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    Camilo Castelo Branco

    Novelas do Minho

    Publicados originalmente de 1875 a 1877

    Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco

    (1825 1890)

    Projeto Livro Livre

    Livro 174

    Poeteiro Editor DigitalSo Paulo - 2014

    www.poeteiro.com

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    Projeto Livro Livre

    O Projeto Livro Livre uma iniciativa queprope o compartilhamento, de forma livre e

    gratuita, de obras literrias j em domnio p!blicoou que tenham a sua divulga"#o devidamenteautori$ada, especialmente o livro em seu formato%igital&

    'o (rasil, segundo a Lei n) *&+-, no seu artigo ., os direitos patrimoniais doautor perduram por setenta anos contados de / de janeiro do ano subsequenteao de seu falecimento& O mesmo se observa em Portugal& 0egundo o 12digo dos%ireitos de 3utor e dos %ireitos 1one4os, em seu captulo 56 e artigo 7), o

    direito de autor caduca, na falta de disposi"#o especial, 8- anos ap2s a mortedo criador intelectual, mesmo que a obra s2 tenha sido publicada ou divulgadapostumamente&

    O nosso Projeto, que tem por !nico e e4clusivo objetivo colaborar em prol dadivulga"#o do bom conhecimento na 5nternet, busca assim n#o violar nenhumdireito autoral& 9odavia, caso seja encontrado algum livro que, por algumara$#o, esteja ferindo os direitos do autor, pedimos a gentile$a que nos informe,a fim de que seja devidamente suprimido de nosso acervo&

    :speramos um dia, quem sabe, que as leis que regem os direitos do autor sejamrepensadas e reformuladas, tornando a prote"#o da propriedade intelectualuma ferramenta para promover o conhecimento, em ve$ de um temvel inibidorao livre acesso aos bens culturais& 3ssim esperamos;

    3t l, daremos nossa pequena contribui"#o para o desenvolvimento daeduca"#o e da cultura, mediante o compartilhamento livre e gratuito de obrassob domnio p!blico, como esta, do escritor portugu isso;

    5ba [email protected]

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    BIOGRAFIA

    Camilo Castelo Branco nasceu em Lisboa, no Largo do Carmo, a 16 de Maro de

    1825. Oriundo de uma famlia da aristocracia de ro!ncia com distanteascend"ncia crist#$no!a, era fil%o de Manuel &oa'uim Botel%o Castelo Branco,nascido na casa dos Correia Botel%o em (#o )inis, *ila +eal, a 1 de -gosto de18, e 'ue te!e uma !ida errante entre *ila +eal, *iseu e Lisboa, onde faleceua 22 de )eembro de 18/0, tomado de amores or &acinta +osa do srito(anto erreira.

    Camilo foi assim erfil%ado or seu ai em 182/, como 3fil%o de m#e inc4gnita.icou 4rf#o de m#e 'uando tin%a um ano de idade e de ai aos de anos, o 'uel%e criou um carter de eterna insatisfa#o com a !ida. oi recol%ido or uma tiade *ila +eal e, deois, or uma irm# mais !el%a, Carolina +ita Botel%o CasteloBranco, nascida em Lisboa, (ocorro, a 27 de Maro de 1821, em *ilarin%o de(amard#, em 18/, recebendo uma educa#o irregular atra!9s de dois :adresde ro!ncia.

    ;a adolesc"ncia, formou$se lendo os clssicos ortugueses e latinos e literaturaeclesistica e contatando a !ida ao ar li!re transmontana.

    Com aenas 16 anos

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    )e!ido a esta desa!ena, 9 esancado elo 3Ol%os$de$Boi, caanga do>o!ernador Ci!il.

    -s suas irre!erentes corresond"ncias Aornalsticas !aleram$l%e, em 1878, no!a

    agress#o a cargo de Caadores.

    Camilo abandona :atrcia nesse mesmo ano, fugindo ara casa da irm#,residente agora em Co!as do )ouro.

    Eenta ent#o, no :orto, o curso de Medicina, 'ue n#o conclui, otando deoisor )ireito. - artir de 1878, fa uma !ida de bo"mia releta de ai@Fes,reartindo o seu temo entre os caf9s e os salFes burgueses e dedicando$seentretanto ao Aornalismo. m 1850, toma arte na ol"mica entre -le@andreGerculano e o clero, ublicando o o?sculo O Clero e o (r. -le@andre Gerculano,

    defesa 'ue desagradou a Gerculano.

    -ai@ona$se or -na -ugusta *ieira :lcido e, 'uando esta se casa, em 1850,tem uma crise de misticismo, c%egando a fre'uentar o seminrio, 'ue abandonaem 1852.

    -na :lcido tornara$se mul%er do negociante Manuel :in%eiro -l!es, umbrasileiro 'ue o insira como ersonagem em algumas das suas no!elas, muitas!ees com carter dereciati!o. Camilo sedu e rata -na :lcido. )eois de

    algum temo a monte, s#o caturados e Aulgados elas autoridades. ;a'uela9oca, o caso emocionou a oini#o ?blica, elo seu conte?do tiicamenteromntico de amor contrariado, H re!elia das con!enFes e imosiFes sociais.oram ambos en!iados ara a Cadeia da +ela#o, no :orto, onde Camilocon%eceu e fe amiade com o famoso salteador I9 do Eel%ado. Com base nestae@eri"ncia, escre!eu Mem4rias do Crcere. )eois de absol!idos do crime deadult9rio elo &ui &os9 Maria de -lmeida Eei@eira de Jueir4s

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    m 180, de!ido a roblemas de sa?de, Camilo !ai !i!er ara *ila do Conde,onde se mant9m at9 181. oi a 'ue escre!eu a ea de teatro 3O Condenado

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    u@ando or cem mil reis em notas entregou$as ao intor. O san%ol,surreendido com a'uela inter!en#o 'ue esta!a longe de eserar, n#o ac%ouuma ala!ra ara resonder. )uas lgrimas, or9m, l%e desliaram silenciosaselas faces, como ?nica demonstra#o de recon%ecimento.

    m 1885 9$l%e concedido o ttulo de 1. *isconde de Correia Botel%o. - / deMaro de 1888, casa$se finalmente com -na :lcido.

    Camilo assa os ?ltimos anos da !ida ao lado dela, n#o encontrando aestabilidade emocional or 'ue ansia!a. -s dificuldades financeiras, a doena eos fil%os incaaes

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    sobre!i!eu em coma agoniante at9 Hs cinco da tarde. - de &un%o, Hs seis datarde, o seu cad!er c%ega!a de comboio ao :orto e no dia seguinte, conformeo seu edido, foi seultado eretuamente no Aaigo de um amigo, &o#o-ntKnio de reitas ortuna, no cemit9rio da *ener!el rmandade de ;ossa

    (en%ora da Laa.

    (#o suas rinciais obras -ntema

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    NDICE

    VOLTAREIS, CRISTO?...............................................................................

    AQUELA CASA TRISTE.................................................................................UMA PRAGA ROGADA NAS ESCADARIAS DA FORCA.................................

    COISAS QUE S EU SEI...............................................................................

    A SENHORA RATTAZZI................................................................................

    MARIA! NO ME MATES, QUE SOU TUA ME!.........................................

    A SUICIDA...................................................................................................

    O ARREPENDIMENTO................................................................................

    O DEGREDADO..........................................................................................

    A GRATIDO..............................................................................................

    O FILHO NATURAL.....................................................................................

    A MORGADA DE ROMARIZ.........................................................................

    O CEGO DE LANDIM...................................................................................

    O COMENDADOR.......................................................................................

    GRACEJOS QUE MATAM.............................................................................

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    VOLTAREIS, CRISTO?

    Os outros passageiros, gente alegre e agitada pelo trabalho ntimo de umadigesto rija, conversavam bestialmente a respeito do meu amado e honrado

    amigo Jos Cardoso Vieira de Castro.

    Sem intervir nas suas disputaes, escutava!os o padre atento e melanc"lico.

    #, compadecido at $s l%grimas do &ormid%vel in&ort'nio (ue entretinha, entrechascos e insultos, a(uela vilanagem, eu encarava no taciturno clrigo, e di)iaentre mim* +ue pensar% este ancio do desgraado rapa)- or(ue ampara elea cara $ mo convulsa, e despede um gemido de aparente compai/o0 uemser% (ue lha inspira0 #la (ue morreu, ou ele (ue tem diante de si um arrancar

    da vida com agonias, cujo pra)o est% nos segredos da morte0+ 1peamos em2oreira. Segui por debai/o das ramarias seculares (ue a&ormosentam amajestosa avenida da (uinta dos Vieiras de Castro, na (ual o meu amigo residiradois anos com a sua esposa. #u ia olhando para as %rvores (ue ele amava, epensando (ue via despegar!se!lhes a &olhagem (ue enverdecera (uando no seioda(uele incompar%vel m%rtir do seu pundonor caram os gelos de um 3nvernosem &im.

    Observei (ue o padre me seguia a passo lento, e com o lance vago de olhos,a(uele ver atravs de l%grimas, o pensar triste (ue os in&eli)es adivinham.

    #sperei!o.

    #le abeirou!se de mim e cortejou!me, tratando!me pelo meu nome.

    erguntou!me se na(uela casa morara algum tempo o sobrinho do seucondiscpulo e amigo, o ministro de estado 1nt4nio 2anuel 5opes Vieira deCastro.

    6espondi* +1(ui viveu os mais encantados dias da sua vida+.

    #, volvidos alguns segundos, prossegui animado pelo aspeto contemplativo dosacerdote* +#sta grande casa avulta!se!me como o t'mulo da &elicidade dele.uando da(ui saram as duas almas, Vieira de Castro j% no era &eli). #le tinha aintelig7ncia to alta como o corao, e devia sentir!se &erido do pro&tico terrorde ver cair do pedestal do anjo a mulher (ue vestira da lu) espl7ndida do seuamor e de toda a poesia da sua juventude. Vieira de Castro, nos meses (ueviveu a(ui, dani&icou a sua hombridade de homem. Como vivia absorvido em

    apai/onada contemplao, e do cu e da soledade se lhe aumentavam osenlevos da vida ntima, o amor sopesou!lhe todas as &aculdades, robustecendo!

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    lhe a da soberba de ser amado de (uem todas as mais pai/es lhe pisava aosps. 1 (uerida da sua alma no o viu descer de to alto, at ajoelhar!se diantedela.

    Os homens da(uela t7mpera, (uando se arrependem de ter ajoelhado, erguem!se num mpeto de dignidade, e (uebram o dolo+.

    O padre &itou!me com olhar de intelig7ncia e comiserao. 8etivemo!nossilenciosos e encostados $ gradaria do portal9 depois voltamos para a estaoonde nos esperava a 8ilig7ncia.

    :este intervalo, o ancio encarou!me com triste)a e disse* +#ncontrei uma ve)um homem de (uem ouvi palavras terrveis e absurdas contra a sociedade. #uno podia compreender (ue lampejasse lu) de ra)o na(uele homem...

    6probo diante de 8eus creio eu (ue ele haja sido* mas integrrimo jui) doscostumes do seu tempo... isso &oi ele, desgraadamente... uin)e anos depois,as calamidades de Vieira de Castro ;m dos meus companheiros de jornada paraVila do Conde era sacerdote idoso, de muito agrad%vel rosto e maviosa triste)ano olhar contemplativo dilucidaram!me a escure)a enigm%tica do homem, (ueme tinha parecido um peito de &erro a desbordar de crueldade..

    #, momentos depois, disse* +Como V. est% em Vila do Conde, disponha de duashoras in'teis, e v% $ "voa, onde tomo banhos, se (uiser ouvir uma hist"ria em

    (ue aparece esclarecido o absurdo pela in&ernal (ue lhe derramou a cat%stro&edesse grande corao. :o &alaremos dele seno a s"s. #u creio (ue no seio deVieira de Castro as ang'stias so tantas, (ue j% l% no podem entrar os insultosdesta sociedade... (ue escarnece o marido tolerante, e roa a esponja do &elpelos l%bios do homem (ue aceita o degredo < as mil dores do morrer para a%tria e =amlia < com a condio de lhe no duvidarem da honra.

    =ui.

    # o padre &alou assim*

    >% (uin)e anos (ue eu pastoreava uma vigararia em ?r%s!os!2ontes.

    :um dia de 8e)embro de @ABB sa da minha resid7ncia com destino a ir consoarnos dias &estivos do :atal com um abade, meu companheiro da ;niversidade, o(ual residia oito lguas distante. Como os caminhos eram pssimos e malsabidos do meu criado, perdemo!los na cerrao do nevoeiro, e chegamos tardea um c"rrego, cujo pontilho a enchente havia alagado, O 'nico vau possvelestava lgua e meia a&astado.

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    #ra ao &im do dia* seriam (uatro horas e meia9 mas a noite &echara!se s'bita,(uando as nuvens se conglobaram ao poente, e uma neblina pardacenta roloudos &raguedos das empinadas serras.

    6etrocedemos assustados.

    O meu criado tinha visto de passagem, por entre as brumas, alvejar uma casagrande com aspeto senhorial de torres e ameias.

    8istava!nos dali obra de meia lgua.

    anhamos a custo a lomba da serra, onde chegamos com noite &echada. 8a(uien/erg%mos lu)es trementes ao travs de vidraas, e ouvimos o latir de ces.

    1peei, e desci amparado no brao do criado, cujo corao palpitava de medo,no j% de ladres nem de &eras9 seno de &antasmas e lobisomens, (ue, no crere di)er dele, eram vulgares por a(ueles despenhos e selvas de castanheiros.

    Consoante a minha &iloso&ia me &oi acudindo inspirativa, combati as crenas domeu pobre 2anuel, cujo e/celente esprito &oi cedendo passo a passo $ ra)oonipotente, por modo (ue a&inal incomodava!o mais a perspectiva do &rio e&ome (ue o pavor dos &antasmas e lobisomens. #u, neste receio, no lhe levavavantagem em &ortale)a de esprito. =igurava!se!me calamidade superior $s

    minhas &oras o ter de pernoitar sobre um cho alagado, e sob o pavilho docu to inclemente.

    :esta conjuntura, ouvimos o ladrar dos ces $ nossa es(uerda.

    1 primeira vereda (ue topamos, na direo do consolativo sinal de povoado,nos encaminhamos por barrocas lamacentas at entestarmos com um 5argoporto de (uinta. 2anuel aldravou com (uanta &ora lhe dera ocontentamento, e esperamos, no sem receio de (ue os molossos da (uinta

    remetessem contra n"s de sobre os estrepes (ue vedavam o alto muro.

    8o parapeito do mirante surgiu um vulto a perguntar!nos o (ue (ueramos.

    6espondi (ue era um padre, perdido no caminho de 2irandela, e pedia ao donoda(uela casa a caridade de me agasalhar e ao meu criado por a(uela noite.

    assado largo espao, voltou o interrogador, (ue nos abriu o porto depois dehaver acorrentado os ces, e nos meteu $ cara uma lanterna de &urta!&ogo,dei/ando ver debai/o de cada brao uma pistola de alcance.

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    1(uietado pela con&iana (ue lhe incutiu a minha cara pac&ica, e a to pac&ica(uanto est'pida do meu 2anuel, o criado caminhou serenamente diante den"s.

    erguntei!lhe como se chamava o dono da casa. 8isse!me o nome do &idalgo, eacrescentou (ue a &idalga estava a morrer tica.

    < :esse caso < tornei eu < (ueira di)er ao senhor baro (ue eu no (uerocausar!lhe o menor constrangimento na situao triste em (ue est%. Dasta (ueS. #/E nos mande recolher, (ue n"s sairemos cedo sem perturbar o seu sossego.

    #ntrei para um salo cujas al&aias eram (uatro escabelos de pau com grandesCongela!se!me o corao de terror (uando este relance pavoroso da minha vidame lembra. J% l% vo (uin)e anos. 1inda agora h% noites em (ue a priso me

    sobressalta, e sempre o meu esprito se estremece com o mesmocon&rangimento armas pintadas no alteroso espaldar.

    8a a pouco, &ui levado a outra sala mobiliada $ antiga, com cadeiras de couromarchetadas de pregaria amarela, $ mistura com uns trem"s doirados eartesoados do reinado de 8. Joo V, segundo me (uis parecer. 8as paredespendiam nove retratos de homens, em (ue predominavam clrigos mitrados, edos dois (ue vestiam &arda agaloada com h%bito de Cristo um di)ia o letreiro(ue tinha sido capito!mor.

    :esta contemplao me interrompeu o &idalgo.

    #ra homem de alta e direita estatura* &igurava (uarenta anos9 tinha barbasgrisalhas e grandes9 ampla testa, e olhos rasgados e negros, impressivos,penetrantes, assustadores. 8e mim con&esso (ue o &itava a medo, no seipor(u7.

    3nterrogou!me gravemente sobre o ponto de onde vinha e para onde ia.

    6espondi como cumpria dilatando di&usamente as respostas e circunstanciando!as para deste modo captar a benevol7ncia do &idalgo (ue parecia escutar!medistrado.

    8a a pouco disse dentro uma vo) (ue estava a ceia na mesa.O senhor ergueu!se, levantou um reposteiro, e obrigou!me a preced7!lo naentrada com gentil ademane de corteso.

    1 mesa era espaosa de mais para (uarenta talheres9 mas tinha s" dois.

    Sentei!me na cadeira (ue me &oi indicada, e comi com a sem!cerim4nia muitoconhecida dos descorteses e dos &amintos.

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    8urante a ceia substancial, ocorreu!me perguntar!lhe pelo estado da suaesposa9 todavia, conteve!me a inoportunidade da ocasio, e o receio de medemasiar em in(uirir de senhora (u7 eu no conhecia, no me sendo

    semelhante pergunta autori)ada pelo sil7ncio do baro.

    =inda a ceia, segui!o ao longo de um corredor, e entrei no (uarto (ue ele meindicou, di)endo*

    < :o se deite j% (ue eu preciso talve) do senhor para um ato pr"prio da suapro&isso.

    # desandou.

    =i(uei a pensar, e sugeriu!se!me logo o pensamento de (ue eu seria chamado aouvir de con&isso a senhora en&erma.

    #sperei duas horas, durante as (uais re)ei as minhas re)as.

    Voltou o taciturno &idalgo, e disse laconicamente*

    < >% a(ui uma mulher doente (ue se (uer con&essar.

    < #stou pronto a ouvi!la < respondi espantado da secura da(uelas palavrasto desamor%veis com respeito a uma esposa doente.

    < Siga o criado (ue o est% esperando no corredor < disse ele.

    Sa ao corredor. O criado (ue me estava esperando era o mais mal!encaradohomem (ue ainda vi na minha vida. 1&u)ilavam!se!lhe os olhos como brasas. 1testa, 'nico espao iluminado da(uela cara barbauda, sulcavam!na no sei secicatri)es se ulceraes da modela. 1 corpul7ncia era agigantada, e o carregar

    do sobrolho batia no corao de um homem como o s'bito coriscar dos olhosde um tigre (ue rebenta de entre os carrascais de uni deserto. Os pintorescristos nunca souberam bos(uejar 5'ci&er, por(ue semelhante homem jamaisdeu nos olhos de artista, (ue desejasse &a)er bem conhecida a pl%stica do 8iabocom &eitio de gente.

    Segui!o com cala&rios, superiores $ minha ra)o (ue me aconselhavatran(uilidade.

    >oje, volvidos (uin)e anos, conto isto com certo sorriso de &%cil coragem9 mas,

    nos primeiros tempos, a(uele vulto andava terrivelmente associado ao (uadronegro (ue vou tentar descrever.

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    FFF

    < 5evante o &echo, e entre.

    1 primeira vista o (ue pude estremar das trevas, era um claro a)ulado, comode lamparina baa, cuja claridade se esvaecia logo absorvida pela escura algide)da alcova.

    1vi)inhei!me a passos tr7mulos da lGmpada, e distingui um leito, e na almo&adado leito um vulto. =i/ei o (ue me parecia ser um rosto de criana, e pudeentrever um rosto de mulher, com os olhos cravados em mim, olhos (uevas(uejavam os derradeiros clares, olhos como devem de ser os dos espectros(ue surgem subitGneos nas trevas aos perversos (ue negam 8eus e temem os

    espectros.

    < 1pro/ime!se, senhor. 1 moribunda sou eu < disse ela com vo) rouca, masserena.

    < 8eus permitir% (ue V. #/E esteja menos doente do (ue pensa < balbucieicom uma espcie de terror secreto, pressentimento de alma (ue j% se doaantecipadamente da m%goa (ue se lhe ia re&letir do singular e imenso suplcioda(uela mulher.

    < =ale bai/o (ue nos escutam < volveu ela ciciando as palavras, eesbugalhando os olhos para a porta.

    < #scutar!nos- < repli(uei com assombro. < H impossvel- #u &ui a(ui enviadopara ouvi!la de con&isso, minha senhora < Dem sei9 mas isso no importa...uero (ue me oia9 mas muito bai/inho... Vou contar!lhe a minha vida como a8eus9 mas no me con&esso como a um padre... H a um homem (ue h% de terpena de mim, depois de me ouvir9 e me h% de &a)er um servio (ue lhe pede

    uma agoni)ante, (ue cr7 em 8eus9 mas no pode crer na religio &eita porhomens (ue t7m semelhana do algo) (ue me mata.

    3sto di)ia ela de a&ogadilho e &ebril, mas com aba&aes e Gnsias aumentadaspelo medo de ser escutada.

    < 2as no em con&isso (ue a senhora me (uer revelar as culpas (ue lhepesam na consci7ncia0- < perguntei.

    < :o, senhor9 eu no creio na con&isso. 8o mal (ue &i) estou perdoada9 tenho

    so&rido todas as torturas deste mundo9 se as h% no outro, nenhuma podeassustar!me.

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    O meu dever seria combater a incredulidade desta senhora com os s"lidosargumentos de (ue dispe a teologia contra mais poderosos advers%rios9abstive!me, porm, de e/acerbar o Gnimo a&lito da en&erma por me parecer

    e/temporGnea a discusso e recear (ue o tempo escasseasse ao triun&o, nemsempre pronto, dos bons princpios. :o obstante, repli(uei, no intento deencaminh%!la $ piedade*

    < Se V. #/E no (uer con&essar!se, diga!me (ue servio posso &a)er!lhe embene&cio da sua alma...

    < V% ver se algum nos escuta... < insistiu ela, apontando para a porta com amo descarnada.

    =ui com repugnGncia, a&igurando!se!me (ue a minha posio no gr7mio desta&amlia sinistra ia assumindo certa gravidade e um ar de mistrio mais ou menosarriscado. 1bri cautelosamente a porta, olhei ao longo do corredor, e nada vi9salvo l% ao cabo um lampio a tremer baloiado pelas es&u)iadas de vento (ueassobiava no teto.

    =echei a porta, asseverando $ en&erma (ue ningum nos escutava. #la entosentou!se com violento mpeto no leito, aconchegou do pescoo, (uetranspirava, a colcha da cama, bebeu alguns tragos de %gua, e balbuciou com

    ansiosas suspenses*

    < Casaram!me h% seis anos com este homem (ue me mata. #u amava outrohomem, (ue no teve corao nem honra (ue me salvasse de tamanhoverdugo. O meu pai, O medonho guia mostrou!me a porta de um (uarto, eresmoneou* sacri&icou!me, pensando (ue me &elicitava. O homem (ue euamava dei/ou!me sacri&icar, por(ue no tinha peito (ue suportasse o peso deuma mulher pobre. Vim de 5isboa, onde o dono desta casa era deputado. Vim9e, ao cabo de alguns meses, o meu marido arrependera!se de se ter enganado,

    pensando (ue uma mulher simplesmente &ormosa, mas sem amor, poderiaencher!lhe as ambies, e dar!lhe o contentamento (ue ela no tinha. Saciou!se, enojou!se, aborreceu!me. :o me deu rivais, por(ue s" (uem ama se senteultrajada pelas in&idelidades. #u no conheci rivais* conheci apenas mulheres(ue nesta casa valiam e mandavam mais do (ue eu.

    Voltou $ cGmara o meu marido. 1(ui &i(uei, no obstante lhe pedir com muitasl%grimas (ue me dei/asse ir ver o meu pai, e os meus dois irmos (ue tinhamvindo da I&rica, onde tinham estado alguns anos negociando. O meu maridodemorou!se ano e meio em 5isboa. :este longo intervalo chorei muito, e s"

    dei/ei de chorar, (uando... (uando me vinguei. Compreende!me0

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    < uando se vingou0 como se vingou V. #/E0- < perguntei.

    < Vinguei!me... mas &oi a pai/o (ue me deu toras... >ouve um homem (ueteve por mim um grande amor e um grande d". 1mei!o. 5utei. edi a 8eus (ue

    me ajudasse, (ue me &ortalecesse. edi $ alma da minha honrada me (ue meamparasse... pedi ao meu marido (ue me dei/asse ir para si ou para acompanhia do meu pai... :em 8eus, nem a minha me, nem o meu marido mevaleram... < Sucumbi... 1 minha culpa &oi cega. Con&iei < me de uma criada(ue tinha chorado comigo. =ui atraioada. O meu marido teve den'ncia daminha (ueda, e apareceu a(ui inesperadamente. :ada me disse. ?ratou!mecom a mesma &rie)a, com o mesmo despre)o. :o estranhei. O homem (ue euamava, era ainda parente dele e estudava em Coimbra. ?inha o corao cheiode Gnsias e desejos da morte. Compreendeu este in&eli) (ue o meu maridodescon&iava. uis &ugir comigo para #spanha, e eu resisti, mais por amor dele

    (ue do meu crdito. O meu c'mplice no podia com o encargo, e iria viver oumorrer miseravelmente em pais estranho.

    assados dias, dei/ei de ter noticias dele. 3maginei!o j% em Coimbra, posto (ueno &osse tempo de aulas. Correram tr7s meses. :ova nenhuma. 1 criada (ueme &alava dele, recebido o pr7mio da traio, tinha &ingido (ue a sua &amlia achamava. S" ento ouvi di)er a outra criada (ue o parente do meu maridodesaparecera sem di)er a ningum o seu destino9 e (ue a &amlia dele viviaconsternada com tal sucesso, enviando a toda a parte indagaes in'teis.

    Seis meses depois (ue o meu marido voltara de 5isboa, soube eu (ue se estavapreparando este (uarto pela sua ordem. Vim ver as obras, e perguntei!lhe para(ue era o arm%rio estreito (ue se estava &a)endo nesta parede e para (ue eramas grades na janela.

    2eu marido respondeu* +Sab7!lo!% brevemente+.

    Concludas as obras, vi (ue a minha cama era para a(ui mudada, com tudo (ue

    me pertencia.

    ;ma noite, o meu marido condu)iu!me a este (uarto. =echou!se por dentro edisse!me*

    +1 senhora entra a(ui de onde nunca mais sair%9 e para no estar so)inha, a(uilhe dei/o uma ador%vel companhia com (uem pode conversar $ sua vontade+. #di)endo isto, abriu a(uele arm%rio, e apontou para um es(ueleto, di)endo*+1(ui tem o seu amante. 1brace!se nele at &icar redu)ida ao estado em (ue lhoo&ereo para (ue o possa go)ar com toda a liberdade+.

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    #u ca por terra sem sentidos < prosseguiu ela, limpando as l%grimas, easpirando com &ora. < uando voltei $ vida, pensei (ue saa de um sonho.Ouvi dar meia!noite.

    #ra tudo escurido neste (uarto. 1palpei $ volta de mim. :o conheci ondeestava.

    Continuei apalpando. ousei as mos numa coisa &ria e %spera (ue estremeceu.6ecuei horrori)ada... #ram ossos... eram as costelas do es(ueleto. #ntoacordei... ento me &ugiu outra ve) a ra)o com um grito do peito dilacerado.Ca outra ve) para diante com a &ace de encontro aos ossos &rios, horrivelmente&rios ...

    # ela estralejava com os dentes convulsos, e apertava a roupa no pescoo. 1p"s

    longo espao, prosseguiu*

    < 1o romper do dia, abri uma janela com o prop"sito de me suicidar. 8ei com a&ace nas grades. 5ancei!me $ porta (ue estava &echada por &ora, e gritei porsocorro.

    1briu!se. Vi um criado com um aspeto ameaador, impondo!me sil7ncio. #stecriado era um criminoso (ue o meu marido acolhera para o salvar da justia (ueo perseguia. #ra esse mesmo (ue o trou/e a(ui h% pouco. H o 'nico ente vivo

    (ue eu vejo h% dois anos duas ve)es por dia, (uando me tra) alimentos. =oi ele(uem matou e espedaou a(uele in&eli)...

    #, di)endo, apontava para o arm%rio do es(ueleto. Continuou*

    < #u (uis suicidar!me pela &ome. :o pude. uando as agonias da mortecomeavam, eu lanava!me vertiginosamente sobre a comida, e devorava!asem a consci7ncia do (ue &a)ia. 8e outra ve) consegui com um gar&o romperuma veia9 mas o sangue estancou9 senti Gnsias mortais9 envelheci9 des&igurei!

    me, segundo o (ue sinto, se palpo o meu rosto9 (ue eu h% dois anos me no vinum espelho... :o consegui morrer.

    Voltei!me para 8eus com rogos, com desesperadas s'plicas. Orei muito, choreimuito, e obtive um grande bene&cio. Cal num desalento, numa sonol7ncia demoribunda (ue durou no sei se dias se anos. 8epois, (uis levantar!me desteleito, e j% no pude.

    Comecei a pedir a 8eus a morte, e a senti!la avi)inhar!se pela mo da divinacaridade.

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    >% de haver tr7s horas (ue entrou a(ui o con&idente do meu carrascoperguntando!me se me (ueria con&essar. =i(uei espantada da religio destesalgo)es, e respondi (ue sim9 mas o (ue eu (ueria, senhor padre < disse elaestendendo para mim impetuosamente os braos < era pedir!lhe (ue depois

    da minha morte, &aa saber aos meus irmos este miser%vel &im (ue eu tive,para (ue eles me vinguem...

    1cabava a in&eli) de pro&erir estas palavras em vo) mais desa&ogada, (uando aporta (ue eu havia &echado por dentro se abriu impelida por um valenteencontro.

    FFF

    =aiscavam!lhe %scuas de rancor os olhos injetados. Crispavam!se!lhe os beios

    retrados.

    1 c"lera engasgava!o a ponto de tartamudear estas vo)es ejaculadas a trancos*

    < Os seus irmos (ue venham c% e eu lhes contarei a vida da sua honrada irm-

    # ela cobriu os olhos com as mos, e resvalou para dentro da roupa, como sedesejasse cair na sepultura.

    #u caminhei placidamente para a(uele homem terrvel, abeirei!me dele (ue me&itava com sobranceria, ajoelhei e disse!lhe com a vo) tremente de l%grimas*

    < erdoe!lhe. 8ei/e!a morrer em pa). 8ei/e!a e/perimentar os bene&cios dasua compai/o para implorar con&iadamente os da miseric"rdia divina, #ncarou!me de um modo inde&invel. Saiu do (uarto, e, j% &ora, murmurou secamente*

    < O senhor padre recolha!se ao seu (uarto.

    6elanceei um derradeiro olhar para o leito9 no a vi9 mas ouvia o soluar alto ecavernoso do peito (ue se es&acelava.

    2al entrei no (uarto onde havia de pernoitar, rebentaram!me as l%grimascopiosas. 5evantei a 8eus o esprito repassado de terror e compai/o, pedindo!lhe (ue despenasse a penitente, ou radiasse lu) de comiserao em tocarniceiras entranhas.

    :este lance entrou ele, assentou a mo direita sobre o meu ombro, e disse*

    < 1(uela mulher voci&erou uma in&Gmia digna da sua desonra, se (uisdesculpar o seu crime com as in&idelidades de (ue me acusa. 1 mulher (ue se

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    vinga do marido, prostituindo!se, cavou a sepultura, e espera (ue a sociedadeou o marido a sepultem. #u no a matei. #ncarreguei o es(ueleto do homem,(ue a desonrou, da misso da ir matando lentamente Olhe (ue eu amei a(uelamulher. :o a sedu)i, no a iludi, no a &ascinei, nem a disputei a outro. edi!a

    ao seu pai. #le consultou!a9 ou &ingiu (ue a consultava. Como (uer (ue &osse,esta mulher veio risonha para os meus braos9 chamou!se com orgulho abaronesa de FFF9 mentiu!me cem ve)es acusando!me de ingrato ao seu corao(ue me estremecia. 1&inal, esta mulher cr7 ainda imper&eita a sua vingana, ena hora e/trema invoca os irmos para (ue a vinguem. 8e (u70 de (ue ho deving%!la os irmos0 8e eu lhe haver matado o amante0 ue me responde a suacrist &iloso&ia0

    < ue o terror (ue V. #/E me incute no me dei/a atinar com palavras (ue ocomovam... < balbuciei.

    < 2as responda, senhor-

    < 6espondo ajoelhando novamente a suplicar!lhe o perdo da culpada.

    < :o posso < bradou ele. < >% dois anos (ue no sa de dia desta casa,receando (ue todos saibam da minha desonra. :o posso perdoar!lhe sem (uea rovid7ncia me desoprima do ve/ame do meu opr"brio-

    < Seria generosidade hav7!la matado... < interrompi.

    < Dem sei < redarguiu ele < bem sei. #la so&ria cinco minutos de castigo, e eu&icava so&rendo uma vida inteira de vergonha. #ram suplcios incompar%veis-1lm de (ue, se eu a houvesse esmagado debai/o do peso da minha a&rontosadesgraa, o mundo santi&ic%!la!ia, lavando!lhe com hip"critas l%grimas os&erretes da cara para (ue se atendesse somente $s manchas de sangue nasminhas mos de assassino... Compreende isto, padre0 Conhece bem asociedade em (ue toda a in&Gmia uma Conveno, e toda a honra de marido

    (ue se desa&ronta h% de lutar depois com a desonra irritada dos maridos.

    FFF

    #ra o marido. #sporeados pelo )elo devassssimo das esposas0 Conhece o2undo como Cristo o encontrou h% @ABB anos0 Sabe o (ue veio &a)er JesusCristo $ ?erra0

    < 2orrer pela redeno dos (ue o mataram, senhor.

    < :o o percebo- < e/clamou ele com um &ormid%vel brado, e saiu do(uarto...

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    #u no pude adormecer. arecia!me ouvir um gemido longo con&undido com osibilo do nordeste no entravamento da casa. 6e)ei muito por ela.

    1o alvorejar da manh, vi um criado (ue perpassava no corredor. erguntei!lhea (ue horas se erguia o &idalgo. 6espondeu!me (ue se havia deitado um (uartode hora antes. edi!lhe (ue mandasse o meu criado sair do seu (uarto, e &i)esseao dono da casa os meus cumprimentos com os mais ardentes protestos deeterna gratido.

    8espedi!me assombrado da(uela casa, onde se respirava um acre nauseativo decad%veres. 1rdia!me o peito e a cabea por tal sorte (ue eu no sentia a chuvaglacial da(uela manh de K de 8e)embro de @ABB.

    =echo a minha hist"ria com a pedra (ue cobriu o cad%ver da baronesa de FFF.:o dia L de 8e)embro me disseram uns pastores convi)inhos (ue a &idalgamorrera $ hora em (ue as &amlias honradas e &eli)es se juntavam parareceberem as b7nos dos seus ancios, e comemorarem com santos j'bilos onascimento do divino 6edentor.

    1gora dir!lhe!ei (ual era o parado/o, (ue tal se me &igurou h% (uin)e anos.

    1(uele cruelssimo homem tinha!me dito* Se eu a houvesse esmagado debai/o

    do peso da minha a&rontosa desgraa, o mundo santi&ic%!la!ia lavando!lhe comhip"critas l%grimas os &erretes da cara, para (ue se atendesse somente $smanchas de sangue nas minhas mos de assassino.

    Ora eu entendi a pro&unda verdade desta cl%usula depois (ue Vieira de Castro,ao cair agoni)ante sobre a terra onde tem de vas(uejar largos anos, matou aesposa, por(ue a cingia apai/onadamente nos braos da sua alma. 2orreu!lhe ocorao. #la no teria morrido, se o in&eli) a pudesse arrancar de l% antes decair.

    FFF

    < 2eu 8eus, enviai segunda ve) $ ?erra o vosso divino =ilho- #sta negridogentlica pior (ue a de h% dois mil anos. :a(uele tempo esperava!se9 nasentranhas sociais estremecia o pressentimento de um regenerador... >oje emdia, nada, nada, " altssima rovid7ncia- :ada- 2as... voltareis, " Cristo0

    # prosseguiu, corridos instantes*

    < ue haver% j% agora nesta vida (ue possa levantar a alma do seu amigo0

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    < O esteio da dignidade.

    Conheci!o (uando os hori)ontes da vida se lhe pre&iguravam e reali)avam emrisonhas prosperidades. O destino, como &orado pelo talento, ajoelhava!lhe.

    :o o admirei ento, seno por(ue &elicidade e g7nio pareciam dar!se as mose concertar!se no plano do e/alarem onde raro em ortugal subiram grandeesprito e grande corao.

    >oje cerram!se contra ele inj'rias e trevas.

    1 lu) do seu honrado in&ort'nio um reverberar sinistro de uma estrela&unesta, cuja claridade lhe banhar% a sepultura por esse viver das geraesalm. 1 posteridade dos seus irmos ir% a retemperar sentimentos depundonor9 e os descendentes dos meus &ilhos pensaro (ue me veem absorto

    entre eles em &rente das cin)as de Vieira de Castro.

    Vai!se!lhe a vida diluda em l%grimas de sangue. Vai. 2as a p%gina (ue dei/adir% (ue a onda da corrupo (uando chegou at ele, des&e)!se!lhe aos ps. Se aonda lhe revolveu e abriu a terra da sepultura, a(ui ou em I&rica, no importa.

    rouvera a 8eus (ue ele no chorasse a &elicidade (ue lhe mataram- Sobre(uem mandar% 8eus (ue caiam as l%grimas (ue Vieira de Castro h% de chorarpela sua me e irmos0 :o dia em (ue ele sair para I&rica, as almas

    compassivas iro $s igrejas pedir ao 1ltssimo (ue ilumine o seio do degradadocom um raio de misericordioso alento 8ei/%!lo ir.

    8ei/%!lo esconder!se dos olhos desta aviltante piedade (ue dei/ou do apedrejar(uando o viu perdido.

    FFF

    5oura criana (ue eu vi, h% vinte anos, iluminada pelas ultimas alegrias da

    &ugitiva in&Gncia, prouvera a 8eus (ue o sepulcro do teu pai se te abrisse ento.

    Os embries das tuas alegrias da juventude esmagou!os a pedra (ue desceusobre o seio onde se perderam os tesouros (ue tinham de completar a&elicidade da tua alma.

    O teu corao, aos de)oito anos, aba&ava em si as amarguras da soledade,retraia!se em devorantes desejos do amor de &amlia, a pai/o santa, 'nica epro&unda (ue eu te conheci.

    uem imaginou (ue tu choraste amarssimas lagrimas na(uela tua casa triste(ue demora solit%ria entre duas serras0

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    :o mais verde dos anos, abali)aste os teus anelos juvenis entre umas %rvores(ue os teus av"s plantaram9 e ali, so)inho, esperaste (ue a rovidencia tedei/asse re&lorir uma primavera na alma.

    O teu &ormid%vel esprito reagiu contra a mais crua sorte (ue ainda &adou unsvinte anos relegados desse go)ar comum (ue permite a cada homem sentir oalvorejar dos a&etos e as musicas do cu (ue embalam a alma para sonharventuras.

    ?u no as sonhaste (uando o corao desbordava de seiva para renascer dassuas mesmas cin)as, se a per&dia o cancerou com a sua peonha.

    ;m dia, j% tarde, amaste pela primeira ve), (uando te deu de rosto e te cegou a

    lu) &unesta (ue desce do cu com os anjos despenhados.

    uando bai/aste a &ace at ao cho onde ajoelhavas em adorao de criana(ue beija os l%bios da sua me, em adorao de pai (ue aconchega no seio asmos da sua &ilha, sentiste (ue a desonra te cravava as garras, e tedesentranhava do peito a alma, e tMa e/punha em pelourinho in&ame aosinsultos dos (ue passavam.

    ?u no podias ajustar %s &aces a mascara (ue te o&ereciam as mos in&ames da

    tolerGncia.

    1o teu rosto no podiam sair as lagrimas &%ceis das almas vulgares por(ue erasangue, era a vida toda (ue te tinham arrancado.

    # tu premeditaste-... Oh- no premeditaste nada, in&eli)-

    uem contar% as horas, os perodos de in&ernal durao (ue passaram na tuavida0

    Curvaste!te sobre o teu abismo9 e ali (uedaste empedrado at (ue resvalastenas &auces da voragem.

    :o teu ba(ue levaste contigo um cad%ver (ue te abrira o gol&o com as mosainda (uentes dos teus beijos.

    :o premeditaste nada, in&eli).

    Cada minuto (ue ia passando estalava!te uma &ibra da alma, (ueimava!te uma

    partcula do crebro, escaldava!te em veneno dilacerante cada lagrima (ue tere&lua dos olhos.

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    :o era somente a honra perdida (ue te e/cruciava9 era a mulher idolatrada(ue ainda vivia e j% te pesava morta no corao.

    1o passo (ue a mo de &erro da desgraa te batia no seio, tu ias acordando aoestrondo horrvel. Cada instante era o precursor de novas trevas (ue se iamcondensando, era o bago da areia (ue ia caindo, era uma esperana derruindodep4s outra, era o ir!se toda a alma espedaada at esva)iar!se o peito delagrimas, e encher!se de rancor ine/or%vel, espicaado pela desonra eingratido.

    Oh- tu no premeditaste nada, in&eli)-

    Os (ue delin(uiram premeditando, no di)em $ justia humana* N1(ui estou-

    condena!me-

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    AQUELA CASA TRISTE

    1 casa grande das (uin)e janelas bran(ueja no espinhao do monte.

    1s janelas &echaram!se h% seis meses, ao mesmo tempo (ue duas sepulturas seabriram.

    1 sepultura do I&ricano, (ue chegava ao cemitrio (uando a &ilha e/pirava9 e asepultura de 8eolinda, (uando o sino dobrava ainda nos &unerais do pai.

    1o homem (ue morreu na(uela casa triste chamavam o I&ricano.

    #stou!a vendo da(ui.

    1s vidraas reverberam o sol poente.

    #u, h% hoje de) anos, vi abrir os alicerces da(uela casa.

    5idavam oper%rios a centenares.

    #ntre os alvenis estava um sujeito, na pujana dos anos, magro, macilento etostado pelo sol da I&rica.

    8isseram!me (ue era homem muito rico, e viera do cabo do mundo, e sechamava 8u(ue por apelido e o I&ricano por alcunha.

    1vi)inhei!me dele, com o rosto risonho de cortesias, para lhe perguntar comoia, em monte assim agro e ermo, &abricar edi&cio to grandemente cimentado.

    6espondeu (ue tinha em Denguela uma &ilha, com (uem andara viajando naSua. # (ue a sua 8eolinda, estanciando nas empinadas serras de S. otardo,

    disse!lhe (ue seria &eli) se morasse no topo de uma montanha, em casaimitante de outra onde pernoitara, e donde vira levantar!se o Sol do seu leito deneve.

    # ele, pai e/tremoso, rico e saudoso da p%tria, disse $ &ilha (ue, p4r cima dacasinha onde nascera, num outeiro do 2inho, sobranceava um alto monte,golpeado de regatos (ue derivavam por entre arvoredos &res(ussimos.

    # a &ilha, cingindo!lhe ao pescoo, e/clamara*

    < # (uando vamos0

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    < 3rei &a)er a casa no alto do monte, e depois ir%s tu, e levaremos para a capelaos ossos da tua me. # eu descansarei desta labutao em (ue pude granjearmais (ue o preciso ao teu passadio, visto (ue pre&eres, a viver em aris, uma

    casa nas serras de ortugal.

    # saiu de Denguela, provido de dinheiro para edi&icar o ostentoso chal (ue a&ilha &antasiara.

    Ora, os ar(uitetos do 2inho, como no percebessem a planta do I&ricano,construram!lhe um pal%cio aldeo, espcie de dormit"rio mon%stico, umleviato de granito )ebrado de vidraas enormes e portas alterosas.

    erto dali, na outra lombada do mesmo outeiro, est% o antigo solar torreado

    dos senhores de =areles.

    # eu, (ue, na(uele tempo, me embrenhava nas ruinarias grandiosas do paosenhorial de 6uives, a deci&rar a lenda meio hist"rica dos Correias de S% nos&rescos do teto apainelado, ao perpassar pelas grossas cantarias do I&ricano,di)ia entre mim* +O pal%cio cavaleiroso (ue desaba e o pal%cio industrial (ue selevanta. 1(uele recorda as manhas picas do peito ilustre lusitano, ind'stria dalana (ue atirou da Pndia para ali, na ponta ensanguentada, a pedraria dos reisde Chaul, de Calecute e 2ombaa.

    #rgue!se o novo pal%cio para assinalar $ posteridade (ue o peito modernolusitano ainda ilustre e empreendedor, di&erenando!se do antigo somente no(ue vai entre adaga e a)orrague, entre acutilar o Pndio pela &rente ou verberar o#tope pelas costas.+ 2as eu no sabia se a(uele homem, to entranhadamentepai, amealhara os seus haveres p4r entre os perigos do cru)eiro. ?alve) (ue no.1 ri(ue)a no sempre o estip7ndio generoso dos homens cruis. #, emcoraes a&istulados por peonha de cobia Q sede e/ecr%vel (ue se apaga eml%grimas Q no cabe o e/altado e santssimo sentimento do amor paternal.

    uem chora por um &ilho no tem olhos (ue vejam, en/utos, arrancar escravosdos braos das suas mes. Verdade (ue os pr%ticos destes ultrajes a Jesus Qser divino em (ue 8eus se mani&estou no mais elevado grau da consci7nciahumana Q di)em (ue l%, nas cubatas, no h% mes nem &ilhos* h% indivduosbestialmente rebanhados e inconsciente de laos de &amlia. Se assim , meu8eus, por(ue no destes $ vossa criatura de epiderme negra o amor maternal(ue dulci&ica as meiguices da hiena enroscada nos &ilhos0

    FFF

    1prumadas as paredes, delineados os repartimentos, os patins, as portas, acapela e o jardim, 8u(ue, o I&ricano, saudoso da &ilha, dei/ou a obra no meio e

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    dinheiro de sobra ao seu &eitor, pautando!lhe (ue, no pra)o de do)e meses, acasa estaria &eita.

    # voltou a Denguela, onde tinha centenas de escravos, arma)ns de ca&, de

    mar&im, de gomas, e as suas vastas sementeiras sobre de) lguas circulares deterra, onde o suor da pele &usca, porejado pelo sol a pi(ue, era um como adubo&orte, um guano de sangue estilado por entre &ebras vigorosas e distendidaspelo l%tego.

    Vendeu as &a)endas, en&eitou as bestas e os negros, abarrotou a galera decarregao sua, es(uivou a tolda, decorou de &roi/is de seda o camarim da &ilhae projetou $ p%tria. arecia um dos antigos vice!reis (ue voltavam da Pndia, deuns (ue no se chamavam Joo de castro nem 1&onso de 1lbu(uer(ue.

    < Vale du)entos contos a carga da 8eolinda- Q di)iam os amigos do I&ricano,(uando as velas da galera, chamada com o nome da &ilha do seu dono,trapeavam ba&ejadas por apra)vel brisa.

    1 navegao, por perto da costa, e sempre ajudada por pr"speros ventos,correu alegre e descuidosa de receios.

    8eolinda deleitava!se a remirar a prata das ondas espumantes, ou, enlevada emleituras amenas, passava as tardes na tolda, en(uanto no B chegavam os seus

    amores mais (ueridos, as estrelas do cu e as &os&oresc7ncias do mar.

    #la era mulata, e bela (uanto cabe ser, com a &ace beijada por a(ueles raiosardentes e o sangue escaldeado das lu&adas do deserto Q mulata, com as &eieslevemente denunciativas da raa materna, (uase tirante a esmaiado amarelido,um bem harmoni)ado conjunto de graas, avantajadas ao (ue se di) bele)a,debai/o deste nosso cu de rostos nveos, sangue pobre e epiderme alvacenta.

    ?rasmontada a linha e &estejado o passo com descantes da maruja, o cu entrou

    de nublar!se, a nortada a ringir nas g%veas os silvos agoureiros e o pilotoesperto a encarar muito &ito num nevoeiro (ue se acastelava, sobre noite, $volta do sol esmaecido. #ra em =evereiro de @AR.

    1o repontar a manh do dia seguinte, o mar urrava acapelado, as nuvensdesciam a sorver as ondas (ue se encurvavam, o sol apenas entrelu)ia &rio emarm"reo na baa claridade da manh.

    1o meio!dia, o escurecer &e)!se r%pido e pardacento como um crep'sculo denoite invernosa.

    Dravejou s'bita &'ria de mar, apenas colhido o velame.

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    O piloto vira terra, e cobrara alento na esperana de aproar a Cabo Verde,con(uanto se temesse da(uela costa in&amada de muitos nau&r%gios, desde (ueportugueses se andam $ cata de ouro e opr"brio p4r entre os colmilhos da

    morte, na esp%dua das tempestades, a braos com a ira de 8eus e dos homens.

    :oite alta, estrondeou no cavername da galera um como estampido de pea(ue detonasse dentro.

    8eolinda &oi colhida nos braos do pai, (uando resvalava da camilha aopavimento, com o livro das suas oraes nas mos convulsas, e o nome da 2edos a&litos nos l%bios.

    < 2orreremos, meu pai0- Q perguntou trespassada de horror.

    < Tnimo- Q murmurou ele Q, abraa!te em mim, (ue eu no (uero chorar!tenem (ue me chores, &ilha... 2orreremos juntos.

    #m cima estrugia a celeuma dos marinheiros, o rojar rspido das amarras, osgritos, as s'plicas, os apitos, o troar da pea, (ue pedia R socorro, e o dostroves, (ue reboavam, e um relampadejar (ue a)ulava os abismos.

    #, de s'bito, a galera, ap"s a(uele repelo (ue lhe vibrou as cavernas, (uedou!

    se ar(uejante, a roar nos espiges da restinga.

    # as vagas, raivando contra a(uele estorvo, galgavam!no, rolando!se,re&ervendo e marulhando de um bordo a outro. O poro descosia!se, bebendo egol&ando jorros de %gua como o monstro dos mares escalavrado pelos arpus.

    O capito, p%lido mas sereno, debruou!se no corrimo da cGmara e disse*

    < #ncalhou a galera, Sr. 8u(ue. H tempo de sair a terra.

    < :enhuma esperana0 Q perguntou o I&ricano.

    < S"0...

    erguntou o homem rico9 mas a(uele monosslabo, estrangulado na garganta,rou(uejou como um arranco da vida. S"- S" a vida0 O meu suor de (uarentaanos, os meus du)entos contos de ris no salvam0 #u hei de sair pobre deentre esta ri(ue)a (ue minha, (ue o repouso da velhice, o patrim4nio daminha &ilha0 S"-

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    # as lanchas, balanadas no vaivm das ondas, cho&ravam nos &lancos do naviopor entre espadanas de espuma.

    8eolinda atravessou corajosa, e &irmada no brao do pai, at ao portal".

    O I&ricano levava no rosto um terror indescritvel e nas contores e visagensde a&lio a agonia da pior morte.

    # ela saltou de mpeto ao escaler, apenas amparada na mo de um passageiro,(ue disse!lhe*

    < 1deus...

    < :o vem0 Q perguntou ela.

    < rimeiro ho de vir as crianas, as mulheres e os velhos.

    8eolinda contemplou!o alguns momentos, e amparou!se na &ace do pai, onde asl%grimas derivavam copiosas.

    Os escaleres varavam na areia, reve)ados no rolo da vaga. #stavam salvos osvelhos, as mulheres e as crianas.

    #, logo, os remadores intrpidos (ue outra ve) se arrostavam com a morte,viram a galera a balouar!se entre o vagalho e ouviram o estralejar docavername por sobre os clamores dos n%u&ragos9 depois, levantou!se umgrande mar, e a lancha &icou para alm dessa &ormid%vel montanha9 e, (uando oescarcu descaiu para solevar a barca, um momento (uieta nas &auces davoragem, os mareantes j% no viram da galera seno o gume da (uilha e $ voltadela o bracejar dos agoni)antes.

    FFF

    ;m dos (ue ali morreram &oi a(uele (ue, dando a mo a 8eolinda, disse!lhera*+1deus-+ #ra um homem de trinta anos, bem &igurado, ares de &ina raa emaneiras de corteso, com palavras polidas e muito alheias das usuais noshomens (ue viandam por a(uelas paragens. :o lhe sei o nome, nem (ue lhosoubera o diria. =oi!lhe t'mulo o mar, como se a sorte (uisesse (ue o seu nomese no lesse em epit%&io. Sei (ue ele cumprira sentena de tr7s anos em angola,por(ue aspirara $s honras de ser rico, sem escrupuli)ar nos meios. ?inham!lhedito (ue os seus conterrGneos mais nobilitados se tinham enri(uecido trocandoas ri(ue)as de s consci7ncia por outras (ue levam ao 3n&erno, verdade, mas

    pelas portas do araso das regalias deste mundo. Via!os saborearem!se emsossego dos bens mal ad(uiridos, sem remorso (ue lhes desvelasse as noites,

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    nem inj'ria da sociedade (ue lhes pusesse &errete na testa9 ao revs disso, eleseram a classe mais ao de cima, a gente chamada $s honras, sem desconto naestupide) nem proterva reputao, (uando $ proced7ncia dos seus bens de&ortuna.

    :ascimento ilustre, educao primorosa em letras e bastante descuidada emmoral, pobre)a repentina por e&eito de demandas (ue o esbulharam dopatrim4nio, impaci7ncia, ruins e/emplos de in&ames prosperados Q todas estascoisas se travaram de mo para o perderem. O seu crime &oi associar!sedesaproveitadamente com moedeiros &alsos, prestando!se a servir de passadorde notas no Drasil9 no ato, porm, de &a)er!se $ vela para l%, de um porto doar(uiplago aoriano, &oi denunciado, preso e condenado.

    8e volta para ortugal, &oi visto por 8eolinda a bordo da galera do seu pai, (ue

    o tratava com desdm, se no despre)o. 1 &ilha do negreiro Q negreiro nocomeo da vida mercantil, mas depois Ubendita seja a civili)ao- &ilantroposeguidor das leis humanit%rias impostas pelo cru)eiro Q soube do seu pai ocrime do passageiro e no se compenetrou do racional horror de tamanhodelito. Dem (ue o condenado no ousasse abeirar!se dos mercadores, e menosdela, 8eolinda usou traas de conversar com ele uma &ugitiva hora de noiteserena, en(uanto o pai, no seu camarim, &ormava es(uadres de algarismos,dos (uais tirou a prova real de (ue os seus haveres e/cediam para muito osdu)entos contos (ue lhe atribuam.

    8esde essa hora da noite estrelada em (ue ela ouvira palavras nunca ouvidas,acendeu!se no corao combustvel da mulata o &ogo (ue costuma puri&icar asculpas do homem amado, tanto monta (ue ele seja moedeiro &also, comohomicida, (uer negreiro, (uer ladro de encru)ilhada.

    # ele soube (ue era amado da(uela mulher (ue havia de herdar muito ouro, enem por isso lhe deu o galardo de ?er descido at ao pobre estigmati)ado parasempre. :em palavra de humildade agradecida, nem Gnimo alvoroado por

    esperana de ser, a um tempo, amado e rico.8eolinda ousou argui!lo de &rio e desdenhoso. #le e/plicou docemente a sua&rialdade, di)endo (ue s" havia no mundo uma mulher (ue no devia despre)%!lo, e uma s" a (uem ele devesse amar sem pejo nem temor de ser repelido.

    < uem 0 Q perguntou ela em sobressalto.

    < H a minha me. Vou procur%!la e pedir!lhe perdo, por(ue pus a minhaignomnia $ cabeceira do seu leito de moribunda. Se a no mataram vergonhase saudades, por(ue 8eus (uer (ue eu a veja.

    FFF

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    uem sabe a di)er o (ue 8eus (uer de n"s0

    O degredado, na volta da p%tria, ali morreu na(uele nau&r%gio, depois (ue

    ajudou a salvar as crianas, as mulheres e os ancios, despedindo!se de todoscom a(uele sereno adeus (ue dissera $ &ilha do I&ricano.

    # 8eolinda, (uando soube (ue ele era um dos vinte e cinco cad%veresescalavrados na costa de Cabo Verde, chorou poucas l%grimas, e parecia (uererromper no seio uma represa delas, (ue lhe deliam os estames da vida.

    < #stamos pobres-Qe/clamava o pai.

    < ?emos de mais para o (ue havemos de viver Q respondia ela com uma alegre

    serenidade.

    < or(ue h%s de tu morrer, minha &ilha0 Q volvia ele, j% con&ormado com adesgraa.

    < or(ue senti h% pouco um estalo no corao e pensei (ue morria aba&ada.assou esta Gnsia, mas sei (ue hei de morrer disto. arece (ue vejo a sepulturaaberta e (ue o &rio do cad%ver me trespassa.

    O pai aconchegou!a ao seio, como (uem a(uece uma criana enregelada esoluou*

    < W meu 8eus, levai!me minha &ilha (uando eu me (uei/ar da vossa vontade(ue me redu)iu a esta pobre)a-

    FFF

    uando soou em 6uives a nova de haver chegado ao orto o I&ricano, com a

    &ilha, os homens ricos e pobres, da terra e de &ora, contriburam com mais oumenos para se lhes &a)er uma espera de estrondo em =amalico.

    Contrataram!se as bandas musicais mais em voga, ou mais na berra, comodi)iam os antigos. arece (ue a &rase seiscentista &oi inventada particularmentepara as or(uestras da(ueles stios, as (uais berram pelas suas goelas de metal,(uando a pai/o &ilarm4nica as no e/alta do berro ao mugido, do mugido aourro e do urro ao bramido. >% ali trombetas (ue parecem ?er assistido aoarrasar!se d Jeric" da Dblia, e se reservam para trovejarem o horrendo sinal daressurreio de Josa&at.

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    #ram (uatro as &ilarm4nicas chamadas a &estejarem a entrada de 1nt4nio8u(ue no conselho. 1 m'sica de 5andim, &amosa por seis cornetas de chaves,(ue e/ecutavam valsas e peas teatrais, de modo (ue, se 8ucis as ouvisse, diria(ue a "pera lrica balbuciara os seus prim"rdios entre as &lorestas drudicas. 1

    banda de =a&io competia com a de uin&es na substGncia das trompas etroada das cai/as. 1 de 6uives avantajava!se $s tr7s rivais na delicade)a dasmodas e sentimentalismo com (ue as charamelas respiravam o sopro da(uelesm'sicos, cujas bochechas pareciam estar cheias de alma e castanhas assadas.

    Sou um homem &eli) e digno de inveja. ?enho saboreado os inocentes deleites(ue prodigali)am ao seu audit"rio as (uatro bandas musicais de 5andim, =a&io,6uives e uin&es. uando algum amigo vai alegrar o ermo de S. 2iguel deCeide, chamo logo a m'sica mais delicada, a de 6uives9 principalmente se oamigo de 5isboa, e &re(uentador de S. Carlos. O senhor visconde de Castilho e

    o seu &ilho #ug7nio so chamados a depor neste processo da imortalidade (uevou instaurando ao &igle e $ re(uinta, principalmente $ re(uinta de 6uives. :ovi o senhor visconde chorar de pra)er, mas observei (ue S. #/a. estavacomovido (uando a re(uinta assobiava uns guinchos estridentes da 2ariaCachucha.

    ?om%s 6ibeiro, o poeta eminente, recolhia!se $s ve)es, no ao seu (uarto acala&etar os ouvidos, mas ao ntimo da sua alma a &a)er viveiro de inspiraes.#ug7nio de Castilho, o poeta das &antasias louras, (uer a m'sica de 6uives lhe

    amolentasse a sensibilidade, (uer os rou/in"is das ramarias lhe dessem invejasdos seus amores, &osse o (ue &osse, &oi assaltado e vencido de uma pai/o.

    #sta pai/o tem uma hist"ria. :o sei se ele tenciona escrev7!la nas suasmem"rias p"stumas9 e assim, cont%!la eu, esbulh%!lo da novidade e prima)ia9descon&io, porm, (ue o meu h"spede e amigo desconhece a hist"ria da(uelaraparigaa de cabelos de ouro e ancas boleadas (ue deslumbrava a d')ia dejovens re(uebradas (ue lhe apresentei na eira.

    Chamava!se ela 1mlia de 5andim. Contava!se (ue tinha vindo para ali da rodados e/postos de Darcelos. :aturalmente, por(ue era linda e pobre, ou sevendera ou tinha sido vendida. 1ssim se disse9 mas o certo &oi (ue um &ilho delavrador rico lhe dera o impulso no alto da ladeira, ao &undo da (ual estava avoragem. ode ser (ue a alma se abismasse e re(ueimasse no &ogo dos in&ernospor onde resvala a mulher perdida. ode ser. 8o corpo (ue ela no perdera amenor bele)a9 nem se(uer o vio dos de)oitos anos.

    ?eria ento vinte e cinco. :o era bele)a peninsular. 1(uele escarlate, os olhosa)uis, os opulentos cabelos louros, a pujana das &ormas, a musculatura rosada

    e rija, a elegGncia cong7nita, o riso, a desenvoltura sem despejo, a graa l'bricado trajo, en&im, a mulher, os arvoredos, a m'sica de 6uives, nomeadamente a

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    re(uinta, e no meio de tudo isto um rapa) de vinte e dois anos, poeta por(ue Castilho, e ardente por(ue trigueiro, e apai/onado por(ue ardente, eis a(uio por(u7 da(ueles amores.

    Castilho carecia de um con&idente com ouvidos e crtica. 1 poesia no lhe deupara se con&idenciar com os sobreiros da mata, nem me consta (ue ele seandasse a entalhar na cortia iniciais e datas.

    O seu con&idente &oi o morgado de ereira, 'ltimo senhor da honra e couro de#smeri), um rapa) de grande corao, (ue eu apresentei, no 5imoeiro, a JosCardoso Vieira de Castro, (ue, em B de Outubro do ano passado, morreu nodegredo, para onde o acompanhou a(uele morgado.

    #ste neto dos =erreiras #as e dos remotos casteles de 6iba de 1ve hoje, em

    Cassengo, na I&rica, negociante de ca&, de mar&im, de gomas, de &arinhas, etc.8epois de haver bandarreado vida de &austo, com muitas iluses perdidas, maspou(ussimas l%grimas, por(ue a desgraa lhe anda sempre a morder os tacesdas botas, em dia de &iis de&untos ajoelhava, e ento chorava, no cemitrio de5uanda, em &rente do c4modo onde ja) Vieira de Castro, o mais sublimedesgraado (ue os homens injuriaram, desde (ue o sol de 8eus a(uececondies de &eras dentro dos covis (ue se chamam arcas do peito.

    W meu caro morgado, estas linhas no chegam ao seu serto, nem eu desejo

    (ue as leia, para lhe no darem rebates de saudades da(uelas noites de @ARR,(uando voc7 e mais o seu gentil con&idente, com interveno da 5ua, &alavam da1mlia de 5andim, en(uanto os meus (ueridos visconde de Castilho e ?om%s6ibeiro se embele)avam nas trovas da Cust"dia da =eira, (ue seria >ipatias, senascesse na rcia, ou Corina, se os amavios de 3t%lia lhe coassem no seio coisasmais limpas do (ue as coplas (ue a trovadora do 2inho tirava do est4mago emper&umes de vinho verde.

    :o sei como #ug7nio de Castilho saiu de S. 2iguel de Ceide, pelo (ue respeita

    $ alma. 5% di)ia!se (ue 1mlia, a doida, veementemente apai/onada, iria dep"sele. #u receei o lano de &ino amor, donde adviriam ao meu h"spede agrosdesgostos. Se os de 5isboa lha vissem, (uantos rivais, (ue mordentssimosci'mes- 1(uilo era mulher para destinos e/travagantes. ue a sentassem numa&risa de S. Carlos- Os bin"culos assestados nela seriam tantos como as pai/es, eao outro dia a enjeitada de 5andim, se no &i)esse ministrios, havia de &a)ermuito amanuense de secretaria e dar va)o ao estan(ue de muito bacharel.

    :o &oi* estava!lhe reservado menos brilhante mas mais pac&ico destino.

    ;m dia, apareceu em 5andim um homem de Darcelos, procurando a mulher (uetrou/era da roda dos e/postos, em @AB@, uma menina chamada 1mlia. Vivia

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    ainda a ama (ue a criara. =oi chamada a e/posta $ presena do homem (ue sedi)ia portador de uma &austa nova.

    Chegou 1mlia, e recebeu do velho desconhecido o tratamento de e/cel7ncia.

    Cuidou!se ela ludbrio do sujeito e riu!se $s cas(uinadas para lhe agorentar opra)er da )ombaria.

    :o entanto, o velho, composto gravemente o aspeto, disse!lhe*

    < 2inha senhora, no para gargalhadas a misso (ue venho cumprir...

    < ois Vossa #/cel7ncia est% a dar!me e/cel7ncia- Q volveu 1mlia.

    < 8ou!lhe o tratamento do seu pai e dos seus av"s. O seu pai, o Sr. Ilvaro de

    2endanha, anti(ussimo &idalgo e representante dos alcaides!mores deDarcelos, &aleceu h% tr7s dias com testamento, em (ue declara (ue houvera deuma sua parenta, $(uele tempo &reira no mosteiro de Vairo, uma &ilha, (ue porjustos motivos e/pusera, assinalando!a com o nome e outras circunstGncias.1crescenta (ue tem notcia de e/istir em 5andim essa menina, (ue elereconhece sua &ilha, e a institui sua universal herdeira. H V.

    #/a., portanto, a herdeira do Sr. Ilvaro de 2endanha.

    1 ama abriu a boca e despediu um ah surdo, (ue vinha da garganta a&ogadapelo j'bilo.

    1mlia (uedou!se im"vel, pensativa, triste, e murmurou*

    < Se o meu pai sabia (ue eu estava a(ui, por(ue me no levou para a suacompanhia0

    < 6espondo, minha senhora. uando V.#/.E tinha de)oito anos, o seu pai

    indagou e descobriu (ue a Sr.E 8. 1mlia estava a(ui9 porm, ao mesmo tempo,e/atas ou ine/atas in&ormaes lhe asseveraram (ue a senhora levava uma vidapssima, desonrada e cheia de opr"brio. 6eceou, com algum &undamento, o Sr.Ilvaro de 2endanha (ue o aviltamento da sua &ilha deslu)isse o lustre do seunome, e por isso aba&ou o corao e o remorso debai/o do peso da dignidade,ou recuou diante da irriso do mundo...

    < 2as... Q interrompeu 1mlia Q se eu estava perdida, &oi por(ue ele me atirouao mundo e $ sorte sem amparo de ningum...

    < ?em ra)o, minha senhora, e &oi essa mesma a ra)o (ue moveu o seu pai adei/ar!lhe todos os seus bens.

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    < 2as eu antes (ueria conhec7!lo e melhor ser pobre, (ue ser rica por mortedele.

    < J% (ue no remedi%vel essa nobre dor Q disse o testamenteiro de2endanha Q receba V. #/a. a suprema prova do arrependimento do seu pai.

    :este legado dos bens est% o legado do corao. Seja de hoje em diante V.

    #/a. digna dele, j% (ue desde esta hora os seus apelidos so dos mais ilustresdesta provncia.

    :este mesmo dia, 8. 1mlia de 2endanha saiu para Darcelos, onde entrou aocultas para o palacete do seu pai, a &im de trajar luto e aparecer

    convenientemente aos numerosos parentes (ue con&luam a desanoj%!la.

    Os bens eram grandes em terras e &oros. Casa antiga e s"lida. 1l&aias do tempode 8. Joo V a dourarem os sales de teto apainelado, com reposteirosbrasonados. :a parte mais velha do edi&cio, cadeiras repregadas de bron)e,contadores atau/iados de prata e en/adre)ados a cores, guadamecins nasparedes, amplas mesas de ps torneados, leitos rendilhados com as armas dos2endanhas na espalda, bu&etes, jarras da Pndia com as iniciais de umgovernador de Chaul, oriundo de 2endanha, retratos de &amlia, a comearem

    em 8. il utierres de 2endanha, solarengo de Darcelos, no meio disto, esenhora de tudo isto, a(uela 1mlia de 5andim, " meu amigo #ug7nio deCastilho- 1(uela 1mlia, (ue sarabandeava a Cana verde, o 5eva %gua oregadinho, e descantava umas ?orradas com manteiga (ue no h% a mais (uese diga.

    < Onde estava ela0

    erguntavam entre si as primas e os primos.

    # di)iam e/atamente onde ela estivera e de (ue in&ectos pauis se levantara comasas de ouro a(uela borboleta sada de to &eio casulo-

    6elatavam!se os pormenores da sua desgraada vida, encareciam!se, como se&osse preciso, as desonestidades... e visitavam!na.

    Volvidos alguns meses, tr7s padres, $ compita, lhe saram a propor tr7scasamentos* rapa)es, parentes, abastados ou arruinados, mas &idalgos egentilssimos das suas pessoas.

    6ejeitou!os.

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    ;m dia, saiu 8. 1mlia de Darcelos, na sua sege, apeou em =amalico, saiu a p,e parou perto de 5andim, $ porta de um lavrador. rocurou por um homem (uedava pelo nome de 1nt4nio do Couto de Dai/o.

    Saiu a &alar!lhe no (uinteiro, ou alpendre, um sujeito de trinta anos, boa &igurade camp4nio, estupide) em barda por todo a(uele caro.

    < 1nt4nio Q disse ela Q, conheces!me0

    < 1 senhora, a senhora.... acho (ue ... Q tartamudeou o lavrador agadanhandono occipital.

    < Sou a 1mlia de 5andim. uando eu tinha @B anos, amei!te. #ra ento

    inocente. #sperava ser tua mulher, e perdi!me. O teu pai no te (uis dei/arcasar comigo, por(ue eu era pobre. Sei (ue so&reste, e (uiseste &ugir para oDrasil a &im de ganhares dinheiro, para depois me receberes. #u no te dei/ei ir.Sabes (ual &oi a minha vida depois. >oje estou rica, ainda te amo, por(ue &ostea origem da minha desventura. ueres casar comigo0

    6esponde.

    < uero.

    < #nto segue!me.

    < 8ei/a!me ir di)er a minha me, (ue essa (ueria (ue eu casasse contigo.

    < odes di)7!lo ao teu pai, (ue esse tambm (uer agora.

    #, da a momentos, o pai e a me saram ao alpendre, a receb7!la, e levaram!napara o sobrado entre carcias.

    1 pernoitou.

    O velho nunca p4de desarticular os (uei/os da apostura do espasmo, desde (ue8. 1mlia comeou a contar por milhares de al(ueires de milho o rendimentoda sua casa.

    1o outro dia, (ue era 8omingo, leram!se os primeiros banhos, e, com dispensados imediatos, casaram!se na 3greja de Santa 2aria de 1bade.

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    2as a (ue prop"sito caiu este conto, (ue no tem (ue ver com 1(uela Casa?riste-...

    1h- =oi p4r amor da re(uinta da m'sica de 6uives, (ue est% agora silvando na

    Darca da ?ro&a, $ espera de 1nt4nio 8u(ue, o I&ricano.

    1s (uatro m'sicas reunidas na onte da ?ro&a, 8epois de espavorirem ospassarinhos, (ue, ao descer da tarde, se embocavam nas ramarias do rio 1ve,retrocederam, por(ue o 8u(ue no chegou. Os promotores da &esta, mandandosobraar os &ei/es de &oguetes de tr7s estouros, disseram entre si (ue oI&ricano, &altando $ hora da espera triun&al, bem demonstrava ser &ilho docapador da 5amela. Outro era de parecer (ue o 8u(ue, tratando de resto aspessoas (ue o obse(uiavam, dava a perceber (ue no (ueria amigos... do seudinheiro.

    O I&ricano havia escrito de 5isboa ao seu &eitor, anunciando!lhe o dia em (uetencionava chegar $ sua casa de 6uives, com recomendao de lhe terpreparados os leitos e assoldadada uma boa criada para o (uarto da sua &ilha.

    8ivulgou o &eitor a nova, sem propalar a do nau&r%gio, por(ue a no sabia. Se ohomem lesse ga)etas, in&ormaria os seus vi)inhos do desastre do seu amo, dari(ue)a engolida pelas goelas da tormenta, da (uase pobre)a em (ue &icara on%u&rago, e, en&im, das piedosas l%stimas com (ue os peri"dicos deploravam a

    cat%stro&e de du)entos contos granjeados honestamente. Se isto se soubesseem 6uives, no haveria (uem se a&anasse em busca de m'sicas, competindoentre si os obse(uiadores sobre (ual arranjaria a(uela (ue maiores gritos &a)iadar $ &ama pelos buracos da re(uinta. uando $s vinte e (uatro d')ias de&oguetes de tr7s estouros (ue os rapa)inhos de 6uives tinham carregado at $onte da ?ro&a, bem de ver (ue ningum se abalanaria a tamanho estrondode generosidade, se soubesse (ue o 8u(ue no vinha em circunstGncias dechorar de ternura abraado ao peito magnGnimo donde rabeavam tantos&oguetes.

    :o dia marcado ao &eitor, devia o I&ricano chegar $ onte, onde era esperado9porm, apeando na estalagem de Carria, lgua e meia distante, ouviu di)er (uena ?ro&a estava o poder do mundo, com (uatro m'sicas e muito &ogo do ar, $espera de um brasileiro (ue vinha da I&rica.

    Ouvido isto, 8u(ue disse ao boleeiro (ue recolhesse a parelha da sege, por(ueresolvera sair de madrugada.

    8epois, &oi contar $ &ilha o (ue ouvira e o desgosto (ue (ueria evitar no

    encontro de &estas, to desapropositadas da triste)a de ambos.

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    8eolinda, prostrada no leito, aprovou a resoluo do pai, (uei/ando!se deagonias, su&ocaes e desmaios do corao, (ue mal a dei/avam seguir ajornada.

    assou o pai o restante do dia e parte da noite $ beira da cama, inventando comsanto es&oro alegrias (ue divertissem 8eolinda da concentrao (ue uma ououtra l%grima desa&ogava por momentos.

    1legrias-...

    ue herosmos cabem em peito de pai- uantos h% (ue so supliciados por esseamor (ue parece vir da mo de 8eus- ue maiores ang'stias tem esta vida, secompararmos todas $ da(uele pai (ue ali estava ao p da &ilha (ue os mdicosde 5isboa lhe tinham auscultado e considerado perdida-

    2as ele, acreditando na ci7ncia (ue tem a certe)a de ser leso mortal ahipertro&ia do corao, a&igurava!se!lhe (ue a rovid7ncia o no castigaria toseveramente, &a)endo!o sobreviver ao perdimento dos bens, para depoisamparar nos seus braos a &ilha agoni)ante. :unca discutira entre si se 8eus erapreciso, ou (ue parte lhe coubesse no regimento deste mundo.

    So meditaes estas (ue, em I&rica, passam r%pidas como o siroco, mas noabrasam, nem obrigam as caravanas a curvar o corpo at bater com as &aces nos

    areais. Os (ue por ali veniagam, $ imitao do pai de 8eolinda pensam, se acasopensam, (ue a justia do Cu tem alada em mais amenos climas e descurasaber se l% o homem tem mais ou menos semelhana com o tigre.

    orm, depois (ue o cu se a)ula e estrela, a(um da linha, e a brisa re&rigera osangue, os e/patriados, maiormente os ricos, no recusam crer (ue h% 8eus,dadas certas condies9 &a)em!lhe o obs(uio do conjeturar sentado $ modireita do adre #terno e absorvido na perenal gl"ria da sua divindade, sementender nas trivialidades deste globo, mais pe(ueno (ue os milhares de

    mundos (ue lhe circunvalam $ ourela do trono. #sta &iloso&ia grandiosa ebarata. Cansam!se os mestres em a propagar, e, todavia, (ual(uer sandeu bemengra/ado a tem espontGnea na alma, como tortulho em lodaal, sem (ue os&il"so&os lha incul(uem. #studem 1rio, #spinosa, 6enan e outros, a&ora o meubacalhoeiro, (ue tem dentro de si tr7s &il"so&os, um p"rtico, um liceu, dentro desi, repito, por(ue o si, o ele, so as cdulas banc%rias, a burra, (ue tem umnome de predestinao para aviso e escarmento de s%bios (ue se burri&icam,no (uerendo acabar de entender (ue saber, honras, regalos, respeitos,inviolabilidades, vem tudo da burra.

    Sucede, porm, uma ve) ou outra, encrespar!se uma onda, (ue logo se ar(ueiaem vagalho e se abre em voragem. 1 resvala a ri(ue)a do homem, (ue se

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    arrodelara com ela das &arpas do mundo. Os brilhantes impenetr%veis do arn7scaram e rolam na pro&undidade do abismo. 1(ui est% o homem a pensar em8eus, por(ue est% pobre, est% so)inho, j% se no v7 dolo dos outros e divindadede si pr"prio. 1 desgraa, (ue tra) sempre consigo um anjo vestido no Cu com

    uma lu) (ue arde ine/tinguvel no t'mulo de Slvio lico, assenta!se ao lado doin&eli) e comea por lhe di)er*

    +ue eram esses bens da vida, se to depressa te redu)iste a esta pobre)a0Olha tu para as estrelas (ue cintilam serenamente sobre a voragem (ue tosdevorou, e pede ao meu anjo (ue te diga o (ue h% destes milhes de mundospara alm-+ 1h- uando esta vo) repercute na consci7ncia de um pai, e aomesmo tempo a asa da morte roa e tinge de rubor &ebril a &ace da sua &ilha,ento sim, 8eus entrelu) na treva, a alma cr7, mas cr7 para pedir de moserguidas. 3sto &, & (ue relampagueia9 mas eu no sei se alguma hora a

    ra)o dos grandes desgraados &oi iluminada por esse relGmpago.

    elo (ue, assim orava o I&ricano, $s (uatro horas da manh, em p, em &rentedo leito da &ilha adormecida.

    FFF

    #ntraram na casa apalaada de 6uives, inesperadamente.

    uando o souberam os vi)inhos, um correu $ igreja a repicar o sino e a sineta,outro rompeu as nuvens com girGndolas, a or(uestra da terra, (ue andavadispersa a sachar os milharais, con&luiu de galope a casa do mestre, escodeou asmos no regato, travou dos metais e prorrompeu estridulamente $ porta doI&ricano, tocando o hino de X, o hino do Sr.

    Costa Cabral, o hino da Sra. 2aria da =onte, o hino do Sr. 8u(ue de Saldanha eo do Santo adre io 3Y.

    O I&ricano saiu $ janela com a sua &ilha, cortejou o p'blico, assistiu a dasma)urcas tocadas com variaes de re(uinta e pediu vnia para recolher!se, emra)o da sua &ilha se sentir mal com o sol (ue lhe dava no rosto.

    O p'blico murmurou, trejeitando uns momos signi&icativos de menos respeito.

    O &eitor &oi di)er ao seu amo (ue era preciso dar de beber aos m'sicos ereceber a visita dos parentes e mais lavradores.

    O 8u(ue respondeu*

    < V% a &ora ao p%tio e diga bem alto (ue eu estou pobre.

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    < obre- Q acudiu o &eitor cas(uinando um riso perspica). Q Dem me &io eunisso- Vossa #/cel7ncia est% a go)ar-...

    < =aa o (ue lhe digo Q volveu severamente o amo.

    #, de &ato, o criado &oi ao p%tio, chamou a si os lavradores mais grados, o mestreda m'sica, o botic%rio de 8eles, e o botic%rio de 5andim, e o regedor deVermoim, e disse!lhes*

    < O 3lustrssimo Senhor 8u(ue manda!me di)er a vossemec7s (ue est% pobre.

    Os circunstantes olharam uns para os outros, embrutecidos pelo mesmocho(ue. ;m deles, porm, (ue eu presumo &osse um dos dois botic%rios, deu

    aos beios um jeito de (uem vai orar. #ncararam!no todos, e o botic%rio tiroudo peito estas duas palavras*

    < Ora bolas-

    # saiu do p%tio.

    ?enho es(uadrinhado o melhor sentido da(uelas palavras do %tico&armac7utico. Consultei &il"logos (ue mais convi)inham deste sujeito, e apenas

    colhi (ue as e/presses montavam tanto como di)er* ora bolas.

    #u porm, dou mais lata interpretao ao epi&onema, sabendo (ue todo a(uelegentio bolourou para casa.

    FFF

    O I&ricano, passados seis meses, procurou um brasileiro rico de :ines,recentemente chegado, e disse!lhe*

    < Sei (ue o senhor est% resolvido a edi&icar uma casa. Se (uer poupar!se agrandes despesas, inc4modos e desgostos, compre!me a minha.

    Vendo!lha metade do (ue me custou, com uma condio* se eu e a minha &ilhano tivermos morrido dentro de seis meses, serei obrigado a dar!lhe a casa no&im deste pra)o9 mas, nestes primeiros seis meses, o senhor no poder% ocup%!la.

    ediu o brasileiro e/plicaes de to estranha cl%usula.

    O 8u(ue respondeu*

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    < 2inha &ilha est% mortalmente en&erma. ?em um aneurisma. #u tambm mesinto no termo da vida. Vou morrendo a cada hora (ue a doena me dei/a ver amorte na &ace da minha &ilha. :o hei de sobreviver!lhe, se 8eus me no &i)er o

    bene&cio de me levar adiante.

    Consolou!o o brasileiro con&orme soube, aceitou a proposta e assinou asescrituras no dia seguinte, entregando ao vendedor alguns contos de ris.

    agou o I&ricano as dvidas contradas em Cabo Verde, encerrou!se naantecGmara do (uarto da sua &ilha, e deu!se pressa em agravar os seuspadecimentos $ custa de se remirar no seu in&ort'nio, de cortar bem dentro as&ibras ainda rijas do corao antecipando a imagem da &ilha morta, repulsandotodo o alvio da esperana, &urtando!se a todo o desa&ogo, matando!se com a

    lentido de um desvairado (ue se escavernasse num antro, esperando semterror a entrada da &era e ansiando!a para se lhe rasgar nas presas.

    1o (uinto m7s do contrato, os padecimentos de 8eolinda tocaram nose/tremos sintomas da morte. 1s hemorragias amiudaram!se. #stava j%entorpecida, im"vel, salvo (uando arrancava do seio as aspiraes, (uerevelavam ao travs das coberturas da cama os ar(uejos do corao.

    :esta conjuntura, o pai estabeleceu entre si e 8eus uma conveno (ue era j%

    delrio precursor da dem7ncia ou da morte* +Se ela hoje morrer, ou 8eus memata amanh ou, (uando ela estiver sepultada, eu me matarei.+ O p%roco, (uesacramentara 8eolinda, ouviu esta vo)es e disse aos botes da sua batina* +#stehomem est% no 3n&erno.+ uando &icou so)inha, 8eolinda chamou o pai e disse!lhe*

    < :o (uero ir desta vida sem di)er!lhe um segredo com (ue no devo morrer.:o meu ba' est% uma cai/inha de &olha, (ue o mar lanou $ praia, depois donau&r%gio. 5evaram!me em Cabo Verde esta cai/inha, pensando um marujo (ue

    &osse minha. 1bri!a, e vi (ue encerrava cartas de uma me muito e/tremosapara seu &ilho. O &ilho era a(uele rapa) (ue vinha do degredo, e salvou os velhose as crianas antes de morrer. 1 me, (ue lhe escrevia, di)!lhe em algumascartas (ue tem sentido as ang'stias da &ome.

    Chama!se ela... O meu pai lhe ver% o nome e a terra onde vivia... Se tivermorrido, &eli) dela. Se ainda viver, meu pai, manda!lhe como esmola o (ue &icardo meu esp"lio e diga!lhe (ue eu... lhe amei o seu in&eli) &ilho... at morrer...por ele-...

    < Cumprirei a tua vontade, minha &ilha Q respondeu o pai.

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    8itas a(uelas palavras, o I&ricano encarou na &ilha com a &i/ide) torva de umamaur"tico. 8epois, como se sentisse dobrar sobre os joelhos, saiu da alcova,

    atirou!se como brio para o leito, e murmurou estas vo)es*

    < 2eu 8eus- 2orro por amor da minha &ilha, e ela... morre por outro...

    Dem podia consentir a desgraa (ue eu morresse sem este desengano...

    Vinte anos a adorar esta &ilha, um ano a agoni)ar ao p da sua agonia... e a&inalouo!lhe di)er (ue morre por um homem... (ue no era o seu pai...

    #scabujou em Gnsias muito a&litivas, pedindo a 8eus com dilacerante es&oro

    (ue lhe abreviasse o transe. 6ompeu em soluos9 e, su&ocado pelo choro ou porum gol&o de sangue, arrancou da vida num estremecimento instantGneo.

    8eolinda ouviu o murm'rio rouco desta convulso da morte, e voltou a &acepara onde supunha (ue estava o pai.

    Chamou!o. Sentou!se no leito com supremo es&oro. ?angeu a campainha.1cudiu a criada, a (uem ela pediu (ue lhe desse o seu vestido.

    =oi nos braos da criada $ sala contgua, onde o pai tinha o seu leito.

    8obrou!se sobre o peito dele, colhendo!lhe nos l%bios um h%lito ainda (uente,como vestgio da alma (ue passara (ueimando as &ibras por onde abrira a &ugado seu in&erno.

    < 2orto- Q bradou ela, gol&ando!lhe no seio o derradeiro sangue.

    ?ransportada ao canap carairo, ali se (uedou empedernida. :o houve rogos

    (ue a tirassem de l%. Viu amortalhar o cad%ver do seu pai, viu!o sair no es(ui&epara ser depositado na capela da casa, ouviu o 'ltimo dobre da sepultura9 eento, comprimindo o seio es(uerdo com ambas as mos, invocou a compai/oda Virgem Santssima e e/pirou.

    FFF

    5% est% em cima a(uela casa triste... O brasileiro (ue a comprou no a (uishabitar. 1s janelas nunca mais se abriram. O vestido (ue despiram do cad%verde 8eolinda pende ainda da espalda do canap em (ue ela morreu.

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    UMA PRAGA ROGADA NAS ESCADARIAS DA FORCA

    #ste romance no dever% chamar!se +romance+. 8esde (ue esta palavra oatilho onde se en&ei/am as mentirosas invenes do escritor &an%tico, no h%

    hist"ria verdadeira (ue possa, como tal, recomendar!se com a(uele ttulo.

    #stes acontecimentos, e/postos a(ui, segundo o &ormul%rio romGntico, ea&eioados $s leis do estilo romGntico, so verdades (ue no deram brado, nemse agravaram na mem"ria da gerao (ue as viu e as no compreende.

    :a vida moral da sociedade h% &en4menos cuja causa ningum estuda. :odrama da &amlia h% lances (ue so do domnio p'blico, e o p'blico no pode,ainda (ue o tente, e/plic%!los. :as atribulaes individualssimas do homem h%

    &ases e/traordin%rias de so&rimento, (ue esta sociedade de entranhas cruis lherecrimina, reputando!lhes e&eitos necess%rios das causas, conse(u7ncias docrime volunt%rio.

    1 sociedade, a &amlia, e o homem e/piam incessantemente a culpa do homem,da &amlia e da sociedade. Opera!se uma contnua redeno do g7nero humano.O homem , desde o seu princpio, a vtima da culpa com o l%bio colocado noc%lice da agonia.

    1 vida sobre a terra uma intermin%vel e/piao. #u pago pelos crimes do meupai, meus &ilhos e/piando meus crimes, e o 'ltimo ser vivo da animalidadeinteligente ser% o holocausto do primeiro homem criminoso. H &oroso recorrerao inconcebvel, ao sobrenatural, ao misticismo da provid7ncia culta paracompreender o (ue vulgarmente se di) +&atalidade+.

    :a hist"ria, (ue vai ser lida, to sensvel esta necessidade, to aterrado sesente o esprito diante de um &ato consumado, (ue eu no tive escr'puloreligioso ou &ilos"&ico em subordinar um encadeamento de in&ort'nios de uma&amlia $ praga rogada nas escadas da &orca.

    FFF

    Dernardo da Silva era um &ilho bastardo de uma podre de Viseu. 8o ventrematerno passou $ roda dos e/postos e da aos cuidados de uma mulher daaldeia.

    1os de) anos no conhecia pai9 e a sua me, mulher do povo, arrastada sobre alama da plebe toda a sua vida, morrera com o segredo do nobre, (ue se dignara

    descer at ela para honr%!la com desonra.

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    Dernardo, aos de) anos, era aprendi) de al&aiate, e de todos os seuscompanheiros era ele o mais despre)ado, por(ue tambm era o maispreguioso.

    O rapa) vivia triste como se a idade lhe permitisse compreender a dor imensade um grande desastre. 5% dentro da(uele corao in&antil &alava uma pro&ecia&'nebre. Com os olhos sempre e/t%ticos no hori)onte negro do seu &uturo, opobre rapa) no tinha uma hora livre para o trabalho. 2uitas ve)es umabo&etada acordava!o da(uele letargo9 e o brao, (ue estava suspenso com aagulha, continuava a tare&a molhada de l%grimas.

    1os @Z anos, era ainda um aprendi) de al&aiate, repelido deste para a(uelemestre, desacreditado em todos, e inutilmente espancado por todos.Chamavam! no incorrigvel, e ele mesmo conheceu (ue o era.

    1bandonou a agulha, e &oi servir em casa de =rancisco de 5ucena. #ra, a, comoem toda a parte, conhecido pelo +Dernardo #njeitado+. :unca ningum selembrou de reput%!lo &ilho de algum nem 5ucena se lembrou, alguma ve), de(ue um dos seus muitos &ilhos, atirados $ roda, poderia ser seu lacaio.

    Dernardo era criado de t%bua.

    FFF

    #ste o&cio era!lhe mais generoso (ue o de al&aiate. ?inha muitas horas livrespara a sua melancolia, e muitos esconderijos no amplo pal%cio do seu amo parare&ugiar!se de uma sociedade (ue ele detestava sem saber por(u7.

    #ste viver e/cecional na(uela classe galho&eira, est'rdia, e estragada, e/citou acuriosidade dos seus companheiros, e, depois, a dos amos, 1(uelescras(ueavam!no com desabrimento* estes admiravam! no por compai/o.

    Dernardo chorava sem motivo. Sorria!se com viol7ncia. #ra humilde com umno sei (u7 de estranha delicade)a. 8estacava!se da sua classe com um arorgulhoso, mas no calculado. Cumpria as suas muitas obrigaes, e ningumsabia (uando as cumpria. #stas (ualidades, rarssimas ve)es encontradas numlacaio, tornavam!no assunto para os amos, (ue comeavam a interessar!se naan%lise da(uele obscuro enjeitado.

    uardadas as inau&erveis distGncias (ue separam o senhor do servo, os &idalgossouberam (ue Dernardo desejava muito saber ler, e gastava a maior parte danoite soletrando o abeced%rio, decorando as lies (ue o mordomo da casa lhe

    dava nas horas de desen&ado.

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    ual(uer (ue &osse o impulso (ue a isso o levou, certo (ue o amo, por umnobre impulso, permitiu (ue o rapa) &osse a uma escola, e para isso aliviou!odos encargos de moo de t%bua, e elevou!o $ hierar(uia de escudeiro domenino mais velho.

    FFF

    ;m ano depois, Dernardo &i)era admir%veis progressos. 5ia com intelig7ncia o(ue lia9 escrevia com acerto, e aprendera s" consigo a gram%tica portuguesa,visto (ue os seus amos lhe tinham permitido esta segunda parte dos seusestudos. Seria um caprichoso lu/o permitir ao servo ci7ncia (ue os amos notinham- O Senhor de 5ucena no daria o menor dos seus galgos pela vastaci7ncia do 5obato. #, talve), tivesse ra)o.

    #m casa de &idalgo desta bitola, (uando um criado ad(uire a con&iana dosamos, h% sempre para isso uma de duas ra)es. Ou o criado, devasso como eles,encobre astuciosamente as devassides dos amos9 ou se torna estim%vel pelo)elo honroso com (ue procura encobrir!lhes, j% (ue no pode repreender!lhes.

    Dernardo estava na segunda ra)o. Os &ilhos de 5ucena eram livres edesmorali)ados a no poder ser mais. uiseram captar a benevol7ncia do servo,no para aconselh%!los, (ue no desciam eles a isso, mas para acompanh%!losem empresas di&ceis, da(uelas em (ue o brao do plebeu muitas ve)es a

    salvao das costas do &idalgo.

    :o o conseguiram nunca9 mas tambm no tiveram de arrepender!se dacon&iana deste convite. Dernardo e/ercia uma in&lu7ncia admir%vel sobre osnobres libertinos. #ra a superioridade da intelig7ncia. Ouviam!no, emaravilhavam!se do acerto das suas ideias, e da linguagem escolhida com (ue oenjeitado se saa- O &ato de ser enjeitado era em Dernardo, talve), um motivode superstio na(uela casa. Se ele &osse reconhecido &ilho de algum borra!botas, com em linguagem nobili%r(uica se chama um plebeu, decerto lhe no

    dariam a importGncia do considerarem pela intelig7ncia. 2as o mistrio, apossibilidade de ser verg4ntea in&eli) de um tronco ilustre, cingiam!lhe a cara deuma aurola entre nuvens, (ue poderia talve), mais tarde, dissipar!se, e dei/arna plenitude da sua lu) a(uele &ruto do amor criminoso de alguma raanobilssima, mais ou menos aparentada com os 5ucenas-

    ?