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  • Vitorio Alfieri

    Otvia Atualizao ortogrfica

    Iba MendesIba MendesIba MendesIba Mendes

    Traduo publicada originalmente em 1869.

    Niccol Vittorio Alfieri

    (1749 1803)

    Projeto Livro Livre

    Livro 385

    Poeteiro Editor Digital

    So Paulo - 2014 www.poeteiro.com

  • Projeto Livro Livre O Projeto Livro Livre uma iniciativa que prope o compartilhamento, de forma livre e gratuita, de obras literrias j em domnio pblico ou que tenham a sua divulgao devidamente autorizada, especialmente o livro em seu formato Digital. No Brasil, segundo a Lei n 9.610, no seu artigo 41, os direitos patrimoniais do autor perduram por setenta anos contados de 1 de janeiro do ano

    subsequente ao de seu falecimento. O mesmo se observa em Portugal. Segundo o Cdigo dos Direitos de Autor e dos Direitos Conexos, em seu captulo IV e artigo 31, o direito de autor caduca, na falta de disposio especial, 70 anos aps a morte do criador intelectual, mesmo que a obra s tenha sido publicada ou divulgada postumamente. O nosso Projeto, que tem por nico e exclusivo objetivo colaborar em prol da divulgao do bom conhecimento na Internet, busca assim no violar nenhum direito autoral. Todavia, caso seja encontrado algum livro que, por alguma razo, esteja ferindo os direitos do autor, pedimos a gentileza que nos informe, a fim de que seja devidamente suprimido de nosso acervo. Esperamos um dia, quem sabe, que as leis que regem os direitos do autor sejam repensadas e reformuladas, tornando a proteo da propriedade intelectual uma ferramenta para promover o conhecimento, em vez de um temvel inibidor ao livre acesso aos bens culturais. Assim esperamos! At l, daremos nossa pequena contribuio para o desenvolvimento da educao e da cultura, mediante o compartilhamento livre e gratuito de obras sob domnio pblico, como esta, do escritor italiano Vittorio Alfieri: Otvia.

    isso!

    Iba Mendes [email protected]

  • BIOGRAFIA

    A produo trgica de Alfieri se concentra em um perodo breve e intenso, entre os anos de 1775 e 1787. A composio de suas peas dividida em trs tempos: idealizao, redao e versificao. O primeiro corresponde distribuio do assunto em atos e cenas e escolha do nmero de personagens em aproximadamente duas pginas; a redao corresponde criao da tragdia inteira na forma de prosa, sem abrir mo de qualquer ideia ou pensamento que o autor tenha em mente; a ltima parte, a versificao, o momento no qual Alfieri transforma a prosa em texto trgico e potico, escolhendo apenas as melhores ideias para configurarem na verso final do texto. Alfieri escreveu no total vinte tragdias, se incluirmos Cleopatra, a primeira tragdia escrita pelo autor e depois por ele repudiada. Suas tragdias podem ser divididas em dois grupos: 1) histrico e clssico, retratando temas polticos e civis atravs de personagens como monarcas cruis e destruidores da liberdade, e herois sempre magnnimos e libertrios; fazem parte deste grupo as seguintes tragdias: Filippo, La congiura dePazzi, Virginia, Don Garzia, Maria Stuarda, Ottavia, Timoleone e Rosmunda, Merope, Agide, Sofonisba, Bruto I e Bruto II; 2) o segundo grupo o mitolgico-literrio, com personagens positivos. Fazem parte deste grupo: Polinice, Antigone, Agamennone, Oreste e Mirra. As tragdias mais aclamadas de Alfieri, que tiveram maior sucesso de crtica, foram Saul e Mirra. Alm de tragdias, Alfieri tambm escreveu dois tratados polticos: Della Tirannide, este inteiramente poltico, e Del prncipe e delle lettere, este segundo sendo poltico-literrio. O maior interesse desses dois tratados para o presente projeto que, atravs da escritura de Della Tirannide, Alfieri pde traar o perfil psicolgico de suas personagens tirnicas, carregadas de medo, vileza, ambio e luxo, como o caso de Creonte, e com o tratado Del prncipe e delle lettere, o autor explicita as maneiras possveis de se viver em um governo autoritrio - submetendo-se a ele ou sacudindo-lhe o jugo - num comportamento herico e necessariamente solitrio, como no caso da jovem Antgona. Escreveu um dilogo, La Virt Sconosciuta, no qual encontra em sonho a sombra de seu caro amigo Francesco Gori-Gandellini e discorre sobre o carter e as virtudes deste. Alfieri produziu muitas odes polticas, como America libera, Parigi Sbastigliata, Il Misogalo, alm de stiras sobre os defeitos e ridculos de seu tempo, como em I re, La plebe, Leducazione e Le donne, comdias como Il divorzio e La finestrina, rimas, epigramas, cartas e tradues de Sfocles, squilo, Terncio, Eurpedes, Aristfanes e Salustiano. Alfieri buscava ento assenhorear-se dos valores mais seguros da tradio literria italiana, e construir uma linguagem capaz de ser aceita e compreendida em toda a Pennsula Itlica. na Toscana, onde se falava o italiano considerado mais puro, que o autor encontra sua ptria literria.

  • Os elementos mais caractersticos da tragdia alfieriana so os antagonismos, a tenso e afirmao, o autocentrismo, a solido, a incomunicabilidade, o valor no suicdio, a catstrofe. A importncia marcadamente centrada nos atores-personagens, diretamente implicados no drama, leva a uma forte simplificao de cenrios, acessrios cnicos, e de todo o mecanismo teatral. As tragdias de Alfieri se distinguem das duas principais formas de teatro clssico, ou seja, a grega e a francesa, pela simplicidade das aes, pela supresso de todas as cenas nas quais a ao no progride, pela uniformidade mais constante do tom alto e suspenso, e pela renncia quase absoluta das cenas de amor adocicado, comuns na tragdia francesa. Em sua autobiografia Alfieri confessa seu impulso de escrever tragdias atravs da descrio de sua personalidade: Uma alma resoluta, muito obstinada, e indmita; um corao pleno de afetos de todas as espcies, entre as quais predominavam com uma mescla bizarra o amor e todas as suas frias, e uma profundssima e ferocssima raiva e aborrecimento contra toda e qualquer vontade tirnica. J de acordo com Giulio Ferroni, a escolha de Vittorio Alfieri pelo gnero trgico se deu pelo fato de que, na Itlia, o gnero trgico no havia ainda encontrado autores e obras satisfatrias que pudessem concorrer com o teatro clssico francs. Faltava um corajoso voluntrio para essa tarefa que requeria um trabalho disciplinado e rduo, conduzido a um ritmo constante e paciente condizente com uma pessoa como Alfieri, que pretendia se tornar escritor quase a partir do nada, reconstruindo completamente a prpria educao literria. A relao de Alfieri com a lngua e cultura francesa vai de um extremo a outro. Inicialmente muito interessado e motivado pela revolta do povo francs contra a monarquia absolutista, dedica Panegirico di Plinio a Traiano (1787) ao rei Lus XVI da Frana, texto no qual convidava o imperador Trajano a abolir o nepotismo e concordar com a liberdade do povo. Chega at a se mudar para Paris, com a Condessa DAlbany, de forma a presenciar a primeira fase da Revoluo Francesa. Saudou a tomada da Bastilha com o texto Parigi Sbastigliata. Entretanto, a violenta luta poltica e o direcionamento da Revoluo para o radicalismo do Terror tornaram o escritor crtico dos acontecimentos na Frana. Alfieri chegou a conceber dio profundo pelo que ele chamava de fautores da falsa liberdade. Suas posies polticas se tornaram cada vez mais reacionrias, at o ponto em que em 10 de agosto de 1792, com o assalto s Tulherias, o escritor e sua esposa deixam Paris e se mudam definitivamente para Florena, onde o autor comea a viver em austera solido e assim permanece at o fim da vida. Sobre o

  • fato de ter o francs como lngua materna, o que demandou um grande esforo de sua parte para conseguir finalmente escrever em toscano, Alfieri escreveu em sua biografia que falar francs era a desgraa primitiva do nascer em um pas (paese) anfbio. --- Referncia bibliogrfica: Ndia Jorge Berriel: Antigone de Vittorio Alfieri: uma traduo. (Dissertao de mestrado apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas. Orientadora: Profa. Dra. Suzi Frankl Sperber). Campinas, 2012 .

  • 1

    OTVIA TRAGDIA EM 5 ATOS

    Representada no teatro Lrico Fluminense na noite de 2 de Agosto de 1869.

    Pela senhora Adelaide Ristori e sua companhia em beneficio da sociedade

    portuguesa de beneficncia.

    NOTCIA HISTRICA

    Otvia era filha do Imperador Cludio e da mais que famosa Messalina. Apenas

    chegada puberdade foi prometida em casamento a Lcio Silano; mas a

    ambio poltica e os ardis de Agripina, me de Nero, fizeram abortar este

    projeto, tornando-a a to desgraada esposa desse monstro, que de tal me foi

    digno filho. Pouco tempo depois este repudiou-a pretextando que era ela estril,

    mas realmente por causa do amor que consagrava a Popia, que efetivamente

    substituiu-a no leito nupcial e no trono de Nero. Popia, entretanto, no se

    julgava segura enquanto Otvia vivia. Querendo descartar-se dela, acusou-a, ou

    mandou que algum a acusasse de entreter relaes criminosas com um de seus

    escravos. As servas da acusada foram sujeitas a tormentos, porque recusavam

    confirmar essas falsas imputaes; mas entre as torturas proclamaro a sua

    virtude e inocncia, a ponto tal que, no sendo possvel conden-la morte,

    mandaram-na em degredo para a Campnia. To injusta condenao provocou

    tal indignao e murmrio no povo, que Nero, poltico medroso, julgou dever

    cham-la a Roma. Com a volta de Otvia, a quem o povo acolheu entre ruidosas

    manifestaes, renasceram, e mais vivamente os terrores de Popia. Atirou-se

    ela aos ps do Imperador seu esposo, e alcanou dele, por fim, que, sob diversos

    pretextos, Otvia fosse de novo afastada de Roma e em seguida assassinada.

    Mandaram, pois, a infeliz princesa degradada para uma ilha, onde viu-se

    obrigada, contando apenas vinte anos de idade, a deixar que lhe abrissem as

    veias. Apenas a viro morta, cortaram-lhe a cabea inocente que foi enviada

    sua indigna rival.

  • 2

    PERSONAGENS

    OTVIA

    POPIA

    NERO

    SNECA

    TIGELLINO

    SOLDADOS E POVO ROMANO

    A ao passa-se no palcio de Nero em Roma.

    ATO PRIMEIRO

    CENA I

    NERO, SNECA.

    SNECA Senhor do mundo inteiro, o que te falta?

    NERO Tranquilidade.

    SNECA T-la-ias, se aos outros no a tirasses.

    NERO Doce e calma seria a minha vida, se odiosos laos no me prendessem a Otvia.

    SNECA E terias por ventura de Julio Cesar sido sucessor, terias aumentado a glria e o poder herdado, se Otvia te no desse a mo de esposo? Ela foi quem te abriu caminho para o trono; e entretanto hoje morre mngua, em cruel e injusto degredo, essa mesma Otvia, que longe de ti, sabendo que abres os braos sua orgulhosa rival, msera, ainda te ama!

    NERO A princpio talvez fosse ela instrumento de minha grandeza; mais tarde, porm, tornou-se a causa de todas as minhas desgraas, e ainda o hoje, posto que repudiada. E este povo, a quem desprezo, ousa murmurar! atreve-se a queixar-

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    se de seu senhor nos mesmos lugares onde reino e domino? De hoje em diante no se dir mais em voz alta o nome de Otvia, nem se quer o murmuram baixinho lbios trmulos, que o no quero eu, Nero!

    SNECA Senhor, nem sempre julgaste indignos de ti os meus conselhos. Bem sabes como, com a arma poderosa da razo, moderei o ardor de tua impetuosa mocidade. Eu predisse que, repudiando Otvia e, mais que tudo, condenando-a a cruel desterro, chamarias sobre ti a censura, as acusaes e as injurias. O corao do povo, dizia, eu, inclina-se para Otvia; Roma inteira manifestou sua dor ao saber que havias marcado para sua residncia os campos de Plauto e a habitao de Burrho, eu dizia...

    NERO Basta. Disseste tudo isso, certo; e entretanto fizeste o que eu quis! Durante algum tempo, talvez, me ensinasses a governar, mas, a no errar, jamais o fizeste; nem o podes tu ensinar, nem pode o homem adquirir esta cincia. J basta que Roma me tenha ensinado a ser prudente por algum tempo. Enganei-me, julgando que devia desterrar esta mulher, que, pelo contrrio, eu no devera afastar de mim.

    SNECA Ests por ventura, arrependido? verdade o que acabo de ouvir? Volta Roma Otvia?

    NERO Sim.

    SNECA Finalmente tiveste dela compaixo?...

    NERO Compaixo?... verdade, tive.

    SNECA E vir ela de novo partilhar com vosso o leito e o trono?...

    NERO Dentro em pouco voltar ela ao meu palcio; e ento sabers para que volta. Oh! Sneca, tu, sbio entre os sbios; tu, que j foste meu ministro e meu guia em circunstncias mais criticas e mais melindrosas; no te mostrars hoje contrrio ao que foste outrora.

    SNECA Tens por costume pedir inutilmente conselhos quando j tomaste cruis

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    resolues. No conheo quais sejam teus pensamentos; mas tremo por Otvia ouvindo as tuas palavras.

    NERO Dize-me: tremeste por ventura naquele dia em que meu irmo caa morto, vtima de um crime necessrio? E no dia em que proferiste a sentena de minha orgulhosa me, tua cruel inimiga, tremeste por ventura?

    SNECA Que escuto?... Como ousas recordar estas cenas infames, e execrandas? No, eu no tingi minhas mos nesse sangue que era tambm teu, tu, sim; o bebeste! Calei-me, certo; calei-me obrigado. Foi criminoso meu silncio, nem poderei jamais expiar um tal crime. Louco! Acreditei que Nero ficasse farto de sangue depois de ter derramado o de sua prpria me! Hoje conheo que ali apenas comeavam as atrocidades. Quando cometes um novo crime, no sei porque, cobres-me de ddivas odiosas, de favores que me pezo na conscincia. Tu me obrigas a aceit-la e o povo, que isto presencia, diz que essas ddivas so o preo do sangue derramado. Ah! Eu t'os entrego, toma-os e deixa-me que conserve a estima de mim prprio.

    NERO Eu t'a deixo; conserva-a, se que ainda possuis. Pregas moral e virtude como homem de experincia, mas bem sabes que no convm sempre seguir seus ditames. Se querias conservar intacta a reputao, se querias conservar o corao imaculado, porque trocaste o obscuro lar paterno pelo esplendor da corte? Bem o vs; eu, que no sou estico, ensino te as regras do estoicismo, e entretanto tudo quanto sei a ti o devo. Se, pois, demorando-te por tua prpria vontade nesta corte, arriscaste a primitiva candura, se perdeste o nome de homem honrado, nome este que nunca mais se recupera, auxilia-me agora; sei que o podes. J desculpaste meus erros passados, continua. D mais branda cor aos meus atos, louva-os. A tua opinio aqui respeitada, o povo te julga menos culpado do que os outros; acredita que tens sobre mim grande influncia. Ests, enfim, to intimamente ligado minha corte, que partilhas das censuras que me so dirigidas.

    SNECA Agrada-te, bem o sei, que outrem parea mais culpado do que tu; o crime repartido pesa-te menos na conscincia. E eu inocente, como o sabes, carrego com o castigo dos teus crimes; sobre mim recaem as consequncias do modo porque reinas; sou, enfim, odiado por todos. Qual ser a nova infmia cuja execuo me reservas, para aumentar ainda...

    NERO Cumpre que destruas no corao do povo o amor que ele consagra a Otvia.

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    SNECA No se destroem facilmente as afeies de um povo, no so como as tuas, senhor; o povo no sabe fingir.

    NERO Quando preciso, o sbio muda de parecer e de linguagem; e tu s sbio. Vai, aproveitar-me-ei de teus conselhos no dia em que possa dizer que o imprio s meu. Por enquanto sou eu senhor; o teu dever executar as minhas ordens; agora sou eu o mestre e tu o discpulo; mostra-te, pois, dcil. No te ameao com a morte, bem sei que ela no te assusta; mas o nome de que ainda gozas, a considerao que te rodeia, tudo isso depende de mim. Posso destruir tudo. Cala-te, pois, e faze o que mando; vai.

    SNECA Acabo de ouvir as tuas ordens tirnicas, odiosas e sanguinrias; mas esperarei os acontecimentos quaisquer que eles possam ser: Todo o auxilio de minha parte seria intil para os teus projetos, e eu ainda mais criminoso. Pois que! Nero j no basta para derramar sangue? Quem o crera?!

    CENA II

    NERO Vai, soberbo estico, de uma vez porei termo tua vida e a esta virtude que alardeias. At hoje tenho te punido cobrindo-te de dons, mas no dia em que te houver rebaixado e reduzido condio dos mais vis e desprezveis dentre os homens, ento te darei a morte. Que vale este meu poder soberano, imenso, absoluto, quando tantas dificuldades me contrariam? Odeio Otvia, amo Popia mais do que posso diz-lo; e terei de ocultar este amor e este dio? O que no probem as leis ao mais vil de meus escravos, proibir-me-o a mim, Nero, as murmuraes do povo?

    CENA III

    NERO E POPIA.

    POPIA Poderoso senhor, por cujo amor s vivo! Porque sempre pensativo foges para longe de mim, e me deixas entregue a cruis angstias? Pois que, no ser possvel que esta minha afeio te d alguns momentos de alegria?

    NERO justamente o teu amor que me afasta de ti algumas vezes, Popia, nada mais. Sofri longo tempo, venci muitas dificuldades antes de conquistar teu corao;

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    agora devo esforar-me por conserv-lo; bem sabes que ate custa do prprio trono quero que sejas sempre minha.

    POPIA E quem poder tirar-me de teu poder se no tu mesmo? A tua vontade, um gesto teu do a lei em Roma. Em troca do meu amor deste-me o teu; podes tirar-m'o, certo, mas eu no sobreviverei a tamanha perda.

    NERO Quem poder separar-me de ti? Nem o prprio cu! Entretanto apareceu entre o povo criminosa agitao, ainda no acalmada: ousam censurar as minhas afeies, e vejo-me obrigado a prevenir...

    POPIA E que te importa a grita do povo?

    NERO Espero mostrar em breve o caso que dela fao; mas no quero deixar erguida uma s cabea dessa hidra furiosa; rolar, pelo cho a ultima em que Roma baseia sua esperana, e ao mesmo tempo cair abatida, muda, despedaada, esta plebe orgulhosa. Roma ainda no me conhece, arrancar-lhe-ei do corao seus antigos e loucos prejuzos de liberdade. Otvia a ultima descendente dos Cludios, seu nome est na boca de todos, choro a sua sorte porque me odeiam, no porque a amem: no corao do povo no h lugar para o amor; mas a plebe insolente recorda-se saudosa da fraqueza do reinado de Cludio, inepto, e suspira pela licena de que hoje no pode gozar.

    POPIA certo; Roma no sabe conservar-se calada; mas o que puderam fazer hoje os Romanos mais do que murmurar; porventura os temes?

    NERO Escolhi mal o lugar para exlio de Otvia; ameno de mais, e pouco prudente seria conserv-la ali. Est nas vizinhanas da Campnia o exrcito, onde ainda se conserva memria de Agripina. No corao dos soldados agita-se ainda o esprito de revolta; prfidos, fingem-se doidos pela sorte da filha de Cludio; criminosa esperana ainda est enraizada em seus peitos. Fiz mal em escolher para seu degredo tal lugar, e maior imprudncia seria conserv-la ali.

    POPIA Porque motivo esta mulher merece tanta solicitude? Porque no a envias para os confins do teu vasto imprio? Qual ser o degredo mais seguro? Qual a praia deserta e remota que mais longe de ti conservar esta mulher que ousa gabar-se de te ter dado o trono?

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    NERO Para que eu possa tirar-lhe a fora e o poder de ser-me nociva nenhum lugar mais prprio do que Roma, e em Roma o meu palcio.

    POPIA Que ouo? Otvia volta para Roma?

    NERO Deixa-me explicar-te o motivo...

    POPIA O que ser de mim?... Ela...

    NERO Escuta-me!...

    POPIA Entendo... adivinho tudo... serei em breve repelida, expulsa...

    NERO Escuta-me!... No para teu mal que Otvia volta a Roma; ser antes em seu dano esse regresso.

    POPIA Talvez o seja para o teu. No entanto ouve: Otvia e eu no pudemos viver juntas, nem um s momento, nem no mesmo palcio, nem na mesma cidade. Volte pois, a Roma a mulher que elevou Nero ao trono do mundo; volte para da expeli-lo. por tua causa que me aflijo e no por mim; eu estou pronta a voltar para junto do meu fiel Othon; amou-me tanto!... deve amar-me ainda; e pudesse eu recompensar to constante afeio! Mas, no, no corao de Popia no cabem dois amores, nem quer ela um corao partido, no quer partilhar com uma odiada rival o teu amor. No me seduziu o esplendor do trono, mas tu somente. Ah! ainda me seduz; o amor que tanta ventura me dava, no era o do poderoso senhor do mundo, mais sim o do meu querido Nero; se me tirares agora uma parte dessa afeio, se eu no reinar como nica soberana, ento nada quererei, cederei tudo. Ah! msera, que no possa eu arrancar de meu corao a tua imagem to facilmente como o fazes comigo!

    NERO Eu te amo, Popia, bem o sabes; prova-o tudo quanto por ti tenho feito e o que ainda tenciono fazer; mas tu...

    POPIA O que queres que eu faa? Poderei viver vendo a teu lado essa mulher que odeio? Poderei deixar de pensar em ti? Oh! indigna! que no pode, no sabe, no quer amar a Nero e ousa fingir que o ama!

  • 8

    NERO Tranquiliza-te, pe de parte os receios e os zelos; mas respeita por algum tempo ainda a minha vontade. necessrio que Otvia volte agora a Roma; j moveu os primeiros passos; amanh aqui deve chegar. Assim o exigem o teu sossego e o meu; tal a minha vontade e no estou habituado a que se oponham aos meus desgnios. Nem me satisfaz, senhora, esse amor que me ofereces, calmo e sem receios. Quem mais me teme e melhor me obedece, sabe-o, quem mais me ama.

    POPIA O receio de perder-te tornou-me por demais ousada. Mas, que maior mal me poders fazer do que privar-me do teu amor? Ah! tira-me antes a vida; menor ser meu sofrimento.

    NERO Basta, Popia, confia em meu amor, nem receies que se abale a minha constancia; mas nunca te oponhas minha vontade. Odeio, mais que tu mesma, essa mulher a quem chamas de rival. Apenas eu conseguir separ-la de seus turbulentos amigos, v-la-s cercada pelos meus guardas; no ters nela uma rival, mas antes uma vil escrava, e dentro em pouco, ou eu nada sei da arte de reinar, ou ela prpria te dar a coroa.

    ATO SEGUNDO

    CENA I

    POPIA, TIGELLINO.

    POPIA Corremos hoje o mesmo perigo, Tigellino; devemos pois procurar um mesmo asilo.

    TIGELLINO O que podes recear da parte de Otvia?

    POPIA Quanto beleza nada temo; a rainha sempre prevalecer aos olhos de Nero; temo, sim, o seu fingido amor, a sua dissimulada meiguice; temo os ardis e a eloquncia de Sneca, a grita da plebe e o remorso do prprio Nero.

    TIGELLINO Ama-te ele h tanto tempo e ainda no o conheces? Ele s sente remorsos de no ter feito maiores males. Fica certa de que, se chama Otvia a Roma, s com o fim de tirar dela completa vingana. Deixa-me despertar-lhe o dio inato

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    e profundo que em seu corao se une ao rancor que vota esposa. este o asilo que devemos buscar ante o perigo que corremos.

    POPIA Ests tranquilo, eu, porm, no me julgo segura, mas a franqueza com que falas convida-me franqueza. Bem conheo Nero, bem sei que nele o remorso nada pode; mas o medo, dize, no tem grande influncia sobre seu esprito? Quem no o viu tremulo junto da me que odiava? Amava-me ele j ento loucamente e no entanto ousou porventura dar-me a mo de esposo enquanto ela foi viva? No bastava a presena silenciosa de Burrho para o fazer tremer! Enfim o prprio Sneca, sem poder e sem influncia, no o intimida s vezes com suas palavras vs? So estes os nicos remorsos de que o julgo capaz. Ajunta a isso as murmuraes e as ameaas dos romanos...

    TIGELLINO Tudo isto s servir para arrastar Otvia ao lao onde j caram, Agripina, Burrho e tantos outros. Se desejas a morte de tua rival, deixa que novo terror aumente no coraro de Nero o medo antigo. Ele ainda no manifestou todo o sou pensamento, mas eu sei que nada h que tanto o domine como a sua pusilanimidade. Roma, pedindo o regresso de Otvia, pronunciou a sentena de morte da prpria Otvia.

    POPIA certo; mas, se ela conseguir reconquistar por um momento s a antiga influncia...

    TIGELLINO No, no o receies; Otvia no conhece o caminho que vai ter ao corao de Nero; sua virtude austera irrita o esprito do esposo; sua obedincia, seu amor, sua timidez desagradam-lhe igualmente; Nero detesta em Otvia todos estes meios de seduo que a ns tanto aproveitam. Fala, o que deverei fazer?

    POPIA Emprega toda a tua perspiccia em saber o que se passa e todo o zelo em dizer-m'o; cumpre prever tudo; tornar Otvia ainda mais desprezvel; descobrir mil meios de perd-la e lembr-los a Nero; inventar crimes de que ela nem sequer tenha idia; desenvolver toda a astucia de que s capaz; ir, vir, ocupar o esprito do imperador, engan-lo, ceg-lo e estar sempre alerta. Eis aqui o que te cumpre fazer.

    TIGELLINO Assim o farei, mas creio que os projetos de Nero j esto assentados. Fica certa de que ele no precisa de lies para exercer vinganas e bem sabes que lhe exacerba a clera quem quer mostrar que sabe tanto como ele.

  • 10

    POPIA Tudo o irrita, bem o sei; ainda h pouco o excesso de meu amor excitou-lhe o furor; j no era o amante quem falava, mas sim o feroz senhor que ordenava do alto do trono.

    TIGELLINO No o provoques jamais. Tens grande influncia sobre seu corao; mas a clera impetuosa, a embriaguez do poder e a sede feroz de vingana dominam no mais facilmente do que o faz o amor. Afasta-te daqui, esta a hora em que ele tem por costume vir falar-me; confia em mim.

    POPIA Juro-te, que, se me servires agora, ningum ter, mais do que tu, poder e influncia junto de Nero.

    CENA II

    TIGELLINO verdade que se Otvia triunfasse, a nossa desgraa seria certa; mas eu gozo da confiana de Nero. Seu dio to feroz e a inocncia de Otvia to completa, que ela no pode evitar sua triste sorte. Cumpre-me, entretanto, mostrar-me hbil; disfarar seus terrores com o nome de prudncia e dizer-lhe que a justia mais criminosa que a vingana. Senhor do mundo, tens em mim teu senhor, nico, absoluto: eu s posso despertar-te n'alma o terror ou dissip-lo. Desgraado de mim, se o medo no tivesse influncia sobre a tua alma! este o nico meio que me resta para impelir-te ao mal; e quem poderia deter teus passos e dirigir-te para o bem?

    CENA III

    NERO, TIGELLINO.

    TIGELLINO Ah! senhor, porque no chegaste mais cedo? Ouvirias ainda os soluos de uma mulher que te ama loucamente. A duvida, o receio, o amor travam luta medonha no corao sensvel e fiel de Popia. Porque assim afliges quem te adora?

    NERO Alucinada por injustos cimes, Popia desconhece a verdade; a ela s amo.

    TIGELLINO Isto mesmo acabo de dizer-lhe; mas quem poder melhor abrandar as angstias de um corao repleto de zelos do que o amante adorado? Oculta junto dela a

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    terrvel majestade que brilha em teu semblante. Um gesto, um sorriso, um olhar teu podem acalmar a tormenta que agita aquele corao. Ousei jurar-lhe em teu nome que nunca tiveste teno de abandon-la; que fora para altos fins, de mim desconhecidos, que chamaste Otvia a Roma, mas que o seu regresso no seria um mal para Popia.

    NERO Fiel interprete de meus sentimentos, disseste-lhe a verdade. J eu lhe fizera igual juramento, mais ela foi surda a meus protestos. O dia, que agora comea, no se acabar sem que o destino de Otvia esteja decidido e desta vez para sempre.

    TIGELLINO E eu espero que haver tranquilidade, se quiseres patentear ao povo quanto Otvia criminosa.

    NERO Incorreu ela no meu dio; queres maior crime? Mas, porventura preciso que eu motive a minha vontade?

    TIGELLINO Demais! Ainda no pudeste reduzir este povo mpio degradao que ele tanto merece. Conservou-se silencioso, certo, em face das fogueiras de Agripina e de Cludio; calou-se ainda ao ver a de Britnico; entretanto hoje deplora a sorte de Otvia e atreve-se a murmurar. Patenteia-lhe os crimes de Otvia e a plebe emudecer.

    NERO Nunca amei esta mulher; pelo contrrio, aborreci-a sempre; ela teve a audcia de chorar por seu irmo; vi-a obedecer cegamente cruel Agripina; mais de uma vez tem repetido o nome de seus antepassados que empunharam o cetro; cada um destes atos um crime e tanto me basta para julg-la digna de castigo. Sua sentena est lavrada! Chegue ela, e minha vontade ser feita. Roma saber que Otvia deixou de viver; so estas as contas que de minhas aes devo aos Romanos.

    TIGELLINO Senhor, tremo por ti. No prudente afrontar a plebe enfurecida. Se podes infligir a essa mulher justo castigo, porque queres que ela parea vtima de tua vontade absoluta? No fora melhor desvendar os seus maiores delitos, mostr-la ao povo criminosa como ela , enquanto a julgam inocente?

    NERO Cometeu ela porventura outros crimes... e maiores?

  • 12

    TIGELLINO Ningum ousou ainda revelar-t'os; mas deverei calar-me por mais tempo, agora que, repudiada por ti, e com razo, ela no mais tua esposa? Essa mulher indigna estava ainda em teu palcio, partilhava contigo o leito e o trono, usurpava as homenagens devidas imperatriz, e j se rebaixara mais do que o faria a mulher mais vil e criminosa; j resolvera esquecer seu ilustre sangue, sua honra, a dignidade prpria e a de seus avs, junto de um miservel citarista, para quem voltava olhares amorosos.

    NERO Que infmia! que audcia!

    TIGELLINO O escravo Eucro tocara-lhe o corao; da a calma com que suportou o repdio, o desterro, tudo! Eucro compensava-lhe amplamente a perda de Nero: companheiro inseparvel, fazia-lhe esquecer o desterro... Desterro? digo mal. Ameno refgio os seus criminosos amores encontraram na tranquila Campnia. Ali, reclinada na relva, entre flores, margem de um brando regato, ela escutava os sons suaves que a destra imbele de seu amante tirava da ctara e aos quais se casava o seu canto: ali no invejava ela as perdidas honras nem a anterior posio.

    NERO Filha de Messalina, ela no podia desmentir o sangue de que nasceu. Mas, dize, ser possvel provar o que acabas do contar-me?

    TIGELLINO Muitas de suas criadas sabem os pormenores deste caso; e os contaram quando forem interrogadas. Eu no te revelaria este segredo, se Otvia tivesse em algum tempo possudo o teu amor. Mas que digo? louco! se ele merecesse a tua afeio, ter-te-ia jamais ultrajado assim? nem se quer lhe ocorreria tal pensamento. Razes polticas, contra a tua vontade, deram-te Otvia por esposa: ela conheceu que no era digna de ti e rebaixou seu corao vil em vis amores.

    NERO Receio expor a luz infamante to obscuro crime!...

    TIGELLINO A infmia s de quem cometeu o delito.

    NERO certo.

  • 13

    TIGELLINO Tenha cada um a paga merecida; ela a de r, tu a de justiceiro, e o podes ser sem perigo.

    NERO Tens razo no que dizes; faze, pois, o que resolveste e sem demora.

    CENA IV

    NERO, TIGELLINO E SNECA.

    SNECA Senhor, j Otvia transps os umbrais de teu palcio; se infausta ou grata a notcia que te trago, no sei. Ningum quis disputar-me a preferncia em dar-te esta nova; o que me parece triste pressgio.

    NERO Vai, Tigellino, executa as minhas ordens, e tu volta pelo mesmo caminho por onde vieste; vai ao encontro de Otvia e dize-lhe que aqui estou s e que a espero tambm s.

    CENA V

    NERO assaz culpada Otvia; posso duvidar de seus crimes? Lamento s que no fosse eu o primeiro a quem ocorresse a idia de acus-la. Ser possvel que Nero precise aprender com outrem os meios de derrubar seus inimigos? Mas aproxima-se o dia em que, para livrar-me de quantos aborreo, bastar-me h fazer um gesto do alto do meu trono.

    CENA VI

    NERO, OTVIA.

    OTVIA Por entre os horrores de uma noite tenebrosa, rodeada de soldados armados, sou arrastada a este mesmo palcio, de onde, ha dois meses, fui expelida viva fora. Ser-me- lcito perguntar ao meu senhor a razo desta mudana?

    NERO Para altos fins nossos pais ligaram-nos pelo lao do casamento desde os mais tenros anos. Sempre porm, tuas palavras e tuas aes contrariam a minha vontade; tolerei tudo isto por tempo longo de mais; e ainda o suportaria, se ao

  • 14

    menos me houvesses dado real descendncia, numerosa e bela, que me servisse de consolo a tantos desgostos. Debalde o esperei: eras planta estril; o trono ficava sem herdeiros por culpa tua, e o doce nome de pai me era negado; por isso te repudiei.

    OTVIA Fizeste bem. Se certo que encontraste outra esposa, que mais feliz do que eu fui, pode dar-te numerosos filhos a quem ames e assim tornar-te alegre a vida. Outra que te ame tanto como eu, bem sei que no encontraste ainda, nem encontrars jamais. Mas que fiz eu? Opus-me por ventura tua vontade? Vendo-te nos braos de outra, chorei, certo, e choro ainda; mas ouviu algum de mim jamais palavras de censura, ou apenas foi meu pranto silencioso, meus gemidos e suspiros abafados pelo respeito?

    NERO Tens muita doura nos lbios, mas no tanta no corao; adivinha-se em tuas palavras o fel oculto; mal disfaras o dio que tens a Popia, bem como a ambiciosa recordao de pretendidos direitos.

    OTVIA Oh! pudesses esquecer, como eu esqueo, esses meus direitos assaz legtimos pois que sofro por eles tantas desgraas!... O dio e o furor brilham em teus olhares!... Msera! Bem conheo que me odeias mais do que pudera um marido odiar consorte estril. Infeliz, tanto mais te ofendi, tanto mais te amei! Mas o que te pedi eu? O que te peo hoje? apenas uma vida obscura, solitria e liberdade para chorar!...

    NERO E eu, certo de que te contentarias com essa existncia obscura, t'a havia concedido; mas depois...

    OTVIA Mas depois te arrependeste e tiveste remorsos de no me haveres tornado bastante infeliz. Quiseste que eu fosse testemunha de tuas novas afeies; quiseste tornar-me escrava de tua nova esposa, quiseste que eu fosse ludibrio do mundo e objeto de desprezo para tua corte. Aqui estou, obediente ao gesto do meu senhor; o que devo agora fazer? Ordena. Mas na tua mesma corte no me poders tornar inteiramente infeliz, se a minha desgraa te der alguma alegria. Responde-me, ests satisfeito? Reina a tranquilidade em tua alma? Entre os braos da nova esposa gozas do sono calmo que tiras aos outros? Esta Popia, a quem no privaste de um irmo, torna-te por ventura mais feliz do que eu o fiz?

    NERO Nunca soubeste avaliar o corao do senhor do mundo; sabe-o Popia.

  • 15

    OTVIA A Popia agrada o esplendor do trono, para o qual ela no nasceu; a mim agradas-me tu s. No tentes comparar o meu amor ao dela. Possui ela o teu afeto, mas s eu o merecia.

    NERO No, no podes amar-me.

    OTVIA Dize antes que o no devera; mas pelo teu no julgueis do meu corao. Bem sei que o meu nascimento me privar eternamente do teu amor; bem sei que tua imagem manchada com o sangue de meus parentes no devera ser acolhida em meu corao, mas a fora do destino obriga. E se eu me esqueo de meu irmo e de meu pai, mortos por ti, como ousas acusar-me em nome desse irmo desse pai?

    NERO O crime de que te acuso o que cometeste com Eucro vil.

    OTVIA Com Eucro!... eu?...

    NERO Sim, ele o amante digno de ti.

    OTVIA Ah! justo cu! tu o ouves?...

    NERO Houve quem ousasse acusar-te de impudico amor com ele; por isto s de novo te chamei a Roma. Prepara-te, pois, para desmentir tal acusao, ou para receber o merecido castigo.

    OTVIA Oh! quanta maldade! que horrendo trama! Onde est o meu inquo acusador?... Ai de mim! Louca, o que procuro? Nero o acusador, o juiz e o prprio algoz!

    NERO assim o teu amor! D expanso a todo o dio que tens no corao, se certo que ele ainda no transbordou todo, depois que descobri as tuas secretas infmias.

    OTVIA Ai de mim!... O que mais me resta?... No me bastava ter sido expelida do leito nupcial, do trono, do palcio, e at de minha ptria?... Oh! cu! s a minha reputao permanecia intacta; e isto me compensava todos os bens de que fui

  • 16

    privada... um dote to precioso era-me debalde invejado por aquela que j o no possui; agora esse mesmo querem roubar-me antes que me privem da vida? O que te detm, oh! Nero? No poders viver tranquilo, bem o sabes (se a tranquilidade cabe em tua alma), enquanto eu existir... Faltar-te-o porventura meios de assassinar uma mulher fraca e desarmada? Ordena que eu seja encerrada nas profundas masmorras deste palcio, funesto asilo da traio e da morte, e ali manda que me tirem a vida. Ou antes, porque com a prpria mo no me assassinas?... Minha morte no s te dar prazer, sei que ela j necessria! S ela te satisfar. J te perdoei o assassnio de meus parentes, agora te perdo de antemo o meu prprio: mata, reina, mata ainda, sempre! Conheces os sangrentos caminhos do crime... Roma est habituada a colorir os teus atos de vingana... O que podes temer? Comigo se extinguir a raa dos Cludios, e acabar assim o amor e a lembrana do povo por ela... Os deuses esto j acostumados ao fumo do teu incenso sanguinrio; pendem nos templos sinais evidentes, horrveis ofertas de cada um de teus crimes!... so estes os teus trofus; so teus triunfos ocultos assassinatos!... Baste minha morte para aplacar-te o furor... Porque cobrir-me de nodoa infamante, quando eu no fujo morte?

    NERO Para tua defesa concedo-te inteiro o dia de hoje; folgarei se no fores culpada. Nada receies do meu dio, mas sim da enormidade do crime que cometeste.

    CENA VII

    OTVIA Msera!... Nero cruel, sempre banhado em sangue, e sempre de sangue sequioso!...

    ATO TERCEIRO

    CENA I

    OTVIA, SNECA.

    OTVIA Vem, Sneca, vem, seja-me lcito ao menos chorar contigo; j no me resta outra pessoa com quem possa desafogar meus sentimentos.

    SNECA Ser possvel, senhora? Que uma falsa e infame acusao...

  • 17

    OTVIA Tudo eu esperava de Nero, mas nunca este derradeiro ultraje, que por si s excede tudo quanto tenho sofrido at agora.

    SNECA Mas, no passa de loucura acusar-te de crime to infame; a ti, modelo vivo de amor e de fidelidade, a ti to boa, to modesta, to piedosa, a ti que, no obstante, o lao que te prendia a Nero, te conservaste pura; ser possvel que manchem tua reputao? No, assim, no acontecer; eu o espero. Ainda estou vivo, eu que fui testemunha de todas as tuas virtudes...... Roma me ouvir proclamar tua inocncia enquanto me restar um sopro de vida. Qual ser o corao empedernido que de ti no ter compaixo? Ah! intil que contes teus sofrimentos, nem cont-los saberias... Eu sinto e partilho tuas dores.

    OTVIA em vo que esperas, Sneca; Nero no ficar satisfeito enquanto no houver manchado o meu nome. Tudo aqui se curva sua vontade: tu mesmo, te perderias e de balde. Ah! por ti que eu tremo. certo que defendem teu nome conhecidas virtudes. Ah! porque no acontece assim comigo! Mas sou jovem, sou mulher e cresci, fui educada no meio de uma corte corrompida... Oh! cu! E podem julgar-me r do crime vil que me imputam! Ningum acredita, ningum pode acreditar que eu tenha conservado no corao o antigo amor que consagrava a Nero. E entretanto, sabe que o meu corao espezinhado mil vezes e de mil maneiras, no sente maior dor de que a de v-lo amar outra mulher.

    SNECA Nero ainda me conserva a vida; porque o faz, no sei; ignoro porque se afasta de mim sorte igual de Burrho e de alguns outros poucos virtuosos; mas, posto que demore o momento da vingana, sei que escreveu meu nome no seu livro de morte. Eu com minhas prprias mos j teria posto fim a meus dias, se no me contivesse uma esperana (esperana ilusria!) de cham-lo novamente ao caminho do bem. Espero entretanto que me seja dado, antes de morrer, arrancar de suas mos um inocente...... Se fosses tu, se eu pudesse ao menos poupar-te a infmia...... oh! morreria feliz.

    OTVIA Ao entrar de novo neste palcio, perdi a esperana de viver mais tempo. No penses que eu no receie a morte; dbil mulher, como poderia eu ter tal coragem? Temo-a, certo, e no entanto chamo-a de todo o corao, e, entre gemidos, volto os olhos para ti, meu mestre, que to bem ensinas a morrer!

    SNECA Ah! cala-te; assim me despedaas o corao... Ai de mim!...

  • 18

    OTVIA Tu s podes salvar-me, pelo menos da infmia! E v quem me acusa... ela, Popia, quem me exprobra semelhantes amores!

    SNECA digna esposa do feroz Nero!

    OTVIA No a virtude de certo que mais agrada a Nero; o gesto desenvolto, a audcia so o jugo que a domina; a ternura, a meiguice, parecem-lhe fastidiosas... Oh! quanto no fiz por agradar-lhe! Seus menores desejos eram leis para mim, sua vontade foi-me sempre sagrada. Chorei ocultamente a morte de meu irmo, se no felicitei Nero por este crime, tambm no ousei lanar-lh'o em rosto. Chorei longe dele; em sua presena calei-me. Fingi acreditar que no fora ele quem derramara o sangue dos meus: foi tudo em vo... O meu cruel destino quer que eu lhe desagrade sempre!

    SNECA Porventura Nero poderia jamais amar-te, a ti que no s mpia nem cruel? Mas deixemos isto de parte, tranquiliza o esprito. J vem rompendo o dia. O povo, apenas souber que ests de volta, querer ver-te e dar-te provas de sua afeio; espero muito dele. Suas murmuraes eram j violentas quando partiste, nem cessaram durante a tua curta ausncia. Nero inquo, mas ainda mais cobarde; no ousa realizar todos os seus desejos porque sempre teme o povo. cruel e orgulhoso, mas no se julga ainda bem seguro no trono; vir um dia em que...

    OTVIA Que tumulto este? que escuto?

    SNECA Parece ser o povo de Roma...

    OTVIA Oh! cu, aproxima-se deste palcio...

    SNECA Ouo os gritos do povo em revolta.

    OTVIA Ai de mim! o que ter acontecido!...

    SNECA Nada receies; ns somos os nicos que estamos seguros neste palcio indigno.

  • 19

    OTVIA Cresce o tumulto. Ah! infeliz! talvez que Nero esteja em perigo... Mas que vejo?...

    SNECA Nero; ei-lo que para aqui se encaminha.

    OTVIA Oh! quanta clera brilha no seu olhar feroz! Eu tremo!...

    CENA II

    NERO, OTVIA E SNECA.

    NERO Quem s tu, quem s tu mulher prfida, cuja volta provoca perturbaes no povo de Roma e cujo nome ele ousa aclamar?... O que fazias aqui? O que planejavas com este ru, este traidor? Ests ambos em meu poder. Em vo o povo insensato reclama a tua presena. Ah! se tiver de mostrar-te plebe, espero mostrar-te morta como mereces.

    OTVIA Faze de mim, Nero, o que quiseres, mas, cr, sou inocente, no tive parte na revolta popular. Ao povo, juro, nada peo, nada dele espero; mas, j que contra minha vontade vos fiz mal, castiga meu crime involuntrio.

    NERO Antes de punir-te, quero que todos saibam quanto s criminosa.

    SNECA

    Esperas iludir o povo com mentiras to torpes?

    NERO Tu tambm, cobarde instigador de revoltas, que aqui te escondes, chefe ignorado do tumulto popular, sentirs um dia o peso da minha clera e da minha vingana.

    CENA III

    TIGELLINO, OTVIA, NERO E SNECA.

    TIGELLINO Senhor...

  • 20

    NERO Que novas trazes, Tigellino, fala.

    TIGELLINO A revolta cresce de minuto em minuto; o nico recurso agora a tua presena. O povo, apenas soube que por ordem inesperada Otvia voltara a Roma, quis imediatamente v-la. Julga, ignorante, que mudaste de opinio; h quem afirme que Otvia partilha de novo o leito imperial. Alguns correm ao Capitlio, e ali manifestam sua alegria e os votos que por ela fazem; outros coroam de louro triunfal as esttuas de Otvia, h tanto tempo abandonadas; outros, brios de prazer, derribam as esttuas de Popia; outros, enfim, mais que audazes, arrastam-nas pelas ruas, gritando, amaldioando-a. Por toda a parte ouvem-se contra Popia acusaes infames; cobrem-na de ridculo; entoam louvores a Nero, mas querem que, pelo menos, Popia seja expulsa de Roma; os mais temerrios ousam em gritos pedir a sua morte. Ouves daqui os cantos de alegria, depois as ameaas, depois as suplicas. Reina por toda a parte a agitao; ningum quer mais obedecer. Os soldados e os chefes debalde se esforam por opor um dique multido furiosa, debalde; o povo rompe as fileiras da tropa, espalha em torno a confuso; j houve mortes; cumpre no perder um momento. O que deverei fazer? O que ordenas, Senhor?

    NERO O que fazer?... Mostre-se Otvia ao povo, mostre-se j... e depois, morra.

    OTVIA Eis o meu peito inerme, fere, se o queres, contanto que minha morte te aproveite... Mostra-me moribunda ao povo revoltado; acalmar-se- logo essa criminosa alegria. S peo uma graa: sejam as minhas cinzas guardadas na mesma urna que encerra as de Britnico. O nosso tumulo servir de base inabalvel ao trono de Nero. O que te detm? tira-me a vida, e cesse o teu furor.

    SNECA Se queres, Nero, perder ao mesmo tempo o trono e a vida, o meio certo: manda assassinar Otvia.

    NERO Hei de vingar-me, quaisquer que sejam as consequncias do meu ato.

    OTVIA Oh! quero antes sofrer mil mortes do que expor Nero ao menor perigo.

    TIGELLINO O tempo urge. No ouves estes gritos furiosos? Nunca vi o povo possudo de

  • 21

    tanta clera; tanto mais devemos tem-lo, quanto mais o arrebata a alegria. Cumpre tomar j uma deciso.

    OTVIA Porque hesitas, Nero? Para aplacar o povo, deves escolher entre estes dois extremos: matar-me, ou dar-me o teu amor. Nunca pudeste fingir que me amavas; concede me ao menos a morte que desejo ardentemente. Ilude este povo crdulo, cujo furor se acalmar em breve; o povo sempre inconstante. Permite somente que eu me apresente a ele com semblante tranquilo, como se houvesse recuperado a tua afeio; saberei dissimular. Deste modo os grupos se dispersaro, cessar o tumulto, reinar de novo a ordem e ters ento tempo para desembainhar a espada e degolar a vtima.

    NERO Sim, mostrar-te-ei aos Romanos; mas antes quero saber se sou ou no senhor em Roma. Vai, Tigellino, corre ao acampamento, rene em segredo os pretorianos, cai de surpresa sobre os audaciosos rebeldes, e, por onde passares, vai espalhando a morte.

    TIGELLINO Farei como o ordenas; mas o resultado incerto. Parecer cruel punir com a morte manifestaes de alegria. E, se crescer o furor do povo? Ele inconstante, bem sabes, da alegria passa facilmente a clera; difcil resistir a uma cidade inteira. Se formos vencidos, eu e os meus soldados, quem te defender?

    NERO Tens razo... Mas, se eu ceder, puderam pensar que...

    TIGELLINO Confia em mim, senhor; no transformes um perigo momentneo em grave mal; a tua presena bastar por si s para acalmar o povo.

    NERO Eu... fico aqui para guardar Otvia. Vai tu, fala-lhe em meu nome, mostra-te em meu lugar; bem sabes o que seja o povo, perigoso contemporizar com ele. Faze o que for conveniente: dissimula promete, concede, ilude-o, mata, se for preciso; lana mo do ouro, do terror, do ferro, das palavras enganadoras, contato que triunfos. Vai, voa, e volta.

    CENA IV

    NERO, OTVIA E SNECA.

  • 22

    NERO Desgraado de ti, Sneca, se tentares sair deste palcio!... Mas afasta-te de mim... No quero ver-te. Podes fazer votos por tua felicidade; espera, deseja, mas o teu dia se aproxima.

    SNECA Eu o espero.

    CENA V

    NERO E OTVIA.

    NERO Quanto a ti, fica certa de que este o ltimo triunfo que alcanas; goza-o, pois em breve...

    OTVIA Dia vir, mas j tarde, em que conhecers melhor Otvia.

    CENA VI

    POPIA, NERO E OTVIA.

    POPIA Dize-me, Nero, colocaste-me no trono a teu lado para que de mim zombasse a plebe insolente?... Mas que vejo?... em quanto me acabrunham de ultrajes, silencioso a ficas sem me vingares junto dessa que a causa de todas as desgraas! Ser, pois, verdade que Nero o senhor do mundo, quando o povo lhe impe uma esposa?

    OTVIA Tu nica possuis o corao de Nero: que temes pois? Eu, vil prisioneira, sou apenas obstculo audcia do povo. Alegra-te, pois, pe de parte os cuidados; tuas lgrimas preciosas secaro em breve, quando vires correr em ondas o meu sangue.

    NERO Dentro em pouco Roma inteira saber da tua infmia, e conhecer quo indigno era o dolo por ela escolhido. Os ultrajes, que te atiraram s mos cheias, Popia, transformar-se-o em louvores; s homenagens, que a ela prestaram, substituir o oprbrio. OTVIA Se algum tentasse convencer-me do crime infame de que me acusam com

  • 23

    provas vs, a ti s, Popia, quisera eu por meu juiz. Tu sabes o que seja mudar a cada instante de amor, e sabes tambm qual a recompensa que merece quem de tal crime se torna r. Mas a vossos olhos bem sei que sou inocente. Porque tu, que tens tanto orgulho da tua virtude, no ousas encarar-me?

    NERO Que te atreves dizer? Respeita a esposa de teu senhor, treme...

    POPIA Deixa que ela fale; bem faz em escolher-me para juiz; onde acharia outro mais indulgente? E que melhor castigo poderia eu infligir aquela que traiu o amor de Nero, do que a perda desse amor? Haver por ventura pena mais suave? Logo que eu houver provado a existncia da paixo infame, que debalde buscas esconder, tornarei pblico teu crime; amante indigna de Eucro, quero que sejas sua esposa.

    OTVIA O escravo Eucro aqui o vu que cobre uma iniquidade mais vil do que ele prprio. Mas recuso discutir contigo, no nasci para descer to baixo, no sou, como tu, audaz...

    NERO Com quem ousas comparar-te? A chama adultera, em que ardes, pe-te abaixo da mais vil escrava; caste da alta posio onde te colocara o nascimento.

    OTVIA No me odiaras tanto, se com efeito eu tivesse decado, ou se ao menos pudesses cr-lo. Entregar-te-ei, se o quiseres, tudo quanto me pertence, mas no a minha inocncia. Cruel Nero, embora sejas criminoso, no posso deixar de amar-te, nem de envergonhar-me deste amor. oprbrio para mim, bem o sei, chamarem-me rival de Popia; mas, no o sou, esta mulher nunca te amou, no te ama, e s ambiciona a tua posio, o teu trono, o esplendor que o cerca.

    NERO Prfida! J...

    OTVIA Quanto a ti, quando comecei a amar-te, no eras o que hoje s; tinhas nascido talvez para o bem. Jamais na tua infncia deste prova de ndole perversa. Eis aqui a mulher que envenenou-te a alma e o corao; ela foi quem perverteu a tua inteligncia; ela, sim ela, quem te ensinou o sabor do sangue; eis aqui o gnio mo de Roma. De mim no falo, que nada valem meus males, comparados com os da ptria; mas tu tingiste de sangue as guas do Tibre; meu irmo, tua me...

  • 24

    NERO Cala-te! cala-te! ou eu...

    POPIA Merece ela porventura a tua clera, senhor? O ultraje sempre meio de defesa de que lana mo o ru. Se ela me houvesse ofendido, se lhe pudesses dar credito, ento suas palavras teriam peso para mim. Que disse ela? Que no te amo? Bem sabes...

    OTVIA Melhor que ele o sabes tu; Nero s o saber no dia em que perder o imprio; ento te conhecer qual s. Ah! porque no trono (causa nica do dio que me vota Nero) porque no trono tive eu o bero! por que no descendo de famlia obscura? Seria ento menos suspeita e menos odiosa.

    NERO Manos odiosa? Sempre o foste, e de dia em dia mais te tornas; agora, porm, s-lo-s por pouco tempo.

    POPIA Se no posso dizer-me descendente de famlia real, nasci porventura de sangue vil? E, quando o fosse, no me bastara no ser filha de Messalina?

    OTVIA Reinavam meus pais, a isto deve-se o serem de todos conhecidos pequenos erros que cometeram. Mas, quem soube jamais o que fizeram vossos avs obscuros e ignorados? Ainda, porm, que me ousem comparar a ti, haver quem possa acusar Otvia de ter sido de muitos esposa?... Fui porventura rejeitada por um Rufo, por um Othon?

    NERO

    Em breve pertencers morte! S me resta fixar a espcie de suplicio que te reservo, no faas que eu escolha dentre eles o mais horrvel. Retira-te, encerra-te em teus aposentos. Vai, no quero ouvir por mais tempo a tua voz.

    CENA VII

    NERO E POPIA.

    NERO Popia, conhece melhor a Nero e a ti mesma. Inda que seja preciso incendiar Roma e afog-la em sangue; inda que tenha de nela sepultar-me com meu trono, no mais, t'o juro, sers ultrajada por causa de Otvia, nem haver fora que a arranque do meu poder. Tranquiliza-te e confia em mim.

  • 25

    POPIA Eu s receio morrer sem ser tua esposa.

    NERO Oh! cala-te, o criminoso levantamento do povo se aplacar to rapidamente quo rpido se manifestou. Eu, do meu lado, vou preparar-me. Fica tranquila, dentro em pouco me vers voltar, vingado o ultraje que ousaram fazer-te.

    ATO QUARTO

    CENA I

    POPIA E SNECA.

    POPIA Que me queres?

    SNECA Desculpa-me se te vim importunar; mas talvez para prestar-te um servio.

    POPIA Donde te vem to veemente desejo de me ser til? Fostes alguma vez meu amigo? s mesmo neste momento? Que outro motivo, seno o desejo de molestar-me, te pode fazer proceder deste modo?

    SNECA Certamente, eu no desejaria prestar-te um servio, se a minha vinda aqui no devesse ser til a Otvia. A compaixo, que essa mulher inocente e ilustre me inspira, o amor da justia e o desgosto profundo de uma vida importuna e vergonhosa obrigam-me a falar. Teu prprio interesse o que unicamente te deve forar a ouvir-me.

    POPIA Eu te ouo. O que tens a dizer-me?

    SNECA Que breve perders a afeio de Nero, se o povo continuar a odiar-te. Digo-te a verdade; bem sabes que conheo Nero, os Romanos, o sculo em que vivemos e a ti mesma, Popia.

    POPIA Conheces tudo, mas no te conheces a ti.

  • 26

    SNECA Quando me virem morrer, saberam que eu bem me conhecia. Ouve-me no entanto, ouve-me, eu te peo. Desejando com tanto ardor a morte de Otvia, preparas a tua prpria.

    Os Romanos s a ti atribuem as desgraas de Otvia e seu desterro; se uma nova infmia, se um castigo mais brbaro lhe for imposto, tu sers ainda aos olhos do povo a nica culpada.

    por isto que cresce o dio j grande que lhe inspiras, e suas murmuraes tornam-se cada vez mais violentas. O povo amotinou-se, e ainda no foi dispersado; demos porm que o seja; no poder ele amanh reerguer-se mais terrvel? Popia, treme por ti mesma; Nero sacrificar tudo prpria segurana. Pequenos obstculos muitas vezes estimulam o amor, mas um obstculo invencvel bem depressa o faz calar em um corao incapaz de nobres sentimentos. No te iludas: Nero presa mais o seu trono do que o teu amor, e desgraada de ti se Roma o obrigar a escolher entre os dois.

    POPIA E eu preso mais Nero do que o seu trono. Se eu pensasse que a minha presena, que a minha vida, eram para ele motivo de perigo... Mas, que vans palavras dizes? No Nero senhor absoluto em Roma? E deve porventura curvar-se ante a plebe vil, que sem murmurar obedecia a Tibrio e a Caio?

    SNECA Teme o furor dessa mesma plebe, se no conseguires destruir os terrores de Nero. Ousa, porm, livra-o do nico freio que ainda o contm; sers a primeira a experimentar os efeitos de to imprudente passo. Intil ter sido todo o sangue derramado por ocasio de vossas bodas fatais, se a esse sangue ajuntares o de Otvia. Lembra-te de Agripina; ela amava seu brbaro filho, mas jamais quis livr-lo do terror que lhe causava seu irmo; no entanto a ardilosa crueldade de Nero prevaleceu; o desgraado irmo morreu envenenado; foram baldados os ardis da me, igual sorte lhe coube em breve. Desde ento temos visto Nero, de dia em dia mais feroz, passar de um crime a outro crime. Otvia a nica que resta como freio desse monstro, Otvia, dolo de Roma, terror do prprio Nero. Faze que ela desaparea, deixa que ele te goze tranquilamente e em breve o vers saciado. Presa-te hoje, porque conquistou-te custa de muitos crimes, mas se a tua existncia for para ele motivo de perigo, ainda que passageiro, vers como morre o amor que te consagra. Ento prepara-te para receber uma dessas recompensas de que o monstro prodigo; a morte mais cruel ele a reserva para aqueles que mais o amam.

    POPIA Nero se aproxima; continua.

  • 27

    SNECA No penses que eu hesite em faz-lo.

    CENA II

    NERO, POPIA E SNECA.

    NERO Prfido, ousaste infringir as minhas ordens?

    POPIA Vem senhor, vem ouvi-lo.

    NERO Ouvir, o que? Dentro em pouco ser ele quem ouvir a resposta que eu vou dar ao povo. Oh raiva! O tumulto ainda no cessou, as suplicas no abrandam o furor do povo, ser preciso empregar o ferro e abrir caminho por entre a massa popular. Tranquiliza-te, Popia, amanh tuas esttuas estaro de novo levantadas sobre seus pedestais, mas as de outros, manchadas de sangue, seram arrastadas pelo lodo das ruas.

    POPIA Seja qual for o resultado de tudo isto, cumpre que Roma saiba por ti que no fui eu quem pediu esse sangue, como satisfao das afrontas que me foram feitas, posto que me magoassem profundamente. O povo arde em desejos de poder imputar-me tal crueldade; o prprio Sneca atreve-se a supor em mim essas intenes, bem que no esteja disso convencido. Bem o sabes tu, minha nica divindade, bem sabes que s pedi o desterro de Otvia. Eu no podia ver a meu lado aquela que, sem o merecer, gozara antes de mim do amor de Nero. Mas, satisfeita por v-la longe, pensei que era castigo digno de seus crimes perder a tua afeio. Tal era a pena que...

    NERO Ah! deixa que fale Sneca e que murmure o povo. Roma conhecer hoje mesmo quem era o seu dolo.

    SNECA Cautela, Nero! mais fcil intimidar Roma do que iludi-la; mais de uma vez o tem experimentado.

    NERO certo que mais de uma vez serviste-me de instrumento para iludi-la; eras para isso mais hbil do que eu.

  • 28

    SNECA Fui culpado, no o nego, mas pertencia corte de Nero.

    NERO Vil escravo!

    SNECA Fui, certo, vil, enquanto me conservei em silncio; mas chegou o dia em que devo erguer a voz livre e dizer-te o que ainda no ouviste. Ser isto pequena compensao para meus erros, mas a morte nestas circunstncias justificar-me-, talvez, aos olhos da posteridade.

    NERO Ters, prometo, na histria o nome que mereces.

    SNECA Enquanto eu ouvir os clamores do povo, enquanto poder abrandar pelo terror a tua crueldade, hs de ouvir-me; apraz-me irritar-te, obrigar-te a ouvir a verdade, antes que caia morto, vtima tua: se no me deres antes a morte, juro-te que no a dars a Otvia. Eu posso novamente excitar o povo, despertar-lhe ainda o furor mal aplacado e torn-lo mais terrvel. Posso revelar-lhe nossos crimes comuns e chamar sobre tua cabea perigos mais srios do que imaginas. Fui conselheiro de Nero, e meu corao, como o dele, tornou-se empedernido. Rebaixei-me at acreditar, ou antes, a fingir que acreditava que eram culpados Britnico, por ter perdido o trono, Agripina por o haver dado, Plauto e Sila por terem sido julgados dignos dele, e Burrho por t'o haver conservado mais de uma vez. Eu sou, bem o sei, mais criminoso que eles todos; e, quer me conserves a vida, quer m'a tires, di-lo-ei a quem quiser ouvir-me. Sacia em mim o teu furor; podes faz-lo impune; mas treme, se assassinares Otvia; lembra-te que seu sangue cair sobre tua cabea. Eis quanto queria dizer-te; agora, se o queres, d-me em resposta a morte.

    CENA III

    NERO, POPEA.

    POPIA Senhor, abranda o teu furor...

    NERO Vai, em breve expiars as palavras que proferiste. Oh! que audcia! Quando no me cercam os meus guardas, sou eu por ventura o mais fraco dos homens? E por toda a parte me prendem motivos vrios! Vejo-me forado a matar uns aps outros, aqueles que quisera ver mortos, ao mesmo tempo, no mesmo instante!...

  • 29

    POPIA Ah! quantos golpes me ferem o corao! Quanto me indigno contra mim prpria! Eu, s, sou a causa criminosa de todos os teus tormentos.

    NERO Tanto mais cara ficas sendo para mim, quanto mais difcil se torna a tua posse.

    POPIA Chegou enfim o momento; tempo, Nero, que eu lance mo de um meio violento, e que s de mim depende. No esperes que este povo audacioso se tranquilize enquanto eu estiver junto de ti. Sim, Roma despreza a prole ilustre que breve darei a Nero. Mais vale para ela que o poder imperial pertena um dia descendncia infame de um vil escravo. Posto que eu no seja se no o pretexto de uma revolta popular, a que outra causa deu nascimento, estou resolvida... Sim, devo, quero...

    NERO Ah! Cala-te! Posso ainda ganhar tempo, como j o fiz. Que receias? Havemos de triunfar, espera...

    POPIA Ah! Permite que, se eu no expirar agora a teus ps, diga-te um eterno adeus...

    NERO Oh! que dizes? Ergue-te! eu deixar-te!... nunca.

    POPIA De que te serve dissimular? Desde que Otvia chegou, as vociferaes do povo encheram-te de susto; sua audcia tem ido em constante aumento, e o terror que sentes...

    NERO Aterrado?... eu?

    POPIA Bem sei que o teu corao inabalvel persiste em seus projetos de vingana; os meios, porm, so duvidosos, e no entanto continuas exposto a multiplicadas afrontas. Ouviste as palavras insensatas e injuriosas de Sneca; bem vs que...

    NERO Aterrado?... eu?

    POPIA Sim, por minha causa. Deixa que suba ao trono aquela a quem o povo quer ver no trono, j que o povo o rbitro de teu corao. Empunhe embora Otvia o

  • 30

    cetro, que importa? mas que partilhe de novo o teu leito, que possua de novo o teu amor! oh! quanto sou desgraada!... S assim poders ter paz e segurana.

    NERO Cede s suplicas do esposo, ou respeita as ordens de teu senhor. Para a imensa clera que ferve em meu corao, para a grande vingana que quero tomar, os meios, bem o sei, so por demais lentos, mas a lentido no prejudica a vingana.

    POPIA Cr-me, para que te salves, para que ganhes tempo cumpre que eu parta; s a minha ausncia pode ser til neste momento. Queres que me forcem a partir, enquanto que agora o posso fazer voluntariamente? O povo ameaa obrigar-me a isso, e esta a menos terrvel de suas ameaas; pretende dar a Otvia novo esposo e que este com ela reine.

    NERO No prossigas, que mais provocas a minha clera.

    POPIA Ainda quando por algum tempo fiques vencedor de Otvia e do povo romano, crescer o dio que inspiras e ento, quem sabe se tu prprio no acusars a desgraada Popia? Quem sabe se, levado pelo arrependimento no trocars por dio a afeio que hoje me consagras? Oh cu! S este pensamento gela-me o sangue. Ah! deixa que eu morra longe de li; ao menos baixarei ao tumulo possuindo todo o teu amor...

    NERO Basta!... Basta!... J a minha raiva transborda; no penses mais em deixar-me... Roma, o mundo inteiro, o prprio cu debalde se oporo a que sejas minha. Nero o jura.

    CENA IV

    TIGELLINO, NERO E POPEA.

    TIGELLINO Viva Nero!

    NERO Dispersaste o povo? Esmagaste-o? Sou senhor em Roma? Pois que! voltas sem que venha tinta de sangue a tua espada?

    TIGELLINO Ainda no chegou a hora em que convm derramar sangue, mas est prxima.

  • 31

    Entretanto cumpre usar de astucia; mandei espalhar por entre o povo falsos boatos; ora dizia-se que estavas disposto a chamar para junto de ti Otvia, se ela pudesse justificar-se dos crimes de que acusada; ora que as afrontas insensatas de que tem sido vtima Popia, indignaram nobre corao da prpria Otvia, que volta a Roma para restabelecer a ordem e a tranquilidade, e no para dar causa a tumultos populares.

    POPIA E a plebe ignara julga que eu preciso da compaixo de Otvia?

    NERO Sempre a astucia, sempre, e o ferro nunca?

    TIGELLINO O povo aceita como verdade ainda mesmo o que inverossmil. Ou fatigado, ou convencido por esses boatos, abrandou a criminosa alegria que o transportava. Mas j vai caindo o dia, e a noite ver bem diversos acontecimentos. J em segredo se renem os pretorianos; j muitas cabeas ilustres esto designadas para o desterro. O sol de amanh alumiar cenas de sangue, e, quando descambar, reinar o silncio. Mas se queres que amanh cesse o tumulto, que falsa alegria passageira sucedam longas e verdadeiras dores, torna evidentes os graves crimes que se atribuem a Otvia; se assim no fizeres, jamais tocars o almejado fim. No podes assassin-los a todos...

    NERO Ah! No posso!...

    TIGELLINO Mas podes a todos iludir. Ser esta a ultima vez em que matana preceda a astucia.

    NERO Vai, pois, e torna mais graves as acusaes contra Otvia; dela tiraremos, Popia, completa vingana. Oh! breve, eu espero, raiar o dia em que para saciar meus dios eu no precise de socorro estranho.

    ATO QUINTO

    CENA I

    OTVIA Calou-se enfim o povo: cessou o tumulto; chega a noite e com ela renasce silncio de morte. Aqui devo esperar o meu destino; assim o manda o meu senhor. Mas, enquanto neste lugar solitrio choro, Nero o que far? Comea a

  • 32

    noite por vergonhosas orgias. Julga-se, pois, em segurana? J? To cedo? Assim entretanto! To depressa se assusta, quo depressa se tranquiliza, e nunca o preocupa o perigo remoto. Ah! que no seja to grande erro a causa de sua perda! pois, em meio de prazeres impuros, da lascvia, da embriaguez, junto da mesa do banquete, que ele me prepara (no posso mais iludir-me!) horrvel morte! Foi tambm em meio de um festim noturno que vi cair morto meu irmo; foi tambm mesa do banquete que se traou em letras de sangue a sentena de morte de Agripina. As primeiras iguarias, que devem ser servidas nas ceias alegres de Nero, so os membros ainda palpitantes de seus parentes. Mas, vai correndo o tempo e ningum chega... de nada sei... O prprio Sneca abandonar-me-ia? Ah! talvez tenha j deixado de existir... Oh! cu! o nico que de mim se compadecia... Nero, sem duvida, j nele saciou o seu furor... Mas... que vejo? oh! alegria! ei-lo, para aqui se encaminha.

    CENA II

    OTVIA, SNECA.

    OTVIA Sneca, ainda vives? Vem, tu que s para mim mais do que um pai!... Mas, que tens? h menos tristeza em teu semblante... que novas me trazes?

    SNECA Folga, Otvia, no puderam manchar a tua inocncia! Tuas virtudes, com seus celestes raios, inflamam os coraes mais baixos e servis. Entre martrios, sofrendo os mais brbaros tormentos, tuas servas, unnimes, negaram teus supostos crimes.

    Mrcia, mais que todas, tornou-se digna de admirao! com firme semblante, em atitude viril, livre (envergonhando-nos a todos ns, cobardes escravos) ela, intrpida, encarava Nero; e, fitando ora em Tigellino, ora em Nero, seu olhar altivo, chamava-os vis caluniadores; e arrebatada por generosa clera, insensvel s torturas, entoava um hino solene glorificando a tua virtude; por fim caiu exalando o ultimo suspiro!

    OTVIA Infeliz! era digna de melhor destino! Mas, para que serve tudo isto? Haver sangue que baste para resgatar minha vida?

    SNECA Agora, mais do que nunca, Nero hesitar em derramar teu sangue! Saste coberta de glria e de honra, da cilada em que o monstro julgara que encontrarias a infmia e a morte! Agora, Nero, soltando imprecaes horrendas, vota a cabea aos numes infernais; ora pronuncia palavras ferozes,

  • 33

    mas sinceras, que atestam a tua inocncia; ora jura que mais vale lanar mo das torturas, do suplicio, do ferro que de calnias compradas a peso de ouro. Conta a todos as promessas infames que lhe fizera Tigellino; os prprios algozes brbaros, que o rodam, tomados de desusado horror, ouvem-no assombrados e imveis. Vim correndo trazer-te estas gratas notcias.

    OTVIA Ah! v quem para aqui se encaminha, v e espera ainda!...

    SNECA Oh! cu!

    CENA III

    TIGELLINO, OTVIA E SNECA.

    TIGELLINO O teu senhor a ti me envia.

    OTVIA Ah! porque ao menos no me trazes a morte? Agora que a minha inocncia est por todos reconhecida, grato me seria morrer.

    TIGELLINO Teu senhor no cr ainda nesta inocncia; para te justificares no te bastava mandar envenenar Eucro e todas as criadas, tuas cmplices, para que no pudessem elas resistir s torturas; poupaste-lhes o suplicio, mas ao mesmo tempo te privaste dos meios de defesa.

    OTVIA Oh! cu! que nova calnia...

    TIGELLINO Doravante Nero no quer que te acusem seno de crimes patentes. Nova e mais grave acusao se dirige contra ti, e no foi no meio das torturas, no constrangido, mas sim em plena liberdade, que o teu cmplice te denunciou.

    OTVIA Que cmplice? fala.

    TIGELLINO Aniceto.

    SNECA O algoz de Agripina!

  • 34

    OTVIA Que ouo!

    TIGELLINO Aquele mesmo que salvou outrora Nero de um grande perigo, ento era ele fiel a seu senhor; tu o arrastaste traio; agora, arrependido, foi ele o primeiro a denunciar-te; revelou todo o plano, mas nem por isto ser menor o castigo que o espera.

    OTVIA Oh! que miservel mentira!...

    TIGELLINO No te prometeu ele que a um sinal teu se levantaria com o exrcito que comanda em Micena? E preciso dizer quais foram as condies?

    OTVIA Ah! deixa-me. Oh! nao celerada! Oh! sculo de horror!

    TIGELLINO Nero ordena que te defendas dos crimes de que te acusam, de teus criminosos amores, da rebelio a que arrastaste seus generais, das injurias audazes, de tantas ciladas indignas que em vo armaste a Popia e do levantamento do povo; defende-te ou confessa a tua culpa; tens para isto todo o dia que comea.

    OTVIA tempo de mais. Volta a ter com ele e pede lhe que venha aqui com Popia. S a eles quero revelar todos os meus crimes; nada mais peo; vai, quero que Popia assista alegre minha humilhao, eu os espero.

    CENA IV

    OTVIA E SNECA.

    SNECA Que queres tu fazer?

    OTVIA Morrer em sua presena.

    SNECA Que dizes?... Ah! ele no o permitir, se vir que o desejas com tanto ardor.

    OTVIA isto porventura uma graa que peo a Nero? Tenho outro favor a suplicar-lhe e espero...

  • 35

    SNECA Pensava conhecer Nero, mas confesso que estou admirado de tanto horror; mostra-se ele sempre mais cruel do que se imagina.

    OTVIA Sneca, tu foste o escolhido por mim para auxiliar-me a efetuar a resoluo que tomei. Se me estimas, se me amas, se te compadeces de minha sorte, poders hoje provar-mo. J me ensinaste a trilhar o caminho da virtude e da honra; agora que minha morte tornou-se necessria, ensina-me a morrer.

    SNECA Oh! Cu! Que escuto?... Deve por ventura a morte ser inspirada por insano mpeto d'alma?

    OTVIA E julgas-me tu to vil que no possa tomar inabalvel resoluo? No a morte agora para mim o menor dos males que me espera? No o meu nico recurso? Responde! Ah! tu te calas...

    SNECA Oh! dia horrvel!

    OTVIA E-ia pois, responde; resta-me outra cousa a fazer?

    SNECA Assim me partes o corao; mas posso ser cruel a ponto de...

    OTVIA A tua cincia pois to enganadora? Podes ser cruel a ponto de deixar-me presa de uma rival feroz, para quem pouco valer a minha morte, se com a perda da vida no for tambm a da reputao? Podes ser cruel a ponto de deixar-me exposta s calnias dos malvados, ira louca e insacivel de um monstro como Nero?

    SNECA Oh! dia infausto!... porque vivi at este momento?...

    OTVIA Mas o que te detm?... O que temes?... Conservas ainda alguma esperana?

    SNECA Quem sabe?...

    OTVIA Menos do que qualquer outro o esperas, bem conheces a Nero; ests resolvido

  • 36

    (no m'o negas de certo), a evitar seu furor por meio de uma morte voluntaria. Julgas acaso menos firme do que a tua a minha resoluo? E dizes que me amas! Devo tremer, de certo, enquanto este misero corpo servir de abrigo a minha alma. A quantas afrontas no poderei ficar exposta? E, se aterrada pelas ameaas eu sucumbisse! Se porventura no meio dos suplcios eu deixasse cair dos lbios a mentirosa confisso de um crime que no cometi, de um pensamento que nunca tive!... Habituado desde longo tempo a encarar a morte, tu confias em ti mesmo; eu no, sou moa ainda, meu nimo vacila, meus membros so delicados, e mal resistirei ameaa de morte cruel e prematura. Posso facilmente abandonar a vida, mas no tenho foras para esperar longo tempo a morte.

    SNECA Quanto sou infeliz! Esperava salvar-te dando em troca os poucos dias que me restam. Queria revelar ao povo os ardis infames, horrveis do criminoso Nero... Foi em vo que conservei a vida at hoje. O povo conserva-se mudo, e apenas escuta a voz do medo. Nem posso mais sair deste horrvel palcio... Oh! Cu! quem poder lutar contra um senhor mpio, se, como ele, mpio no for?

    OTVIA Choras?... Eia, pois, da infmia e do martrio salva-me; d-me a morte, pois que, bem o vs, so ilusrias todas as esperanas. Salva-me por compaixo.

    SNECA Ainda quando o quisesse... Em to breve espao... como o poderia fazer? No trago armas comigo, e Nero em breve aqui estar.

    OTVIA Trazes sempre contigo um veneno subtil; o nico refugio dos homens justos nesta corte infame.

    SNECA

    Eu!... veneno?...

    OTVIA Sim, tu mesmo m'o disseste outrora, quando me confiavas os mais secretos sentimentos do teu corao atribulado, como o faria um pai filha querida. Lembra-te que muitas vezes choramos juntos. Ah! recusas!... Elevar-me-ei acima de mim mesma; a necessidade torna animosos os mais fracos. Nero em breve aqui estar; cinta traz ele sempre a espada; tirar-lh'a-ei e com ela traspassarei o corao. Talvez meu brao dbil sirva mal a minha coragem, mas farei o que digo. Se o golpe no me matar, Nero me acusar de ter querido assassin-lo e ento serei condenada a sofrer inauditos suplcios.

  • 37

    SNECA Ah! senhora, porque assim me dilaceras o corao!... Eu quisera... Mas no... Ests iludida, no trago veneno.

    OTVIA E no trazes sempre contigo um anel? Ei-lo, este, eu o quero.

    SNECA Ah! deixa-me...

    OTVIA Debalde te esforas... agora meu! Sei como devo empreg-lo; sei que ele me dar morte suave e rpida.

    SNECA O cu testemunha... Ah! restitui-me o anel... Se um outro meio houvesse...

    OTVIA No, este o nico... Vs, ei-lo aberto... j sorvi o p mortal que ele encerrava.

    SNECA Ah! quanto sou desgraado!

    OTVIA Os deuses te recompensaro pela ddiva preciosa e necessria que me fizeste... Nero se aproxima... Vem, oh morte, apressa-te, salva-me.

    CENA V

    NERO, POPIA, TIGELLINO, OTVIA E SNECA.

    NERO Causa funesta de todos os meus males, quem poder agora arrancar-te de minhas mos? Quem por ti clamar agora? Onde est o povo? Tiveste razo, o nico partido que te restava era te mostrares tal qual s, revelar a Roma e ao mundo inteiro todos os teus crimes, e assim justificar perante o meu povo a morte que mereceste pelas tuas infmias.

    SNECA J no tenho remorsos; era oportuno!

    OTVIA Ests, Nero, completamente justificado. Folga, pois; eu prpria j castiguei em mim o crime de ter sido tua esposa, de te haver amado.

  • 38

    NERO Tu prpria?... Como?... Que fizeste.

    OTVIA Cruel veneno circula j era minhas veias.

    NERO Quem t'o deu?

    POPIA Oh! Nero, agora s a mim pertences!

    NERO Quem te deu o veneno?... Mentes.

    TIGELLINO No a creias, senhor, guardas severos...

    SNECA Os guardas podem ser iludidos, e os teus o foram... Aos justos reservam os deuses sempre um refgio.

    OTVIA Em breve me vers cadver... Foi este o homem compassivo que me forneceu o veneno, ou antes, eu de suas mos violentamente o tirei. Se por isso o punires, apenas te antecipars aos seus desejos; no te oculto, pois, o que ele fez por mim... Olha, sob esta pedra estava oculto o veneno. No dia do nosso infausto himeneu deveras ter me dado anel semelhante a este, em penhor de tua afeio.

    NERO Bem conheo que este ultimo e horrvel trama foi urdido com o fim de tornar-me odioso ao povo romano. Homem perverso, tu que o plano concebeste, em breve...

    POPIA Escapaste ao suplicio que te esperava, Otvia, mas debalde esperas escapar infmia!

    OTVIA E tu esperas porventura que eu desa at responder-te? Escuta, Nero, minhas ultimas palavras... Cr no que te digo.... Estou chegada ao momento fatal em que desaparece todo o temor, em que intil o fingimento; e eu nunca te enganei... morro, e no Sneca quem me d a morte, mas sim tu, Nero, tu s; posto que no m'o desses, teu o veneno que me consome a vida. No penses que te acuso, mas deveras ter-me dado a morte quando comecei a aborrecer-

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    te; fora menos cruel matar-me ento do que preferir-me outra esposa, que, embora o quisesse, no poderia amar-te... mas tudo te perdo; perdoa-me tambm tu; meu crime nico consiste em, adiantando de algumas horas o momento de minha morte, tirar-te o prazer de uma vingana completa. Eu podia tudo sacrificar-te, Nero, exceto minha honra, podia tudo suportar menos a infmia... de minha morte, espero, no resultar para ti perigo. teu o trono, goza-o... possas nele encontrar a paz; juro-te... que jamais minha sombra.... vir noite... junto de teu leito ensanguentado... perturbar-te o sono... talvez um dia... conheas melhor... aquela mulher...

    NERO Quanto mais a conheo, mais a estimo, e juro am-la sempre!

    SNECA Com estas palavras, revolves-lhe o punhal na ferida... ela expira!...

    POPIA Vem, abandonemos estes lugares funestos.

    NERO Vamos, sim, e saiba Roma inteira e saiba o exrcito que no fui eu quem deu morte a Otvia. Saibam ao mesmo tempo o crime e a morte de Sneca.

    CENA VI

    SNECA Vai, eu prevenirei a tua vingana, mas os sculos vindouros, inacessveis ao temor e lisonja sabero toda a verdade, sabero quem foi o assassino de Otvia.

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