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O comércio de alimentos em São Paulo na virada do século XIX para
o XX
Leopoldo Silva1
Introdução
A organização do comércio de alimentos em São Paulo se tornou uma questão
fundamental para o crescimento econômico e urbano da cidade na virada do século XIX
para o XX. Em torno do processo de industrialização e crescimento demográfico, duas
questões principais surgiram para as autoridades urbanas: retirar esse comércio do
triângulo2, área central da cidade, e aumentar a fiscalização e o controle sobre os
negociantes envolvidos no abastecimento urbano de alimentos.
Nessa época, os tradicionais mercados de alimentos das Ruas das Casinhas e da
Quitanda, bem como as tabernas e botequins de seus arredores, foram sendo retirados
no bojo das reformas urbanas que transformaram este espaço central em local do
comércio e serviços voltados para as classes mais abastadas, de modo que as quitandas,
açougues e armazéns cederam lugar para os restaurantes, cafés, confeitarias e lojas de
artigos importados.
O crescimento demográfico da cidade resultava em aumento na demanda por
gêneros alimentícios e, consequentemente, no volume dos negócios deste segmento.
Para as autoridades urbanas, exercer um controle mais eficiente sobre o comércio de
alimentos envolvia o aumento das receitas municipais via impostos e multas. A solução
adotada foi construir mercados municipais, administrados pela Câmara, nos limites do
perímetro urbano.
Em 1867, nas várzeas do Rio Tamanduateí, o mercado da Rua 25 de Março foi
inaugurado para receber os gêneros alimentícios (cereais e carnes) produzidos nas
cidades próximas à capital; em 1889, o mercado da Rua São João, voltado ao comércio
1 Estudante de doutorado do Programa de Pós-Graduação em História Econômica da FFLCH /USP. Este artigo é resultado da pesquisa de doutorado em andamento, financiada pelo Centro de Apoio a Pesquisa e Aperfeiçoamento de Pessoal, CAPES. 2 A região central da cidade, o seu núcleo urbano original, situado entre as ruas: Direita, São Bento e
Imperatriz (depois de 1890, rua XV de Novembro), será citada no texto como triângulo, segundo as
referências estabelecidas na historiografia.
2
de hortaliças, foi instalado às margens do Rio Anhangabaú. Estes mercados municipais
estabeleciam novas centralidades para o comércio de alimentos atraindo para seu
entorno atacadistas de cereais, armazéns de secos e molhados, quitandas, botequins,
quiosques.
Na segunda metade do século XIX, a capital se tornaria o local de negociação
das remessas de café para o exterior, em que se instalariam as indústrias subsidiárias do
café, como a de sacaria, bem como um centro comercial de máquinas agrícolas e artigos
importados. Paralelamente, a imigração europeia adquire proporções de massa e passa a
se concentrar na cidade. Desse modo, a vida urbana da capital começa a mudar
radicalmente de forma, perfazendo, assim, no período, uma rápida transformação de
uma cidade colonial para outra industrial, por onde circulariam de forma cada vez mais
intensa: mercadorias, capitais e trabalhadores. Estas transformações se refletiram em
alterações na paisagem urbana, com o remodelamento dos espaços e a resignificação de
seus usos sociais3.
O dinamismo imprimido na economia paulista pelo complexo cafeeiro promove
mudanças significativas no modo de vida urbano na cidade de São Paulo. Esta
mantivera seu aspecto colonial até meados do século XIX, quando, então, o capital
cafeeiro passa a ser direcionado para o financiamento de atividades urbanas como a
indústria e o comércio. Sob o aspecto comercial, a inserção da economia paulista no
mercado internacional, por meio do café, possibilitou o acúmulo de moeda estrangeira
que, por sua vez, permitiu o aumento e a diversificação na pauta de importação de
produtos industrializados4.
Os reflexos dessa integração se materializaram em intervenções no espaço
urbano, com mudança no perfil das casas comerciais do triângulo para torná-lo a vitrine
da modernidade que os habitantes da cidade experimentavam. Estas intervenções
consistiam na abertura de praças e no alargamento de ruas, para facilitar a circulação e a
visibilidade, abrindo espaço para as novas formas de publicidade e exposição de
produtos. A aquisição de novos hábitos de consumo envolvia a compra de mercadorias
3 Sobre as relações entre economia cafeeira, crescimento demográfico e mercado de trabalho, ver as
obras de: BEIGUELMAN, Paula. Formação do Povo no Complexo Cafeeiro. São Paulo: Editora
Pioneira, 1968; 4 NOZOE, Nelson Hideiki, São Paulo: economia cafeeira e urbanização, São Paulo: IPE/USP, 1984.
3
importadas, o que espelharia o refinamento no trato e a elegância nos costumes dessa
burguesia cafeeira emergente5.
Desse modo, a região central se tornaria espaço do comércio refinado da cidade.
Onde se instalariam as casas importadoras de mercadorias manufaturadas e de
máquinas, lojas de artigos de luxo, restaurantes, confeitarias e hotéis.
Enquanto o espaço do triângulo passava por essas intervenções urbanas que, a
pretexto de embelezá-lo e modernizar as atividades ali desenvolvidas, o tornam um
local de exclusão social. No mesmo momento, a cidade se expandia junto aos caminhos
das estradas de ferro, pelos terrenos alagadiços das várzeas.
As margens dos rios Tamanduateí e Tietê eram ocupadas pelos trilhos do trem
por constituírem locais próximos ao sítio urbano original e possuírem terrenos planos e
relativamente baratos. A disponibilidade de largas extensões de terra ao longo das
ferrovias aliada às facilidades no transporte de mercadorias e ao preço barato do metro
quadrado estimularam a instalação das primeiras indústrias. Circunstância que
transformou estes locais em bairros populares da cidade, em que passaram a residir os
operários, em sua maioria imigrantes, das novas fábricas6.
O descaso das autoridades municipais com o desenvolvimento da infraestrutura
urbana nesses bairros era flagrante. Ruas sem calçamento ou pavimentação,
esburacadas, sem rede de esgoto. Famílias operárias se aglutinavam em pequenos
cômodos nos cortiços e pensões7. Aquelas de melhores condições sociais poderiam
viver em uma casa onde dividiriam o espaço doméstico com alguma manufatura, as
incontáveis “fábricas de um homem só”, ou com algum modo de comércio,
principalmente armazéns de secos e molhados, botequins, quitandas entre outros8.
A par das mudanças estruturais e espaciais que contextualizam as
transformações no comércio de alimentos. Caracterizamos a seguir, a evolução do
5 Barbuy, Heloisa. Cidade-Exposição: Comércio e Cosmopolitismo em São Paulo, 1860-1914. São Paulo:
Edusp, 2006. 6 Prado Jr, Caio. A cidade de São Paulo: Geografia e História. São Paulo: Brasiliense, 1998. Coleção “Tudo é História”, 1978. 7 Moura, Esmeralda Blanco Bolsonaro de. O Trabalho da mulher e do menor na indústria paulistana 1890-1920. Petrópolis, 1982. 8 Bandeira Jr, Antônio. A Indústria no Estado de São Paulo em 1901. São Paulo: Typ. Do Diário Official, 1901.
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abastecimento urbano salientando as mudanças espaciais na localização das casas
comerciais do segmento, as alterações no perfil do comércio para os diferentes locais da
cidade e as mudanças na estrutura comercial em relação às transformações econômicas
e urbanas determinantes no processo de transição da cidade colonial para a industrial.
Na última seção, abordaremos um estudo de caso de um comerciante de
armazém de secos e molhados, a partir da análise das mercadorias comercializadas, sob
a perspectiva das redes comerciais que se formaram na cidade industrial para viabilizar
a circulação e consumo de alimentos, e outros gêneros de primeira necessidade, nos
bairros populares.
1. O comércio de alimentos na cidade de São Paulo: da cidade
colonial à cidade industrial
Nesta seção, objetivamos traçar em linhas gerais o desenvolvimento histórico do
comércio de alimentos na cidade. A evolução deste segmento está diretamente
relacionada às seguintes transformações na vida urbana: mudança no perfil do comércio
no sentido do refinamento e diversidade de mercadorias, a remodelação dos espaços
urbanos visando dinamizar a circulação de pessoas e produtos, os impactos do
crescimento demográfico e da expansão urbana com a instalação de indústrias e
surgimento dos bairros populares.
A ideia a ser desenvolvida nesta seção é contrastar a estrutura do comércio de
alimentos da cidade colonial com a reestruturação promovida pelo desenvolvimento
econômico e as intervenções urbanas no âmbito do abastecimento urbano na cidade
industrial.
Em linhas gerais, enquanto na cidade colonial, o comércio de alimentos se
realizava no interior do triângulo, com pouca especialização e em rústicas casas
comerciais, na cidade industrial, começa a ocorrer um processo de especialização e
diversificação das estruturas comerciais. Nesse sentido, identificamos o estabelecimento
das seguintes estruturas: os atacadistas de mercadorias importadas, os únicos
5
negociantes do segmento a permanecer no Triângulo; os equipamentos públicos de
abastecimento, como os mercados, situados em regiões fronteiriças ao triângulo, estes
se tornariam mediadores entre o comércio refinado e o popular e, nos bairros populares,
os vendedores ambulantes e os armazéns de secos e molhados.
Historicamente, o abastecimento urbano e o comércio de alimentos em São
Paulo se realizaram de forma fixa e de modo itinerante. As práticas comerciais vigentes
na cidade colonial, assim como sua estrutura comercial, se mantiveram estáveis até
meados do século XIX.
O abastecimento urbano se concentrava, de forma fixa, em duas vias no interior
do triângulo, a Rua das Casinhas e a Rua da Quitanda. No mercado das Casinhas, se
concentravam os comerciantes de carnes e de cereais. Entre as mercadorias vendidas, os
consumidores poderiam encontrar: arroz, feijão, milho, farinha de milho ou de
mandioca, toucinho, banha, carne de porco e carnes verdes, e até comprar animais vivos
como galinhas e porcos9.
O mercado das Casinhas foi organizado pelo poder municipal, em fins do século
XVIII, como uma medida para atenuar o problema histórico de abastecimento de carnes
na cidade. Por sua vez, tabernas, quitandas e negras de tabuleiro comerciavam verduras,
legumes, frutas e peixes na Rua da Quitanda. Estes mercados se tornaram objeto
crescente de fiscalização e controle do poder público municipal durante o século XIX.
De modo que, a organização do comércio de alimentos integrava um plano mais amplo
de ordenação do espaço público que definia seus usos e atividades nele realizadas.
A intervenção do poder municipal na organização do comércio de alimentos se
fazia sentir principalmente sobre os vendedores ambulantes que, na época, eram
compostos por uma maioria de mulheres escravas ou libertas negociando uma variedade
de alimentos preparados para consumo imediato, doces ou salgados, as famosas pretas
de tabuleiro. Conhecidas também como quituteiras, estas vendedoras circulavam pelas
ruas de maior movimento da cidade, mas também estacionavam em pontos de
9 BRUNO, Ernani da Silva. História e Tradições da cidade de São Paulo. Rio de Janeiro, José Olímpio,
1953, v. 2(Col. Documentos Brasileiros 80).
6
concentração de pessoas em largos e praças, ao lado das Igrejas, em horas de missa ou
em dias de festa.10
Este cenário de abastecimento remonta a cidade colonial e persistiu até meados
do século XIX. Quando o comércio de alimentos começaria a se diversificar,
aumentando a quantidade e variedade de estabelecimentos. Outras denominações
comerciais vão surgindo nas fontes: armazéns de molhados, armazéns de secos, tabernas
de gêneros do país, quitandas, botequins, tascas, etc.
A partir de 1870, com a remodelação e o embelezamento da área comercial do
triângulo, os mercados das ruas das Casinhas e Quitanda seriam desativados, suas ruas
agora reformadas abrigariam novos usos e significados.
O cenário comercial do triângulo povoado por armazéns e botequins, lojas de
panos de algodão e hospedarias rústicas, locais onde as mercadorias eram vendidas com
pouca preocupação quanto às formas de sua exposição11, seria modificado para a
implantação do modelo de vida burguês vindo da Europa. As ruas inscritas no triângulo
se tornariam espaço reservado ao comércio elegante de mercadorias importadas.
Os alimentos vendidos nas ruas, típicos no imaginário alimentar colonial, a
maioria de quitutes ofertados em tabuleiros por mulheres negras para serem consumidos
com as mãos, na rua, foram gradualmente eliminados do triângulo para ceder o lugar à
prataria e à etiqueta dos cafés, confeitarias, restaurantes e hotéis elegantes.
Nesta transição, o comércio de alimentos se desloca para fora do triângulo,
coagido a descer as encostas, até então limítrofes do mundo urbano, e a se estabelecer
nas várzeas do Tamanduateí, na Rua Vinte e Cinco de Março, onde fora inaugurado o
Mercado Municipal em 1867.
Como etapa fundamental para esta nova organização do espaço urbano, a
construção, pela municipalidade, de um novo equipamento de abastecimento
simbolizava essas transformações no âmbito da expansão urbana e no comércio de
alimentos na cidade. O Mercado Municipal na Rua Vinte e Cinco de Março foi o
10 Silva, João Luiz Máximo de. A alimentação de rua na cidade de São Paulo (1828-1900). São Paulo,
2008. USP Tese de doutorado. 11 Ver nota 4
7
instrumento utilizado pelo poder municipal para reorganizar os fluxos de mercadorias e
pessoas na cidade.
A nova centralidade exercida pelo Mercado reorientou os fluxos de mercadorias.
As cargas de cereais provenientes das zonas rurais próximas deixariam de entrar no
triângulo, o comércio atacadista e varejista de alimentos gradualmente se deslocaria
para o mercado e suas imediações. Esta reestruturação do comércio de alimentos levaria
ao surgimento do que hoje em dia é conhecida como zona cerealista. Esta região do
mercado se tornaria a mediadora entre o comércio refinado e de luxo e o comércio nos
bairros populares.
Nas últimas décadas do século XIX, o comércio de alimentos realizado no
triângulo se especializaria em mercadorias manufaturadas, importadas por firmas
atacadistas, as quais exerceriam influência crescente no abastecimento de alimentos na
cidade. Estes atacadistas se reuniam em sociedades anônimas de capitais, muitos
monopolizavam o comércio de certas marcas de alimentos ou bebidas importadas e,
com a proximidade da Primeira Guerra Mundial, começaram a negociar com cereais em
atacado, por meio de modalidades de crédito denominadas de comissões e
consignações.
Nos bairros populares da cidade industrial, os vendedores ambulantes
começaram a exercer um papel fundamental no comércio de alimentos. O crescimento
urbano acelerado expandia os limites da cidade para regiões distantes do triângulo, os
trajetos percorridos pelos habitantes dos bairros populares até os centros comerciais se
ampliavam, o que acarretava em gastos com transporte público.
Esses vendedores ambulantes que percorriam as ruas desses bairros mais
afastados comercializavam, em sua maioria, gêneros alimentícios tanto para o preparo
doméstico quanto ao consumo imediato. O aumento na demanda por alimentos na
cidade assumia um caráter crítico para o abastecimento nesses bairros, onde a população
possuía menor poder aquisitivo e ainda convivia com uma precária infraestrutura
urbana.
A facilidade representada por esses vendedores na circulação de mercadorias
pela cidade aliada a um mercado de trabalho sujeito a crises periódicas de excesso de
8
mão de obra tornava o comércio ambulante um meio de sobrevivência para largas
parcelas da população12. Em relação ao abastecimento urbano, esses vendedores
ambulantes atuaram como instrumento fundamental para equilibrar o comércio de
alimentos em constante pressão pelo aumento na demanda e circulação de mercadorias.
Paralelamente aos ambulantes, os armazéns de secos e molhados se tornariam o
principal local para o abastecimento de alimentos aos habitantes dos bairros populares
da capital. No armazém, o cliente poderia encontrar um pouco de tudo, e ainda comprar
em quantidades variadas.
Por ser a casa comercial com o maior número de estabelecimentos na cidade13, e
pela diversidade de mercadorias oferecidas à clientela, é previsível que sob essa
denominação se encontrassem negócios com volumes de capital e mercadorias muito
distintos. Todavia, a análise do estoque de mercadorias e das relações comerciais
construídas por esses comerciantes demonstra algumas características recorrentes aos
armazéns, independente do porte do negócio e para diferentes bairros da cidade.
Na próxima seção, analisaremos um caso específico de um comerciante de
armazém de secos e molhados. Os dados a serem utilizados no estudo de caso são as
mercadorias comercializadas em um negócio estabelecido no bairro da Água Branca na
década de 191014.
II – o comércio de secos e molhados: um estudo de caso
A perspectiva de abordagem deste estudo de caso será relacionada a três fatores
determinantes quanto à posição dos armazéns de secos e molhados na estrutura de
comércio de alimentos na cidade industrial: o varejo de secos e molhados como um
micro cosmo de todo o comércio de alimentos realizado na cidade; a polarização
12 PINTO, Maria Inez Borges. Cotidiano e Sobrevivência – A vida do trabalhador Pobre na cidade de
São Paulo (1890-1914). São Paulo, EDUSP, 1994.
13 SAES, Flávio. São Paulo Republicana: A vida econômica. In: História da Cidade de São Paulo – A
cidade na primeira metade do século XX, Org: Paula Porta, São Paulo Paz e Terra, 2004.
14 Silva, Leopoldo Fernandes da. O comércio nos bairros populares da cidade de São Paulo: os armazéns
de secos e molhados (1914 a 1921). São Paulo, 2012. Dissertação de mestrado USP
9
subjacente entre artigos nacionais e importados, refletindo as tensões entre comércio
internacional e formação do mercado interno; e a importância do comércio de secos e
molhados para a reprodução do capital industrial nacional no âmbito do abastecimento
urbano.
Para tanto, utilizaremos dados colhidos em inventário da família de um
comerciante, analisado durante pesquisa de mestrado15. O tratamento dispensado às
informações obtidas nesta fonte será norteado pelas balizas estabelecidas no parágrafo
anterior.
Nas duas primeiras décadas do século XX, o comércio de secos e molhados nos
bairros populares se situava em locais de grande circulação de pessoas. Em imóveis,
onde o armazém funcionava geralmente em um dos cômodos da frente, em casas de
famílias de imigrantes, ou descendentes, próximos às grandes fábricas da época, às
estações de trem ou paradas de bondes.
O armazém da família Madasi funcionou no bairro da Água Branca na década de
1910. Assim como os outros bairros populares da cidade, a urbanização da região até
então ocupada por chácaras, nas várzeas do rio Tietê, avançou com a passagem das
linhas férreas da São Paulo Railway Company, inaugurada em 1867, a importante
estrada de ferro Santos-Jundiaí, e também com a E.F Sorocabana, no ano de 1874.
Com o acesso ao transporte ferroviário, diversas indústrias se instalaram no
bairro, tornando a Água Branca uma das principais regiões industrializadas da cidade na
virada do século. Entre os maiores estabelecimentos fabris, encontraríamos a
Companhia Antártica Paulista, pioneira na produção de cervejas e gelo e a vidraria
Santa Marina, a qual foi o primeiro estabelecimento do ramo na América do Sul, entre
seus produtos, destacava-se a produção de garrafas para o abastecimento da fábrica de
cervejas. Além da Santa Marina, a sociedade anônima, Prado, Chaves &Cia controlava
outra indústria, a fábrica de Curtume onde eram produzidos artigos derivados de
couro16.
15 Ver nota anterior. 16 PINTO, Alfredo Moreira. A Cidade de São Paulo em 1900. São Paulo, Coleção Paulística, volume
XIV, Governo do Estado de São Paulo, 1979.
10
O armazém dos Madasi estava situado na travessa do Curtume. O armazém
ocupava o imóvel de nº 2, indicando sua proximidade do início da rua, cuja nomeação
sugere a identificação da travessa pela fábrica nela instalada. Possivelmente, a travessa
fora aberta e arruada, a partir das próprias dependências da indústria.
Por ocasião de abertura do Inventário de família, os bens são avaliados para que
seja conhecido o tamanho do espólio e a partilha da herança seja efetuada, segundo as
regras da Vara de Família. No caso do inventário da família Madasi, o comerciante em
questão possuía muitas dívidas ativas e passivas. As ativas consistiam no crédito
fornecido aos clientes do armazém, por meio da venda de mercadorias ou pelo
empréstimo de somas de dinheiro; as passivas são provenientes do crédito obtido nas
transações realizadas com os atacadistas de secos e molhados.
Para que fossem conhecidos todos os bens, a contabilidade do armazém e as
mercadorias do estoque eram avaliadas e catalogadas no patrimônio da família.
Entretanto, antes de realizar a partilha, era necessário ajustar as finanças, receber o
dinheiro devido por clientes e pagar as somas dos débitos contraídos junto aos credores.
Com o objetivo de alcançar a dinâmica das redes comerciais que animavam o
comércio de alimentos na cidade industrial, é importante analisar a variedade de
mercadorias oferecidas nos armazéns dos bairros populares. Esta variedade ilustra as
relações estabelecidas entre os comerciantes de secos e molhados e o restante da
estrutura comercial da cidade, principalmente nas relações com os diversos atacadistas
de secos e molhados.
As categorias para a análise das mercadorias estão relacionadas com a hipótese
de que os armazéns de secos e molhados reuniam mercadorias vendidas em toda a
estrutura comercial da cidade, tornando-o um micro cosmo do comércio como um todo,
principalmente no setor de abastecimento de alimentos.
Apresentaremos a seguir as mercadorias do estoque do armazém da família
Madasi no ano de 1915, no bairro popular da Água Branca. A divisão das mercadorias
vai além da questão de saber quais produtos seriam os secos, e quais aqueles
classificados como molhados. Para a melhor apreensão do universo de mercadorias
11
presentes neste armazém, quais ligações comerciais são necessárias para aqueles
produtos estarem disponíveis naquele lugar, naquele tempo, cremos ser mais profícuo
dividi-las em três categorias: artigos manufaturados nacionais, artigos manufaturados
importados e produtos agrícolas (cereais).
Portanto, a divisão adotada primou pela origem produtiva ou comercial das
mercadorias, o que levou o vinho a ser classificado junto das bacias de ferro de Agati
porque ambos eram importados e fornecidos pelos atacadistas situados no triângulo e
nos arredores do mercado. Seguindo a mesma lógica, o sabão e o macarrão foram
classificados como artigos manufaturados nacionais por serem produzidos pelas
indústrias da cidade e integrarem o circuito de abastecimento realizado no mercado
interno.
As mercadorias classificadas como artigos manufaturados nacionais são: sabão,
macarrão, goma, tamarindo, espírito de vinho, licores, cigarro, fumo, capilé, marmelada,
massa de tomate, vidros para lampião, velas, vinagre, barbante, fósforo, bebidas
nacionais diversas, açúcar cru, cestas, escovas ordinárias, arame, peneira pra café, para
fubá, corda de pinho, banha, graxa pra carroça, chinelos, farelo, carne seca e pinga.
Em uma primeira leitura, impressiona a diversidade de mercadorias nacionais
disponíveis ao comércio a varejo nos armazéns. Esta diversidade atestaria o estágio de
desenvolvimento da produção industrial, naquele momento. Os principais setores do
parque industrial paulista estão representados nestas mercadorias. Alimentos
industrializados como massa de tomate, macarrão, bebidas diversas e banha estão entre
as primeiras mercadorias manufaturadas produzidas em São Paulo.
Entre os primeiros alimentos industrializados, encontramos a massa de tomate e
o macarrão introduzidos nos hábitos alimentares da população da capital devido à
influência da imigração italiana. Todavia, outros produtos como a banha, a carne seca e
a pinga, em um armazém frequentado majoritariamente por italianos, são indicadores de
que os “gêneros da terra” também passaram a integrar o rol de alimentos consumidos
pelos imigrantes. Este convívio entre diferentes culturas alimentares no mesmo espaço
urbano traçou os contornos do que hoje é denominado cozinha paulista.
12
Os artigos manufaturados importados eram os seguintes: queijo, azeite,
aguardente e vinho de origem italiana; farinha de trigo, sardinhas, cebola, alho, leite
condensado, Fernet, Vermouth refinado, conhaque Jules Rubin, vinho do Porto, Bitter
Alemão, louças e ferragens, bules e bacias perfumadas de ferro Agati, pás de ferro e
zinco.
As mercadorias importadas também marcavam presença em grande variedade.
Geralmente, em pequenas quantidades à exceção do vinho e da farinha de trigo. Estes
dois itens somavam juntos mais da metade do capital investido pela família no negócio.
É curioso notar que as bebidas nacionais não são discriminadas entre si na avaliação das
mercadorias, enquanto que as bebidas importadas o são pela qualidade e, em alguns
casos, pela marca, como o conhaque Jules Rubin. Entre as bebidas, a cerveja não
apareceu como possível opção de compra.
Os artigos importados custavam mais caro à freguesia, entretanto correspondia à
manutenção de hábitos alimentares das comunidades imigrantes, como no caso do
consumo de azeite e vinho. A presença dos importados demonstra a inserção destes
comerciantes na rede de comércio internacional, estabelecida pelos atacadistas e lojas
elegantes do triângulo.
As mercadorias de produção agrícola (cereais) consistiam em apenas três artigos,
em grandes quantidades: milho, batata e feijão. Estes alimentos eram vendidos por
atacadistas de cereais que atuavam no mercado, e em suas imediações.
As bebidas eram vendidas pelos armazéns de molhados do triângulo,
especializados em bebidas engarrafadas e enlatados importados. A cebola e o alho
foram alimentos difundidos pelos imigrantes espanhóis e os atacadistas que os
comercializavam se localizavam no mercado da Rua 25 de março, e em ruas
adjacentes17.
No armazém de secos e molhados praticava-se o comércio tradicional de gêneros
da terra (arroz, feijão, milho, carne, farinhas) como feito antigamente nas Ruas da
Quitanda e Casinhas, e depois no mercado da Rua Vinte e Cinco de Março. Essas casas
17 Cánovas, Marília Klaumann. Imigrantes Espanhóis na Paulicéia: trabalho e sociabilidade urbana (1890-1922). São Paulo: Edusp, 2009.
13
comerciais também incorporavam o comércio de manufaturados importados, desde
alimentos até ferragens, que eram vendidos por diversos atacadistas e importadores do
triângulo e que, no varejo de secos e molhados, estavam reunidos em um só lugar.
Ademais, esses armazéns ainda exerciam um papel fundamental na distribuição de
mercadorias industrializadas nacionais, o que fomentava a consolidação do mercado
interno e garantia a reprodução do capital industrial e o fortalecimento das atividades
econômicas urbanas.
O crédito era um instrumento financeiro fundamental para a realização do
comércio de alimentos na cidade. A estrutura de crédito se iniciava no atacadista que
fornecia produtos em consignação aos armazéns dos bairros, estes, por sua vez,
reproduziam o sistema de crédito, por meio das cadernetas, na venda no varejo. As
relações de crédito entre os comerciantes e os clientes simbolizavam relações
interpessoais construídas na base da confiança. Desse modo, os armazéns eram também
importantes espaços de sociabilidade, de aquisição de gêneros básicos, mas também de
troca de ideias e informações, local de debates e fruição do tempo.
Considerações finais
O comércio de alimentos refletia as mudanças em curso na cidade na virada do
século XIX para o XX. Influenciadas diretamente pelo crescimento demográfico e
espacial, bem como pela mudança na estrutura produtiva, no bojo da industrialização da
cidade.
A análise das mudanças resultantes na estrutura comercial concentrou-se em
seus quatro principais componentes: os atacadistas, os mercados, os vendedores
ambulantes e os armazéns de secos e molhados.
Especificamente, no caso do armazém, o antigo e o novo compartilhavam o
mesmo espaço, onde diversas temporalidades estavam representadas, ou até
sobrepostas. Por meio da análise das mercadorias, é possível vislumbrar a presença,
neste estabelecimento, das principais estruturas comerciais de abastecimento de
14
alimentos, na cidade. Esses comerciantes realizavam negócios com diversos atacadistas
do triângulo e do mercado tornando os armazéns um micro cosmo do comércio da
cidade.
Esta polarização entre o antigo e o novo se desdobrava em outras, tais como: o
nacional e o importado. O comércio de mercadorias importadas desempenhava um
importante papel no valor de estoque do negócio. Entretanto, os armazéns eram os
principais distribuidores no varejo da produção industrial nacional. Este comércio era
fundamental para a reprodução do capital industrial e para a consolidação do mercado
interno.