contos de fialho de almeida - iba mendes

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  • 8/20/2019 Contos de Fialho de Almeida - Iba Mendes

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    Fialho de Almeida

    Contos

    Publicado originalmente em 1881.

    José Valentim Fialho de Almeida

    (1857 — 1911)

     “Projeto Livro Livre”

    Livro 184

    Poeteiro Editor Digital

    São Paulo - 2014www.poeteiro.com

     

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    Projeto Livro Livre

    O “Projeto Livro Livre” é uma iniciativa quepropõe o compartilhamento, de forma livre e

    gratuita, de obras literárias já em domnio p!blicoou que tenham a sua divulga"#o devidamenteautori$ada, especialmente o livro em seu formato%igital&

    'o (rasil, segundo a Lei n) *&+-, no seu artigo ., os direitos patrimoniais doautor perduram por setenta anos contados de / de janeiro do ano subsequenteao de seu falecimento& O mesmo se observa em Portugal& 0egundo o 12digo dos%ireitos de 3utor e dos %ireitos 1one4os, em seu captulo 56 e artigo 7), o

    direito de autor caduca, na falta de disposi"#o especial, 8- anos ap2s a mortedo criador intelectual, mesmo que a obra s2 tenha sido publicada ou divulgadapostumamente&

    O nosso Projeto, que tem por !nico e e4clusivo objetivo colaborar em prol dadivulga"#o do bom conhecimento na 5nternet, busca assim n#o violar nenhumdireito autoral& 9odavia, caso seja encontrado algum livro que, por algumara$#o, esteja ferindo os direitos do autor, pedimos a gentile$a que nos informe,a fim de que seja devidamente suprimido de nosso acervo&

    :speramos um dia, quem sabe, que as leis que regem os direitos do autor sejamrepensadas e reformuladas, tornando a prote"#o da propriedade intelectualuma ferramenta para promover o conhecimento, em ve$ de um temvel inibidorao livre acesso aos bens culturais& 3ssim esperamos;

    3té lá, daremos nossa pequena contribui"#o para o desenvolvimento daeduca"#o e da cultura, mediante o compartilhamento livre e gratuito de obrassob domnio p!blico, como esta, do escritor portugu“Contos”& 

    ? isso; 

    5ba @[email protected]

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    BIOGRAFIA

    José Valentim Fialho de Almeida nasceu em Vila de Frades (Baixo Alentejo), em

    1857. eu !ai era um !ro"essor !rim#rio. $m tenra idade, se%ue !ara &is'oa

    onde, mais tarde, se em!re%a numa "arm#cia enuanto "a estudos de*edicina. Formado, em +e de a'rir consultrio, a'andona-se a um +i+er

    'omio e incerto e /s !u%nas liter#rias. $stréia em li+ro em 1881 ( Contos). $m1880, inicia a !u'lica2o dos Gatos, "olhetim liter#rio ue le+a até 1803.4ro"undamente irritado e des%ostoso com o meio intelectual lis'oeta, a"asta-se

    !ara sua terra natal e contrai um matrimnio de con+enincia. Falece em 1011.

    $scre+eu6 Conto  (1881),  A Cidade do Vício (188), Lisboa Galante  (180), OsGatos  (1880-1803), Pasquinadas  (180), Vida Irônica  (180),  Á Esquina (10),Figuras de Destaque (103), Atores e Autores (105), etc.

    Fialho d9Almeida n2o escre+eu um :nico romance. ;oda a sua !rodu2o liter#ria

    !ode ser di+idida, de um modo %eral, em dois ramos6 a !ol

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    O ARTISTAENSAIO BIOGRÁFICO 

    Visconde de Vila-Mour,1917

    Nenhum outro documento mais interessante, se bem que mais difícil de ler, doque o primeiro livro dum Artista.

    Toda a obra de Arte tem a sua infância que importa ver na prova-estreia doautor, através dos seus defeitos, como das suas virtudes.

    Ora essa dificuldade eu senti ao ler os Contos de Fialho, quer pela euberânciade vida epis!dica de que esta obra se enreda, quer pelo tumulto dos recursosque "# ali o autor revela.

    $emplificando.

    Abre ele este seu primeiro livro por uma hist!ria, em parte de sua observa%&o, eem parte de fantasia ' A Ruiva.

    (ela intri)a deste seu trabalho, v*-se que ele n&o che)ou a reali+ar uma novela,no ri)or )eralmente atribuído #s composi%es deste nome. em pelo contrario,o que conse)uiu foi uma serie de bio)rafias, ou, mais propriamente, deesquisitas telas.

    Fialho, muito do ul, é, como "# vimos, um pintor/ ou melhor, um painelista, no "eito dos pintores da $spanha meridional, lo)rando, pela pena, conforme o seupoder de descritivo, dar a cor, tonalidades e almas t&o distantes e irreais e, noentanto, t&o assinaladamente íntimas e perfeitas, como s! as encontramos nas

    prodi)iosas cole%es de al)uns autores da Andalu+ia, ' isto a averi)uar daimpress&o das suas manchas, como das suas madonas e dos seus alei"ados, ouse"a de quase toda a sua )aleria de ecelsas e de sinistros0

    Assim, a Ruiva, principal fi)ura do conto em an#lise, é uma espécie de hiena deamor, transportando-se, quando os )uardas do cemitério saem, # casa dodeposito, onde entra para escolher cad#veres0

    1 pela calma misteriosa e calada que ele descreve a necr!fila 2arolina, misto de

    miser#vel e viciosa, tateando os mortos adolescentes, quase possuindo-os.

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    $squisita fi)ura de vir)em, a suave e brutal filha do coveiro, que Fialho tratacom entusiasmo, quase carinhosamente, ainda na sua faina de amante deformas mortas0

    A Marcelina  é o tipo vul)ar da harpia, velha e sabia, que tendo aprendido damiséria tudo o que de mau ela ensina, volvera a sua eperi*ncia num capital quelhe ia servindo para viver...

    (ara o caso, ela é a alcoveta que vende a Ruiva  a um rapa+ola, o 3o&o, umprecoce torpe, tipo de bambino oper#rio, oficial de marceneiro e fadista, queum momento a possui e quase lo)o a abandona.

    1 filho dum b*bado e duma des)ra%ada que ele, ainda crian%a, vai encontrar,pela 4ltima ve+, na morgue, depois que a acabaram os maus tratos do marido.

    $, também, daí a sua hist!ria, que em si resume a vida natural de todos ostresnoitados pelos portais e escadas.

    (or fim, fecha o conto o relato da faina livre de 2arolina 5a Ruiva6, primeiroassalariada numa fabrica, depois pelos quartos andares, vendendo-se a todos osvícios, até que, roída da tuberculose, che)a ao hospital, donde sai aos peda%os,como um )esso em cacos0

    O seu enterro descreve-o o Artista no primeiro capítulo, como para impor, lo)ode come%o, o conto, de tal arte iniciado, # maneira romântica, pelo seu epis!diomais pio e sinistro.

    1 aí que aparece a fi)ura do coveiro, pai da Ruiva, uma espécie de Antonio(edro no Hamlet , acaso transportado # taberna do Pescada, onde o 2ontista oapresenta, b*bado, a comentar a morte da filha0

    $is a noticia-sumario do que temos pela estreia de Arte de Fialho, em 7898, outenha sido do tempo de quando ele, intencionalmente realista, com suas tintasde :offman, se deu a iniciar a sua obra por uma fi)ura, ali#s nada casual ' aRuiva, cu"a caveira nos aponta, ao fim do livro, sobre a sua banca de contista-médico, n&o se sabe bem, se como um despo"o de estudioso, se como um cofrede osso de que antes, por capricho, se dera a etrair uma novela...

    2omo quer que se"a, esta reali+a menos o que pretende ser ' a bio)rafia dafilha do coveiro ' do que a primeira )aleria de fi)uras da sua maneiraestranha de pintar, e onde a Ruiva acaso sur)e como que sombreada daquelamacera%&o e tinta de luar que ;urbaran parece ter composto "# da eternidade

    para espetrar as fi)uras t&o suavemente doentes dos seus mon)es0

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    $, entretanto, como ali est#, naquela simples novela todo o seu ori)inalprocesso, desde o poderosíssimo descritivo que lhe anima o melhor da obra, até# sua pintura, ainda narrativa, de costumes/ a hesita%&o do Artista no papelviolento ou declamat!rio dos persona)ens/ a sua maneira dispersa e

    fra)mentaria/ o dialo)o/ a imprecis&o de tra%os/ a preocupa%&o das )randestelas/ a falta de pe%as no esqueleto do seu trabalho/ a pai&o de certas fi)uras,como de certos lu)ares/ a sua dolorosa e sensual sanha de necro)r#fo, de pardos seus carinhos, como dos seus sustos pela morte/ o monstruoso dos tipos,des)arrando, aut

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    $ste ainda um eemplo do seu ocultismo de Arte, ' do seu se)redo e poder deimprevisto.

    Também a mesma )ra%a quase infantil, de tratar a fantasia a que deu o nome de

    Chávena da China, como todos os seus ob"etos e fi)urinhas do mais delicadorelevo, usa ele "# no conto ' Os dois ati!es, do mesmo volume, ao escreveracerca de dois )atitos, verdadeiras porcelanas vivas e meidas, e de cu"ascorrerias ele lo)rou a deliciosa tra)icomédia do arrasamento duma cidade decart&o, prenda de anos do pequeno Arthur.

    =*-se dum fol)o a linda hist!ria, como essa outra ' "inho d#$guia, de que, pori)ual, o Artista tira o partido, "# not#vel, do seu en)enho de considerar fi)urassuaves e inocentes, e em que, também, as pobres aves do conto s&o tratadascomo barros vivos, a que sempre ali)ou carinhos que "amais o vimos despender

    no capítulo humano da sua Obra.

    $ propositadamente nos referimos a estas suas pequeninas obras primas,menos por feriar-nos da hist!ria ma)oante dos seus nevr!ticos ' fi)urasquase-an"os, ao lado de mulheres e bambinos quase-flores ' do que pormostrar as delicade+as da sua Arte, t&o sinceramente desi)ual, quanto, porve+es, eaustiva, # conta de certas insist*ncias e mal escolhidos epis!dios.

    2ontudo, verdadeiramente )rande é s! mais tarde, quando, muito para alem

    daquele livro, sai a moldar do seu )*nio adulto, ent&o not#vel de etremosrecursos, a vida monstruosa dos )randes e desafortunados tipos do seufabul#rio. >eportamo-nos ao tempo da Madona do Camo %anto, do  An&o, damono)rafia-Manuel  e principalmente dos Po'res.

    $, pois que mal poderíamos concluir do seu )rande poder de plasti+ar da?ma)ina%&o, sem nos referirmos a estas obras, tratemo-las, emborapassa)eiramente, menos para as ver que para as apontar.

    O Manuel  é, sem contesta%&o, a mais sincera fi)ura da sua )aleria de "oturnos.1 um ser que da sua pr!pria alma o $scritor edita/ e, de si, nos d# como um e-voto # sua tortura de humano quando, penitente da pr!pria escravid&o da suaArte, dela se entre)a a versar o que de mais inquietante ela tem@ ' o indefinidoda sua universalidade dolorosa e reveladora. uer di+er, é ainda menos do queuma obra de Arte, um espelho doloroso, em que ele se transfi)ura dos seusmedos, como dos seus sonhos, ' dando-se aí, de fato, como melhor nos n&opodia surdir@ ' no espet#culo da sua fi)ura de receio, ou se"a no es)arcaricatural e dram#tico da sua afli%&o de presciente.

    Bas reconstruamos, tanto quanto possível, por palavras suas, a sinistra fi)urade Manuel , ainda por melhor a esclarecer.

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     (rimeiramente a crian%a@

    ' C$ra aos nove anos como uma fi)urinha de aquarela, fina de carnes, os

    cabelos sem pi)mento, as unhas lon)as, a vo+ aveludada e com demorassentimentais em certas inflees ' amando a solid&o e as mlusicas plan)entes,colecionando estampas de castelos, terrível no amor como no !dio, e dumavolubilidade tal na fantasia, que era impossível prende-lo a uma li%&o por meiahora, sem ele cortar o assunto com etrava)âncias de mimo e en!ant gat(.D

    Bais@ ' CTinha a feminilidade da i)re"a, o nervosismo do incenso, paiesquase físicas por ima)ens, sentido este que nunca se lhe apa)ou de todo, e quea reclus&o de 2ampolide easperou a um misticismo de fa+er inquieta%es aospr!prios padres.D

    uando "# homem, Cno tipo de al)arvio, branco de cera, idealmente puro comoa afilada )rava%&o dum camafeu, a sua bele+a tinha transcend*ncias et#ticas,uma pacifica%&o de tinta lurenta, macerada, desfalecida de ins

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    2he)ado a =isboa, ei-lo, primeiramente perpleo, o pobre Manuel , no papel dean"o despre)ado, e, como que por acaso, transferido da ?)re"a da sua aldeia aomuseu vivo duma cidade t&o falha de interesse que nem sequer tem torpe+apr!pria/ ' depois vivendo o epediente dos sem-recursos, lon)e dos seus,

    lutando entre o seu pudor de Artista e a intranquilidade do seu )*nioatrabili#rio e dispersivo.

    $sta inadapta%&o é a mesma que depois lhe d# a Tra)édia ' aquela Ctra)édiadum homem de )*nio obscuroD, que Fialho etrai da sua caprichosa maneira derea)ir, tal como devia sair-lhe, lavrada de ironias ' como daquela filosofia etriste+a que enchem a obra a que o Artista d# o nome de ' C$scultura emfra)mentosD pois que Cdos seus avulsos bocadosD nin)uém poderia tirar mais doque Cmutila%es de uma )rande estatua...D

    Ora, dessa estatua nos apresenta ele, a par de bocados ínfimos, comestranhe+as caricaturais e laivos dum rir doente, boutades e dor inferior, pordemais fra)mentada, quase sem si)nifica%&o de Arte, ' trechos formid#veis,como certas passa)ens da CNoite de Alcacer EebirD, ali#s t&o l4)ubres eintensivamente trabalhadas como raro encontramos outras, ainda na obra deFialho.

    $, entretanto, n&o é a Arte de Manuel  o que mais interessa da sua bio)rafia.

    O que melhor vale, e dela ressalta, é a sua mesma rea%&o, ainda mais que deencontro ao meio alheio, quando do ruflar do seu )*nio no íntimo de si pr!prio0

    $sta luta foca-a o Artista da sua lente amarelo-l4)ubre, desde a primeirainfância do bo*mio até # idade da Cfia%&o do seu tipo de adolescenteD queestatua da ChereditariedadeD, desenvolvendo-se, determinando-se, sobretudo,na vida de colé)io ' na sua reclus&o de 2ampolide, onde toda a ordem defatores apropriados, a"ustando-se-lhe Ccomo serpesD se porfiam Ca esfuriarnesse corpinho esp4rioD todos os instintos do seu )*nio de tarado, e que de sier)uem o perfeito modelo m!rbido que, efetivamente, che)a a reali+ar.

    Na sua vontade lassa nada mais )overna que o pr!prio instinto do luo, doinesperado, da etrava)ância da sua idea%&o froua e admir#vel, ' como ainclina%&o bo*mia da sua vida de acaso, # qual se d#, sem que al)uma ve+ seinterro)ue.

    Ainda por dessedentar os nervos, lo)o de come%o perros #s suas ei)*ncias,entre)a-se # embria)ue+.

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    Tinha necessidade de ecitar-se, de viver violentamente os seus delírios, aindacomo por melhor escutar a sua nevrose, de tal arte mais nítida # sua sensacionalepecta%&o.

    ?ntermitentemente caía em marasmos/ tinha Csincopes de inteli)*nciaD queeram como que sombras daquela sobrecita%&o e o derivavam do seu tumultoao que Fialho chamou os seus Ccrep4sculos intelectuais com sobrelaivos deperse)ui%&o e delírio reli)ioso.D

    Ce resto na sua estética, como na sua vida, sobressaltos de louco0D

    epois dum maior es)otamento de vida nervosa, adoeceu )ravemente, e t&o)ravemente, informa o $scritor, que n&o era difícil Cmarcar na sua inteli)*ncia oacesso vesperal da sua enubla%&oD.

    A partir deste momento deu-se a errar...

    A sua enfermidade era como que uma obsess&o de si pr!prio, sempre alertacontra o outro, isto é, contra aquele que a sua duplicidade mental dava comopresente aos seus menores atos ' e lhe embara%ava tudo o que deliberasse0

    Novos dias e ele cada ve+ mais doente, err#tico, sonâmbulo, com a pai&o do#lcool e o susto de tudo.

    2erta madru)ada acordou horrori+ado com a idéia de que o estavam a enterrarvivo e o dese"o Cde que o deiassem apodrecer fora da covaD...

    A partir deste dia a sua vida torna-se pavorosa/ é a criatura sem rumo,equilibrando-se, ao "usto, no acaso )eral do arran"o comum.

    1, sobretudo, como epoente de vontade que o homem vale/ ora ele perderaabsolutamente a vontade, mantendo-se como que, provisoriamente, adentrodo seu corpo, ao tempo "# descon"untado de fantochino, e que lhe sobreviviapor mila)re, como num assomo de quase etrava)ante ape)o pelo que fora...

    O resto adivinha-se@ ' é a convuls&o das 4ltimas horas/ s&o restos de sonho/ osderradeiros fantasmas, nos seus derradeiros dias/ é ele )ritando a sua a)oniadoida, numa casa de sa4de, a pele"ar a morte, como se, de minuto a minuto, lherompessem cordes nervosos/ finalmente ele ainda, mas com a vida a fu)ir-lhee como que afilando-se-lhe até perder-se na noite reabilitante da suapodrid&o...

    $, entretanto, a sua hist!ria n&o acaba aí0

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    2omo noutro lu)ar afirmamos, ha, para alem da sua vida de símbolo, o casovivo, em aberto, duma real fi)ura da qual o bo*mio Cum duploD, se acrescenta edesdobra, e que, a nosso ver, é, nem mais nem menos, do que o seu pr!priorevelador, ' o Artista que, na aludida mono)rafia, sinceramente,

    lu)ubremente, trata o caso da morte de Manuel   como se a espreitasse em sipr!prio0

    (assaremos adiante a mi4da informa%&o daquele desenlace, ainda l!)ico dentroda etrava)ante CTra)édia de um homem de )*nio obscuroD, por ver, derelance, o Artista, ao preteto do admir#vel estudo em an#lise.

    e fato, qual a fi)ura que surde para alem da mascara de Manuel G

    1, afirm#-lo-emos ainda uma ve+, nem mais nem menos do que o Autor, embora

    transfi)urado da sua Arte@ ' isto é o artista Cviolento e contradit!rioD que daíresulta/ ou se"a o escritor atavicamente Cpresciente do raro em arteD, com omais estranho Csenso pictoral de certos aspectos sociaisD, de par do maiorCpoder amplificador dos )rotescosD/ o artista, a um tempo Cfra)ment#rio edispersivoD/ o transfi)urador/ a criatura perdida Cem assun%es de )*nioD e lo)obaiada dos Cful)urantes cimos da inteli)*nciaD, como que distraído por casosmínimos/ o Cde filia%&o histeri%a e infância convulsiva, terrível no amor como no!dioD, o CmísticoD e necr!)rafo, de Cvontade froua, com antipatias invencíveispelos )randes fanfarres da sociedade e escritores lan%adosD ' o emotivo,

    enfim, que no Manuel  n&o fa+ mais do que esmaltar de picaresco e l4)ubre asua pr!pria fi)ura, errando nele o seu drama de m!rbido, e parabolando-lhe,nas atitudes, como na des)ra%a, os seus )randes pavores da morte, de par daduvida que lhe advinha da sua mesma Obra, que, no fundo, "ul)avairremediavelmente epis!dica e fra)mentaria0

    (or isso, também, ao deiar o quarto, do outro, a)oni+ante, ele pe na boca doíndio, o (ratas, velho confidente dos dois, como que o eco do seu pensamentoíntimo@ ' CO ideal seria que a alma dele n&o morresse, e n!s ainda aencontr#ssemos, intacta e )enial, num outro mundo insubmissoD0

    Ainda uma ve+ mais, ele formula o seu velho sonho@ ' n&o acabar0 $m 4ltimaan#lise@ ' o seu drama em duas palavras.

    Finalmente nada mais haveria a escrever de coment#rio ao etraordin#riocapítulo da obra de Fialho que principalmente nos demos a desarticular aindapor compor a fi)ura que nele foi ' se n&o tivéssemos de incluir um tal trabalhona parte que reservamos das suas melhores provas.

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    2omo demonstra%&o de Arte, mal poderíamos deiar de aludir #s pa)inas quefecham a tra)édia, em parte verdadeira, de Manuel  ' e que também, de si, s&o,ainda de uma precis&o e valor not#veis.

    e fato, velou ele o doente de duas fi)uras que mal aparecem no curso da a%&oe, no quarto do moribundo, apresenta7HIJ silenciosas, ' duas esfin)es de !dioque o encaram e ao (ratas, o se)undo companheiro de Manuel , como sefossem eles os verdadeiros culpados da sua des)ra%a0

    A primeira é um velho, o pai do doente que, depois de lhe ter ne)ado osrecursos, tomando # conta de etrava)ância todos os seus disp*ndios, como oseu irremissível alcance de sa4de, vem assistir-lhe # morte.

    A se)unda, e mais notavel das duas fi)uras, é aquela que o Artista desi)na na

    folha-carta+ da mono)rafia por ' essa mulher de negro0

    C1, se)undo informa, quase velha, com um vestido ne)ro e uma )olilha bordada,em )randes bicos. obre as orelhas ha "# cabelos brancos, tem a palide+macerada duma santa, as m&os reais, queio voluntario... $ntanto essa ri)ide+)uarda uma boca pura de crian%a, e sai dessa m#)oa, uma obra prima demartírio.D

    CToco, narra, por fim, as m&os do a)oni+ante, um m#rmore molhado. $st# a

    amanhecer l# fora, e os cin+entos a+uis dessa madru)ada de inverno entram noquarto, com albesc*ncias funerais que me espantam. (elas quatro horas (ratasque lhe sustinha o pulso, d# de repente um )rito@ é o momento@ e o velhoer)uendo-se, em ve+ de correr ao filho morto, é contra n!s que parece crescer,ri)idamente...D

    $is o final do drama0

    Bas quem é aquela mulher de negroG

    $is o que mal nos di+. O que dela se sabe é unicamente que fora uma rara fi)urade dedica%&o, envelhecendo no sonho de ser noiva do bo*mio, que lhe escrevia,e ele amara va)amente...

    e momento, aponta-a o Artista como um re)elo de amor, acaso um símboloassomado ali ainda por encenar as 4ltimas horas do bo*mio.

    erivando, no eame das suas obras primas, Ks pa)inas que, dentre as citadas,maior contraste oferecem com aquela mono)rafia, encontramo-nos com o seu

    admir#vel conto, ' o An&o.

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    $ste demonstra, alem de tudo, de par da mais frisante etrava)ânciaima)inativa, o seu )rande poder caricatural.

    Trata-se duma li)eira farsa que o autor compe, mais que dos persona)ens, das

    suas situa%es.

    (or outro lado, o drama é um "o)o de riso, em cu"o tabuleiro Fialho incluiu umapedra dolorosa ' o Carras)uinho, o An&o...

    $ste é uma fi)ura mínima, min4scula a ponto de se perder na copa dum chapéude pelo, e no bolso da madrinha quando do seu casamento/ é um quasemonstro de fabula, entre humano e herbívoro, de Cfocinho a)u%ado e m!vel,mascando sempre, com as bosseladuras da testa de tend*ncias cosa Cum caval&o da mais desmedida estatura, que a m&e troueravinte e sete meses no ventre e levara seis dias a epulsar0D

    O An&o dan%ava o fandan)o e era videiro. e principio tudo lhe foi bem/ a bodacorrera-lhe ale)re, bem fol)ada, depois da qual o mana)eiro de Torres, o3acintinho, se instalou por metade de cada dia em casa da >osa.

    $sta a des)ra%a0 uando o An&o che)a a mulher bate-lhe e o mana)eiro obri)a-o a dan%ar...

    A seis meses do casamento a >osa d#-lhe um rapa)&o, forte como Cum boibravoD.

    Tudo no conto s&o confrontos e confuses de animais armados...

    O  An&o, cada ve+ mais chibato, l# vai vivendo, ora em casa, ora entre ossementes, sempre lamentando-se, na sua Cvo+ baladaD, até que um dia, tendo-o a mulher enfaiado 5por confus&o com o filho6 e condu+ido # missa, l# opoviléu toma-o pelo pr!prio diabo, e lo)o um devoto b*bado o arremessa datorre abaio, e era uma ve+ o pobre Carras)uinho, esborrachado contra as la"essepulcrais do adro0...

    Tal o esqueleto da hist!ria que o )*nio do humorista vai depois folhando dassitua%es mais ridículas, e que, de tal arte, lhe decorre viva, hilariante peloimprevisto e desproporcionado dos persona)ens, e em que o pobre C)r&o de

    milhoD, mal sobressai como uma fi)urinha de amuleto, errando ao acaso vidaemprestada.

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     $, entretanto, é num t&o eí)uo persona)em que, principalmente, o Autor se d#a desenrolar aquela aventura, toda ela uma farsa de dolorosa escravid&o0

    O mesmo sestro que levara Fialho a apole)ar a )ente mi4da, por atin)ir aepans&o m#ima do seu ini)ual#vel empirismo de Arte, de semelhante formalhe pautou a solu%&o da vida em riso, que a breve trecho e involuntariamentederivava em farsa. Ainda mais, deliciou-se da uni&o dos elementos mais difíceis,como impossíveis até, quando, pelo drama convulso da sua polipersonalidade,se deu a parabolar da vida real o mundo ima)inativo das suas etrava)antessu)estes de artista.

    aí as fantasias, no )*nero daquelas, ao lado de outras em que sobressaemmulheres como a Badona do 2ampo anto, a quem dota da )alantaria e )estos

    nobres dos cisnes, fi)urinha de suave iluminura, e que, mais ainda que do seuvício de comer flores, ele parece alimentar do p&o #+imo da sua Arte0

    Bas n&o nos antecipemos # referencia que dela nos deiou.

    >eunamos os fra)mentos da estatua da Badona@ ' Crestos, di+ o $scritor, damais assombrosa escultura que tem visto o mundo, e que, soldados por a)ulhasde ferro, ornam ho"e o tumulo de 3udith.D

    Foto)rafia e assinatura de Fialho dLAlmeida.

    Ora a Badona do 2ampo anto, foi também uma das cria%es mais tratadaspela suave idolatria de Fialho, e que ele, antes do apaionado Albano, se deu aestatuar numa hora de quase divina loucura0

    $ n&o é ainda casualmente que escrevemos da sua idolatria.

    A verdade é que o )rande Artista foi, além de tudo, um pa)&o, embora porfatalidade da sua arte de $stranho, por amor daquela Arte que ainda, de i)ualmaneira, o fe+ reli)ioso ou, melhor, sect#rio de toda a ele+a, como "amaisconhecemos outro.

    1 ver as pa)inas que dedica # Madona do Camo %anto, ao lado de outras, comoas que abrem o Pa*s das +vas, e a admir#vel %in!onia da Cidade do V*cio0

    $m todas elas, que de ador#veis espectros de faunos e de silfos@ ' cria%esfant#sticas do )*nio misterioso da )rande "ornada humana imemor#vel/ e que aele, ao (oeta, o levam a cantar 5a sua obra é ali um hino6 ' um quase amor

    contra a nature+a, de t&o etrava)ante e brutal0

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    $, entretanto, é ainda # Cvibratilidade dolorosa do solD que ele escreve e nos di+da Cvida alucinadaD que lhe vai em roda.

    aí, também, a sua literatura, na apar*ncia difícil e desa"ustada, como um

    romance da Bitolo)ia, )ritada de $vohés, com palmas # bele+a e # ebriedade,pompas sem rito, casos de flora animada e fauna monstruosa, com a suamultid&o de s#tiros e dríades, formando "unto a aco ' o eus da bocafo)ueirada de risos, acaso os mesmos que, por ve+es, parecem tin)ir da suacambiante al)umas das pa)inas mais not#veis, ainda por menos verossímeis, dotransfi)urador0

    1 dum fol)o que se l*em estas passa)ens que quase nos su)erem a esperan%adum suave mundo de deuses reais, pleno de sentido novo, e em que euberem,a esmo, os frutos, e cres%am divinamente os m#rmores0

    Ora, dum tal poder de ima)ina%&o, e influ*ncia de tudo, f#cil nos é derivar aomais do seu atelier  de estatu#rio do $squisito/ e, mais propriamente, ao caso daBadona do 2ampo anto, a cu"o prop!sito trouemos aqueles recursos.

    A Badona é, na verdade, uma das suas obras primas de mais "ustificadorenome@ ' tipo de mulher-inseto, dentando flores, amando por instinto,comendo com dor, tocada, ainda por uma ra+&o de bele+a, do susto humano demorrer, )r#cil como uma ave, de resto froua e luarada como convinha a uma

    criatura do outro mundo...

    $ t&o deslocada fora, t&o doutro mundo ela era, que Fialho, querendo apontar-nos, no final da novela, a estatua que da sua mem!ria desbastou Albano, éassim que a descreve@

    C$ra uma maravilha 4nica de )*nio0 esabrochava completa, estendendo osbra%os para invocar eus, por um assombro de equilíbrio lan%ada na atitude dequem desprende v

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    1 t&o somente para frisar que, ainda em Fialho, como para o mais dos pl#sticosportu)ueses, a estatuaria é sobretudo narrativa.

    O m#rmore da Badona n&o é, efetivamente, um mero acaso da ima)ina%&o do

    contista/ bem pelo contrario, estava na l!)ica da sua educa%&o, pois que lheproveio diretamente da mesma causa romântica, que ainda, ao presente,determina o )rande numero dos nossos estatu#rios.

    Ainda mais, o movimento liberal, que, entre n!s, come%ou em 78MH, deu # Arteportu)uesa um motivo de ornamenta%&o t&o estranho como detest#vel, ' aestatuaria ret!rica, se assim podemos defini-la e que, de lo)o, come%ou aanimar os nossos terreiros p4blicos, onde mais ou menos todas as mem!riasdiscursam0

    $, a tal ponto a nossa euberância de latinos, li)ou ao )esto o seu sentido deeternidade que, ainda ho"e, reputaríamos inverossímil, entre n!s, a estatua, #maneira in)lesa, como si)nificado de mera presen%a, ' a fi)ura-marco, talcomo surde, nas pra%as de =ondres, menos como fic%&o de vida, do que, pelocontrario, como uma forma abstrata, e a que o Artista procura dar sempreaquela atitude quase sa)rada que, definitivamente, volve em símbolos asmem!rias0

    2ontudo, dado o fato do supremo poder de Fialho, como pl#stico, for%a é

    admitir que bem foi para a mem!ria de 3udith a sua estatua, tal qual ele atrabalhou, como todo o drama de que circunscreveu a sua prodi)iosa erafaelesca fi)ura, a cu"a decomposi%&o, por fim, assiste, indiferente, depois queela, "# morta, de Cface marbreada de rooD e a Cepress&o carrancudaD por lheterem arrancado a mascara, ' come%a a abater, da sua )r#cil e suave forma denoiva dos Cesponsais da eternidade...D

    Finalmente, o 4ltimo conto das suas apontadas obras ' Os Po'res, compreendeum trecho curto, e, no entanto, ainda mais notavel que os anteriores.

    $ t&o notavel que s! a custo poderemos desarticular essa sin)ularíssima pe%a deArte, tal a selva)eria que d# coes&o # novela, concebida para alem de todas asfic%es liter#rias0

    Trata-se dum casamento de monstros numas ruínas, de Cduas vir)indadesadormecidasD, informa o narrador, que num momento vin)am o amor abst*miode tantos anos, e celebram, # cumplicidade de uma noite tenebrosa, o seubrutal noivado.

    $le, o macho, é um ser despre+ível, vivendo de restos, espécie de cif!tico,alei"ado pelo l#pis de el#sque+/ valente pela sua vida de carreira, ao ar livre/

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    humilde/ torto e forte como um a+inho/ animal corrido de todas as mesas,piolhento que as rapari)as en"eitam e escarnecem nos seres@ ' fi)ura, enfim,perdida no Cimenso irradouroD que é, para ele, o mundo.

    e)ue da idi)ueira para (edro)&o ao acaso do vento, que o esfarrapa,confundindo-o com a ur+e.

    =eva-o o mesmo fim de sempre@ ' pedir, errar...

    ai por entre a esteva que o a%oita/ Co vento fala-lheD/ e, no entanto, ele nadaouve, caminhando # ventura, como um elemento deslocado da mesma noitesinistra que o perse)ue...

    $ntra, por acaso, numa ruína, onde o )uia primeiramente um resto de brasido,

    depois um farrapo de ora%&o, que sai dum canto, por fim o cheiro da f*mea,uma sombra que escabu"a a seu lado, e, num momento, desdobra para ele fiosocultos de uma voluptuosidade instintiva, toda animal.

    $le pressente-a/ e ela fala-lhe, numa vo+ que é um ro)o, de que ele n&o sabedeslindar-se, até que come%am de tecer-se novos fios do dese"o dos dois, doimpulso mutuo que s4bito os impele um para o outro, como duas for%as dummesmo sistema que a luuria move e d&o de si o ruído de corpos escamosos,Crimando urrosD, di+ o Artista, numa espécie de noivado de potestades, com

    fere+as e )runhidos de varrascos0

    Tal o relato-impress&o que do estupendo conto nos ficou, e pelo qualche)amos, naturalmente, e, por 4ltimo, ao fim dos maiores recursos de Fialho/ eque, a partir deste momento, nos permitem averi)uar da sua obra em con"unto,através das pa)inas eemplificadas, como daqueles seus mais característicospersona)ens.

    Ora, o que, dumas e doutros, de lo)o se nota é que o mesmo titulo de oentios,que indica o seu primeiro livro, inculca também o )rande numero das suasfi)uras-motivos.

    $ntretanto, o que mal pode eplicar-se, fora do seu caso de ra%a, é o se)redo dasua forma, ainda t&o eoticamente pl#stica, ' como o seu )randeconhecimento da Arte pairante além-fronteiras, e que, cumulativamente,eerceu de par dos mores diabolismos, ainda e sobretudo ao preteto da nossacomédia p4blica. 2omo quer que se"a, propositadamente )uardamos, para finaldo presente estudo, a an#lise )enérica destes recursos, de que, "# a)ora,partiremos para a revolu%&o artística que da sua pena levantou, sobretudo

    contra o pântano cl#ssico, e ret!rica do momento.

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    A todos os formalismos, de fato, ele deu batalha, n&o s! vencendo, mas, maisainda, tra+endo # Arte novas inten%es, de par de melhores impulsos e novosrumos.

    :ouve contemporâneos, como 3o&o de eus e ordalo, cu"o inauditismo é tantomais para admirar, quanto mais oculta nos deiaram a sua ra+&o de Arte.

    N&o é este o caso de Fialho, cu"o )*nio rea)iu sobre uma cultura intensa,procurada como num anseio de quase eausta%&o.

    esde al+ac, o mais notavel dos mestres do pensamento novo, até aosesquisitos oncourts, lavrantes quase diab!licos dos mil nadas mundanos,ap!stolos da )ra%a, como do mais etrava)ante "aponesismo liter#rio, todos os)randes contemporâneos ele conheceu e estudou/ do mesmo passo que o seu

    espírito, com escala por todas as representa%es de Arte@ ' museus, revistas,teatros, escolas, industrias de luo, por todo o espet#culo, enfim, ondehouvesse que aprender, ' se repartiu, talve+ menos por enriquecer-se dos seusensinamentos, que por colher as su)estes que do seu interesse mais tardedesenvolveu.

    Ora duma curiosidade de tal forma animada foi que, naturalmente, saiu a editaro melhor da sua obra, como tudo o que da sua simpatia pelo raro ele podediscorrer através da sua dolorosa fadi)a de supersensibili+ado0

    Assim, também, talve+ nenhum dos escritores do seu tempo conse)uissesurpreender a Arte dos eterisados e estranhos cumes donde ele se deu averti)in#-la.

    1 ver as paisa)ens, quase irreais do seu l#pis de craionista/ as suas fi)urinhashistéricas de branda )enealo)ia bíblica/ os seus alei"ados/ as suas porcelanas,como todo o mundo fant#stico da sua ini)ual#vel Arte0

    Também é de costume, tratando-se de Fialho, escrever do que vul)armente seconsidera a sua obra critica.

    N&o o faremos n!s, ainda em aten%&o ao critério pr!prio de que Fialho n&o foium critico, mas um impressionista.

    $, a prop!sito, vem recordar o caso de >amalho que, depois de uma vida lon)a,perscrutando a canseira estranha, talve+ menos pelo trabalho de a corri)ir quepelo vício de a desfiar/ depois duma fadi)a insana por ver do trabalho alheio, noprop!sito de deiar definitivas as suas nota%es de peda)o)o, sai, por fim, a

    desculpar-se, na pa)ina derradeira do seu papel de critico, denunciando a

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    p4blico a sua aspira%&o até aí oculta, ' ima)ina-se l# de que0 ' nem mais nemmenos do que de poeta lírico...

    $, contudo, como é de estimar, a nova triste daquele velho, fi)ura rí)ida de

    portuense, com suas tintas de trato in)l*s, escrevendo # )arrocha no couroendurecido de (ortu)al do tempo, afinal sobre o motivo constante e comum atodos os críticos, ' acerca dos mais vers#teis casos de )osto bur)u*s0

    (orque, fundamentalmente, foi o )osto bur)u*s que ele tratou, embora comouma espécie de "o)ador de pena contra os cen#culos havidos ent&o comotradicionais, e de que um acaso de civili+a%&o o fi+era trânsfu)a.

    $ntretanto, é bem de arquivar aquela sua pa)ina de contri%&o, ainda comodesfecho do seu in)rato mister. 1 que, de fato, ele era um artista, e daí o ter

    vindo a p4blico indultar-se, como em final prova%&o, dos seus cansadosprop!sitos críticos, se n&o le)ar-nos, # hora da sua a)onia liter#ria, umaderradeira ironia...

    2ontrariamente outros dos seus melhores contemporâneos, e entre todos@ 'Fialho, $%a, ordalo e ainda 3unqueiro 5a despeito da sua escravid&o política6 'haviam sido mais do que reformadores da Arte, ' seus verdadeirosrevolucion#rios, isto no melhor sentido da desacreditada palavra.

    e"amos, a tra%os r#pidos, a a%&o que de um tal confronto adv*m, pois queobteremos, assim, a par da diver)*ncia dos temperamentos de maior interessena vida artística do tempo, ' a sua sistemati+a%&o e um fim comum, ou tenhasido a notavel revolu%&o liter#ria que das suas provas resultou.

    2omecemos por ordalo, bem por certo, ainda ho"e, o menos estudado.

    >afael ordalo, que conse)uiu tornar poderosa uma arte, entre n!sdesacreditadíssima, merc* da chusma dos habilidosos@ ' a 2aricatura, foi, defato, o )*nio em bruto, um oleiro de amal)ama, misturando, na sua masseira de3ove do tempo, toda a sorte de civili+a%&o, por mais desencontrada/trabalhando, ora de fantasia, ora dos seus apontamentos de rua/ e, finalmente,editando-se, tal como Fialho, ainda por seu inato valor.

    $%a, talve+ o de menos influ*ncia, se bem que também o 4nico que lo)rouadmira%es incondicionais, foi, de fato, dentre todos, o menos ori)inal, que n&oo menos brilhante.

    No seu atelier  n&o faltou petrecho al)um dos mais necess#rios ao arran"o dos

    seus livros de Arte, ali#s sempre duma bele+a meditada, a bem di+er medida, e

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    em que perpassa todo um método opiado de ironias, por entre as suas demaispreocupa%es de consciente marmorista e penitenci#rio da prosa.

    Finalmente, 3unqueiro foi dentre as fi)uras liter#rias do momento o mais sa)a+

    e a"ust#vel # sua estranha confus&o.

    (or isso também, lo)o que apareceu, se fe+ mister consa)r#-lo, de par dos seusaleandrinos, ainda undísonos e revoados, # :u)o, e que os do tempoimediatamente se deram a ouvir, mais do que com aten%&o devida a uma obrade Arte, reli)iosamente, como se nas suas rolantes e evocativas estrofes o (oetaorquestrasse a pr!pria musica do mar...

    Bas deiemos propriamente o caso da a%&o política por parte da )era%&o a quepertenceu Fialho para o vermos, a ele, tal como tem de ficar, nessa outra

    revolu%&o liter#ria que sobreleva aquela, e # qual devemos mais atento eame.

    Fialho foi, bem por certo, sob tal ponto de vista, o maior do seu tempo, pois quereali+ou um verdadeiro revolucion#rio da Arte, que, partindo da admira%&o dostipos cl#ssicos, das pa)inas mais acad*micas, se)uiu diretamente o fil&opopular, colhendo e escrevendo, sem o corromper, o sentimento plebeu,sempre que este sentimento lhe pode epressar uma verdade, ou refundir dafantasia situa%es e estados liter#rios novos.

    $ n&o se ima)ine que, ainda no capítulo menos ori)inal e mais f#cil da sua obra,como panflet#rio, ele deiasse de mostrar os melhores ensinamentos e boa fé.

    1 ver o que nos di+ duma possível =isboa monumental, # sua maneira/ dos seusprop!sitos de substitui%&o duma cidade # moderna, como a fi+eram, ' f#cil eincaracterística, ' por uma cidade-mem!ria0

    Ainda mais@ ' antes dele criara-se uma espécie de constitucionalismo das=etras, ali#s sempre, mais ou menos re)radas ao )osto cl#ssico, o que, de i)ualmaneira, satisfa+ia leitores e autores...

    Ora Fialho foi um dos raros que, entre n!s, com melhor ousio praticou o direitoda escrita a flu, sem medos, como sem os bardos aramados da convencional=iteratura anterior.

    Buito "ustas as suas pa)inas de teatro onde versou a nossa miserabilíssima floradram#tica, e onde nem sequer teve a descontar # autoridade com que a viu apecha dPal)uma ve+ a ter tentado. O que ele nos di+ dessas pe%a+inhas de acaso,que l# fora seriam inverossímeis num teatro de sub4rbio, e que, entre n!s, t&o

    facilmente s&o al%adas, se)undo a cate)oria "ornalística ou política dos autores,a pe%as de )rande efeito, por um p4blico, #s ve+es educado, mas sem cora)em

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    para patear ou sair a meio da sensaboria em que, por via de re)ra, nos nossospalcos, as pe%as decaem0

    a $spanha do ul, sua vi+inha, vimos como soube orquestrar a lu+, tanto do seu

    pincel, de par do mais da vida natural que, como nin)uém, teve o poder deaperceber.

    Também ele, se vivesse em $spanha, onde a sua inten%&o revolucionaria seriainoportuna, teria completado, talve+, o capítulo mais desfalcado de quantoescreveu@ ' referimo-nos, sobretudo, # sua maneira de tratar fi)uras e seusdemais esbo%os de novelista.

    $ntre n!s, dados os multíplices acasos da mesquinhe+ p4blica, que afeta a nossavida de livraria, e onde a maior parte dos autores, de olhos fitos na coterie, raro

    sabe trabalhar independentemente, ' ele que come%ou por demolir, e demolirK outrance, )astando, a pa)inas plenas, talento e nervos, deiou-se, talve+,desviar, demasiadamente, pelas reclama%es que do seu valor o p4blico ei)ia/e daí aquelas faltas, de que, por fim, a vis&o clara da derradeira hora lhe deu osmais an)ustiosos clares0

    $, entretanto, se onde quer que est#, che)a a mem!ria do que vai passando, 'com que surpresa ha de sentir 5se l# ha surpresas6 tudo isso que para aí ficouap!s de si0

    1 que, bem pior do que no seu tempo, os Artistas s&o ho"e, para o )randenumero dos mentores oficiais, meras fi)uras de acaso, cu"os a)ouros eles, osrevolucion#rios de ontem, por cautela, se d&o a amorda%ar/ e, isto somente,porque se n&o perturbe a tro%a a que a Nacionalidade desceu, ' ou se"a umaceia de políticos, pela cerrada noite fora, que vem de lon)e, e onde um tecladode dentes, instrumentando o desfor%o de fomes velhas, nem sequer deia ouvir,por atenuar, a vo+ dos 'acarats...

    Bas abandonemos, por uma ra+&o de sensibilidade, a noticia do inoportunofestim.

    $ pois que, sobre uma tal noite, acertou de baiar escurid&o mais tr#)ica, a queamea%a de subverter a ra%a, que, ainda por sua admir#vel fatalidade, ter# detriunfar, ' vamos n!s inventariando tudo o que ao presente de )rande eiste efuturamente possa servir-nos.

    Ora, no estranho con"unto da nossa obra escrita, "# ho"e etrema, ' tem, comoacabamos de ver, o maior interesse, as pa)inas de Fialho, quer no seu valor

    intrínseco, quer pelo que representam em confronto com os demais e alheiospadres de Arte.

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     Qma obra, unicamente, ele n&o teve de seu intento/ e, conse)uintemente, n&olo)rou escrever, como a n&o escreveram, talve+, por a suporem ent&o menosnecess#ria, os que o precederam, e que, no entanto, de momento, se torna

    preciso, quanto antes, compor, ainda por servir aquele ressur)imento.

    >eportamo-nos, 5quem ainda o n&o sentiuG6 # falta de um Manual   de%ensi'ilidade, o que equivale a informar ' duma nova 2artilha, com destino #futura mocidade portu)uesa, e onde caibam as delicade+as porque sempre nosafirmamos, ainda através do mais acidentado da nossa "ornada hist!rica/ e queho"e, mais do que nunca de oportunidade é que desde "# ocupem quem, paraalem de todos os sectarismos ' sinta, mais do que por si, pela Nacionalidade, acarinhosa obri)a%&o de as versar0

    Trata-se, de resto, dum livro f#cil, pois que nos n&o é preciso mais do que edit#-lo dum bem orientado sentido popular, ou se"a do nosso velho espírito de)enerosidade e isen%&o, ali#s, de si, ainda latente, quando n&o epresso, naobra dos nossos maiores autores, ' também, quanto a n!s, os melhores, sen&o, até ho"e, os 4nicos interpretes da verdadeira alma de (ortu)al.

     Ancede, novem'ro de 191

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    ÍNDICE

    A DOR ...........................................................................................................

    O NINHO DE ÁGUIA ......................................................................................A EXPULSÃO DOS JESUÍTAS .........................................................................

    DOIS PRIMOS ..............................................................................................

    O MILAGRE DO CONVENTO .........................................................................

    O FUNÂMBULO DE MÁRMORE ...................................................................

    QUATRO ÉPOCAS ........................................................................................

    A DESFORRA DE BACCARAT .........................................................................

    HISTÓRIA DE DOIS PATIFES ..........................................................................

    A IDEIA DA COMADRE MÔNICA ...................................................................

    O TIO DA AMÉRICA ......................................................................................

    SEMPRE AMIGOS .........................................................................................A RUIVA ........................................................................................................

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    1

    A DOR 

    Quando o último orango deu origem ao primeiro homem, e esse homemchegando à virilidade pôde desfrutar a grandeza da indomável força do seu pai,

    domada pela bondade hilariante da sua luminosa inteligência, fez um dia a sipróprio esta pergunta:

    !m "ue difiro eu da"uele carrancudo ser "ue n#o fala sen#o por guinchos esó por contraç$es grotescas se e%prime, "ue para a alegria tem um grito e umurro para a cólera, "ue vê morrer os filhos e fugir&lhe a esposa, sem "ue oinvada este desconsolado entorpecimento "ue eu sinto se n#o remedeio o mal,e se para o "ue me cerca n#o encontro e%plicaç#o'

    !le caminha aos saltos, coberto de pêlos e ululante de vingança, trepando pelanodosidade dos caules e enchendo do seu terror feroz as grutas e os maciçosdas florestas palpitantes de ninhos, pisando sem remorsos as corolas maispurpúreas e os cálices mais olorantes, e n#o vendo na vastid#o opulenta e nacromática irradiante desse mundo alado ou desse mundo vegetal mais "ue arede em "ue descuidosamente os seus inimigos vêm cair e onde ele faz as suasv(timas)

    * das diferenças superficiais de estrutura de eu estar nu e ele vestido depêlos, de ele ter cauda e eu n#o, de os seus p+s terem o feitio das suas m#ospreênsis, en"uanto as minhas plantas se espalmam pela asperid#o das marchasa "ue as submeto , + das diferenças aparentes de organismo "ue nascemestas discordncias de natureza nele a secura, a ferocidade, o ego(smo e ainconse"uência em mim o sagrado terror da responsabilidade, o alcance devistas "ue me perturba, a previs#o sagaz "ue me aconselha, e esta comoç#osem origem "ue se entorna no meu corpo, e me tortura ou me entusiasma,conforme prov+m de uma necessidade satisfeita, ou conforme prov+m de umcontratempo inesperado'

    ! como se interrogava em voz alta, no meio dos castanheiros "ue as trepadeirasvestiam em ample%os concupiscentes nas suas couraças de folhas, viu surgir,dos rochedos negros em "ue pousava, o velho deus das selvas, alta figuracingida de cachos e coroada de flores, com barbas de musgos e vasta cabeleirade relvas verde-antes.

    /bre a cabeça do teu filho disse o deus.

    0 homem tomou o machado de s(le%, chamou seu filho e fazendo&o a-oelhar

    fendeu&lhe o crnio de um só golpe.

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    2

    !ssa cai%a de osso "ue partiste + como a casca lenhosa de certos frutostropicais de "ue te alimentas. 1artida a casca, esses frutos revelam a polpadelicada, de e%traordinário tecido e es"uisito sabor.

    2uarda esse fruto disse o deus. ! após, com imp+rio: /bre a cabeça doteu pai) ordenou&lhe. 0 homem encontrou na toca do grande baobabe ovelho orango "ue lhe dera o ser, acocorado e trôpego, roendo talos. 3eu&lhe asboas&noites, pediu&lhe a bênç#o como de costume, e, "uando o orango lheestendia a m#o lanugenta, sentiu na cara o gume do machado "ue lhe separavao crnio em duas metades.

    !%trai&lhe o fruto disse o deus, e o homem obedeceu.

    4em disse o outro.

    ! apontando a cada um dos c+rebros desnudados:

    !ste + o c+rebro do teu filho, este o do teu pai. 5ês "ue + maior o dope"ueno "ue o do velho, n#o vês' /gora segue com atua unha estes arabescosmisteriosos "ue sulcam a polpa arrancada ao pe"ueno. !les desenham o "uer"ue se-a de legenda em hieróglifos: + a buena&dicha da esp+cie humana. 6#o ascircunvoluç$es, "ue mal se esboçam no c+rebro do orango e "ue os teus levar#omais e mais profunda e profusamente impressas. /t+ o teu pai, o c+rebro era

    alguma coisa tosca como o granito7 de ti por diante ele lapida&se, depura&se emodifica&se + a pedra preciosa, cáustica na sombra e tenebrosa na luz,dotada de fulgor próprio e propensa a iluminar ao longe os tenebrosos recessosdos instintos "ue herdaste e tens de transmitir suavizados e aptos à utilidade,pela cultura a "ue tu mesmo os forçarás. 8orta&os ambos em pedaços ee%amina&os bem. 6#o da mesma mat+ria, têm idêntica forma e parecem domesmo valor. 9as um + o ferro bruto "ue o mineiro destila do fil#o recôndito, ooutro + o ferro dotado de propriedades magn+ticas. 1odes chamar à"uelescarv#o negro e torvo, se tiveres olhado neste diamante lapidado, "ue cintilapelos engastes das tuas órbitas como se ardesse v(vido na coroa de um rei.

    8ompreendo) disse o homem, pensativo.

    0lha melhor esse miolo dos dois frutos descascados. 8ada polpa se meafigura formada de lóbulos ou esferoides. * como um continente dividido emnaç$es pelos grandes rios, ou um pa(s repartido em distritos, pelas grandesestradas reais. 8ada distrito + a potência "ue rege alguma determinada funç#odo corpo s#o as bossas. á a bossa da memória, a bossa da inteligência, abossa da lu%úria, a da gula...

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    !, apontando cada proeminência, o deus chamava&as pelos seus nomes./lgumas, "ue eram salientes na criança, ou mal se esboçavam no orango, oupositivamente n#o e%istiam;. !m compensaç#o, o c+rebro do bruto tinhanoutras um desenvolvimento colossal a respeito do pe"ueno, o deus fazia&as

    comparar miudamente, uma a uma.

    fêmea escrava "uebraste as algemas, n#o consentindo "ue os seus p+ssangrassem, como os teus rudes p+s de lutador, nos abrolhos da selva e nosespinhos da maledicência. 3a tua rude cabana fizeste um templo, da tua f+ umlampadário, uma cúpula da tua religi#o e da mulher o teu deus. ?o santuário doteu amor puseste o deus, e da cúpula do templo o lampadário encheu deesplendores m(sticos a fam(lia e a tua alma. 1ela adoraç#o domaste a tua força,aprendendo a ser delicado para os fracos, altivo para os soberbos, cruel para osmaus, -usticeiro, generoso e valente) !stas "ualidades devê&las à tuainteligência, fluido singular "ue emana deste lóbulo e apontava e tedestacou dos teus antepassados. 1or essa faculdade, dominarás os elementos eos animais, serás rei e senhor, por"ue o teu braço obedecerá sempre à tuacabeça. 8ada geraç#o receberá da anterior um patrimônio de ideias ad"uirido,entregando religiosamente à "ue lhe suceder, acrescentando pelos seusesforços esse patrimônio sagrado e inviolável. / tua ambiç#o será satisfeita,descansa.

    ! serei eterno' disse o homem, tremendo à"uela ideia.

    ?a história.

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    ?a vida) Que me importará a história' 6e poderei viver assimsempre, dominando mares e povos, e e%perimentando cá dentro esta plenitudede seiva "ue e%travasa do meu corpo, e se desentranha em colossais alegrias'

    ?#o) disse o deus com voz profunda. 9orrerás)

    3e "ue me serve ent#o tudo isto' e%clamou ele, contraindo a face serena,"ue uma graça infinita deificava. ! erguendo os braços desesperado caiu achorar a mes"uinhez da sua condiç#o. 0 velho deus sorria.

    ! "ual a bossa "ue no c+rebro do meu filho corresponde a estehorr(vel veneno "ue a tua palavra me faz beber'

    0 deus apontou&lha, dizendo:

    !sse veneno chama&se a 3or e nunca envenenou o teu pai.

    =az&me ent#o voltar à nativa bruteza dos meus disse o homem. 1refiroa inconsciência rude do orango, a essa inteligência "ue, iluminando&me a vida,me faz dela um ergástulo, e onde n#o poderei fazer um passo, bom ou mau "uese-a, sem "ue este tribunal interior, incorrupt(vel e soberano, me detenha sevou com pressa, ou bruscamente me acorde se adormeci, para me -ulgar do "ueeu fizer e para me castigar a toda a hora.

    / voz do deus bradou:

    @amais)

    ! desde ent#o esse animal vaidoso, -ulgado o mais perfeito e o mais livredos seres vivos, tornou&se no miserável escravo "ue eternamente geme sobo chicote do seu verdugo esse verdugo "ue se chama: o 1ensamento.

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    O NINHO DE ÁGUIA 

    ?a tarde anterior dirigira&me ao montado, ca(a a noite. Ama contemplaç#oprofunda fazia&se em torno e o campo adormecia. 6obre as árvores, o c+u

    côncavo tinha laivos rosa, como sorrisos de bocas "ue e%alam o último adeus.1or entre os caules seculares dos azinhais e carvalheiras, uns acharoados deincêndio ardiam em apoteoses fúlgidas, sobre "ue os braços do arvoredodesenhavam em negro formas de estranhos es"ueletos. 8a(am a prumo, de umabanda e outra, formas de granitos áridos, mostrando nos recôncavos e naprofundeza lôbrega dos barrancos os primeiros fantasmas da noite, com os seuscapuzes de sombra derrubados na cara, e um escorregamento de passadasmisteriosas, como de ronda sinistra, "ue desemboca na "uietaç#o de uma viela,no silêncio da noite velha. /o centro do abismo, a vereda serpenteava,

    corcovando a sua fita saibrenta entre aglomeraç$es bruscas de basalto e gr+svermelho, donde os matagais irrompiam como hirsutos cabelos de uma cabeçadecepada. 6ob a vegetaç#o agressiva dos espinheiros e zambu-ais, uma linha deágua corria, fazendo murmúrios t(midos de segredos trazidos de fraga em fraga e essa "uei%a cont(nua e chorosa das gotas caindo manso acrescentava umanota saliente à sinfonia em surdina dos vegetais adormecidos e dos ninhos emrumor. 0 montado começava dali a subir pelo irregular das colinas. ?#o podiaenganar&me na marcha.

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    sentado à banca da cozinha com os ganh$es da herdade, diante da açordapatriarcal "ue o alho impregna de odores verm(fugos. 5estia como eles acamisola de l#, o largo chap+u de borla e os grossos sapatos cardados, pi#o naalgibeira, uma cicatriz transversal na testa, de pedradas antigas. !ra imperioso e

    adorado7 de resto abusava, dizia sempre "uero, por"ue "uero) Quando eudormia, a minha m#e ia bei-ar&me, e de uma vez, acordando sob um dessesbei-os, "ue s#o como ninfeias albas ca(das no mármore das epidermes frias,voltei&me e disse&lhe enraivecido:

    0s homens n#o se bei-am, apre)

    Queimava, em podendo, as bonecas da minha irm#, gostava de a ver chorar ede a fazer sofrer para me rir depois.

    4em feito) 4em feito)

    3uma vez bateram&me. !n"uanto eu berrava, o galo, cantando, fazia apoteoseda postura recente de uma galinha amarela, "ue desposara. =ui&me a ele e torci&lhe o pescoço.

    1ara n#o gozares comigo.

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    oscilavam sob o peso do meu corpo, e de vez em "uando soavam estalidosameaçadores. 9as via-a bem o ninho de águia7 primeiro um alicerce de "uatroou cinco ramos de sobro, cruzados7 depois um leito de folhas secas e pe"uenashastes7 sobre o leito, folhas macias de trevos, de tamu-es e fenos e, forrando

    delicadamente o esto-o, uma colcha de penugens brancas "ue a águia arrancavado peito, nos seus transportes de m#e. 8om insano trabalho cheguei&lhe ao p+.1ulava&me o coraç#o no peito, e "ual n#o foi a minha alegria ao veraconchegadas no ninho, uma de encontro à outra, adormecidas e tremendo defrio, duas aguiazinhas implumes, disformes ainda, mas de vigorosas proporç$es)8errara&se de todo a noite. Am claro luar com refle%os metálicos atravessava asvaporizaç$es do arvoredo, penetrando&as de uma poeira de átomos cintilantes.?as faias da ribeira, os rou%inóis faziam -ogos florais arremessando&se ossonetos mais r(tmicos7 o veio cristalino dos regatos ia contando às folhagensúmidas dos balceiros e canaviais uma lenda antiga de fadas azuis e tesouros

    maurescos, narrativa muito em segredo, entre murmúrios de bei-os "ue aolonge mansamente se perdiam.

    3ava trindades o sino da aldeia e as aspiraç$es pairavam na"uele calado arem "ue borboletas negras saltitavam, traçando sinais de mulherespredestinadas. / Bua, na tela do c+u esmaiado, lembrava, com as suas ranhuras,a máscara da 8om+dia no pano de uma ópera cômica, "ue a luz da ribaltailumina. !rgui os olhos acabava de ouvir um grito. 5i a águia pairar ummomento por sobre a minha cabeça, de asas abertas, cu-as r+miges em cutelo

    siflavam como velas de um moinho em atividade. 3epois a"uele vulto negrodesceu perpendicularmente, raivoso da minha audácia e estendendo o bico degumes curvos, para me ferir. /garrado à corda dei um salto, abandonando oninho, e fi"uei suspenso da árvore um instante, a dez metros do ch#opedregoso, batendo os dentes de terror. Que fazer' / corda por curta n#ochegava ao ch#o. 3ei%ar&me cair era morrer. 3e repente, por+m, a enormepernada dá um estalido seco, houve um atrito de folhas e lentamente vimbai%ando. Quando pousei no ch#o, com os dois filhos da águia no peito dacamisola e a navalha nos dentes, senti um prazer sem limites.

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    batendo com as asas nos to-ais da selva, e indo em todos os sentidos comoalucinada. 3epois abriu as asas horizontalmente com um pulo, susteve&se naspenas como um para&"uedas, e com firmeza cortou o ar obli"uamente, subindoà regi#o das nuvens. 3e vez em "uando, na calada do campo morto, o seu grito

    de m#e roubada ouvia&se na escuridade, como o silvo de um barco em perigo"ue pede socorro.

    / minha pai%#o da"uela noite foram os filhos da águia.

    1ersistia na ideia de criá&los de os fazer gente, dizia eu. s apalpadelas

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    percorria a cama de palha em "ue os ovos se aninhavam7 achara apenas umadas aguiazinhas. 3iabo)...

    !nt#o, sem medo -á "ue dessem por mim, corri a abrir a lucarna, e o dia entrou

    umedecido pela neblina cheirosa da manh#. !stava apenas uma águia, eracerto)... 3ei um berro de novilho marcado a ferro candente, "ue ressoou portoda a casa. Queria a outra águia por força, por força, por força) Queria&a,ent#o' Queria, por"ue "ueria. !ra minha, tinha&a eu achado, ent#o' !, comoningu+m dava resposta, entrei ao pontap+ a tudo, +brio de uma raivasangu(nea. ! num formidável choro rolava&me pelo ladrilho todo nu.

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    em bons impulsos e leais dedicaç$es, como na terra se abrem as floresprimaveris, sob o influ%o das primeiras chuvas.

    /ntes "ue viessem surpreender&me corri a vestir&me, e resoluto, os olhos cheios

    de lágrimas e a corda à cintura, voltei a buscar depois a aguiazinha. / minhairm# chamou&me, soluçava.

    0lha, morreu)... disse&me toda aflita, mostrando&me o cadáver da outraáguia, "ue, durante a noite, com mil precauç$es, tinha ido roubar ao cesto.

    1or isso achei falta gritei col+rico, batendo o p+. ! aos urros, crescendocontra ela de punhos cerrados, dizia&lhe golfando improp+rios:

    9aldita) 9á) 1este) ?osso 6enhor há de castigar&te, dei%a estar.

    /i de mim) ?a capoeira, a galinha raivosa, reconhecendo o outro en-eitado à luzda manh#, acabava de o matar à bicada, lançando&o fora do cesto.

    !nt#o desatei a chorar. ?unca fora t#o desgraçado, nunca)... ?em "uando medavam açoites com o chinelo, o "ue estava debai%o da cama do meu pai, a rir&sede mim pelo buraco ignóbil da tomba. ! agora, "ue fazer'

    9eti no seio da camisola os dois en-eitadinhos mortos, e a correr atravessei a

    eira, sem dar bons&dias a ningu+m. 0 dia começava. Casgando as escurid$es em"ue se envolveria, o panorama sa(a das nebrinas dissipadas a golpes de sol a"uie al+m, nas cristas dos outeiros. 3esci a correr a ladeira do monte, pendoressuaves donde o olhar abrangia, para todos os lados, perspectivas do mais belomatiz, montados, restolhos de searas, regatos orlados de choupos e faias, maispara al+m, horte-os alegres onde chiavam noras e se espiralava o fumo doscasais, vinhedo sem fim bordando sinuosidades bucólicas, brancas ermidaspousadas nas montanhas, e, perdendo&se na serenidade esfumosa do horizonte,povoaç$es "ue na luz iam fazendo mais e mais n(tidos os seus delineamentos. /paisagem tinha agora uma nitidez de gravura. /s aldeias sorriam para o noivadoda natureza em festa, en"uanto, de uma banda e outra, grandes massas dearvoredo abriam desta"ues surpreendentes.

    Dam tran"uilamente pelos terrenos ceifados os carneiros dos rebanhos,alongando o pescoço, a fofa corpulência tufada de l# patente em camas deespiraizinhas miúdas.

    /lguns velhos guias e%perientes e graves, focinho erguido, a grossa cornaduraem an+is de dimetros crescentes, enrolada como o arrepio da cabeleira de um

    dandy , chocalho pendente por correias de couro cru, a orelha in"uieta, olhavamvivamente o largo, bebendo os sons e procurando&lhe a origem sol(citos, como

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    "uem tem sobre si a responsabilidade da tribo e o futuro dos pe"ueninos./cima da redondeza das ancas de alguns, cabritinhos fulvos, de grandes orelhashorizontais, uma meiguice cndida na vista, erguiam&se a prumo furandocaminho, as ma%ilas entreabertas, por onde se escapava um "uei%ume

    tenu(ssimo m+) m+) alguma coisa como os rudimentos da cartilha dorebanho. 5ários preguiçosos, estacados a meio da corrente, mergulhavam ofocinho na água, bebendo. 1oucos tinham -á passado e cortavam a dente asgram(neas alastradas nas barranceiras. 0 velho c#o descansa, numa posturas+ria de patriarca, en"uanto, nas meias&tintas dos planos secundários, o pastor,de manta ao ombro e polainas encar"uilhando na tomba dos sapatos cardados,tinha o seu ar pasmado de montanhês, olhando a catarata de ouro fundido "ueo sol -orrava do nascente, numa apoteose de cáusticas vivas olhar em "ue seestagnava a silenciosa doçura dos olivais cinzentos e se refletia a conceç#opante(sta de um 3eus amant(ssimo, "ue fecunda os trigos das searas, preside às

    crias e vem de noite, mansamente, com o seu capuz de estrelas derrubado paradiante, lançar a bênç#o ao gado "ue dorme, inoculando no sonho do pastor oesmalte de um sorriso de ceifeira, vermelho como as cere-as úmidas de @unho.

    8orrendo atrav+s do montado, cheguei à ribeira, "ue pude salvar num pulo delobo, e, sem me deter, entrei a trepar a pedregosa encosta, na direitura doninho. =aziam&se ali acumulaç$es selváticas de to-eiros e silvados, cabeças derochedos pardacentos, espinhais de lu%uriante amplitude, "ue tolhiam o passo a"uem ia. ! a"uele recanto, plutônico e brusco, desenhava&se numa como

    penumbra de floresta, "ue de cima ca(a filtrada pelos amontoados da folhagem.3ei%ara de ouvir a águia, e era pungente o sossego da"uela regi#o, e"uiparadoao orfe#o gigantesco de voláteis, "ue na plan(cie entoava o poema sinfônico damanh#. 1or duas ou três vezes ergui a voz para insuflar a vida nos ecos dodesfiladeiro. 3e rocha em rocha, "uando muito, o eco repetia a última s(laba,num murmúrio t(mido, como rezado à roda de um f+retro, e morria.

    1ela montanha, troncos penitentes e negros orando de braços abertos. ?ospegos da ribeira, as reticulaç$es verde&negras dos limos dei%ando evolar aputrilagem das febres más. 6ilêncio abrasado, pesando.

    Quando cheguei ao ninho, ar"ue-ava. !, antes de erguer a vista sobre ele,detive&me um instante, olhando à roda com um terror sombrio, "ue o remorsoenvenenava. 6e a águia desse comigo podia matar&me à bicada. ! teria raz#o ai de mim)

    !stava sozinho. ?#o se via dali o monte -á. 3e repente, casualmente, semmesmo "uerer, dei com a águia, "ue, de cima do ninho, abria as asas e sobremim estendia o seu pescoço ávido. =i"uei tremendo ante a raiva silenciosa "ue

    paralisava a terr(vel rainha. !la ia decerto formar voo e cair sobre mim, para

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    dilacerar&me com as suas garras de três gumes implacáveis de uma vingançacruel.

    0lhamo&nos por tempo. /s asas da águia abriram os seus le"ues enormes de

    varetas curvas. / imobilizaç#o por+m continuava e o pescoço permanecia ca(doà borda do ninho. 5eio&me a ideia de "ue podia estar morta. /tirei&lhe com umapedra a mesma indiferença.

    6em "uerer saber de mais, desenrolei a corda e atirei&a à primeira pernada daárvore. Quando atingi a altura do ninho, pude olhar bem de perto a águiaagonizante, "ue um frêmito vago; percorria. !ra poderosa e magn(fica, deenormes asas pardacentas, cu-as fortes r+miges se aguçavam como punhais, naponta. !stava de bruços sobre o ninho, como se "uisera a"uecer o peito deencontro aos frou%+is alvinitentes em "ue os filhinhos tinham visto a primeira

    luz. / cabeça um pouco chata desca(a adiante num bico de bordos dentados, esobre a (ris de ouro a nictitante ia descainho na sombra da agonia, como umapagador sobre a luz do c(rio pascal.

    / águia morreu nesse dia, à mesma hora em "ue as outras aves voltavamcantando aos ninhos, para dormir com a prole. 1or muito tempo, cruzando omontado atrás dos rebanhos do meu pai, pude ver nos cimos da azinheiragigante, suspenso, o berço&túmulo, a "ue o es"ueleto da águia fazia guarda, diae noite, de asas estendidas, bran"ue-ando na sombria folhagem da árvore. !

    vinham&me ent#o remorsos, "ue fora eu o assassino da"uela dinastia real)

    5ai completar&se um ano "ue a tua filha desceu à cova, E minha m#e) !, vendo&te curvada no teu luto, pobre mulher envelhecida de lágrimas, sublime por todauma vida de abnegaç#o sem e%emplo, para mim fico pensando "ue deve sercruel o 3eus "ue tu adoras, se nunca teve remorsos de haver roubado tamb+m o ?inho de Fguia.

    1881 — Vila de Frades.

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    A EXPULSÃO DOS JESUÍTAS 

    > borda do mar ficava o mosteiro, erguido em peanha de granitos erriçados dearestas e cobertos na base de tufos de algas verdenegras. ?ascera no dia em

    "ue um dos nossos velhos reis alcançara de infi+is um triunfo, conseguindoarro-á&los bem para lá das carairas. 8om o tempo, a"uela casa, tosca de origem,guerreiramente dentada de seteiras profundas, entrou a merecer pelas suasvirtudes a proteç#o de prelados e infantas. 0s cavaleiros "ue partiam para ascon"uistas, os pr(ncipes "ue voltavam das batalhas carregados de despo-os, asinfantas "ue iam em !spanha e na Fustria ligar a sua vida à vida aventureira dosgrandes capit#es e senhores, antes de dei%arem a pátria ou ao chegar a ela,entravam a profunda arcaria álgida do templo, a depor no tabernáculo o penhorda sua f+, do seu reconhecimento ou da sua saudade. ?ada mais severo "ue

    semelhante edificaç#o, por cada raça aumentada e refundida, nas formasar"uitetônicas do tempo.

    1enetrava&se na igre-a por um portal esguio e bai%o em ogiva, posto no cimo deuma escadaria de balaústres curvos, onde se engalfinhavam monstros e%óticosno mármore das eflorescências polu(das da idade. 6obre o portal e à altura docoro, três rosáceas de vidros corados dei%avam -orrar no santuário a púrpurasanguinolenta do sol7 por cima, era o coruch+u limoso, entre as duas flechas dastorres negras, encimadas de cata&ventos rangentes. > altura da rosácea central,um poste sustentava os dez fios condutores do tel+grafo e dava umacomoç#o indefinida ver assim ligados, como dois reóforos de pilha voltaica,a"ueles dois pólos de mundos diversos e separados por dezenas e dezenas des+culos a casa dos monges e o zinco transmissor da eletricidade. 3entro dotemplo, parte gótico, parte bárbaro, e no fundo das capelas sombrias em "ueperpetuamente arfava a luz soturna dos lampadários de bronze, viam&sedeitadas em sarcófagos, de volutas mult(plices, figuras de bispos e eremitas,cavaleiros e santos, toscas esculturas terr(ficas, de capacete ao lado e espadaaos p+s, em cu-as lápides se podia coligir e ler, como numa velha crônica fiel, ahistória completa da naç#o. 0s santos eram ainda mais toscos "ue as estátuas

    dos mortos.

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    alu(dos pela umidade, pain+is de milagres em "ue 3eus era e%altado como umser feroz e su-eito a caprichos de benevolência, para este ou para a"uele,sepultando uns sob as ru(nas das casas, roubando a outros as colheitas,fulminando os filhos, matando de fome os pais, e n#o cedendo nunca da sua

    raiva faraônica sen#o à força de prociss$es e sacrif(cios. ?a"ueles milagrespendentes em galeria das paredes da igre-a, uma geraç#o de envilecidos etristes desfilava, vergada à opress#o de senhores, a guerras impiedosas, afomes, a pestes e terremotos. /lguns tinham ali vindo dei%ar os cabelos e osvestidos. 9uitos, "ue tinham enfermado de uma perna ou de um seio,ofereciam, e%perimentando melhores, a imagem em cera ou em prata dessaperna ou desse seio. 9ostravam&se, num alpendre da cerca, rumas de lemes,velas e mastar+us, destroços de barcas e ferros de arados, dos miseráveissurpreendidos em perigo de morte "ue assim tinham comprado a clemência dossantos do mosteiro. ?as aldeias vizinhas, ainda agora se narrava, com fervor

    m(stico e secreto medo, a s+rie de prod(gios e milagres sucedidos na igre-a, emtempos calamitosos.

    1or uma fome do ano de GHIJ havia aparecido no santuário um braço de fogosustendo um fei%e de espigas. Am f(sico, "ue ousara escarnecer de 3eus, foramorto por um corisco, ficando negro na mesma hora, nas escadas do altar& mor.! o milagre do pai e do filho, e o das duas cabeças do enforcado... !m temposdel&rei @o#o DDD nosso senhor, o mosteiro fora entregue aos -esu(tas, ent#o nomá%imo esplendor do seu poderio e fortuna. !ra ali "ue mais de preferência se

    recolhiam os santos padres de @esus.

    / contemplaç#o do oceano cantando a sua eterna legenda, a linha cáusticaentre c+u e mar, a solid#o e a poesia do s(tio, convidavam a"ueles homensnegros, "ue a meditaç#o preenchia, como um l("uido preenche um vaso. /cerca perdeu nesse tempo uma parte da sua nudez viram&se os limoeiros e asmadressilvas vestir os muros, -orrar água das carrancas dos tan"ues, e ospomares arredondarem as suas pinhas de verde envernizado. 1ermitiu&se aopovo "ue visitasse a horta, os claustros e as grutas de devoç#o particular. > horada missa a turba enchia o mosteiro, ávida e devota7 as confiss$es feitas comfervor, mas sem as ameaças do inferno "ue os antigos monges vociferavam,atra(am simpaticamente os penitentes. ! 3eus apareceu à terra sob uma face deperd#o, "ue "uase se desconhecia.

    8em anos depois, apesar de se guardarem com a maior fidelidade as santasrel("uias e milagres do mosteiro, as vetustas tradiç$es estavam es"uecidasentre o povo, e poucos se lembravam de ter ouvido aos avós a narrativa dasduas cabeças do enforcado, do pai e do filho, e da morte do f(sico&mor.

    9as eis "ue o 9ar"uês e%pulsa os -esu(tas, cu-o poder e argúcia arcavam comos seus.

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    3o pórtico escancarado vê&se sair uma prociss#o de padres negros e fontepálida, de cruz à frente. /s santas mulheres a-oelharam na passagem para lhebei-ar os vestidos e receber a última bênç#o. 3e novo o mosteiro fica deserto,

    sem o caráter hospitaleiro de uma casa de conselho e oraç#o consoladora. 0snegros fantasmas dos monges ascetas l(vidos e frios, pregando abstinências eflag(cios, volvem a percorrer os claustros lúgubres e a rezar nas capelas, em "ueos olhos dos (dolos ameaçam o mundo e proclamam a ani"uilaç#o dos povos.Ama treva enluta os esp(ritos e flutua de em torno às muralhas. !m bai%o, oescárnio da vaga "ue alui pelas cavernas o alicerce de rochas do templo, + comoum rir de diabo aos p+s de um deus inanimado) 3e noite, a lua "ue lança flechaspálidas pelas seteiras profundas para dentro do mosteiro ilumina estranhosconclaves de espectros. 0 vento segreda nos nichos e à roda dos mausol+us, ebai%inho parece orar aos p+s do santuário. / chuva infiltra&se nas abóbadas e

    umedece os cimentos. 3entre as -unturas das pedras irrompem gram(neas ezambu-ais. ?ingu+m vai ver o mosteiro e o pórtico está fechado. ! a"uela molede pedra, emburelada em musgos e erguida à beira do mar, lembra um suicidaa-oelhado fazendo a última oraç#o.

    ?o 5er#o de GKKL, o conde =., meu amigo, lembrou&me "ue poder(amos fazerna sua propriedade uma estaç#o agradável.

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    /s grutas prolongavam&se nas trevas em todas as direç$es, e (amos de gatas,escorregando nas babugens "ue a mar+ dei%ava na dentadura das penedias7 deuma vez o archote apagou&se&nos, e o fantástico palácio do mar n#o tinha

    termo galerias sobre galerias, colunas truncadas e -anelas abertas sobre atreva f+tida e sepulcral)

    5isitadas as criptas, penetramos no mosteiro.

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    9au) 0uve.

    4em) 3iz.

    Biga o transmissor por meio de fios, aos dez fios telegráficos "ue se apoiamna rosácea do mosteiro. ! recebemos os telegramas fres"uinhos e sem pagarnada. em'

    9as disse o conde encantado , + preciso "ue vamos habitar os mosteiro.

    ! por"ue n#o'

    !le deu um salto na cama.

    9as + esplêndido)

    3ecerto.

    ! pode&se alarmar o 1a(s.

    ?#o ve-o como.

    ?em eu, cos diabos, mas pode&se alarmar.

    4emM

    ! + como se os telegramas nos fossem enviados diretamente, como se nosobedecessem a agência avas, os gabinetes da !uropa, as grandes capitais, o0riente e o diabo "ue te leve, "ue nos leve e leve todo o mundo)

    !ia)

    ! podemos incendiar o orbe.

    1elo tel+grafo' Que ideia fazes do tel+grafo.

    !u, nenhuma. ?#o morde'

    8onhecendo as pessoas n#o.

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    a saudade de uma e%istência menos crua, nesses ditirmbicos imp+rios em"ue as cabeças se coroam de flores.

    3e repente, na absorç#o em "ue t(nhamos ca(do, pareceu&me "ue

    um frêmito percorrera o balaústre onde me encostava. ! cada vez maisdistantes, foram&se sucedendo estalidos secos.

    ?#o ouviste' disse eu ao conde. !le n#o tinha ouvido.

    0 "uê'

    1arece "ue isto tremeu.

    * "ue tu escutas. ! como estás com medo...

    1usemo&nos a rir.

    6abes "ue mais' 5amos passar a noite ao chal+.

    8obarde)

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    8omo tu vens amarelo)

    Qual de nós teve maior susto'

    =oste tu7 pois "uem'

    ! se ficasses na derrocada, ó conde'

    ?#o tinha pena, palavra.

    4em, n#o falemos mais em tal.

    9as amanh# continuaremos com os telegramas'

    3ecerto.

    ! eles "ue chegam como garraios)

    ?o dia seguinte, era meio&dia "uando acabamos de almoçar. 0 conde bebiacomo um sa%ônio, para honrar a memória do irm#o do seu tio, dizia, honradocomerciante londrino do 8ais do 6odr+.

    !m plena luz + sob a press#o de "uatro garrafórias ningu+m tem medo.5amos ao telegramas'

    3eitamos caminho do mosteiro, e entoando o God Save Te  & Quemaparecemos ante o portal gótico do templo. =. gritou zombeteiramente:

    /diante) !ra ele "uem tinha medo.

    6ubi ao coro. ?a fita de papel, sempre em movimento e desenrolando&se comimperturbável presteza, no cilindro de aço ane%o ao aparelho, o punç#o dorecetor tinha escrito, horas antes, este telegrama:

    ! "ue dir#

    $%aris& '& (s 1) oras da man*. — Terminou o pra+o de ,- oras concedido aos

     esu/tas de %aris para sa/rem das casas "ue ocupavam e fecarem os cursos

     p0licos "ue regiam. 2oe& (s 33 oras& a pol/cia far# despear todos os

    estaelecimento da 4ompania de 5esus. 6eceiam7se dist0rios. ! pra+o de 1

    dias foi cedido aos estaelecimentos da mesma !rdem& em atividade em toda a

    Fran9a.:

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    / padralhada vai ficar fula) gritou =. padre Rurpi, respeitado eescanhoado diretor espiritual da minha tia baronesa' !h) "ue vai tudo raso)

    Ama hora. Dsto enfastia. 5amos às ostras.

    ?#o ve-o inconveniente disse o conde com um -ogo de ombros. 5amoslá.

    6e passar algum telegrama, o punç#o dei%a na fita escrito o "ue houver.

    3escemos aos rochedos e das rochas à areia. / mar+ enchia, e uma águacristalina e t+pida, do sol no zênite, acariciava lubricamente as barbaças dascariátides de alga "ue à boca da gruta faziam carantonhas.

    @á fizeste a digest#o' in"uiriu =.

    @á, e tu' ! o banho está t#o patife)...

    ?esse caso atiremo&nos à água.

    5á feito.

    !m cinco minutos, as nossas cabeças sa(am à flor do oceano como a desses

    trit$es alegres "ue nas estampas rodeiam os carros em concha dos deusesmarinhos. ?adávamos a distncia em frente da caverna, "ue vista da"ueleponto tinha as mais singulares parecenças com uma boca de r+ptil descomunal.

    Cepara dizia eu apontando. /"uele fita de areia clara "ue forra aentrada + como um beiço estendido. 3epois, logo as primeiras pedras aguçadascomp$em a porç#o incisiva e canina da dentadura. 0lha para o fundo. 5ês asestalactites cônicas "ue descem do teto' 6#o os dentes do crocodilo com fome.0lha mais para o fundo, a"uela arcada incompleta + a goela. Bá tens a úvula,o c+u&da&boca retalhado de sulcos negros. /gora para cima da boca, a"uelaburacaria em tringulo. 1rimeiro temos as narinas, ferozes e dilatadas. ?ashoras de borrasca a água esguicha por ali, como dos respiros de uma baleia. ! osolhos, t#o profundos e sem órbita) 3epois a cabeça, toucada do barrete góticodo mosteiro.

    * original) dizia =. reparando.

    * terr(vel -untei eu.

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    8ontinuamos a nadar. Am zumbido de vida e%uberante sa(a da água. 3e cabeçaestendida, eu olhava a caverna. 1arecia&me ter notado um movimento lateral dema%ilas, na estranha boca do inferno. 0 monstro triturava. 3iabo)

    Ci&me dali a pouco do poder da minha imaginaç#o, irritada ante a"uele cenáriode tit#s.

    / faiscaç#o do astro vestia o cetáceo do mar numa couraça de relmpagos, euma rede de ouro amoldava&se à ondulaç#o do monstro respirando. 9as ent#onotei "ue as estalactites oscilavam, e as fauces do antro se uniam numaestrangulaç#o de raiva. 3essa garganta formidável de agonizante, um oceanoarremessou contra nós montanhas de água negra, fervilhando em espumasulf(drica.

    / violência do -acto foi tamanha "ue ambos nós, eu e o conde, fomos morder aareia do fundo, distante da caverna como estávamos. 3as entranhas da terrasa(ram rugidos como se o mundo fizesse derrocada vimos me%er o convento,abaterem&se as flechas das torres, desabar a abóbada com fracasso indescrit(vel, a vaga atirou&se raivando de encontro aos destroços como um molosso aospeitos de um vencido. ! meia hora depois, no s(tio do mosteiro assentava apirmide torva dos destroços, sobre "ue as gaivotas aos gritos descreviam assuas espiras fat(dicas.

    8hegado à praia e envergando o fato, o meu primeiro cuidado foi ver as horas.

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    DOIS PRIMOS 

    Quando @orge bateu, a /lbertina acabava de se levantar da mesa. !ra umarapariga alta e fina, com um tipo miudinho e arrebitado, "ue dá à mulher o ar

    canaille da ribalta. / sua elegncia formulava a última novidade dos armaz+nsde modas, tinha o chi"ue do dia, a cor e a graça da última revista de 1aris.5estida com uma simples saia, um reles %ale e um cuia torta, teria passadoindiferente at+ à pol(cia civil, "ue + "uem na capital rói nos últimos detritos dafêmea, "ue o amor escalavrou por essas alcovas e restaurantes noturnos. 6em oespartilho curasse "ue lhe dava o ritmo postiço e fle%uoso do busto, sem asmeias escarlates luzentes de abelhas de ouro e esticadas acima do -oelho, semos sapatos de decote largo onde uma roseta de cetim se enroscava com volutasde serpe negra, sem o nan"uim das pestanas, a veloutine da garganta, o carmim

    da boca e a unha crescida dos fados eletrizantes, essa boneca, "ue tinha o ar deparir o útero à força de comprimir as ancas, daria a simples fêmea linfática, comfolies de coeur  e histerismos alambicados, ninho de tub+rculos no peito e umagenu(na incapacidade para os misteres da sua condiç#o e da sua classe.

    6eria uma preguiçosa, uma gulosa, uma estúpida, incapaz da maternidade,incapaz da abnegaç#o, incapaz da luta pelos "ue amasse, da permanência nodever como um tabernáculo inviolável, e da resignaç#o, t#o heroica e t#o santa,de certas mulheres pobr(ssimas, na sua labuta tormentosa e "uotidiana.

    /"uela vida do palco era a única "ue ela teria podido seguir sem contrariar osseus instintos e satisfazendo todas as suas vaidades.

    !m criança tivera uma educaç#o apurada e completa diziam os pais. =alava asl(nguas, cantava, tocava, e implantara no pe"uenino crnio a pai%#o do lu%o e apai%#o do namoro duas lanternas "ue ao longe pareciam iluminar&lhe asfantasias do futuro7 de uma vez "ue a trou%eram a Bisboa e a levaram ao teatro,um subitneo clar#o se lhe fez dentro tornara n(tida a aspiraç#o vaga em "ueardia nas suas insônias de virgem provinciana, descobrira a vereda "ue, havia

    muito, as suas tendências tateavam, como um cego em busca de uma portapara tomar fôlego.

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    libras, amarrotados ho-e e amanh# benevolamente es"uecidos a =anchette,nossa confidente e a nossa criada de "uarto. /h) como seria bom cantar ali,"uase nua, com os pe"uenos p+s in"uietos calçados na chinelinha de 8endrillonou nas botas altas do pr(ncipe @asmim, os cabelos polvilhados de ouro, as m#os

    cobertas de rubis e a garganta titilante no frêmito de um trilo ou na petulnciade uma ária, escarlate de provocaç$es)... ! as pai%$es desencadeadas com o(mpeto das procelas andinas, as súplicas virginais dos adolescentes louros "uelhe devessem o primeiro grito do se%o espicaçado, as apople%ias dos ban"ueirose as surdas inve-as das mulheres mordidas pela estranha aur+ola do seuimp+rio)... ?#o dormiu nessa noite. !ra cerrar os olhos e encher&se&lhe logo acabeça de bailados, coros, transformaç$es e esplendores, cuidando estar dianteda multid#o, fren+tica ante a nudez dos bustos e abrasada pelo calor doambiente. 0 e%pluir das ovaç$es como a embalava numa embriaguez funesta,"ue lhe fazia late-ar as fontes7 e em c(rculos de diabólicas valsas vinham&lhe as

    reminiscências da vida de terra pe"uena, t#o ins(pida de episódios e t#o áridade comoç$es, em "ue a sua mocidade deslizara at+ ali, como em calmariapodre. 0perou&se nela ent#o uma brusca metamorfose, uma rebeli#o ferozcontra a pe"uena roda em "ue vivia. / tran"uila casa burguesa dos pais, cheiade um conforto simples e de um aconchego honrado, fez&se&lhe odiosa e triste.!ntrou a embirrar com os móveis, com os velhos criados, com o -ardim decanteiros oblongos e cheios de magn(ficas roseiras "ue o papá cultivava, etinham a reputaç#o das mais belas da terra. /s suas maneiras eram agora secas,as suas respostas sacudidas e imperiosas. 6ofria distraç$es profundas, e

    respirava a espaços por grandes suspiros de cansaço. /"uela tristeza seme%plicaç#o in"uietou os pais e as tias. Que era' Que n#o era' 3epois, a fase dee%plos#o chegou, per(odo singular de contrastes, ora alegre, ora col+rico, orasarcástico, em "ue nada parava, as músicas, o guarda&roupa, os criados, areputaç#o e a toilette  das ricas e pretensiosas herdeiras suas vizinhas.

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    p+rola. !ra alto, nunca lhe parecera t#o alto, realmente. ! o vermelho dosbeiços dava&lhe um ar sadio, "ue a frescura dos dentes -ustificava. / vida deBisboa refundira completamente a"uele provinciano t(mido, pacato e sincero,apai%onado pela caça, leitor dos maus romances e cheio de uns acanhamentos

    "ue, realmente...

    !la soubera da nova residência de @orge, e, uma tarde, "uando subia o. 8hiadovestida na sua peliça e bai%ando a cabeça às barretadas dos folhetinistas "uepor ali se davam ares principescos, tinha dado com ele, cara a cara.

    =ingiu n#o o ver.

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    6enta&te a"ui disse ela.

    ! passado um instante:

    ! o meu pai, e a mam#'

    @orge encolheu os ombros.

    Que tens tu com essa gente'

    ! verdade, es"uecia&me tornou ela bai%inho, com um estrangulamento delágrimas. !ram sete horas, e n#o havia espetáculo nessa noite. 0 gabinete tinhauma claridade velada, "ue, esbatida do globo fosco do candeeiro, amaciava osaspetos num penumbra vaga de entrevista. 8omas -anelas cerradas era no

    Dnverno os perfumes dos enormes ou"uets  sufocavam, t+pidos elangorosos. ?as -ardineiras, em pinhas de pe"ueninos vasos branco e ouro, asbegônias espalmavam as suas folhas decorativas

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    *s cruel, tamb+m.

    0uve e%clamou @orge violentamente, tomando&a pelos pulsos , para "uete pintas' 1ara "uê'

    !u'

    tre  do roup#o de veludo, orlada derendazinhas sobrepostas.

    * claro, bem claro dizia ele com uma cintila de c#o cioso na vista. ! maisbai%o, num tom de repreens#o amiga:

    =oi para isto "ue dei%aste Beiria, a nossa casa, o tio /rsênio e as fam(lias dasnossas relaç$es, n#o' 1ensas "ue poderás viver sempre cantando, tendocelebridade e reclames nos -ornais'

    ! por"ue n#o' dizia ela ingenuamente.

    0lha "ue + uma vida de encher olho, n#o tem dúvida. =oi ent#o paraenri"uecer uma cocotte "ue o teu pai trabalhou "uarenta anos sem descanso,n#o vendo outra coisa sen#o a filha, e n#o se importando com outra coisa "uen#o fosse um teu capricho' !ducaram&te nas virtudes burguesas, "ue na mulherpreparam a m#e, simplesmente para "ue um belo dia fugisses roubando a casados teus'

    !stás doido'

    6eria melhor "ue o estivesse. ! agora' !m "ue ponto ficam as nossasrelaç$es, n#o me dirás'

    !la "uis atra(&lo a si:

    ?o ponto em "ue as interrompemos em Beiria. 1or"ue n#o'

    0 primo @orge riu com uma cas"uinada brutal.

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    /s mulheres do teatro n#o se namoram.

    /lbertina estava atônita do "ue ouvia.

    !nt#o' disse ela sem saber, ao acaso.

    * simples ia dizend