a estetica da vida - graca aranha - iba mendes

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Texto fundamental de filosofia brasileira

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  • Graa Aranha

    A Esttica da Vida Reviso grfica e atualizao ortogrfica

    Iba MendesIba MendesIba MendesIba Mendes

    Publicado originalmente em 1921.

    Jos Pereira da Graa Aranha (1868 1931)

    Projeto Livro Livre

    Livro 533

    Poeteiro Editor Digital

    So Paulo - 2014 www.poeteiro.com

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    Iba Mendes [email protected]

    www.poeteiro.com

  • NDICE

    A UNIDADE INFINITA DO TODO O UNIVERSO E A CONSCINCIA .................................................................... A FUNO PSQUICA DO TERROR................................................................. RELIGIO....................................................................................................... FILOSOFIA...................................................................................................... ARTE.............................................................................................................. AMOR............................................................................................................ A ESTTICA DO UNIVERSO............................................................................ METAFSICA BRASILEIRA A IMAGINAO BRASILEIRA.......................................................................... OS TRABALHOS DO HOMEM BRASILEIRO..................................................... VENCER A NOSSA NATUREZA........................................................................ VENCER A NOSSA METAFSICA...................................................................... VENCER A NOSSA INTELIGNCIA................................................................... CULTURA E CIVILIZAO A MELHOR CIVILIZAO................................................................................ A NAO....................................................................................................... NACIONALISMO E COMUNISMO.................................................................. INS PESSIMISMO BRASILEIRO.............................................................................. OTIMISMO BRASILEIRO................................................................................. PRAGMATISMO BRASILEIRO......................................................................... O QUADRO NACIONAL.................................................................................. O NOSSO ESTILO............................................................................................ O TIPO BRASILEIRO........................................................................................ O PARADOXO BRASILEIRO............................................................................. MEDITAO SOBRE A LNGUA PORTUGUESA............................................... VISAGENS DA LITERATURA BRASILEIRA........................................................ JOS DE ALENCAR.......................................................................................... OS PRODGIOS DE ROUSSEAU....................................................................... O ROMANTISMO DE BEETHOVEN................................................................. DEBUSSY........................................................................................................ FLAUBERT...................................................................................................... A TRISTEZA DOS NATURALISTAS ............................................................... MISTICISMO PORTUGUS............................................................................. INEXPLICVEL TRISTEZA................................................................................ RABELAIS.......................................................................................................

    1 2 4 7 14 24 28 33 36 39 40 42 47 52 56 61 65 67 67 68 69 70 70 71 72 73 75 76 76 77 78 78 79

  • CLEPATRA E SALOM.................................................................................. IBSEN............................................................................................................. A ESTTICA DE UMA TRAGDIA..................................................................... A MORTE DE RENAN...................................................................................... NIETZSCHE E A SUA ALEMANHA.................................................................... O DRAMA CIENTFICO DE CUREL................................................................... SHAKESPEARE E O TEMPERAMENTO INGLS................................................ A ALMA DOS POVOS NOS SEUS DIVERTIMENTOS......................................... O SEXO TRGICO........................................................................................... O MVEL E O IMVEL NA FISIONOMIA HUMANA........................................ A MSTICA DO CRISTO................................................................................... ESTE INSTANTE DA ARTE............................................................................... A GUERRA, A ARTE E A LITERATURA..............................................................

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    A ESTTICA DA VIDA A tragdia fundamental da existncia est nas relaes do esprito humano com o Universo. A concepo esttica do Universo a base da perfeio.

    A UNIDADE INFINITA DO TODO O UNIVERSO E A CONSCINCIA Como definir o Ser? Restrinjamos a nossa impossibilidade a este axioma: o Ser o Ser. a substncia com os fenmenos e s ns o conhecemos pelos fenmenos. Para o esprito humano s h realidade no que fenomenal; fora da o Universo, a unidade infinita, uma pura idealidade. Nem a Substncia, nem a Vontade, nem o Inconsciente, nem as ideias so o princpio causal da existncia. Se o fossem, o supremo problema metafsico se explicaria por um incorrigvel dualismo, inerente a estes conceitos primordiais, porque o nosso esprito teria necessariamente de compreender a dualidade de uma fora ou energia agindo sobre a matria, embora se pretendesse explicar que a substncia fora e matria e que no h matria sem fora, nem energia independente da matria. O dualismo subsistiria como uma fatalidade da nossa compreenso, e por que jamais chegaramos a explicar o Todo e a perceber a essncia da causalidade. Ora, o sentimento da Unidade infinita do Universo o fato transcendente do esprito humano. um sentimento e no uma realidade objetiva, sentimento que reside na conscincia. Todo o problema metafsico (filosfico, religioso ou esttico) est subordinado conscincia que nos explica o Universo, e este s existe na sua realidade subjetiva pelo fato da conscincia. Sem a conscincia metafsica o Universo no nos seria realizado, como uma unidade abstrata e transcendental, e assim a questo filosfica, ou melhor a explicao da causalidade, est restrita ao raio de luz da conscincia. Uma demonstrao lgica de um princpio causal, seja o nos, a vontade, o inconsciente, impossvel. O Universo porque , e s nos dado explicar cientificamente os seus fenmenos, o que importa na fragmentao do Todo, infinito e inatingvel investigao da cincia. Mas, por uma necessidade fatal do esprito, aquilo que indemonstrvel pela lgica compreendido como realidade ideal. H uma unidade infinita do Ser que se impe ao esprito e conscincia. A formao da conscincia metafsica o mistrio do esprito humano. Fora da conscincia o Universo no existe. S por ela e para ela o Universo se realiza. Pode-se ter a conscincia de si, a conscincia individual, sem se ter a conscincia metafsica. A conscincia de si tem o indivduo quando percebe pelas suas

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    sensaes que ele forma um todo separado e distinto dos outros seres. Essa conscincia se estende e se amplia, quando o indivduo aplica percepo introspectiva dos feno menos subjetivos a mesma ateno, que em prega na observao dos fenmenos objetivos. Mas o indivduo ainda no atingiu ao domnio da conscincia metafsica da existncia, isto , a explicao ou o sentimento da sua prpria existncia, o sentimento do Todo, a causalidade. O indivduo pde sentir e conhecer que ele no outro ser, que est separado das outras cousas, tendo a conscincia da sua unidade perfeita, e os outros seres lhe aparecem como unidades diferentes sem necessidade de as ligar intimamente e compor com elas a unidade absoluta e infinita. A conscincia de si d ao indivduo o sentimento da separao, a conscincia do seu prprio eu e a interpretao dos fenmenos subjetivos dos outros seres. Antes dessa conscincia conceituai o indivduo se considera um entre os outros objetos, e no um em oposio aos outros objetos. Ele ainda no sujeito e no compreende que outros o sejam. O estado a que se chega pela conscincia conceituai, metafsica, o que explica as unidades psquicas perfeitas, ns e os outros, sendo todos objeto de conheci mento de sujeitos conscientes, que somos ns mesmos. Para estes estados de conscincia que so de preceitos ou de conceitos, o Universo no existe, o sentimento do Infinito ainda no foi despertado. O indivduo indiferente a tudo que no seja objeto da sua sensao real. Tem a inconscincia do Todo, no se sente como uma expresso, uma simples aparncia fenomenal do Universo. H uma perfeita incorporao do indivduo no Todo universal, e pelo fato da inconscincia metafsica h uma unidade infinita e completa na essncia do Ser. A FUNO PSQUICA DO TERROR A conscincia no homem no um fenmeno transcendental, fora das leis naturais. A conscincia um fato natural, um modo da substncia universal. Fenmeno neurolgico, comum aos animais, a conscincia, que tem os seus rgos fsicos, se desenvolve na escala dos seres. Mas no processo dessa evoluo h um instante em que se forma no crebro do animal superior a conscincia metafsica do Todo universal. o instante da criao do homem. Por essa conscincia o homem se revela, porque entre todos os seres s ele compreende o Universo, o interpreta, e sente a sua separao das outras cousas no Todo infinito. Os outros animais tm a conscincia individual, a conscincia dos outros seres, mas esto privados da conscincia metafsica, objetiva e subjetiva. Para explicar esse magno problema da filosofia, a hiptese do terror inicial formando a conscincia humana no fortuita, e seria uma luz neste insondvel enigma.

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    O homem herdou dos seus antropides o medo. um animal em que o medo uma das primeiras manifestaes psquicas. No perodo infantil, qualquer alterao do equilbrio, a impresso da gua, os menores animais e os mais inofensivos, o aterram. Nesse crebro assim predisposto, as grandes comoes, provocadas pelos inexplicveis fenmenos da Natureza, determinaram a formao de ideias transcendentais para explicar a origem e a causa desses fenmenos, que pelo mistrio apavoram o esprito dos homens. A necessidade de explicar, de entender, essencial ao crebro humano. uma conseqncia psquica do seu prprio desenvolvimento fisiolgico. No dispondo de meios cientficos para explicar a matria universal, que o cerca e espanta, interpreta-lhe os fenmenos por uma ideologia rudimentar, vaga e incerta, que se torna a expresso do misticismo inicial, pelo qual se balbucia o conceito da fragmentao do Universo e da separao dos seres. Esse terror inicial fica permanente no esprito humano e transmite-se aos descendentes pela hereditariedade psicolgica. No homem civilizado, em cujo esprito a cultura intelectual tem combatido o medo, este perdura como um trao psicolgico dos antepassados, e por ele se d no homem uma regresso fsica e moral ao estado psquico dos primitivos formadores da espcie. Sob a influncia do medo vemos os homens mais civilizados reproduzirem gestos e atos dos homens selvagens e dos animais superiores de que descendemos. E essa regres so uma das provas da origem animal do homem. Pela histeria e pelo sonambulismo, que so muitas vezes manifestaes nervosas do medo, o homem entra no estado de sub-conscincia, em que viviam os primitivos homens perdidos no terror do Universo. A um estado semelhante de sub-conscincia propcio ao misticismo animista, que transfigura a Natureza, volta o homem civilizado, quando se transporta ao meio fsico, cujo assombro o apavora eternamente. No somente por uma manifestao fsica retrograda que o terror reside no homem; tambm pelo retrocesso alma antiga dos antepassados, reao em que a cultura adquirida se esvai, como a luz solar no mistrio da infalvel noite. Esse retrocesso sub-conscincia se acentua na vida coletiva, nas sociedades humanas, em que o estado de aglomerao faz despertar os instintos selvagens dos antropides e homens primitivos, que vi viam em tribos. Outra causa do medo a dor. Antes do sofrimento moral, a dor fsica, agindo nos centros nervosos do animal, determina o pavor do desconhecido e no homem cria o sentimento da morte. A dor moral tem um efeito idntico, o de despertar esse sentimento vago do medo, que est no incio da formao da conscincia humana. Durante essa reao fsica e moral do sofrimento, o esprito humano procura proteger-se do terror ancestral, que persiste na sua memria, e a imaginao lhe cria as foras tutelares, que o devem amparar na sua dor. E o efeito mgico do sofrimento moral o de criar a conscincia, que nos explica a nossa separao do Universo, que nos confina no nosso prprio

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    ser, que nos faz sentir o Infinito, que nos d a divina tentao de desaparecer para sempre no Todo universal. Nas relaes do indivduo com o mundo exterior do-se fatos que, causando espanto, ficam inexplicveis inteligncia. A necessidade de ligao de causas e efeitos, essencial ao esprito, transportada a esses fatos inexplicveis, revela a separao entre o indivduo e uma fora misteriosa, implacvel e fatal, que no reside positivamente nos outros indivduos ou objetos exteriores. A homogeneidade csmica est quebrada, e no indivduo o terror gerou a conscincia metafsica. Comea ento o ciclo da tragdia fundamental do esprito, e a vida passa a ser a dolorosa, infatigvel e mltipla expresso desse sentimento: a no conformidade com o cosmos. O terror csmico o princpio de toda a vida reflexa. A conscincia desse terror cria o sentimento do Universo, de um Todo infinito. A dualidade, eu o mundo, e a interpretao das foras ignoradas da natureza passam a ser a cogitao incessante do esprito humano. O sentimento da unidade do cosmos essencial conscincia antes da sua revelao metafsica pelo medo ou pela dor. O esprito tende sempre a voltar a essa unidade, que permanece como o estado profundo e ntimo da sua vida inconsciente. O sentimento do Infinito, a indeterminao dos seres, a fuso destes naquele sentimento, dominam a conscincia. E o esprito misticamente realiza esse sentimento ideal da unidade csmica nas manifestaes transcendentes da sua atividade. Sem a conscincia o Infinito no existiria, nem a Unidade, nem o ser, e sem o sentimento do Infinito no haveria religio, filosofia e arte, manifestaes da atividade do esprito, que realizam aquele sentimento da Unidade. Se o terror csmico estabeleceu a dualidade, a tremenda separao do Indivduo e do Universo, procuram a religio, a arte e a filosofia restabelecer a homogeneidade universal na indiscriminao dos seres, na integrao de todos os seres no Todo infinito. RELIGIO A Religio uma melancolia. O homem, diante do espetculo infatigvel da vida e da morte, do aparecimento e desaparecimento das cousas, sente-se triste, o pavor invade-lhe o esprito, e dessa melancolia nasce a nsia de atribuir um destino a si mesmo e ao Universo, de ligar os efeitos s causas e dominar o mistrio. Assim, a religio desponta na alma assombrada do homem primitivo e permanece na raiz do esprito humano, de onde a cultura dificilmente a extirpar. Enquanto existir um enigma no Universo, haver o sentimento religioso que, alm de ser uma funo psquica do terror, est ligado intensamente quela aspirao unidade do Todo infinito, que o surto irreprimvel e secreto do esprito humano. Por ele o homem se eleva da

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    animalidade ao vrtice da imaginao criadora, que comumente se chama espiritualidade, como para acentuar que todo o sentimento do Infinito uma pura idealizao, uma abstrao meta fsica, de que so incapazes os outros seres. E esta manifestao to inerente ao esprito humano que s por ela se poderia explicar a religiosidade essencial do homem, sem recorrer ao motivo inicial do espanto e do terror diante dos enigmas do Universo. Desde que o homem se sentiu separado das outras cousas, antes que a sua inteligncia pudesse interpretar cientificamente a natureza, os fenmenos da matria lhe apareceram como efeitos de cousas misteriosas animadoras do cosmos. O animismo a mais remota e racial expresso da religiosidade do homem perdido nas enigmticas aparies de um incognoscvel Universo. As suas razes so adstritas alma dos homens e embora caticas, essas ideias e imaginaes ancestrais formam para sempre o substractum da religiosidade humana. Assim, quando mais tarde, por uma elevao da inteligncia, surge a ideia e se organiza o culto de um deus nico ou de deuses, que so as expresses de um ideal de beleza superior, o esprito humano insatisfeito volta ao estado inicial dos seus primitivos sentimentos. Da o fetichismo indestrutvel, as supersties, que so o desmentido da onipotncia de Deus. Para o homem supersticioso h sempre algum mistrio tenebroso, que a religio oficial no explica nem resolve. Deus no basta. Alm de Deus, h o Terror, h a Fatalidade, h o Destino. A sedutora magia do mistrio inseparvel do homem. Se se levantasse o mapa moral da religio, ver-se-ia o fetichismo inexpugnvel nos povos mais cientificamente aparelhados para domar a natureza, no esprito dos homens mais senhores do misterioso imprio das cousas infinitas. Chamem-se essas mscaras modernas do animismo selvagem, espiritismo, teosofia, espiritualismo; por toda a parte aquele mesmo multiforme e persistente fetichismo, que escapa cincia e filosofia, zomba da cultura, nos encanta e aterra, e a manifestao concreta da pura abstrao da alma humana, do maravilhoso misticismo. A exaltao espiritual, que arrebata os homens para alm da realidade, transforma a inteligncia em sentimento e d o frmito infinito s ideias, s paixes e vem comprovar essa ardente aspirao unidade transcendental do Universo, que a nossa perptua nsia. Por essa suprema fuso de todas as cousas, em que se fragmenta o Todo infinito, voltamos grande e total inconscincia, escapamos dolorosa separao do nosso ser e do Universo. No fundo de todo o misticismo h uma realizao da unidade inconsciente e transcendental. No misticismo religioso a alma se julga uma emanao de Deus. A existncia na separao do seu Criador uma condenao, uma triste peregrinao suportada unicamente pela consoladora esperana de tornar Essncia de que emanou. A unio com Deus a vida perptua do mstico. o toque da divindade em ns, pelo qual somos um com o Universo. Nada mais divino do que a Unio, salvo o Um, exclamou Proclus.

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    O misticismo no limita o seu vago e ascensional encanto religio. Est em todos os sentimentos transcendentes. O grande Amor mstico como a paixo religiosa. Por ele se realiza a unio profunda dos dois seres. E nessa suprema unidade o Amor se torna mstico, porque ultrapassa as contingncias da matria, se espiritualiza na maravilhosa fuso das duas essncias que, pela magia do magnetismo dos seres, aboliram o espao e tudo o que limita, e se tornam infinitas e eternas. Assim, a Religio e o Amor se identificam na sua remota e alta significao. No vo sublime da idealidade o Amor religio, como a Religio amor. A felicidade suprema s se realiza na unio com o ser amado, seja Deus ou o Amante. Enquanto a grande mstica do Amor divino adora o amado Jesus como um Amante, aquela outra linda Teresa, mstica do amor humano, exclama ao seu amante: Leio a Imitao e tu s o meu Jesus! Os dois misticismos se encontram na mesma paixo sobrenatural, e tudo Religio. O amor se tornou mstico, um frmito do Infinito divinizou os Amantes. A mstica santa como a mstica amorosa podem dizer do ser amado: Toda a cousa que vive em ti somente viva, como no seu xtase exclamava Santa Maria Madalena de Pazzi, e ainda mais: Eu no sou nada, sou uma cousa que vem de ti, que s infinito. Todas as criaturas que compreendem o teu amor, tornam-se infinitas, porque compreendem as cousas infinitas. a mesma nsia do Infinito, o mesmo exaltado desejo da conformao total do nosso Ser no Universo. Na religio os sexos se atraem, como na paixo do amor, para realizar a unio mstica dos Amantes, suprema aspirao das nossas inquietaes no exlio do mundo. O animismo torna universal a Religio, porque pela sua magia tudo se vivifica, se espiritualiza e se diviniza. Esse animismo se engrandece desde as formas mais rudes e selvagens at ao pantesmo religioso de Buda e de S. Francisco de Assis. a mesma fora motora do esprito que faz de todas as expresses do Universo as mltiplas imagens da divindade, uma perptua e infinita representao da causa nica, de Deus. Produz-se na alma mstica o maravilhoso processo da humanizao de toda a natureza, que inspira a trama de uma fraternidade e liga os inumerveis seres, em que se fraciona o Todo. O Cntico ao Sol de S. Francisco, em que o pantesmo cristo alvorece, como toda a primavera do mundo adormecido, o primeiro toque da renascena do esprito moderno, a magnfica idealizao do culto solar dos selvagens, agora poesia, msica e alma da fraternidade de todas as cousas da natureza. Desse pantesmo, ainda impregnado do sentimento da permanncia individual, se chegar pelo misticismo quele conceito budista da negao da substncia real, do no-ser, do aniquilamento final do Universo, cuja existncia uma pura idealidade. Todas as formaes so passageiras, proclama o Buda, todas as formaes so sujeitas dor, todas as formaes so sem substncia real. Quando se est bem possudo desta verdade ltima, a libertao da dor. o caminho da perfeio.

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    Esse supremo conceito pantesta da religio se torna esttico. Para o mstico que chegou pelo surto espiritual a abolir a existncia individual de Deus, para animar e divinizar o Todo, a compreenso do Universo pura mente espetacular, o sublime jogo das foras da natureza que se multiplicam em imagens, so expresses cambiantes e infinitas das formas e das cousas. Assim, a Religio, a Arte e o Amor confluem maravilhosamente no esprito humano, vido de voltar grande inconscincia da natureza. Na aurora do esprito humano a religio e a filosofia se confundem e do do Universo a mesma viso. Pouco a pouca a investigao da matria, a interpretao cientfica da natureza criaram a filosofia e a distinguiram da pura religio. O senso religioso inseparvel do homem tornou-se filosfico. A filosofia veio principalmente apoiar a religio, quando, quebrando a unidade do Todo, institui a perturbadora dualidade do esprita e da matria. Reaparece a funo psquica do terror e de novo se volta, mesmo na extremada cultura da inteligncia, ao animismo primitivo, racial no homem. Procura-se ligar todos os efeitos s causas, remontando at causa nica criadora de todas as cousas. Repete-se com Parmnides que alm do movimento h o eterno repouso da substncia final, que atingiu ao mximo do seu desenvolvimento. A ideia de Deus se funde desse modo na metafsica do terror, no simples animismo. A religio afirma-se inexpugnvel no esprito do homem perdido na grande inconscincia do cosmos. A atividade do homem, a sua ao pertinaz, o seu combate de todos instantes com a natureza, nada extirpa da imaginao nascida do terror o sentimento religioso que funde todo o Universo no conceito de uma substncia criadora das outras formas, que Deus. Por mais que se vena a natureza e seja ela incorporada pela dominao ao nosso esprito, h sempre para a imaginao mstica do homem alguma cousa de inabordvel, de misterioso, que a cincia no pde domar. No espao infinito das trevas que assombram o esprito humano, trava-se o perptuo combate entre a religio e a cincia para a explicao final do Universo. A cincia no poder jamais satisfazer a nsia do esprito, que aspira realizar a unidade do cosmos. S h cincia do que fragmentrio. O supremo sentimento do Todo infinito se realiza pelas sensaes vagas e msticas da Religio, da Filosofia, da Arte e do Amor, que fundem o nosso ser no Universo. Se o terror o ponto de partida da religiosidade do homem, o terror desaparece, extingue-se, quando pela prpria religio se forma a suave unidade do nosso ser e do ser criador. Pela mxima espiritualidade da religio voltamos ao inefvel estado de inconscincia inicial de todos os seres indiscriminados no Todo infinito. FILOSOFIA

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    No h maior angstia do que a nossa separao do Todo universal. a dor suprema da inteligncia humana. A conscincia criou esse terrvel sofrimento; preciso que a conscincia o elimine pela compreenso da Unidade essencial do Todo, do qual a nossa distino apenas ilusria. Se podemos pensar o Universo, ainda para nos sentirmos um com ele, sentirmos que no somos uma realidade e que tornamos inconscincia profunda e eterna do Todo. Eis a inefvel consolao para a perptua dor em que se abisma o nosso ser ilusrio. Em vez dessa salutar concepo da substncia e dos seus fenmenos, as outras explicaes do Universo e do nosso eu, mantendo a separao entre um Criador e a cousa criada, distinguindo a matria e o esprito, s vm perpetuar a angus tia do ser que se compreende como eterna mente separado do Todo universal, prisioneiro de uma conscincia metafsica, que faz da iluso a imaginria realidade. A esta triste filosofia dualista opomos a radiante filosofia monista, que s ela pde suscitar a verdadeira esttica da vida. A interpretao cientfica do Universo, que o comeo da filosofia e emancipa da religio o esprito, distingue o monismo filosfico do monismo religioso, que reduz tudo unidade Deus. No perodo do puro animismo fetichista o homem no procura explicar os enigmas da natureza e reduzi-los s leis que seriam os germens da cincia do cosmos. O seu misticismo, ainda muito prximo do terror inicial da separao do Todo, integral, e por ele toda a matria divina, a expanso, a projeo de um ser criador remoto, tenebroso e temvel, Deus. Quando mais tarde, ainda na aurora da inteligncia, o homem desassocia os fenmenos da natureza e tenta explic-los e dom-los pelas leis, o Universo cessa de ser um todo para ser um conjunto de fragmentos. Esta decomposio da matria, este estudo dos fenmenos da natureza a cincia, que d ao homem uma viso fragmentaria do Todo infinito. O esprito humano no se pde restringir a essa imitao. Por uma fatalidade essencial, aspira entender o Universo, e a realizao da ideia transcendental do Todo infinito, sem distino de partes, o Todo absoluto, , como j vimos, o fato supremo da conscincia humana. E como o misticismo religioso desfaleceu diante da explicao cientfica dos fenmenos do Universo, o misticismo filosfico, que no desdenha a cincia e antes a funde numa grande unidade, floresce no esprito humano, ansioso de eliminar a sua dolorosa separao do Todo infinito. Desde os tempos mais remotos do pensamento, a filosofia, confundindo-se ainda com a religio, exprimiu a nsia dessa unidade ltima em que a nossa fugaz individualidade se extingue para sempre. O tormento da separao do homem e do Universo cessou para Orfeu, para Buda, mas nesses sistemas

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    primitivos a religio se confunde com a filosofia. O senso religioso se torna filosfico pela sua extenso, como a filosofia pela condensao se torna religio. A concepo monista do Nirvana poderia ser uma aparncia desse conceito supremo do Universo, que a base da esttica da vida. No h dvida que o budismo viu com justeza a alma individual permanente e imutvel, como o princpio que mantm a separao entre os seres, impede a libertao espiritual e perptua a dor. Tambm a hiptese do renascimento, a roda dos nascimentos do orfismo, o eterno retorno s mesmas formas e s mesmas existncias, seria a perpetuidade do mal, do sofrimento e a inextinguvel separao do ser e do Todo infinito. O Nirvana surge nessas terrveis, angstias do esprito, que busca a libertao da prpria existncia, como a feliz concepo da unidade final e absoluta do Universo. Mas esse termo ltimo a que se pde chegar em plena vida, e no pela morte, o fim de todo o desejo. Para o mstico do Nirvana toda a atividade uma expresso de dor; apropria contemplao do Universo, a meditao, o pensamento, o gozo transcendente da vida suprema do Todo so formas da permanncia individual, que nos afastam da beatitude, em que se extinguem para sempre o prazer e o sofrimento. A essa atitude passiva e incompatvel com a prpria natureza, que ela mesma a perptua ao, oporemos o conceito da unidade universal realizada pela prpria conscincia, que nos d a miragem sublime da inconscincia infinita. Para se atingir ao Nirvana, o budismo fixa uma lei moral. Para extinguir a dor necessria a piedade, a compaixo que se torna simpatia universal, solidariedade entre todos os seres do universo e responsabilidade de cada um para com a natureza inteira. O budismo se acentua mais como religio do que como filosofia. O aniquilamento do nosso prprio ser, que se pde compreender misticamente, luta, na realidade talvez ilusria, mas realidade para ns, com a natureza, que faz da conservao do ser a razo primeira da existncia. a observao de onde se originou, o princpio filosfico de Spinoza, de que toda a cousa em si se esfora em perseverar no seu ser. E da toda uma tica baseada nesta mxima: o esforo de um ser para se conservar o primeiro e nico fundamento da virtude. a oposio doutrina do budismo, que estabelece a tica contraria da dissoluo do ser individual no Todo infinito. Mas a concepo de Spinoza se alarga, quando procura conciliar o egosmo do ser com a simpatia universal entre todos os seres. Os homens, diz ele, nada podem desejar de melhor, para a conservao do prprio ser, que esse amor de todos em todas as cousas, que faz que todas as almas e todos os corpos formem por assim dizer uma s alma e um s corpo... Infelizmente, esse conceito, de uma vastido essencialmente pantesta, se termina no pensa mento de Spinoza como uma tica, em que o inconsciente

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    substitudo pelo consciente, pela vontade do bem, como uma necessidade, uma utilidade conservao do ser. E recamos no dualismo separador do Universo e do nosso eu. No se pde atingir a esta suprema fuso no universal, quando todos os conceitos relativos do bem, do til, do belo, enfim tudo o que individual persistir no nosso esprito. No h dvida que Spinoza se aproximou mais que ningum da concepo essencial da Unidade infinita dos seres, quando afirmou que o homem uma nfima parte da natureza eterna. A ideia da parte e do todo ainda uma ideia de separao. H uma unidade secreta e infrangvel na matria universal. Os seres que vemos distintos uns dos outros, participam todos dos mesmos elementos imorredouros e todos tm a mesma e indissolvel essncia fsica. Aqueles reinos, em que se costuma separar a natureza, so da mesma origem e da mesma substncia, e eles se entendem secretamente entre si. A teosofia hindu percebeu esse grande mistrio, quando assinalou na escala ascendente dos seres os minerais que aspiram ao reino vegetal e os vegetais que se tornam animais pelo desejo da perfeio, e atingindo todos a uma absoro definitiva no ser divino e recomeando impvidos a marcha forada e eterna do ser e do no ser, passando perpetuamente pelas mesmas vias dolorosas da peregrinao da existncia universal. Eliminando-se o que h a de mstico, subsiste inapagvel nessa esplendida imaginao a verdade absoluta da unidade essencial da Natureza, princpio em que se baseia a concepo esttica da vida. Esse princpio da unidade fundamental da matria universal exige como corolrio o conceito da mutao infinita dos seres, em que se fraciona aparentemente o Todo. O erro que proclama a permanncia imutvel de cada ser no seu prprio ser, aniquilando-se totalmente pela morte sem se transformar em ou trs expresses da matria e sem a comunicabilidade com toda a Natureza, de que um simples aspecto ilusrio, mantm no nosso esprito a perptua dor da nossa separao do Todo infinito. Ao passo que no conceito do Universo, como unidade infrangvel de toda a natureza, a vida dos seres seria a da perptua alegria pela eliminao do terror metafsico. Desse conceito transcendental, que exprime a Concepo esttica do Universo, como o perptuo fieri de formas infinitas e incessantes, origina-se toda uma tica para o esprito humano, em cuja conscincia se refletem instantaneamente a inconscincia universal e a magia do Todo. E no s por essa percepo, mas ainda para realizar em toda a sua plenitude a esttica da vida, o homem tem de realizar trs grandes movimentos espirituais. A filosofia da unidade uma filosofia de ao, que rejeita a passividade do Nirvana, proclama que s pela atividade o esprito se pde tornar um com o Universo, extinguir todas as separaes e fundir-se esplendidamente no Todo infinito. As

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    trs grandes disciplinas em que se baseia a tica desta esttica da vida, so: 1 - resignao fatalidade csmica; 2 - incorporao terra; 3 - ligao com os outros homens. So esses os trabalhos morais do homem dentro das categorias em que fatalmente tem de existir, Universo, Terra, Sociedade. Diante do Universo o homem, inspirado pelo puro pessimismo negativo, dir: a vida uma iluso, uma srie de imagens de uma realidade jamais atingida e jamais positiva. S a morte positiva, ela a entrada, o acesso do ser no absoluto inconsciente do Universo, o fim da iluso instantnea da conscincia, que aparece- como uma luz fugitiva na infinita indiferena da matria. Oh! a estupidez aterradora do Universo, a impassibilidade inabalvel e silenciosa da matria perpetuamente movei! A ausncia total da inteligncia, do pensamento, enquanto toda a matria se move, se agita e vive a vida inconsciente!... E o esprito do homem se confrange e jamais se resinar ao seu prprio aniquilamento no inconsciente csmico. Para aquele, porm, que, possudo do sentimento espetacular do Universo, afirma que no h um destino moral, nem poltico, nem religioso, um finalismo de qualquer ordem no perfeito jogo das foras da natureza, h o sentimento profundo de que o Universo se representa como um espetculo, em que s h formas, que se sucedem, multiplicam, morrem, revivem, numa metamorfose infatigvel e deslumbrante. Desse espetculo universal, somos uma apario fantstica e passageira e, na inconscincia da representao, da vida se forma, se abre um intervalo, quando uma dessas aparies instantneas do mundo fenomenal, que somos ns, pde conceber a magia do Universo. a maravilha da conscincia, o espelho divino do Universo, que reluz por entre as trevas profundas do inconsciente absoluto e no infinito e inquebrantvel silncio dos outros seres. Esse conceito esttico do Universo a base da perfeio. A manumisso do nosso esprito, a libertao da dor e da Alegria a alcanamos quando esse conceito filosfico se transforma em sentimento. A vida esttica se abrir para ns em todo o seu mistrio fascinador. Como j se disse daqueles pensamentos to leves que no podem ser pensados, esse sentimento da esttica universal to subtil que no pde ser sentido... Existe e no se exprime, mesmo no se sabe como sentido, porque no chega a se separar da inconscincia profunda, em cujas ondas voga como uma vibrao inominvel. E ns nos absorvemos nesse mundo fenomenal, em que tudo forma ou iluso das formas. Ainda assim, a vida a criao do nosso pensamento, e sem ele esse mundo mgico pde existir, mas como se no existisse, e nem mesmo pde ser concebido... E no h fim na corrente indefinida da criao. A prpria obra de arte representao, mas a ela se junta outra criao, a do simples esprito, que se

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    comove e a transforma em cousa sua. O nosso pensamento obedece, como a natureza, ao ritmo do Universo, fatalidade de criar formas. E ns pensamos o nosso prprio pensamento, uma imensa vertigem nos empolga e camos nesse abismo de imagens, que no sabemos se so os aspectos reais das cousas ou as iluses da ideia criadora. Nessa conformao entre o pensamento e a Natureza, tudo um s e indefinido mundo de representao, tudo espetculo, e ningum pde dizer se h um mundo objetivo e outro subjetivo, porque tudo um, a unidade absoluta e benfazeja do Universo. A grande fatalidade do esprito humano foi ter percebido o espetculo universal. Mas, que essa divina alucinao inspire o sentimento da esttica da vida. Faamos de todas as nossas sensaes, sensaes de arte. a grande trans formao de todos os valores da existncia. No s a forma, a cor, o som, mas tambm a alegria e a dor e todas as emoes da vida sejam compreendidas como expresses do Universo. Sejam para ns puras emoes estticas, iluses do espetculo misterioso e divino, que nos empolguem, nos arrebatem, nos confundam na Unidade essencial de todas as cousas, cujo silncio augusto e terrvel perturbamos um instante pela conscincia que se abriu, como um relmpago, nas trevas do acaso... A cultura h de se inspirar nesse conceito e h de abandonar todos os outros que fazem da vida um debate moral. E ser a libertao. Passaremos a ter a conscincia de que somos uma fora entre as foras universais, e assim entramos na vida eterna, na vida da natureza, realizando com esta a comunho absoluta e misteriosa, que o termo final da dolorosa separao do nosso eu do Todo infinito. Possudos desse sentimento da universalidade do nosso prprio ser, a outra atividade espiritual a que somos chamados, a da nossa incorporao Terra. Nascido da Terra, o homem ficou para sempre ligado a ela. Todo o seu organismo uma expresso do meio fsico, de que se originou. Nada no corpo humano que no seja uma imorredoura reminiscncia da sua formao terrena. O seu sangue bate ainda o ritmo das quentes mars dos primitivos oceanos, em que se germinou a vida animal. A histria da Terra se gravou no nosso organismo e ns a resumimos. Parecendo ser um prolongamento do meio fsico de que pro viemos, somos apenas uma recapitulao. Tudo em ns a Terra vivificadora e magnfica. A composio qumica dos seus minerais, a combinao mineral dos seus vegetais, tudo se encontra em ns: a nossa vibrao a sua, as molculas do nosso corpo e tudo o que mais secreto em ns participa do mistrio da Terra, vivemos dela perpetuamente, unidos a ela para sempre na vida e na morte. Filho da Terra, o homem d-lhe a alma. Ele a inteligncia, a fora subtil e imortal que lhe cria uma personalidade e a faz divina. A nossa histria moral se

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    passou intimamente com ela. Do seu mistrio vieram os fantasmas, os deuses da nossa alma primitiva e de sempre... Do seu inconsciente nasceu o nosso consciente. Ora, por essa suprema identificao, devemos fazer da Terra o centro espiritual da nossa atividade. O seu culto um exerccio de amor, que reconhece que o homem e a Terra so um s. Faamos dessa compreenso uma expresso esttica do nosso esprito, e ser uma vitria sobre o terror. O maior repouso da natureza humana a sua identificao com a natureza universal. Ser um com o Universo! E o conhecimento que leva a esse repouso o maior dos conhecimentos. A outra categoria em que o homem deve exercer a sua atividade espiritual, a da ligao com os outros homens. Esse mandamento no inspirado por nenhuma razo de ordem religiosa, por nenhum misticismo de piedade ou de simpatia, como no cristianismo ou no budismo. Ele a deduo lgica da prpria concepo filosfica da unidade do Todo e uma das bases da esttica da vida. A aspirao fundamental do esprito humano, a sua essncia, a sua fuso no Universo. Se o homem diz: eu penso, logo eu sou, afirmando" que ele um ser, no se deve concluir desse conceito: que a sua individualidade se desprende das outras cousas; ao contrrio, uma confirmao de que ele um com tudo mais, e toda a natureza vive nele, como ele em toda a natureza. No h nada individual ou particular, tudo universal, e o prprio pensamento funo dessa universalidade. Ora, se essa comunho essencial entre os seres em que se fracionou a iluso do Universo, ela no pde deixar de inspirar a sociedade dos homens, isto , de todos os seres que percebem na sua conscincia a grande inconscincia metafsica do Todo, a idealidade do Tempo, o fluxo e o refluxo aparente da vida e da morte. E nessa solidariedade profunda as causas de separao entre os homens, ftil distino para aqueles que vivem na trgica amargura das separaes, que a nossa distino individual do Todo infinito, seriam extintas separaes criadas pelo Terror, mesquinhos dios humanos que s servem para aumentar a imensa tristeza dos nossos espritos. A concepo esttica do Universo, dando ao homem a luminosa compreenso da sua unidade com o Todo infinito, eliminaria o Terror da vida humana, basearia a sociabilidade na Alegria, que, segundo percebeu Spinoza, o bem supremo. E a alegria, que a perfeio do esprito humano, s se pde realizar em sua plenitude pela interpretao do Universo como um magnfico espetculo e ns mesmos como puros, simples e fugazes elementos estticos da indefinvel vida universal.

    A PERPTUA DOR E A PERPTUA ALEGRIA Aquele que compreende o Universo como uma dualidade de alma e corpo, de esprito e matria, de criador e criatura, vive na perptua dor.

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    Aquele que v toda a natureza universal terminada no seu prprio ser, vive na perptua dor. Aquele que no percebe o mistrio da Unidade infinita do Todo, que ignora esse segredo supremo da existncia e limita o seu conheci mento aos fatos positivos da matria, vive na perptua dor... Aquele que eliminou o terror do cosmos e faz do aniquilamento da vida uma razo de beleza, vive na perptua alegria... Aquele que transforma em beleza todas as emoes, sejam de melancolia, de tristeza, prazer ou dor, vive na perptua alegria. Aquele que se sente um com o Universo infinito e para quem todas as expresses da vida universal so suas prprias sensaes, vive na perptua alegria... Aquele que encontra o repouso na sua absoro no cosmos, vive na perptua alegria. Beatus quia in natura unus. Aquele que pelas sensaes vagas da forma, da cor e do som, se transporta ao sentimento universal e se funde no Todo infinito, vive na perptua alegria. Aquele que sabe que o seu ser no permanente, mas uma simples apario do Nada, que se transforma indefinidamente, vive na perptua alegria. Aquele que sabe ser a sua conscincia uma iluso, que no tardar a voltar inconscincia universal, e faz da sua existncia o jogo maravilhoso dessa iluso, vive na perptua alegria... Aquele que se resina fatalidade csmica, que se incorpora Terra e a busca a longnqua e perene raiz da sua vida; aquele que se liga docemente aos outros seres, seus fugazes companheiros na iluso universal, que se vo todos abismando no Nada, vive na perptua alegria. Aquele que une o seu ser a outro ser nessa profunda e mstica unio dos sentidos e das emoes, dos espritos e dos corpos, e na sublime fuso do Amor realiza a universal unidade, esse vive na perptua alegria... ARTE Na trgica situao do homem no Universo, o sentimento predominante no seu esprito o da unidade infinita do Todo. Pela compreenso, pela inteligncia, o homem chega ao conhecimento exato das partes em que se fragmenta e se

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    decompe o Universo. Mas o esprito humano vai alm dos limites da cincia e da compreenso, sente que o Universo essencialmente um todo infinito aparentemente fracionado. O sentimento dessa unidade, quando se realiza pelos contactos sensveis com a natureza, pelos sentidos corporais, transportando as sensaes at altura de emoes vagas, indefinidas do Todo, constitui a essncia da arte. Esse senso esttico inerente ao homem, como o senso religioso, com o qual se assemelha, sendo que a arte reside na emoo do Universo que provem dos contactos do homem com a natureza e transmitida pelos sentidos, produzindo-se em formas, cores, sons, sabores e tactos, e a emoo religiosa abstrata e independente dessas expresses sensveis. Sendo uma funo inseparvel e primordial do esprito humano, o sentimento esttico, como o religioso, no est subordinado a uma razo de utilidade social. uma faculdade essencial ao esprito, como a de pensar e de imaginar, e uma das manifestaes psquicas da unidade primitiva do Todo, cuja realizao transcendente a suprema aspirao do homem no degredo da conscincia metafsica. A arte indiferente utilidade. A emoo originada da forma ou do som, a que nos vem da pintura, da escultura ou da msica, inteiramente estranha ao til. Essas emoes nascem das sensaes e nos do o sentimento vago do Universo. Como, pois, considerar o til o princpio gerador da emoo esttica? A ideia de utilidade no est na origem nem no fim do sentimento da arte. Se alguma cousa de til pde resultar da sensao do Universo, o conhecimento das suas partes, que a cincia nos comunica pela analise. A cincia decompe o Universo, discrimina-o, estuda-o nas suas manifestaes parciais. S h cincia do que se pde fragmentar. Pode-se analisar, explicar cada ordem de fenmenos percebida pela sensao; a cincia no dar jamais a explicao sinttica do Todo, a essncia da causalidade. Ela ficar estranha ao sentimento da unidade infinita do Universo, que s nos pde ser revelada pela religio, pela filosofia, pela arte. A interpretao esttica do Universo, funo ntima do esprito humano, no obedece a nenhum plano da natureza e nem a um princpio de utilidade social. Antes da sociedade humana est o esprito do homem com as suas foras msticas, independentes e desinteressadas. A natureza no tem um fim moral, religioso ou filosfico. A sua inconscincia absoluta, e a iluso de sua vontade fictcia est na magia do seu prprio espetculo, perpetuamente sedutor. Refletir esse espetculo universal, transmitir a iluso dessa realidade, que se ilude a si mesma, no deixar fora do prisma nenhum insignificante e misterioso personagem da existncia total o milagre da arte. No somente da utilidade, da ideia do til, que o conceito da arte deve ser desassociado. Tambm se deve libertar da ideia de beleza, atribuda como o fim supremo da arte. A associao da ideia de beleza ideia de arte perturbadora para a verdadeira explicao do sentimento esttico. Nenhum preconceito tem

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    sido mais vivo do que este que faz do belo o fim da arte e a sua razo de ser. A essncia da arte, que est naqueles sentimentos vagos da unidade do Universo comunicados pelos contactos sensveis, no se pde restringir ao conceito abstrato do belo. A arte no reside somente naquela sensao indeterminada do que convencionalmente se chama beleza. Esse conceito do belo no abrangeria o sentimento da unidade infinita do Todo, j denominado o fato supremo do esprito humano. Alheio a ele, limitar-se-ia a suscitar o prazer, sem chegar totalidade transcendente da emoo esttica. Que a beleza? Como precisar a ideia do belo? Nada mais indefinvel e incerto. A beleza em si, a beleza objetiva, uma ideia abstrata, cujo subjetivismo infinitamente varivel. O belo um perptuo equvoco entre os homens. Subordinar ainda a ideia de beleza ideia de harmonia um simples jogo de palavras, que no vem esclarecer o problema e substitui uma ideia vaga por outra do mesmo valor. A ideia de harmonia tambm incerta e convencional; um preconceito geomtrico que pro vem da tradio grega. A beleza no lhe est indefinidamente associada e existe fora do seu imprio. A ideia de beleza indefinvel, e o idelogo Pascal, mesmo, percebeu a sua relatividade, quando reconheceu que apesar de gravada em caracteres indelveis no fundo da nossa alma, a ideia de beleza est sujeita a enormes contingncias na sua aplicao. Compreendendo que o elemento pessoal fatalmente determina a ideia que cada um forma da beleza, diz Stendhal que a beleza uma promessa de felicidade. Pura frmula subjetiva, que associa a beleza ao prazer, alegria, mas que, sendo uma ideia incompleta, no a base, a razo nica da emoo esttica e fica independente da arte. J se disse que por essa sedutora promessa do prazer, Stendhal fazia pensar na beleza feminina, que seria o espelho imaginrio do belo absoluto e ideal. Assim reduzida, a beleza, que seria a beleza humana, ou mais restritamente a beleza da mulher, no pde conter toda a arte. H mil outras emoes artsticas que lhe so estranhas. Como se explicaria a emoo musical? a que nos vem da arquitetura? A beleza no a essncia da arte, que sempre exprime a totalidade universal pelos sentimentos vagos nascidos dos contactos sensveis. A felicidade o bem, e o bem a alegria. A beleza, promessa da felicidade, seria a promessa da alegria, e h uma arte inspirada do terror e gerada pela dor. Tudo isto de ordem sentimental e alheio expresso objetiva das cousas, s formas, s cores, aos sons, aos tactos e emoo potica criada pela imaginao. A ideia do prazer e da felicidade abrange ainda o que est alm do mundo sensvel das formas. A alegria mstica do esprito religioso em comunho perptua com a divindade um gozo inefvel, mas independente da arte. Aqueles que no percebem no sentimento esttico o sentimento do Infinito no esprito humano, misteriosa emoo da unidade do Todo infinito, limitam-se a ver na arte um desenvolvimento dessa faculdade muscular dos animais, cujo excesso se manifesta no jogo e no divertimento. Esta teoria remonta a Hume e

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    foi adotada por Kant, para quem a arte o livre jogo da nossa imaginao e do nosso sentimento, e por Schiller, que proclamou no jogo a essncia da arte. A escola evolucionista de Spencer, Grant Allen, Guyau e Ribot apoderou-se dessa explicao para determinar a origem do sentimento do homem na impulso para o jogo, j manifestada pelos animais, como efeito da nutrio e do excesso de fora nervosa. Para esses psiclogos a emoo esttica difere das outras emoes conservadoras do homem social, porque a atividade que a produz no tem por fim o cumprimento de uma funo til e social, mas o prazer mesmo de exerc-la. No vital para o homem, no lhe essencial, e pde ser considerada intil e suprflua. Desassociando assim por um instante a ideia de utilidade da ideia de arte, a escola evolucionista se contradiz, quando afirma de novo que a emoo esttica um fator da sociabilidade humana, til conservao do indivduo e da espcie. Tal a mesquinhez a que fica reduzido o inefvel sentimento esttico que nos d a emoo do Infinito! Afirmam que a atividade inicial das nossas faculdades fsicas e morais se subordina a um fim imediato, que o da conservao do indivduo e a adaptao deste ao meio, como se a faculdade de pensar a matria, de imaginar um deus, ou de se comover pelo sentimento da unidade do Todo, fossem atividades destinadas ao fim da conservao da espcie humana. O jogo um dos efeitos, uma das expresses da arte e no a razo do senso esttico; est mais ligado fisiologia dos movimentos, mecnica animal do que ao sentimento. Os animais so desprovidos de senso artstico, porque lhes falta o sentimento do Universo, causa primordial da emoo esttica, como da filosofia, da religio e do amor. Para mostrar a transio entre o jogo, movimento inconsciente de prazer, e o jogo criao artstica, aponta-se geralmente a dana como a arte mais primitiva, aquela que representaria a passagem do movimento fisiolgico ao sentimento esttico. H uma precedncia entre as artes? h verdadeiramente uma hierarquia entre elas? No o aparecimento das artes simultneo no remoto e indeciso instante em que o esprito humano se comove no terror do mistrio do cosmos? Quando o homem primitivo manifestou a sua alegria de viver ou disfarou a angstia da sua alma, protegendo-se das calamidades da natureza, esculpindo nas rochas a imagem dos animais seus companheiros ou seus deuses, danando no pavor da noite ou ao esplendor do sol, gritando e modulando o seu xtase rude, um artista selvagem complexo e total, um arquiteto, um escultor, um danarino, um msico, surgiam ao mesmo tempo da conscincia metafsica desse terror inicial, que marca a separao do homem e do Universo. Por terem as artes essa mesma origem mis tica e simultnea, no se segue que o desenvolvimento de cada uma delas tenha sido desassociado e desigual. A

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    evoluo das artes se explica pela prpria evoluo do esprito humano. Como o misticismo religioso recebe as influncias da evoluo social, assim tambm a arte e a filosofia, que so expresses da inteligncia. O amor poderia ser considerado imvel na sua essncia, na sua fatalidade inconsciente, mas a sua espiritualidade fica dependente do ambiente social e da transcendncia moral dos amantes, portanto da evoluo do esprito humano. E nessa determinao individual e coletiva, que modifica o pensamento e o sentimento, tem-se a explicao do desenvolvimento desigual das artes. H pocas de escultura, como de pintura e de msica. A escultura foi uma arte preponderante na Grcia, no s pelas condies fsicas e sociais conhecidas, como tambm, e assim percebeu Schopenhauer, por ser uma arte em que o otimismo pago se reflete na reproduo da figura forte e serena dos deuses alegres de viver, e dos homens que parece terem descido do Parnaso e pousado um instante na atmosfera suave da terra. A pintura triunfante na Renascena a do homem cristo, a expresso dolorosa, enigmtica de uma alma que sente que tudo nada, devorada pelo pessimismo, e pede loucura sensual o frentico esquecimento. Mais tarde, em nosso tempo, a pintura se alarga, o assunto humano no lhe exclusivo, o cristianismo no a absorve completamente; outro personagem intervm, a Natureza. E esse movimento coincide com o surto do pantesmo filosfico e literrio. O eixo do mundo moral mais uma vez fica deslocado. Na Grcia os deuses, na Renascena o homem, nos tempos modernos a Natureza. Ainda como exemplo da influncia da cultura geral na transformao da arte, notemos, sob o ponto de vista estritamente artstico e formal, o que era a escultura na Grcia e o que ela hoje, depois do advento da biologia. Para o artista grego o homem um deus, que desceu terra. Para Rodin o homem um animal que vem da natureza e sobe do gorila. Na primeira concepo a arte representativa da harmonia geomtrica de um conceito religioso; na segunda, a arte biolgica e entranhadamente animal. Mas em ambas a essncia da arte escultural se manifesta esplendidamente. intil insistir no destino da arquitetura em obedincia s transformaes espirituais do homem e s condies da vida coletiva da humanidade. Seja o tringulo do Parthenon, seja a esguia torre gtica, seja a ampla linha horizontal de palcio, seja a nua e vasta oficina, em tudo a arte eterna exprime a perptua tragdia do esprito humano por entre as modalidades da civilizao. O magnfico surto da msica contempornea corresponde ao esprito de uma poca, em que a unidade da Natureza a base e a inspirao do pensamento. Nenhuma outra arte poderia exprimir com mais segurana e mais emoo os sentimentos vagos determinados pela intuio da unidade do Todo infinito do que a msica, que a mais vaga e a mais emotiva das artes. Pela sua fluidez ela transforma a natureza em sentimento; no se limitando a interpretar, ela realiza

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    a Unidade universal. Wagner notou com exatido onde as outras artes dizem: isto significa, a msica diz: isto . O enigma do repentino e maravilhoso perodo musical do nosso tempo fica resolvido pela prpria essncia da arte, e no, como querem os puros fisiologistas, pelo aperfeioamento do sentido do ouvido. A msica a arte que realiza melhor e mais rapidamente a fuso do nosso esprito com o Todo. Parece que por ela os seres se unem, que o espao, tudo o que separa, desaparece, o Universo se restringe e faz um s corpo com tudo o que existe. Se tal a magia da msica, que usa do seu poder ilimitado para transmitir a emoo total do Infinito, as outras artes tambm pelos seus meios de expresso comunicam e interpretam os sentimentos vagos da unidade universal. Pela dana o ser humano exprime essa emoo. O puro gesto seria mecnico e animal, uma simples manifestao do ser que vive e se agita. Quando, porm, esse movimento inspirado por um pensamento, embora muito obscuro, e vem traduzir uma emoo ntima, a dana aparece nesse primitivo ritmo. Pela dana o homem manifestou as suas rudimentares emoes msticas e o vago terror da natureza, O sentimento remoto da religio se exprimiu pela dana, quando o homem se agitou diante do sol e das outras divindades naturais, implorando proteo. O pensamento transformou em arte essa primeira sutura entre os gestos animais, o puro divertimento fisiolgico e o movimento reflexo da comoo religiosa. O artista da dana se torna um artista criador como os intrpretes das outras artes. O danarino reproduz nas suas atitudes as imagens que lhe vm ao crebro para exprimir os sentimentos. Ele v a srie do seu pensamento exteriorizar-se em figuras como uma sucesso de esttuas em movimento, e essas formas reproduzem a sua prpria forma multiplicada, variada infinitamente. Se no correr dos tempos a dana se associou msica e poesia, a sua dissociao destas artes possvel, e assim voltaria a dana sua qualidade primitiva e seria ainda mais mstica e silenciosa, porque a emoo do artista s seria manifestada por unhas mveis, silentes, sem o grito da alegria e do medo, que animava a gesticulao do danarino selvagem. Sem dvida, no aparecimento simultneo das artes, no foi a dana que deu origem escultura, mas a sua influncia na estaturia foi decisiva. A escultura surpreende e fixa os movimentos desenvolvidos na dana, sugestionando ao esprito a continuao desses movimentos. A forma uma expresso csmica e o movimento a vida universal na forma. Na esttua, o que fascina e atrai o repouso, a necessidade que o nosso esprito tem da continuao do movimento, que no se produz materialmente, mas que se completa na nossa imaginaro. Na dana a esttua est em movimento, tem-se a sensao do vago, do perptuo fieri, da continua vibrao do Universo, qu passa e se transforma

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    indefinidamente, como se o corpo humano fosse a forma infinita mltipla, impalpvel, do fluido... A escultura por sua vez s deve reproduzir os corpos que se movem ou se podem mover. Se um escultor quisesse reproduzir uma montanha, uma rvore, seria uma obra sem movimento, destituda de interesse artstico. O sentimento este tico da escultura est na indicao de um movimento, que se imagina prolongando-se, desenvolvendo-se sucessivamente. O homem que anda, deve andar. O cavalo que galopa, deve continuar o movimento, e se a obra de arte escultural impe ao espectador essa solicitao do movimento indicado, uma obra de arte animada por aquele sentimento vago, que a essncia da arte. Por esta interpretao da essncia da arte na escultura fica resolvido o que Schopenhauer chamou o problema de Lacoonte, para o qual no trouxe soluo aceitvel. O grito de Lacoonte, indicado em todas as expresses da figura no instante em que a serpente o morde, sugestionado com muita preciso pelo movimento iniciado. Pela imaginao ns o completamos, e sentimos logicamente que o velho sacerdote gritava, enquanto o animal o picava violentamente. Schopenhauer acha que a atitude de gritar fixada no mrmore ou na pedra ridcula e tira o carter trgico a esse famoso grupo. A explicao de Goethe mais feliz. Ningum, como Goethe, pressentiu a essncia da arte na escultura, antes da interpretao que damos. sua analise do grupo de Lacoonte extremamente lcida e se ajusta teoria que nos parece agora definitiva. Esta obra, diz ele, muito notvel pela escolha do momento. Se uma obra plstica deve mover-se realmente aos olhos nossos, preciso escolher um momento de transio. Um instante mais cedo nenhuma parte do conjunto devia estar nessa posio, e um instante depois cada parte ser forada a deix-la. Para bem compreender-se a inteno da obra de arte que o Lacoonte, coloquemo-nos a uma certa distncia, de olhos fechados. Abertos os olhos e logo cerrados, ver-se- todo o mrmore em movimento e ter-se- receio de achar todo o grupo mudado, quando os olhos se abrirem. O movimento continuo e perpetuamente solicitado pelo nosso esprito exprime a arte na escultura. O grito de Lacoonte escultura! e trgico, como o grito que sai da figura da Marselhesa no grupo do Dpart de Rude. Esta solicitao do movimento no esprito do espectador o segredo esttico da contemplao do avio em marcha no espao. O avio nos comove pelo mistrio, pelo seu vo transcendente, pelo risco, por aquilo que no devia ser e que , o espanto do fato assombroso fora da tradio. Ao mesmo tempo, junte-se a essa emoo fundamental a que sugere esse simulacro de pssaro de grandes asas que pairam longnquas no ar e no se movem, enquanto paradoxalmente a nave viaja serena. H uma nsia pelo movimento que no vem, e nessa nsia cada espectador um artista.

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    Naturalmente, no ritmo da obra de arte se reflete o esprito das raas e do tempo. A estaturia grega representa o movimento na estabilidade, sinal de medida e de reteno do gnio grego. Os modernos exprimem o desencadeamento das cousas, ignorado dos antigos. A lio dos gregos foi fecunda para manter o equilbrio tcnico das obras de arte, mesmo nos gnios mais livres, como Miguel ngelo. Basta contemplar os frescos da Capela Sistina para se verificar que na exuberncia do Juzo Final a medida intervm para evitar o grotesco. Assim, o Deus poderoso, ardente de vida, faz surgir do chos o homem, a mulher, os astros e em seguida, na possesso de criar, corre pelo espao, e Miguel ngelo o representa de bruos, com as imensas costas volumosas, mas a figura no ridcula nem desmedida. A maravilhosa mo de Deus vai pelo Armamento criando sempre, sem violncia, quase doce mente... Desde a exaltada Idade Mdia, de passagem pela fremente Renascena, o movimento da escultura tem o ritmo da sensibilidade que a disciplina grega desconheceu para dar forma uma expresso impassvel. Essa sensibilidade a dos escultores das idades modernas, de Donatelo, Miguel ngelo, Luca della Robbia, Rude, Barrye, Rodin. Quando um grande escultor como Rodin, capaz de executar obras do mais puro modelado clssico, comete aparentes imperfeies, preciso explic-las como reclamadas pela sensibilidade artstica, por um sentimento profundo de arte, que corresponde a uma emoo diferente da emoo grega e est no inconsciente da alma moderna. O inacabado das obras de Rodin no um sinal de imperfeio, nem mesmo uma extravagncia para se singularizar e provocar a ateno. Tambm no uma zombaria do seu esprito artista, que queira rir dos seus prprios admiradores e do pblico incompetente. Esse inacabado intencional, um efeito artstico que acentua a sensibilidade da escultura. Rodin seguiu o exemplo de Miguel ngelo, que tambm no acabou expressamente muitas obras, como a esttua da Neve, e deixou no vago outras, como a Noite. um meio de acentuar a impresso. O no-acabado dessas esculturas torna mais viva a obra de arte, como na pintura o colorido d vida ao desenho. No nessa emoo vinda da ideia do movimento propriamente escultura! que se encontra a essncia da arte da pintura. O prprio de cada arte comover-nos pelas suas expresses particulares e especiais. A pintura nos deve dar a emoo vaga do Universo pela forma e pela cor, como a escultura pela linha, pelo movimento, pela luz e pela sombra. Quando vemos um quadro, o senso artstico se revela em ns, a emoo se desperta pela sensao das cores e das formas. O assunto do quadro uma impresso de ordem secundaria para o prazer esttico que a pintura nos deve comunicar. Os indivduos dotados de senso artstico limitado, ou mal educado, procuram ver no quadro o que ele representa, isto , a anedota, o episdio, seja este de ordem histrica, geral, ou mesmo particular ou familiar. Ao passo que o artista criador, o artista que pintou o quadro, no fez mais do que exprimir a sua emoo ntima, que a cor, a distribuio da luz, a

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    cor por ela mesma e a forma pela sua divina projeo no espao provocam no seu esprito, ansioso de fixar e comunicar esse xtase esttico da emoo de cousas subtis, intangveis, como a cor e a forma, que nos torna infinitos e universais. No h dvida que entre a forma e a cor deve haver uma ntima correlao. O quadro, para produzir a sensao esttica integral, ter o desenho e a cor que lhe so indispensveis. Rodin notou com exatido que as cores empregadas nos quadros de Rafael so reclamadas pelo desenho e as que se harmonizam com o assunto e melhor exprimem o sentimento do artista. Rodin assinala o predomnio das sensaes intelectuais da obra de arte nas puras sensaes estticas. No entanto, estas so independentes daquelas. A graa, a facilidade, o capricho, o trao em si mesmo de um desenho produzem emoes puras, alheias s ideias sugeridas pelo quadro, por mais abstratas que sejam estas. O verdadeiro artista aquele que se comove pelos meios prprios e simples de cada arte; aquele que sente o xtase musical pela audio do som, de uma nota independente do assunto do soneto ou do drama; aquele que se extasia pela cor e pela forma em si mesmas, sem se preocupar se esta cor ou esta forma esto aplicadas a uma anedota social ou familiar; que v a esttua ou o quadro, e a primeira emoo que recebe a que lhe vem diretamente da forma e da cor, embora mais tarde perceba que essa forma e essa cor so as de um personagem ou do assunto, que a esttua e o quadro procuram representar. Pela hierarquia dessas emoes se distingue o artista daquele que o no , pois nos indivduos menos dotados do senso artstico o interesse pelo assunto da obra de arte mais considervel que as genunas e vagas emoes estticas. Quando se colocam no seu verdadeiro plano gradativo as vrias emoes que nos causam as obras de arte, verifica-se que no h razo para se repelir o esforo dos artistas, que, desassociando essas emoes, procuram comunicar aquelas que so exclusivamente artsticas, por mais originais e inovadoras que paream. As dissonncias musicais, o cubismo e outras transformaes de valores artsticos obedecem a esse movimente ntimo, que aspira a realar a expresso essencial de cada arte e transmitir a emoo esttica pelos seus meios absolutos, emancipados de toda a relatividade. E no h dvida que, por mais estranho que seja, esse movimento de extravagante aparncia e contrrio tradio foi benfico para a progresso do sentimento esttico. A msica se enriqueceu de novos ritmos e o cubismo trouxe pintura maior largueza e maior preciso no desenho pela representao total dos volumes. Foi um importante servio tcnica artstica, interessando naturalmente sensibilidade. Esta se desprende do que tangvel e vai alm da linha e da forma. A impresso que vem da arte, o ideal, o indefinvel, o vago, o resto... E ela est por toda aparte. Tome-se uma rosa: h o colorido, o movimento ondulante das ptalas, as curvas voluptuosas; h tambm a irradiao, e ainda mais a atmosfera profunda e misteriosa da cor e da forma, o indefinvel que

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    paira e se evola e a essncia da flor. A pintura atinge a essa expresso suprema, como na Gioconda, que o retrato desse mistrio, o retrato da rosa. Pela evocao do abstrato e do indivisvel, nenhuma arte superior poesia, que nessa sugesto profunda e vaga tem a sua verdadeira essncia. Plato assinalou essa fora mgica de transposio particular poesia, que exprime em geral toda a ao que faz passar uma cousa do no ser ao estado de ser. A poesia comea onde a arte acaba... O sublime jogo da inteligncia que, pela imaginao, nos arrebata alm do mundo sensvel, o ato maravilhoso do Verbo. Ao prodgio evocativo das imagens acrescente-se o encanto sugestivo da msica e da cor, sensaes que emanam das palavras. Toda a matria sonora e toda a matria visvel se animam indefinidamente na imaginao pela magia verbal. No h dvida, porm, que o pensamento e a ideia, elementos essenciais da poesia e da literatura, so limitaes pura emoo esttica. O assunto uma restrio, que torna a poesia menos geral e mais intelectual do que as outras artes, as quais exprimem a emoo por meios sensveis mais diretos, como o som, a luz, a linha, a forma e a cor. Na poesia, pelos contactos sensveis das palavras, o esprito humano levado ao sentimento vago da unidade infinita do Universo. Por essa emoo o artista, o poeta, sente-se um com o Todo infinito e torna-se o criador do Universo. O criador no o que prescreve o bem e o mal, mas o que faz do Universo o seu espetculo. A funo por excelncia do esprito humano a da criao. Viver criar, e nesse poder de criar o homem chega a criar um criador para si e para todas as cousas. A transformao da realidade em uma criao prpria cada inteligncia uma fatalidade. Pode-se dizer que se vive no meio de fantasmas, e que nas trevas da matria s essas miragens vivem, se agitam e nos conduzem. A obra de arte a criao que representa a vida, mas a interpretao da obra de arte outra criao. O sentimento que a obra de arte produz em ns, uma criao rival da criao do artista. Cada homem um artista tosco, primitivo ou sublime, porque cada homem representa, interpreta, produz imagens, que so formas, cores ou harmonias ntimas, profundas, a msica secreta da alma. O instante da criao ou da emoo artstica como o de uma magia que viesse ao esprito pelo adormecimento das sensaes da resistncia individual para nos levar fuso infinita no Universo. O individual do nosso ser se torna universal pela arte. A natureza exerce desse modo a sua funo esttica, porque, como a obra de arte, ela sugere sentimentos e no se limita simples expresso destes. Para o artista os sons musicais da Natureza, os murmrios do vento, o rudo das rvores, o canto dos pssaros, a msica das guas so to sugestivas de emoes intelectuais como as harmonias de uma orquestra. E, assim, a linha, a

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    cor, a forma e tudo o que fantasia na expresso inesgotvel da matria. Na contemplao do mundo e na sua interpretao o homem se revela essencialmente um animal artista. O sentimento esttico do Universo a funo mgica do inconsciente e estende-se vida toda do homem, que uma perptua e integral criao artstica. A arte inseparvel do homem e a sua dominao se exerce na existncia humana ainda mais intensamente que a da religio. O homem pde deixar de ser o animal religioso; no cessar de ser o animal artista. A imagem que faz de si mesmo j uma obra de arte. O quadro em que se anima, em que vive e desenvolve a sua plena atividade, uma obra de arte, seja a casa, o templo ou a cidade. Por toda a parte a arte se associa existncia do homem, infiltra-se na sua sensibilidade, a transforma, eleva e poetisa. Essa dominao objetiva da arte o reflexo e a projeo do sentimento subjetivo, que faz do Universo um espetculo infinito. A conscincia deve-se "apoderar da magia, que o inconsciente criou no esprito humano, e fazer de todas as suas sensaes, sensaes de arte. Que a luz, a cor, a forma, o som, mas tambm as sensaes morais da alegria e da dor, e todas as emoes, sejam incorporadas s foras do Universo, sejam para ns emoes estticas, criaes, fantasias, iluses, mas espetculo misterioso e divino que nos domine e enleve, e nos confunda na Unidade essencial da vida. Esse sentimento esttico intenso e profundo, unindo todas as cousas, volatizando todos os sofrimentos da alma, nos arrebatar da nossa msera contingncia, nos dar a sensao do Infinito, nos livrar de toda aquela tristeza em que morre o esprito humano. Tal a suprema esttica da vida. A arte a prpria libertao do sofrimento que ela exprime. AMOR Os seres efmeros, que so os seres humanos, atingem por um instante eternidade, saem da diversidade consciente em que o terror os exila, voltam Unidade primitiva do Todo universal, quando os arrebata a paixo do amor. Como explicar esse sentimento sublime e comum que, partindo da sensibilidade fsica, se eleva mais alta espiritualidade? Se na base do amor se encontra a nsia da satisfao do instinto, no esta suficiente para explicar a paixo que domina a sensualidade, funde as emoes psquicas dos Amantes e compe dos dois seres que se atraem e se unem, um s todo espiritual. Se o Amor no possvel sem a atrao fsica, esta pde reacusar-se em toda a plenitude sem chegar maravilha do amor. A atrao fsica existe entre os inmeros seres do Universo, os animais superiores a sentem imperiosamente e por ela se perpetuam as espcies, mas, pelo fenmeno psquico do amor, os homens se distinguem dos outros animais. O conceito supremo da fatalidade domina o milagre do amor. H neste sentimento, infinito como o Universo, um carter trgico, uma manifestao to

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    sobrenatural, um desafio ao que a ordem aparente das cousas, to estranho brilho, que subordin-lo ao impulso misterioso da fatalidade satisfaz a humildade do pensamento diante do assombroso e divino amor, que, como a prpria Natureza, se deixa perceber mais pelos seus fenmenos do que pela sua intangvel essncia. Este conceito primordial da fatalidade explicaria o despontar do Amor, o seu mgico aparecimento, sem lhe dar a razo metafsica, remota e mstica. O instinto sexual move um ser para outro ser. Mas, quando se torna amor esse impulso fugaz? Quando os seres por essa unio dos corpos atingem unidade com o Todo universal, aspirao suprema e ntima do ser humano, separado do Universo pelo terror inicial do esprito. Essa razo metafsica do Amor no existe nos outros seres privados do senso espiritual das paixes. Todas as interpretaes do mistrio do amor so sempre modalidades do conceito da fatalidade, sejam a unio dos semelhantes de Herclito e Plato, reproduzida por Pascal, as afinidades eletivas de Goethe, o gnio da espcie de Schopenhauer, a cristalizao de Stendhal, o magnetismo de Mauclair ou o filtro de Isolda. So aparies, visagens do inelutvel princpio que move as cousas, a inominvel fatalidade, destino, kismet. Mas no basta. Porque essa atrao infinita e irremedivel entre os seres que os funde no Universo? Quando Plato entreviu a unidade primitiva dos seres na multiplicidade inesgotvel dos objetos, uma parte da verdade essencial foi percebida. O mito dos andrginos uma condensao da hiptese da atrao dos semelhantes realizado num s corpo. E no Banquete comenta Plato esta atrao do amor que realiza a unidade. Tal necessidade procede de que a nossa natureza primitiva era uma e que ento cada ser formava um todo completo. Hoje chamamos amor ao desejo e busca dessa antiga unidade. ramos outrora um e por culpa nossa Zeus nos separou... Eu sustento igualmente que todos os homens, todas as mulheres, que o gnero humano inteiro seria totalmente feliz, se cada um realizasse o seu amor e encontrasse o amante que o pudesse fazer voltar ao primitivo estado da unidade absoluta. Divino Plato! A verdade essencial, a verdade ltima da explicao do Universo foi desvendada um instante nessa teoria simblica do amor. Plato percebeu que a nsia do ser humano a volta unidade com o Todo universal, de que a conscincia metafsica o separa. Desde ento h o grande vcuo que preciso preencher, o espao vazio, o abismo que preciso atravessar, e sobre o qual dana Eros, tentador sublime, mgico da inconscincia infinita. E Pascal no trepidou em exclamar: Quem duvida que estamos no mundo para outra cousa que no seja amar? O homem no pde permanecer s consigo mesmo. Deve sair do seu prprio eu, preencher o grande vcuo e por outro ser que lhe seja semelhante, e essa semelhana se restringe e se encerra na diferena dos sexos. Pascal reproduz na mstica crist o mito platnico das fuso dos semelhantes. Se ele conhecesse a qumica, como Goethe, do seu crebro teria sado a hiptese das

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    afinidades eletivas, por onde se realiza a unidade dos seres fatalmente semelhantes na diversidade sexual, que uma afirmao da unidade primitiva e incessantemente buscada pelos seres, que, vencendo os contrrios e as oposies, se fundem, movidos por uma lei de necessidade inexorvel. H mais essncia de verdade nessas frmulas, que procuram explicar o fenmeno transcendental do amor, ligando-o metafsica universal, do que na soluo schopenhaueriana do gnio da espcie, que d o secreto impulso da unio do homem e da mulher para o fim da perpetuidade dos seres humanos. Essa explicao de ordem fsica, indiferente funo psquica do amor, aplicvel indistintamente a todos os animais, est morta pelo finalismo que a inspira, pela atribuio da vontade a uma criao fortuita e absurda, como esse imaginrio, fantstico e caprichoso gnio da espcie, que se diverte em unir os contrastes e sugerir maliciosamente a indispensvel procriao. No uma vontade que determina a ao do amor. o prprio inconsciente do amor que o leva ao inconsciente universal. O amor cria esse sublime estado de fuso com o Universo, mas no solicitado pela fatalidade a essa inconscincia absoluta da Unidade primitiva. Este o mistrio dos mistrios. Stendhal imagina para explic-lo a teoria da cristalizao, que nos deixa a meio caminho da revelao do divino enigma. Por ela se compreende o nascimento do amor, mas a passagem das sensaes e dos pensamentos do estado sub-consciente ao campo da conscincia no necessria para o amor, que antes uma manifestao psquica sub-consciente. Alm disso, a hiptese stendhaliana se limita a assinalar uma situao sem explicar a causa. Por essas hipteses fsicas de magnetismo, de polarizao, ficamos reduzidos ao relativo de uma explicao positiva, a comprovar a existncia do fenmeno sem ir alm, sem lhe dar a razo, que s uma interpretao filosfica pde abordar. Plato percebeu que h uma unidade primitiva dos seres. Ora, se fosse mais ousado, perceberia que h uma unidade essencial e inicial do Universo, e que os seres deviam existir eternamente na indistino absoluta. Mas, separados do Todo universal, a vida interior dos seres humanos, fundamentalmente levados a se confundir com o Universo, a continua e irreprimvel aspirao Unidade primitiva. Cessado o instante doloroso da conscincia, o homem se abisma misticamente na inconscincia absoluta. O Amor, unindo-nos a outro ser, d-nos a iluso da universalidade que elimina as separaes, que nos arrebata para alm da relatividade consciente das cousas para nos confundir infinitamente com o Todo universal. Esta a mstica do Amor e a sua metafsica. Abismando-nos no divino esquecimento, fusionando os seres no Universo, transportando os corpos ao xtase supremo, arrebatando as duas vontades unidas para o Irreal, o amor a sublime transfigurao, a eternidade instantnea, que dada aos pobres humanos mergulhados na infinita misria da vida contingente. Por ele somos um com a Natureza, um com Deus, um com o Universo, e, o que mais

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    inefvel, um com o ser amado. o milagre supremo da unidade, que, partindo da atrao dos corpos, atinge fuso no Todo infinito. A fatalidade reina sem dvida sobre o amor, desde o instante em que o instinto sexual age na sua profunda inconscincia, at ao momento em que a morte separa ou une os amantes. O sentimento da presena da morte d esse carter trgico, porque, interrompida a fuso com o amante, se desperta a irremedivel dor, que separa o esprito humano das outras cousas. Em Tristo e Isolda, desde o comeo, Wagner invoca a fatalidade, sob a figura de Frau Minna, que, segundo as lendas germnicas, uma transformao de Afrodite, criadora da vida, geradora da tragdia universal. Dessa fatalidade que comanda o Amor e a Morte, provem o filtro que os amantes tomam. Para Dante o Amor, que move o Sol e as outras estrelas, leva a uma s morte... Mas toda essa fatalidade reina, domina, motivada pela necessidade essencial da volta unidade inconsciente, que se realiza na fuso mstica dos corpos e dos espritos. Depois da morte os amantes, que pelo amor fizeram o retorno unidade primitiva do ser e unidade com o Todo, entrevem a vida eterna na unidade. Nascidos ao mesmo tempo, disse Leopardi, o Amor e a Morte so irmos. O mundo aqui em baixo e as estrelas l no alto no possuem nada de mais belo. Esses dois divinos irmos do a magia da inconscincia suprema, do xtase, do repouso infinito queles que vivera na tortura e na ansiedade da separao. Esse pensamento da Morte ligada ao Amor a angstia dos amantes em nsia de eternidade. Imaginam constantemente continuar alm da morte o amor. A religio como fora mstica uma consolao para os amantes. Que maior apego, porm, que mais entranhada e absoluta afeio no existir nos seres libertados do senso religioso? Para eles cada instante a eternidade. O Alm o nada, a vida tudo. A paixo cresce, exalta-se nesse pensamento, uma chama em que se consomem os condenados ao Nada, ao absoluto aniquilamento. A Amor tudo, diro esses amantes quando separados, e a separao a imagem da morte; mas a separao vive da esperana e a esperana uma magia. E a Morte? o fim de tudo. E eles aspiram morte unida. Partiremos juntos, diro; isso tambm uma deliciosa e bela consolao. E assim o sentimento como uma vaga do oceano nasce da inquietao, do terror para se vir acalmar na paz derradeira. o ritmo perptuo da nsia da unidade ltima, que subleva eternamente o nosso inconsciente no exlio da separao do Todo. O que resta misterioso no movimento do amor a predestinao dos personagens da grande tragdia. A unidade fundamental se realiza entre seres a ela fatalmente chamados. A hiptese das afinidades eletivas ou a da atrao dos semelhantes interpretaria admiravelmente essa predestinao que, numa elaborao muitas vezes despercebida dos prprios personagens, vence as maiores oposies sua imortal vitria, que se resgata pela morte. Onde reside essa atrao inelutvel, ningum pde determinar. Parece que excede o nosso prprio ser na sua humanidade, dir-se-ia que vai alm da vida animal, que est

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    no que impondervel e extremamente secreto na vida universal; dir-se-ia que h uma atrao atmica entre os seres que pelo amor tm de se fundir no Universo. Se se imaginasse a evoluo dos seres perpetuamente atrada numa escala descendente, seria um maravilhoso motivo para uma alucinadora fuga, em que o amor dos mesmos entes humanos fosse decrescendo s espcies animais, aos pssaros, aos insetos, aos infinitamente pequenos, aos vegetais, a tudo que palpitasse no mundo; e a persistncia das afinidades dos amantes seria encontrada inesgotvel e imperecvel nos tomos, nas vibraes das molculas do ter. Assim, o Amor, formidvel como a Natureza, a liga eterna dos seres predestinados unidade imortal. A Amor repele a relatividade para viver no absoluto, porque d a essncia do amor essa atmosfera de plena liberdade, essa ignorncia total de todas as convenes, que lhe so estranhas e das quais no pde participar. Por essa livre expanso, e por ser uma fora da Natureza, ou subjetivamente a Natureza, o Amor traz o seu universo em si mesmo e vem alterar o sentimento do prprio pantesmo. Antes do instante da paixo o homem realiza a idealidade do Todo por um sentimento metafsico, que mostra sermos apenas uma apario do Nada, uma fora instantnea que se pde pensar a si mesma e conceber o Universo e vai desaparecer no Nada. Nesse idealismo o sentimento da dor se tinha eclipsado, tudo era o perptuo renascimento do Universo, e da o absoluto ceticismo e a sublime impassibilidade diante das cousas fugitivas e ilusrias. Mas desde que o Universo, pela magia do Amor, se representa em outro ser, no esprito humano se produz a mutao do pantesmo. A Natureza s compreendida no ser amado e s existe por essa realidade. Se o ser adorado se transforma, morre na sua forma atual, aquela realidade do Universo se extingue para o Amante e toda a vida universal cessa com a vida das vidas... A ESTTICA DO UNIVERSO Se o fato transcendente do esprito humano o sentimento da unidade infinita do Universo no ser por uma concepo exclusivamente materialista, baseada na cincia, que chegaremos a formar uma ideia do Todo. A cincia, insistimos, decompe e fragmenta o Universo, e estuda-o nos seus fenmenos. Ora, pelo mtodo experimental, que o mtodo cientfico, jamais se chegar a um conceito do Todo infinito. A esse mtodo deve-se aluar o processo especulativo do raciocnio, que no estado atual dos nossos conhecimentos possa interpretar a natureza e suscitar no nosso esprito uma ideia do cosmos, que ser sempre relativa. O enigma irredutvel para o esprito humano o da formao do Universo. Podemos supor uma substncia universal, nica, comum a todos os seres, cujas formaes orgnicas seriam a sua simples representao. O enigma continuaria,

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    porque no saberamos qual a essncia dessa substncia. A composio primordial fsica ou qumica da substncia universal nos escapa; somos obrigados pela relatividade da nossa inteligncia a compreender essa substncia como uma unidade, que se nos apresenta nos seus fenmenos, dos quais so a energia e a matria os mais remotos. Assim enunciados, eles tm a aparncia de uma permanente dualidade, quando na sua realidade transcendental so uma unidade absoluta. No h matria sem energia nem energia sem matria. No se pde conceber um desses fenmenos da substncia universal distintamente do outro, e j um erro enunci-los em duas palavras, como se fossem dois modos do Ser. A fsica pde imaginar a desmaterializao da matria e a degradao da energia, sem que dessas experincias se deduza a hiptese de um Universo imaterial, esgotvel um dia, isto , a morte do Universo. Em primeiro lugar, a expresso matria deve ser entendida na sua acepo absoluta, e a fsica a compreende na acepo relativa. O que se denomina vulgarmente e cientificamente matria, pode-se desmaterializar pela rdio-atividade e, tornar-se impondervel, segundo as balanas atuais. O Universo no deixa por isso de ser concebido materialmente. Assim o , porque , porque o nosso pensamento material e no pde imaginar nada que no seja fenmeno material, nem mesmo um princpio absoluto criador, um Deus que abusivamente se chama esprito. Em segundo lugar, para se admitir que a matria se extinga, preciso supor-se que a matria criada. A fsica explicar que a matria se desmaterializa, os tomos se extinguem, e tudo se absorve de onde tudo recriado. Sobre a natureza do ter o mistrio total. J se o imaginou como slido elstico, que enche todo o espao. Para distingui-lo da matria, j se declarou ser ele o impondervel, o corpo sem densidade, livre das leis da gravitao; j se o fantasiou em estado de repouso absoluto. Nada, porm, o explica, e nem por ele se explica a essncia do Universo. Ao nosso entendimento repugna admitir um fenmeno do universo privado do movimento. Se o ter o elemento criador, se vibra, o movimento existe, e o prprio movimento, efeito e causa da vibrao, indica que o ter impondervel se confunde com a energia. Todavia, essa imponderabilidade no absoluta, mas relativa ao nosso poder cientfico. Por menos denso que ele seja, tem uma densidade imaginria. Se, para explicar o movimento universal, se deve supor, como quer a cincia fsica, o ter sujeito a uma compresso, de onde provem essa fora que comprime e determina o ter? A unidade do Universo se impe ao nosso esprito. No se pde imaginar o ter em repouso absoluto. Seria uma volta concepo de Parmnides, que, negando o eterno movimento, ideou uma substncia final, que no seu pleno desenvolvimento no tem necessidade de movimento. O eterno repouso seria a

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    base de uma concepo teolgica da criao universal. A ideia de Deus anloga do eterno repouso, contrrio ao eterno movimento. A nossa inteligncia repele essa mecnica espiritualista; para ela h uma materializao permanente do Universo, uma materializao da matria desmaterializvel. A essncia do Universo, porm, permanece enigmtica, pois o ter, ao qual se tentou reduzi-la, uma simples hiptese universal, que no explica a substncia. Na impossibilidade de conhecer a formao do Universo, resta-nos a certeza de que os fenmenos se encadeiam e se ligam por um determinismo absoluto. Assim deve raciocinar o sbio que, segundo a afirmao do matemtico, no pde deixar de ser determinista, pois o fim da cincia prever, e desde o momento que a previso no mais possvel ou est fora das fronteiras da cincia, o sbio deixa de pensar e agir como sbio. Outro matemtico objeta que a questo est em saber se essa necessidade absoluta no sentido da verdade matemtica, ou se se pde admitir uma frao de contingncia, por infinitesimal que seja. Explicaes baseadas na teoria das probabilidades, em particular as explicaes estatsticas dos fenmenos fsicos levariam, segundo esta argcia m