breve reflexão: a natureza jurídica da lei nº...

10
Int. Públ. - IP, Belo Horizonte, ano 14, n. 72, p. 221-230, mar./abr. 2012 Breve reflexão: a natureza jurídica da Lei nº 5.764/71 Raphael Silva Rodrigues Advogado e Especialista em Direito Tributário pelo IEC/PUC Minas. Palavras-chave: Lei nº 5.764/71. Política Nacional de Cooperativismo. Sociedades cooperativas. Regime jurídico. Sumário: 1 Considerações iniciais – 2 A natureza jurídica da Lei nº 5.764/71: lei formalmente ordinária e materialmente complementar? 3 Da síntese conclusiva – Referências 1 Considerações iniciais O tema ora proposto tem como objeto a análise da natureza jurídica da Lei nº 5.764/71, que define a política nacional de cooperativismo e instituiu o regime jurídico das sociedades cooperativas, haja vista que a referida le- gislação tem gerado constante discussão nos meios acadêmicos, doutrinários e jurisprudenciais, notadamente quanto a sua natureza jurídica; ou seja, se deve ser considerada apenas lei ordinária ou lei complementar por disposição constitucional. A metodologia de estudo desse breve ensaio teve como fonte principal de pesquisa as decisões dos Tribunais pátrios, em virtude da escassa publicação de obras que dediquem grande pesquisa sobre o assunto. Inicialmente, cumpre demonstrar a essência do sistema cooperativista, sendo de conhecimento notório que as sociedades cooperativas estruturam-se em bases de sustentação nitidamente distintas daquelas nas quais se fixam as sociedades comerciais, e não por motivo outro estes entes especiais são escol- tados por uma norma legal específica ao cooperativismo, a Lei nº 5.764/71, devidamente recepcionada pela Constituição Federal de 1988, e com natureza complementar, no que tange a seus aspectos tributários, por força do art. 146, III, “c” c/c art. 174, §2º, ambos do Texto Constitucional. Com o advento da Constituição Federal de 1988, as sociedades coope- rativas receberam tratamento diferenciado, ganhando status constitucional ao receber positivação em seus artigos 146, III, “c” e 174, §2º, que dispõem, in verbis: IP_72_2012.indd 221 29/05/2012 16:42:31

Upload: dinhdat

Post on 30-Nov-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Breve reflexão: a natureza jurídica da Lei nº 5.764/71domtotal.com/direito/uploads/pdf/6e3a1f69f38563bb0d28d1a89fbf1a41.pdf · o presente momento,1 ainda permanece vigente a Lei

Int. Públ. - IP, Belo Horizonte, ano 14, n. 72, p. 221-230, mar./abr. 2012

Breve reflexão: a natureza jurídica da Lei nº 5.764/71Raphael Silva RodriguesAdvogado e Especialista em Direito Tributário pelo IEC/PUC Minas.

Palavras-chave: Lei nº 5.764/71. Política Nacional de Cooperativismo. Sociedades cooperativas. Regime jurídico.

Sumário: 1 Considerações iniciais – 2 A natureza jurídica da Lei nº 5.764/71: lei formalmente ordinária e materialmente complementar? – 3 Da síntese conclusiva – Referências

1 Considerações iniciaisO tema ora proposto tem como objeto a análise da natureza jurídica da

Lei nº 5.764/71, que define a política nacional de cooperativismo e instituiu o regime jurídico das sociedades cooperativas, haja vista que a referida le-gis lação tem gerado constante discussão nos meios acadêmicos, doutrinários e jurisprudenciais, notadamente quanto a sua natureza jurídica; ou seja, se deve ser considerada apenas lei ordinária ou lei complementar por disposição constitucional.

A metodologia de estudo desse breve ensaio teve como fonte principal de pesquisa as decisões dos Tribunais pátrios, em virtude da escassa publicação de obras que dediquem grande pesquisa sobre o assunto.

Inicialmente, cumpre demonstrar a essência do sistema cooperativista, sendo de conhecimento notório que as sociedades cooperativas estruturam-se em bases de sustentação nitidamente distintas daquelas nas quais se fixam as sociedades comerciais, e não por motivo outro estes entes especiais são escol-tados por uma norma legal específica ao cooperativismo, a Lei nº 5.764/71, devidamente recepcionada pela Constituição Federal de 1988, e com natureza complementar, no que tange a seus aspectos tributários, por força do art. 146, III, “c” c/c art. 174, §2º, ambos do Texto Constitucional.

Com o advento da Constituição Federal de 1988, as sociedades coope-rativas receberam tratamento diferenciado, ganhando status constitucional ao receber positivação em seus artigos 146, III, “c” e 174, §2º, que dispõem, in verbis:

IP_72_2012.indd 221 29/05/2012 16:42:31

Page 2: Breve reflexão: a natureza jurídica da Lei nº 5.764/71domtotal.com/direito/uploads/pdf/6e3a1f69f38563bb0d28d1a89fbf1a41.pdf · o presente momento,1 ainda permanece vigente a Lei

222

Int. Públ. - IP, Belo Horizonte, ano 14, n. 72, p. 221-230, mar./abr. 2012

Raphael Silva Rodrigues

Art. 146 Cabe à lei complementar:[...]III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, espe cial-mente sobre:c) adequado tratamento tributário aos atos cooperativos praticados pelas socie-dades cooperativas.

Art. 174 – Como agente e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.[...]§2º A lei apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo.

A Lei nº 5.764/71 deu novo impulso à Política Nacional do Coope ra-tivismo, instituindo o regime jurídico das sociedades cooperativas. No seu Capítulo II, definiu cooperativa:

Art. 4º As cooperativas são sociedades de pessoas, com forma e natureza jurí-dica próprias, de natureza civil, não sujeitas a falência, constituídas para prestar serviços aos associados, distinguindo-se das demais sociedades pelas seguintes características:I – adesão voluntária, com número ilimitado de associados, salvo impossibili-dade técnica de prestação de serviços;II – variabilidade do capital social representado por cotas-partes;III – limitação no número de quotas-partes do capital para cada associado, fa-cultado, porém, o estabelecimento de critérios de proporcionalidade, se assim for mais adequado para o cumprimento dos objetivos sociais;IV – inacessibilidade das quotas-partes do capital a terceiros, estranhos à so-ciedade;V – singularidade de voto, podendo as cooperativas centrais, federações e con-federações de cooperativas, com exceção das que exerçam atividade de crédito, optar pelo critério da proporcionalidade;VI – quorum para funcionamento e deliberação da Assembléia Geral baseado no número de associados e não no capital;VII – retorno das sobras líquidas do exercício, proporcionalmente às operações realizadas pelo associado, salvo deliberação em contrário da Assembléia Geral;VIII – indivisibilidade dos fundos de Reserva e de Assistência Técnica Edu ca-cional e Social;IX – neutralidade política e indiscriminação religiosa, racial e social;X – prestação de assistência aos associados, e, quando previsto nos estatutos, aos empregados da cooperativa;XI – área de admissão de associados limitada às possibilidades de reunião, con-trole, operações e prestação de serviços.

No Capítulo III, tratando dos objetivos e classificação das sociedades coo perativas, textualizou:

IP_72_2012.indd 222 29/05/2012 16:42:31

Page 3: Breve reflexão: a natureza jurídica da Lei nº 5.764/71domtotal.com/direito/uploads/pdf/6e3a1f69f38563bb0d28d1a89fbf1a41.pdf · o presente momento,1 ainda permanece vigente a Lei

Int. Públ. - IP, Belo Horizonte, ano 14, n. 72, p. 221-230, mar./abr. 2012

Breve reflexão: a natureza jurídica da Lei nº 5.764/71 223

Art. 5º. As sociedades cooperativas poderão adotar por objeto qualquer gênero de serviço, operação ou atividade, assegurando-se-lhes o direito exclusivo e exigindo-se-lhes a obrigação do uso da expressão “cooperativa” em sua deno-minação.

Na Seção I do Capítulo IV da mesma Lei, tratando da autorização de funcionamento, o art. 18, §4º, dispõe que:

Art. 18. [...]§4º. À parte é facultado interpor da decisão proferida pelo órgão controlador, nos Estados, Distrito Federal ou Territórios, recurso para a respectiva admi-nis tração central, dentro do prazo de 30 (trinta) dias contado da data do re-ce bi mento da comunicação e, em segunda e última instância, ao Conselho Nacional de Cooperativismo, também no prazo de 30 (trinta) dias, exceção feita às cooperativas de crédito, seções de crédito das cooperativas agrícolas mistas, e às cooperativas habitacionais, hipótese em que o recurso será apreciado pelo Conselho Monetário Nacional, no tocante às duas primeiras, e pelo Banco Na-cional de Habitação em relação às últimas.[...]§9º. A autorização para funcionamento das cooperativas de habitação, das de crédito e das seções de crédito das cooperativas agrícolas mistas subordina-se, ainda, à política dos respectivos órgãos normativos.

As sociedades cooperativas, portanto, foram erigidas como um meio ju-ridicamente viável de alavancar o resultado econômico dos cooperados, para se obter uma presença mais efetiva da pessoa física na vida econômica.

Com efeito, a sociedade cooperativa é apenas mandatária de seus asso-ciados, pois que atua em nome, por conta e em benefício daqueles; fato este já percebido pelo Poder Judiciário há mais de quatro décadas.

Em seguida, na Seção I do Capítulo XII está a definição do ato coo-perativo:

Art. 79. Denominam-se atos cooperativos os praticados entre as cooperativas e seus associados, entre estes e aquelas e pelas cooperativas entre si quando asso-ciados, para a consecução dos objetivos sociais.Parágrafo Único. O ato cooperativo não implica operação de mercado, nem contrato de compra e venda de produto ou mercadoria.

Tal dispositivo legal afere que o “adequado tratamento tributário” con-ce dido ao ato cooperativo reflete a realidade deste ato, que destoa dos atos de comércio, aplicando-lhe um tratamento diferenciado, haja vista que a sua

IP_72_2012.indd 223 29/05/2012 16:42:31

Page 4: Breve reflexão: a natureza jurídica da Lei nº 5.764/71domtotal.com/direito/uploads/pdf/6e3a1f69f38563bb0d28d1a89fbf1a41.pdf · o presente momento,1 ainda permanece vigente a Lei

224

Int. Públ. - IP, Belo Horizonte, ano 14, n. 72, p. 221-230, mar./abr. 2012

Raphael Silva Rodrigues

finalidade está atrelada a um fundamento social de maior relevância, mesmo porque inexistente, na hipótese, possibilidade de associação com lucro. E de-corre do “adequado tratamento” o respeito à realidade societária da entidade.

É também da letra do citado artigo que se extrai que, na prática de atos cooperativos, a sociedade cooperativa não aufere resultados próprios, nem tam pouco receita.

Na Seção III desse mesmo Capítulo XII, estão especificadas as operações que as cooperativas podem realizar, explicitando-se:

Art. 86. As cooperativas poderão fornecer bens e serviços a não associados, desde que tal faculdade atenda aos objetivos sociais e estejam de conformidade com a presente lei.Parágrafo Único. Nos casos das cooperativas de crédito e das seções de crédito das cooperativas agrícolas mistas, o disposto neste artigo só se aplicará com base em regras a serem estabelecidas pelo órgão normativo.

Art. 87. Os resultados das operações das cooperativas com não associados, men-cionados nos artigos 85 e 86, serão levados à conta do “Fundo de Assistência Técnica, Educacional e Social” e serão contabilizados em separado, de molde a permitir cálculo para a incidência de tributos.

No Capítulo XIII, tratando da fiscalização e controle das cooperativas, tem-se:

Art. 92. A fiscalização e o controle das sociedades cooperativas, nos termos desta lei e dispositivos legais específicos, serão exercidos, de acordo com o ob-jeto de funcionamento, da seguinte forma:I – as de crédito e as seções de crédito das cooperativas agrícolas mistas pelo Banco Central do Brasil;

Finalmente, no Capítulo XV, sobre o aspecto normativo:

Art. 103. As cooperativas permanecerão subordinadas, na parte normativa, ao Conselho Nacional de Cooperativismo, com exceção das de crédito, das seções de crédito das cooperativas agrícolas mistas e das de habitação, cujas normas con tinuarão a ser baixadas pelo Conselho Monetário Nacional, relativamente às duas primeiras, e Banco Nacional da Habitação, com relação à última, obser-vado o artigo 92 desta lei.

As Cooperativas de Crédito, embora permanecessem com natureza ju-rí dica de instituição financeira, possuem particularidades que mereceram da

IP_72_2012.indd 224 29/05/2012 16:42:31

Page 5: Breve reflexão: a natureza jurídica da Lei nº 5.764/71domtotal.com/direito/uploads/pdf/6e3a1f69f38563bb0d28d1a89fbf1a41.pdf · o presente momento,1 ainda permanece vigente a Lei

Int. Públ. - IP, Belo Horizonte, ano 14, n. 72, p. 221-230, mar./abr. 2012

Breve reflexão: a natureza jurídica da Lei nº 5.764/71 225

legislação tratamento diferenciado das demais instituições financeiras. Essa nor ma reguladora da Política Nacional do Cooperativismo definiu o adequado tratamento tributário ao ato cooperativo.

Conforme se demonstrará, a discussão trazida à baila contorna a ideia de recepção ou não da Lei nº 5.764/71 como sendo de natureza comple-mentar, notadamente após o advento da Constituição Federal, nos termos da alínea “c” do inciso III do seu art. 146, quanto à determinação de que cabe à lei complementar dispor sobre o adequado tratamento tributário aos atos cooperativos praticados pelas sociedades cooperativas. Ou seja, será que a Lei nº 5.764/71 foi recepcionada pelo legislador ordinário como sendo mate-rialmente lei complementar? É o que se passa a estudar.

2 A natureza jurídica da Lei nº 5.764/71: lei formalmente ordinária e materialmente complementar?

Como visto, o disposto no art. 79 da Lei nº 5.764/71, quando da de-finição legal de ato cooperativo, disciplina que é aquele praticado “entre as coo perativas e seus associados, entre estes e aquelas e pelas cooperativas entre si quando associadas.”

Nos moldes do referido dispositivo legal, o ato cooperativo pode ser praticado tanto pela cooperativa com seu associado ou vice-versa. Ao importar conceitos do Direito Constitucional, chegamos à conclusão de que a regra do art. 146, III, “c”, da CF/88 se reveste de eficácia limitada, mas de aplicabilidade imediata e de efeitos vinculantes ao legislador.

O professor Paulo de Barros (1999, p. 64), ao analisar o disposto no art. 146, III, “c”, da CF/88, de forma conjugada com o art. 174, §2º, da Cons-tituição, afirma:

Alguns querem anular essa proposição prescritiva dizendo que ela não é pres-critiva, mas apenas, um programa. A linguagem do direito positivo não faz programas, é usada em função prescritiva de condutas, é uma linguagem que veicula ordens que devem ser cumpridas.

No entanto, em que pese haver disposição expressa na Constituição Fe deral quanto à obrigatoriedade de observância de lei complementar para re gular o adequado tratamento do ato cooperativo, até o presente momento não houve a edição de norma de tal natureza, sendo, portanto, esta matéria re gu lamentada pelo legislador ordinário (Lei nº 5.764/71).

IP_72_2012.indd 225 29/05/2012 16:42:31

Page 6: Breve reflexão: a natureza jurídica da Lei nº 5.764/71domtotal.com/direito/uploads/pdf/6e3a1f69f38563bb0d28d1a89fbf1a41.pdf · o presente momento,1 ainda permanece vigente a Lei

226

Int. Públ. - IP, Belo Horizonte, ano 14, n. 72, p. 221-230, mar./abr. 2012

Raphael Silva Rodrigues

Considerando que essa suposta lei complementar não foi editada até o presente momento,1 ainda permanece vigente a Lei nº 5.764/71, a qual foi recep cionada pela Constituição Federal de 1988 como sendo legislação de natureza ordinária, conforme entendimento da jurisprudência do Superior Tri bunal de Justiça, cujo voto do Exmo. Ministro José Delgado se destaca o seguinte trecho:

O mérito dos embargos merece ser apreciado, em primeiro lugar, como o en-tendimento direcionado para o dizer posto na Constituição Federal de 1988 que, de modo expresso, prestigiou a atividade cooperativista no País.A análise da mensagem constitucional voltada para esse aspecto começa a ser formada, inicialmente, com o estatuído no art. 146, III, da referida Carta Magna, ao dispor, expressamente, com força cogente, de que cabe à Lei Com-plementar:“omissis”;III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especial-mente sobre:c – adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas socie-dades cooperativas.Não obstante existir a mencionada exigência constitucional, a Lei Complementar em questão ainda não foi elaborada, pelo que o especial e adequado tratamento tributário do ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas continua sendo regido pela legislação ordinária nascida em período anterior à Carta Magna por ela recepcionada. (EREsp nº 169.411/SP, Rel. Ministro José Delgado, Primeira Seção, DJ 27 set. 1999)

A Lei nº 5.764/71, embora recepcionada pela Carta Magna de 1988, não comporta status de lei complementar, pois não se pode afirmar que a ma téria nela disposta constitui tratamento tributário adequado ao ato coope-rativo praticado pelas sociedades cooperativas. Este veículo normativo tem por objetivo definir a Política Nacional de Cooperativismo, instituindo o re-gime jurídico destas sociedades.

A natureza jurídica das cooperativas advém da própria Constituição Federal, que, em seu Capítulo IV — art. 192, VIII — estabelece que “o sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equi li brado do País e a servir aos interesses da coletividade, será regulado em lei complementar, que disporá, inclusive, sobre: VIII – o funcionamento

1 STF, ADIn nº 429MC/DF, Rel. Ministro Célio Borja, Pleno, DJ, 19 fev. 1993 e RE nº 141.800/SP, Rel. Ministro Moreira Alves, Primeira Turma, DJ, 3 out. 1997.

IP_72_2012.indd 226 29/05/2012 16:42:31

Page 7: Breve reflexão: a natureza jurídica da Lei nº 5.764/71domtotal.com/direito/uploads/pdf/6e3a1f69f38563bb0d28d1a89fbf1a41.pdf · o presente momento,1 ainda permanece vigente a Lei

Int. Públ. - IP, Belo Horizonte, ano 14, n. 72, p. 221-230, mar./abr. 2012

Breve reflexão: a natureza jurídica da Lei nº 5.764/71 227

das cooperativas de crédito e os requisitos para que possam ter condições de operacionalidade e estruturação próprias das instituições financeiras.”

Este posicionamento, inclusive, já foi objeto de apreciação pelo Superior Tribunal de Justiça, bem como do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, senão veja-se:

As cooperativas de crédito são instituições financeiras e têm seus atos coope-rativos normatizados pelo BACEN, possuindo restrições claras às suas ope-rações, que as diferenciam não só das demais cooperativas como das outras insti tuições financeiras, inclusive quanto ao recolhimento da contribuição para a seguridade social. (REsp n.º 645.459/MG, Rel. Ministro Luiz Fux, DJ de 29.11.2004)

As Cooperativas de Crédito, embora permanecessem com natureza jurídica de instituição financeira, possuem particularidades que mereceram da legis lação tratamento diferenciado das demais instituições financeiras. Essa norma regu-ladora da Política Nacional do Cooperativismo definiu o adequado trata mento tributário ao ato cooperativo. (AMS nº 2003.38.02.002546-9/MG, Rel. Desem-bargador Federal Luciano Tolentino Amaral, DJ, 04 jun. 2004)

Conforme mencionado, o art. 146, III, “c”, da Constituição Federal, dispõe que “cabe à lei complementar: [...] estabelecer normas gerais em ma-téria de legislação tributária, especialmente sobre: [...] adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas.”

Embora recepcionada pela Constituição, a Lei das Cooperativas não com porta status de lei complementar, pois não se pode afirmar que a matéria nela disposta constitui tratamento tributário adequado ao ato cooperativo pra ti cado pelas sociedades cooperativas. Este veículo normativo tem por obje-tivo definir a Política Nacional de Cooperativismo, instituindo o regime jurí-dico destas sociedades.

Ao dissertar sobre a tributação das cooperativas, Renato Lopes Becho (1999, p. 150-152) leciona que:

Um pouco perplexo ficou também Vittório Cassone, porém procurando uma ex plicação e um conteúdo para o tratamento tributário diferenciado para as coo perativas:Quanto ao art. 146, inc. III, “c”, perguntar-se-ia que adequação será essa, já que, por adequado deve-se entender “de conformidade”, “ajustado”, exata cor-res pondência — com o Sistema Tributário nacional, é claro!

IP_72_2012.indd 227 29/05/2012 16:42:31

Page 8: Breve reflexão: a natureza jurídica da Lei nº 5.764/71domtotal.com/direito/uploads/pdf/6e3a1f69f38563bb0d28d1a89fbf1a41.pdf · o presente momento,1 ainda permanece vigente a Lei

228

Int. Públ. - IP, Belo Horizonte, ano 14, n. 72, p. 221-230, mar./abr. 2012

Raphael Silva Rodrigues

Contudo, considerando que nenhum dispositivo constitucional é nulo, nos parece que o Constituinte quis indicar ao legislador complementar para que o “ato cooperativo” tenha de algum modo tratamento benéfico, único enten-dimento que reputamos cabível. [...]Aplaudimos o comentário, principalmente no que se refere ao tratamento bené-fico, que também pensamos estar embutido no texto de nossa Magna Carta.Quanto ao mais, [...] a legislação tributária deve-se adequar, para essas asso-ciações, às suas peculiaridades, que, distinguindo-as das sociedades lucrativas, comerciais, mercantis, precisam de uma tributação diferenciada, pelo princípio da igualdade.[...]Como já demonstrado pela citação, o art. 174 é mais amplo do que a mera determinação de ajuste na tributação das cooperativas. Deve incluir os be ne-fícios de órbitas diversas, como a creditícia.[...]É importante esclarecer, também, que uma tributação mais benéfica para as cooperativas não é pleito político, mas decorrência intrínseca de sua natu reza, reconhecida pelo legislador constituinte, e que continua aguardando reco nhe-cimento pelo legislador das normas infraconstitucionais.

O mesmo autor, em outro estudo sobre a matéria, defende a seguinte ideia (1999, p. 119-121):

[...] Vários efeitos decorreram da constitucionalização das cooperativas, do ato coo-perativo e, para nós especialmente, da tributação sobre essa atividade.Cuidemos, agora, apenas do art. 146. Essa norma como que imantou a matéria tributária relativa às cooperativas. As leis ordinárias que possuam normas tri-bu tárias sobre as cooperativas, adequadas à nova Constituição, passaram a ter força de leis complementares. Isso só pode chocar o leitor menos avisado, porque foi exatamente o que aconteceu com o Código Tributário Nacional.[...]Dizendo as mesmas coisas em outras palavras, temos que uma lei ordinária (de competência municipal, estadual, distrital ou mesmo nacional) versando tema que antes era próprio deste tipo de veículo introdutor de normas jurí-dicas, recebendo de uma nova ordem constitucional a determinação de que esse assunto passa a ser próprio de lei nacional (lei complementar de compe-tência do Congresso Nacional), continua a ser lei ordinária, versando tema ma­te rialmente de lei complementar e, por isso, só podendo a ser alterada por lei complementar.[...]Pois bem, dito isso, transportaremos esses dados para a Lei das Coopera ti vas.A Lei das Cooperativas, como estamos sustentando desde nossa defesa de mes trado, possui normas tributárias relativas a, por exemplo, ICMS (art. 79, parágrafo único) e IR (art. 111 e suas remissões) Essa lei Ra e continua sendo

IP_72_2012.indd 228 29/05/2012 16:42:31

Page 9: Breve reflexão: a natureza jurídica da Lei nº 5.764/71domtotal.com/direito/uploads/pdf/6e3a1f69f38563bb0d28d1a89fbf1a41.pdf · o presente momento,1 ainda permanece vigente a Lei

Int. Públ. - IP, Belo Horizonte, ano 14, n. 72, p. 221-230, mar./abr. 2012

Breve reflexão: a natureza jurídica da Lei nº 5.764/71 229

lei ordinária federal, veiculando normas gerais (v.g. as que refletem no ICMS) e específicas (que tratam de tributos federais). Após a Carta de 1988, com a exi gência de lei complementar que veicule norma que ajustem a tributação das cooperativas às suas características próprias, as alterações em tais normas (as da Lei das Cooperativas que veiculam normas tributárias) só poderão ser vali damente alteradas por Eli complementar e para realizar os ajustes deter-minados pela Constituição Federal (art. 146, III, c).[...]Após a Constituição Federal de 1988, por força de seu artigo 146, as normas que tratam da tributação das cooperativas passaram a ser reservadas à lei com-plementar.

O legislador constituinte visava, com o disposto no art. 146, III, “c”, a que fosse instituída, futuramente, lei complementar que tratasse, com cla-reza e especificidade, o adequado regime tributário a ser destinado aos atos cooperativos.

Por outro lado, o Supremo Tribunal Federal, quando da apreciação do Mandado de Injunção nº 701, não reconheceu a natureza complementar da Lei nº 5.764/71, no momento em que assentou ser a matéria, relativo ao ade-quado tratamento tributário ao ato cooperativo, regulada por diversas leis ordinárias, as quais disciplinam acerca da tributação das cooperativas.

Destaca-se que o referido mandado de injunção não foi conhecido por inadequado, pois, embora a lei complementar prevista no art. 146, III, “c”, da Constituição Federal de 1988, ainda não tenha sido objeto de edição, tal matéria possui regulamentação por diversas leis ordinárias, cuja eventual in-constitucionalidade deve ser arguída por meio de Ação Direta de Inconstitu-cionalidade.2

3 Da síntese conclusivaDiante do exposto, somos da opinião de que a Lei das Cooperativas

possui normas de diferentes naturezas (societárias e tributárias), sendo que esta não se reveste de caráter complementar (embora tenha sido recepcionada pela Constituição Federal de 1988), uma vez que a matéria nela disciplinada não constitui efetivo tratamento tributário adequado ao ato cooperativo exe-cutado pelas sociedades dessa natureza.

2 Informativo do STF nº 363.

IP_72_2012.indd 229 29/05/2012 16:42:31

Page 10: Breve reflexão: a natureza jurídica da Lei nº 5.764/71domtotal.com/direito/uploads/pdf/6e3a1f69f38563bb0d28d1a89fbf1a41.pdf · o presente momento,1 ainda permanece vigente a Lei

230

Int. Públ. - IP, Belo Horizonte, ano 14, n. 72, p. 221-230, mar./abr. 2012

Raphael Silva Rodrigues

A Lei nº 5.764/71 visa demarcar a Política Nacional de Cooperativismo, instituindo, consequentemente, o regime jurídico destas sociedades, de modo que, consoante se tem manifestado a jurisprudência da Suprema Corte, o dis-posto no art. 146, III, “c”, da Constituição Federal não se consubstancia em lei complementar, lembrando que esta não restou editada até o presente momento, fato este que nos leva a concluir que a Lei nº 5.764/71 fora recepcionada pela Carta Magna de 1988 com força de lei ordinária (nos moldes em que ori gi-nalmente editada), o que por si só viabiliza a sua alteração por outra norma de caráter essencialmente ordinária.

Referências

BECHO, Renato Lopes. A Lei das Cooperativas e a natureza de suas normas tributárias: matéria de lei complementar. São Paulo: Dialética, 1999.

BECHO, Renato Lopes. Tributação e cooperativas. 2. ed. São Paulo: Dialética, 1999.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988.

BRASIL. Lei n.º 5.764, de 16 de dezembro de 1971. Disponível em: http://<www.senado.gov.br>. Acesso em: 06 abr. 2011.

BRASIL. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966. Dispõe sobre o sistema tributário nacional e institui normas gerais de Direito Tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. (Alterada pela LC nº 118, de 09 de fevereiro de 2005). São Paulo: Ridel, 2010. (Coleção de Leis Ridel).

CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.

Informação bibliográfica deste texto, conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT):

RODRIGUES, Raphael Silva. Breve reflexão: a natureza jurídica da Lei nº 5.764/71. Interesse Público – IP, Belo Horizonte, ano 14, n. 72, p. 221-230, mar./abr. 2012.

IP_72_2012.indd 230 29/05/2012 16:42:31