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7/28/2019 Brasil e Politica Publica http://slidepdf.com/reader/full/brasil-e-politica-publica 1/13 1 REFORMA DO ESTADO E POLÍTICAS PÚBLICAS: IMPLICAÇÕES PARA A SOCIEDADE CIVIL E PARA A PROFISSÃO I vete Simionatto Profa. Titular do Departamento deServiço Social da UFSC 1 - O Banco Mundial e a Reforma do Estado A discussão sobre Reforma do Estado e Políticas Públicas precisa ser compreendida no contexto da crise global do capitalismo, de sua absorção pelas organizações internacionais e da incidência dessas últimas nas agendas dos Estados nacionais. Os estudos nessa área têm apontado que a influência das ‘nações hegemônicas’ sobre as chamadas ‘nações secundárias’ se expressa através de relações de poder coercitivas, que vão desde à ameaça de retaliação e embargos em várias áreas, a incentivos econômicos e financeiros. A hegemonia dessas nações tem provocado a alteração das “ orientações e valores das elites nacionais, difundindo novas idéias e crenças causais em especial sobre as funções do Estado ou sobre meios e fins da economia” (Costa, 1997:2), para responder à crise do capitalismo neste estágio globalizado.

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REFORMA DO ESTADO E POLÍTICAS PÚBLICAS: IMPLICAÇÕES

PARA A SOCIEDADE CIVIL E PARA A PROFISSÃO 

Ivete Simionatto

Profa. Titular do Departamento de Serviço Social da UFSC

1 - O Banco Mundial e a Reforma do Estado

A discussão sobre Reforma do Estado e Políticas Públicas precisa ser

compreendida no contexto da crise global do capitalismo, de sua absorção

pelas organizações internacionais e da incidência dessas últimas nas agendas

dos Estados nacionais. Os estudos nessa área têm apontado que a influência

das ‘nações hegemônicas’ sobre as chamadas ‘nações secundárias’ se expressa

através de relações de poder coercitivas, que vão desde à ameaça de retaliação

e embargos em várias áreas, a incentivos econômicos e financeiros. A

hegemonia dessas nações tem provocado a alteração das “ orientações e

valores das elites nacionais, difundindo novas idéias e crenças causais em

especial sobre as funções do Estado ou sobre meios e fins da economia”(Costa, 1997:2), para responder à crise do capitalismo neste estágio

globalizado.

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As principais diretrizes dos organismos internacionais recomendam que

a Reforma do Estado seja orientada para o mercado, exigindo o abandono de

instrumentos de controle político e a restrição na alocação de recursos

públicos, principalmente na área social. As agências de cooperação

internacional, especialmente o Banco Mundial, têm articulado uma “aliança

tecnocrática transnacional”, no sentido de racionalizar os investimentos nessa

área, diminuindo o papel do Estado e fortalecendo as ações de natureza

privada. Os investimentos na área pública, que historicamente cresceram em

vários países, principalmente no âmbito da Seguridade Social, são entendidos,

pelo Banco Mundial, como gastos mais quantitativos que qualitativos não

atendendo as necessidades dos segmentos populacionais mais pobres.

Entende, ainda, que esta forma de atuação dos Estados nacionais não condiz

com os atuais parâmetros da economia mundial globalizada, pois as mudanças

tecnológicas têm ampliado as funções dos mercados e obrigado as nações a

assumirem competências novas.

O cumprimento da programática proposta exige a “complementaridade

entre Estado e mercado”, ou seja, a iniciativa privada aparece como o novoconteúdo na execução das funções públicas, invertendo as premissas do pacto

Keynesiano. Nessa ótica, o Banco Mundial expressa a sua concepção de

políticas públicas, entendidas como forma de assegurar “que o crescimento

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seja compartilhado por todos e contribua para reduzir a pobreza e a

desigualdade”, devendo os governos atribuir prioridade aos “setores sociais

fundamentais”. Tal orientação fortalece o papel compensatório das políticas

públicas, retirando o seu caráter universal, assumindo uma perspectiva

focalista, na medida em que visa a atender os segmentos populacionais mais

vulneráveis. Inclui, também, a participação de provedores privados nas

atividades até então reservadas ao setor público afirmando que “muitos países

em desenvolvimento que desejam reduzir a magnitude de seu desmesurado

setor estatal devem conceder prioridade máxima à privatização” (Banco

Mundial, 1997:7).

No tocante à relação Estado/sociedade, o Banco Mundial, sob o

discurso da transparência, afirma a necessidade de processos consultivos, que

conferem à sociedade civil, incluindo sindicatos e empresas privadas, a

oportunidade de participação e controle das ações governamentais. É nesse

bojo que se inscrevem a descentralização e uma concepção de participação

centrada no humus comunitário, o que fortalece as perspectivas localistas que

desaguam no individualismo, ou seja, na supremacia do indivíduo sobre asociedade.

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2 – A Reforma do Estado no Brasil

As indicações sobre a política do Banco Mundial nos ajudam a situar o

que vem ocorrendo com a Reforma do Estado no Brasil cujas diretrizes

aparecem detalhadas no Caderno n°1 (1997:7) editado pelo Ministério da

Administração Federal e Reforma do Estado – MARE, de autoria do ex-

Ministro Luiz Carlos Bresser Pereira, a partir da indicação de quatro

componentes básicos: a) a delimitação do tamanho do Estado, reduzindo suas

funções através da privatização, terceirização e publicização, que envolve a

criação das organizações sociais; b) a redefinição do papel regulador do

Estado através da desregulamentação; c) o aumento da governança, ou seja, a

recuperação da capacidade financeira e administrativa de implementar

decisões políticas tomadas pelo governo através do ajuste fiscal; d) o aumento

da governabilidade ou capacidade política do governo de intermediar

interesses, garantir legitimidade e governar.

A delimitação do tamanho do Estado é claramente expressa pelas idéias

de “privatização, publicização e terceirização”, que, segundo Pereira (1997:

14), são essenciais para que o Estado torne-se “mais barato, mais eficiente na

realização de suas tarefas, para aliviar o seu custo sobre as empresas nacionais

que concorrem internacionalmente”. Reproduzindo o discurso do Banco

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Mundial sobre os efeitos da globalização e a crise mundial dos anos 80 e 90, o

ex-ministro indica os novos desafios postos nas agendas dos diferentes

governos nos planos social, político, econômico e ideológico. As respostas a

essa crise aparecem de forma diferenciada a partir de quatro grupos, assim

denominados por Pereira (1997): esquerda tradicional, centro-esquerda

pragmática, centro-direita pragmática e direita neolibral. Nas palavras de

Pereira (1997:17), a centro-esquerda social-liberal ao invés do “Estado

mínimo” propôs a “reconstrução do Estado” o que significa: recuperação da

poupança pública e superação da crise fiscal; redefinição das formas de

intervenção no econômico e no social através da contratação de organizações

públicas não-estatais para execução dos serviços de educação, saúde e cultura;

e reforma da administração pública com a implantação de uma administração

pública gerencial”, invocando o princípio da eficiência e das normas da

iniciativa privada e da chamada “reengenharia”. Afirma, ainda, que a chamada

“reconstrução do Estado” encontra-se na agenda de prioridades do Banco

Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), através da

concessão de empréstimos necessários a tão grande façanha.

A nova categoria aqui utilizada é o Estado Social-Liberal, revestida do

enganoso sentido de que é “social porque continuará a proteger os direitos

sociais e a promover o desenvolvimento econômico” e “liberal, porque o fará

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usando mais os controles de mercado e menos os controles administrativos,

porque realizará seus serviços sociais e científicos principalmente através de

organizações públicas não-estatais competitivas, porque tornará os mercados

de trabalho mais flexíveis, porque promoverá a capacitação dos seus recursos

humanos e de suas empresas para a inovação e a competição

internacional”.(Pereira, 1997:18). Os fundamentos dessa matriz de Estado,

contudo, indicam claramente a mercantilização dos direitos sociais e não a sua

defesa; indicam uma retração do Estado de direito conseguido com a luta das

forças democráticas brasileiras; indicam uma instrumentalização dos direitos

pela racionalidade econômica; indicam um retrocesso na construção

democrática e no exercício da cidadania ( Sader, Telles, 1997).

As funções do Estado no Brasil, a partir da Reforma, são assim

estabelecidas a) Núcleo Estratégico - compreende os Poderes Executivo,

Legislativo, Judiciário e o Ministério Público; b) Atividades Exclusivas -

serviços que só o Estado pode realizar, como regulamentar, fiscalizar e

fomentar; c) Serviços não-exclusivos - produção de bens e serviços, como

escolas, universidades, centros de pesquisa científica e tecnológica, creches,ambulatórios, hospitais, entidades assistenciais, museus, emissoras de rádio e

 TV educativas e culturais, deslocadas do núcleo exclusivo do Estado e

compreendidas como atividades competitivas que podem ser controladas pelo

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mercado; d) Produção de bens e serviços para o mercado - compreende o

segmento produtivo e o mercado financeiro.

É precisamente no núcleo “serviços não exclusivos” que o governo

estabelece as premissas da Reforma do Estado na sua relação com a sociedade

e o mercado, a partir dos seguintes objetivos:

- transferir os serviços não-exclusivos para entidades denominadas de

organizações sociais;

- buscar autonomia e flexibilidade na prestação desses serviços;

- buscar a participação da sociedade mediante o controle desses

serviços através dos conselhos de administração, com centralidade

na figura do cidadão-cliente;

- fortalecer a parceria entre Estado e sociedade através do contrato de

gestão.

As Organizações Sociais são “entidades públicas de direito privado que

celebram um contrato de gestão com o Estado e assim são financiadas parcial

ou mesmo totalmente pelo orçamento público”. Possuem as mesmas

características do setor privado, considerando-se, portanto, que a capacidade

do mercado é mais eficiente e efetiva do que o Estado, devendo este centrar-se

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em programas de proteção social voltados aos mais pobres, conforme

recomendações do Banco Mundial. Essa retórica neoconservadora de combate

à pobreza, patrocinada pelos organismos internacionais e absorvida pelos

intelectuais da Reforma no Brasil, remete à “produção de um consenso sobre

essas orientações políticas que implicam em restrição dos Estados nacionais e

razoáveis perdas para os grupos mais vulneráveis da sociedade. A novidade

desse consenso é a sua articulação, como recurso discursivo, à defesa dos

pobres ao rotular de inúteis e injustas as estruturas institucionais de proteção

social presentes e futuras” (Costa, 1997:16).

A sociedade civil, no tocante à Reforma do Estado, é compreendida

como um dos mecanismos institucionais de controle das ações governamentais

cuja interlocução não ocorrerá mais com o Estado, mas com as próprias

instituições, estando aquele isento das pressões sociais.

São fortalecidas por esta perspectiva as estratégias de desmonte das

organizações coletivas, enfeixadas no discurso enganoso sobre a sociedade

civil, remetendo-se a esta a responsabilidade no encaminhamento de projetos

que dêem conta dos complicadores das novas expressões da “questão social”.

Nessa ótica, a sociedade civil é deslocada da esfera estatal e atravessada pela

racionalidade do mercado, sendo, em última instância, a expressão dos

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interesses de instituições privadas que controlam o Estado e negam a

existência de projetos de classe diferenciados. Tomada em sentido

transclassista, é convocada, em nome da cidadania, a realizar parcerias de toda

ordem, sendo exemplares os projetos de refilantropização das formas de

assistência como o Comunidade Solidária e instituições do gênero

(Simionatto, 1997). 

Essas abordagens expressam a visão de sociedade civil sob a ótica do

capital, como uma esfera à parte que não estabelece uma correlação de forças

com o Estado. A rigor, a “sociedade civil” é um conceito tomado

indistintamente como expressão exclusiva dos interesses das classes

subalternas. Ora, na sociedade civil estão organizados tanto os interesses da

classe burguesa, que exerce sua hegemonia através de seus aparelhos

“privados”, reprodutores de sua ideologia, quanto os interesses das camadas

de classes subalternas, que buscam organizar-se para propor alternativas que

se contraponham às parcelas minoritárias detentoras do poder, afirmando a

prioridade do público sobre o privado, do universal sobre o particular, da

vontade coletiva sobre as vontades particulares.

O estilo de linguagem da utopia neoliberal é simples e

universal/abstrato, e muitos conceitos-chave foram capitaneados da esquerda

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com os conteúdos essenciais invertidos, no mais claro exemplo de

transformismo, segundo a concepção gramsciana. Na década de 60, por

exemplo, os analistas de esquerda utilizaram a terminologia “mudança

estrutural” para significar a “redistribuição de renda, terra e propriedade”. As

tendências neoliberais utilizam hoje o termo “reforma estrututal” que significa

a transferência da propriedade pública para as empresas privadas. A esquerda

também utilizou termo “reforma econômica” para designar as políticas de

realocação dos recursos públicos dos setores mais abastados para a área social.

O termo “reforma econômica” é utilizado, contemporaneamente, com o

sentido de redução dos investimentos sociais e transferência de subsídios

públicos aos setores privados (Petras, 1997:20). Tal discurso, soa, portanto,

como o mais competente para que as massas joguem seu destino nas mãos dos

intelectuais do poder, considerados os mais sábios e capazes para resolver os

problemas coletivos sem consultar os cidadãos.

A concepção de participação presente na Reforma do Estado está

associada mais à uma condição individual do que coletiva, centrada no

“cidadão-cliente”, na mais evidente concepção romana do termo e numa“gramática do poder”, de caráter prescritivo, destituida de conteúdo ético.

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 Tais mudanças não atingem, portanto, apenas a esfera econômica, mas,

também, a ideológica e a política uma vez que o sistema de valores universais

abstratos cria uma “nova fábrica de consensos” ativos e passivos o que,

atuando no âmbito da subjetividade, busca o consentimento e a adesão das

classes à nova ideologia.

Qual a opção que nos resta? A opção é centrar todas as forças na

reversão desse processo, buscando construir uma reforma do Estado

verdadeiramente pública, “intelectual e moral”, com intensa participação da

sociedade civil, ampliando a sua unidade para além do terreno da

institucionalidade e adentrando nas questões da racionalidade econômica e da

distribuição da riqueza. Reverter esse processo depende, pois, de uma

verdadeira "guerra de posição" aglutinada em torno dos segmentos de classe

que ainda sonham com uma sociedade melhor. É esse também o desafio que

precisamos nos propor, enquanto profissionais que buscam contribuir para a

construção de um novo projeto civilizatório.

Bibliografia

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