george r. stewart - soÌ a terra permanece

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  • 8/11/2019 George R. Stewart - So a Terra Permanece

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    Este um livro que retrata o que pode algum dia acontecer. E no irreal estapossibilidade: ela a est, circulando nas mentes dos responsveis pela vida deinmeros povos, nos clculos dos fabricantes de armamentos, na insensibilidade dosque ambicionam a fortuna ou o poder, independentemente da crucificao - ouetino - de quem e do que quer que se!a.

    " civili#ao, algum dia, poder morrer$ E por que no, se ela depende de umgesto inesperado - e louco - capa# de ocasionar uma %ecatombe$ & desvendamentodos mistrios da matria, o progresso tecnol'gico independente de um sustentculo

    moral, o aniquilamento frio e calculado de determinadas caractersticas do que propriamente %umano, tudo isto que tradu# a fisionomia do nossos tempo no terforas superiores ( resist)ncia do esprito, sendo assim capa#es de tra#er,inevitavelmente, a morte da civili#ao$

    *esta obra de +eorge . teart no o tomo que aniquila a %umanidade. /mvrus, simplesmente um vrus, destr'i quase todos os seres %umanos. E osremanescentes reiniciam a +rande 0arc%a, deiando para trs os 1el%os 2empos,com todas as suas ma#elas, os seus crimes, os seus %orrores, e tambm - adestruio fora inclemente - tudo o que de belo o %omem produ#ira no decorrer desua aventura na 3ist'ria da 2erra, pois representavam o bem e o mau, a pr'pria

    civili#ao destruda.0as os poucos sobreviventes da aniquilante epidemia abrem novos camin%os (vida. E neste gesto de reiniciar do nada uma nova etapa civili#at'ria, com novosvalores que a solido permite surdir, o %omem volta a se encontrar na restaurao desuas foras e valores, abrindo novos %ori#ontes - pois novas sementes serolanadas e se desenvolvero.

    2tulo &riginal: Earth Abides45676 b8 George R. Stewart

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    /ma gerao vai e outra gerao vem9mas a 2erra :ermanece

    Eclesiastes, 5,7

    Primeira Parte - Mundo sem Fim

    e %o!e aparecesse, por mutao, um novo virus mortal...nossos rpidos transportes poderiam lev-lo aos mais distantes

    cantos da terra, e morreriam mil%;es de seres %umanos.

    > de de#embro de 567?

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    E, devido a esta emerg)ncia, cessa agora, eceto no distrito de =olmbia, o +o-verno dos Estados /nidos. &s funcionrios e os oficiais das @oras "rmadas passama depender dos governadores de Estado, ou de qualquer outra autoridade local.

    :or ordem do :residente. Aeus salve o povo dos Estados /nidos...Este um comunicado do =onsel%o de Emerg)ncia do 2errit'rio da Baa. & =entro

    de %ospitali#ao de &aCland foi abandonado. uas fun;es, compreendidos os se-pultamentos no mar, concentram-se agora no =entro de BerCele8.

    intoni#em esta estao, atualmente a nica no norte da =alif'rnia. Dnformaremosvoc)s enquanto for possvel.

    ubia apoiando-se na borda da roc%a, quando ouviu o c%ocal%o. " presa afundouem sua carne. Dnstantaneamente retirou a mo direita9 voltou-se e viu a serpente,enroscada, ameaadora. *o era muito grande. evando a mo aos lbios, sugoucom fora a base do indicador onde assomava uma gota vermel%a.

    *o perder tempo matando a serpente, recordou.Aeiou-se cair, sugando o dedo. 1iu o martelo ao p da roc%a e pensou se o deia-

    ria ali. 0as aquilo se parecia a pFnico. ecol%eu o martelo com a mo esquerda eavanou pela spera tril%a. *o se apressou, pois a pressa aceleraria o corao e oveneno circularia ento com mais rapide#. Embora o corao batesse de tal modo,pela ecitao do medo, apressar-se ou no parecia indiferente. =om um graveto,enrolou um leno como torniquete.

    1oltou a camin%ar e sentiu-se mais tranquilo. & corao se acalmava. *o devia sepreocupar demais. Era um %omem !ovem, sadio e forte. " mordida no seria fatal.

    or fim, a cabana apareceu ( sua frente. " mo estava pendurada, dura e insens-

    vel. ouco antes de c%egar, parou e soltou o torniquete. Aeiou que o sangue circu-lasse pela mo e depois voltou a amarr-la."briu a porta com o ombro, deiando cair o martelo. " ferramenta balanou por

    um instante sobre sua pesada cabea e por fim se deteve com o cabo para cima.rocurou a caia de primeiros socorros na gaveta e rapidamente seguiu as instru-

    ;es. =om a lFmina de barbear traou cru#es sobre as marcas das presas e aplicou abomba de suco. Aepois estendeu-se no catre e ficou observando a ampola de bor-rac%a que o sangue enc%ia lentamente.

    *o temia a morte. 2udo aquilo era somente um aborrecimento. "s pessoas %a-viam-l%e dito e repetido que no andasse so#in%o pelas montan%as. Geve um ca-

    c%orroH, acrescentavam. 0as ele sempre %avia rido. &s cac%orros brigavam constan-

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    temente com os !avalis ou com as raposas e alm disso no gostava deles. "gora osconsel%eiros se sentiriam satisfeitos.

    evolveu-se na cama, como se estivesse febril. G2alve#H, diria a eles, Go perigo meatraiaH. Dsso parecia %eroico. odia di#er tambm, mais sinceramente: G"mo esta soli-

    do, longe dos problemas da vida comumH. Entretanto, pelo menos nesse ltimo ano,somente o trabal%o o %avia levado (s montan%as. reparava uma tese: " Ecologia daIona de BlacC =reeC. Aevia pesquisar as rela;es passadas e presentes entre os %o-mens, as plantas e os animais da regio.

    rocurar um compan%eiro ideal teria levado muito tempo. "demais, nunca l%e pa-receu que ali %ouvesse grandes perigos. Embora em um raio de oito quilJmetros novivesse um s' ser %umano, dificilmente se passaria um dia sem que aparecesse al-gum pescador que subia de carro pela estrada roc%osa, ou simplesmente remontavaa corrente.

    Entretanto, pensando um pouco, quando tin%a visto algum pescador$ *o nesta

    semana, claro. *em tampouco nas ltimas semanas. 2in%a ouvido um autom'vel du-rante a noite. urpreendeu-o que algum subisse por aquela estrada na escurido.=omumente, eles acampavam ap's o cair da tarde e partiam pela man%. 0as talve#dese!assem c%egar logo a algum rio favorito e iniciar a pesca ao aman%ecer. *o, re-almente no %avia visto nem falado com ningum nas duas ltimas semanas.

    /ma pontada de dor o devolveu ao presente. odia ter acontecido uma catstrofena Bolsa, ou outro earl 3arbor. 2alve# isto eplicasse a escasse# de pescadores. Aequalquer forma, no podia esperar que viessem a!ud-lo. Entretanto aquela perspec-tiva no o alarmava, no pior dos casos, continuaria deitado ali. 2in%a gua e comidapara dois ou tr)s dias. Aepois, quando a mo desinc%asse, iria de carro ao ranc%o de

    Ko%nson, o mais pr'imo.assou-se a tarde. *a %ora da ceia, preparou caf sem vontade e bebeu algumascaras. ofria bastante, mas apesar da dor e do caf, adormeceu...

    Aespertou de repente, com a lu#, notando que algum %avia aberto a porta. Aois%omens de terno, quase elegantes, esquadrin%avam ao redor de uma forma estra-n%a, como se estivessem assustados.

    - Estou doenteL - disse ele da cama.& medo dos %omens se transformou em pFnico. 1oltaram-se rapidamente e, sem

    fec%ar a porta, puseram-se a correr. 0omentos depois ouviu-se o rudo de um motor,que depois se perdeu nas montan%as.

    Ento ele sentiu medo pela primeira ve#. evantou-se e ol%ou pela !anela. & carro%avia desaparecido na curva. & que estava acontecendo$ or que essa fuga$

    " lu# c%egava do oriente. 3avia dormido at o aman%ecer. " mo ainda l%e doa,mas no se sentia doente. Esquentou o bule de caf, preparou um pouco de aveia edeitou-se de novo. Aepois iria ( casa de Ko%nson... se antes no passasse algumque quisesse parar e a!ud-lo.

    0as logo comeou a piorar. em dvida, tratava-se de um recada. *o meio da tar-de estava realmente assustado. Aeitado na cama, redigiu uma nota eplicando o que%avia acontecido. *o se passaria muito tempo sem que algum a encontrasse. euspais, sem notcias, telefonariam para Ko%nson. =onseguiu escrever umas poucas pa-lavras com a mo esquerda e depois assinou: Ds%. & esforo para escrever o nome

    completo, Ds%erood

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    por aquele diminutivo.M meia-noite, como um nufrago em uma balsa que v) passar ao longe um transa-

    tlFntico, ouviu um rudo de carros, dois carros, que subiam pelo camin%o. "proima-ram-se e logo seguiram adiante, sem parar. =%amou-os, mas se sentia muito fraco e

    sua vo#, tin%a certe#a, no atravessaria aqueles du#entos metros."ntes do crepsculo, no sem esforo, levantou-se cambaleando e acendeu a lFm-

    pada. *o queria ficar no escuro. Ento inclinou-se apreensivamente para o espel%i-n%o que pendia do teto inclinado. & rosto no parecia mais comprido e fraco que an-tes, mas suas boc%ec%as estavam avermel%adas. &s grandes ol%os a#uis, congestio-nados, que o ol%avam com um ardor febril, e o %irsuto cabelo castan%o, completa-vam o retrato de um %omem muito doente.

    1oltou para a cama, sem medo, mas quase com certe#a de que ia morrer. Ae re-pente se sentia gelado9 em seguida, devorado pela febre. " lFmpada sobre a mesailuminava os cantos da cabana. & martelo continuava no c%o, com o cabo para

    cima, em um equilbrio precrio.e fi#esse um testamento, um testamento como os de antigamente, divagou, noqual se descreviam todos seus bens, diria: G/m martelo de mineiro9 peso da cabea,quatro libras9 cabo, trinta centmetros9 madeira ra!ada, estragada pela intemprie9metal enferru!ado, ainda utili#vel.H 3avia encontrado o martelo pouco antes de en-contrar a serpente, recebendo com alegria aquele legado do passado, de uma pocaem que os mineiros brandiam o martelo com uma mo e sustentavam o buril com aoutra. Nuatro libras quase o peso mimo que um %omem pode mane!ar dessemodo. *aquele delrio febril, pensou que uma fotografia do martelo podia muito bemilustrar sua tese.

    " noite foi um longo pesadelo: torturado por acessos de tosse, sufocado, consumi-do primeiro pelo frio e depois pela febre. /ma erupo semel%ante ao sarampo l%ecobriu o corpo.

    "o aman%ecer mergul%ou novamente em um sono profundo.

    *unca aconteceuH no igual a G*o acontecerH... eria como di#er: G*unca mor-ri, portanto sou imortal.H "ssistimos aterrados a uma invaso de gafan%otos ou degrilos. E de repente esses insetos, que pulularam de um modo alarmante, de repentedesaparecem da face da terra. &s animais superiores esto su!eitos a flutua;es pa-recidas. &s l)mingues t)m ciclos regulares. "s lebres da montan%a se multiplicamdurante anos e ac%amos que vo invadir o mundo. Ento, rapidamente, uma epide-mia acaba com elas. "lguns #o'logos sugeriram, inclusive, uma lei biol'gica: o n-mero de indivduos de uma espcia no constante, diminui e sobe. Nuanto maisdesenvolvida for a espcie, mais lenta a gestao e mais prolongadas as flutua-;es.

    Aurante a maior parte do sculo ODO o bfalo abundou nas estepes africanas. Eraum animal resistente, com poucos inimigos naturais, e um censo reali#ado a cadade# anos teria demonstrado que continuavam se propagando. Ento, no final do s-culo, quando eram mais numerosos, foram atacados repentinamente pela peste bovi-na. & bfalo se transformou em uma curiosidade naqueles territ'rios. 3 cinquentaanos, reconquista lentamente sua supremacia.

    Nuanto ao %omem, no se deve esperar que escape, em sua longa tra!et'ria, (

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    sorte dos animais inferiores. e % uma lei biol'gica de fluo e refluo, sua situaoagora muito perigosa. Aurante de# mil anos seu nmero vem aumentando cons-tantemente, apesar das guerras, das pestes e da fome. Biologicamente, a prosperi-dade do %omem foi muito longe.

    Ds% despertou no meio da man% com uma inesperada sensao de bem estar. 3a-via temido o pior, mas ! estava quase curado. K no sufocava e o inc%ao da mo%avia desaparecido. *o dia anterior %avia se sentido muito doente e no tin%a pensa-do na mordida. "gora a mo e sua doena eram somente recorda;es, como se uma%ouvesse curado a outra. "o meio-dia %avia recobrado a lucide# e quase todas suasforas.

    Aepois de um almoo leve, decidiu que podia ir ( casa de Ko%nson. *o se preocu-pou em empacotar suas coisas. evaria seu importante livro de notas e sua cFmarafotogrfica. *o ltimo instante, obedecendo a um impulso, pegou tambm o martelo.

    Entrou no carro e se pJs lentamente em marc%a, tentando no usar a mo direita.*o ranc%o de Ko%nson reinava o sil)ncio. arou o carro !unto ( bomba de gasolina.*ingum saiu para receb)-lo, mas isso no era estran%o, pois a bomba de Ko%nson,como muitas outras nas montan%as, poucas ve#es era usada. 2ocou a bu#ina e vol-tou a esperar.

    "p's um instante, saltou do carro e subiu a escada desengonada que levava (moradia-arma#m. "li os pescadores podiam comprar cigarros e conservas. Entrou,mas no %avia ningum.

    @icou um pouco surpreso. =omo acontecia frequentemente em seus perodos desolido, no sabia eatamente que dia era. Nuarta-feira, ac%ava, ou tera-feira, ou

    quinta. Nualquer dia da semana, menos domingo. *os domingos, e (s ve#es em al-guns sbados, os Ko%nson fec%avam o arma#m e saam para fa#er ecurso. Erampessoas desinteressadas que no misturavam os pra#eres com os neg'cios. Entre-tanto, viviam das vendas do arma#m na temporada de pesca e no podiam ausen-tar-se por muito tempo. E se tivessem sado de frias, teriam fec%ado a porta comc%ave. 0as aqueles montan%eses (s ve#es eram desconcertantes. & incidente bemque podia merecer um pargrafo em sua tese. Ae qualquer forma, a garagem docarro estava quase va#ia. =olocou trinta litros de gasolina no tanque e, no sem es-foro, preenc%eu um c%eque. Aeiou-o sobre o mostrador com uma nota: G*o en-contrei ningum. evo trinta litros. Ds%H.

    Enquanto descia pela estrada, foi assaltado por uma vaga inquietao: os Ko%nsonestavam fora em um dia de trabal%o9 a porta sem c%ave, nen%um pescador, um au-tom'vel na noite e, algo ainda mais estran%o, aqueles %omens que tin%am fugido aoencontrarem um %omem doente em uma cabana solitria. 0as o sol bril%ava e a moquase ! no doa. E aquela febre esquisita, admitindo que fosse devida ( ao doveneno, %avia desaparecido.

    " estrada descia por entre bosques de pin%eiros, borde!ando um riac%in%o tormen-toso. "o c%egar na central eltrica de BlacC =reeC, Ds% sentiu-se novamente sereno elcido. *a central tudo estava como sempre. &s dnamos #umbiam, a gua borbul%a-va. /ma lu# bril%ava no poente. Ds% ac%ou que estaria continuamente acesa. "li %a-via ecesso de eletricidade.

    or um momento, pensou em cru#ar a ponte e c%egar no edifcio. encontraria

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    algum e se livraria daquele estran%o temor. 0as o rudo dos geradores o tranquili#a-va. "o fim e ao cabo, a central trabal%ava como sempre. =erto, no se via ningum,mas aqueles mecanismos automticos precisavam de poucos %omens e eles quasenunca saam.

    K estava se afastando, quando um co ovel%eiro saiu do edifcio. eparado de Ds%pelo riac%in%o, ladrou furiosamente, correndo de um lado para outro, ecitado.

    Nue cac%orro esquisitoL, pensou Ds%. Nue estar acontecendo com ele$ Estarpensando que vou roubar a central$ ealmente, as pessoas subestimam a intelig)n-cia dos cac%orros.

    Aobrou uma curva e os latidos se perderam ao longe. 0as a c'lera do co tin%asido outra prova de normalidade. Ds% comeou a assobiar alegremente. Nuin#e quilJ-metros e c%egaria ( primeira cidade, uma pequena cidade c%amada 3utsonville.

    =onsideremos o caso do rato do =apito 0aclear. Esse interessante roedor %abita-

    va a il%a de =%ristmas, um berrio tropical a uns tre#entos quilJmetros ao sul deKava. " espcie %avia sido descrita cientificamente pela primeira ve# em 5PP?. *ocrFnio, muito desenvolvido, sobressaiam notavelmente os arcos supraorbitais e aaresta anterior da placa #igomtica.

    /m naturalista observou que os ratos povoavam a il%a em GmiradesH, alimentando-se de frutas e ra#es tenras. " il%a era seu universo, seu paraso terrestre. 0as na-quela vegetao no precisavam brigar entre eles. 2odos os eemplares estavambem alimentados e at demasiadamente gordos. Em 56QR foram atacados por umadoena nova. Ecessivamente numerosos, vulnerveis por causa do pr'prio bem-estar, os ratos no puderam resistir ao contgio e logo morriam aos mil%ares. "pesar

    do seu nmero, apesar da sua facilidade em se reprodu#ir, a espcie se etinguiu.=%egou ao alto da encosta e viu 3utsonville aos seus ps, a um quilJmetro de dis-

    tFncia.K estava descendo, quando vislumbrou algo que l%e gelou o sangue. @reou auto-

    maticamente. altou do carro e correu para trs, incrdulo. "li, !unto ( estrada, ( vis-ta de todos, !a#ia o cadver de um %omem em terno de passeio. "s formigas co-briam-l%e o rosto. & cadver estava ali % um dia ou dois. =omo no o tin%am visto$Ds% no se aproimou para eamin-lo. 2in%a que avisar imediatamente o comissriode 3utsonville e ento voltou rapidamente para o carro.

    Entretanto, ! no carro, teve a curiosa impresso de que aquilo no concernia aocomissrio e que possivelmente nem sequer %averia comissrio. *o tin%a visto nin-gum no ranc%o de Ko%nson nem na central e no %avia encontrado carro algum naestrada. &s nicos restos do passado eram, ao que parecia, a lu# do poente e o tran-quilo rudo dos geradores.

    "s primeiras casas ! apareciam ao longo do camin%o. Ds% respirou aliviado. "li, emum solar va#io, uma galin%a escarvava o c%o, rodeada por meia d#ia de pintin%os./m pouco mais adiante, um gato preto e branco passeava tranquilamente pela cala-da, como se aquele dia de !un%o fosse igual a qualquer outro.

    & calor do meio-dia pesava sobre a rua solitria. =omo em uma cidade meicana,pensou Ds%, todo mundo est fa#endo a siesta. Ento, de repente compreendeu que

    seu pensamento %avia sido como um assovio, para se animar. =%egou ao centro da

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    cidade, parou o carro !unto ( calada e desceu. *o %avia ningum.Empurrou a porta de um pequeno restaurante. Estava aberto e ele entrou.- &lL - c%amou.*ingum saiu ao seu encontro. *en%um eco veio tranquili#-lo.

    & banco estava fec%ado, apesar da %ora. E aquele dia s' podia ser Sagora tin%acerte#aT tera-feira ou quarta-feira, ou quinta. Nuem sou eu na verdade$, pensou.ip van

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    tou o pesado martelo e golpeou com fora a fec%adura. " madeira se fe# em estil%a-os, a porta se abriu e Ds% entrou no quiosque.

    egou um !ornal e teve a primeira surpresa. & =%ronicle tin%a %abitualmente vinteou trinta pginas. Este eemplar parecia um semanrio caipira, uma simples fol%a

    dupla. " data era da quarta-feira da semana anterior."s manc%etes revelavam o essencial: uma epidemia descon%ecida, que se propa-

    gara com uma velocidade sem precedentes, levando a morte a todos os lugares, %a-via devastado os Estados /nidos de costa a costa. "s cifras recol%idas em algumascidades, e de valor relativo, indicavam que %avia morrido entre vinte e cinco e trintaporcento da populao. *o %avia notcias de Boston, de "tlanta ou de *e &rleans.&s servios informativos dessas cidades pareciam estar interrompidos. Eaminou ra-pidamente o resto do !ornal, obtendo assim uma ideia geral, embora muito confusa.elos sintomas, a doena parecia com o sarampo... um sarampo mortal. *ingum co-n%ecia suas origens. & ir e vir dos avi;es a %avia feito aparecer quase que simultane-

    amente nos centros mais importantes, frustrando toda tentativa de quarentena.Em uma entrevista, um clebre bacteriologista assinalava que a possibilidade denovas doenas preocupava % muito tempo os %omens da ci)ncia. *o passado tin%a%avido eemplos curiosos, embora de escassa importFncia, como a febre inglesa e afebre N. Nuanto ( sua origem, tr)s %ip'teses eram possveis: alguma doena animal9algum micro-organismo novo, um vrus, possivelmente produ#ido por mutao9 umacidente - talve# provocado - em um laborat'rio de guerra bacteriol'gica. Esta ltimaparecia ser a culpada, era a crena popular. resumia-se que o pr'prio ar transmitiaa enfermidade, possivelmente com as partculas de p'. & isolamento do doente noservia de nada.

    Em uma entrevista telefJnica, um vel%o e rude sbio ingl)s %avia comentado: GAu-rante vrios mil%;es de anos o %omem desenvolveu sua estupide#. *o derramareiuma lgrima sobre sua tumba.H

    *o outro etremo, um crtico americano, igualmente rude, %avia dito: G' a fpode nos salvar agora9 passo as %oras re#ando.H

    "ssinalavam-se alguns saques, sobretudo em bares. Em geral, entretanto, o medo%avia a!udado a manter o povo em ordem. Em ouisville e poCane, os inc)ndiosvarriam a cidade, pois no %avia bombeiros.

    "inda naquela edio, que Sos !ornalistas no poderiam t)-lo ignoradoT seria a lti -ma, %aviam sido includas algumas notcias pitorescas. Em &ma%a, um fantico %aviacorrido nu pelas ruas, anunciando o fim do mundo e a abertura do timo elo. Emacramento, uma louca %avia aberto as !aulas do circo, temendo que os animaismorressem de fome, e tin%a sido devorada por uma leoa.

    eguia-se uma nota de maior interesse cientfico. egundo o diretor do #ool'gicode an Aiego, os macacos morriam como moscas, mas os outros animas no tin%amsido afetados.

    Ds% sentiu que desfalecia diante daquele acmulo de %orrores. ua solido o ater-rava. Entretanto continuou lendo, como que %ipnoti#ado.

    elo menos a civili#ao, a raa %umana... %avia desaparecido elegantemente.0uitos %aviam escapado das cidades, mas os outros - de acordo com aquelas not-

    cias da semana anterior - no tin%am sido arrastados pelo pFnico. " civili#ao %avia

    batido em retirada, mas levando seus feridos e sem deiar de se defender. &s mdi-

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    cos e as enfermeiras tin%am continuado em seus postos e muitos mil%ares tin%am seoferecido como voluntrios. =idades inteiras %aviam servido de %ospitais e pontos deconcentrao. 2odo o comrcio tin%a parado, mas os alimentos ainda eram distribu-dos, como em uma cidade sitiada. Embora a populao %ouvesse diminudo em uma

    tera parte, o servio telefJnico, a gua, a lu# e energia eltrica continuavam funcio-nando. ara evitar certos %orrores, que talve# tivessem levado a uma completa des-morali#ao, os mortos deviam ser enterrados imediatamente em fossas comuns.

    Ds% c%egou ( ltima lin%a e voltou a reler tudo com mais cuidado. obrava-l%etempo. Ento saiu e sentou-se no carro. *o %avia motivo algum, refletiu, para quesentasse em seu pr'prio carro e no em outro qualquer. &s direitos de propriedade%aviam desaparecido, mas ali ele se sentia mais cJmodo.

    & cac%orro gordo voltou a passar pela rua, mas Ds% no o c%amou. @icou ali porum instante, ensimesmado. 0al conseguia pensar9 a mente dava-l%e voltas e voltas,sem c%egar a parte alguma.

    =aa a tarde quando ligou o motor e levou o carro rua abaio, parando de ve# emquando para tocar a bu#ina. Aobrou em uma rua lateral e deu uma volta ( cidade,c%amando regularmente. assou assim quase um quarto de %ora e se encontrou ou-tra ve# no ponto de partida. *o tin%a visto ningum, nem %avia recebido nen%umaresposta. 3avia encontrado quatros ces, alguns gatos, vrias galin%as etraviadas,uma vaca que pastava em um solar va#io com um pedao de corda no pescoo e umrato que fare!ava em um umbral.

    Ds% se dirigiu ento para uma casa nas cercanias que S%avia-l%e parecidoT era amel%or da cidade. Aesceu do carro com o martelo na mo. Aesta ve# no %esitou umminuto. +olpeou tr)s ve#es com fora e a porta cedeu. 2al como supun%a, %avia no

    vestbulo um grande aparel%o de rdio. Dnspecionou rapidamente o trreo e o andarsuperior. *o encontrou ningum e voltou ao vestbulo. " eletricidade ainda funcio-nava. Esperou por uns instantes e depois procurou cuidadosamente. ' ouviu unsfracos rudos parasitas. 2entou a onda curta, mas sem )ito. 0etodicamente, eplo-rou todas as frequ)ncias. =laro, pensou, se alguma estao ainda funciona, provavel-mente no transmitir vinte quatro %oras por dia. Aeiou o rdio em uma frequ)nciaque correspondia - ou %avia correspondido - a uma potente emissora. Ento dei-tou-se no sof.

    "pesar daqueles %orrores, sentia a curiosidade desinteressada de um espectador,como se assistisse ao ltimo ato de uma tragdia. =ontinuava sendo o que era, ou oque tin%a sido - o tempo do verbo no importava: - um intelectual, um sbio incipi-ente, mais inclinado a observar os acontecimentos que participar deles.

    "ssim, aconteceu de contemplar a catstrofe - com uma satisfao irJnica, emboramomentFnea - como a demonstrao de um aforismo enunciado um dia por seu pro-fessor de economia poltica: G& desastre temido nunca c%ega, a tel%a cai onde me-nos se esperaH. 3avia-se temido uma guerra destruidora, o pesadelo de cidades arra-sadas, %ecatombes de %omens e animais, terras estreis. 0as na realidade s' a %u-manidade %avia sido suprimida, e quase com limpe#a, com um mnimo de transtor-nos. &s sobreviventes, se que %aviam, seriam os reis da terra.

    Dnstalou-se comodamente no sof. " noite era quente. Esgotado fisicamente peladoena e por tantas emo;es, no demorou a adormecer.

    em cima, no cu, a lua, os planetas e as estrelas percorrem suas longas e tran-

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    quilas 'rbitas. *o t)m ol%os e no v)em. Entretanto, alguma ve# o %omem %aviaimaginado que ol%avam para a terra.

    0as se vissem realmente, que veriam esta noite$*en%uma mudana. Embora o fumo das c%amins ! no turvasse a atmosfera,

    pesadas labaredas ainda surgem dos vulc;es e dos bosques incendiados. 1isto dalua, o planeta teria esta noite seu resplendor de costume9 nem mais bril%ante nemmais escuro.

    Aespertou em pleno dia. "briu e fec%ou a mo. " dor da mordida era agora umpequeno aborrecimento local. entia a cabea leve e compreendeu que a outra do-ena, se tin%a %avido outra doena, tambm desaparecia. &correu-l%e algo. " epli-cao era evidente: %avia padecido aquela enfermidade, combatendo-a com o vene-no que tin%a no sangue. 0icr'bio e veneno %aviam se destrudo mutuamente. elomenos aquilo eplicava porque continuava vivo.

    =ontinuou no sof, tranquilo e im'vel, e os fragmentos isolados do quebra-cabeacomearam a se ordenar. &s %omens que %avia visto na cabana... eram somente unspobres fugitivos, que fugiam da peste. & carro que %avia subido pela estrada nomeio da noite, levava talve# outros fugitivos, possivelmente os Ko%nson. & ecitadoco ovel%eiro %avia tentado comunicar-l%e os acontecimentos da central.

    0as a ideia de ser o nico sobrevivente no l%e perturbava demais. 3avia vividoso#in%o durante um certo tempo. *o %avia assistido ( tragdia, nem tin%a vistomorrer seus semel%antes. "o mesmo tempo no podia acreditar Se no %avia porqueacreditarT que fosse o ltimo %omem sobre a terra. egundo o !ornal, a populao%avia diminudo de um tero. & sil)ncio que reinava em 3utsonville demonstrava so-

    mente que seus %abitantes %avia se dispersado ou se refugiado em outra cidade. "n-tes de c%orar pelo fim do mundo e pela morte do %omem, tin%a que descobrir se omundo ! no eistia e se o %omem %avia morrido. "ntes de tudo, evidentemente,devia voltar ( casa paterna. 2alve# seus pais ainda vivessem. "ssim, com um planodefinido para o dia, sentiu a tranquilidade que sempre se seguia (s suas decis;es,ainda que temporrias.

    "o levantar-se, procurou outra ve# nas ondas do rdio, sem resultado.Eplorou a co#in%a. & refrigerador ainda funcionava. *a despensa %avia alguns ali-

    mentos, embora no tantos como podia se esperar. "s provis;es, aparentemente,%aviam escasseado nos ltimos dias. "inda assim, %avia meia d#ia de ovos, uma li-bra de manteiga, um pouco de presunto, alguns alfaces e algumas poucas sobras.Em um armarin%o encontrou uma lata de suco de toran!a e, em uma gaveta, um poduro de uns cinco dias atrs9 a data, sem dvida, em que a cidade %avia sido aban-donada.

    Estas provis;es e um fogo ao ar livre l%e teriam bastado para preparar uma boarefeio, mas quando ligou os controles do fogo eltrico, notou que as c%apas aindaesquentavam. reparou um copioso des!e!um e transformou o po em torradas acei-tveis. Nuando voltava das montan%as, sempre sentia necessidade de comer legu-mes frescos9 e ao costumeiro des!e!um de ovos, presunto e caf, acrescentou umaabundante salada de alface.

    1oltou para o sof. Em uma mesin%a %avia uma caia de laca vermel%a9 abriu-a e

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    tirou um cigarro."t agora, refletiu, a vida material no apresenta problemas.& cigarro estava bastante fresco. =om um bom des!e!um e um bom cigarro, o %u-

    mor de Ds% mudou sensivelmente. *a realidade, %avia afastado as inquieta;es, dei-

    ando-as para mais tarde, se descobrisse que eram !ustificadas.Nuando acabou de fumar, ac%ou que no valia a pena lavar os pratos9 mas, como

    era naturalmente cuidadoso, verificou se %avia fec%ado a geladeira e os controles dofogo. Ento pegou o martelo, que l%e %avia sido to til, e saiu pela porta destroa-da. Entrou no carro e partiu para a casa paterna.

    " quase um quilJmetro da cidade, passou diante do cemitrio e se assombrou porno ter pensado nele no dia anterior. em descer do carro, notou uma nova e longafileira de tmulos e uma escavadeira !unto a um monte de terra. "s pessoas que %a-viam abandonado 3utsonville, pensou, talve# no fossem muito numerosas.

    0ais alm do cemitrio, a estrava atravessava um terreno plano. "nte aquele espa-

    o deserto, Ds% sentiu-se deprimido outra ve#9 Aese!aria ouvir pelo menos o barul%ode um camin%o colina acima9 mas no %ouve tal camin%o.Em um campo, alguns novil%os e cavalos balanavam as caudas, espantando os in-

    setos, como em qualquer man% de vero. 0ais adiante, as ps de um moin%o gira-vam lentamente e diante de um coc%o crescia o mato. E isso era tudo.

    Entretanto, aquela estrada no era muito transitada e em qualquer outro dia Ds%teria percorrido vrios quilJmetros sem ver ningum. or fim c%egou ( estrada prin-cipal. "s lu#es vermel%as do cru#amento estavam acesas. @reou automaticamente.0as as quatro pistas, onde %avia corrido um rio de camin%;es, Jnibus e autom'veis,estavam desertas. Aepois de parar um momento diante da lu# vermel%a, Ds% pJs-se

    novamente em marc%a./m pouco mais adiante, enquanto corria livremente pela estrada, sentiu-se envoltoem uma atmosfera lgubre, espectral. Dnclinou-se sobre o volante, como que domi-nado por um torpor. Ae ve# em quando, algum espetculo ins'lito parecia des-pert-lo.

    "lguma coisa saltou ( sua frente, no camin%o. "celerou rapidamente. /m co$*o9 notou as orel%as pontiagudas e as patas finas, de cor clara, um cin#a amarela-do. Era um coiote que corria tranquilamente pela estrada em pleno dia. /m instintomisterioso %avia-l%e avisado que o mundo %avia mudado e que podia tomar novas li-berdades. Ds% aproimou-se, tocando a bu#ina, e o animal deu meia volta, passoupara o outro lado da estrada e se afastou sem parecer muito assustado...

    Aois carros virados, em um Fngulo etravagante, bloqueavam parcialmente o ca-min%o. Ds% parou. & cadver esmagado de um %omem assomava por baio de umdos autom'veis. *o %avia outros corpos, mas o sangue cobria a estrada. 0esmo sel%e tivesse parecido necessrio, no teria podido levantar o carro para tirar o corpo edar-l%e sepultura.

    eguiu adiante.Em uma cidade importante SDs% no gravou seu nomeT parou para abastecer o car-

    ro com gasolina. "inda %avia eletricidade. Enc%eu o tanque em um posto de combus-tvel. =omo o carro %avia andado muito tempo pelas montan%as, revisou o radiador ea bateria e escutou o rudo do motor.

    im, o %omem %avia desaparecido, mas todos seus engen%osos aparel%os ainda

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    trabal%avam, sem sua vigilFncia...*a rua principal de outra cidade, tocou a bu#ina por longo tempo. ealmente no

    esperava conseguir resposta alguma, mas esta rua, sem saber porque, l%e pareciamais normal. &s carros estavam estacionados ao longo das caladas. arecia um do-

    mingo pela man%, com os neg'cios fec%ados, quando as pessoas ainda no tin%aminiciado suas idas e vindas. 0as no era to cedo, pois o sol ! %avia subido no cu.Dmediatamente compreendeu porque %avia parado e porque a rua parecia ilusoria-mente animada. Em frente a um restaurante c%amado 2%e Aerb8, ainda funcionavaum letreiro luminoso: um cavalin%o que movia as patas, galopando. M lua do dia, s'o movimento c%amava a ateno9 a lua rosada mal era visvel. Ds% ol%ou por uns ins-tantes e notou o ritmo: um, dois, tr)s. E as patas do cavalo quase se recol%iam de-baio do tronco. Nuatro... as patas reapareciam e o ventre parecia tocar o solo. /m,dois, tr)s quatro. /m, dois, tr)s, quatro. +alopava freneticamente9 e essa corridasem testemun%as no levava a parte alguma. Era um cavalo valente, pensou Ds%,

    embora fosse insensato e intil. mbolo, talve#, dessa civili#ao que %avia orgul%a-do o %omem e, que lanada a galope, no alcanava meta alguma, destinada algumdia, ! sem foras, a parar para sempre...

    /ma fumarada se elevava no ar. Ds% sentiu que o corao l%e saltava no peito.Aobrou rapidamente em uma rua lateral. 0as antes de c%egar, ! sabia que no

    encontraria ningum. =om efeito, era somente uma gran!a que comeava a arder.0esmo em um lugar desabitado, muitas coisas podiam provocar um inc)ndio. /mmonte de lios oleosos que se inflamavam espontaneamente, ou algum aparel%o el-trico ainda ligado, ou o motor de um refrigerador. " gran!a estava condenada. *o%avia modo de apagar o fogo nem motivos para se preocupar. Aeu meia volta e vol-

    tou ( estrada.Airigia lentamente e frequentemente parava para investigar, sem muitas esperan-as. Ms ve#es via alguns cadveres, mas geralmente s' encontrava solido e va#io. "incubao parecia ter sido bastante lenta, pois os doentes tin%am cado pelas ruas.

    /ma ve# atravessou uma cidade onde o fedor dos corpos putrefatos envenenava aatmosfera. embrou de ter lido no !ornal que certas #onas tin%am sido pontos deconcentrao, transformando-se assim em enormes morgues. 2udo falava de mortenaquela cidade. *o era necessrio deter-se.

    "o cair da tarde c%egou ao alto da colina e a baa se abriu dante dele, envolta noesplendor do sol poente. Em diferentes pontos da cidade, que se estendia at se per-der de vista, alavam-se algumas colunas de fumaa. @oi para a casa dos seus pais.*o tin%a esperanas. ' um milagre o %avia salvo. eria o milagre dos milagres se aepidemia %ouvesse perdoado sua famliaL

    aiu do bulevar e dobrou na avenida an upo. 2udo tin%a a mesma apar)ncia,embora as caladas no estivessem muito limpas. 0as a rua ainda mantin%a seu de-coro. *o %avia cadveres, embora isso fosse inimaginvel na avenida an upo. 1iua vel%a gata cin#enta dos 3atfieldes, que dormia ao sol nos degraus da varanda,como tantas outras ve#es. Aespertada pelo rudo do motor, levantou-se, estirando-sepreguiosamente.

    arou em frente ( casa, tocou a bu#ina por duas ve#es e esperou. *ada. aiu docarro e subiu as escadas. omente depois de entrar foi que notou que no %aviam

    fec%ado a porta. " casa estava em ordem. Aeu uma ol%ada, apreensivamente, mas

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    tudo estava normal.2alve# l%e tivessem deiado uma nota, indicando-l%e para onde %aviam ido.rocurou em vo na sala. Em cima, tampouco %avia nada diferente9 mas no quar-

    tos dos seus pais as duas camas estavam por fa#er. entiu um va#io e saiu do quarto

    cambaleando. egurando-se na grade, voltou a descer as escadas." co#in%a, pensou, e sua cabea aliviou-se um pouco diante da perspectiva de

    algo concreto. "o abrir a porta, teve a impresso de %aver vida e movimento. 0a erasomente o ponteiro de segundos do rel'gio eltrico, que neste instante deiava avertical, iniciando a descida at o nmero seis. Nuase a seguir sobressaltou-se comum rudo repentino. & motor do refrigerador, que %avia comeado a #umbir, como sea c%egada de um ser %umano tivesse perturbado seu repouso.

    Ds%, sacudido por um violento mal-estar, voltou a sair e sentou-se no carro. *o sesentia doente, e sim fraco e tremendamente abatido. e fi#esse uma espcie de in-vestigao policial, revolvendo armrios e gavetas, provavelmente descobrisse algo.

    0as de que serviria se torturar assim$ "s %ist'ria, em suas lin%as principais, era clarademais. dentro no %avia nen%um cadver9 feli#mente. 2ampouco %averia espec-tros, imaginava... Embora o rel'gio e o refrigerador quase se parecessem com um.

    Aevia regressar ( casa ou continuar a viagem$ *o primeiro momento pensou queno se atreveria a entrar outra ve# naqueles quartos va#ios. &correu-l%e ento queseus pais, se porventura continuassem vivos, voltariam para casa, como ele. "o cabode meia %ora, vencendo sua repugnFncia, franqueou o umbral.

    ercorreu outra ve# os aposentos, onde se ouvia a linguagem pattica das casasabandonadas. Ae ve# em quando algum ob!eto l%e falava com mais fora... a caraenciclopdia que seu pai %avia comprado recentemente, ap's muitas dvidas... o

    vaso de gerFnios de sua me, que agora estava precisando de gua... o barJmetroque seu pai consultava todas as man%s antes do caf. im, era uma simples casade um %umilde professor de %ist'ria que vivia entregue aos seus livros, e de umamul%er - secretria da U

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    luminosos, alguns pelo menos, continuavam acesos. anavam pateticamente seu re-clames publicitrios a um mundo sem clientes nem vendedores. /m enorme carta#,que uma casa pr'ima ocultava em parte, continuava transmitindo: Beba... 0as Ds%no via o que devia beber.

    =ontinuou ol%ando, quase %ipnoti#ado. Beba... escurido. Beba... escurido.Beba... Bem, por que no$, pensou. @oi buscar a garrafa de con%aque do seu pai.0as o con%aque era fraco e no encontrou nele nen%um consolo. *o sou %omem,pensou, de buscar a morte no lcool.

    & anuncio que bril%ava l em baio era mais interessante.Beba... escurido. Beba... escurido. Beba. or quanto tempo bril%ariam essas lu-

    #es$ =omo se apagariam$ Nue mecanismos continuariam funcionando$ Nue destinoteria esta obra edificada ao longo dos sculos e que agora sobrevivia ao seu criador$

    upon%o, pensou Ds%, que a mel%or soluo seria o suicdio. 0as no, muitocedo. Estou vivo e talve# %a!a outros sobreviventes. omos como molculas de gs

    que flutuam sem se encontrarem em um pneumtico va#io.=aiu novamente em um desalento pr'imo ao desespero. im, podia viver alimen-tando-se como um necr'fago dos vveres dos arma#ns. odia unir-se a outros %o-mens. E depois$ e tivesse encontrado meia du#ia de amigos, tudo seria diferente.0as agora no poderia evitar os imbecis, ou ainda os canal%as.

    evantou os ol%os e viu outra ve# o anncio que bril%ava ao longe: Beba... escuri-do. Beba... escurido. Beba. E voltou a se perguntar por quanto tempo ainda bril%a-riam aquelas inteis letras de fogo. E aquilo que %avia visto durante o dia. Nue seriado coiote que corria aos saltos pela estrada$ "s vacas e os cavalos passeavam lenta-mente ao redor do bebedouro ou sob as ps do moin%o. Aurante quanto tempo gira-

    ria o moin%o, tirando gua das profunde#as da terra$Ento teve um sobressalto. arecia que o dese!o de viver despertava nele. *o se-ria um ator, talve#9 no restavam papeis para ele no mundo, mas pelo menos seriaum espectador a mais9 um espectador ! %abituado a observar o mundo. " cortina%avia cado, era certo9 mas agora, ante seu ol%ar de pesquisador, ia desenrolar-se oprimeiro ato de um drama ins'lito.

    Aurante mil%ares de anos o %omem %avia sido o sen%or indiscutvel da terra. E eisque esse rei da criao desaparecia agora, talve# por muito tempo, talve# para sem-pre. Embora a raa %umana no %ouvesse se etinguido de todo, os sobreviventeslevariam sculos para retomar as rdeas do poder. Nue seria do mundo e das suascriaturas sem o %omem$ Bem, ele, Ds%, ia ver.

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    0as quando se deitou no conseguiu dormir. & frio abrao da nvoa estival envol-veu a casa e a consci)ncia da sua solido se transformou em medo e pFnico. evan-tou-se e, colocando uma bata, foi sentar-se diante do aparel%o de radio. rocuroufreneticamente em todas as ondas. ' ouviu rudos fracos.

    Ento lembrou-se do telefone. 2irou do ganc%o e ouviu o #umbido familiar. Aiscouum nmero9 um nmero qualquer. " campain%a soou em uma casa distante. Ds%ac%ou ter ouvido um despertar de ecos nas resid)ncias va#ias. *a dcima c%amada,desligou o telefone. 2entou um segundo nmero, e um terceiro... e parou de ligar.

    &correu-l%e ento outra ideia. "crescentou um refletor ( lFmpada e, de p na va-randa, lanou uma mensagem para a cidade noturna: tr)s pontos, tr)s traos, tr)spontos, o .&.., em que %aviam posto suas esperanas tantos %omens ameaadospela morte. 0as no %ouve resposta. "p's um momento, compreendeu que seus si-nais passariam inadvertidos entre as lu#es da cidade.

    Entrou em casa tremendo de frio. igou uma c%ave e o motor da calefao se pJsem marc%a. " eletricidade ainda funcionava e no tanque ainda %avia combustvel.

    *esse sentido no tin%a problemas. entou-se e depois de poucos minutos apagouas lu#es, com a curiosa sensao de que eram visveis demais. " nvoa e a escuridoo protegeriam com seus vus impenetrveis. Entretanto, angustiado pela solido, co-locou o martelo ao alcance da mo.

    /m grito espantoso afastou a escurido. 2remendo da cabea aos ps, Ds% demo-rou em recon%ecer a c%amada de amor de um gato, um som familiar nas noites deestio, mesmo no aristocrtico an upo. &s miados continuaram por algum tempo epor fim os latidos de um co interromperam o idlio. & sil)ncio voltou a apoderar-seda noite.

    ara eles tambm termina um mundo de vinte mil anos. Ka#em nos canis, com aslnguas inc%adas, mortos de sede. erdigueiros, ovel%eiros, pequineses, lebreiros. &smais afortunados vagam pela cidade e pelos campos, bebendo nos riac%os, nas fon-tes, nos tanques povoados de peies vermel%os. Buscam por todas as partes algumacoisa para comer, perseguem uma galin%a, pegam um esquilo no parque. E pouco apouco as torturas da fome apagam sculos de servido. @urtivamente, acercam-sedos cadveres insepultos.

    & animal de raa ! no se distingue pela altura, pela forma da cabea ou pela cordo pelo. @ora do concurso, rncipe de iedmont D1 no supera o ltimo cu#co derua. & pr)mio, o direito a sobreviver, obtido pelo mais engen%oso, com maior vigor,

    com uma mandbula mais forte, ou aquele que sabe adaptar-se (s novas condi;es

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    de vida e que, de volta ( selvageria, vence seus rivais, assegurando sua subsist)ncia9)ssego, o poodle cor de mel, permanece deitado, triste e aflito, debilitado pela

    fome, pouco inteligente, de patas curtas demais para perseguir as presas... pot, omestio predileto das crianas, tem a sorte de encontrar uma nin%ada de gatin%os e

    os mata, no por crueldade, e sim para com)-los... *ed, o terrier de pelo duro, inde-pendente por nature#a e amigo de correrias, persegue sem dificuldades... Bridget, osetter vermel%o, estremece, e de ve# em quando lana para o cu um uivo que ter-mina em um queiume. ua alma bondosa no tolera um mundo sem deuses.

    *aquela man% Ds% traou um plano. Em um distrito urbano de mil%;es de %abi-tantes, outros deviam ter sobrevivido. " soluo era evidente: tin%a que encontrar al-gum, em qualquer lugar. 0as, como$

    ercorreu toda a vi#in%ana, esperando descobrir algum descon%ecido, 0as as ca-sas pareciam desabitadas. "s flores murc%avam nos !ardins ressecados.

    egressou, cru#ou o parque das suas brincadeiras infantis, e subiu nas roc%as.Auas delas se tocavam em cima, formando uma espcie de gruta, um refgio natu-ral, primitivo, onde Ds% frequentemente tin%a se escondido. &l%ou. *o %avia nin-gum.

    Em uma larga superfcie roc%osa que seguia a inclinao da colina, os ndios %avi-am aberto uns buracos com seus martelos de pedra. & mundo dos pele vermel%asdesapareceu, pensou Ds%. E agora desaparece tambm outro mundo. erei eu seu l -timo representante$

    Entrou no carro e traou mentalmente a rota que poderia seguir para que a bu#inafosse ouvida em toda a cidade. artiu tocando a bu#ina a curtos intervalos, parando

    para esperar uma possvel resposta."s ruas tin%am o aspecto das primeiras %oras da man%. 3avia muitos carros esta-cionados e pouca desordem. Ae ve# em quando via um cadver9 algum doente aquem a morte %avia surpreendido na rua. Aois cac%orros vagavam perto de um cor-po. Em uma esquina, um cadver de um %omem pendia da cru#eta de um poste te-lefJnico, com um carta# no peito que di#ia: adro. Ds% entrou logo em uma #ona co-mercial e ento viu alguns sinais de viol)ncia. " vidraa de uma lo!a de bebidas foratransformada em estil%aos.

    aiu da #ona comercial, tocando a bu#ina outra ve#. 0eio minuto mais tarde, ou-viu-se outra bu#ina, distante e fraca. or um momento pensou que seus ouvidos oenganavam. 2ocou outra ve# e a resposta c%egou de imediato. & seu corao deuum salto. & eco, pensou. =%amou com uma bu#inada curta e outra longa e escutou." resposta foi um som breve e nico. Aeu meia volta e foi para o lugar de onde vi-n%a o som, a no mais de setecentos ou oitocentos metros. 2r)s ruas mais adiante,tocou de novo e esperou. 0ais ( direita, entrou em um beco sem sada, voltou atrse tentou outra rua. anou a c%amada e a resposta c%egou de mais perto. "vanourapidamente em lin%a reta e a resposta seguinte soou (s suas costas. etrocedeu eentrou em uma rua#in%a margeada de lo!as.

    3avia longas filas de carros !unto (s caladas, mas no viu ningum. Era esquisitoque aquele outro sobrevivente no estivesse no meio da rua fa#endo sinais. 2ocou abu#ina e a resposta quase o deiou surdo. arou o carro, desceu e correu. & %omem

    estava dentro de um autom'vel. Nuando Ds% se aproimou, ele desabou sobre o vo-

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    lante e ento caiu de lado. " bu#ina emitiu um longo queiume. /m bafo de usquec%egou ao nari# de Ds%. & %omem, de barba longa e %irsuta, o rosto su!o e vermel%o,estava completamente b)bado.

    Ds%, logo furioso, sacudiu o corpo cado. & %omem entreabriu os ol%os e grun%iu,

    como se perguntando o que estava acontecendo. Ds% sentou o corpo inerte. 2atean-do, a mo do %omem procurou a garrafa de usque em um canto do assento. Ds% adi-antou-se a ele e !ogou a garrafa na rua, onde quebrou-se ruidosamente. entia-seamargurado e furioso. 3avia ali uma terrvel ironia. 3avia encontrado um nico so-brevivente, que era um pobre vel%o b)bado que no servia para nada neste mundonem em nen%um outro.

    &s ol%os do %omem ento se abriram e a ira de Ds% transformou-se em uma enor-me piedade. "queles ol%os tin%am visto demais. 3avia neles espanto e %orror. & cor-po su!o e doente escondia de algum modo uma mente sensvel que agora s' dese!a-va esquecer.

    Ds% sentou-se !unto ao b)bado. &s ol%os do %omem ol%aram aqui e ali, como queperdidos, e a tragdia pareceu crescer neles. Ds% imediatamente pegou na sua mo eprocurou o pulso. Estava fraco e irregular. *o l%e restavam seno algumas %oras devida. Bem, pensou Ds%, o sobrevivente podia ter sido uma garota, ou um %omem in-teligente, mas era esse b)bado a quem ningum podia a!udar.

    "p's uns instantes, Ds% saiu do carro e entrou no bar. 3avia um gato no balco.Ds% ac%ou que estivesse morto, mas o animal logo se moveu. 2in%a estado dormindo,simplesmente. & gatou ol%ou para Ds% com a fria insol)ncia com que uma duquesaol%a para sua camareira. Ds% sentiu-se incomodado e teve que recordar que os gatossempre %aviam sido assim. & animal parecia contente e bem alimentado. Ds% ol%ou

    para as prateleiras e notou que o b)bado no %avia se preocupado em escol%er suagarrafa. /m usque qualquer l%e tin%a bastado.aiu e viu que o %omem %avia encontrado outra garrafa em algum lugar e que be-

    bia em grandes tragos. *o %avia muito o que fa#er, mas Ds% decidiu tentar."poiou-se na !anela. & %omem, talve# animado outra ve# pelo lcool, parecia mais

    lcido. &l%ou para Ds% e sorriu pateticamente.- 3o... %o... a% - disse, com vo# pastosa.- =omo se sente$ - perguntou Ds%.- Bar... el... lo - balbuciou o outroDs% tentou decifrar aqueles sons. & %omem esboou novamente seu pattico sorri-

    so infantil e repetiu com uma vo# um pouco mais clara:- *o... BarVl... lo.Ds% mal compreendeu.- eu nome Barlo, no$ - perguntou - Barlo$& %omem assentiu, sorriu e, antes que Ds pudesse impedi-lo, tomou outro trago.

    Ds% sentiu-se mais triste que furioso. Nue importava agora um nome$ *o obstante,o sen%or Barlo, submerso nas nvoas do lcool, tentava cumprir com uma normade civili#ada cortesia.

    Em seguida, muito lentamente, o sen%or Barlo desabou outra ve# no assento e agarrafa caiu e esva#iou-se no c%o do carro.

    Ds% estava %esitante. /niria sua sorte ( do %omem, tentando cur-lo ou re-

    form-lo$ & sen%or Barlo parecia um caso sem esperanas. E se ficasse ali podia

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    perder a c%ance de encontrar algum outro.- @ique aqui - disse ao %omem deitado, talve# inconsciente. - Eu voltarei.

    &s gatos tin%am sido dominados pelo %omem por somente cinco mil anos e nunca

    %aviam aceito de bom grado essa dominao. &s eemplares encerrados nas casaslogo morreram de sede. 0as os que ficaram na rua se arran!aram mel%or que osces.

    " caa ao rato deiou de ser um !ogo para transformar-se em uma indstria. &sgatos caam pssaros, rondam pelas ruas e avenidas, procurando alguma lata dedesperdcios que os ratos ainda no tin%am saqueado. aem dos limites da cidade einvadem as guaridas de codorni#es e coel%os. "li se encontram com outros gatos re-almente selvagens9 e o fim sangrento e rpido, pois os vigorosos %abitantes dosbosques despedaam os gatos citadinos.

    Aesta ve# o som era mais insistente.& %omem que tocava a bu#ina no parecia b)bado. Ds% aproimou-se e viu um %o-mem e uma mul%er. iam e fa#iam-l%e sinais. Aesceu do carro. & %omem era corpu-lento e vestia um deslumbrante palet' esportivo. " mul%er era !ovem e bonita com aboca pintada com uma espessa camada de carmim. *os seus dedos relu#iam vriosanis.

    Ds% deu alguns passos e ento se deteve. Aois so um casal, tr)s uma multido. &ol%ar do %omem era decididamente %ostil. " mo direita no deiava o avultado bol-so do palet'.

    - =omo esto$ - disse Ds%, sem se mover.

    - &%, muito bem - disse o %omem. " mul%er deu um risin%o idiota e ol%ou provo-cativamente para Ds%. Ds% sentiu-se outra ve# em perigo. - im, prosseguiu o %omem,- sim, estamos muito bem. 0uita comida, muita bebida e muitssimo... - fe# um ges-to obsceno e ol%ou para a mul%er com um sorriso. " mul%er riu outra ve#.

    Ds% se perguntou o que teria sido a mul%er na antiga vida. arecia agora umaprostituta acomodada. 2in%a nos dedos diamantes bastantes para instalar uma !oa-l%aria.

    - 3 outros sobreviventes$ - perguntou.& %omem e a mul%er se ol%aram. " mul%er riu. *o parecia con%ecer outra lingua-

    gem.- *o nos arredores - disse o %omem. - fe# uma pausa e deu uma ol%ada na mu-

    l%er. - *o at agora, pelo menos.Ds% ol%ou para a mo do %omem, ainda no bolso do palet'. " mul%er movia os

    quadris e semicerrava as plpebras, como di#endo que ficaria com o vencedor. *osol%os do casal no %avia aqueles sinais de dor que nublava os ol%os do b)bado. 0astalve# tambm estivessem sofrendo demais e, de algum modo, %aviam perdido a ra-#o. Ds% entendeu de imediato que nunca tin%a estado to perto da morte.

    - ara onde vai$ - perguntou o %omem.- &%, s' estava dando uma volta - disse Ds%." mul%er voltou a rir. Ds% voltou-se e camin%ou para o carro, pensando que a qual-

    quer instante receberia um tiro nas costas. =%egou ao carro, entrou e distanciou-se...

  • 8/11/2019 George R. Stewart - So a Terra Permanece

    21/202

    Aesta ve# no ouviu som algum, mas ao virar a esquina, ali estava ela, plantadano meio da rua: uma adolescente de pernas longas e cabeleireira loira. Aurante ummomento no se moveu, como um cervo surpreendido em uma clareira do bosque.Ento, como a rapide# de uma amedrontado animal acossado, dobrou-se em duas e,

    protegendo-se da lu# do sol, tentou ver atravs do para-brisas. Em seguida correu,como um animal, e escapuliu atravs das tbuas de uma cerca.

    Ds% desceu do carro, foi at a cerca e c%amou vrias ve#es mas no %ouve respos-ta. e tivesse ouvido uma risin%o brincal%o em uma !anela, ou se tivesse visto o re-voluteio de uma saia em uma esquina, talve# teria continuado procurando. 0as, evi-dentemente, a fuga da garota no era um flerte. 2alve# tivesse aprendido dolorosa-mente que somente assim podia se salvar. Ds% esperou por um momento, mas comoa garota no apareceu, pJs-se outra ve# a camin%o...

    &uviu outras bu#inas, mas silenciavam antes que pudesse locali#-las. or fim viu

    um vel%o que saa de um arma#m com com carrin%o de beb), onde estavam empi-l%adas latas e caias. Ds% se aproimou e viu que ele no era to vel%o. em a barbabranca e emaran%ada, no aparentaria mais que sessenta anos. /sava uma roupaenrugada e su!a. Aevia dormir vestido % algum tempo.

    Ds% descobriu que o vel%o era mais comunicativo que os outros, mas no muito.evou Ds% para sua casa que no era muito distante. *os cJmodos se amontoavamtodo tipo de coisas: algumas teis, outras totalmente inteis. Aominado por uma ma-nia possessiva, o vel%o logo se transformaria em um ermito avarento. "ntes do de-sastre ele tin%a tido uma mul%er e %avia trabal%ado em uma lo!a de ferragens9 em-bora provavelmente sempre tivesse se sentido desgraado e s', com muitos poucos

    amigos. *a verdade, agora ele era mais feli# do que nunca, pois no %avia ningumque estorvasse suas Fnsias de rapina nem que o impedissem de se retirar e viver ro-deado de pil%as de mercadorias. +uardava alimentos enlatados9 (s ve#es cai;es in-teiros, ou simples montes de latas. 0as %avia tambm uma d#ia de cestos de laran-!as, que ele no poderia consumir antes que apodrecessem. "lguns sacos de celofa-ne %aviam se rasgado e as ervil%as ! cobriam o piso. Ds% viu tambm vrias caiasde lFmpadas eltricas e vlvulas de rdio, um violoncelo - embora o %omem no sou-besse msica, - mais de cem eemplares de uma mesma revista, uma d#ia de des-pertadores e muitas outras coisas que o vel%o %avia reunido, no com a inteno deutili#-las algum dia, e sim porque essa acumulao l%e dava uma agradvel sensa-o de segurana.

    Ms ve#es o vel%o era simptico, mas ! no pertencia ao mundo dos vivos, pensouDs%. " catstrofe o %avia transformado um %omem taciturno e solitrio, em um man-aco a um passo da loucura. =ontinuaria, no futuro, empil%ando coisas ao seu redor eencerrando-se cada ve# mais em si mesmo.

    0as quando Ds% se levantou para ir embora, o vel%o, presa do pFnico, pegou-opelo brao.

    - Nue sentido tem tudo isto$ - perguntou, ecitado - or que a vida me perdoou$Ds% contemplou o rosto deformado pelo terror, a boca aberta de onde pendia um

    fio de baba.- im - respondeu irritado e aliviado ao mesmo tempo, por poder dar rdea solta (

    sua c'lera. - im. or que voc) est vivo e morreram tantos %omens capa#es$

  • 8/11/2019 George R. Stewart - So a Terra Permanece

    22/202

    & vel%o ol%ou involuntariamente ao redor. eu terror era ab!eto, quase animal.- W isso mesmo que me assusta - gemeu.Ds% se compadeceu.- 1amos - disse, - no % motivo para se assustar. *ingum sabe porque sobrevi-

    veu. *o foi mordido por alguma cascavel$- *o.- Bem, no importa. " questo da imunidade natural um mistrio. "s epidemias

    mais graves no atacam todo mundo.0as o outro balanou a cabea.- Aevo ter sido um grande pecador - disse.- *esse caso, o teriam castigado.- 2alve#... - o vel%o interrompeu-se e ol%ou ao redor - 2alve# me reservem um cas-

    tigo especial.& vel%o estremeceu da cabea aos ps.

    "o se aproimar da barreira de pedgio, Ds% se perguntou maquinalmente se teriamoedas. Em um segundo de etravio, imaginou uma cena absurda onde desli#avauma moeda imaginria para uma mo imaginria. 0as embora tivesse que diminuir amarc%a para cru#ar a estreita passagem, no colocou a mo pela !anela.

    3avia decidido c%egar a an @rancisco. 0as logo compreendeu que o que o %aviaatrado era a ideia de ver a ponte. Era a mais auda# e a maior de todas as obras do%omem naquela regio. =omo todas as pontes, era um smbolo de unidade e segu-rana. an @rancisco s' %avia sido um preteto. *a verdade, dese!ava somente reno-var algum tipo de comunicao com o smbolo da ponte.

    "gora a ponte estava deserta. &nde antes seis filas de carros %aviam corrido parao leste o o oeste, as faias brancas se prolongavam at se unirem. /ma gaivota que%avia pousado no corrimo, sacudiu preguiosamente as asas quando o carro seaproimou e desceu planando sobre a gua.

    Ds% teve o capric%o de dobrar ( esquerda e avanou sem encontrar obstculos."travessou o tnel e as altas e magnficas torres e as longas curvas da ponte p)nsilalaram-se diante dele. =omo de costume, tin%am estado pintando algumas partes9um cabo vermel%o alaran!ado se destacava sobre o cin#a prateado comum.

    Ento viu algo estran%o. /m carro esportivo, verde, estava estacionado !unto aoparapeito, na direo leste. Ds% ol%ou-o ao passar. Aentro no %avia ningum, nada.eguiu adiante. Em seguida, cedendo ( curiosidade, descreveu uma longa curva eparou !unto ao cup). "briu a porta e eaminou os assentos. *o, nada. & motorista,desesperado, atacado pela doena, teria se arro!ado na gua, saltando por cima dagrade$ &u talve# o motor teria se quebrado e ele, ou ela, teria parado outro carro,ou %avia continuado a p. "s c%aves ainda estavam no painel9 a carteira de motoris-ta pendia do volante: Ko%n obertson, nmero tal, rua =inquenta e Nuatro, &aCland.*ome e endereo comuns. & carro do sen%or obertson era agora dono da ponte.

    Ae volta ao tnel, Ds% pensou que poderia ter resolvido parte do problema tentan-do ligar o motor. 0as na realidade no importava... como no importava, tampouco,que partisse outra ve# para o leste. 2endo dado meia volta para se aproimar docup), Ds% simplesmente seguiu em lin%a reta. an @rancisco, estava certo, nada po-

    deria oferecer-l%e.

  • 8/11/2019 George R. Stewart - So a Terra Permanece

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    /m pouco mais tarde, como %avia prometido, Ds% voltou ( rua onde %avia conver-sado - se aquilo podia c%amar-se conversar - com o b)bado. Encontrou o corpo cadona calada em frente ao bar. Aepois de tudo, refletiu Ds%, o corpo %umano s' podeabsorver uma quantidade limitada de lcool. Ds% lembrou dos ol%os do b)bado e no

    conseguiu sentir pena. *o %avia ces nos arredores, mas Ds% no podia deiar ocorpo ali. "final %avia con%ecido o sen%or Barlo e %avia conversado com ele. Embo-ra no soubesse onde enterr-lo. 2irou umas mantas da uma lo!a e envolveu o corpocuidadosamente. Ento levou-o para o carro e fec%ou as !anelas.

    eria um mausolu %ermtico e duradouro. "s ora;es fnebres pareciam fora delugar. 0as ao observar de fora o rolo de mantas, pensou que o sen%or Barlo %aviasido, sem dvida, um bom %omem que no conseguiu sobreviver ( queda do mundo.Ento tirou o c%apu e assim ficou por uns instantes...

    "gora, como na antiguidade, quando a queda de um poderoso monarca alegrava

    os povos submetidos, rego#i!avam-se os abetos e os cedros entoam: G=aste e o ma-c%ado ! no ameaa nossa eist)nciaH. E os cervos, as raposas e as codorni#es can-tam: G"gora s como n's. W este o %omem que estremeceu a terra$H SG" tumba de-vorou tua soberba e a msica das tuas violas9 os vermes se movem sob teu corpo ete cobrem.HT

    *o, ningum disse estas palavras, ningum pensa nelas, e o livro de Dsaas seconfunde com o p'. & gamo, sem saber porque, se atreve a sair da espessura9 as ra-posas brincam !unto ( fonte seca da raa9 a codorni# c%oca seus ovos na gramaalta, perto do rel'gio do sol.

    para o fim do dia, ap's dar uma volta para evitar um lugar nauseabundo ondese amontoavam os cadveres, Ds% voltou para casa em an upo.3avia aprendido muito. & +rande Aesastre - assim c%amava agora a epidemia -

    no %avia despovoado inteiramente o mundo. *o %avia porque comprometer o futu-ro unindo-se a qualquer um. Era prefervel procurar e escol%er. or outro lado, todosos que %avia encontrado at agora estavam no limite da loucura.

    &correu-l%e ento um novo pensamento, que podia ser epresso com uma novaf'rmula: o +olpe de 0iseric'rdia. " maioria dos que %aviam escapado ao +rande Ae-sastre, cairia vtima de algum mal que %aviam evitado at ento. 0uitos se matariambebendo. 3aviam sido cometidos, suspeitava, alguns assassinatos, e %aviam abunda-do, certamente, os suicidas. "lguns %omens que em outro tempo %aviam arrastadouma eist)ncia comum, como o vel%o, no poderiam superar e enlouqueceriam. 0ui-tos feridos e doentes morreriam por falta de cuidados. Ae acordo com uma lei biol'-gica, toda espcia deve contar com um nmero mnimo de representantes. "baiodesse nmero, estar irremediavelmente condenada.

    " %umanidade sobreviver$ onto capital que podia animar Ds%. Ae acordo com oresultado da !ornada, as esperanas eram poucas. E quem pode dese!ar que sobrevi-va uma %umanidade de fantoc%es$

    3avia comeado a man% como um verdadeiro obinson =ruso, disposto a acei-tar o primeiro seta-feira que aparecesse. 2erminava o dia pensando que se resigna-ria ( solido se no encontrasse um amigo aceitvel. ' uma mul%er parecia ter de-

    se!ado sua compan%ia, e ali tin%a %avido uma amea de traio e morte. e Ds% ti-

  • 8/11/2019 George R. Stewart - So a Terra Permanece

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    vesse eliminado o %omem, teria encontrado nela uma mera compan%ia fsica. Nuanto( adolescente, teria sido preciso recorrer a um lao ou a uma armadil%a de ursos. Eprovavelmente, como o vel%o, ela %avia perdido a ra#o.

    *o, o +rande Aesastre no %avia deiado os mel%ores com vida9 e as provas que

    os sobreviventes %aviam suportado no %aviam acrescentado suas virtudes.reparou uma ceia e comeu sem apetite. Aepois tentou ler, mas as palavras ti-

    n%am to pouco sabor como a comida. "inda estava pensando no sen%or Barlo enos outros. Ae um modo ou de outro, cada um ( sua maneira, todos os que tin%avisto naquele dia estavam desmoronando. E ele pr'prio conservaria todas as suas fa-culdades mentais$ egou um papel e um lpis e escreveu uma lista de qualidadesque podiam l%e permitir continuar vivendo e, alm disto, ser feli# onde todos os ou-tros %aviam fracassado.

    5T 1ontade de viver. Aese!o de ver o que ser da terra sem o %omem. +e'grafo.

    >T "mor ( solido. ouco falador.RT 2er etirpado um ap)ndice.7T 3abilidade manual. 0as mau mecFnico. 1ida ao ar livre.XT *o ter visto morrer a famlia e os outros

    Dnterrompeu-se, com os ol%os fios na ltima lin%a. Esperava que estivesse certo.efletiu por uns minutos. odia acrescentar outras qualidades ( lista. ua educao,que l%e permitia adaptar-se (s novas circunstFncias. +ostava de ler e assim podiadistrair-se e esquecer. "demais, no era um leitor comum. odia pesquisar em livrose procurar ali os meios de reconstruir o mundo.

    =om os dedos crispados no lpis, pensou se devia anotar que no era supersticio-so. odia ser importante. e no fosse, seria presa, como o vel%o, de um terror ab!e-to e c%egaria talve# a pensar que o desastre era obra da ira de Aeus, que %avia arra-sado seu povo com uma peste, como antes do dilvio. E ele, embora no tivesse mu-l%er e fil%os, seria um novo *o, encarregado de repovoar o mundo deserto. 0as se-mel%antes divaga;es levavam ( loucura. im, se um %omem se cr) mensageiro deAeus, no est longe de acreditar ser o pr'prio Aeus e de enlouquecer.

    *o, pensou Ds%, acontea o que acontecer, nunca me ac%arei um deus. *unca se-rei um deus.

    "bandonando-se assim ao curso dos seus pensamentos, comprovou, no sem sur-presa, que a perspectiva de uma vida solitria no deiava de l%e dar uma sensaode segurana e, e mais ainda, de euforia. *o passado, as rela;es sociais %aviamsido uma das suas maiores preocupa;es. " ideia de ir a um baile o tin%am feitotranspirar mais de uma ve#9 nunca %avia pertencido a uma associao de estudantes.*os vel%os dias, este modo de ser era um defeito9 agora, ao contrrio, parecia umavantagem. empre %avia ficado em um canto nas reuni;es sociais, entrando muitaspoucas ve#es em conversas, contentando-se em escutar e observar ob!etivamente. Eagora, do mesmo modo, podia suportar facilmente o sil)ncio e observar como espec-tador o curso das coisas. ua fraque#a %avia se transformado em fora. =omo umcego em um mundo privado de lu#. *essas trevas, onde as pessoas normais andari-am aos trope;es, ele estaria muito cJmodo e os outros viriam segurar seu brao,

    implorando-l%e que l%es servisse de guia.

  • 8/11/2019 George R. Stewart - So a Terra Permanece

    25/202

    Entretanto, quando se encontrou na cama, na escurido, a imagem dessa vida so-litria perdeu todo seu encanto. "s frias mos da nvoa cru#aram a baa e se fec%a-ram sobre a casa de an upo Arive. Ds% sentiu outra ve# aquele medo. Encol%idoentre as mantas, com o ouvido atendo a todos os rudos da noite, pensou em sua so-

    lido9 e no +olpe de 0iseric'rdia que pendia sobre ele, ameaador. @oi assaltado porum violento dese!o de fugir com a maior rapide# daqueles enigmticos perigos. Dnvo-cou ento o aulio da ra#o e disse a si mesmo que a epidemia no podia ter devas-tado todo o pas, que em algum lugar devia ter restado alguma comunidade comvida e que ele a encontraria.

  • 8/11/2019 George R. Stewart - So a Terra Permanece

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    & pFnico desapareceu com a noite, mas o medo continuou tena#mente alo!ado nocorao de Ds%. evantou-se com cuidado e engoliu saliva apreensivamente, pensan-do no que aconteceria se adoecesse da garganta.

    Aesceu lentamente as escadas. /m degrau deslocado podia significar a morte.Em seguida, comeou a preparar a partida e, como sempre que seguia um deter-

    minado plano, embora no fosse um plano ra#ovel, sentiu-se satisfeito e tranquilo.eu autom'vel era vel%o. odia escol%er algum outro entre as centenas de carros

    abandonados. *a maioria faltavam as c%aves. 0as por fim encontrou em uma gara-gem uma camin%onete com as c%aves, o que respondia aos seus dese!os. igou omotor9 funcionava perfeitamente.

    K se preparava para partir, quando foi assaltado por uma sensao de mal-estar.*o era a pena de abandonar seu vel%o autom'vel. Ae repente se lembrou. 1oltouao seu carro e pegou o martelo. evou-o para a camionete e colocou-o no piso, aosseus ps. Ento saiu da garagem.

    Em um arma#m comeu um pouco de quei!o e alguns biscoitos, enquanto escol%ia

    algumas provis;es nas prateleiras. &s vveres abundariam em todas as cidades. 0asconvin%a levar algumas reservas no carro. &utras lo!as l%e proporcionaram um sacode dormir, um mac%ado, uma p, um impermevel, cigarros e uma garrafin%a de co-n%aque. embrando das aventuras da vspera, entrou em uma lo!a de armas e esco-l%eu um fu#il leve, uma carabina de repetio, uma pistola automtica que podia car-regar facilmente no bolso e uma faca de caa.

    K na camionete, e pronto para partir, viu o co. 2in%a visto muitos ces nos lti-mos dias e afastava-os sempre da sua mente. &fereciam um pattico espetculo eaparentemente no gostavam do que estava acontecendo. Ms ve#es pareciam famin-tos, ou bem alimentados demais. "lguns se encol%iam, assustados, outros mostra-

    vam os dentes, muito seguros de si. Este era um pequeno co de caa, branco eacastan%ado, de orel%as longas e cadas. /m sabu!o, provavelmente, embora elesoubesse muito pouco sobre raas caninas.

    entado prudentemente a uns tr)s metros de distFncia, o co ol%ou para Ds%, ba-lanou a cauda e c%oramingou fracamente.

    - @oraL - gritou Ds%, sentindo como se levantasse um muro contra os laos de afei-to que s' podiam terminar com a morte. - @oraL - repetiu. 0as o co avanou algunspassos, deitou-se na calado com o focin%o entre as patas e fiou Ds% com ol%os su-plicantes. "s longas orel%as cadas davam-l%e uma epresso de infinita triste#a,como se Ds% l%e tivesse partido o corao. Ae repente, sem querer, Ds% sorriu9 e pen-

    sou que era seu primeiro sorriso sem ironia desde o dia da serpente.

  • 8/11/2019 George R. Stewart - So a Terra Permanece

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    =ontrolou-se, mas o co, que %avia visto de imediato sua mudana de %umor, seesfregava contra suas pernas. Ds% ol%ou para ele e o animal se esquivou, com um te-mor fingido ou real descreveu um crculo, interrompido por dois saltos de lado, sedeiou cair outra ve# com a cabea entre as patas e lanou um curto latido ansioso

    que terminou em um gemido. Ds% sorriu novamente, desta ve# abertamente, e o cocompreendeu que sem dvida %avia gan%o a partida. Js-se a correr outra ve#, mu-dando rapidamente de direo, como se perseguisse um coel%o. or fim arro!ou-seousadamente aos ps de Ds% e ofereceu a cabea, como se esperando uma carcia edi#endo: G*o fi# bem$H Ds% compreendeu, colocou a mo na cabea e l%e acariciouo pelo. & co lanou um pequeno grun%ido de satisfao e balanou a cauda comtanta fora, que suas orel%as tremeram. evirou os ol%os claros. Era a pr'pria ima-gem da adorao. /mas ruga#in%as cru#avam sua testa. /m caso de amor ( primeiravista. & co parecia di#er: Gara mim, no % outro %omem no mundoH.

    Ds% confessou sua derrota. "gac%ou-se e acariciou francamente o novo amigo.

    Bem, pensou, queira ou no, ten%o um co. &u mel%or, o co me tem. "briu a portada camionete e o co saltou e se instalou no assento como se estivesse em casa.Em um arma#m Ds% encontrou uma caia de biscoitos para cac%orro e deu-l%e

    um. & co aceitou sem demonstrar carin%o ou agradecimento. & %omem tin%a o de-ver de aliment-lo e toda demonstrao de gratido era, portanto, suprflua. Ds% no-tou ento, pela primeira ve#, que na realidade o animal no era um co e sim umacadela. Bem, pensou, fi# uma verdadeira conquista.

    1oltou ( sua casa e recol%eu algumas coisas: roupas, um par de 'culos de campa-n%a, livros. e perguntou se precisaria de algo mais. " viagem poderia lev-lo ao ou-tro lado do continente. @inalmente encol%eu os ombros. *a carteira tin%a de#enove

    d'lares, em notas de cinco e de um. Era mais que suficiente. ensou em atirar fora acarteira, mas finalmente guardou-a. Estava to acostumado a lev-la no bolso, quesem ela se sentiria perdido. & din%eiro no atrapal%ava.

    em muitas esperanas, escreveu uma nota e deiou-a bem ( vista na sala. eseus pais regressassem, saberiam que podiam esper-lo, ou deiar-l%e uma mensa-gem.

    Ae p, !unto ao autom'vel, deu um ol%ar de despedida para a avenida an upo." rua estava deserta. "s casas e as rvores no %aviam mudado, mas notou outrave# no gramado e nos !ardins a falta de rega e cuidados. "pesar da neblina noturna,o seco vero californiano murc%ava as plantas.

    Era o meio da tarde. 0as Ds% decidiu partir de imediato. Aese!ava distanciar-se epassar a noite em outra cidade.

    "s plantas e as flores que o %omem %avia cuidado morrem como os gatos e osces. 2revos e grama inclinam a cabea, e os dentes de leo amarelecem. &s ste-res, que amam a gua, murc%am nos macios. "s ervas danin%as florescem. " sviase consome nos talos das camlias9 no %aver bot;es na pr'ima primavera. *astrepadeiras e nos roseirais, as fol%as se retorcem, lutando contra a seca. "s ab'borassilvestres estendem seus braos sobre os !ardins e terraos. =omo os brbaros, queem outro tempo, desaparecidos os ercitos romanos, invadiram as delicadas provn-cias, assim as ervas danin%as silvestres avanam e destroem as plantas premiadas

    que o %omem %avia mimado.

  • 8/11/2019 George R. Stewart - So a Terra Permanece

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    /m barul%o firme e regular subia do motor. *a man% do segundo dia, Ds% dirigiucom prud)ncia eagerada, temendo sempre que estourasse um pneu, que os freiosse estragassem, ou que alguma vaca cru#asse o camin%o. =om os ol%os fios no ve-

    locmetro, tentava no superar os sessenta quilJmetros por %ora. 0as o motor erapoderoso e a agul%a subia a cada instante para os sessenta e os oitenta.

    " velocidade o foi tirando pouco a pouco daquela depresso. " mera mudana eraum alvio9 a fuga, um consolo. 0as Ds% sabia que estava fugindo, sobretudo, por umtempo, da necessidade de decidir. Dnclinado sobre o volante, vendo como se descorti-nava a cada momento a cortina de uma nova paisagem, no fa#ia planos para o futu-ro, no pensava em como ia viver nem se iria viver. se preocupava em dobrar apr'ima curva.

    " cadela estava deitada no assento. Ae ve# em quando botava a cabea nos !oe -l%os do seu novo dono9 geralmente ela dormia calmamente, e sua presena tambm

    era um alvio.& espel%o retrovisor nunca mostrava um autom'vel. Ds%, por costume, ol%ava-oconstantemente e via as imagens da carabina e do fu#il, do saco de dormir e das la-tas de conserva no assento traseiro. Era como um marin%eiro em alto mar, com seubarco c%eio de provis;es, preparado para qualquer emerg)ncia9 e sentia tambmesse profundo desespero do nufrago, a desolao da imensido.

    eguiu pela rodovia 66, que cru#ava o vale de an Koaquim. *o se apressava,mas a velocidade mdia era ecelente. *o %avia camin%;es que o obrigassem a di-minuir a marc%a e no era necessrio parar, obedecendo aos sinais de trFnsito - em-bora a maioria ainda funcionasse, - nem diminuir a velocidade nas cidades. *a reali-

    dade, apesar dos seus temores, devia recon%ecer que a rodovia 66 agora era maissegura que antes, com seu trFnsito denso e enlouquecido.*o viu %omem algum. e procurasse nas cidades e povoados, talve# pudesse

    descobrir algum9 mas para que$ odia encontrar algum indivduo isolado a qualquermomento. "gora queria comprovar se no %avia alguma cidade com vida.

    " ampla plancie estendia-se at o %ori#onte: vin%edos, %ortas, campos de mel;es,planta;es de algodo. & ol%o eperimentado de um campon)s talve# pudesse des-cobrir os efeitos do desaparecimento do %omem, mas para Ds% no %avia mudanaalguma.

    Em BaCesfield deiou a rodovia 66 e tomou o tortuoso camin%o que levava ao pas-so de 2e%ac%api. &s campos se transformaram em ladeiras cobertas de carval%os, eento em pin%eirais parecidos com parques. " solido pesava menos nesses lugaresque tin%am estado quase sempre desabitados.

    Ds% c%egou ao final do desfiladeiro. & deserto assomava no %ori#onte. entiu medooutra ve#. Embora o sol ainda estivesse muito alto, parou na cidade de 0o!ave e co-meou a se preparar.

    ara atravessar aqueles tre#entos quilJmetros de deserto, inclusive nos vel%ostempos, o motorista devia levar sua proviso de gua. Em alguns lugares, se o carrotivesse alguma avaria, tin%a que camin%ar todo um dia para encontrar um posto deestrada. Ds%, que s' podia contar consigo mesmo, devia multiplicar as precau;es.

    Encontrou uma lo!a de ferragens. " porta macia estava fec%ada com duas voltas

    da c%ave. Ds% quebrou a fec%adura com o martelo e entrou. egou tr)s grandes can-

  • 8/11/2019 George R. Stewart - So a Terra Permanece

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    tis e enc%eu-os em uma torneira de onde ainda saa um fraco fio dVgua. Em um ar-ma#m pegou um garrafo de cinco litros de vin%o tinto. Entretanto, tudo isso nol%e pareceu suficiente.

    em saber muito bem o que queria, retrocedeu pela rua principal at que encon-

    trou uma motocicleta. Era preta e branca, como as dos guardas de trFnsito. "pesarde se sentir assustado e desanimado, sentiu certos escrpulos. oubar a motocicletade um policial era algo por demais ins'lito. or fim, ap's alguma %esitao, desceudo carro e testou a motocicleta dando algumas voltas pela rua.

    ob o pesado calor das ltimas %oras da tarde, trabal%ou durante uma %ora prepa-rando algumas tbuas. Nueria subir a motocicleta na carroceria. *o seria s' um ma-rin%eiro em seu barco9 teria tambm uma c%alupa em caso de naufrgio.

    Entretanto, seus temores cresciam constantemente e surpreendeu-se vrias ve#esdando uma ol%ada por cima do ombro.

    & sol se pJs. Esgotado, Ds% preparou uma ceia fria e comeu sem apetite. ensou

    at nos perigos de uma indigesto. Ento foi buscar uma lata de comida para ces. "cadela aceitou o presente impassivelmente e acomodou-se outra ve# no assento di-anteiro.

    Ds% procurou ento o mel%or %otel da cidade e se instalou em um quarto com a ca-dela. 0al saa gua das torneiras. arecia que naquele povoado o fornecimento degua no era automtica, como nas cidades. avou-se o mel%or que pJde e dei-tou-se. " cadela enroscou-se no piso.

    0as Ds%, quase aterrori#ado, no conseguia dormir. " cadela gemia durante osono, sobressaltando-o. & medo se fe# quase intolervel. evantou-se para se asse-gurar que %avia fec%ado bem a porta, sem saber eatamente o que temia ou contra

    que inimigo proteger-se. ensou em ir procurar um sonfero em uma farmcia, mas aideia de um sono muito profundo o assustou. " lembrana do sen%or Barlo, por ou-tro lado, o impedia de recorrer ao con%aque. or fim dormiu um son%o agitado.

    "cordou com a cabea pesada. @a#ia muito calor e ele %esitou em atravessar o de-serto. &correu-l%e ento que podia retroceder para o sul, at os "ngeles. *o erauma m ideia dar uma ol%ada por l. 0as esses argumentos, ele sabia muito bem,eram simples pretetos. "inda conservava bastante amor pr'prio para no voltaratrs enquanto no %ouvesse um impedimento srio9 mas decidiu, de qualquer for-ma, no se meter no deserto antes do cair do sol. Era, disse para si mesmo, umaprecauo elementar. 0esmo nos tempos normais, se costumava cru#ar o deserto (noite, para evitar o calor.

    assou o dia em 0o!ave, nervoso e inquieto, perguntando-se que outras precau-;es poderia tomar. or fim, quando o sol baiou sobre as montan%as do oeste,em-preendeu a marc%a com a cadela ao seu lado.

    "inda no %avia percorrido dois quilJmetros quando sentiu que o deserto o envol-via. =om os ltimos raios de sol, as rvores Kudeia pro!etavam longas e estran%assombras. or fim o crepsculo inundou tudo. Ds% acendeu os far'is, que iluminaram ocamin%o solitrio, sempre solitrio. Ms ve#es procurava no retrovisor o refleo de lu-#es g)meas que indicassem que outro carro se aproimava. ogo a escurido foi totale ele se sentiu ainda mais angustiado. "pesar do motor ronronar regularmente, pen-

    sou em todos os acidentes possveis: o estouro de um pneu, o motor sobreaquecido,

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    uma interrupo da passagem da gasolina. edu#iu a velocidade. *em sequer podiaconfiar na motocicleta.

    "lgumas %oras mais tarde - agora andava muito lentamente - c%egou a um postodo deserto, onde anteriormente uma pessoa podia prover-se gasolina, pneus ou be-

    bidas. " casa estava (s escuras e Ds% passou ao largo. &s raios brancos dos far'is re-cortavam claramente a rodovia. & motor rugia suavemente. Nue seria dele se paras-se$

    K estava em pleno corao do deserto, quando a cadela comeou a grun%ir e a seagitar.

    - =ale-se - disse Ds%, mas o animal continuou com seus gemidos e sacudidas. - &%,est bem - continuou ele, e parou o carro, sem se preocupar em sair para o acosta-mento do camin%o.

    Ds% desceu e a cadela saiu atrs dele. Aescreveu rapidamente vrios crculos e, le-vantando repentinamente a cabea, lanou um ladrido, sonoro demais para um ani-

    mal to pequeno, e comeou a correr.- "quiL "quiL - gritou Ds%. 0as a cadela no l%e prestou ateno. eus ladridos seperderam ao longe.

    eguiu-se um profundo sil)ncio. Ds% sobressaltou-se de imediato ao notar que %a-via cessado tambm outro rudo: o ronronar do motor. Entrou apressadamente nocarro e apertou o arranque. & motor ronronou outra ve#. Ds% suspirou. & corao l%ebatia no peito.

    Ae repente ele sentiu como se mil%ares de ol%os invisveis o ol%assem. "parou osfar'is e ficou ali, sentado na escurido.

    "o longe, muito fracamente, ouviram-se outra ve# os latidos. & som aumentava e

    diminua, como se a cadela estivesse dando voltas perseguindo uma presa. Ds% pen-sou em seguir viagem e dei-la ali. Aepois de tudo, era ela quem o tin%a procurado.E se agora o esquecia para correr atrs do primeiro coel%o que aparecia, ele no po-dia sentir-se responsvel. igou o carro, mas parou a poucos metros. Ae certo modo! tin%a certas obriga;es com a cadela, embora ela o usasse. Ds% sentiu-se deprimi-do e so#in%o e estremeceu.

    Aepois de algum tempo, um quarto de %ora talve#, notou que a cadela tin%a volta-do sem fa#er barul%o. 3avia se deitado no c%o e ofegava, com a lngua para fora.Ds% sentiu-se furioso. ensou nos vagos perigos a que podiam epJ-lo aquelas idioti-ces. Aei-la morrer de sede no deserto teria sido cruel, mas podia livrar-se dela ra-pidamente e sem fa#)-la sofrer. Aesceu do carro com o fu#il na mo.

    1iu ento a cadela, deitada aos seus ps, com a cabea entre as patas, ainda ofe-gante. *o levantou-se para receb)-lo, mas Ds% notou que ela ol%ava para ele. Ae-pois de uma caa ao coel%o, voltava para !unto do seu dono, o %omem que %aviaadotado e que cumpria tambm com suas fun;es, servindo-l%e saborosas conservase levando-a para lugares onde %avia aut)nticos coel%os. Ds% de repente cedeu e riu.

    =om o riso, algo se rompeu em seu interior. entiu como se %ouvesse se desemba-raado de um terrvel peso. Aepois de tudo, pensou, & que eu temo$ *ada pior quea morte pode me acontecer. E nisto, quase todos se adiantaram a mim. or que seassustar$ W a sorte comum.

    entiu-se incrivelmente aliviado. Aeu alguns passos pela estrada, para que seu

    corpo se associasse ( alegria da sua alma.

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    *o se contentou em deiar cair o fardo que a qualquer momento podia sentir ou-tra ve# sobre os ombros. ronunciou, poderia se di#er, sua Aeclarao de Dndepen-d)ncia. "vanou auda#mente para o destino, esbofeteou-l%e o rosto e desafiou-o aque respondesse o golpe. Kurou que se vivesse, viveria livre de todo temor. *o %a-

    via escapado a um desastre universal$=om duas passadas c%egou ( parte traseira do carro, desfe# os n's e deiou cair a

    motocicleta. "o diabo com aquelas precau;es ecessivas. 2alve# o destino s' ata-casse os muito prudentes. " partir de agora aceitaria sua sorte e pelo menos desfru-taria da vida at o ltimo dia. *o estava vivendo, por acaso, um simples adiamento$

    - Bem, vamos rincesa - disse em tom irJnico - Em marc%a.E de repente notou que por fim %avia dado um nome ( cadela. Era um bom nome9

    sua vulgaridade evocava a serena eist)ncia de outros tempos. " cadela seria a rin-cesa, um animal que esperaria sempre os mais atentos cuidados9 e como recompen-sa, o a!udaria a pensar em outras coisas alm das suas pr'prias desgraas.

    0as, pensando bem, no via!aria mais esta noite. &rgul%oso da sua liberdade re-conquistada, se compra#ia em epor-se a novos perigos. 2irou o saco de dormir docarro e instalou-se ao abrigo precrio de uma algaroba. rincesa deitou-se ao seulado e adormeceu profundamente logo a seguir, fatigada pela caa.

    Ds% despertou no meio da noite, mas no sentiu medo algum. "p's tantas provas,%avia alcanado por fim um porto de pa#. rincesa gemia em seus son%os e agitavaas patas como se estivesse caando algum coel%o. or fim se tranquili#ou. Ds% ador-meceu tambm.

    Nuando despertou de novo, a aurora coloria de amarelo limo as colinas desrti-

    cas. @a#ia frio, e rincesa %avia se recostado contra o saco de dormir. Ds% se levantoue assistiu o nascer do sol.

    Dsto o deserto, a solido que comeou com os primeiros dias do mundo. 0as tar-de apareceram os %omens. "camparam nas margens dos riac%os e deiaram aqui eali alguns blocos de pedras. E seus camin%os atravessaram as apertadas fileiras dealgarobas, mas ningum podia assegurar realmente que tivessem estado ali. 0aistarde ainda, construram estradas de ferro, estenderam fios eltricas e traaram lon-gas e retas rodovias. 0as na imensido do deserto o espao conquistado mal se viae a de# metros das vias o asfalto ainda reinava sobre a nature#a selvagem. Ento araa %umana se etinguiu, deiando sua obra para trs.

    *o eiste tempo no deserto. 0il anos so um dia. " areia voa, os ventos deslo-cam as pedras9 mas as mudanas so imperceptveis. Ae ve# em quando, talve# umave# por sculo, o cu deia escapar uma tromba dVgua, a gua borbul%a no leitodos falsos riac%os e os seios se entrec%ocam na corrente. Ae# sculos mais, e talve#as gretas da terra se abram outra ve# e volte a surgir a lava. =om a mesma lentidocom que cedeu aos %omens, o deserto apagar as pegadas %umanas. assaro osanos e ainda se vero blocos de pedra na areia e a longa estrada se estender at ascolinas recortadas no %ori#onte. &s tril%os estaro em seu lugar, com um pouco deferrugem. 2al o deserto: a solido9 d lentamente, tira lentamente.

    & ponteiro do velocmetro ficou uns instantes nos cento e de#. Ds% desfrutou da

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    sua liberdade sem pensar em acidentes. 0ais tarde, diminuiu um pouco a marc%a eol%ou ao redor com interesse renovado. eu ol%o eperimentado de ge'grafo tentoureconstruir o drama do desaparecimento do %omem. "li nada %avia mudado.

    Em *eedles, o indicador de gasolina indicava quase #ero. *o %avia eletricidade e

    as bombas no funcionavam. "p's procurar um pouco, Ds% descobriu um dep'sito degasolina em um bairro afastado e enc%eu o tanque. Ento voltou ao camin%o.

    =ru#ou o rio =olorado, entrou no "ri#ona, e a rodovia subiu entre roc%osos e afia-dos desfiladeiros. /ma meia du#ia de bois e duas vacas com seus fil%otes pastavamem uma ravina. Ds% parou o carro e os animais levantaram preguiosamente as cabe-as. "queles animais do deserto, quando no se aproimavam da rota, passavammeses sem ver um %omem. &s vaqueiros vin%am !unt-los somente duas ve#es porano. "qui o desaparecimento do %omem passaria quase inadvertido9 os reban%os tal-ve# se reprodu#issem mais rapidamente. Aepois de algum tempo, as pradarias de-vastadas no poderiam alimentar a todos e logo o lobo uivaria profundamente e limi-

    taria o nmero dos reban%os. E finalmente, entretanto, Ds% no tin%a dvidas, gadoe lobos c%egariam a um acordo inconsciente9 e ento o reban%o, livre dos donos,cresceria e engordaria como antes.

    0ais ( frente, perto da vila mineira de &atman, Ds% viu dois burros. *o podia sa-ber se nos dias da catstrofes eles ! estavam nos arredores do povoado ou se eramburros selvagens. Ae qualquer forma, pareciam contentes com sua sorte. Aesceu docarro e tentou se aproimar, mas os animais escapuliram, mantendo-se ( distFncia.Ds% permitiu ento que rincesa descesse do carro e arremetesse contra os estran%osanimais. & mac%o, com as orel%as abaiadas e mostrando os dentes, enfrentou-a le-vantando as patas. rincesa deu meia volta e correu para buscar a proteo do seu

    dono. & burro, pensou Ds%, poderia medir-se favoravelmente com um lobo e at opuma poderia lamentar o ataque.=ru#ou o cume de &atman e do outro lado encontrou pela primeira ve# o camin%o

    parcialmente bloqueado. /ma violenta tempestade devia ter devastado a regio umou dois dias antes. em dvida, torrentes de gua %aviam descido pela encosta ar-rastando areia para o camin%o. Ds% desceu do carro para eaminar os danos. Emtempos normais, uma quadril%as de pe;es teriam limpado rapidamente os detritos,abrindo as valas de drenagem e colocando tudo em ordem. "gora uma camada deareia cobria a rodovia. 0ais abaio a gua tin%a danificado o asfalto nas bordas. as-sariam alguns anos e o asfalto se rac%aria e a areia e pedrin%as formariam uma bar-reira intransponvel. or %ora o obstculo era pouco srio e Ds% passou sem dificulda-des. Basta que se rompa um trec%o e toda rodovia fica inservvel, pensou Ds%, per-guntando-se durante quanto tempo seria possvel passar.

    *aquela noite ele dormiu novamente em uma cama, no mel%or %otel de Yingman.

    & gado, os cavalos e os asnos tin%am vivido livremente por mil%ares de sculos,errando pelos bosques, estepes e desertos. Ento o %omem conquistou o poder eempregou para seus pr'prios fins o gado, os cavalos e os asnos. "gora, terminado oreino do %omem, os animais recuperavam a liberdade.

    Encerradas nos estbulos, as vacas torturadas pela sede mugiram por algum tem-po e depois se calaram. &s cavalos morreram lentamente nos estbulos.

    "gora os asnos percorrem os desertos como nos vel%os dias. @are!am o vento do

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    de trens ou rugidos de avi;es no cu. 2udo %avia se calado. "s cidades tambm %a-viam emudecido, sem sirenes, campain%as, vociferantes aparel%os de rdio, vo#es deseres %umanos. "quela talve# fosse a pa# da morte, mas de qualquer forma era apa#.

    Ds% dirigia lentamente, mas no por medo. Nuando sentia vontade, parava paraol%ar alguma coisa e (s ve#es se entretia tentando ouvir algum som. @requentemen-te,