (no lugar de ficção). Tal radicalidade é

prevista na premissa da autora de que “escrever é o duplo de viver” (ibidem). Escrever acaba

sendo (re)viver cada vez mais:

Borges aborda o paradoxo mais tarde retomado por Heidegger e Agamben: o escritor cria a obra mas, na verdade, é a obra que cria o escritor, porque toda obra é um símbolo do homem que foi enquanto a escrevia, e que, para escrever essa narrativa, ele foi obrigado a ser aquele homem e que, para ser aquele homem, teve de escrever essa narrativa, e assim por diante, até o infinito (ANTELO, 2016, p. 91).

“Havia, no entanto, na cena um resto de texto [...]./ Deixo-o aqui, todavia, para o vivo

poder ler um dia:” (SH, p. 77). Nesse trecho transcrito de O senhor de Herbais, há um eu

implícito que “deixa” um “resto de texto” aos legentes. Após os dois pontos llansolianos que

encerram a citação, há uma vastidão de Mundos possíveis para que o vivo possa acessar a

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literatura pelas margens da escrita e, assim, encontrar-se com o “resto de texto” que se faz

presente como algo além, a se descobrir, e proveniente de uma realidade na qual as palavras,

em si, são “vivos” (OVDP, p. 82). Entre um passado (“havia”) e um presente (“deixo”), a

figura da narradora-enunciadora se mostra em primeira pessoa e aponta, a partir do dêitico

escolhido, “aqui”, que o sentido precisa ser buscado na concretude do texto, localizando o fato

da enunciação no aqui e agora.

Estamos em face de “eu” grafado no texto que não se postula diretamente como

poético, mas que carrega em si a dúvida poética e que, como o texto, “resiste à leitura que

fazemos” (OVDP, p. 124). Um eu que diz “eu não existo” (OVDP, p. 244), negando-se, em

meio a uma dicção - entre o poético e o narrativo - na qual se enuncia constantemente em

primeira pessoa. Na verdade: primeiras pessoas, plurais. Nesse percurso de desatar nós, se

considerarmos outras significações possíveis para a cena de escrita que abriga a inscrição do

nascimento, podemos observá-la, potencialmente, como uma pedagogia do saber – do

abandono do saber e de sua redescoberta: um (re)(des)saber. Uma pedagogia que na verdade é

um dispositivo de criação de novas possibilidades de leitura e, a partir delas, de interação com

o mundo. Percebemos, não só no trecho citado no qual a voz narrativa “deixa” o texto “aqui,”

como ao longo de todo Onde vais, drama-poesia?, um “eu” inscrito no mesmo texto gerador

de um “poema sem eu”, conforme afirma João Barrento:

Em todos esses arautos da modernidade se assiste ao nascimento do poema sem eu e sem arroubos ‘expressivos’, do ‘drama-poesia’ no sentido que a expressão ganha em alguém como Maria Gabriela Llansol, que, rejeitando a poesia como forma de expressão, assimila totalmente ao seu texto de prosa esta postura do sujeito posto à distância, numa escrita muitas vezes referida como ‘poética’, mas que recusa os excessos da emoção (‘sem perda de sensibilidade’) e da projecção (auto)biográfica, através do trabalho, antimimético, de (trans)figuração na linguagem. E aqui, como em tanto poema autenticamente moderno, figurar, criar figura, é objectivar a expressão (BARRENTO, 2014, p. 15).

O espaço deslocado da escrita do “eu”, embora seja permeado por recusas dos

excessos de expressão, é também o da constituição de um “eu, fragmento completo” que se

afirma como sendo “uma coisa de sentimentos” (OVDP, p. 83), se apresenta de forma ampla e

multiforme no livro. Essa dissolução de uma subjetividade unívoca se apresenta sempre em

perspectiva de proximidade e afastamento no texto, inscrito nas fissuras das palavras: “o texto

resiste à leitura que fazemos, e insiste tu tens uma pele idêntica à daquela recém-nascida;/

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Quer que sejamos a ler,/ que o leiamos como drama-poesia__” (OVDP, p. 124). Daí que a

apresentação aproximada do “eu”, fragmentado e fragmentário, deságua em uma miríade de

possibilidades de recepção do texto e em uma polifonia, já anunciada no capítulo anterior, que

percorrerá toda a obra, uma vez que “‘um eu é pouco para o que está em causa’” (OVDP, p.

182). Tal pluralidade de “eus” vai articular-se diretamente com as vozes no texto: “A

desorganização do sistema do eu, o efeito despersonalizante da posse, em vez de desvelar o

existente único que vibra em cada voz, deixa emergir um eu múltiplo percorrido por várias

vozes” (CAVARERO, 2011, p. 173).

Dos diversos caminhos nos quais a literatura pode se expandir, no contexto da escrita

da autora, um dos sentidos que se abrem à leitura é a possibilidade de reconhecer uma certa

pedagogia llansoliana do atravessamento de fronteiras e do encontro que advém das

articulações que a textualidade propõe. Maria Gabriela Llansol faz um chamamento, quase

sonoro, ao leitor para que o mesmo se torne figura legente mas, antes disso, parece também

responder a um chamado quando diz “Eu nasci para acompanhar a voz, fazê-la percorrer um

caminho” (OVDP, p. 11), se alinhando a um propósito e comprometendo-se com ele. Essa

resposta acaba sendo também elemento iniciador de outros caminhos, sejam eles afirmativos

ou interrogativos, como é o caso da formulação autorreflexiva da voz feminina de enunciação

já parcialmente citada “E eu - a guardiã do texto?/ Eu dissera sim e não assim, em busca de

uma troca verdadeira” (OVDP, p.133). Há, nas formulações, uma interrogação que tensiona a

figura da escrevente e a figura narradora e lança ao texto uma necessidade de refazer-se,

pontuada desde o início da obra. Assim, o texto llansoliano se desenvolve de forma

semelhante à prática de escrita de Hélène Cixous que, de acordo com Cavarero (2011, p. 168),

é “capaz de reverberar os ritmos pulsionais, infinitos e incontroláveis da voz”.

Um amplificado chamamento ao campo de combate-escrita é o que faz Cixous em O

riso da Medusa, ao qual Llansol parece responder com seu projeto de textualidade: “É preciso

que a mulher se escreva. [...] A mulher precisa se colocar no texto - como no mundo, e na

história -, através de seu próprio movimento” (2017, p. 129). Cixous vai, de modo

exclamativo, lançar sua voz a quem a possa ouvir: “Escreve! A escrita é para ti, tu és para ti,

teu corpo é teu, agarra-o” (2017, p. 131) e Llansol parece desenhar alguma “resposta” a esse

chamamento, iniciando a escuta por se escrever ou inscrever no texto (em forma de figura),

como faz em OVDP. A escritora portuguesa, “por sua conta, risco e alegria” pode ir, pela

textualidade, ao encontro da voz tornada escrita da pensadora e crítica literária francesa para

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“abordar a força, o real que há-de vir ao nosso corpo de afectos” (L, p. 129). Após a primeira

parte (I) que abre o livro como um prólogo e inicia-se por “o que advém do texto é a

construção da frase” (OVDP, p. 9), a segunda parte (II) vai reabrir o livro a partir de um

nascimento - que é, aparentemente, o da própria figura que assumirá o fio enunciativo (a

dialogar com a figura do narrador, ou, com mais exatidão, da narradora), refundando a escrita.

_____ eu nasci em 1931, no decurso da leitura silenciosa de um poema. Só havia tecidos espalhados pelo chão da casa, as crenças ingénuas de minha mãe. Estavam igualmente presentes as páginas que os leitores haveriam de tocar (como a uma pauta de música), apenas com o instrumento da sua voz. Eu fui profundamente desejada. Profundamente mal desejada e com amor. [...]

Eu nasci para acompanhar a voz, fazê-la percorrer um caminho. De um lado a outro do percurso, não sei o que existe, o caminho caminha, eu deslumbro-me quando o tempo se suspende, e me permite parar a contemplar o espaço sem tempo. Como, de resto, é evidente, não tive intenção de conceber-me. Dei comigo já sentada no quarto das sombras com uma perspectiva de descida aos infernos diante dos olhos (OVDP, p. 11).

O “nascer-se”, inscrevendo-se no presente do texto, é mais um dos deslocamentos que

a autora opera em sua escrita, uma vez que pode ser visto como a potência de recriação do

mundo. A partir dessa cena fulgor levantam-se os seguintes questionamentos: que lugar ocupa

um corpo que nasce? E o que provoca seu nascer? O corpo, “superfície libidinal, campo de

forças, limiar de transcendência” (BRAIDOTTI, 1997, p. 136), nascido na e pela escrita, se

coloca em ação direta de subverter e, em seguida, refundar categorias como, por exemplo, a

noção de desejo. Ser “mal desejada” e “com amor” é uma formulação cuja antítese produz um

descentramento de sentidos que impede que entremos na escrita sem antes tropeçar em

significantes para avançar na significação. A cena pode propor, então, um novo começo ou a

possibilidade de novos começos, múltiplos, como se apresenta o lugar do infante. “Inocência,

é a criança, e esquecimento; um novo começo, um jogo, uma roda que gira por si mesma, um

movimento inicial, um sagrado dizer ‘sim’”./ Sim, meus irmãos, para o jogo da criação é

preciso dizer um sagrado ‘sim’” (NIETZSCHE, 1990, p. 44). E, como deixou escrito Clarice

Lispector na abertura de A hora da estrela, “Tudo no mundo começou com um sim”. A

respeito da potencialidade do nascimento de operar uma refundação, criação do novo, Hannah

Arendt vai dizer que

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o novo começo inerente a cada nascimento pode fazer-se sentir no mundo somente porque o recém-chegado possui a capacidade de iniciar algo novo, isto é, de agir. Neste sentido de iniciativa, todas as atividades humanas possuem um elemento de ação e, portanto, de natalidade (ARENDT, 2007, p. 17).

Conforme testemunha o texto do nascimento em OVDP, o elemento de movência se

faz presente desde a literalidade pois a figura nascida tem na ação um motivo primordial para

sua vinda ao “mundo”: ela chega para acompanhar a voz, “fazê-la percorrer um caminho”. O

arranjo vocabular como um todo - principalmente a escolha dos verbos - traz a sugestão da

ação para a cena de escrita. Arendt vai ainda formular que a condição humana da natalidade

está diretamente relacionada à distinção e à pluralidade. Cavarero afirma que “no registro da

voz, ecoa a condição humana da unicidade. A voz mostra, além do mais, que tal condição é

essencialmente relacional” (2011, p. 22-23). A essência relacional é constantemente reiterada

no curso da escrita llansoliana uma vez que a figura que nasce, que diz que “a voz me

transformara num poema sem eu” (OVDP, p. 14), afirma ser fiel em sua busca por

acompanhar a voz: “Se vim para acompanhar a voz,/ irei procurá-la em qualquer lugar que

fale,/ montanha,/ campo raso,/ praça da cidade,/ prega do céu” (OVDP, p. 13).

Em Llansol, essa infância é o lugar (a que também chama ‘espaço edénico’) não mítico, porque sempre aí, na imanência dos dias, de um tempo-espaço da des-memória que encontrámos já em figuras como a mulher de Parasceve ou Témia, a ‘rapariga desmemoriada’ de O jogo da liberdade da alma. (BARRENTO, 2014, p. 40).

Como sujeito nascente, é a figuração também de um local de iniciação - onde se inicia

um novo curso para a água da escrita e, exatamente por esta razão, vai começar sua jornada a

partir de um “vazio” de saber e de (re)significação. Ao afirmar “De um lado a outro do

percurso, não sei o que existe, o caminho caminha”, a figura se revela uma descobridora que,

embora no “vazio” do saber, sabe que “o texto é sem promessa e sem garantia” (OVDP, p.

188) e que ainda assim (ou: precisamente por estas circunstâncias) deve buscá-lo e, na

jornada, acompanhar a voz. Já nesse segundo portal de entrada para o livro expresso na cena

de escrita aparece a figura legente desenhada e projetada para o futuro do texto. Esse aspecto

evidencia a proposta de existência do texto em comunidade, em conjunto, como vai pontuar

posteriormente a voz feminina que enuncia na textualidade: “eu gostaria que o legente não

temesse encaminhar-se comigo para o ponto-voraz que se avizinha ________” (OVDP, p. 85).

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“Daí que o trabalho da Comunidade já tenha começado e as confluências migratórias dos

espaços e das transformações nos sejam trazidas ao presente com uma certeza de projeto

presente”, afirma Tatiana Pequeno (2011, p. 151).

É em primeira pessoa que o sujeito da enunciação (poética e prosaica, ao mesmo

tempo - dentro dos conceitos disponíveis para nomeação) se revela já desde o início do texto.

Concordando com Paula Cristina Cunha ao discorrer sobre as Novas Cartas Portuguesas e a

escrita do corpo feminino pelas mãos de mulheres, e da reconfiguração das significâncias, “É

como se lhe fosse necessário cartografar-se para afirmar a sua subjetividade, o seu eu, e a

apreensão da realidade com base nessa experiência. Essa parece ser também a razão por que a

produção de autoria feminina insiste na reflexão sobre o ato da escrita” (2012, p. 6). Uma

“cartografia” que pode ser remetida à própria figuração das beguinas no universo de escrita

llansoliano, também ligadas à marginalidade e, em consequência, à coletividade que forma

uma comunidade e ao elemento de mudança, transformação:

Senti que havia um mundo feminino que podia nascer totalmente diferente e que essas mulheres estavam muito em contacto com a marginalidade. Os marginais trazem consigo o germe da mudança. Deslocam-se em bandos e a verificação dessa mobilidade é a aceitação do imprevisível e da insegurança permanente. Este é o sentido do percurso cultural. Os bandos são constituídos por grupos de batedores, vão à frente de mundos, são forças de arranque (LLANSOL, 2011, p. 15).

A obra llansoliana é insistentemente atravessada por vozes diferentes e, em Onde vais,

drama-poesia?, há uma predominância do lugar feminino no discurso. A própria figura de

“narração” ou narradora-enunciadora que costura os fios de todas as seções e partes do texto é

feminina. Esse feminino percorre a escrita como espaço também de luminescência com sua

polifonia e “Longe de constituir os dois pólos de um contraste entre as esferas do ouvido e do

olho, voz e escritura se aliam extraordinariamente contra certa acepção sistemática e

normativa da linguagem” (CAVARERO, 2011, p. 160). Desde o início do livro, a voz é

grafada nas páginas como corpo vivo que se desloca, pertencente ao corpo do texto,

desfazendo os nós que separariam voz e escritura, bem como seus receptores ouvido e olho.

Ainda sobre esse feminino instaurado (mas não unificado) no presente do texto,

passagens como “a rapariga que temia a impostura da língua / mergulha, eleva-se; ando.”

(OVDP, p. 116) são recorrentes ao longo da leitura. Dentre as diversas (re)formulações de

forma e de recepção de leitura que o texto produz, uma é resultado mesmo da sua polifonia.

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Page 60: C em um tempo qu e no s ca iba

Esse “ando” que aparece no texto em um presente afirmativo, quase como um corte luminoso

no fluxo da legência (impossibilitando a mera contemplação) produz uma suspensão de

sentidos pois rompe com a terceira pessoa que ocupava o lugar inicial da enunciação. Tal

rompimento não se apresenta como competição, mas, pelo contrário, na forma de uma

coexistência de vozes no texto. Coexistindo, as vozes instauram um jogo que precisa ser

jogado.

Existe, no texto - e, de alguma forma, antes dele - uma voz convocatória e, a partir de

uma escolha autoral, uma resposta, em cena fulgor, ao chamamento que é feito. Tal resposta

pode ser (ou começar por) o nascimento, que se desenvolve textualmente como um encontro

de vozes: a que chama e a que é chamada. Considerando o projeto de uma escrita em processo

de Llansol, uma resposta não poderia ser um encerramento, mas um novo começo. A partir

desse encontro inesperado, surge o diverso: aquilo que, como uma grande chama, envolve a

escrita e a faz saltar para fora dos âmbitos gráfico e semântico, visto que “a obra llansoliana

parece querer se distanciar do entendimento que abarca uma literatura vinculada e somente

possível num único real, entenda-se, mundo humano” (PEQUENO, 2011, p. 142). Saltar é,

em literalidade, sair por instantes da superfície na qual se aconchegam os pés para encontrar

não se sabe o que, em não se sabe onde. Sabe-se, apenas, que é para o ar que se vai; por isso, é

já em si um movimento que produz deslocamento.

Embora o sujeito feminino da enunciação afirme “não tive intenção de conceber-me”

(ainda na cena de escrita de abertura do livro) há, no rascunho de escrita ou no “resto de

texto” (SH, p. 77), a essência de uma escolha autoral de performar um “seu” nascimento, ou

melhor, nascimento de algum si que vai ampliar o âmbito da existência na textualidade e o

pensamento sobre biografia, uma vez que escrita e vida são indissociáveis para Llansol. A

decisão da autora de responsabilizar-se no texto, por um projeto de textualidade que propõe

escolhas também a seus legentes, perpassa pela escrita de diferentes “eus” a culminar em um

momento único no centro do livro no qual há uma transposição radical de vozes: “eu, Maria

Gabriela Llansol, sou responsável pelo texto que dou a ler” (OVDP, p. 187). Essa atitude

llansoliana de se (es)colher, “nascer-se”, e criar um novo ramo a partir de um novo “si” de

onde provirá a escrita é exposta ao legente como a criação de novos passados para o presente

da escrita, cuja base de tudo, enquanto potência transformadora, é a palavra. Segundo Paulo

Freire, “Não há palavra verdadeira que não seja práxis. Daí que dizer a palavra verdadeira seja

transformar o mundo” (2016, p. 133).

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Na tentativa de compreender a escrita, que advém de uma vida que a provê e de “uma

voz que vem, por sua vez, de outras galerias internas: a boca, a garganta, o emaranhado do

pulmão” (CAVARERO, 2011, p. 18), os diários llansolianos são instrumentos nos quais se

encontram diversos questionamentos da autora que caminham lado a lado com sua produção

nos livros não classificados como diários. Levando em consideração a constante busca por

vida em suas produções, sejam quais forem as categorizações, em Um falcão no punho, seu

primeiro diário de escrita publicado, a autora tece uma reflexão sobre o ato de nascer: “a vida

actualmente tão precária de minha mãe faz-me reflectir na persistência do lugar do

nascimento através da vida —— o acto de nascer, o manter-se relativamente desligado depois

do nascimento, o desaparecer em definitivo fora do alcance da sua imagem” (FP, p. 125).

Sendo o “lugar do nascimento” algo que persista “através da vida”, a escrita-nascimento de

um outro e novo “si” transpõe a biografia e concede à figura textual Maria Gabriela Llansol

novas possibilidades de vida no texto, algo que entra em persistência, conforme aponta o

trecho do diário. Se faz importante destacar que essas novas possibilidades provêm,

fundamentalmente, do e no texto. Desajustando uma “ordem” cronológica que circunda a

realidade, no livro, o texto emerge aos olhos legentes antes do nascimento dessa figura

escrevente que nasceu para acompanhar a voz. O texto já nascera - antes mesmo de o livro

estar aberto - e está em movimento de lançar à luz da escrita novos começos, refundações.

Em perspectiva, um poema sem eu, para sair ao encontro do papel e da possibilidade

de se apresentar ao legente precisa antes de um “eu” que faça escolhas éticas (e até políticas)

que resultarão na ausência do “eu”. O que marca o início do livro na cena de escrita do

nascimento é o percebido ato de escolher. Uma consequência da não marcação do “eu” vai,

por sua vez, fazer com que o texto caminhe por uma linha tênue entre ficção e biografia, não

estando integralmente inserida em nenhum dos dois recortes. Consideramos que a figura do

texto que afirma “eu nasci em 1931”, chamada Maria Gabriela Llansol - nome que vai

aparecer páginas à frente, no meio do livro, como já citado -, escolhe e tem sua escolha

registrada através das letras da Llansol autora. Nessas circunstâncias, a figura estaria

iniciando o movimento necessário para desenvolver seu próprio poema. “O meu corpo

permanecia deitado,/ no chão do quarto,/ enquanto o meu olhar aprendia a fazer poemas”

(OVDP, p. 12).

Se o nascimento, como afirma Arendt, é uma instância iniciadora, a inventividade

llansoliana de escrever, para seu sujeito escrevente, um nascimento, acaba por tornar a cena

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Page 62: C em um tempo qu e no s ca iba

fulgor uma instância reiniciadora, onde tudo sempre recomeça, por isso sempre é novo. E,

como um texto que possui restos e rastros, o texto vai aproximar-se do biográfico –

semelhante ao que ocorre nos diários da autora de escrita híbrida -, construindo a imponente

teia de rompimentos e questionamentos a respeito da natureza da textualidade a que leitor é

apresentado em ação de legência: “Fêmea de viver e de pensar, que lhe sugeria o/ novo?/

Chamo-me,/ tenho anos;/ sou filha de um emigrante que casou com uma alemã [...]” (OVDP,

p. 73-74). O nascer-se na escrita, nesse sentido, também é uma importante ferramenta para

ressignificação própria para um devir; talvez, um devir mulher. Pela voz de Eleanora, em

Lisboaleipzig, uma mensagem de distinção é iluminada pelo texto:

Descubro, ao abrir a porta da despensa, que a arte de fazer-me mulher é deixar crescer, na minha sombra, o meu outro igual de poder. Luís M. diz-me no amor: “dá-me a tua vontade, que eu te darei a força”. Olho-me ao espelho, e se o seu reflexo me mandasse reiniciar o bordado _________ (L, p. 13).

A arte de “fazer-se” ou “constituir-se” mulher é, então, desenvolvida com autonomia

pela figura feminina na escrita de Llansol e, como reafirmação dessa força autônoma, está o

fato de que uma figura como Luís M., expansão de Camões na escrita da autora, seja “o meu

outro igual de poder”. Declaradamente, a autora instaura um lugar de paridade entre uma das

diversas vozes femininas que estão presentes ao longo de sua escrita e o grande cânone da

língua e literatura portuguesa: o que, pelo contato de vozes, pode significar essa mesma

relação entre o cânone e a biográfica ou até mesmo a figura Maria Gabriela Llansol.

A escolha llansoliana de compromisso com um texto que aja a partir de um

deslocamento acaba se lançando para além das estruturas pré-concebidas da escrita, uma vez

que o mesmo vai operar também nas concepções de humanidade e construção de papéis

sociais, podendo se revelar um lugar tensionador de reflexão sobre a figura feminina. Levando

em conta que a voz que conduz a enunciação no texto é, extensiva e recorrentemente,

feminina, um estudo para compreender como o corpo feminino é trazido e ressignificado por

essa voz seria interessante. Abrimos, então, um pequeno parêntese para lançar o olhar a uma

cena na qual um dos diversos corpos de escrita aparece em fuga. Antes, para que a cena

aconteça,

um mamífero-figura” põe no mundo “uma criança do sexo feminino (em aparência), humana (na aparência), que surgiu, como uma meada, na palma da minha mão,

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mas não era minha, excepto que me vinha pedir outra luz, outra nascença; tinha ela vinte anos e eu, cinquenta, bateu ao portão e disse-me é preciso uma outra descrição; (OVDP, p. 125).

Além das diversas aparições no livro afirmativas do lugar da corporeidade feminina

como pujança, em determinado momento - podendo ser percebido como denúncia - o corpo

de uma mulher (uma “criança” de vinte anos, como aponta o texto), talvez evocando alguma

memória do real histórico, precisa estar em fuga, em função da realidade externa a ele, de uma

lógica fálica. Em uma cena de escrita de alerta e tensão (que possui muitos desdobramentos os

quais escapam a uma breve leitura, como esta), a voz de enunciação, compartilhando do

mesmo lugar feminino da figura que se está a desenvolver na escrita, apresenta um jogo entre

a tentativa de ida e o eterno retorno. “Fugi com o corpo,/ eles quererão experimentar,/ fugi

com o espírito,/ eles quererão domesticar,/ fugi com o cheiro,/ eles farão perfumes para se

perfumar” (OVDP, p. 129-130).

A mulher, ou a figura feminina, parece ter a necessidade constante de fugir, de se

afastar do que lhe é imposto como existência em uma lógica na qual o masculino parece ser a

“ordem” e a “razão”. A recorrência do pronome “eles” é desenhada no texto como um forte

campo de forças que se fecha em círculos a rodear o corpo feminino. Diante disso, para onde

fugir? “para/ onde/ vamos/ ?”, questiona o poema “necrobrasília” de Onde estão as bombas

(2019, p. 90), de Tatiana Pequeno. Assim como a interrogação que se lança no poema ao

mesmo tempo em que volta - a si, à solidão de um autoquestionamento, ao espaço destinado

ao texto -, a busca, a partir da fuga, se lança em direção ao novo, mas a um novo que precisa

ser também construído no texto. O espaço do texto torna-se, então, interrogativo, logo, de

potência transformadora. E, nesse caso, podemos considerar que a potência se inscreve no

feminino.

Retornando à segunda cena de abertura de OVDP (p. 11), a escolha llansoliana de

(re)nascer na escrita pode configurar-se como agenciamento imbuído de uma significação

pedagógica no sentido de que performa a possibilidade de uma existência não marcada pelo

que biográfica e socialmente é imposto à autora, sendo, então, vocacionada à constituição do

novo. Ainda de acordo com Cixous (2017, p. 135), “ao se escrever, a mulher fará voltar

aquele corpo que lhe confiscaram, o qual tornaram um estranho em seu ninho”. Ao escrever, e

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mais detidamente ao escrever-se em um novo “si”, Llansol resgata a ideia de corpo feminino e

a envolve em um corpo de palavras: “o texto escreve-me, pela mão da rapariga que temia a

impostura,/ em busca da troca verdadeira” (OVDP, p. 121). O texto escreve, porque é dotado

de certa autonomia de “vivo”, e seu ato de escrever - pelas mãos de outra figura feminina,

recorrente na textualidade de Llansol, a rapariga que temia a impostura da língua - é colocado

como gerador da figura criada pela textualidade com o mesmo nome da autora do livro.

As questões que ainda não se respondem por completo, nesse cenário, são: para que

nascer-se? Onde vais, nascida? “Quem pode dizer o que somos? Tudo o que podemos saber

agora é quem nós não somos, no sentido de que, por meio da nossa luta, reunimos poder para

romper com a identidade social que nos é imposta” (FEDERICI, 2019, p. 74-75). Romper

com a realidade social construída como sendo uma maneira universalizante de ser e estar

mulher no mundo é uma demanda que tem conquistado potencialmente espaço tanto nas

estratégias de vida cotidiana quanto nas concepções de escrita atuais. A busca por novas

formas de conceber e desenvolver a relação entre palavra e leitor se destaca como ferramenta

de transformação, como é o caso de Maria Gabriela Llansol. Suas inovações nas categorias de

autor e leitor, na disposição do texto, na hibridização entre os gêneros culminam em algo que

se apresenta quase como uma nova gramática - a “gramática llansoliana” ou “a gramática

daquela língua" (OVDP, p. 22). Essa série de rompimentos com as estruturas pré-concebidas

de construção literária projetam-se para além do propósito meramente literário, sendo um

(re)projetar-se na existência.

A tentativa de desvencilhamento do que dizem que “somos” também perpassa pelo

abandono - pelo menos um lançar-se a ele - gradual dos “comos” que nos são impostos na

forma de regra de execução de práticas, também no âmbito da literatura. Uma coisa quando é

realizada pelo homem - como categoria “universal” - geralmente é resultado da busca pelo

sentido das coisas. A escrita desenvolvida por mulheres, por sua vez, além de ser busca é

espaço concreto de construção de novos sentidos para as coisas. Onde vais, drama-poesia? é,

antes de tudo, espaço de criação cujas demarcações de limites foram apagadas; nele, vamos,

em suspenso, “até onde crescerá o nosso encontro./ Por quê pôr limites?” (OVDP, p. 83).

A respeito de encalços do que façam sentido, Silvia Federici (2019, p. 126) afirma que

“É verdade que você não pode produzir nada que valha a pena, a menos que você fale sobre o

que importa em sua vida. O que é produzido no tédio só pode gerar tédio, disse Bertolt Brecht

- e ele estava certo”. Como uma autora comprometida com o seu tempo - e com a

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temporalidade para além dele - Llansol, através de seu projeto de escrita, empenha-se em criar

espaços de contato: possivelmente, uma das coisas que lhe foram importantes na vida. E as

investidas na partilha - no sentido mais de compartilhamento do que divisão - perpassam

necessariamente pela voz, visto que, como afirma Adriana Cavarero, a voz não é lançada de si

para si, mas propõe um “comunicar-se da unicidade que é, ao mesmo tempo, uma relação

com outra unicidade” (CAVARERO, 2011, p. 20).

Enquanto o sentido da condição humana, no âmbito da ciência e da tecnologia, está

relacionado à fuga do humano, com um esforço “por tornar ‘artificial’ a própria vida, por

cortar o último laço que faz do próprio homem um filho da natureza”, segundo Hannah

Arendt (2014, p. 10), em Llansol, a compreensão do humano se atrela cada vez mais a um

encontro com a natureza, com o mundo, com o que há de vivo nas proximidades da figura

humana. A conexão com o nascimento acaba sendo uma ferramenta que auxilia nesse

encontro, uma vez que a criança é culturalmente a figura de pureza, de aproximação com o

natural e de dilatação da sensibilidade.

O ventre de escrita llansoliano - ventre que é da mesma forma o punho no qual o

Falcão prepara os voos - engendra um novo ser (ou uma nova possibilidade de ser) à figura

que nasce e à escrita que nasce. O nascer, por sua vez, pode engendrar a metáfora do

conhecimento, da construção e descoberta do saber. E se, conforme já citado, “‘um eu é pouco

para o que está em causa’” (OVDP, p. 182), a coletividade da comunidade que vem torna-se

um destino para esse texto que deseja ser aberto, porque é Casa: “Abro-vos a Casa [...]/ A

Casa é esta ______ [...]” (OVDP, p. 82). Dentro dessa escolha de abrir a Casa interrogativa, a

figura legente, fundamental na construção do texto, possibilita que o leitor seja também, no

âmago da escrita, renomeado, ressignificado, repensado e repensável dentro e fora do texto.

Uma pedagogia de escrita voltada à comunidade é aquela que, de acordo com Paulo

Freire, “é a pedagogia dos homens empenhando-se na luta por sua libertação” (2016, p. 78).

Assim, é formada por uma série de artifícios que a tornam pedagogia pelo poder criador e

(re)fundante. Maria Gabriela, em sua jornada pela escrita - que nunca se finda - parece

aproximar-se dos preceitos de Paulo Freire, o que se mostra plausível uma vez que a

pedagogia fora algo importante em sua vida. A pedagogia, antes de existir para o legente, é

experienciada pela escrevente. Esta é uma das fontes do texto: a experiência de movência

coletiva. “Num pensar dialético, ação e mundo, mundo e ação, estão intimamente solidários.

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Mas a ação só é humana quando, mais que um puro fazer, é quefazer, isto é, quando também

não se dicotomiza da reflexão” (FREIRE, 2016, p. 77).

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Page 67: C em um tempo qu e no s ca iba

CAPÍTULO 3: ___ AINDA O PRESENTE___

3.1 Sentir o tempo, rasurar o cronos, montar a cena

Ainda o presente nos é objeto de inquietações incontáveis e não captadas pelo

cronômetro, contador por excelência de nossos tempos. Aurélio Agostinho de Hipona

(354-430 d.C.), mais conhecido como Santo Agostinho, já se questionara de maneira

reveladora a respeito da natureza do tempo - assunto “mais familiar e batido” desde o século

IV. De lá para o XXI (em um 2020 exaustivamente remoto devido à pandemia mundial da

Covid-19, por exemplo), nossos distanciamentos em relação à temporalidade são outros mas

as reflexões permanecem na tentativa de compreensão desse fenômeno que está além de

nossos olhos mas que afeta diretamente nossa existência.

Que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem o poderá apreender, mesmo só com o pensamento, para depois nos traduzir por palavras o seu conceito? E que assunto mais familiar e mais batido nas nossas conversas do que o tempo? Quando deles falamos, compreendemos o que dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quando dele nos falam. O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei (AGOSTINHO, 1973, p. 243-244).

“‘Por que escrevo?’ [...] ‘Escrevo para testemunhar o que meus olhos expectantes

veem. E vejo coisas concomitantes, várias realidades que me rodeiam e das quais faço parte.

[...] A minha escrita é isto: o meu sopro’” (LLANSOL, 2011, p. 48). Afinal, o que poderia

querer Llansol? “Estender o ângulo - alargar imensamente o módulo com que meço o tempo”

(idem, p. 45). Nesse capítulo nos lançamos à compreensão da construção temporal do texto

llansoliano a partir de uma metodologia de identificação e mapeamento das manifestações do

presente. Antes, é conveniente lembrar do que fora tratado no capítulo anterior. Pensar a

recolha de sentidos presentes no título, palavra primeira do livro, se torna mais uma vez

importante para o entendimento de que ainda com as páginas fechadas, o livro se coloca em

presente. Considerando o livro fechado um repositório de devires (lançados em sua

construção verbal e interrogativa) e que estamos diante de um texto que tem sua origem no

futuro, até mesmo a relação com o passado é repensada e não de todo anulada. “As

lembranças são necessárias, mas para serem esquecidas, para que nesse esquecimento, no

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silêncio de uma profunda metamorfose, nasça finalmente uma palavra, a primeira palavra de

um verso” (BLANCHOT, 2011, p. 89).

A respeito da construção em forma de nós pela qual o texto se desenvolve e de sua

relação com a temporalidade, podemos considerar um excerto de Llansol em Partilha do

Incomum, organizado por Maria Carolina Fenati (2014, p. 342): “_______ AQUI, os

fragmentos assumem-se como cortes significativos no tempo. Andam a procura de espaço

próprio. Dizem EU, e vêm à boca de cena deste espetáculo do vir a ser que é o DRAMA

POESIA”. Os fragmentos compõem a suspensão da escrita como elementos que cortam o

texto, não permitindo sua linearidade, seu ritmo único (ou a falta dele) e seu engessamento no

tempo. Eles não andam na procura de seu espaço, mas andam a própria procura. O próprio

mover-se está junto do objeto de desejo. O deslocamento já é a procura, ou a procura só

poderia se dar no andar coletivo dos fragmentos. O “AQUI”, que tem o sentido de “no texto”

pressupõe um tempo: o agora. Andar a própria procura parece também ser um dos fios da

escrita llansoliana que, como já pudemos observar, se liga à experiência de vida da autora. De

acordo com Bergson (2005, p. 8), “para um ser consciente, existir consiste em mudar, mudar,

em amadurecer, amadurecer, em criar-se indefinidamente a si mesmo”. Para a experiência de

um livro atravessado pelo drama-poesia, a mudança é ponto fundamental. E OVDP é um texto

intrinsecamente ligado a uma liberdade poética:

A linguagem em sua função comunicativa e representativa insere-se no tempo biológico [...]. A prática poética se situa no prolongamento de um esforço primordial para emancipar a linguagem (então, virtualmente, o sujeito e suas emoções, suas imaginações, comportamentos) desse tempo biológico. [...] Tentativa de arrancar os discursos à fragilidade de sua condição temporal: o que é verdade da poesia como tal não o é menos verdadeiro quanto à escrita. [...] na aventura humana a escrita surgiu como uma revolta contra o tempo; e, passados milênios, ela conserva ainda esse primeiro elã (ZUMTHOR, 2018, p. 45-46).

Sentir o tempo em OVDP é para nós, legentes, entrar em uma espécie de imersão no

“presente da locução, móvel como ela e em que se instaura uma coincidência absoluta do

evento e da escritura” (BARTHES, 2004, p. 18). Além disso, observar as diferentes imagens

que formam a paisagem do texto, plural e movente. E, se a paisagem é plural, a temporalidade

dessa escrita não poderia estar uniformizada. Desse modo, podemos conceber que, no livro, o

presente também não é “puro” e simples; pelo contrário, é um presente que avança em

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direções opostas que podemos definir em passado e futuro. Essa sua característica nos permite

aproximá-lo do rizoma segundo Deleuze e Guattari, uma vez que Llansol não apenas diz

“Viva ao múltiplo”, mas, como sugerem os autores, se empenha em um “fazer o múltiplo”. E,

nessa empreitada de deslocamento do drama-poesia, os retornos e conexões são vários, uma

vez que “qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo”:

Na verdade não basta dizer Viva o múltiplo, grito de resto difícil de emitir. Nenhuma habilidade tipográfica, lexical ou mesmo sintática será suficiente para fazer ouví-lo. É preciso fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma dimensão superior, mas, ao contrário, da maneira simples, com força de sobriedade, no nível das dimensões de que se dispõe, sempre n-1 (é somente assim que o uno faz parte do múltiplo, estando sempre subtraído dele). Subtrair o único da multiplicidade a ser constituída; escrever a n-1. Um tal sistema poderia ser chamado de rizoma (DELEUZE & GUATTARI, 2000, p. 15).

O “espetáculo do vir a ser que é o DRAMA POESIA” acaba sendo uma espécie de

“fulgorização” em frase que nos faz perceber o drama poesia (nesse momento, sem o traço,

mas ainda em união) enquanto algo que “é” presente ao mesmo em que, como uma seta, se

lança aos devires. Ainda mais: se o drama-poesia é o "espetáculo do vir a ser” e seus

fragmentos podem ser tomados como atores no “espetáculo” da escrita em devir, ele poderia

ser lido/concebido como uma nova geografia cênico-estrutural do texto. Um novo

encadeamento para a escrita que embaralha os limites entre a criação (“produto final”) e o

processo do criar, entre o texto e seu processo de desenvolvimento, entre a ficcionalização e o

testemunho do mundo. Tentar sentir o(s) tempo(s) de OVDP é também tentar compreender a

forma como a escrevente apreende o tempo e o dissolve pelas vozes que habitam a

textualidade, porque a escrevente é testemunha “de que o tempo tem muitas dimensões

demasiado pequenas para nos retratar por inteiro” (OVDP, p. 299). Esta apreensão a que

temos acesso tem suas proximidades com a filosofia de Bergson, que, segundo

Merleau-Ponty,

se apercebe de que não temos acesso ao tempo apertando-o, como por meio de pinças, entre os pontos de referência da medida; ao contrário, para termos idéia dele, é preciso deixá-lo fazer-se livremente, acompanhar o nascimento contínuo que o torna sempre novo e, justamente por isso, sempre o mesmo. [...] Pois se o tempo é isso, não é algo que eu veja pelo exterior. Pelo exterior, eu teria apenas o seu rastro, não assistiria ao ímpeto gerador. Logo, o tempo sou

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eu, sou a duração que apreendo, está em mim a duração que se apreende a si própria. E a partir desse momento estamos no absoluto. Estranho saber absoluto, já que não conhecemos nem todas as nossas lembranças, nem sequer toda a espessura do nosso presente (MERLEAU-PONTY, 1991, p. 203).

A concepção de OVDP como um “vivo”, já expressa no segundo capítulo (2.2), nos

dimensiona a amplitude do livro e da produção de seus presentes. Ainda em torno do rizoma,

“Trata-se do modelo que não para de erigir e se entranhar, e do processo que não para de se

alongar, de romper-se e retornar” (DELEUZE & GUATTARI, 2000, p. 32). No livro, uma

oportunidade de perder-se é levantar o questionamento: quais os tempos da enunciação? Se

fôssemos nos ater a procurar respostas para essa pergunta dentro do universo de OVDP,

precisaríamos de outro espaço dissertativo exclusivo pois muitos são os tempos enunciados e

a enunciar. Desse modo, podemos seguir pelo texto atravessando alguns de seus fluxos

temporais. Como exemplo primeiro desse fluxo plural, temos, já de entrada, que: a primeira

cena de escrita - transcrita no primeiro capítulo - começa com o presente, tem sua transição

entre o presente e o passado (“e assim cogitando caminhava”, p. 9) e posteriormente cai em

um passado memorial (“e abri a porta que dava para teu rosto legente.”, p. 9). Após, dá dois

saltos ao futuro (“voltaremos à imagem da água.”, p. 9 e “legente, o mundo está prometido

ao Drama-Poesia.”, p. 10) antes de mergulhar em um passado ainda mais distante, tanto

quanto presente: o nascimento da figura narradora, do ser de escrita que, através de uma

distância, se vê nascer (“Eu nasci…”, p. 11). O presente retorna, como tempo da construção

do fluxo do texto em “Há, assim, noites. Cópias da noite.” (OVDP, p. 14), parte III do

primeiro percurso/seção do livro.

Levando em consideração o "espaço sem tempo" da contemplação que inicia OVDP

(p. 12) e enseja também estas reflexões, até mesmo a abertura natalina que principia por um

suposto pretérito ("eu nasci") não tem um referencial de acontecimento porque não podemos

dizer que seja a cena de escrita a narração do nascimento de Llansol. O verossímil traria a

fixidez de que a textualidade llansoliana não se serve. A cena é um passado revisitado, ou

melhor, reconstituído no presente. É como se a figura de escrita que ocupa a cadeira da

narradora precisasse nascer primeiro para iniciar a escrita - uma nova escrita pela mão do ser

que nasce (um ser de escrita). Então, há a performance do nascimento metatextual. O

nascimento da infante que ocupa lugar “na imanência dos dias”, de um “tempo-espaço da

desmemória”, conforme afirma João Barrento. “Uma anamnese deliberada e construída, para

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que se afirme o presente nu e eterno da imanência, uma filtragem da empiria dos fenómenos,

para que a escrita seja a da Ideia (como a veem Goethe ou Benjamim), contra o realismo e o

autobiográfico” (BARRENTO, 2014, p. 40).

Ao se ver nascer - fazendo-nos ver nascer aquela que nasceu “na sequência de um

ritmo” (OVDP, p. 11) -, Llansol performa para si mesma a distância necessária para a

apreciação visual da experiência. Ela retorna e ao mesmo tempo se vê retornada a um

nascimento de escrita. A autora se apresenta como uma atriz em trabalho de treino que “é não

só criadora da personagem mas também sua espectadora” (CHEKHOV, 2010, p. 116). Como

uma atriz lançada à preparação corporal e energética para a construção de personagens,

Llansol, sem personagens e sem ser atriz, constrói suas inúmeras cenas fulgor a partir do

contato de seu corpo com os diferentes reais que concebe. Seu processo artístico envolve

processos e imersões. “Eu estou imersa quase na mesma realidade: vou passear, vou a

mover-me e vejo, por entre o que atravesso, o que escrevo” (LLANSOL, 2011, p. 15). E, ao

discorrer sobre a natureza de seu texto em negação à ficção (o que vimos no segundo

capítulo), Llansol, afirma que seus textos “correspondem a abalos sísmicos interiores, a abalos

energéticos extremamente fortes em que eu pressinto que esta terra onde nós estamos pode ser

utilizada de outra maneira, as relações entre as pessoas podem ser de outra maneira, com as

plantas, com os animais” (ibidem, p. 55). De todo modo, se a autora se distancia da duração

biográfica, como afirma Maria Esther Maciel no ensaio “Llansóis de areia: uma leitura de

Onde vais, drama-poesia?, de Maria Gabriela Llansol”, de qual tempo se aproxima nessa

despersonalização? Possivelmente, do presente em sua multiplicidade.

Como se vê, o dramático, nesse caso, furta-se obviamente à condição de “gênero” literário para se tornar um exercício complexo de “outridade”, a que o drama-poesia llansoliano vai conferir novos matizes, uma vez que, em Onde vais, drama-poesia?, o processo de despersonalização acontece no processo de entrada da própria autora no que chama de campo figural. Convertida não em personagem de ficção mas em um delineamento (ou uma sensação) sem duração biográfica, ela passa a integrar a própria comunidade dos poetas que, como vimos, ela desdiviniza em eus de sua voz e de sua escrita. À luz reversa de Pessoa, compõe um drama sem gênero, no qual a cena viva instaurada na arena da escrita revela-se como uma cena fulgor (MACIEL, 2007, p. 183).

Sentir o tempo é também pensar ou pensá-lo, “Eu acho que sinto, vejo, penso, tudo é

simultâneo” (LLANSOL, 2011, p. 59), observando todas as suas paisagens. A paisagem que

estamos a ver na textualidade de Llansol é, segundo Silvina Rodrigues Lopes, a “eterna

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paisagem da escrita” (1988, p. 8). Os sentidos do tempo para a autora não poderiam, portanto,

ser únicos; estariam mais afins ao que já fora acima destacado através de Merleau-Ponty:

Sim, digamos que o nosso tempo é o tempo, por exemplo, em que nós estamos aqui, fazendo uma gravação, em que há jornais que vão sair, em que há acontecimentos visíveis que vão ser repertoriados e que estão ocorrendo, etc. Portanto, esse é o nosso tempo. Depois, há um outro tempo em que o tempo novo se cria, em que uma maneira de viver diferente se cria. Eu penso que de facto essa é a minha maneira de viver - mas não gostaria de dizer que é minha, é a maneira de viver que me é própria. Porque, em determinados momentos, há factos extremamente simples a que eu dou uma extrema importância, eu dou-lhes uma extrema importância porque, de facto, eles introduzem um outro tónus na realidade (LLANSOL, 2011, p. 64).

Em sua busca por testemunhar as “coisas concomitantes, várias realidades”, Llansol

(2011, p. 48) vai deixando na escrita as marcas das diversas paisagens que vê, ouve, sente - os

rastros que o próprio poema que “passa” deixa. Em “À guisa de prefácio” do Cancioneiro

(presente no volume 1 da Obra poética de Fernando Pessoa), temos a reflexão do poeta de

que:

2 - Todo o estado de alma é uma paisagem. Isto é, todo o estado de

alma é não só representável por uma paisagem, mas verdadeiramente uma paisagem. Há em nós um espaço interior onde a matéria da nossa vida física se agita. Assim uma tristeza é um lago morto dentro de nós, uma alegria, um dia de sol no nosso espírito. [...]

3 - Assim, tendo nós, ao mesmo tempo, consciência do exterior e do nosso espírito, e sendo o nosso espírito uma paisagem, temos ao mesmo tempo consciência de duas paisagens (PESSOA, 2016, p. 64).

A voz narradora do livro afirma que “É vital conhecer a paisagem” (OVDP, p. 45).

“Surgem as paisagens” (OVDP, p. 27) é a frase-abertura de “O Aestheticum Convivium”. A

última parte da primeira seção do livro, intitulada também “Onde vais, drama-poesia?”, é um

convívio estético entre as figuras: Dickinson, Musil, Aossê, Hölderlin, Rimbaud, Kafka,

Joshua, Rilke e a “imagem”, que se desloca em metamorfose constante na cena de escrita e

“entreabre a boca e surge uma humidade onde mergulhamos os dedos movidos por uma

vontade compulsiva de escrever” (OVDP, p. 30). Nesse encontro de reclinar - para escrever e

ler - e de toques, cujas mãos parecem querer ser engolidas pela imagem, “Quando levantamos

a cabeça, estamos cobertos de escrita e de prazer” (idem, p. 30). Levantamos as cabeças, todos

juntos, enquanto figuras do convívio estético: nós, leitores, e eles, escritores. Entrando, já na

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primeira seção do livro, nessa espécie de convivência, nos deparamos com o fato da

interrogação que nos coloca Barthes (2004, p. 26): “Nunca lhe aconteceu, ao ler um livro,

interromper com frequência a leitura, não por desinteresse, mas, ao contrário, por afluxo de

idéias, excitações, associações? Numa palavra, nunca lhe aconteceu ler levantando a

cabeça?”.

Na impossibilidade da separação de escrita e vida no contexto da obra llansoliana,

consideramos pertinentes as considerações de Bergson a respeito dos “momentos de nossa

vida, dos quais somos os artífices”. Momentos nos quais podemos habitar o desconhecido, ou

simplesmente nos lançar a ele, como nos iluminam os versos de Pessoa (2016, p. 346) “Vou

em mim como entre bosques,/ Vou-me fazendo paisagem/ Para me desconhecer. [...]”:

Cada um deles é uma espécie de criação. E, assim como o talento do pintor se forma ou se deforma, em todo caso se modifica, pela própria influência das obras que produz, assim também cada um de nossos estados, ao mesmo tempo que sai de nós, modifica nossa pessoa, sendo a forma nova que acabamos de nos dar. Tem-se portanto razão em dizer que o que fazemos depende daquilo que somos; mas deve-se acrescentar que, em certa medida, somos o que fazemos e que nos criamos continuamente a nós mesmos (BERGSON, 2005, p. 7).

A parte nona de “Em busca da troca verdadeira” registra e nos propõe escolha: “Entre

coincidência e artifício, o drama-poesia escolhe sem hesitação o artifício. Ataca o nó onde

confluem as mais diversas fugas de tempo, e escolhe a sua” (OVDP, p. 87). A alusão a estes

“momentos de criação” recorrentemente aparece em OVDP, em situações nas quais o

leitor/legente se depara com uma imersão do processo de fundação da escrita mesma. Por

vezes, estamos diante da escrita retornando ao “antes da escrita”, já sendo processo:

“dispunha os instrumentos de mediatização do pensamento sobre a esteira ___ a folha de

papel, os óculos, o caderno de lombada e de cantos vermelhos, o dicionário” (OVDP, p. 54).

Na paisagem de escrita, as imagens, também passantes, como os poemas, são também

“caminhos [...] que nos fazem ter corpo, este tempo, este poema na voz. O grão, entre todos

reconhecível, da nossa escrita. Os poemas que oferecemos uns aos outros” (idem, p. 35). A

paisagem de escrita e de leitura que se oferece ao leitor é formada por diversas imagens -

vivas, porque mutáveis e em movimento. De acordo com Bachelard,

A imagem poética não está submetida a um impulso. Não é o eco de um passado. É antes o inverso: pela explosão de uma imagem, o passado longínquo ressoa em ecos e não se vê mais em que profundidade esses ecos

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vão repercutir e cessar. Por sua novidade, por sua atividade, a imagem poética tem um ser próprio, um dinamismo próprio. Ela advém de uma ontologia direta (BACHELARD, 1988, p. 95).

A “imagem poética” de Bachelard aproxima-se das imagens do texto de Llansol

principalmente por ter “um ser próprio, um dinamismo próprio”. Embora um “ser” na lógica

da constituição de um sujeito único, uníssono, não corresponda à imagem (nem às vozes)

llansolianas, a imagem em Llansol tem seus deslocamentos e participa do vivo. A respeito

dessa criação imagética, uma das coisas que diferenciaria a trajetória escritural llansoliana da

produção de textos inseridos na categoria narrativa de ficção poderia ser o fato de que as

categorias fundacionais do texto, como a “imaginação”, são colocadas também em questão e

movência no próprio texto da autora. Ele constrói figuras, constrói a categoria de imaginação,

constrói a própria narradora e, além disso, constrói a si mesmo em um outro modo de

fazer/ver imagens.

Progressivamente, sentimos um texto. Isso, a que eu chamei Esse, a

brotar de imagens, de cenas, de paisagens. E isso é mundo, é íntimo, é real, é rua. A nossa história do universo. [...] Quando o meu há é todo o há que existe.

Viver com as imagens é a nossa arte de viver. Reparem, sem o seu

fulgor não saímos da simetria. E nesta nada vemos. Vamos presumir uma saída (OVDP, p. 34).

A “arte de viver” que é “nossa”, por isso compartilhada por uma comunidade na qual

escrevente e legentes se encontram, está diretamente ligada a uma assimetria. Dessarte, a

“saída” não é um fim, uma porta fechada porque encerrada; pelo contrário, a saída é a fuga, a

abertura que sempre nos convida à movência. A partir da lembrança de que viver e escrever

não se separam para Llansol, a arte de viver é, de certa maneira, uma arte de escrever. Para

que seja concretizada, sua figuração de arte precisa do fulgor: faísca que ascenderá com as

imagens e acenderá os caminhos do texto, que serão de construção e jogo contínuos.

Na parte XXIX de “Em busca da troca verdadeira”, a figura narradora-enunciadora

considera ser “impossível que tantos pinheiros verdes, imóveis de contemplação,/ não dessem

pela mudança que se estava a operar”. No trecho, como em diversos outros, é possível

perceber a mutabilidade das cenas llansolianas e de tudo o que participa delas. São muitas as

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imagens que habitam essa paisagem de escrita e que se encontram em errância pelos

caminhos nos quais a mudança está “a operar”.

a Casa, o jardim e todos os seus habitantes evoluíam, como é óbvio, mas cada fragmento seguia o ritmo inconstante das suas partes, as imagens perdiam nitidez, feitas de sobreimpressões ou de aparentes defeitos de tiragem, com o vento a dar-lhes nas copas, era impossível que os pinheiros não imprimissem a todo o movimento uma oscilação entre ser e vir a ser o que a criação sonhara para cada parte (OVDP, p. 117).

Na cena de mudança, as imagens se movem entre ser e “vir a ser”. O constante

movimento das cenas fulgor llansolianas nos leva a considerar que a busca pelo vivo em

Llansol (já explorada no capítulo anterior), se aproximada do “impulso vital” bergsonista, não

vai longe da experiência da temporalidade. De acordo com Deleuze (2012, p. 82),

“Precisamente, a Duração chama-se vida quando aparece nesse movimento”:

O impulso vital, portanto, será a própria duração à medida que se atualiza, à medida que se diferencia. O impulso vital é a diferença à medida que ela passa ao ato. Desse modo, a diferenciação não vem simplesmente de uma resistência da matéria, mas, mais profundamente de uma força da qual a duração é em si mesma portadora: a dicotomia é a lei da vida (DELEUZE, 2012, p. 112).

Ainda em Bergsonismo (2012, p. 113), fonte central para a nossa compreensão da

filosofia de Bergson, Deleuze explicita que Bergson nos faz lançar o olhar para o que está

“entre” uma coisa e outra, um acontecimento e outro, uma qualidade e outra. E traz à

concretude do entendimento que esta “passagem de uma à outra é também um fenômeno

absolutamente real”. Esse olhar para o “espaço” de trânsito, uma espécie de novo olhar,

revisitando o que se entenderia, à primeira vista, como lacuna, vazio, falta, acaba por forjar

um novo entendimento e percepção sobre esse “entre”, que é qualificado. No caso de Llansol,

o que importa à sua escrita é a movência, uma das razões pelas quais se distancia da metáfora.

Na concepção da autora, “A metáfora é um mundo redutor da cultura. Quando empregamos

uma metáfora, estamos a aproximar coisas estanques, estamos a criar uma aparência [...].

Desde os meus primeiros livros que não existem metáforas” (LLANSOL, 2011, p. 15). A

respeito da falta de possibilidade de movência, explicita a autora:

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Se eu fizesse livros estanques, teria a impressão de que no livro seguinte estaria a recomeçar a realidade. Ora, eu vivo há já bastantes anos e a realidade para mim é algo de extremamente contínuo, momentos saindo de outros, e só de uma maneira artificial é que poderia cortá-la, porque de facto ela existe, não como encadeamento de causas e efeitos, mas em correspondências, em evolução e oscilação permanente. O passado desfaz-se continuamente no poder pujante de futuro (LLANSOL, 2011, p. 14).

A concepção de temporalidade para Llansol é mais um ponto de tensão da escrita.

Estabelece ligação com a fuga da ideia de o romance ou a ficção, dentro da tradição literária,

serem sempre um recomeço da realidade; se há recomeço é porque houve um fim. E não há

fim para uma escrita/um trabalho escritural como o de Llansol, que se lança ao devir. O

presente é o “lugar” no qual a dissolução (do passado) e o desenvolvimento da pujança

(futuro) se encontram. Ainda no mesmo contexto de entrevista, há o apontamento de António

Guerreiro de que “Esse modo de pensar o tempo e fazer dele um movimento incessante de

recomeços será designado, num dos seus diários, como ‘eterno retorno do mútuo’, numa clara

alusão a Nietzsche” (LLANSOL, 2011, p. 14). A partir dessa consideração, é possível pensar

que não é o livro um recomeço (da realidade) - por isso não é um romance como poderia

querer a tradição -, porque internamente o mesmo já não possui um fluxo único. Através das

idas e vindas do tempo em curso, vai performar e conter, pelas suas inconstâncias, diversos

recomeços.

Essa ideia de trânsito entre temporalidades recorda-nos o método da intuição de

Bergson:

A intuição é sobretudo o movimento pelo qual saímos de nossa

própria duração, o movimento pelo qual nós nos servimos de nossa duração para afirmar e reconhecer imediatamente a existência de outras durações acima ou abaixo de nós.

[...] E a duração é sempre o lugar e o meio das diferenças de natureza,

sendo inclusive o conjunto e a multiplicidade delas, de modo que só há diferenças de natureza na duração - ao passo que o espaço é tão somente o lugar, o meio, o conjunto das diferenças de grau ” (DELEUZE, 2012, p. 26).

O movimento de rasurar o tempo em sua linearidade cronológica é conjunto, também

aposta no ambo. No livro, algumas coisas rasuram o tempo. Uma delas é o próprio poema em

percurso. O poema é o companheiro de todos que mergulham e seguem o curso da escrita: a

escrevente, a figura legente, as figuras todas que povoam o livro - inclusive poetas -, a voz

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que parte em jornada e até o livro de título não estático. Todos, juntos, rasuram a linearidade

temporal da escrita de impostura e deixam suspensos os diferentes reais possíveis de caminho.

“Podemos conceber uma ordem, uma harmonia, e, mais geralmente, uma verdade, que se

torna então uma realidade” (BERGSON, 2006b, p. 151). De acordo com Barthes (2004, p. 5),

“Eticamente, é tão-somente pela travessia da linguagem que a literatura persegue o

abalamento dos conceitos essenciais da nossa cultura, em cuja primeira linha, o de real”. Para

Blanchot,

A literatura não é uma simples trapaça, é o perigoso poder de ir em direção àquilo que é, pela infinita multiplicidade do imaginário. A diferença entre o real e o irreal, o inestimável privilégio do real, é que há menos realidade na realidade, pois ela é apenas a irrealidade negada, afastada pelo enérgico trabalho da negação, e pela negação que é também o trabalho. É esse menos, essa espécie de emagrecimento, de afinamento do espaço, que nos permite ir de um ponto a outro, à maneira feliz da linha reta (BLANCHOT, 2005, p. 140).

A própria disposição ou concepção da obra llansoliana evoca uma desconstrução da

temporalidade mecanicamente concebida, uma vez que, em vez de seus diferentes livros

seguirem uma cronologia linear, eles se inserem no âmbito literário como internamente

desajustados a essa lógica. Como um dos exemplos, em Onde vais, drama-poesia? a

disposição interna das seções que corresponderiam a capítulos faz uma dobradura no tempo e

traz, em duas seções específicas, o intervalo de 10 anos cada. A disposição de tais intervalos

(“1982-1992” e “1988-1998”) nos remete a um encontro ou entrelaçamento entre eles. Há um

ir e voltar a um passado e a um futuro que recondicionam a execução da temporalidade. Em

um texto cujos movimentos desestabilizam a ordem temporal, o tempo presente se

configuraria como aquele que pode propiciar a suspensão da cronologia cotidiana para que se

desvele uma multiplicidade criadora no espaço. “A minha impressão é a de que nada foi, tudo

está sendo; [...] acordo e verifico que sobre o dia de hoje já passaram cem anos” (F, p. 220).

Elvira, uma das figuras do texto, que “seria, portanto, a falcoeira” em determinado

momento da sexta seção de OVDP, tem uma fala que também indica essa rasura do cronos:

“olhando para esse tempo que, aliás, não foi há muito, embora, agora, me pareça tão distante,

foi que a realidade me foi caindo no corpo. [...] foi ao ar livre, precisamente há doze anos, que

se iniciou o mês de Setembro, num lugar chamado Setembro” (OVDP, p. 244). O “lugar”,

nesse contexto, pode também assumir o caráter de temporalidade através da interioridade de

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um nome, um substantivo simples que, com a maiúscula, torna-se próprio: “Setembro”. Esse

lugar que também é tempo nos faz recuperar os “Lugares” d’O livro das comunidades,

livro-fonte, segundo a autora, no qual “coisas, ideias, lugares, tudo é escrita, tudo participa da

mutação e da permanência da escrita” (LOPES, 1988, p. 7).

Para Barthes (2004, p. 17), “uma coisa parece certa: o tempo linguístico tem sempre

como centro gerador o presente da enunciação”. Llansol, com seus percursos de escrita,

parece elevar esse pressuposto à enésima potência. Ademais, a partir da diferenciação

proposta por Barthes entre o “presente do locutor” e o “presente da locução”, podemos

considerar que esse segundo tem sua performance explícita na escrita llansoliana, dado que é

o “presente da locução, móvel como ela e em que se instaura uma coincidência absoluta do

evento e da escritura” (idem, p. 18) - a citar novamente o trecho.

Embora Onde vais, drama-poesia? seja um livro de 2000, ele está em contato

temporal diretamente com outras produções escritas pela autora. É o caso, a exemplo, do

discurso de Llansol em 1991, “Para que o romance não morra”, uma vez que as escritas de

“Em busca da troca verdadeira” e “O poder de decisão” correspondem, de acordo com a

decisão de registro da autora, respectivamente, aos anos 1982 a 1992 e 1988 a 1998. No

discurso, Llansol expressa:

_________ escrevo, para que o romance não morra. Escrevo, para que continue, mesmo se, para tal, tenha de mudar de forma, mesmo que se chegue a duvidar se ainda é ele, mesmo que o faça atravessar territórios desconhecidos, mesmo que o leve a contemplar paisagens que lhe são tão difíceis de nomear (L, p. 125).

Nesse sentido, é importante recordar que Llansol leva seu OVDP a contemplar

paisagens tão diversas quanto difíceis de nomear, questão já levantada ao longo do trabalho.

De acordo com a narradora-enunciadora do livro, “Aossê compreendeu que o texto tem várias

vozes; aliás, se assim não fosse, não haveria vários futuros possíveis” (OVDP, p. 266). O

texto aponta que uma das figuras centrais na textualidade llansoliana compreende uma

questão primordial para seu próprio prosseguimento e existência futura. A suspensão da

cronologia e a multiplicidade de vozes no texto estão diretamente ligadas ao aspecto da

montagem do livro em si.

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Eu vou vendo o que o texto quer dizer, alterando a ordem cronológica das folhas, por vezes, escritas com muitos anos de diferença, relacionando e desrelacionando extractos e fragmentos, tentando perceber os seus diversos tons de voz porque o texto não tem uma maneira única de se dizer, está todo escrito, mas precisa ser montado (OVDP, p. 265-266).

A partir desse detalhamento da montagem, não gratuitamente presente na seção “O

poder de decisão”, a voz enunciadora-narradora reflete sobre Aossê, sua figura de Pessoa, e

sua relação com o texto: “mas creio que interpretou mal o silêncio do texto; na realidade, no

momento da montagem, ele não se cala, pura e simplesmente torna-se inaudível”. Mais ainda:

“quando temos de lhe dar corpo, de tomar as nossas decisões de escreventes, ele silencia-se”

(OVDP, p. 26). Fazendo um breve retorno à cena de abertura do livro, podemos nos dar conta

do movimento da enunciadora-narradora enquanto escrevente que, ao verbalizar “Sentei-me

nos lugares dispersos do teu silêncio, e esperei por ele” (OVDP, p. 9), parece nos informar de

que a nós, leitores ainda em iniciação, se direciona o sintagma “teu rosto legente” e ao texto o

“esperei por ele”. Desse modo, a figura escrevente ouve em nossos olhos o som da rua,

senta-se nos “lugares dispersos” do nosso silêncio e espera pelo texto; espera também para

ouvir seu(s) silêncio(s) - e o texto “quer ser ouvido com rigor” (OVDP, p. 266). Com esta

cena de escrita mencionada, estamos diante da metatextualidade intrínseca ao livro, ao passo

que sua arquitetura inicial atende ao querer do texto de “que seja eximiamente preenchida a

distância que o separa dos humanos, que a montagem não deixe quaisquer dúvidas sobre a

fulgurância do seu movimento” (OVDP, p. 266).

Diante desse quadro, estar no presente do texto também é montá-lo. Quem monta?

Primeiro, a autora, ao tomar suas decisões de escrevente; depois o legente. E, para montá-lo, a

autora performa-se e convida o leitor a tornar-se legente performando-se (entrando em cena,

em jogo) e participando da mutação e permanência da escrita. Expandindo uma citação feita

alguns parágrafos acima: “Desfazendo nós, anulando evidências, o mal despedaça, reparte-nos

pela escrita: coisas, ideias, lugares, tudo é escrita, tudo participa da mutação e da permanência

da escrita” (LOPES, 1988, p. 7) . Para além da expansão que atinge essa afirmação 6

llansoliana, ela ainda é, pessoal e metodologicamente, mais significativa, uma vez que o

princípio de olhar e sentir o texto é, antes de mais, o de ser uma atriz. E, como atriz, a

identificação com o texto llansoliano pode ser inicialmente revelada a partir desse aglutinado

6 Como se considerasse esse fragmento ter sido escrito pela própria Llansol, António Guerreiro também o cita em sua entrevista com a autora de 1991 (LLANSOL, 2011, p. 7), afirmando literalmente que “diz-se num dos seus livros”.

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Page 80: C em um tempo qu e no s ca iba

de categorias e suas relações diretas com a escrita. Há uma chama acesa pois Llansol

desenvolve seu trabalho criativo de maneira semelhante ao trabalho de uma atriz em trabalho

criativo: momento onde coisas, ideias, lugares, tudo é estímulo, potência e movência criadora

tanto externa quanto internamente.

3.2 Do fulgor do legente

Uma vez mais: ‘Por que escrevo?’ [...] ‘Escrevo para testemunhar o que meus olhos

expectantes veem. E vejo coisas concomitantes, várias realidades que me rodeiam e das quais

faço parte. [...] A minha escrita é isto: o meu sopro’” (LLANSOL, 2011, p. 48). Llansol é o

lugar de testemunha das paisagens para os legentes tal como o poema é a testemunha das

figuras do texto (OVD, p. 25). A leitura, por sua vez, é uma amplificação da voz. “Estas

palavras, sinto que as devia escrever, dirigindo-me, finalmente, profundamente grata, a

quantos, pela leitura, prolongam e amplificam a voz iniciada” (L, p. 94). E, como expressa

Blanchot (2011, p. 213), “Ler situa-se aquém ou além da compreensão”. Em “O poder de

decisão”, seção que se inicia, após a “apoptose” do texto, por “sempre que sei, não escondo

____________” (OVDP, p. 185), a figura narradora mergulha, por vezes, em momentos de

interlocução com características análogas a uma entrevista. Nesse contexto, reflete a respeito

de ser, olhar e dizer: “como dizer isso em vinte segundos de televisão,/ ou entre notícias?”

(OVDP, p. 188). Seu interlocutor, por exemplo, faz perguntas e comentários como

“Finalmente, o que faz?” (p. 193), “Isso é um pouco metafísico.” (p. 196), “E como a define?”

(p. 197) (referindo-se à escrita) ou, ainda, sobre suas figuras virem do futuro, “De que

futuro?” (p. 201). Esta última, a narradora-enunciadora responde páginas à frente, abrindo

uma nova subdivisão à seção: “Do futuro do texto. Da sua completude como seres. Da sua

vida que nada rouba ao vivo.” (OVDP, p. 204).

Os constantes tempos presentes que percorrem toda a desenvoltura do texto, além de

suspender os fluxos internos da escrita, ressaltam o processo de escrita a acontecer, a passar -

como o poema que faz seu percurso ao longo do livro. Consideramos que o presente não se

mostra como recurso literário de indicação de um presente histórico, mas como elemento que

gramaticalmente “indica ser a ação feita no ato de palavra”, o “tempo verbal que indica que a

ação decorre simultaneamente com o ato da fala, que é habitual no tempo presente, ou que é

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atemporal, não tem tempo definido” (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 2291). Ademais, Llansol

opera a produção de um estado de presença do leitor. Para tal, alguns elementos do livro

podem demonstrar-se como articulação para esta produção: a jornada proposta ao leitor e sua

figuração em legente, as temporalidades presentes e alguns aspectos gráficos do livro (que

geram uma suspensão na leitura). E, como nos encontramos por entre os lugares de passagem

do poema e dos poemas nas “Dioptrias”, pode ser relevante considerar com Paul Zumthor

(2018, p. 74) que “A percepção é profundamente presença. Perceber lendo poesia é suscitar

uma presença em mim, leitor. Mas nenhuma presença é plena [...]. Toda presença é precária,

ameaçada”. Conforme formulado por Gumbrecht (2010, p. 82), brevemente recitando, “a

presença não pode passar a fazer parte de uma situação permanente, nunca pode ser uma coisa

a que, por assim dizer, nos possamos agarrar”. E, retornando ao momento de assumir as

decisões, a escrevente nos deixa uma chave de leitura importante:

Na realidade, para escrever este tipo de texto, o escritor tem de se deixar fulgorizar em parte. E a quem lê sucede o mesmo, no espaço da leitura. Todo o processo de deslocação de fronteiras se aparenta a um processo psicótico… que, por norma, se confronta com reacções histéricas e a mecanismos de denegação. [...] A mudança de olhar abre um campo vastíssimo ao vivo (OVDP, p. 215).

Llansol nos apresenta o projeto de uma escrita comprometida com o outro: as

interações e relações com o outro; os efeitos da escrita no outro (enquanto leitura). Um

primeiro questionamento, a ser dissolvido pelo caminho, seria: por que uma escrita direta e

constantemente lançada ao outro, o legente? Entender, com Bergson, o tempo como criação e

não como repetição favorece uma compreensão do texto enquanto lugar onde tudo se

suspende e não se fixa. Por isso, a configuração do tempo pode se mostrar como uma pontual

ferramenta da autora para a potencialização da performance de leitura. A postura ou - para

usar palavra “de dentro do livro” - decisão llansoliana de subverter não só o ato de escrita

como também o de leitura remonta aos apontamentos de Barthes sobre uma tendência antiga

de não se considerar o leitor no processo literário. Tendência que o mesmo tentou subverter

em S/Z.

Esse texto, que se deveria chamar com uma só palavra: texto-leitura, é muito mal conhecido porque faz séculos que nos interessamos demasiadamente pelo autor e nada pelo leitor; a maioria das teorias críticas procura explicar por que o autor escreveu a sua obra, segundo que pulsões, que injunções, que limites. Esse privilégio exorbitante concedido ao lugar de onde partiu a obra (pessoa

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ou História), essa censura imposta ao lugar aonde ela vai e se dispersa (a leitura) determinam uma economia muito particular (embora já antiga): o autor é considerado o proprietário eterno de sua obra, e nós, seus leitores, simples usufrutuários (BARTHES, 2004, p. 27).

Ora, o que faz Llansol senão também o gesto de nos levar a acompanhar esse “aonde”

o texto vai, com seu questionamento que dá título ao livro - mesmo não preposicionado?

Desde a abertura de OVDP estamos diante de silêncios que se unem “em forma de água”, com

a promessa de que “voltaremos à imagem da água” (OVDP, p. 9). Em Finita, seu diário II,

publicado pela primeira vez em 1987, quando trazendo sua genealogia ao espaço da escrita,

Llansol destaca que “Em mim várias nascentes confluíram [...] e outras sem água de escrita

visível” (F, p. 223). De acordo com Jorge Fernandes da Silveira (1993, p. 51), “Água de

escrita é uma imagem, uma metáfora do tempo que, quando dita em voz alta, desdobra-se em

dois cursos”; interessa-nos, mais, o primeiro deles: “água de escrita (a que está em curso,

substantivo presente)”. Em uma das 365 passagens de O começo de um livro é precioso,

Llansol é cristalina: “Não há mais sublime sedução do que saber esperar alguém./ Compor o

corpo, os objectos em sua função, sejam eles/ A boca, os olhos ou os lábios. Treinar-se a

respirar/ Florescentemente”. E, deixando evidente a relação dessa espera com a escrita, o que

nos remonta novamente à cena de abertura de OVDP: “Arrancar ao meu sexo de ler a palavra/

Que te quer. Soprá-la para dentro de ti ___________” (CLP, p. 34). O texto, que “Quer que

sejamos a ler,/ que o leiamos como drama-poesia__” (OVDP, p. 124), propõe a seu legente

uma outra relação, uma mudança de estado.

Assim como as figuras, especificamente os personagens históricos, que “foram

convocados para um acto de recomeço” (L, p. 139), nós, legentes, ao encontrarmo-nos com o

texto na primeira seção do livro, temos a chance de abertura a uma nova definição de nós

mesmos. “Por outras palavras,/ o humano não poderá nunca definir-se pelo poder, pela razão,

ou pela vontade,/ mas pelo face a face ao Amante, de que o corpo é a manifestação presente,/

e o texto a ausência que se manifesta” (L, p. 139). Se escrita e vida não se separam para

Llansol, ao sermos partícipes dos trajetos de feitura do texto e de nascimento do poema,

somos também testemunhas oculares - não nos deixam mentir as “Dioptrias” (p. 289-306) -

do renascimento da interioridade da figura de Maria Gabriela Llansol (p. 11 e p. 187).

Observamos, assim, o acontecimento de seus diferentes estados pulsionais interiores, sua

concepção múltipla de si, um “si” que abriu mão de ser um só. “Do que se trata é da criação,

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Page 83: C em um tempo qu e no s ca iba

em paralelo e em espelho, de determinadas realidades que vão exprimindo as minhas

mutações interiores de energia” (LLANSOL, 2011, p. 54).

O texto llansoliano nos ensina (se é que “ensina” alguma coisa), enquanto

espectadores da cena da escrita, a cair. O primeiro degrau da queda é aquele no qual

percebemos que o texto nos solicita enquanto performers de uma leitura a vir, a chegar; a abrir

chagas. Frestas são colocadas entre nós e o texto para que, nesses vãos, possamos perder o

que fora achado na leitura de outros textos quanto a uma "mensagem" e iniciar um movimento

errático de busca da metamorfose (do ambo - do eu que lê o texto e que se faz texto por

abertura e do próprio texto que se deu ao abrir-se). O texto, em termos espinosistas, convida

seu leitor a perseverar na legência, uma vez que cada coisa se “esforça, tanto quanto está em

si, por se preservar em seu ser” (ESPINOSA, 1957, Parte III, Proposição 6). Seguindo o

princípio do Conatus, a obra de Llansol, “Seguindo o Olhar, ela caminha para a preservação e

a dilatação do seu ser” (PEQUENO, 2011, p. 145).

Se a mudança é contínua em nós e contínua também nas coisas, em compensação, para que a mudança ininterrupta que cada um de nós chama ‘eu’ possa agir sobre a mudança ininterrupta que chamamos ‘coisa’, é preciso que essas duas mudanças se encontrem, uma com relação à outra (BERGSON, 2006b, p. 168).

Sentir o tempo em OVDP é também estar em relação com a temporalidade corrente, às

vezes vertiginosa, e nessa relação está compreendida a passagem da metamorfose (que pode

ser entendida como a própria passagem do poema). É nestas constantes passagens que o

fulgor - lembrando Fúlgora, a mitológica deusa dos raios - se manifesta. Algo que se

aproxima da “lembrança do fogo” de que fala Agamben (2018, p. 30). Ao longo da escrita,

vemos acontecer não uma transmissão ou transporte como nos promete a metáfora, mas a

”mudança completa de forma, natureza ou de estrutura; transformação, transmutação”

(HOUAISS, 2001, p. 1908) da metamorfose. Nos propomos, portanto, a refletir um pouco

mais a respeito da hipótese levantada ao longo dos capítulos anteriores, que encerra o capítulo

2, em “Onde vais, nascida? [Escrita de algum si]”, que é o teor pedagógico da escrita. Não

que a escrita nos queira ensinar, enquanto leitores, algo. Pelo contrário, seus movimentos

acabam por nos propor uma desaprendizagem através de exercícios constantes de “perda de

memória” da linearidade narrativa para compreendermos o texto como lugar de metamorfose

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e não de metáforas. Um lugar de caminhos, e não educativo, porque, de acordo com uma das

vozes do texto llansoliano, “Eu sei que educar é descriar” (CLP, p. 359).

“Cem um tempo que nos caiba” remete a uma impossibilidade possível. Diante da

busca por um tempo em que caiba a comunidade do texto, e que caiba à comunidade do texto,

Llansol move-se, desde o título do seu livro (OVDP), para um devir em multiplicidade, uma

vez que não apenas “um eu é pouco para o que está em causa” (OVDP, p. 182), mas um

tempo é pouco também. Podemos pensar nesse tempo-cem, múltiplo, que é o presente: não

uma sequência mas uma intensa aglutinação ou sobreimpressão na qual cabe a pluralidade da

comunidade que vem. Quando, fugindo à linearidade finita e longe da metamorfose do texto,

a “comunidade que vem” se encontra (seja no Aestheticum Convivium, seja no espaço da Casa

do texto), estamos todos - incluindo o legente - sem um tempo que nos caiba: que caiba a

humanidade além do humano, que caibam os três sexos de ler, as vozes polifônicas, as

passagens da escrita entre os gêneros definidos e fixados, não se deixando fixar. Entretanto,

quando A. Borges (uma das figuras de Llansol?) pontua no já brevemente citado prólogo de O

livro das Comunidades (o “portal” da obra de Llansol após seus dois livros de contos iniciais)

que “Talvez ninguém, nem Livro” suporte o “Vazio”, compreendemos o lugar do ambo.

“Escrever, como neste livro, leva fatalmente o Poder à perda de memória. / E sabe-se lá o

que é um Corpo Cem Memórias de Paisagem” (LC, p. 10).

A partir dessa cena fulgor llansoliana temos uma paisagem, em metamorfose, que

contém a Paisagem dentro de si. Com a possibilidade de ser Cem memórias, o corpo de

escrita, rasurando o tempo, rasura recorrentemente as memórias e, também por isso, pode

criar memórias novas - nascer de novo, como está na abertura do livro. Além do mais, a

extensa comunidade textual de Llansol liga-se, constantemente, pelos afetos que mobilizam o

corpo e propõem encontros. Realizando uma leitura a partir de Espinosa, Silvia Federici

afirma que:

‘Afeto’ não significa um sentimento de ternura ou amor. Significa, antes, nossa capacidade de interação, nossa capacidade de movimento e de sermos movidos em um fluxo interminável de trocas e encontros, que supostamente expandem nossos poderes e demonstram não apenas a infinita produtividade de nosso ser, mas também o caráter transformador - e, portanto, já político - da vida cotidiana (FEDERICI, 2019, p. 338).

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Estando suspensas do tempo histórico, todas as figuras que habitam o texto llansoliano

têm a oportunidade de não ter posse e de não se encerrarem em algum “si” mesmo. “Mas, em

boa verdade, a aparição, no ser, destas ‘raridades éticas’ - humanidade do homem - é uma

ruptura do ser. É significativo, ainda que o ser se renove e se recupere” (LEVINAS, 2007, p.

69). O que Llansol propicia com sua escrita é também uma ruptura com o ser, com o uno, com

um “eu” que se encerre em si mesmo - tanto em si, na figura escrevente, quando na figura

legente. Recitando Maurice Blanchot em relação com Rilke:

Todas as coisas são perecíveis, mas somos as mais perecíveis, todas as coisas passam, transformam-se, mas queremos a transformação, queremos passar e o nosso querer é essa ação de passar adiante, de deixar para trás. Daí o apelo Wolle die Wandlung, ‘Queiram a metamorfose’. Não devemos ficar, mas passar, Bleiben ist nirgends, ‘Não permanecer em parte alguma’. ‘O que se encerra no fato de permanecer já está petrificado’ (BLANCHOT, 2011, p. 151).

Assim como o poema que “passa” - e, aliás, “passa rápido” (OVDP, p. 17) -, o legente

também acaba por tornar-se um passante a acompanhar não apenas o poema como as diversas

imagens da paisagem e a voz. Em OVDP, há elementos que aparecem norteando o contato ou

encontro com o livro e, mudando a perspectiva, o acesso ao legente que (se) propõe o texto.

Dentre eles está a face, o rosto da primeira cena do livro, com os sentidos em jogo. Os

sentidos estão implicados porque os órgão do corpo estão: “porque o criar me fala, com

verdade, do que quer,/ metade ao ouvido, outra metade directamente na boca,/ e a metade

restante no silêncio do meu sexo” (OVDP, p. 119). E, de acordo com Paul Zumthor (2018, p.

75), “Nossos ‘sentidos’, na significação mais corporal da palavra, a visão, a audição, não são

somente as ferramentas de registro, são órgãos de conhecimento”. Devemos discorrer, então,

brevemente, sobre o percurso do chamado à legência presente no livro. O chamado à legência

não é apenas através de vocativos, não sai apenas do “aparelho vocal” do texto, sendo sua voz

lançada aos ouvidos-olhos do leitor, como quando diz “legente, o mundo está prometido

ao Drama-Poesia” (OVDP, p. 10). Esse chamado começa com a visão. Por isso podemos

considerar que “O texto trabalha” (OVDP, p. 86) também em um lugar de desautomatização

do olhar. Os olhos acabam por revelar-se como a possibilidade do dentro e fora: “Fico dentro,

na minha parte dos pé e das pernas, fico fora, na minha parte dos olhos” (OVDP, p. 59).

Podemos considerar que o texto de OVDP começa pela visão: pelo encontro do “rosto

legente” (p. 9) com o rosto mesmo do texto e o rosto da figura narradora-enunciadora, que

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“advém do texto” (ibidem). “É que a visão se choca sempre com o inelutável volume dos

corpos humanos” (DIDI-HUBERMAN, 2018, p. 30). E, de acordo com Paul Zumthor (2018,

p. 68), “A leitura se enriquece com a profundidade do olhar”. Na última (VIII) seção do livro,

a figura narradora, em uma espécie de explicação do título da própria seção, afirma que “<<as

dioptrias são a medida da potência das lentes>>” (OVDP, p. 293). Quando falamos da visão, e

considerando sua relação com as dioptrias, falamos também de tempo e de nossa percepção da

realidade.

Na entrevista com Graça Vasconcelos de 1997, Llansol (2011, p. 66) expõe acreditar

que seja guiada pelo olhar, em um texto que permite que irrompam “outros sentimentos,

outras atitudes e, sobretudo, outro tipo de conhecimento e de olhar - porque, no fundo, eu

acho que sou guiada pelo olhar. Para mim, a palavra começa na intensidade do olhar”. Dessa

forma, o encontro de olhares na abertura de OVDP seria uma forma de encaminhar/guiar o

olhar do leitor ao encontro inesperado do diverso que é a metamorfose do texto? Para Levinas

(2007, p. 69), “o olhar é conhecimento, percepção”. Compreender a percepção como presença

(ZUMTHOR, 2018, p. 74) ou como conhecimento à luz do texto llansoliano é entender que

trata-se de um texto com suas sinestesias e que, no âmbito da visão, nos convida a ver mais.

Segundo Henri Bergson,

Como pedir aos olhos do corpo ou aos do espírito que vejam mais do que aquilo que vêem? A atenção pode tornar mais preciso, iluminar, intensificar: ela não faz surgir, no campo da percepção, aquilo que ali não se encontrava de início. Eis a objeção. - Ela é refutada, cremos nós, pela experiência. Com efeito, há séculos que surgem homens cuja função é justamente a de ver e de nos fazer ver o que não percebemos naturalmente. São os artistas.

O que visa a arte, a não ser nos mostrar, na natureza e no espírito, fora de nós e em nós, coisas que não impressionavam explicitamente nossos sentidos e nossa consciência? [...] O poeta é esse revelador (BERGSON, 2006b, p. 155).

Repetindo, porém em reflexo, o questionamento da narradora apresentado no

subcapítulo 2.3: e eu, legente? No trânsito entre o universo do palco para o universo-palco da

escrita llansoliana (o livro como palco), destacamos que “são os artistas” - sejam os do palco

ou da escrita - aqueles que, através de desenvolvimento e treino de técnicas diversas, veem

para posteriormente dar a ver. Entretanto, o legente possui, também, sua articulação na

escrita, seu encontro previsto, com a chance de ver além, de recriar conjuntamente. “A leitura

é um compromisso onde a participação do receptor tem de interpretar, negar, colmatar as

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instruções do texto; a leitura é uma (re)criação conjunta, não uma decifração” (EIRAS, 2005,

p. 256). Para Maurice Blanchot (2011, p. 216-217), “a parte do leitor, ou o que virá a ser, uma

vez feita a obra, poder ou possibilidade de ler, já está presente, sob formas variáveis, na

gênese da obra”. Avançando e estreitando laços com a escrita de Llansol, o autor afirma que

“o escritor torna-se a intimidade nascente do leitor ainda infinitamente futuro” (ibidem, p.

217). O percurso da escrita llansoliana é também de uma experiência, no sentido de que:

A obra atrai aquele que se lhe consagra para o ponto em que ela é à prova de sua impossibilidade. Nisso, ela é uma experiência, mas que quer dizer essa palavra? [...] Experiência significa, neste ponto: contato com o ser, renovação do eu nesse contato - uma prova, mas que permanece indeterminada (BLANCHOT, 2011, p. 89).

É, sem dúvidas, de travessias que podemos falar, pensando nas ideias e motivações de

Llansol: “Como me surgiu a palavra? Caindo de um estado que lentamente se anuncia. Nunca

saberei o que é, o que saberei é a travessia que através dessa palavra irei fazer” (LLANSOL,

2011, p. 12). Talvez, atravessar em queda. Porque, como escreveu Luiza Neto Jorge em "O

poema ensina a cair", de O seu a seu tempo (1966): “O poema ensina a cair/ sobre os vários

solos/ desde perder o chão repentino sob os pés/ como se perde os sentidos numa/ queda de

amor, ao encontro/ do cabo onde a terra abate e/ a fecunda ausência excede” (JORGE, 2001,

p. 141). E, nessa queda, estamos nós, leitores/legentes. A “guardiã do texto” (OVDP, p. 133)

está em constante relação de guardar e perder (um guardar que, na verdade, é um perder-se no

texto). Esse trabalho de guarda também denota um convite ao legente à experiência da não

impostura da língua e de se dispor à deriva, porque “para o texto,/ a sua guardiã não está

perdida, apenas destemida,/ a ver onde o criar habita __________________” (OVDP, p.

117). No expressivamente reiterado presente do percurso do fato da escrita, a guardiã está, e

os legentes estão sendo convidados, “a ver” ou, mais comum no Brasil, “vendo” onde o criar

habita. O “onde” que corresponde à habitação do criar talvez se aproxime (ou seja o mesmo)

“onde” de deslocamento do “drama-poesia” do título. “Mas, quando o legente entende, sem se

dar conta está a entender algo de muito longe, no seu futuro” (OVDP, p. 35). Ademais, a

busca complexa do texto e da escrevente pelo “vivo” tem suas reverberações para fora do

livro, implicada com uma “responsabilidade desmedida para o humano” (idem, p. 22).

Concordando com Maria Lúcia Wiltshire,

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A única ética possível em Llansol é esta da literatura que suspende todas as crenças, recusando formas de controle da literatura por serem, ao fim e ao cabo, forças contra-literárias.

Os humanos buscam na vida, não exatamente a felicidade, mas intensidades que justifiquem sua passagem pelo mundo. Ao conceber o ambo da liberdade de consciência e do dom poético, Llansol nos convida a resistir duplamente pela legência e pela escrita, retomando a preocupação barthesiana de que é preciso libertar a escrita, o que se conecta com o sentido llansoliano de escreviver que ela associa a uma ascese” (OLIVEIRA, 2012, p. 68-69).

Levando em consideração que o texto “baixa-se” e se levanta (OVDP, p. 116),

escreve, pensa (p. 266) e desenvolve muitos outros percursos pelo livro, poderíamos dizer que

possui um modus operandi, um rascunho de técnica, de poiesis, diverso como sua jornada. No

seu engajamento, o texto pode potencializar e ressignificar a ação do sujeito (leitor/legente)

no mundo, “(...) porque o texto é o próprio aflorar da língua, e porque é no interior da língua

que a língua deve ser combatida, desviada: não pela mensagem de que ela é o instrumento,

mas pelo jogo das palavras de que ela é o teatro” (BARTHES, 2013a, p. 16).

Tudo, desde sempre, esteve no modo. Que tudo quanto deva advir se

manifeste no modo humano, entre seres que não temem, nem se sintam feridos no seu narcisismo por a realidade ser o que é: vamos para onde ignoramos, por caminhos que desconhecemos. E eu sobre o real não sei mais, mas nessa verdade me desejo manter, à imagem de uma das figuras que mais amo, a rapariga que temia a impostura da língua.

Quem escreve e quem lê, em mútuo, encontrará o como seguir a linha da nova colina (L, p. 94).

O que seria escrever em mútuo para Llansol? Talvez compreendamos o que vem a ser

essa forma de escrita se observarmos os caminhos da própria autora, sua gênese textual. Sua

composição possui um direcionamento como setas lançadas ao leitor, aquele que virá após,

mas que já está, como legente, no “agora” da criação. Desse modo, a escrita se faz encontro

desde seu nascimento e, em concordância com a investida da autora nos momentos de criação,

esse encontro também se revela na legência. Assim como na escrevência a autora considera

estar com seus legentes, na legência, temos a dimensão do encontro com a presença da autora.

O texto de Llansol, que chama por vida, pressupõe presença que se desloque (em legência)

para “uma perdição através da língua” (BRANCO, 2000, p. 47): “porque ela é encontro e

confronto pessoal, a leitura é diálogo. [...] meu corpo reage à materialidade do objeto, minha

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Page 89: C em um tempo qu e no s ca iba

voz se mistura, virtualmente, à sua. Daí o ‘prazer do texto’; desse texto ao qual eu confirmo,

por um instante, o dom de todos os poderes que chamo eu” (ZUMTHOR, 2018, p. 59).

No legente, um dos passantes da textualidade, algo também passa, em sobreimpressão;

um corpo passa por seu corpo e pelo tempo, e seu corpo passa no presente da enunciação:

Volto-me para o legente,

o que ali se passa é na parte velada do corpo que se passa, digo bem ______________________ passa, parte, velada, corpo e digo ‘é para isto que o texto serve’, naquele corpo disperso há partes e, entre elas, uma parte velada por onde passa, está passando, neste momento escrito, um não-visível, passar não quer dizer desaparecer, quer dizer cria nele um passamento inexorável, imprime-lhe movimento, o movimento de passar, no tempo e no corpo, tudo partes transitáveis (OVDP, p. 277).

3.3 Do percurso do poema

De entrada, é importante registrar que o título-ideia que originou esta parte final do

trabalho tinha por nome “Ensaio sobre o percurso do poema”. A primeira palavra que compõe

o sintagma nominal se impôs no processo a partir da compreensão, com João Barrento (2010,

p. 17), de que “O ensaio faz-se a bordo dos dias. E a bordo dos livros, na leitura acidental,

mais do que na dirigida”. Embora uma dissertação nominal e metodologicamente não seja, em

si, um ensaio, o percurso de escrevivência que gerou essa pesquisa escrita tem sua base na

escrevência de Maria Gabriela Llansol. Ela mesma nos exigiu desatar alguns nós. Dessarte,

mesmo não ensaiando (na literatura ou no teatro), essa escrita admite “a fragmentação, a

dissonância, e até mesmo a aceitação da incerteza do conhecimento” (LOPES, 2012, p. 121).

Dizendo com Silvina Rodrigues Lopes, com Ruy Belo - autor do que se segue -, também com

Llansol e aproveitando a primeira pessoa para dizer de mim, “Não sei nada [...]/ A minha vida

passou para o dicionário que sou. A vida não interessa. Alguém que me procure tem de

começar – e de se ficar – pelas palavras” (BELO, 1984, p. 180 apud LOPES, 2012, p.

121-122). Este cenário é o retrato-resultado de os poetas serem também professores e

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Page 90: C em um tempo qu e no s ca iba

orientadores, conforme pontuou Cinara de Araújo na banca de qualificação do presente

trabalho.

Poesia e poema concretizam suas presenças em Onde vais, drama-poesia? enquanto

elementos antes, durante e ulteriores à escrita. Antes (“eu nasci em 1931, no decurso da

leitura silenciosa de um poema”, p. 11), durante (“O meu corpo permanecia deitado/ no chão

do quarto/ enquanto o meu olhar aprendia a fazer poemas”, p. 12; “o poema parte a

imaginar”, p. 15) e ulteriormente (“o mundo está prometido ao Drama-poesia”, p. 16). Por que

o poema? Para Octavio Paz (2012, p. 22), “O poema não é uma forma literária, mas o ponto

de encontro entre a poesia e o homem. Poema é um organismo verbal que contém, suscita ou

emite poesia”. Em OVDP, estamos diante de um livro que tem em si, seja fragmentado em

seus elementos constituintes - ritmo, voz, sonoridade, quebra, verso - ou com suas partes

unidas, a presença do poema. Além disso, consoante Maria de Lourdes Soares (2011, p. 243),

“A iniciação da escrevente em língua poética dá-se ‘ainda no ventre’ do corpo materno que lê

poesia”.

Antes do poema está a poesia, presente desde o título, em simbiose, vida em comum,

com o drama. Conseguimos perceber que, como expressa Octavio Paz (2012, p. 21), “A

poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de mudar o mundo, a

atividade poética é revolucionária por natureza; exercício espiritual, é um método de

libertação interior. A poesia revela este mundo; cria outro”. Desde o título, dando a ver muito

do projeto literário da autora, temos um texto que “foi tocado pela poesia” (ibidem, p. 22) ou

que, não esperando ser tocado, correu ao seu lado até tocá-la. E esse toque entre o texto

llansoliano e a poesia gera frutos inesperáveis, uma vez que, conforme afirma João Barrento

(1996, p. 80), “Na verdade, a linguagem secreta e discreta da poesia tende a dizer (tem de

dizer?) o que a ficção rejeita”. A presença do poema está, de certo modo, tangenciada à

materialidade do corpo - escrevente, legente. E a própria duração do corpo, como já deixou

explícito Espinosa, está diretamente implicada com os trabalhos da mente e da criação: “A

mente não pode imaginar nada, nem se recordar das coisas passadas, senão enquanto dura o

corpo” (ESPINOSA, 1957, Parte V, Proposição 21). No livro,

o corpo e o poema são chamados a formar um ambo. Eles têm matéria, são cores em movimento, e trazem-me perguntas directas e ferozes, na ponta das missivas, implantadas nas mãos (OVDP, p. 25).

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Page 91: C em um tempo qu e no s ca iba

Algumas aproximações ao “ambo” já foram feitas nesse trabalho. Entretanto, uma vez

mais ele retorna pois faz parte daqueles “que não têm onde se apoiar” (OVDP, p. 167) e “o

poema é sem-apoio” (idem, p. 168). Estamos diante de “Um poema que procura um corpo

sem-eu, e um eu que quer ser reconhecido como seu escrevente. Pelo menos. Esse o ente

criado em torno do qual silenciosamente gira toda a criação” (OVDP, p. 18). Recitando um

trecho já trazido no primeiro capítulo e recolocando a questão do corpo que percorreu os dois

capítulos iniciais, temos um poema que, enquanto corpo, procura outro corpo para que se

realize o que poderíamos entender como o sexo de escrever e de ler. Porém, para que

ocorram, é preciso que o corpo de contato esteja em uma disponibilidade de deriva - o que

inclui a própria possibilidade de “dizer eu”. É preciso que encontrem (ou encontremos), todos,

o “ente criado”: o/a legente, o/a escrevente. O corpo, por sua vez, tem seus momentos de

figuração expressiva no texto, “sendo a obra não só o texto mas o corpo” (FP, p. 141).

Da mesma maneira que eu escrevo um texto único, mais do que um livro, é que eu faço aquele traço para querer mostrar, de uma maneira muito concreta, que eu sinto mesmo que o traço irrompe. [...] A meu ver, aquele traço desloca-me em uma direção em que vou ser tocada fisicamente... Porque o traço é um traço físico...” (LLANSOL, 2011, p. 51).

O corpo e o poema parecem figurar, na escrita, como pontos de fulgor que não apenas

reelaboram a experiência da escrevência e da legência, como também a própria experiência

das coisas no mundo. Conforme Cinara de Araújo, a respeito do “ponto intocável da

textualidade” llansoliana,

Esse ponto entre a poesia e o corpo, ou da poesia e do corpo, só é visível através de uma experiência estética, que não se manifesta através do imaginário (ou da beleza). Uma experiência estética, que liga a vida ao pensamento; uma manifestação textual, da qual ainda pouco conhecemos. Representa um risco. Uma aposta no destino não somente da literatura, mas no destino do humano, da vida, do legente, do texto, das árvores soltas, do amor.

Há matéria no corpo, há matéria na língua, há vida [...] (SOARES, 2007, p. 140).

Em Llansol temos um texto recheado de vitalidade que, mesmo não tendo estritamente

a forma convencional do poema - salvo os momentos das “Oferendas”, de poemas em si -

percorre a poesia da natureza, dos objetos da casa, das paisagens urbanas e naturais, aos quais

a escrevente capta com seu corpo de vivente. Afinal, “há poesia sem poemas; paisagens,

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Page 92: C em um tempo qu e no s ca iba

pessoas e fatos muitas vezes são poéticos: são poesia sem ser poemas” (PAZ, 2012, p. 22).

São três os sexos concebidos na escrita llansoliana - o homem, a mulher e a paisagem. É

ímpar o amor e são também três os espaços do livro dedicados aos poemas - que são

“Oferendas” a poetas, “porque quem escreve assim faz uma oferta, e uma oferta que é para ser

recebida; e ao mesmo tempo os leitores que a recebem transformam-se também naqueles que

escrevem” (LLANSOL, 2011, p. 61).

Abrir espaço para refletir acerca do percurso do poema no livro se tornou importante

uma vez que essa movência pode nos dar sinais do que pode vir a ser uma poética do

suspenso, em passos iniciais de rascunho, enquanto lugar possível de pensamento. Decerto

não haverá o espaço necessário, neste momento, para a estruturação de um conceito, porém

temos esse ponto de partida que nos levará a caminhos futuros e continuativos de pesquisa.

Na primeira seção do livro, “Onde vais, drama-poesia?”, em um diálogo entre a figura

narradora e as demais figuras que participam da cena de escrita, Llansol nos deixa uma

reflexão ontológica a respeito dos caminhos do poema. “Mas suspeito que o poema se

transformou numa testemunha dramática/ perdida na palavra culta,/ na cultura/ e no

histriónico” (OVDP, p. 25-26). Entretanto, vemos em seu texto um gesto de escrita que tende

a retirar o poema da “palavra culta”, da “cultura” e do “histriónico”, além de não concebê-lo

como um registro do sentimental nem da ação do drama, tensionando deslocamentos para seu

corpo. Conforme citado no subcapítulo 3.1, o texto da autora está a “a brotar de imagens, de

cenas, de paisagens. E isso é mundo, é íntimo, é real, é rua. A nossa história do universo”

(OVDP, p. 34). E, nessa movência, está o poema a habitar os espaços do cotidiano como a

Casa, a rua, a natureza; “em qualquer lugar que fale,/ montanha,/ campo raso,/ praça da

cidade,/ prega do céu” (OVDP, p. 13).

Silvina Rodrigues Lopes (1988, p. 12) pontua que “Partir é o modo de ser dos textos”.

De que modo começa a figura do poema no texto? Partindo. Através de seus deslocamentos,

ele rasura uma espécie de mapeamento de presentes, por vezes deixando rastros que moldam a

arquitetura do livro, dando chaves de leitura muito afins às continuidades. Com isso,

poderíamos aventar que o percurso do poema está ligado à geografia do vivo e, ambos,

ligam-se à poética do suspenso. Esse percurso talvez vá se fazendo por um desejo de

acompanhar o tempo, fruto de uma busca acelerada a não deixar passar aquilo que passa sem

a percepção humana. A passagem do poema talvez seja a tentativa de captação do tempo

(instantaneamente fragmentado, de acordo com a ordem cronológica) que não captamos com

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Page 93: C em um tempo qu e no s ca iba

nossa percepção humana do cotidiano. A possibilidade de captar a passagem que não

concebemos: o presente. Por outro lado, o presente, pela sua experiência de fluxos imparáveis

e talvez incaptáveis, pode ser o lugar possível para a passagem do poema - esse poema que se

desloca com o drama-poesia dos encontros. Em movimento sempre acelerado, o poema, a

mulher a escrever (OVDP, p. 17), muitas vezes o texto, parecem estar em jornada lado a lado

com a lente ocular que se ajusta, com suas dioptrias, para tornar possível a apreensão da

velocidade de refração da luz.

Uma cena fulgor específica, in abîme, como pontuou Maria de Lourdes Soares (2011,

p. 244), nos suscita um olhar direcionado à dimensão metatextual presente em muitas cenas

de escrita do livro, recordando “um coração que volta a si mesmo” (OVDP, p. 89): “A

imagem que me deixa a mulher que está a escrever é a de um traço amplo e veloz a captar o

poema que passa rápido. Impossível dizer-lhe que espere, que não consigo escrever à sua

velocidade, que se repita ou volte a dizer (quando, de facto, nada diz) o que estava a dizer”

(OVDP, p. 17). Por vezes, cenas como esta podem nos levar a pensar que a autora faz

performar, por escrito, o seu próprio processo de escrita. Abrimos, então, duas possibilidades

iniciais de leitura para esse quase instantâneo fotográfico. Uma, que “a mulher que está a

escrever”, por isso escrevente, deixa, no texto, um traço como paisagem de escrita que capta o

poema. Outra, que essa mulher é, em si, imagem, em seu ato de escrever, que é visto pelo

texto - o texto olhando a sua construção, em jogo de perspectivas - como o traço que capta o

poema que “passa rápido”. Ou seja, um corpo escrevente a criar paisagens ou uma paisagem

que produz imagens. Deixando ou sendo o próprio traço em performance, há um

espelhamento figurativo/figural da própria autora que, nesse sentido, é vista pelo texto. A

partir desse movimento, o nascimento, na escrita, é pontuado tanto para o texto quanto para a

própria escrevente. Conforme Octavio Paz, novamente, “Quando - passivo ou ativo, acordado

ou sonâmbulo - o poeta é o fio condutor e transformador da corrente poética, estamos na

presença de uma coisa radicalmente diferente: uma obra. Um poema é uma obra” (PAZ, 2012,

p. 22).

O poema aparentemente inicia o deslocamento de seu percurso quando “parte a

imaginar,// dispara, na esperança de que, na manhã anunciada, seja reposta a continuidade”

(OVDP, p. 15). No livro, na cena fulgor do presente, o poema se desloca: “Passa é o seu facto

fundamental” (OVDP, p. 17). Etimologicamente, “facto” deriva do latim factum, facere, que

significam “fazer, obrar, executar” (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 1316).

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Page 94: C em um tempo qu e no s ca iba

o poema passa, a cada instante passa e enriquece a voz, alteia a minha percepção do mundo, são tantas as pregas do céu, as colinas, os altos dos montes, os sistemas solares; voltaremos a subir a encosta da manhã, o mundo está prometido ao Drama-Poesia (OVDP, p. 16).

Em movimento de contato, Llansol parece direcionar ao texto de seu Onde vais,

drama-poesia? as palavras de O começo de um livro é precioso (2003, p.11), após um longo

traço na página: “corre, corre irremediavelmente,/ Como uma unidade poética dispersa do seu

poema”. De acordo com a narradora-enunciadora do livro, “Viver com as imagens é a nossa

arte de viver. Reparem, sem o seu fulgor não saímos da simetria. E nesta nada vemos. [...]

mas a imagem não se mantém fixa. O fulgor desloca-se. Não podemos desejar o novo e

querê-lo sem surpresa” (OVDP, p. 34). A respeito da errância e do devir, Blanchot nos

expressa que:

Para o homem medido e comedido, o quarto, o deserto e o mundo são lugares estritamente determinados. Para o homem desértico e labiríntico, destinado à errância de uma marcha necessariamente um pouco mais longa do que sua vida, o mesmo espaço será verdadeiramente infinito, mesmo que ele saiba que isso não é verdade, e ainda mais se ele o sabe (BLANCHOT, 2005, p. 137).

“Não há maneira mais alta de dar a vida, escreve o poema, enquanto atravessamos o

pinhal” (OVDP, p. 178). O poema, em seu percurso, não apenas se desloca no espaço do

livro: “escreve o poema”, em itálico, deslizante, passante, na cena de escrita que se dá a ver.

A partir dessa observação, podemos considerar que, se a autora pontua recorrentemente que

“escreve o texto” e “escreve o poema”, ela está a realizar o registro de ações do texto/do

poema. Essa radicalidade proposta pode ser mais um de seus meios para despersonalizar a

escrita (no melhor dos sentidos), retirá-la de uma identidade fixa correspondente a uma

narradora única e vocalizá-la, com as vozes plurais que habitam a textualidade. Assim, como

escrevente-legente que lê sem apoio, “o sem-apoio apoia-se na falta de apoio/ que leio (ou a

ler)” (OVDP, p. 168), sua escrita é, de certa forma, de mediação, do estar “no meio de”,

referindo-se ao prefixo grego metá-: entre o texto e a página do livro, entre ambos e o legente

e, também, entre o texto e a passagem do poema.

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Page 95: C em um tempo qu e no s ca iba

Poética do suspenso/da suspensão

“O texto diz-lhe que não há troca verdadeira entre os três sexos/ nem no sagrado, nem

no erótico,/ que há que a procurar no fulgor,/ e no pensamento que esse permite vislumbrar”

(OVDP, p. 136). O fulgor “permite vislumbrar” algum pensamento. E, nas palavras da autora,

“Quem pensa, dispõe-se a um infinito de realidades para além de si mesmo” (FP, p. 146).

Desse modo, algum pensamento desponta do texto e de seus nós, de suas cenas fulgor. Luiz

B. L. Orlandi na orelha de Bergsonismo (2012) diz que "o movimento de pensar implica uma

produção e circulação de intensidades". As cenas fulgor são, em si, não um conceito, mas uma

intensidade; logo, um lugar de pensamento. Alain Badiou concebe o poema como “uma

passagem do pensamento” e ressalta: “A regra é simples: envolver-se com o poema, não para

saber do que fala, mas para pensar no que nele acontece. Como o poema é uma operação, é

também um acontecimento. O poema tem lugar” (BADIOU, 2002, p. 45).

No livro, o tempo (em específico, o presente) caracteriza-se por um estar “a serviço”

de uma suspensão criadora, lugar de pensamento por excelência. Para a figura legente, é

possível “Ser em si ‘leitor único’ na e pela multiplicidade das vozes que permitem a ação do

pensar” (COSTA, 2017, p. 96). No final, é do pensamento que se fala, da articulação lançada

à construção de conhecimento a partir da experiência. E, sendo uma experiência estética, ou

“experiência vivida” ou “momentos de intensidades”, como prefere Gumbrecht (2018, p.

128), consideramos a hipótese do autor de que “aquilo que chamamos ‘experiência estética’

nos dá sempre certas sensações de intensidade que não encontramos nos mundos histórica e

culturalmente específicos do cotidiano em que vivemos”. No âmbito da articulação entre

pensar e sentir, Llansol faz declarações a respeito de si que nos levam novamente ao corpo:

Não penso muito sobre o que sinto, eu sinto pensando. É simultâneo. Eu estou a olhar para si e estou já a pensar. [...] Há quem racionalize sem estar a receber nesse momento todas as sensações que constituem verdadeiramente o estádio seguinte do pensamento. Porque pensar é com o corpo. É a minha experiência. Eu não posso só pensar, porque não considero isso pensar, considero isso mais racionalizar, tirar as consequências ou fazer ilações, etc. Pensar é tentar não deixar para trás nenhum detalhe, nenhuma experiência, nenhuma sensibilidade do próprio corpo (LLANSOL, 2011, p. 59).

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Page 96: C em um tempo qu e no s ca iba

O livro se apresenta ao leitor na forma de uma grande jornada, uma trajetória de

integração e conhecimento na e pela textualidade. Toda construção de conhecimento envolve

pensamento e, no sentido que interessa à escritura deste trabalho, pensar, do latim pensare,

tem como um de seus sentidos a ideia de suspender. E, como vimos, o texto, além de querer

“ser ouvido com rigor”, também quer ser “compreendido exactamete no seu pensar” (OVDP,

p. 266). Quando pensamos no suspenso, elaboramos que seja aquilo “que não se completou”

ou “que está em equilíbrio instável”; do latim suspensus, além do sentido corrente de

“pendurado”, o mesmo pode significar estar “na expectativa, na incerteza” (HOUAISS, 2001,

p. 2648). Acreditamos que, nos intervalos anunciados por Cinara de Araújo Soares (2008, p.

203-204) em sua tese, está também o suspenso: “No deslocamento do fulgor, entre a

textualidade e o mundo, pressinto intervalos: o espaçamento, o branco, o traço que se estende

longo entre palavra ou grafa-se sozinho na parte branca da página, o itálico, o negrito”.

A sobreimpressão, segundo Maria João Cantinho em “Imagem e Tempo na obra de

Maria Gabriela Llansol” (2004, s/p), é o deslocamento das figuras de “um tempo cronológico

e sucessivo, histórico, para uma dimensão a-histórica, suspendendo o curso do espaço e tempo

físicos, numa transversalidade de vários mundos, lugares e ordens da realidade”. Para Lucia

Castello Branco (2013, p. 40), “a escritura não é da ordem da impressão, mas da sulcagem:

sobreimpressão”. Essa dimensão da sobreimpressão - também alcançada pela experiência

teatral, enquanto ativa e performática - é uma das facetas que o texto de Llansol assume ao

suspender-se. E, ampliando o pensamento a partir de Cantinho, consideramos que o estado de

suspenso não se dá apenas pelo deslocamento das figuras: tudo se desloca na textualidade.

Há, na trajetória de OVDP, pelo menos duas formas de “passagem” demarcadas: a

própria sobreimpressão, em si, e a passagem no tempo, como expressa umas das cenas de “O

poder de decisão”: “Na finura do entresser, cinco ainda jovens [...] passam. Não é uma

passagem de sobreimpressão,/ passam, de facto, no tempo,/ cinco jovens esbeltos, três

raparigas e dois rapazes,/ no passeio à minha frente” (OVDP, p. 236). A passagem, em

suspenso, dilata-se entre uma espécie de presente circunstancial e o presente da enunciação. A

suspensão do cotidiano na autora está para além da ideia de transposição literária do real:

“Transposição literária do real? Mas para mim não há. Penso até que vivo assim como

escrevo” (LLANSOL, 2011, p. 8). Enquanto autora, Llansol não se dá à transposição literária,

mas vive uma sobreimpressão e uma suspensão constantes em seu escrever como “duplo de

viver”. É neste sentido que coisas da ordem do cotidiano são capazes de “gerar energia”: “[...]

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senti que aqueles documentos eram capazes de gerar energia” (LLANSOL, 2011, p. 11).

Como “documentos”, objetos, seres e até mesmo a folha na qual se desenvolve a escrita da

autora são passíveis de gerar energia, se fez importante, ao longo da pesquisa, observar a

relação entre o texto e algumas de suas materialidades.

A suspensão é sentida pelos efeitos emocionais causados pelas palavras (e suas

respectivas ausências) no texto, que nos retiram, enquanto leitores/legentes, do eixo de uma

leitura linear e nos pedem uma queda absoluta na sua fisicalidade. Para a

narradora-enunciadora do livro, “de facto, gravitação, informação, forma e vibração são

realidades muito próximas” (OVDP, p. 84) e “enquanto a frase estiver suspensa,/ a

inteligência não se quebra,/ nem acaba” (idem, p. 102). Em Lisboaleipzig, mais

especificamente em “O encontro inesperado do diverso”, espécie de metatexto, Llansol vai

propor que “Daí que o continuum espaço-tempo seja suspendido” (L, p. 151). O texto parece

conter em si uma necessidade fundamental do suspenso, para que a “vibração pelo vivo e pelo

novo” tenha espaço no convívio textual onde há figuras “Como crianças em perpétuo

crescimento, nunca estáveis numa única imagem. O que sentimos fisicamente com o sexo que

temos, o que as imagens vêm procurar em nós,/ não é o sexo que praticamos,/ é a vibração

pelo vivo e pelo novo. Chamei-lhe fulgor porque é assim que sinto” (OVDP, p. 33).

O suspenso, tal como o compreendemos para este trabalho, se relaciona diretamente

com a noção de capacidade contemplativa. Esta, por sua vez, pode ser o gérmen do processo

que abrirá espaço para a verve de escrita e que permitirá uma saída de nós mesmos para

mergulharmos nas coisas, conforme pontua Byung-Chul Han:

A capacidade contemplativa não está necessariamente ligada ao ser imperecível. Justamente o oscilante, o inaparente ou o fugidio só se abrem a uma atenção profunda, contemplativa. Só o demorar-se contemplativo tem acesso também ao longo fôlego, ao lento. Formas ou estados de duração escapam à hiperatividade. Paul Cézanne, esse mestre da atenção profunda, contemplativa, observou certa vez que podia ver inclusive o perfume das coisas. Essa visualização do perfume exige uma atenção profunda. No estado contemplativo, de certo modo, saímos de nós mesmos, mergulhando nas coisas (HAN, 2015, p. 36).

O que seria uma poética do suspenso? Talvez uma articulação que nos permita “ver”

um pouco mais, enquanto legentes e escreventes. A criação de um movimento que formula

uma não poética e, a partir de sua característica fluida, não se deixa “domar”. Uma poética

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tem a ver com um programa e a suspensão não é um programa. Daí que a suspensão seria a

realização dos traços que rasuram os limites do programa. O estado de suspenso acaba por

caracterizar o que poderia ser uma poética llansoliana, ligada a seu projeto de escrita reflexiva

e redimensionadora de paradigmas conceituais e de gênero: uma não poética ou antipoética.

Dessarte, a poética do suspenso se caracterizaria como uma proposta de estruturação textual

diretamente relacionada com a poesia, porque lançada a uma abertura que tem na suspensão, a

partir do presente, a infinitude e multiplicidade do pensamento. A suspensão existe na forma

das marcas do processo do texto. Por vezes, ela entra em cena como o pensamento do texto -

que pode ser tanto uma construção de vocalização da figura “texto”, como o encontro do

pensamento da escrevente com o do legente. Llansol, então, parece estar bastante ligada a

uma criação mental que viabiliza a articulação dos “reais não existentes”.

A poética da suspensão, tal qual a vislumbramos nesse momento, está ligada à

interioridade do ser, a uma interioridade plural em afirmação na sua metamorfose mesma.

Uma interioridade que, porque em metamorfose, não pode ser única e linear, como o próprio

fluxo do texto. Nos deparamos com essa compreensão a partir das incursões no decurso da

escrita que vai do nascimento (em seu começo de recomeços) à morte (no encerramento de

“Apoptose”, já citado). A construção do texto llansoliano se dá de maneira não linear, dado

que o modo metamorfoseado de construção textual da autora se revela como proveniente tanto

de uma aproximação com o poético quanto com a suspensão da realidade cotidiana. Esta, por

sua vez, pode proceder do poema em si ou, a exemplo, da experiência da elevação/conexão

que práticas como a meditação ou o teatro favorecem aos seres.

Essa suspensão do cotidiano na autora está ligada à sua investida criadora no “sexo de

ler”, categoria que torna propícia a vivência dos instantes de fulgor, como se estivéssemos

sempre no clímax da linguagem. O legente encontra-se implicado na escrita, como no caso de

Mallarmé: “O poema pede que se entre em sua operação, e o enigma é o pedido em si”

(BADIOU, 2002, p. 44). Discorrendo a respeito desse sexo outro de caráter transformador, a

escrevente observa, junto de suas figuras “Jade, o texto e a rapariga que temia a impostura,”

que

sabemos que o sexo de ler, sem o qual o encanto do mundo não pode ser sentido, nem escrito, é uma obra de cópia ____________ de copista paciente e de instantâneos de fotograma

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e, nas horas em que, finalmente, perdemos o medo, uma conjectura criada, querida e amada (OVDP, p. 142).

Se uma poética (em seu sentido mais substantivado possível) é, resumidamente, um

conjunto de regras e princípios básicos à criação literária, remontando à tradição aristotélica, a

postura llansoliana da fuga da impostura da língua é também uma fuga da poética tal como se

apresenta. Desse modo, uma poética não seria suficiente para o texto de Llansol. O lugar de

pensamento sobre uma poética da suspensão na textualidade de Llansol é, ao contrário de um

encerramento em regras, uma abertura ao suspenso, à possibilidade de uma outra poética,

talvez antipoética. Questionamos, a partir dessa perspectiva, se poderia ser (também) o Onde

vais, drama-poesia? uma proposta de reflexão metapoética, por ser um texto altamente

metalinguístico e “contaminado” de outros textos, da inscrição de várias figuras cujos nomes

remetem a diversos filósofos, teóricos da realidade histórica e, além deles, figuram aqueles

que podemos identificar, fora do texto, como poetas. Talvez o título possa figurar como um

lugar de reflexão sobre arte poética (mas não como uma arte poética, exatamente por não ser

um fechamento). Desse modo, lançaria a arte poética e a escrita em um devir (“onde?” -

interrogação e não afirmação), em movimento. Não como teoria, mas na forma de uma

suspensão da mesma, o livro passa a performar como uma nova mirada.

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ONDE VAIS, AFINAL? PRINCÍPIO DE CONCLUSÃO

Para onde vamos, nós, ao fim e ao cabo dessa leitura? “Cem um tempo que nos caiba:

por uma poética do suspenso em Onde vais, drama-poesia?” foi um percurso pelo livro,

embora não visando a um “por completo” que a etimologia de per suscite. Não haveria

completude (em forma de síntese) possível para um livro como o OVDP, que é todo

fragmentado, aberto, como “A poesia que se parte, [...] em pedaços minúsculos que chamam

para a renovação/ o renascimento das suas pequenas partículas” (LLANSOL apud FENATI,

2014, p. 343). De fato, “tudo fora, aliás, breve,/ apesar de tanto ter durado” (OVDP, p. 133).

As páginas aqui desenvolvidas não dão conta das extensas durações de OVDP, da dinâmica

de abertura permanente que o texto propõe.

De modo abrangente, toda a arquitetura do livro nos conduziu a um estado de

suspensão – do texto, do eu, da forma – que favorece a criação. A esta dissertação, tendo em

vista o corpo literário que a regeu, não deixou de se impor um trabalho de montagem.

“Impor” porque, de certo modo, se tornou uma necessidade latente dos dias reajustar palavras,

frases e parágrafos. Às vezes, capítulos inteiros tinham suas ordens alteradas pelos fluxos do

tecido do texto em criação. De todo modo, a arquitetura de OVDP, que concebe diversos

retornos - talvez nunca ao mesmo - fez com que voltássemos a citações para abordar

diferentes questões que se impunham. Chegamos à conclusão de um (per)curso a três:

escrevente, legente(s) e Llansol. Curiosamente, três é o número de subdivisões de cada

capítulo - que também são três. “Mas a mim me parece que o três também é um número muito

interessante: o número do amor. A melhor forma de amor [...] é a forma de amor que se abre

para fora de si mesma”, afirmou Maria Gabriela em suas Entrevistas (2011, p. 50).

A pesquisa se iniciou a partir da percepção da existência exclamativa dos presentes no

livro e tentamos caminhar para uma compreensão do que os diferentes presentes - mais

especificamente, o indicativo - poderiam significar e suscitar em nós, leitores. A fim de

entender os presentes do texto, passamos primeiro pelo presente cênico - que pressupõe jogo e

presença - e depois nos encaminhamos para o presente filosófico de Bergson e Deleuze. O

que pudemos enxergar em Onde vais, drama-poesia? foi um livro vazado - não de espaços

vazios, necessariamente e sempre, mas de tempos. Porque, de acordo com a autora, é possível

contemplar um espaço livre tempos: “tenho um olhar que toca sobretudo o espaço, livre de

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tempo” (FP, p. 132). Quando levantamos a hipótese de que em Llansol há momentos de

suspensão no texto e que esse suspensos são uma consequência dos presentes, consideramos

que seu texto seja atravessado por espaços de pensamento, espaços construídos também com

ferramentas reflexivas a serem utilizadas pelo leitor.

Nesse sentido, não há representação na escrita pois ao leitor não é entregue um padrão

a ser seguido - a própria construção de legente como figura não é estática. Demos, nesse

trabalho, uma atenção final e transversal ao leitor porque acreditamos que a grande

mobilização corpórea da escrita da autora acaba por apontar a necessidade de um processo

que nos devolva nossos corpos - uma autonomia dos corpos a ler, ligada à formação dos

corpos sociais. Ainda, “marcado por um traço horizontal que corta a narrativa (o ‘lugar do

leitor, o lugar da palavra que falta’, ela diz no texto), sua escrita marca, assim, através do

traço, a introdução do corpo da autora no papel, seu gesto de sulcagem da página”

(LLANSOL, 2011, p. 50-51).

Com e sem muita dificuldade, chegamos à conclusão de que ler Llansol significa

acessar agenciamentos teóricos e filosóficos muito extensos, dado o diálogo direto da autora

com intelectuais diversos - muitos deles inscritos no texto como figuras. Entretanto, é de se

considerar que o texto propõe uma abertura à experiência literária em si (uma experiência

ampliada do literário). Nesse abrir-se, há a possibilidade de leitura de um texto tão híbrido e

por vezes complexo como o de Llansol de formas diferentes, não apenas sendo o leitor um

portador de todo esse aparato referido. Em outras palavras, o que quero dizer é que posso e

devo ler Llansol como pesquisadora acadêmica, ao passo que a mesma pode ser lida por um

não pesquisador ou acadêmico - justamente por ser abertura e ruptura com os dicionários da

tradição.

Esse trabalho dissertativo se lança ao futuro como uma continuidade semelhante à do

movimento de caminhada llansoliana, cujo objetivo é estender-se pelo caminho. As

colaborações do projeto de escrita de Maria Gabriela Llansol estão ainda a ser descobertas

tanto no campo da literatura quanto no âmbito das pesquisas da cena. Este último, por sua vez,

com um grande leque de descobertas possíveis. Esperamos que o presente trabalho seja, pelo

menos, um buraco de fechadura possível para o mundo-texto de Llansol. Muito falamos (e

muito se fala) das incertezas e do devir a que somos lançados pela obra da autora. Para nós,

esse constante “andar de escorrega”, como escreveu Adília Lopes, é a concretização do

chamamento presente em seu projeto de escrita: temos o lugar, somos, de fato legentes.

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Entretanto, para além disso, somos escreventes desse texto porvir porque somos posicionados

(a nossa conta, risco e alegria também) em possibilidade de escolha e, ao escolhermos entrar

na casa que nos é aberta, entramos criando e respirando por entre seus traços e espaços.

Afinal, o que nos fica, enquanto legentes? A mim resta vestir-me de ritmo, vestir o corpo de

ritmo, e o convite para que me revele em texto. Um convite à escrita. Onde vais,

drama-poesia? é, sem fim e sem cabo, um convite à escrita.

Anda. Vamos fazer amor com a poesia. Deitarmo-nos nela, enrolarmo-nos nos seus braços. Criar um espaço em que os corpos enlaçados se despem e suspiram por despir a palavra. Lentamente, a palavra se despe, e mostra o seu ser que, todo nu, crepita na serenidade ardente que encontrou. A música é a sua veste, quando o corpo se torna mais nu. Veste-te deste ritmo em que tuas pernas batem. E se és texto, revela-te (LLANSOL in FENATI, 2014, p. 344). 7

7 Trecho de manuscrito do espólio do Espaço Llansol, da Agenda 44, p. 43, publicado em Partilha do incomum (2014, p. 344).

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A-demais, por nossos tempos:

   

Hoje, em sala de aula, caí  

e nunca mais me levantei.  

Coisas da internet. 

Ou da periferia 

ou do governo 

ou da telefonia. 

.Desculpe. 

(talvez março/2020)

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Anexo 1 - BREVE DIÁRIO DAS BORDAS

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