cervantes - novelas exemplares
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Miguel de Cervantes Saavedra
Novelas exemplares
1971
2ª Edição
Tradução de
Darly Nicolana Scornnaienchi
Com licença da Editôra Boa Leitura,
São Paulo, detentora do Copyright para a língua portuguêsa.
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PRÓLOGO
Quisera, se fôsse possível, leitor amigo, deixar de escrever êste prólogo,porque não me saí tão bem no que fiz para o meu Dom Quixote a ponto dequerer um segundo prólogo.
A culpa disto cabe a um dos muitos amigos que, no decorrer de minhavida, pude granjear, mais por minha condição do que por mérito próprio,
amigo que bem poderia, como é de costume, cinzelar-me e esculpir-me, na
primeira fôlha dêste livro, pois o famoso Dom Juan de Jáuregui dera-lhe meuretrato: com isto, ficariam satisfeitos a minha ambição e o desejo dos que
quisessem conhecer o rosto e o porte de quem se atreve a comparecer, comtantas intenções, em praça pública, aos olhos de tanta gente, e colocar-se-ia
debaixo do retrato: “Este, que aqui vêdes, de rosto aquilino, de cabelo castanho,de testa lisa e alta, de olhos alegres e nariz adunco, ainda que bemproporcionado, de barbas de prata que, há mais de vinte anos foram de ouro, de
bigodes grandes, bôca pequena, dentes nem de mais nem de menos, porque são
apenas seis e, ainda assim, em má condição, muito mal dispostos, pois não têmcorrespondência uns com os outros; o corpo, entre dois extremos, nem grande,
nem pequeno; de côr viva, mais branca do que morena, de espáduas um tantolargas e de pés não muito ligeiros; êste, digo, é o retrato do autor de A Galatéia
e de Dom Quixote de la Mancha e daquele que fêz Viagem do Parnaso, àsemelhança de César Caporal Perusino e outras obras que andaram perdidaspor aí, talvez até sem o nome de seu dono, que se chama Miguel de Cervantes
Saavedra. Foi soldado durante muitos anos, escravo por cinco anos e meio e foiaí que aprendeu a ter paciência na adversidade. Perdeu, na batalha naval de
Lepanto, a mão esquerda com um tiro de arcabuz, defeito que, embora pareçafeio, êle o considera formoso por tê-lo conseguido na mais memorável e difícildas ocasiões que os séculos passados jamais viram, nem hão de ver os séculos
vindouros, lutando sob a bandeira vencedora de Carlos V, filho do raio daguerra, de quem se lembra com muita saudade. E se êste amigo, do qual me
queixo, não se lembrasse de dizer, a meu respeito, outras coisas além das jámencionadas, eu acrescentaria a mim próprio duas dezenas de depoimentos eos daria em segrêdo a fim de que engrandecesse meu nome e tornasse meu
talento digno de crédito, pois pensar que os tais elogios dizem somente a
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verdade é disparate, e isso porque nem os elogios nem os vitupérios têmfundamento, tampouco são verdadeiros.
Enfim, já que o tempo se foi e eu passei em branca nuvem, serei obrigado a
valer-me de minha lábia, que, embora gaguejante de natureza, não o será parafalar certas verdades que, embora ditas por metáforas, possam ser entendidas
claramente.E assim, digo-te outra vez, leitor amigo, que de maneira alguma poderás
fazer confusão com as novelas que te ofereço, porque elas não têm nem pé, nem
cabeça, nem miolo ou coisa parecida; quero dizer que os galanteios amorosos,que em algumas encontrarás, são honestos e tão orientados pela razão e pelos
preceitos cristãos, que não podem levar a um mau pensamento tanto o
descuidado como o cuidadoso que os ler.Dei-lhes o nome de Exemplares e, se observares bem, não verás nenhuma
da qual não se possa tirar algum exemplo proveitoso e, se não fôsse prolongardemasiadamente êste assunto, talvez eu te mostrasse o saboroso e honesto fruto
que se pode obter tanto de tôdas juntas como de cada uma em separado.Minha intenção foi colocar, em praça pública, uma mesa de trucos, onde
cada um possa divertir-se sem prejuízo das barras (No jôgo de truque ou truco é
um aro de ferro fixo na mesa. N.T) isto é, sem prejuízo da alma ou do corpo,
porque os exercícios honestos e agradáveis oferecem mais benefícios do quemales.
Sim, porque não é só estar nos templos, ou só ocupar as tribunas, ou sóescravizar-se aos negócios, por mais necessários que sejam; há também horas de
descanso para que o irrequieto espírito possa repousar.Para isto, fazem-se as alamêdas, procuram-se as fontes, aterram-se as
encostas e cultivam-se, de maneira curiosa, os jardins.
Uma coisa, porém, eu me atreverei a dizer-te: se, de algum modo, fizesseeu com que a leitura destas novelas induzisse quem as lesse a algum mau
desejo ou pensamento, preferiria cortar a mão que as escreveu a publicá-las.Minha idade não está para brincar com a outra vida.
Para isto esforçou-se o meu engenho, leva-me por aqui a minha vocação;
eu me considero - e assim o é - o primeiro a novelar em língua castelhana, poisas inúmeras novelas que nela andam impressas são tôdas traduzidas de língua
estrangeira e estas aqui são minhas mesmo, não são imitadas, nem roubadas;concebeu-as o meu talento, pariu-as a minha pena e vão crescendo nos braçosda imprensa. Depois delas, se a vida me permitir, eu te oferecerei os Trabalhos
de Persiles, livro que se atreverá a competir com Heliodoro, se o tiro não lhe
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sair pela culatra; primeiro verás, e ràpidamente, dilatadas as fachadas de DomQuixote e a galhardia de Sancho Pança; logo a seguir, as Semanas do Jardim.
Estou prometendo muito para fôrças tão insignificantes como as minhas, mas
quem haverá de frear os desejos? Quero que consideres apenas isto: se eu tive aousadia de oferecer estas novelas ao grande Conde de Lemos, há algum
mistério secreto que as edifica. Apenas isto; de resto, que Deus te guarde e quedê a mim paciência para considerar um bem o mal que há de falar de mim umameia dúzia de melindrosos e almofadinhas. Adeus.
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O Amante Liberal
Ó lamentáveis ruínas da infeliz Nicósia, ainda molhadas do sangue devossos valorosos soldados e desafortunados defensores! Se tivésseis sentimento,na solidão em que nos encontramos, poderíamos lamentar juntos nossas
desgraças e talvez o fato de têrmos encontrado companhia nelas aliviasse nossotormento; a esperança de alívio pode ter-vos abandonado, meus arruinados
torrões, pois, ainda que não fôsse para defender uma causa tão justa comoaquela pela qual vos derrubaram, poderíeis levantar-vos outra vez; mas eu -pobre de mim! -, que ventura poderei esperar na miserável solidão em que me
encontro, ainda que volte ao estado em que me achava antes dêste em que mevejo agora? É grande minha desgraça, pois na liberdade não tive ventura e naescravidão não a tenho, nem a espero.
Estas palavras, pronunciava-as um prisioneiro cristão, olhando, de umaencosta, as muralhas destruídas de Nicósia já perdida; falava com elas e
comparava suas misérias com as dêle, como se elas fôssem capazes de entendê-lo; fatos comuns nos aflitos que, levados pela imaginação, fazem ou dizemcoisas despidas de razão ou de lógica.
Nisto, saiu de uma das quatro barracas ou tendas que havia naquelaplanície um jovem turco de muito boa aparência e elegante, que, chegando-se
ao cristão, lhe disse:- Aposto, Ricardo amigo, que são os teus pensamentos que te trazem a
êstes lugares.
- Sim - respondeu Ricardo, pois êste era o nome do prisioneiro -, mas denada me adianta, porque em parte alguma encontro alívio nem descanso; pelo
contrário, estas ruínas que daqui se avistam serviram apenas para aumentarminha dor.
- As ruínas de Nicósia?
- E de quais querias que eu falasse, se não há outras perante os nossosolhos?
- Se te entregas a estas contemplações terás de chorar muito - disse-lhe o
amigo -, pois os que vieram há dois anos para esta afamada e rica ilha de
Chipre, tranqüila e sossegada, gozando seus moradores de tudo aquilo que a
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felicidade humana pode conceder aos homens; os que vieram há dois anos paracá, pensando agora nos desterrados ou contemplando os que ficaram nela,
prisioneiros e miseráveis, como poderão deixar de chorar tal calamidade e
desventura? Mas deixemos estas coisas de lado, porque não têm remédio, evamos às tuas, pois quero ver se elas o têm; peço-te, pela boa vontade que te
demonstrei, pelo fato de sermos ambos da mesma pátria e nos têrmos criado juntos na infância, que me digas a causa de tua excessiva tristeza, pois, emborao fato de ser escravo seja bastante para entristecer o coração mais alegre do
mundo, imagino que tuas desgraças já venham de longe, porque os espíritosgenerosos como o teu não costumam entregar-se às desgraças comuns, dando
mostras de extraordinária coragem, e o que mais me faz pensar nisto é saber
que podes dar quanto pedirem pelo teu resgate, já que não és pobre; tambémnão estás nas tôrres do mar Negro como prisioneiro incondicional que, tarde ou
nunca, poderá alcançar a liberdade desejada, e, assim, não tendo a sorte levadoa esperança de te pores livre, é natural que eu, vendo-te entregue às
manifestações de tua desventura, imagine procederem os teus males de outracoisa além da liberdade que perdeste; suplico-te, pois, que me digas a causa deteu sofrimento e me coloco também à tua disposição; talvez, para que te
pudesse servir, quis a sorte que eu vestisse êste hábito, que tanto me aborrece.
Já sabes, Ricardo, que meu amo é o cádi (Cádi: magistrado judicial entre osmuçulmanos. N.T) desta cidade; equivale ao bispo em tua terra; sabes também o
quanto êle é poderoso e quanto sou influente junto dêle; além disso, não ignoraso desejo ardente que tenho de não morrer neste estado com o qual pareço
concordar, e, quando não puder mais, terei de confessar e declarar em alta voz afé que tenho em Jesus Cristo, de quem me separou minha pouca idade eentendimento, embora saiba que tal confissão há de custar-me a vida; mas para
não perder a alma, pouco me importa perder a vida do corpo; por tudo isto,espero que deduzas e consideres que te pode ser de algum proveito minha
amizade e que, para saber quais os remédios ou alívios para tua desdita, é tãonecessário que me fales dela quão necessária é ao médico a informação dopaciente, e asseguro-te que a mergulharei no mais profundo silêncio.
Ricardo escutou calado todos os argumentos do amigo e viu-se obrigado aresponder - meu amigo Mahamut, se descobrisses um remédio para meus
males da mesma forma como descobriste minha desdita, julgaria muito bemempregada a perda de minha liberdade e não trocaria minha desgraça pelamaior ventura que se pudesse imaginar; contudo, sei que ela é tão grande que o
mundo todo poderia saber a causa de sua origem; mas não haverá nêle pessoa
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alguma que se atreva a encontrar um remédio ou ao menos um alívio; todavia,para que fiques satisfeito, tudo te contarei, com o menor número possível de
palavras; antes, porém, de entrar no confuso labirinto de meus males, quero que
me digas por que razão meu amo, o Paxá Hazan, mandou levantar nestaplanície estas tendas e barracas antes de entrar em Nicósia, para onde vem
como vice-rei ou paxá, que é como os turcos chamam os vice-reis.- Eu te explicarei logo - respondeu Mahamut -, e assim ficarás sabendo que
entre os turcos é costume o vice-rei de alguma província não entrar na cidade
onde seu antecessor mora, até que êle saia dela e deixe o nôvo paxá fazerlivremente o balanço da administração; enquanto êle se estabelece, o antigo
permanece no campo esperando a parte que lhe cabe pelo cargo que
desempenhou, e isto se faz sem que êle possa intervir para valer-se de subornosou amizades, se é que já não fêz tal coisa antes de sair; feito o balanço, êle é
dado em um pergaminho fechado e selado àquele que deixa o cargo, que seapresenta com êle à porta do grão-senhor, o que equivaleria a estar na côrte
perante o Grande Conselho; vendo o pergaminho, o vizir e os outros quatropaxás menores - é como se disséssemos: o presidente do Conselho Real eassistentes - ou premiam-no ou castigam-no, segundo a relação ali exposta; se é
culpado, paga o crime com dinheiro e salva-se do castigo; se não é culpado e
não o premiam, como acontece geralmente, com dádivas e presentes, consegueo cargo que mais deseja, porque os cargos e profissões não são dados por
merecimento e sim por dinheiro; tudo se vende e tudo se compra; osprovedores dos cargos roubam aos providos e os esfolam; dêste cargo
comprado consegue-se dinheiro para comprar outro cargo que oferece maisvantagens; tudo é como digo, todo êste império é violento, sinal de que não háde durar muitos anos; acredito, e há de ser verdade, atiram sôbre seus ombros
nossos pecados, quero dizer, os pecados daqueles que descaradamente e a tortoe a direito ofendem a Deus, tal como eu faço; que êle tenha piedade de mim!
Pelos motivos que te expus é, pois, que teu amo, o paxá Hazan, permaneceunesta planície por quatro dias, e se o paxá de Nicósia ainda não saiu é por terpassado muito mal; porém, já está melhor e sairá hoje ou amanhã, sem dúvida
alguma; há de alojar-se em uma das tendas que ficam atrás desta encosta e queainda não viste; teu amo entrará logo na cidade. Aí tens a resposta do que me
perguntaste.- Então escuta - falou Ricardo -, mas não sei se poderei cumprir o que te
havia prometido antes, isto é, que em breves palavras te contaria minha
desventura, isto porque ela é tão longa e tão grande que razão alguma pode
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compreendê-la; contudo, farei o que puder e o que o tempo permitir; assimpergunto, antes de mais nada, se conheces, em Trápana, uma jovem, apontada
como a mais formosa mulher que existiu em tôda a Sicília; uma jovem que tôdas
as pessoas leigas diziam, e os mais raros entendidos confirmavam, ser a maisperfeita formosura de todos os tempos, a quem os poetas cantavam e diziam
possuir cabelos de ouro, dois olhos que eram dois sóis resplandescentes; suasfaces, rosas purpúreas; seus dentes, pérolas; seus lábios, rubis; seu pescoço,alabastro; e que tanto as partes se harmonizavam com o todo e o todo se
harmonizava com as partes, constituindo perfeita e maravilhosa harmonia,espargindo por tudo uma suavidade de côres tão natural e perfeita que mesmo
uma pessoa despeitada jamais pôde encontrar nela defeito algum. Será possível,
Mahamut, que ainda não me tenhas dito quem é e como se chama? Acho quenão me ouves ou que quando estavas em Trápana não tinhas olhos para ver.
- Para dizer a verdade, Ricardo - falou Mahamut -, se esta criatura, cujabeleza pintaste com tanta veemência, não fôr Leonisa, a filha de Rodolfo
Florêncio, não sei quem seja, pois somente ela possuía a fama de que falaste.- É isso mesmo, ó Mahamut! É essa, amigo, a principal causa de tôda a
minha felicidade e de tôda a minha desventura; é por ela e não pela liberdade
perdida que meus olhos derramaram e derramarão lágrimas sem conta e por
quem meus suspiros inflamam o ar, perto e longe, e por quem minhas palavrasfatigam ao céu que as escuta e aos ouvidos que as ouvem; é por causa dela que
me julgaste louco ou pelo menos de pouco valor e menor coragem; Leonisa,Leoa para mim e ovelha para outro, é quem me pôs neste estado miserável, pois
hás de saber que, desde a mais tenra idade ou pelo menos desde que pude fazeruso da razão, não somente a amei como também a adorei e servi com tantasolicitude como se não houvesse na terra ou no céu outra a quem servir ou
adorar. Seus parentes e seus pais sabiam de minhas intenções e jamais seaborreceram com isso, pois sabiam que se dirigiam para um fim honesto e
virtuoso; e sei também que muitas vêzes disseram a Leonisa que me aceitassecomo espôso. Mas ela, que só tinha olhos para Cornélio, filho de Ascânio Rótulo- tu o conheces bem -, rapaz elegante, apresentável, de mãos macias e cabelos
ondulados, de voz suave e palavras doces, todo feito de âmbar e alfenim, bemvestido e sempre enfeitado de brocado, não quis voltar seus olhos para meu
rosto, que não é tão agradável como o de Cornélio, não quis sequer agradecer osmuitos e constantes serviços que lhe prestei, pagando minha boa vontade comdesdém e aversão; chegou a tal ponto meu amor por ela que considerava uma
felicidade o fato de ela aniquilar-me, à fôrça de desdém e ingratidão, contanto
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que não fizesse favores, ainda que honestos, a Cornélio; e, como se não bastasse,amigo, a angústia, a maior e a mais cruel para os ciúmes, causada pelo desdém
e pela aversão, minha alma viu-se agitada por dois males mortais: os pais de
Leonisa encobriam os favores que ela prestava a Cornélio, acreditando, e comrazão, que o môço, atraído por sua incomparável e peregrina formosura, a
escolhesse para espôsa, conquistando, desta maneira, um genro mais rico doque eu; estaria tudo bem se assim fôsse, mas não conseguiram, modéstia àparte, alguém de melhor condição que a minha, ou alguém de melhores
intenções, nem sequer de maior valor que o meu. Falando eu de minhaspretensões, pude saber, nesse meio de tempo, que em um dia do mês de maio -
faz exatamente um ano, três dias e cinco horas - Leonisa, seus pais, Cornélio e
os seus iam divertir-se, com tôda sua parentela de criados, no jardim deAscânio, que fica perto da praia, a caminho das salinas.
- Sei onde fica - disse Mahamut. - Estive lá por mais de quatro dias, bemmais de quatro dias. Prossegue, Ricardo.
- Soube-o - continuou Ricardo -, e no mesmo instante apoderou-se deminha alma uma fúria, uma raiva e um mundo de ciúmes, com tanta veemênciae rigor que fiquei fora de mim, como hás de ver pelo que em seguida fiz. Fui ao
jardim, onde me disseram que estavam, e encontrei a maior parte das pessoas
divertindo-se debaixo de uma nogueira, embora um pouco distantes, viCornélio e Leonisa sentados. Qual dêles desapareceu primeiro da minha vista
não sei; sei apenas dizer que a imagem de Leonisa me ofuscou de tal forma queperdi a visão e permaneci como estátua, sem voz ou movimento algum; não
demorou, porém, que a irritação despertasse a cólera, a cólera, o sangue nasveias, o sangue, a ira, a ira, as mãos e a língua, embora minhas mãos sedetivessem por respeito ao formoso rosto que tinha diante de mim. A língua,
porém, interrompeu o silêncio com estas palavras: “Ficarás contente, ó inimigamortal de meu sossêgo, mantendo, diante de teus olhos, a causa que fará meus
olhos viverem em perpétuo e doloroso pranto; aproxima-te, aproxima-te,mulher cruel, aproxima-te um pouco mais e entrelaça tua hera neste troncoinútil que te busca; desembaraça ou penteia os cabelos de teu nôvo Ganimedes
que te solicita mansamente, entrega-te aos verdes anos dêste jovem a quemamas, porque eu, perdendo a esperança de possuir-te, perderei também esta
vida que me enfastia; pensas, porventura, soberba e tresloucada, que somentecontigo não se hão de executar as leis e castigos que se usam no mundo emcasos semelhantes? Pensas, quero dizer, que êste jovem, orgulhoso de sua
riqueza, convencido de sua elegância, inexperiente por sua pouca idade,
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confiante em sua linhagem, há de querer ou poder ou saber manter-se fiel emseus amôres ou estimar o inestimável, ou conhecer o que conhecem os maduros
e os experimentados anos? Não o penses, se é que pensas, porque a melhor
coisa que o mundo faz é repetir os fatos sempre da mesma forma para queninguém se engane, a não ser que seja por sua própria ignorância; nos poucos
anos reside a inconstância; nos ricos, a soberba; a vaidade, nos arrogantes, e nosfamosos o desdém, e naqueles que possuem tudo isto ao mesmo tempo reside aestupidez; que é a mãe de todo mau sucesso. E tu, jovem, que pensas roubar o
prêmio que minhas intenções merecem mais do que teus desejos fúteis, por quenão te levantas dêste tapête de flôres onde estás e não vens arrancar a alma que
tanto te detesta? E me ofendes não pelo que fazes, mas porque não sabes avaliar
o bem que a ventura te concede; percebe-se claramente que não a estimas, poisnão queres mover-te ou defendê-la para correres o risco de descompor o
exagerado alinho de tua elegante roupa; se Aquiles estivesse na tranqüilidadeem que te encontras, seria difícil a Ulisses levar a cabo seu intento; olha-te e
alegra-te entre as criadas de tua mãe e cuida de teus cabelos, de tuas mãos maishábeis para enrolar fios de sêda que para empunhar a espada”. Apesar de tôdasestas palavras, Cornélio não se levantou do lugar onde o encontrei sentado;
primeiro, permaneceu quieto, olhando-me como que encantado, sem mover-se;
o elevado tom de voz com que eu lhes disse as palavras que ouviste fêz chegar,aos poucos, o pessoal que andava pelo jardim; puseram-se êles a escutar outros
impropérios que dirigi a Cornélio; êste, encorajando-se com a presença dopessoal que para ali viera, pois todos ou quase todos os outros eram seus
parentes, criados ou conhecidos, fêz menção de querer levantar-se, mas, antesque se pusesse de pé, tomei de minha espada e agredi não só a êle, mas tambéma todos que ali estavam;
Leonisa, mal viu minha espada reluzir, desmaiou, fato que me deu maiscoragem e despeito ainda maior; não sei dizer-te se as inúmeras pessoas que me
atacavam procuravam antes de mais nada defender-se, como quem se defendede um louco furioso, ou se foi minha boa estrêla e agilidade, ou o céu que mequeria reservar para males ainda maiores, pois feri sete ou oito dos que estavam
mais ao meu alcance. A agilidade de Cornélio lhe foi tão útil que, parecendo terasas nos pés, fugiu, escapou de minhas mãos; estando eu metido neste perigo,
cercado por meus inimigos, que, ofendidos, procuravam vingar-se, socorreu-mea sorte, mas com um remédio tal que fôra melhor ter deixado ali a vida que vir aperdê-la mil e mil vêzes a cada hora que passa; foi então que, inesperadamente,
apareceu no jardim uma enorme quantidade de turcos vindos de duas galeotas
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de corsários de Viserta que haviam desembarcado por uma enseada que haviaali por perto, sem serem vistos pelas sentinelas das tôrres da marinha, nem
descobertos pelos agentes e vigias da costa; quando meus inimigos os viram,
deixaram-me sozinho e com grande rapidez puseram-se a salvo de todos os queestavam no jardim; os turcos puderam aprisionar apenas três pessoas e Leonisa,
que estava ainda desmaiada; os turcos surpreenderam-me com quatro feridashorríveis como revide às quatro feridas que eu fizera em outros tantos turcos eque deixara estendidos no solo, sem vida. Realizaram êste assalto com sua
costumeira rapidez; não muito contentes com o resultado, embarcaram elançaram-se ao mar e, à fôrça de vela e remo, em curto espaço de tempo
chegaram a Fabiana; revistaram a tripulação para ver quem lhes faltava e,
vendo que os mortos eram quatro soldados daqueles chamados por êles de“levantes” e dos melhores e mais estimados que possuíam, quiseram vingar-se
em mim; assim, o capitão da galeota mandou descer a corda para me enforcar.Leonisa, que já voltara a si, observava tudo isto; vendo-se em poder dos
corsários, derramava abundantes e formosas lágrimas e, esfregando suasdelicadas mãos, sem dizer palavra, ouvia atentamente para ver se entendia oque os turcos diziam; um dos cristãos do remo, entretanto, disse-lhe em italiano
que o capitão mandava enforcar aquêle cristão, e apontou-me, porque tinha
matado, para defendê-la, quatro dos melhores soldados das galeotas; ouvindoisso, Leonisa apiedou-se de mim pela primeira vez; pediu ao cativo que falasse
aos turcos para não me enforcar, pois perderiam um bom resgate; pediu aindaque voltassem a Trápana, porque logo haviam de me resgatar; esta foi a
primeira e será a última caridade que me fêz Leonisa, tudo isso para aumentarainda mais os meus males. Os turcos, ouvindo o que o prisioneiro lhes dizia,acreditaram nêle, e então a cólera cedeu lugar ao interêsse. Na manhã do outro
dia, içando a bandeira da paz, voltaram a Trápana; o que sofri naquela noitenão é difícil de imaginar, não tanto pela dor que as feridas me causavam,
quanto por imaginar o perigo que corria minha cruel inimiga nas mãosdaqueles bárbaros. Chegadas à cidade, uma das galeotas entrou no pôrto e aoutra permaneceu fora; o pôrto inteiro e a margem tôda encheram-se logo de
cristãos; o belo Cornélio, de longe, olhava o que se passava na galeota; um demeus mordomos apresentou-se logo para tratar de meu resgate, mas disse-lhe
eu que não tratasse de maneira alguma de minha liberdade, e sim da de Leonisae que desse por ela tudo quanto eu tinha; ordenei-lhe ainda que voltasse edissesse aos pais de Leonisa que o deixassem tratar da liberdade de sua filha e
que não se preocupassem com ela. Feito isso, o capitão, que era um renegado
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grego chamado Izuf, pediu por Leonisa 6.000 escudos mais 4000, acrescentandoque só venderia os dois juntos; pediu êle esta grande soma, segundo eu soube
depois, porque estava enamorado de Leonisa e não queria resgatá-la ou dá-la ao
capitão da outra galeota, com quem teria de repartir pela metade as prêsas quese fizessem; pedindo por mim 4.000 escudos e 6.000 em dinheiro, faria 5.000 e
ficaria com Leonisa por outros 5.000, sendo êste o motivo pelo qual nos avaliouaos dois em 10.000 escudos. Os pais de Leonisa não ofereceram nada por ela,atendendo ao pedido que, por minha ordem, lhes fizera meu mordomo;
Cornélio também não abriu a bôca em seu favor; assim, depois de muitoconversar, meu mordomo propôs dar 5.000 escudos por Leonisa e 3.000 por
mim. Izuf aceitou a proposta, persuadido pelas palavras de seu companheiro e
pelo que diziam os seus soldados, porém, como o mordomo não tivesse tãogrande quantidade de dinheiro disponível, pediu três dias de prazo para juntá-
lo com a intenção de vender minhas propriedades para realizar-se o resgate.Izuf regozijou-se com isso, pensando encontrar, nesse meio de tempo,
oportunidade para que o acôrdo não fôsse adiante e, voltando-se para a ilha deFabiana, disse que no prazo de três dias voltaria para buscar o dinheiro. A sorteingrata, porém, não contente com minhas desgraças, fêz com que uma sentinela
dos turcos, colocada como vigia no ponto mais alto da ilha, descobrisse, em
meio ao mar, seis veleiros latinos, e imaginou, o que aliás era verdade, que fôsseou a esquadra de Malta ou alguma esquadra da Sicília; desceu ràpidamente
para dar a notícia e, num abrir e fechar de olhos, todos os turcos que estavamem terra, um preparando o que comer, outro lavando a roupa, embarcaram e,
levantando ferros, com uma rapidez jamais vista, soltaram o remo às águas, asvelas ao vento e, viradas as proas, em direção da Berbéria, em menos de duashoras, perderam-se de vista, e assim, protegidos pela ilha e pela noite que se
aproximava, recobraram-se do susto que haviam passado. Deixo à tuaimaginação, ó Mahamut amigo, a consideração de meu estado de espírito
naquela viagem tão contrária àquilo que esperava; o dia seguinte me foi aindapior, pois, tendo as duas galeotas chegado à ilha de Pantanaléa, ali pelo meio-dia, saltaram os turcos à terra para fazer lenha e carne, como êles dizem; vi
quando os dois capitães desceram à terra e se puseram a repartir tudo o quehaviam apreendido; a cada uma de suas divisões eu parecia morrer aos poucos;
quando foram repartir a mim e a Leonisa, Izuf deu a Fetala, o capitão da outragaleota, seis cristãos, quatro para o remo e dois rapazes formosíssimos, daCórsega, e eu fui incluído entre êles, para poder ficar com Leonisa; Fetala
contentou-se e eu, embora presenciasse a tudo, nunca pude entender o que
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diziam, embora soubesse o que faziam, nem entenderia até hoje aquela partilhase Fetala não se chegasse a mim e me dissesse em italiano: “Cristão, já és meu
prisioneiro, deram-te a mim por 2.000 escudos de ouro; se queres a liberdade
tens de dar 4.000 escudos; se não, morres aqui”. Perguntei-lhe se a môçatambém lhe pertencia; disse-me que não, que ela ficaria com Izuf, tendo êste a
intenção de torná-la moura e casar-se com ela. E era verdade, porque um dosprisioneiros do remo, que entendia bem a língua dos turcos, ouviu o trato feitoentre Izuf e Fetala. Pedi a meu senhor que desse um jeito de ficar com a môça e
eu lhe daria, pelo resgate dela, 10.000 escudos de ouro. Respondeu-me êle quenão era possível, mas que faria Izuf saber da grande soma que eu lhe oferecia
por ela, e Izuf, movido pelo interêsse, talvez mudasse de opinião e aceitasse.
Cumpriu a palavra e ordenou que todos os tripulantes de sua galeotaembarcassem logo, pois queria ir a Trípoli ou a Berbéria, de onde era. Izuf
decidiu ir para Veserta, apesar de tudo; embarcaram ambos com a mesmapressa que costumavam ter quando descobriam as galeras dos que temiam ou
uma embarcação que quisessem roubar; apressaram-se porque julgaram que otempo estava mudando e prenunciando uma borrasca.
Leonisa ficara em terra, mas em um lugar em que eu não pude vê-la, a não
ser na hora de embarcarmos, pois chegamos juntos à costa; seu nôvo amo e
também seu mais recente namorado levava-a pela mão e, ao entrar pela escadaque ligava a terra à galeota, voltou os olhos para me ver; os meus, que não se
desviavam dela, olharam-na com tanto sentimento e dor que, sem saber como,se antepôs a êles uma nuvem que me tirou a visão e eu caí por terra, sem
sentidos; disseram-me depois que o mesmo acontecera a Leonisa, pois viram-nacair da escada ao mar, e que Izuf mergulhou logo atrás dela e a trouxe nosbraços; isto contaram-me dentro da galeota de meu senhor, onde me haviam
pôsto sem que eu o sentisse, mas, quando voltei de meu desmaio, vi que estavasozinho na galeota e que a outra embarcação, tomando caminho diverso,
afastava-se de nós, levando com ela metade de minha alma ou, para melhordizer, tôda ela; meu coração apertou de nôvo e de nôvo eu maldisse minhadesventura e chamei a morte em altas vozes; minhas palavras eram tão sentidas
que meu amo, cansado de ouvir-me, ameaçou-me com um grande cajado,dizendo-me que, se não me calasse, me bateria; reprimi as lágrimas, engoli os
suspiros, acreditando que a fôrça despendida nisso arrebentaria de maneira aabrir uma porta para a alma que tanto desejava abandonar o corpo miserável; asorte, porém, não contente ainda por haver-me pôsto em situação tão difícil,
decidiu acabar com tudo, levando as esperanças de todo o meu alívio, e foi
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então que, num instante, se desencadeou a tempestade tão temida; o vento que,depois do meio-dia, soprava e atirava-nos à proa, pôs-se a bater com tanta fôrça
que foi necessário voltar para êle a pôpa e deixar a embarcação correr por onde
o vento queria levá-la. O capitão queria contornar a ilha e abrigar-se nela peloslados do norte, mas seu plano não deu certo, pois o vento soprou com tanta
fúria que tudo o que havíamos feito em dois dias foi pôsto a perder; em poucomais de catorze horas vimo-nos a 6 ou 7 milhas da própria ilha de ondehavíamos partido e sem dúvida nenhuma íamos bater de encontro aos
penhascos; os de nossa embarcação faziam o mesmo, ao que parece, com maisvantagem e esfôrço que os da outra, pois cansados pelo trabalho, vencidos pela
fúria do vento e da tormenta, soltaram os remos e deixaram-se ir, perante
nossos olhos, bater nos penhascos, onde a galeota deu tão grande golpe que sefêz tôda em pedaços; a noite começava a cair, os gritos dos que se perdiam e o
mêdo dos que, em nossa embarcação, temiam perder-se foram tais que não seentendiam nem se cumpriam as ordens de nosso capitão; cuidava-se apenas de
não soltar os remos das mãos, achando-se que a única solução era voltar a proaao vento e lançar as duas âncoras ao mar para retardar a morte certa; ainda queo mêdo de morrer fôsse geral, em mim era o contrário, porque, com a esperança
enganosa de ver no outro mundo aquela que, há tão pouco tempo, havia se
afastado dêste, cada momento em que a escuna demorava para naufragar oupara ir de encontro aos penhascos era, para mim, um século da mais penosa
morte; as ondas revoltadas que passavam por cima do barco e de minha cabeçafaziam-me ficar atento para ver se, com elas vinha o corpo da infeliz Leonisa;
não quero parar agora, Mahamut, para te contar minuciosamente ossobressaltos, os temores, as ânsias, os pensamentos que tive naquela noite,longa e amarga, para não contrariar o propósito que fiz de narrar-te
ràpidamente minha desventura; meus sofrimentos foram tantos que, se a morteviesse naquele momento, teria de lutar muito pouco para tirar-me a vida; veio o
outro dia prenunciando uma tempestade mais forte que a do dia anterior eachamos que a embarcação tinha virado um bom pedaço, tendo-se afastadobastante dos penhascos, aproximando-se de uma ponta da ilha; turcos e
cristãos, vendo-se na possibilidade de contorná-la, criaram nova esperança enovas fôrças; ao fim de seis horas dobramos o cabo e encontramos o mar bem
mais sereno e sossegado, de modo a usarmos mais fàcilmente os remos;abrigados pela ilha, os turcos puderam saltar em terra para ver se havia ficadoalguma relíquia da galeota que na noite anterior batera nos penhascos; mas não
quis o céu conceder-me ainda a graça tão esperada de ter em meus braços o
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corpo de Leonisa, porque, embora morto e despedaçado, gostaria de vê-lo, paracontrariar minha estrêla que me impediu de juntar-me a êle como o mereciam
minhas boas intenções; pedi, então, a um renegado que queria desembarcar,
para procurá-lo e ver se o mar o teria atirado à praia, mas, como já disse, tudoisto negou-me o céu, pois, no mesmo instante, tornou o vento a enraivecer-se,
de modo que a proteção da ilha de nada nos adiantou; Fetala, vendo isto, nãoquis lutar contra a sorte que tanto o perseguia e, assim, mandou prender otraquete (Traquete: vela grande do mastro da proa. N.T) ao mastro e levantar um
pouco as velas; virou, logo a seguir, a proa ao mar e a pôpa ao vento, e,encarregando-se êle próprio do timão, deixou-se levar pelo mar imenso, certo
de que nenhum empecilho atrapalharia seu caminho; na coxia (Cochia: Espaço da
pôpa à proa no meio da coberta do navio. N. T.) os remos mantinham-se na mesmadireção; permaneciam todos sentados nos bancos e nas ameias; em tôda a
galeota, via-se apenas o comitre (Comitre: oficial que, nas galés, tinha a seu cargo
dirigir a marcação e castigar os remadores. N.T.) que, para maior segurança, fêz-se
prender fortemente à estandeiro a embarcação ia com tanta velocidade que, noprazo de três dias e três noites, passando por Trápana, Melazo e Palermo,entrou pelo farol de Messina, para espanto de todos que íamos dentro dela e
daqueles que, da terra, nos olhavam. Enfim, para não ser tão cansativo em
descrever a tormenta como foi em tôda a sua porfia, digo que, cansados,famintos e fatigados por têrmos de rodear quase tôda a Sicília, chegamos a
Trípoli de Berbéria, onde meu senhor, antes de fazer o balanço dos despojos,dar a seus camaradas o que lhes tocava e mais a quinta parte ao rei, segundo o
costume, sentiu tão grande dor nas costas que, dentro de três dias, foi parar noinferno; o rei de Trípoli e o alcaide, mantido pelo chefe dos turcos e que, comosabes, recebe os bens dos mortos que não possuem herdeiros, tomaram conta de
todos os seus bens, apoderaram-se ambos das propriedades de Fetala, meusenhor, e eu passei a pertencer ao alcaide, que era então vice-rei de Trípoli; dali
a quinze dias foi êle nomeado vice-rei de Chipre; com êle vim até aqui semintenção alguma de me fazer resgatar; embora tenha-me êle dito muitas vêzespara que eu o faça, pois sou homem importante, segundo lhe disseram os
soldados de Fetala, jamais o atendi; disse-lhe mesmo terem-no enganado os quefalaram da grandeza de minhas posses; se queres que eu te diga todo o meu
pensamento, Mahamut, hás de saber que não quero voltar aonde eu possa terconsôlo e quero que, reunindo-se à vida do cativeiro, os pensamentos elembranças da morte de Leonisa jamais me abandonem, não me façam
alimentar gôsto algum de viver, e, se é verdade que as dores contínuas se hão
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de acabar ou acabar com quem as padece, as minhas também não poderãodeixar de ser assim, porque penso não lhes dar trégua, de modo que, dentro de
poucos dias, dêem cabo da vida miserável que sustento tão contra a minha
vontade.É esta, ó Mahamut amigo, minha triste vida; é esta a causa de meus
suspiros e de minhas lágrimas; vê e considera, se és capaz de tirá-las dasprofundezas de minhas entranhas e gerá-las na aridez de meu peito aflito;Leonisa morreu e com ela minha esperança, pois a que eu tinha, enquanto ela
viveu, manteve-se por um delicado fio de cabelo; contudo, contudo.E neste contudo pegou-se-lhe a língua de modo a não poder falar nem
mais uma palavra nem conter as lágrimas, que, como se costuma dizer, corriam-
lhe pelo rosto com tanta abundância que chegaram a umedecer o solo.Mahamut chorou também, mas, passada aquela exaltação causada pela
lembrança amarga, quis Mahamut consolar a Ricardo com as melhores palavrasque encontrou; êste, porém, interrompeu-o dizendo:
- O que deves fazer, amigo, é aconselhar-me o que fazer a fim de cair naantipatia de meu amo e de todos aquêles que estiverem ao meu redor para que,sendo detestado por êles, possa ser maltratado e perseguido, de modo que,
acrescentando a dor à dor e a pena à pena, possa eu alcançar brevemente meu
desejo de acabar com a vida.- Sei agora que é verdade quando se diz que o que se sente sabe-se
também dizer, embora algumas vêzes o sentimento emudeça a língua, mas, dequalquer maneira, Ricardo, quer as tuas palavras exprimam exatamente a tua
dor, quer elas a ultrapassem, sempre hás de encontrar em mim um verdadeiroamigo, ou, para ajudar-te ou para aconselhar-te, pois, ainda que minha poucaidade e o desatino que cometi ao vestir êste hábito estejam dando mostras de
que não sou digno de tua confiança, farei com que tua suspeita não secomprove nem seja verdadeira tua opinião e, ainda que não queiras ser
aconselhado ou protegido, nem por isso deixarei de fazer o que te convier,como costumam fazer com o enfêrmo que pede o que não lhe dão e dão-lhe oque lhe convém; em tôda a cidade não há quem possa ou valha mais do que o
cádi, meu amo, nem mesmo o teu, que vem como vice-rei; e, assim sendo, possodizer que sou o mais poderoso da cidade, pois consigo com meu patrão tudo o
que desejo; digo isto porque poderia combinar com êle para que passasses a lhepertencer e, em minha companhia, o tempo nos dirá o que havemos de fazerpara te consolar, se queres e podes ter consôlo, e a mim, para mudar de vida ou
pelo menos encontrar um lugar onde eu possa sentir-me melhor.
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- Agradeço-te, Mahamut, a amizade que me ofereces - falou Ricardo -,embora esteja certo que por mais que te esforces não hás de realizar nada em
meu benefício; deixemos, porém, tudo isto e vamos para a tenda, porque, pelo
que vejo, sai da cidade muita gente e, sem dúvida, é o antigo vice-rei que sedirige à planície para ceder lugar a meu amo, a fim de que êle entre na cidade e
fixe residência.- É isso mesmo - falou Mahamut. - Vem, então, Ricardo, e verás como se
recebem mutuamente, pois sei que gostarás de vê-los.
- Já está mesmo na hora - falou Ricardo. - Talvez eu precise de ti, se poracaso o guardião dos prisioneiros, que é um renegado corso e de má índole,
tiver dado pela minha falta.
Pararam de conversar e chegaram às tendas na hora em que o antigo paxáse aproximava e o nôvo saía para recebê-lo à porta da tenda. Ali, pois êste era o
nome do paxá que deixava o govêrno, vinha acompanhado pelos janízaros(janízaro: Oficial de diligências dos tribunais mouros. N.T.), mais ou menos uns
quinhentos, que geralmente permanecem de guarda em Nicósia, depois que osturcos a conquistaram; vinham êles em duas alas ou fileiras, uns com escopetas,outros com alfanjes; chegaram à porta do nôvo Paxá Hazan; todos o rodearam e
Ali, inclinando-se, fêz profunda reverência a Hazan; êste inclinou-se, mas
discretamente, e o saudou. Ali entrou rápidamente no pavilhão de Hazan; osturcos colocaram-no sôbre um poderoso cavalo, ricamente ajaezado, e, levando-
o à tenda redonda, por quase tôda a planície, ouviu-se que êles gritavam em sualíngua: “Viva, viva o Sultão Soliman e Hazan, seu representante!” Repetiram
estas palavras muitas vêzes, aumentando as vozes e o alarido, para depoisvoltarem à tenda onde havia ficado o Paxá Ali, que se fechou a sós com o cádi ecom Hazan pelo espaço de uma hora.
Mahamut disse a Ricardo que êles se haviam fechado para tratar do queconvinha fazer na cidade com respeito às obras que Ali deixara começadas.
Logo depois, saiu o cádi à porta da tenda e falou bem alto, em turco, árabe egrego, que todos os que quisessem entrar e pedir justiça ou fazer qualquer outracoisa contra o Paxá Ali podiam entrar livremente, pois o Paxá Hazan, a quem o
grão-senhor enviava como vice-rei de Chipre, haveria de lhes dar razão e justiça. Os janízaros deixaram livre a porta da tenda e permitiram entrar todos
os que quisessem. Mahamut fêz entrar com êle Ricardo; que, por ser escravo deHazan, pôde entrar livremente. Entraram também gregos, cristãos e algunsturcos, mas pediam todos coisas tão insignificantes que o cádi os despachou
sem precisar de anotações à parte, de altos interrogatórios ou respostas, pois
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tôdas as causas, com exceção das matrimoniais, despacham-se logo,dependendo mais do bom senso da criatura que de alguma lei, e entre aquêles
bárbaros o cádi é o juiz competente para tôdas as causas, abreviando-as e
fazendo executá-las em um abrir e fechar de olhos, sem que haja apelação dasentença para outro tribunal.
Neste momento entrou um chauz (chauz: Oficial inferior de justiça. N.T.),
que é mais ou menos como um aguazil, dizendo que à porta da tenda havia unsSoldados turcos que faziam parte da guarda do sultão.
Achava-se também ali um judeu que trazia uma jovem cristã lindíssima equeria vendê-la; o cádi ordenou que o fizesse entrar; o chauz saiu para voltar
logo em seguida com um venerável judeu, que trazia pela mão uma mulher
vestida, com roupas da Berbéria; estava ela mais enfeitada e bem vestida que amais rica moura de Fêz ou Marrocos, que, no enfeitar-se, supera tôdas as
africanas, até mesmo as de Argel com tôdas as suas pérolas; seu rosto estavacoberto por um tafetá carmesim; nos tornozelos, que estavam à mostra, viam-se
duas pulseiras ou carcajes, como as chamam os árabes, e que pareciam ser deouro puro; nos braços, que transpareciam por sob fino cendal, trazia outraspulseiras de ouro e pérolas; para resumir, ela estava rica e elegantemente
enfeitada. Admirados, o cádi e os outros paxás, antes de falarem ou
perguntarem qualquer coisa, ordenaram ao judeu que a fizesse tirar o véu; o judeu assim o fêz e viu-se um rosto que deslumbrou os olhos e alegrou os
corações de todos os que ali estavam; e foi como o sol, que, por entre fechadasnuvens, depois de muita escuridão, aparece aos olhos daqueles que o desejam;
tal era a beleza, a elegância e a graça da prisioneira cristã; mas em quem amaravilhosa luz que se havia descoberto produziu maior impressão foi noinfeliz Ricardo, porque êle, melhor do que ninguém, a conhecia, pois era sua
amada Leonisa, que tantas vêzes e com tantas lágrimas tinha sido chorada etida por morta. Ali, à vista inesperada da singular beleza da môça, viu-se ferido
e submisso; o mesmo aconteceu com Hazan, pois não se pôde livrar da mesmachaga amorosa que se abrira no coração do cádi, o mais impressionado de todose que não podia tirar os olhos dos formosos olhos de Leonisa. E, para aumentar
as poderosas fôrças do amor, formou-se, naquele mesmo instante, no coraçãodos três, o desejo de possuí-la; e assim, sem querer saber como, onde e quando
teria ela chegado ao poder do judeu, perguntaram-lhe que preço pedia por ela;o cobiçoso judeu respondeu que seu preço era de 4.000 dobras, que vêm a ser2.000 escudos; mal declarou êle o preço, o Paxá Ali apressou-se em aceitar e a
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mandar buscar o dinheiro em sua tenda; entretanto, Hazan, que não queriaperdê-la, ainda que para isso devesse arriscar a própria vida, falou:
- Eu também dou por ela as 4.000 dobras que o judeu pede, e não as daria
nem ousaria contrariar a vontade de Ali - e êle há de concordar comigo - se estagentil escrava não pertencesse tão-somente ao nosso grão-senhor, e, assim, digo
que a compro em seu nome; vejamos agora quem se atreverá a tirá-la de mim.- Eu - replicou Ali -, que por esta mesma razão quero comprá-la, e cabe-
me, a mim, fazer êste presente ao grão-senhor, pela facilidade que tenho de
levá-la imediatamente a Constantinopla, granjeando com isso as boas graças dogrão-senhor, pois, como bem vês, Hazan, sou um homem que acaba de ficar
sem cargo algum e preciso então, mais do que tu, arranjar um meio de
consegui-lo, pois estás seguro por três anos, já que hoje começas a governar êsteriquíssimo reino de Chipre; por estas razões e por ter sido eu o primeiro a
oferecer o preço pedido pela prisioneira, é justo, ó Hazan, que a deixes paramim.
- O grão-senhor há de me agradecer muito mais pelo fato de procurá-la eenviá-la - falou Hazan -, porquanto eu o faço sem ser movido por nenhuminterêsse; e, quanto à facilidade para levá-la, não há problema, porque equiparei
uma galeota somente com meus homens e meus escravos, que a levarão.
Irritou-se Ali com estas palavras e, levantando-se, empunhou o alfange,dizendo:
- Sendo minha única intenção, ó Hazan, levar esta mulher ao grão-senhore tendo sido eu o primeiro comprador, é justo que a deixes para mim, e se
pensares o contrário êste alfange que empunho defenderá meus direitos ecastigará teu atrevimento.
O cádi, que estivera atento e que, não menos que os dois, receava ficar sem
a môça, imaginou como apagar o fogo que se acendera e ao mesmo tempo ficarcom a escrava sem despertar suspeita alguma de sua má intenção, e assim,
levantando-se, colocou-se entre os dois e disse:- Sossega-te, Hazan, e tu Ali, fica quieto, que eu estou aqui e saberei
conciliar ambas as vontades de modo que consigais vossos intentos e que o
grão-senhor seja servido como desejais.Obedeceram os dois às palavras do cádi e teriam obedecido mesmo que
êle tivesse ordenado coisa mais difícil, tal é o respeito que os componentesdaquela seita perversa devotam a seus superiores; o cádi prosseguiu dizendo:
- Tu dizes, Ali, que queres dar esta cristã ao grão-senhor, e Hazan também
diz o mesmo; tu alegas que, por seres o primeiro a oferecer o preço, ela há de
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ser tua; Hazan te contradiz e, embora êle não saiba apresentar suas razões, omotivo dêle é o mesmo que o teu, isto é, a intenção, que sem dúvida deve ter
nascido ao mesmo tempo que a tua, de querer comprar a escrava para o mesmo
fim; só que tens a vantagem de tê-lo declarado primeiro, mas isto não é motivopara anular a boa intenção dêle; parece-me que a melhor maneira de resolver a
situação é a seguinte: a escrava pertencerá a ambos e o destino dela há de serdecidido pela vontade do grão-senhor, para quem ela foi comprada; tu, Hazan,pagarás 2.000 dobras, e tu, Ali, outras duas mil e a cativa ficará em meu poder,
para que, em nome de ambos, eu a envie a Constantinopla, a fim de que eutambém receba alguma recompensa pelo fato de estar presente; assim, ofereço-
me para levá-la, às minhas expensas, com tôdas as honras à altura da pessoa à
qual ela será enviada, escrevendo também ao grão-senhor tudo o que aqui sepassou e a boa vontade que ambos demonstraram em servi-lo.
Não souberam, não puderam, nem quiseram contradizê-lo os dois turcosenamorados, e, embora vissem que daquela maneira não realizariam seus
desejos, concordaram com o parecer do cádi, acalentando cada um a esperança,ainda que duvidosa, de poder levar ao fim seus ardentes desejos. Hazan, queficaria como vice-rei de Chipre, pensava em oferecer tantos presentes ao cádi
que êle, vencido e obrigado, haveria de lhe dar a prisioneira. Ali imaginou fazer
alguma coisa que lhe assegurasse conseguir o que desejava, e cada um,acreditando realizar sua intenção, aceitou fàcilmente o que o cádi propôs, e,
com o consentimento e a vontade de ambos, entregaram-na logo e apressaram-se em pagar ao judeu 2.000 dobras cada um; o judeu acrescentou ainda que não
haveria de dá-la com as roupas que ela vestia, pois valiam elas outras 2.000dobras, e assim era na verdade, porque nos cabelos, meio soltos, caindo pelasespáduas, e meio presos, unidos com laços, viam-se algumas fileiras de pérolas,
que, extremamente graciosas, a êles se misturavam; os anéis dos pés e das mãospossuíam também enormes pérolas; vestia-lhe o corpo uma almalafa (Almalafa:
Traje mouro que cobre o corpo, desde o ombro até os pés. N.T) de cetim verde, tôdabordada e cheia de fios de ouro; todos acharam que o judeu pedira pouco pelovestuário, e o cádi, para não se mostrar menos liberal que os dois paxás, disse
que êle queria pagar para que a jovem se apresentasse ao grão-senhor daquelemesmo jeito; os dois contendores acharam que assim estava bom, cada um
acreditando que tudo haveria de cair em seu poder.Não esqueçamos, porém, de dizer o que sentiu Ricardo ao ver que faziam
leilão de sua alma, os pensamentos que teve, os temores que o sobressaltaram,
pois encontrara sua bem-amada para vê-la ainda mais perdida: não sabia êle se
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estava dormindo ou acordado, não acreditava que estivesse tãoinesperadamente diante dêles aquela a quem julgara morta; nisto chegou
Mahamut, seu amigo.
- Não a conheces? - perguntou.- Não a conheço - respondeu Mahamut.
- Pois sabe que é Leonisa.- Que dizes, Ricardo?- O que acabaste de ouvir.
- Cala-te e não a identifiques, que a sorte está de teu lado, pois Leonisaestá em poder de meu amo.
- Achas - perguntou Ricardo - que eu deva ficar onde possa ser visto?
- Não, para que não sobressaltes nem a ela nem a ti e não venhas ademonstrar que a conheces e que a viste, o que poderia prejudicar meus planos.
- Seguirei teu conselho - falou Ricardo. E assim o fêz, pois evitou que seusolhos se encontrassem com os de Leonisa, que, enquanto isto, mantinha os seus
cravados no solo, derramando algumas lágrimas. O cádi aproximou-se dela e,tomando-a pela mão, entregou-a a Mahamut, ordenando-lhe que a levasse àcidade e a entregasse à Halima, dizendo que a tratasse como escrava do grão-
senhor; Mahamut obedeceu, deixando sozinho a Ricardo, que foi seguindo com
os olhos a sua estrêla até que ela fôsse encoberta pela nuvem dos muros deNicósia.
Depois, chegando-se ao judeu, perguntou-lhe onde a tinha comprado oucomo teria vindo parar em suas mãos aquela cativa cristã. Respondeu-lhe o
judeu que a comprara de alguns turcos que haviam naufragado na ilha dePantanaléa; parecia querer contar alguma coisa mais, porém não pôde, poisvieram chamá-lo, por ordem dos paxás, que queriam perguntar-lhe o que
Ricardo desejava saber, e por isto foi obrigado a despedir-se dêle.A caminho da cidade, Mahamut teve oportunidade de perguntar em
italiano a Leonisa de que lugar ela era. Esta respondeu ser de Trápana;Mahamut prosseguiu perguntando se ela conhecia, naquela cidade, umcavalheiro rico e nobre, chamado Ricardo. Leonisa, ouvindo isto, deu um
profundo suspiro e falou:- Conheço, infelizmente.
- Por que infelizmente?- Porque êle também me conheceu, para sua desventura.
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- E por acaso conhecestes também na mesma cidade a outro cavalheiroelegante, filho de pais muito ricos, muito liberal, muito discreto, que se
chamava Cornélio?
- Conheço-o também - respondeu Leonisa -, e posso dizer que para minhamaior infelicidade. Mas, quem sois vós, senhor, que os conheceis e por êles me
perguntais?- Sou natural de Palermo e por vários motivos estou com êste traje, vestido
desta maneira, e conheço-os porque, não há muitos dias, estiveram ambos em
meu poder, pois Cornélio foi prêso por uns mouros de Trípoli da Berbéria evendido a um turco que o trouxe a esta ilha, para onde veio com mercadorias,
porque é mercador de Rodes e confiava a Cornélio tôda a sua riqueza.
- Saberá guardá-la - falou Leonisa -, porque sabe guardar muito bem a sua;mas dizei-me, senhor, como e com quem veio Ricardo a esta ilha?
- Veio com um corsário que o aprisionou em um jardim à beira-mar, emTrápana, e disse que com êle haviam aprisionado uma jovem cujo nome não
quis revelar; permaneceu aqui alguns dias com seu amo, que ia visitar osepulcro de Maomé na cidade de Medina; por ocasião da partida, Ricardo caiuenfêrmo e tão indisposto que seu amo o deixou comigo, por sermos da mesma
terra, para que eu cuidasse de sua saúde e tomasse conta dêle até sua volta ou,
se para aqui não voltasse, que eu o enviasse a Constantinopla, pois êle meavisaria quando lá estivesse; os céus, entretanto, dispuseram os fatos de outra
maneira, porque o desventurado Ricardo, sem sofrer acidente algum, perdeu avida em poucos dias, sempre chamando a uma tal Leonisa, a quem êle me
dissera querer mais que a própria vida e a própria alma; disse-me êle que estaLeonisa se havia afogado em um naufrágio na ilha de Pantanaléa, e sua morte,êle a chorava e pranteava sempre, até que perdeu a vida, pois eu não percebi
enfermidade alguma em seu corpo, e sim amostras de dor em sua alma.- Dizei-me, senhor - falou Leonisa -, o outro môço de quem falais, nas
inúmeras conversas que teve convosco, falou-vos alguma vez desta Leonisa eda maneira pela qual ela e Ricardo foram aprisionados?
- Sim, falou. Perguntou-me também se havia chegado a esta ilha uma
jovem cristã com êste nome, a quem gostaria de encontrar para resgatá-la, poisseu amo já devia saber que ela não era tão abastada quanto julgara e talvez
pedisse por ela um preço menos elevado, pois já a possuíra; que, se o preço nãofôsse além de 300 ou 400 escudos, êle os daria de muito boa vontade, porque, háalgum tempo, tivera por ela alguma afeição.
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- Devia ser bem insignificante esta afeição, pois não passava de 400escudos; Ricardo era mais liberal, valente e arrojado;
Deus me perdoe, porque fui eu a causa de sua morte e sou eu a infeliz que
êle considerou morta; só Deus sabe quanto me alegraria se êle estivesse vivo,para pagar-lhe com afeto o preço de sua desgraça e o desgôsto que provou ao
me ver também desgraçada; eu, senhor, como já vos disse, sou a criaturamenosprezada por Cornélio e a bem-amada de Ricardo; depois de váriosincidentes, fui reduzida a êste estado miserável e, embora me fôsse perigoso,
pude conservar, com o auxílio do céu, a integridade de minha honra, o queainda me faz contente, apesar de tôda a minha miséria; agora nem sei onde
estou nem quem é meu dono, nem aonde hão de me levar os fados adversos,
pelo que vos rogo, senhor, pelo sangue cristão que tendes, que me ajudeis emminhas misérias, que por serem muitas serviram para me advertir, e meus
desgostos são tantos e tais que não sei como hei de me haver com êles.Mahamut respondeu que faria o que pudesse para servi-la, aconselhando-
a, ajudando-a com sua capacidade e com tôdas as suas fôrças; lembrou-lhe odesentendimento que os dois paxás tiveram por sua causa e que estava empoder do cádi, seu amo, para, com ela, presentear o grande Sultão Selim, em
Constantinopla, mas que, antes de tal coisa ser levada a efeito, nutria
esperanças de que o verdadeiro Deus, no qual acreditava, embora não fôsse umverdadeiro cristão, haveria de dispor os fatos de outra maneira, e aconselhava-a
a tratar bem Halima, a mulher do cádi, seu amo, em cujo poder haveria de estaraté que a enviassem a Constantinopla; foi dizendo estas e outras coisas em seu
benefício até que a deixou em sua nova casa e em poder de Halima, a quemtransmitiu o recado de seu amo.
Halima, vendo-a tão bem enfeitada e tão formosa, recebeu-a muito bem.
Mahamut voltou à tenda para contar a Ricardo o que se havia passadoentre êle e Leonisa; encontrando-o, contou-lhe tudo tintim por tintim e, quando
se referiu ao sentimento que Leonisa provara ao falar-lhe que êle havia morrido,as lágrimas quase lhe vieram aos olhos; disse-lhe também que inventara umahistória a respeito de Cornélio, para ver o que ela dizia; falou-lhe do pouco caso
e da malícia da qual usara referindo-se a Cornélio; tudo isto serviu apenas paraaumentar ainda mais o sofrimento de Ricardo, que disse a Mahamut:
- Lembro-me, Mahamut, de uma história contada por meu pai, que, como já sabes, foi muito dedicado e recebeu grandes honrarias do Imperador CarlosV, a quem sempre serviu em nobres cargos na guerra. Contou-me êle que,
quando o imperador ocupou Túnis à fôrça, trouxeram para o seu acampamento
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uma jovem moura, de uma beleza singular, para com ela presenteá-lo; quando a jovem entrou, alguns raios de sol que se infiltravam pela tenda bateram em seus
cabelos, que disputavam o doirado ao sol, fato extraordinário em se tratando
dos mouros que, em geral, têm os cabelos negros. Contava que naquela ocasiãose encontravam na tenda, entre muitos outros, dois cavalheiros espanhóis; um
era andaluz e outro catalão, ambos distintos e ambos poetas; vendo-a, oandaluz, admirado, começou a fazer uns versos, que êles costumavam chamarde coplas; encontrando certa dificuldade para dar aos versos harmonia perfeita,
pois escolhera palavras de rimas difíceis, deteve-se no quinto verso e nãochegou a terminar a copla nem seu pensamento, mas o outro cavalheiro, que
estava a seu lado e tinha ouvido os versos, vendo-o parado, como se tirasse as
palavras da bôca do companheiro, prosseguiu, utilizando-se da mesma rima.Tudo isto veio-me à memória quando vi Leonisa entrar na tenda do paxá, capaz
não somente de ofuscar os raios do sol se êles a tocassem, mas também a todocéu com suas estrêlas.
- Basta, não digas mais nada; chega, Ricardo, pois a cada momento quepassa receio que de tanto endeusares tua bela Leonisa deixes de ser cristão parate tornares um idólatra; dize-me, se queres, êsses versos ou coplas, e depois
falaremos de outras coisas que sejam mais alegres e também, talvez, de maior
proveito.- Está bem - disse Ricardo -, mas volto a te advertir que cinco versos foram
ditos por um e os outros cinco por outro, todos de improviso:
Tal qual o sol que assoma
atrás de baixa montanha,
que de repente aparece
e que ao chegar escurece
nossa vista e a ofusca,
tal qual o belo rubi
que não abriga o carcoma,
o teu lindo rosto, Aja,
é a dura lança de um deus
que fere minhas entranhas.
- Soam-me bem ao ouvido - falou Mahamut -, e soam-me ainda melhorporque são ditas por ti, Ricardo, pois fazer versos ou dizê-los exige um ânimo
desapaixonado.
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- Costuma-se também - respondeu Ricardo -, chorar endechas (Endecha:
Canção triste, de tom lamentoso e sentimental. N.T.), cantar hinos, e tudo significa
dizer versos; mas, deixando isto de lado, dize-me: como pensas resolver nosso
caso? Pois, embora não tenha entendido o que os paxás disseram na tenda, umrenegado veneziano pertencente a meu amo, que se achava presente e que
entende bem tua língua, enquanto levavas Leonisa, contou-me tudo, e antes demais nada é preciso dar um jeito para que Leonisa não vá parar nas mãos dogrão-senhor.
- A primeira coisa é fazer com que venhas ao poder de meu amo; feito isto,depois veremos o que mais nos convém.
Neste momento chegou o guardião dos prisioneiros cristãos de Hazan e
levou Ricardo com êle; o cádi voltou à cidade com Hazan, que, em poucos dias,fêz o atestado de antecedentes de Ali, dando-o fechado e selado para que
pudesse êle ir a Constantinopla; Ali partiu logo, recomendando muito ao cádique enviasse brevemente a prisioneira, escrevendo ao grão-senhor para que a
utilizasse como quisesse. O cádi prometeu, mas de nada valiam suas palavras,pois, por causa da prisioneira, voltaria fàcilmente atrás; Ali partiu cheio deesperanças e Hazan ficou também cheio delas; Mahamut fêz com que Ricardo
viesse para o poder de seu amo; iam-se os dias e o desejo de ver Leonisa era
tanto que Ricardo não tinha sossêgo; passou a chamar-se Mário para que seunome não chegasse aos ouvidos de Leonisa, antes que ela o visse - e vê-la era
muito difícil, porque os mouros são extremamente ciumentos: escondem detodos os homens os rostos de suas mulheres, embora não se importem que os
cristãos as vejam, pois, talvez por serem êles escravos, não os consideremhomens. Aconteceu então que Halima viu, um dia, seu escravo Mário e olhou-otanto que êle ficou gravado em seu coração e em sua memória; e, certamente,
pouco satisfeita com os abraços frouxos de seu velho marido, teve logo um maupensamento, do qual imediatamente falou a Leonisa, a quem já se afeiçoara por
sua agradável companhia, maneiras discretas, tratando-a com muito respeito,por pertencer ao grão-senhor; disse-lhe que o cádi tinha trazido para casa umescravo tão garboso e elegante que, a seu ver, jamais conhecera homem tão
bonito em tôda a sua vida, e todos diziam que êle era um chilili, que quer dizercavalheiro, e era da mesma terra de Mahamut, e que não sabia como dar-lhe a
entender seu desejo sem que o cristão a menosprezasse por tê-lo declarado;Leonisa perguntou-lhe como se chamava o escravo; disse-lhe Halima que seunome era Mário.
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- Se êle fôsse um cavalheiro e do lugar que dizem, eu o conheceria; com onome de Mário não conheço ninguém em Trápana; mas faze, senhora, com que
eu o veja e lhe fale, que te direi quem é e o que se pode esperar dêle.
- Assim o faremos, porque sexta-feira, quando o cádi estiver fazendo suasorações na mesquita, farei Mário entrar aqui dentro, onde poderás falar-lhe a
sós e, se quiseres, dá-lhe a entender os meus desejos, e o farás da melhormaneira que puderes.
Isto foi o que disse Halima a Leonisa; e não haviam passado duas horas
quando o cádi chamou Mahamut e Mário; com o mesmo ardor com que Halimahavia aberto o coração a Leonisa, o velho enamorado abriu também o seu aos
dois escravos, pedindo-lhes que o ajudassem a achar um meio de possuir a
jovem cristã e ao mesmo tempo não faltar com a palavra ao grão-senhor, aquem ela pertencia, dizendo-lhes que preferia mil vêzes morrer a entregá-la ao
grande chefe. Com estas palavras, o devotado mouro falava de sua paixão,confiando-a aos corações de seus dois escravos, que pensavam justamente o
contrário do que êle estava pensando. Ficou combinado entre êles que Mário,por ser de sua terra natal, embora tivesse dito que não a conhecia, ficariaincumbido de falar-lhe de suas intenções, e se por êste modo êle nada obtivesse,
usar-se-ia da fôrça, pois ela estava em seu poder; feito isto, dizendo que ela
morrera, preservar-se-iam de mandá-la a Constantinopla. O cádi ficoucontentíssimo com o plano de seus escravos e, com infinita alegria, ofereceu, na
mesma hora, liberdade a Mahamut e a metade de seus bens quando morresse;prometeu ainda a Mário dar-lhe a liberdade e dinheiro para que voltasse à sua
terra, rico, honrado e feliz, caso êle levasse o plano a bom têrmo; se o cádi foigeneroso em prometer, seus escravos foram pródigos em oferecer até mesmo alua do céu, quanto mais a Leonisa, se êle desse liberdade de vê-la e falar com
ela.- Darei a Mário a liberdade que êle quiser - falou o cádi -, pois farei com
que Halima vá, por alguns dias, para a casa de seus pais, que são gregoscristãos; estando ela fora, ordenarei ao porteiro que deixe Mário entrar dentrode casa tôdas as vêzes que êle quiser e direi a Leonisa que poderá falar com o
seu patrício quando tiver vontade.Assim, começou a voltar o vento da ventura de Ricardo, soprando em seu
favor, sem que seus próprios amos soubessem o que faziam. Tomando, pois, ostrês esta decisão, quem primeiro a pôs em prática foi Halima, que, como tôdasas mulheres, era por natureza precipitada e resoluta para conseguir o que
desejava. Naquele mesmo dia, o cádi disse a Halima que ela podia, quando
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quisesse, ir para a casa dos pais e passar com êles o tempo que desejasse, mas,estando ela entusiasmada com as esperanças que Leonisa lhe dera, não queria ir
para a casa dos pais e não iria nem mesmo ao paraíso de Maomé, se êle
existisse; por isso, respondeu ao cádi que, por enquanto, não tinha vontade deviajar e que quando ela quisesse lhe diria; porém, fazia questão de levar com ela
a escrava cristã.- Isso não - replicou o cádi - não fica bem que a dádiva do grão-senhor seja
vista por alguém e ainda deixá-la conversar com um cristão, pois, sabeis que,
chegando ao poder do grão-senhor, hão de encerrá-la no harém e fazer dela suamulher, quer ela queira, quer não.
- Andando ela comigo, não importa que esteja em casa de meus pais nem
que se comunique com êles, pois eu também falo com êles e nem por isso deixode ser boa mulher, e além disso penso ficar lá apenas quatro ou cinco dias,
porque o amor que vos dedico não me permitirá ficar ausente por tanto tempo esem ver-vos.
O cádi não quis discutir com ela para não despertar nenhuma suspeita. Nasexta-feira, êle foi para a mesquita, de onde não podia sair em menos de quatrohoras; Halima, mal o viu longe dos umbrais da casa, mandou chamar Mário;
um cristão corso, que servia como porteiro à porta do pátio, não o teria deixado
entrar se Halima não tivesse ordenado que o deixassem passar, e foi assim queRicardo entrou, confuso e tremendo, como se fôsse lutar com um exército de
inimigos.Leonisa estava do mesmo jeito e com o mesmo vestuário de quando
entrou na tenda do paxá, sentada ao pé de uma escada grande, de mármore,que ia dar nos corredores; tinha a cabeça encostada na palma da mão direita e obraço sôbre os joelhos, os olhos voltados para o lado contrário da porta por
onde entrou Mário, de modo que, embora êle fôsse para o lado dela, ela não ovia. Ricardo, entrando, correu os olhos por tôda a casa e nela viu apenas um
mudo e profundo silêncio, até que fixou a vista onde Leonisa estava; numinstante vieram à sua mente de namorado tantos pensamentos que o detiverame alegraram, considerando-se a vinte passos, ou pouco mais, distanciado de sua
felicidade e alegria; considerava-se cativo por estar sua bem-aventurança empoder alheio; pensando tôdas estas coisas, movia-se lentamente com temor e
inquietação, alegre e triste, temeroso e encorajado; ia-se aproximando do lugaronde estava sua alegria, quando Leonisa se voltou de repente e pôs seus olhosnos de Mário, que a olhava atentamente; e, quando os olhares dos dois se
encontraram, de maneira diferente deram mostras do que suas almas tinham
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sentido. Ricardo parou e não pôde dar mais um passo à frente. Leonisa, que,pelas informações de Mahamut, considerava Ricardo morto, encheu-se de
temor e de espanto, vendo-o ali inesperadamente, vivo; sem tirar os olhos de
cima dêle nem voltar-lhe as costas, subiu quatro ou cinco degraus e, tirandouma pequena cruz do seio, beijou-a muitas vêzes e persignou-se infinitamente,
como se algum fantasma ou alma do outro mundo estivesse olhando-a.Ricardo, voltando de seu êxtase e percebendo a verdadeira causa do temor
de Leonisa, disse-lhe:
- Sinto muito, formosa Leonisa, que as notícias de minha morte, dadas porMahamut, não sejam verdadeiras, pois com ela evitaria os tepores que me
invadem, pensando se ainda continua, com a mesma intensidade, a aspereza
que sempre usaste para comigo. Sossega-te e desce e, se és capaz de fazer o quenunca fizeste, chega-te a mim, chega e verás que não sou um fantasma; sou
Ricardo, Leonisa, Ricardo, cuja felicidade ainda depende de ti.Leonisa fêz sinal para que êle se calasse ou falasse mais baixo; animando-
se um pouco, Ricardo foi-se aproximando dela até que pudesse ouvir suaspalavras.
- Fala baixo, Mário. É assim que te chamas agora, não?
Ouve apenas o que te vou falar e lembra-te de que as palavras que disseste
há momentos poderiam ser motivo para que nunca nos tornássemos a ver; creioque Halima, nossa ama, e que me disse adorar-te, está a nos escutar; pediu-me
que eu te falasse a respeito de suas intenções; se quiseres corresponder, estarásbeneficiando mais ao teu corpo do que à tua alma, porém, mesmo que não
queiras, é necessário que finjas querer, primeiro, porque eu te peço, depoisporque o merecem os desejos da mulher que ousou declará-los.
- Jamais pensei nem pude imaginar, formosa Leonisa, que havia de
considerar impossível deixar de fazer alguma coisa que me pedisses, mas o queme pedes agora decepcionou-me.
Será que a vontade é tão insignificante que se possa levá-la de um lugar.para outro? Ficaria bem ao homem honrado e verdadeiro fingir em algumacoisa assim tão importante? Se te parece que tal coisa se deve ou se pode fazer,
faze o que bem quiseres, pois és senhora de minha vontade, mas também nistote enganas, pois jamais a conheceste e não sabes o que fazer dela. entretanto,
para não dizeres que fôste desobedecida na primeira ordem que me deste,esquecerei quem sou, satisfarei o teu desejo e o de Halima, se é que com isso heide conseguir a felicidade de te ver; inventa as respostas que quiseres, que eu,
embora esteja mentindo, as confirmarei; em troca do que faço por ti, que, aliás, é
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o máximo que poderia fazer, embora possa dar-te novamente a alma que tantasvêzes te dei, peço-te que me digas, com breves palavras, como escapaste das
mãos dos corsários e como vieste às mãos do judeu que te vendeu.
- Pedes o resumo de minhas desgraças, mas, como quero satisfazer-te emalguma coisa, eu as contarei. Depois de um dia que nos separamos, a
embarcação de Izuf, por causa de vento forte, voltou à ilha de Pantanaléa, ondevimos também a tua galeota, mas a nossa, sem que nada se pudesse fazer, foiatirada aos rochedos; meu amo, vendo que estávamos perdidos, esvaziou
ràpidamente dois barris que estavam cheios de água, fechou-os muito bem eprendeu-os com cordas; colocou-me entre êles, despiu-se e, pegando o outro
barril entre os braços, prendeu-o ao corpo com um cordel; com êste mesmo
cordel prendeu os meus barris e com grande coragem atirou-se ao mar,levando-me atrás dêle; eu não tive coragem para me atirar, mas alguém da
embarcação empurrou-me e eu caí sem sentidos, atrás de Izuf; só voltei a mimquando me achei em terra, nos braços de dois turcos, que, mantendo-me de
bruços, faziam com que eu vomitasse a grande quantidade de água que tinhabebido; abri os olhos atônita e vi Izuf junto a mim, com a cabeça em pedaços;segundo soube depois, ao chegar à terra bateu com ela nos penhascos,
perdendo assim a vida; disseram-me os turcos que me tiraram da corda quase
afogada; somente oito pessoas escaparam da galeota; ficamos na ilha oito dias eos turcos respeitaram-me como se eu fôsse irmã dêles ou mais; talvez; ficamos
escondidos em uma caverna, pois temiam êles que um grupo de cristãos da ilhaos aprisionasse; alimentaram-se com o biscoito molhado que levavam na
galeota e que o mar atirou à praia, saindo para pegá-lo durante a noite; quis odestino, para minha maior infelicidade, que o destacamento estivesse semcapitão, pois morrera êle poucos dias atrás e o destacamento contava com vinte
soldados apenas; soubemos isto de um rapaz do próprio destacamento que osturcos aprisionaram quando fôra apanhar conchas na praia; depois de oito dias
chegou àquela costa uma embarcação de mouros, chamada por êles decaramuçal; os turcos viram-na, saíram de onde estavam, fazendo tantos sinais àembarcação que estava perto da terra que os outros puderam ver que eram os
turcos que os chamavam; contaram-lhes suas desgraças e os mouros osreceberam em sua embarcação, na qual vinha um judeu, mercador riquíssimo;
quase tôda ou a maior parte da mercadoria do barco era constituída debarreganas (Barreganas: Fazendas de lã forte e impermeável. N.T.), alguicéis(Alguicéis: Mantos mouriscos em forma de capa, brancos e de lã. N.T.) e outras coisas
que se levam da Berbéria ao Levante.
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Os turcos partiram para Trípoli nesta mesma embarcação; no caminhovenderam-me ao judeu, que pagou por mim 2.000 dobras, preço muito alto, mas
o amor que o judeu me devotava fêz com que êle se tornasse generoso; a
embarcação, deixando os turcos em Trípoli, tornou a seguir viagem e o judeupassou a dirigir-se a mim descaradamente; desprezei-o, como, aliás, mereciam
seus torpes desejos; vendo-se êle sem esperanças de alcançar o que queria,determinou desfazer-se de mim na primeira ocasião que se apresentasse; aosaber que os dois paxás, Ali e Hazan, estavam nesta ilha, e que aqui podia
vender sua mercadoria tão bem quanto em Xio, onde pensava vendê-la, veio atéaqui com intenção de vender-me a algum dos paxás; por isso, vestiu-me da
maneira que ainda me vês, para despertar-lhes o desejo de me comprar; soube,
depois, que o cádi me comprou para enviar-me como presente ao grande chefe,o que, aliás, me faz bastante inquieta; soube também, aqui, de tua falsa morte e,
para dizer a verdade, se é que queres acreditar, senti profundamente e tive maisinveja que pena de ti, não porque te queira mal, pois, embora eu seja
desamorosa, não sou ingrata nem mal agradecida, mas porque tinhas pôsto fimà tragédia de tua vida.
- Falaste bem, senhora, se a morte não me impedisse de tornar a ver-te;
alegro-me muito mais com êste momento de glória em que sou feliz por poder
olhar-te do que com a ventura da vida eterna, pois, tanto na vida como namorte, êste seria sempre o meu desejo; o sentimento que Halima tem por mim é
o mesmo que meu amo, o cádi, em cujo poder vim parar por incidentessemelhantes aos teus, tem por ti; pediu-me êle que me fizesse portador de seus
desejos; aceitei a incumbência, não porque me agradasse, mas porque assimteria maior facilidade para falar contigo; vê, Leonisa, a que ponto nossasdesgraças nos trouxeram: tu me pedes algo impossível de fazer e eu tenho de
pedir-te coisa que jamais imaginei, e daria a vida, que agora prezo tanto por ter-me concedido a ventura de ver-te, para não ver realizado aquilo que te peço.
- Não sei que dizer, Ricardo, nem qual seria a saída do labirinto onde,como dizes, nossa má sorte nos colocou; só sei dizer que é necessário usarmosde subterfúgios que não seriam de se esperar de nosso caráter, ou seja, de
fingimento e falsidade; assim, direi a Halima algumas palavras que não lhetirem a esperança e que a entretenham; tu poderás dizer ao cádi o que melhor
convier para minha segurança e para mantê-lo também entretido; coloco, pois,minha honra em tuas mãos, e podes acreditar que ela ainda está intata, emboraos caminhos pelos quais andei e os embates que sofri pudessem pôr em dúvida
minhas palavras; conversarmos será fácil e eu terei com isso muito prazer, com
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a condição de jamais me falares de teus sentimentos, pois na hora em que ofizeres deixarei de te ver, porque não quero que penses ser eu de tão pouco
mérito que hei de conceder, no cativeiro, aquilo que na liberdade não pude
conceder; com a ajuda do céu, devo ser como o ouro, que, quanto mais seacrisola, mais puro e limpo se faz; contenta-te com o haver dito que tua
presença não me aborrece como antes acontecia, pois quero que saibas, Ricardo,que sempre te considerei mau, arrogante e presunçoso; confesso, também, queme enganava e pode ser que, se fizesse agora uma experiência, a verdade viria
fàcilmente aos meus olhos e, conhecendo eu esta verdade, pudesse, ao mesmotempo, ser honesta e mais humana; vai com Deus, pois receio que Halima nos
tenha escutado, porque ela entende um pouco da língua cristã, ou pelo menos,
daquela mistura de línguas que se usa e pela qual todos nós nos entendemos.- Tens razão, e agradeço-te infinitamente o fato de me teres logo
desiludido, o que estimo tanto quanto o favor que fazes em deixar-me ver-te, e,como dizes, talvez a experiência te faça compreender quão sincera e humilde é
minha intenção, principalmente para adorar-te; e, sem que estabelecesseslimites, fizesses observações ou condições, seria tão honesto para contigo quenão poderias desejar algo melhor; quanto ao cádi, não te preocupes, eu saberei
entretê-lo; faze o mesmo com Halima e sabe que, depois de ver-te, nasceu em
mim tal esperança que me faz pensar em alcançarmos logo a liberdadedesejada; fica com Deus e da outra vez falar-te-ei dos caminhos pelos quais a
fortuna me trouxe a êste estado, depois que de ti me separei, ou melhor, que deti me separaram.
Com isto, despediram-se: Leonisa ficou satisfeita com a retidão de Ricardoe êle ficou contentíssimo por não ter ouvido uma palavra áspera da bôca deLeonisa.
Halima permanecera fechada em seus aposentos, pedindo a Maomé queLeonisa voltasse com boas notícias; o cádi estava na mesquita, retribuindo os
desejos de sua mulher com os seus, permanecendo ansioso e prêso à respostaque esperava ouvir do escravo a quem incumbira de falar com Leonisa,contando para isso com o auxílio de Mahamut, que lhe ofereceria tôdas as
facilidades, mesmo com a presença de Halima na casa. Leonisa intensificou emHalima o desejo e o amor, alimentando-lhe muitas esperanças de que Mário
faria tudo o que pudesse, tudo o que ela quisesse, mas que deveria deixarpassar primeiro duas luas antes de realizar-se o que êle desejava muito maisque ela própria, e pedia êste prazo porque desejava orar e pedir a Deus que lhe
concedesse a liberdade. Halima satisfez-se com a resposta e com a proposta de
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Mário, a quem ela concederia liberdade mesmo antes de terminado o prazo,porque êle consentira em atender aos seus desejos; assim, pediu a Leonisa que
dissesse a Mário para deixar de lado o tempo e não se demorar mais, pois ela
ofereceria por êle quanto o cádi pedisse para seu resgate. Por outro lado,Ricardo, antes de dar uma resposta a seu amo, falou com Mahamut;
combinaram os dois que desiludiriam o senhor e o aconselhariam a levarLeonisa para Constantinopla o mais depressa possível e que, no caminho, oupor bem ou por mal, alcançaria êle seu intento; para não faltar com a devoção
ao grão-senhor, seria bom comprar outra escrava e, na viagem, fingir ou fazercom que Leonisa ficasse enfêrma; durante a noite, atirariam ao mar a outra
escrava, dizendo que Leonisa, a escrava do grão-senhor, morrera; e isto havia
de ser feito de modo que a verdade jamais fôsse descoberta e êle não faltassecom a palavra ao grão-senhor; depois, para que seus desejos fôssem realizados,
haveriam de estabelecer um plano conveniente e proveitoso.Estava tão cego o mísero e velho cádi que, se outros disparates
semelhantes lhe fôssem ditos, acreditaria em todos, desde que apresentassemuma solução para a realização de suas esperanças; assim, acreditou nas palavrasde seus escravos, pois pareceu-lhe que elas o levariam ao caminho certo e a um
fim mais certo ainda, e assim de fato o seria se a intenção de seus dois
conselheiros não fôsse apoderar-se de sua embarcação e presenteá-lo com amorte em trôco de seus loucos pensamentos. Apresentou-se, porém, ao cádi
outra dificuldade; segundo êle, a maior que naquele caso se lhe podiaapresentar, ou seja, a dificuldade de poder ir a Constantinopla sem Halima,
porque era certo que ela não o deixaria ir só; haveria de querer ir também;entretanto, arranjou logo um meio de facilitar as coisas, dizendo que, em vez decomprarem uma escrava para substituir Leonisa, usariam Halima, de quem
desejava livrar-se mais do que da própria morte. A mesma facilidade que teve ocádi em fazer tal pensamento tiveram, também, Mahamut e Ricardo em
concordar com êle e, não havendo mais nada a discutir, o cádi, naquele mesmodia, tratou de falar com Halima sôbre a viagem que pretendia fazer aConstantinopla a fim de levar a jovem cristã ao grão-senhor, cuja liberdade o
faria, por certo, grão-cádi do Cairo ou de Constantinopla. Halima concordouplenamente com sua decisão, acreditando que Ricardo não fôsse, mas, quando o
cádi a informou de que o levaria, bem como a Mahamut, mudou de opinião etratou de anular os conselhos que lhe dera anteriormente. Por fim disse que senão a levasse não o deixaria ir de maneira alguma. O cádi regozijou-se em
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obedecê-la desta vez, porque pensava em livrar-se, o mais depressa possível, decarga tão pesada.
Enquanto isso, o Paxá Hazan não se cansava de pedir ao cádi que lhe
entregasse a escrava, oferecendo-lhe muito ouro, tendo chegado a presenteá-locom Ricardo, cujo resgate avaliava em 2.000 escudos, e planejava o modo de ela
ser-lhe entregue com a mesma facilidade com que o cádi imaginara dar a notíciada morte da escrava quando o grão-senhor mandasse buscá-la. Todos ospresentes e promessas serviram apenas para aguçar no cádi o desejo de
apressar a partida e, assim, impelido pelas suas intenções, pelas impertinênciasde Hazan e ainda pelas de Halima, que também fabricava castelos no ar,
equipou, no prazo de vinte dias, um bergantim com quinze bancos, um bom
número de bóias, com mouros e com alguns gregos cristãos; colocou nêle tôda asua riqueza; Halima levou tudo o que pôde e pediu ao marido que a deixasse
levar os pais até Constantinopla; sua intenção era a mesma do cádi: fazer comque Mahamut e Ricardo, no caminho, fugissem com o bergantim, mas não quis
revelar-lhes seu pensamento até embarcar, tendo a intenção de voltar a viver nomeio dos cristãos, tornar a ser o que fôra anteriormente e casar-se com Ricardo,pois era de se acreditar que, levando ela consigo riquezas e tornando a ser
cristã, êle haveria de tomá-la por espôsa. Nesse meio de tempo, Ricardo
conversou novamente com Leonisa e contou-lhe todos os seus planos; Leonisa,por sua vez, falou das intenções de Halima, que com ela se havia comunicado;
ambos pediram mútuamente segrêdo e, confiando em Deus, esperavam o diada partida. Esse dia chegou finalmente; Hazan, com todos os seus soldados,
acompanhou-os até o mar, não os deixando até que levantassem velas, nemtirou os olhos do bergantim até perdê-lo de vista, e parece que os suspirosexalados pelo enamorado mouro impeliam com maior fôrça as velas que se
afastavam e levavam sua alma; porém, o amor que sentia não o deixavasossegado há muito tempo, e, assim, pensando no que havia de fazer para não
morrer sufocado pelos seus desejos, pôs imediatamente mãos à obra queplanejara, decidida e inteligentemente; assim, em uma embarcação de dezessetebancos, que armara em outro pôrto, pôs cinqüenta soldados, todos amigos e
conhecidos, atraindo-os com muitos presentes e promessas, e ordenou-lhes quese pusessem a caminho e tomassem o barco do cádi com tôdas as riquezas,
passando a fio de espada todos os que nêle iam, com exceção da escravaLeonisa, pois somente a ela queria, dentre os muitos haveres que o bergantimlevava; ordenou-lhes também que afundassem de modo que nada ficasse para
indicar o lugar onde afundaram. A cobiça pôs-lhes asas nos pés e ânimo no
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coração, embora vissem que haveriam de encontrar pouca resistência nobergantim, pois êles estavam desarmados e sem suspeitar de que tal coisa
pudesse acontecer.
Fazia já dois dias que o bergantim caminhava, mas ao cádi pareceram doisséculos, porque logo no primeiro queria pôr seus planos em ação; seus escravos,
porém, aconselharam-no a simular antes uma doença em Leonisa, para que ascircunstâncias de sua morte se fizessem verídicas, e que convinha, portanto,fingir alguns dias de enfermidade; êle preferia dizer que ela morrera de repente,
acabar logo com tudo, despachar sua mulher e acalmar o fogo que ia, aospoucos, devorando suas entranhas, mas teve de aceitar o parecer dos dois.
A estas alturas Halima já havia revelado seus planos a Mahamut e a
Ricardo, e êles prometeram executá-los quando passassem os limites deAlexandria ou quando entrassem nos castelos de Natólia; o cádi, porém,
apressou tanto que se dispuseram a agir na primeira oportunidade que seapresentasse; ao fim de seis dias de viagem, o cádi achou que se devia pôr um
ponto final na falsa enfermidade de Leonisa; ordenou aos escravos que no outrodia dessem cabo de Halima e a atirassem ao mar amortalhada, dizendo ser aescrava do grão-senhor. Na manhã do outro dia em que Mahamut e Ricardo
deviam realizar suas intenções, arriscando para isso a própria vida,
descobriram uma embarcação que vinha atrás dêles com tôda a fôrça das velas edos remos; recearam que fôssem corsários cristãos dos quais nem uns nem
outros poderiam esperar nada de bom; os mouros os temiam porque poderiamser presos como escravos, os cristãos porque, embora recuperassem a liberdade,
seriam roubados; Mahamut e Ricardo, entretanto, contentavam-se com aliberdade de ambos e com a de Leonisa; apesar disto, temiam o atrevimento ,dos corsários, pois os que se dedicam à rapinagem, qualquer que seja sua lei ou
nação, jamais deixam de ser cruéis e insolentes. Todos prepararam-se para adefesa, sem deixar dos remos e dar tôda a fôrça que pudessem; não demorou
muito, entretanto, para que os outros se aproximassem e em menos de duashoras disparassem tiros de canhão; vendo isto, largaram todos os remos,apanharam as armas e esperaram, embora o cádi lhes dissesse que o barco era
turco e que não lhes causaria mal algum; enquanto isso, mandou içar logo abandeira branca da paz nas velas de pôpa, para que a vissem os cegos e
cobiçosos que investiam com grande fúria contra o desprotegido bergantim.Nisto, Mahamut voltou a cabeça e viu que do lado do poente vinha uma galeotaque êle julgou ter uns vinte bancos mais ou menos; apressou-se em dizê-lo ao
cádi e alguns cristãos que estavam no remo disseram que a embarcação era de
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cristãos; tudo isto serviu para aumentar-lhes a confusão e o mêdo; ficaramparados, sem saber o que fazer, temendo e esperando o destino que Deus lhes
queria dar. Parece-me que a confusão interior do cádi era muito grande, pois
dirigira-se para aquêles lados pensando encontrar exitosa a realização de tôdasas suas esperanças e desejos, esperanças que logo se desvaneceram pela
presença da primeira embarcação que se aproximava e que, sem respeitar abandeira de paz e a própria religião, investiu contra o barco do cádi com tantafúria que pouco faltou para pô-lo a pique; o cádi conheceu logo os que o
atacavam, viu que eram soldados de Nicósia, adivinhou o que poderia ser econsiderou-se perdido e morto; se os soldados não se pusessem mais a roubar
que a matar, ninguém teria ficado com vida; encontravam-se êles no melhor da
luta e atentos ao roubo quando um turco, em altas vozes, disse: “As armas,soldados, que uma embarcação de cristãos se aproxima”. E era verdade, porque
o barco avistado pelo bergantim do cádi apresentava insígnias e bandeirascristãs e dirigia-se com tôda a fúria contra o barco de Hazan; antes de chegar,
porém, alguém da proa perguntou, em turco, de quem era aquêle barco.Responderam-lhe que era do Paxá Hazan, vice-rei de Chipre. “Mas como ousaisatacar e roubar o barco onde vai o cádi de Nicósia, se sois também
muçulmanos?” Responderam-lhe que só sabiam ter recebido ordens de
capturar o barco e que êles e todos os soldados nada mais fizeram do queobedecer. O capitão dêste segundo barco, que parecia cristão, tendo sabido o
que queria, deixou de atacar o barco de Hazan e voltou-se para o do cádi; àprimeira investida matou mais de dez turcos e abordou a embarcação com
grande coragem e rapidez, mas, mal pusera os pés dentro do barco, o cádi viuque quem o atacava não era cristão, e sim o enamorado Ali, que, tendo a mesmaintenção de Hazan, estivera esperando a sua vinda e, para não ser reconhecido,
fizera seus soldados vestirem-se como cristãos, utilizando-se assim de umdisfarce que encobrisse o seu roubo.
O cádi, que sabia das intenções dos dois enamorados e traidores, começoua proclamar-lhes a maldade, dizendo:
- Que é isso, traidor? Como é que, sendo muçulmano, me assaltas como
cristão? E vós, traidores soldados de Hazan, que demônio vos levou a cometertão grande insulto? Para cumprir os apetites de quem vos envia, ousais atacar
vosso verdadeiro senhor?A estas palavras todos suspenderam as armas, entreolharam-se e se
reconheceram, pois todos tinham sido soldados de um mesmo capitão e lutado
sob a mesma bandeira; e, ficando meio confusos com as palavras do cádi, com o
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malefício que causariam a êles próprios, embainharam os sabres e arrefeceramos ânimos; somente Ali fechou os olhos, os ouvidos, e, atirando-se ao cádi, deu-
lhe tamanho golpe na cabeça que, se não fôsse o enorme turbante que a cobria,
sem dúvida alguma teria sido partida ao meio; apesar disso não pôde evitar aqueda entre os bancos do barco e, ao cair, disse:
- Ó cruel renegado, inimigo do divino profeta! É possível que não hajaalguém que castigue tua crueldade e tua insolência?
Como, maldito, ousaste levantar as mãos e as armas contra teu cádi e um
ministro de Maomé?Estas palavras emprestaram maior fôrça às primeiras ouvidas pelos
soldados de Hazan, que, movidos pelo temor de que 4 soldados de Ali lhes
tirassem a prêsa que já consideravam sua, resolveram jogar com a sorte:atiraram-se aos soldados de Ali com tanta rapidez, rancor e coragem que, em
pouco tempo, os reduziram a um número pequeno, embora fôssem de iníciomais numerosos; êstes que ficaram, porém, voltando a si, vingaram os
companheiros, deixando apenas quatro soldados de Hazan com vida e êstesainda muito feridos. Ricardo e Mahamut de vez em quando botavam a cabeçapara fora, pelo escotilhão dos aposentos de pôpa, para verem no que dava
aquela barulheira; Ricardo, vendo que os turcos estavam quase todos mortos, os
sobreviventes muito feridos e que poderia fàcilmente dar cabo de todos êles,chamou a Mahamut e a dois sobrinhos de Halima que ela levara consigo para
ajudarem o barco a levantar ferros; êle, os dois rapazes e o pai, tomando osalfanjes dos mortos, saltaram as coxias, gritando: “Liberdade, liberdade)”;
ajudados pelas bóias e pelos cristãos gregos, degolaram a todos com facilidade,sem receberem ferimento algum.
Depois, passaram à galeota de Ali, que estava sem proteção, subjugaram-
na e apoderaram-se de tudo o que com ela vinha. Entre os primeiros quemorreram neste segundo encontro, encontrava-se Ali, pois um dos turcos, para
vingar o cádi, matou-o a facadas; por ordem de Ricardo, apressaram-se todos acarregar todos os objetos de valor do barco de Hazan para a galeota de Ali, queera maior e mais ajeitada para qualquer carga ou viagem e por serem cristãos os
seus remadores, que, contentes por alcançarem a liberdade e por recebereminúmeras coisas que Ricardo distribuíra a todos, ofereceram-se para levá-lo a
Trápana ou ao fim do mundo, se êle quisesse; Mahamut e Ricardo,satisfeitíssimos com o resultado, dirigiram-se a Halima e disseram-lhe que, seela quisesse voltar a Chipre, colocariam bóias em sua embarcação e lhe dariam a
metade das riquezas que trouxeram, mas ela, que, apesar de tanta desgraça, não
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esquecera o carinho e o amor que dedicava a Ricardo, disse que desejava ir comêles para o meio dos cristãos, fato que alegrou muitíssimo a seus pais.
O cádi voltou a si do desmaio e os outros cuidaram dêle como puderam,
dizendo-lhe depois que escolhesse entre deixar-se levar para a terra e voltar aNicósia em seu próprio barco. Respondeu êle que, uma vez que a fortuna o
havia traído e levado a tal ponto, agradecia a liberdade que lhe davam epreferia ir a Constantinopla para queixar-se ao grão-senhor do agravo quesofrera por parte de Hazan e Ali; porém, quando soube que Halima o deixava
para tornar a ser cristã, estêve a ponto de perder o juízo.Enfim, equiparam seu barco e providenciaram tôdas as coisas necessárias
para sua viagem e deram-lhe mesmo alguns cequins que, aliás, já tinham sido
seus, e, decidido a voltar para Nicósia, despediu-se de todos, mas, antes que selevantassem as velas, pediu que Leonisa o abraçasse, pois seria um grande
favor, suficiente para fazê-lo esquecer tôda a sua desventura. Pediram todos aLeonisa que fizesse aquêle favor a quem tanto a queria, pois não ia nisso
atentado algum ao seu decôro e à sua honestidade; Leonisa fêz o que lhepediram e o cádi pediu-lhe ainda que lhe pusesse as mãos sôbre a cabeça paraque êle levasse a esperança de curar sua ferida; Leonisa fêz tudo o que êle
pediu.
Um vento fresco impulsionou o barco de Hazan e pareceu convidar asvelas para a partida. Os tripulantes, percebendo isso, resolveram partir; em
poucas horas perderam de vista o barco do cádi, que, com lágrimas nos olhos,via os ventos levarem seus bens, sua alegria, sua mulher e sua alma.
Os pensamentos de Ricardo e de Mahamut eram outros; não queriamtocar em terra alguma; por isso, passaram por Alexandria, fora da barra, semreduzir a velocidade, e, sem precisarem utilizar os remos, chegaram à fértil ilha
de Corfu, onde se abasteceram de água, e a seguir, sem parar, passaram pelosinfames penhascos acroceráunios e no segundo dia, de longe, avistaram
Paquina, promontório da fertilíssima Tinácria; passaram por ela e pela célebreilha de Malta voando, tal era a velocidade do ditoso lenho; por fim, passada ailha, avistaram Lampadosa, depois de quatro dias, e, a seguir, a ilha onde se
perderam; Leonisa estremeceu ao vê-la, pois veio-lhe à memória o perigo porque passara; no outro dia, tiveram diante dos olhos a desejada e amada pátria; a
alegria renasceu em seus corações, alvoroçaram-se os espíritos com a boa nova,porque uma das maiores alegrias que se pode ter na vida é chegar, depois delongo cativeiro, são e salvo, à pátria; a ela iguala-se apenas a alegria da vitória
alcançada sôbre os inimigos. Encontrou-se na galeota uma caixa bem cheia de
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bandeirolas e flâmulas de sêda de diversas cores; Ricardo mandou enfeitar comelas a galeota; pouco depois de amanhecer acharam-se a menos de uma légua
da cidade, navegando ràpidamente e dando gritos alegres, aproximando-se do
pôrto, onde, num instante, apareceu um grande número de gente do povo, que,tendo visto chegar à terra aquela embarcação tão enfeitada, fêz questão de
deixar a cidade para dirigir-se à beira-mar.Enquanto isso, Ricardo pediu a Leonisa que se vestisse e se enfeitasse da
mesma forma que quando entrou na tenda dos paxás, pois queria fazer uma
brincadeira com seus pais. Ela atendeu-o e, acrescentando graça à graça, pérolasàs pérolas e beleza à beleza, às quais se aliou ainda a alegria, vestiu-se
novamente de maneira a causar admiração e espanto; Ricardo vestiu-se à moda
dos turcos, Mahamut e todos os cristãos do remo fizeram o mesmo, pois asroupas dos turcos mortos foram suficientes para todos; chegaram ao pôrto lá
pelas 8 da manhã, que era clara e serena e que parecia estar atenta àquela alegrechegada. Antes de chegar ao pôrto, Ricardo fêz disparar as peças de artilharia
da galeota, que consistiam em um canhão de coxia e dois falconetes; a cidaderespondeu-lhe com igual número de disparos. O pessoal todo estava confuso,esperando a chegada do majestoso barco; porém quando viram de perto que era
turco, por causa dos turbantes, que se pareciam com os turbantes dos mouros,
temerosos e suspeitando de alguma cilada, tomaram as armas e todos os queeram soldados na cidade dirigiram-se ao pôrto e muita gente a cavalo estendeu-
se por tôda a costa; os que se aproximavam pouco a pouco do pôrto alegraram-se com isto; tendo chegado a um ponto mais raso, lançaram a prancha à terra e
largaram os remos ao mesmo tempo; todos, um a um, como em uma procissão,saltaram à terra, que, com lágrimas de alegria, beijaram inúmeras vêzes;fazendo assim, deram a entender aos que se achavam na terra serem êles
cristãos; atrás dêles saíram o pai, a mãe de Halima e seus dois sobrinhos, todos,como já se disse, vestidos com roupas turcas; por último, com o rosto coberto
pelo tafetá carmesim e ladeada por Ricardo e Mahamut, saiu a formosa Leonisa,que atraiu para si os olhares de tôda a multidão. Êstes fizeram o mesmo que osoutros: chegando à terra, prostraram-se e beijaram-na.
Nisto, o governador da cidade, percebendo que êles eram os chefes dogrupo que desembarcara, para êles se dirigiu; chegando-se mais perto e
reconhecendo imediatamente Ricardo, correu para abraçá-lo, com os braçosabertos e com mostras de enorme alegria. Com êle, chegaram também Cornélioe seu pai, os pais de Leonisa e todos os seus parentes, os pais de Ricardo, todos
êles pessoas importantes da cidade; Ricardo abraçou o governador e agradeceu
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a todos as boas-vindas que lhe davam, apertou a mão de Cornélio (que, assimque o reconheceu e se viu abordado por êle, perdeu a côr e quase começou a
tremer de mêdo) e, segurando também a mão de Leonisa, disse:
- Peço-vos por favor, senhores, que, antes de entrarmos na cidade e notemplo para agradecer ao Senhor a graça que nos concedeu, escuteis as palavras
que vos quero dizer.O governador disse-lhe para falar o que quisesse, pois todos o escutariam
com prazer e em silêncio. As pessoas mais importantes rodearam-no logo e êle,
levantando um pouco a voz, assim falou:- Deveis estar lembrados muito bem, senhores, da desgraça que há alguns
meses atrás me aconteceu no jardim das salinas com a perda de Leonisa; deveis
também ter na memória o esfôrço que fiz para conseguir sua liberdade, pois,esquecendo-me de mim próprio, ofereci todos os meus bens para seu resgate
(embora isto, que lhes pareceu liberalidade, não possa nem deva redundar emelogio, pois, para resgatá-la, daria minha própria alma); para contar o que
depois disto nos aconteceu é necessário mais tempo, outra ocasião ecircunstância e outra língua que não esteja tão perturbada quanto a minha; poragora basta dizer-vos que, depois de vários e estranhos acontecimentos e depois
de perdidas mil esperanças de encontrar alívio para nossas desditas, o piedoso
céu, mesmo sem nenhum merecimento de nossa parte, devolveunos à queridapátria, cheios de alegria e cumulados de riquezas; a imensa alegria que sinto
não nasce, porém, das riquezas nem da liberdade alcançada, mas sim da alegriaque proporcionei a esta que é minha doce inimiga, em paz e em guerra, alegria
por ver-se livre e por conhecer agora sua própria alma; alegro-me, ainda, com afelicidade de todos os que foram meus companheiros de infortúnio e, embora asdesventuras e os acontecimentos tristes costumem mudar os fatos e aniquilar os
espíritos mais valorosos, o mesmo não se deu com o verdugo de minhasesperanças, porque, com valor e coragem fora do comum, sofreu suas desditas e
as impertinências de minhas ardentes quanto honestas intenções, por istoverifica-se que muda o céu, mas não muda a maneira de proceder das criaturas.Para resumir, quero dizer que ofereci, pelo seu resgate, todos os meus bens e
pus a alma em minhas intenções; planejei sua liberdade e, esquecendo-me demim, arrisquei por ela a própria vida, e tôdas estas obrigações, que em outro
homem podiam ser momentâneas, em mim não o são e não desejo que o sejam;quero apenas que me agradeças êste momento que agora te proporciono.
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Dizendo isto, levantou a mão comedidamente, tirou o véu do rosto deLeonisa e foi como se tirasse a nuvem que às vêzes cobre a formosa claridade
do sol.
Entrego-te, Cornélio, a jóia que deves estimar, acima de tôdas as coisas nomundo; e vês, formosa Leonisa, ofereço-te àquele que sempre estêve em tua
memória; isto sim, quero eu que seja considerado liberalidade e não o fato deter eu dado meus bens, minha vida, que, comparado a êste, nada são; recebe-a,meu felizardo, recebe-a, se és capaz de conhecer seu imenso valor, considera-te
o homem mais venturoso da terra; dar-te-ei com ela também a parte que metoca de tudo quanto o céu nos deu e creio que serão mais de 30.000 escudos;
podes desfrutar de tudo à vontade, como quiseres, com liberdade, sossêgo e
descanso; pede aos céus que tudo seja por longos e felizes anos; não me importode ficar pobre, pois, faltando-me Leonisa, a vida já não me interessará mais.
Depois calou-se, como se a língua estivesse prêsa, mas, logo a seguir, antesque alguém dissesse uma palavra, exclamou:
- Valha-me Deus! Como os trabalhos árduos perturbam a razão! Eu,senhores, com a intenção de fazer o bem, não me dei conta de minhas palavras,porque não é possível que alguém possa mostrar-se liberal com o que não lhe
pertence. Que direitos tenho eu sôbre Leonisa para oferecê-la a outro? Como
posso oferecer o que não me pertence? Leonisa é tão senhora de si que se osseus pais, que Deus os conserve, chegassem a faltar, ela saberia cuidar-se muito
bem; e se ela, em sua sensatez, pensar que me deve alguma coisa, desde jáquero dizer que tais obrigações não me importam e as dou por esquecidas;
assim, dou também o dito por não dito e não dou nada a Cornélio, pois nadatenho para dar; confirmo, entretanto, a doação de todos os meus bens a Leonisa,querendo apenas, como recompensa, que acredite serem verdadeiros meus
sentimentos e que êles jamais deixaram de fazer jus a sua incomparávelhonestidade, seu grande valor e sua infinita formosura.
Dizendo isto, Ricardo calou-se e então Leonisa lhe respondeu:- Se imaginas que concedi algum favor a Cornélio, Ricardo, no tempo em
que andavas enamorado e tinhas ciúmes de mim, foi obedecendo à vontade e
ordem de meus pais, que, desejosos de que êle se tornasse meu espôso,permitiam que eu lhe fizesse tais favores; se ficas satisfeito com isto, ficarás
também satisfeito sabendo de minha honestidade e recato, que, aliás, já tivesteocasião de observar nas muitas experiências pelas quais passei; digo isto,Ricardo, para fazer-te saber que nunca obedeci a ninguém, a não ser aos meus
pais, aos quais peço agora humildemente, como é natural, que me dêem
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permissão e liberdade para dispor da vida que tua valentia e liberdade meconcederam.
Seus pais responderam afirmativamente, dizendo que confiavam em sua
sensatez e porque sabiam que ela usaria de sua discrição de modo a resultarsempre em favor de sua honra e benefício.
- Sendo assim - prosseguiu Leonisa -, quero que não levem a mal o meudesembaraço nem pensem que eu queira ser mal, agradecida: Minha vontade,meu valente Ricardo, até aqui recatada, irresoluta e indecisa, declara-se, agora,
em teu favor, para que os homens saibam também que nem tôdas as mulheressão ingratas; sou tua, Ricardo, e tua serei até a morte, se é que outra decisão não
te leva a negar a mão de espôso que te peço.
Estas palavras deixaram Ricardo atordoado e o que soube fazer foi apenascair de joelhos ante Leonisa e beijar-lhe as mãos, que apertou inúmeras vêzes,
banhando-as com ternas e amorosas lágrimas; Cornélio também as derramou,mas de pesar; de alegria foram as lágrimas dos pais de Leonisa, de admiração e
contentamento as de todos os circunstantes; achavam-se presentes o bispo ouarcebispo da cidade, que, com sua bênção, os levou ao templo e, sem maisesperar, casou-os no mesmo instante. A alegria espalhou-se por tôda a cidade e
dela foram provas a intensa iluminação daquela noite, os inúmeros jogos e
comemorações, que nos dias seguintes foram promovidos pelos parentes deRicardo e Leonisa. Mahamut e Halima, que, vendo a impossibilidade de tornar-
se espôsa de Ricardo, se contentou em casar com Mahamut, reconciliaram-secom a Igreja. Do quinhão que recebera, Ricardo, em sua liberdade, deu aos pais
e aos sobrinhos de Halima uma quantia suficiente para viverem. Todos, enfim,ficaram contentes, livres e satisfeitos. A fama de Ricardo atravessou os limitesda Sicília, estendeu-se por tôda a Itália e por muitos outros lugares, com o nome
de Amante Liberal, nome que permanece até hoje na bôca dos inúmeros filhosque teve de Leonisa, que foi exemplo raro de discrição, honestidade, recato e
formosura.
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A Força do Sangue
Numa dessas noites calorosas de verão, em Toledo, voltavam do rio, ondetinham ido divertir-se, um velho fidalgo, sua mulher, um filho pequeno, umafilha de dezesseis anos e uma criada. A noite estava clara; eram 11 horas; o
caminho estava deserto e êles caminhavam devagar a fim de não pagarem comcansaço o prazer ocasionado pelos folguedos que se fazem no rio ou em suas
margens, em Toledo. Vinha o bom fidalgo e sua honrada família com asegurança que oferecem a justiça e a boa gente daquela cidade, longe de pensarque algum desastre pudesse acontecer-lhes, mas, como a maior parte das
desgraças que acontecem são inesperadas, aconteceu-lhes, sem que esperassem,sofrer uma dessas desgraças que lhes levou a alegria e os fêz chorar por muitosanos. Havia naquela cidade um cavalheiro de uns 22 anos, a quem a riqueza, o
sangue ilustre, a impudência, a liberdade excessiva e as más companhiaslevavam a certas coisas e atrevimento que não condiziam com sua posição e lhe
davam o renome de atrevido.Este cavalheiro, pois - que agora, por respeito, escondendo seu nome,chamaremos de Rodolfo -, com quatro amigos, todos moços, todos alegres e
todos insolentes, desciam pela mesma encosta que o fidalgo subia.Encontraram-se os dois grupos, o das ovelhas e o dos lôbos e, com indecorosa
desenvoltura, Rodolfo e seus camaradas, com os rostos cobertos, olharam osrostos da mãe, da filha e da criada. O velho inquietou-se e reprovou-lhes oatrevimento; os rapazes responderam-lhe com caretas e zombarias, porém, sem
atreverem-se a mais, foram embora. Entretanto, a grande formosura do rosto deLeocádia, pois dizem que assim se chamava a filha do fidalgo, visto por
Rodolfo, começou de tal maneira a perturbar-lhe a mente que sua vontade o fêzparar um momento e lhe despertou o desejo de possuí-la, apesar de tudo quelhe pudesse acontecer; num instante externou seu pensamento aos camaradas,
que decidiram voltar para roubá-la e fazer a vontade de Rodolfo, pois os ricosque dão para ser libertinos acham sempre quem aprove seus desaforos econsidere bons os seus maus gostos; assim, nascer a má intenção, comunicá-la,
aprová-la e decidirem-se a roubar Leocádia foi questão de segundos.
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Puseram lenços no rosto e, desembainhadas as espadas, voltaram; compoucos passos alcançaram aquêles que não haviam acabado de dar graças a
Deus por tê-los livrado das mãos daqueles atrevidos. Rodolfo lançou-se contra
Leocádia e, levantando-a em seus braços, fugiu com a môça, que não teve fôrçaspara defender-se; o susto tirou-lhe a voz e também a luz dos olhos, pois,
desmaiada e sem sentidos, não viu quem a levava nem para onde a levavam.Seu pai falou em altas vozes, sua mãe gritou, seu irmãozinho chorou, a criadaarranhou-se, mas nem as vozes foram ouvidas, nem os gritos escutados, nem o
pranto moveu a compaixão, nem os arranhões trouxeram proveito algum,porque a solidão do lugar, o calado silêncio da noite e as cruéis entranhas dos
malfeitores tudo encobriam.
Finalmente, uns foram-se alegres e os outros ficaram tristes.Rodolfo chegou à sua casa sem impedimento algum e os pais de Leocádia
chegaram à dêles, agravados, aflitos e desesperados; cegos, sem os olhos dafilha, que eram a luz de seus olhos; sozinhos, porque Leocádia era doce e
agradável companhia; confusos, sem saber se seria conveniente informar a Justiça de sua desgraça, temerosos de serem êles o primeiro instrumento apublicar sua desonra. Como fidalgos pobres, viam-se necessitados de favor; não
sabiam de quem fazer queixa, a não ser de sua pouca ventura. Rodolfo,
enquanto isso, sagaz e astuto, tinha já, em sua casa e em seu aposento, aLeocádia, cujos olhos, embora percebendo que ela desmaiara quando a levava,
cobrira com um lenço para que não visse as ruas pelas quais passava, nem acasa, nem o aposento onde se encontrava; aí, sem ser visto por ninguém, porque
possuía um quarto separado em casa de seu pai, que ainda vivia, e tinha aschaves da mansão e as do quarto - descuido comum aos pais que querem ter osfilhos em casa -, antes que Leocádia voltasse do desmaio, Rodolfo havia
realizado seu desejo, pois os ímpetos incastos da mocidade poucas ou nenhumavez pensam em conveniências e requisitos que mais os estimulem e enobreçam.
Cego à luz do entendimento, às escuras, roubou a melhor prenda de Leocádia e,como os pecados da sensualidade, em sua maior parte, não vão além de suaprópria consecução, quisera Rodolfo que Leocádia logo desaparecesse dali e
teve a idéia de colocá-la na rua desmaiada como estava; pondo-se a executar oque imaginara, percebeu que ela voltava a si, dizendo:
- Onde estou, infeliz de mim? Que escuridão é essa, que trevas merodeiam? Estou no limbo de minha inocência ou no inferno de minhas culpas?
Jesus! Quem me toca? Eu, em um leito, desonrada? Mãe, escutas-me? Ouves-
me, querido pai? Pobre de mim! Bem sei que meus pais não me escutam e que
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meus inimigos me tocam; seria bem feliz se esta escuridão durasse para sempre,sem que meus olhos voltassem a ver a luz do mundo e que êste lugar, onde
agora estou, qualquer que ele seja, servisse de sepultura para minha honra, pois
é melhor a desonra que se ignora que a honra exposta à opinião dos outros.Agora me lembro - antes nunca me lembrasse! - de que há pouco vinha em
companhia de meus pais; lembro-me agora de que me raptaram; já imagino evejo não ser conveniente que outras pessoas me vejam. Ó tu, quem quer sejas,que estás aqui comigo - assim dizendo, tomou as mãos de Rodolfo -, se é que
tua alma admite qualquer espécie de súplica, suplico-te, já que dispuseste deminha reputação, dispõe também de minha vida; mata-me logo, pois não
convém viver àquela que não tem mais honra; olha que o rigor da crueldade
que usaste comigo ao ofender-me se suavizará com a piedade que usares aomatar-me, e assim, ao mesmo tempo, virás a ser cruel e piedoso!
As palavras de Leocádia deixaram Rodolfo confuso e, como rapaz poucoexperimentado, não sabia o que dizer nem o que fazer; seu silêncio surpreendia
mais a Leocádia, que, com as mãos, procurava saber se quem estava com elaseria fantasma ou sombra, mas, como sentisse tocar um corpo e se lembrasse dafôrça que fizera quando fôra tirada aos pais, dava-se conta de sua desgraça; com
este pensamento, tornou a apresentar os argumentos que os inúmeros soluços e
suspiros haviam interrompido, dizendo:- Atrevido mancebo, tuas ações fazem-me julgar-te de pouca idade; eu te
perdôo a ofensa que me fizeste, contanto que me prometas e jures que assimcomo a cobriste com esta escuridão, hás de cobri-la com perpétuo silêncio, sem
contá-la a ninguém; pequena recompensa te peço para tão grave ofensa, mas,para mim, será a maior que saberei pedir-te e tu quererás conceder-me; lembra-te de que nunca vi teu rosto nem quero vê-lo, porque, embora me lembre do
desagravo, não quero lembrar-me de meu ofensor, nem guardar na memória aimagem do causador de minha infelicidade; minhas queixas passarão de mim
para o céu, sem querer que as ouça o mundo, que não julga as coisas pelos fatose sim como melhor lhe parece; não sei como te digo estas verdades, que secostuma adquirir com a experiência de muitos casos e no decorrer de muitos
anos, e os meus não chegam a dezessete; por isso, chego à conclusão de que ador ata e desata, da mesma forma, a língua do aflito, algumas vêzes exagerando
seu mal para que nêle creiam, outras vêzes não o dizendo para que se oremedeiem; de qualquer maneira, quer eu me cale quer eu fale, creio que hei delevar-te a me acreditares ou a me socorreres, pois não me crer será ignorância, e
socorrer-me, impossível de me trazer algum alívio; não quero desesperar-me,
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porque te custará pouco dar-me tal alívio; escuta, não esperes nem acreditesque o correr do tempo amenize a justa raiva que tenho de ti, nem queiras
aumentar os agravos; quanto menos me possuíres, e sei que já me possuíste,
menos brotarão teus maus desejos; faze de conta que me ofendeste por acaso,sem dar motivo a que te repreendam; eu farei como se não tivesse vindo ao
mundo ou que, se nasci, foi para ser infeliz; põe-me logo na rua, pelo menos junto à igreja matriz, porque dali saberei voltar para casa; mas também haverásde jurar não me seguir, nem saber onde moro, nem perguntar-me o nome de
meus pais, nem o meu, nem o de meus parentes, para que, sendo tão ricosquanto nobres, não sejam infelizes por minha causa; responde-me e, se temes
que te possa conhecer pela voz, faço-te saber que, além de meu pai e meu
confessor, nunca falei com homem algum em minha vida e a poucos ouvi falarde maneira a poder distingui-los pelo som de sua voz.
A resposta que Rodolfo deu às discretas palavras da infeliz Leocádia foiabraçá-la, dando-lhe mostras de querer voltar a confirmar, nêle, o gôsto e, nela,
a desonra. Leocádia, vendo isto, com mais fôrças do que sua tenra idade pareciater, defendeu-se com os pés, com as mãos, com os dentes e com a língua,dizendo-lhe:
- Olha bem, traidor e desalmado homem, quem quer que sejas, que os
despojos que de mim levaste são os que pudeste roubar de um tronco ou umacoluna sem sentidos; tua vitória e triunfo hão de redundar em infâmia e
menosprêzo; mas o que agora pretendes só haverás de alcançar com minhamorte; desmaiada, pisaste-me e aniquilaste-me; agora, porém, que tenho fôrças,
poderás antes matar-me que me venceres, pois se agora, desperta, acedesse,sem resistência, a tão abominável desejo, poderias imaginar que meu desmaiofoi fingido quando te atreveste a destruir-me.
Enfim, Leocádia resistiu tão galharda e tenazmente que as fôrças e osdesejos de Rodolfo se enfraqueceram; como a insolência que usara para com
Leocádia não nasceu senão de um ímpeto lascivo, do qual nunca nasce overdadeiro amor, que permanece, em lugar do ímpeto, êste, quando passa,deixa, se não o arrependimento, pelo menos uma frouxa vontade de se repetir.
Arrefecido e cansado, Rodolfo, sem dizer uma palavra, deixou Leocádia em seuleito, em sua casa, e, fechando o aposento, foi procurar seus camaradas para
aconselhar-se com êles e ver o que devia fazer. Leocádia percebeu que ficava sóe encerrada; levantando-se do leito, andou por todo o aposento, tateando asparedes com as mãos para ver se havia uma porta por onde sair ou uma janela
por onde atirar-se; porta encontrou, mas bem fechada, e deu com uma janela
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que pôde abrir e pela qual entrou a claridade da Lua, tão intensa que Leocádiapôde distinguir as côres de uns tecidos adamascados que adornavam o
aposento; viu que a cama era dourada e tão ricamente composta que mais
parecia um leito de príncipe que de algum simples cavalheiro; contou ascadeiras e as escrivaninhas; observou a parte onde estava a porta e, embora
visse, pendentes das paredes, alguns quadros, não pôde ver as pinturas quecontinham; a janela era grande, guarnecida e protegida por uma grossa grade; avista dava para um jardim que também terminava em altas paredes; as
dificuldades que se opuseram à intenção que tinha de atirar-se à rua, tudo o queviu e observou, a qualidade e ricos adornos daquela mansão, deram-lhe a
entender que o dono dela havia de ser homem importante, rico e muito rico; em
uma escrivaninha que estava junto à janela viu um pequeno crucifixo, todo deprata, que tomou e colocou na manga da roupa, não por devoção, nem por
furto, e sim levada por um discreto desígnio seu; feito isso, fechou a janelacomo estava antes e voltou para o leito, esperando para ver que fim teria o mau
início de tais acontecimentos.Não teria passado, assim pensou, meia hora quando percebeu que a porta
do aposento se abriu, e que uma pessoa chegou-se a ela e, sem dizer uma
palavra, vendou-lhe os olhos com um lenço e, tomando-lhe o braço, levou-a
para fora da mansão; percebeu também que a pessoa voltava para fechar aporta. Esta pessoa era Rodolfo, que, embora tivesse ido procurar seus
camaradas, não quis encontrá-los, por parecer-lhe que não lhe convinhaconfessar o que se havia passado com aquela jovem; resolveu dizer-lhes que,
arrependido da má ação e movido pelas suas lágrimas, a havia deixado nametade do caminho. Assim pensando, voltou bem depressa para levar Leocádia
junto à igreja matriz, como a jovem lhe havia pedido, antes que amanhecesse e
o dia o impedisse de levá-la, forçando-o a mantê-la em seu aposento até a noiteseguinte; neste espaço de tempo não queria voltar a usar de suas fôrças nem dar
oportunidade para que fôsse reconhecido. Levou-a, pois, até a praça quechamam de Ayuntamiento e ali, mudando a voz, disse-lhe, meio em português,meio em castelhano, que podia ir tranqüilamente para casa porque ninguém a
seguiria e, antes que ela tivesse tempo de tirar o lenço, êle já se havia colocadoem lugar onde não pudesse ser visto. Leocádia ficou só, tirou a venda,
reconheceu o lugar onde a deixaram. Olhou para todos os lados, não viuninguém, mas, suspeitando que alguém, de longe, a seguisse, detinha-se a cadapasso, caminhando em direção de sua casa, que ficava não muito distante dali;
para disfarçar, se por acaso a seguissem, entrou em uma casa que encontrou
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aberta e dali a pouco foi para casa, onde encontrou seus pais ainda atônitos evestidos, sem pensarem em descansar. Quando a viram, correram para ela de
braços abertos e a receberam com lágrimas nos olhos.
Leocádia, cheia de sobressalto e alvorôço, fêz os pais retirarem-se com elade parte e, assim que o fizeram, contou-lhes, em breves palavras, os desastrosos
acontecimentos, com todos os pormenores, da pouca notícia que trazia dosalteador e usurpador de sua honra; disse-lhes o que havia visto no teatro, ondese representou a tragédia de sua desventura: a janela, o jardim, a grade, as
escrivaninhas, a cama, os tecidos e, por último, mostrou-lhes o crucifixo, quetrouxera; perante a imagem renovaram-se as lágrimas, fizeram-se súplicas,
pediram-se vinganças e desejaram-se milagrosos castigos; disse também que,
embora não desejasse vir a conhecer seu ofensor, se os pais achavamconveniente conhecê-lo, podiam, por meio daquela imagem, fazer com que
muitos sacristãos dissessem nos púlpitos de tôdas as paróquias da cidade, quequem houvesse perdido tal imagem a encontraria em poder do religioso que
êles escolhessem; e assim, conhecendo-se o dono da imagem, haveriam deconhecer a casa e também a pessoa de seu inimigo. Ao que o pai lhe respondeu:
- Terias dito muito bem, filha, se a malícia das pessoas não se opusesse a
tuas sábias palavras, pois é claro que hoje, neste dia, darão pela falta desta
imagem no aposento ao qual te referiste; o dono dela há de estar certo de que apessoa que estêve com êle a levou e, tomando conhecimento de que está em
poder de algum religioso, há de servir antes para identificar quem a deu do quepara indicar o dono que a perdeu, pois pode fazer vir atrás dela outra pessoa a
quem o dono tenha feito a descrição e, sendo assim, ficaremos antes confusosque informados, embora possamos usar do mesmo artifício que imaginamos,dando-a ao religioso por intermédio de uma terceira pessoa; o que hás de fazer,
filha, é guardá-la e recomendar-te a ela, pois ela foi testemunha de tua desgraçae permitirá que haja um juiz que olhe em teu favor; e lembra-te, filha, que mais
ofende um grama de desonra pública do que uma arrôba de infâmia secreta;podes, pois, biìblicamente, viver honrada com Deus; não sofras por te saberesdesonrada, em segrêdo; a verdadeira desonra está no pecado e a verdadeira
honra na virtude; com a palavra, com o desejo e com a ação ofende-se a Deus ecomo tu, ou em palavra, ou em pensamento, ou em ações, não o ofendeste,
considera-te honrada, que eu assim te considerarei e nunca hei de te olhar senãocomo teu verdadeiro pai.
Com estas previdentes palavras, o pai de Leocádia consolou-a e sua mãe,
abraçando-a de nôvo, procurou também consolá-la; a môça gemeu e chorou
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novamente e decidiu cobrir a cabeça, como se diz, e viver recolhidamente sob aproteção dos pais, vestida tão recatada quanto pobremente.
Enquanto isso, Rodolfo, tendo voltado à casa, deu pela falta da imagem do
crucifixo e imaginou quem poderia tê-la levado; não se importou, porém, e,como fôsse rico, não fêz caso do fato, nem seus pais a pediram quando, dali a
três dias, partiu êle para a Itália e entregou aos cuidados de uma camareira desua mãe tudo o que deixava no aposento. Fazia já muitos dias que Rodolfohavia decidido ir para a Itália e seu pai, que ali estivera, animava-o, dizendo-lhe
que não eram cavalheiros os que o eram somente em sua pátria, que eranecessário sê-lo também em terras estranhas. Por essas e por outras razões,
dispôs-se a vontade de Rodolfo a cumprir a vontade do pai, que lhe creditou
muito dinheiro para Barcelona, Gênova, Roma, Nápoles, e êle, com dois de seuscamaradas, partiu logo, pensando gulosamente no que ouvira de alguns
soldados sôbre a abundância das hospedarias da Itália e França e da liberdadeque gozavam os espanhóis nos alojamentos. Soava-lhe bem aquêle Eco li buoni
polastri, picioni, pdesuto et salcicie (A expressão é dialetal e significa: Eis os bons
franguinhos, pombos, presunto e salsichas.) e outros nomes assim, dos quais ossoldados se lembram quando vêm daqueles lados para cá e passam pelo apêrto
e falta de comodidade das estalagens e hospedarias da Espanha. Enfim, êle se
foi, pouco se lembrando do que se passara com Leocádia, como se nada tivesseacontecido.
Ela, enquanto isso, passava a vida em casa dos pais, no maiorrecolhimento possível, sem se deixar ver por pessoa alguma, temerosa de que
houvessem de ler sua desgraça no rosto. Mas, em poucos meses, viu-seobrigada a fazer o que até ali fazia de bom grado; viu que lhe convinha viverretirada e escondida, porque se sentiu grávida, motivo pelo qual as lágrimas,
esquecidas por algum tempo, voltaram a seus olhos, e os suspiros e lamentoscomeçaram a ferir novamente os ventos, sem que as palavras de sua mãe a
deixassem de consolar.O tempo voou, chegou a hora do parto e tudo se fêz tão secretamente que
nem mesmo se ousou confiar em uma parteira; estas funções, exerceu-as a mãe,
e a môça deu à luz um menino, dos mais formosos que se possa imaginar.Em meio ao mesmo recato e segrêdo em que havia nascido, levaram-no a
uma aldeia, onde passou quatro anos, ao fim dos quais o avô o levou comosobrinho à casa, onde se criava, senão muito rica, pelo menos virtuosamente.Era o menino - ao qual deram o nome de Luís, por assim chamar-se o avô - de
rosto formoso, de boa índole, de inteligência aguda e em tôdas as ações, que em
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sua pouca idade podia fazer, dava mostras de ter sido gerado por um pai deorigem nobre; sua graça, beleza e discrição tornaram seus avós de tal maneira
enamorados que êles chegaram a considerar felicidade a infelicidade da filha,
por ter-lhes dado tal neto. Quando ia pela rua, choviam sôbre êle mil bênçãos;uns bendiziam sua formosura; outros, a mãe de quem havia nascido; êstes, o pai
que o gerou; aquêles, a quem tão bem o havia criado. Com a admiração dos queo conheciam e dos que não o conheciam, chegou o menino à idade de sete anose já sabia ler latim e em língua romance e escrever com muito boa letra, porque
a intenção de seus avós era fazê-lo virtuoso e sábio, já que não podiam fazê-lorico, como se a sabedoria e a virtude não fôssem as riquezas sôbre as quais nem
o ladrão nem aquela a quem chamam fortuna podem exercer sua jurisdição.
Aconteceu, pois, que, um dia, em que o menino foi, com um recado de suaavó, à casa de uma parenta, passou por uma rua onde havia uma corrida de
cavaleiros; pôs-se a olhar e, para arranjar um lugar melhor, passou de um ladopara outro, mas, não tendo tempo de fugir, foi atropelado por um cavalo, cujo
dono não pôde deter na fúria de sua carreira; passou por cima do menino edeixou-o como se estivesse morto, estendido no chão e perdendo muito sanguepela cabeça. Mal isto acontecera e um cavalheiro ancião, que estava observando
a corrida, com rapidez jamais vista, desceu de seu cavalo e foi para onde estava
o menino; tirando-o dos braços de uma pessoa que já o levantara, sem prestaratenção às suas cãs e à sua autoridade, que era grande, dirigiu-se a passos
largos para sua casa, ordenando aos criados que o deixassem e fôssem buscarum cirurgião para tratar do menino. Muitos cavaleiros seguiram-no, lastimando
a desgraça do tão formoso menino, pois logo se soube que o atropelado eraLuisinho, sobrinho de tal cavalheiro, e aí diziam o nome de seu avô. A notíciacorreu de bôca em bôca até chegar aos ouvidos de seus avós e de sua mãe, que,
certificando-se bem do caso, saíram como que desatinados e loucos em busca deseu querido menino; por ser muito conhecido e importante o cavalheiro que o
havia levado, muitas das pessoas que encontraram indicaram-lhes a casa, à qualchegaram quando o menino estava já nas mãos de um cirurgião. O cavalheiro esua mulher, donos da casa, pediram aos que julgaram ser seus pais que não
chorassem nem levantassem a voz para se queixarem, porque não seria bompara o menino. O cirurgião, que era famoso, tendo-o medicado com grande
firmeza e mestria, disse que a ferida não era mortal, como receara de início. Nametade do curativo, Luís, que até então estivera sem sentidos, voltou a si ealegrou-se por ver os tios, que lhe perguntaram, chorando, como se sentia.
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Respondeu-lhes que estava bem, mas que lhe doía muito o corpo e acabeça. O médico ordenou que não falassem com êle e que o deixassem
repousar; assim se fêz, e o avô começou a agradecer ao dono da casa a grande
caridade de que usara para com seu sobrinho. O cavalheiro respondeu quenada havia para agradecer, pois, quando viu o menino caído e atropelado,
pareceu-lhe ver o rosto de um filho seu a quem amava ternamente, que isto ofêz tomar a criança nos braços e trazê-la para sua casa, onde ficaria até que securasse, e que teria ali tôdas as regalias possíveis e necessárias. Sua mulher, que
era nobre senhora, disse a mesma coisa e fêz ainda melhores promessas. Osavós ficaram admirados com tanta bondade, mas a mãe ficou ainda mais
admirada, porque, com as notícias dadas pelo cirurgião, sossegara um pouco
seu espírito aflito. Olhou atentamente o aposento onde o filho estava e, pormuitos motivos, viu claramente que era aquêle o lugar onde perdera a honra e
encontrara a desventura e, embora não estivesse enfeitado com os adamascadosque então possuíra, conheceu a disposição dos objetos, viu a janela de grades,
que dava para o jardim, e, estando ela fechada por causa do menino, perguntouse aquela janela dava para algum jardim. Responderam-lhe afirmativamente;porém o que mais reconheceu foi aquêle mesmo leito que considerava sua
sepultura e o reconheceu mais que a própria escrivaninha sôbre a qual estava a
imagem que havia tirado.Finalmente, os degraus, que ela havia contado quando a tiraram do
aposento com os olhos vendados, trouxeram à luz a confirmação de tôdas assuas suspeitas, isto é, os degraus que havia dali até a rua, que ela contara com
discreta atenção; quando voltou à casa achou justo o número dêles; conferindouns sinais com os outros certificou-se de que suas suspeitas eram bem fundadase as expôs detalhadamente à mãe, que discretamente procurou saber se o
cavalheiro com quem estava seu neto teria tido ou tinha algum filho; soube queo rapaz ao qual chamamos Rodolfo era filho dêle e que estava na Itália;
calculando o tempo que lhe disseram ter êle saído da Espanha, viu que eram osmesmos sete anos que tinha o neto. Comunicou tudo isto ao marido e os doiscombinaram com a filha esperar para ver o que Deus faria do menino, que
dentro de quinze dias ficou fora de perigo e depois de trinta dias levantou-se;durante todo êste tempo foi êle visitado pela mãe, pela avó e tratado pelos
donos da casa como se fôsse o próprio filho; algumas vêzes, falando comLeocádia, Dona Estefânia, que assim se chamava a mulher do cavalheiro, dizia-lhe que aquêle menino se parecia tanto com um filho seu que estava na Itália e
não havia uma só vez que o olhasse que não parecesse ver o filho diante dos
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olhos. Em uma dessas vêzes em que assim falava, Leocádia, achando-se a sóscom ela, teve oportunidade de dizer-lhe algumas palavras que, de acôrdo com
os pais, havia decidido dizer-lhe, e que foram estas ou mais ou menos estas:
- No dia, senhora, em que meus pais ouviram dizer que seu sobrinhosofrera o desastre, acreditaram e pensaram que o céu se lhes havia fechado e
que todo o mundo viera abaixo; imaginaram que, faltando-lhes êste sobrinho, aquem êles querem com tanto amor que excede, de muito, o amor de muitos paispor seus filhos, faltava-lhes a luz dos olhos e o consôlo de sua velhice; mas,
como se costuma dizer, quando Deus dá a ferida dá também o remédio; omenino encontrou-o nesta casa e eu encontrei nela a lembrança de alguns
acontecimentos que nunca poderei esquecer enquanto a vida me dure; eu,
senhora, sou nobre, porque meus pais o são e o hão sido todos os meusantepassados, que, com modestos bens da fortuna, mantiveram, felizmente, sua
honra onde quer que viveram.Dona Estefânia, admirada e surpreendida, estivera escutando as palavras
de Leocádia e não podia acreditar, embora estivesse vendo, que pudesse havertanta ponderação em tão pouca idade, pois, a seu parecer, julgava que a môçadeveria ter vinte anos mais ou menos; sem falar-lhe ou responder-lhe qualquer
palavra, ouviu tôdas as palavras que a môça quis dizer-lhe e que foram
suficientes para contar-lhe a malandragem do filho, sua desonra, o rapto, ocobrir-lhe os olhos, o trazê-la para aquêle aposento, os sinais que a fizeram
reconhecer o que suspeitava; para confirmar suas palavras, tirou do peito ocrucifixo que havia levado e disse:
- Tu, Senhor, que fôste testemunha da violência, sê juiz do reparo que medeve ser feito; levei-te de cima daquela escrivaninha com o propósito de telembrar sempre a ofensa feita, não para pedir-te vingança, que não a quero, mas
para pedir-te que me desses algum consôlo para eu levar com paciência minhadesgraça. Êste menino, senhora, pelo qual haveis demonstrado o extremo de
vossa caridade, é vosso verdadeiro neto; quis o céu que êle fôsse atropeladopara que, trazendo-o a vossa casa, pudesse eu encontrar nela, como esperoencontrar, senão o remédio que melhor me convenha para minha desventura,
pelo menos um meio para que eu possa relevá-la.Dizendo isto, abraçada ao crucifixo, caiu desmaiada nos braços de
Estefânia, que, enfim, como mulher e como nobre, em quem a compaixão e amisericórdia costuma ser tão natural como a crueldade o é no homem, mal viu odesmaio de Leocádia, juntou seu rosto ao dela, derramando sôbre êle tantas
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lágrimas que não foi preciso espargir outra água em Leocádia para que elavoltasse a si.
Estando as duas desta maneira, o cavalheiro, marido de Estefânia, entrou,
trazendo Luisinho pela mão e, vendo êle o pranto de Estefânia e o desmaio deLeocádia, pediu pressuroso para lhe dizerem o porquê da situação. O menino
abraçava a mãe, que julgava sua prima, a sua avó, que julgava sua benfeitora, eperguntava também por que choravam.
- Tenho importantes coisas a vos dizer, senhor - disse Estefânia a seu
marido -, mas, para resumir, devo dizer-vos que esta môça é vossa filha e êstemenino vosso neto. O que vos digo me foi revelado por essa menina e o rosto
dêste menino, no qual ambos vimos o rosto de nosso filho, confirma suas
palavras.- Se não vos explicardes, senhora, não vos entenderei - falou o cavalheiro.
Nisto, Leocádia voltou a si e, abraçada ao crucifixo, parecia estartransformada em um mar de pranto. Os fatos haviam colocado o cavalheiro em
grande confusão e dela só saiu quando sua mulher lhe contou tudo o queLeocádia lhe havia dito; êle, pela divina permissão do céu, em tudo acreditou,como se o houvessem provado com muitas e verdadeiras testemunhas.
Consolou e abraçou Leocádia, beijou o neto e naquele mesmo dia mandou um
mensageiro a Nápoles avisar ao filho para vir logo, porque lhe tinhamarranjado casamento com uma jovem excepcionalmente bela e que muito lhe
convinha. Não deixaram que Leocádia nem seu filho voltassem mais à casa deseus pais, que, contentíssimos com o bom sucesso da filha, davam sem cessar
infinitas graças a Deus. O mensageiro chegou a Nápoles e Rodolfo, desejoso depossuir a tão formosa mulher descrita pelo pai, depois de dois dias que recebeua carta, tendo-se-lhe oferecido oportunidade, embarcou com seus dois
camaradas, que ainda não o haviam deixado, em quatro galeras que estavamprestes a vir para Espanha, e sem nenhum empecilho chegou, dentro de doze
dias, a Barcelona e dali, pela posta, a cavalo, em outros sete chegou a Toledo eentrou em casa de seu pai, tão elegante e tão garboso que tôda a elegância egalhardia do mundo pareciam estar nêle reunidas.
Os pais alegraram-se em ver a saúde e a feliz chegada do filho. Leocádia,que o observava de um lugar escondido, permaneceu quieta a fim de não trair
os planos e a ordem que Dona Estefânia lhe havia dado. Os companheiros deRodolfo quiseram ir logo para suas casas, mas Estefânia não o permitiu, pornecessitar dêles para seus desígnios. Rodolfo chegou quando a noite se
aproximava e, enquanto se preparava o jantar, Estefânia, acreditando, sem
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dúvida alguma, que êles deveriam ser dois dos três camaradas que Leocádiadissera estarem com Rodolfo na noite em que a raptaram, chamou os dois
companheiros do filho e pediu-lhes insistentemente para dizerem se se
lembravam de que o filho havia raptado uma mulher, em tal noite e há tantosanos atrás, pois de saber a verdade a êsse respeito dependia a honra e o sossêgo
de todos os seus parentes; assim, com tantos e tais empenhos soube falar-lhes ede tal maneira assegurar-lhes que o esclarecimento do rapto não lhes trariadano algum, que êles acharam melhor confessar ser verdade que, em uma noite
de verão, indo êles dois e outro amigo com Rodolfo, raptaram uma jovem, namesma noite a que ela se referia; que Rodolfo a tinha trazido, enquanto êles
detinham as pessoas de sua família; que estas, gritando, procuravam defendê-
la, e no outro dia Rodolfo lhes havia dito que a tinha levado para sua casa e erasomente isto o que podiam responder à sua pergunta.
A confissão feita pelos dois pôs fim às dúvidas que em tal caso poderiamaparecer e, assim, decidiu ela levar a cabo seu bom pensamento, que foi o
seguinte: pouco antes de sentarem-se para jantar, a mãe de Rodolfo entrou a sóscom êle em um aposento e, colocando-lhe um retrato nas mãos, disse-lhe:
- Rodolfo, meu filho, quero dar-te um grande prazer, mostrando-te a tua
espôsa; êste é seu retrato; quero-te, porém, advertir que o que lhe falta em
beleza lhe sobra em virtude; ela é nobre e discreta e medianamente rica e, comoteu pai e eu a escolhemos para ti, asseguro-te que é ela quem te convém.
Rodolfo olhou atentamente o retrato e disse:- Se os pintores, que geralmente costumam ser pródigos na formosura do
rosto que retratam, o foram também com êste, acredito, sem dúvida, que ooriginal deve ter a mesma feiúra; para dizer a verdade, senhora minha mãe, é
justo e bom que os filhos obedeçam ao que os pais mandarem, mas também é
conveniente e melhor que os pais dêem aos filhos o que êles mais gostarem; ecomo o matrimônio é nó que se desata apenas com a morte, será bom que os
laços sejam iguais e fabricados com os mesmos fios: a virtude, a nobreza, adiscrição e os bens da fortuna podem muito bem alegrar a alma daquele a quema sorte lhe deu tal espôsa, mas que a feiúra dela alegre os olhos do espôso
parece-me impossível; sou môço, mas parece-me ser compatível com osacramento do matrimônio o justo e devido prazer que os casados desfrutam, e,
se êle falta, o matrimônio fraqueja e nega sua segunda finalidade; pensar, pois,que um rosto feio, que se há de ter a tôda hora diante dos olhos, na sala, namesa e no leito, possa deleitar, digo-vos outra vez, parece-me quase impossível;
por vossa vida, minha mãe, dai-me uma companheira que me alegre e que não
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me enfade para que, sem nos desviarmos por uma ou outra parte, ambos osdois levemos igualmente e pelo reto caminho o jugo que o céu nos impuser; se
esta senhora é nobre, discreta e rica como vossa mercê diz, não lhe faltará um
espôso que tenha um modo de pensar diferente do meu; uns há que buscamnobreza; outros, discrição; outros, dinheiro e outros, formosura; eu sou dêstes
últimos, porque nobreza, graças ao céu, aos meus antepassados e a meus pais,eu a tenho por herança; recato, não sendo a mulher néscia ou tonta, basta-lheque não se revele muito desembaraçada nem muito bôba para não aproveitar;
quanto às riquezas, também as de meus pais fazem-me não temer que eu venhaa ser pobre; busco a formosura, quero a beleza aliada ao dote de honestidade e
bons costumes; se minha espôsa trouxer isto, servirei a Deus com gôsto e darei
uma velhice sossegada a meus pais.A mãe de Rodolfo ficou contentíssima com suas palavras porque elas a
faziam conhecer que tudo ia correndo de acôrdo com seus planos; respondeu-lhe que procuraria casá-lo conforme êle quisesse, que não se preocupasse, pois
era fácil desmanchar o acôrdo que haviam feito para casá-lo com aquelasenhora.
Rodolfo agradeceu-lhe e, como chegasse a hora do jantar, foram para a
mesa; estando já sentados o pai e a mãe, Rodolfo e seus camaradas, Dona
Estefânia disse descuidadamente:- Como sou distraída e como trato minha hóspede! Andai - disse ela a um
criado -, dizei à Senhora Leocádia que deixe de lado sua modéstia e nos venhahonrar esta mesa, pois todos os que nela estão são meus filhos e seus servidores.
Tudo isto fazia parte de seu plano e tudo o que havia de fazer já o sabiaLeocádia. Pouco demorou para que Leocádia saísse e desse de si a maisimprevista e bela mostra que a formosura natural e composta jamais pôde dar.
Por ser inverno, estava vestida com uma saia tôda de veludo negro, salpicadacom botões de ouro e pérolas; o cinto e a gola, de diamantes; seus próprios
cabelos, que eram longos e não excessivamente loiros, serviam-lhe de adôrno etouca; os laços, os ondeados e os reflexos de diamantes, que com êles semisturavam, ofuscavam a luz dos olhos que os olhavam. Leocádia estava bem
disposta e elegante; trazia o filho pela mão e diante dela vinham duas donzelasiluminando-a com duas velas de cêra, em dois candelabros de prata.
Levantaram-se todos para reverenciá-la, como se ela fôsse alguma criaturado céu que milagrosamente houvesse aparecido ali.
Nenhum dos que estavam olhando-a embevecidos, parece que por
estarem atordoados, pôde dirigir-lhe a palavra. Leocádia, com graça airosa e
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discreta polidez, cumprimentou a todos, e Estefânia, tomando-a pela mão, fê-lasentar-se a seu lado, defronte de Rodolfo. Colocaram o menino junto ao avô.
Rodolfo, que de mais perto olhava a incomparável beleza de Leocádia, dizia
consigo: “Se aquela que minha mãe escolheu para minha espôsa tivesse ametade desta beleza, eu me consideraria o mais feliz homem do mundo. Valha-
me Deus! O que vejo! Estou eu olhando, porventura, algum anjo humano?” Ecom isto ia-se-lhe entrando pelos olhos, para tomar conta de sua alma, aformosa imagem de Leocádia, que, enquanto o jantar não vinha, vendo também
tão perto de si aquêle que já queria mais que a luz dos próprios olhos, com osquais o olhava de vez em quando, furtivamente, começou a revolver em sua
imaginação o que havia passado com Rodolfo; começaram a enfraquecer em
sua alma as esperanças que a mãe de Rodolfo lhe havia dado de êle tornar-seseu espôso; considerava quanto estava perto de ser feliz ou infeliz para sempre;
a consideração foi tão intensa e os pensamentos tão contraditórios que lheapertaram o coração de tal forma que começou a suar e a perder a côr a ponto
de, sobrevindo-lhe um desmaio, ver-se obrigada a reclinar a cabeça nos braçosde Estefânia, que, vendo-a assim, nêles a recebeu muito perturbada.Sobressaltaram-se todos e, deixando a mesa, correram para acudi-la. Porém
quem mais demonstrou senti-lo foi Rodolfo, que, para chegar mais rápidamente
a ela, tropeçou e caiu duas vêzes. Nem desabotoando-lhe a roupa, nematirando-lhe água ao rosto ela voltava a si; pelo contrário, o peito e o pulso, que
não lhe achavam, iam dando sinais precisos de sua morte; as criadas e oscriados da casa, sem pensar, falaram em alta voz e a consideraram morta. Estas
novas amargas chegaram aos ouvidos dos pais de Leocádia, que Dona Estefâniahavia reservado para mais agradável ocasião.
Eles, com o cura da paróquia, que com êles estava, desobedecendo às
ordens de Dona Estefânia, vieram à sala.O cura chegou logo para ver se Leocádia, mesmo por sinais, dava mostras
de arrepender-se de seus pecados para absolvê-la e, onde pensava encontrarapenas um desmaio, encontrou dois, porque Rodolfo estava com o rostopendido sôbre o peito de Leocádia. A mãe deixou-o aproximar-se dela como de
algo que havia de lhe pertencer; quando porém, viu que êle também estava semsentidos, estêve a ponto de perder o seu e o perderia, se não visse que Rodolfo
tornava a si, como voltou, envergonhado de o terem visto chegar ao extremodos extremos; mas sua mãe, quase adivinhando o que o filho sentia, disse-lhe:
- Não te envergonhes, filho, do extremo a que chegaste; envergonha-te,
isto sim, daqueles aos quais não chegaste quando souberes o que não te quero
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mais esconder, embora eu pensasse revelá-lo em mais alegre ocasião; devessaber, filho de minh’alma, que esta jovem, que tenho desmaiada em meus
braços, é tua verdadeira espôsa; digo verdadeira porque eu e teu pai a
havíamos escolhido para ti, pois a do retrato é falsa.Rodolfo, quando ouviu isto, levado por seu amoroso e ardente desejo e,
tirando-lhe o nome de espôso todos os inconvenientes que a honestidade e adecência do lugar podiam-lhe impor, inclinou-se ràpidamente ao rosto deLeocádia e, unindo seus lábios aos dela, parecia esperar que a alma dela saísse,
para que a sua lhe desse acolhida. Porém, quando as lágrimas de todos cresciamainda mais pelo desgôsto, os gritos aumentavam pela dor, a mãe de Leocádia
arrancava os cabelos e seu pai a barba, os gritos de seu filho alcançavam os
céus, Leocádia voltou a si e, com sua volta, retornou a alegria e o contentamentoque se haviam ausentado dos corações de todos os circunstantes. Leocádia viu-
se nos braços de Rodolfo e com fôrça considerável procurava livrar-se dêles;porém êle lhe disse:
- Não, senhora, não há de ser assim; não fica bem que luteis para livrar-vosdos braços daquele que vos tem na alma.
Neste momento, Leocádia acabou de recobrar completamente seus
sentidos e Dona Estefânia acabou por não levar mais adiante sua primeira
determinação, dizendo ao cura que casasse logo seu filho com Leocádia; opadre assim o fêz, pois êste caso passou-se no tempo em que o matrimônio era
realizado com a vontade dos nubentes apenas, sem os cuidados e prevenções justas e santas, que, agora existem; nada houve que impedisse o casamento. E,
realizado, deixe-se que outra pena e outro talento mais delicado que o meunarre a alegria geral de todos os que nêle se acharam; os abraços que os pais deLeocádia deram em Rodolfo; as graças que seus pais deram ao céu; os
oferecimentos de tôdas as partes; a admiração dos camaradas de Rodolfo, quetão inesperadamente viram, na mesma noite de sua chegada, tão formoso
casamento, e mais ainda quando souberam, por ter Dona Estefânia contadodiante de todos, que Leocádia era a jovem que seu filho havia raptado em suacompanhia; Rodolfo não ficou menos admirado e, para-certificar-se, pediu a
Leocádia para indicar-lhe alguma coisa que identificasse perfeitamente aquilode que não duvidava, por parecer-lhe que seus pais o teriam averiguado bem.
Ela respondeu:- Quando despertei e voltei a mim do desmaio, encontrei-me, senhor, em
vossos braços, sem honra; porém, eu o dou por bem empregado, pois, ao voltar
do desmaio que agora tive, encontrei-me também naqueles braços de então,
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mas honrada. Se esta prova não basta, bastará a da imagem de um crucifixo queninguém, senão eu, vos pôde furtar; se deste pela falta dela e se é a mesma que
está em poder de minha senhora..
- Pertenceis à minh’alma e pertencereis pelos anos que Deus o ordenar,minha querida.
E, abraçando-a de nôvo, de nôvo voltaram as bênçãos e os parabéns quelhes deram.
Veio o jantar e vieram os músicos, que já estavam prevenidos.
Rodolfo viu-se a si próprio no espelho do rosto de seu filho; seus quatroavós choraram de alegria; não houve um só canto, em tôda a casa, que não fôsse
visitado pelo júbilo, pelo contentamento e pela alegria; e, embora a noite Voasse
com suas ligeiras e negras asas, parecia a Rodolfo que ia e caminhava não comasas, mas com muletas, tão grande era o desejo de ver-se a sós com sua querida
espôsa. Chegou, enfim, a hora desejada, porque nada há que não tenha fim.Retiraram-se todos, tôda a casa mergulhou.
Em silêncio, no qual não ficará a verdade dêsse conto, pois não oconsentirão os inúmeros filhos e a ilustre descendência que deixaram emToledo êstes dois felizes esposos, que, durante muitos e felizes anos,
desfrutaram da alegria de se possuírem, de terem muitos filhos e netos, tudo
isso permitido pelo céu e pela fôrça do sangue, que o valoroso, ilustre e cristãoavô de Luisinho viu derramado no solo.
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O Ciumento
Não faz muitos anos, partiu de uma aldeia de Estremadura um fidalgo,filho de pais nobres, que andou gastando como um pródigo os anos e os bens,por diferentes partes da Espanha, Itália e Flandres; ao fim de muitas
peregrinações; mortos já seus pais e dissipados os seus bens, foi parar na grandecidade de Sevilha, onde não lhe faltaram ocasiões para consumir o pouco que
lhe restava. Vendo-se, pois, em grande penúria e com poucos amigos, decidiu-se por um recurso, comum, naquela cidade, aos que se encontram em igualsituação: partiu para as Índias (Com o têrmo “Índias” indicava-se, na época de
Cervantes, também a América.), refúgio e amparo dos desesperados de Espanha,abrigo dos falidos, salvo-conduto dos homicidas, apoio e proteção dos
jogadores chamados “certos” pelos peritos na arte, chamariz de mulheres
perdidas, engano comum de muitos e remédio particular de poucos. Partindo,nessa ocasião, uma frota para Terra firme, entendeu-se êle com o almirante,
preparou a matalotagem, a esteira de esparto e, embarcando em Cádiz, deu abênção à Espanha, enquanto a frota levantava ferros; com geral alegria deram-se as velas ao vento, que soprava branda e favoràvelménte e que, em poucas
horas, os fêz perder de vista a terra e enxergar as largas e espaçosas planícies dogrande pai das águas, o mar Oceano. O nosso passageiro ia pensativo,
revolvendo na memória os grandes e variados perigos pelos quais passara emsuas peregrinações e o mau rumo que até ali seguira no caminho da existência;dessa recapitulação surgia-lhe na alma o firme propósito de mudar de vida,
procurando um jeito de conservar os bens que Deus fôsse servido dar-lhe eprocedendo com as mulheres mais recatadamente do que até então fizera.
Encontrava-se a frota em plena calmaria enquanto Filipe de Carrizales -assim se chamava o homem que nos deu assunto para nossa novela - eraagitado pela tempestade interior de seus pensamentos. Tornou a soprar o vento,
impelindo os navios com tanta fôrça que ninguém pôde ficar em seus lugares;Filipe de Carrizales teve que desistir de suas cogitações e entregar-se aoscuidados que a viagem lhe impunha; mas a viagem foi tão próspera que os
navios chegaram sem contratempo ao pôrto de Cartagena. Resumindo, e para
não perder tempo com fatos alheios à nossa novela, direi que Filipe tinha uns 48
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anos quando embarcou para as índias e que, em vinte que ali passou,conseguiu, graças à sua habilidade e ao seu esfôrço, ganhar mais de 150.000
pesos bem contados.
Vendo-se, pois, rico e em plena prosperidade, veio-lhe o desejo natural eque todos têm de voltar à pátria; desprezados os grandes interêsses que se lhe
ofereciam, deixou o Peru, onde adquirira tanta riqueza, e, convertendo todos osseus bens em barras de ouro e prata, registrou-as, para evitar complicações, evoltou à Espanha. Desembarcou em Sanlúcar; chegou a Sevilha, tão carregado
de anos como de riquezas; levantou sua fortuna sem dificuldade; procurou seusamigos: todos tinham morrido; quis então ir à sua terra natal, apesar de saber
que a morte não lhe deixava parente algum. Se, quando partiu para as índias,
pobre e necessitado, inúmeros pensamentos o assaltaram e não o deixavamsossegar um só instante, agora, no sossêgo da terra, assaltavam-no do mesmo
modo, embora o motivo fôsse outro; se antes não dormia por ser pobre, agoranão podia estar tranqüilo por ser rico, que a riqueza é fardo tão pesado para
quem não está acostumado nem sabe utilizá-la como é a pobreza para aquêleque a tem por companheira constante. O ouro nos dá cuidados, a falta dêletambém; mas os que não o têm contentam-se ao conseguir uma pequena
quantia, e os que o têm vêem aumentados os seus tormentos quanto mais
dinheiro possuem.Carrizales contemplava suas barras de ouro e prata não por ser avarento,
pois aprendera a ser liberal durante seu tempo de soldado, mas por não saber oque havia de fazer com elas; assim como estavam nada lhe rendiam; tendo-as
em casa serviriam de isca para os cobiçosos e atrairiam os ladrões. Morrera-lheo desejo de voltar à vida inquieta dos negócios e parecia-lhe que, tendo a idadeque tinha, possuía riquezas de sobra para passar a vida e queria passá-la em sua
terra, pôr aí sua riqueza para obter rendimentos, passar nela os anos de suavelhice em tranqüilidade e sossêgo, dando a Deus o que podia, pois já dera ao
mundo mais do que devia. Por outro lado, considerava que sua terra era muitopequena e que havia muita gente pobre, de modo que, estabelecendo-se aí,tornar-se-ia alvo de tôdas as importunações que os pobres costumam infligir a
um vizinho rico, principalmente quando não há outro na terra que lhes possaacudir em suas misérias. Desejava ter a quem, por sua morte, deixar os grandes
bens que possuía, e considerava as fôrças que lhe restavam, parecendo-lhe quepoderia ainda arcar com o pêso do matrimônio, mas, vindo-lhe êstepensamento, sobressaltava-o tão grande mêdo que tais planos logo se
desvaneciam como névoa dispersada pelo vento; era, por temperamento, a
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criatura mais ciumenta do mundo e, mesmo antes do casamento e só com aidéia de vir a casar-se, o ciúme espicaçava-o de tal modo, que, aos poucos,
decidiu não se casar.
Tendo assim resolvido, mas não sabendo ainda o que havia de fazer desua vida, quis o destino que, passando um dia por uma rua, levantasse os olhos
e visse, à janela, uma jovem que parecia ter uns treze ou catorze anos e dotadade tal formosura e fisionomia tão agradável, que, sem poder defender-se, o bomvelho Carrizales viu a fraqueza de seus muitos anos vencida pelos poucos de
Leonora, que assim se chamava a formosa jovem. E logo, sem conseguirdominar-se, começou a fazer grande quantidade de discursos; falando consigo
mesmo, dizia:
“Esta môça é muito bonita e, pelo aspecto da casa, não deve ser rica; ela émuito jovem; seus poucos anos são garantia contra minhas suspeitas. Casar-me-
ei com ela; encerrá-la-ei e saberei modelá-la a meu gôsto; assim, conhecerá domundo apenas o que eu lhe mostrar. Não sou tão velho a ponto de perder
esperanças de ser pai e ter herdeiros para os meus bens. Que tenha dote ou não,é indiferente, pois quis o céu dar-me o suficiente para uma vida sempreocupações, e os ricos não devem buscar no matrimônio um negócio, mas sim
o prazer, porque o prazer prolonga a vida e os desgostos entre casados só
servem para abreviá-la. A sorte está lançada; esta é a sorte que o céu mereservou”.
E assim, terminado êste solilóquio, repetido uma centena de vêzes, no fimde alguns dias foi falar com os pais de Leonora e soube, então, que êles, embora
pobres, eram de nobre origem; comunicando-lhes Carrizales as suas intenções,falando-lhes de sua posição e riqueza, pediu-lhes a mão de sua filha. Quiseramalgum tempo a fim de se informarem sôbre o que dizia, enquanto êle,
Carrizales, poderia fazer indagações sôbre sua nobreza. Despediram-se; amboscolheram informações e, como fôssem elas satisfatórias, Leonora tornou-se,
enfim, espôsa de Carrizales, que lhe deu como primeiro dote 20.000 ducados,tão abrasado estava o coração do velho ciumento. Mas, apenas pronunciou êle osim de espôso, foi assaltado por um tropel de endemoninhados ciúmes e, sem
motivo algum, começou a tremer e a ter cuidados que jamais tivera. A primeiramanifestação de seu ciúme foi não permitir que alfaiate algum tomasse medidas
à sua mulher para fazer os muitos vestidos que desejava oferecer-lhe, e, assim,andou procurando outra mulher que tivesse mais ou menos corpo de Leonora ea quem tirassem as medidas; encontrou uma rapariga pobre que serviu para
êste fim e, quando Leonora provvou um vestido e achou que lhe ficava bem,
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serviu êste de medida para todos os outros, que foram tantos e tão lindos que ospais da desposada consideraram-se mais que felizes por terem encontrado tão
bom genro, para sua alegria e para alegria dá filha. A menina estava
assombrada, vendo tantas galas, pois as que ela até então usara não passavamde uma saia de fazenda grosseira e corpo de tafetá.
A segunda manifestação do ciúme de Filipe foi não querer juntar-se com aespôsa antes de lhe dar casa separada, o que arranjou do seguinte modo:comprou, por 12.000 ducados, uma casa em um dos mais importantes bairros
da cidade, que tinha água de nascente e jardim com muitas laranjeiras; fechoutôdas as janelas que davam para a rua, deixando-lhes apenas vista para o céu, e
fêz o mesmo com tôdas as outras da casa. Na sala d entrada, que, em Sevilha,
chamam vestíbulo, fêz estrebaria para uma mula e, por cima, um palheiro e umcubículo onde devia dormir o tratador, que era um velho prêto eunuco;
levantou de tal maneira as paredes dos terraços que os que entravam na casatinham de olhar para o céu em linha reta, sem poder ver outra coisa; mandou
colocar uma roda, como as da portaria dos conventos, entre o vestíbulo e opátio. Comprou um rico mobiliário para enfeitar a casa, de modo que esta, pelastapeçarias, pelos estrados e pelos ricos dosséis, dava mostras de pertencer a um
grande senhor; comprou também quatro escravas brancas e marcou-as no rosto,
e mais duas negras, recém-chegadas de seu país. Combinou com umdespenseiro que comprasse e lhe trouxesse à casa o que comer, mas com a
condição de não dormir em sua casa e nunca ir além da roda, pela qual passariao que trouxesse. Feito isto, arrendou parte de seus bens, depositou outra parte
no banco e ficou com algum dinheiro para o que fôssi preciso. Mandou tambémfazer uma chave mestra que abria tôdas as portas da casa e pôs dentro destastudo o que pôde comprar por atacado e nas estações próprias, a fim de possuir
provisões para o ano todo; tendo tudo preparado desta maneira, foi à casa dossogros pedir sua mulher, que êles entregaram com bastante lágrimas, pois
pareceu-lhes que a levavam para a sepultura.A terna Leonora não sabia ainda o que o destino lhe reservara e, chorando
com os pais, pediu-lhes a bênção, despediu-se dêles e, rodeada de suas escravas
e criadas, dando a mão ao marido, foi para sua casa, onde Carrizales fêz a tôdasum sermão encarregando-as de guardarem Leonora e de não deixarem
ninguém entrar da segunda porta para dentro, nem que fôsse o eunuco negro.A quem êle mais especialmente entregou a guarda e o bem-estar de Leonora foia uma dama idosa de muita prudência e gravidade, que tomara como aia de
Leonora e também para que fôsse superintendente de tudo o que se fizesse em
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casa, para governar as escravas e as duas criadas da idade de Leonora que, paraa distraírem e entreterem, tomara também em sua casa.
Prometeu-lhes que as trataria e as presentearia de maneira que não
sentissem o isolamento e que todos os dias santos e domingos, sem faltar um só,iriam à missa, mas tão de manhãzinha que mal pudessem vê-las à luz do dia.
Prometeram-lhe as criadas e escravas fazer tudo o que lhes mandava, semtristeza, com boa vontade e ânimo; a jovem espôsa, encolhendo os ombros ebaixando a cabeça, disse que não tinha outra vontade que não fôsse a de seu
espôso e senhor, a quem sempre obedeceria.Feita esta prevenção, fechou-se em casa o nosso bom estremenho e
começou a gozar como pôde os frutos do matrimônio, que, para Leonora, como
não conhecera outros, não foram saborosos nem insípidos; e assim foi vivendocom sua aia, criadas e escravas. E tôdas, para melhor passarem o tempo,
fizeram-se gulosas e poucos dias decorriam sem que preparassem muitosmanjares, que o mel e o açúcar tornam saborosos. Tinham para isso, com
grande abundância, tudo de que precisavam, e ao seu amo não faltava tambéma vontade de lhes dar, convencido de que, estando elas assim distraídas eocupadas, não teriam tempo de pensar em seu isolamento. Leonora tratava as
criadas de igual para igual, entretinha-se com o que elas se entretinham,
chegando, em sua ingenuidade, a fazer bonecas e outras criancices semelhantes,que mostravam a simplicidade de sua natureza e o verdor dos seus anos; tudo
isso proporcionava grandíssima satisfação ao ciumento marido, parecendo-lheque acertara na escolha da melhor vida que soubera imaginar e que de modo
algum a habilidade ou a malícia humana jamais poderia perturbar seu sossêgo;assim, só se desvelava em trazer presentes à espôsa e em conceder-lhe quepedisse todos os que lhe viessem ao pensamento, pois teria todos os que
quisesse.Nos dias em que ela ia à missa, o que, como já se disse, verificava-se bem
de manhãzinha, vinham seus pais e, na igreja, falavam à filha na presença domarido; êste oferecia-lhes tantos presentes que, embora tivessem pena da filhapela Clausura em que vivia, sentiam atenuado seu pesar com as inúmeras
dádivas que Carrizales, em sua liberalidade, lhes dava.Levantava-se Carrizales bem cedinho e esperava a chegada do
despenseiro, a quem, na noite anterior, por meio de um bilhete que punham naroda, avisavam do que devia trazer no dia seguinte; e, depois de vir odespenseiro, saía de casa, a maioria das vêzes a pé, deixando fechadas as duas
portas; a da rua e a do meio: entre as duas ficava o negro. Ia então tratar de seus
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negócios, que eram poucos, e logo voltava, fechando-se em casa, onde seentretinha dando presentes à espôsa e agradando às criadas; tôdas lhe queriam
bem, por ser de natureza franca e agradável e, sobretudo, por mostrar-se tão
liberal. Desta maneira passaram um ano de noviciado e professaram naquelavida, determinando-se a levá-la assim até o fim de seus dias; e assim, seria, sem
dúvida, se o astuto perturbador do gênero humano não o estorvasse, comoagora o vereis.
Diga-me aquêle que se tenha em conta de mais sagaz e recatado que mais
preocupações haveria de tomar para a sua segurança o velho Filipe, pois nemsequer consentia que em sua casa houvesse animal algum de sexo masculino.
Nunca um gato perseguiu ali os ratos, nem naquela casa ouviu-se ladrar um
cão: todos eram do sexo feminino. De dia pensava e de noite não dormia; era êlea ronda e sentinela de seu lar e o Argos daquilo que tanto estimava; jamais
entrou um homem além da porta do pátio. Com seus amigos negociava na rua.As figuras das tapeçarias e quadros que ornamentavam as salas eram tôdas
fêmeas, flôres e florestas. A casa inteira reacendia honestidade, recolhimento erecato; até as histórias contadas pelas criadas junto da lareira durante os longosserões de inverno, por estar êle presente, não tinham qualquer sombra de
lascívia. As cãs, que prateavam a cabeça do velho, pareciam a Leonora de ouro
puro, porque o primeiro amor das donzelas imprime-se em sua alma como osêlo imprime-se na cêra. Sua vigilância excessiva parecia-lhe prudente recato;
pensava e acreditava que o que lhe sucedia, sucedia a tôdas as recém-casadas.Não se atreviam os seus pensamentos a transpor as paredes da casa, nem sua
vontade desejava outra coisa que não fôsse a vontade do marido; só nos dias emque ia à missa via as ruas, e isto era tão cedo, que apenas ao voltar haviaclaridade suficiente para enxergá-las. Nunca se viu convento mais fechado, nem
freiras mais guardadas, nem maçãs de ouro tão defendidas; mas com tudo isto,não pôde Carrizales prevenir nem evitar a desgraça de cair no que temia ou,
pelo menos, de pensar que nela caíra.Há em Sevilha certa gente ociosa e mandriona, a quem se costuma chamar
gente de bairro; são os filhos dos privilegiados e dos mais ricos, gente vadia,
janota e amaneirada; é gente da qual, de seu trajar e maneira de viver, de suacondição, das leis que observam entre si, haveria muito o que dizer, mas, por
muitos motivos, nos calaremos. Um dêstes janotas, que, entre êles, chamam-seperalvilhos, môço solteiro - pois aos recém-casados dão o nome de espadachins-, olhou por acaso a morada do recatado Carrizales e, vendo-a sempre fechada,
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teve desejos de saber quem vivia lá dentro; empenhou-se com tanto afinco ecuriosidade em descobri-lo, que veio a saber tudo o que queria.
Soube do gênio do velho, da formosura de sua espôsa e de que maneira a
guardava; tudo isto lhe despertou o desejo de tentar, por fôrça ou habilidade, aconquista da fortaleza tão bem guardada; falou do caso a dois peralvilhos e a
um espadachim, seus amigos, que logo foram de opinião que se pusessem mãosà obra, pois para tais empreendimentos nunca faltam conselheiros e ajudantes.
Decidiram o modo de empreender tão difícil façanha e, como já tinham
entrado muitas vêzes em tais brincadeiras, acabaram por combinar o seguinte:Loaysa, tal era o nome do peralvilho, devia fingir que ia passar alguns dias fora
da cidade e não aparecer mais aos amigos, e assim fêz. Feito isto, vestiu calças
de linho fino e limpo e uma camisa também limpa; por cima, pôs uma roupa tãorôta e remendada, que mendigo algum da cidade parecia mais andrajoso;
cortou um pouco a barba que usava, tapou um ôlho com um pedaço de pano,pôs uma atadura muito apertada numa das pernas e, apoiando-se em duas
muletas, transformou-se em um pobre paralítico, de tal modo que não oigualava o maior estropiado.
Com êsse disfarce ia tôdas as noites à porta da casa de Carrizales, que já
estava fechada, permanecendo o negro, que se chamava Luís, encerrado entre
as duas portas. Colocado ali, Loaysa pegava de uma guitarra um tanto sebentae sem algumas cordas e, como fôsse um pouco músico, começava a tocar
algumas modinhas alegres, mudando a voz para não ser reconhecido.Entoava, sem perda de tempo, cantigas de mouros e mouras como doido,
com tanta graça, que as pessoas que passavam pela rua ficavam a escutá-lo e,enquanto cantava, estava sempre rodeado de rapazes; o negro Luís, aplicando oouvido às portas, permanecia prêso à música do peralvilho e daria um braço
para poder abrir a porta e escutá-lo mais à vontade: tal é a inclinação que osnegros têm para a música. E quando Loaysa queria que seus ouvintes o
deixassem, calava-se, guardava a guitarra e, pegando as muletas, ia-se embora.Quatro ou cinco vêzes êle havia tocado para o negro - que só para êle o
fazia -, pois achava que o desmoronamento daquele edifício deveria começar
por ali; não lhe saiu errado tal pensamento, porque, chegando, como decostume, uma noite à porta, começou a afinar a guitarra e percebeu que o negro
estava já atento; aproximando-se aos gonzos da porta, disse-lhe:- Seria possível, Luís, dar-me um pouco de água, pois estou morto de sêde
e não posso cantar?
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- Não - disse o negro -, porque não tenho a chave desta porta e não háabertura por onde possa passar a água.
- E quem tem a chave? - perguntou Loaysa.
- Meu amo - respondeu o negro -, que é o homem mais ciumento domundo. Se êle soubesse que estou agora falando aqui com alguém, não sei o que
seria de minha vida. Mas, quem sois vós que me pedis água?- Eu - respondeu Loaysa - sou um pobre aleijado de uma perna, que ganho
a vida pedindo esmolas pelo amor de Deus; ensino também a tocar guitarra a
alguns “morenos” e outras pessoas pobres e já tenho três negros, escravos detrês presidentes da Câmara Municipal, a quem ensinei de tal modo que podem
cantar e tocar em qualquer baile ou em qualquer taverna e por isso me pagaram
muitíssimo bem.- Muito melhor vos pagaria eu - disse Luís - se pudesse tomar umas lições,
mas não é possível por causa de meu amo, que saindo pela manhã, fecha aporta da rua e quando volta faz o mesmo, deixando-me prêso entre as duas
portas.- Por Deus, Luís - replicou Loaysa, que já sabia o nome do negro -, se
descobrísseis a maneira de eu poder entrar algumas noites para vos dar lições,
em menos de quinze dias eu vos tornaria tão hábil tocador de guitarra, que
poderíeis tocá-la sem vergonha alguma, em qualquer esquina; porque deveissaber que tenho muito jeito para ensinar e, além disso, já ouvi dizer que sois
dotado de muita habilidade; e eu, a julgar pelo vosso timbre de voz, creio quedeveis cantar muito bem.
- Não canto mal - respondeu o negro -, mas de que me serve se não seicantiga alguma, a não ser aquela da estrêla Vênus, ou esta:
Por um verde prado, e a que está em moda e diz assim:
Aos ferros de uma grade a mão trêmula agarrada?- Tudo isso não vale um tostão, comparado com o que eu vos poderia
ensinar - disse Loaysa -, porque sei tôdas as cantigas do mouro Abindarraz e asde sua dama Jarifa e tôdas as que contam a história do grande sofi (Sofi: Antigo
título dos soberanos da Pérsia.) Tomunibeyo e as da sarabanda do divino; são tão
boas que até fazem pasmar os portugueses; ensino isto de tal maneira e comtanta facilidade, que, ainda que não tivésseis pressa de aprender, mal teríeis
comido três ou quatro pitadas de sal e já vos veríeis músico de mão cheia emqualquer espécie de guitarra.
O negro suspirou e disse:
- Que adianta tudo isso se não sei como posso meter-vos em casa?
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- Isso não é problema - disse Loaysa. - Procurai tirar as chaves ao vossoamo e eu vos darei um pedaço de cêra, onde as imprimireis de forma a ficarem
bem marcadas; pelo muito afeto que vos tomei, conseguirei com que um
serralheiro, meu amigo, faça as chaves e assim poderei entrar de noite e ensinar-vos melhor que o preste (Preste: Sacerdote que celebra a missa cantada.) João das
índias; pois acho grande pena perder-se uma voz como a vossa, faltando-lhe oarrimo da guitarra; deveis saber, irmão Luís, que a melhor voz do mundo perdeseu quilate quando não é acompanhada por instrumento, seja guitarra, cravo,
órgão ou harpa; mas o que mais convém à vossa voz é a guitarra, por ser o maismanejável e menos dispendioso de todos os instrumentos.
- Parece-me tudo muito bem - replicou o negro -, mas não pode ser, pois as
chaves nunca vêm à minha mão nem meu amo as larga das suas; dormem, noitee dia, debaixo de seu travesseiro.
- Fazei então outra coisa, Luís - disse Loaysa -, se é que tendes vontade deser um grande músico, pois se não a tendes não vejo por que hei de me cansar
aconselhando-vos.- Se tenho vontade? - replicou Luís. - E tanta, que a tudo me sujeitarei, seja
o que fôr, para chegar a ser músico.
- Já que é assim - disse o peralvilho -, eu vos darei, por debaixo da porta,
tirando vós alguma terra da soleira para fazer um vão, eu vos darei umatorquês e um martelo com que podereis, de noite, tirar os pregos da fechadura
com muita facilidade, e tornaremos a pôr a chapa de tal modo que ninguémpoderá perceber que foi despregada; e, estando eu dentro, fechado convosco no
palheiro, ou onde dormis, apressar-me-ei tanto no que tenho de fazer, quevereis mais do que vos disse, para proveito de minha pessoa e aumento devossa sabedoria.
E do que havemos de comer não tenhais cuidado, pois levarei provisõespara nós dois e para mais de oito dias, pois tenho discípulos e amigos que não
me deixarão passar mal.- Quanto à comida - replicou o negro -, nada haverá que recear: com a
ração que me dá meu amo e com os restos que me dão as escravas, sobraria
comida, ainda que Fôssemos mais dois.Que venha êsse martelo e a torquês, que eu farei na soleira, por debaixo da
porta, lugar onde caibam e tornarei a tapar, cobrir com barro e, ainda que dêalgumas marteladas para tirar a chapa, meu amo dorme tão longe desta porta,que será milagre ou grande desgraça nossa se as ouvir.
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- Então, com a graça de Deus - disse Loaysa -, daqui a dois dias, Luís,tereis tudo o que é necessário para pôr em execução o vosso virtuoso propósito;
tomai cuidado para não comer coisas ardidas, porque não dão proveito algum e
só causam dano à voz.- Nada me enrouquece tanto - respondeu o negro - como o vinho, mas não
me privarei dêle nem por tôdas as vozes do mundo.- Não é preciso chegar a tanto - disse Loaysa -, nem Deus permita tal coisa;
bebei, filho, bebei e bom proveito. Que vinho que se bebe com moderação
jamais fêz mal a ninguém.- Bebo com moderação - replicou o negro -, tenho aqui uma caneca que
leva uma medida bem contada; são as escravas que a enchem para mim sem
que meu amo o saiba; e o despenseiro traz-me, às escondidas, uma botija deduas medidas que serve para as faltas da caneca.
- Pois eu vos digo - tornou Loaysa -, isto me parece muito bom; enxuta, agarganta não grunhe nem canta.
- Ide com Deus - disse o negro -, mas não deixeis de vir cantar tôdas asnoites, enquanto não trouxerdes o que ficou combinado, que já me coçam osdedos, tal é o desejo que tenho de vê-los postos na guitarra.
- E não hei de vir? - replicou Loaysa. - E com modinhas novas.
- É isso mesmo que peço - disse Luís. - E agora, canta-me alguma coisapara que eu possa deitar-me satisfeito; quanto ao pagamento, ficai sabendo,
senhor pobre, que vos hei de pagar melhor que um rico.- Deixemos isso para depois - disse Loaysa -, pagar-me-eis segundo as
lições que vos der; escutai por enquanto esta modinha; quando eu estiver aídentro, será muito melhor ainda.
- Em boa hora havereis de prová-lo - respondeu o negro.
Terminado êste longo colóquio, Loaysa cantou uma cantiga muitoengraçada, que deixou o negro contente e satisfeito, não vendo a hora de abrir a
porta ao músico.Com mais ligeireza que as muletas poderiam deixar prever, Loaysa, mal
afastou-se da porta, foi encontrar-se com os amigos, dando-lhes conta do bom
andamento da emprêsa, que lhes prometia fim ainda melhor. Encontrou-os econtou-lhes o que combinara com o negro; no dia seguinte arranjaram
ferramentas para quebrar qualquer prego, como se fôsse de pau.Não se esqueceu o peralvilho de voltar a tocar para o negro e êste também
não se esqueceu de cavar na soleira da porta o buraco por onde coubesse o que
seu mestre haveria de lhe trazer, disfarçando-o de maneira que só quem para ali
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olhasse com malícia e suspeita poderia descobri-lo. Na segunda noite, Loaysapassou-lhe a ferramenta e Luís deu mostras de sua fôrça, pois, quase sem
esfôrço, viu os pregos quebrados e a chapa da fechadura nas mãos; abriu a
porta, recolheu o seu orfeu e mestre; quando o viu com as duas muletas e tãoandrajoso, com a perna tão embrulhada em ataduras, ficou admirado. Loaysa
não estava com o pano no ôlho por não ser necessário e, nem bem entrou,abraçou o seu bom discípulo, beijou-o na face e logo lhe pôs nas mãos um odrede vinho, uma caixa de conservas e outras coisas boas, que levava em uns
alforjes bem providos. Largando as muletas, como se não sofresse de malalgum, começou a dar cabriolas; o negro admirou-se ainda mais e Loaysa lhe
disse:
- Sabereis, irmão Luís, que aminha entrevação não provém deenfermidade, mas do meu engenho para ganhar o pão de cada dia pedindo
esmola pelo amor de Deus e, servindo-me dela e da minha música, para levar amelhor vida do mundo, onde todos aquêles que não forem engenhosos e
inventivos morrerão de fome; vereis isto, no decorrer de nossa amizade.- Assim será - disse o prêto. - Mas vamos agora pôr outra vez esta chapa
em seu lugar, de modo que não se dê pela sua mudança.
- Então vamos lá - disse Loaysa.
E, tirando alguns pregos de seus alforjes, assentaram a fechaduraexatamente como dantes; com isto o negro ficou contentíssimo; subindo Loaysa
para o aposento que Luís tinha no palheiro, acomodou-se aí o melhor que pôde.O prêto acendeu então um rôlo de cêra e, sem mais demoras, Loaysa pegou a
guitarra e, tocando-a baixinho e suavemente, arrebatou de tal maneira o pobrediscípulo que o pôs fora de si. Tendo tocado um pouco, foi buscar as provisõese Luís bebeu do odre com tanto gôsto que ficou mais fora de si ainda. Ordenou-
lhe Loaysa, em seguida, que tomasse sua lição e, como o pobre negro tinhaquatro dedos de vinho na cabeça, não acertava um só ponto; apesar disso,
Loaysa convenceu-o de que já sabia pelo menos duas modinhas; e o melhor eraque o negro acreditava e tôda noite não fêz outra coisa senão tocar a guitarradesafinada e à qual faltavam algumas cordas.
Dormiram ambos as poucas horas que lhes restavam da noite, e, por voltadas 6 horas da manhã, Carrizales desceu e abriu a porta do meio e também a da
rua; estêve esperando o despenseiro, que veio dali a pouco, deu a comida pelaroda e foi-se embora. Carrizales chamou então o negro, a fim de que viessepegar a cevada para a mula e sua própria comida; depois, foi-se o velho,
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deixando bem fechadas ambas as portas, sem dar pelo que se fizera na da rua, oque muito alegrou ao mestre e ao discípulo.
Apenas o amo saiu de casa, o negro pegou a guitarra e começou a tocar de
tal maneira que tôdas as criadas o ouviram e, pela roda, perguntaram-lhe:- Que é isto, Luís? Desde quando tens guitarra e quem te deu?
- Quem deu? - respondeu Luís. - O melhor músico que há no mundo e oque há de me ensinar, em menos de seis dias, mais de 6.000 modas.
- E onde está êsse músico? - perguntou a aia.
- Não está muito longe daqui - respondeu o negro. - E, se não fôsse porvergonha e pelo mêdo que tenho de meu senhor, talvez eu vos pudesse mostrá-
lo e, por minha fé, folgaríeis em vê-lo.
- E onde pode êle estar e como poderemos vê-lo - replicou a aia -, se nestacasa jamais entrou outro homem que não fôsse nosso amo?
- Pois bem - disse o negro -, não vos quero dizer mais nada até que vosprove o que sei e o que êle me vai ensinar.
- Por certo - disse a aia -, que, se não é algum demônio, não sei quem possafazer-te músico em tão pouco tempo.
- Vamos - tornou o negro -, que ouvireis e vereis algum dia o que vos digo.
- Isto não pode ser - disse uma das criadas -, porque não temos janelas
para a rua e não nos é possível ver nem ouvir ninguém.- Está certo - disse o negro -, mas para tudo há remédio, a não ser para a
morte; sobretudo, se souberdes ou quiserdes guardar segrêdo.- E não havíamos de nos calar, irmão Luís? - falou uma das escravas. -
Calaremos mais do que se fôssemos mudas, pois juro, amigo, que sou doidapara ouvir uma boa voz; porque, desde que aqui nos emparedaram, não temosouvido nem mesmo o canto dos pássaros.
Loaysa escutava esta conversa com enorme satisfação, parecendo-lhe quetôdas as coisas se encaminhavam para a realização de seus desejos e que a boa
sorte se havia encarregado de guiá-las segundo sua vontade. As criadasdespediram-se, prometendo-lhes o negro que, quando menos pensassem,haveria de chamá-las para ouvir uma linda voz; e, com mêdo de que o amo
voltasse e o encontrasse conversando com elas, deixou-as e recolheu-se ao seuquarto. Queria tomar lição, mas não se atreveu a tocar de dia, temendo que o
amo o ouvisse; êste voltou daí a pouco e, fechando as portas segundo o seucostume, trancou-se em casa. Quando, naquele dia, uma negra veio à rodatrazer a comida de Luís, disse-lhe ele que, à noite, depois que o amo dormisse,
descessem tôdas ali, a fim de ouvirem a voz da qual lhes falara. A verdade é
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que, antes de dizer isso, pedira insistentemente ao mestre que fizesse o favor decantar e tocar, naquela noite, ao pé da roda, a fim de que ele pudesse cumprir a
promessa que fizera às criadas de fazê-las ouvir uma belíssima voz,
assegurando-lhe que seria muito presenteado por tôdas elas.Loaysa fez-se um pouco de rogado para fazer o que tanto desejava; mas,
por fim, disse que faria o que seu bom discípulo estava a lhe pedir, só para lhedar prazer e sem ter qualquer outro interêsse. O negro abraçou-o e deu-lhe umbeijo na bochecha, em sinal da alegria que lhe havia causado o favor prometido,
e, naquele dia, Loaysa comeu tão bem como se estivesse em sua própria casa, etalvez melhor.
Chegou a noite e na metade dela, ou talvez pouco antes, ouviu-se
cochichar perto do tôrno; Luís entendeu logo que eram as mulheres que tinhamchegado e, chamando seu mestre, desceram ambos do palheiro com a guitarra
encordoada de nôvo e muito bem afinada. Luís perguntou então quem equantas eram as que escutavam. Responderam-lhe que eram tôdas, menos a
senhora, que dormia ao lado do marido, o que contrariou Loaysa; mas, apesardisso, quis dar início à sua empresa e contentar o discípulo; tocandosuavemente a guitarra, tirou tais sons que deixou o negro admirado e
arrebatado o grupo de mulheres que o escutava. Mas que direi eu do que elas
sentiram quando o ouviram tocar o Pésame de Ello e acabar com o endiabradosom de uma sarabanda, completamente nova, naquela época, na Espanha? Não
ficou uma velha sem bailar, nem houve môça que não se desconjurasse, tudoem meio de um estranho silêncio e sempre com espião e sentinelas para
espreitar se o velho acordava. Loaysa também cantou umas coplas da Seguida,levando ao máximo o prazer do auditório, que pediu encarecidamente ao negropara dizer-lhe o nome de tão milagroso músico. Disse-lhe o negro que era um
pobre mendigo, o mais desembaraçado e gentil homem que havia em tôda apobreza de Sevilha. Pediram-lhe então que descobrisse maneira de elas
poderem vê-lo e que não o deixassem partir, pelo menos durante quinze dias,pois o presenteariam muito e lhe dariam tudo o que precisasse. Perguntaram-lhe como conseguira metê-lo em casa. Luís nada lhes respondeu; quanto ao
resto, disse-lhes que, para poder vê-lo, deveriam fazer um pequeno buraco naroda, que depois o tapariam com cêra, e, a respeito de segurá-lo em casa,
prometeu que tudo faria.Loaysa falou-lhes também, oferecendo-lhes seus préstimos com tão lindas
palavras, que logo perceberam não virem elas do talento de um simples
mendigo. Pediram-lhe que voltasse na noite seguinte, porque tratariam de
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convencer sua senhora a vir escutá-lo, apesar do sono do amo, leve não pelosseus muitos anos e sim pela fôrça do ciúme. Loaysa respondeu que, se elas
gostassem de ouvi-lo sem aquêle sobressalto, lhes daria uns pós para deitarem
no vinho do velho e que o fariam dormir um sono pesado e mais longo que decostume.
- Valha-me Deus! - exclamou uma das donzelas. - Se isso fôsse verdade,que grande ventura nos teria entrado pela porta adentro, sem darmos por isso esem o merecermos! Não seriam êsses pós de sono para êle, e sim de vida para
tôdas nós e para minha pobre senhora Leonora, sua mulher, pois não a larganem ao sol nem à sombra, nem a perde de vista um só momento. Ai, meu rico
senhor! Traga êsses pós e Deus lhe dê em troca todo o bem que deseja! Vá e não
demore; traga-os, meu senhor, que eu me ofereço para misturá-los no vinho eservi-lo; e tomara Deus que o velho dormisse três dias e três noites, que outros
tantos teríamos nós de glória!- Pois eu os trarei - disse Loaysa. - E são de tal espécie que não fazem mal a
quem os toma e seu único efeito é provocar um sono pesadíssimo.Pediram-lhe tôdas que trouxesse os pós quanto antes e, combinando fazer
para a noite seguinte um buraco na roda com uma verruma e trazer sua senhora
para que o visse e ouvisse, despediram-se; o negro, embora fôsse quase de
madrugada, quis tomar lição, que Loaysa lhe deu de boa vontade, e deu-lhe aentender que não havia encontrado melhor ouvido que o seu entre todos os
discípulos que tinha; e não sabia o pobre negro, nem jamais o soube, entoar umsó compasso de música!
Os amigos de Loaysa tinham o cuidado de vir à noite escutar por entre asportas da rua, a ver se o amigo lhes dizia algo ou precisava de alguma coisa;naquela noite, fazendo um sinal que tinham combinado, percebeu Loaysa que
estavam à porta e pelo buraco da fechadura deu-lhes conta do bom andamentodo negócio, pedindo-lhes encarecidamente que buscassem alguma droga para
provocar sono, a fim de dá-la a Carrizales, pois ouvira dizer que existia certo póque produzia tal efeito. Disseram-lhe que tinham um médico que poderia dar-lhes o melhor remédio que conhecesse, se é que tal remédio existia; animando-o
a prosseguir na emprêsa e prometendo-lhe voltar na noite seguinte, em breve sedespediram.
Chegou a noite e o bando das pombas acudiu ao chamado da guitarra.Com elas veio a ingênua Leonora, temerosa e receando que o marido acordasse;subjugada pelo temor, não queria vir, mas as criadas, sobretudo a aia, disseram-
lhe da suavidade da música e do grande talento do cantor mendigo, que,
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embora não o tivessem visto, exaltavam mais do que a Absalão e Orfeu, e apobre senhora, convencida e persuadida pelo que elas diziam, viu-se arrastada
a fazer o que não tinha nem nunca tivera vontade. O primeiro cuidado das
mulheres foi abrir um furo na roda com a verruma, por onde pudessem ver omúsico, que não se encontrava mais em trajes de mendigo e sim com amplos
calções de fina sêda avermelhada, à marinheira, um gibão do mesmo tom comenfeites de ouro em trançado, gorro de cetim da mesma côr e gola engomadacom grandes pontas e rendas, que tudo isso trouxera nos alforjes, imaginando
que se havia de ver em ocasião que lhe conviesse mudar de roupa.Era jovem de gentil aspecto e bem parecido e, como havia tanto tempo que
tôdas aquelas mulheres estavam acostumadas a ver diante de si o velho amo e
senhor, ao verem Loaysa, pareceu-lhes ter diante de si um anjo. Espreitava umapelo buraco feito na roda, e logo outra; e, para que o pudessem ver melhor, o
negro levantava e abaixava em volta dêle o rôlo de cêra aceso.E, depois que tôdas o viram bem, até as escravas negras, Loaysa pegou a
guitarra, tocou e cantou naquela noite tão bem que acabou deixando-assuspensas e atônitas, tanto as velhas como as môças, e tôdas pediram a Luíspara achar um jeito de o senhor seu mestre entrar na casa, a fim de que
pudessem ouvi-lo e vê-lo de mais perto e não de qualquer maneira como pelo
buraco, nem com o sobressalto em que estavam ao encontrarem-se tão longe dolugar onde o amo dormia e sujeitas a serem apanhadas em flagrante, o que não
poderia acontecer se tivessem o músico escondido dentro de casa.Leonora opôs-se a isto com ardor, dizendo que não se fizesse tal coisa,
porque lhe pesaria na alma, e que assim estava bem, pois dali podia ver e ouvirsossegadamente e sem perigo para sua honra.
- Que honra? - disse a velha. - Isso de honra é lá com o rei! Fique Vossa
Mercê fechada com seu Matusalém, mas deixe-nos folgar como pudermos.Tanto mais que êste senhor parece tão honrado que certamente nada quererá de
nós além do que quisermos.- Eu, minhas senhoras - acudiu Loaysa -, vim aqui trazido apenas pelo
desejo de servir a Vossas Mercês, com tôda minha alma e vida, condoído de
vossa clausura e do tempo que perdeis nesta espécie de vida. Sou, juro pelavida de meu pai, homem tão simples, tão manso, de tão bom gênio e tão
obediente que nada farei senão o que mandardes. E se qualquer de VossasMercês disser: “Mestre, sentai-vos aqui; mestre, passai para ali, chegai-vos cá,ide para acolá”, assim farei, como o cão mais manso e bem ensinado que salta
pelo rei da França.
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- Se fôr assim - disse a inocente Leonora -, que meio haveremos de arranjarpara que o senhor mestre entre em casa?
- Bom - disse Loaysa -, Vossas Mercês procurarão um jeito de tirar em cêra
o molde da chave desta porta do meio e eu me encarregarei de arranjar ascoisas, de modo que, amanhã à noite, tenhamos outra chave que nos possa
servir.- Quem tiver essa chave - disse uma criada -, tem as da casa tôda, porque é
chave-mestra.
- Não vejo nisso nenhum inconveniente - replicou Loaysa - De certo - disseLeonora -, mas êste senhor há de jurar primeiro que, depois de estar aqui
dentro, nada fará senão cantar e tocar quando lhe pedirem, e que há de se
manter fechado quietinho onde o pusermos.- Sim, juro - disse Loaysa.
- Nada vale êsse juramento - respondeu Leonora. - Há de jurar pela vidade seu pai, há de jurar pela cruz e beijá-la de modo que tôdas possamos ver.
- Juro pela vida de meu pai - disse Loaysa -, e por êste sinal-da-cruz quebeijo com minha bôca impura.
E, fazendo uma cruz com os dedos, beijou-a três vêzes.
Feito isso, disse outra das criadas:
- Olhe, senhor, não se esqueça dos pós, que são o mais importante de tudo.Assim terminou a conversa daquela noite, ficando todos muito contentes
com estas combinações. E o destino, que ia encaminhando os negócios deLoaysa cada vez melhor, trouxe àquelas horas, que já eram 2 da madrugada, os
amigos, que fizeram o sinal de costume: um toque de trompa de Paris; Loaysafalou-lhes, prestando-lhes conta do que se passara, e perguntou-lhes se traziamos pós, ou coisa semelhante, como havia pedido, para adormecer Carrizales;
contou-lhes também o caso da chave-mestra.Responderam-lhe que, na noite seguinte, trariam um ungüento de tal
virtude que, untando-se com êle os pulsos e a fronte de qualquer pessoa, logoprovocava um sono tão profundo que não se podia despertar antes de dois dias,a não ser que se lavasse, com vinagre, as partes untadas; que lhes desse o molde
da chave, pois também a mandariam fazer com facilidade. Com isto,despediram-se; Loaysa e seu discípulo dormiram o pouco tempo que lhes
restava da noite, esperando Loaysa ansiosamente pela noite seguinte, desejosode saber se as mulheres cumpririam o que, a respeito da chave, tinham-lheprometido. E, embora o tempo pareça lento e preguiçoso aos que esperam,
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corre, na verdade, junto ao próprio pensamento, e depressa chega ao término,porque não pára nem descansa.
Chegou, pois, a noite e a hora costumeira da reunião na roda, onde
acudiram tôdas as criadas da casa, grandes e pequenas, negras e brancas,porque estavam tôdas desejosas de ver, dentro de seu serralho, o senhor
músico; mas Leonora não apareceu e, perguntando Loaysa por ela,responderam-lhe que estava deitada com sua sentinela, que fechava a porta doquarto a chave e, depois de a ter fechado, colocava debaixo do travesseiro, e que
a senhora lhes havia dito que, adormecido o velho, procuraria tirar-lhe a chave-mestra para fazer-lhe o molde, que já tinha a cêra preparada e que dali a pouco
haviam de ir buscá-la na gateira da porta.
Loaysa ficou admirado com as precauções do velho; mas nem por issodesistiu de seu propósito e, estando as coisas neste pé, ouviu a trompa de Paris.
Correu à porta e, pela abertura da soleira, deram-lhe os amigos um frasquinhodo tal ungüento de que lhe haviam falado; Loaysa pegou-o e disse-lhes para
esperarem um pouco, que lhes daria o molde da chave; voltou para a roda edisse à aia, que era a que se mostrava mais empenhada em fazê-lo entrar emcasa, que levasse aquêle frasco à Senhora Leonora, explicando-lhe a
propriedade do ungüento, e que procurasse untar o marido com tal jeito que êle
não o sentisse, que veria aí maravilhas. A aia assim fêz e, chegando-se à gateira,encontrou Leonora estendida no chão e com o rosto na abertura.
Estendendo-se a aia, da mesma maneira, do lado de fora, chegou a bôca aoouvido de sua senhora e disse-lhe baixinho que trazia o ungüento, explicando-
lhe como deveria servir-se dêle.Ela pegou o frasco e respondeu que não pudera, demaneira alguma, tirar a
chave do marido, porque êle não a guardara debaixo do travesseiro, como de
costume, e sim entre os colchões, quase debaixo de seu corpo; mas dissesseporém ao mestre que, se o ungüento tinha a virtude que êle atribuía, tiraria,
com facilidade, a chave tôdas as vêzes que quisessem e, assim, não serianecessário moldá-la na cêra. Recomendou-lhe que, sem demora, fôsse dar êsterecado e voltasse para ver o efeito que o ungüento produzia, porque pensava
untar, no mesmo instante, o marido.A aia desceu e deu o recado a Loaysa; êle despediu os amigos que
esperavam pela chave. Trêmula, hesitante e quase sem se atrever a respirar,Leonora untou os pulsos do marido e também as narinas; quando as tocou,pareceu-lhe que êle estremecia e ela ficou meio morta de mêdo, pensando que
êle ia surpreendê-la em flagrante. Por fim, acabou lá, do melhor modo que
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pôde, de untar tôdas as partes que lhe tinham dito ser necessário, e foi o mesmoque se o tivesse embalsamado para a sepultura.
Pouco tardou o afamado ungüento em dar claros sinais de sua eficácia,
porque o velho começou logo a soltar roncos tão fortes que podiam ser ouvidosda rua; mas êste profundo ressonar, aos ouvidos da espôsa, era como se fôsse
música mais afinada que a do mestre de seu escravo negro; e, ainda malconvencida do que via, chegou-se a êle, sacudindo-o um pouco, e depois commais fôrça, para ver se o despertava; atreveu-se a tanto que chegou a virá-lo na
cama completamente, sem que o velho despertasse. Assim que verificou isto, foià gateira da porta e, em voz baixa, chamou a aia que ali a estava esperando,
dizendo-lhe:
- Podes felicitar-me, irmã, que Carrizales dorme melhor que um morto.- Pois o que esperais para lhe tirar a chave, senhora? perguntou a aia. -
Lembrai-vos de que o músico espera há mais de uma hora.- Espera, irmã, que já vou buscá-la - respondeu Leonora E, voltando para
junto da cama, meteu a mão por entre os colchões e tirou a chave sem que ovelho percebesse; tomando-a nas mãos, começou a saltar de alegria e, sem maisesperar, abriu a porta e deu a chave à aia, que a recebeu com a maior alegria do
mundo. Leonora ordenou-lhe que abrisse a porta ao músico e o trouxesse para
os corredores, pois ela não ousava sair dali receando pelo que pudesseacontecer; mas que, antes de mais nada, obrigasse o músico a ratificar seu
juramento de fazer apenas o que elas lhe ordenassem e, se êle não o quisesseconfirmar fazendo-o de nôvo, que não lhe abrisse a porta de maneira alguma.
- Assim será - disse a aia -, e por minha fé que não há de entrar se não jurare não tornar a jurar e beijar a cruz seis vêzes.
- Não lhe imponhas a quantia - disse Leonora -, que êle a beije lá quantas
vêzes quiser; exige, porém, que jure pela vida de seus pais e de tudo o que maisestima, porque com isto estaremos seguras e nos fartaremos de ouvi-lo cantar e
tocar, pois no meu entender o faz maravilhosamente. E vai, não te demoresmais, para que não gastemos a noite em conversa.
Arregaçando as saias, a velha, com ligeireza nunca vista, correu para a
roda onde estava reunida tôda a gente da casa e, mostrando a chave a todos, ocontentamento geral foi tanto que a ergueram em triunfo, como se ela fôsse um
catedrático: “Viva! viva!”, ainda mais quando lhes disse que não havianecessidade de tirar o molde da chave porque, enquanto o velho untadodormia, podiam aproveitar bem da casa, tôdas as vêzes que quisessem.
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- Pois então, amiga - disse uma das môças -, abra-se a porta e entre êstesenhor, que há muito tempo espera, e vamos lá ouvir música até dizer chega!
- Mas - replicou a aia - antes de entrar há de fazer juramento como na noite
passada.- Ele é tão bom - disse uma das escravas - que não reparará em juramentos.
A aia abriu então um pouquinho a porta e, conservando-a entreaberta,chamou Loaysa, que tudo havia escutado pelo buraco da roda e que,aproximando-se da porta, quis entrar de repente; mas a aia, pondo-lhe a mão no
peito, disse-lhe:- Saiba Vossa Mercê, meu senhor, que, perante Deus e perante minha
consciência, digo-lhe que tôdas as que se encontram dessa porta para dentro
somos tôdas virgens como as mães que nos pariram, exceto minha senhora; eeu, ainda que pareça ter uns quarenta anos, embora não tenha nem trinta ainda,
pois faltam-lhe dois meses e meio, também o sou, infelizmente; se pareço velhaé porque fadigas, trabalhos e desgostos acrescentam um zero ao número dos
anos e às vêzes dois, conforme lhes apraz.E, sendo assim, como é, não haveria razão para que, em troca de duas, ou
três, ou quatro cantigas, deitássemos a perder tanta virgindade como a que aqui
se encerra; porque até esta preta, que se chama Guiomar, também é virgem. De
modo que, meu prezado senhor, Vossa Mercê tem, antes de entrar em nossoreino, que fazer primeiro o juramento solene de que nada fará além do que lhe
ordenarmos; se lhe parece muito o que lhe pedimos, considere que arriscamosmuito mais por sua causa.
E, se é que Vossa Mercê vem com boas intenções, pouco lhe há de custar o juramento, que nada custam ao bom pagador as promessas.
- Muito bem e mais do que bem falou a Senhora Marialonso - disse uma
das criadas. - Enfim, falou como pessoa previdente e que vê as coisas comodevem ser; se o senhor não quiser jurar é melhor não vir cá para dentro.
A preta Guiomar, que não era muito ladina, disse:- Por mim, jure ou não jure, entre com mil diabos, porque; por mais que
jure, ao entrar, acaba esquecendo tudo.
Loaysa ouviu com grande sossêgo a arenga da Senhora Marialonso e, comgrave pausa e autoridade, respondeu:
- Sem dúvida, senhoras minhas irmãs e companheiras, nunca tive outraintenção, nem terei, senão a de vos dar gôsto e satisfazer-vos em tudo a quantocheguem minhas fôrças; e, sendo assim, o juramento que me pedem não será
nenhum sacrifício quisera, porém, que minha palavra merecesse alguma
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confiança porque, sendo dada por pessoa de minha honestidade, é tão sagradacomo a obrigação de uma penitência de quaresma; É preciso fazer com que
Vossa Mercê saiba que debaixo de ruim capa esconde-se o bom bebedor. Mas,
para que tôdas estejam tranqüilas e certas de minhas boas intenções, tomo aresolução de jurar como católico e homem de bem; e, assim, juro pela
intemerata eficácia, onde mais santa e largamente se encerra, pelas entradas esaídas do santo monte Líbano e por tudo quanto em seu prefácio contém averdadeira história de Carlos Magno com a morte do gigante Ferrabrás, de não
sair nem ir além do juramento feito e das ordens que a mais humilde emesquinha destas senhoras me der, sob pena, se outra coisa fizer ou quiser
fazer, desde agora para então e desde então para agora, de dá-lo por nulo e não
feito, nem válido.Chegara o bom Loaysa a êste ponto do seu juramento, quando uma das
duas criadas, que o estivera escutando com atenção, levantou a voz dizendo:- Isto sim é que é um juramento de enternecer as pedras Faria muito mal
se exigisse que jurasses mais, pois com o que juraste poderias entrar na própriacaverna da Cabra!
E, fazendo outras exclamações, meteu-o dentro de casa e tôdas as outras
juntaram-se ao redor dêle. Uma foi logo dar a notícia à senhora, que estava de
sentinela ao sono do marido, e, quando a mensageira lhe disse que o músicovinha subindo, Leonora alegrou-se e perturbou-se ao mesmo tempo e
perguntou se êle havia jurado. A outra respondeu-lhe que sim e com um juramento que nunca ouvira em sua vida.
- Pois se jurou - disse Leonora - está prêso. Como fui prudente em obrigá-lo a jurar!
Nisto chegou a turma tôda com o músico no meio, álumiados pelo negro e
pela negra Guiomar. Apenas Loaysa viu Leonora, fêz menção de atirar-se-lheaos pés para beijar-lhe as mãos Ela, calada, fêz com que êle se levantasse, por
sinais, e tôdas estavam como se fôssem mudas, sem se atreverem a falar, commêdo de que seu senhor as ouvisse; Loaysa, porém, percebendo êste cuidado,disse-lhes que podiam falar bem alto, pois o ungüento com que estava untado
seu senhor tinha tal virtude que, embora não tirasse a vida, deixava um homemcomo morto.
- Estou certa disso - disse Leonora -, pois, se assim não fôsse, êle já teriaacordado vinte vêzes, porque seus muitos achaques tornam-lhe o sono muitoleve; e, depois que o untei, está roncando como um animal.
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- Pois, sendo assim - disse a aia -, vamos para aquela sala fronteira, ondepoderemos ouvir cantar aqui êste senhor e nos alegrarmos um pouco.
- Vamos - disse Leonora -, mas que Guiomar fique aqui de guarda, para
que nos avise se Carrizales despertar.Guiomar respondeu:
- Eu, preta, fico; brancas, vão. Que Deus perdoe a tôdas.Ficou a negra de guarda; os outros foram para a sala, onde havia um rico
estrado, e, colocando o músico no centro, sentaram-se tôdas. Pegando
Marialonso uma vela, começou a olhar o bom do músico de alto a baixo, e umadizia: “Que lindo topête êle tem, tão lindo e tão ondeado!” E outra: “E que
brancura de dentes! Mau ano será êste para pinhões pilados, que não os haverá
mais brancos nem mais lindos!” Outra: “Ai, que olhos tão grandes e tãorasgados! E, por minha mãe, são verdes, parecem duas esmeraldas!” Esta
louvava a bôca, aquela os pés e tôdas juntas fizeram dêle um minucioso estudoanatômico e uma cabidela. Só Leonora olhava para êle em silêncio e,
examinando-o, achava que tinha melhor aspecto que o marido. Nisto a aia tiroua guitarra das mãos do negro e a colocou nas mãos de Loaysa, pedindo-lhe quecantasse umas coplazinhas, que andavam então muito em moda em Sevilha e
que diziam:
Mãe, querida mãe, Protegei-me..
Loaysa satisfez-lhe o desejo. Levantaram-se tôdas e começaram a
requebrar-se, dançando. A aia sabia as coplas e cantou-as com mais entusiasmodo que com boa voz, e foram estas:
Mãe, querida mãe,
Protegei-me,
Que, se eu não me guardar,
Não me guardará ninguém.
Dizem que está escrito,
E com grande razão,
Ser a privação
A causa do apetite;
Aumenta sem limite
O recalcado amor;
Por isso é melhor
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Que não me fecheis;
Que, se eu não me guardar,
Não me guardará ninguém.
Se a vontadePor si não se guarda,
Não a poderão guardar
O mêdo e a posição;
Romperá, na verdade,
Com a própria morte,
Até encontrar a sorte
Que vós não entendeis;
Que, se eu não me guardar,Não me guardará ninguém.
Quem tem por costume
O ser amorosa,
Como maripôsa
Irá procurar a luz,
Podem guardá-la
Com mil cuidados,
Que tudo istoNão traz resultados;
Que, se eu não me guardar,
Não me guardará ninguém.
É de tal modo
A fôrça amorosa,
Que a môça formosa
Transforma em quimera:
O peito é de cêra,
De fogo o desejo,
As mãos são de lã,
De fêltro os pés;
Que, se eu não me guardar,
Não me guardará ninguém.
Apenas tinham elas acabado de cantar e dançar esta canção, dirigida pelavelha aia, quando chegou Guiomar, a sentinela, agitada, gesticulando com os
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pés e com as mãos, como se tivesse um ataque de epilepsia, e, com voz rouca esumida, disse:
- Senhor acordado, senhora; e, senhora, acordado senhor, e levanta-se e
vem!Quem já viu um bando de pombas comendo no campo, sem recear, o que
mãos alheias semearam, e que ao furioso estrépido de um tiro se alvoroça elevanta, esquecido de seu regalo, confuso e atônito cruza os ares, pode imaginarem que estado ficou o bando das bailadoras, pasmadas e temerosas, ao ouvirem
a inesperada notícia trazida por Guiomar; e, procurando cada uma suadesculpa e tôdas juntas o remédio, uma por um lado, outra por outro, foram
esconder-se por entre os vãos e recantos da casa, deixando o músico, que,
largando a guitarra e o canto, todo atrapalhado, não sabia o que fazer. Leonoratorcia suas formosas mãos; esbofeteava o rosto, embora brandamente, a Senhora
Marialonso; enfim, tudo era confusão, sobressalto e mêdo.Mas a aia, que era a mais astuta e moderada de tôdas, mandou Loaysa
entrar em seu aposento, resolvendo que ela e sua senhora permaneceriam nasala, pois achariam fàcilmente qualquer desculpa a dar ao senhor se êle ali asencontrasse. Escondeu-se logo Loaysa e a aia permaneceu atenta a ver se o amo
aparecia e, não ouvindo rumor algum, recobrou o ânimo e, pouco a pouco, pé
ante pé, foi chegando ao aposento onde dormia seu senhor e ouviu-o ressonarfortemente; assegurando-se de que êle dormia, arregaçou as saias e voltou
correndo a pedir alvíssaras a Leonora do sono de seu amo, alvíssaras queLeonora lhe deu de muito boa vontade.
Não quis, porém, a velha aia perder a ocasião que a sorte lhe oferecia degozar, antes de tôdas, dos encantos que imaginava no músico; e assim, dizendoa Leonora que a esperasse na sala enquanto ela ia chamá-lo, deixou-a e entrou
onde êle estava, confuso e pensativo, esperando para saber o que fazia o velhountado; maldizia a falsidade do ungüento e queixava-se da credulidade dos
amigos e da imprudência que tivera, não fazendo primeiro a experiência emoutra pessoa antes de fazê-la em Carrizales. Nisto chegou a aia e assegurou-lheque o velho dormia mais e melhor. Acalmou-se, então, Loaysa, e permaneceu
atento às inúmeras palavras amorosas que Marialonso lhe disse, apurandodelas sua má intenção, e determinou servir-se dela como isca para pescar sua
senhora. Estando os dois nesta conversa, as demais criadas, que se haviamescondido em diversas partes da casa, uma aqui, outra ali, voltaram para ver seera verdade que o amo havia despertado e, perguntando pelo músico e pela aia,
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souberam onde êles estavam, e tôdas, com o mesmo silêncio em que haviamentrado, chegaram-se às portas para escutar o que ambos diziam.
Guiomar também se uniu ao grupo, mas faltava o negro, porque, apenas
soube que o amo havia despertado, abraçou-se à guitarra e fugiu para opalheiro; aí, coberto com a manta de sua pobre cama, suava e transpirava de
mêdo; mas, apesar de tudo isso, não deixava de apalpar as cordas da guitarra,tanta era - que o diabo a carregue! - a afeição que tinha pela música. As criadasouviram os galanteios da velha e cada uma lhe disse um elogio; nenhuma lhe
chamou, velha sem acrescentar um epíteto ou adjetivo, de feiticeira e barbuda,de entojada e de outras coisas, que por decôro não se escrevem; porém, o que
mais causaria riso a quem as escutasse seriam as razões da preta Guiomar, que,
por ser portuguêsa e não muito ladina, injuriava a aia da mais singular eengraçada maneira. Enquanto isso, os dois lá dentro chegaram à seguinte
conclusão: Loaysa obedeceria à vontade de Marialonso se ela lhe entregasseprimeiro sua senhora.
Foi muito difícil para a aia aceder ao que o músico pedia;mas, vendo que só assim conseguiria satisfazer o desejo que já se lhe
apoderara da alma, dos ossos e da medula do corpo, prometeu-lhe as coisas
mais impossíveis que se podem imaginar.
Deixou-o e saiu para falar com sua senhora; assim que viu a porta rodeadade tôdas as criadas, disse-lhes que se recolhessem a seus aposentos, pois na
noite seguinte teriam oportunidade de gozar das músicas, com menos ounenhum sobressalto, pois naquela noite o susto havia-lhes tirado a vontade de
se divertirem.Compreenderam muito bem que a velha queria ficar só, mas não puderam
deixar de obedecer-lhe, porque era grande sua autoridade. As criadas saíram e
Marialonso foi para a sala falar com Leonora e persuadi-la a ceder à vontade deLoaysa, e o fêz com tão longa e habilidosa arenga, que parecia ter levado muitos
dias para estudá-la. Elogiou a gentileza, o valor, a graça e os inúmeros encantosdo músico; descreveu-lhe com eloqüência o maior gôsto que lhe dariam osabraços do amante jovem que os do marido velho, tranqüilizando-a sôbre o
segrêdo e a duração de sua felicidade, com outras razões semelhantes a estas,que o demônio lhe pôs na língua, cheias de côres de retórica, tão
demonstrativas e eficazes, que moveram o coração terno e inexperiente daingênua e incauta Leonora, como teriam movido o mais endurecido mármore.Ó velhas aias, nascidas e utilizadas no mundo para a perdição de mil intenções
boas e recatadas! Ó longas e pregueadas toucas, escolhidas para assegurar a
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respeitabilidade das salas e estrados, onde tomam lugar senhoras importantes,e como servis tão ao contrário do que devíeis o vosso quase indispensável
ofício! Enfim, tantas coisas disse a aia, tão bem soube persuadir, que Leonora
rendeu-se, Leonora enganou-se, Leonora perdeu-se, atirando por terra tôdas asprecauções do prudente Carrizales, que dormia o sono da morte de sua honra.
Marialonso levou pela mão e quase à fôrça a sua senhora, com os olhoscheios de lágrimas, e conduziu-a para onde estava Loaysa, e, deitando-lhes abênção com um sorriso falso de demônio, fechou a porta, deixou-os lá dentro e
pôs-se a dormir no estrado, ou, para melhor dizer, a esperar a recompensa deseu trabalho. Mas, como o cansaço das noites passadas a vencesse, adormeceu
realmente no estrado.
Seria muito bom, a estas alturas, perguntar a Carrizales, se nãosoubéssemos que êle dormia, onde estavam seus prudentes cuidados, seus
receios, suas advertências, suas persuasões, os altos muros de sua casa, o nãohaver entrado nela, nem por sombra, alguém que fôsse do sexo masculino; a
roda estreita, as grossas paredes, as janelas sem luz, a notável prisão, o grandedote que dera a Leonora, os contínuos presentes que lhe dava, o bomtratamento que dispensava às criadas e escravas, o não faltar, em nada, tudo
aquilo que imaginava ser-lhes necessário ou que podiam desejar. Contudo, já
ficou dito que de nada serviria perguntar-lhe, porque dormia além donecessário; e, se êle ouvisse e por acaso respondesse, não poderia dar melhor
resposta que encolher os ombros, arquear as sobrancelhas e dizer: “Tudo issoderrubou pela base a astúcia, segundo creio, de um rapaz folgazão e cheio de
vícios, a malícia de uma velha falsa, a inadvertência de uma jovem persuadida eenganada!” Que Deus livre a todos de tais inimigos, contra os quais não háescudo de prudência, nem espada de recato, que nos defenda e nos livre.
Com tudo isto, porém, a virtude de Leonora foi tal que, na hora em queprecisava dela, não lhe faltou, e opôs-se às fôrças vis de seu astuto enganador,
que não foram suficientes para vencê-la; cansou-se êle em vão, ela saiuvencedora e ambos dormiram. Nisto ordenou o céu que, apesar do ungüento,Carrizales despertasse e, como era de costume, passou a mão pela cama; não
encontrando nela sua querida espôsa, saltou do leito apavorado e atônito, commais ligeireza e denôdo que sua avançada idade poderia permitir; quando não
encontrou sua espôsa no aposento e deu com a porta aberta pela falta da chaveentre os colchões, pensou que fôsse perder o juízo; mas, dominando-se umpouco, saiu para o corredor; dali, andando pé ante pé, a fim de não ser
pressentido, chegando à sala onde a velha dormia e vendo-a só, sem Leonora,
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foi ao aposento da aia; abrindo a porta devagarinho, viu o que nunca quisera tervisto, viu o que daria os olhos para não ver: viu Leonora nos braços de Loaysa,
dormindo ambos a sono sôlto, como se a virtude do ungüento, produzisse nêles
seu efeito e não no ciumento velho.O coração de Carrizales deixou de bater à vista de tão amarga cena; a voz
morreu-lhe na garganta, os braços caíram sem fôrça e êle permaneceu comoestátua de mármore frio; e, embora a cólera produzisse seu natural efeito,avivando-lhe as fôrças quase perdidas, foi tão grande sua dor que não o deixou
tomar alento. E, com tudo isso, poria em prática a vingança que aquela grandeafronta exigia, se naquele instante estivesse com armas; determinou então
voltar ao aposento para buscar um punhal e voltar para lavar as manchas de
sua honra com o sangue de seus dois inimigos e também com todo o sangue detôda a gente de sua casa. Com êste propósito honrado e necessário voltou, com
o mesmo silêncio e cautela, para seu aposento, onde a dor e a angústiaapertaram-lhe tanto o coração que, sem ânimo para coisa alguma, deixou-se cair
sem sentidos por sôbre o leito.Amanheceu e o dia encontrou os dois amantes enlaçados na rêde de seus
braços. Marialonso despertou e quis reclamar o que, a seu ver, lhe pertencia;
vendo, porém, que era tarde, quis deixar para a noite seguinte. Inquietou-se
Leonora ao ver o sol tão alto e amaldiçoou seu descuido e o da maldita aia; e asduas, com passos agitados, foram para onde estava Carrizales, rogando entre
dentes ao céu para o encontrarem ainda ressonando; quando o viram em cimada cama, quieto, acreditaram que o ungüento ainda estivesse fazendo efeito,
pois dormia; abraçaram-se as duas com grande alegria. Leonora aproximou-sedo marido e, pegando-lhe em um braço, virou-o de um lado para outro, paraver se despertava sem ser preciso esfregar-lhe as fontes com vinagre, como lhe
haviam dito ser necessário para êle voltar a si.Mas, com o movimento, Carrizales voltou do desmaio e, dando um
profundo suspiro, disse, com uma voz lamentosa e sumida:- Infeliz de mim! A que triste fim trouxe-me o destino.Leonora não entendeu muito bem o que dizia o espôso, mas, vendo-o
acordado e falando, admirada de ver que a virtude do ungüento não duravatanto como lhe haviam dito, chegou-se a êle, e, encostando o rosto ao seu,
abraçando-o estreitamente, perguntou-lhe:- Que tendes, meu senhor? Parece-me que vos estais queixando?!O desditoso velho ouviu a voz de sua doce inimiga e, abrindo os olhos
desmesuradamente, atônito e pasmado, fitou-a e, com grande insistência, sem
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pestanejar, permaneceu olhando-a durante um bom tempo, ao fim do qual lhedisse:
- Fazei o favor, minha senhora, de mandar chamar imediatamente vossos
pais, de minha parte, porque sinto não sei o que em meu coração que me causauma enorme fadiga, e receio que brevemente a vida me deixe; queria vê-los
antes de morrer.Leonora acreditou, sem duvidar, no que o marido lhe dizia, não
imaginando o que êle havia visto, pensando que a violência do ungüento o
tivesse pôsto naquele estado; respondeu-lhe que faria o que êle ordenava;enviou o prêto, no mesmo instante, para chamar os pais e, abraçando-se ao
espôso, fazia-lhe as maiores carícias que nunca lhe fizera, perguntando-lhe o
que sentia com palavras tão amorosas e ternas, como se êle fôsse o ente quemais amava no mundo. Êle a olhava com espanto, como já se disse, sentindo
cada palavra ou carícia que ela lhe fazia como facadas que lhe atravessavam aalma.
A aia havia já contado ao pessoal da casa e a Loaysa que seu amo estavaenfêrmo, acrescentando ainda que devia ser coisa repentina, pois esquecera-sede mandar fechar as portas da rua, quando o negro saiu para chamar os pais de
sua senhora; admiraram-se todos também dessa embaixada, porque, desde o
casamento da filha, nenhum dêles havia entrado naquela casa.Enfim, estavam todos calados e inquietos, sem acertarem com a
verdadeira causa da indisposição do amo, que, de quando em quando,suspirava tão profunda e dolorosamente, que, a cada suspiro, parecia arrancar-
se-lhe a alma. Leonora chorava ao vê-lo assim e êle riá-se com um riso depessoa que estava fora de si, considerando a falsidade de suas lágrimas. Nistochegaram os pais de Leonora e, ao encontrarem a porta da casa e a do pátio
abertas, a casa sepultada em silêncio e como abandonada, ficaram admirados eem grande sobressalto. Foram ao aposento do genro e encontraram-no, como já
se disse, com os olhos sempre cravados na espôsa, que retinha pelas mãos,derramando ambos copiosas lágrimas; ela, pensando que não tornaria a ver seuespôso, continuava a derramá-las; êle, por ver com que fingimento ela chorava.
Logo que os pais de Leonora entraram, Carrizales falou-lhes e disse-lhes:- Sentem-se aqui Vossas Mercês e todos os outros retirem-se dêste
aposento; que fique apenas a Senhora Marialonso.Obedeceram-lhe e, ficando os cinco a sós no quarto, sem esperar que
alguém falasse, com voz sossegada, enxugando os olhos, Carrizales assim falou:
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- Estou bem certo, meus pais e senhores, que não será necessário trazer-vos testemunhas para que me acrediteis em uma verdade que vos quero dizer.
Deveis estar bem lembrados, pois não é possível que vos tenhais esquecido,
com quanto amor, com que afeto, faz hoje um ano, um mês e cinco dias e novehoras que me destes vossa querida filha para minha legítima espôsa.
Sabeis também com que liberalidade lhe dei um dote, que chegaria paramais de três noivas se casarem, com fama de ricas.
Deveis lembrar-vos também do cuidado com que a vesti e enfeitei com
tudo aquilo que ela desejou e que eu considerei que lhe convinha. Da mesmaforma, senhores, tendes visto como, levado pela minha condição de receoso do
mal de que, sem dúvida, hei de morrer, e cheio de experiência que me deram os
anos, dos estranhos e vários acontecimentos do mundo, quis guardar esta jóia,que escolhi e que me destes, com a maior prudência que me foi possível:
levantei os muros desta casa, tirei a vista das janelas da rua, reforcei asfechaduras das portas, pus-lhe uma roda, como as que existem nas portarias
dos conventos; desterrei dela perpetuamente tudo o que fôsse, sombra ounome, do sexo masculino; dei-lhe criadas e escravas que a servissem; nada lhesneguei do que me pediram; tornei minha mulher minha igual; comuniquei-lhe
os meus mais secretos pensamentos; entreguei-lhe todos os meus bens. Tudo
isso, e bem o esperava, para que vivesse eu certo de desfrutar, sem sobressalto,o que tanto me custou, e ela procurasse não me dar oportunidade a que
nenhuma espécie de ciúme entrasse em meu pensamento; mas como não sepode, com esfôrço humano, evitar o castigo que a vontade divina quer dar
àqueles que nela não depositam inteiramente seus desejos e esperanças, não éde se admirar que eu me veja frustrado em minhas esperanças e que eu própriotenha sido o fabricante do veneno que me vai tirando a vida. Contudo, porque
vejo como todos estais suspensos, presos às palavras de minha bôca, queroencerrar os longos preâmbulos de minha conversa dizendo-vos numa palavra o
que não é possível dizer-se com milhares delas: Declaro, pois, senhores, quetudo o que tenho dito e feito fêz com que achasse eu, nesta madrugada, a essa (eapontou a espôsa), vinda ao mundo. para meu desassossêgo e fim de minha
vida, nos braços de um galhardo mancebo, que se encontra agora encerrado nosaposentos desta pestilenta aia.
Mal acabou de pronunciar estas últimas palavras e Leonora, levando asmãos ao coração, caiu desmaiada sôbre os joelhos do marido. Marialonsoperdeu a côr e na garganta dos pais de Leonora formou-se um nó, que não os
deixava dizer uma só palavra. Mas, prosseguindo, Carrizales disse:
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- A vingança que penso tomar desta afronta não é nem há de ser das queordinàriamente se vêem em tais circunstâncias, pois quero que, assim como fui
extremado no que fiz, também o seja minha vingança, tomando-a de mim
próprio, como o maior culpado dêste delito, pois deveria eu considerar que malpodiam contentar-se os quinze anos desta jovem com os quase oitenta que
tenho. E eu fui semelhante ao bicho-da-sêda, que faz a casa onde possa morrer;não te culpo, pobre menina mal aconselhada! - e dizendo isto inclinou-se ebeijou o rosto de Leonora, que ainda estava sem sentidos. - Não te culpo, repito,
porque persuasões de velhas espertalhonas e galanteios de moços enamoradosfàcilmente vencem e triunfam o pouco engenho que os tenros anos encerram.
Mas, para que todo mundo veja a fôrça dos quilates do amor com que te quis,
neste último transe de minha vida quero mostrá-lo de modo que fique nomundo como exemplo, senão de bondade, pelo menos de ternura jamais ouvida
nem vista; e, assim, quero que se traga logo um escrivão para fazer de nôvomeu testamento, no qual mandarei dobrar o dote de Leonora e lhe pedirei que,
depois de acabados os meus dias, que serão muito breves, disponha-se a fazer oque quiser, casando-se com aquêle môço a quem nunca ofenderam as cãs dêsteinfeliz velho. E assim ela verá que, se enquanto vivo jamais fiz coisa alguma que
não fôsse de seu gôsto, à hora da morte faço o mesmo e quero que seja feliz com
quem ela deve querer tanto.O resto de meus bens deixarei para as obras de caridade e a Vossas
Mercês, meus senhores, deixarei o suficiente para que possais viver de maneirahonrada até o fim de vossos dias.
Quero que o escrivão venha logo, pois a paixão que tenho em mimatormenta-me de tal maneira que, de pouco em pouco, me vai encurtando ospassos da vida.
Mal disse isto, sobreveio-lhe um terrível desmaio e deixou-se cair tão pertode Leonora que os dois rostos se juntaram. Estranho e triste espetáculo para os
pais que olhavam a querida filha e o amado genro! Não quis a maldosa aiaesperar pelas repreensões que os pais de Leonora lhe poderiam fazer e, assim,saiu do aposento, foi contar a Loaysa tudo o que se passava, aconselhando-o a
ir-se daquela casa o mais depressa possível, que ela teria o cuidado de informá-lo, por intermédio do negro, de tudo o que acontecesse, pois já não havia portas
nem chaves que o impedissem. Loaysa admirou-se com estas notícias e,aceitando o conselho, tornou a vestir-se como mendigo, e foi prestar contas aseus amigos do estranho e imprevisto desenlace de seus amôres.
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Enquanto Carrizales e Leonora estavam desmaiados, o pai desta mandou,chamar um escrivão seu amigo, que chegou em tempo de encontrar os dois
esposos já despertos. Carrizales fêz o testamento da maneira que dissera, sem
declarar o êrro de Leonora, pedindo apenas, se êle morresse, que ela se casassecom o jovem que êle lhe indicara em segrêdo. Quando ouviu isto, Leonora
atirou-se aos pés do marido e, com o coração aos saltos dentro do peito, disse-lhe:
- Vivei muitos anos, meu senhor e maior bem que tenho no mundo, pois,
embora não estejais obrigado a acreditar em coisa alguma do que vos direi,sabei que não vos ofendi, senão com o pensamento.
E, começando a desculpar-se e a contar por extenso a verdade do caso, não
pôde mais falar e tornou a perder os sentidos. O desditoso velho abraçou-aassim desmaiada; abraçaram-na os pais; todos choraram tão amargamente que
obrigaram o escrivão a acompanhá-los; o testamento de Carrizales deixara oque comer para tôdas as criadas da casa, dava alforria às escravas e ao negro, à
falsa Marialonso nada mais deixou que o pagamento de seu salário; a dor dovelho foi apertando de tal maneira que, ao fim de sete dias, levaram-no àsepultura.
Leonora ficou viúva, chorosa e rica; e quando Loaysa esperava que ela
cumprisse o que o marido lhe ordenara em seu testamento, viu que umasemana depois ela tornou-se freira e entrou em um dos mais fechados
conventos da cidade. Êle, despeitado e quase corrido, partiu para as índias. Ospais de Leonora ficaram tristíssimos, embora se consolassem com o que o genro
lhes havia deixado em seu testamento. As criadas consolaram-se com o mesmo,as escravas e escravos, com a liberdade; a malvada aia ficou pobre e frustradaem todos os seus maus pensamentos.
E eu fiquei com o desejo de chegar ao fim desta história, exemplo eespelho da desconfiança que devemos ter em chaves, rodas e paredes, quando a
vontade permanece livre, e, do mesmo modo, da desconfiança que se deve ternos verdes e poucos anos, se lhes andam pelos ouvidos as exortações destas aiasde vestes negras e amplas, de toucas brancas e longas. Só não conheço a causa
de Leonora não se ter empenhado, com mais afinco, em desculpar-se e dar aentender a seu marido ciumento quão limpa e sem ofensa saíra de tais
acontecimentos; mas a perturbação prendeu-lhe a língua e a pressa com que seumarido morreu não permitiu que ela se desculpasse.
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A espanhola inglesa
Entre os despojos que os inglêses levaram da cidade de Cádiz, umcavalheiro inglês, Clotaldo, capitão da esquadra, levou para Londres umamenina de uns sete anos mais ou menos, contra a vontade do Conde de Leste,
que, diligentemente, mandou procurar a menina para devolvê-la aos pais,porque êstes a êle foram queixar-se do rapto da filha, dizendo que os inglêses
costumam contentar-se com os bens apreendidos, deixando livres as pessoas, eque, assim sendo, por que haveriam de torná-los tão infelizes, deixando-os,além de pobres, sem a filha, que era a luz de seus olhos e a mais formosa
criatura de tôda a cidade?O conde mandou comunicar a tôda a armada que sofreria pena de morte
quem tivesse a menina em seu poder; mas, pena alguma ou temores foram
suficientes para fazer Clotaldo obedecer-lhe, pois era êle, Clotaldo, quemmantinha Isabela escondida em sua embarcação e que se afeiçoara, embora
cristãmente, à sua incomparável beleza. Os pais, sem a menina, ficaram tristes edesconsolados; Clotaldo, contentíssimo, chegou a Londres e deu a menina,como presente, à sua mulher.
Quis a sorte que tôdas as pessoas da família de Clotaldo fôssem católicas,embora, publicamente, demonstrassem seguir a religião de sua rainha. Clotaldo
tinha um filho chamado Recaredo, de doze anos, a quem ensinou a amar etemer a Deus e a permanecer fiel às verdades da fé católica. Catalina, espôsa deClotaldo, senhora nobre, cristã e prudente, afeiçoou-se tanto a Isabela, que a
criava, presenteava e educava como filha; a menina era de tão boa índole, queaprendia com facilidade tudo quanto lhe ensinavam; com o tempo e com os
presentes, foi esquecendo seus pais verdadeiros, não deixando, entretanto, delembrar-se e suspirar por êles muitas vêzes, e, embora aprendendo a línguainglêsa, não se esquecia da espanhola, porque Clotaldo tinha o cuidado de
trazer secretamente para casa alguns espanhóis para falar com ela; destamaneira, sem esquecer-se de sua língua, como já dissemos, falava a línguainglêsa como se tivesse nascido em Londres; depois de lhe terem sido ensinados
todos os trabalhos que tôda jovem pode e deve saber, ensinaram-na a ler e a
escrever, mas o que aprendeu melhor foi tocar todos os instrumentos que a
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mulher pode tocar, e o fazia com perfeição; além disso, o céu deu-lhe uma voztão boa que, enquanto cantava encantava.
Tôdas estas graças, adquiridas e acrescentadas aos seus dons naturais,
foram, pouco a pouco, inflamando o peito de Recaredo, a quem ela queria eservia como filho de seu senhor. A princípio Recaredo gostava de ver a beleza
sem igual de Isabela e de observar suas infinitas virtudes e atrativos, amando-acomo se ela fôsse uma irmã, sem que seus desejos ultrapassassem limites dahonra e da virtude, mas, conforme Isabela, que tinha doze anos quando
Recaredo começou a amá-la, foi crescendo, aquela simpatia, aquela satisfação eprazer de olhá-la transformou-se em ardentíssimo desejo de possuí-la; não que
aspirasse a isto por outros meios que não o casamento, pois, da incomparável
honestidade de Isabela, como a chamavam, não se podia esperar outra coisa enem êle o haveria de querer, mesmo que pudesse, mas porque seu caráter nobre
e a estima que tinha por Isabela não permitiam que nenhum mau pensamentodeitasse raízes em sua alma; mil vêzes decidiu manifestar suas intenções aos
pais e outras tantas vêzes não aprovou sua determinação, pois sabia que estavadestinado a ser espôso de uma donzela escocesa, muito rica e importante,também cristã como êles, e era claro, pensava êle, que não haviam de querer vê-
lo casado com uma escrava - se é que se pode dar êste nome a Isabela -, já que
haviam combinado de casá-lo com uma fidalga. E assim confuso e pensativo,sem saber que caminho tomar para realizar suas boas intenções, levava uma
vida tão agitada, que se via a ponto de morrer. Entretanto, julgando ser umagrande covardia deixar-se morrer sem procurar um remédio para seu mal,
encorajou-se e dispôs-se a declarar suas intenções a Isabela.Tôdas as pessoas da casa andavam tristes e preocupadas com a doença de
Recaredo, que era estimado por todos, e com profunda dor de seus pais, porque
não tinham êles outro filho porque também o mereciam sua virtude, seu valor esua compreensão; os médicos não conseguiram descobrir a causa da
enfermidade do rapaz e nem êle queria que a descobrissem. Finalmente, vendo-se a sós com Isabela, certo dia em que ela entrou para servi-lo, tendo já decididoenfrentar as dificuldades, disse-lhe, com voz fraca e comovida:
- Isabela, teu valor, tua virtude e formosura deixaram-me assim nesteestado; se não queres que minha vida seja entregue a maiores penas, concorda
em ser minha espôsa, mesmo contra a vontade de meus pais, que temo eu nãoreconheçam como eu reconheço o teu mérito e que são capazes, portanto, de menegar êste bem que tanto desejo; se me prometes ser minha espôsa, eu também
te prometo, como cristão que sou, ser apenas teu e, mesmo que não chegue a
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possuir-te, o que, aliás, não acontecerá até que sejas minha pelas bênçãos demeus pais e da Igreja, só o fato de imaginar que me pertences será suficiente
para devolver-me a saúde e para manter-me alegre e satisfeito até alcançar a
felicidade que tanto almejo.Enquanto Recaredo pronunciava estas palavras, Isabela estêve escutando-
o, de olhos baixos, demonstrando que sua honestidade igualava-se à suaformosura, à sua discrição; depois, vendo que Recaredo terminara, respondeu-lhe:
- Depois que o rigor ou a clemência dos céus, não sei a qual dos doisfatôres me referir, depois que o rigor ou a clemência dos céus quis afastar-me de
meus pais e dar-me aos vossos, Senhor Recaredo, reconhecida aos infinitos
favores que me têm feito, decidi que minha vontade jamais discordaria davontade dêles e, assim, consideraria mau o inestimável favor que me quereis
fazer; se eu fôr mesmo tão venturosa a ponto de vos merecer, ofereço-vos,desde já, a ordem que êles me derem, mas, mesmo que não se encontre logo ou
que não haja uma solução, que os vossos desejos saibam que os meus serãoeternos e puros em desejar-vos todo o bem que o céu vos pode dar.
Assim encerrou Isabela suas honestas e discretas palavras; depois disso, a
saúde de Recaredo começou a voltar e renasceram também as esperanças de
seus pais.Os dois despediram-se cortesmente: êle, com lágrimas nos olhos; ela,
muito admirada de ver a alma de Recaredo dedicada inteiramente a amá-la.Recaredo, deixando o leito por milagre, na opinião de seus pais, não quis
ocultar, por mais tempo, seus pensamentos; manifestou-os um dia à sua mãe,dizendo-lhe, ao fim de longas palavras, que, se não consentissem em seucasamento com Isabela, seria o mesmo que matá-lo; encareceu, também, de tal
forma, as qualidades da jovem que fêz a mãe pensar que a enganada seriaIsabela, tomando seu filho como espôso; deu-lhe esperanças de que seu pai
viesse a aceitar êste casamento que ela já havia aceito e assim o foi, pois,transmitindo ao marido as mesmas palavras que o filho a ela dissera, induziuo,com facilidade, a concordar com o que o rapaz tanto desejava, pensando já nas
desculpas que deveriam apresentar para não se realizar o casamento, que eratido como certo, com a jovem da Escócia. Por esta época, teria Isabela uns
catorze anos e Recaredo vinte, mas, apesar de tão verde e tão florida idade, suadiscrição e prudência faziam com que êles parecessem mais velhos.
Faltavam quatro dias para que os pais de Recaredo vissem o filho unir-se a
Isabela pelos laços sagrados do matrimônio, considerando-se felicíssimos por
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receberem sua prisioneira como filha, levando em conta mais o dote dasvirtudes da jovem que a imensa fortuna da escocesa; as roupas estavam quase
prontas, os parentes amigos convidados; faltava apenas levar o fato ao
conhecimento da rainha, porque sem a sua vontade e consentimento não seefetua nenhum casamento entre pessoas de sangue ilustre, mas não duvidavam
de seu consentimento, por isso demoraram-se em ir procurá-la. Quandofaltavam, então, como eu dizia, quatro dias para as bodas, apareceu umministro da rainha, que veio desfazer a alegria de todos, pois trouxe a Clotaldo
um comunicado de Sua Majestade que o mandava levar à sua presença, namanhã do dia seguinte, sua prisioneira, a espanhola de Cádiz. Clotaldo disse-
lhe que executaria com muito prazer a ordem de Sua Majestade. O ministro
partiu e deixou todos os corações agitados, cheios de sobressalto e de mêdo.- Ai - exclamava a Senhora Catalina - se a rainha souber que criei esta
menina com fé na religião católica, se vier a saber que todos desta casa somoscristãos! E se a rainha lhe perguntar o que aprendeu durante os oito anos em
que foi nossa prisioneira, o que há de responder a pobrezinha, para não noscondenar, por mais prudente que seja?
Isabela, ouvindo-a, disse-lhe:
- Não vos preocupeis, minha senhora, pois confio no céu, que, em sua
divina misericórdia, há de me inspirar para que minhas palavras não voscondenem e sim resultem em vosso proveito.
Recaredo tremia, como que pressentindo alguma coisa má; Clotaldoprocurava de inúmeras maneiras afastar-lhe o temor, mas via que contava
apenas com a enorme confiança que tinha em Deus e com a prudência deIsabela, a quem recomendou, muitas vêzes, que evitasse, por todos os meios,dizer que eram católicos, pois, embora, em espírito, estivessem preparados para
receber o martírio, a carne recusava-se a beber do cálice amargo. Mais de umavez Isabela disse-lhes que ficassem descansados, pois nada do que temiam ou
suspeitavam havia de acontecer, porque embora não soubesse ainda o queresponder às perguntas que lhe fizessem, tinha como viva e certa a esperançade responder de modo que suas palavras, como aliás já havia dito, lhes fôssem
apenas benéficas.Naquela noite falaram de muitas coisas, principalmente que se a rainha
soubesse que êles eram católicos, não lhes enviaria um recado tão delicado, peloqual se podia deduzir que queria apenas ver Isabela, cuja incomparável beleza eaptidões teriam chegado a seus ouvidos, como chegara também aos ouvidos de
tôda a cidade, mas o fato de não a terem apresentado à rainha fazia-os sentirem-
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se culpados e, para se justificarem perante a soberana, acharam melhor dizerque haviam escolhido Isabela como espôsa de seu filho Recaredo, desde que ela
chegara a seu poder, porém, ainda assim, sentiram-se culpados por terem
planejado o casamento sem o consentimento da rainha, muito embora estaculpa não lhes parecesse merecedora de grande castigo.
Consolaram-se com isto e decidiram que Isabela não fôsse vestidahumildemente, como prisioneira, mas sim como espôsa de um homemimportante como era seu filho.
No dia seguinte, vestiram Isabela à moda espanhola, com uma túnica decetim verde, com aberturas regulares, através das quais se podia ver um rico
tecido dourado; as aberturas eram rematadas com pérolas, formando esses; e
era tôda bordada com pérolas riquíssimas; o colo e a cintura estavam enfeitadoscom belíssimos diamantes; levava também um leque. à maneira das grandes
senhoras espanholas; seus cabelos, loiros e compridos, entrelaçados comdiamantes e pérolas, serviam-lhe de toucado. Elegante, de uma beleza sem
igual, ricamente enfeitada, foi assim que Isabela se apresentou naquele dia aLondres, transportada por um belíssimo côche, levando com ela as almas e osolhos de todos quantos a olhavam. Com ela iam Clotaldo, sua espôsa e
Recaredo, acompanhados de inúmeros e ilustres parentes. Clotaldo quis
conceder-lhe tôda esta honra para fazer com que a rainha a tratasse como aespôsa de seu filho.
Chegando ao palácio, Isabela entrou em uma grande sala, onde seencontrava a rainha, despertando em todos a melhor de tôdas as impressões. A
sala era grande e espaçosa, as pessoas que a acompanhavam detiveram-se.Isabela deu dois passos à frente e, assim que se destacou do grupo, foi como seuma estrêla ou um raio cortasse o sossêgo e a calma da noite, ou, então, como o
raio de sol que, ao nascer do dia, aparece por entre as montanhas, foi tambémum cometa a anunciar o fogo que incendiaria mais de um coração dos que ali
estavam presentes e que seriam queimados nas chamas da luminosa beleza deIsabela, que, humilde e cortês, foi colocar-se de joelhos perante a rainha paradizer-lhe, em inglês:
- Que Vossa Majestade estenda vossas mãos a esta serva que, de hoje emdiante, sentir-se-á enaltecida, pois teve a ventura de admirar a vossa grandeza.
A rainha olhou-a por um bom espaço de tempo, sem dizer uma palavra,pois parecia-lhe, como falou depois à sua camareira, ter diante de si um céuestrelado, estrêlas que eram inúmeras pérolas e diamantes usados por Isabela,
cujo rosto e olhos pareciam o Sol e a Lua e tôda ela uma nova maravilhosa
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formosura. As damas que acompanhavam a rainha fizeram tôdas olhos paranão deixarem de admirar nada em Isabela. uma elogiava-lhe o brilho dos olhos;
outra, a côr do rosto; ou a elegância; outra, a doçura de suas palavras; houve
uma que, de pura inveja, disse:- A espanhola é muito bonita, mas não gosto de suas roupas. Depois de
passada um pouco sua admiração, a rainha, fazendo Isabela levantar-se, disse-lhe:
- Fala-me em espanhol, jovem, que eu o entendo bem. será um prazer
ouvi-lo. - E, voltando-se para Clotaldo, disse:- Clotaldo, fizestes-me uma ofensa escondendo êsse tesouro por tantos
anos, ofensa esta agravada porque fôstes movido pela cobiça; estais, pois, na
obrigação de restituí-lo a mim porque, de direito, é meu.- Senhora - falou Clotaldo -, é bem verdade o que Vossa Majestade diz;
confesso minha culpa, se podemos considerar como tal o fato de ter euguardado êste tesouro a fim de que atingisse a perfeição para depois trazê-lo
aos olhos de Vossa majestade; agora que esta perfeição foi alcançada, pensavatrazer Isabela a vossa presença e pedir-vos que consentísseis no casamento delacom meu filho Recaredo e, oferecendo-os, à rainha, ofereço com êles tudo
quanto vos posso dar.
- Até o nome dela me agrada - falou a rainha - só faltava chamar-se Isabelapara que eu nada ficasse a desejar. mas lembrai-vos, Clotaldo, de que a
prometestes a vosso filho sem o meu consentimento.- É verdade, senhora. Mas foi confiando nos inúmeros relevantes serviços
que eu e meus antepassados prestamos à coroa que pensei poder alcançar deVossa Majestade favores ainda maiores que êste consentimento; além disso,meu filho ainda não se casou.
- Nem se casará, até que a mereça por êle próprio; quer dizer com isto queêle não se deve aproveitar de vossos serviços nem dos serviços de vossos
antepassados; êle, por êle próprio, há de se colocar à minha disposição e sermerecedor desta preciosidade que eu já estimo como se fôsse minha filha.
Isabela, mal ouviu estas últimas palavras, tornou a ajoelhar-se diante da
rainha, dizendo-lhe em castelhano:- Há desgraças, sereníssima senhora, que devem ser consideradas como
felicidade e não como desventura; se Vossa Majestade chamou-me de filha, quemales haverei de temer ou que benefícios não poderei esperar?
Isabela falava com tanta graça e desembaraço que a rainha afeiçoou-se
extremamente a ela e ordenou que permanecesse a seu serviço, entregando-a a
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uma importante senhora, sua camareira-mor, para ensinar-lhe seu modo deviver.
Recaredo, que sentiu fugir-lhe a vida quando viu que o afastavam de
Isabela, estêve a ponto de perder o juízo; e, assim, tremendo e sobressaltado,pôs-se de joelhos perante a rainha, dizendo:
- Para servir a Vossa Majestade não é necessário receber outros prêmios,além daqueles que meus pais e meus antepassados alcançaram por teremservido a seus reis, mas, já que Vossa Majestade deseja que eu vos sirva por
novos motivos e pretensões, gostaria de saber de que modo e em que trabalhopoderei cumprir com a obrigação que Vossa Majestade me impõe.
- Dois navios, que se encontram sob as ordens do Barão de Lansac, que eu
nomeei general, estão prontos para andar a corso (Andar a corso - dizia-se dosnavios e dos homens armados para correr no encalço de navios mercantes; era uma
forma de pirataria.); faço-vos capitão de um dêles, pois o sangue que tendes nasveias assegura-me de que há de compensar vossa pouca idade, e lembrai-vos da
graça que vos concedo, pois, com ela, vos dou a oportunidade de, nãodesmentindo vossa linhagem, servindo a vossa rainha, demonstrar o valor devosso engenho, de vossa pessoa, para alcançardes o melhor prêmio que, a meu
ver, podeis desejar; serei eu a guardiã de Isabela, embora sua honestidade, da
qual ela já nos deu prova, seja sua mais preciosa guardiã; ide com Deus, pois,partindo enamorado, como imagino, espero que realizeis grandes façanhas;
feliz seria o rei que tivesse em seu exército 10.000 soldados enamorados, queesperassem possuir suas amadas como prêmio às suas vitórias. Levantai,
Recaredo, e olhai se tendes ou quereis dizer alguma coisa a Isabela, porqueamanhã partireis.
Recaredo beijou as mãos da rainha, agradecendo muitíssimo o favor que
ela lhe fazia; logo a seguir, pôs-se de joelhos perante Isabela e, querendo falar-lhe, não pôde, pois sentiu um nó na garganta, que lhe prendeu também a
língua; as lágrimas vieram-lhe aos olhos e procurou disfarçá-las o mais que lhefoi possível, mas elas não passaram despercebidas aos olhos da rainha, quedisse:
- Não vos envergonheis de chorar, Recaredo, nem vos sintais diminuídopor terdes dado neste momento tão ternas mostras de vosso coração, pois uma
coisa é pelejar com os inimigos e outra é despedir-se de quem se quer bem;abraçai-o, Isabela, e dai-lhe a vossa bênção, que bem o merecem os seussentimentos.
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Isabela, que estava surprêsa e admirada de ver a humildade e a dor deRecaredo e que já o amava como espôso, não compreendeu a ordem da rainha;
começou antes a derramar lágrimas, sem perceber o que fazia, e, permanecendo
como cega, sem movimento algum, parecia uma estátua de alabastro a chorar.Estas reações tão ternas dos dois enamorados fizeram muitos dos parentes
derramarem lágrimas, sem poder dizer palavra e sem ter conseguido falar comIsabela, que fêz, juntamente com Clotaldo e todos os que com êle vieram, umareverência à rainha, saindo da sala, cheios de compaixão, de pesar e de
lágrimas.Isabela ficou tal qual uma órfã que acaba de enterrar os pais, receosa de
que sua nova senhora quisesse mudar-lhe os costu mes em que se havia criado;
mas ali permaneceu. Daí a dois dias, Recaredo partiu, dominado por doispensamentos entre muitos outros, que o mantinham fora de si: um era pelo fato
de considerar que lhe convinha realizar determinadas façanhas que o fizessemmerecedor de Isabela; o outro, por saber que não podia realizá-las sem ter que
desembainhar sua espada contra católicos, pois estaria contrariando suaformação interior; não desembainhar a espada seria denunciar sua qualidade decristão ou ser acusado de covarde; qualquer das duas soluções redundaria em
prejuízo para sua vida e em obstáculo para suas pretensões. Resolveu, enfim,
atender primeiro à sua condição de católico, pedindo intimamente ao céu quelhe desse ocasiões em que pudesse demonstrar sua coragem, cumprir com a
religião, deixando a rainha satisfeita, e fazer-se merecedor de Isabela.Os dois navios navegaram por seis dias com vento favorável seguindo o
caminho das ilhas Terceras, onde sempre há naves portuguêsas das ÍndiasOrientais ou algumas que se desviaram das Ocidentais. Ao fim de seis dias, umvento fortíssimo, que no Mediterrâneo chama-se Meio-dia, mas que no
Atlântico tem outro nome, soprou os costados dos navios, e o fêz tão fortementee por tanto tempo que os impediu de alcançar as ilhas, obrigando-os a se
dirigirem para a Espanha; junto às costas espanholas, à bôca do estreito deGibraltar, descobriram três navios; um, po deroso e grande; os outros dois,pequenos; os homens de Recaredo perguntaram ao capitão se o general queria
atacar os três navios que tinham sido avistados, mas, antes de poderemcomunicar-se com êle, viram hastear, sôbre a gávea maior, uma bandeira negra
e, chegando-se mais para perto, ouviram o som de clarins e cornetas roucas,sinais evidentes de que o general, ou alguma outra pessoa importante da nave,morrera. Inquietos, comunicaram-se com os outros pela primeira vez, coisa que
não haviam feito desde que saíram do pôrto; da nave capitânea disseram, em
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altas vozes, que Recaredo assumisse o comando, porque o general morrera nanoite anterior, vítima de apoplexia. Todos se entristeceram, menos Recaredo,
que se alegrou, não pela morte de seu general, mas porque se via livre para
comandar os dois navios, pois a rainha ordenara que, na falta do general,Recaredo assumisse o seu pôsto. Recaredo apressou-se a passar para a outra
nau, onde encontrou alguns marinheiros que choravam pelo general morto eoutros que se alegravam com sua presença; no fim, puseram-se todos sob suasordens, reconhecendo-o como general em rápida cerimônia, passando logo a
falar dos três navios que tinham descoberto, dois dos quais, desviando-se domaior, vinham em direção de suas naves.
Reconheceram logo, pelas meias-luas que se viam nas bandeiras, que se
tratava de duas galeras turcas. Recaredo alegrou-se, pois, se o céu o permitisse,aquela seria uma prêsa considerável e vinha de encontro aos seus desejos,
porque, tomando-a, não ofenderia a nenhum católico. As duas galeras turcaschegaram a reconhecer os navios inglêses, que não traziam insígnias da
Inglaterra e sim da Espanha, não para enganar os que pudessem reconhecê-los,mas para que não fôssem considerados navios de corsários. Os turcos pensaramque se tratasse de naves derrotadas das Índias e julgaram que as abateriam com
facilidade. Foram-se aproximando pouco a pouco e Recaredo deixou-os
aproximar-se propositadamente, até que pudesse tê-los sob a mira de suaartilharia, e, disparando na hora exata, atingiu com tanta fúria, com cinco balas,
o centro de uma das galeras, que a partiu ao meio; a embarcação imediatamentependeu para bombordo e começou a ir a pique, sem que nada se pudesse fazer.
A outra galera, vendo êstes acontecimentos, apressou-se em desttruí-la, fazendocom que afundasse próximo aos costados do navio grande, mas Recaredo, quedispunha de barcos velozes e bem aparelhados, que podiam sair ou entrar como
se tivessem remos, mandou carregar de nôvo tôda a artilharia e os foi seguindoaté a nave maior, descarregando sôbre êles intensa chuva de balas. O pessoal da
galera, logo que chegou perto da nave, abandonou sua embarcação, procurandoabordá-la o mais depressa possível. Recaredo, vendo que a nave se ocupavacom a galera atingida, atacou-a com seus dois navios e, impedindo-a de fazer a
volta ou de valer-se dos remos, encurralou-a; os turcos procuraram, assimmesmo, recolher-se à nave, não para atacar, mas para salvar suas vidas. Os
cristãos, que estavam nas galeras como prisioneiros, romperam as cadeias e juntamente com os turcos, procuravam alcançar a nave e, confor me iamsubindo pelos costados, iam servindo de alvo aos arcabuzes dos navios;
Recaredo ordenou que ninguém atirasse nos cristãos. Quase todos os turcos
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foram mortos e os poucos que chegaram à nave foram reduzidos a pedaçospelos cristãos, com que êles haviam-se misturado, apoderando-se de suas
armas, pois quando os valentes caem, a coragem que os anima passa a
substituir a fraqueza dos que se levantam, e, assim, os cristãos, animados,acreditando que os navios inglêses fôssem espanhóis, realizaram maravilhas,
tendo sempre em mente sua liberdade. A encerrar-se o combate, algunsespanhóis puseram-se a bordo do navio, e, em altas vozes, chamaram os que
julgavam ser espanhóis, para festejar com êles a vitória. Recaredo perguntou-
lhes em espanhol, que navio era aquêle. Responderam-lhe que era umaembarcação vinda da Índia portuguêsa, carregada de especiarias, cheia de
pérolas e diamantes, no valor de mais de 1 milhão em ouro, e que, por causa de
uma tormenta, viera dar naqueles lugares, tôda destruída e sem artilharia,porque o pessoal enfêrmo, quase morto de fome e de sêde, incumbira-se de
atirá-la ao mar; disseram ainda que as duas galeras pertenciam ao corsárioArnaute Mami, a quem a nave havia sido entregue, sem a menor resistência, e
que, segundo ouviram dizer, pretendia rebocá-la até o rio Larache, que nãoficava muito distante dali, pois a enorme riqueza que a nave transportava nãocabia em suas embarcações.
Recaredo respondeu-lhes que, se êles pensavam que aquêles dois navios
eram espanhóis, estavam enganados, pois pertenciam à rainha da Inglaterra;suas palavras deram muito o que pensar e temer a todos que as ouviram, por
compreenderem que haviam escapado de uma armadilha para logo em seguidacaírem em outra. Recaredo, entretanto, disse-lhes que nada temessem, que
contassem como certa sua liberdade e que, assim sendo, não era precisotratarem da defesa.
- E nem que quiséssemos não poderíamos - responderam êles -, porque,
como já dissemos, êste navio não tem artilharia e nós estamos desarmados;assim, temos que aceitar a gentileza e a liberalidade de vosso general; será justo
que quem nos libertou do cativeiro dos turcos leve adiante tão grande mercê ebenefício, pois, assim fazendo, poderá tornar-se famoso em todos os recantos,que já sabemos serão muitos, onde chegar a notícia desta memorável vitória e a
da liberdade, que dêle esperávamos. Recaredo achou razoáveis as palavras doespanhol e, reunindo em conselho o pessoal de seu navio, perguntou-lhe como
faria para enviar todos os cristãos à Espanha, sem correr o risco de terem queenfrentar algum perigo, embora pensassem que as situações difíceis servissempara levantar-lhes o ânimo. Alguns pensaram em fazê-los passar, um a um,
para seu navio, e matá-los, conforme fôssem entrando debaixo da cobertura,
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pois, matando-os a todos, poderiam levar, sem preocupação ou temor, a grandenave a Londres. Recaredo, porém, falou:
- Já que Deus nos concedeu tanta graça e nos deu tanta riqueza, não quero
retribuir com crueldade, nem ser mal agradecido, nem é justo resolver-se com aespada aquilo que pode ser resolvido pacificamente; assim, penso que nenhum
católico deve morrer, não porque eu os queira bem, mas porque me prezomuito e queria que a façanha de hoje não desse, nem a mim nem a vós, quefôstes meus companheiros, a fama de cruéis, ao lado de nossa fama de valentes,
pois valentia e crueldade nunca andaram juntas; o que se deve fazer é passartôda artilharia de um dêstes navios para a nave portuguêsa, deixando nêle
apenas provisões e, sem que haja prejuízo para nossa gente, levaremos a nave
até a Inglaterra, enquanto os espanhóis vão para a Espanha.Ninguém ousou recusar a proposta de Recaredo; alguns consideraram-no
valente, magnânimo e muito inteligente; outros julgaram-no mais católico doque devia ser. Obtendo, pois, a aprovação de todos, Recaredo passou com
cinqüenta arcabuzeiros para a nave portuguêsa, todos mantendo-se alertas eprontos para atirar; encontrou a bordo quase trezentas pessoas das que haviamescapado das galeras, pediu logo o registro da nave, mas o mesmo homem que
lhe falara pela primeira vez respondeu que o registro estava nas mãos do
corsário, chefe das embarcações, que com elas havia afundado. Utilizando-se dotôrno e encostando a segunda embarcação na grande nave, com extraordinária
rapidez e a poder de fortíssimos sarilhos, passaram a artilharia do pequenobatel para a nave maior; depois, dizendo algumas palavras aos cristãos,
Recaredo mandou-os passar para o batel, onde encontrariam provisões emabundância, para mais de um mês e para um número de pessoas bem maior, e,conforme iam embarcando, dava-lhes a cada um 4 escudos de ouro espanhóis,
que mandou trazer de seu navio para remediar, em parte, certas necessidadesquando chegassem à terra, que, aliás, estava muito próxima, pois dali podiam
avistar as altas montanhas de Abila e Calpe. Todos agradeceram infinitamente ofavor que êle lhes fazia; o último a embarcar foi o homem que lhe falara emnome dos demais e que não quis partir sem antes dizer-lhe:
- Gostaria muito mais, valoroso cavalheiro, que me levasses contigo para aInglaterra, do que me mandasses para a Espanha, porque, embora seja minha
terra e faça apenas seis dias que dela parti, ali haverei somente de encontrartristezas e saudades; desejo que saibais, senhor, que na batalha de Cádiz, há unsquinze anos atrás, perdi minha filha, levada à Inglaterra pelos inglêses; com ela
perdi o sossêgo de minha velhice e a luz de meus olhos, que jamais se
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alegraram com coisa alguma, depois de sua partida; o grande aborrecimentoque sua perda e a perda de todos os meus haveres me causaram puseram-me de
tal maneira que não quis e nem pude mais comerciar, embora eu fôsse
considerado o comerciante mais rico de tôda a cidade, o que, aliás, era verdade,pois além das muitas centenas de milhares de escudos que eu possuía em
dinheiro, os meus bens, dentro das portas de minha casa, passavam de 50.000ducados; tudo isso eu perdi, mas nada me importaria se não tivesse perdidominha filha; além da desgraça que atingiu a todos em geral e a mim em
particular, as necessidades começaram a nos perseguir, a tal ponto que, nãopodendo mais resistir, eu e minha mulher, aquela infeliz que ali se encontra,
decidimos ir para as índias, refúgio comum de todos os pobres generosos e,
tendo embarcado há seis dias, fomos surpreendidos, logo ao sair de Cádiz, porêstes dois navios de corsários que nos aprisionaram, renovando-se assim nossa
desgraça e confirmando-se nossa desventura, que seria ainda maior se oscorsários não tivessem apreendido aquela nave portuguêsa que lhes ocupou a
atenção, até acontecer o que o senhor já sabe.Recaredo perguntou-lhe como se chamava sua filha. Tendo êle respondido
que seu nome era Isabela, Recaredo viu confirmarem-se as suas suspeitas, pois
já desconfiara que aquêle homem deveria ser o pai de sua querida Isabela; não
lhe disse uma só palavra a respeito da jovem, mas ofereceu-se para levá-los, êlee sua mulher, para Londres, onde poderiam, por certo, obter as informações que
tanto desejavam; a seguir, fêz com que êles passassem para seu navio; enviandoum número suficiente de marinheiros e guardas para a nave portuguêsa.
Levantaram velas à noite e trataram de se afastar logo das costas da Espanha,por causa do navio de prisioneiros libertos, entre os quais havia quinze turcos eaos quais Recaredo concedeu a liberdade, a fim de mostrar que era liberal, mais
por ser de índole generosa do que por dedicar amor aos católicos; pediu aosespanhóis que, na primeira oportunidade, libertassem os turcos, que, por sua
vez, também se mostraram agradecidos.O vento, que antes dera mostras de ser favorável, tornou-se excessiva-
mente calmo e os inglêses, atemorizados, passaram a reprovar a liberalidade de
Recaredo, dizendo-lhe que as pessoas por êle libertadas poderiam avisar aEspanha dos fatos ocorridos e que, se por acaso houvesse no pôrto alguns
galeões de guerra, podiam sair em seu encalço e colocá-los em uma situaçãodifícil, ou até mesmo aprisioná-los. Recaredo bem que reconhecia a gravidadeda situação, porém, acalmou a todos com uma série de razões, mas o que mais
os acalmou foi o vento, pois voltou a soprar de modo que, batendo suavemente
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em tôdas as velas, não se teve a necessidade de amainá-las ou dirigi-las e assim,dentro de nove dias, encontraram-se às vistas de Londres, voltando, depois de
trinta dias, vitoriosos. Recaredo, em virtude da morte de seu general, não quis
entrar no pôrto dando mostras de muita alegria; às manifestações decontentamento, preferiu associar as de tristeza; por vêzes, eram os clarins que
soavam, em festa; outras vêzes, as roucas trombetas tocavam qual tamboresalegres e armas de guerra; às trombetas respondiam os pífaros, com sons tristese chorosos; de uma das gáveas, às avessas, pendia uma bandeira cheia de
meias-luas; em outra, via-se um grande estandarte de tafetá negro, cujas pontasbeijavam a água. E foi assim que Recaredo entrou no rio de Londres com seu
navio, pois a nave, não encontrando águas suficientes, teve que permanecer no
mar, ao longe. Os sinais tão contraditórios que se avistavam na embarcaçãosurpreenderam o povo numeroso, que das margens os olhava; conheceram
pelas insígnias que o navio menor era a nau capitânea do Barão de Lansac, masnão podiam compreender como o outro navio teria sido trocado por aquela
nave poderosa, que se encontrava no mar; sua dúvida, porém, se desfêz quandoviram saltar, com tôdas as armas, ricas e resplandescentes, o valoroso Recaredoque, a pé, acompanhado apenas pela multidão que o seguia, dirigiu-se ao
palácio, onde a rainha, por entre os corredores, esperava que lhe trouxessem
notícias dos navios; com ela estavam suas damas de honra e Isabela, vestida àinglêsa; antes que Recaredo chegasse, apresentou-se perante a rainha um
mensageiro, que se incumbiu de dar-lhe as notícias a respeito de Recaredo.Isabela, ouvindo o nome de Recaredo, temeu e esperou ansiosa pelos
acontecimentos.Recaredo era alto, aristocrático e elegante; a couraça, o gorjal (Gorjal: Peça
da armadura que servia para proteger o pescoço.), as braceleiras, as escarcelas(Escarcela: Parte da armadura desde a cintura até o joelho.) e os escudos milaneses deonze vistas, trabalhados e dourados, contribuíam para produzir viva impressão
em todos quantos o olhavam; na cabeça, em vez de um morrião (Morrião: Antigo
capacete, sem viseiras e de aba levantada.), usava um chapéu de aba larga,aleonado, com uma porção de plumas colocadas à moda dos valões; sua espada
era larga; os boldriés (Boldrié: Correia a tiracolo, à qual os militares prendem uma
arma.), ricos; as calças, à suíça. Suas roupas e seu passo garboso fizeram com
que muitos o comparassem a Marte, deus da guerra, e outros, impressionadospela beleza de seu rosto, disseram que êle deveria ser Vênus em pessoa, que sedisfarçara daquela maneira para zombar de Marte. Recaredo chegou, enfim, à
presença da rainha e, pondo-se de joelhos, disse-lhe:
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- Majestade, para vossa alegria e para a realização de meus desejos, após amorte do General de Lansac, ficando eu em seu lugar, graças à vossa
liberalidade, colocou a sorte em meu caminho duas galeras turcas que
rebocavam aquela grande nave, que daqui se pode ver; atacados, vossossoldados defenderam-se e afundaram as embarcações dos corsários; libertei, em
vosso nome, os cristãos que puderam escapar ao poder dos turcos, permitindoque êles partissem para a Espanha em um dos nossos navios; trouxe comigosõmente um homem e uma mulher, espanhóis, que de livre vontade quiseram
vir conhecer vossa grandeza; a grande nave que trouxemos vinha da Índiaportuguêsa e, por ter sofrido uma tempestade, caiu em poder dos turcos, pois
êles, com pouco trabalho, ou, para melhor dizer, sem trabalho algum,
assenhorearam-se dela e, segundo dizem alguns portuguêses, seus tripulantes,o valor das especiarias, das pérolas e diamantes que ela carrega passa de 1
milhão, em ouro; ninguém tocou em nada, nem os turcos puderam tirar coisaalguma, pois o céu o reservou e eu me incumbi de guardar êste tesouro para
Vossa Majestade; contentar-me-ei com apenas uma jóia, que me fará dever-vosoutras dez naves como esta; esta jóia é minha querida Isabela, que vós meprometestes antes de minha partida; com ela sentir-me-ei pago e satisfeito, não
só por êste serviço, mas por todos os outros que fiz a Vossa Majestade e pelos
muitos que ainda penso fazer para pagar um pouco do quase infinito que, comesta jóia, me ofereceis.
- Levantai-vos, Recaredo - disse a rainha - e acreditai que, se quisésseispagar pelo quanto eu estimo Isabela, não conseguiríeis fazê-lo nem com o que
trazeis nessa nave, nem com o que fica em tôda a índia; eu vos darei Isabelaporque já prometi e porque ela é digna de vós e também sois digno dela: ovosso valor a merece; se guardastes as jóias da nave para mim, eu também
guardei a jóia que vos pertence e, embora não pareça nada devolver-vos o que évosso, sei que vos faço um grande favor com isso, porque os prêmios que se
conquistam por mérito próprio e que são ardentemente desejados valem tantoquanto a alma e não há na terra preço algum que os pague. Isabela é vossa, ei-la, podereis tornar-vos dono e senhor dela quando quiserdes; creio que ela o
aceitará de boa vontade e saberá apreciar a amizade que lhe dedicais; digoamizade e não favores porque somente eu posso concedê-los; podeis ir
descansar e vinde aqui pela manhã, pois quero conhecer pormenorizadamentetôdas as vossas façanhas, e trazei-me também o casal que, de espontâneavontade, quis vir para me conhecer, pois quero agradecer-lhes.
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Recaredo beijou-lhe as mãos pelos inúmeros favores que ela lhe concedia.A rainha dirigiu-se para outra sala; as demais pessoas rodearam Recaredo e
uma delas, que se tornara grande amiga de Isabela, chamada Senhora Tansi,
considerada a mais prudente, desenvolta e graciosa de tôdas, disse-lhe:- Que é isto, Senhor Recaredo, que armas são estas? Pensáveis, porventura,
que viríeis pelejar contra vossos inimigos?Tôdas aqui somos vossas amigas, com exceção da Senhora Isabela, que,
como espanhola, é obrigada a não vos olhar com bons olhos.' - Mas é preciso
que ela se lembre, Senhora Tansi, de olharme com um pouco de boa vontade -falou Recaredo. - A ingratidão não pode andar ao lado de tanto valor, de tanta
compreensão e de tão rara formosura.
- Senhor Recaredo - disse-lhe Isabela -, uma vez que vos pertenço, está emvós decidir sôbre meu destino, a fim de que sejais plenamente recompensado
pelos elogios que me fizestes e pelos favores que pensais conceder-me.Estas e outras palavras foram trocadas entre Recaredo, Isabela e as damas,
entre as quais havia uma jovenzinha que nada mais fêz do que olhar Recaredoenquanto êle estêve ali; levantava-lhe as escarcelas, para ver o que haviadebaixo delas, examinava-lhe a espada e, com sua simplicidade de criança,
queria que as armas lhe servissem de espelho, chegando mesmo a olhar-se nelas
de muito perto, e, quando partiu, dirigindo-se às damas, falou:- Acho que a guerra deve ser coisa muito boa, porque as mulheres
apreciam muito os homens armados.- E como não havia de ser? - perguntou a Senhora Tansi.
- Basta olhar para Recaredo, que parece o próprio sol caminhando pelasruas.
Tôdas riram-se das palavras da mocinha e da comparação de Tansi; não
faltou, entretanto, quem considerasse uma impertinência de Recaredo o fato deêle ter ido armado ao palácio, embora houvesse outras que procurassem
desculpá-lo, dizendo que, como soldado, tinha o direito de se apresentar assim,para que pudesse mostrar sua esplêndida galhardia.
Recaredo foi carinhosamente recebido por seus pais, parentes e amigos.
Naquela noite, tôda Londres festejou a sua vitória.Os pais de Isabela encontravam-se na casa de Clotaldo e Recaredo já lhe
havia dito quem eram, tendo, entretanto, pedido que nada lhes falasse arespeito de Isabela, pois êle próprio queria encarregar-se disso. O avisoestendeu-se à Senhora Catalina, sua mãe, e a todos os criados e criadas da casa.
Naquela mesma noite, com muitos botes, lanchas, barcos, e com muitos olhos a
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observarem, começou-se adescarregar a nave, demorando-se oito dias pararetirar a enorme quantidade de pimenta e de outras riquíssimas mercadorias
que nela se encontravam.
No dia seguinte, Recaredo foi ao palácio, levando consigo o pai e a mãe deIsabela, vestidos como inglêses, dizendo-lhes que a rainha queria vê-los. A
rainha, em meio às suas damas, estava esperando por Recaredo, a quem pensouagradar, mantendo Isabela a seu lado, vestida com as mesmas roupas que usaraquando apareceu pela primeira vez no palácio, e sua beleza de agora nada
ficava a dever à sua beleza de então. Os pais de Isabela ficaram admirados esurpresos de ver tanta beleza e elegância juntas. Puseram os olhos nela, mas não
a reconheceram, embora o coração, pressentindo a ventura que os rondava,
começasse a bater mais forte no peito, não com sobressaltos de quem seentristece, mas com um não sei quê de felicidade, que êles próprios não podiam
entender. A rainha não permitiu que Recaredo se mantivesse de joelhos peranteela; fêz com que êle se levantasse e sentasse em uma cadeira, sem encôsto, que
tinha sido colocada ali, especialmente para êle, favor êste dificilmenteconcedido pela altiva condição da rainha. Houve quem dissesse:
- Recaredo senta-se hoje não sôbre a cadeira que lhe foi dada e sim sôbre a
pimenta que trouxe.
Outro disse:- Confirma-se agora o que comumente se diz, que as dádivas amenizam as
penas, porque as dádivas que Recaredo trouxe abrandaram o rígido coração denossa rainha.
E outro:- Agora que está tão bem sentado, mais de dois atrever-se-ão a persegui-lo.Com efeito, aquela nova honra que a rainha concedera a Recaredo fez com
que a inveja nascesse em muitos corações daqueles que o observavam, pois tôdamercê concedida por um príncipe a alguém que lhe agrade é uma lança a
atravessar o coração do invejoso. A rainha quis saber de Recaredo,pormenorizadamente, a batalha que travaram com os barcos dos corsários; êlecontou-a novamente, atribuindo a vitória a Deus e aos braços valorosos de seus
soldados, exaltando-os a todos e, particularmente, os feitos de alguns que sehaviam destacado, fato que obrigou a rainha a recompensar todos e
principalmente os nomes citados por Recaredo, que não se esqueceu de falar daliberdade que dera aos turcos e cristãos, em nome da rainha:
- Aquela mulher e aquêle homem, que ali estão - disse, apontando os pais
de Isabela -, são os que, como já tive oportunidade de dizer ontem a Vossa
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Majestade, desejavam conhecer a vossa grandeza, pedindo encarecidamentepara trazê-los comigo; êles são de Cádiz, segundo me disseram, e, conforme
pude observar pelas suas palavras, sei que são gente importante e de bem.
A rainha ordenou-lhes que se aproximassem; Isabela ergueu os olhos parapoder observar aquêles que se diziam espanhóis de Cádiz, ansiosa por saber se
êles conheciam seus pais. Os olhos de Isabela encontraram-se com os de suamãe, que se pôs a observá-la demoradamente; na memória da môça começarama se formar umas idéias confusas, que lhe deram a impressão de já ter visto
antes aquela mulher. Seu pai encontrava-se na mesma confusão e não se atreviaa acreditar na verdade que se fazia clara diante de seus olhos. Recaredo
observava atentamente as reações e os movimentos daquelas três almas, que se
encontravam na dúvida e que se procuravam reconhecer. A rainha percebeu oestado de ânimo dos pais de Isabela, bem como a inquietação da môça, pois a
viu transpirar e levantar a mão inúmeras vêzes para arrumar o cabelo.Isabela desejava ardentemente ouvir a voz da criatura que imaginava ser
sua mãe, pois seus ouvidos talvez pudessem desfazer a dúvida em que seusolhos a tinham colocado. A rainha ordenou a Isabela que falasse em espanholàquela mulher e àquêle homem, perguntando-lhes por que haviam recusado a
liberdade que Recaredo lhes oferecera, uma vez que a liberdade é, das coisas, a
mais amada, não só pelos indivíduos dotados de raciocínio, como tambémpelos animais, que dela precisam. Isabela obedeceu e falou com sua mãe, que,
sem responder-lhe palavra, quase mecânicamente, meio trôpega, chegou-se aIsabela e, sem respeitar os protocolos e os olhares da côrte, levantou a mão,
tocando a orelha direita de Isabela, onde descobriu um pequeno sinal negro queali havia e que veio confirmar as suas suspeitas; vendo claramente que Isabelaera sua filha, abraçou-se a ela, dizendo em altas vozes:
- Filha de meu coração! Vida de minha alma! - Mas foi apenas isto o queconseguiu dizer, pois caiu desmaiada nos braços de Isabela.
Seu pai, terno e prudente, deu mostras de seus sentimentos não compalavras, más com lágrimas que, silenciosamente, banharam-lhe o rosto. Isabelaaproximou seu rosto ao de sua mãe e, voltando os olhos para o pai, olhou-o de
tal maneira que o fêz sentir tôda a alegria e ao mesmo tempo a amargura de osver ali. A rainha, admirada com os acontecimentos, falou a Recaredo:
- Penso, Recaredo, que vossa prudência preparou êste encontro, mas nãopodemos dizer que agistes acertadamente, pois sabemos que uma súbita alegriapode também matar uma criatura. - E assim dizendo, voltou-se para Isabela,
separando-a de sua mãe, que, tendo-lhe alguém molhado o rosto com água,
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voltou a si e, já no domínio de suas emoções, ajoelhou-se aos pés da rainha,dizendo-lhe:
- Peço que Vossa Majestade perdoe o atrevimento de ter perdido os
sentidos pela alegria de encontrar minha amada prenda.A rainha, por intermédio de Isabela, que lhe serviu de intérprete, disse-lhe
que era muito natural perder os sentidos em tal circunstância, e ordenou aospais de Isabela que ficassem no palácio para poderem ver e falar com a filhaquando quisessem; Recaredo alegrou-se com o fato e pediu novamente à rainha
que cumprisse a palavra de lhe dar Isabela, se é que êle a merecia; se não,suplicava-lhe, desde logo, que lhe desse novos trabalhos a fim de se fazer digno
dela. A rainha bem sabia que Recaredo estava contente consigo mesmo, com
seu valor, não havendo, portanto, necessidade de novos trabalhos para provarsua coragem. por isso, disse-lhe que dentro de quatro dias entregar-lhe-ia
Isabela, concedendo aos dois tôda a honra que estivesse em seu alcance.Recaredo despediu-se contentíssimo e certo de que Isabela havia de lhe
pertencer, sem pensar que poderia perdê-la, pois, êste é, aliás, o último dosdesejos de um enamorado. O tempo correu, mas não com a rapidez por êledesejada, pois os que vivem esperando o cumprimento de promessas imaginam
sempre que o tempo não voa e que anda sempre sôbre os pés da própria
lentidão. Chegou finalmente o dia em que Recaredo pensou não em pôr fim aosseus desejos, mas em encontrar em Isabela novas graças que o fizessem amá-la
ainda mais, se isto fôsse possível. Mas, nesse meio de tempo em que êle pensavaque a nave de sua boa fortuna fôsse impelida por um vento favorável até o
pôrto desejado, a sorte adversa preparava tal tormenta que parecia tudo querere não dar.
Acontece que a camareira da rainha, a cujos cuidados estava entregue
Isabela, possuía um filho de 22 anos, chamado Conde Arnesto. Sua posiçãodestacada, a nobreza de seu sangue, a consideração que a rainha tinha por sua
mãe faziam-no mais arrogante, altivo e presumido do que na realidade deveriaser.
Este homem apaixonou-se de tal maneira por Isabela, que sentia a alma
queimar-se na luz dos olhos da jovem; enquanto Recaredo estêve ausente,procurou Isabela para manifestar os seus desejos, embora ela nunca lhe tivesse
dado atenção; a repugnância e os desdéns, que no princípio dos amôrescostumam fazer os enamorados desistirem de suas intenções, em Arnestoproduziram efeito contrário, pois seus ciúmes o devoravam e a honestidade de
Isabela o consumia: vendo que Recaredo, segundo a opinião da rainha, fizera
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por merecer Isabela e que, dentro de pouco tempo, ela haveria de se tornarespôsa dêle, quis desesperar-se, mas, antes de chegar a tão infame e covarde
solução, falou com sua mãe, dizendo-lhe para pedir à rainha que lhe desse
Isabela por espôsa; se ela não consentisse, era preciso fazê-la saber que a morteestava rondando as portas de sua vida. A camareira ficou impressionada com as
palavras do filho e, como conhecia seu gênio violento e a tenacidade com que osdesejos apoderavam-se de sua alma, temeu que seus amôres tivessem um finalinfeliz. Além disso, era mãe e seria natural que procurasse o bem-estar de seu
filho; prometeu, então, falar com a rainha, não por esperar que ela voltasse atráscom sua palavra, o que, aliás, era impossível, mas para não deixar de tentar e
ter esperanças num último remédio.
Naquela manhã, em que Isabela, por ordem da rainha, estava tãoricamente vestida, que minha pena não se atreve a tentar descrever, tendo no
pescoço um colar feito das mais belas pérolas trazidas pela nave, avaliadas em20.000 ducados, e, no dedo, um anel com um só diamante, no valor de 6.000
escudos, colocados no colo e no dedo pela própria rainha, naquela manhã, emque as damas, alvoroçadas, esperavam pela festa do casamento próximo, acamareira entrou e, de joelhos, suplicou à rainha que suspendesse os esponsais
de Isabela por dois dias e que com êste favor, se lhe fôsse concedido, dar-se-ia
por paga e satisfeita de todos os serviços que lhe prestara. A rainha quis, antesde mais nada, saber por que lhe pedia ela, com tanta insistência, o não
cumprimento da palavra que dera a Recaredo. A camareira, porém, não lhe quisdar uma explicação sem que ela lhe atendesse antes o pedido; a rainha lhe fêz a
vontade, pois desejava muito saber a causa de tal demanda. A camareira, tendoalcançado o que desejava, contou à rainha os sentimentos do filho, dizendotemer que êle fizesse alguma loucura ou algum escândalo se não lhe dessem
Isabela por espôsa e que pedira aquêles dois dias a fim de que Sua Majestadepudesse pensar em um meio de resolver a situação.
A rainha respondeu que, se sua palavra não estivesse em jôgo, ela achariafàcilmente uma solução para esta situação tão delicada, mas que não voltariaatrás no que prometera e não frustraria Recaredo em suas esperanças por todo o
interêsse do mundo. Esta resposta a camareira transmitiu-a ao filho, que, semnada a esperar, abrasado pelo amor e pelo ciúme, apanhou as armas que pôde
e, montando o cavalo forte e formoso, dirigiu-se à casa de Clotaldo e, em altasvozes, disse que Recaredo aparecesse na janela; o jovem, que naquele momentovestia-se como nubente e que se preparava para ir ao palácio com um
acompanhamento que tal ocasião exigia, ouvindo vozes tão altas e tomando
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conhecimento de quem as pronunciava e da maneira que se apresentava,dirigiu-se a uma das janelas, sobressaltado. Arnesto, assim que o viu, disse-lhe:
- Recaredo, presta atenção ao que te quero dizer. A rainha, minha senhora,
ordenou-te que a servisses e realizasses façanhas que te fizessem merecedor daformosa Isabela; partiste e voltaste com naves carregadas de ouro e com isso
pensas ter comprado e merecido Isabela; nossa rainha prometeu dá-la a tiacreditando que não haja na côrte alguém que a sirva melhor do que tu, nemque haja alguém que mais mereça Isabela, no que, julgo eu, pode ter-se
enganado; chegando a esta conclusão digo-te que não fizeste, nem poderásfazer coisa alguma que te faça merecedor de Isabela; digo-te que não a mereces
e, se queres desmentir-me, desafio-te para um duelo.
Calou-se o conde e Recaredo lhe respondeu:- Confesso que não mereço Isabela, senhor conde, e reconheço também
que criatura alguma na face da Terra a merece; por esta razão não haveria eu deaceitar vosso desafio; aceito-o, entretanto, para responder ao atrevimento que
tivestes em vir desafiar-me.Dito isto, afastou-se da janela e pediu que lhe trouxessem as armas
ràpidamente. Tôdas as pessoas de sua família e todos os que se encontravam
presentes para fazerem parte do acompanhamento que levaria Recaredo ao
palácio alvoroçaram-se. Dentre os que viram o Conde Arnesto armado eouviram-lhe o desafio, não faltou quem fôsse falar com a rainha, que mandou o
capitão de sua guarda ir prender o conde. O capitão apressou-se tanto emexecutar a ordem, que chegou a tempo de ver Recaredo sair de casa, armado e
montado em um belíssimo cavalo. O conde, vendo o capitão, imaginou logo arazão de sua presença e decidiu não se deixar prender; levantando a voz, dissea Recaredo:
- Estás vendo, Recaredo, que estamos impedidos de lutar. se querescastigar-me, procura-me, pois eu te procurarei, e como duas pessoas que se
procuram fàcilmente se encontram, deixemos para depois a realização denossos desejos.
- Está bem - respondeu Recaredo.
Nisto, chegou o capitão com tôda a sua guarda, dizendo ao conde que seconsiderasse prêso em nome de Sua Majestade. O conde não resistiu, mas
pediu-lhe que o levassem à presença da rainha. O capitão atendeu ao seupedido e, escoltando-o, com sua guarda, levou-o ao palácio, à presença darainha, que já fôra informada por sua camareira do grande amor que o filho
dedicava a Isabela e que, com lágrimas nos olhos, pedira à rainha, que, sem
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querer ouvir suas explicações, ordenou que lhe retirassem a espada e olevassem prêso a uma torre.
Tôdas estas coisas atormentavam o coração de Isabela e de seus pais, que
viam perturbar-se, tão cedo, o mar de sua tranqüilidade. A camareiraaconselhou a rainha a enviar Isabela para a Espanha, pois só assim poderia
evitar que alguma coisa má acontecesse entre seus parentes e os de Recaredo,impedindo, desta maneira, que se chegasse a resultados desastrosos;acrescentou ainda que Isabela era católica, e tanto, que nenhuma de suas
numerosas palavras tinham podido induzi-la a deixar de sê-lo.Respondeu-lhe a rainha que a estimava mais ainda por isso, pois
demonstrava, assim, que sabia respeitar o ensinamento de seus pais, e que não
pensava em enviá-la à Espanha porque sua formosa presença, suas inúmerasgraças e virtudes agradavam-lhe muito, e que, sem dúvida alguma, haveria de
fazê-la espôsa de Recaredo; se não fôsse naquele dia, seria em outro, e, assim,cumpriria o prometido. As palavras da rainha deixaram a camareira tão
desconsolada, que ela não pôde dizer uma só palavra, pois achava que somenteenviando Isabela de volta à Espanha poderia fazer com que seu filho não sebatesse em duelo com Recaredo; como não fôsse bem sucedida em seu plano,
decidiu praticar uma das maiores crueldades que a cabeça de uma mulher
importante como o era ela jamais pôde imaginar: decidiu envenenar Isabela;decidida e rápida, como o é a maior parte das mulheres, naquela mesma tarde
deu-lhe um veneno para beber, dizendo-lhe que o tomasse por ser bom remédiopara acalmar a ansiedade em que se encontrava. Logo depois que bebeu o
veneno, Isabela sentiu que lhe inchavam a língua e a garganta, que seus lábiosenegreciam, que sua voz enrouquecia, que os olhos não enxergavam e que opeito lhe apertava. Todos êstes eram sintomas de envenenamento. As damas da
rainha informaram-na do que se passava, afirmando que só a camareira poderiater causado aquêle mal a Isabela. Não foi preciso muito para que a rainha
acreditasse e foi imediatamente ver Isabela, que estava quase expirando.Mandou chamar, à pressa, todos os seus médicos e, enquanto êles nãochegavam, fêz com que lhe ministrassem algumas porções de antídotos que os
grandes príncipes costumam ter para o caso de se encontrarem em situaçãosemelhante. Chegaram os médicos e pediram à rainha que obrigasse a
camareira a revelar que espécie de veneno havia usado, pois não havia maisdúvidas de que fôra ela quem envenenara a jovem. Ela revelou-lhes o nome eassim puderam os médicos aplicar tantos e tão eficazes remédios que, com êles
e com a ajuda de Deus, Isabela pôde ficar com vida ou, pelo menos, com a
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esperança de tê-la. A rainha ordenou que prendessem a camareira e aencerrassem em um pequeno aposento do palácio, com intenção de castigá-la
pelo delito que havia praticado, embora ela procurasse desculpar-se dizendo
que, matando Isabela, oferecia um sacrifício ao céu, por tirar uma cristã da terra,evitando que seu filho se batesse em duelo.
Quando êstes tristes acontecimentos chegaram aos ouvidos de Recaredo,quase o fizeram perder o juízo. Isabela não perdeu a vida, mas a natureza fêzcom que ela ficasse sem as sobrancelhas, sem pestanas e sem cabelo, o rosto
inchado, descorada, a pele áspera e os olhos lacrimejantes. Ficou tão feia que, seantes parecia um milagre de beleza, agora parecia um monstro de feiúra. Todos
os que a conheciam julgavam que seria preferível ter ela morrido do que ficar
reduzida àquele estado. Apesar de tudo isto, Recaredo tornou a pedi-la àrainha, suplicando que a deixasse levar para casa, pois o amor que a ela
dedicava estendia-se à alma e não simplesmente ao corpo e que, se Isabelahavia perdido sua beleza, não havia, certamente, perdido suas infinitas
virtudes.- Assim seja - disse a rainha. - Levai-a, Recaredo, e tomai cuidado, porque
levais uma riquíssima jóia, encerrada em uma caixa de madeira tôsca; Deus
sabe que eu vos queria devolvê-la da maneira que a entregastes a mim; já que
não é possível, perdoai-me; talvez o castigo que eu der à autora de tal crimesatisfaça, em parte, o desejo de vingança.
Recaredo disse-lhe inúmeras palavras, procurando justificar a atitude dacamareira e suplicando-lhe que a perdoasse, pois as desculpas que ela
apresentava eram suficientes para perdoar insultos ainda maiores. Finalmente,entregaram-lhe Isabela e Recaredo levou-a à casa de seus pais; às ricas pérolas eao diamante a rainha reuniu outras jóias e outros vestidos, demonstrando o
grande amor dedicado a Isabela, que, durante dois meses, permaneceu naqueleestado, sem dar indício algum de poder voltar à sua antiga formosura; só
depois de dois meses é que a pele começou a cair, deixando ver sua formosacútis.
Por êsse tempo, os pais de Recaredo, acreditando que Isabela não voltasse
mais a ser o que era, decidiram mandar buscar a jovem da Escócia que antesestivera para casar com Recaredo, e fizeram isto sem que êle o soubesse, não
duvidando de que a formosura de sua nova prometida fizesse o filho esquecer aantiga beleza de Isabela, a quem pensavam enviar para a Espanha, emcompanhia de seus pais, dando-lhes riquezas suficientes para recompensá-los
dos prejuízos passados. Não se passara ainda um mês e meio quando, sem que
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Recaredo soubesse, a nova espôsa entrou pelas portas de sua casa, tão formosaque, depois da beleza de Isabela, não havia, em Londres, outra que a igualasse
em formosura. Recaredo assustou-se com a vinda inesperada da jovem e receou
que o choque de sua presença pudesse acabar com a vida de Isabela; paraafastar êsse temor, foi até o leito de Isabela, que se achava acompanhada de
seus pais e, mesmo diante dêles, disse-lhe:- Isabela de minha alma, meus pais, levados pelo grande amor que me
dedicam, não sabendo o quanto eu lhe quero, trouxeram para cá uma jovem
escocesa com a qual haviam planejado casar-me, antes que eu conhecesse teuverdadeiro valor; fizeram isto, penso eu, acreditando que a beleza desta jovem
apague de minha alma a tua lembrança; eu, Isabela, sempre te dediquei um
amor que vai muito além de um simples prazer material, pois, se tua formosurapôde cativar meus sentidos, tuas infinitas virtudes aprisionaram-me a alma, de
modo que, se te quis quando eras formosa, agora que perdeste a beleza adoro-te, e, para provar que digo a verdade, quero que me dês a tua mão.
Isabela estendeu-lhe a mão direita e êle, unindo-a com a sua, falou:- Juro pela fé católica, que meus pais me ensinaram, e pelo Deus
verdadeiro, que nos está ouvindo, Isabela de minha alma, juro ser teu espôso. E
como tal me considero desde já, se queres conceder-me a graça de me pertencer.
Isabela surpreendeu-se com as palavras de Recaredo e seus pais ficaramatônitos, pasmados. Ela não soube o que dizer-lhe; o que fêz foi somente beijar
as mãos de Recaredo muitas vêzes para depois dizer-lhe, Com voz entrecortadapelas lágrimas, que ela o aceitava e que se considerava sua escrava. Recaredo
beijou-lhe o rosto feio, coisa que não ousara fazer antes, quando êle eraformoso; os pais de Isabela solenizaram com ternas e copiosas lágrimas as festasdo esponsal; Recaredo disse-lhes que adiaria sempre o casamento com a jovem
escocesa, que se encontrava em sua casa, recomendando-lhes que não serecusassem, os três, a ir para a Espanha, quando seu pai lhes falasse da partida;
que partissem e o aguardassem em Cádiz ou em Sevilha, dentro de dois anos,pois dava-lhes êle sua palavra de ir procurá-los se o céu lhe concedesse vida atélá; disse-lhes ainda que, se não aparecesse dentro do prazo estabelecido,
estivessem êles certos de que algum motivo importante ou mesmo a mortehavia-se pôsto em seu caminho. Isabela respondeu-lhe que o esperaria, não só
por dois anos, mas pela vida tôda, até certificar-se de que êle ainda existia, pois,quando êle morresse, estaria lavrada também sua sentença de morte. Com estasternas palavras, renovaram-se as lágrimas de todos e Recaredo saiu para dizer
aos pais que de maneira alguma casar-se-ia com a jovem escocesa, sem antes ter
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ido a Roma, para ficar com a consciência tranqüila. Tais razões soube êleapontar aos seus pais e aos parentes de Clisterna - assim chamava-se a escocesa
- que todos, católicos também, acreditaram fàcilmente em suas palavras;
Clisterna, por sua vez, alegrou-se por ficar na casa de seu sogro até a volta deRecaredo, o que se verificaria dentro de um ano.
Depois de terem entrado em acôrdo, Clotaldo informou Recaredo quedecidira enviar, se a rainha permitisse, Isabela e seus pais à Espanha, pois talvezos ares da pátria fôssem benéficos para seu completo restabelecimento.
Recaredo, para não deixar transparecer suas intenções, respondeusimplesmente que o pai fizesse como achasse melhor, pedindo apenas que não
tirasse de Isabela riqueza alguma que a rainha lhe havia dado. Clotaldo
prometeu e, naquele mesmo dia, dirigiu-se à rainha para pedir-lhe licença decasar seu filho com Clisterna e enviar Isabela e seus pais à Espanha. A rainha
concordou com a decisão de Clotaldo, pois achou-a acertada; em seguida, sem apresença de advogados e sem levar a camareira a juízo, afastou-a de seu cargo e
condenou-a a pagar 10.000 escudos de ouro a Isabela; ao Conde Arnesto, por terlançado um desafio, desterrou-o por seis anos da Inglaterra. Quatro dias depois,Arnesto achava-se pronto para partir. A rainha chamou um rico mercador
francês, que habitava em Londres e que possuía representantes na França, Itália
e Espanha, entregou-lhe os 10.000 escudos, pedindo-lhe um comprovante daentrega do dinheiro, a fim de que esta quantia pudesse chegar às mãos do pai
de Isabela, em Sevilha, ou em qualquer outra praça da Espanha. O mercador,satisfeito em seus interêsses e ganância, disse à rainha que as cédulas seriam
enviadas a Sevilha em nome de outro mercador francês, seu representante; paratanto, teria êle que mandar uma carta a Paris ordenando que as cédulas fôssemfeitas por outro de seus representantes, a fim de que constassem as datas da
França e não as da Inglaterra, pois não pagariam assim o impôsto sôbre atransação de mercadorias entre os reinos; era bastante que mandasse um aviso
sem data, com suas credenciais, para que o dinheiro fôsse imediatamenteentregue ao negociante de Sevilha, pois o de Paris já estaria informado de tudo.A rainha tomou tôdas as providências para que as negociações saíssem a
contento; mandou chamar o dono de uma nave flamenga, que, no outro dia,deveria partir para a França, a fim de que pudesse apresentar na Espanha um
documento de partida de algum pôrto da França e não da Inglaterra; pediu-lhetambém, encarecidamente, que levasse Isabela e seus pais, deixando-os emalgum pôrto da Espanha, no primeiro que chegasse, zelando pela segurança
dêles e dispensando-lhes um bom tratamento.
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O homem, que desejava cair nas graças da rainha, prometeu fazer tudo oque ela havia pedido, dizendo que os deixaria em Lisboa, Cádiz ou Sevilha.
Tomadas, pois, tôdas as precauções, a rainha mandou dizer a Clotaldo que
nada tirasse a Isabela do que lhe havia dado, quer fôssem jóias ou vestidos. Nodia seguinte, Isabela e seus pais vieram despedir-se da rainha, que os recebeu
carinhosamente. Entregou-lhe a carta do mercador e muitos outros presentes,em dinheiro e coisas para a viagem; Isabela agradeceu de tal modo à rainha queesta se viu ainda na obrigação de lhe fazer mais favores; despediu-se Isabela de
tôdas as damas da côrte, que, vendo agora apagada a beleza da jovem, nãoqueriam que ela partisse, pois não teriam mais que invejar sua formosura, e
porque sentiam-se felizes de poder mostrar suas graças, suas qualidades. A
rainha abraçou os três, desejando-lhes boa sorte, recomendando-os ao capitãoda nave, pedindo a Isabela que mandasse avisá-la quando chegasse à Espanha,
enviando sempre notícias de seu estado de saúde, por intermédio do mercadorfrancês. Clotaldo, sua mulher e tôdas as pessoas da casa choraram quando
Isabela partiu naquela mesma tarde, pois ela era muito querida de todos.Recaredo não estêve presente à despedida porque, para não dar demonstraçãode seus sentimentos, fêz com que alguns amigos o levassem à caça. Foram
inúmeros os presentes que a Senhora Catalina deu a Isabela; infinitos foram os
abraços, abundantes as lágrimas, inúmeras as recomendações para Isabelaescrever; pais e filha a tudo responderam afirmativamente, de modo que,
embora chorando, ficaram todos satisfeitos.A embarcação içou as velas naquela noite; como o vento fôsse favorável e
tivessem êles tomado tôdas as providências necessárias, puderam, daí a trintadias, entrar na barra de Cádiz, onde Isabela e seus pais desembarcaram;reconhecidos por tôdas as pessoas da cidade, foram recebidos com muita
alegria.Receberam felicitações por terem encontrado Isabela, por terem
conseguido libertar-se dos mouros que os haviam aprisionado e por teremrecebido os favores dos inglêses, fato de que tomaram conhecimento atravésdos escravos, que a liberalidade de Recaredo tornara livres. Por êsse tempo,
Isabela dava mostras de retornar à sua antiga formosura. Permaneceram emCádiz pouco mais de um mês, fazendo revisões no navio; depois disso foram a
Sevilha para ver se recebiam os 10.000 escudos, que deveriam chegar porintermédio do mercador francês; dois dias depois, desembarcaram em Sevilha,procuraram o representante do mercador, encontraram-no, entregaram-lhe a
carta que traziam de Londres, êle a reconheceu como verdadeira, mas não lhes
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podia dar o dinheiro enquanto não recebesse o aviso e a ordem de pagamentode Paris, mas que certamente não deveria demorar.
Os pais de Isabela alugaram uma casa vizinha ao Mosteiro de Santa Paula,
onde se encontrava uma sobrinha dêles, que possuía voz belíssima einigualável, e o fizeram porque Isabela havia dito a Recaredo que, quando
viesse buscá-la haveria de encontrá-la em Sevilha e que, ali chegando, era sóperguntar pela monja de melhor voz em todo o mosteiro, porque esta indicaçãoêle não haveria de esquecer fàcilmente e também porque sua prima, a freira de
Santa Paula, ensinar-lhe-ia sua casa. Passaram-se quarenta dias até quechegassem os visos de Paris; aí, então, o mercador francês entregou os 10.000
escudos a Isabela, que os passou às mãos de seus pais; com êsse dinheiro e com
mais algum que conseguiram, vendendo algumas das inúmeras jóias de Isabela,pôde seu pai voltar a ser comerciante, fato que admirou a todos os que
souberam das inúmeras perdas por êle sofridas.Em poucos meses obteve êle o crédito que perdera e a beleza de Isabela
voltou a ser o que fôra e de tal maneira que, falando-se em beleza, todos eramunânimes em conceder os louros à espanhola inglêsa, apelido pelo qual Isabelaera conhecida em tôda a cidade. Por intermédio do mercador francês de
Sevilha, Isabela e seus pais enviaram cartas à rainha da Inglaterra falando de
sua chegada e agradecendo os inúmeros favores que dela haviam recebido;escreveram também a Clotaldo e a Catalina. Da rainha, não obtiveram resposta,
mas Clotaldo e sua mulher responderam-lhes, dizendo-se alegres por terem êleschegado a salvo e comunicavam-lhes que Recaredo, um dia após a partida
dêles, partira também para a França, de onde dirigir-se-ia depois para outroslugares, procurando assegurar a paz de sua consciência; acrescentavam, no fim,outras palavras amorosas e ofereceram-se para auxiliá-los no que pudessem.
Esta carta obteve uma resposta cortês, amorosa e agradecida.Isabela imaginou logo que Recaredo deixara a Inglaterra para vir buscá-la
e, alimentando essa esperança, sentia-se muito feliz, procurando levar uma vidasimples e virtuosa, a fim de que, quando Recaredo chegasse a Sevilha, ouvissefalar mais de suas virtudes do que de qualquer outra coisa. Saía muito pouco de
casa e, quando o fazia, era para ir ao mosteiro; os únicos elogios que recebiaeram os que se podem receber em um convento. Em sua casa, em seu oratório,
dirigia o pensamento a Deus e ao Espírito Santo; jamais visitou o rio, jamaispassou por Triana, nem mesmo estêve festejando em meio ao povo, no campode Tablada ou na porta de Jerez, o dia de São Sebastião, que é festejado por um
número incalculável de criaturas; não assistiu a nenhuma festa pública de
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Sevilha; vivia em seu recolhimento e para suas orações, esperando sempre achegada de Recaredo. Êste seu retraimento aguçava a curiosidade e os desejos
não só dos janotas do bairro, como também de todos aquêles que a tivessem
visto, mesmo que fôsse uma só vez; por esta razão, fizeram-lhe muitas canções,que foram cantadas à noite em sua rua. Muitos foram os que se interessaram
por Isabela e não faltou quem fizesse a tolice de recorrer a feitiços; Isabela,porém, permanecia imperturbável, como se fôsse uma rocha em meio ao mar:as águas chegam a tocá-la, mas nem as ondas nem os ventos conseguem movê-
la. Passou-se um ano e meio e a esperança de tornar a ver Recaredo agitavamais e mais o coração de Isabela; por êsse tempo, quando a môça imaginava
que seu prometido estava por chegar, quando já o via diante dos olhos e lhe
perguntava que motivos o teriam feito demorar-se tanto, quando já chegavam aseus ouvidos as desculpas que êle havia de dar e quando ela se via perdoando-
o, abraçando-o, como se recebesse a metade de sua alma, chegou a suas mãosuma carta da Senhora Catalina, de Londres, datada de cinqüenta dias antes,
com os seguintes dizeres:“Filha de minha alma. Certamente conheceste Guilharte, o pajem de
Recaredo; pois bem, foi êle quem acompanhou, como tive oportunidade de
contar já em outra carta, foi êle quem acompanhou Recaredo em sua viagem à
França e a outros lugares e foi êle próprio quem, dezesseis meses após a partidade meu filho, entrou, ontem, pela nossa porta, dizendo que o Conde Arnesto
havia matado Recaredo a traição, na França. Imagina, minha filha, comoficamos eu, seu pai e sua futura espôsa ao recebermos tais notícias; estamos
certos de que a desventura nos acompanha. Clotaldo e eu te pedimos outra vez,filha de minha alma, que recomendes a Deus a alma de Recaredo, pois êle bemo merece pelo muito que te quis; pede também a Nosso Senhor que nos dê
paciência e nos assista na hora de nossa morte, que nós pediremos também queêle dê, a ti e a teus pais, muitos anos de vida”.
A letra e a assinatura de tal carta fizeram com que Isabela não duvidasseda morte de seu espôso; conhecia ela muito bem o pajem Guilharte, sabia queêle não mentia e que não tinha motivos para simular aquela morte; nem a
Senhora Catalina seria capaz de mentir-lhe ou inventar-lhe história algumaporque não tinha nenhum interêsse em enviar-lhe tão tristes notícias; nada,
portanto, poderia fazê-la deixar de acreditar nesta nova desventura que acabavade atingi-la. Ao terminar de ler a carta, sem derramar lágrimas e sem darmostras de que sofria, o rosto tranqüilo, o coração aparentemente confortado,
levantou-se, dirigiu-se ao seu oratório e, ajoelhando-se perante um crucifixo, fêz
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votos de ser monja, pois, tendo morrido seu espôso, nada mais a impediriaagora. Seus pais procuraram esconder a grande dor que a notícia lhes causara, a
fim de poderem confortar Isabela em sua amargura, mas foi ela quem,
reconfortando-se, sentindo-se firme no santo e cristão propósito que fizera,procurou consolar os pais. Falou-lhes também de suas intenções e êles
aconselharam-na a não levar seu plano a efeito, até que passassem os dois anosde prazo pedidos por Recaredo, podendo-se também, desta forma, confirmar-sea notícia de sua morte, e ela poderia saber, então, se realmente queria entrar
para o convento.Isabela assim fêz e, no correr dos seis meses e meio que faltavam para
inteirar os dois anos, passou exercitando-se como religiosa e preparando-se
para entrar no mosteiro que escolhera, o de Santa Paula, onde estava sua prima.Passaram-se os dois anos e chegou o dia em que Isabela deveria tomar o
hábito; a notícia espalhou-se por tôda a cidade e todos aquêles que a conheciam,ou de vista ou de nome, foram ao mosteiro para vê-la; os pais de Isabela
convidaram seus amigos e êstes convidaram também outras pessoas, de modoque ela teve um dos mais belos acompanhamentos que, em semelhante ocasião,se viu em Sevilha. Entre os acompanhantes estavam o assistente e o provedor
da igreja, o vigário e tôdas as senhoras e senhores importantes que haviam na
cidade, pois todos desejavam ardentemente ver o sol da formosura de Isabela, oque, por tanto tempo, lhes fôra negado; as jovens que vão receber o hábito
costumam vestir-se da melhor maneira possível, apresentando-se como alguémque se despede de uma vida cheia de esplendores, por isso, Isabela quis vestir-
se ricamente; pôs aquêle mesmo vestido que usara quando fôra ver a rainha daInglaterra pela primeira vez e que, como já dissemos, era riquíssimo e vistoso;todos puderam ver as pérolas e o famoso diamante, que eram de imenso valor.
Assim, enfeitada, em tôda a sua elegância, fêz com que todos avaliassem agrandeza de Deus; Isabela saiu de sua casa a pé, pois, morando tão perto do
mosteiro, não havia necessidade de se utilizar de carros e carruagens; aafluência de pessoas foi tão grande que os componentes do cortejoarrependeram-se de não se terem servido de carros para entrar no mosteiro;
algumas pessoas louvavam-lhe os pais, outras louvavam a Deus pela suaincomparável beleza; uns ficavam na ponta dos pés para vê-la, outros, depois
de vê-la uma vez, corriam mais adiante para vê-la de nôvo; havia, entretanto,um homem vestido como prisioneiro, que acabava de ser resgatado, com osímbolo da Santa Trindade no peito, sinal de que havia sido libertado pelos
frades da Ordem da Mercê, que era o mais solícito.
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Quando Isabela, recebida segundo o uso pela abadêssa e pelas freiras,punha os pés na porta do convento, êste prisioneiro gritou, tão alto quanto
pôde:
- Pára, Isabela, pára! Enquanto eu fôr vivo tu não poderás ser freira.Ouvindo estas palavras, Isabela e seus pais voltaram-se e viram que o
escravo, abrindo caminho entre tôda aquela multidão, dirigia-se para onde êlesse encontravam; caíra-lhe da cabeça um barrete azul, deixando à mostra unscabelos crespos, côr de ouro, desalinhados, um rosto alvo como a neve e corado
como o carmim, branco e corado, sinais que fizeram todos julgarem-noestrangeiro. Não foi sem dificuldade que êle conseguiu chegar até onde estava
Isabela e, tomando-a pela mão, disse-lhe:
- Não me reconheces, Isabela? Sou Recaredo, teu espôso.- Reconheço - disse Isabela -, se não és um fantasma que veio para me tirar
o sossêgo.Seus pais tocaram-no, olharam-no atentamente e reconheceram nêle, por
fim, Recaredo, que, com lágrimas nos olhos, de joelhos, perante Isabela,suplicava-lhe que aquêles trajes estranhos e a má situação financeira em que seencontrava não a impedissem de cumprir a palavra que ela lhe dera. Isabela,
apesar de ainda vivamente impressionada pela carta da mãe de Recaredo, que
lhe falava da morte dêle, quis acreditar mais em seus olhos e no que via, eassim, abraçando o jovem prisioneiro, disse-lhe:
- Vós, sem dúvida alguma, meu senhor, sois a criatura que poderáimpedir-me de realizar meu propósito cristão; sois, sem dúvida alguma, meu
senhor, a metade de minha alma, pois sois meu verdadeiro espôso; trago vossaimagem guardada em minha memória e em meu coração; as notícias de vossamorte, enviadas por minha senhora, vossa mãe, não me tiraram a vida, mas
fizeram-me escolher uma vida de recolhimento da qual queria fazer parte;porém, já que Deus parece ter disposto os fatos de outra maneira, não podemos
nem devemos opor-nos; vinde, senhor, à casa de meus pais, pois ela vospertence; ali podereis tornar-vos meu senhor, de acôrdo com os preceitos dasanta fé católica.
Todos os presentes ouviram essas palavras; o assistente, o vigário, oprovedor do arcebispo admiraram-se ao ouvi-las e quiseram saber logo do que
se tratava, quiseram saber quem era aquêle estrangeiro e a respeito de quecasamento falava. O pai de Isabela procurava responder a tôdas as suasperguntas, acrescentando depois que aquela história exigia outro lugar para ser
contada e algum tempo para que se pudesse narrá-la; em seguida, pediu a todos
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os religiosos que fôssem à sua casa, tão próxima dali, pois lá haveria de contar averdade, a fim de que todos ficassem satisfeitos e ficassem admirados com a
grandiosidade e estranheza do caso. Nisto, um dos presentes, levantando a voz,
disse:- Senhores, êste jovem é um grande corsário inglês; eu o conheço, é aquêle
que, faz pouco menos de dois anos, tomou dos corsários de Argel a naveportuguêsa que vinha das Índias; não há dúvida, eu o conheço, pois foi êlequem me deu liberdade e dinheiro para vir à Espanha, a mim e a outros
trezentos prisioneiros.Estas palavras alvoroçaram tôda aquela gente, despertando nela o desejo
de saber claramente a respeito de fatos tão complicados. Tôdas as pessoas
importantes, o assistente do arcebispo e demais autoridades eclesiásticasvoltaram para acompanhar Isabela até sua casa, deixando as religiosas tristes,
confusas e chorando por perderem a companhia da formosa Isabela, que, tendochegado à sua casa, fêz com que todos os seus acompanhantes se acomodassem
em uma grande sala que nela havia; Recaredo quis encarregar-se de contar tôdaa história, porém, pareceu-lhe melhor confiar na discrição de Isabela e em suamaneira de falar, pois êle sabia que não falava perfeitamente a língua
castelhana. Calaram-se todos os presentes e voltaram a atenção a Isabela, que
passou a narrar os fatos, desde o dia em que Clotaldo a roubou de Cádiz até odia em que para ali voltou; falou da batalha de Recaredo contra os turcos, da
liberalidade que êle tivera para com os cristãos, da promessa que haviam feitode se tornarem marido e mulher, do prazo de dois anos que Recaredo lhe
pedira, das notícias da morte dêle, notícias estas que a levaram a decidir-se pelavida religiosa; elogiou a liberalidade da rainha, o espírito cristão de Recaredo ede seus pais e, finalizando, pediu a Recaredo para contar o que havia
acontecido desde que êle saíra de Londres, até o tempo presente, em que seapresentava com roupas de prisioneiro e com mostras de ter sido libertado por
esmola.- É verdade - falou Recaredo. - Resumirei em poucas palavras os difíceis
trabalhos pelos quais passei. Depois que saí de Londres, por recusar-me a casar
com Clisterna, aquela jovem católica, da qual Isabela já teve oportunidade defalar, levando em minha companhia Guilharte, o pajem, que, como falou minha
mãe em sua carta, levou a Londres a notícia de minha morte, cheguei a Roma,atravessando antes a França, onde minha alma se alegrou e onde minha fé sefortaleceu; beijei os pés do sumo pontífice, confessei meus pecados,
penitenciando-me dêles; êle absolveu-me e deu-me os papéis necessários para
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comprovar minha confissão e penitência, assim como minha conversão à SantaMadre Igreja. Depois disso, visitei os inúmeros lugares santos daquela santa
cidade e, dos 2.000 escudos de ouro que possuía, troquei 1600 por dinheiro
florentino; com os 400 que me ficaram, parti para Gênova, com intenção de virpara a Espanha, pois eu sabia que duas galeras estavam prestes a partir.
Cheguei com Guilharte, meu criado, a um lugar chamado Água Pendente; é oúltimo lugar sob os domínios do papa, vindo-se de Roma para Florença; desciem uma hospedaria ou pousada, onde me encontrei com o Conde Arnesto, meu
inimigo mortal, que, segundo pude perceber, acompanhado de quatro criadosdisfarçados, ia, secretamente, para Roma, e o fazia mais por curiosidade que por
ser católico; fechei-me em um dos aposentos com meu criado, decidido a
procurar outra hospedaria, logo que a noite chegasse; não o fiz, entretanto,porque a aparência despreocupada do conde e de seus criados fizeram-me
pensar que êles não me tivessem reconhecido; jantei em meus aposentos, fecheia porta, examinei minha espada, rezei, mas não quis deitar-me; meu criado
dormiu e eu, recostado numa cadeira, adormeci; pouco depois da meia-noite,quatro pistoletes acordaram-me para me fazer dormir o sono eterno, pois, comodepois fiquei sabendo, o conde e seus criados dispararam contra mim e,
julgando que eu estivesse morto, montaram os cavalos que já estavam prontos e
partiram, dizendo ao dono da hospedaria que me enterrasse, porque eu erahomem importante.
“Meu criado, segundo me disse depois o hospedeiro, despertou e pulouuma janela que dava para o pátio, dizendo: “Ai de mim, mataram meu senhor!',
deixou a hospedaria e o deve ter feito com muito mêdo, pois só parou emLondres e levou a notícia de minha morte. O pessoal da estalagem subiu eencontrou-me com o corpo varado por quatro balas e por muito chumbo, mas
nenhuma das feridas foi mortal. Como católico que sou, quis confessar-me ereceber os sacramentos; fui atendido, dispensaram-me todos os cuidados, mas
não pude caminhar durante dois meses, no fim dos quais fui até Gênova, ondeencontrei apenas duas fragatas que eu e outros dois espanhóis importantesalugamos, uma para que fôsse adiante a fim de reconhecer o caminho e outra
onde pudéssemos viajar; tomadas estas precauções, embarcamos, procurandonão nos afastar da costa da França; sem que esperássemos, fomos abordados
por duas galeotas turcas que saíram de uma enseada; uma delas cortou-nos ocaminho do mar, a outra, o caminho da terra, e, assim, conseguiram aprisionar-nos; quando subimos às galeotas, despiram-nos até deixar-nos completamente
nus; tiraram tudo o que as fragatas levavam e deixaram-nas ir ter à praia, pois
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não quiseram afundá-las, dizendo que nossas embarcações poderiam trazer-lhes outras prêsas; ninguém poderá duvidar do quanto sofri, ao tornar-me
escravo, e, principalmente, por perder os documentos e a cédula de 1600
ducados, que trazia de Roma em um baú; quis a fortuna, entretanto, que o baúfôsse parar nas mãos de um espanhol, escravo e cristão, que o guardou, pois, se
chegasse às mãos dos turcos, poderia servir para me resgatar, porque,certamente, êles haveriam de verificar a origem da cédula e procurar obter seuvalor em dinheiro.
“Levaram-nos para Argel, onde encontrei-me com os padres da SantíssimaTrindade; falei com êles e expliquei-lhes quem eu era e êles, movidos pela
caridade, resgataram-me, embora eu fôsse estrangeiro, dando por mim 300
ducados, 100 de início e 200 quando o barco que trazia o dinheiro viesse pararesgatar um padre daquela ordem, que se encontrava em Argel, pois exigiram
por êle 4.000 ducados e êle já havia gasto o dinheiro que possuía. E isso porquea caridade e desprendimento dêstes padres é tanta que êles chegam a dar sua
liberdade pela alheia; tornam-se escravos para libertar escravos. Para minhamaior felicidade, pude encontrar o baú que perdera, com os documentos e acédula; mostrei-a ao abençoado padre que lhe havia resgatado e ofereci-lhe 500
ducados além do preço do meu resgate, para ajudá-lo. A nave, que trazia o
dinheiro, demorou quase um ano para voltar, e o que aconteceu durante êsteano, se tivesse que contar, daria para compor outra história; direi apenas que fui
reconhecido por um dos vinte turcos aos quais libertei, juntamente com oscristãos, e êle mostrou-se muito agradecido, pois não quis denunciar-me; se os
turcos me reconhecessem e se lembrassem de que eu pusera a pique seus doisnavios e lhes havia tirado das mãos a grande nave que vinha da índia, ou levar-me-iam à presença do paxá, ou tirar-me-iam a vida; se me levassem à presença
do grão-senhor, certamente eu jamais recobraria minha liberdade. Finalmente, opadre redentor veio para a Espanha comigo e mais cinqüenta cristãos, que
foram resgatados. Em Valência, separamo-nos e cada um partiu para onde quis,levando as insígnias de sua liberdade, que são êstes hábitos; cheguei hoje a estacidade, com tanto desejo de ver Isabela que, sem preocupar-me com mais nada,
perguntei onde ficava o mosteiro, pois êle haveria de me dar notícias de minhaespôsa; o que aconteceu daí por diante todos já sabem, mas, para que possam
acreditar em minha história, que tanto tem de assombrosa quanto deverdadeira, é preciso que eu mostre os papéis dos quais lhes falei.” Dizendoisto, tirou de um baú os papéis aos quais se referia, colocando-os nas mãos do
provedor, que, junto com o assistente, examinou-os, nada encontrando que
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pudesse pôr em dúvida as palavras de Recaredo. E, para que elas se tornassemmais verdadeiras, quis o céu que o mercador florentino em nome de quem
estava a cédula de 2600 ducados estivesse presente, e pedisse para ver a cédula;
mostraram-na, êle reconheceu-a como válida e aceitou-a logo, pois há muitosmeses já lhe havia chegado o aviso de tal cédula; tudo isto fêz com que à
admiração se acrescentasse admiração e ao espanto, espanto. Recaredo dissenovamente que oferecia os 500 ducados que prometera. O assistente abraçouRecaredo, Isabela e seus pais, colocando-se cortesmente à disposição de todos.
Os outros dois sacerdotes fizeram o mesmo e pediram a Isabela que narrassetôda a história por escrito, a fim de que o arcebispo a lesse. Isabela disse que
sim. O grande silêncio em que todos os circunstantes se haviam mergulhado
para escutar aquela história estranha rompeu-se, pois queriam todos dar graçasa Deus pelas maravilhas que êle realizara; desde o mais rico até o mais humilde,
todos foram cumprimentar Recaredo, Isabela e seus pais, deixando-os a sós,logo em seguida. O assistente do arcebispo foi convidado para honrar, com sua
presença, as bodas de Recaredo e Isabela, que se realizariam dali a oito dias; oassistente sentiu-se muito honrado e, dali a oito dias, acompanhado pelaspessoas mais importantes da cidade, lá se encontrou. Os pais de Isabela
procuraram por todos os meios recompensá-la por seu sofrimento e ela,
abençoada pelo céu, auxiliada por suas inúmeras virtudes, a despeito de tantoscontratempos, encontrou marido tão bom como Recaredo, em cuja companhia,
pensa-se, vive até hoje na casa que alugaram, nas proximidades de Santa Paula,e que foi comprada, depois, aos herdeiros de um fidalgo burgalês, chamado
Hernando de Cifuentes.Esta novela pode ensinar a todos nós a fôrça da virtude e da formosura,
pois ambas, quer isoladas, quer unidas, são suficientes para apaixonar até
mesmo os inimigos; pode mostrar ainda como os céus podem fazer das maioresadversidades nossos maiores benefícios.
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O casamento enganoso
Saía do Hospital da Ressurreição, situado em Valladolid, além da Porta doCampo, um soldado que, por usar a espada como bordão, pela fraqueza de suas
pernas e pela palidez de seu rosto, demonstrava claramente - embora nãoestivesse fazendo muito calor - que deveria ter transpirado em vinte dias tôda a
disposição que, com tôda certeza, adquirira numa hora.
Andava cambaleando, tropeçando a cada momento, como umconvalescente, e, ao transpor a porta da cidade, percebeu vir em sua direção um
amigo a quem não via há mais de seis meses. Este, persignando-se como setivesse visto alguma assombração, aproximou-se e lhe disse:
- Que aconteceu, Senhor Alferes Campuzano? É possível que esteja nessaterra? Imaginava-o em Flandres, empunhando a lança, e não por êstes lados,arrastando a espada. Que palidez, que fraqueza é essa?
Campuzano respondeu:
- Se estou ou não nessa terra, Senhor Licenciado Peralta, minha presençapode responder-lhe. Quanto às outras perguntas, nada tenho a responder,
senão que estou saindo daqui do hospital, onde agüentei quarenta suadouros,por causa de uma mulher a quem escolhi para espôsa, coisa que jamais deveria
ter feito.- Vossa Mercê casou-se? - perguntou Peralta.- Sim senhor - respondeu Campuzano.
- Será que foi por amor? - disse Peralta, acrescentando:- Tais casamentos trazem sempre o arrependimento.
- Não saberei dizer se foi por amor - respondeu o alferes -, embora possagarantir que foi por amargor, pois do meu casamento, ou cansamento, carregotais coisas no corpo e na alma que as do corpo, para curá-las, me custaram
quarenta suadouros, mas para as da alma não encontro um remédio que possaaliviálas. Mas Vossa Mercê há de me perdoar: não posso manter longas
conversas na rua. Outro dia, mais comodamente, contar-lhe-ei, minhasaventuras; são as mais novas e originais que Vossa Mercê terá ouvido em todosos seus longos dias.
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- Não há de ser assim - disse o licenciado -, pois desejo que venha à minhapousada e ali choraremos juntos nossas mágoas. Além disso, tenho uma comida
própria para convalescentes; embora tenha sido preparada para dois, meu
criado se contentará com um pastel. Se a sua convalescença permitir, umasfatias de presunto de Rutenos servirão para nos abrir o apetite. E ofereço isso de
boa vontade, agora e tôdas as vêzes que Vossa Mercê desejar.Campuzano agradeceu-lhe, aceitou o convite e os oferecimentos. Foram
ambos a São Lourenço, onde ouviram missa. Depois, Peralta levou o amigo à
sua casa, dando-lhe o prometido e insistindo para que repetisse. Tendo êleacabado de comer, pediu-lhe Peralta para narrar os acontecimentos que tanto o
haviam mortificado. Campuzano não se fêz de rogado e começou a falar:
- Vossa Mercê há de se lembrar, Senhor Licenciado Peralta, como fui, nestacidade, amigo do Capitão Pedro de Herrera, que agora está em Flandres.
- Lembro-me, lembro-me- respondeu Peralta.- Pois um dia - prosseguiu Campuzano -, quando mal acabávamos a
refeição na Pousada da Solana, onde vivíamos, entraram duas mulheres de beloaspecto, acompanhadas por dois criados; uma delas pôs-se logo a falar com ocapitão, encostados ambos a um canto da janela; a outra sentou-se numa cadeira
junto à minha, cobrindo-se com o xale até o pescoço, não deixando ver o seu
rosto mais do que a transparência do xale permitia. Embora lhe suplicassecortesmente que se descobrisse, nada consegui. Para completar a história, fôsse
de propósito ou por acaso, exibiu ela suas mãos muito brancas, cobertas pormagníficas jóias. Eu me sentia importantíssimo com aquela grande corrente que
Vossa Mercê talvez tenha conhecido, com meu chapéu de plumas e cordões,com o traje de côres e a arrogância de um soldado, tão imponente aos olhos deminha vaidade que me sentia flutuar. Com tudo isso, roguei-lhe que se
descobrisse, ao que ela respondeu:- Não sejais importuno; tenho minha casa; fazei com que um pajem me
siga, pois, embora seja mais honrada do que faz crer esta resposta, quero ver sevossa discrição corresponde à vossa galhardia; folgarei que me vejais.
“Beijei-lhe as mãos pelo grande favor que me fazia e em paga lhe prometi
montes de ouro. O capitão concluiu sua conversa; elas se foram, seguidas pelomeu criado. O capitão disse-me que a dama lhe pedira para levar cartas a outro
capitão, em Flandres. Dizia serem para um primo, mas êle bem sabia que erampara seu amante. Eu fiquei abrasado pelas mãos de neve que havia visto eansioso pelo rosto que desejava ver. assim, no dia seguinte, guiado por meu
pajem, fui visitá-la. Dei com uma bela residência e com uma mulher de quase
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trinta anos, a quem reconheci pelas mãos. Não era excepcionalmente bela, maspodia prender-nos pelo trato, pois possuía um tom de voz tão suave e
penetrante que ia até a alma. Mantivemos longos e amorosos colóquios;
blasonei, garganteei, prometi; dei enfim tôdas as demonstrações que mepareceram necessárias para tornar-me benquisto, mas ela parecia ter sido feita
para ouvir maiores oferecimentos e razões. Ouvi-a, mas parecia não acreditar.Para concluir: nossos colóquios floresceram durante quatro dias. Continuei avisitá-la, sem chegar, porém, a colhêr o fruto desejado.
“Nos momentos em que a visitei, sempre encontrei a casa livre; jamaispercebi traços de parentes reais ou fingidos. Servia-lhe certa môça mais astuta
que ingênua. Tratando meus amôres como soldado em vésperas de partida,
apertei, finalmente, a Senhora Dona Estefânia de Caicedo - pois êste é o nomede quem me deixou assim -, que respondeu: “Seria ingenuidade, Alferes
Campuzano, se quisesse vender-me a Vossa Mercê como santa; tenho sidopecadora e ainda sou, embora não dê motivos para que os vizinhos murmurem
e os empregados comentem.Nem herdei coisa alguma de meus parentes, mas, apesar disso, o que
tenho aqui em casa vale, bem contados, 2500 escudos; e isto em coisas que,
vendidas, haverão de se converter em bom dinheiro. Com esta fortuna, procuro
marido a quem me entregar, a quem obedecer e a quem, juntamente com oarranjo de minha vida, entregarei uma incrível solicitude em agradar e servir.
Príncipe algum terá cozinheiro mais cuidadoso ou que melhor saiba dar o pontonos guisados. Poderei ser um bom mordomo, um ótimo cozinheiro e melhor
senhora na sala; na verdade, sei mandar e sei fazer com que me obedeçam.Nada desperdiço e economizo muito. O dinheiro não vale menos e sim maisquando gasto sob minha orientação. A roupa branca que possuo, que é muita e
da melhor qualidade, não foi adquirida em lojas ou vendedores ambulantes;fizeram-na êstes dedos e os de minhas criadas e, se fôsse possível tecê-la em
casa, assim teríamos feito.Digo estas coisas sem modéstia, pois não há mal algum quando a
necessidade nos obriga a dizê-las. Acrescento, finalmente, que procuro marido
que me ampare, dirija e honre, e não amante que se aproveite e depois vá falarmal de mim. Se Vossa Mercê souber apreciar, neste momento, a prenda que lhe
é oferecida, estou à vossa disposição, sujeita a tudo quanto Vossa Mercêobrigar, e isto sem me pôr à venda, queé a mesma coisa que andar em língua decasamenteiros; não há nada para con o todo como as suas próprias partes.
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“Eu, que estava com o juízo não na cabeça, mas nos calcanhares, julgandoa felicidade ainda maior do que a imaginação me pintava e oferecendo-se-me
tão à mão tal quantidade de bens - eu já os contemplava convertidos em
dinheiro -, sem fazer mais comentários do que aquêles a que dava lugar aventura, que me enfraquecia o raciocínio, respondi-lhe que me sentia muito
alegre e afortunado por haver-me dado o céu, quase por milagre, talcompanheira, para fazê-la senhora da minha vontade e dos meus bens, não tãopoucos que não valessem juntos com aquela corrente que trazia no peito e
outras pequenas jóias que estavam em casa, além das minhas galas de soldado,mais de 2000 ducados, que, juntos aos mil e quinhentos dela, formavam quantia
mais do que suficiente para vivermos na aldeia onde nasci e onde possuía
alguns bens; tais haveres, convertidos em dinheiro, renderiam seus frutos com otempo, permitindo-nos uma vida alegre e descansada. Em suma, naquela noite
acertamos o casamento e esclarecemos nossa vida de solteiros nos próximos trêsdias de festas que vieram. logo pela Páscoa fizeram-se os proclamas e no quarto
dia nos casamos, encontrando-se presentes dois amigos meus e um rapaz quedizia ser primo dela. Tratei-o como a um parente, com palavras amáveis, comoforam as que até então êle dirigira à minha nova espôsa; falava, no entanto, com
intenção tão falsa e hipócrita que prefiro calar, porque, embora esteja dizendo
somente a verdade, não são verdades de confessionário, dessas que não podemdeixar de ser ditas.
“O criado levou meu baú da pousada para a casa de minha mulher.Encerrei nêle, diante dela, a minha esplêndida corrente, mostrando-lhe outras
três ou quatro, não do mesmo tamanho, porém da melhor qualidade, assimcomo três ou quatro cintos de diversos tipos. Mostrei-lhe também as roupas echapéus, entregando-lhe para as despesas da casa os 400 reais que possuía. Seis
dias desfrutei calmamente a lua-de-mel, como genro pobre em casa de sogrorico. Pisei custosos tapêtes, dormi em colchas da Holanda, alumiei-me com
candelabros de prata. Almoçava na cama, levantando-me às 11 horas, comendoàs 12 e fazendo a sesta àsduas. Dona Estefânia e a criada excediam-se emagrados e cuidados. Meu criado, que até então fôra lerdo e preguiçoso,
transformou-se num azougue. Nos momentos que Dona Estefânia não passavaao meu lado, era fácil encontrá-la na cozinha, solícita em ordenar guisados que
me despertassem o gôsto e avivassem o apetite. Minhas camisas, colarinhos elenços, pelo perfume que exalavam, pareciam um nôvo Aranjuez de flôres,banhados como eram em água de flor de laranjeira.
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“Êstes dias passaram voando como passam os anos sob o império dotempo; por ver-me tão regalado e bem servido, transformara-se em boa a má
intenção com que começara aquêle negócio. Ao fim dêles, certa manhã, quando
ainda no leito com Dona Estefânia, chamaram com grandes batidas na porta. Acriada surgiu à janela e disse:
- Oh! Seja bem-vinda! Vejam só, veio antes do que esperávamos.“- Quem é que chegou, criatura? - perguntei.- Quem? - respondeu ela. - Minha senhora, Dona Clementa Bueso,
acompanhada por Dom Lope Meléndez de Almendárez, dois criados e a aiaHortigosa.
- Corre, mulher, e abre-lhes a porta, que já vou - disse Dona Estefânia à
criada, que parara, sem saber que atitude tomar. - E vós, senhor, pelo amor queme tendes, não vos assusteis nem respondais em meu nome a coisa alguma que
contra mim ouvirdes.- Mas quem se atreverá a ofender-vos em minha presença? Dizei: que
gente é essa que tanto alvorôço vos causa?- Não tenho tempo para responder-vos - disse Dona Estefânia. - Sabei
somente que tudo o que se passará é fingido e visa a certo desígnio, o qual
sabereis depois.
“Quis replicar, mas a Senhora Dona Clementa Bueso não permitiu, poisentrou no quarto arrastando a cauda do longo vestido verde todo enfeitado com
cordões de ouro, capinha da mesma espécie, chapéu de plumas verdes, brancase vermelhas e rico cinto de ouro. Metade de seu rosto estava oculto por um véu
leve. Em sua companhia entrou o Senhor Dom Lope Meléndez de Almendárez,não menos bizarro nem menos ricamente ataviado.
“Dona Hortigosa, que foi a primeira a falar, exclamou:
- Jesus! Que é isso? Ocupando oleito da Senhora Clementa e além dissocom um homem? Que milagres vejo nesta casa! Não há dúvida de que Dona
Estefânia tomou o pé pela mão, abusando da amizade de minha senhora.“- Tendes razão, Dona Hortigosa, mas a culpa é minha. Que jamais me
aborreça novamente por arranjar amigas que não o sabem ser senão quando o
desejam!“A tudo isto, Dona Estefânia respondeu:
- Não se aborreça, Dona Clementa Bueso, e creia que não é sem mistérioque a senhora vê estas coisas em sua casa; quando souber da verdade, sei queficarei desculpada e Vossa Mercê sem nenhum motivo de queixa.
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“A essas alturas eu já vestira as calças e a camisa; Dona Estefânia,tomando-me pelo braço, levou-me a outro quarto e ali me disse que aquela sua
amiga desejava enganar Dom Lope, com quem pretendia casar-se, que o engano
era dar-lhe a entender que aquela casa e tudo quanto nela estava lhe pertencia edisso tudo pensava fazer seu dote. Realizado o casamento, pouco importava
que descobrissem o engano, confiada como estava no grande amor de DomLope.
- Logo me devolverá tudo. Não se pode levá-la a mal, nem a nenhuma
outra mulher que procura marido honrado, embora por meio de um embuste.“Respondi-lhe que era uma prova de grande amizade o que desejava fazer
e que primeiro pensasse bem, porque poderia depois, sem ter necessidade,
precisar da justiça para reaver seus bens. Ela, porém, respondeu com tantas etais razões, mostrando quantas coisas a obrigavam a servir Dona Clementa,
coisas de pouca importância, é verdade, que, embora de má vontade e comremorso, concordei com o desejo de Dona Estefânia. Asseguroume ela que o
engano duraria somente oito dias, durante os quais ficaríamos em casa de outraamiga sua. Acabamos de nos vestir e ela, despedindo-se de Dona ClementaBueso e do Senhor Lope Meléndez de Almendárez, disse a meu criado que
carregasse o baú e a seguisse. Eu também a segui, sem despedir-me de
ninguém.“Dona Estefânia parou em casa de uma amiga e, antes que entrássemos,
estêve lá dentro um bom espaço de tempo falando com ela; depois apareceuuma criada mandando que entrássemos, eu e o criado. Levou-nos a um
pequeno aposento, onde havia duas camas tão juntas que pareciam uma só; nãohavia espaço para separá-las e as cobertas pareciam beijar-se. Ali estivemos seisdias e em todos êles não passou uma hora em que não tivéssemos alguma
discussão. Dizia-lhe da loucura que fizera em ter deixado a casa e seus haveres,ainda que fôsse para a própria mãe. Durante as discussões, ia e vinha pelo
quarto, tanto que a dona da casa, um dia em que Dona Estefânia fôra ver comoestavam as coisas, quis saber qual a causa que me levava a discutir tanto comela e o que tanto a ofendia, insistindo em dizer que fôra loucura notória e não
amizade perfeita. Contei-lhe tôda a história, falei que me casara com DonaEstefânia e do dote que ela trouxera. Quando lhe disse da grande bobagem que
fizera em deixar a casa a Dona Clementa, embora fôsse com a boa intenção deconseguir um marido da importância de Dom Lope, começou a benzer-se e apersignar-se com pressa e com tantos “Ai! Jesus!' que não pude deixar de ficar
grandemente preocupado. Ela então me disse:
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- Senhor alferes, não sei se vou contra a minha consciência ao contar-lhe oque também nela pesaria se permanecesse calada. Porém, por Deus e pelo
destino, seja lá o que fôr: viva a verdade e morra a mentira! A verdade é que
Dona Clementa Bueso é a verdadeira dona da casa e dos bens que lhe deramcomo dote; mentira foi tudo quanto lhe contou Dona Estefânia. Ela não possuía
casa, nem bens, nem outro vestido a não ser aquêle que traz no corpo. E paratornar viável êste lôgro Dona Clementa quis visitar um parente em Placência edali foi fazer uma novena a Nossa Senhora de Guadalupe; neste espaço de
tempo deixou Dona Estefânia cuidando de sua casa, pois são realmente grandesamigas. Está claro que não se deve culpar a pobre mulher, pois soube arranjar
para marido uma pessoa como o Senhor alferes.
“Aqui terminou ela sua conversa e eu dei princípio ao meu desespêro e,sem dúvida, o teria prolongado se meu anjo da guarda não acudisse dizendo-
me para não esquecer de que era cristão e de que o maior pecado dos homensera o desespêro, por ser pecado dos demônios. Essa boa inspiração confortou-
me um pouco, mas não tanto que deixasse de apanhar a capa e a espada parasair à procura de Dona Estefânia, com intenção de dar-lhe castigo exemplar;porém a sorte, que não saberei dizer se melhora ou piora as coisas, determinou
que eu não a encontrasse em lugar algum onde pensava encontrá-la. Fui a São
Lourenço e encomendei-me a Nossa Senhora; sentei-me depois em um banco eo desgôsto me fêz cair em um sono tão pesado que não despertaria tão cedo se
não me sacudissem. Fui cheio de pensamentos e de aflição à casa de DonaClementa; encontrei-a tão à vontade como senhora que era de sua casa; não
ousei dizer-lhe nada porque Dom Lope estava presente. Voltei à casa de minhahospedeira, que me disse haver contado a Dona Estefânia como eu já sabia detôda a sua falsidade e que ela lhe havia perguntado que cara fizera eu_ com a
notícia. Havia-lhe respondido que uma cara muito má e que, parecia-lhe, eusaíra para procurá-la com muito má intenção. Disse, finalmente, que Dona
Estefânia levara tudo o que estava no baú, sem deixar nêle uma só peça deroupa.
“Aí é que foram elas! Aqui me teve Deus de nôvo em suas mãos. Fui ver o
baú e encontrei-o aberto, como um túmulo à espera de um cadáver, que poderiamuito bem ter sido o meu, se tivesse calma para sentir e ponderar tamanha
desgraça.”- Bem esperta foi - disse nesse momento o LicenciadoPeralta -, por ter Dona Estefânia levado tanta corrente e tantos cintos, pois
como se diz, todos os duelos ... etc., etc.
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- Não me importei com isso - respondeu o alferes -, pois também podereidizer: “Dom Simueque pensou que me enganava com sua filha caolha, mas,
pela vontade de Deus, sou coxo”.
- Não sei por que Vossa Mercê está a dizer isso - respondeu Peralta.- Acontece - disse o alferes - que aquêle embrulho e aparato de correntes,
cintos e brincos poderia valer quando muito, 10 ou 12 escudos.- Isso não é possível - replicou o licenciado -, porque a corrente que o
senhor trazia no pescoço parecia valer mais de 200 ducados.
- Assim seria - respondeu o alferes -, se a verdade correspondesse àaparência; porém, como nem tudo que reluz é ouro, as correntes, cintos, jóias e
brincos eram apenas imitações. Estavam tão bem feitas que somente o toque ou
o fogo poderiam revelar sua qualidade.- Dessa maneira - disse o licenciado -, houve empate no jôgo entre Vossa
Mercê e a Senhora Dona Estefânia?- E tal empate - respondeu o alferes -, que poderia voltar a baralhar as
cartas. Mas o estrago, senhor licenciado, é que ela poderá desfazer-se de minhascorrentes e eu não poderei sair do laço em que caí, pois, embora muito me pese,ela é minha mulher.
- Dai graças a Deus, Campuzano - disse Peralta -, pois ela se foi com os
próprios pés e não estais obrigado a ir buscá-la.- Assim é - respondeu o alferes -, porém, com tudo isso, embora não a
procure, tenho-a sempre no pensamento e, onde quer que eu vá, está presente aafronta.
- Não sei o que responder - disse Peralta -, Só sei trazer-vos à memóriadois versos de Petrarca que dizem:
Che chi prende diletto di far frode,
non sha di lamentar saltro Nnganna.
O que em nossa língua quer dizer: “Aquêle que tem o costu me e gôsto deenganar os outros não se deve queixar quando é enganado”.
- Não me queixo - respondeu o alferes -, apenas me lastimo, pois oculpado nem por reconhecer a culpa deixa de sentir a pena do castigo. Tentei
enganar, bem sei, e fui enganado. Feriram-me com as minhas próprias armas,mas não posso evitar que tais sentimentos me assaltem. Finalmente, o que maisimporta no meu romance, pois tal nome se pode dar às minhas aventuras, é ter
sabido que Dona Estefânia se fôra com o primo, o mesmo que se encontrava em
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nosso casamento e que tempos atrás fôra seu amigo para tôdas as coisas. Nãoquis procurá-la para não encontrar o mal que me faltava. Mudei de pousada e
cabelo, em poucos dias, pois começaram a cair-me os pêlos das sobrancelhas,
dos cílios e pouco a pouco êles se foram; tornei-me calvo antes do tempo: deu-me uma doença que chamam de calvície.
Achei-me verdadeiramente limpo; não possuía cabelos para pentear nemdinheiro para gastar. A enfermidade caminhou ao lado da minha miséria e,como a pobreza atropela a honra e leva uns à fôrça, outros ao hospital e ainda
faz outros baterem nas portas de seus inimigos com pedidos e súplicas, o que éuma das maiores desgraças que pode acontecer a qualquer infeliz; por não ter
podido cuidar das roupas que me haveriam de cobrir e assegurar a saúde, ao
chegar o tempo em que se dão os suadouros no Hospital da Ressurreição, paraêle me dirigi e ali tomei quarenta suadouros. Dizem que sararei se me tratar;
espada ainda possuo; o resto ficará nas mãos de Deus.
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As duas donzelas
A 5 léguas da cidade de Sevilha há um lugar chamado Castilblanco. Aoanoitecer, entrou, em uma das muitas hospedarias que ali existem, um viajante,
montando um formoso cavalo estrangeiro; não o acompanhava nenhum criadoe, sem esperar que lhe segurassem o estribo, pulou da sela com grande
ligeireza.O estalajadeiro, que era homem diligente e atencioso, apressou-se em
recebê-lo, mas não o fêz suficientemente rápido a ponto de impedir o viajante
de sentar-se em um banco de pedra, que havia junto à porta. O desconhecidodesabotoou ràpidamente a roupa e deixou cair para os lados ambos os braços,dando mostras de que ia desmaiar. A estalajadeira, que era muito bondosa,
chegou-se a êle e, borrifando-lhe o rosto com água, fê-lo voltar do desmaio.Demonstrando que se aborrecera por ter-se deixado ver daquela maneira,
abotoou a roupa e pediu que lhe dessem logo um aposento onde pudesserecolher-se e, se fôsse possível, para colocarem-no sozinho.A estalajadeira disse-lhe que havia em tôda a casa apenas um quarto com
duas camas e que, se viesse outro hóspede, seria obrigada a acomodá-lo naoutra cama. O viajante respondeu que pagaria pelos dois leitos, viesse ou não
algum hóspede, e, tirando 1 escudo de ouro, deu-o à estalajadeira, com acondição de ela não ceder a ninguém o leito vazio.
A estalajadeira não se entristeceu com a paga, pelo contrário, ofereceu-se
para fazer o que êle pedia, ainda que o próprio deão de Sevilha chegassenaquela noite à sua casa. Perguntou ela ao viajante se queria jantar e êle
respondeu que não; pediu a chave do quarto e, levando consigo umas bôlsasgrandes de couro, entrou no aposento, fechou a porta à chave, e ainda, como sepensou depois, encostou nela duas cadeiras.
Mal êle se fechou, o estalajadeiro, o rapaz que cuidava dos cavalos eoutros dois vizinhos que ali se encontravam, todos, enfim, elogiaram a grandeformosura e garbosa disposição do nôvo hóspede, chegando à conclusão de que
jamais haviam visto tanta beleza. Calcularam a idade dêle e acharam que
deveria ter de dezesseis a dezessete anos; deram tratos à bola, como se costuma
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dizer, para descobrirem a causa do seu desmaio, mas, como não conseguissem,contentaram-se em elogiar-lhe a galhardia.
Os vizinhos foram embora para casa, o estalajadeiro foi cuidar do cavalo e
a estalajadeira foi preparar o que comer, para o caso de aparecerem outroshóspedes. Não demorou muito, entrou outro rapaz, um pouco mais velho e tão
elegante quanto o primeiro. A estalajadeira, nem bem o viu, disse:- Valha-me Deus! O que é isso? Será que os anjos querem pousar em
minha casa esta noite?
- Por que a senhora estalajadeira diz isso? - perguntou o cavalheiro.- Por nada, senhor - respondeu ela. - Digo apenas a Vossa Mercê para não
apear porque não tenho cama para dar-lhe, onde Vossa Mercê possa dormir. Eu
tinha duas, mas um cavalheiro, que está naquele quarto, embora precisasseapenas de uma, tomou-as e pagou ambas, a fim de que ninguém entre no
aposento. êle deve gostar da solidão, mas não sei por que, pois motivos para seesconder não tem, antes o tem para que todo o mundo o veja e o bendiga.
- É assim tão bonito, senhora estalajadeira? - perguntou o cavalheiro.- E como é bonito! - respondeu ela. - É mais que bonito. - Segura aqui,
rapaz - disse á estas alturas o cavalheiro. - Embora tenha eu de dormir no chão,
preciso ver êsse homem tão elogiado.
E, dando o estribo a um rapaz, que o acompanhava, apeou e pediu paralhe trazerem logo o jantar. E assim se fêz. Estava êle a jantar, quando entrou um
aguazil - que sempre há nos lugares pequenos - e sentou-se para conversar como rapaz enquanto êle jantava. E, conversa vai, conversa vem, não deixou de
engolir três bons copos de vinho, de roer o peito e uma coxa de perdiz que ocavalheiro lhe deu. O aguazil pagou-o, pedindo-lhe notícias da côrte, dasguerras de Flandres, dos turcos, não se esquecendo ainda dos acontecimentos
da Transilvânia, que Deus, Nosso Senhor, guarde.O cavalheiro jantava calado porque não vinha da côrte e não podia,
portanto, responder a suas perguntas. O hospedeiro, que acabava naqueleinstante de tratar do cavalo, sentou-se para tomar parte na conversa e parabeber de seu próprio vinho tantos tragos quantos bebêra o aguazil.
Acompanhava cada trago com uma inclinação de cabeça por sôbre oombro esquerdo, e elogiava o vinho, pondo-o nas nuvens, embora não o
deixasse lá por muito tempo a fim de não ficar aguado. Aos poucos, puseram-sea elogiar o hóspede que se encontrava no quarto; falaram do seu desmaio edisseram que êle não quisera comer nada; lembraram a história das bôlsas, a
qualidade do cavalo, as vistosas roupas de viajante que o rapaz usava,
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estranhando, porém, o fato de não trazer nenhum criado para servi-lo. Todosêstes elogios despertaram no cavaleiro o desejo de ver o outro jovem; pediu ao
estalajadeiro para dar um jeito de pô-lo a dormir na outra cama, que lhe daria 1
escudo de ouro. A cobiça do estalajadeiro venceu-o, mas, mesmo assim, nadapôde fazer, porque a porta estava fechada por dentro e êle não se atrevia a
despertar o jovem, que lhe havia pago tão bem pelos dois leitos. O aguazilprocurou ajeitar a situação, dizendo:
- O que se pode fazer é chamá-lo à porta, dizendo que sou da Justiça e que,
a mandado do senhor alcaide, pedi ao senhor estalajadeiro para dar pousada aêste rapaz; e, não havendo outra cama, é preciso que aquela lhe seja dada. O
hóspede há de alegar que o ofendem, pois já está alugada e não será direito tirá-
la; com isto, o estalajadeiro será desculpado e Vossa Mercê conseguirá seuintento.
Todos gostaram do plano do aguazil, o rapaz principalmente, pois lhe deu4 reais.
Puseram mãos à obra; o rapaz que chegara primeiro à hospedaria abriu aporta ao ouvir “em nome da Justiça”, mostrando-se bastante aborrecido; ooutro, pedindo-lhe desculpas pela ofensa que lhe parecia ter feito, deitou-se no
leito desocupado, mas o primeiro não lhe disse uma palavra, nem ao menos o
deixou ver-lhe o rosto, porque, mal abriu a porta, voltou para a cama, virou-separa a parede e, para não responder, fingiu que dormia. O segundo jovem
deitou-se; esperando pela manhã e esperando ver realizado o seu desejoquando se levantassem. Estávamos em uma dessas noites dolentes, preguiçosas
e longas de dezembro; o frio e o cansaço da viagem obrigavam a procurarrepouso; o nosso primeiro hóspede, porém, não podia descansar e, lá pela meia-noite, começou a suspirar tão amargamente que, a cada suspiro, a alma parecia
abandonar-lhe o corpo; suspirava, enfim, de tal maneira que o tom lastimoso desua voz despertou seu companheiro e êste, admirado com os soluços que
acompanhavam os suspiros, pôs-se a escutar atentamente o que o outro malmurmurava. O aposento estava às escuras e as camas bem afastadas, mas nempor isso deixou êle de ouvir estas palavras, entre muitas outras que o primeiro
hóspede, com voz fraca e debilitada, dizia:- Ai de mim! Onde me leva a obstinada fôrça de meus fados? Qual é o meu
caminho ou que saída espero encontrar para o complicado labirinto onde meencontro? Ah, poucos e inexperientes anos, incapazes de discernir e aceitarconselhos! Que fim há de ter essa minha desconhecida peregrinação? Ah, honra
desprezada! Ai, amor mal agradecido! Respeito de honrados pais e parentes
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ofendidos! Ai de mim mil e uma vezes, pois me deixei levar pelo vendaval demeus desejos! Ó palavras fingidas que tanto me obrigastes a retribuir com
obras! Porém, de quem me queixo, pobre de mim! Não foi a mim que ele quis
enganar? Não fui eu quem tomou de uma lâmina com as próprias mãos ecortou e atirou por terra o crédito em cujo valor se fiavam meus velhos pais? Ó
mentiroso Marco Antônio! Como é possível que as doces palavras que medizias estivessem mescladas com o fel de tuas grosserias e desdéns? Onde estás,ingrato? Para onde fôste? Responde-me, é a ti que falo; espera-me que te sigo;
sustenta-me, que desmaio; paga-me o que me deves; socorre-me, pois a ti estouligada.
Em seguida, calou-se, demonstrando, pelos ais e pelos suspiros, que seus
olhos não deixavam de derramar ternas lágrimas. O outro hóspede perma-necera escutando tudo em silêncio, concluindo, pelas palavras que ouvira,
tratar-se de uma mulher, fato que lhe avivou ainda mais o desejo de conhecê-la,e estêve muitas vêzes para ir até o leito daquela que se lastimava e o teria feito
se em certo momento não a visse levantar-se e abrir a porta do aposento paraordenar ao hospedeiro que encilhasse o cavalo, pois queria partir. Ao fim de umbom espaço de tempo, o estalajadeiro disse-lhe que sossegasse, pois ainda não
passava de meia-noite. e a escuridão era tanta que seria temeridade querer pôr-
se a caminho. O rapaz acalmou-se e, tornando a fechar a porta, atirou-se nacama, exalando um profundo suspiro.
O outro rapaz, que o escutava, acreditou ser muito bom falar-lhe eofereceu-se para ser útil no que fôsse possível; assim, poderia obrigá-lo a
mostrar-se e a contar-lhe sua triste história. Disse-lhe então:- Por certo, cavalheiro, se os suspiros que destes e as palavras que
pronunciastes não tivessem tocado meu coração, pelo mal do qual vos queixais,
pensaria que não tenho sentimento ou que minha alma é de pedra e meu peitode duro bronze; se a pena que sinto de vós e a intenção que em mim nasceu de
pôr minha vida à procura de um remédio - se é que vosso mal é curável -merecem algum favor, como recompensa, rogo-vos que useis delas, declarando-me, sem nada encobrir, a causa de vossa dor.
- Se eu não tivesse perdido o juízo - respondeu o queixoso -, não teria meesquecido de que não estava só neste aposento, teria freado um pouco mais
minha língua e dado trégua a meus suspiros; mas, como paga de haver-mefaltado a memória quando eu mais precisava dela, farei o que me pedis, porque,relembrando a amarga história de minhas desgraças, talvez meu nôvo
sentimento se acabe. Se quereis, entretanto, que eu atenda o vosso pedido,
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havereis de prometer, diga eu o que disser, pela fé que demonstrastes comvosso oferecimento e por quem sois e vossas palavras parecem provir de um
homem de bem -, havereis de prometer não vos mover de vosso leito nem vir
até o meu nem me perguntar nada além do que eu vos quiser dizer. Se fizerdeso contrário, ao perceber eu que vos moveis, transpassarei meu peito com uma
espada que tenho aqui à cabeceira.O outro, tendo prometido o impossível, ansioso por saber de tudo,
respondeu-lhe que não perguntaria um “a” além do prometido, reforçando suas
palavras com mil juramentos.- Assim sendo, com esta promessa, farei o que até agora não fiz: prestar
contas de minha vida a alguém. Havereis de saber, senhor, que eu entrei nesta
hospedaria - e, sem dúvida, já vos terão dito - vestida como homem. Sou,entretanto, uma infeliz donzela, ou melhor, fui, porque deixei de sê-lo, não faz
oito dias, por ser imprudente, louca e por acreditar nas palavras bonitas de umhomem falso. Meu nome é Teodósia e minha terra, um lugar importante de
Andaluzia, cujo nome prefiro não revelar, porque a vós não interessa tantosabê-lo como a mim interessa ocultá-lo. Meus pais são nobres e um pouco maisque medianamente ricos; tiveram êles um filho e uma filha: êle, para seu
consôlo e orgulho; ela, para seu desgôsto. O filho, enviaramno para estudar em
Salamanca; a mim, mantinham-me em sua casa, onde me criavam com orecolhimento e recato exigidos pela sua virtude e nobreza e eu, sem pesar
algum, sempre fui obediente, combinando, subordinando, adaptando minhavontade à dêles, sem discordar em nada, até que minha falta de sorte ou, talvez
minha sorte excessiva fêz com que o filho de um nosso vizinho, mais rico doque meus pais e tão nobre quanto êles, me visse. Quando o olhei pela primeiravez, senti apenas satisfação por tê-lo visto, mas não foi muito, pois sua
elegância, sua galhardia, seu semblante e seus costumes eram elogiados eapreciados pelo povo, bem como sua rara discrição e cortesia. Mas de que me
serve louvar meu inimigo e ir prolongando com palavras minha desgraça ou,para melhor dizer, o princípio de minha loucura? Digo, enfim, que êle me viu,uma e muitas vêzes, de uma janela fronteira à minha; dali, segundo meu
parecer, enviou-me a alma pelos olhos e os meus gostaram de vê-lo, sentindouma alegria diferente daquela que sentiram quando eu o vi pela primeira vez,
forçando-me a acreditar na veracidade de tudo que eu lia em seu rosto e emseus gestos. Os olhos foram os intercessores e medianeiros da palavra; a palavrafoi para declarar seus desejos; seus desejos despertaram os meus e fizeram-me
acreditar nos dêle. Acrescentaram-se a tudo isto as promessas, os juramentos, as
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lágrimas, os suspiros e tudo aquilo que, segundo penso, pode um enamoradofazer para revelar a integridade de sua vontade e a firmeza de seus sentimentos
e em mim - infeliz! -, que nunca me vira em situação semelhante, cada palavra
era um disparo de artilharia a derrubar parte da fortaleza de minha honra; cadalágrima era uma fogueira onde se abrasava minha honestidade; cada suspiro,
um furioso vento a avivar a fogueira de tal sorte que acabou por consumirminha virtude até então imaculada. Finalmente, com a promessa de ser meumarido, mesmo contra a vontade dos pais, que lhe haviam reservado outra
pessoa, vi todo o meu recato ir por terra; sem saber como, entreguei-me a êle, àsocultas de meus pais, tendo como testemunha de meu desatino apenas um
pajem de Marco Antônio, que êste é o nome do perturbador de meu sossêgo.
Roubou de mim tudo quanto quis e, dali a dois dias, sumiu da cidade, sem queseus pais ou qualquer outra pessoa soubessem dizer ou imaginar para onde
fôra. Como fiquei, diga-o quem tiver poder para dizê-lo, pois eu soube e seiapenas sentir. Arranquei os cabelos, como se êles tivessem culpa de meu êrro;
arranhei meu rosto, por parecer-me ter sido êle a causa de minha desventura;amaldiçoei minha sorte, lamentei minha precipitação; derramei infinitaslágrimas, vi-me quase afogada nelas e nos suspiros que saíam de meu peito
ofendido, queixei-me ao céu em silêncio, dei tratos à imaginação para ver se
descobria algum caminho a seguir. Pensei, então, em vestir-me de homem,ausentar-me da casa de meus pais e ir procurar êste Enéas enganador, êste cruel
e falso Vireno, êste defraudador de meus bons pensamentos, de minhaslegítimas e bem fundadas esperanças. E assim, para encurtar minhas palavras,
encontrando um traje de viagem de meu irmão, um cavalo que pertencia a meupai e que eu criei -, saí de casa, em uma noite muito escura, com intenção de ir aSalamanca, aonde, segundo se falou depois, Marco Antônio poderia ter vindo,
porque é também estudante e colega de meu irmão. Não me esqueci também dearranjar uma boa quantia de dinheiro em ouro, para auxiliar-me em tudo que
me possa acontecer nesta precipitada viagem. O que mais me atemoriza é saberque meus pais haverão de me seguir e, por causa de minhas roupas e do cavalo,haverão de me encontrar. Além disso, tenho mêdo de meu irmão, que se
encontra em Salamanca, pois, se êle me reconhecer, já se pode imaginar o perigoque minha vida corre, porque, embora êle escute minhas justificações, poderá
querer vingar a honra ofendida. Apesar de tudo isto, decidi, ainda que perca avida, procurar aquêle meu cruel espôso, quenão pode recusar-se a sê-lo, poisdeixou em meu poder um anel de diamantes com as seguintes palavras: “Marco
Antônio, espôso de Teodósia”. Se eu o encontrar, saberei o que viu êle em mim
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que o levou a abandonar-me assim tão depressa. Eu o farei cumprir suaspromessas, não o deixarei, enfim, faltar à palavra dada, ou então, renunciarei à
vida, mostrando-me, na vingança, tão rápida quanto o fui ao consentir na
ofensa, porque a nobreza do sangue que meus pais me deram desperta aospoucos meus brios, que exigem ou o remédio imediato ou a vingança ao meu
ultraje. Esta é, cavalheiro, a verdadeira e infeliz história, suficiente para justificar os suspiros e as palavras que vos despertaram. Peço-vos, já que nãopodeis, ajudai-me ao menos a evitar os perigos que me rondam, a abrandar o
temor que tenho de ser encontrada e facilitar os meios dos quais devo lançarmão para executar meus planos, tão desejados quanto necessários.
O rapaz, após ouvir a história da enamorada Teodósia, ficou sem dizer
palavra um bom espaço de tempo. Teodósia pensou que êle estivesse dormindoe não ouvira coisa alguma. Para certificar-se de sua suspeita, perguntou-lhe:
- Dormis, senhor? Seria natural que dormísseis, porque as desditas de umapaixonado, contadas a quem não as sente, na verdade despertam mais sono do
que lástima.- Não estou dormindo - respondeu o cavalheiro -, estou tão acordado e de
tal modo sinto a vossa desventura, que talvez ela me aflija e doa tanto quanto a
vós. Por isso, não me contentarei apenas com aconselhar-vos. mas também vos
ajudarei em tudo quanto minhas fôrças permitirem, pois, embora a maneirapela qual contastes vossa história tenha mostrado o raro entendimento de que
sois dotada e tenha mostrado, segundo vossas palavras, que fôstes enganadamais pela vossa vontade enfraquecida do que pelas promessas de Marco
Antônio, sou obrigado a acreditar ter sido a causa de vosso êrro os vossospoucos anos, que não conhecem a falsidade dos homens. Tranqüilizai-vos,senhora, e, se podeis, dormi o pouco da noite que resta, pois, vindo o dia,
conversaremos e veremos que solução poderíamos encontrar para vossoproblema.
Teodósia agradeceu-lhe da melhor maneira que pôde, procurou descansarum pouco e deixar o cavalheiro dormir, mas êste não pôde descansar um sómomento, começou a mexer-se na cama e a suspirar, de modo que Teodósia se
viu obrigada a perguntar-lhe o que sentia, pois, se fôsse alguma coisa que elapudesse remediar, haveria de fazê-lo com a mesma boa vontade demonstrada
por êle em querer servi-la. O cavalheiro respondeu:- Sois vós, senhora, a causa de meu desassossêgo; não sereis vós quem
poderá saná-lo, pois, se o fôsseis, eu não teria pena alguma.
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Teodósia não pôde entender a intenção daquelas palavras confusas;continuou, porém, a suspeitar de que alguma paixão amorosa o perturbava;
pensou ainda ser ela a causa, e era mesmo de suspeitar, pois a comodidade do
aposento, a calma, a escuridão e o fato de ela ser mulher poderiam, fàcilmente,ter despertado nêle algum mau pensamento. Receando isto, vestiu-se rápida e
silenciosamente, cingiu a espada e a adaga e, daquela maneira, sentada sôbre acama, permaneceu, esperando o dia, que, dali a pouco, anunciou sua chegada,com a luz que penetrava pelas várias passagens usuais em aposentos de
hospedarias e estalagens. O cavalheiro fêz o mesmo que Teodósia fizera e, malviu o aposento iluminado pela luz do dia, ergueu-se da cama e disse:
- Levantai-vos, Senhora Teodósia, que eu quero acompanhar-vos nesta
jornada e não vos abandonarei senão quando tiverdes Marco Antônio comolegítimo espôso; em caso contrário, ou eu ou êle perderá a vida. Por isso,
poderei ver a obrigação que me impôs vossa desgraça.Dizendo isto, abriu as janelas e as portas do aposento. Teodósia estivera
esperando pela claridade para ver, com a luz, o porte e a fisionomia daquelecom quem estivera falando durante tôda a noite; mas, quando o viu ereconheceu, quisera que jamais tivesse amanhecido e antes lhe tivessem fechado
os olhos em escuridão perpétua, porque, apenas o cavalheiro voltou os olhos
para vê-la - que também êle desejava olhá-la -, ela reconheceu que êle era seuirmão, a quem temia. Ao vê-lo, quase perdeu os sentidos, ficou atônita, muda e
sem côr. Fazendo, porém, do temor, esforços, e do perigo, sensatez, tomou daadaga e prostrou-se de joelhos perante o irmão, dizendo, com voz perturbada e
receosa:- Toma, querido irmão, e castiga-me com esta lâmina pelo crime cometido;
descarrega tua ira, pois, para tão grande culpa, misericórdia alguma deverá
valer-me; confesso meu pecado e não quero que meu arrependimento sirvacomo desculpa; suplico-te apenas que o castigo se limite a tirar-me apenas a
vida e não a honra, pois, embora eu a tivesse pôsto em perigo, ausentando-meda casa de meus pais, ela não será posta em jôgo se o castigo que me deres fôrsecreto.
O irmão olhava-a e, embora seu atrevimento o incitasse à vingança, aspalavras ternas e firmes com que ela manifestava sua culpa abrandaram-lhe de
tal sorte o ânimo que êle, calma e amàvelmente, soergueu-a do solo e consolou-a da melhor maneira possível, dizendo-lhe, entre outras coisas, que, por nãoachar um castigo à altura de sua culpa, e também por parecer-lhe que a fortuna
ainda não lhe havia fechado de todo as portas, suspendia-o por enquanto;
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queria antes procurar-lhe um alívio por todos os meios possíveis e não sevingar do agravo a que sua leviandade a conduzira.
Estas palavras fizeram Teodósia recobrar o ânimo, recuperar a côr e
reavivar suas esperanças quase mortas. Dom Rafael, assim se chamava seuirmão, não quis mais falar do ocorrido; disse-lhe apenas que mudasse o nome
de Teodósia para Teodoro e sugeriu que ambos fôssem dar uma volta emSalamanca para procurar Marco Antônio, embora julgasse que não deveria estarlá, porque, sendo seu amigo, teria ido procurá-lo, mas podia ser também que a
ofensa que lhe fizera lhe tivesse tirado a vontade de vê-lo. Teodósia submeteu-se à vontade do irmão. Nisso, entrou o estalajadeiro e êles pediram-lhe algo
para comer, pois desejavam partir imediatamente.
Enquanto o criado selava as mulas e o almôço não vinha, entrou naestalagem um fidalgo com roupas de viagem, e que Dom Rafael logo
reconheceu. Teodoro também o conhecia e por isso não se atreveu a sair doaposento, para não ser visto. Abraçaram-se e Rafael perguntou ao recém-
chegado que novidades havia em sua terra. O outro respondeu que vinha dopôrto de Santa Maria, onde deixara quatro galeras prontas para partir rumo aNápoles, e que Marco Antônio Adorno, filho de Dom Leonardo Adorno,
embarcara numa delas. Dom Rafael alegrou-se com as notícias, pois pareceu-lhe
que o fato de ter recebido inesperadamente informações a respeito de coisas quetanto lhe interessavam era sinal de que sua emprêsa haveria de ser bem
sucedida. Pediu ao amigo para ceder-lhe a mula que montava.Em troca, dar-lhe-ia seu cavalo, porque não queria levar tão bom animal
em tão longa viagem, pois lhe dissera que ia a Salamanca, e não que vinha de lá.O outro, que lhe tinha grande amizade, concordou e encarregou-se de entregaro cavalo ao pai de Dom Rafael. Comeram juntos, o amigo logo se despediu e
tomou o caminho de Cazalha, onde possuía uma rica propriedade. Dom Rafaelnão partiu com êle, pois disse que precisava voltar naquele dia para Sevilha;
assim, tão logo o viu partir, estando já prontas as cavalgaduras e acertadas ascontas com o estalajadeiro, saíram, dizendo adeus e deixando admirados todosos que ali se encontravam, com sua formosura e elegância, pois Dom Rafael
destacava-se por seu garbo e desenvoltura e sua irmã pela graça e beleza.Ao sair, Dom Rafael contou imediatamente as notícias que lhe haviam
dado de Marco Antônio, dizendo ainda que deviam dirigir-se ràpidamente paraBarcelona, onde, em geral, as galeras que vão para a Itália ou vêm para aEspanha costumam parar; se as galeras não tivessem ainda chegado, poderiam
esperá-las, pois, sem dúvida, haveriam de encontrar-se com Marco Antônio. A
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irmã disse-lhe para fazer o que lhe parecia melhor, pois sua vontade limitava-sea querer o que ele quisesse. Dom Rafael pediu ao cavalariço que o
acompanhava para ter paciência, pois precisava ir a Barcelona, assegurando-lhe
que pagaria, conforme sua vontade, pelo tempo que ficasse com ele. O criado,que era alegre e conhecia a liberalidade de Dom Rafael, respondeu que o
serviria e o acompanharia até o fim do mundo. Dom Rafael perguntou à irmãquanto dinheiro ela levava. Ela respondeu que não o contara e, portanto, nãosabia, mas havia pôsto a mão no cofre de seu pai sete ou oito vêzes, tirando-a
cheia de escudos de ouro. Esta informação fez Dom Rafael calcular que elapoderia ter tirado uns 500 escudos; êstes, somados a outros 200 que ele possuía
e a uma cadeia de ouro, garantiram-lhe maior sossego, pois já estava certo de
que haveria de encontrar Marco Antônio em Barcelona.Apressaram-se e sem empecilho algum chegaram a 2 léguas de um lugar
chamado Igualada, que fica a 9 léguas de Barcelona. Pelo caminho souberamque um cavalheiro, que ia para Roma como embaixador, estava em Barcelona,
esperando pelas galeras, que ainda não haviam chegado; esta notícia os deixoumuito contentes. Caminharam até entrar em um bosquezinho atravessado pelaestrada, de onde viram um homem sair correndo e olhando para trás
espantado. Dom Rafael cortou-lhe a carreira, dizendo-lhe:
- Por que correis, bom homem? Que vos aconteceu para estardes assimcom êste mêdo que vos faz tão ligeiro?
- E como não hei de correr com tôda a fôrça e mêdo, se escapei, pormilagre, a um grupo de bandoleiros que se esconde nesse bosque? - falou ele.
- Muito mau - falou o criado. - Deus nos livre! Bandoleiros a estas horas?Benzamo-nos, pois se êles nos pegam...
- Não vos assusteis, irmão - falou o homem que saía do bosque -, pois os
bandoleiros já se foram e deixaram, amarrados às árvores dêste bosque, mais oumenos trinta passageiros, largando-os em manga de camisa; deixaram livre
apenas um homem para desamarrar os outros, depois que tivessem transpostoum pequeno morro que indicaram.
- Se é assim - disse Calvete, pois assim se chamava o criado -, podemos
passar sem mêdo, porque os bandoleiros não costumam voltar por alguns diasao lugar que assaltam, e posso afirmar-vos isso como quem conhece bem a
palma da mão e sabe quais os seus usos e costumes.- É assim mesmo - disse o homem.Dom Rafael, ouvindo isso, decidiu seguir para frente. Não demorou muito
para encontrarem as pessoas amarradas e que eram mais de quarenta; o homem
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deixado sôlto estava desamarrando-os. Vê-los era um espetáculo singular: uns,completamente nus; outros, vestidos com as roupas sujas dos bandoleiros,
outros, rindo ao verem as esquisitas roupas dos companheiros; êste contava
minuciosamente o que lhe haviam roubado; aquêle dizia que sentia mais aperda de um agnus que trouxera de Roma que a das inúmeras coisas que
levava. Enfim, tudo ali era gemidos e prantos dos miseráveis despojados. Osdois irmãos olhavam tudo, imensamente penalizados, dando, porém, graças aocéu, que os havia livrado de tão grande perigo. Entretanto, o que mais lhes
causou compaixão, especialmente a Teodoro, foi ver, prêso ao tronco de umaazinheira, um rapaz que aparentava ter uns dezesseis anos, vestindo apenas
uma camisa e um calção de algodão, mas tão formoso de rosto, que obrigava
todos a olharem para êle. Teodoro apeou, foi desamarrá-lo e êle agradeceu-lhecom palavras corteses o benefício; Teodoro pediu a Calvete, o criado, para
emprestar-lhe a capa até que pudessem comprar outra para o gentil mancebo.Calvete deu-lha e Teodoro cobriu com ela o rapaz, perguntando-lhe de onde
era, de onde vinha e para onde ia. Dom Rafael presenciava tudo e ouviu o rapazdizer que era de Andaluzia e, dizendo o nome do lugar, souberam todos tratar-se de uma cidade que ficava apenas a duas léguas de onde moravam. O rapaz
disse que vinha de Sevilha e pensava ir à Itália para exercitar-se no manejo das
armas, como o faziam muitos outros espanhóis; a sorte, porém, não lhe fôrafavorável, pois os bandoleiros lhe haviam levado boa quantia de dinheiro e
umas roupas que não se compram com apenas 300 escudos; apesar de tudo isso,porém, pensava prosseguir em seu caminho, porque era gente de fibra e o calor
de seu desejo não haveria de gelar com o primeiro empecilho.As palavras do rapaz, o fato de ser de um lugar tão próximo de sua cidade
e a carta de recomendação que era sua beleza fizeram os dois irmãos se
oferecerem para ajudá-lo em tudo o que lhes fôsse possível; repartiram êlesalgum dinheiro entre os que pareciam mais necessitados, especialmente os
frades e clérigos, que eram mais de oito, fizeram o mancebo montar o cavalo deCalvete, e, sem demorar mais, chegaram logo a Igualada, onde souberam que asgaleras haviam chegado a Barcelona no dia anterior e partiriam dali a dois dias
se a discutível segurança da praia não os obrigasse a partir antes.Estas notícias fizeram-nos levantar-se na manhã seguinte antes do sol.
Dormiram pouco durante a noite e sobressaltados, porque, estando êles à mesa,Teodoro olhou demoradamente o rapaz que haviam desatado e, observando-o,pareceu-lhe ter êle as orelhas furadas. Por isso, por seu olhar meio envergo-
nhado, Teodoro desconfiou que se tratasse de uma mulher e desejou acabar de
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comer logo para poder certificar-se de suas suspeitas. Durante o jantar, DomRafael perguntou-lhe de quem era filho, pois conhecia tôda a gente importante
do lugar de onde êle dissera ter vindo. O jovem respondeu que era filho de
Dom Enrique de Cárdenas, cavalheiro muito conhecido. Dom Rafael disse-lheque conhecia muito bem a Dom Enrique e tinha certeza de que êle não possuía
filho algum, mas, se êle assim falara para não revelar o nome de seus pais, nãotinha importância e nunca mais lhe faria perguntas.
- É verdade - replicou o môço - que Dom Enrique não tem filhos, mas um
irmão seu, chamado Dom Sancho, os tem.- Mas êsse também não tem filhos - disse Dom Rafael - e sim uma única
filha. Dizem que é das mais formosas donzelas que há em Andaluzia, mas isto
eu sei apenas por ter ouvido falar, pois, embora eu tenha estado lá inúmerasvêzes, jamais pude vê-la.
- Tudo o que dizeis, senhor, é verdade - falou o jovem.Dom Sancho tem apenas uma filha, mas não é tão formosa como dizem, e
se eu falei que era filho de Dom Enrique, foi para que me considerásseis umpouco, senhores, pois sou apenas filho do mordomo de Dom Sancho, que hámuitos anos o serve.
Eu nasci em sua casa, mas, por certo desgôsto que dei a meu pai, tirando-
lhe considerável quantia em dinheiro, quis ir para a Itália, como já vos disse, eseguir o caminho da guerra por intermédio da qual, conforme pude observar,
até os de origem obscura conseguem tornar-se ilustres.Tôdas estas palavras e o modo pelo qual eram ditas foram confirmando as
suspeitas de Teodoro. Terminado o jantar, tirou-se a mesa e, enquanto DomRafael se despia, tendo-lhe já confiado suas suspeitas, Teodoro, com oconsentimento do irmão, retirou-se para o balcão de uma grande janela que
dava para a rua e ali, debruçados os dois, começou a falar com o rapaz:- Quisera, Senhor Francisco - assim disse chamar-se o môço -, ter-vos feito
tantos benefícios que vos obrigasse a não negar qualquer coisa que eu pudesseou quisesse pedir-vos, mas o pouco tempo que vos conheço não o permite;podia ser também que descobrísseis meu desejo e, se agora não quiserdes
satisfazer minha curiosidade, nem por isso deixarei de ser vosso servidor, comoo sou agora. Quero também que saibais, embora tenha eu tão pouca idade
quanto tenho mais experiência das coisas do mundo do que parece, pois comela cheguei a suspeitar de que não sois homem, como o mostram as vossasroupas, mas mulher, e de origem tão nobre quão evidente é a vossa formosura,
e também infeliz como o demonstra a mudança de traje que fizestes, pois nunca
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tais mudanças são feitas por alguém sem algum motivo. Se minha suspeita temfundamento, dizei, pois juro-vos pela minha fé que vos ajudarei e servirei em
tudo quanto puder. Não podeis negar que sois mulher, pois os furos de vossas
orelhas deixam transparecer a verdade e fôstes descuidada esquecendo-vos deocultá-los com um pouco de cêra; podia ser que outro, tão curioso quanto eu e
talvez não tão honrado, revelasse o que não soubestes disfarçar muito bem. Nãovos recuseis a dizer-me quem sois, pois ofereço-vos a minha ajuda e asseguro-vos que saberei manter segrêdo.
O jovem escutou com grande atenção o que Teodoro lhe dizia e, vendoque êle se calava, em vez de falar, tomou-lhe as mãos e, levando-as aos lábios,
beijou-as e banhou-as com muitas lágrimas que seus formosos olhos derra-
mavam. Êsse estranho procedimento impressionou Teodoro de tal forma queêle não pôde deixar de chorar também - pois é comum e natural as mulheres
nobres se comoverem com os sentimentos e fadigas alheias. Após ter retiradocom dificuldade as mãos dos lábios do rapaz, permaneceu atenta a esperar para
ver sua resposta. Êste, dando um doloroso gemido, acompanhado de muitossuspiros, falou:
- Não vos quero negar, senhor, que vossa suspeita é verdadeira; sou
mulher e a mais infeliz mulher que o mundo já conheceu; os favores que me
fizestes e os oferecimentos que me fazeis obrigam-me a obedecer-vos em tudoquanto me ordenardes; escutai e eu vos direi quem sou, se é que não vos
cansareis de ouvir apenas desventuras.- Que eu seja para sempre desventurado - replicou Teodoro - se não
chegar a sentir pena de vossas desgraças, pois já as vou sentindo como sefôssem minhas.
E, tendo tornado a abraçá-lo e a fazer-lhe novos e sinceros oferecimentos, o
jovem, um pouco mais tranqüilo, começou a falar:- A respeito de minha pátria já vos disse a verdade; não a disse, porém,
quando me referi a meus pais, porque Dom Enrique é apenas meu tio; sou filhade Dom Sancho, seu irmão; sou eu a desventurada filha de Dom Sancho, cujabeleza, segundo disse vosso irmão, é elogiada por todos, o que não passa de
engano, conforme podeis muito bem ver. Meu nome é Leocádia e sabereis agoraa razão da minha mudança de traje: a 2 léguas de minha cidade há um lugar
considerado como um dos mais ricos e nobres de Andaluzia, onde vive umcavalheiro importante, descendente da família dos nobres e antigos Adorno, deGênova. Êste senhor tem um filho que é considerado um dos homens mais
elegantes que se possa imaginar. Êle, quer por morar perto de cidade, quer por
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ser, como meu pai, aficionado a caçadas, vinha à minha casa muitas vêzes e alipermanecia por cinco ou seis dias, passando-os, bem como parte da noite, no
campo, juntamente com meu pai. Desde então, apoderou-se da fortuna, do
amor ou da minha inexperiência, que foi suficiente para lançar-me da altura demeus bons desejos, ao estado em que me encontro, pois, tendo eu olhado, mais
do que se permite a uma recatada donzela, a elegância de Marco Antônio, tendoconsiderado sua origem nobre e a grande quantidade dos bens de seu pai,pareceu-me que, se eu conseguisse tê-lo como espôso, teria tôda a felicidade
comigo; assim pensando, comecei a olhá-lo mais demoradamente para depoisolhá-lo de maneira mais descuidada, pois êle chegou a perceber que eu o
olhava; não quis o traidor nem foi preciso outro caminho para conhecer meu
segrêdo e para roubar as melhores prendas de minh'alma. Mas não sei por queme ponho a contar-vos, senhor, as particularidades de meus amores, pois quase
não vêm ao caso; basta dizer-vos que fui muito liberal para com êle porque,havendo-me dado sua palavra e, segundo acreditei, fazendo juramentos firmes,
cristãos, de ser meu espôso, disse-lhe, que dispusesse de mim como bementendesse; porém não estando eu muito satisfeita apenas com seus juramentose palavras, e para que não as levasse o vento, fi-lo escrevê-las em um papel que
êle me devolveu depois de deixar nêle sua assinatura e escrever certas palavras
que me satisfizeram. Recebi o documento, dei um jeito para que viesse de suacidade até a minha, entrasse à noite pelos muros do jardim e fôsse ter ao meu
quarto, onde, sem susto algum, podia colhêr o fruto que a êle somente estavadestinado. Chegou, enfim, a noite que eu tanto desejava Teodoro permanecera
em silêncio até então, tendo a alma prêsa às palavras de Leocádia, palavras quelhe trespassaram a alma, principalmente quando ouviu o nome de MarcoAntônio e notou a peregrina formosura de Leocádia, considerou também sua
grandeza e seu valor por sua discrição, demonstrada através do modo de elacontar sua história. Entretanto, quando disse: “Chegou a noite que eu tanto
desejara”, estêve a ponto de perder a paciência e, sem poder fazer mais nada,interrompeu-a, dizendo:
- E então, o que fêz êle quando chegou esta desejadíssima noite? Conse-
guiu entrar? Chegou a possuir-vos? Confirmou o que escrevera? Ficou satisfeitopor ter conseguido de vós o que lhe reservastes? E vosso pai, soube do fato?
Que fim tiveram tão honestos e sábios princípios?- Tais princípios - disse Leocádia - acabaram por deixarme como vêdes,
porque nem eu o possuí, nem êle me possuiu, nem veio ao encontro marcado.
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Teodósia, ouvindo estas palavras, tomou nôvo alento, recuperou a razão,que, encurralada pelo maldito ciúme, estava prestes a abandoná-la; se a
situação se prolongasse um pouco mais, o ciúme acabaria infiltrando-se em seus
ossos e medula até apoderar-se inteiramente de sua paciência; contudo, ela nãopôde deixar de ouvir com grande sobressalto o que Leocádia tinha ainda a
dizer:- Não somente deixou de vir como também, dali a oito dias - eu soube isto
de fonte limpa -, acabou por ausentar-se da cidade, não sem antes ter levado
para a casa de seus pais uma donzela, filha de um homem importante, chamadaTeodósia, jovem dotada de grande beleza e rara discrição. Por tratar-se de uma
jovem, filha de pais nobres, a notícia do rapto chegou depressa à minha cidade
e mais depressa ainda a meus ouvidos; com ela chegou também a temida e frialança do ciúme, que me atravessou o coração, abrasou minh'alma em chama tal
que transformou minha honra em cinzas, arrebatou-me as esperanças, esgotouminha brandura. Como fui infeliz! Imaginei logo como deveria ser Teodósia:
mais formosa que o sol, mais sensata que a própria sensatez e, sobretudo, maisventurosa que eu. Tomei o papel e reli as palavras; achei-as firmes e verda-deiras, incapazes de trair a fé que revelavam, mas, embora minha esperança
tivesse recorrido a elas, vi-as caídas por terra ao levar em conta a duvidosa
companhia que Marco Antônio levava com êle. Maltratei o meu rosto, arranqueios cabelos, maldisse minha sorte. E o que mais me aborrecia era não poder fazer
tais sacrifícios a tôda hora, por causa da presença constante de meu pai. Enfim,para poder ficar sozinha ou para acabar com a vida, decidi deixar a casa de meu
pai, e, como a sorte parece facilitar e afastar todos os inconvenientes a fim deque um pensamento seja pôsto em prática, roubei a um pajem, sem temoralgum, umas vestes, e a meu pai, grande quantidade de dinheiro, que cobri com
uma capa negra; saí de casa certa noite, andei a pé algumas léguas e cheguei aum lugar chamado Osuna e, acomodando-me em uma carruagem, entrei em
Sevilha, dali a dois dias, onde, ainda que me procurassem, podia estar certa deque não me encontrariam. Comprei umas roupas, um animal e caminhei atéontem com uns cavaleiros que vinham para Barcelona a tôda a pressa, pois não
queriam perder a oportunidade de ir para a Itália numas galeotas que aqui seencontram; caminhei até acontecer o que já sabeis; os bandoleiros tiraramme
tudo quanto trazia, inclusive a jóia que mantinha minha saúde e aliviava o pêsode minhas fadigas: o documento escrito por Marco Antônio. E eu, que pensavalevá-lo para a Itália, encontrar Marco Antônio, apresentá-lo como prova de sua
infidelidade e exigir dêle o cumprimento de sua promessa; mas, considerei
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também que quem se nega a cumprir obrigações que deviam estar gravadas emsua alma, negará com facilidade as palavras escritas em um papel. Se êle tiver
em sua companhia a incomparável Teodósia, claro está, não há de querer olhar
para a infeliz Leocádia. Por tudo isso, penso em morrer ou, então, apresentar-me na presença dos dois, para que minha vida lhes tire o sossêgo. Não pense a
inimiga de meu descanso gozar assim tão fàcilmente aquilo que é meu. Eu aprocurarei, eu a encontrarei e haverei de tirar-lhe a vida, se puder.
- Mas que culpa terá Teodósia - disse Teodoro - se ela também tiver sido
enganada por Marco Antônio, como vós o fôstes, Senhora Leocádia?- E como pode ser assim - falou Leocádia -, se êle a levou consigo? E
estando juntos os que se querem bem, que engano pode haver? Nenhum, por
certo. Êles estão felizes, porque estão juntos. Pois que fiquem nos distantes eabrasadores desertos da Líbia ou nas terras isoladas da fria Cítia, como se
costuma dizer. Ela o possui, sem dúvida, e somente ela há de pagar pelo quesofri.
- Talvez estejais enganada - replicou Teodósia -, pois eu conheço muitoessa vossa inimiga, e sei que ela, em seu recato, nunca se aventuraria a deixar acasa de seus pais nem concordar com a vontade de Marco Antônio. E, mesmo
que o tivesse feito, não vos conhecendo nem sabendo nada a respeito do que se
passava, não vos pode ter ofendido em coisa alguma, e onde não há ofensa nãopode haver vingança.
- Quanto ao recato - falou Leocádia -, nada significa, pois eu também eratão recatada e honesta como pode ser qualquer donzela e, no entanto, fiz o que
bem sabeis. Êle a levou, não há dúvida, e, analisando os fatos desapaixonada-mente, sou obrigada a confessar que ela não me ofendeu, mas a dor que medespertam os ciúmes me faz sentir como que uma espada a atravessar minhas
entranhas; não é exagêro procurar arrancar e fazer em pedaços êsse punhal quetanto me fere; é sinal de muita prudência afastar de nós tôdas aquelas que
atrapalham nossa felicidade.- Seja como dizeis, Senhora Leocádia - retrucou Teodósia -, pois vejo que
vossa paixão não vos deixa dizer palavras mais ponderadas; sei que a hora não
é própria para conselhos. De minha parte, repito-vos que hei de ajudar-vos afavorecer em tudo quanto fôr justo e possível. Sei que meu irmão fará a mesma
coisa, pois sua condição e nobreza não o levarão a agir de outra forma. Nossodestino é a Itália; se quiserdes vir conosco, já sabeis mais ou menos como sereistratada em nossa companhia. Peço-vos apenas licença para contar a meu irmão
o que sei a vosso respeito; assim êle poderá tratar-vos com o respeito que
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mereceis e cuidará de vós como se deve. Parece-me, também, que não deveismais usar estas roupas e, se tivermos oportunidade, comprarei, pela manhã, as
melhores roupas que houver e que melhor vos convenham. Quanto às vossas
demais pretensões, dai tempo ao tempo, que é grande mestre em achar remédiopara os casos mais desesperadores.
Leocádia agradeceu a Teodósia, que ela julgava ser Teodoro, os muitosoferecimentos que fazia e permitiu-lhe contar ao seu irmão tudo que quisesse,suplicando-lhe para não a desamparar, pois já antevia os inúmeros perigos a
que estaria exposta se todos soubessem ser ela mulher.Com isto, despediram-se e foram dormir. Teodósia dirigiu-se ao quarto do
irmão e Leocádia ao quarto contíguo. Dom Rafael ainda não dormira, pois
esperava a irmã para saber o que se havia passado. Quando Teodósia entrou,perguntou-lhe, antes de ela se deitar, qual o resultado da conversa. A môça
contou-lhe detalhadamente o que Leocádia lhe dissera: de quem era filha, deseus amôres, do papel que Marco Antônio lhe dera e de sua intenção. Dom
Rafael, admirado, falou à irmã:- Se ela é de fato a pessoa que diz, só vos posso dizer, minha irmã, que ela
é uma das senhoras mais nobres e importantes de tôda Andaluzia; seu pai é
muito conhecido do nosso e a beleza de seu rosto não desmente a fama de que
goza por sua formosura. Isso me faz pensar que devemos agir cautelosamente enão a deixar falar com Marco Antônio antes de nós, pois o documento assinado
por êle, embora ela o tenha perdido, muito me preocupa. Mas, tranqüilizai-vose repousai, minha querida irmã, pois haveremos de encontrar uma solução para
tudo.Teodósia procurou fazer o que o irmão lhe dizia, mas não pôde acalmar-
se, pois a doença do ciúme se havia apoderado de sua alma. Como a beleza de
Leocádia e a deslealdade de Marco Antônio se apresentavam muito maiores doque eram na realidade! Quantas vêzes lia ou imaginava ler o papel que êle
assinara! Quantas palavras e argumentos via serem acrescentados àquele papel,que aumentava assim em valor! Quantas vêzes imaginou que, se êle nãoexistisse, Marco Antônio não teria deixado de cumprir a promessa que lhe
fizera!Assim, passou ela a maior parte da noite sem poder conciliar o sono. Dom
Rafael, seu irmão, também não conseguiu descansar, pois, logo que ouviu dizerquem era Leocádia, seu coração queimou-se em amôres, como se de há muitoesperasse que isso acontecesse; tal é o poder da formosura, que, de repente,
arrasta consigo o desejo de quem a vê e a conhece, pois, quando promete
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alguma esperança, inflama impetuosamente a alma de quem a contempla e ofaz de tal modo que qualquer centelha incendeia com facilidade a pólvora que
ali se encontra. Dom Rafael não podia imaginar Leocádia prêsa a uma árvore
nem vestida com andrajosas roupas de homem e sim vestida com roupas demulher, em casa de seus ricos e importantes pais. Não fixava nem queria fixar o
pensamento nas causas que o fizeram conhecê-la; desejava que o dia chegassepara prosseguir em sua jornada e procurar Marco Antônio, não tanto para fazerdêle seu cunhado, mas para impedi-lo de tornar-se espôso de Leocádia. O amor
e o ciúme apoderaram-se dêle de tal forma que êle pensou em deixar de ajudara irmã e matar Marco Antônio, a fim de que nada o impedisse de casarse com
Leocádia; suas esperanças prometiam bom têrmo para seu desejo, que haveria
de ser realizado, quer pela fôrça quer pelos favores que pudesse prestar, pois aocasião e o lugar lhe eram propícios.
Prometendo uma porção de coisas a si próprio, acalmou-se um pouco edali a instantes viu chegar o dia. Todos se levantaram e Dom Rafael, chamando
o hospedeiro, perguntou-lhe se naquela cidade havia roupas adequadas paravestir um pajem que os bandoleiros haviam deixado nu. O hospedeiro disse quepossuía umas roupas em bom estado. Dom Rafael ordenou-lhe que as trouxesse
e, como servissem em Leocádia, pagou-as. A môça vestiu-se, cingiu uma espada
e uma adaga com tanta graça que perturbou a razão de Dom Rafael e aumentouo ciúme de Teodósia. Calvete arreou os cavalos e, às 8 horas, partiram êles para
Barcelona, sem visitar o famoso mosteiro de Montserrat, deixando para fazê-loquando Deus os deixasse tornar sossegados à sua terra. Não podemos contar,
de maneira satisfatória, os pensamentos dos dois irmãos, nem falar dosdiferentes ânimos com que iam olhando Leocádia. Teodósia desejava-lhe amorte; Dom Rafael, a vida. Ambos, ciumentos e apaixonados. Ela atribuía-lhe
defeitos para não ver fenecer suas esperanças; Dom Rafael via-lhe perfeiçõesque, pouco a pouco, o obrigavam a amá-la cada vez mais. Apesar de tudo isso,
não deixaram de se apressar, de modo que chegaram a Barcelona antes do pôrdo sol.
Admiraram-se com a beleza do lugar e consideraram Barcelona a mais
bela entre as belas cidades do mundo, a glória da Espanha, o temor e espanto deseus inimigos, ou vizinhos ou distantes, o regalo e delícia de seus moradores,
abrigo para os estrangeiros, modêlo de cavalheirismo, coragem, e exemplo delealdade e satisfação de tudo aquilo que um discreto e curioso desejo podepedir a uma grande, formosa e rica cidade. Ao entrarem, ouviram um fortís-
simo estrondo e viram muita gente a correr alvoroçada. Indagando a causa de
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tal agitação, souberam que o pessoal das galeras estava na praia e lutava com agente da cidade. Dom Rafael, ouvindo isso, quis ver o que se passava, embora
Calvete lhe dissesse para não o fazer, que era loucura meter-se em tal perigo,
que era difícil uma pessoa sair-se bem em tais brigas, comuns naquela cidade,quando ali chegavam galeras. O conselho de Calvete não conseguiu, porém,
demover Dom Rafael de seu intento e acabaram todos por segui-lo. Chegando àpraia, viram muitas espadas desembainhadas e muita gente golpeando-se semdó nem piedade. Apesar disso, sem apear, chegaram tão perto do local da luta,
que puderam ver distintamente o rosto dos combatentes, porque o sol aindanão se havia escondido. Era imenso o número de pessoas da cidade que para lá
se dirigiam e grande o número de pessoas que desembarcavam das galeras,
embora o cavalheiro que as comandava, um valenciano chamado Dom PedroVique, da pôpa da galera capitânea, ameaçasse a todos os que haviam embar-
cado em seus botes para que fôssem socorrer os demais. Enfim, vendo DomPedro que de nada adiantavam seus gritos e ameaças, mandou virar as proas
das galeras em direção da cidade e disparar uma peça de artilharia sem bala,sinal de que, se êles não parassem de lutar, o outro disparo não iria sem ela.Enquanto isso, Dom Rafael olhava atentamente a luta ferrenha que se travava.
Notou, então, que, entre os homens das galeras, havia um jovem de uns 22
anos, vestido com roupas verdes e um chapéu da mesma côr, enfeitado com umgalão muito rico, talvez de diamante, que se destacava dos demais. Sua destreza
ao lutar e a elegância de sua roupa chamou a atenção de todos os queapreciavam a luta; os olhos de Teodósia e os de Leocádia fitaram-no de tal
forma que ambas exclamaram a um só tempo:- Valha-me Deus! Ou não tenho olhos ou aquêle jovem de roupas verdes é
Marco Antônio.
Dizendo isto, saltaram das mulas com grande ligeireza e, passando a mãonas espadas, entraram sem temor algum no meio da turba, colocando-se lado a
lado de Marco Antônio, pois era êle mesmo o jovem que usava as roupas verdesdas quais falamos.
- Não temais, Senhor Marco Antônio - disse Leocádia assim que chegou -,
pois tendes a vosso lado alguém que fará escudo de seu próprio corpo paradefender o vosso.
- Quem o duvidará, estando eu aqui? - perguntou Teodósia.Dom Rafael, vendo e ouvindo o que se passava, seguiu-as e colocou-se a
seu lado. Marco Antônio, ocupado em atacar e defender-se, não prestou atenção
às palavras que elas lhe disseram; empenhado na luta, fazia coisas incríveis,
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porém, como o pessoal da cidade aumentasse, viram-se obrigados a recuar atémeterem-se na água. Marco Antônio retirava-se de má vontade e junto com êle
as duas novas e valentes Bradamante e Marfisa ou Hipólita e Pantasiléia. Nisto,
aproximou-se um cavaleiro catalão da ilustre família dos Cardona, que,colocando-se entre os inimigos, fazia o pessoal da cidade retirar-se, pois todos o
respeitavam. Entretanto, alguns, mais exaltados, de longe atiravam pedras aosque entravam na água, e quis a má sorte que uma delas atingisse a fronte deMarco Antônio, com tanta fúria, que o fêz cair dentro da água. Leocádia, tão
logo o viu cair, levantou-o e recolheu-o em seus braços.Teodósia fêz o mesmo. Dom Rafael estava um pouco distante defendendo-
se da chuva de pedras que por sôbre êles caía e, quando quis ir em socorro de
sua bem-amada, de sua irmã e do cunhado, pôs-se diante dêle o cavalheirocatalão e lhe disse:
- Acalmai-vos, senhor, como bom soldado que sois, e fazei o favor decolocar-vos a meu lado que eu vos livrarei da insolência desta gente.
- Deixai-me passar, senhor - falou Dom Rafael -, pois vejo em grandeperigo tôdas as pessoas que mais estimo na vida.
O cavalheiro deixou-o passar, mas êle não chegou a tempo.
Marco Antônio e Leocádia, que o mantinha nos braços, foram recolhidos
ao barco da galera capitânea; Teodósia não conseguiu ir com êles, pois não tevefôrças para subir no bote, ou por estar cansada, ou por sofrer vendo que Marco
Antônio estava ferido, ou por ver que sua maior inimiga estava com êle; e teria,sem dúvida, caído na água, desmaiada, se o irmão não chegasse a tempo de
socorrê-la. Dom Rafael ficou tão aborrecido quanto a irmã por ver que Leocádiase fôra com Marco Antônio, pois também êle já o havia reconhecido. O cava-lheiro catalão, impressionado com a galhardia de Dom Rafael e de sua irmã,
que êle pensava ser homem, chamou-os da praia e pediu-lhes para ir ter comêle. Forçados pela necessidade e receando que o povo, ainda não totalmente
acalmado, lhes causasse algum mal, tiveram de aceitar o convite que lhes erafeito.
O cavalheiro desmontou, e, colocando-se junto aos dois jovens, passou
com a espada desembainhada por entre a turba, pedindo ao povo que seafastasse, e êle assim o fêz. Dom Rafael olhou para todos os lados para ver se
encontrava Calvete e as mulas, mas não conseguiu, pois o criado as levara parauma estalagem onde costumava ficar. O cavalheiro chegou a casa, que era umadas mais importantes da cidade, e perguntou a Dom Rafael em qual das galeras
tinha êle vindo.
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Dom Rafael respondeu-lhe que não viera em nenhuma, pois haviachegado à cidade no momento em que a luta começava e, por ter reconhecido o
cavalheiro que tinha sido ferido pela pedrada, expusera-se àquele perigo. Disse
isso e pediu-lhe para mandar buscar o rapaz ferido, porque dêle dependiam suaalegria e sua vida.
- Eu o farei de boa vontade - falou o fidalgo -, e sei que o general meatenderá, pois é um cavalheiro e é também meu parente.
Sem mais demora dirigiu-se êle à galera, onde Marco Antônio estava
sendo socorrido, pois a ferida, como dissera o cirurgião, era perigosa, por ser dolado esquerdo. Conseguiu do general permissão para transportar Marco
Antônio à terra a fim de curá-lo; puseram o rapaz no bote com muito cuidado e
o levaram para terra; Leocádia não o abandonou um só instante, embarcoutambém, como para seguir o guia de sua esperança.
Chegando à terra, o cavalheiro mandou trazer de sua casa uma liteira parao levarem. Enquanto isto se passava, Dom Rafael mandou procurar Calvete,
que se encontrava na estalagem, preocupado com a sorte de seus amos;entretanto, ao saber que êles estavam bem, alegrou-se muitíssimo e foi paraonde estava Dom Rafael.
Entrementes, chegaram Marco Antônio e Leocádia e o cavalheiro, que
acomodou a todos com muito confôrto e carinho. Ordenou que se procurasseum famoso cirurgião da cidade a fim de que êle medicasse Marco Antônio
novamente. O médico atendeu o chamado, mas não quis receitar nada, dizendoque os médicos dos exércitos e armadas eram muito experientes, pois tinham,
freqüentemente, de cuidar de feridos e que, portanto, nada queria receitar, pelomenos até o outro dia. Deu instruções apenas para colocarem Marco Antônioem um quarto bem fechado e que o deixassem descansar. Logo depois chegou o
médico da galera, que lhe contou como socorrera o ferido e qual era, segundopensava, seu verdadeiro estado. O médico da cidade achou que Marco Antônio
tinha sido bem atendido e também, levando em consideração o relatório feitopelo outro, exagerou ao falar do perigo que o rapaz corria.
Leocádia e Teodósia, ao ouvirem suas palavras, pensaram ter ouvido sua
própria sentença de morte, mas, para não darem mostras de sua dor, calaram-se. Leocádia, porém, decidiu fazer o que lhe parecia mais conveniente para
preservar sua honra. Assim, tão logo os médicos se foram, entrou no quarto deMarco Antônio e, perante o dono da casa, perante Dom Rafael, Teodósia eoutras pessoas, chegou à cabeceira do ferido e, tomando-lhe as mãos, disse-lhe:
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- A situação não permite, Senhor Marco Antônio Adorno, gastarem-semuitas palavras convosco, por isso peço-vos apenas para escutar algumas
palavras que, se não forem benéficas para a saúde do corpo, haverão de sê-lo
para vossa alma, mas para eu as dizer é necessário dardes licença e demons-trardes se estais em condição de ouvir-me. E isso porque, tendo eu procurado
agradar-vos desde que vos conheci, não é justo que nesse instante, talvez fatal,eu vos seja a causa de algum aborrecimento.
Ao ouvir estas palavras, Marco Antônio abriu os olhos, fixou-os
demoradamente em Leocádia e, parecendo reconhecê-la, disse, com voz fraca eapagada:
- Dizei, senhora, o que desejais, pois eu não estou assim tão mal que não
possa nem mesmo escutar-vos, nem tendes voz tão desagradável que eu meaborreça ao ouvi-la.
Teodósia permanecia atenta; cada palavra de Leocádia era uma seta agudaa atravessar-lhe o coração e a ferir a alma de Dom Rafael, que também a
escutava. Leocádia prosseguiu:- Se o golpe desfechado em vossa cabeça ou, para melhor dizer, em
minh'alma, Senhor Marco Antônio, não levou de vossa memória a imagem
daquela que há pouco tempo considerastes como vossa glória e vossa
felicidade, havereis de lembrar quem é Leocádia e que palavras escrevestes,com vossa própria mão e com vossa letra, em um papel que a ela entregastes;
não tereis esquecido também a nobreza de sua origem, tôda a sua integridade eseu recato e vossa obrigação, por terdes consentido, de vossa própria vontade,
que ela satisfizesse todos os vossos desejos. Se não vos esquecestes, havereis dereconhecer fàcilmente que sob êstes trajes se esconde Leocádia, pois eu,receando que novos acidentes me roubassem o que tão justamente é meu, tão
logo partistes, superando muitas inconveniências, decidi seguirvos com aintenção de procurar-vos em tôda parte da terra, até encontrar-vos. E não vos
deveis admirar, se é que já ouvistes falar alguma vez onde chegam as fôrças deum amor verdadeiro e a cólera de uma mulher enganada. Passei algumasdificuldades em minha viagem, mas eu as julgo uma alegria, pois elas me
permitiram ver-vos; talvez Deus queira levar-vos desta vida, por isso, sefizerdes o que deveis antes de partir, considerarme-ei mais do que feliz e vos
prometo que, depois de vossa morte, pouco tempo há de se passar até eu vosseguir nesta última e forçosa jornada. Rogo-vos, primeiro por Deus, a quemofereço meus desejos, e depois por vós, que muito deveis a vós mesmo por
serdes quem sois, e finalmente por mim, a quem deveis mais do que a qualquer
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outra pessoa no mundo, que me recebais aqui como vossa legítima espôsa, nãopermitindo que a Justiça faça o que a razão vos indica.
Leocádia calou-se e todos os presentes, que tinham permanecido em
profundo silêncio enquanto ela estivera falando, mantiveram-se em silêncio,esperando a resposta de Marco Antônio.
- Não posso negar, senhora, que vos conheço, pois vossa voz e vosso rostonão me permitem negá-lo. Também não quero negar o muito que vos devo nemo grande valor de vossos pais nem vossa incomparável honestidade e sensatez,
nem vos menosprezarei por terdes vindo procurar-me vestida com êstes trajes;pelo contrário, estimo-vos por isso e estimarei muito ainda; mas, já que minha
sorte me fêz chegar ao fim, como dissestes, e porque em tais ocasiões nada se
deve esconder, quero revelarvos uma verdade que, se não vos agradar agora,talvez no futuro vos traga algum proveito. Confesso, formosa Leocádia, que vos
quis bem, mas também confesso que assinei aquêle papel mais para realizarvosso desejo que propriamente o meu, pois muitos dias antes de assiná-lo já
entregara minha vontade e minh'alma a uma jovem de minha cidade, chamadaTeódósia, filha de pais tão nobres quanto os vossos, e a quem vós bemconheceis; se vos dei um papel assinado por meu próprio punho, dei a ela
minha mão, juntamente com tais obras e testemunhas que estou impossibilitado
de prender-me a qualquer outra pessoa no mundo. Nossos amôres foram semmaior conseqüência, e dêles nada mais alcancei além de flores, que não vos
ofenderam nem vos podem ofender em coisa alguma; com Teodósia, entretanto,obtive o fruto que ela pôde dar e que desejei que me desse, pois , estava certo de
ser seu espôso, como de fato o sou. Se deixei a vós admirada e enganada, a ela,receosa e, a seu ver, desonrada, foi levado pelo meu pouco juízo, acreditandoque tais coisas não tivessem muita importância e que podia fazê-las sem
escrúpulo algum; levado por outros pensamentos, quis ir para a Itália e passarali alguns anos de minha juventude e depois voltar para ver o que Deus havia
feito de vós e de minha verdadeira esposa, mas o céu, apiedando-se de mim,permitiu-me ficar neste estado para que, confessando estas verdades, nascidasde minhas inúmeras culpas, pague nesta existência minhas dívidas, a fim de
que vós fiqueis desenganada e livre para fazerdes o que melhor vos parecer. SeTeodósia souber algum dia de minha morte, saberá, por vós e pelos que estão
presentes, como em minha hora extrema eu soube cumprir a palavra queempenhei estando vivo e se, no pouco tempo de vida que me resta, SenhoraLeocádia, eu vos puder servir em alguma coisa, exceto receber-vos como
esposa, é só dizer, pois tudo farei para vos agradar.
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Enquanto Marco Antônio dizia estas palavras, apoiava a cabeça em seucotovêlo, mas, acabando de pronunciá-las, deixou cair o braço, dando mostras
de que desmaiava. Dom Rafael acudiu logo e, abraçando-o fortemente, disse:
- Voltai, senhor, abraçai vosso amigo e irmão; sou Dom Rafael, vossoamigo, que será a verdadeira testemunha de vossa vontade e da graça que
concedeis a minha irmã, aceitando-a por esposa.Marco Antônio voltou a si e logo reconheceu Dom Rafael, abraçou-o
estreitamente, beijou-o no rosto e disse:
- Meu querido amigo e irmão, a imensa alegria que senti ao ver-vos sópode ser transformada em imenso pesar, pois costuma-se dizer que à alegria
segue-se a tristeza, mas eu darei por bem empregada qualquer tristeza em troca
da alegria de vos ver.- Pois eu quero prolongar vossa alegria - disse Dom Rafael -, apresen-
tando-vos esta jóia que é a vossa querida espôsa. Procurou Teodósia e aencontrou chorando, surprêsa, hesitante entre o pesar e a alegria pelo que via e
acabava de ouvir. Dom Rafael pegou-a pela mão e ela, sem resistir, deixou-selevar até Marco Antônio, que a reconheceu, que a abraçou, e ambos derra-maram ternas e amorosas lágrimas. Todos os presentes ficaram admirados por
presenciar tais acontecimentos; entreolhavam-se sem dizer palavra, esperando
para ver que fim teriam tôdas aquelas coisas. A desventurada Leocádia, vendocom seus próprios olhos o que Marco Antônio fazia e vendo aquêle que julgava
irmão de Dom Rafael nos braços de quem ela acreditava seu espôso e vendotambém frustrados seus desejos, perdidas suas esperanças, abandonou o
aposento sem ser vista, pois todos olhavam atentamente o enfêrmo, quepermanecia abraçando o suposto pajem; num instante encontrou-se ela na rua,com intenção de ir para onde ninguém pudesse vê-la. Mal chegara à rua, Dom
Rafael deu pela sua falta, e, como se lhe faltasse a alma, perguntou por ela, masninguém soube dizer para onde tinha ido.
Desesperado, não esperou mais; saiu para procurá-la e dirigiu-se até ahospedaria onde estava Calvete, pois talvez ela tivesse ido para lá à procura deum animal que pudesse montar. Não a encontrando, andou como um louco
pelas ruas, procurando-a em tôdas as partes. Depois, pensando que ela poderiater voltado às galeras, dirigiu-se à praia e, ao chegar, ouviu gritos que chama-
vam da terra o bote da nau capitânea e reconheceu que quem os pronunciavaera a formosa Leocádia. Esta, receando algum perigo, ao ouvir seus passos,empunhou a espada e esperou.
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Dom Rafael aproximou-se dela, ela o reconheceu e lamentou que aencontrasse, e ainda mais em lugar tão deserto, pois já percebera que Dom
Rafael não lhe queria mal; percebeu até que êle lhe queria muito bem e desejou
que Marco Antônio lhe quisesse tanto quanto Dom Rafael lhe queria.Que palavras poderei eu usar para transmitir o que Dom Rafael disse a
Leocádia ao declarar-lhe seus sentimentos? Tantas foram suas razões que eunão me atrevo a repeti-las, mas, como é preciso, direi algumas delas:
- Se eu não tivesse agora, ó formosa Leocádia, o atrevimento de vos
revelar os segredos de minh'alma, ficaria enterrada no seio do esquecimentoperpétuo a mais enamorada e honesta vontade que já nasceu ou há de nascer
em um coração enamorado. Mas, para não ofender meu sincero desejo,
aconteça-me o que acontecer, quero, senhora, que observeis, se o vosso agitadopensamento consentir, que Marco Antônio em nada é superior a mim, a não ser
pelo fato de ser amado por vós; minha linhagem é tão nobre quanto a sua e suafortuna não me leva muita vantagem; quanto ao físico, não convém gabarme,
pois vossos olhos não me estimam; digo-vos tudo isso, minha senhora, para queaceiteis o remédio que a sorte vos oferece no auge de vossa desgraça. Já sabeisque Marco Antônio não pode ser vosso porque o céu o reservou para minha
irmã, e êste mesmo céu que vos tirou Marco Antônio quer recompensar-me,
pois não desejo outro bem na vida senão tornar-me vosso espôso. Notai que, seaté há pouco a má sorte nos acompanhou, a fortuna bate agora às nossas portas;
não penseis que vosso atrevimento ao procurar Marco Antônio seja motivo paraque eu não vos estime e não vos considere, pois, quando vos receber como
espôsa, hei de esquecer - e já esqueci - tudo quanto soube e vi. Sei muito bemque as fôrças que me obrigaram tão impetuosamente a adorar-vos e a entregar-me a vós trouxeram-vos ao estado em que vos encontrais e, assim, não haverá
necessidade de apresentar desculpas, pois não há êrro algum.Leocádia permaneceu em silêncio, ouvindo o que Dom Rafael lhe dizia; de
vez em quando, dava uns profundos suspiros, saídos do imo de suas entranhas.Dom Rafael atreveu-se a pegar-lhe numa das mãos e beijá-la muitas vêzes.Leocádia não teve fôrças para impedi-lo.
- Consenti, senhora de minh'alma, em ser minha espôsa - dizia êle -,consenti em presença dêste céu estrelado que nos cobre, dêste sossegado mar
que nos escuta e desta areia que nos sustém; dai-me o sim que sem dúvidaconvém tanto à vossa honra como a minha satisfação. Torno a dizer-vos que souum cavalheiro, como sabeis, que sou rico e que vos quero bem - e será o que
mais haveis de estimar. Em vez de encontrar-vos só e vestida com roupas
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menos condizentes com a vossa honra, longe da casa de vossos pais e parentes,sem ninguém para vos auxiliar e sem esperança de alcançar o que procuráveis,
podeis voltar à vossa pátria em vosso próprio, honrado e verdadeiro, traje,
acompanhada de tão bom espôso quanto aquêle que soubestes escolher, rica,satisfeita, estimada, servida e também louvada por todos aquêles a cujos
ouvidos chegar a notícia de tais fatos. E, se isto é assim, não sei o que esperais;consenti e eu vos digo outra vez - em levantar-me do chão de minha miséria aocéu de merecer-vos, que também vos encontrareis nêle e cumprireis com as
normas da cortesia e educação, mostrando-vos ao mesmo tempo agradecida esensata.
- Está bem - disse Leocádia então. - Já que o céu assim o ordenou e não
está em minhas mãos ou nas mãos de vivente algum opor-se ao que êledetermina, faça-se o que êle quer e vós também quereis, meu senhor; mas êste
mesmo céu sabei quão envergonhada estou ao ceder à vossa vontade, nãoporque.) não entenda o muito que lucro em obedecer-vos, mas porque; temo
que, realizando vosso desejo, haveis de me ver com outros olhos, pois talvezestejais enganado até agora. Mas, seja como fôr, não poderei perder o nome demulher legítima de Dom Rafael de Villavicencio; com êste título já viverei
contente. Se meus hábitos e costumes merecerem um dia que me estimeis,
agradecerei ao céu por ter concedido a mim, através de tão estranhas voltas e detantos males, a ventura de vos pertencer. Aceito, Dom Rafael, a vossa proposta
e que o céu, o mar, as areias e êste silêncio, interrompido apenas pelos meussuspiros e pelas vossas palavras, sejam, como dizeis, as testemunhas de vossas
promessas.Dizendo isto, estendeu a mão a Dom Rafael e deixou-o abraçá-la; apenas
lágrimas de alegria, que brotavam de seus olhos, celebraram êste nôvo
esponsal. Voltaram em seguida à casa do fidalgo, que estava preocupadíssimocom sua ausência, o mesmo acontecendo com Marco Antônio e Teodósia, que já
se haviam casado, pois Teodósia, receando que algum incidente pudesse tirar-lhe o bem que encontrara, pediu para trazerem um padre o mais depressapossível. O fidalgo atendeu-a imediatamente, e assim, tendo tornado de volta os
dois jovens e tendo Dom Rafael contado o que se passara, todos se alegraramcomo se êles fôssem parentes muito próximos, fato característico da nobreza
catalã, que sabe ser amiga e auxiliar de todos os estrangeiros que dela precisem.O sacerdote que ali se encontrava ordenou a Leocádia para mudar de roupas; ocavalheiro dispôs-se a ajudá-la e a ajudar também Teodósia, dando-lhes ricos
vestidos de sua mulher, que era uma senhora importante, pertencente à famosa
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e antiga família dos Granalheques. O cirurgião, preocupado com o estado doferido, pois êle falava muito e ninguém o deixava só, ordenou que todos se
mantivessem em silêncio. Deus, decidindo restituir a saúde de Marco Antônio,
ordenou que a alegria e o ruído que giravam em tôrno do rapaz o reanimasseme assim, no outro dia, quando o examinaram novamente, acharam-no fora de
perigo; daí a catorze dias Marco Antônio sentiu-se tão bem que, sem temoralgum, pôde empreender viagem.
É preciso saber que Marco Antônio, enquanto estêve no leito, fêz a
promessa de ir a pé a Santiago da Galícia. Dom Rafael, Leocádia, Teodósia e atémesmo Calvete o acompanharam. Os cavalariços raramente fazem tal coisa,
mas a bondade e a simplicidade de Dom Rafael obrigaram Calvete a não o
deixar até que êle voltasse à sua terra; tendo o criado que viajar a pé comoperegrino, enviaram suas mulas e a de Dom Rafael a Salamanca, pois não faltou
quem quisesse levá-las. Chegando o dia da partida, muniram-se todos de suasesclavinas, de outras coisas necessárias e despediram-se do liberal cavalheiro
que se chamava Dom Sancho de Cardona, nobre de origem, afamado por suasações e que tanto os havia auxiliado; prometeram todos lembrar para sempre osimensos favores que dêle haviam recebido, agradecendo pelo menos a êle e a
seus descendentes, já que não lhes podiam retribuir. Dom Sancho abraçou-os,
dizendo que fazia de bom grado tôdas aquelas e mais outras boas ações, a todosos que eram ou pareciam ser fidalgos castelhanos. Repetiram-se os abraços e
com um misto de alegria e tristeza despediram-se. Caminhando conforme opermitia a constituição delicada das duas peregrinas, chegaram daí a três dias a
Montserrat; permaneceram neste lugar também por três dias, fazendo o que,como bons cristãos. e católicos, deviam fazer; retomaram depois seu caminho echegaram a Santiago sem que nada lhes acontecesse.
Cumpriram a promessa com a maior devoção possível e não quiseramtirar as roupas de peregrinos até chegarem a suas casas, onde entraram lenta-
mente, descansados e felizes. Antes de chegar, porém, avistando de umaencosta o lugar onde Leocádia e Teodósia moravam, o qual, como já se disse,ficava apenas a 1 légua um do outro, não puderam conter as lágrimas que a
alegria lhes trouxe aos olhos, principalmente aos das duas jovens, querelembraram os acontecimentos passados.
De onde estavam, podia-se ver um grande vale que separava as duascidades e nêle viram, à sombra de uma oliveira, um cavalheiro, montando umbelíssimo cavalo, com uma adaga cintilante na mão esquerda e uma comprida
lança na direita.
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Olhando mais atentamente, viram ainda por entre o olival dois outroscavaleiros também armados e tão elegantes quanto o primeiro. Viram então que
êles se reuniram e, depois de terem ficado juntos por um instante, separaram-se.
O último dêstes cavaleiros afastou-se com o que estava embaixo da oliveira eambos, esporeando seus cavalos, atacaram-se mutuamente, dando mostras de
ser inimigos mortais. Seus fortes e destros golpes de lança provavam que êleseram mestres em lutar. O terceiro dêles olhava-os sem sair de seu lugar. DomRafael, não podendo ficar observando de longe aquela renhida e singular
batalha, desceu ràpidamente a encosta, sendo seguido pelos demais; em poucotempo encontrou-se êle junto aos dois combatentes, mas os cavaleiros já se
haviam ferido bastante. Um dêles, ao perder seu chapéu e seu capacete de aço,
voltou-se, e Dom Rafael pôde reconhecer nêle seu pai; o outro cavaleiro era opai de Marco Antônio, e foi imediatamente reconhecido pelo filho. Leocádia,
olhando atenciosamente o cavaleiro que não entrava na luta, reconheceu que êleera seu pai; ao vê-lo, ficaram todos admirados, perplexos, mas o espanto cedeu
lugar à razão e os dois rapazes, sem mais demora, puseram-se entre os quelutavam, dizendo em altas vozes:
- Parai, cavalheiros, parai, pois êstes que vos rogam e suplicam são os
vossos próprios filhos. Eu sou Marco Antônio, meu pai. Sou aquêle por quem,
segundo penso, vossas veneráveis cãs estão sofrendo êste difícil transe; abran-dai a fúria e abandonai a lança ou guardai-a para outros inimigos, pois êste que
está diante de vós há de ser vosso irmão.Dom Rafael dizia mais ou menos estas mesmas palavras a seu pai; os
cavalheiros, ouvindo-as, estacaram e puseram-se a olhar atentamente os que aspronunciavam. Voltando a cabeça, viram que Dom Enrique, o pai de Leocádia,se abraçava ao suposto peregrino. E que Leocádia, aproximando-se dêle e
dando-se a conhecer, pediu-lhe que evitasse a luta, dizendo-lhe, em brevespalavras, que Dom Rafael era seu esposo e Marco Antônio, o espôso de
Teodósia.Ouvindo isto, Dom Sancho desmontou, abraçou a filha e procurou logo
acalmar os dois fidalgos, embora não fosse preciso, pois êles já haviam reconhe-
cido seus filhos, já haviam apeado e estavam a abraçá-los, chorando lágrimasnascidas do amor e da satisfação. Reuniram-se e, tornando o olhar para os
filhos, não sabiam o que dizer; tocavam-lhes o corpo, para ver se eramfantasmas, pois sua imprevista chegada engendrara suspeitas, mas, certificadosda verdade, voltaram às lágrimas e aos abraços. Nisto, apontou no vale grande
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quantidade de gente armada, a pé e a cavalo, que vinha defender o cavaleiro desua cidade.
Ao chegarem e verem todos abraçados, com os olhos cheios de lágrimas,
desceram, espantaram-se e permaneceram admirados até que Dom Sancho lhesdisse brevemente o que Leocádia lhe havia contado. Todos começaram a
abraçar os peregrinos com tais mostras de contentamento que não podemosdescrever.
Dom Rafael contou novamente a todos, com a brevidade requerida pelo
tempo, que estava casado com Leocádia e que sua irmã Teodósia se casara comMarco Antônio, notícias estas que causaram novas e imensas alegrias. O pessoal
recém-chegado arranjou cavalos suficientes para os cinco peregrinos, que
decidiram ir à cidade de Marco Antônio, pois seu pai se oferecera para celebrarali as bodas dos dois casais. Partiram e alguns dos presentes adiantaram-se para
chegar à cidade e pedir alvíssaras a seus parentes e amigos.No caminho, Dom Rafael e Marco Antônio souberam a causa da luta: o pai
de Teodósia e de Leocádia, sabedores do que se passara, haviam desafiado o paide Marco Antônio para um duelo. Vieram os dois a um só tempo, mas, nãoquerendo ser desleais, resolveram que, como cavalheiros, haveria de lutar um
de cada vez; a luta acabaria com a morte de um dêles, ou mesmo de dois, se os
peregrinos não tivessem chegado. Os quatro peregrinos agradeceram a Deuspelo bom desfecho dos fatos. No dia seguinte ao de sua chegada, o pai de
Marco Antônio mandou celebrar, magnífica e esplendidamente, as bodas de seufilho com Teodósia, e as de Dom Rafael com Leocádia. E êstes viveram felizes
por muitos e muitos anos, em companhia de suas espôsas, deixando ilustredescendência, que até hoje existe naqueles dois lugares, os melhores deAndaluzia. Se não dizemos o nome dos lugares é por respeito às donzelas, às
quais, talvez, as línguas maledicentes ou inescrupulosas haveriam de criticar aleviandade dos desejos e a mudança de roupa. Peço a esta gente para não
criticar tais liberdades, até que tenha sido ferida pelas chamadas flechas deCupido, pois, na verdade, elas são uma fôrça insuperável, se assim podemosdizer, que faz o desejo vencer a razão. Calvete, o cavalariço, ganhou a mula que
Dom Rafael mandou levar a Salamanca e muitos outros presentes que os recém-casados lhe deram. Os poetas daquele tempo tiveram oportunidade de usar
suas penas, exaltando a formosura e as vitórias das duas tão destemidas quãohonestas donzelas, figuras principais desta aventura estranha.
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O Licenciado Vidriera
Dois jovens estudantes, passeando pelas margens do Tormes, encontraramembaixo de uma árvore, dormindo, um rapaz de uns doze anos, vestido como
lavrador; mandaram um criado despertá-lo; o rapazinho acordou e êlesperguntaram-lhe de onde era e o que fazia ali, sozinho. O menino respondeu-
lhes que já não se lembrava mais do nome de sua terra e que ia à cidade deSalamanca para ver se encontrava um amo a quem servir, mas que o deixasse,ao mesmo tempo, estudar. Os moços perguntaram-lhe se êle sabia ler; êle
respondeu que sim e que sabia também escrever.- Se é assim - disse um dos rapazes -, não é por falta de memória que não
sabes o nome de tua pátria.
- Seja lá como fôr - respondeu êle -, ninguém saberá o nome de minhapátria, nem o nome de meus pais, até que eu possa honrá-los.
- E de que maneira pensas honrá-los? - perguntou o outro jovem.- Com meus estudos, tornando-me famoso, pois ouvi dizer que doshomens se fazem os bispos.
Esta resposta fêz com que os rapazes o levassem e lhe oferecessemdeterminadas condições, que costumam ser proporcionadas aos criados que
ingressam naquela universidade. O rapaz disse chamar-se Tomás Rodaja e, porseu nome, por suas roupas, seus patrões concluíram que êle devia ser filho dealgum lavrador pobre. Alguns dias depois, vestiram-no de negro e dentro de
poucas semanas Tomás demonstrou possuir um talento fora do comum,servindo seus amos com tanta fidelidade, pontualidade e diligência que parecia
não fazer outra coisa senão servi-los, embora não se descuidasse dos estudos; e,como a boa vontade do criado desperta a boa vontade do patrão, Tomás Rodajadeixou de ser criado para ser amigo e companheiro de seus patrões. Ao fim de
oito anos, tornou-se êle tão famoso na universidade, por seu talento e por suahabilidade extraordinária, que era estimado pelas mais diferentes pessoas.Especializou-se em leis, mas o que lhe dava posição de relêvo era o estudo das
humanidades; sua memória era tão brilhante que causava espanto e êle
procurava cultivá-la com sua inteligência, que não era menos famosa.
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Quando seus amos terminaram os estudos voltaram para sua terra natal,que era uma das melhores cidades de Andaluzia.
Levaram Tomás, que ficou ali com êles, mas a vontade que êle tinha de
terminar os estudos e de voltar a Salamanca - que aguça o desejo de fazerretornar a ela todos os que provaram as delícias de seu modo de viver - fê-lo
pedir aos amos licença para voltar. Êles, corteses e liberais, consentiram, dando-lhe o suficiente para sustentar-se durante três anos.
O rapaz despediu-se dêles e, em suas palavras, demonstrou-lhes tôda a
gratidão; saiu de Málaga - que esta era a pátria de seus amos - e, ao passar pelacosta de Zambra, caminho que leva a Antequera, encontrou um gentil-homem a
cavalo, esplêndidamente vestido, acompanhado por dois criados, também a
cavalo. Chegou-se a êle e soube que iria seguir o mesmo caminho; fizeramcamaradagem, conversaram sôbre muitas coisas e Tomás, com poucas palavras,
demonstrou seu extraordinário talento; o cavalheiro, por sua vez, demonstrousua generosidade, pois, como êle próprio o disse, era capitão da infantaria de
Sua Majestade e seu alferes encontrava-se em Salamanca, exercitando a tropa.Elogiou a vida de soldado, pintou-lhe ao vivo as belezas de Nápoles, asdiversões de Palermo, a fortuna de Milão, os festins da Lombardia, as deliciosas
comidas das hospedarias; pintou-lhe, doce e detalhadamente, o: “Olha o
fricassé, compadre!; Passa pra cá, seu malandro!; Que venha la macatela, lipolastri e li macarroni!” Elevou às alturas a vida livre do soldado e a liberdade
na Itália, mas nada lhe disse sôbre o frio que as sentinelas passavam, sôbre operigo dos assaltos, sôbre as ameaças de guerra, sôbre a fome que se sofre,
sôbre a ruína das minas e outras coisas dessa espécie, que os soldados têm deaturar. Para resumir, disse-lhe tantas coisas e de tal maneira, que a sensatez donosso Tomás Rodaja começou a fraquejar e a se interessar por aquela vida, que
corteja sempre a morte.O capitão, que se chamava Dom Diego de Valdívia, muito impressionado
pela aparência, talento e desembaraço de Tomás, pediu-lhe que fôsse com êlepara a Itália, se é que sua curiosidade desejava conhecê-la; oferecia-lhe umlugar à sua mesa e também, se fôsse necessário, sua própria bandeira, porque o
alferes estava para deixar seu pôsto. Não foi preciso muita coisa para Tomásaceitar o convite, fazendo previamente um discurso a si próprio, dizendo lá
com seus botões que seria muito bom conhecer a Itália, Flandres e outras terrase países, pois as longas viagens muito ensinam aos homens; para isso, gastaria,no máximo, três ou quatro anos, que, acrescentados à sua pouca idade, não
seriam assim tão longos a ponto de prejudicar-lhe os estudos. E, pensando que
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tudo haveria de sair conforme sua vontade, disse ao capitão que se sentia felizpor ir com êle à Itália, com a condição de não se colocar sob suas ordens, nem
sob as ordens de sua bandeira, nem ser obrigado a sentar praça. O capitão
disse-lhe que não era necessário alistar-se, pois receberia assim mesmo ossocorros e os benefícios dispensados à companhia e que lhe daria licença tôdas
as vêzes que êle a pedisse.- Aceitar isso - disse Tomás - seria ir contra minha consciência e contra a
sua própria, senhor capitão; por isso, prefiro ir por minha própria conta.
- Uma consciência assim tão escrupulosa - disse Dom Diego - parece maisa consciência de um religioso que a de um soldado, mas, de qualquer modo,
podemos considerar-nos amigos.
Chegaram em Antequera à noite e, dentro de poucos dias, andando quasesem parar, chegaram aonde se encontrava a companhia já formada e pronta
para começar a viagem de volta a Cartagena, tendo ela, e mais outras quatrocompanhias, procurado alojamento nos lugares que lhe ficavam mais à mão.
Tomás pôde observar a autoridade dos comissários, a impertinência decertos capitães, a solicitude dos oficiais encarregados de acomodar as tropas, ahabilidade dos pagadores, as queixas do povo, a maneira de se trocar vale por
dinheiro, a arrogância dos recrutas, as discussões dos hóspedes, a mania de se
pedir coisas além do necessário e, finalmente, a necessidade quase inevitável defazer tudo aquilo que via, mas que não aprovava.
Tomás vestiu-se de meganha e deixou de usar suas roupas de estudante,para entregar-se ao “Deus dará”, como se costuma dizer. Os inúmeros livros
que possuía ficaram reduzidos a umas Horas de Nossa Senhora e a umGarcilaso, sem comentários, que levava em suas algibeiras. Chegaram aCartagena mais depressa do que queriam, porque a vida nos alojamentos é
folgada, cheia de deliciosos imprevistos. Dali embarcaram para Nápoles, emquatro galeras, onde Tomás Rodaja pôde observar a vida esquisita que aquela
gente leva, em suas casas flutuantes, passando a maior parte do tempo aridicularizar os maçantes, a roubar os galeotes, a aborrecer os marinheiros, adestruir os ratos, a exaltar os ânimos. As grandes borrascas e tormentas
temorizaram-no, principalmente no gôlfo do Leão, onde foram surpreendidospor duas tempestades; uma levou-os à Córsega e outra a Toulon, na França.
Depois de tudo isso, tresnoitados, molhados e com olheiras, chegaram àbelíssima cidade de Gênova e desembarcaram; depois de terem visitado umaigreja, o capitão e todos os seus companheiros foram para uma hospedaria,
onde esqueceram tôdas as tempestades.
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Conheceram ali a suavidade do Trebiano, o valor do Montefrascão, a fôrçado Asperino, a generosidade dos dois vinhos gregos Cândia e Soma, a grandeza
do Cinco Vinhas, a calma e a doçura do famoso Guarnacha, a aspereza do
Chentola, sem saírem do sério. O hospedeiro, tendo enumerado grandequantidade de diferentes vinhos, ofereceu-se para trazer-lhes o verdadeiro
Madrigal, o Coca, o Alaejos e o Imperial, que o deus da alegria prefere aopróprio Real Cidade; ofereceu-lhes o Esquivias, o Alanis, o Cazala, oGuadalcanal e o Membrilha, sem esquecer-se do Ribadávia e do Descargamaria.
Em resumo, o hospedeiro esmerou-se e lhes trouxe tanto vinho que podiaabrigar em suas adegas o próprio Baco.
Tomás admirou-se ao ver os cabelos loiros das genovesas, a gentileza e a
disposição garbosa dos homens, a admirável beleza da cidade, que parece tersuas casas engastadas nos penhascos, como se elas fôssem diamantes de ouro.
No outro dia, tôdas as companhias que deviam ir a Piemonte desembarcaram;Tomás, entretanto, não quis fazer esta viagem e sim ir por terra a Roma e
Nápoles, ficando de passar por Veneza, ir de Loreto a Milão e a Piemonte, ondeencontrar-se-ia com Dom Diego de Valdívia, caso êle não recebesse ordens de ira Flandres, o que era bem provável. Tomás despediu-se do capitão dali a dois
dias e em cinco chegou a Florença, tendo passado antes por Lucca„, cidade
pequena, mas bem bonita, e onde, mais do que em qualquer outra parte daItália, os espanhóis são bem recebidos. Gostou imensamente de Florença, do
lugar onde foi construída, de sua limpeza, de seus suntuosos edifícios, de seurio agradável e de suas ruas calmas. Permaneceu ali quatro dias e depois partiu
para Roma, a rainha das cidades e senhora do mundo.' Visitou seus templos,adorou suas relíquias, admirou sua grandeza e, assim como se conhecem opoder e a ferocidade do leão pelas suas unhas, êle também conheceu a grandeza
e o poder de Roma pelos restos de mármore, pelas estátuas, ou inteiras oumutiladas, pelos arcos quebrados e pelas termas destruídas, pelos seus
magníficos pórticos e grandes anfiteatros, pelo famoso rio santo, que sempreenche de águas as suas margens, abençoando-as com as infinitas relíquias demártires, que ali tiveram sua sepultura, por suas pontes, que parecem olharem-
se mútuamente, e por suas estradas, que, só pelo nome, se impõem a tôdas asoutras cidades do mundo: a Via Ápia, a Flamínia, a Júlia e outras semelhantes.
Admirava-se também com a própria divisão de seus montes: o Célio, oOuirinal, o Vaticano e os outros quatro cujos nomes expressam a grandeza e amajestade de Roma. Observou também a importância do Colégio dos Cardeais,
a majestade do sumo pontífice, a afluência e variedade de pessoas de tôdas as
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nações. Observou e anotou as coisas minuciosamente. Depois de percorrer aestação das sete igrejas, depois de ter-se confessado e beijado os pés de Sua
Santidade, o papa, cheio de agnus dei e de planos, decidiu ir a Nápoles por mar,
porque era época de se fazerem mudanças, tempo desfavorável, portanto, paratodos aquêles que querem entrar ou sair de Roma por terra. A admiração que
sentira ao ver Roma tornou-se ainda maior quando viu Nápoles, que lhepareceu, como acontece a todos os que a vêem, a melhor cidade da Europa etambém de todo o mundo.
Dali foi para a Sicília, Palermo e Messina; de Palermo, admirou a posiçãogeográfica e a beleza; de Messina, o pôrto; de tôda a ilha, a abundância que lhe
vale, merecidamente, o nome de “celeiro da Itália”. Em seguida voltou a
Nápoles e a Roma; dali foi a Nossa Senhora de Loreto, em cujo templo não viunem muros nem paredes, porque estavam todos cobertos por muletas, cadeias,
grilhões, algemas, cabeleiras, bustos de cêra, pinturas e painéis, que demons-travam as inúmeras graças recebidas das mãos de Deus, por intermédio de sua
Santa Mãe, pois aquela imagem sagrada quis engrandecer, com uma série demilagres, a devoção que lhe dedicam aquêles que, com tais dosséis, adornam asparedes de sua casa. Viu a casa e o aposento onde se passou o mais importante
acontecimento do mundo, que, entretanto, nem mesmo os céus, nem os anjos,
nem todos os habitantes das moradas eternas conseguiram entender. Dali foi aAncona, onde embarcou para Veneza, cidade que não teria rival se Colombo
não tivesse nascido e também graças ao auxílio do céu e ao grande FernãoCortês, que conquistou a grande Cidade do México, para que a bela Veneza
encontrasse quem pudesse competir com ela. Estas duas famosas cidades têmsuas ruas feitas de água; a da Europa é a admiração do Mundo Antigo; e a daAmérica, a maravilha do Nôvo Mundo. Sua riqueza pareceu-lhe infinita; seu
govêrno, previdente; sua localização, inexpugnável; sua fartura, admirável; seuscontornos, alegres; considerou-a, tôda ela, enfim, digna da fama que tem em
tôda a face da terra, fama que se deve sobretudo ao seu famoso arsenal, onde sefabricam galeras e outras inumeráveis embarcações.
As diversões e os passatempos que nosso curioso encontrou em Veneza
quase o fizeram esquecer seus objetivos. Mas, depois de estar ali um mês,passando por Ferrara, Parma e Placência, voltou a Milão, oficina de Vulcano,
pouco apreciada pelo reino da França, cidade, enfim, que desperta inúmeroscomentários, magnífica por sua grandeza, pela grandeza de seu templo e pelaextraordinária fartura de tôdas as coisas necessárias à vida humana. Dali foi
para Aste, onde chegou a tempo de alcançar o tércio (tércio: Antigo corpo de
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tropas espanholas dos séculos XVI e XVII.) que no dia seguinte partia paraFlandres. Seu amigo, o capitão, recebeu-o muito bem e, em sua companhia,
passou por Flandres, dirigindo-se depois a Antuérpia, cidade que nada ficava a
dever às outras cidades que vira na Itália. Visitou Gante, Bruxelas e observouque todo o país se preparava para tomar armas e realizar operações militares no
verão seguinte. Tendo realizado seu desejo, Tomás decidiu voltar à Espanha,mais precisamente para Salamanca, a fim de terminar seus estudos; seu amigosentiu imensamente que êle se fôsse e pediu-lhe para mandar notícias de sua
saída, de sua chegada e de tudo o que lhe acontecesse. O rapaz prometeusatisfazer-lhe a vontade ' e, passando pela França, voltou à Espanha, sem
conseguir ver Paris, pois ela estava em pé de guerra. Finalmente, chegou a
Salamanca, onde foi bem recebido pelos amigos; com o auxílio dêles, continuouos estudos, até graduar-se em leis. Por êsse tempo, chegou àquela cidade uma
senhora imponente e intrigante. Todos os pássaros do lugar foram logo atraídospelo seu canto, caíram todos em sua armadilha e não havia vademecum que
não a visitasse. Disseram êles a Tomás que aquela dama dizia ter estado naItália e em Flandres; êle, para ver se a conhecia, foi visitá-la e ela apaixonou-sepor êle; Tomás, entretanto, não se deixou prender; somente à fôrça e levado por
outros é que entrava em casa dela. Por fim, ela revelou-lhe seus sentimentos e
ofereceu-lhe todos os seus bens; êle, porém, preocupava-se mais com os livrosque com qualquer outra coisa e de maneira alguma correspondeu aos
sentimentos daquela senhora, que, vendo-se desprezada e sabendo que, pormeios comuns, não poderia conquistar a rocha que era Tomás, decidiu procurar
outros meios, em sua maneira de ver, mais eficazes, para fazê-lo ficar sob suasordens. Aconselhada por uma jovem moura, deu a Tomás, em um marmeloToledano, uma droga, acreditando que assim pudesse obrigá-lo a amá-la, como
se no mundo houvesse ervas, encantos ou palavras suficientes que nospudessem tirar o livre arbítrio; por isso as criaturas que fazem essa espécie de
bebidas ou comidas chamam-se venéficas, pois nada mais fazem que darveneno a quem bebe os seus filtros, como já o demonstrou uma série deexperiências em diversas ocasiões. Tomás comeu o marmelo e logo depois
começou a bater as mãos e os pés, como se estivesse com epilepsia, ficandoinconsciente durante muitas horas; quando voltou a si, falou, com a língua
enrolada, que se encontrava naquele estado porque comera um marmelo que oenvenenara e denunciou quem o havia dado. O caso foi levado à Justiça, que sepôs a procurar a malfeitora, mas ela, vendo o mau sucesso de seu plano, já se
havia pôsto a salvo e nunca mais apareceu.
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Tomás ficou na cama seis meses e emagreceu de tal forma que ficou sópele e osso, como se costuma dizer; além disso, mostrava estar com o juízo
perturbado e, embora lhe tivessem dado todos os remédios possíveis, curaram-
lhe apenas a enfermidade do corpo; a do entendimento não; ficou louco e damais estranha loucura que já se viu. O infeliz imaginou-se todo feito de vidro e,
por isso, quando alguém chegava perto dêle, gritava, pedindo, suplicando quenão se aproximassem dêle senão se quebraria, pois não era como todos osoutros homens, e sim inteirinho de vidro, da cabeça aos pés.
Para tirar-lhe êsse pensamento esquisito, muitas pessoas, sem atender aoque êle dizia, abraçavam-no, dizendo para observar como êle não se quebrava.
O que conseguiam com isto, entretanto, era fazer com que o pobre rapaz se
deitasse no chão, gritanto terrivelmente e desmaiando logo em seguida; e sóvoltava a si depois de quatro horas; quando o fazia era para renovar os rogos,
os pedidos para não se aproximarem dêle. Dizia para lhe falarem a distância,para lhe perguntarem o que quisessem que êle a tudo responderia e mais
sàbiamente, pois era um homem de vidro e não de carne, porque o vidro,matéria fina e delicada, deixava que o espírito trabalhasse com maior prontidãoe eficácia que a do corpo comum, pesado e prêso à terra.
Houve quem quisesse ver se era verdade o que êle dizia e perguntaram-
lhe muitas coisas difíceis, às quais êle respondeu sábiamente e com grandeagudeza de espírito, fato que causou espanto aos letrados da universidade e aos
professôres de medicina e filosofia, pois estavam diante de um indivíduo que,portador de uma loucura tão fora do comum, era dotado de grandes
conhecimentos e respondia tôdas as perguntas com propriedade e perspicácia.Tomás pediu para lhe arranjarem uma capa que lhe cobrisse o corpo frágil,
a fim de não se quebrar por ter de vestir uma roupa mais apertada; deram-lhe
uma veste marrom, uma capa bem larga, que êle pôs com cuidado e prendeucom uma corda de algodão. Não quis calçar os sapatos de maneira alguma e
ordenou que lhe dessem de comer sem chegar perto dêle; para resolver estasituação, puseram na ponta de uma vara uma bandeja, na qual colocaram umpouco de fruta, de acôrdo com a estação. Não comia carne nem peixe, bebia só
na fonte ou no rio e fazia-o com as mãos; quando andava, ia pelo meio da ruaolhando os telhados, receoso de que lhe caísse alguma coisa em cima e o
quebrasse; no verão, dormia no campo, ao ar livre; no inverno, metia-se emuma hospedaria qualquer, enterrava-se no palheiro até a garganta, dizendo queaquela era a melhor e mais segura cama para um homem de vidro. Quando
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trovejava, êle tremia como se estivesse com febre, ia para o campo e só voltavapara o povoado quando a tempestade tivesse passado.
Seus amigos o prenderam por muito tempo, mas, vendo que seu
sofrimento diminuía quando êle estava livre, deixaram-no e êle saiu pelacidade, causando admiração e pena a todos os que o conheciam.
Os rapazes cercavam-no logo, porém êle detinha-os com a vara, pedindo-lhes que falassem de longe para não parti-lo, pois era um homem de vidro,delicado e quebradiço. Os rapazes, que são a raça mais travêssa do mundo,
apesar de seus rogos, começaram a dirigir-lhe ofensas e até mesmo a lançar-lhepedras, para ver se era de vidro, como dizia; Tomás porém, gritava e exaltava-
se tanto que fazia os outros repreenderem e castigarem os rapazes a fim de não
lhe atirarem mais nada. Um dia aborreceram-no tanto que êle se voltou e lhesdisse:
- O que quereis de mim, criaturas teimosas como môscas, sujas comopercevejos, atrevidas como pulgas? Serei, por acaso, o monte Testacho de Roma
para me atirardes tantas pedras e telhas?Muitos rapazes o seguiam para ouvi-lo esbravejar, defenderse e responder
a todos, chegando depois a preferirem apenas ouvi-lo falar. Certa vez, passando
pela alfaiataria de Salamanca, uma costureira perguntou-lhe:
- Sua desgraça, senhor licenciado, entristece-me bastante, mas que hei defazer se não posso chorar?
Êle voltou-se e respondeu-lhe calmamente:- Filiae Hierusalem plorate super vos et super filios vestros. (Filhas de
Jerusalém, chorai sôbre vós e sôbre vossos filhos.)O marido da costureira percebeu a malícia da resposta e disse-lhe:- Meu caro Licenciado Vidriera - que assim dizia chamar-se -, és mais
velhaco do que louco.- Posso jurar - respondeu êle - que de estúpido nada tenho.
Passando um dia pelo prostíbulo e vendo à sua porta muitas de suasmoradoras, disse que elas eram componentes do exército de Satanás, alojadasna casa do inferno. Certa vez alguém lhe perguntou que conselho daria êle a
um amigo que estava muito triste porque sua mulher havia fugido com outro.- Diga-lhe que dê graças a Deus por ter permitido que levassem para longe
dêle um grande inimigo.- Não deve, então, ir buscá-la?- Nem por brincadeira - respondeu êle. - Seria o mesmo que procurar um
verdadeiro perpétuo castigo para sua desonra.
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- Já que é assim, que farei eu para viver em paz com minha mulher?- Dá-lhe o que ela precisar, deixa que ela mande em todos os de sua casa,
mas não consintas que mande em ti.
Um rapaz lhe disse:- Senhor Vidriera, não quero morar mais com meu pai, porque êle me bate
muito.- Cuidado, filho, os açoites dos pais honram os filhos, os do verdugo
ultrajam.
Estando à porta de uma igreja viu entrar nela um lavrador, daqueles quesempre se gabam de ser cristãos verdadeiros; atrás dêle vinha outro lavrador
que tinha a mesma opinião; o licenciado dirigiu-se a êle, falando bem alto:
- Vamos, Domingo, espere que o Sábado passe.Dizia que os professôres eram felizes porque lidavam sempre com os
anjos; mas que seriam felicíssimos se os anjinhos não fôssem sujos. Alguém lheperguntou o que êle pensava das alcoviteiras e êle respondeu que só havia
alcoviteiras quando duas mulheres eram vizinhas.As notícias de sua loucura, de suas respostas e chistes estenderam-se por
tôda a Castilha, chegando até mesmo aos ouvidos do príncipe da côrte, que
pediu a um amigo de Salamanca para enviá-lo à sua presença. Êste cavalheiro,
encontrando-se com êle, disse-lhe:- Saiba o senhor licenciado que uma grande figura da côrte deseja
conhecê-lo e me envia para falar-lhe.- Vossa Mercê desculpe-me com êste senhor, pois eu não sou de ficar em
palácios, porque tenho vergonha e não sei bajular ninguém.Apesar disso, o cavalheiro levou-o à côrte, mas para conseguir que êle
fôsse usaram de um artifício: puseram-no em um cêsto de vime, igual àqueles
cêstos onde se colocam vidros, calçaram os espaços com pedras e vidrosenvoltos em palha para fazê-lo pensar que o levavam como se fôsse um objeto
de vidro.Chegou a Valladolid de noite e foi levado à casa do fidalgo que o mandara
buscar, sendo aí muito bem recebido.
- Seja bem-vindo, Senhor Vidriera. Como foi de viagem?Como vai a saúde?
- Dos caminhos, o único ruim, quando se acaba, é aquêle que leva à fôrca.Quanto à saúde, nada há de nôvo; meu pulso e meu cérebro batem no mesmoritmo.
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Certo dia, tendo visto em várias gaiolas muitos nebris (Nebri: Espécie de
falcão, adestrado para a caça.), açôres (Açor: Ave de rapina de asas e bico prêtos, cauda
cinzenta manchada de branco e penas amarelas.) e outros pássaros de altanaria
(Altanaria: Arte de caçar com aves amestradas.), disse que esta espécie de caça eradigna de príncipes e de grandes senhores, mas para tomarem cuidado com ela,
pois na maioria das vêzes cobrava pesado tributo. Disse que a caçada de lebresé muito boa, ainda mais quando se caça com galgos amestrados.
O fidalgo gostou de sua loucura e deixou-o sair pela cidade sob os
cuidados de um homem que não deixasse os garotos lhe fazerem mal. Em seisdias Tomás tornou-se conhecido de tôda a côrte e de todos os rapazes; na rua,
ou em qualquer esquina, respondia a tôdas as perguntas que lhe faziam; um
estudante perguntou-lhe se êle era poeta, pois parecia ter talento para tudo.- Até agora não tive oportunidade de ser assim tão néscio nem tão
venturoso - respondeu êle.- Não entendo essa história de néscio e de venturoso - disse o estudante.
- Não fui néscio porque não quis ser um mau poeta, nem fui tão venturosoque tenha merecido ser um bom poeta.
Outro estudante perguntou-lhe o que pensava dos poetas. Êle respondeu
que admirava muito a ciência, mas os poetas não.
Perguntaram-lhe por que dizia aquilo e êle respondeu que da grandequantidade de poetas raríssimos eram os bons e, portanto, não havendo quase
poetas, não poderia estimá-los; admirava, entretanto, a ciência da poesia, poisela encerra em si tôdas as outras ciências; serve-se de tôdas as outras, enfeita-se
com tôdas elas e dá à luz suas maravilhosas obras, oferecendo ao mundograndes lições, prazer e encantamento. E acrescentou:
- Bem sei o quanto se deve estimar um bom poeta e lembro-me daqueles
versos de Ovídio que dizem:
“Cura ducum fuerunt olim regumque poetae,
Praemiaque antiqui magna tulere chori.
Sanctaque magistras et erat venerabile nomen
Vatibus et larguae saepe dabantur opes.” (Os poetas foram outrora a preocupação dos generais e dos reis, os coros
da antiguidade ofereceram-lhes grandes honrarias.Os poetas tinham, então, uma soberania sagrada, um nome venerado e
inúmeras recompensas foram-lhes muitas vêzes oferecidas.)
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Não posso também esquecer-me dos poetas de alta categoria, aquêles quePlatão chama de intérpretes dos deuses e dos quais diz Ovídio:
“Est Deus in nobis, agitante calescimus illo (Há um deus em nós, e nós nos
inspiramos nêle quando êle se inflama.). “E ainda:“At sacri vates, et Divum cura vocamur (Mas nós, os poetas, somos chamados
sagrados e somos a preocupação dos deuses.). “Isto diz êle dos bons poetas, pois dos maus, dos charlatães, o que se pode
dizer senão que são êles a idiotice e a arrogância do mundo? Como é aborrecidover-se quando um dêstes poetas pede licença aos que o rodeiam para dizer um
sonêto: Escutem os senhores um sonetinho que fiz uma noite dessas, pois,
embora me pareça não valer nada, tem um não-sei-quê de bonito. E, assimdizendo, torce a bôca, levanta as sobrancelhas, remexe o bôlso e tira, do meio de
mil papéis ensebados e rasgados que contêm uns mil sonetos, o sonêto que querrecitar, e o recita de fato, com voz melíflua e afetada. E se por acaso os que o
escutam não o elogiam, ou porque sejam astutos, ou porque sejam ignorantes,diz: Ou os senhores não entenderam o sonêto ou eu não soube recitá-lo; é bomque eu o recite novamente e que os senhores prestem mais atenção, porque na
verdade o sonêto merece. E torna a recitar, com novos trejeitos e novas pausas.
Como é aborrecido ver êstes poetas censurarem-se mutuamente!Que posso eu dizer de cachorros e de alguns indivíduos chamados
modernos que latem para os grandes mastins, antigos e graves? Que direi eudos que criticam alguns ilustres e excelentes indivíduos, onde resplandece a
verdadeira luz da poesia, que, considerando com alívio o entretenimento parasuas inúmeras e graves preocupações, mostram a divindade de seus talentos, aexcelência de seus conceitos, pouco se importando com o ignorante que emite
juízos a respeito do que não conhece, que menospreza o que não entende?Que direi eu daquele que se deseja ver estimado, apreciado em sua
estupidez, venerado, enquanto a ignorância se aproxima dêle cada vez mais?”De outra feita perguntaram-lhe por que a maior parte dos poetas era pobre.Respondeu êle que os poetas eram pobres porque queriam, pois estava em suas
mãos serem ricos; era só saberem aproveitar a ocasião, uma vez que a fortuna seencontrava nas mãos de suas namoradas, pois eram tôdas riquíssimas:
possuíam cabelos de ouro, rosto de prata polida, olhos de verde-esmeralda, dentes de marfim, lábios de coral, colo de cristal transparente e suaslágrimas, pérolas líquidas; seus pés, ao pisarem a terra mais dura e estéril do
mundo, faziam-na produzir jasmins e rosas; que seu hálito era de puro âmbar,
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almíscar e algália; e que tudo isto eram pequenas mostras de sua imensariqueza. Esta era sua opinião sôbre os maus e bons poetas; dos bons sempre
falou bem, pondo-os nas alturas.
Certo dia viu na Rua de São Francisco umas figuras muito mal pintadas edisse que os bons pintores imitavam a natureza, mas que os maus a vomitavam.
Aproximou-se uma vez, com muito cuidado, a fim de não se quebrar, da oficinade um livreiro e disse-lhe:
- Gostaria muito dêste ofício se não tivesse um grande defeito.
- Que defeito? - perguntou-lhe o livreiro.- O de causar melindres quando compram os direitos autorais de um livro
e a trapaça que fazem com o autor quando o livro é impresso às suas custas,
pois, em lugar de imprimirem 1500 livros, imprimem 3.000 e, quando o autorpensa que seus livros estão sendo vendidos, os livros de outros é que estão
sendo despachados.Aconteceu que, neste mesmo dia, passaram pela praça seis homens
açoitados, e, tendo o pregoeiro dito que ao primeiro se açoitava por ser ladrão,Vidriera, em altas vozes, disse aos que lhe estavam à frente:
- Afastai-vos, irmãos, que nenhum de vós seja o primeiro a querer uma
justificação.
E, quando o pregoeiro chegou a dizer: “O último.. “, êle falou:- Aquêle deve ser o fiador dos rapazes.
Um jovem disse-lhe:Vidriera, amanhã vão açoitar uma alcoviteira.
- Se dissesses que iam açoitar um alcoviteiro eu diria que iam açoitar umporco.
Encontrava-se presente nesta ocasião um dêsses indivíduos que carregam
liteiras, e que lhe falou:- E de nós, licenciado, nada tens a dizer?
- Não - respondeu êle -, a não ser que cada um de vós sabe mais pecadosque um confessor, mas com a diferença de que o confessor sabe mantê-los emsegrêdo, e vós sabeis divulgálos pelas tabernas.
Um rapaz de cavalariça, que tôda espécie de gente sempre o escutava,perguntou-lhe:
- De nós, Senhor Redoma, pouco ou nada há que dizer, porque somosgente de bem e úteis à república.
- A honra do amo revela a do criado; segundo isto, olha a quem serves e
verás quão honrado és; todos vós sois os piores canalhas que existem na face da
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terra. Certa vez, quando eu não era de vidro, fui obrigado a montar uma mulade aluguel tão ruim que pude contar nela 101 defeitos, todos importantes e
inimigos da espécie humana. Todos os moços de cavalariça têm um pouco de
rufião, um pouco de ladrão e um não-sei-quê de bôbo; se seus amos - assimchamam êles aos indivíduos que levam em suas mulas - são uns bôcas-moles,
ganham dêles mais do que perderam em todos os outros anos; se sãoestrangeiros, tratam de roubá-los; se estudantes, de maldizê-los; se religiosos,de renegá-los; se são soldados, temem-nos. Êles, os marinheiros, os carreiros, os
arrieiros, têm um modo de viver diferente dos outros e todo seu: o carroceiropassa a maior parte de sua vida entre a vara e um pedaço que vai pouco além
do jugo das mulas à bôca do carro; passa a metade do tempo a cantar, a outra
metade a blasfemar e a dizer: “Afasta!”, e, se por acaso tem de tirar uma rodado carro de algum atoleiro, vale-se mais das pragas que da fôrça de três mulas.
Os marinheiros são gente selvagem, anti-social e só sabem a linguagem usadanos navios; são diligentes na bonança, na borrasca são preguiçosos; na tormenta
são muitos os que mandam, os que obedecem, poucos; seu deus é o dinheiro e acomida; seu passatempo é ver os passageiros enjoarem. Os arrieiros são genteque nasceu para se casar com a albarda (Albarda: Espécie de sela grosseira que serve
para bêstas de carga.); são tão delicados e pressurosos que para não perderem
uma viagem são capazes de perder a alma; sua única música é a do marteiro(Marteira: Refere-se aqui a uma peça de ferro de pequenas dimensões, que se enche de
pólvora para dar tiros, imitando as salvas de artilharia.); seu aperitivo, a fome; suasmatinas consistem em dar comida ao gado; sua única devoção é não ter
devoção alguma.Na ocasião em que assim falava, encontrava-se à porta de uma farmácia;
dirigindo-se a seu dono, falou-lhe:
- O senhor teria uma ótima profissão se não fôsse tão inimigo de suaspróprias candeias.
- Como posso ser inimigo de minhas candeias? - perguntou o boticário.- Digo isto - respondeu Vidriera - porque, faltando-lhe qualquer azeite, o
senhor pega o azeite da candeia que lhe está mais à mão e sua profissão é capaz
de tirar o crédito ao mais competente médico do mundo.Perguntaram-lhe por que êle disse haver certos boticários que substituíam
os remédios receitados pelos médicos por outros que julgavam produzir omesmo efeito, só para não dizer que, em sua botica, não havia tal produto; porisso o remédio mal ministrado agia em sentido contrário ao que deveria, se
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fôsse bem ministrado. Alguém lhe perguntou, então, o que pensava dosremédios e êle respondeu:
- Honora medicum propter necessitatem, etenim creavit eum Altissimus.
A Deo enfim est omnis medela, et a rege accipiet donationem. Disciplina mediciexaltabit caput illius, et in conspectu magnatum collaudabitur. Altissimus de
terra creavit medicinam et vir prudens non abhorrebit illam (Honra o médico
porque precisas dêle, pois o Altíssimo o criou. Todo remédio provém de Deus e do rei
receberá êle a recompensa. A ciência do médico exaltará e êle será louvado diante dos
poderosos. O Altíssimo criou a medicina da terra e o homem prudente não se oporá a
ela.). É isto o que diz o Eclesiástico da medicina dos bons médicos; dos maus
poderíamos dizer tudo isto ao contrário, pois não há gente mais perniciosa para
a população. O juiz pode abrandar ou adiar o cumprimento da justiça; oadvogado pode defender por interêsse próprio uma demanda injusta; o
mercador pode acabar com nossos bens; tôdas as pessoas com as quais tratamospodem, enfim, causar-nos algum mal, porém ninguém pode tirar-nos a vida
sem ficar subordinado ao temor do castigo; só os médicos podem matar-nos enos matam sem temor e a sangue frio, desembainhando uma única espada: areceita; e ninguém pode descobrir seu crime porque as provas vão para debaixo
da terra. Lembro-me de que, quando eu era de carne e não de vidro como sou
agora, um dêsses médicos de segunda classe mandou um enfêrmo procuraroutro médico e dali a quatro dias resolveu passar pela botica que aviava as
receitas do tal médico, perguntar ao boticário como ia o enfêrmo, que êle nãoquisera tratar, e saber se o outro médico havia receitado algum purgante. O
boticário respondeu-lhe que havia mesmo uma receita de purgante, que odoente deveria tomar no dia seguinte; o médico pediu-lhe que a mostrasse e,vendo que no fim dela estava escrito: Sumal diluculo (Tome-o pela manhã.), disse:
“Aprovo tudo neste purgante, menos êsse tal de dilúculo, porque éexcessivamente úmido”.
Por estas e por outras coisas que dizia a respeito de tôdas as profissões,havia muita gente que andava atrás dêle, sem fazer-lhe mal, porém sem deixá-lo sossegado, e êle não poderia defender-se dos rapazes se seu guarda-costas
não cuidasse dêle.Alguém lhe perguntou o que deveria fazer para não ter inveja de
ninguém.- Dorme, pois durante todo o tempo em que estiveres dormindo serás
igual àquele que invejas.
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Outro lhe perguntou o que deveria fazer para conseguir um cargo quedesejava há dois anos.
- Parte a cavalo e, sem perder de vista a pessoa que está encarregada de
realizá-la, acompanha-a até sair da cidade, que só assim sairás com ela.Certa vez passou, casualmente, por onde êle estava um juiz que devia
resolver uma questão, acompanhado de um grande número de pessoas e doisaguazis; quis saber quem era tôda aquela gente e, quando soube, disse:
- Aposto que aquêle juiz leva víboras em seu seio, pistolas na cinta e raios
nas mãos para destruir tudo o que puder. Lembro-me de ter tido um amigo queem uma destas comissões proferiu uma sentença que ia muito além da culpa
dos acusados.
Perguntei-lhe por que havia êle pronunciado aquela sentença tão cruel efeito tão grande injustiça. Respondeu-me que pensava concordar com a
apelação que seria feita, podendo assim mostrar aos componentes do Conselhosua misericórdia, atenuando e pondo aquela rigorosa sentença em seu devido
lugar. Respondi-lhe eu que teria sido muito mais fácil dar a sentença de modo aevitar todo aquêle trabalho, podendo também fazer com que todos oconsiderassem um juiz honesto e honrado.
No meio das inúmeras pessoas que sempre o ouviam, estava um seu
conhecido vestido como advogado, a quem uma pessoa da roda chamou de“senhor doutor”, mas Vidriera, sabendo que o indivíduo ao qual chamaram de
doutor não tinha sequer o título de bacharel, disse-lhe:- Cuidado, amigo, que os frades libertadores de escravos não vejam vosso
título, pois, do contrário, haviam de levar-vos pensando que fôsseis umvagabundo.
- Tratemo-nos bem, Senhor Vidriera, pois já sabeis que sou homem de
sólida cultura.- Já sei que sois um Tântalo da cultura, porque vos preocupais tanto com a
altura dela que não podeis alcançá-la em profundidade.Estando, certa vez, próximo à barraca de um alfaiate e vendo que êle
estava com os braços cruzados, disse-lhe:
- Sem dúvida, mestre, estais a caminho da salvação.- Como o sabeis?
- Como o sei? Sei porque, já que nada tendes a fazer, não tereis tambémocasião para mentir.
E acrescentou:
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- Infeliz do alfaiate que não mente e que cose para as festas; o interessanteé que, entre tôdas as pessoas desta profissão, encontra-se apenas um que faça
roupas sem defeitos; os outros todos não sabem costurar.
Quanto aos sapateiros, dizia que - na opinião dêles, sapateiros - jamais umcalçado era malfeito, pois se as pessoas reclamam que o sapato é estreito e
apertado êles dizem que é assim mesmo, que os elegantes costumam calçar umsapato justo, que usando o tal sapato por duas horas êle fica mais largo do queuma alpargata e, se alguém reclama que o sapato é largo, êles dizem que é bom
mesmo ser largo para não provocar a gôta.Um rapaz esperto que ocupava um cargo de escrevente da província
crivava-o de perguntas e trazia-lhe as novidades, pois êle tecia comentário
sôbre tudo e respondia a tôdas as perguntas.Certa vez disse-lhe êste rapaz:
- Vidriera, esta noite morreu no cárcere um prêso que estava condenado àfôrca.
- Fêz êle muito bem em apressar sua morte, assim o verdugo não sesentará sôbre êle.
Na Rua de São Francisco, por onde êle passeava certa vez, havia um carro
de genoveses; um dêles chamou-o e disse-lhe:
- O Senhor Vidriera bem que podia vir até aqui e contar-nos uma história.- Não, porque não quero que a repitais em Gênova.
Encontrando uma vez uma mulher, dona de uma loja, que acompanhavauma filha muito feia, mas tôda cheia de enfeites, de jóias, de pérolas, disse-lhe:
- Fizeste muito bem em enfeitá-la para que ela possa passear.Dizia que os pasteleiros, há muitos anos, jogavam dobladilla (Dobladilla:
jôgo de cartas que consiste em ir dobrando a parada cada vez que se ganha.) porque,
sem mais nem menos, passaram a cobrar 4 pelo pastel de 2, 8 pelo de 4 e meioreal pelo pastel de 8 e ninguém os multava. Falava muito mal dos saltimbancos,
dizendo que essa gente é vadia e desrespeita as coisas divinas, porque,mostrando em seus retábulos imagens divinas, transformam a devoção emmotivo de chacota e que acontecia, muitas vêzes, de êles colocarem dentro de
um saco tôdas ou a maior parte das figuras do Velho e do Nôvo Testamento esentarem-se em cima dêle para comer ou para beber nos bares e nas tabernas;
dizia, enfim, admirar-se de que ninguém os fizesse silenciar ou os desterrassedo reino.
Passando, certa vez, por um comediante vestido como um príncipe, disse:
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- Lembro-me de ter visto êste homem em um teatro com o rostoenfarinhado, com uma samarra vestida ao contrário e, apesar disso, fora do
palco, parece um fidalgo.
- É possível que o seja - disse alguém -, porque há muitos comediantes quesão de origem nobre e fidalga.
- Talvez seja verdade - replicou Vidriera -, mas a comédia não precisa depessoas de origem nobre, precisa é de galãs, de gente elegante e que saiba falarbem. Os comediantes ganham o pão com o suor de seu rosto, com o trabalho
árduo, recitando, de cor, feito ciganos, indo de um lugar a outro, de pousada apousada, desdobrando-se para contentar os outros, porque seu único bem
consiste na alegria de outrem. Não enganam a ninguém, pois tiram sua
mercadoria em praça pública, à vista de todos. O trabalho dos empresários dascomédias é incrível e seu cuidado, extremo, e precisam, pois, ganhar bastante
para que no fim do ano não se vejam tão endividados que sejam obrigados alitigar com credores; todos êles são necessários a todos nós, como o são as
florestas, as alamêdas, os parques, como o são, enfim, tôdas as coisas quehonestamente nos divertem. Um amigo meu - dizia êle - achava que quemtrabalhava para uma comediante trabalhava para muitas damas a um só tempo;
para uma rainha, para uma ninfa, para uma deusa, para uma criada, para uma
pastôra, acontecendo muitas vêzes servir também a um pajem, a um lacaio, poisuma comediante costuma representar tôdas estas e muitas outras figuras.
Alguém lhe perguntou quem foi o homem mais feliz do mundo e êlerespondeu que foi Nemo, porque Nemo novit palrem; Nemo sine crimine vivit;
Nemo sua sorte contentus; Nemo ascendit in caelum (Ninguém, porque Ninguém
conhece o pai; Ninguém vive sem êrro; Ninguém está contente com sua sorte; Ninguém
sobe ao céu.). Dos esgrimistas disse uma vez serem êles mestres em uma ciência
ou arte que ignoravam quando precisavam dela, e que eram um tantopresunçosos, pois queriam reduzir a demonstrações matemáticas, infalíveis, os
movimentos e pensamentos coléricos de seus adversários. Tinha verdadeiraojeriza pelos indivíduos que tingiam a barba. Certa ocasião, dois homens, umdêles português, de barba muito pintada, discutiam em sua presença. Em dado
momento disse o português ao espanhol:- Pela barba que tenho no rosto.
Vidriera não o deixou terminar:- Olhe aqui, homem, não diga pela barba que tenho no rosto e sim pela
barba que tinjo.
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Havia outro que tinha a barba manchada de várias côres por causa datinta ruim que usara; Vidriera não deixou passar: disse que a barba dêle parecia
um depósito de lixo. A outro, cuja barba crescera e que, por descuido, não a
tinha pintado, deixando-a metade branca, metade escura, disse Vidriera paranão discutir nem brigar com ninguém, pois poderiam dizer-lhe que êle era tão
falso quanto a própria barba.Uma vez contou êle que uma jovem discreta e ajuizada, para satisfazer a
vontade dos pais, concordou em casar-se com um velho de barba e cabelos
brancos, mas o velho, na véspera do casamento, não foi procurar o rio Jordão,como dizem as velhas, mas sim, uma tintura, com a qual pintou a barba; assim,
da noite para o dia, a barba, de branca como a neve, tornou-se negra como o
breu. Chegou a hora do casamento e a môça, vendo o que o velho fizera, disseaos pais para lhe darem o espôso prometido, pois que não queria saber de
outro. Disseram-lhe que era aquêle mesmo o espôso que lhe haviamapresentado. Ela tornou a dizer que não era aquêle e trouxe várias testemunhas
para afirmarem com ela que o homem prometido por seus pais era um senhorrespeitável, de barba e cabelos brancos. A môça manteve-se firme em suaopinião; o velho envergonhou-se e desfez-se o casamento.
A mesma ojeriza que tinha pelas pessoas que pintavam o cabelo, tinha
também pelas aias; admirava-se com sua permafoy, com os babadoscomplicados de sua touca, com sua afetada delicadeza, com seus escrúpulos e
com sua mesquinhez fora do comum; aborreciam-lhe as fraquezas de seuestômago, seus desmaios, seu modo de falar mais complicado que suas toucas
e, finalmente, sua inutilidade e suas atitudes desprezíveis.Alguém lhe disse:- O que acontece, senhor licenciado? Eu vos tenho ouvido falar mal de
muitas profissões, mas nunca falastes dos escrivães, e há muito o que falardêles.
- Embora eu seja de vidro, não sou assim tão fraco que me deixe levar pelaconversa dos outros. Parece-me que a gramática dos murmuradores e o Ia, Ia, Iados que cantam são os escrivães, pois, assim como não se podem estudar outras
ciências sem passar pela porta da gramática e assim como o músico primeiromurmura para depois cantar, também os difamadores começam a mostrar a
maldade de suas línguas falando mal dos escrivães, dos aguazis e de outrosmembros da Justiça, quando, sem os escrivães, a verdade andaria escondida,desprezada, maltratada pelos cantos do mundo; diz o Eclesiástico: n manum
Dei potestas hominis est, et super fatiem scribae imponet honorem (O poder do
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homem está nas mãos de Deus e êle coloca a honra na fisionomia do escriba.). Oescrivão e o juiz são funcionários que não podem exercer cômodamente sua
profissão se não tiverem algo de seu. Os escrivães têm de ser livres e não
escravos, e nem podem ser filhos de escravos; devem ser legítimos, e nãobastardos, nem descender de má família. Juram fidelidade secretamente e juram
não passar escrituras com lucro excessivo; juram que nem a amizade nem ainimizade, lucro ou prejuízo haverá de movê-los a exercer sua função fora desua consciência cristã. Se esta profissão exige tantas qualidades, por que se há
de pensar que os vinte e tantos mil escrivães existentes na Espanha não podemproduzir frutos honestos em seu trabalho? Não quero acreditar, nem é bom que
ninguém acredite, que as coisas não sejam assim, pois os escribas foram as
pessoas mais úteis que existiram nas repúblicas bem organizadas onde haviadessa gente, alguns excessivamente direitos e outros excessivamente tortos, e
que dêstes dois extremos poderia originar-se um meio têrmo que os fizesseentrar nos eixos.
Dos aguazis falou que não era de se estranhar que tivessem algunsinimigos, pois sua função era prender, ou tirar-nos ou vigiar-nos e comer ànossa custa. Censurava a negligência e a ignorância dos procuradores e dos
solicitadores, comparando-as com as dos médicos, que, curando ou não o
doente, ganham o seu dinheiro.Alguém lhe perguntou qual era a melhor terra e êle respondeu que era a
fértil e agradecida.- Não foi isso o que lhe perguntei, quero saber qual é o melhor lugar:
Valladolid ou Madri.- De Madri, os extremos, de Valladolid, o meio.- Não entendo - disse o indivíduo que o interrogava.
- De Madri, terra e céu; de Valladolid, as habitações.Vidriera ouviu um homem dizer a outro que, nem bem entrara em
Valladolid, sua mulher ficara doente, porque a terra quis experimentá-la.Disse-lhe Vidriera:- Se ela é ciumenta, melhor seria que a terra a tivesse comido.
Dizia que a sorte e as esperanças dos músicos e dos estafêtas eramlimitadas, porque os primeiros podiam, no máximo, chegar a ser músicos do rei
e os segundos, a conseguir um cavalo para entregar a correspondência. Diziaque tôdas ou quase tôdas as cortesãs eram mais corteses do que sãs. Estandoum dia em uma, igreja e vendo entrar nela, ao mesmo tempo, um velho que ia
ser enterrado, um menino para batizar e uma mulher que ia velar, pelo
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Santíssimo, disse que os templos eram campos de batalha onde morrem osvelhos, vencem as crianças e triunfam as mulheres.
Certa ocasião uma abelha picava-lhe o pescoço, mas êle não se atrevia a
tocá-la para não se quebrar, embora se queixasse da dor que sentia.Perguntaram-lhe como podia êle sentir a dor da picada se seu corpo era de
vidro e êle respondeu que aquela abelha deveria ser faladeira, pois, se aslínguas das faladeiras eram suficientes para abater até mesmo corpos de bronze,que não haveria de ser dos corpos de vidro?
De outra vez, um religioso, muito gordo, passou casualmente por êle epelas pessoas que costumavam ouvi-lo; uma destas pessoas falou:
- De tão magro que é, não pode nem mover-se.
Vidriera aborreceu-se e disse:- Que ninguém se esqueça do que disse o Espírito Santo: Nolite tangere
christos meos (Não toqueis os meus ungidos.)
Chegou a encolerizar-se e disse a todos para notarem que dos inúmeros
santos canonizados pela Igreja e considerados bem aventurados, nenhum sechama Capitão Fulano, nem Sicrano de Tal, nem conde, nem marquês ou duquede tal lugar, e sim Frei Diogo, Frei Jacinto, Frei Raimundo; todos eram frades e
religiosos, porque as religiões são abrunheiros do céu, cujos frutos, comumente,
são postos na mesa de Deus.Dizia Vidriera que as línguas dos faladores eram como as águias, que
bicam e arrancam as penas das outras aves que a elas se juntam. Dos gariteirose dos jogadores dizia coisas espantosas: dizia que os gariteiros são
prevaricadores públicos, porque, tirando a porcentagem de quem vaiganhando, desejam que a pessoa perca ou passe adiante o naipe, a fim de queela faça o contrário e êles possam cobrar seus direitos. Elogiava a paciência do
jogador que, jogando e perdendo durante tôda a noite, embora seja de naturezacolérica e endemoninhada, não abre a bôca e sofre tanto quanto Barrabás, a fim
de que seu adversário não abandone o jôgo. Elogiava, também, a consciência dealguns gariteiros honrados, que nem por sonho permitem que em sua casa sefaçam outros jogos a não ser palla e cientos e, com isso, tiram lentamente, no
fim do mês, sem temor e sem trapaça, uma porcentagem muito maior do que aestabelecida pelos juízes. Em suma, dizia êle tais coisas que, se não fôssem os
grandes gritos que dava quando o tocavam ou quando se aproximavam dêle, senão fôsse pelas roupas que usava, pelo pouco que comia, pelo modo de beber,pelo fato de querer dormir ao ar livre no verão, e no palheiro durante o inverno,
como já tive oportunidade de contar, dando assim claras provas de sua loucura,
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ninguém poderia dizer que êle não era uma das pessoas mais ponderadas domundo.
Sua enfermidade durou dois anos mais ou menos, porque um padre, da
Ordem de São Jerônimo, que possuía a faculdade de fazer os mudoscompreenderem as coisas e, de certo modo, falarem, êste padre, que podia
também curar loucos, sentindo pena de Vidriera, fêz o possível para curá-lo e oconseguiu. Vidriera recuperou a razão e voltou a ser o que era. O padre, vendo-o curado, deu-lhe roupas de bacharel e o fêz voltar à côrte, onde, dando mostras
de sábio, como as dera de louco, podia exercer sua profissão e tornar-se famoso.Vidriera assim o fêz e, com o nome de Licenciado Rueda e não Rodaja, voltou à
côrte, onde, nem bem entrou, foi conhecido pelos rapazes, que, vendo-o com
roupas diferentes das que costumava vestir, não ousaram dirigir-lhe gracejosnem lhe fazer perguntas, embora o seguissem, indagando-se uns aos outros:
- Êste não é Vidriera, o louco? Olha que é! Mas vem curado. Bom, pode serque continue louco, apesar de bem arrumado.
- Vamos perguntar-lhe alguma coisa e assim poderemos tirar nossadúvida.
Vidriera ouvia tudo em silêncio; estava mais confuso e enver gonhado do
que quando perdera a razão. A notícia passou dos rapazes para os homens e,
antes que o licenciado chegasse ao pátio dos Conselhos, tinha atrás de si maisde duzentas pessoas de tôda espécie. Com êste acompanhamento, digno de um
catedrático, chegou ao pátio, onde todos o rodearam. Êle, vendo-se cercado portanta gente, disse em voz alta:
- Senhores, eu sou o Licenciado Vidriera; só que agora me chamoLicenciado Rueda. Quis o céu que eu, por determinadas circunstâncias,perdesse o juízo, mas a misericórdia de Deus permitiu-me recuperá-lo. As
coisas que eu disse quando louco, 50, é verdade o que me disseram, serãorepetidas e feitas agora qual estou em meu perfeito juízo. Sou diplomado em
leis por Salamanca, onde estudei com sacrifício e onde obtive o segundo lugar;podendo-se concluir que eu obtive minha posição mais por mérito que porfavor. Vim para a côrte a fim de advogar e ganhar a vida, mas, se não o
permitirdes, ficarei aqui a vagar e a cortejar a morte; pelo amor de Deus, nãotransformeis o seguir-me em perseguir-me e nem me façais perder, agora que
sarei, a posição que consegui quando era louco. O que acostumaveis perguntar-me pelas praças, perguntai-me agora em minha casa. vereis que as respostasque eu vos dava de improviso, segundo dizem, serão muito melhores agora que
posso pensar.
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Todos o escutaram; alguns o deixaram. Voltou para sua casa com umacompanhamento bem menor.
No dia seguinte, quando saiu, foi a mesma coisa; êle fêz outro sermão, que
nada adiantou. Perdia muito e ganhava pouco. vendo, enfim, que estava amorrer de fome, decidiu deixar a côrte e ir para Flandres, onde pensava fazer
valer a fôrça de seu braço, já que não lhe valiam as de seu talento. Pondo seuplano em prática, disse, ao sair da côrte:
- Ó côrte, que dilatas as esperanças dos atrevidos e que reduzes as dos
talentosos tímidos, que alimentas fartamente truões desavergonhados e matasde fome os que são discretos e briosos! Assim falou e partiu para Flandres, onde
acabou de eternizar pelas armas, em companhia de seu bom amigo, o Capitão
Valdívia, a vida que começara a eternizar pelas letras, deixando, até morrer,fama de prudente e valentíssimo soldado.
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A Senhora Cornêlia
Dom Antônio de Isunza e Dom João de Gamboa, senhores importantes, damesma idade, ponderados e grandes amigos, sendo ambos estudantes em
Salamanca, decidiram interromper seus estudos para ir a Flandres, levados pelofervor do sangue môço e pelo desejo de ver o mundo, como se costuma dizer, e
também por lhes parecer que a vida militar, ainda que dê honra a todos,convém principalmente aos fidalgos, aos nascidos de sangue ilustre. Chegaram,pois, a Flandres, no tempo em que as coisas estavam em paz ou em acertos e
tratos para consegui-la.Em Amberes, receberam cartas de seus pais, que lhes falavam de seu
desagrado por terem êles interrompido os estudos sem os avisar, pois, se o
tivessem feito, poderiam ter viajado em melhores condições, com a comodidadeque convinha a gente de sua posíção. Finalmente, sabedores do desgôsto dos
pais, tomaram a resolução de voltar à Espanha, pois nada havia a fazer emFlandres; porém, antes de voltar, quiseram conhecer as mais famosas cidadesda Itália; e, tendo visto tôdas, pararam em Bolonha, onde, admirados com os
estudos que se faziam naquela magnífica universidade, quiseram continuar aestudar ali. Escreveram aos país, revelando-lhes seu propósito, e êstes
alegraram-se muitíssimo e o demonstraram, possibilitando-lhes vivermagnificamente e de modo a mostrarem ser pessoas de fino trato e origem;desde os primeiros dias em que foram à escola, tornaram-se conhecidos como
cavalheiros distintos, prudentes e educados.Dom Antônio teria uns 24 anos e Dom João não passava de 26; à
juventude acrescentava-se o fato de serem êles verdadeiros fidalgos, músicos,poetas, hábeis e valentes, o que os tornava simpáticos e queridos de todos osque com êles tratavam. Tiveram logo muitos amigos, tanto entre os estudantes
espanhóis que cursavam aquela universidade, como entre os próprioshabitantes da cidade e entre os estrangeiros; mostravam-se liberais e comedidospara com todos e muito alheios à arrogância de que, dizem, os espanhóis
costumam ser acusados. Como eram jovens e alegres, não desgostavam de olhar
as mulheres mais lindas da cidade e, embora houvesse muitas môças solteiras e
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casadas, com fama, de serem honestas e famosas, distinguia-se entre elas aSenhora Cornélia Bentibolli, da antiga e generosa família dos Bentibolli, que
durante certo tempo foram senhores de Bolonha. Cornélia era formosíssima e
encontrava-se sob a guarda e amparo de Lourenço Bentibolli, seu irmão, fidalgomuito conceituado e valente, órfãos de pai e mãe, que, embora os tivessem
deixado sozinhos, deixaram-nos ricos, e a riqueza é grande consôlo para aorfandade. Cornélia era tão recatada e seu irmão tão solícito em guardá-la quenem ela se mostrava, nem seu irmão consentia que a vissem. A fama de
Cornélia tornava Dom João e Dom Antônio desejosos de conhecê-la, mesmoque fôsse na igreja; mas o esfôrço que fizeram foi em vão e, perante o
impossível, que é cutelo da esperança, seu grande desejo foi enfraquecendo. E
assim, entregues ao estudo e a divertimentos honestos que compartilhavamcom alguns amigos, passavam uma vida tão alegre como honrada; poucas vêzes
saíam à noite e, se saíam iam juntos e bem armados.Aconteceu, porém, que, tendo Dom João de sair certa noite, disse-lhe Dom
Antônio que não podia acompanhá-lo, pois queria ficar para rezar e cumprircertas devoções; mas que fôsse andando porque logo iria encontrar-se com êle.
- Para quê? - disse Dom João. - Eu vos esperarei e se não sairmos esta noite
pouco importa.
- Lá isso é que não - replicou Dom Antônio. – Ide. tomai um pouco de ar,que eu daqui a um momento hei de encontrar-vos, se é que ides por onde
costumamos ir.- Está bem - disse Dom João. - Ficai com Deus e quando sairdes, tomai
nosso costumado caminho que nêle me encontrareis.Dom João saiu e Dom Antônio ficou só. Eram 11 horas e a noite estava
escura; Dom João, tendo percorrido duas ou três ruas e vendo-se muito só e sem
ter com quem conversar, resolveu tornar a casa. E assim o fêz; mas, ao passarpor uma rua cujos portais eram de mármore, percebeu que, de uma porta, o
chamavam baixinho. A escuridão da noite, aumentada pela sombra das arcadas,não lhe permitiu ver quem lhe falava. Deteve-se um pouco, permaneceu atentoe viu entreabrir-se uma porta; aproximou-se e uma voz disse-lhe, sussurrando:
- Sois vós, Fábio?Dom João, por êsse ou por aquêle motivo, respondeu que sim, - Tomai -
falaram lá de dentro. - Levai-o para lugar seguro e voltai sem demora, que éurgente.
Dom João estendeu a mão, topou com um embrulho e, querendo pegá-lo,
viu que precisava das duas mãos; tão logo lhe entregaram o fardo, fecharam a
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porta e êle encontrou-se no meio da rua, carregado sem saber de quê. Mas, ummomento depois, sob o embrulho, uma criatura começou a chorar e parecia um
recém-nascido; Dom João ficou surprêso e confuso, sem saber o que fazer ou
que solução dar para o caso; se tornasse a bater na porta, pareceu-lhe que a mãeda criança poderia correr algum perigo; se deixasse o bebê ali, também êle
correria perigo; se o levasse para casa, não teria quem tratasse dêle, e nãoconhecia na cidade nenhuma pessoa a quem pudesse entregá-lo. Lembrando-se,porém, de que lhe haviam recomendado que pusesse o recém-nascido em lugar
seguro e logo voltasse, resolveu levá-lo para casa e deixá-lo aos cuidados deuma criada que os servia, tornando ali a tôda pressa, para ver se podia ser útil
em alguma coisa, embora tivesse percebido muito bem que lhe haviam
entregado o bebê por engano.Por fim, deixando de lado tais considerações, foi para casa com a criança e
já não encontrou Dom Antônio; entrou em um quarto, chamou a criada,descobriu a criança e viu que era o mais lindo bebê que seus olhos já tinham
visto; as roupas que o envolviam mostravam ter êle nascido de pais muito ricos;a ama desembrulhou-o e viram que era um menino.
- É preciso - disse Dom João - dar de mamar a êste menino e fazer o
seguinte: tirai-lhe estas roupas tão ricas e embrulhai-o em outras mais modestas
e, sem dizer que fui eu quem o trouxe para casa, levai-o à casa de uma parteira,pois essas mulheres sabem sempre achar remédio para tais apuros; levareis
bastante dinheiro para que a parteira fique satisfeita; inventareis os pais quequiserdes, contanto que não reveleis terdes recebido a criança de minhas mãos.
A criada respondeu que assim faria e Dom João, com a maior pressapossível, voltou para ver se lhe diziam mais alguma coisa; porém, um poucoantes de chegar à casa de onde o tinham chamado, ouviu grande ruído de
espadas, como de muita gente que se batesse. Permaneceu atento, mas nãoouviu palavra alguma; brigavam em silêncio e, à luz das centelhas que as
pedras, feridas pelas espadas, lançavam, quase pôde ver que eram muitos paraatacar um só; esta suspeita confirmou-se quando ouviu dizer:
- Ah! traidores, que sois tantos contra um homem só! Mas, com tudo isso,
nada vos há de valer a esperteza.Ouvindo e vendo isto, Dom João, levado pelo seu generoso e esforçado
coração, de um salto, pôs-se ao lado do homem que assim falara e, lançandomão da espada e de um punhal, para não ser reconhecido, falou em italiano aoque se defendia:
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- Não temais, chegou-vos refôrço, que não vos faltará enquanto me durar avida. Servi-vos bem da espada que os traidores nada podem, embora sejam
numerosos.
- Mentes. Aqui não há traidores, pois o querer recuperar a honra perdidatudo permite. Não lhe falou mais nada, pois a pressa que tinham de se ferir
mutuamente não lhes dava tempo. Os inimigos, que Dom João acreditou seremem número de seis, apertaram tanto o seu companheiro que, afinal, o atirarampor terra. Dom João pensou que o tivessem matado e, com ligeireza e
extraordinária coragem, saltou à frente dos adversários e os fêz recuar sob umachuva de golpes; mas não teria sido bastante sua valentia para atacar e
defender, se a sorte não o ajudasse, fazendo com que os moradores daquela rua
aparecessem com luzes às janelas e chamassem, em altos gritos, pela justiça. Aoverem isso, os adversários voltaram as costas e fugiram. Entretanto, levantara-
se o que fôra ao chão, porque as espadas tinham encontrado uma couraça rijacomo diamante, onde se embotaram. Na refrega, o chapéu de Dom João caíra e,
ao procurá-lo, encontrou outro com que se cobriu, sem reparar se era o seu. Odesconhecido aproximou-se dêle e lhe disse:
- Senhor, confesso que vos devo a vida e declaro que essa vida e tudo
quanto tenha e valha está a vosso dispor. Fazei-me a honra de me dizer quem
sois, para que eu saiba a quem devo mostrar-me agradecido.Dom João respondeu:
- Sou desinteressado, mas não quero ser descortês; para vos fazer avontade direi que sou fidalgo espanhol e estudante nesta cidade. Se por acaso
quiserdes servir-vos de mim para qualquer coisa, sabei que me chamo Dom João de Gamboa.
- Muito vos agradeço o favor - respondeu o outro. - Mas eu, Senhor Dom
João de Gamboa, não vos quero dizer meu nome, pois prefiro que o saibais porintermédio de outra pessoa e terei o cuidado de vos fazer conhecê-lo.
Dom João já lhe perguntara se êle estava ferido, porque vira os outros lhedarem duas grandes estocadas e êle respondera que; depois de Deus, umacouraça o defendera, mas que, apesar de tudo isto, seus inimigos teriam
acabado com êle se Dom João não estivesse ao seu lado. Nisto, viram umaporção de gente que se aproximava e Dom João disse:
- Se êstes são os vossos inimigos que voltam, ponde-vos em guarda,senhor, e agi como costumais. Mas, ao que parece, não são inimigos e simamigos que aí vêm.
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E assim foi, pois os que chegaram, e eram oito homens, rodearam odesconhecido e trocaram com êle algumas palavras mas tão baixas e secretas
que Dom João não as pôde ouvir. O desconhecido voltou logo para junto de
Dom João e disse-lhe:- Se não tivessem vindo êstes amigos, Senhor Dom João, de modo algum
haveria de me separar de vós, até que me pusésseis a salvo; porém, agora, peço-vos encarecidamente que me deixeis.
Assim falando, levou a mão à cabeça e reparou que estava sem chapéu;
voltando-se para os recém-chegados, pediu-lhes que lhe dessem um, pois haviaperdido o seu. Dom João, ouvindo estas palavras, tirou o chapéu que o cobria e
colocou-o na cabeça do desconhecido; êste apalpou-o e, voltando-se para Dom
João, disse:- Êste chapéu não é meu. Peço-vos, por favor, Senhor Dom João, que o
leveis como troféu desta refrega e o guardeis, pois me parece que é um chapéubem conhecido.
Deram-lhe então outro chapéu e Dom João, depois de breves cumpri-mentos de despedida, voltou para casa, sem parar à porta onde lhe haviamentregado o recém-nascido, porque o bairro acordara e estava alvoroçado com a
briga.
Aconteceu, então, que encontrou no caminho Dom Antônio de Isunza, seucompanheiro, que, reconhecendo-o, lhe disse:
- Voltai comigo, Dom João, que no caminho eu vos contarei uma históriabem estranha que acaba de me acontecer e talvez nunca tenhais ouvido outra
igual.- Quanto a aventuras - respondeu Dom João -, eu também poderei contar-
vos algo espantoso, mas primeiro vamos aonde quereis para contar-me a vossa.
Dom Antônio falou:- Pouco mais de uma hora depois que saístes de casa, decidi ir procurar-
vos e, a menos de trinta passos daqui, veio ao meu encontro um vulto negro demulher, que parecia muito agitada e que, entre suspiros e soluços, meperguntou: “Dizei-me, senhor, sois por acaso estrangeiro ou de Bolonha?” “Sou
estrangeiro”, respondi eu, “e espanhol”. E ela tornou: “Graças a Deus, por nãopermitir que eu morra sem sacramentos”. “Estais ferida, senhora”, perguntei,
“ou tendes alguma doença mortal?” “Pode ser que meu mal seja de morte se eunão lhe der logo um remédio. Por confiar na cortesia, que, em geral, é virtudedos espanhóis, peço-vos, senhor, que me tireis destas ruas e me leveis para
vossa casa o mais depressa possível e lá, se quiserdes, poderei contar-vos de
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que mal estou morrendo e quem sou, embora isso me custe muito.” Ouvindo euessas palavras e parecendo-me que ela estava em grande necessidade, sem dizer
mais nada, tomei-a pela mão e levei-a para nossa casa. O pajem Santisteban
abriu-me a porta; ordenei-lhe que se retirasse e, sem que êle a visse, conduzi-apara o meu aposento, onde, entretanto, se atirou na cama, sem sentidos.
Cheguei-me a ela e descobri-lhe o rosto, que estava oculto sob o manto, e vientão a maior formosura que os olhos humanos jamais viram. Deve ter unsdezoito anos, talvez menos; fiquei admirado ao ver tanta beleza; depois, atirei-
lhe umas gôtas de água no rosto; ela voltou a si, suspirando ternamente, e aprimeira coisa que me disse foi: “Conheceis-me, senhor?” “Não”, respondi eu,
“ainda não tive a honra de conhecer tal formosura.” “Infeliz daquela que a
possuí para sua desventura”, falou ela. “Mas agora não é ocasião de se gabaremformosuras e sim de remediar desgraças. Por quem sois, deixai-me aqui fechada
e não permitais que ninguém me veja; tornai imediatamente ao lugar onde meencontrastes para ver se há alguma briga na rua e não tomeis partido de
ninguém, mas procurai separar os combatentes, pois qualquer desgraça queaconteça a qualquer das partes virá aumentar minha desventura.” Deixei-afechada no quarto e vim à procura dessa gente que se deve bater, para
apaziguá-los.
- Tendes mais alguma coisa para me dizer, Dom Antônio? - perguntouDom João.
- Pois não vos parece bastante o que já contei? Parece-vos pouco dizer euque tenho, fechada em meu quarto, a maior beleza que já vi?
- O fato é, sem dúvida, extraordinário - disse Dom João -, porém ouviagora o que tenho a dizer.
Contou tudo o que lhes sucedera e acrescentou que a tal briga a que a
senhora se referia devia ser aquela na qual se achara envolvido e disse a DomAntônio que, segundo lhe parecia, as pessoas que tinham combatido eram tôdas
de grande importância.Ficaram ambos admirados e pensativos com as aventuras de cada um e,
sem demora, voltaram para casa para ver se a môça precisava de alguma coisa.
Pelo caminho Dom Antônio disse a Dom João que prometera àquela senhoranão deixar ninguém vê-la e que só êle entraria no quarto, enquanto ela não
ordenasse outra coisa.- Não importa - respondeu Dom João -, acabaremos por obter seu
consentimento a fim de que eu possa vê-la, pois, ao ouvir-vos gabar tanto sua
formosura, tenho muita vontade de conhecê-la.
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Com isto, chegaram a casa e, à luz das tochas que os três pajens traziam aoabrir-lhes a porta, levantou Dom Antônio olhos para o chapéu de Dom João e
viu-o resplandescente dos diamantes. Tirou-o e verificou que todo aquêle brilho
provinha de uma fivela pregada no chapéu e cravejada com essas pedraspreciosas. Os dois a examinaram com atenção e chegaram à conclusão de que,
se tôdas aquelas pedras eram finas como pareciam, valiam mais de 12.000ducados. Convenceram-se ainda mais de que o pessoal da briga devia serimportante, sobretudo aquêle que Dom João socorrera e lhe dissera para ficar
com o chapéu como recordação e por ser bem conhecido. Ordenaram aos pajensque se retirassem; Dom Antônio abriu o seu aposento e encontrou a senhora
sentada na cama, com a mão encostada no queixo e derramando muitas
lágrimas. Dom João, desejoso de vê-la, aproximou-se da porta e estendeu acabeça, de modo que a luz, batendo-lhe no chapéu, fêz brilhar os diamantes aos
olhos da senhora, que logo exclamou:- Entrai, senhor duque, entrai! Por que me negais o bem de vossa
presença?Ao ouvir isso, Dom Antônio disse:- Aqui não há nenhum duque, minha senhora, que não vos queira ver.
- Como não? - replicou ela. - Aquêle que ali olhou por um momento é o
Duque de Ferrara, pois a riqueza de seu chapéu não o deixa passardespercebido.
- Em verdade, minha senhora, o chapéu que ali apareceu não está nacabeça de nenhum duque; se quereis desiludir-vos, permiti que entre quem o
traz.- Pois que entre - disse ela -, ainda que minha desgraça aumente se não fôr
o duque.
Dom João ouvira tôda a conversa e vendo, a essas alturas, que tinhalicença para entrar, assim fêz, trazendo o chapéu na mão; apenas a senhora viu
que o portador do chapéu não era quem pensava, disse precipitadamente e comvoz perturbada:
- Ai, infeliz de mim! Dizei-me senhor, pelo amor de Deus: conheceis o
dono dêste chapéu? Onde o deixastes e por que motivo tendes o chapéu emvosso poder? Vive ainda ou é êsse o sinal que me envia de sua morte? Que se
passa? “Vejo as coisas que te pertencem, mas não vejo a ti.” Estou aquiencerrada e graças a Deus em poder de fidalgos espanhóis, pois, se não fôsseisso, teria já morrido com mêdo de perder a minha honra!
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- Sossegai, minha senhora - disse Dom João -, pois nem o dono dêstechapéu morreu, nem vos encontrais em lugar onde vossa honestidade corra
perigo. Aqui estamos nós para vos servir em tudo o que pudermos e prontos a
arriscar a própria vida para vos defender e amparar, pois nunca serádesmentida a fé que tendes no cavalheirismo espanhol. Somos espanhóis e de
nobre origem - não é arrogância declará-lo neste momento. Tranqüilizai-vos,pois, que será bem guardado o decôro que vossa presença merece.
- Confio plenamente em vós - respondeu ela -, mas dizei-me, senhor: como
veio às vossas mãos êsse rico chapéu e onde está seu dono, Alfonso de Este,Duque de Ferrara?
Dom João, para satisfazer-lhe a vontade, contou-lhe como havia, em uma
luta, ajudado o cavalheiro que, de acôrdo com suas informações, devia ser oDuque de Ferrara. Contou-lhe como o duque havia perdido o chapéu e achado
aquêle; disse que, a pedido do próprio duque, havia êle guardado o chapéu aoqual ela se referia; falou ainda que, no final da luta, nem êle nem o cavalheiro se
achavam feridos, pois havia chegado gente, ao que parece, amiga do duque, eêste, agradecido, lhe dera o chapéu como lembrança. E concluiu:
- Agora sabeis, minha senhora, como êste rico chapéu veio ter às minhas
mãos, e, se seu dono é, como assegurais, o duque, é preciso dizer-vos que há
menos de meia hora deixei-o são e salvo. Que esta notícia vos sirva de consôlo,se vos podeis consolar.
- Para saberdes, senhores, que tenho motivos para perguntar por êle, ficaiatentos e escutai minha infeliz história.
Enquanto isso a criada estivera tomando conta do recém-nascido, dando-lhe mel para chupar e trocando-lhe as belas rou-Ï pas que usava por outras maismodestas; quando acabou êste serviço, preparou-se para levar a criança à casa
da parteira, como Dom João lhe ordenara. Passando, porém, com o bebê peloquarto onde estava aquela que se dispunha a contar sua história, a criancinha
chorou e a senhora, levantando-se, ficou a escutar atentamente; ouvindo maisdistintamente o chôro, perguntou:
- Senhores, quem está chorando? Parece um recém-nascido
Dom João respondeu:- É um menino que abandonaram esta noite à porta de nossa casa e agora a
criada vai levá-lo a quem lhe dê de mamar.- Tragam-no aqui, pelo amor de Deus! - pediu a senhora. Eu farei essa
caridade aos filhos alheios, visto não permitir océu que eu a faça aos meus.
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Dom João chamou a criada, pegou a criança e, voltando para o quarto comela nos braços, disse:
- Aqui está, minha senhora o presente que nos fizeram esta noite, e não foi
o primeiro, porque poucos meses passam sem acharmos tais surprêsas nasoleira de nossa porta. - Ela pegou o recém-nascido, olhou-o atentamente,
examinando-lhe não só o rosto como também as roupas, simples , porémlimpas, que o envolviam; em seguida, começou Ì a chorar e, tapando os peitoscom o manto para poder dar de mamar à criancinha com recato, aconchegou-a
ao seio e, sustentando-a com seu leite, banhava-a de lágrimas. Assim ficou, semerguer o rosto enquanto a criança não largou o peito. Todos os quatro estavam
silenciosos; o menino mamava, mas não muito bem, porque as parturientes não
podem logo dar de mamar; e assim o entendeu afinal a senhora, que, voltando-se para Dom João, lhe disse:
- Mostrei-me caridosa em vão; sou novata neste assunto.Mandai, senhor, que sustentem esta criancinha com uma gôta de mel e
não permitais que a levem pelas ruas a esta hora; esperai pelo dia de amanhã e,antes de a levarem, gostaria de tornar a vê-la, pois é para mim um consôlo.
Dom João tornou a entregar a criancinha à criada, dizendo-lhe que
deixasse para levá-la de casa no dia seguinte e que antes tornasse a envolvê-la
nas mantas com que viera e o avisasse antes de partir. Entrando novamente noquarto e encontrando-se os três a sós, a formosa senhora falou:
- Se quereis que eu fale, dai-me primeiro alguma coisa para comer, poisestou muito fraca e tenho motivo para tal.
Dom Antônio foi logo abrir um armário, de onde tirou muitas conservas; asenhora comeu algumas e bebeu um copo de água fria. Reanimada e um poucomais tranqüila, disse:
- Sentai-vos, senhores, e escutai.Obedeceram-lhe e ela, acomodando-se no leito e abrigando-se bem com as
saias, deixou escorregar para os ombros o véu que trazia na cabeça, ficando como rosto bem descoberto; sucedeu, então, o que sucede à luz, ou melhor, aopróprio sol, quando, liberto das nuvens, se mostra formoso e claro. Caíam-lhe
dos olhos pérolas líquidas e ela as limpava com um lenço alvíssimo e com taismãos que, entre elas e o lenço, teria bons olhos aquêle que soubesse distinguir a
brancura. Finalmente, depois de soltar muitos suspiros, tranqüilizou-se umpouco e disse, com voz magoada:
- Sou aquela de quem, sem dúvida, deveis ter ouvido muitas vêzes falar,
porque a fama de minha beleza é tanta que poucas línguas há por aí que não a
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publiquem. Sou, com efeito, Cornélia Bentibolli, irmã de Lourenço Bentibolli, e,dizendo-vos isto, revelo duas verdades: a da minha nobreza e a da minha
formosura. Fiquei órfã de pai e mãe quando era ainda muito pequena e fui
entregue a meu irmão, que sempre me guardou com desvêlo inigualável,embora confiasse mais na seriedade e honradez de meu caráter que propria-
mente na solicitude que empregava em guardar-me. Fui crescendo entreparedes e solidão, acompanhada apenas por minhas criadas; crescia comigo afama de minha beleza, apregoada por meus servidores, por aquêles que
conseguiam ver-me e por um retrato feito por um pintor famoso a pedido demeu irmão, a fim de que, dizia êle, o mundo não ficasse sem mim, quando o céu
me mandasse para outra vida melhor. Mas tudo isso seria pouco para assegurar
minha perdição, se o Duque de Ferrara não fôsse ao casamento de uma parentaminha como padrinho, a cujas bodas meu irmão me levou com boas intenções e
para homenagear minha prima.Ali, olhei e fui vista; ali, segundo crêem, venci corações, avassalei
vontades; ali percebi o gôsto que produzem os louvores, ainda que sejam dadospor línguas lisonjeiras; ali, finalmente, vi o duque e êle me viu, e é por isso queme encontro agora nesse estado. Não vos quero dizer, senhores, porque não
teria mais fim essa narrativa, os meios, a persistência, os estratagemas, os
modos pelos quais o duque e eu chegamos a realizar, ao cabo de dois anos, osdesejos que naquelas bodas nasceram, porque nem vigilância, nem prudência,
nem admoestações, nem outros cuidados humanos foram suficientes paraimpedir que viéssemos a juntar-nos, o que, por fim, sucedeu, com a promessa
de que viria a ser meu espôso, pois sem ela teria sido impossível quebrar arocha de meu orgulho. Mil vêzes lhe disse para falar com meu irmão, pois êlenão se negaria a consentir em nosso casamento, e que não precisaria pensar em
qualquer desigualdade em nossa união, porque a nobreza dos Bentibolli emnada era inferior à sua. Respondeu-me com razões que julguei boas e
necessárias e confiante, com a credulidade de uma namorada, entreguei-me aêle por intermédio de uma criada minha, mais sensível às dádivas e promessasdo duque que à consciência que devia à confiança que meu irmão depositava
em sua fidelidade. O resultado de tudo isso foi que daí a pouco tempo percebique estava grávida e, antes que meu aspecto revelasse meu estado, fingia-me
doente e melancólica e fiz meu irmão me mandar para a casa daquela prima dequem o duque fôra padrinho de casamento. Aí o tornei sabedor da situação emque me encontrava, do perigo que me ameaçava e da pouca segurança em que
estava a minha vida, por pressentir que meu irmão já suspeitava de meu estado.
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Combinamos então que, ao fim de minha gravidez, eu o avisaria e êle viriabuscar-me, acompanhado por seus amigos, e me levaria para Ferrara, onde,
logo que pudesse, se casaria comigo publicamente. Esta noite em que estamos
foi a combinada para a sua vinda, porém, na hora em que o esperava, sentipassar meu irmão com muitos outros homens, que, pelo tilintar das espadas,
pareciam armados. Isto me causou tal sobressalto que, de repente e semesperar, sobreveio o parto e dei à luz um lindo menino. Minha criada, sabedorae medianeira de meus feitos, estando já prevenida para êste caso, envolveu a
criancinha em roupas e mantas diferentes das que cobriam o meninoabandonado à vossa porta e, indo à porta da rua, entregou-o, segundo disse, a
um criado do duque. Quanto a mim, logo depois, arranjando-me como pude,
saí de casa, julgando que encontraria o duque na rua, e nunca devia tê-lo feitoantes de êle estar à porta. Mas o mêdo que me inspirava a quadrilha armada de
meu irmão, pois parecia-me sentir no pescoço o fio de sua espada, não medeixou raciocinar melhor; e assim, louca e desatinada, saí e andei até onde me
encontrastes. E, conquanto agora me veja sem filho e sem espôso, receandocoisas piores, dou graças a Deus por ter-me trazido para debaixo de vosso teto,esperando de vós tudo o que a cortesia espanhola me permite esperar e
especialmente da vossa, pois estou certa de que sabereis ser tão nobres quanto
pareceis.Dizendo isso, deixou-se cair por sôbre o leito; acudindo os dois fidalgos,
pensando que ela perdera os sentidos, viram que chorava amargamente.Dom João lhe disse:
- Se até aqui, minha senhora, eu e Dom Antônio, meu amigo, nossentíamos compadecidos perante vosso infortúnio, pelo fato de serdes mulher,agora que sabemos quem sois, a nossa compaixão se torna dever sagrado de vos
servir. Recuperai o ânimo e não vos desalenteis; ainda que não estejaisacostumada a semelhantes aventuras, lembrai-vos de que quanto maior fôr a
vossa paciência e coragem para suportá-las melhor mostrareis quem sois. Estouconvencido, minha senhora, de que êstes acontecimentos extraordinários hão deter um bom fim, pois o céu não há de permitir que tanta beleza se perca e tão
nobres pensamentos malogrem. Deitai-vos agora e cuidai de vossa pessoa, quemuito o necessitais; uma criada virá aqui para vos servir; podereis depositar
nela tôda a confiança, pois saberá guardar segrêdo sôbre as vossas desgraças eacudir às vossas necessidades.
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- E eu preciso muito - respondeu ela. - Que venha então, senhor, quemdizeis, porque, vindo de vossa parte, só pode ser de confiança; peço-vos, porém,
que ninguém mais me veja, a não ser vossa criada.
- Está bem - falou Dom Antônio.Saíram, deixaram-na sozinha e Dom João disse à criada que entrasse no
quarto e levasse o recém-nascido com suas verdadeiras roupas e mantas. Acriada entrou no quarto preparada para responder ao que a senhora lheperguntasse sôbre o bebê.
Ao vê-la, Cornélia lhe diz:- Chegais em boa hora, amiga; dai-me essa criancinha; chegai aqui esta
vela.
A criada assim fêz e Cornélia, tomando a criança nos braços, perturbou-se,fitou-a atentamente e disse:
- Dizei-me: êste menino é o mesmo que trouxestes há pouco?- Sim, minha senhora - respondeu a criada.
- Mas, então, por que está vestido com outras roupas?perguntou Cornélia. - Em verdade, amiga, parece-me que as roupas são
diferentes ou esta não é a mesma criança.
- Tudo pode ser - falou a criada.
- Ai de mim! - disse Cornélia. - Como tudo pode ser? Respondei-me, pois ocoração parece arrebentar-se dentro do meu peito. Dizei-me, amiga, por tudo
quanto tendes de mais sagrado, como vieram parar em vossas mãos estasroupas. Vereis que são minhas, se não me falha a vista e se não me engana a
memória. Com estas mesmas roupas ou com outras iguais a estas, entreguei àminha aia a prenda mais querida de minha alma. Quem as tirou? Ai de mim!Quem as trouxe aqui? Como sou infeliz!
Dom João e Dom Antônio, que escutavam tôdas essas queixas, nãoquiseram que a ansiedade da pobre Cornélia se tornasse ainda maior e,
entrando os dois, Dom João disse:- Essas roupas e êsse menino pertencem-vos, Senhora Cornélia.E contou-lhe pormenorizadamente como fôra a êle que, por engano, sua
criada entregara a criancinha à porta de sua casa.- E qual o motivo da troca de roupas? tinha certeza de que aquêle menino
era seu filho e, se ainda não dissera nada, fôra para evitar uma comoçãoviolenta que lhe poderia ser nociva; e, assim, êsse conhecimento viera aospoucos e, ao sobressalto da dúvida, seguiu-se a alegria de tê-lo reconhecido.
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Neste ponto as lágrimas de felicidade de Cornélia pareciam não ter fim.Infinitos foram os beijos que deu em seu filho, infinitas as graças que deu aos
dois rapazes, chamando-os de seus anjos da guarda e de outros nomes
inspirados por sua gratidão. Deixaram-na, então, com a criada, recomendando aesta que a tratasse com todo o carinho de que necessitava, e foram deitar-se
para descansar o resto da noite, com o propósito de não voltarem ao aposentode Cornélia, a não ser que ela os chamasse e que sua presença fôsse necessária.Amanheceu; a criada trouxe à casa uma mulher que deu de mamar à criança, às
escuras e secretamente. Os dois amigos perguntaram por Cornélia e a criadadisse que ela descansava; foram então à escola e passaram pela rua onde se dera
a briga e pela casa de onde Cornélia saíra, para ver se já tinham dado por sua
falta ou se ouviam algum comentário; mas nada viram nem ouviram que serelacionasse com a briga ou com a ausência de Cornélia. Depois das aulas
voltaram para casa.Cornélia mandou chamá-los por intermédio da criada, mas êles
responderam que tinham decidido não voltar ao seu aposento, a fim de que elase cuidasse com o decôro que exigia sua honestidade; Cornélia, porém, pediu-lhes com lágrimas para que tornassem a vê-la, pois êsse era o decôro mais
adequado, senão para seu remédio, pelo menos para seu consôlo. Fizeram-lhe a
vontade e ela recebeu-os com rosto alegre e cortesmente; pediu-lhes queperguntassem na cidade para ver se havia alguma notícia a seu respeito. Os
rapazes responderam-lhe que já tinham empregado diligências nesse sentido,mas ninguém falava em nada.
Nisto chegou um dos três pajens da casa e disse, à porta do aposento:- Está aí um fidalgo com dois criados que diz chamar-se Lourenço
Bentibolli, meu senhor Dom João de Gamboa.
Ao ouvir êste recado, Cornélia fechou ambas as mãos e levou-as à bôca,falando com voz baixa e trêmula:
- Meu irmão, senhores. É meu irmão que está aí. Sem dúvida já sabe ondeestou e vem para me matar. Socorro, senhores, defendei-me.
- Tranqüilizai-vos, minha senhora - disse Dom Antônio.
- Estais em lugar seguro e sob a proteção de quem não vos deixará sofrer amenor ofensa. Ide, Dom João, e vêde o que deseja êsse fidalgo; eu ficarei aqui
para defender a Senhora Cornélia, se fôr necessário.Dom João, sem mudar de fisionomia, desceu as escadas e logo Dom
Antônio mandou trazer duas pistolas carregadas e ordenou aos pajens que
pegassem as espadas e ficassem prevenidos.
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A criada tremia vendo todos aquêles preparativos; Cornélia, receando oque poderia acontecer, aterrorizava-se. Só Dom Antônio e Dom João sentiam-se
seguros e decididos sôbre o que deviam fazer. Dom João encontrou Dom
Lourenço à porta da rua, e êste lhe disse:- Suplico a Vossa Mercê que faça o favor de me acompanhar àquela igreja,
pois tenho um negócio a comunicar-lhe, ao qual estão ligadas a minha vida e aminha honra.
- Com todo o prazer - respondeu Dom João. - Iremos aonde quiserdes.
Dito isso, dirigiram-se à igreja, sentaram-se em um banco, em lugar ondenão podiam ser ouvidos. Lourenço foi o primeiro a falar:
- Eu, senhor espanhol, sou Lourenço Bentibolli, senão dos mais ricos, pelo
menos de uma das mais nobres casas desta cidade. Êste fato, de todosconhecido, poderá parecer presunção. Fiquei órfão há alguns anos e tornei-me
responsável por uma irmã tão formosa que, não fôsse ela minha parenta equisesse eu elogiá-la, não encontraria palavras para fazê-lo, pois não há
palavras capazes de exprimir tôda a sua beleza. Por ser eu homem de bem e ela jovem e formosa, minha solicitude em guardá-la era extrema; mas tôdas asminhas precauções e diligências foram frustradas pela vontade de minha irmã
Cornélia, pois é êste o seu nome. Finalmente, para resumir e não ser cansativo,
direi que o Duque de Ferrara, Alfonso de Este, com olhos de lince, venceu os deArgos, triunfou sôbre meu engenho, conquistando minha irmã, e ontem à noite
levou-a, tirando-a da casa de uma parenta nossa, e, além de tudo, segundodizem, com um filho. Ontem à noite eu o soube e logo saí à procura do duque e
penso que o encontrei e lhe dei duas estocadas; mas êle foi socorrido por umanjo que não consentiu que eu lavasse, com seu sangue, a mancha feita emminha honra. Disse-me minha prima, que foi quem me contou tudo, que o
duque enganou¡ minha irmã, prometendo recebê-la como espôsa. Nisso nãoacredito, porque o casamento seria desigual quanto à riqueza, embora não o
fôsse quanto à linhagem, pois todos sabem quem são os Bentibolli de Bolonha.Parece-me que o duque se fiou no que se fiam os poderosos que desejamconquistar uma donzela tímida e recatada, acenando-lhe com o doce nome de
espôsa e, fazendo-a acreditar em vários motivos que não permitissem arealização imediata do casamento; são mentiras com aparência de verdades,
porém falsas e mal-intencionadas. Mas, seja como fôr, vejo-me sem irmã e semhonra, conquanto tudo isto, de minha parte, esteja sob a chave do silêncio; nãoquis contar a pessoa alguma êste agravo, até ver se posso encontrar um jeito de
remediá-lo: é melhor que as infâmias se presumam ou suspeitem do que se
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conheçam com certeza, porque entre o sim e não da dúvida cada um podeinclinar-se para onde quiser. Em resumo, resolvi ir a Ferrara e pedir ao duque
satisfação de tão grande ofensa; se êle a negar, eu o desafiarei e isto não será
com esquadrões de gente, pois não posso formá-los nem sustentá-los, mas simde homem para homem. Desejaria que me ajudásseis e me acompanhásseis
nesta jornada. Espero que não vos recuseis, pois sei que sois espanhol e fidalgo.Faço isto para não ter de prestar contas a nenhum parente ou amigo, de que sópoderia esperar conselhos e dissuasões, e de vós só posso esperar o que é bom e
honrado, mesmo a trôco de qualquer perigo. Peço-vos o favor de meacompanhar, pois, levando eu um espanhol a meu lado e tal como vós me
pareceis, farei de conta que levo comigo o próprio exército de Xerxes. Bem sei
que vos peço muito, mas o dever que tendes de corresponder à fama de vossapátria obriga-vos a muito mais.
- Nem mais uma palavra, Senhor Lourenço - disse a essas alturas Dom João, que estivera escutando em silêncio. - Nem mais uma palavra, pois desde já
me considero vosso defensor e tomo como obrigação a vingança de vossoagravo. E isto, não só por ser espanhol, mas também por ser cavalheiro, comovós dissestes que sois, o que, aliás, já era de meu conhecimento.
Quando partiremos? Quanto mais depressa melhor, porque o ferro deve
ser malhado enquanto está quente, o ardor da cólera aumenta a coragem e ainjúria recente estimula a vingança.
- Ânimo tão generoso quanto o vosso, Senhor Dom João, não precisa serestimulado por outro interêsse que não seja a honra que haveis de receber por
êste feito e que, desde já, por minha parte, reconheço, oferecendo-vos tudoquanto tenho, posso e valho. Partiremos amanhã porque hoje providenciaremoso que fôr necessário.
- Parece-me que assim está bem - disse Dom João. - Se permitis, SenhorLourenço, levarei o fato ao conhecimento de um cavalheiro meu amigo que é
até de maior valor e muito mais discreto do que eu.- Senhor Dom João, haveis tomado minha honra a vosso cargo; logo,
podereis dispor dela como quiserdes, falar dela o que quiserdes e a quem bem
desejardes. Tanto mais que, sendo vosso amigo e companheiro, só poderá ser decaráter nobre.
Dito isto, abraçaram-se e despediram-se, combinando que no dia seguinteLourenço mandaria chamar Dom João; montariam em seus cavalos fora dacidade e, disfarçados, seguiriam seu caminho.
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Voltando a casa, Dom João contou a Dom Antônio e a Cornélia tudo o quese passara.
- Valha-me Deus! - disse Cornélia. - Vossa confiança e cortesia são em
verdade muito grandes. Como vos dispusestes logo a empreender uma façanhatão cheia de perigos? E sabeis, senhor, se meu irmão vos leva a Ferrara ou a
outro lugar? Mas, seja aonde fôr que vos leve, podeis estar certo de que vosacompanha a fidelidade em pessoa, ainda que eu me afogue em um copo deágua e veja perigo até mesmo nos sonhos. E como não haveria de temer se
minha vida ou minha morte dependem da resposta do duque? Talvez êle falecortêsmente e desarme a cólera de meu irmão. E, se assim não fôr, que grande
inimigo terá êle pela frente! Como hei de passar êsses dias enquanto ficar aqui
ansiosa e a tremer de mêdo, esperando as notícias que hão de vir? Será queestimo tão pouco ao duque ou ao meu irmão que não receie as desgraças e as
sinta até o fundo da alma?- É justo que vos agiteis, minha senhora - disse Dom João.
- Mas, entre tantos receios, dai lugar à esperança; confiai em Deus, emminha habilidade e meus bons desejos e assim vereis, com facilidade, cum-pridos os vossos. Eu não podia recusar meu auxílio a vosso irmão nem minha
companhia em sua jornada a Ferrara. Até agora não conhecemos as intenções
do duque, nem se êle sabe que vos ausentastes de casa; saberemos tudo isso nomomento oportuno e por intermédio dêle; ninguém melhor do que eu para
perguntar. Convencei-vos, minha senhora, de que a saúde, o contentamento devosso irmão e do duque me são mais preciosos que a menina dos olhos; eu os
defenderei da mesma forma que defendo a ela.- Senhor Dom João - disse Cornélia -, se o céu vos dá poder para remediar
como bondade para consolar, considero-me feliz. Gostaria de ver-vos ir e voltar,
quer me aflija o temor, quer me anime a esperança durante vossa ausência.Dom Antônio aprovou a decisão de Dom João e elogiou a maneira pela
qual êle correspondeu à confiança de Lourenço Bentibolli, dizendo ainda quedesejaria acompanhá-lo. Dom João respondeu:
- Isso não, porque não é prudente deixarmos a Senhora Cornélia sozinha e
porque não quero que o Senhor Lourenço pense que preciso valer-me de fôrçasalheias.
- O que é meu é vosso - replicou Dom Antônio -, de modo que, emboradisfarçado e de longe, hei de seguir-vos; sei que a Senhora Cornélia aprovarámeu procedimento, pois não ficará tão só que não tenha alguém para servi-la,
guardá-la e acompanhá-la.
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Cornélia respondeu:- Será um grande consôlo para mim saber que ides juntos, ou, pelo menos,
de modo que possais auxiliar-vos mutuamente se a sorte assim o exigir. E, como
vossa emprêsa parece a mim cheia de perigos, fazei-me o favor de levarconvosco estas relíquias.
E, dizendo isto, tirou do seio uma cruz de diamantes de valor incalculávele um agnus de ouro, tão precioso quanto a cruz. Examinaram ambos asriquíssimas jóias com mais admiração ainda do que quando haviam visto a
fivela do chapéu do duque, mas devolveram-nas a Cornélia, não querendo demodo algum ficar com elas, dizendo que levariam consigo outras relíquias não
tão bonitas, mas igualmente preciosas pela sua santidade.
Cornélia sentiu muito ao vê-los recusar as relíquias, mas teve de seconformar com sua vontade.
A criada mostrara-se muito zelosa e atenta com a senhora de quem nãoconhecia o nome e, sabendo que seus amos precisavam viajar, ignorando,
porém, para onde iam e qual seu intento, prometeu cuidar de Cornélia de talmodo que ela não sentisse a falta de seus protetores.
No dia seguinte, logo de manhãzinha, já estava Lourenço à porta de casa e
Dom João pronto para partir, levando na cabeça o chapéu do duque, enfeitado
por plumas negras e amarelas, cobrindo a fivela de diamantes uma rosetanegra. Os dois rapazes despediram-se de Cornélia, mas esta, considerando que
o irmão estava tão perto, não teve ânimo para lhes dizer uma palavra.Dom João saiu primeiro e, na companhia de Lourenço, encontrou dois
excelentes cavalos e dois criados que os seguravam pelas rédeas. Montaram e,com os dois criados adiante, por atalhos e caminhos escondidos, foramandando na direção de Ferrara.
Dom Antônio, disfarçado e montando seu cavalo, seguia-os. Pareceu-lhe,porém, que os outros, sobretudo Lourenço, desconfiavam dêle; resolveu, então,
tomar a estrada real de Ferrara, na certeza de encontrar lá o seu amigo no fimda jornada.
Mal tinham saído da cidade quando Cornélia contou à criada tudo o que
lhe sucedera, como aquêle menino era seu filho e do Duque de Ferrara; contoucom todos os pormenores já narrados, não lhe escondendo que os dois amigos
tinham partido para Ferrara acompanhando seu irmão, que ia desafiar o DuqueAlfonso.
Ouvindo isto, a ama, como se o demônio a tentasse para dificultar ou
estorvar a salvação de Cornélia, disse:
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- Ai, minha senhora! Tôdas essas coisas passaram por vós e estais aídescansada da vida? Não tendes alma ou a tendes tão desprezada que não a
percebeis. Pensais, porventura, que vosso irmão vai a Ferrara? Não vêdes que
seu intento foi afastar os meus amos de casa para vir aqui e tirar-vos a vida coma maior facilidade? Qual é nossa defesa e amparo agora, senão três pajens que
só fazem coçar a sarna que têm e não querem saber de outros cuidados? Quantoa mim, direi que me falta o ânimo para esperar os desastres que ameaçam estacasa. Como hei de acreditar que o Senhor Lourenço, italiano, confia em
espanhóis e lhes pede favores? Não. Não creio. Se vós, filha, quisésseis aceitarum conselho, eu vos daria um muito proveitoso.
Pasmada, confusa, atônita, Cornélia ouvia as palavras que a velha criada
declarava com tanta veemência e mostras de temor; a pobre senhora começou aacreditar no que ela dizia e a afigurar-se que, talvez, àquela hora Dom-João e
Dom Antônio estivessem mortos e de um momento para outro seu irmãoentraria pela casa adentro e a crivaria de punhaladas.
- Qual seria o vosso conselho, amiga, capaz de nos salvar e prevenir adesventura que temeis? - perguntou ela à criada.
- Meu conselho é tão bom que não pode haver melhor. Há alguns anos,
servi eu a um cura que vive em uma aldeia a 2 milhas de Ferrara. É um bom e
santo homem, que fará por mím tudo quanto eu lhe pedir, porque me devemais obrigações que as que um amo costuma dever a seu criado. Vamos para lá.
Tratarei de arranjar quem nos leve; quanto à mulher que dá de mamar aomenino, é muito pobre e irá conosco até o fim do mundo.
E, como supomos que acabareis por ser encontrada, melhor será vosencontrarem em casa de um sacerdote de missa, velho e honrado, que em poderde dois estudantes moços e espanhóis, pois êstes, e disso eu sou testemunha,
não desprezam uma patuscada, e, se agora vos respeitam é porque estaisdoente; logo que estiverdes curada e em seu poder, só Deus vos poderá ajudar,
porque, em verdade, se minha repugnância, desdém e coragem não metivessem guardado, já teriam acabado comigo e com minha honra, pois nemtudo o que reluz é ouro. Uma coisa é o que dizem, outra é o que pensam; mas
comigo perderam seu tempo, porque tenho pêlo nas ventas e sei onde o sapatome aperta; além de tudo, sou bem nascida, pois descendo dos Cribelos de Milão
e considero minha honra 10 milhas acima das nuvens. Por isto, podem-se ver ascalamidades que por mim passaram, pois, sendo quem sou, cheguei a serescrava de espanhóis, embora não me possa queixar de meus amos, porque são
muito bons quando não se zangam; neste ponto parecem vasconços, como
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dizem que são, mas pode ser que para convosco venham a ser galegos, que éoutra nação e tem fama de ser menos, pontual e séria que a vasconça.
Enfim, tantas e tais razões apresentou a velha que a pobre mõça resolveu
seguir-lhe o conselho. E assim, em menos de quatro horas, com o consentimentode Cornélia, a criada arranjou tudo e puseram-se as duas e a ama, com o
menino, num carro, a caminho da aldeia do tal cura, sem que os pajens dessempela sua partida. Tudo isto se fez a conselho da velha e com o seu dinheiro,porque os amos, antes de partir, lhe haviam pago um ano de seu ordenado e
assim não foi preciso empenhar uma jóia que Cornélia lhe queria dar para talfim. Como tivessem escutado Dom João falar que nem êle nem Lourenço
Bentíbollí seguiriam pela estrada principal, quiseram ir por êste caminho e de
vagar, a fim de não os encontrar. O dono do carro sujeitou-se à vontade delas,pois lhe pagavam bem. Mas deixemos que elas se vão, cheias de si e bem
encaminhadas; vamos ver o que aconteceu a Dom João de Gamboa e aLourenço Bentibolli. Souberam êles, pelo caminho, que o duque não se
encontrava em Ferrara e sim em Bolonha. Abandonando, então, o atalho queseguiam, tomaram a estrada real ou a estrada mestra, como lá se diz, consi-derando que o duque, ao sair de Bolonha, por ela passaria. Pouco depois de
caminharem nessa estrada, dirigindo os olhares para Bolonha, a fim de ver se
alguém se aproximava, enxergaram uma porção de gente a cavalo. Dom Joãodisse a Lourenço que se afastasse da estrada e fôsse para longe, pois, se por
acaso o duque viesse no meio daquela gente, queria falar-lhe ali mesmo, antesque êle entrasse em Ferrara. Lourenço assim o fêz, aprovando o parecer de Dom
João. Assim que Lourenço se afastou, Dom João tirou a roseta que escondia arica fivela do chapéu.
Nisto, chegou o grupo de cavalheiros; vinha com êles uma mulher vestida
com roupas de viagem e de rosto coberto por uma pequena máscara, ou paraesconder o rosto ou para proteger contra o sol e o ar. Dom João parou no meio
da estrada e esperou os viajantes; quando êstes se encontravam perto, suaestatura, seu garbo, o possante cavalo que montava, a riqueza e elegância deseu vestuário, o brilho dos diamantes em seu chapéu despertaram a atenção dos
que chegavam, principalmente a do duque, que era um dos cavaleiros, e que, aopôr os olhos na fivela de diamantes, percebeu logo que aquêle homem era Dom
João de Gamboa, que lhe salvara a vida na luta em Bolonha. Mal se compe-netrou desta verdade, sem esperar por mais nada, esporeou o cavalo e partiu aoencontro de Dom João, dizendo:
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- Suponho que não me enganarei, senhor cavalheiro, se vos chamar deDom João de Gamboa, pois vossa aparência e o enfeite dêsse chapéu revelam
vosso nome.
- Não vos enganastes - respondeu Dom João. - Jamais soube ou quisesconder meu nome, para nunca ser descortês.
- Isto será impossível - respondeu o duque -, pois tenho a certeza de que jamais poderieis ser descortês. Sou o Duque de Ferrara, Senhor Dom João,aquêle que está obrigado a vos servir durante tôda a vida, pois não faz quatro
noites que vós me salvastes da morte.O duque não acabara ainda de falar e Dom João, com extraordinária
agilidade, já saltara do cavalo e corria para beijar-lhe os pés, mas, por muito
ligeiro que fôsse, já encontrou o duque fora da sela, de modo que êste acabou deapear nos braços de Dom João.
Lourenço, que de longe olhava estas cerimônias, julgando que não eramde cortesia e sim de cólera, esporeou o cavalo, mas estacou no mesmo instante,
porque viu os dois estreitamente abraçados e imediatamente reconheceu oduque. Este, por cima do ombro de Dom João, olhou para Lourenço e também oreconheceu e sobressaltou-se um pouco; assim como estava, abraçado a Dom
João, perguntou-lhe se Lourenço Bentibolli viera em sua companhia. Dom João
respondeu:- Afastemo-nos daqui e contarei a Vossa Excelência grandes coisas.
O duque assim fêz e Dom João lhe disse:- Senhor duque, Lourenço Bentibolli, que ali vêdes, tem uma grande
queixa de vós. Diz êle que há quatro noites tirastes sua irmã, a SenhoraCornélia, da casa de uma prima, que a enganastes e desonrastes, e deseja saberde vós que satisfação podereis dar para êle pensar no que deve fazer. Pediu-me
para ser seu mediador e eu aceitei, porque, pela descrição que me fêz docombate, descobri serdes vós, senhor, o dono desta fivela, que, por liberalidade
e cortesia, quisestes que fôsse minha; e, vendo que ninguém melhor do que eupodia servir a ambos, aceitei, como já vos disse. Peço-vos agora, senhor, parame dizerdes o que sabeis acêrca dêste caso e se é verdade o que Lourenço diz.
- Ai, amigo! - respondeu o duque -, é tão verdade que não me atreveria anegá-lo, mesmo se quisesse; porém não enganei Cornélia nem a tirei de casa
como dizeis; não a enganei porque a considero minha espôsa e não a raptei,pois nem mesmo sei onde ela se encontra. Se não celebrei públicamente a nossaunião, foi porque esperava que minha mãe, que está nas últimas, passasse desta
vida para a outra, pois ela queria que eu desposasse a Senhora Lívia, filha do
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Duque de Mântua, e também por outros motivos talvez mais graves ainda quenão convém agora dizer.
Naquela noite em que me acudistes, eu deveria trazê-la para Ferrara,
porque ela estava já em vésperas de dar à luz o tesouro que, por favor do céu,pôde ela conceber. Porém, ou por causa da briga ou por eu ter-me demorado
um pouco, quando cheguei à sua casa encontrei-me com a pajem que nosajudava secretamente e, tendo-lhe perguntado por Cornélia, disse-me ela que jásaíra e que naquela mesma noite dera à luz um menino, o mais lindo e perfeito
que tinha visto, e que o entregara a meu criado Fábio. A aia é aquela que meacompanha; Fábio está aqui, porém Cornélia e o menino desapareceram. Passei
êstes dois dias em Bolonha, esperando e procurando receber alguma notícia de
Cornélia, mas nada consegui.De maneira que, meu senhor - disse Dom João -, tão logo que Cornélia e
vosso filho apareçam, não negareis que ela é vossa espôsa e êle vosso filho?- Certamente que não, pois, se me prezo como cavalheiro, prezo-me ainda
mais como cristão. Além disso, Cornélia tem tais qualidades que merece serdona de um reino. Se ela aparecer, esteja minha mãe viva ou morta, todo omundo verá que, se eu soube ser amante, sei também manter perante todos a fé
que jurei em segrêdo.
- E podereis repetir a seu irmão, o Senhor Lourenço, o que acabastes de medeclarar? - perguntou Dom João.
- O meu mal - respondeu o duque - foi não lhe ter dito nada ainda.Dom João, no mesmo instante, fêz sinal a Lourenço para desmontar e vir
ter com êles; o rapaz concordou, longe de adivinhar a boa nova que o esperava.O duque dirigiu-se a êle de braços abertos e a primeira coisa que fêz foi chamá-lo de irmão. Lourenço, surpreendido, mal sabia responder a tão afetuosa
saudação e a tão cortês acolhimento. E, estando assim perplexo, antes quepudesse dizer uma palavra, Dom João falou-lhe:
- Senhor Lourenço, o duque confessa as relações secretas que manteve comvossa irmã, a Senhora Cornélia. Confessa também que a considera como legí-tima espôsa e que o dirá publicamente, tão logo lhe seja possível. Diz ainda que
foi há quatro noites buscá-la à casa de sua prima, a fim de trazê-la para Ferrara,à espera de uma oportunidade para celebrar seu casamento, que tem sido
adiado por motivos muito justos e que êle me confiou. Falou-me também docombate que travou convosco e que, quando foi buscar Cornélia, se encontroucom Sulpícia, sua aia, aquela mulher que ali está -, e por intermédio dela soube
que Cornélia tivera um filho e logo saíra de casa, julgando ir ter com o duque, e
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receosa, pois pensava que vós, Senhor Lourenço, já sabíeis o que se passava.Sulpícia, acreditando entregar o recémnascido a um criado, deu-o a uma pessoa
desconhecida. Desapareceram, pois, mãe e filho; o duque reconhece sua culpa e
declara que, tão logo encontre Cornélia, a receberá como espôsa.Considerai agora, Senhor Lourenço, se há mais alguma coisa a dizer ou
desejar, a não ser a descoberta de dois tesouros tão preciosos quanto desgra-çados.
Lourenço respondeu atirando-se aos pés do duque, que se esforçava para
erguê-lo.- De vossa bondade cristã e grandeza, sereníssimo senhor, não poderíamos
esperar outra atitude; a ela, tornando-a igual a vós; a mim, considerando-me
vosso criado.Nesse ponto, os dois tinham os olhos rasos de lágrimas, enternecidos, um
com a perda da espôsa, o outro por ter encontrado um cunhado tão bom. Mas,considerando que seria fraqueza dar mostras de seus sentimentos com lágrimas
nos olhos, ambos procuraram reprimi-las. Nos olhos de Dom João brilhava aalegria, que lhe vinha ao pensar que as duas jóias estavam sãs e salvas em suacasa.
Estavam, pois, nesta situação, quando apontou na estrad a Dom Antônio
de Isunza, que Dom João reconheceu de longe.Mas, quando se aproximou, deteve-se, observando os cavalos de Dom
João e de Lourenço, que dois criados seguravam. Dom Antônio reconheceuDom João e Lourenço, mas não reconheceu o duque e não sabia o que fazer: se
devia aproximar-se ou não.Dirigiu-se aos criados do duque e perguntou-lhes se sabiam quem era o
fidalgo que estava falando com os outros dois. Responderam-lhe que era o
Duque de Ferrara, e esta notícia deixou-o ainda mais perplexo; Dom João correuem seu auxílio, chamando-o pelo nome. Dom Antônio, vendo que todos
estavam desmontados, apeou e, ao aproximar-se, foi recebido pelo duque muitocortêsmente, pois Dom João já lhe dissera que aquêle era seu grande amigo ecompanheiro. Finalmente, Dom João contou-lhe tudo o que acontecera desde
que se haviam separado até aquêle momento.Dom Antônio regozijou-se e disse a Dom João:
- Por que não completais a alegria e o contentamento dêstes senhores,dizendo-lhes onde se encontra Cornélia com seu filho, e lhes pedis alvíssaraspelo achado?
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- Se não fôsse vossa chegada, Dom Antônio, eu já o teria feito, mas vóspodeis pedi-las agora que êles as darão de muito boa vontade.
Ao ouvirem falar de Cornélia e de alvíssaras, o duque e Lourenço
perguntaram de que se tratava.- Que há de ser - respondeu Dom Antônio -, senão que desejo também
representar meu papel nessa comédia trágica, e que êsse papel será o dapersonagem que pede alvíssaras pelo fato de estarem em sua casa a SenhoraCornélia e seu filho?
E contou-lhes pormenorizadamente tudo o que narramos até agora. Oduque e Lourenço sentiram tal alegria que abraçaram estreitamente os dois
amigos, prometendo o duque o seu Estado como alvíssara e Lourenço os seus
bens, sua vida e sua alma.Chamaram, então, a aia, que entregara por engano o recém-nascido a Dom
João, a qual tendo reconhecido seu amo Lourenço tremia de mêdo. Pergun-taram-lhe se conhecia o homem a quem dera a criança e ela respondeu que não,
que lhe perguntara se era Fábio e êle respondera afirmativamente e, confiandonisto, entregara ela o menino.
- Foi assim mesmo - falou Dom João. - E vós fechastes a porta logo depois
de me recomendardes que pusesse o bebê a salvo e voltasse depressa.
- Assim foi, meu senhor - respondeu a aia chorando.O duque disse:
- Não queremos lágrimas aqui, e sim júbilo e festas. Agora não possoentrar em Ferrara, antes de voltar a Bolonha, pois tôda essa alegria é apenas
uma sombra e só a presença de Cornélia a tornará real.E, sem dizer mais nada, partiram todos de volta a Bolonha.Dom Antônio entrou antes de todos na cidade a fim de prevenir Cornélia,
impedindo assim que se assustasse com a súbita chegada do duque e de seuirmão; mas, como não a encontrou em casa, nem os pajens souberam dar notí-
cias dela, ficou triste e desesperado, sem saber o que fazer de sua vida. Dando,então, pela falta da criada velha, lembrou-se de que talvez fôsse a causadora dapartida de Cornélia. Os pajens disseram-lhe que a aia se ausentara no mesmo
dia em que seus amos haviam partido e que essa Senhora Cornélia de quemDom Antônio falava êles nunca tinham visto. Dom Antônio ficou fora de si ao
considerar esta nova desgraça, temendo que o duque os tomasse por mentirososou embusteiros ou até imaginasse coisa pior, que redundasse em prejuízo desua honra e da reputação de Cornélia.
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Estava, pois, nesta situação quando entraram o duque, Lourenço e Dom João, que, deixando a comitiva fora da cidade e passando por ruas desertas,
chegaram à casa de Dom João. Encontraram Dom Antônio sentado em uma
cadeira, com a mão no rosto e pálido como um morto. Dom João perguntou-lheo que tinha e onde estava Cornélia.
- Que não haverei eu de ter - respondeu Dom Antônio. Cornélia desapa-receu juntamente com a criada que deixamos para lhe fazer companhia,desapareceu no mesmo dia em que partimos.
Ao ouvir estas palavras, o duque estêve para expirar; Lourenço ficoudesesperado. Todos se mantiveram aflitos, suspensos e pensativos. Nisto,
chegou um pajem de Dom Antônio e disse-lhe ao ouvido:
- Santisteban, o pajem do senhor Dom João, desde o dia em que ossenhores saíram de casa, tem uma mulher muito bonita fechada em seu quarto e
creio que seu nome é Cornélia, assim tenho ouvido chamá-la.Dom Antônio alvoroçou-se novamente e queria que Cornélia não apare-
cesse em tais circunstâncias, pois imaginou que o pajem a tivesse escondido eera preferível não a encontrar do que encontrá-la fechada em tal lugar. Mas nãodisse nada a ninguém e foi ao aposento do pajem; encontrou a porta fechada e o
pajem ausente; aproximou-se, então, da porta e disse em voz baixa:
- Abri, Senhora Cornélia, vinde receber o vosso irmão e o duque vossoespôso, que vieram para buscar-vos.
- Estão zombando de mim? Não sou assim tão feia nem tão sem graça quenão possam vir buscar-me duques e condes, mas é isso que dá a gente meter-se
com pajens.Por estas palavras Dom Antônio percebeu que não era Cornélia quem
falava. Nesse instante chegou Santisteban e, dirigindo-se ao seu aposento, ali
encontrou Dom Antônio, que lhe pediu para trazer várias chaves da casa paraver se alguma dessas servia na porta daquele quarto. O pajem caiu de joelhos e,
com a chave na mão, disse:- A ausência de vossas mercês e a minha velhacaria fizeram-me trazer para
cá uma mulher para ficar comigo; suplico a Vossa Mercê, Dom Antônio de
Isunza, que, se meu senhor Dom João não sabe disto, não lhe digais nada, e euneste mesmo instante mando esta mulher embora.
- E como se chama a tal mulher? - perguntou Dom Antônio.- Chama-se Cornélia - respondeu o pajem.O outro pajem, que fizera a denúncia e que não era muito amigo de
Santisteban, desceu à sala onde estavam o duque, Lourenço e Dom João e disse:
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- Agarrai o pajem, por Deus, que o obrigaram a entregar a SenhoraCornélia! Escondeu-a bem! Teria gostado de que os senhores se demorassem
para estender ainda o gaudeamus por mais três ou quatro dias.
Ouvindo isto, Lourenço perguntou-lhe:- Que dizeis, homem? Onde está Cornélia?!
- Lá em cima - respondeu êle.Ao ouvir isto, o duque não esperou mais e subiu a escada como um raio,
julgando que ia ver sua Cornélia. Entrando no aposento onde estava Dom
Antônio, disse:- Onde está Cornélia? Onde está a vida de minha vida?
- Aqui está Cornélia - respondeu uma mulher envôlta por um lençol e de
rosto coberto. - Valha-me Deus! - exclamou ela. - Terei roubado alguma coisa?Será assim tão espantoso uma mulher dormir com um pajem para se fazer tanto
barulho?Lourenço, que também estava presente, cheio de despeito e cólera, puxou
uma ponta do lençol e viu uma mulher, jovem ainda, de boa aparência, que,envergonhada, tapou o rosto com as mãos e tratou de pegar sua roupa queestava sôbre a cama servindo de travesseiro; todos viram, então, que aquela
mulher devia ser uma dessas mulheres perdidas que andam pelo mundo.
O duque perguntou-lhe se era verdade que se chamava Cornélia. Elarespondeu que sim, que tinha parentes muito honrados na cidade e que
ninguém devia dizer: desta água não beberei. O duque ficou tão acabrunhadocom tudo isto que estêve para desconfiar de que os espanhóis tivessem caçoado
dêle, mas, para não se entregar a tão maus pensamentos, voltou as costas e, semdizer palavra, seguido por Lourenço, montaram ambos a cavalo e foram-seembora, deixando Dom Antônio e Dom João em situação pior que a dêles,
ainda mais envergonhados que êles. Os dois espanhóis decidiram fazer tôdas asdiligências possíveis e impossíveis para encontrar Cornélia. Despediram
Santisteban por causa de seu atrevimento e disseram a Cornélia que fôsseembora.
Nisto, veio-lhes à memória que haviam esquecido de contar ao duque o
fato do agnus e da cruz de diamante que ela quisera oferecer-lhes; com êstessinais, êle haveria de acreditar que Cornélia estivera em seu poder e que, se não
estava ali, a culpa não era dêles. Saíram para dizer isso ao duque, mas não oencontraram em casa de Lourenço, onde julgaram que êle deveria estar.
Lourenço estava em casa e disse-lhes que o duque partira para Ferrara,
deixando-o encarregado de procurar sua irmã.
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Contaram a Lourenço o caso das jóias, mas êste respondeu que o duqueestava muito satisfeito com seu procedimento e que tanto êle quanto o duque
atribuíam a fuga de Cornélia ao grande mêdo que dela se apoderara, e que
Deus haveria de fazê-la aparecer, pois a terra não poderia ter engolido a ela, àcriada e ao menino. Com estas palavras todos ficaram mais animados e
combinaram não fazer diligências públicas e sim secretas, porque ninguém, anão ser sua prima, sabia do desaparecimento de Cornélia. E, como não seconheciam as intenções do duque, correria grande risco a reputação de Cornélia
e seria grande trabalho estar a desfazer as suspeitas que uma convicção infundenas mais diferentes pessoas.
Seguiu o duque a sua viagem e a boa sorte que lhe ia preparando a
ventura fê-lo passar pela aldeia onde morava o cura e em cuja casa seencontravam Cornélia, o menino, a criada conselheira e a ama; elas já haviam
contado a história ao bom padre, pedindo-lhe proteção e conselho. O cura eragrande amigo do duque e êste vinha muitas vêzes de Ferrara para visitá-lo e
descansar em sua casa, que era muito bem arrumada, como convinha a umsacerdote rico, ilustrado e colecionador de curiosidades.
O duque fazia ali grandes caçadas e gostava de conversar com o padre,
que era bem engraçado em tudo quanto dizia e fazia. Não se alvoroçou, pois, o
cura, ao ver o duque entrar, porque não era a primeira vez que isso acontecia,mas afligiu-se ao vê-lo triste, pois logo pensou que alguma paixão lhe
atormentava o espírito.Cornélia percebeu que o duque estava ali e perturbou-sei muito, pois não
sabia quais eram as suas intenções; torcia as mãos e andava de um lado paraoutro, como se estivesse fora de si; queria falar ao cura, mas êste conversavacom o duque e era impossível chamá-lo.
O duque disse ao padre:- Venho tristíssimo, meu pai, e não quero entrar hoje em Ferrara e sim ficar
aqui como vosso hóspede. Dizei aos que me acompanham para irem a Ferrara eque só fique Fábio.
O cura assim fêz e logo foi dar ordem a fim de que tudo se preparasse
para acomodar o duque e dar-lhe de comer. Só então Cornélia pôde falar-lhe e,pegando-lhe as mãos, disse-lhe:
- Ai meu pai! Que deseja o duque? Pelo amor de Deus, falai-lhe um poucode mim e procurai saber quais as suas intenções a meu respeito. Fazei como vosparecer melhor e como vossa grande prudência vos aconselhar.
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- O duque está muito triste - falou o cura -, mas até agora não me disse porquê. É preciso vestir êste menino com suas melhores roupas e pôr-lhe as
melhores jóias que tiverdes, sobretudo as que o duque vos tiver dado. Deixai o
resto por minha conta, pois se Deus quiser teremos hoje um dia feliz. Cornéliaabraçou-o e beijou-lhe a mão, retirando-se em seguida para vestir e enfeitar o
seu filho. O cura foi ter com o duque para conversar com êle enquanto nãochegava a hora do jantar. No decorrer da conversa, perguntou-lhe se não erapossível saber-se a causa de sua tristeza, pois a 1 légua de distância podia-se
notar o que lhe passava no coração.- Pai - respondeu o duque -, é bem certo que as tristezas do coração
transparecem no rosto; lê-se nos olhos o que se passa na alma. E o pior é que,
por enquanto, não posso contar minha tristeza a ninguém.- Em verdade, meu senhor - respondeu o cura -, se estivésseis disposto
para ver coisas agradáveis, eu teria uma para vos mostrar e sei que vos dariagrande prazer.
- Tolo seria aquêle - disse o duque - que, tendo ocasião de ver aliviado seumal, se recusasse a isso. Por Deus, mostrai me, padre, o que dizeis, pois deve seralgum objeto para sua coleção e gostaria muito de vê-lo.
O cura levantou-se e dirigiu-se para onde estava Cornélia, que já tinha
vestido e enfeitado o filho, pondo-lhe a cruz de diamantes e o agnus e outras jóias preciosíssimas, oferecidas pelo duque; o cura pegou a criança e, levando-a
à sala onde estava o duque, chamou êste para junto da claridade de uma janelae, desembrulhando o menino, colocou-o em seus braços. O duque olhou
admirado e, quando reconheceu as jóias, ficou atônito.Olhava espantado o pequenino e parecia-lhe que estava a ver seu próprio
retrato. Cheio de admiração, perguntou ao cura de quem era aquela criancinha,
que, pelo vestuário e pelos enfeites, parecia filha de um príncipe.- Não sei - respondeu o cura - Uma noite destas, um cavalheiro de Bolonha
trouxe-o aqui e me encarregou de olhar por êle e criá-lo, pois era filho de nobree valoroso pai e de mãe fidalga e formosíssima. Com o cavalheiro veio tambémuma mulher para dar de mamar ao menino; eu lhe perguntei se ela sabia
alguma coisa a respeito dos pais da criança e ela me disse que não. Se a mãe étão linda como a ama, deve ser a mulher mais formosa da Itália.
- Não poderia eu vê-la? - perguntou o duque.- Sem dúvida - respondeu o cura. - Vinde comigo, senhor, pois, se a beleza
desta criança vos surpreendeu como penso, o mesmo efeito vos há de fazer a
vista de sua ama.
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O cura quis pegar o menino, mas o duque não o largou; apertou-o contra opeito e cobriu-o de beijos. Saiu o cura por uns instantes e disse a Cornélia para
vir, sem preocupação alguma, ao encontro do duque. Cornélia assim fêz, mas
com a comoção veio-lhe tal côr ao rosto que sua beleza parecia do outro mundo.O duque espantou-se ao vê-la e ela quis atirar-se a seus pés para beijá-los. Sem
dizer uma palavra, o duque entregou o menino ao cura e, voltando as costas,saiu do aposento a tôda pressa.
Cornélia, vendo isto, virou-se para o cura e disse:
- Ai, meu pai! Teria o duque se espantado ao ver-me? Detesta-me, porcerto; pareço-lhe feia. Esqueceu já as obrigações que me deve! Será que não me
vai dizer nem uma palavra?
Cansou-se tanto de segurar o filho que o largou!O cura, admirado com a saída precipitada do duque, não disse uma só
palavra, pois parecera-lhe que êle fugira. Enganava-se, porque o duque, saindo,chamou Fábio e lhe disse:
- Corre, Fábio amigo, e vai a Bolonha o mais depressa que puderes e dize aLourenço Bentibolli e aos dois fidalgos espanhóis, Dom João de Gamboa e DomAntônio de Isunza, para virem sem demora alguma a esta aldeia. Vai, amigo, e
não voltes sem êles, pois vê-los importa-me mais que a própria vida.
Fábio apressou-se em cumprir a ordem de seu amo. O duque voltouimediatamente para a sala onde estava Cornélia, que derramava muitas
lágrimas; apertou-a em seus braços e, juntando suas lágrimas às dela, beijou-lhemil vêzes os lábios, pois a felicidade era tamanha que lhes prendia a fala. E
assim, arrebatados em amoroso silêncio, abraçavam-se os dois felizes amantes everdadeiros esposos. A ama do menino e Cribela, a criada, que, por uma frestada porta, espreitavam o que se passava entre o duque e Cornélia, de alegria,
davam cabeçadas pelas paredes, como se tivessem perdido o juízo. O cura davamil beijos no menino que tinha nos braços e, com a mão direita, que deixara
livre, não se cansava de abençoar os dois esposos. A ama do cura, que não seencontrava presente a êstes acontecimentos por estar na cozinha preparando o
jantar, apareceu nesta altura, anunciando que a mesa estava posta. Isto veio pôr
fim aos estreitos abraços dos dois jovens; o duque tirou o menino dos braços docura e o segurou no colo durante todo o tempo em que durou o simples mas
saboroso jantar. Enquanto comiam, Cornélia contou tudo o que lhe sucedera atéchegar àquela casa, dizendo que partira a conselho da velha criada, fugindo damorada dos dois fidalgos espanhóis que a tinham servido, amparado e
guardado com o mais honesto e correto decôro que se podia imaginar. O duque,
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por sua vez, contou-lhe tudo o que se passara até aquêle momento. A criadavelha e a ama do menino, que estavam presentes, encontraram no duque
grandes oferecimentos e promessas. Em todos, enfim, renovou-se a alegria e a
satisfação com o feliz desenlace dêstes acontecimentos e, para que a venturageral fôsse completa, faltava apenas a presença de Lourenço, Dom João e Dom
Antônio. Chegaram êles dali a três dias, pressurosos e desejosos de saber se oduque tivera alguma notícia de Cornélia, pois Fábio, que fôra chamá-los, nadalhes pudera dizer, porque nada sabia.
O duque veio recebê-los em uma sala contígua àquela em que seencontrava Cornélia e não deu mostras do mais leve contentamento, o que
entristeceu os recém-chegados; mandou-os entrar e, sentando-se também,
dirigiu-se a Lourenço nestes têrmos:- Bem sabeis, Senhor Lourenço Bentibolli, que jamais enganei vossa irmã,
do que o céu e minha consciência são testemunhas. Sabeis igualmente com queempenho a procurei e o desejo que tinha de encontrá-la para me casar com ela
conforme lhe prometera. Porém, ela não aparece e minha palavra não pode sereterna. Sou jovem e tão inexperiente das coisas do mundo que não possoimpedir de me deixar levar pelos prazeres que se me oferecem a cada passo. A
mesma afeição que me levou a prometer casamento a Cornélia obriga-me a
fazer igual promessa a uma camponesa desta aldeia a quem agora deixavaenganada por terme rendido aos merecimentos de Cornélia, embora não
atendesse ao que a consciência me pedia, o que não era pequena prova de amor.Mas, visto que ninguém se casa com uma mulher desaparecida, nem é razoável
que um homem procure a mulher que o deixa, pergunto-vos agora, SenhorLourenço, que satisfação posso eu dar-vos da afronta que não vos fiz, poisnunca tive intenção de fazê-la? Quero, além disso, pedir-vos licença para
cumprir a minha primeira palavra e casar-me com a camponesa que já estádentro desta casa.
Enquanto o duque falava, Lourenço não conseguia permanecer quieto nacadeira; seu rosto mudava de expressão e tornava-se de mil côres, dando clarossinais de que a cólera ia aos poucos tomando conta de todos os seus sentidos. O
mesmo acontecia a Dom João e a Dom Antônio, que decidiram não deixar oduque ir adiante, ainda que tivessem de lhe tirar a vida. O duque, lendo tais
intenções em suas fisionomias, disse-lhes:- Tranqüilizai-vos, Senhor Lourenço. Antes de ouvir vossa resposta quero
que vejais a formosura daquela que tenciono receber como legítima espôsa; essa
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formosura vos obrigará a dar-me a licença que vos peço, pois é tão grande quepoderia desculpar erros ainda maiores.
Dizendo isto, levantou-se e entrou na sala onde se encontrava Cornélia,
ricamente vestida e enfeitada com tôdas as jóias que o menino tinha e muitasoutras mais. Quando o duque voltou as costas, Dom João levantou-se e, pondo
ambas as mãos nos braços da cadeira em que Lourenço estava sentado, disse-lhe ao ouvido:
- Por Santiago de Galiza, Senhor Lourenço, pela fé que tenho e pela honra
de fidalgo que será mais fácil eu me tornar mouro do que deixar o duque levaradiante sua intenção. Aqui, aqui em minhas mãos há de perder a vida ou há de
cumprir a palavra que deu à Senhora Cornélia, vossa irmã, ou pelo menos há de
nos dar tempo para procurá-la, e, até o dia em que tenhamos certeza de que elamorreu, o duque não se casará.
- Sou dêste mesmo parecer - respondeu Lourenço.- E sei que meu amigo Dom Antônio também está de acôrdo - falou Dom
João.Nisto Cornélia entrou pela sala adentro, entre o cura e o duque, que a
trazia pela mão. Atrás dêles vinha Sulpícia, a aia de Cornélia que o duque
mandara vir de Ferrara, assim como a criada dos espanhóis e a ama do menino.
Quando Lourenço viu a irmã e a reconheceu bem, pois de início a impossibili-dade de que tal coisa acontecesse impedia-o de aceitar a verdade, tropeçando
em seus próprios pés, foi atirar-se aos pés do duque, que o levantou,conduzindo-o aos braços de sua irmã; esta abraçou-o, dando mostras de imensa
alegria. Dom João e Dom Antônio disseram ao duque que jamais tinham vistobrincadeira tão gostosa. O duque pegou o menino que Sulpícia trazia no colo eentregou-o a Lourenço, dizendo:
- Recebei, meu irmão, o vosso sobrinho e meu filho e respondei se agorapodereis dar licença para que eu me case com esta camponesa, que é a primeira
mulher a quem prometi casamento.Seria um não mais terminar se contássemos o que Lourenço respondeu, o
que perguntou Dom João, o que sentiu Dom Antônio, o regozijo do cura, a
alegria de Sulpícia, o contentamento da criada conselheira, o júbilo da ama, aadmiração de Fábio e, finalmente, a felicidade de todos. O cura casou-os ali
mesmo e Dom João de Gamboa foi o padrinho. Todos concordaram em que ocasamento fôsse mantido em segrêdo até ver em que parava a doença da velhaduquesa, que estava muito mal. Enquanto isso Cornélia voltaria para Bolonha
com seu irmão. E tudo terminou assim: a duquesa morreu e Cornélia entrou em
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Ferrara alegrando tôda gente com o esplendor de sua beleza. Os lutostransformaram-se em galas; as criadas ficaram ricas; Sulpícia casou-se com
Fábio; Dom Antônio e Dom João ficaram contentíssimos por terem servido o
duque em alguma coisa e êste ofereceu-lhes suas primas como espôsas, comdotes riquíssimos. Mas êles responderam que os fidalgos vasconços tinham por
costume casarem-se em sua pátria e que, portanto, não por menosprêzo, pois talcoisa não era possível, mas sim para cumprir êsse louvável costume e a vontadede seus pais, que certamente já lhes tinham escolhido noivas, não aceitavam tão
honroso oferecimento.O duque admitiu a desculpa e, honrosa e delicadamente, procurando
ocasiões oportunas, mandou muitos presentes a Bolonha; alguns foram tão ricos
e enviados em tão boa hora que, embora não os pudessem aceitar para nãoparecer que recebiam paga, a ocasião em que chegavam, a delicadeza com que
eram mandados desarmavam todos os escrúpulos. Apreciaram particularmenteos presentes que o duque lhes enviou quando partiram; para a Espanha e os
que lhes deu quando foram a Ferrara, para se despedirem dêle; chegando láencontraram Cornélia com duas filhas gêmeas e o duque mais enamorado doque nunca. A duquesa quis dar a cruz de diamantes a Dom João e o agnus a
Dom¡ Antônio, que, não podendo desta vez recusar, aceitaram tão valiosas
lembranças.Voltaram os dois rapazes para a Espanha e dirigiram-se para sua terra,
onde se casaram com ricas, importantes e formosas fidalgas; mantiveramsempre correspondência com o duque, com a duquesa e com Lourenço
Bentibolli, para enorme satisfação de todos.
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Rinconete e Cortadilho
Na Estalagem do Molinilho, situada nos confins dos famosos campos daAlcúdia, como quem vai de Castela para Andaluzia, encontraram-se, por acaso,
num dêsses dias quentes de verão, dois rapazes de uns catorze ou quinze anos,nem um nem outro passava dos dezessete, ambos atraentes, porém
desalinhados, rotos e maltrapilhos. Capa não tinham; seus calções eram decânhamo, as meias, a própria pele e, para completar êste conjunto, os sapatos;porque os de um eram alpargatas, muito usadas, os do outro, furados e sem
solas, a lhe servirem mais como grilhões que propriamente de sapatos. Umusava barrete verde de caçador; o outro, um chapéu sem fita, enterrado nacabeça. Um trazia às costas, fechada ao peito, uma camisa côr de camurça
encerada e prêsa a uma das mangas; o outro estava desabrigado e sem alforjes,ainda que no peito lhe aparecesse um grande volume que, como depois se
verificou, era um cachecol, à moda dos valões, ensebado e tão desfiado quemais parecia um trapo. Nêle, envoltos e guardados, havia uns baralhos deforma oval, porque, de tanto serem usados se lhes gastaram as pontas, que
foram aparadas para que êles durassem mais, donde aquêle seu formato.Estavam os dois queimados pelo sol, tinham as unhas caireladas e as mãos não
muito limpas; um possuía uma espada de meio tamanho e o outro, umapeixeira de cabo amarelado.
Saíram ambos para dormir a sesta no saguão ou alpendre que se costuma
construir diante das estalagens e, sentando-se um defronte ao outro, disse o queparecia mais velho ao mais jovem:
- De que terra é vosmecê, meu ilustre fidalgo, e para onde vai?- Minha terra, cavalheiro - respondeu o interrogado -, não sei qual é e
também não sei para onde vou.
- Não me parece que vosmecê tenha caído do céu - disse o mais velho -, eêste não é um lugar onde se possa morar; vosmecê forçosamente haverá de irpara diante.
- Bem, assim é - respondeu o mais jovem -, mas disse a verdade, porque
minha terra não é minha; nela tenho um pai que não me considera como filho e
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uma madrasta que me trata como enteado; vou por aí sem destino e só haveriade parar onde encontrasse alguém que me desse o necessário para passar esta
vida miserável.
- E tem vosmecê algum ofício? - perguntou o mais velho.E o mais jovem respondeu:
- Sei apenas que corro como uma lebre, que salto como um gamo e quemanejo a tesoura muito bem.
- Tudo isso é muito bom, útil e proveitoso - disse o mais velho -, porque há
de haver um sacristão que lhe dê a oferenda de todos os santos a fim de que naquinta-feira santa vosmecê lhe corte florões de papel para o altar.
- Não é dêsse corte que eu falo - respondeu o mais jovem.
- Meu pai, pela misericórdia dos céus, é alfaiate e calceiro e me ensinou acortar antiparras, que, vosmecê bem sabe, são meias calças com protetores para
os pés, comumente chamadas polainas, e corto-as tão bem que poderia serconsiderado um mestre, não fôsse a sorte ingrata que me mantém desterrado.
- Tudo isso e mais ainda acontece aos bons - respondeu o mais velho -, esempre ouvi dizer que as melhores habilidades são as mais desperdiçadas,porém, vosmecê é ainda suficientemente jovem para modificar sua sorte. Mas,
se não me engano e não me falha a vista, vosmecê tem outros dons ocultos e
não os quer revelar.- Tenho, sim - respondeu o mais jovem -, mas não são de interêsse público,
como vosmecê observou muito bem.Ao que replicou o mais velho:
- Pois eu sei dizer que sou um dos moços mais discretos que se podeencontrar e, para obrigar vosmecê a abrir-se e a confiar em mim, quero que meconheça primeiro, pois imagino que a sorte não nos uniu aqui à toa e penso que
havemos de ser, de hoje até o último dia de nossa vida, verdadeiros amigos. Eu,meu fidalgo, sou natural de Fuenfrida, lugar conhecido e famoso pelos ilustres
passageiros que por ali passam continuamente; meu nome é Pedro del Rincón;meu pai é homem de bem, é ministro da Santa Cruzada; quero dizer que ébuleiro ou buldero, como chama o povo. Acompanhei-o em seu trabalho por
alguns dias e aprendi a profissão de tal forma que ninguém seria capaz de mesuperar na arte de apregoar bulas; porém, um dia, tendo-me entusiasmado mais
pelo dinheiro que pelas próprias bulas, agarrei-me a um taleigo, dei comigo ecom êle em Madri, onde, por causa das comodidades que ali comumente seoferecem, esvaziei em poucos dias o interior do taleigo e o deixei com mais
dobras do que lenço de recém-casado. O encarregado do dinheiro foi atrás de
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mim; prenderam-me; não me favoreceram, ainda que tivessem visto minhapouca idade: contentaram-se em que me encostassem à aldrava e me açoitaram
um bocado as costas e que fôsse desterrado da côrte por quatro anos. Tive
paciência, encolhi os ombros, sofri a pena e os açoites e saí para cumprir meudestêrro, com tanta pressa, que não tive tempo de arranjar um animal. Das jóias
que tinha, apanhei as que pude e as que me pareceram mais necessárias; dentreelas peguei êste baralho - nesse momento descobriu os naipes, que, como já sedisse, estavam envoltos pelo cachecol -, com o qual tenho ganhado a vida pelas
tabernas e estalagens que existem de Madri até cá, jogando o vinte-e-um, e,ainda que vosmecê o julgue vil e maltratado, produz êle efeitos maravilhosos
para quem sabe estendê-lo e sabe onde o ás se encontra; e, se vosmecê conhece
bem êste jôgo, verá quantas são as vantagens para quem tem a certeza depossuir um ás como primeira carta e que tanto lhe pode servir como um ponto
ou como onze; com esta vantagem, apostando-se o vinte-e-um, o dinheiro nãolhe sai do bôlso. Fora isto, aprendi com um cozinheiro de certo embaixador
certas manhas na “quina” e no “parar”, a que chamam também de “andaboba”,e assim, como se pode considerar a vosmecê mestre no corte de suas antiparras,eu posso ser considerado mestre na ciência de velhacarias. Com isso estou certo
de não morrer de fome, porque, chegando eu a uma colônia, há sempre quem
queira passar o tempo jogando um pouco; e disto haveremos logo de fazer aexperiência dos dois: armemos a rêde e vejamos se nela cai algum dêstes tolos
arrieiros que por aqui existem; quero dizer com isto que jogaremos nós dois ovinte-e-um como se fôsse de verdade, e, se alguém quiser ser o terceiro, êle será
o primeiro a deixar a grana.- Está muito bem - disse o outro -, e tenho em grande consideração a mercê
com que vosmecê me distinguiu, prestando-me contas de sua vida, obrigando-
me a não encobrir a minha, que, narrada o mais brevemente possível, é aseguinte: nasci em Pedroso, entre Salamanca e Medina do Campo; meu pai é
alfaiate; ensinou-me sua profissão e o manejo das tesouras; com minhahabilidade passei a cortar bôlsas. Aborreceu-me a vida acanhada da aldeia e odesamoroso trato de minha madrasta; deixei meu povo, vim a Toledo para
exercer meu ofício e nêle consegui maravilhas, porque não há relicário enfeitadonem algibeira tão escondida que meus dedos não visitem ou que minhas
tesouras não cortem, ainda que a estejam guardando com olhos de Argos. Emquatro meses que estive naquela cidade nunca fui apanhado entre portas, nemsobressaltado nem corrido por policial algum, nem acusado por qualquer
delator; é bem verdade que há uns oito dias um espião dissimulado deu
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notícias de minha habilidade ao corregedor, que, entusiasmado com a minhaperícia, quis ver-me; mas eu, por ser humilde, não quero tratar com pessoas tão
importantes; procurei não me avistar com êle e, assim, saí da cidade com tanta
pressa que não tive tempo de me munir de montaria, nem de dinheiro, nem decarruagem, nem ao menos de uma carrêta.
- Esqueçamos isso - disse Rincón -, e, já que nos conhecemos, não há razãopara grandezas nem altivez; confessemos francamente que não tínhamos nemdinheiro nem sapatos.
- Está bem - respondeu Diego Cortado, pois assim disse chamar-se o mais jovem -, e uma vez que nossa amizade, como vosmecê mesmo disse, Seu
Rincón; há de ser eterna, vamos começá-la com santas e louváveis cerimônias.
Levantando-se, Diego Cortado abraçou Rincón; Rincón o abraçou, terna efortemente, e ambos puseram-se logo a jogar o vinte-e-um com as referidas
cartas, limpos do pó e da palha, mas não da graxa e da malícia, e, com poucas jogadas, Cortado tirava tão bem o ás quanto Rincón, seu mestre.
Nisto, um arrieiro chegou ao alpendre para refrescar-se e pediu para ser oterceiro no Ago. Receberam-no amigàvelmente e em menos de meia horaganharam-lhe 12 reais e 22 maravedis, e foi o mesmo que lhe dar doze golpes e
22.000 desgostos. Acreditando o arrieiro que, por serem êles jovens, não se
defenderiam, quis tirar-lhes o dinheiro, mas êles, passando um a mão napequena espada e outro na faca de cabo amarelado, deram-lhe tanto o que fazer
que, se os seus companheiros não acudissem, sem dúvida alguma teria passadomal.
Neste momento, passou casualmente pelo caminho um bando de viajantesa cavalo, que iam fazer a sesta na taberna do Alcalde, que ficava meia léguamais adiante; êstes, vendo a briga do arrieiro com os rapazes, apaziguaram-nos,
dizendo aos últimos que, se por acaso fôssem a Sevilha, poderiam ir com êles.- Vamos para lá, sim - disse Rincón -, e serviremos aos senhores em tudo
quanto nos ordenarem.Sem perda de tempo saltaram os dois à frente das mulas e foram-se com
êles, deixando o arrieiro agravado e enfurecido e a estalajadeira admirada com
a astúcia dos mandriões, pois estivera ouvindo a conversa sem que êles istopercebessem; quando disse ao arrieiro que os tinha ouvido dizer serem falsos os
naipes que traziam, pôs-se êle a arrancar as barbas e queria ir à taberna atrásdêles para cobrar o que era seu, porque dizia ser afronta muito grande e não tercabimento dois rapazes enganarem um homenzarrão tão grande quanto êle.
Seus companheiros aconselharam-no que não fôsse para não tornar pública sua
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falta de habilidade e parvoíce. Mostraram-lhe, enfim, tais razões, que, se não oconsolaram, pelo menos o obrigaram a ficar.
Enquanto isso, Cortado e Rincón puseram-se a servir os viajantes com
tanta solicitude, que pelo resto do caminho êles os levaram à garupa e, aindaque se lhes oferecessem algumas ocasiões de tocar as valises de seus quase
amos, não quiseram, para não perder a tão boa oportunidade de ir a Sevilha,onde tanto desejavam estar. Contudo, à entrada da cidade, o que se verificou àhora das aves-marias, e pela porta de Adriana, por causa do registro e da taxa
que se paga, Cortado não pôde deixar de cortar a bôlsa de couro que um francêstrazia prêsa ao flanco do animal, e assim, com sua faca, fêz-lhe um talho tão
comprido e profundo que deixava à mostra as entranhas, e ràpidamente tirou
dali duas boas camisas, um relógio de sol e um livrinho de notas, coisas de quenão gostaram muito, pensando que se o francês levava aquela maleta às costas
não haveria de tê-la ocupado com tão pouco pêso como era o daquelas “jóias”, equiseram voltar para dar-lhe outro golpe; não o fizeram, entretanto, ao
imaginar que já teriam notado a falta dela e pôsto a salvo o que ficara.Tinham-se despedido antes de assaltar aquêles que até então os haviam
sustentado; no outro dia venderam as camisas em uma barraca que existe fora
da porta do arsenal, obtendo com a venda 20 reais. Feito isto, foram ver a
cidade e admiraram-se com a grandeza e a suntuosidade de sua maior igreja,com a grande afluência do pessoal do rio, porque era tempo do carregamento
da frota, e com a presença de seis galeras, cuja vista os fêz suspirar e receartambém o dia em que suas culpas os haveriam de fazer morar nelas por tôda a
vida. Viram os inúmeros rapazes da estiva, que ali andavam, perguntaram aum dêles que espécie de ofício era aquêle, se era muito trabalhoso e se eralucrativo. Um rapaz asturiano, a quem, aliás, fizeram a pergunta, respondeu
que o serviço era folgado, que não se pagava impôsto e que em certos dias saíaganhando 5 ou 6 reais de lucro, podendo comer, beber e repousar como um rei,
sem ter de dar satisfação a ninguém e certo de comer à hora que bementendesse, pois em qualquer bodega da cidade, a qualquer hora, podiaencontrar alimento.
Os dois amigos não acharam má a informação do jovem nem desgostaramda profissão, por parecer-lhes que vinha de encontro às suas intenções de
agirem livremente e também pela comodidade que oferecia de poder entrar emtôdas as casas; imediatamente resolveram comprar os utensílios necessários e,tendo perguntado ao asturiano o que precisavam comprar, souberam que
precisavam de dois sacos pequenos, limpos ou novos, e três cêstos de palha
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para cada um, dois grandes e um pequeno, nos quais se distribuíam a carne, opescado e a fruta, deixando o saco para o pão; o rapaz levou-os onde se
vendiam tais utensílios; êles, do dinheiro tirado ao francês, compraram tudo e,
dentro de duas horas, enquanto provavam os cestos e ajustavam os sacos àscostas, eram empossados na nova profissão. Seu chefe indicou-lhes os lugares a
que deviam atender:pelas manhãs ao açougue e à Praça de São Salvador; nos dias de pescado,
à peixaria e à Costanilha; tôdas as tardes, ao rio; nas quintas-feiras, à feira.
Aprenderam de cor a lição e no outro dia, bem cedinho, plantaram-se naPraça de São Salvador; nem bem chegaram foram rodeados por outros rapazes
da mesma profissão, que, pelo brilho dos sacos e dos cêstos, viram logo serem
êles novos na praça; fizeram-lhes mil perguntas, às quais respondiam comdiscrição e mesuras. Nisto chegaram um estudante, um soldado e uns
encarregados da limpeza dos cêstos dos dois novatos; o que parecia estudantechamou Cortado e o soldado chamou Rincón.
- Que Deus seja louvado - disseram ambos.- Para que eu comece bem na profissão - disse Rincón - é necessário que
vosmecê estréie, meu senhor.
Ao que o soldado respondeu:
- A estréia não será má porque estou de sorte, porque estou enamorado eporque tenho de banquetear umas amigas de minha senhora.
- Pois sirva-se à vontade, que eu tenho ânimo e fôrças para levar esta praçainteira e, se fôr necessário ajudá-lo a cozinhar, eu o farei de bom grado.
Alegrou-se o soldado com a boa vontade do rapaz e disse-lhe que se êlequisesse poderia tirá-lo daquele serviço horrível; Rincón respondeu que eraaquêle seu primeiro dia na profissão e não queria deixá-la assim tão depressa,
até ver, pelo menos, o que teria ela de bom ou de mau e que, quando seaborrecesse, dava-lhe sua palavra de que preferia servi-lo a ter de servir um
cônego.O soldado riu-se, pagou-o muito bem, mostrou-lhe a casa da namorada
para que daí em diante soubesse onde ela ficava e para que êle não precisasse
acompanhá-lo quando o enviasse de outra vez. Rincón prometeu-lhe fidelidadee bom tratamento; o soldado lhe deu 3 quartos (Quarto: Antiga moeda espanhola
de cobre que valia 4 maravedis de tosão, ou seja, três centésimos de peseta.) e êle,ràpidamente, voltou à praça para não perder outras oportunidades, porque oasturiano lhe recomendara mais êste cuidado, dizendo-lhes ainda que, quando
levassem peixe miúdo, isto é, bogas, sardinhas ou linguado, podiam tomar
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alguns e deixá-los como amostra naquele dia, mas que o fizessem com tôda asagacidade e atenção, a fim de não se perder o crédito, que era o que mais
importava neste trabalho.
Por mais depressa que Rincón voltasse, já encontrou Cortado a postos.Cortado chegou-se a Rincón e perguntou-lhe como se tinha saído; Rincón abriu
a mão e mostrou-lhe as três moedas.Cortado pôs a sua no peito e tirou uma bolsinha que demonstrava ter sido
de âmbar em tempos atrás e que estava um tanto estufada. Disse êle:
- Pagou-me o estudante com esta bôlsa e mais 2 quartos; pega-a, Rincón.Mal havia dado secretamente a bôlsa, quando o estudante voltou,
transpirando e profundamente perturbado. Avistando Cortado, perguntou-lhe
se por acaso não teria êle visto uma bôlsa pequena, côr de âmbar, com 15escudos de ouro, 3 reais e muitos maravedis, que êle havia perdido,
perguntando-lhe ainda se êle não a teria tomado, enquanto êle fazia as compras.Cortado, com singular dissimulação, respondeu-lhe sem perturbar-se:
- Só sei dizer que esta bôlsa não deve estar perdida, se é que vosmecê apôs em lugar seguro.
- É isso, pobre de mim - respondeu o estudante -, não devo tê-la guardado
bem, pois a roubaram.
- É o que digo - falou Cortado -, mas para tudo há remédio, só para amorte que não, e a primeira coisa que vosmecê tem a fazer é ser paciente, pois
nada há como um dia após o outro, e pode ser que, com o tempo, quem levousua bôlsa venha a arrepender-se e a devolvê-la a vosmecê ainda mais recheada.
- Isto seria o de menos - respondeu o estudante.Cortado prosseguiu:- Ainda mais que há o perigo de excomunhão e uma fiscalização severa, o
que, aliás, é uma grande sorte e, para dizer a verdade, eu não queria ser oladrão de tal bôlsa, porque se vosmecê pertence a alguma ordem sacra me
parecia ter cometido grave incesto ou sacrilégio.- E que sacrilégio! - disse o aflito estudante -, pois, embora não seja eu um
sacerdote, sou sacristão de umas monjas; o dinheiro da bôlsa era do têrço de
uma fundação religiosa, que um sacerdote meu amigo pediu para cobrar, e éum dinheiro sagrado, bendito.
- Cada um sabe o que faz - disse Rincón a essas alturas. Eu não imitaria talganância; há de chegar um dia em que tudo será pôsto em pratos limpos e entãoveremos o poder da justiça e conheceremos o indivíduo que se atreveu a tomar,
a furtar, a menoscabar o têrço da capelania. E quanto rende por ano?
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Vamos lá, diga-me, senhor sacristão.- Rende a puta que te pariu! Eu tenho lá obrigação de dizer o que rende? -
respondeu o sacristão, enfurecido. - Dizei-me, amigo, se sabeis algo a respeito,
se não ficai com Deus, que eu quero dar parte à polícia.- Esta decisão não me parece de todo má - disse Cortado -, mas que
vosmecê tome cuidado, para não se esquecer das características da bôlsa, nemda quantidade exata do dinheiro que há dentro dela, porque se vosmecêesquece de 1 ceitil, nunca mais a achará, escute o que lhe digo.
- Não seja por isso - respondeu o sacristão -, que eu tenho tudo gravado namemória, mais do que o próprio tocar dos sinos; não me esquecerei de nada.
Tirou da algibeira um lenço rendado para limpar o suor que lhe escorria
do rosto, em bicas; Cortado, logo que viu o lenço, achou que deveria pertencer-lhe; o sacristão partiu, Cortado correu atrás dêle e o alcançou ali nas Gradas,
chamou-o a um canto e começou-lhe a dizer tantos disparates e mentiras acêrcado roubo e do achado de sua bôlsa, dando-lhe grandes esperanças sem jamais
concluir nada, que o pobre sacristão o escutava embevecido e, como nãoentendesse muito bem, fazia Cortado repetir-lhe os argumentos por duas outrês vêzes. Cortado observava-o atentamente e não tirava os olhos de seus
olhos; o sacristão olhava-o da mesma maneira, prêso às suas palavras. Tal
embevecimento permitiu a Cortado concluir sua obra; tirou-lhe sorrateiramenteo lenço da algibeira e, despedindo-se dêle, disse-lhe que, à tarde, procurasse vê-
lo naquele mesmo lugar, pois desconfiava de que um rapaz de sua profissão, deseu tamanho e que era meio ladrãozinho lhe tivesse roubado a bôlsa, compro-
metendo-se êle a descobrir a verdade, dentro de poucos ou de muitos dias.O sacristão consolou-se um pouco e despediu-se de Cortado; êste voltou
para onde estava Rincón, que tudo observara a distância; mais abaixo havia
outro rapaz, que presenciou o fato e, enquanto Cortado dava o lenço a Rincón,aproximou-se dêles e disse-lhes:
- Digam-me, caros senhores, vosmecês são de boa paz ou não?- Não entendemos, caro senhor - respondeu Rincón.- O que não entenderam, seus múrcios? - perguntou o outro.
- Não somos de Tebas nem de Múrcia - disse Cortado. Se quer algumacoisa, diga logo, se não, vá com Deus.
- Não entende? - perguntou o rapaz. - Pois eu me farei entender e lhesdarei, para beber, uma colher de chá; quero dizer, senhores, se vosmecês, poracaso, não são ladrões. Mas nem sei por que lhes pergunto isso, pois já sei que o
são. E digam-me: por que não foram à alfândega do Senhor Monipódio?
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- Paga-se, nesta terra, impôsto de ladrão, caro senhor? perguntou Rincón.- Se não se paga - respondeu o rapaz -, pelo menos registra-se com o
Senhor Monipódio, que é pai, mestre e amparo dos ladrões e, portanto,
aconselho-os a virem comigo para prestar-lhe obediência; não se atrevam afurtar sem o seu consentimento, pois lhes custará muito caro.
- Eu pensei - disse Cortado - que furtar era profissão liberal, isenta decontribuições e de impostos, e, caso fôsse paga, haveria de ter como fiadoresapenas a garganta e as costas, mas já que é assim, e que cada terra tem seu uso,
vamos respeitar o uso desta, que, por ser a mais importante do mundo, terá omais correto de todos os usos; portanto, pode vosmecê guiar-nos até êste
cavalheiro a quem se refere, pois já sei que, de acôrdo com o que ouvi dizer, êle
é homem de classe, generoso e, além do mais, mestre no ofício.- E como é de classe, hábil e competente - respondeu o rapaz -, e tanto que
em quatro anos de serviço como nosso chefe e pai apenas quatro padeceram nofinibusterrae (Finibusterrae: Fôrca.), cêrca de trinta foram açoitados e 62 foram
para as galeras.- Na verdade, senhor - disse Rincón -, entendemos muito bem o
significado destas palavras.
- Vamos andando que pelo caminho irei enumerando outras que os
senhores devem conhecer como conhecem a palma da mão - replicou o jovem. Eassim foi-lhes dizendo e explicando outras palavras pertencentes àquilo que
êles costumam chamar de gíria ou calão, ao longo de sua conversa, que não foicurta, pois o caminho era longo. Rincón, por sua vez, dirigiu-se ao guia:
- É vosmecê, porventura, um ladrão?- Sim - respondeu êle -, para servir a Deus e às pessoas de bem, embora eu
não seja dos melhores, porque ainda estou em início de carreira.
Ao que Cortado retrucou:- Para mim é novidade que haja no mundo ladrões para servir a Deus e às
pessoas de bem.- Caro senhor, não entendo muito bem de teologia; só sei que cada um, em
sua profissão, pode servir a Deus, ainda mais com as instruções dadas por
Monipódio a todos os seus afilhados, - Essas instruções, sem dúvida alguma,hão de ser boas e santas, pois fazem os ladrões servirem a Deus - disse Rincón.
- São tão santas e boas - replicou o môço - que talvez não haja nada amelhorar em nossa arte. Recebemos ordem de tirar, do que roubamos, algumacoisa ou esmola para o azeite da lâmpada de uma imagem milagrosa que está
na cidade, e temos realmente recebido grandes graças por esta obra; dias atrás,
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deram três ansias a um cuatrero, que havia passado os cinco em dois roznos,que, mesmo estando fraco e acabado, agüentou sem reclamar, como se nada
fôsse; e isto, nós, de nosso ofício, atribuímos à sua devoção, porque suas fôrças
não eram suficientes para sofrer o “primeiro trabalho” do verdugo. E porque seique me hão de perguntar o significado de algumas de minhas palavras, quero
explicá-las, para evitar complicações. Saibam vosmecês que cuatrero é o ladrãode cavalos, ansia é a tortura, roznos são os asnos, com o perdão da palavra,“primeiro trabalho” são as primeiras lambadas ministradas pelo verdugo.
E temos mais: rezamos nosso têrço em certos dias da semana e muitos denós não furtam às sextas-feiras, nem conversam com mulheres que se chamam
Maria aos sábados.
- São verdadeiras preciosidades - disse Cortado -, mas diga-me vosmecê:costumam-se restituir as coisas roubadas ou fazer outra penitência além da que
vosmecê já citou?- Isso de restituir é caso encerrado - respondeu o jovem.
- A restituição é impossível uma vez que a prêsa é dividida em muitaspartes e cada um dos ministros, cada um dos contra-mestres leva seu quinhão;o ladrão nada pode restituir, ainda mais porque não há quem nos mande fazer
tal coisa, motivo pelo qual jamais confessamos; em caso de excomunhão, não
tomamos conhecimento, porque nunca vamos à igreja, no tempo em que asexcomunhões são tornadas públicas; só vamos lá nos dias de festa, pela cobiça
que nos desperta a afluência de muita gente.- E com tudo isto que fazem, êstes senhores dizem que sua vida é santa e
boa? - perguntou Cortado.- Pois então, o que há de mal nisso? - replicou o jovem.- Não é pior ser herege ou renegado ou matar pai e mãe ou ser solomico?
- Sodomita quer vosmecê dizer - atalhou Rincón.- Pois é - disse o jovem.
- Tudo é mau - replicou Cortado. - Mas, se a sorte quer que façamos partedesta confraria, que vosmecê aperte o passo, pois morro de vontade de meavistar com o Senhor Monipódio, a quem se atribuem virtudes.
- Seu desejo será logo satisfeito, pois daqui já se avista a casa dêle.Vosmecês fiquem na porta que eu entrarei para ver se êle está desocupado,
porque a estas horas êle costuma dar audiência.- Chegamos em boa hora - disse Rincón.O môço, adiantando-se um pouco, entrou numa casa feia e de aparência
suspeita; e os dois ficaram junto à porta esperando.
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Pouco depois, o rapaz voltou e os chamou; êles entraram e seu guiamandou-os esperar em um pequeno pátio ladrilhado, que, de tão perfeito e
limpo, parecia exalar o mais fino carmim. De um lado havia um banco de 3 pés
e do outro um cântaro desbeiçado, com um pequeno jarro em cima, tãodesbeiçado quanto o cântaro; em outro lugar, havia uma esteira e no meio um
vaso de manjericão, que, em Sevilha, é conhecido por macela.Os rapazes olharam atentamente tais preciosidades, esperando a descida
do Senhor Monipódio, mas, como êle tardasse, Rincón atreveu-se a entrar em
uma sala baixa, uma das duas pequenas salas que existiam no pátio, e viu neladuas espadas, dois escudos de cortiça, dependurados em quatro pregos, uma
arca mais ou menos grande, sem tampa ou coisa alguma que a cobrisse, e três
outras esteiras espalhadas pelo chão. Na parede da frente, havia uma imagemde Nossa Senhora, muito malfeita; mais abaixo, uma alcôfa de palma e,
embutida na parede, uma bacia branca, pela qual deduziu Rincón que a alcôfaservia como depósito para esmolas e a bacia para pôr água benta, e de fato
assim o era.Nisto, entraram na casa dois jovens de uns vinte anos, vestidos como
estudantes; logo depois, entraram dois rapazes da estiva e um cego; sem dizer
uma palavra, começaram êles a passear pelo pátio. Não demorou muito,
entraram dois velhos de baeta e de óculos, que os tornavam sérios e dignos deserem respeitados, com dois rosários de contas barulhentas nas mãos. Atrás
dêles entrou uma velha, cheia de saias, que, sem dizer nada, foi à sala e, tendotomado água benta, pôs-se, com grande devoção, de joelhos ante a imagem e,
ao fim de um bom espaço de tempo, depois de beijar três vêzes o chão, delevantar os braços e os olhos para o céu outras tantas vêzes, levantou-se edeixou sua esmola na alcôfa e foi juntar-se aos demais no pátio. Em suma, em
pouco tempo, juntaram-se no pátio umas catorze pessoas com diferentes trajes ede diferentes profissões. Chegaram também, entre os últimos, dois jovens fortes
e estranhos, de bigodes longos, chapéus de aba larga, colarinhos à moda dosvalões; meias de côr, ligas mal-ajambradas, espadas de diferentes marcas, doispistoletes em lugar de adagas e com escudos dependurados na cintura; logo
que entraram, olharam Rincón e Cortado, de esguelha, à maneira de quemestranha e não conhece. Chegando-se a êles, perguntaram-lhes se pertenciam à
confraria.Rincón respondeu que sim e que era um criado para os servir. Nisto
desceu o Senhor Monipódio, tão esperado e benquisto de tôda aquela virtuosa
confraria. Parecia ser um homem de 45 a 46 anos, alto, de rosto moreno, de
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sobrancelhas cerradas, de barba negra e espêssa; os olhos eram fundos. Estavaem mangas de camisa, que, um pouco aberta na frente, deixava à mostra uma
verdadeira floresta, tão grande era a quantidade de pêlos que lhe cobriam o
peito. Às costas, uma capa de baeta que quase chegava aos pés, nos quais haviauns sapatos que mais pareciam chinelas; cobriam-lhe as pernas uns calções de
cânhamo, largos e que iam até o tornozelo; seu chapéu era como são os chapéusde todos os malandros: bojudo e de aba caída; usava um talim a tiracolo, deonde pendia uma espada curta e larga, como se fôsse uma serrinha; as mãos
eram pequenas, peludas, e os dedos, gordos; as unhas, finas e arrebitadas; aspernas não apareciam, mas os pés eram descomunais, por serem largos e
possuírem joanetes. Para dizer a verdade, representava êle o mais rústico e
disforme bárbaro do mundo. A seu lado desceu também o guia de Rincón eCortado, que, tomando-os pelas mãos, apresentou-os a Monipódio, dizendo-
lhe:- Estes são os dois jovens dos quais lhe falei, Seu Monipódio; se vosmecê
os examinar, verá como são dignos de entrar na nossa congregação.- Eu o farei com prazer - respondeu Monipódio.Esquecia-me de dizer que, assim que Monipódio desceu, todos os que
esperavam fizeram-lhe profunda e demorada reverência, com exceção dos dois
bravos jovens, que, com um sorriso amarelo, como se diz, deixaram os chapéuse voltaram logo a seu passeio em um dos lados do pátio; pelo outro lado
passeava Monipódio, que perguntou aos novatos qual era sua especialidade, deque lugar vinham e quem eram seus pais.
Ao que Rincón respondeu:- Sôbre nossa especialidade, nada tenho a dizer, pois viemos perante
vosmecê; quanto à nossa terra, não me parece importante falar dela; de nossos
pais, muito menos, pois não se trata de dar informações para receber nenhumcargo honroso.
Respondeu Monipódio:- Você está certo, meu filho; faz muito bem em não prestar estas informa-
ções, porque se a sorte não correr como deve não fica bem aparecer assentado
debaixo da assinatura do escrivão, nem do livro de registros: “Fulano, filho deFulano, vindo de tal lugar, foi enforcado dia tal, ou foi açoitado”, ou qualquer
outra coisa semelhante, que soe mal aos bons ouvidos, e assim, torno a dizerque é muito proveitoso não falar sôbre a pátria, encobrir o nome dos pais emudar os próprios nomes, ainda que aqui entre nós não há de haver nada
encoberto e somente agora quero saber os nomes dos dois.
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Rincón disse o seu e Cortado também.- Pois daqui por diante - falou Monopódio -, quero e é de minha vontade
que você, Rincón, se chame Rinconete e você Cortado, Cortadilho, nomes feitos
sob medida para suas respectivas idades e para nossos estatutos, de acôrdo comos quais é necessário saber o nome dos pais de nossos confrades, porque é
nosso costume mandar rezar, todo ano, umas missas pelas almas de nossosdefuntos e benfeitores, tirando o estupendo para a esmola de quem as diz dealguma parte do que se afana; diz-se que tais missas, rezadas e pagas,
beneficiam tais almas por meio de um naufrágio (Naufrágio: Sufrágio.) e ficamsob as ordens de nossos benfeitores o procurador que nos defende, o beleguim
que nos avisa, o verdugo que de nós tem pena, aquêle que, quando um de vós
vai fugindo pela rua e outros o vão seguindo e gritando: “Ao ladrão, ao ladrão!Pega, pega!”, se põe no meio, se mistura com a multidão que o segue dizendo:
“Deixem-no à própria sorte, que já é bastante desventurado! Deixem-no para lá,que seu pecado o castigue!” São também nossas benfeitoras aquelas que, com
seu suor, nos socorrem tanto na guerra como na paz, e também o são nossospais e mães, que nos põem no mundo, e o escrivão, que, se está de boa veia, nãohá delito que êle considere culpa, nem culpa à qual êle atribua grande pena; por
todos êstes, nossa irmandade festeja, cada ano, seu adversário (Adversário:
Aniversário.) com a maior popa (Popa: Pompa.) e soledade (Soledade: Solenidade.) que pode.
- Sem dúvida - disse Rinconete, já conformado com o apelido - é uma obradigna do altíssimo e profundíssimo engenho que temos ouvido dizer que
vosmecê, Senhor Monipódio, possui. Mas nossos pais ainda gozam de boasaúde e, se os encontrarmos ainda com vida, comunicaremos logo a felicíssimae medianeira confraria, para que faça por suas almas um naufrágio ou
tormenta, ou êsse adversário ao qual vosmecê se refere, com a solenidade epompa habituais, se é que não é melhor com popa e soledade, como também
apontou vosmecê, em sua exposição- Assim será ou não sobrará nada de mim - replicou Monipódio. E,
chamando o guia, disse-lhe:
- Ganchuelo, vem cá. Estão todos a postos?- Sim - disse o guia, que se chamava Ganchuelo. – Os sentinelas estão de
ôlho e não há perigo de ninguém nos colher desprevenidos.- Mas, voltando ao nosso negócio - disse Monipódio - queria saber, filhos,
o que vocês sabem para distribuir-lhes ofício e atividades de acôrdo com as
respectivas inclinações e habilidades.
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- Eu - respondeu Rinconete - sei passar muito bem conversa nos outros,modéstia à parte, sei explorar a vaidade, faço qualquer jôgo muito bem,
ninguém me vence na trapaça, na astúcia e nas fanfarronadas; enfrento o
perigo como se nada fôsse, sei aproveitar das oportunidades melhor do queninguém e sou capaz de dar um golpe no sujeito mais esperto.
- É um bom comêço - disse Monipódio -, mas tôdas estas coisas são dotempo da minha avó; são tão usadas que qualquer principiante as conhece eservem para os trouxas que se deixam matar, sem essas nem aquelas, mas
vamos dar tempo ao tempo e então veremos; espero que, com meia dúzia deaulas e com a ajuda de Deus, o senhor se faça um oficial famoso; quem sabe, um
mestre.
- E tudo isso para servir a vosmecê e aos caros colegas - respondeuRinconete.
- E você, Cortadilho, o que sabe? - perguntou Monipódio.- Eu - respondeu Cortadilho - conheço aquela trapassa do põe dois e tira
cinco e sei esvaziar uma algibeira com muita precisão e rapidez.- Que mais sabe vosmecê? - perguntou Monipódio.- Nada mais, para minha infelicidade - respondeu Cortadilho.
- Não se aflija, meu filho - replicou Monipódio -, porque você bateu em
porta certa; haverá de sair daqui bem escolado para aquilo que tiver maiorvocação. E a coragem, filhos, como vai?
- E como haveria de ir? - falou Rinconete. - Muito bem, Temos coragempara tentar qualquer emprêsa que diga respeito à nossa arte e atividade.
- Está bem - disse Monipódio -, mas eu queria que vocês tivessem coragempara agüentar, se fôsse preciso, meia dúzia de lambadas, sem abrir a bôca e semdizer um ai.
- Já sabemos - disse Cortadilho -, e temos coragem para tudo, e não somostão ignorantes a ponto de não saber que a língua é o chicote do corpo e grandes
graças concede o céu aos homens ousados, deixando que a língua decida sôbresua vida e morte. Como se um não tivesse mais letras que um sim!
- Basta! Chega! Não fale mais nada - disse Monipódio a essas alturas. -
Estas últimas palavras já me convenceram e já me obrigam, persuadem-me e meforçam a aceitá-los, desde logo, como confrades graduados e elevá-los ao
noviciado.- Eu também sou dêste parecer - disse um daqueles bravos.Todos os presentes que tinham escutado a conversa aprovaram-nos a uma
só voz e pediram a Monipódio que permitisse aos recém-chegados gozarem das
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imunidades da confraria, porque sua presença agradável e suas declaraçõesbem que faziam jus a isso. Respondeu Monipódio que, para agradar a todos,
consentia, convidando, porém, os rapazes a estimá-las bastante porque consis-
tiam em não pagar a metade do primeiro furto que fizessem; não fazer serviçospequenos durante o ano todo, ou seja, não levar arrecadação de nenhum irmão
superior ao cárcere, nem à casa, da parte de seus contribuintes, beber vinhopuro, fazer banquetes quando, como e onde quisessem, sem pedir licença aochefe; ter direito, desde logo, como qualquer um dêles, a uma parte do que os
irmãos superiores embolsassem e outras coisas mais que êles consideravamcomo especial deferência e os outros, com palavras corteses, agradeceram
muito.
Neste momento, entrou, correndo e ofegante, um rapaz que disse:- O aguazil dos vagabundos está a caminho desta casa, mas vem sem o
bando.- Que ninguém se afobe - disse Monipódio -, pois é amigo e jamais veio
para nos prejudicar. Fiquem sossegados que eu irei falar com êle.Todos os que já estavam um tanto sobressaltados acalmaram-se; Moni-
pódio dirigiu-se para a porta, onde encontrou o aguazil, com o qual falou um
pouco, entrando logo a seguir para perguntar:
- A quem coube hoje a Praça de São Salvador?- A mim - disse o rapaz que servira de guia a Rinconete e Cortadilho.
- E por que - perguntou Monipódio - não me mostrou a bolsinha de âmbarque você surrupiou lá esta manhã, com 15 escudos de ouro, 2 duplos reais e não
sei lá quantos quartos?- É verdade - disse o guia - que esta bôlsa desapareceu hoje, mas não fui eu
quem a roubou, nem posso imaginar quem a tenha roubado.
- Não me venha com mentiras - disse Monipódio. - Á bôlsa tem de apare-cer, pois quem a vem pedir é o nosso amigo aguazil, que nos faz mil e tantos
favores por ano!O rapaz tornou a jurar que nada sabia a respeito. Monipódio começou a
ficar com raiva e seus olhos pareciam lançar chispas de fogo.
- Que ninguém se atreva a transgredir a mínima coisa de nossa ordem,pois pagará com a vida. Que trate logo de mostrar a bôlsa e, se por acaso está se
escondendo para não pagar os impostos, eu lhe darei, inteirinha, a parte que lhetoca, e o que falta tirarei de meu bôlso, porque de qualquer maneira o aguaziltem de sair contente daqui.
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O rapaz tornou a protestar sua inocência e a se maldizer, dizendo que nãohavia roubado nem visto a tal bôlsa, mas o que conseguiu foi apenas aumentar
a cólera de Monipódio e permitir que a confraria se alvoroçasse, ao ver que se
rompiam seus estatutos e leis.Rinconete, porém, vendo tanta altercação e alvoroço, achou que seria bom
sossegá-los e agradar ao chefe, que se arrebentava de raiva; consultando seuamigo Cortadilho, entrou em acôrdo com êle, e tirou a bôlsa roubada aosacristão, dizendo:
- Vamos encerrar a questão, meus senhores, aqui está a bôlsa, sem faltarnada do que o aguazil declarou; hoje, meu amigo Cortadilho apanhou-a,
juntamente com êste lenço, tirado ao mesmo dono.
Cortadilho tirou o lenço e o mostrou ràpidamente. Monipódio, vendo-o,disse:
- Cortadilho, o bom - pois com êsse título e apelido há de ficar, daqui emdiante -, fique com o lenço e aceite os meus cumprimentos pelo serviço
prestado; a bôlsa o aguazil vai levar, pois é de um sacristão, seu parente, econvém pôr em prática o que diz o ditado: “Não é muito dar uma perna degalinha a quem te deu uma galinha inteira”. Mas perdoe o nosso amigo aguazil,
pois não podemos e nem costumamos exigir nada dêle.
Todos, de comum acôrdo, aprovaram a fidalguia dos dois novatos, asentença e a opinião de seu chefe, que saiu para dar a bôlsa ao aguazil;
Cortadilho ficou com o cognome de “Bom” tal como se fôsse Dom Alonso Pérezde Gusmá, o Bom, que atirou uma faca pelas muralhas de Tarifa, para degolar
seu único filho.Monipódio voltou e com êle entraram duas môças, pintadas, de lábios
pintados e de peito branco como alvaiade, cobertas com mantos de anascote,
desembaraçadas e sem nenhuma cerimônia, sinal evidente de que erammulheres de vida fácil; assim o julgaram Rinconete e Cortadilho e de fato não se
enganaram; logo que entraram dirigiram-se, de braços abertos, uma em direçãode Chiquiznaque e a outra na direção de Mão-de-Ferro, pois eram êstes osnomes dos dois valentes; um chamava-se Mão-de-Ferro porque uma de suas
mãos era de ferro, que a outra fôra cortada por ordem da justiça. Êles asabraçaram com grande alegria e perguntaram-lhes se traziam algo com que
pudessem molhar a goela.- Pois não havia de trazer, meu pilantra? - respondeu a que se chamava
Gananciosa. - Não tardará a chegar Silbatilho, teu criado, com as cubas de
vinho, cheias do que Deus bem quis.
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E era verdade, porque naquele mesmo instante entrou um rapaz com umacuba de vinho, coberta com um pano.
Todos alegraram-se com a chegada de Silbato e, então, Monipódio
mandou tirar uma das esteiras que estavam no aposento e estendê-la no meiodo pátio. Ordenou também que todos sentassem ao redor, porque, passada a
raiva, tratar-se-ia de assuntos de interêsse geral. Nisto, a velha que tinha rezadoao pé da imagem disse:
- Meu filho Monipódio, não tenho disposição para festas porque estou, há
dois dias, com uma tontura que me deixa louca; ainda mais que, antes de sermeio-dia, tenho de ir cumprir minhas devoções e devo acender minhas velas a
Nossa Senhora das Águas e ao Santo Crucifixo de Santo Agostinho, o que não
deixaria eu de fazer mesmo que nevasse e armasse uma tempestade.Vim porque, à noite, Renegado e Cem Pés levaram à minha casa uma cuba
de vinho bem maior do que esta, cheia de roupa branca, e juro por Deus e porminha alma que vinha com sua barrela e os pobrezinhos não tinham onde
deixá-la; vinham suando por todos os poros e dava dó vê-los entrar, arquejantese escorrendo tanta água pelo rosto que pareciam uns anjinhos. Disseram-meque iam ao encalço de um negociante de gado, que tinha pesado alguns
carneiros no açougue, para ver se podiam passar a mão em uma burra, cheia de
dinheiro, que êle levava. Não desembrulharam nem contaram a roupa,confiando na integridade de minha consciência e, assim, que Deus testemunhe
minha boa intenção e nos livre a todos de cometer injustiças, pois eu não toqueina roupa, estando ela tal como chegou.
- Acreditamos piamente, mamãe - falou Monipódio - que a cuba assimpermaneça; pois à noitinha irei lá e verei tudo o que ela contém e darei a cadaum o que lhe tocar, como é meu costume.
- Será como ordenas, filho - disse a velha -, e, como está ficando tarde paramim, dá-me um traguinho, se é que tens para consolar meu estômago; que anda
sempre fraco.- Mas é claro, mamãe - disse por sua vez Escalanta, companheira que com
ela viera.
E, descobrindo a cesta, deixou à mostra um odre com 30 litros de vinho euma caneca que podia conter bem uns 2 li tros; Escalanta encheu-a e a pôs nas
mãos da dedicadíssima velha, que, segurando-a com ambas as mãos e depois deassoprar um pouco a espuma, disse:
- Puseste muito, minha filha, mas Deus me dará fôrças para beber tudo.
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E, levando-a à bôca, passou, de uma só vez, sem tomar fôlego, o vinho dacaneca para o estômago.
- É de Guadalcanal - disse, e ainda tem um não-sei-quê de gôsto de barro,
o danado. Que Deus te abençoe, minha filha, pois me reconfortaste; eu só tenhomêdo de que me faça mal, pois ainda não comi.
- Não há de fazer, mãe - falou Monipódio -, porque já tem mais de trêsanos.
- Que a Virgem Maria te ouça - disse a velha. E acrescentou:
- meninas, vocês, por acaso, não teriam aí algum dinheiro para eu comprarumas velinhas para oferecer ao santo de minha devoção? Porque a pressa e a
vontade que tinha eu de trazer as novidades me fizeram esquecer a bôlsa em
casa.- Tenho sim, Dona Pipota (êste era o nome da velha) - respondeu
Gananciosa. - Tome. Aí tem duas moedas; peço-lhe que compre uma vela pramim e ofereça a São Miguel; se der para comprar duas, ofereça a outra a São
Brás, que são meus protetores. Gostaria que oferecesse a outra a Santa Luzia, dequem sou também devota, porque protege os olhos, mas não tenho trocado;outro dia pago a dívida a todos.
- Fazes muito bem, filha, e olha, não sejas miserável, porque é muito mais
importante a pessoa oferecer as velas antes de morrer do que esperar que osherdeiros e testamenteiros as ofereçam.
- A senhora tem razão, mamãe - disse Escalanta. E enfiando a mão nabôlsa, deu-lhe outra moeda, encarregando-a de oferecer outras duas velinhas
aos santos que ela achasse mais diligentes e agradecidos. E lá se foi a Pipota,não sem antes dizer:
- Aproveitem agora, filhos, enquanto é tempo, que a velhice logo chega e
então vocês hão de chorar, como eu, o tempo que perderam na mocidade;recomendem-no a Deus em suas orações, que eu vou fazer o mesmo por mim e
por todos vocês, para que êle nos proteja e mantenha nossa perigosa profissãosem preocupações com a justiça.
Depois que a velha partiu, sentaram-se todos em volta da esteira; Ganan-
ciosa estendeu o lençol, fazendo de toalha; a primeira coisa que tirou da cestafoi um grande maço de rabanetes, umas duas dúzias de laranja e limão, uma
caçarola grande, cheia de bacalhau frito, a metade de um queijo de Flandres,uma panela de azeitonas famosas, um prato de camarões, um bom punhado decaranguejos, com apetitosas alcaparras refogadas com pimentão e três
branquíssimas broas de Guandu. Havia umas catorze pessoas para comer e
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nenhuma delas deixou de tirar sua faca de cabo amarelado, com exceção deRinconete, que tirou sua pequena espada. Os dois velhos de baeta e o guia
tiveram de tomar vinho na caneca. Mal tinham começado a entrar nas laranjas,
quando uns golpes dados na porta fizeram todos ficar sobressaltados.Monipódio pediu-lhes que se mantivessem calmos; entrando na sala baixa,
pegando um escudo, passando a mão na espada, chegou à porta e perguntoucom voz tonitroante e assombrosa:
- Quem é?
De fora responderam:- Sou eu, Senhor Monipódio, não é nada. Sou Tagarote, sentinela da
manhã, e venho para dizer-lhe que Juliana, a Cariharta, vêm aí, tôda desgre-
nhada e chorosa; parece que lhe aconteceu algum desastre.Nisto chegou a criatura de quem falavam, soluçando; escutando-a,
Monipódio abriu a porta : mandou Tagarote voltar ao seu pôsto e que, daí pordiante, anunciasse a chegada de alguém com menos estrondo e ruído. Tagarote
respondeu que assim o faria. Aí entrou Cariharta, môça da mesma espécie dasoutras e que exercia a mesma profissão. Vinha descabelada, com o rosto todoinchado, e assim que entrou no pátio caiu desmaiada.
Gananciosa e Escalanta vieram em seu auxílio; desabotoando-lhe o peito,
viram que ela estava cheia de manchas roxas e machucada. Jogaram-lhe águano rosto e ela voltou a si, dizendo em altas vozes:
- Que a justiça de Deus e do rei caia sôbre aquêle ladrão sem vergonha,sôbre aquêle covarde gatuno, sôbre aquêle patife piolhento! E eu que o salvei
mais vêzes da fôrca do que os pêlos que tem na cara! Pobre de mim! Vejam comquem perdi e gastei minha mocidade, a flor dos anos! Com um velhacodesalmado, delinqüente e incorrigível!
- Acalma-te, Cariharta - falou Monipódio -, estou el aqui para te fazer justiça. Conta-nos o caso; farei tudo para que sejas vingada; dize-me se êle te
faltou com o respeito; se assim foi e se queres que te vingue, é só falar.- Mas que respeito? - falou Juliana. - Ao inferno com o respeito! Era mais
fácil um leão respeitar as ovelhas do que êle a mim. Depois do que aconteceu,
poderia eu repartir ainda meu pão com êle e morar sob o mesmo teto? Prefirover devoradas pelos vermes estas carnes, que êle maltratou, como bem podeis
ver.Levantando as saias acima do joelho, mostrou as pernas cheias de
equimoses.
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- Foi assim que me deixou Repolido, aquêle ingrato, a mim, a quem devemais que à mãe que o pariu. E por que pensam vocês que êle fêz isso? Teria eu
dado algum motivo? Claro que não! O que fiz foi somente mandar-lhe apenas
24 reais, em lugar dos 30 que êle mandou o rufião Cabrilhas me pedir, pois êleestava perdendo no jôgo; peço aos céus que o trabalho e o suor que me
custaram êsse dinheiro sirvam para descontar meus pecados. Em troca dêstefavor e bom serviço, acreditando êle ter eu tirado alguma coisa que, lá na suaimaginação, pensou que eu pudesse ter, levou-me essa manhã ao campo, atrás
da quinta do rei e ali, entre uns olivais, tirou-me a roupa e com uma cinta, semdó nem piedade - maldito seja! -, bateu-me tanto que me deixou feito morta;
estas marcas são boas testemunhas do que eu disse.
Tornou a levantar a voz, e pedir justiça; de nôvo, Monipódio e todos osbravos que ali estavam tornaram a prometer justiça. Gananciosa pegou-lhe a
mão para a consolar, dizendo-lhe que daria, de boa vontade, uma das melhores jóias que possuía para que seu amado lhe fizesse o mesmo.
- E o digo por querer que saibas, querida Cariharta, se já não o sabes, quese castiga àquilo que se quer bem e quando êstes velhacos nos batem, açoitam edão coices, é porque nos adoram; e cá entre nós, depois que Repolido te bateu e
maltratou, não te fêz nenhuma carícia?
- Como uma? - falou ela chorosa. - Fêz-me um milhão e daria um dedopara que eu fôsse com êle até sua casa; parece-me também que as lágrimas
quase lhe saltaram dos olhos depois de me haver moído de pancada.- Eu não duvido - replicou Gananciosa -, e talvez chorasse mesmo de pena
por ver o estado em que te deixou, porque êstes homens, em casos como êste,dizem não terem culpa quando lhes chega o arrependimento e hás de ver,minha irmã, como êle vem te buscar antes de sairmos daqui e como vem te
pedir perdão pelo que fêz, sorrindo como um cordeiro.- Mas aqui por estas portas êste covarde não entra, sem antes fazer uma
penitência pelo delito que cometeu. Por que se atreveu êle a pôr as mãos emCariharta, pessoa que em honestidade e ganância pode competir com a própriaGananciosa que aqui está? Não. Eu não posso mais ter consideração por êle -
falou Monipódio.- Ai! - exclamou a estas alturas Juliana. - Não diga Vossa Mercê, Senhor
Monipódio, mal daquele maldito, que, apesar de êle ser tão ruim, eu o querocom tôdas as fôrças de minha alma; as palavras ditas por Gananciosa, minhaamiga, em favor dêle, fizeram-me voltar à razão e, para dizer a verdade, estou
quase indo atrás dêle.
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- Isso não te aconselho - falou Gananciosa -, porque êle vai ficarconvencido, vai fazer-se de rogado e zombar de ti até dizer chega. Acalma-te,
irmã, que mais cedo do que pensas o verás chegar arrependidíssimo, mas, se
não vier, nós lhe escreveremos uma carta com uma porção de desaforos.- Isso sim - disse Cariharta -, pois tenho mil coisas a dizer-lhe.
- E eu serei o secretário, quando fôr preciso - disse Monipódio. - Não soupoeta, mas, quando um homem se decide, faz 2.000 versos com a maiorfacilidade e, se não saírem bons, tenho um barbeiro, meu amigo, que
completará o que falta a qualquer hora; bom, mas agora vamos tratar de comer,que depois tudo se arranjará.
Juliana foi tôda contente obedecer à ordem do chefe; assim, tornaram
todos ao seu gaudeamus; num instante chegaram ao fundo da pipa e à bôrra doodre. Os velhos beberam nine fine; os jovens, abundantemente; as senhoras, à
vontade. Os velhos pediram licença para ir embora; Monipódio a deu logo,encarregando-os de trazer com tôda a rapidez possível as notícias de tudo o que
julgassem útil para a comunidade. Responderam êles que o faziam com o maiorcuidado e partiram. Rinconete, que era curioso de natureza, pedindo perdão elicença, perguntou a Monipódio o que faziam na confraria duas pessoas tão
encarnecidas, tão sérias e tão bem afeiçoadas. Respondeu Monipódio que tais
pessoas, em sua gíria e modo de falar, se chamavam ahispones, e que seuserviço era andar de dia por tôda a cidade, ahispando a casa em que se podia
dar o golpe à noite, e observavam também os que recolhiam dinheiro docomércio ou da Casa da Moeda, para ver aonde o levavam e onde o punham;
feito isso, calculavam a grossura da parede de tal casa e indicavam o lugar maisconveniente para se fazer buracos, a fim de facilitar a entrada.
Disse, em suma, que era gente de igual ou maior valor da comunidade e
que, de tudo o que, por seu engenho, se furtava, recebiam a quinta parte, comoacontece com Sua Majestade nos tesouros, e que, com tudo isso, eram homens
dignos de fé, muito honrados, de boa vida e boa fama, tementes a Deus e àssuas consciências e que assistiam a missas todos os dias com singular devoção..
- E há alguns tão modestos, especialmente êsses dois que foram embora,
que se contentam com muito menos do que, segundo nossas leis, lhes toca. Háoutros dois que são beleguins, andam de casa em casa, conhecem as entradas e
as saídas de tôdas elas, na cidade, em quais convém entrar e em quais nãoconvém.
- Tudo isto é maravilhoso - disse Rinconete -, e gostaria de ser útil em tão
famosa confraria.
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- O céu ajuda sempre as boas intenções - disse Monipódio.Estavam nessa conversa, quando alguém chamou à porta; Monipódio saiu
para ver quem era e de fora respondeu:
- Abra Vossa Mercê, Seu Monipódio, sou eu, Repolido.Cariharta, ouvindo esta voz, falou bem alto:
- Não abra, Senhor Monipódio; não abra a êsse marinheiro de Tarpéia, aêsse tigre de Ocanha.
Nem por isso Monipódio deixou de lhe abrir; Cariharta, vendo isso,
levantou-se correndo, entrou na sala dos escudos e, fechando a porta atrás de si,falou em alta voz:
- Livrem-me da presença dêsse homem, dêsse verdugo de inocentes, dêsse
assustador de pombas ingênuas.Mão-de-Ferro e Chiquiznaque continham Repolido, que, de qualquer
maneira, queria entrar onde Cariharta estava e, como não o deixassem, dizia dolado de fora:
- Sai, minha braveza; acalma-te, que te verás casada.- Casada eu, perverso? Olha em que tecla bates! Querias que eu fôsse
contigo, mas prefiro mil vêzes a morte!
- Vamos, bôba! Vamos acabar com isso que já é tarde, E olha, não fiques
convencida por eu falar tão manso e vir tão submisso, porque - louvado sejaDeus -, se me sobe o sangue à testa, a emenda será pior do que o sonêto.
Humilha-te; vamos nos humilhar todos e não vamos dar de comer ao diabo.- Eu seria capaz até de lhe preparar um banquete, para que êle te levasse
para onde meus olhos nunca mais te vissem - disse Cariharta.- Não estou dizendo? Por Deus! Estou vendo, sua faladeira, que tenho de
botar tudo a perder e faltar com minha palavra - falou Repolido.
- Em minha presença ninguém há de cometer violências; Cariharta sairánão por causa das ameaças, mas por consideração a mim, e então tudo se
arranjará, pois as brigas entre os que se querem bem são, depois, motivo desatisfação quando fazem as pazes. Ó Juliana! menina! Cariharta! Sai daí porfavor, que farei Repolido pedir-te perdão de joelhos.
- Se êle fizer isso - disse Escalanta - estaremos todos do seu lado epediremos a Juliana que saia.
- Se eu tenho de me dar por vencido para depois vocês fazerem pouco demim - disse Repolido -, não me entregarei nem a um exército de suíços, mas. seé porque Cariharta assim o quer, não digo que eu me mêta aí de joelhos, porém
meterei um cravo na testa se ela assim o desejar.
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Chiquiznaque e Mão-de-Ferro riram-se; Repolido ficou muito insultado,pensando que zombavam dêle, e disse com uma raiva imensa:
- Aquêle que rir ou pensar em rir do que Cariharta possa dizer contra
minha pessoa e eu contra a dela estará mentindo e mentirá tôdas as vêzes emque rir ou pensar.
Chiquiznaque e Mão-de-Ferro entreolharam-se de tal modo queMonipódio viu que a história acabaria mal se êle não procurasse remediar asituação, e assim, pondo-se logo entre êles, disse:
- Vamos parar por aqui, cavalheiros, não digam mais nada; não seofendam e, já que as palavras ditas não atingiram ninguém, que ninguém vista
a carapuça.
- Sabemos muito bem que tais ofensas não foram ditas por nós e nem oserão - falou Chiquiznaque -, e, se desconfiássemos de que poderiam ser
dirigidas a nós, teríamos às mãos um pandeiro e saberíamos tocá-lo.- Eu também tenho um pandeiro, Seu Chiquiznaque, e, se fôr preciso,
saberemos tocar os guizos, e já disse que quem zombar estará mentindo e quempensar em outra coisa siga-me, pois não será um palmo de espada que me farámenos homem, e o que eu disse está dito.
Dizendo isto, preparava-se para sair porta afora. Cariharta estava a escutar
e, quando percebeu que êle ia embora enfurecido, saiu dizendo:- Não deixe que êle se vá, pois fará das suas! Não vêem que ele vai embora
com raiva e nessa história de valentia êle é igual a Judas Marcaelo? Volta aqui,valentão de minha alma. E, abraçando-se a êle, agarrou-o fortemente pela capa;
Monipódio correu também para segurá-lo; Chiquiznaque e Mão-de-Ferro nãosabiam o que fazer, se deviam encolerizar-se ou não; ficaram parados,esperando para ver o que Repolido faria; êste, vendo-se chamado por Cariharta
e Monipódio, voltou, dizendo:- Os amigos nunca devem encolerizar os amigos, nem zombar dêles, ainda
mais quando vêem que os amigos estão com raiva.- Aqui não há nenhum amigo que queira encolerizar ou zombar de outro
amigo, e, como somos todos amigos, que os amigos se dêem as mãos - disse
Mão-de-Ferro.- Todos vocês falaram como bons amigos e, como amigos, que se dêem as
mãos os amigos.Todos apertaram logo a mão e Escalanta, tirando um de seus chapins,
começou a bater nêle como se êle fôsse um pandeiro; Gananciosa pegou uma
vassoura de fôlha de palmeira, nova, que se encontrava ali por acaso, e,
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arranhando-a, conseguiu dela um som que, embora rouco e áspero, combinavacom o do chapim.
Monipódio quebrou um prato e fez dêle duas castanholas, que, tocadas
com grande rapidez, serviam de contraponto ao chapim e à vassoura.Rinconete e Cortadilho espantaram-se com a história da vassoura, porque,
até então, nunca tinham visto tal coisa. Mão-de-Ferro, percebendo, disse-lhes:- Estão admirados? Pois fazem muito bem, porque não há no mundo
música mais rápida, mais leve, nem mais barata e, na verdade, ouvi, outro dia,
um estudante dizer que nem o Negrofeo, que tirou Arauz do inferno, nemMarión, que subiu às costas do delfim e saiu do mar como se tivesse vindo no
lombo de uma mula de aluguel, nem o grande músico que construiu uma
cidade com cem portas e com outros tantos postigos, inventaram melhor gêneromusical, tão fácil de aprender, tão ajeitado para tocar, tão sem trastes, cravelhas
ou cordas e tão sem necessidade de se afinar, e - pasmem! - dizem que quem oinventou foi um galã desta cidade, que se gaba de ser o Hércules da música.
- Acredito, acredito - respondeu Rinconete -. mas vamos escutar o que osnossos músicos querem cantar, pois parece que Gananciosa já pigarreou, sinalde que vai cantar.
E era verdade, porque Monipódio tinha-lhe pedido para cantar algumas
seguidilhas da moda, mas quem começou primeiro foi Escalanta, que, com vozsutil e delicada, cantou:
Por un sevillano rufo a lo valón
tengo socarrado todo el corazón.
Depois foi a vez de Gananciosa:
Por un morencio de color verde,
cuál es la fogosa que no se pierde?
A seguir, ouviu-se Monipódio, que, apressando o ritmo com suas
castanholas, cantou:
Rinen dos amantes; hácese la paz:
si el enojo es grande, es el gusto más.
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Cariharta não quis regozijar-se em silêncio, porque, tomando de outrochapim, entrou na dança e acompanhou as demais, dizendo:
Detente, enojado, no me azotes más:que si bien lo miras, a tus carnes das.
- Cantem à vontade - disse neste momento Repolido - e não toquem emcoisas passadas, que não há necessidade; o que passou, passou; vamos tomar
outro caminho e basta.Pareciam êles não ter intenção de acabar a cantoria tão cedo, mas ouviram
chamar apressadamente à porta; Monipódio saiu para ver quem era e a
sentinela contou-lhe que vira aparecer no fim da rua o oficial de justiça, e que, àfrente dêle, vinham Tordilho e Cernicalo, os agentes imparciais da justiça.
Todos os que estavam dentro escutaram e se alvoroçaram de tal maneira queCariharta e Escalanta calçaram seus chapins ao contrário; Gananciosa largou a
vassoura; Monipódio, suas castanholas; a música cessou e tudo caiu em silêncioconstrangedor; Chiquiznaque emudeceu; Repolido espantou-se, Mão-de-Ferrolevantou-se e todos desapareceram subindo às sotéias e aos telhados para fugir
e passar do outro lado da rua. Nem um arcabuz disparado fora de hora, nem
um trovão repentino espantaria um bando de pombas descuidadas, como avinda do oficial de justiça alvoroçou e espantou tôda aquela comunidade
reunida, tôda aquela boa gente. Os dois noviços, Rinconete e Cortadilho, nãosabiam o que fazer; ficaram parados, esperando para ver no que dava aquela
tempestade repentina, que terminou com a volta da sentinela, dizendo que ooficial de justiça passara reto, sem dar mostras da mais leve sombra de suspeita.E, enquanto êle dizia isto a Monipódio, chegou um jovem cavalheiro à porta,
vestido à moda caipira, como se costuma dizer; Monipódio entrou com êle emandou chamar Chiquiznaque, Mão-de-Ferro e Repolido, dando ordens para
não descer ninguém além dêles. Rinconete e Cortadilho, como tivessem ficadono pátio, puderam ouvir a conversa de Monipódio com o cavalheiro recém-chegado, que perguntou por que haviam feito tão mal o que tinha êle
encomendado. Monipódio respondeu que ainda não sabia o que se tinha feito,mas ali estava o oficial encarregado do negócio, pronto para a prestação de
contas. Chiquiznaque desceu e Monipódio perguntou-lhe se êle terminara oserviço, se tinha dado a facada de catorze, que lhe haviam encomendado.
- Qual? - perguntou Chiquiznaque. - Aquela do mercador da encruzi-
lhada?
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- É essa mesmo - disse o cavalheiro.- O que se passou - falou Chiquiznaque - foi o seguinte: eu o esperei de
noite, à porta de sua casa; êle chegou antes da hora da oração; cheguei perto
dêle, bati os olhos no seu rosto e vi que era tão pequeno que seria impossível,impossibilíssimo, caber nêle uma facada de catorze pontos, e, vendo-me
impossibilitado de poder cumprir o prometido e de levar a cabo minhadestruição..
- Instrução, quer Vossa Mercê dizer - interrompeu o cavalheiro -, não
destruição.- É isso - falou Chiquiznaque. - Dizia eu que, vendo que a estreiteza e
pequenez daquele rosto não davam para os pontos prometidos, a fim de que
minha viagem não fôsse em vão, dei a facada em um seu lacaio, que, para dizera verdade, pode levar um número bem maior de pontos.
- Mas eu queria - disse o cavalheiro - que se tivesse dado no amo umafacada de sete em vez de dar uma de catorze no criado. Não cumpriram o trato
feito comigo, como era de direito, mas não importa; não me fazem falta os 30ducados que deixei de sinal. Beijo as mãos de Vossa Mercê.
E, dizendo isto, pegou o chapéu e virou as costas para ir-se embora;
Monipódio, porém, segurou-o pela capa de mescla que êle vestia, dizendo-lhe:
- Vosmecê volte e cumpra sua palavra, pois nós cumprimos a nossa commuita honra e perfeição; faltam 20 ducados e não há de sair daqui sem dá-los ou
sem deixar coisas que valham essa quantia.- É a isso que Vossa Mercê chama de cumprimento da palavra? Dar uma
facada no criado quando devia dá-la no patrão?- Como o senhor está ruim de contas! - exclamou Chiquiznaque. - Bem
parece que não se lembra daquele ditado que diz:
“Quem quer bem o patrão, ama também o seu cão”.- A trôco do que êsse ditado? - perguntou o cavalheiro.
- Pois então - prosseguiu Chiquiznaque -, não é o mesmo que dizer:“Quem quer o mal do patrão, quer também o do cão”?
É assim: o patrão é o mercador, vosmecê lhe quer mal; seu lacaio é o cão;
batendo-se no cão, bate-se no patrão; a dívida fica liquidada e bem executada;por isso, é tratar de pagar logo, sem fazer nenhuma observação.
- Isso eu também posso jurar - acrescentou Monipódio -, e tudo quantodisseste tiraste-me da bôca, Chiquiznaque amigo, e assim, meu caro, não façaconta de ninharias com seus amigos e servidores, siga meu conselho e pague
logo sua conta; se quiser que se dê uma facada no patrão, com a quantidade de
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pontos que cabe no rosto dêle, pode estar certo de que até já lhe estarão fazendocurativos.
- Já que é assim - respondeu o rapaz - pagarei de muito boa vontade tanto
uma conta como a outra.- Isso é tão certo quanto é certo eu ser cristão - disse Monipódio -, pois
Chiquiznaque dará a facada de tal maneira que ela parecerá ser de nascença.- Com esta certeza e promessa - disse o cavalheiro -, receba esta cadeia em
lugar dos 20 ducados atrasados e de 40 que ofereço pela futura facada; vale
1.000 reais e pode ser que seja arrematada, pois estou desconfiado de que serãoprecisos outros catorze pontos.
Dizendo isto, tirou do pescoço uma cadeia de voltas pequenas e deu-a a
Monipódio, que, pela côr e pelo pêso, viu bem que ela não era falsa. Monipódiorecebeu-a muito contente e com delicadeza, porque era um homem
extremamente educado; a execução ficou a cargo de Chiquiznaque, queprometeu pô-la em prática naquela noite. O cavalheiro foi-se muito satisfeito;
Monipódio chamou logo todos os ausentes e refugiados. Todos desceram eMonipódio, misturando-se com êles, tirou um caderninho de notas que traziano capuz; deu-o a Rinconete para que lesse, porque êle não sabia ler.
Rinconete abriu-o e viu que a primeira página dizia:
“Facadas que devem ser dadas nesta semana.“A primeira será no mercador da encruzilhada. Vale 50 escudos.
“Recebemos 30 por conta. Executor: Chiquiznaque”.- Não creio que haja outra, filho - disse Monipódio. Passe para a frente e
olhe onde diz: “Pauladas”.Rinconete virou a fôlha e viu que na outra estava escrito:“Pauladas”. Mais abaixo dizia:
“No taberneiro de Alfafa, doze pauladas da melhor qualidade, a 1 escudocada uma. Foram dados 8 escudos por conta.
Prazo: seis dias. Executor: Mão-de-Ferro”.- Bem que podia apagar essa nota - disse Mão-de-Ferro -, porque esta noite
darei conta do recado.
- Há mais alguma outra, filho? - perguntou Monipódio.- Sim - respondeu Rinconete -, há uma outra que diz assim:
“No alfaiate corcunda, conhecido como Silguero, seis pauladas da melhorqualidade, a pedido daquela senhora que deixou a gargantilha. Executor:Desmochado”.
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- Estou admirado - falou Monipódio - de êste serviço não ter sido feitoainda. Na certa, há alguma coisa errada com Desmochado, pois já se passaram
dois dias do prazo e ainda não se mexeu nisso.
- Encontrei-me com êle ontem - disse Mão-de-Ferro - e êle me falou que ocorcunda não tinha aparecido porque está doente, e por isso não pôde êle
cumprir com a obrigação.- Acredito - falou Monipódio -, pois sei que Desmochado é um bom
profissional e que se não fôsse por um motivo tão justo êle já teria dado conta
do recado da melhor forma possível.Há mais alguma coisa, rapaz?
- Não senhor - respondeu Rinconete.
- Então vamos para frente e veja onde está escrito: “Agravos comuns”.Rinconete passou adiante e, em outra fôlha, encontrou escrito:
“Agravos comuns, isto é, garrafadas, banhos de merda, cornos, injúrias,zombarias, ameaças, motins, facadas simuladas, publicação de nibelos (Nibelos,
isto é, libelos, escritos difamatórios.), etc.” - Que diz mais abaixo? - perguntouMonipódio.
- Diz - falou Rinconete - “Banho de merda na casa.. “ - Não leia o nome da
casa, que eu já sei onde é, sou eu o tuatem (Tuatem: Indivíduo que se julga
indispensável.) e executor desta ninharia e já foram dados 4 escudos por conta;ainda faltam 8.
- É verdade - falou Rinconete -; tudo isso está escrito aqui e mais abaixoainda tem: “Cornos”.
- Também não precisa falar a casa e o lugar - disse Monipódio. - Basta quese faça a ofensa, sem que se diga em público; é uma questão de consciência. Eu,pelo menos, sendo pago pelo meu trabalho, preferia fazer cem injúrias e outras
tantas difamações do que revelar um nome, ainda que fôsse à mãe que mepariu.
- O executor disto é Narigueta - disse Rinconete.- Isso já foi feito e pago - falou Monipódio. - Olha se tem mais, que, se não
me falha a memória, há de ter aí uma ameaça de 20 escudos; a metade já foi
dada, o executor é a comunidade inteira, o prazo é todo o mês que estamosatravessando, e há de ser cumprida sem faltar nenhum pingo nos II e será um
dos mais notáveis acontecimentos desta cidade, nos últimos tempos.Dá cá o livro, jovem, pois eu sei que não há mais nada e sei também que a
praça não anda muito boa, mas, nesse meio tempo, há de vir alguém e então
teremos mais serviço do que se pode imaginar, pois não cai uma fôlha sem que
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Deus veja e nós não iremos fazer com que alguém se vingue à fôrça, ainda maisque cada um costuma ser valente dentro de sua casa e não quer pagar pela
execução de serviços que pode fazer com suas próprias mãos.
- É verdade - falou Repolido -, mas Vossa Mercê, Senhor Monipódio, vejaaí o que nos vai ordenar, porque já é tarde e o dia já vem chegando mais do que
depressa.- O que se tem a fazer - disse Monipódio - é irem todos para seus postos e
que ninguém mude de lugar até domingo, que nos reuniremos aqui mesmo e
repartiremos tudo o que tiver entrado, sem prejudicar ninguém. A Rinconete eCortadilho daremos, até domingo, o distrito que vai desde a Torre del Oro, por
fora da cidade, até o postigo de Alcázar, onde podem trabalhar sentados, com
seus naipes, pois já vi outros, menos hábeis que êles, saírem com mais de 20reais em miúdo, além da prata, com um baralho só e ainda com quatro naipes
menos. Ganchoso ensinará onde fica êsse distrito e, ainda que vocês trabalhematé San Sebastián e San Telmo, não importa, embora não seja justo que ninguém
entre no domínio de ninguém.Os dois rapazes beijaram-lhe a mão, pela graça que êle lhes concedia, e
prometeram cumprir a obrigação muito bem, fielmente, com tôda a diligência e
honestidade.
Nisto, Monipódio tirou um papel dobrado do capuz, onde se encontrava alista dos confrades, e disse a Rinconete que pusesse ali seu nome e o de Corta-
dilho, mas, como não houvesse tinteiro, deu o papel para que êle o levasse e, noprimeiro boticário, tratasse de escrevê-los, colocando: Rinconete e Cortadilho,
confrades; noviciado: nenhum; Rinconete: conversa fiada; Cortadilho: trapaça;dia, mês e ano; pátria e pais não precisariam pôr. Neste momento, entrou umdos velhos abispones, que disse:
- Venho dizer a Vossas Mercês que encontrei agora, em Gradas, Lobilho,aquêle de Málaga, e êle me disse que melhorou tanto sua técnica que, mesmo
com naipes sem marcas, pode tirar dinheiro até mesmo do Satanás e que, porestar mal arrumado, não vem logo à sua presença, para prestar a obediênciacostumeira, mas que domingo, sem falta, estará aqui.
- Eu sempre achei - disse Monipódio - que êste Lobilho havia de ser oúnico em sua arte, porque possui as melhores e mais ajeitadas mãos que se
pode desejar para isto, pois, para ser um bom oficial na profissão, é precisotanto ter bons instrumentos para realizá-la como engenho para aprendê-la.
- E encontrei também - disse o velho -, numa casa de pensão da Rua de
Tintores, o Judeu, vestido de padre, que passou por ali por saber que dois
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ricaços vivem nesta mesma casa e queria ver se podia jogar com êles, ainda quefôsse um pouco só, pois êste pouco poderia mais tarde vir a ser o muito. Disse
também que, no domingo, não faltará à reunião e prestará contas de sua pessoa.
- Êste judeu também - disse Monipódio - é uma águia e tem grandesconhecimentos. Faz dias que não o vejo e êle faz muito mal em não aparecer. Se
não se emendar, tiro-lhe o pôsto, pois êle tem tanta autoridade quanto o Turco esabe tanto latim quanto minha mãe. Há mais alguma novidade?
- Não - disse o velho -, pelo menos que eu saiba, não.
- Está muito bem - falou Monipódio. - Peguem todos êste pouco dedinheiro e que ninguém falte no domingo, pois repartiremos o resto. - E, assim
dizendo, distribuiu entre êles 40 reais.
Todos lhe agradeceram; Repolido e Cariharta, Escalanta e Mão-de-Ferro,Gananciosa e Chiquiznaque tornaram a se abraçar, combinando que, naquela
noite, depois de terminarem o serviço da casa, iriam à casa de Pipota, para ondeiria também Monipódio, a fim de examinar a canastra, depois de cumprir e
apagar do caderninho de notas o trabalho que se propusera a fazer.Abraçou Rinconete e Cortadilho e, abençoando-os, despediu-os, aconse-
lhando-os a não terem jamais lugar certo para dormir ou ficar, pois assim era
necessário para o bem de todos. Ganchoso acompanhou-os para ensinar-lhes
seus postos, recomendando-lhes que não faltassem no domingo, porquepensava que Monipódio havia de dar uma lição de posições referentes à sua
arte. Com isto se foi, deixando os dois companheiros admirados com o quetinham visto.
Rinconete, embora jovem, possuía muitos conhecimentos, era inteligentepor natureza; como andara com o pai no negócio das bulas, sabia falar bem etinha muita vontade de rir ao pensar nas palavras que ouvira de Monipódio e
dos demais componentes de sua confraria e bendita comunidade, ainda maisquando, em lugar de modum sufragâ, dissera naufrágio, e tiravam o estupendo,
em vez de estipêndio, do que, aliás, se gabava; assim também quando Carihartadisse que Repolido era como um marinheiro de “Tarpéia” e um tigre de“Oeanha”, em vez de Hircânia, e outras mil coisas semelhantes ou piores que
essas. Achou uma graça especial quando ela falou que o trabalho que tiverapara ganhar os 24 reais fôsse recebido pelo céu em paga de seus pecados;
admirava sobretudo a segurança, a confiança que tinham de ir para o céu, pornão faltarem às suas devoções, embora estivessem tão cheios de furtos,homicídios e ofensas a Deus.
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Riam-se também da boa velha Pipota, que deixava a canastra furtada, emsua casa, e ia oferecer velinhas de cêra às imagens, pensando em ir ao céu de
mala e cuia. Não se admirava menos da obediência e respeito que todos tinham
por Monipódio, sendo êle um homem bárbaro, rústico e desalmado.Considerava o que lera em seu caderno de notas as obrigações de cada um
e, finalmente, considerava quão descuidada era a justiça da famosa cidade deSevilha, pois vivia nela, sem nenhuma assistência, gente tão perniciosa e tãocontrária à própria natureza; fêz, então, o propósito de convencer o seu
companheiro a não permanecer, por muito tempo, naquela vida tão perdida,tão má, tão inquieta, tão livre e dissoluta. Contudo, em virtude de sua pouca
idade e pouca experiência, permaneceu nela mais alguns meses, nos quais lhe
aconteceram coisas que exigiriam muitas outras fôlhas; e, assim, deixamos paracontar, em outra oportunidade, sua vida, os milagres que fêz, mais os de seu
mestre Monipódio e outros acontecimentos relativos aos componentes daquelainfame academia, pois serão todos êles muito importantes e poderão servir de
exemplo e advertência a todos os que os lerem.
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