brasília - por uma consciência histórica numa cidade deshistoricizada - léo pimentel (2013)

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    Por uma Contramemria Histrica numa Cidade

    Desmemoriada: Braslia

    uma arqueologia poltica de lo pimentel maio de 2013

    Introito:

    Para fazer uma arqueologia poltica de Braslia preciso a capacidade de se desprender da Braslia

    atual e adotar pontos de vistas distintos e distantes dela. Desprendimento, de alguma maneira estranha a seu

    tempo prximo como condio necessria desse tipo de arqueologia. Sendo assim, podemos nos desprender

    de Braslia e retroceder at o incio do sculo XVIII, onde temos registro da primeira meno a uma possvel

    capital brasileira no interior do pas. Essa escavao poltica na histria nos permitir uma avaliao filosfica

    sobre a inveno desta cidade, considerada, ao mesmo tempo, tanto paraso ps-histrico do

    desenvolvimento e de bem estar, quanto incubadora de descontentamento, e inferno de violncia arcaica e

    repressiva.

    Este um olhar para trs, pelo mirante da histria, que acompanha uma viso adiante, at outro

    futuro social. Mas at l, as demandas e os ocultamentos deste tempo, deste atual que pertence Braslia,

    tm, como pano de fundo, os anseios de elites conservadoras que se apropriam de identidades, que no lhes

    so prprias, como por exemplo, a de protagonismo social, para destitu-las como representao poltica e,

    para encobrir as prticas de excluso mais sutis e implacveis de uma cidade idealizada, planejada e

    construda conforme os ideais polticos da invaso colonial militar-religiosa-industrial: cultura poltica

    profundamente excludente, monocultural, monolinguista e urbanocntrica.

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    Histria proto-memria-oficial:

    Sculo XVIII:

    1749: Francesco Tosi Colombina (engenheiro militar e cartgrafo genovs a servio da CoroaPortuguesa, nascido em 1701) teria sido o pioneiro na ideia de interiorizao da capital

    brasileira. Em sua Carta de Gois e Capitanias Prximas, Francesco sugere que a

    nova capital devia ser localizada na regio do planalto central brasileiro.

    1789: entre os inconfidentes mineiros que as ideias para a mudana da capital brasileira para

    o interior do pas tm sua maior expresso poltica. Tiradentes foi um dos seus maiores

    promotores. So Joo Del Rey, em Minas Gerais, era a cidade sugerida pelos

    inconfidentes para se tornar capital. Um dos mais expressivos argumentos para tal

    mudana era o da integrao nacional.

    Sculo XIX:

    1807: Com a invaso francesa de Portugal inicia-se a transferncia da Famlia Real e da Corte

    Portuguesa para o brasil. Desse modo o aparelho de Estado Portugus passa a operar

    desde o Brasil, que deixa de ser uma colnia e passa a ter funes de metrpole.

    1808: Cria-se em Londres o primeiro jornal brasileiro, o Correio Brasiliense. Onde uma das

    campanhas preconizadas por tal era a mudana da capital para o interior do Brasil.

    1822: Jos Bonifcio de Andrada e Silva (naturalista, estadista e poeta brasileiro, nascido em

    1763) elabora um projeto para a interiorizao da capital federal , Braslia j era o nome

    sugerido para tal, e Paracatu, em Minas Gerais, era a cidade sugerida. Motivado em

    celebrar a chegada do iluminismo no Brasil e em obter uma cidade mais segura das

    invases napolenicas e, livre das revoltas e insurreies populares que aconteciam

    constantemente no rio de janeiro.

    1822: Se institui o Imprio do Brasil com sua independncia de Portugal e o retorno da Corte

    Portuguesa.

    1823: Preserva-se o estado atual das coisas: conserva-se e ampliam-se os privilgios polticos,

    econmicos e sociais das elites agroexportadoras; volta-se exportao e ao modo

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    monrquico de governo; minimizam-se as influncias do iderio do Iluminismo (prprio

    da elite urbana letrada) mantendo o regime escravagista e o latifndio.

    1825: Incio do endividamento externo do Brasil com o reconhecimento da Independncia por

    Portugal e pela Gr-Bretanha. J que o Brasil negociou com esta aceitando pagar 2

    milhes de libras esterlinas a Portugal num acordo chamado Tratado de Amizade e

    Aliana entre Brasil e Portugal.

    1852: Antnio Francisco de Paula de Holanda Cavalcanti de Albuquerque (Senador e Visconde

    de Albuquerque, nascido em 1797) apresenta um projeto de lei autorizando levantamento

    de um terreno a ser destinado localizao da futura capital. Terreno este que se

    localizaria entre os rios So Francisco, Maranho e Tocantins, nas latitudes entre 10 e 15

    graus.

    1853: Joo Lustosa da Cunha Paranagu (Senador e segundo Marqus de Paranagu, nascido

    em 1821) apresenta um projeto de lei para transferir a capital do Rio de Janeiro para o

    interior da Bahia, em Monte Alto.

    1883: Suporto sonho proftico de Dom Bosco (santo italiano, nascido em 1815 e fundador da

    Ordem dos Salesianos) sobre um territrio entre os paralelos 15 e 20 graus, que

    futuramente, passar a ter uma verso oficial ligando-o construo de Braslia.

    1891: Em seu artigo 3, a Constituinte brasileira estabelece a mudana da capital, passando

    para a Unio a propriedade de 14.400 m no planalto central destinada a tal

    empreendimento.

    1892: O Presidente Floriano Peixoto (1839-1895 militar e poltico) cria a primeira comisso a

    explorar o planalto central, a Misso Cruls: comisso multidisciplinar chefiada pelo

    astrnomo belga Luiz Cruls (1848-1908) para explorar e demarcar os 14.4000 m

    estabelecidos pelo artigo 3 da constituinte.

    Sculo XX:

    1922: Em comemorao ao centenrio da Independncia, o ento presidente Epitcio Pessoa

    (1865-1942 jurista e poltico) assenta a pedra fundamental da futura capital a 10 km de

    Planaltina, entre os paralelos 15 e 20 graus, oficializando o sonho de Dom Bosco como o

    mito fundador da futura Braslia.

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    1930: Revoluo de 30: revoluo burguesa que afirma a liberdade do novo capitalista

    industrial; caracterizada como um movimento poltico para conter a luta de classes,

    suficiente para conduzir transformaes alm das propostas dos grupos oligrquicos.

    1938: Getlio Vargas (1882-1954 advogado e poltico) reata a campanha dos construtores da

    nacionalidade retomando antigas tradies coloniais e valorizando, principalmente, a

    figura do bandeirante, considerando-o heri nacional por ser responsvel pela conquista

    do territrio. O Centro-Oeste era visto como um vazio territorial.

    1940: Na inaugurao de Goinia (cidade promessa de progresso varguista como um Brasil

    urbano, industrial, moderno e com alto padro de vida), Getlio Vargas lana a Marcha

    para o Oeste, uma poltica de povoamento, regulando o deslocamento populacional para

    o interior do Brasil. Ao mesmo tempo em que se cria a CANG, Colnia Agrcola Nacional

    de Gois, que implementava assentamentos para imigrantes.

    1955: Em 30 de abril, Jos Ludovico de Almeida ou Juca Ludovico (1906-1989 farmacutico e

    poltico), o ento governador (interventor em 1945) de Gois, assina o decreto de

    desapropriao de uma extenso de 23.000 hectares da Fazenda Bananal para a

    implantao do novo DF.

    1956: Juscelino Kubitschek (1902-1976 mdico e poltico) antigo interventor de Belo-Horizonte

    (1940-1945) na Era Vargas, para desenvolver projetos para reformular a cidade, elaborar

    planos diretores e abrir grandes avenidas, assume o mandato de presidente da Repblica.

    Momento este em que JK se apropria das metas j traadas anos atrs por Getlo Vargas

    para a construo de Braslia. Tal apropriao consagrada pela Mensagem de

    Anpolis que cria a Novacap, Companhia Urbanizadora da Nova Capital Federal, que

    autoriza o Poder Executivo de realizar todos os atos necessrios para a transferncia da

    Capital.

    Oscar Niemeyer (1907-2012 arquiteto modernista) convidado por JK para projetar os

    prdios pblicos da futura capital federal.

    1957: escolhido o Projeto Urbanstico para a Nova Capital projetado por Lcio Costa (1902-

    1998 arquiteto modernista e urbanista).

    1959: No domingo de carnaval ocorre o Massacre dos Trabalhadores da Construtora Pacheco

    Fernandes Dantas: devido incidentes de brigas, um caminho cheio de soldados da

    Guarda Especial de Braslia (instituio policial com carter paramilitar que vigiava os

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    trabalhadores da construo) invade o acampamento dessa construtora batendo com

    cassetetes em quem via pela frente e atirando em quem corria.

    1960: Inaugurao de Braslia: promessa de integrao nacional (idealizada, planejada e

    construda sob os ideais polticos da Revoluo de 30), tanto em termos geogrficos

    (abertura de estradas como instrumento de comunicao) como em termos de unificao

    esttica entre povo e elite: o culto do novo (a imagem de um pas dinmico e

    contemporneo) e a rejeio do passado (povos indgenas e vestgios e smbolos da

    dominao portuguesa).

    1964: Golpe militar que transforma Braslia na capital brasileira do Terrorismo de Estado, onde

    uma de suas aes foi a promoo da primeira invaso policial na Universidade de

    Braslia em cumprimento do decreto que extinguia o mandato de todos os membros de

    seu conselho diretor.

    1973: A Escola Nacional de Informaes (Esni), criada em 1971 em pleno terrorismo de estado,

    envia um ofcio UnB solicitando que seu reitor, Amadeu Cury (1917-2008 mdico),

    fosse colocado a sua disposio. E assim, a colaborao entre UnB e o Esni se d at

    1976, fim do mandato do referido reitor, cedendo professores tanto para proferirem quanto

    para obterem cursos de tal escola.

    Caso Ana Ldia: Ana Ldia Braga, sete anos, raptada na porta do Colgio Madre Carmem

    Sales, na Avenida L-2 Norte. Estuprada, torturada e assassinada. O irmo da menina e

    alguns filhos de polticos e membros poderosos da sociedade brasiliense foram suspeitos.

    No entanto, no foram identificados os culpados. Tal caso conhecido como smbolo da

    impunidade em Braslia.

    1985: O Colgio Eleitoral rene-se em Braslia para escolher entre Tancredo Neves (1910-1985

    advogado, empresrio e poltico) e Paulo Maluf (empresrio, engenheiro e poltico,nascido em 1931). Tancredo no consegue tomar posse da presidncia morrendo em 21

    de abril. Seu Vice-Presidente Jos Sarney (poltico e escritor, nascido em 1930), assume

    de forma plena a presidncia at 1989.

    1992: Movimento Caras-Pintadas que se extinguiu em si mesmo depois de, supostamente, ter

    atingido seu objetivo, a queda do presidente Fernando Collor (poltico, jornalista,

    economista, empresrio e escritor brasileiro, nascido em 1946).

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    Sculo XXI:

    2007: Incio do governo de Jos Roberto Arruda (engenheiro, servidor de carreira e poltico,

    nascido em 1954) que tem como pauta principal a construo do Setor Noroeste bairro,

    pensado como o ltimo setor habitacional a ser construdo dentro da rea tombada de

    Braslia.

    2008: O jornal Correio Braziliense inicia sua agenda regular em noticiar mensalmente a possvel

    construo do Setor Noroeste.

    2011: Apoiadores e indgenas (Movimento O Santurio no se Move) resistem invaso do

    territrio indgena Santurio Tapuya dos Pajs, contra tratores das empreiteiras que

    constroem o Setor Noroeste e destroem o ltimo reduto nativo do cerrado em Braslia.

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    Ps-Histria uma cidade desmemoriada:

    Em que termos podemos pensar Braslia de modo a inscrev-la numa historicidade? J que esta cidade

    desenvolveu estratgias para lanar-se a um futuro para alm da histria nacional. Em que termos podemos

    pensar Braslia de modo a inscrev-la num horizonte cultural? J que as estratgias ps-histricas,

    montonas por falta de articulao histrica, torna-se um teto cultural, formal e legalista, que opera apenas

    para reunir uma populao debaixo no qual, se oculta as inmeras culturas que ali pulsam. Braslia seria um

    monumento histria? Um monumento cultura? H alguma ideia ou noo que teria fora o suficiente que

    no derivasse apenas de seu poder explicativo ou de sua veracidade para articular uma brasiliensidade?

    Como responder tais questes fundamentais? J que, enormes esforos so feitos para seu desenvolvimento

    econmico ao mesmo tempo em que se busca congelar a situao social e cultural da cidade, suprimindo

    qualquer campo inventivo e espontneo. No entanto, esta cidade, mesmo querendo insurgir contra, atravessa

    uma histria que lhe sustenta sua elaborao, construo e eleio em um lugar comum. Tambm que h

    todo um conjunto de instituies intelectuais, polticas, religiosas, militares, econmicas, etc., que lhe do aval

    para assim lhe garantir uma pertinncia existencial romntica dentro de um progresso o/a turista v a

    estrutura da arquitetura de Braslia; seu/sua habitante v apenas seus vazios.

    Vejamos como Braslia histria articulada entre a tentativa de traduzir ideologias importadas da Europa e o

    mundo concreto e vivido do receptor que luta pela manuteno e garantia de seus privilgios endgenos.

    Sculo XVIII Iluminismo e Bandeirantismo:

    Por um lado, os filhos das classes altas da sociedade brasileira, que se concentrava no litoral,alienados do que acontecia no interior do pas, iam estudar em universidades europeias. Em territrio

    europeu, tiveram contato com os pensamentos desenvolvidos por l: liberdade, igualdade, fraternidade e

    liberalismo. Aos retornarem a seus centros urbanos, divulgavam as ideias que aprenderam. Realizavam-se

    enquanto elite vanguardista. O iluminismo (razo e cincia) tornava o grande articulador para as diversas

    expresses no Brasil com inspiraes de independncia.

    Por outro lado, as oligarquias regionais, realizao existencial da elite, que se concentravam no

    interior do Brasil por questes agropecuaristas e pela busca de ouro. Proprietrios de grandes extenses deterras que lhes foram dadas como prmio pelo seu poder de crueldade sobre indgenas cultura bsica e

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    autntica da brasilidade. Tais oligarquias estendiam seu poder a todos os nveis da sociedade e se sentia

    proprietria do aparelho do estado. Extenso esta como forma de manuteno e reproduo de privilgios.

    No entanto, mdicos, advogados, engenheiros, comerciantes, outros profissionais, militares e religiosos, que

    por origem social de classe mdia urbana litornea, estavam ligadas ideologicamente s oligarquias do

    interior.

    Primeiro momento histrico brasileiro de conflito entre um litoral urbano (que pretendia o fim do

    colonialismo e do absolutismo, a garantia de liberdades, como a religiosa, a de pensamento e a de

    expresso, e ainda, substituir a monarquia pela Repblica) desejoso por reocupar o pas e um interior

    agropastoril e zona de minerao (bandeirantes e fazendeiros donos do aparelho do estado) desejoso por

    manter e reproduzir seus privilgios anexionistas de ocupao. No entanto, nenhum processo dialtico.

    Apenas, mistura entrpica por uma tenso brasileira falsa e pseudo-histrica, feita por elites que brigam entre

    si pela hegemonia de um territrio, para o qual, pretendem despovoar de pessoas concretas e

    desprotagoniz-las (indgenas e africanos/as sequestrados/as) e repovoa-las por pessoas que no existe em

    parte alguma, o/a brasileiro/a ocidental, como protagonista virtual.

    Sculo XIX Positivismo e Coronelismo:

    A coordenada razo e cincia do iluminismo (das parcelas civis e liberais) d espao razo e cincia

    do positivismo (das parcelas militares conservadoras). O poder do estado (mando e obedincia), antes

    administrado pelos donatrios da sesmaria, agora administrado por seus herdeiros, os coronis (mando e

    favor). O conflito pelos rumos brasileiros agora se d entre a estrutura coronelista (posse da terra, de bens de

    fortuna, domnio parentelar e agregador das camadas mais pobres da populao via um paternalismo, se

    possvel, e coercitivo, se necessrio) e a restruturao positivista (militares, juristas e a nova classe urbano-

    industrial voltados a uma nova ordem pblica valorizando a autoridade, a famlia e a ptria como leis

    imutveis de um caminho harmonioso pr-determinado). Ambos desejosos por instituir um ser brasileiro, no

    como processo, mas como estado, tomados pela pretenso de realidade rumo ao engajamento de uma

    realidade unidimensional.

    Momento histrico que, por um lado se d o exerccio da jurisdio poltica urbana, o prprio poder

    central, por militares inconformados pela degradao da profisso imposta pela monarquia, por uma nova

    classe urbano-industrial-capitalista em ascenso, por um crescente nmero de intelectuais provenientes das

    classes mais abastadas, onde tanto a monarquia quanto a igreja se mostram frgeis diante modernidade.

    E momento histrico que, por outro lado se d no exerccio da jurisdio poltica rural, onde o podercentral aparece como longnquo e inoperante, por todo um sistema baseado em mecanismos de

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    intermediaes polticas de fundamento patrimonial por parte dos coronis que contava com, tantos votos e

    tantas armas quanto homens, e em uma relao de proximidade entre poderosos e ricos e de apropriao de

    pobres por parte dos poderosos em prol dos ricos.

    No entanto, ambos os lados, reagiram violentamente contra a situao da absoro de elementos

    multidimensionais indgenas, afrodescendentes e populares. J que tal absoro, rica, porm desprezada por

    tais donos do pas, implicaria a modificao do pensamento nacional. Reao essa que, atordoada pelo

    progresso e pela manuteno de privilgios, conseguia militar e para-militarmente, suprimir qualquer

    expresso de outras maneiras de vida humana, digna, ldica e criadora. No houve resistncia indgena,

    criao de quilombo, messianismo, revolta popular, banditismo social e organizao camponesa ou proletria,

    que no tenha sido eliminada violentamente do mito de que o Brasil pertence ao mundo ocidental.

    Sculo XX Modernismo e Latifndio:

    Dos processos da atuao dos conflitos das foras polticas anteriores, desdobra-se nova apropriao

    cultural e esttica: o modernismo. Onde por um lado, intelectuais sobrevivem profissionalmente sombra do

    estado, e por outro, sobrevivem por serem filhos e filhas da aristocracia fundiria. No entanto, ambos

    modernistas desejavam suas parcelas de estado. Tanto funcionrios do governo quanto formuladores de

    polticas pblicas almejavam uma harmonizao entre diferentes estticas gritantes e projetos polticos,

    distintos e conflitantes. O momento histrico era o de criar instituies geopolticas integradoras para uma

    nova sociedade e, com isso, produzir um sentimento de nacionalidade. Modernizar era o discurso poltico e

    modernismo era seu discurso-irmo esttico.

    Pelas mos de Getlio Vargas, o modernismo marcha para o oeste. Sua intenso a de transformar a

    regio do planalto central considerada arcaica, ocupada pelo latifndio e por indgenas em condio de

    refgio, em um espao reprodutivo do capital. Modernismo que retoma antigas tradies coloniais, como a

    figura do bandeirante recolocado como heri brasileiro responsvel pela conquista do territrio nacionalconstrutor da nacionalidade. Transformao que, por meio de decreto e da coero procurava acabar com o

    poder e o domnio dos coronis do planalto central e com a poltica dos governadores que durante a

    Repblica Velha (1889-1930) favoreceu a autonomia e a consolidao das oligarquias.

    O Estado quer ser visto como promotor do desenvolvimento; como garantidor de um nvel melhor de

    vida para os trabalhadores; como fonte de inspirao para polticas nacionais de crescimento econmico; e,

    como interventor capaz de criar as condies materiais para a realizao da conscincia nacional.

    Depois de um perodo muito longo de gestao e experimentos, como as construes das cidades

    Volta Redonda (SP) e Goinia (GO), eis que vai surgindo Braslia no horizonte material da cultura: ao e

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    criao a partir de uma experincia social (Brasil urbano e industrial); integrao civilizadora entre passado,

    presente e futuro (Brasil indgena e Brasil europeu); imperativos morais (sacrifcio, martrio e redeno);

    pedagogia para o exerccio liberal (governo, empresrios, tecnocratas e opinio pblica suprimindo qualquer

    legitimao popular); vida na modernidade (construir uma nao a partir de um projeto); prodgio atravs da

    ordem e da disciplina (nem apoio popular nem ideologia poltica, apenas fortalecer a prpria autoridade);evoluo social possvel apenas de modo harmnico, sem revolues (conformismo justificado pela viso

    naturalista da riqueza e da pobreza); vontade de nao (elite esclarecido como propulsora da verdadeira

    realidade nacional); negcios entre empreiteiras e estado (parcerias escusas entre o pblico e o privado);

    poderes centrais longe da maioria da populao brasileira e da presso das ruas (institucionalizao da

    segregao urbana); e, corretivo capaz de criar condies materiais para a supremacia capitalista desejada

    (construo de uma extensa rede rodoviria como instrumento de comunicao e circulao de mercadoria,

    via a produo de automveis, entre as regies e as cidades).

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    Extemporneas para uma Contramemria Histrica e geopoltica brasiliense

    ou Extemporneas para uma auto-arqueologia poltica:

    1.

    Braslia... Fenmeno cultural brasileiro onde as mais diversas culturas se misturam dando origem a

    outra? Articulao de um sentimentalismo falsamente romntico que copia ideologias externas com o

    intuito de ser porta-voz de uma unidade? Fora imaginria capaz de criar representaes muito antes

    de se tornar realidade? Significado que uma elite decisiva impe para que uma massa seja arrastada

    consigo significado adentro? Cidade protagonista social j que seus cidados e cidads se organizam

    cartorialmente sob um poder poltico estatal como sociedade civil e como identidade coletiva? Quem

    pode assumir como autoridade para determinar o quando e onde uma histria pode ou no ir? Quem

    habita essa cidade de modo simbitico (sociedade civil organizada) e quem a habita de modo simblico

    (identidade cultural)? Braslia no mais aquela esfinge que se pensou antes... muito do seu cotidiano

    no inesperado, nem surpreendente e muito menos tem uma qualidade sinttica.

    2.

    Arquitetura enquanto ideologia: urbanizao e monumentos construdos como soluo imaginria para

    um impasse social efetivo, onde prdios, ruas e edifcios governamentais pouqussimo tem a ver com a

    arquitetura e urbanismo, e muitssimo a ver com a dinmica de circulao ideolgica de quem a

    planejou e construiu. Mausolu de uma santssima trindade, Juscelino Kubitscheck, Lcio Costa e

    Oscar Niemeyer. Ermida, consagrao do delrio a posteriori de Dom Bosco. Esplanada, destino de

    fuga para o corpo poltico da nao. Plano Piloto, paraso da vida arregimentada pela tecnocracia.

    Regies Administrativas, aldeamento perfeito para pessoas tensas, ansiosas e inseguras. Eixo

    Monumental, recriao do arcaico pela urbanizao moderna que visava supera-lo. Amplas avenidas

    ao lado das superquadras favorecedoras inevitveis de castas e preconceitos. Automveis como

    necessidade absoluta. Horticultura de miragens e de culpa. Indstria de tecnocratas senhores de

    barao e cutelo. Setores Sudoeste e Noroeste, construes orgulhosamente alardeadas que no

    passam de espaos concebidos para interceptar, filtrar e rechaar, aspirantes a usurios/as. Enfim,transfigurao do mesmo, bandeirante em sertanista e, por fim, em candango.

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    3.

    Onde em Braslia posso ir para conhecer pessoas que posso ter afinidades? Quais os lugares que

    transitam artistas, a boemia, intelectuais e pessoas dispostas a uma boa conversa? nos locais

    pblicos brasilienses, que a vida urbana e tudo o que pode se distinguir de outros modos de

    convivncia humana atingem sua mais completa expresso: mixofobia, medo de misturar-se. Alegrias,

    dores, esperanas, intuies, criaes no lhes so caractersticos. Locais onde nada se descobre,

    nada se aprende, e, sobretudo, nada se pratica como modos de uma vida urbana satisfatria. Os locais

    pblicos de Braslia so meras lacunas entre espaos privados, onde se despreza as minsculas

    interaes cotidianas.

    4.

    Estar-em-Braslia um estar-no-sempre-ser-assim. Pois Braslia carrega um sentido de fatalismo que

    elimina a importncia decisiva da relao entra a liberdade e a responsabilidade. uma afirmao para

    se cancelar a historicidade das decises e dos feitos negando qualquer condio anterior, mas cujo

    futuro pode ser determinado, a qualquer momento, pelos poderes que faz tal afirmao. Cada cargo

    pblico assumido a renovao dessa promessa de repetio intemporal. J que seus motivos so os

    da obedincia reduplicao e continuao do mesmo.

    5.

    Contrapartida reativa ao imaginrio daqueles trabalhadores que construram a cidade. Contrapartida

    poltica cultural da diferena como emancipao tornando-se poltica de identidade do dominante.

    Racismo que no postula a superioridade de certos grupos em relao a outros, j que precisam

    destes para que faam sua comida, lhes sirvam mesa, limpem suas casas, tomem conta de seusfilhos e filhas e cuidem de seu lixo, mas sim racismo que combate a abolio de fronteiras e postula a

    incompatibilidade entre estilos de vida s h uma nica e exclusiva forma de levar a vida em

    Braslia.

    6.

    Adeso feliz ao personalismo por lei: ao mesmo tempo em que se critica uma chamada polticapblica inclusiva de massas por tratar de massas despersonalizadas, adere-se noo de poder que

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    tem por finalidade o bem comum das pessoas, mas somente com o sacrifcio dos interesses individuais

    e coletivos de grupos criao de leis que digam o que pode e o que no pode fazer. Cidade

    personalista sustentada pela ao livre e responsvel das pessoas apenas mediante legislao.

    7.

    Quais os tipos de males sociais que h pelo asfalto e pelo concreto desta cidade? Algum se habilita a

    apresenta-los e a discuti-los? Mas quanta gente apta a criticar as solues depois que as decises

    foram tomadas! Mesmo em certeza de que vivem para as decises alheias. Quanto lamento por estas

    ruas sem esquinas! Populao apoltica, mas nada indiferente poltica. Assim brasilienses se

    definem. Definio surgida da complexa articulao de foras, de vozes esquecidas ou silenciadas, de

    memrias sintticas ou fragmentadas pela oficialidade e, de histrias contadas desde um s lado parasuprimir outras memrias.

    8.

    Na construo de Braslia, algo desapareceu: a classe trabalhadora. Que fim ela levou? Foi soterrada

    sob os monumentos? Fugiu para alguma antiga cidade-satlite? Foi relegada aos proto-museus

    candangos? Onde est essa populao? No entanto, uma imensa nuvem de fumaa foi levantada: a

    classe mdia. Esta que faz de sua vida um cruzada perseguindo a populao em situao de rua e o

    ltimo espcime da classe trabalhadora. Classe mdia de aspirao riqueza (acumulao enquanto

    aparncia), mesmo sabendo que jamais ser possuidora dos meios de produo. Classe media de

    aspirao nobreza (auto-enobrecimento), uma estranha aristocracia feita de funcionrios pblicos que

    se gabam em trabalhar no para sobreviver, mas para ostentar poder e arrogncia. Um reino de

    fraternidade mediado pelo status e pela soma de finitas certezas parciais da burocracia (o mito da

    coerncia). Por aqui, sua mais-valia e a mais-valia da ostentao em um deixar-se condicionar por

    esteretipos ao mesmo tempo em que segundo os quais determinam seus comportamentos.

    9.

    Novo papel intelectual: concurseiros e concurseiras. Intelectualidade provinda da memorizao de

    apostilas de snteses de conhecimentos, dados como certos e irrefutveis, e da tutela de professores e

    professoras mestres de cerimnia de um incrvel espetculo de robotizao. Por mais refinada que seja

    esta intelectualidade, o domnio de um conhecimento e das tiradas espirituosas dependem de tcnicas

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    invariveis e consagradas ao servio do ilusionismo social da oficialidade. Na vida intelectual

    brasiliense, os acontecimentos do dia a dia so uma espcie de colcha de retalhos de clichs:

    delinquncia, violncia, insegurana, impunidade, falta de planejamento, capital disto ou daquilo,

    cidadania, mrito profissional, etc.

    10.

    Realizao social seletiva (hierarquia dos espaos enquanto higienizao da vida social); espao

    residencial e pblico apenas como mercadoria (mercado do solo urbano); parceria pblico privado

    (subsdio s camadas mais ricas da populao e ao tecido empresarial mais poderoso, e, garantia das

    funes e estratgias de controle); cidade revanchista (poder, dominao e fechamento dos espaos

    pblicos); espao-urbano-rede (no h continuidade, a cidade opera como saltos entre pontos);

    multipertena simultnea e defasada em tempo real (pluralidade de estilos de vida como pluralidade de

    mercadorias vizinhana substituda pelas redes-sociais); ideal ps-urbano (morar em Braslia torna-se

    morar em um mundo em voga, da moda, cuja identidade realizada como um bem de consumo e

    de demonstrao de sucesso profissional); e, pensamento nico (cultura apenas associada aos

    polticos, ao grande capital, aos produtores culturais, aos planejadores urbanos, paisagistas e aos

    empreendedores).

    11.

    Iluminismo vrs. Bandeirantismo, Positivismo vrs. Coronelismo, Modernismo vrs. Latifndio, e

    desenvolvimentismo atual, so as ideologias planejadoras, realizadoras e mantenedoras de Braslia e

    de sua populao. Rastro ideolgico onde jamais uma ideologia superou a outra. Mesmo que

    consigamos distingui-las umas das outras e ressaltar suas especificidades, elas tm algo em comum,

    coexistem e se articulam: dio por tudo o que nativo fauna, flora e povos. Violncia, por vezes sutis

    [Plano Diretor de Ordenamento Territorial (PDOT)], por vezes brutais (Campanha de Soldados de Mato

    e aldeamentos), da prtica colonizadora: ocupar, dizimar e destruir. E assim, o cerrado do planalto

    central deve ser ocupado e recapeado com asfalto (ruas, estradas e estacionamentos) e concreto

    (monumentos e moradia), e o que restar, deve ser substitudo por outra vegetao (jardins

    paisagsticos e rvores da Mata Atlntica e da Amaznia); com isso grande parte de sua fauna

    destruda e, o que sobra, restringida a reservas e substituda por ces, gatos, pombos, pardais, etc.;

    assim como seus habitantes nativos, como os Paragu, os Guaicuru, os Kayap do Sul e os Tapuya,devem se tornar mo-de-obra barata, cristos civilizados e erradicados do Plano Piloto. Da

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    concentrao de terras pelas oligarquias rurais de Gois no sculo XVIII, passando pela criao da

    CANG (Colnia Agrcola Nacional de Gois) no sculo XX para acelerar a ocupao da regio, pela

    construo de Braslia especulao imobiliria do ltimo reduto de cerrado nativo (Setor Noroeste) no

    sculo XXI, indgenas representam um obstculo. Capital da jamais levada em prtica Poltica

    Indigenista Brasileira, a no ser, como sempre o foi na histria brasileira, para propor declaradamenteguerra aos indgenas.