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BOTEQUINS, DECORAÇÃO E MEMÓRIA: COMO A REPRESENTAÇÃO MEMORIAL CONTIDA NA UTILIZAÇÃO DE OBJETOS HISTÓRICOS NOS BOTEQUINS DE PONTA GROSSA NO SÉCULO XXI PODE SER UTILIZADA NO ENSINO DE HISTÓRIA. Kevin Luiz da Silva 1 Universidade Estadual de Ponta Grossa Resumo. O botequim pode ser compreendido como um espaço que oferece mais do que somente a degustação de bebidas e comidas, habitualmente é nas práticas sociais que cada estabelecimento se difere e acaba por criar um público próprio juntamente com diferenças na arquitetura, cardápio, propostas de público e discurso, etc. Dentre alguns botequins da cidade de Ponta Grossa é possível observar uma decoração que faz apelo ao passado, geralmente objetos da metade do século XX, com algumas variações.O questionamento aqui feito é como essa decoração afeta a relação memorial dos consumidores e proprietários, e influência o comércio de alimentos e bebidas nestes locais. A partir da utilização da história oral na realização de entrevistas e suas subsequentes transcrições e análises, será observado o alcance dessa influência da memória no comércio e como estes locais podem ser considerados como casas de memória. Tendo isso em vista se torna possível utilizar esta pesquisa na educação do conceito de memória na escola, pois mesmo que o ambiente seja o botequim ele demonstra como as relações sociais e memoriais estão contidas em cada ambiente da sociedade e faz um convite não só aos historiadores, mas a qualquer pessoa para uma observação mais detalhada dos objetos e arquiteturas de seu cotidiano. Palavras-chave: Memória; Botequins; Educação; Decoração. Introdução O botequim no Brasil teve influência direta da modernidade emergente no Brasil do século XX, era um espaço de reflexão intelectual, resistência às repressões dos 1 Acadêmico de Licenciatura em História pela Universidade Estadual de Ponta Grossa, Aluno Petiano no programa PET História, tutorado pela Professora Dr. Rosângela Maria da Silva Petuba e orientado pelo Professor Dr. Niltonci Batista Chaves.

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BOTEQUINS, DECORAÇÃO E MEMÓRIA: COMO A REPRESENTAÇÃO

MEMORIAL CONTIDA NA UTILIZAÇÃO DE OBJETOS HISTÓRICOS NOS

BOTEQUINS DE PONTA GROSSA NO SÉCULO XXI PODE SER UTILIZADA NO

ENSINO DE HISTÓRIA.

Kevin Luiz da Silva1

Universidade Estadual de Ponta Grossa

Resumo.

O botequim pode ser compreendido como um espaço que oferece mais do que

somente a degustação de bebidas e comidas, habitualmente é nas práticas sociais

que cada estabelecimento se difere e acaba por criar um público próprio juntamente

com diferenças na arquitetura, cardápio, propostas de público e discurso, etc.

Dentre alguns botequins da cidade de Ponta Grossa é possível observar uma

decoração que faz apelo ao passado, geralmente objetos da metade do século XX,

com algumas variações.O questionamento aqui feito é como essa decoração afeta a

relação memorial dos consumidores e proprietários, e influência o comércio de

alimentos e bebidas nestes locais.

A partir da utilização da história oral na realização de entrevistas e suas

subsequentes transcrições e análises, será observado o alcance dessa influência da

memória no comércio e como estes locais podem ser considerados como casas de

memória. Tendo isso em vista se torna possível utilizar esta pesquisa na educação

do conceito de memória na escola, pois mesmo que o ambiente seja o botequim ele

demonstra como as relações sociais e memoriais estão contidas em cada ambiente

da sociedade e faz um convite não só aos historiadores, mas a qualquer pessoa

para uma observação mais detalhada dos objetos e arquiteturas de seu cotidiano.

Palavras-chave: Memória; Botequins; Educação; Decoração.

Introdução

O botequim no Brasil teve influência direta da modernidade emergente no Brasil do

século XX, era um espaço de reflexão intelectual, resistência às repressões dos

1 Acadêmico de Licenciatura em História pela Universidade Estadual de Ponta Grossa, Aluno Petiano no programa PET – História, tutorado pela Professora Dr. Rosângela Maria da Silva Petuba e orientado pelo Professor Dr. Niltonci Batista Chaves.

patrões e o consumo alcoólico em si. Ou seja, ele não se caracteriza somente pelas

bebidas e a marginalidade, mas em especial pela sociabilidade.

Porém os botequins têm dentre todas as características uma em especial que o

distingue de outros estabelecimentos comerciais: o discurso. É possível observar

uma grande variedade de discursos sobre estes estabelecimentos, alguns com

bases científicas ou que tem grandes disparidades entre si, dentre eles está o

discurso médico.

O consumo de álcool no Brasil acontece desde o período colonial, porém com a

modernização das cidades no inicio do período da república multiplicam-se o

número de bares no perímetro urbano brasileiro. Mas ao mesmo tempo nesse

período de Belle Époque brasileira as influências europeias não se limitam as

práticas sociais, culturais e comerciais como também atingem setores científicos

como a medicina, criando assim um discurso médico baseado no higienismo, que

iria criar uma campanha antialcoólica no inicio do século XX.

Detentores do monopólio do “conhecimento racional e científico”, os médicos se incumbem de indicar como e quando agir, interceder e sanar. A intervenção médica foi concreta e contínua, tendo no higienismo uma das bases de sua doutrina, criando todo um conjunto de prescrições que deveriam orientar e ordenar a vida. Regras de higiene na cidade, no trabalho, no comércio de alimentos, no domicílio, na família e nos corpos, costumes e hábitos, alimentação, cuidados com o corpo, prazeres permitidos e interditos, atividades artísticas, culturais, o trabalho, a sexualidade, tudo isso deveria seguir um parâmetro: o médico. É então nesse quadro de ação que se situa a luta antialcoólica. (MATOS, 2000)

Com essa campanha médica muitos conceitos sobre o consumo de álcool foram

criados associando ele a: doenças, vadiagem, mau desempenho no trabalho,

infidelidade, depressão, revolta... Alguns deles não foram forjados nessas

campanhas, vieram de conceitos anteriores sempre associados a bebidas

alcoólicas, porém foram enaltecidos e publicados em jornais, cartazes, panfletos,

etc. Compreensões que não ficaram presas ao tempo e ainda circulam pela

sociedade.

Nesse processo, os médicos assumiram vários papéis: como higienistas e sanitaristas combateram o alcoolismo com campanhas e ações

diversificadas; como legistas, discutiram as responsabilidades dos alcoólatras e a relação álcool-violência-crime; também nos hospitais e manicômios procuraram aperfeiçoar tratamentos para os alcoólatras, além de lutar por instituições especiais para abrigá-los. Esses papéis, algumas vezes, colidiam, gerando polêmicas, tensões e diferentes interpretações. Nesse quadro, o papel dos médicos e higienistas era de importância vital, já que consideravam o país na sua vocação para o “progresso e para a civilização” (MATOS, 2000).

Além do discurso outro ponto muito analisado em relação aos botequins é a

questão do masculino/feminino, o espaço de consumo alcoólico foi considerado por

muito tempo um espaço não restrito, mas frequentado em maioria por homens,

principalmente em estabelecimentos destinados a classes sociais mais baixas, algo

observável ainda contemporaneamente. A mulher no início do século XX era vista

como cuidadora do lar e responsável pelo bem estar do marido, o botequim e o

consumo de álcool não encaixavam nesse perfil idealizado da mulher nos discursos

vinculados pela imprensa nesse período.

Assim ainda dentro desses discursos aqui citados, o homem que frequentava esses

espaços não era só considerado “doente”, mas também alguém que estava

abandonando um lar com uma família esperando ele, não era algo considerado

masculino não cumprir com os ideais conservadores:

Assim, o alcoolismo era considerado como um verdadeiro círculo descendente, começando pela enfermidade, passando para o não-cumprimento dos deveres como homem-trabalhador, homem-provedor, homem-pai e desembocando na falta de cumprimento do seu “papel sexual”. Questionava-se a virilidade pela impossibilidade da prática do sexo, a quebra na frequência e potência do homem, gerando os desencontros familiares, as separações, dirigindo ao crime (ciúmes alcoólicos), e tinha como fim a morte (suicídio), muitas vezes a ideia era de morrer para fugir da vergonha da derrota e do fracasso, a falta de valentia, de coragem, a identificação com um não-deve-ser homem. (MATOS, 2000)

Discursos estes que mesmo ainda influenciando partes da mentalidade da

sociedade brasileira não tem mais o alcance demonstrado no inicio do século

passado. A partir da metade do século XX o cenário começa a mudar com mais

direitos conquistados pelas mulheres e trabalhadores, uma maior ascensão de

classes trabalhadoras as classes médias, investimento em propagandas

incentivando o consumo de bebidas alcoólicas, crescimento de empresas de

bebidas... Tudo isso foi gradativamente contribuindo para uma melhor recepção

social dos frequentadores destes espaços.

Mas aqui cabe uma rápida reflexão que será mais bem explorada ao longo da

pesquisa que é algo exposto pelo historiador Sidney Chalhoub na obra “Trabalho,

Lar e Botequim” que demonstra os bares como um espaço frequentado em sua

maioria por trabalhadores de classes mais baixas durante a Belle Époque, algo que

ainda perdura no século XXI, mas de maneira peculiar, é observável que em

botequins tanto nas periferias quanto nas regiões centrais da cidade voltadas a um

público com baixa condição financeira ainda são em sua maioria frequentados por

trabalhadores de fábricas e espaços claramente masculinos, basta adentrar em

algum deles para logo deparar com uniformes de indústrias. O que não acontece em

botequins voltados ao público de classe média ou alta, em que se pode observar

certa equivalência no número de mulheres e homens, locais em que os conceitos

expostos acima não parecem sobreviver frente a um cardápio gourmet, cervejas e

chopes artesanais e um ambiente temático.

Mesmo sendo um espaço destinado previamente ao consumo de bebidas e

comidas como exposto no inicio deste tópico, é nas relações sociais que os

botequins demonstram um ambiente rico a pesquisa e a História Oral, pois em

tempos de redes sociais, e o medo da violência na rua2, os botequins se tornaram

um importante meio de sociabilidade entre as pessoas, um lugar em que elas podem

se encontrar, beber, discutir opiniões, fazer planejamentos e principalmente ter um

contato pessoal fora do ambiente de trabalho e estudo e sem ser através de

mensagens virtuais, mesmo que muitas vezes seja através delas que estes

encontros sejam marcados.

O bar, em determinado espaço e tempo, aparece como lugar do advento da opinião pública, como um lócus de experiências e conhecimentos das coisas pela vivência e/ou observação, transformando-se em local de conversas e práticas políticas e culturais. Lugar onde, por exemplo, fala-se da cidade, às vezes sob uma narrativa homogênea, consensual, esperada,

2 “A exclusão da rua como local de interação social provoca a distância de percepção entre si dos

diferentes grupos ou classes sociais, ocasionando, entre outras coisas, o pânico advindo em grande parte da ignorância sobre os outros. Não interagindo mais, não frequentando casas diferentes da sua, o indivíduo não pode saber muito sobre as pessoas que vivem nelas. Associa-se com facilidade pobreza com violência, com marginalidade. E, por oposição, associa-se riqueza com vida fácil, felicidade e também (por que não?) com corrupção. O outro é cada vez mais uma face desconhecida, amorfa e distante. Os corpos diferentes não se encontram e nem mesmo se tocam.” D’Incao, Maria Ângela. Modos de ser e de viver: a sociabilidade humana. Tempo Social; Rev. Sociol, USP, São Paulo 4(1-2): pg. 95-109, 1992.

outras vezes ouvem-se falas polarizadas, provocadoras. Aventa-se a possibilidade de se pensar em algo como uma sociabilidade do bar, específica, gerando condutas, comportamentos, imaginários e vivências específicas. Uma sociabilidade carregada de carga lúdica, embora as regras e normas da interação estejam presentes. (BARRAL, 2012)

Faz-se necessário compreender estes espaços para esta pesquisa e perceber suas

singularidades, as práticas sociais e a relação do ambiente com a memória podem

demonstrar muito da cultura de uma sociedade, possibilitando assim uma forma

singular de estudar a relação que as pessoas têm da memória com objetos em um

determinado espaço, no caso aqui pesquisado o botequim.

O BOTEQUIM NA CIDADE DE PONTA GROSSA.

Quando trazemos a discussão feita até aqui para a cidade de Ponta Grossa

encontramos um marco que define bem a chegada da modernidade nesta cidade: A

ferrovia.

Ponta Grossa foi fundada em 1823 a partir dos fazendeiros paulistas que

começaram a fixar suas moradias na região dos Campos Gerais, e da passagem de

tropeiros pelo caminho de Viamão que rumavam do Rio Grande do Sul até a cidade

de Sorocaba. Na relação desses fazendeiros com os tropeiros foi fixado um ponto de

parada para as tropas, onde se realizava um pequeno comércio e os viajantes

podiam descansar e engordar o gado que já estava magro devido à longa viagem.

Logo surgiram povoados como Castro e o bairro de Ponta Grossa, que foi

transformado em freguesia com a escolha do local para a construção da capela de

Sant’Ana, hoje local da catedral de mesmo nome. Mas como cidade Ponta Grossa

só foi reconhecida no ano de 1862. Assim temos uma cidade de origem e essência

rural que iria se transformar em um dos principais entroncamentos ferroviários e

posteriormente rodoviários do Sul do País a partir da chegada da estrada de ferro no

ano de 1884.

A ferrovia no estado do Paraná teve inicio na implantação do trecho entre as

cidades de Curitiba e Paranaguá em 1880, comumente as primeiras estradas de

ferro eram construídas para a ligação das principais cidades com os portos para

facilitar o transporte da produção rural para a exportação, ou mesmo para o

transporte fluvial de um estado para outro. Em 1884 esta mesma estrada passou a

conectar as cidades de Porto Amazonas e Ponta Grossa em razão da necessidade

de levar o escoamento da produção até o interior do Estado. Já em 1902, outra

estrada de ferro iria cruzar Ponta Grossa: a estrada São Paulo – Rio Grande. Sobre

este processo o Geógrafo Leonel Brizolla Monastirsky fala que a implantação da

ferrovia...

(...) contribuiu para que a sociedade ponta-grossense

vivenciasse um rápido processo de modernização urbana, com

início na primeira fase econômica da erva-mate e da madeira, a

partir de 1870, com a vinda de imigrantes para a cidade. A

atividade comercial, aliada à localização geográfica estratégica,

que sempre foi o referencial econômico da cidade desde a sua

origem, dinamizou-se com o transporte ferroviário. As

transformações socioeconômicas, até então lentamente

ocorridas, sucederam-se de forma dinâmica, ampliando a

configuração urbana. (MONASTIRSKY, 2001:41)

Para a construção da ferrovia muitos imigrantes de diversas nacionalidades vieram

para a cidade, na implantação da estrada algumas construções surgiram e foram se

transformando em novos bairros, como o bairro de Oficinas local da famosa escola

ferroviária Tiburcio Cavalcante que formou novos operários para a manutenção e

operação da estrada de ferro. Hoje local do empreendimento imobiliário Santos

Dumont. Ainda sobre as transformações estruturais da cidade Monastirsky diz:

Além da ocupação linear, junto aos trilhos, muitos

equipamentos da ferrovia, instalados inicialmente distantes do

perímetro urbano, foram formadores de pequenos

aglomerados, em função das vilas dos trabalhadores. É o

exemplo de Oficinas, um dos maiores bairros da cidade, que

leva este nome devido ao complexo de oficinas de vagões que

ali foi instalado. Outro exemplo é a vila Cará-Cará, que se

desenvolveu em função da usina de tratamento de dormentes e

da pequena estação de trens ali existente. (MONASTIRSKY,

2001:41)

A ferrovia foi responsável por uma transformação da população de Ponta Grossa,

não somente no aumento populacional e na aparição de novos bairros, mas ela

como um dos maiores símbolos da modernidade no século XIX chegou à cidade

junto com cinemas, cafés, botequins, um jornal e novas práticas sociais

caracterizadas como urbanas, com o tempo o ponta-grossense foi se distanciando

de suas raízes rurais para alcançar a modernidade, transformando Ponta Grossa em

uma das principais cidades do interior do Paraná.

O interesse da iniciativa privada cresceu nesse período, com a instalação de

pequenas e médias empresas e indústrias como a Cervejaria Adriática, elas criaram

empregos e colocaram Ponta Grossa no mapa econômico do Estado, principalmente

se tratando da própria ferrovia, que também era motivo de orgulho e certo status

para seus trabalhadores:

Essas empresas dinamizaram a economia da cidade,

sobretudo em relação à absorção de um número significativo

de mão-de-obra, iniciando um processo de migração interna da

região sul do Paraná para Ponta Grossa. Mas foi a ferrovia que

criou a maior oferta de empregos na região, diretamente, no

quadro funcional da Rede e, indiretamente, com a prestação de

serviços e fornecimento de matéria-prima e equipamentos.

(MONASTIRSKY, 2001:42)

Enquanto a ferrovia funcionava como um atrativo de empreendimentos para a

cidade que a transformavam em uma urbe moderna, existia também agentes que

incentivavam e propagavam uma nova Ponta Grossa, que deixava de ser rural para

abraçar a modernidade, nesse sentido um exemplo claro é o jornal O Progresso que

mais tarde passou a se chamar Diário dos Campos, criado em 1907, tinha claro o

objetivo de disseminar uma mentalidade moderna entre a população da cidade,

dando ênfase nas novidades urbanas e criando uma opinião entre os ponta-

grossenses, já que era o único jornal da cidade. Sobre ele o historiador Niltonci

Batista Chaves afirma:

Nas primeiras décadas do século XX, o Diário dos Campos

procurou revestir-se de uma neutralidade aparente, colocando-

se como portador de verdades diante da opinião pública local.

A existência de uma sociedade plural levou o jornal a adotar

uma prática discursiva conciliatória.

O ufanismo e a exaltação às “coisas da terra” fizeram com que

o jornal representasse a cidade, não de forma errônea, mas

pelo menos de forma “amena”, idealizada. As evidentes

tensões sociais, próprias a uma sociedade que se formou

rapidamente dentro da lógica capitalista, não se constituem em

temas explicitamente tratados pelo Diário dos Campos.

(CHAVES, 2001:67)

O jornal Diário dos Campos apresentava em suas páginas diversas opções de lazer

em que o ponta-grossense moderno frequentava, como o cinema Renascença, a

Praça João Pessoa, clubes sociais, rinhas de galo, a Estação Saudade, os cafés e

os botequins... Além de fazer discursos que prezavam pela “boa sociabilidade” que

excluía mendigos e vagabundos tudo por uma “cidade ideal”:

A estratégia do Diário dos Campos, nesse período, foi muito

clara: adotar uma prática discursiva que representava a busca

de um “consenso possível”. Desta forma o jornal ajudou a

consolidar, no imaginário coletivo, a noção de Ponta Grossa

como o típico exemplo de uma “cidade civilizada”. (CHAVES,

2001:75)

Entende-se a partir do que foi exposto até aqui que a ferrovia foi o agente direto

responsável pela chegada da modernidade em Ponta Grossa, e que o jornal Diário

dos Campos foi um dos vários agentes formadores de opinião e afirmadores de uma

identidade urbana em uma cidade de nascimento rural, mas e os botequins? Como

se encaixam neste processo?

Os botequins são uma pequena parte da construção do moderno, Ponta Grossa

não teve quiosques como o Rio de Janeiro, porém seus bares e cafés também

vivenciaram a implantação da modernidade e sofreram preconceitos e também

foram espaços de resistência, mas de maneira interessante muitos destes

estabelecimentos se concentraram na histórica rua XV de Novembro:

Neste contexto, a cidade abrigou um grande número de

botequins, bares, cafés e confeitarias que cumpriam as funções

de ponto de convergência da população local. Distribuidos pela

área central ponta-grossense, foi na XV de Novembro – rua

que concentrava os símbolos da modernidade na cidade – que

esses estabelecimentos proliferaram e atraíram o maior

número de frequentadores. (CHAVES, 2011:12)

A rua XV de Novembro foi uma das primeiras a contar com as transformações

modernas como a iluminação pública e a separação do espaço entre calçada e rua,

ela se tornou um espaço para a manifestação popular com teatros, cafés, lojas e os

botequins, o “footing” – o encontro de vários populares durante a noite na XV para

eventos de socialização, compras e alguns copos de cerveja nos bares – o carnaval

de salão e o de rua, que iria voltar à rua XV somente em 2016 por ações da

população3.

Outro fator que influenciou diretamente nas práticas de consumo alcoólico em Ponta

Grossa, foi a presença da cervejaria Adriática que foi inaugurada em 1917 por

Henrique Thielen, ela já existia em Curitiba pelo nome de Grossel desde o final do

século XIX, mas mudou de cidade e de nome para homenagear o mar Adriático

após Thielen comprar a cervejaria de Jorge Grossel. Sobre a cervejaria Chaves

afirma que:

Com a maior indústria de Ponta Grossa até meados do século

XX, Henrique Thielen investiu na compra de máquinas vindas

da Europa e na qualificação de seus cervejeiros, enviando

diversos deles para aprender as técnicas de produção nas

principais cervejarias da Alemanha. O resultado dessa ousadia

foi a projeção da Adriática como a mais representativa indústria

ponta-grossense durante décadas. Thielen, por sua vez,

tornou-se uma referência entre os industriais locais, além de

projetar-se na vida política do município. (CHAVES, 2011:21)

A Adriática produzia alguns tipos de cerveja entre eles a Original e era uma das

principais cervejarias do Paraná chegando a produzir até 2.000 garrafas por hora,

pelo investimento no maquinário e nos funcionários a Adriática produzia uma cerveja

de boa qualidade, segundo CHAVES (2011, p.75) enquanto o jornal Diário dos

Campos criticava o alcoolismo da rua XV, ele fazia vários elogios a qualidade das

cervejas produzidas pela Adriática. Tal qualidade teve um processo de exaltação

histórica tão forte que mesmo após o fim da produção da cerveja Adriática em 1934

e a demolição do prédio da cervejaria na década de 1990, ela voltou a ser produzida

3 No dia 9 de fevereiro de 2016 uma organização popular composta por: César Leonardo V. K. Saad,

Fábio Miguel Mazurek e Luiz Augusto Estacheski realizou de maneira independente um carnaval de rua na XV de Novembro.

pela empresa Ambev em 2015 e distribuída para somente cinco cidades: Ponta

Grossa, Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro e Ribeirão Preto.

Assim a Ponta Grossa moderna do inicio do século XX tem seu local (rua XV de

novembro) e sua cerveja (Adriática) historicamente característicos desse período

marcado pela introdução da estrada de ferro e apresentados ou criticados pelo jornal

tradicional da cidade o Diário dos Campos.

Objetivos

O objetivo deste trabalho é compreender o espaço do botequim além do consumo

de bebidas e comidas, mas como um espaço de práticas sociais. Porém nos

botequins estudados existe uma terceira concepção a de casas comerciais que

tornaram sua decoração como uma “casa de memória” a partir da utilização de

diversos objetos do século XX, o que acaba remetendo a decoração deles a uma

decoração muito semelhante a dos primeiros botequins de Ponta Grossa no início do

século XX. A partir dessas conclusões, o segundo objetivo do trabalho é inserir a

relação da memória, que é exemplificada pelos botequins, em outros aspectos do

cotidiano do aluno, instigando o educando a criar uma percepção histórica de cada

detalhe da sua cidade, sendo monumental ou arquitetural.

Sobre os objetos utilizados na decoração dos botequins escolhidos, Éclea Bosi os

compreende como uma expressão e representação da memória de seus donos, os

classificando como objetos biográficos e objetos de status. Bosi diz:

Se a mobilidade e a contingência acompanham nossas relações, há algo

que desejamos que permaneça imóvel, ao menos na velhice: o conjunto de

objetos que nos rodeiam. Nesse conjunto amamos a disposição tácita, mas

eloquente. Mais que uma sensação estética ou de utilidade eles nos dão um

assentimento à nossa posição no mundo, à nossa identidade; e os que

estiveram sempre conosco falam à nossa alma em sua língua natal. O

arranjo da sala, cujas cadeiras preparam o circulo das conversas amigas,

como a cama prepara o descanso e a mesa de cabeceira os derradeiros

instantes do dia, o ritual antes do sono.

A ordem desse espaço nos une e nos separa da sociedade e é um elo

familiar com o passado. (BOSI, 2004:26)

Para que a pesquisa seja realizada utilizando-se da história oral, foram escolhidos

três botequins para estudo, que são:

-Boteking: inaugurado em 2012, localizado na rua Penteado De Almeida, nº 764 é

um botequim carregado de objetos históricos e uma decoração rústica, um antigo

armazém de comércio de alimentos que ainda preserva o balcão original.

-Boteco da Visconde: inaugurado em 2010, localizado na rua Visconde de Sinimbú,

nº 383 tem como destaque a utilização de móveis no teto do estabelecimento, além

de camisetas históricas de times e outros objetos.

-Botequim Original: inaugurado no século XX, localizado na rua XV de Novembro, nº

492, é um botequim todo ambientado na década de 1940, além da história na

decoração, na parte exterior é localizado em uma rua histórica no consumo de

bebidas de Ponta Grossa.

Resultados

A pesquisa ainda está em andamento, porém alguns resultados já foram obtidos em

relação a compreensão da importância dos objetos para o espaço do botequim, e

também a utilização da pesquisa em sala de aula durante a intervenção do estágio

obrigatório na escola CEEBJA- Professor Paschoal Salles Rosa.

Quanto aos objetos, a partir de pesquisas orais com frequentadores dos

estabelecimentos, foi possível notar que cada frequentador possui uma relação

memorial muito própria e diferente em relação a outros frequentadores, alguns

demonstraram uma questão mais afetiva com os objetos os relacionando com a

infância, enquanto outros demonstram curiosidade e um sentimento de saudosismo

tentando estimular a imaginação das práticas sociais relacionadas a cada objeto. Ou

seja, apesar das diversas percepções memoriais dos objetos, essa relação

influência na escolha do estabelecimento para o consumo.

Os resultados obtidos em sala após a apresentação do objeto de pesquisa e sua

relação com o assunto da aula: tempo e memória para a História, foram o estimulo

do interesse dos alunos para o campo de pesquisa historiográfico e ainda os

educandos começaram a relacionar locais tombados por patrimônio público com a

importância deles para a cidade e sua utilização atual.

Considerações Finais

A partir do levantamento da pesquisa bibliográfica e da pesquisa oral, ainda que em

fase de maior levantamento de dados, foi possível compbreender o botequim como

um espaço muito maior do que o simples comércio de bebidas e comidas, ele é

repleto de práticas sociais que são influenciadas pelos acontecimentos

contemporâneos, mas também é um ambiente rico em representações memoriais,

mesmo que acabem realmente tomando corpo e forma somente quando há a

reflexão sobre elas. Isso torna o ambiente muito mais amplo a pesquisas e debates,

não somente sobre o habitual discurso médico e a representação do feminino, mas

outros campos de pesquisa como o memorial que ajudam a tornar o método oral

uma grande ferramenta para a História.

A aplicação da pesquisa para as aulas do estágio demonstrou que o tema da

pesquisa, apesar de ser relacionado ao consumo alcoólico de bebidas por maiores

de 18 anos, pode ser relacionado a outros temas, e também nos lança a uma

reflexão sobre a nossa própria cidade, os métodos aplicados na pesquisa podem ser

utilizados para outros ambientes e estabelecimentos, fazendo um convite a uma

observação mais profunda do cotidiano na urbe.

Referências

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