prÁticas alimentares e sociabilidades em famÍlias … · 2016. 4. 20. · 5.5. mescla cultural:...

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ROMILDA DE SOUZA LIMA PRÁTICAS ALIMENTARES E SOCIABILIDADES EM FAMÍLIAS RURAIS DA ZONA DA MATA MINEIRA: MUDANÇAS E PERMANÊNCIAS Tese apresentada à Universidade Federal de Viçosa, como parte das exigências do Programa de Pós-Graduação em Extensão Rural, para obtenção do título de Doctor Scientiae. VIÇOSA MINAS GERAIS BRASIL 2015

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Page 1: PRÁTICAS ALIMENTARES E SOCIABILIDADES EM FAMÍLIAS … · 2016. 4. 20. · 5.5. Mescla cultural: práticas de consumo alimentar de ontem e de hoje.. 156 5.6. As quitandas para a

ROMILDA DE SOUZA LIMA

PRAacuteTICAS ALIMENTARES E SOCIABILIDADES EM FAMIacuteLIAS RURAIS DA ZONA DA MATA MINEIRA MUDANCcedilAS E PERMANEcircNCIAS

Tese apresentada agrave Universidade Federal de Viccedilosa como parte das exigecircncias do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Extensatildeo Rural para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doctor Scientiae

VICcedilOSA MINAS GERAIS ndash BRASIL

2015

ROMILDA DE SOUZA LIMA

PRAacuteTICAS ALIMENTARES E SOCIABILIDADES EM FAMIacuteLIAS RURAIS DA ZONA DA MATA MINEIRA MUDANCcedilAS E PERMANEcircNCIAS

Tese apresentada agrave Universidade Federal de Viccedilosa como parte das exigecircncias do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Extensatildeo Rural para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doctor Scientiae

APROVADA 25 de novembro de 2015

ii

Aos meus pais que me ensinaram a fazer escolhas na vida baseadas no amor

e a me dedicar com responsabilidade a tudo que faccedilo Ao meu pai que sempre

se despede dos filhos e netos dizendo ldquovai em paz seja felizrdquo Agrave minha matildee

que adoeceu e faleceu no meio do processo do doutorado e que apesar de

seu estado de sauacutede esteve sempre atenta e preocupada com meu trabalho

Ela que gostava de experimentar pratos novos mas elaborava a comida

tradicional como ningueacutem me ensinou que a cozinha eacute um lugar onde coisas

boas acontecem para quem estaacute disposto a vivenciar sua ldquoalquimiardquo

iii

AGRADECIMENTOS

A Deus por tudo Por me sentir capaz de superar os momentos de

tristeza e fragilidade e vivenciar sem culpa os momentos de alegria e de

bonanccedila

Ao meu orientador Joseacute Ambroacutesio Ferreira Neto pela orientaccedilatildeo apoio

e confianccedila Por assumir minha orientaccedilatildeo em 2014 e me ajudar nesta travessia

Pela oacutetima orientaccedilatildeo pelas criacuteticas e elogios

A Rita de Caacutessia Pereira Farias pela coorientaccedilatildeo pelas importantes

contribuiccedilotildees ao trabalho pelo incentivo e as conversas que tivemos

Aos professores membros da banca examinadora Eliana Gomes de

Souza Douglas Mansur da Silva Ricardo Ferreira Ribeiro e ainda Joseacute

Ambroacutesio Ferreira Neto e Rita de Caacutessia Pereira Farias pela participaccedilatildeo pelas

criacuteticas e sugestotildees

Aos teacutecnicos da Emater dos municiacutepios pesquisados Rita Maria

Brumano Oliveira Geraldo Antocircnio da Silva Eduardo Muniz e ao assistente de

escritoacuterio Luiz Antocircnio Faria por todo apoio necessaacuterio agrave realizaccedilatildeo da pesquisa

de campo pela companhia em muitas das comunidades visitadas

Agraves famiacutelias que entrevistei e que me receberam tatildeo bem Agradeccedilo pela

compreensatildeo a respeito da pesquisa e pelas longas horas dedicadas ao diaacutelogo

pelas deliciosas refeiccedilotildees que fiz em companhia delas Meu aprendizado com

essa convivecircncia foi imenso

Agradeccedilo ao meu pai e minha matildee ndash ldquoouro de Minardquo E agradeccedilo pelo

carinho de sempre a toda minha famiacutelia que estaacute o tempo todo presente na

travessia que faccedilo pela vida ainda que muitas vezes agrave distacircncia Aos meus

irmatildeos Cristina e Joseacute Mauro sempre preocupados com a irmatilde mais nova Ao

meu irmatildeo Gumercindo pelo apoio nos momentos difiacuteceis e pelos conselhos

acadecircmicos durante o doutorado Agrave minha cunhada Luciana pelo socorro em

momentos de fragilidade com a sauacutede apoacutes noitadas sem dormir

Ao Felipe amor que chegou no meio da trajetoacuteria do doutorado

companheiro que soacute tem me trazido alegria amor e apoio incondicional e muita

muacutesica

iv

A Luana minha enteada querida pelas revisotildees dos abstracts para

artigos e por ter compreendido facilmente minha ausecircncia em seu casamento

no Rio de Janeiro em funccedilatildeo do trabalho

Agrave Universidade Federal de Viccedilosa pela oportunidade de realizar o

doutorado e aos professores do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Extensatildeo

Rural pelas trocas de experiecircncias e conhecimentos Aos funcionaacuterios do

Departamento de Economia Rural sobretudo Romildo e Carminha pela atenccedilatildeo

e simpatia

Agrave Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute instituiccedilatildeo onde atuo haacute

12 anos por ter permitido meu afastamento para fazer o doutorado

Agrave CAPES pelos dois anos de bolsa REUNI (2012 e 2013)

Agraves colegas de doutorado pelas conversas pelas alegrias e tristezas que

compartilhamos em alguns momentos e pelas boas energias que partilhaacutevamos

na conduccedilatildeo do trabalho Agradeccedilo tambeacutem os estudantes do mestrado com

quem fiz amizade ao longo de todo o periacuteodo A Fernanda Machado por me

socorrer elaborando os dois mapas que precisei

v

SUMAacuteRIO

LISTA DE TABELAS vii

LISTA DE QUADROS viii

LISTA DE FIGURAS ix

LISTA DE SIGLAS xi

RESUMO xii

ABSTRACT xiv

INTRODUCcedilAtildeO 1

1 A REGIAtildeO DE ESTUDO 5

11 Um breve histoacuterico de ocupaccedilatildeo da regiatildeo estudada 6

12 Informaccedilotildees atuais sobre a populaccedilatildeo rural e as principais atividades agriacutecolas dos municiacutepios pesquisados 10

13 Atividades produtivas 13

2 A COMIDA EM MINAS GERAIS DA ESCASSEZ Agrave FARTURA 18

21 Contextualizando o lugar da comida no Brasil Colonial nos primoacuterdios 18

22 Fase da mineraccedilatildeo em Minas Gerais escassez de alimentos 24

23 Fase da ruralizaccedilatildeo em Minas Gerais fartura de alimentos 29

3 ALIMENTACcedilAtildeO E CULTURA PERMANEcircNCIAS E TRANSFORMACcedilOtildeES 36

31 A alimentaccedilatildeo como categoria de estudo multidisciplinar contribui-ccedilotildees da antropologia da sociologia e da histoacuteria 36

32 Sistema alimentar 46

321 Alimentos aceitos e rejeitados 49

3211 Haacutebitos alimentares orientados por costumes e tradiccedilotildees 52

33 Alimento comida e cultura 55

331 A importacircncia social e cultural do uso do fogo e sua relaccedilatildeo com a comensalidade 59

3311 O local do fogo e da praacutetica da comensalidade na arquitetura domeacutestica 63

34 Praacuteticas alimentares na contemporaneidade entre o tradicional e o moderno 68

35 Modernidade e tradiccedilatildeo no contexto alimentar rural contemporacircneo 78

36 O papel feminino nas praacuteticas alimentares na famiacutelia 86

4 ASPECTOS METODOLOacuteGICOS DA PESQUISA E A CHEGADA AO CAMPO 94

41 Teacutecnica de pesquisa 95

vi

42 Os sujeitos da pesquisa 95

43 A conduccedilatildeo da pesquisa o caminho percorrido 96

44 A entrevista semiestruturada 98

45 A imersatildeo em campo a chegada e a travessia 98

46 Descobrindo a cultura local dos entrevistados 101

461 Perfil das famiacutelias 101

462 A produccedilatildeo agriacutecola local 107

463 Atividades cotidianas de trabalho nos siacutetios 108

5 CULTURA E PRAacuteTICAS ALIMENTARES NO SISTEMA FAMILIAR RURAL RELACcedilOtildeES COM A COMIDA PERMANEcircNCIAS E MUDANCcedilAS 114

51 Comida ldquoforterdquo e comida ldquofraca contradiccedilotildees mudanccedilas e permanecircn-cias 114

511 Outras comidas ldquofortesrdquo 125

52 Consideraccedilotildees sobre a importacircncia do milho e do fubaacute 129

53 Comida de todo dia comida de festa e as relaccedilotildees de comensalidade 137

531 Comida de todo dia o trivial 137

532 Comida de domingo de dias festivos e comensalidade 143

533 Os doces 151

54 A comensalidade para aleacutem das festas e datas especiais 154

55 Mescla cultural praacuteticas de consumo alimentar de ontem e de hoje 156

56 As quitandas para a merenda e para servir agraves visitas 160

57 Receitas oralidade e registros em cadernos 168

58 Os equipamentos da cozinha rural do fogatildeo a lenha agrave panela eleacutetrica de arroz 172

CONCLUSOtildeES 181

REFEREcircNCIAS 186

vii

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 ndash Aacuterea e populaccedilatildeo da microrregiatildeo de Viccedilosa (2015) 11

Tabela 2 ndash Percentual da populaccedilatildeo urbana e rural da microrregiatildeo de Viccedilosa nas deacutecadas de 1980 a 2010 (2015) 11

Tabela 3 ndash Populaccedilatildeo rural por diferentes faixas etaacuterias 12

Tabela 4 ndash Percentual da populaccedilatildeo rural por diferentes faixas etaacuterias () 13

Tabela 5 ndash Comparativo entre perfil etaacuterio do IBGE (2010) e da pesquisa de campo 2015 () 106

Tabela 6 ndash Comparativo da composiccedilatildeo de gecircnero do IBGE e da pesquisa de campo 2015 106

viii

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 ndash Municiacutepios comunidades e nuacutemero de famiacutelias 2015 96

Quadro 2 ndash Fonte de renda das famiacutelias pesquisadas 2015 108

ix

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 ndash Microrregiotildees da Zona da Mata de Minas Gerais 5

Figura 2 ndash Microrregiatildeo de Viccedilosa Minas Gerais 6

Figura 3 ndash Santuaacuterio de Bom Jesus de Matozinhos em Bom Jesus do Bacalhau 9

Figura 4 ndash Milho colhido no siacutetio de Anita e Gilberto na comunidade de Manja em Piranga 15

Figura 5 ndash Carro de boi transportando espigas de milho da roccedila para o paiol na estrada da comunidade de Manja em Piranga 16

Figura 6 ndash Engenho de produccedilatildeo de rapadura no siacutetio de Lola e Marcos na comunidade Xopotoacute Presidente Bernardes 16

Figura 7 ndash Moinho drsquoaacutegua no siacutetio de Manoel e Donana na Comunidade Limeira Porto Firme 130

Figura 8 ndash Moinho eleacutetrico no siacutetio de Nanaacute e Custoacutedio na Comunidade Xopotoacute em Piranga 131

Figura 9 ndash Cebolas e alhos armazenados no paiol do siacutetio de Maria e Laeacutercio na comunidade Itapeva em Presidente Bernardes 139

Figura 10 ndash Horta no siacutetio de Eliana e Saturnino em Itapeva Presidente Bernardes MG 140

Figura 11 ndash Fogatildeo de cupim no quintal do siacutetio de Eliana e Saturnino em Itapeva Presidente Bernardes 146

Figura 12 ndash Processo de fritura do ldquomilhopatilderdquo 149

Figura 13 ndash Doce de ameixa feito por Marieta na comunidade Boa Vista em Piranga MG 154

Figura 14 ndash Broa do tipo Cobu ou ldquopau a piquerdquo 161

Figura 15 ndash Broa de fubaacute feita por Eliana em Itapeva Presidente Bernardes 162

Figura 16 ndash Caderno de receitas que pertenceu agrave matildee de Anita moradora da Comunidade Manja em Piranga 169

Figura 17 ndash Caderno de receitas de Lucia da Comunidade Manja em Piranga 170

Figura 18 ndash Mariacutelia da Comunidade de Mestre Campos em Piranga mostrando seus livros e cadernos de receitas 171

x

Figura 19 ndash Fogatildeo a lenha no siacutetio de Mariacutelia 174

Figura 20 - Fogatildeo a lenha no siacutetio de Nanaacute e Custoacutedio 175

Figura 21 ndash Cozinha com fogatildeo a lenha (azulejado) em siacutetio de Eliana e Saturnino 176

Figura 22 ndash Forno de barro e churrasqueira no siacutetio de Selma e Lourival 178

xi

LISTA DE SIGLAS

CAPES ndash Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior

CEP ndash Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa com Seres Humanos

ECA ndash Estatuto da Crianccedila e do Adolescente

EMATER-MG ndash Empresa de Assistecircncia Teacutecnica e Extensatildeo Rural do Estado de

Minas Gerais

FAOONU ndash Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas para Agricultura e Alimentaccedilatildeo

FBSSAN ndash Foacuterum Brasileiro de Soberania e Seguranccedila Alimentar e Tradicional

IARC ndash International Agency for Research on Cancer

IBGE ndash Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica

IPHAN ndash Instituto do Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional

ODELA ndash Observatorio de la Alimentacioacuten

OMS ndash Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede

PAA ndash Programa de Aquisiccedilatildeo de Alimentos

UFV ndash Universidade Federal de Viccedilosa

USP ndash Universidade de Satildeo Paulo

xii

RESUMO

LIMA Romilda de Souza DSc Universidade Federal de Viccedilosa novembro de 2015 Praacuteticas alimentares e sociabilidades em famiacutelias rurais da Zona da Mata mineira mudanccedilas e permanecircncias Orientador Joseacute Ambroacutesio Ferreira Neto Coorientadora Rita de Caacutessia Pereira Farias

Este trabalho tem como objetivo analisar e compreender os significados da

comida e as relaccedilotildees de comensalidade atendo-se agraves mudanccedilas e

permanecircncias referentes agraves praacuteticas alimentares de famiacutelias rurais dos

municiacutepios mineiros de Piranga Porto Firme e Presidente Bernardes A

metodologia escolhida foi qualitativa utilizando-se da entrevista

semiestruturada observaccedilatildeo registros fotograacuteficos e o caderno de campo As

anaacutelises da pesquisa empiacuterica foram construiacutedas agrave luz das abordagens teoacutericas

da antropologia e sociologia da alimentaccedilatildeo e da histoacuteria da alimentaccedilatildeo Apesar

da tendecircncia apontada por alguns autores contemporacircneos de uma

homogeneizaccedilatildeo alimentar na sociedade ocidental fruto do processo de

modernizaccedilatildeo e globalizaccedilatildeo que teria o poder de influenciar e transformar as

praacuteticas alimentares esta natildeo foi a realidade observada nas famiacutelias rurais

pesquisadas A pesquisa apontou para a necessidade de considerar a

diversidade cultural e o contexto sociohistoacuterico ao estudar as questotildees relativas

a alimentaccedilatildeo dos grupos Nas famiacutelias estudadas as praacuteticas alimentares

possuem forte viacutenculo com a tradiccedilatildeo e agrave produccedilatildeo local de alimentos Isso natildeo

significa que elas estatildeo imunes agraves interferecircncias e agraves mudanccedilas

contemporacircneas Neste sentido as mudanccedilas observadas nas praacuteticas

alimentares tais como a adoccedilatildeo de novas tecnologias tecircm ocorrido de forma

ainda tiacutemida e natildeo implica um abandono da tradiccedilatildeo As famiacutelias estatildeo

convivendo ou se adaptando aos processos de mudanccedilas no mundo

contemporacircneo sem negar suas raiacutezes histoacutericas A incorporaccedilatildeo das praacuteticas

alimentares modernas tambeacutem natildeo eacute acriacutetica As famiacutelias sabem que a

substituiccedilatildeo implica em riscos perdas e ganhos No caso da gordura de porco

por exemplo mostraram-se conscientes quanto agrave questatildeo relativa agrave sauacutede no

consumo desse alimento que continua sendo prioritariamente utilizado na

preparaccedilatildeo de comidas tradicionais O que prevalece neste caso eacute a escolha

xiii

pelo sabor do alimento e pelo significado simboacutelico e tradicional atrelado a ele

Inseridas no processo que envolve tanto o desejo de manter sua autonomia

produtiva e cultura alimentar quanto agrave necessidade de ceder a algumas

mudanccedilas essas famiacutelias estatildeo aprendendo a se adaptar agraves dinacircmicas da

modernidade aderindo agraves novidades alimentares que lhes agradam e lhes satildeo

importantes e rejeitando o que natildeo lhes eacute interessante

xiv

ABSTRACT

LIMA Romilda de Souza DSc Universidade Federal de Viccedilosa November 2015 Eating habits and sociabilities in rural families of Minas Geraisrsquo Zona da Mata changings and remainings Adviser Joseacute Ambroacutesio Ferreira Neto Co-adviser Rita de Caacutessia Pereira Farias

This work aims to analyze and understand the meaning of food and commensality

relations limited to the changes and remains related to the eating habits of rural

families in the municipalities of Piranga Porto Firme and Presidente Bernardes

The chosen methodology was qualitative using semi-structured interviews and

observation The instruments used were the recorded interviews photographic

register and field notebook The empirical research analysis was built under the

light of theoretical approaches of anthropology and sociology of the alimentation

and history of the alimentation Despite the tendency pointed out by some

contemporary authors of a food homogenization in Western society as a result

of the modernization and globalization process that would have the power to

influence and transform the eating habits this was not the reality observed in the

surveyed rural families The research indicated the need to consider the cultural

diversity and the socio-historical context in order to study issues related to eating

habits of the groups In the studied families the issues related to eating habits

have a strong bond with the tradition and local food production That doesnrsquot

mean they are immune to interference and to contemporary changes In this

sense the observed changes in dietary practices such as the adoption of new

technologies have occurred still timidly and donrsquot imply a total abandonment of

tradition Families are living or adapting themselves to the changing processes in

the contemporary world without however transforming significantly their own

culture Itrsquos important to highlight that the incorporation of modern eating habits

options is not uncritical too The families know that the replacement of a habit by

another entails risks losses and gains as in the case of pork fat They proved to

be conscious about the matter on health in consumption of that food but it

remains primarily used in the preparation of traditional foods What prevails in this

case it is the choice by the flavor of the food and by the symbolic and traditional

meaning attached to it Inserted in the process involving both the desire to

xv

maintain its productive autonomy and eating culture and the need to give in to

some changes these families are learning to adapt to the everyday experiences

they arenrsquot closed in their cultural cores and even take posiacutetion averse to change

they demonstrate a resigned but critical attitude by submitting to the items of food

modernity they please and consider important as well as rejecting what is not

interesting to them

1

INTRODUCcedilAtildeO

ldquoDepois do idioma a comida eacute o mais importante elo entre o homem e a culturardquo

(Raul Lody 1997)

A alimentaccedilatildeo elemento baacutesico de sobrevivecircncia humana eacute tema

carregado de complexidade Se a razatildeo primeira do ato alimentar eacute a

necessidade fisioloacutegica de nutrir-se as demais satildeo carregadas de justificativas

culturais sociais e econocircmicas que por sua vez determinam as escolhas

alimentares

Aleacutem de ser um comportamento automaacutetico a sociologia a antropologia

e a histoacuteria da alimentaccedilatildeo tecircm mostrado que comer eacute um comportamento que

se liga de forma iacutentima com o comedor1 Em sentido semelhante o entendimento

da comida como categoria analiacutetica nessas trecircs aacutereas de estudo mostra que

pela comida eacute possiacutevel perceber as transformaccedilotildees do mundo social no decorrer

dos tempos Essa relaccedilatildeo se estabelece na escolha e ingestatildeo do alimento pois

conforme pondera Lody (2008 p 12) ldquonenhum alimento que entra em nossas

bocas eacute neutrordquo

Dessa forma este trabalho se fundamenta na compreensatildeo cultural e

social da comida vista como categoria de pensamento simboacutelico Trata-se

daquele sentido em que por meio das regras socialmente estabelecidas no ato

de comer criam-se viacutenculos com quem se come com o que se produz e com as

demais dinacircmicas que envolvem as praacuteticas alimentares O sentido dado por

Cacircndido (1982 p 30) elucida esse intuito

Qualquer que seja a posiccedilatildeo do alimento eacute sempre acentuada a sua importacircncia como fulcro de sociabilidade ndash natildeo apenas do que se organiza em torno dele mas daquelas em que ele aparece como expressatildeo tangiacutevel dos atos e das intenccedilotildees (CAcircNDIDO1982 p 30)

A escolha do tema da pesquisa se deu a partir de um processo que foi

sendo delineado e construiacutedo aos poucos considerando inicialmente o interesse

1 Expressatildeo francesa que na traduccedilatildeo das obras de Poulain (2013) e Poulain e Proenccedila (2003) para o

portuguecircs significa ldquocomedorescomedorrdquo Esta expressatildeo apareceraacute em citaccedilotildees do autor ao longo deste trabalho Representa para a Sociologia da Alimentaccedilatildeo atual o homem que come razatildeo da utilizaccedilatildeo da palavra ldquocomedorrdquo em portuguecircs A utilizaccedilatildeo desse termo segundo os autores surgiu a partir da publicaccedilatildeo de autoria de Aron (1976) ldquoLe mangeur du 19eacutemerdquo (POULAIN PROENCcedilA 2003 p 367)

2

pessoal e profissional pelo assunto2 mas tambeacutem estimulado por questotildees

instigantes proporcionadas por algumas disciplinas cursadas durante o

programa de doutorado Assim para se pensar o problema foram realizadas

leituras de pesquisas e de conteuacutedo teoacuterico das trecircs disciplinas apontadas acima

no que se refere agrave alimentaccedilatildeo O investimento teoacuterico realizado para conduzir

a pesquisa partiu da compreensatildeo de que a reflexatildeo teoacuterica e a pesquisa

empiacuterica se complementam em um percurso de matildeo dupla naquele sentido

apontado por Trajano (1990) Para este autor a priorizaccedilatildeo da teoria em

detrimento da pesquisa de campo ou vice-versa compromete o trabalho em sua

riqueza e profundidade

Atraveacutes da relaccedilatildeo entre pesquisa de campo e anaacutelise teoacuterica o conhecimento antropoloacutegico ganha impulso e avanccedila pois a pesquisa fornece o combustiacutevel que a teoria necessita para adentrar por novos campos e caminhos Por sua vez a teorizaccedilatildeo abre trilhas frescas e inexploradas para o trabalho de pesquisardquo (TRAJANO 1990 p 2)

A pesquisa de campo envolveu famiacutelias rurais de trecircs municiacutepios da

microrregiatildeo de Viccedilosa Piranga Presidente Bernardes e Porto Firme A escolha

desses municiacutepios se deu por eles formarem uma regiatildeo com maior populaccedilatildeo

rural da microrregiatildeo de Viccedilosa e pela sua interessante histoacuteria de ocupaccedilatildeo jaacute

que se trata de uma regiatildeo importante na busca do ouro pelos bandeirantes que

passaram pela zona da Mata questatildeo que seraacute detalhada em um dos capiacutetulos

deste trabalho

Analisar e buscar compreender como as famiacutelias estatildeo lidando com as

transformaccedilotildees alimentares que ocorrem na contemporaneidade foi o eixo

norteador da pesquisa A experiecircncia dessas famiacutelias neste contexto ldquofalardquo de

um grupo que busca responder e se adaptar agraves mudanccedilas sinalizando que o

rural contemporacircneo natildeo estaacute alheio e distante do que ocorre na sociedade mais

ampla questatildeo muito bem sinalizada nos estudos de Maria de Nazareth

Wanderley (2000 e 2009) Maria Joseacute Carneiro (1998) e Joseacute Graziano da Silva

(1997) Mas tambeacutem ldquofalardquo de um grupo que respeita sua tradiccedilatildeo e seus haacutebitos

alimentares suas necessidades de natildeo ceder a todas as mudanccedilas decorrentes

da contemporaneidade

2 Discussotildees de interesse dos grupos de pesquisa em que participo na Universidade Estadual do Oeste do

Paranaacute instituiccedilatildeo onde atuo haacute 12 anos

3

Segundo Wanderley (2009) um dos desafios enfrentados pelos

pesquisadores na contemporaneidade consiste em desvendar os processos

pelos quais se articulam as dinacircmicas internas e externas do mundo rural em

sua diversidade

Neste sentido esta pesquisa tem como objetivo analisar e compreender

o significado da comida e as relaccedilotildees de comensalidade atendo-se agraves

mudanccedilas e permanecircncias referentes agraves praacuteticas alimentares das famiacutelias Mais

especificamente analisar a articulaccedilatildeo entre o tradicional e o moderno o

processo de escolha alimentar e os princiacutepios que a determinam tais como

haacutebitos tradiccedilatildeo praticidade custo a influecircncia dos guardiatildees da tradiccedilatildeo na

reproduccedilatildeo do gosto no processo de significaccedilatildeo e ressignificaccedilatildeo da comida

atrelada agraves praacuteticas aos saberes e aos haacutebitos tanto no cotidiano quanto nos

rituais

Com esta pesquisa pretendo contribuir com as discussotildees sobre o

sistema alimentar contemporacircneo e a necessidade de nessa discussatildeo

relativizar os argumentos levando-se em consideraccedilatildeo a diversidade cultural

especialmente a rural

Esta tese estaacute organizada em cinco capiacutetulos aleacutem da introduccedilatildeo e

conclusatildeo O capiacutetulo 1 apresenta um breve histoacuterico de ocupaccedilatildeo da regiatildeo

estudada e as principais atividades rurais a partir de dados do IBGE (2010) O

capiacutetulo 2 trata de duas fases histoacutericas importantes de Minas Gerais e que

determinaram o sistema alimentar na regiatildeo de exploraccedilatildeo de ouro ateacute meados

do seacuteculo XX as fases da mineraccedilatildeo e a fase da ruralizaccedilatildeo As situaccedilotildees

alimentares ocorridas nesses periacuteodos foram marcantes na formaccedilatildeo cultural

alimentar da regiatildeo que pesquisei O capiacutetulo 3 apresenta a discussatildeo teoacuterica

das aacutereas da antropologia da sociologia e da histoacuteria da alimentaccedilatildeo apontando

o lugar da alimentaccedilatildeo nas principais anaacutelises dessas disciplinas a discussatildeo

existente em torno do sistema alimentar a anaacutelise das diferenccedilas atribuiacutedas

entre alimento e comida em uma abordagem cultural e simboacutelica as

possibilidades de permanecircncia ou extinccedilatildeo dos sistemas tradicionais no contexto

alimentar contemporacircneo a discussatildeo sobre o tradicional e o moderno no

contexto das dinacircmicas alimentares no meio rural e por fim uma breve

discussatildeo sobre o papel feminino nas praacuteticas alimentares na famiacutelia O capiacutetulo

4 apresenta as opccedilotildees e o direcionamento metodoloacutegicos da pesquisa de

4

empiacuterica a imersatildeo em campo e os resultados e algumas das caracteriacutesticas

relativas ao perfil das famiacutelias entrevistadas O capiacutetulo 5 trata da pesquisa

empiacuterica ou seja sobre as praacuteticas alimentares das famiacutelias rurais objeto de

interesse principal desta pesquisa Atraveacutes das entrevistas semiestruturadas o

cotidiano das famiacutelias no que diz respeito a sua cultura alimentar foi relatado e

discutido agrave luz dos objetivos propostos para a pesquisa e das abordagens

teoacutericas utilizadas Concluindo teccedilo outras discussotildees nas conclusotildees sobre a

pesquisa

5

1 A REGIAtildeO DE ESTUDO

As aacutereas rurais pesquisadas estatildeo situadas nos municiacutepios de Piranga

Porto Firme e Presidente Bernardes que pertencem agrave microrregiatildeo de Viccedilosa

localizados na Zona da Mata de Minas Gerais

A Figura 1 apresenta as microrregiotildees que compotildeem a Zona da Mata e

a Figura 2 os municiacutepios que fazem parte da microrregiatildeo de Viccedilosa

Fonte IBGE (2013)

Figura 1 ndash Microrregiotildees da Zona da Mata de Minas Gerais

6

Fonte IBGE (2013)

Figura 2 ndash Microrregiatildeo de Viccedilosa Minas Gerais

11 Um breve histoacuterico de ocupaccedilatildeo da regiatildeo estudada

Segundo Venacircncio (2007) descobertas arqueoloacutegicas recentes

apontam que na ocasiatildeo do descobrimento do Brasil pelos portugueses a regiatildeo

de Minas Gerais era habitada por diferentes grupos eacutetnicos Essas pesquisas

conseguiram estabelecer uma data de povoamento com registros entre 11 mil e

12 mil anos atraacutes O autor destaca que natildeo se pode esclarecer totalmente quais

eram todos esses grupos eacutetnicos mas no que se refere aos seacuteculos XVI e XVII

pelo material arqueoloacutegico encontrado acredita-se que muitos grupos indiacutegenas

entraram em Minas Gerais vindos de aacutereas litoracircneas provavelmente fugindo

da escravidatildeo e da dominaccedilatildeo dos portugueses Ainda segundo o autor na

regiatildeo de estudo que compreende a bacia do Rio Doce e a Zona da Mata mineira

os registros apontam que aqui habitavam primeiramente os botocudos e os

puri-coroados e que mais tarde chegaram os iacutendios goitacaacute fugidos do avanccedilo

7

da colonizaccedilatildeo portuguesa no norte da capitania fluminense hoje conhecida

como Campos dos Goitacazes

Registros feitos por Joatildeo Mawe3 viajante inglecircs que esteve em Minas

Gerais entre 1809 e 1810 detalham o conflito existente tambeacutem entre os

portugueses e os botocudos que rejeitavam ceder aos objetivos de

ldquodomesticaccedilatildeordquo dos colonizadores interessados na aacuterea que jaacute havia sido

identificada como muito rica em ouro Na regiatildeo de Piranga visando garantir a

exploraccedilatildeo do ouro informa Mawe (1922) ldquoexiste uma tropa pouco numerosa

de soldados para fazer patrulhas ao longo das fronteiras reconhecimentos nos

bosques ir procurar os selvagens por toda a parte onde lhes informam que

podem encontra-losrdquo (MAWE 1922 p 60)

A ocupaccedilatildeo da regiatildeo pelos portugueses se deu a partir dos caminhos

que se abriram para a exploraccedilatildeo de ouro no local que teve iniacutecio com os

bandeirantes paulistas Resende (2007) Zemella (1951) e Teixeira (2002)

apontam que esta regiatildeo comeccedilou a ser desbravada a partir de 1693 por uma

expediccedilatildeo bandeirante que saiu de Garganta do Embauacute (regiatildeo da Serra da

Mantiqueira e divisa entre Minas Gerais e Satildeo Paulo) conduzida por Antocircnio

Rodrigues Arzatildeo Essa bandeira pretendia chegar ateacute a regiatildeo denominada

Casa da Casca que se localizava entre Viccedilosa e Abre Campo em busca de

ouro O percurso incluiu o entatildeo arraial de Guarapiranga (atual Piranga) e foi no

rio Piranga na localidade onde hoje eacute a cidade de Itaverava o primeiro lugar

onde se encontrou ouro desde o iniacutecio do referido trajeto

Os nuacutecleos urbanos primeiramente como arraiais ou vilas iam se

formando em torno das Minas e locais dos rios que pareciam mais propiacutecios a

obtenccedilatildeo de grandes quantidades de ouro conforme aponta Torres (2011 p

69)

Os bandeirantes subindo o rio instalaram-se nos vales () Sempre usaram de dois tipos de pontos de referecircncia naturais durante suas interminaacuteveis excursotildees pelas florestas Primeiro os rios cujos cursos subiam ou desciam conforme era o caso ou entatildeo os grandes picos azuis marcos lanccedilados pela natureza para indicar onde estava o ouro

Naquela eacutepoca os atuais municiacutepios de Presidente Bernardes e Porto

Firme natildeo existiam como tal e faziam parte de Guarapiranga (atual Piranga)

3 Ver Mawe (1922)

8

Com a descoberta de ouro no rio Piranga a regiatildeo passou a ser de interesse

para a mineraccedilatildeo e iniciou por consequecircncia a chegada de muitos adventiacutecios

Segundo Resende (2007) e Furtado (2000) a exploraccedilatildeo de ouro em Minas

Gerais historicamente serviu de movimentaccedilatildeo geograacutefica de grande nuacutemero

de pessoas interessadas em enriquecer em Minas Gerais

() Nesse contexto marcado por um tracircnsito volumoso e desordenado de pessoas e de mercadorias tem iniacutecio de forma precoce e espetacular a ocupaccedilatildeo das terras de mineraccedilatildeo em que a uma ldquosede insaciaacutevel do ourordquo corresponde com enorme rapidez a formaccedilatildeo de grandes fortunas e uma desordem perigosa regulada a balas de chumbo (RESENDE 2007 p 29)

Assim a regiatildeo que abrange os municiacutepios da pesquisa passou a se

inserir na dinacircmica econocircmica e social da mineraccedilatildeo Ainda segundo Resende

(2007) os territoacuterios mineiros comeccedilaram a ser ocupados primeiramente onde

havia sido encontrado ouro aos quais eram denominados como o ldquocaminho do

ourordquo Nesse trajeto era possiacutevel encontrar alguma infraestrutura de apoio como

por exemplo vendas estalagens e capelas Eacute no entorno dessas localizaccedilotildees

fiacutesicas estruturais que surgem mais tarde as pequenas vilas os arraiais e ateacute

nuacutecleos urbanos mais importantes no estado de Minas Gerais

Segundo Barbosa (1995) em 1708 o arraial de Guarapiranga sofreu as

consequecircncias da Guerra dos Emboabas conflito entre bandeirantes paulistas

e portugueses em disputa pelo controle das minas e por pouco natildeo foi destruiacutedo

durante os embates

As batalhas foram mais concentradas no lugar onde estaacute o Santuaacuterio do

Senhor Bom Jesus do Matozinhos na comunidade do ldquoBacalhaurdquo em Piranga

Neste local possui uma placa e uma escultura simboacutelica lembrando o ocorrido

Neste santuaacuterio ocorre anualmente a festa religiosa do Jubileu do Bom Jesus e

os fieacuteis (romeiros) permanecem no local por dois a trecircs dias de festejos

9

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 3 ndash Santuaacuterio de Bom Jesus de Matozinhos em Bom Jesus do Bacalhau

Com o decliacutenio da mineraccedilatildeo entre os anos de 1753 a 1756 a regiatildeo

de Guarapiranga foi intensamente povoada quando ldquoinuacutemeras sesmarias foram

concedidas nas quais se mencionavam grandes roccedilas de milho casas de

vivenda paiol senzala engenhos bananais e outras aacutervoresrdquo (BARBOSA 1995

p 254) Ocorria nesse periacuteodo o processo de fortalecimento da agricultura

seguindo um percurso que se deu em toda a regiatildeo de mineraccedilatildeo de Minas

Gerais como seraacute visto no capiacutetulo 2 sobre a fase da ruralizaccedilatildeo em Minas

Em final do seacuteculo XVIII e iniacutecio do seacuteculo XIX a regiatildeo de Guarapiranga

possuiacutea a maior populaccedilatildeo de toda a Zona da Mata mineira com forte dinamismo

econocircmico Segundo Carrara (2007) Guarapiranga abastecia a entatildeo Vila Rica

e regiatildeo com aguardente e alguns produtos agriacutecolas baacutesicos os quais o autor

natildeo detalha quais eram Mas segundo o autor natildeo houve um corte que marcou

o fim da mineraccedilatildeo e iniacutecio da fase agriacutecola na regiatildeo pois durante muitos anos

foi marcante a presenccedila concomitante das minas dos currais e das lavouras

Enquanto a agricultura se fortalecia alguns poucos aventureiros insistiam na

busca de algum sinal de ouro restante nos rios

Segundo Lemos (2012) na fase de fortalecimento da agricultura

sobretudo na primeira metade do seacuteculo XIX houve intenso fluxo migratoacuterio que

fomentou a economia agriacutecola na regiatildeo principalmente voltada para a produccedilatildeo

de aguardente rapadura e melado Segundo Godoy (2012) os engenhos se

10

concentravam sobretudo na regiatildeo do distrito de Santo Antocircnio do Calambau

hoje Presidente Bernardes que na eacutepoca era distrito de Guarapiranga (Piranga)

A prodccedilatildeo da cana de accediluacutecar perdeu forccedila ao longo do tempo e na

ocasiatildeo da pesquisa natildeo era mais atividade central na regiatildeo embora existam

alambiques e algumas marcas de aguardente conhecidas no cenaacuterio nacional

como a ldquoVelha Aroreirardquo produzida em Porto Firme e a ldquoVale do Pirangardquo

produzida em Piranga Mas o que se produz ainda de aguardente eacute de caraacuteter

quase que apenas artesanal e pequena produccedilatildeo Em presidente Bernardes

todos os anos acontece o ldquoFestival da Cachaccedilardquo guardando ainda relaccedilotildees com

a tradiccedilatildeo deste produto

Os dados do IBGE de 1980 a 2010 apontam que os municiacutepios que

compunham como distritos a antiga Guarapiranga (Piranga Presidente

Bernardes e Porto Firme) apresentam queda em sua populaccedilatildeo rural como seraacute

visto a seguir

Tambeacutem segundo informaccedilotildees do IBGE (2010) Presidente Bernardes

e Porto Firme foram emancipados de Piranga em 1953 quando Calambau

passou a se chamar Presidente Bernardes e Porto Seguro passou a se chamar

Porto Firme Ambos os municiacutepios continuam pertencendo juridicamente agrave

Comarca de Piranga

12 Informaccedilotildees atuais sobre a populaccedilatildeo rural e as principais atividades agriacutecolas dos municiacutepios pesquisados

Segundo o IBGE (2010) a microrregiatildeo de Viccedilosa possui aacuterea total de

4826137 kmsup2 Eacute composta por vinte municiacutepios com aacutereas que variam entre

65881 kmsup2 (Piranga) e 8304 kmsup2 (Cajuri) Porto Firme e Presidente Bernardes

possuem aacutereas de 28478 kmsup2 e 2368 kmsup2 respectivamente conforme

apresentado na Tabela 1

Em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo observa-se que em 50 dos municiacutepios da

microrregiatildeo a populaccedilatildeo rural ultrapassa a urbana conforme a Tabela 1 Os

trecircs municiacutepios desta pesquisa encontram-se entre aqueles que possuem

populaccedilatildeo rural maior que a urbana sendo que entre todos os municiacutepios

Presidente Bernardes e Piranga satildeo os que possuem o maior percentual de

populaccedilatildeo rural em relaccedilatildeo a urbana conforme apontado na Tabela 2

11

Tabela 1 ndash Aacuterea e populaccedilatildeo da microrregiatildeo de Viccedilosa (2015)

Municiacutepio Aacuterea (kmsup2) Densidade

demograacutefica Populaccedilatildeo

total Populaccedilatildeo

rural Populaccedilatildeo

urbana

Piranga 65881 2616 17232 11274 5958 Pres Bernardes 2368 2338 5537 3895 1642 Porto Firme 28478 3658 10417 5586 4831 Araponga 30379 2683 8152 5111 3041 Rio Espera 2386 2544 6070 3667 2403 Canaatilde 1749 2646 4628 2769 1859 Alto Rio Doce 51805 2347 12159 7089 5070 Lamim 1186 2911 3452 1941 1511 Cipotacircnea 15348 4266 6547 3533 3014 Braacutes Pires 22335 2076 4637 2414 2223 Cajuri 8304 4874 4047 1951 2096 Amparo do Serra 14591 3463 5053 2411 2642 Ervaacutelia 35749 5020 17946 8476 9470 Paula Cacircndido 26832 3455 9271 4335 4936 Satildeo Miguel do Anta 15211 4444 6790 3014 3746 Senhora de Oliveira 17075 3328 5683 2427 3256 Pedra do Anta 16345 2059 3365 1173 2192 Teixeiras 16674 6871 11355 3732 7623 Coimbra 10688 6600 7054 1898 5156 Viccedilosa 29942 2412 72220 4915 67305

Fonte IBGE - Censo Demograacutefico de 2010

Tabela 2 ndash Percentual da populaccedilatildeo urbana e rural da microrregiatildeo de Viccedilosa nas deacutecadas de 1980 a 2010 (2015)

Populaccedilatildeo ()

Municiacutepio 1980 1991 2000 2010

Urbana Rural Urbana Rural Urbana Rural Urbana Rural

Piranga 197 803 237 763 299 701 346 654 Pres Bernardes 121 879 154 846 233 767 297 703 Porto Firme 23 77 293 707 411 589 463 537 Araponga 166 834 208 792 32 68 373 627 Rio Espera 264 736 268 732 322 678 396 604 Canaatilde 174 826 207 793 297 703 401 599 Alto Rio Doce 222 778 28 72 354 646 417 583 Lamim 226 774 287 713 38 62 438 562 Cipotacircnea 197 803 26 74 381 619 46 54 Braacutes Pires 153 847 24 76 353 647 48 52 Cajuri 387 613 46 54 546 454 518 482 Amparo Serra 246 754 35 65 458 542 522 478 Ervaacutelia 263 737 323 673 444 556 528 472 Paula Cacircndido 286 714 362 638 43 57 532 468 Satildeo Miguel Anta 389 611 44 56 501 499 554 446 Senhora Oliveira 363 637 451 549 482 518 572 428 Pedra do Anta 232 768 373 627 53 47 651 349 Teixeiras 445 555 533 467 623 377 671 329 Coimbra 456 544 54 46 539 466 73 30 Viccedilosa 806 194 90 10 921 79 931 69

Fonte IBGE - Censos Demograacuteficos de 1980 1991 2000 e 2010

12

A reduccedilatildeo da populaccedilatildeo rural eacute observada em todos os 20 municiacutepios

conforme mostra a Tabela 2 que apresenta informaccedilatildeo demograacutefica da

microrregiatildeo de Viccedilosa nas uacuteltimas trecircs deacutecadas segundo IBGE (2010) Esta

microrregiatildeo encontra-se proporcionalmente dividida em 50 de municiacutepios com

populaccedilatildeo urbana maior do que a rural e 50 em situaccedilatildeo inversa

Nos trecircs municiacutepios desta pesquisa a populaccedilatildeo rural vem diminuindo

ao longo das uacuteltimas deacutecadas Em Piranga Presidente Bernardes e Porto Firme

a populaccedilatildeo rural correspondia a 803 879 e 77 em 1980

respectivamente caindo para 655 703 e 537 respectivamente em 2010

Apesar disso Presidente Bernardes permanece sendo o municiacutepio com maior

populaccedilatildeo residente no campo na microrregiatildeo de Viccedilosa ao longo desse

periacuteodo seguido por Piranga que aparece como o segundo maior municiacutepio com

populaccedilatildeo rural no Censo de 2010 Alguns estudos apontam para a reduccedilatildeo da

populaccedilatildeo rural em outras partes do paiacutes e do mundo como Alves e Marra

(2009) Nunes (2007) ONU (2014) Camarano e Beltratildeo (2000) e Camarano e

Abramovay (1998)

As Tabelas 3 e 4 apontam que a populaccedilatildeo que compreende a faixa

etaacuteria de 30 a 50 anos eacute a maior na aacuterea rural nos trecircs municiacutepios e a populaccedilatildeo

idosa4 apresenta o menor nuacutemero de pessoas residentes no campo

Tabela 3 ndash Populaccedilatildeo rural por diferentes faixas etaacuterias

Municiacutepio Populaccedilatildeo

rural 1 - 14 anos 15 - 29 anos 30 - 59 anos

Acima de 60 anos

Piranga 11274 2748 3203 3751 1308 Pres Bernardes 3895 845 856 1421 610 Porto Firme 5586 1338 1378 2322 780 Total 20755 4931 5437 7494 2698

Fonte IBGE ndash Censo Demograacutefico 2010

Os dados da Tabela 4 mostram que o maior percentual de populaccedilatildeo

idosa se encontra em Presidente Bernardes mas natildeo se destaca em relaccedilatildeo

aos demais municiacutepios Neste municiacutepio tambeacutem estaacute o menor percentual da

4 Puacuteblico considerado acima de 60 anos de idade de acordo com Organizaccedilatildeo Mundial de Sauacutede

13

populaccedilatildeo jovem5 O maior percentual de populaccedilatildeo adulta (30-59 anos)

encontra-se em Porto Firme A maior diferenccedila entre o percentual de populaccedilatildeo

jovem e adulta encontra-se em Porto Firme e a menor em Piranga O percentual

da populaccedilatildeo adulta eacute superior agrave populaccedilatildeo idosa nos trecircs municiacutepios mas se

destaca em Porto Firme As informaccedilotildees das tabelas seratildeo retomadas no item

46 deste trabalho

Tabela 4 ndash Percentual da populaccedilatildeo rural por diferentes faixas etaacuterias ()

Municiacutepio Populaccedilatildeo

rural 1 - 14 anos 15 - 29 anos 30 - 59 anos

Acima de 60 anos

Piranga 11274 243 284 333 116

Pres Bernardes 3895 217 220 364 155

Porto Firme 5586 239 246 415 140

Fonte IBGE ndash Censo Demograacutefico 2010

13 Atividades produtivas

Nos municiacutepios onde foi realizado o trabalho de campo predominam

pequenas e meacutedias propriedades e produccedilatildeo em pequena escala basicamente

para consumo com venda do excedente Os tipos de produccedilatildeo natildeo sofrem

variaccedilotildees importantes entre os trecircs municiacutepios seja em tipo de produccedilatildeo seja

em quantidade produzida

Presidente Bernardes Dados do Relatoacuterio final do Plano Municipal de

Saneamento Baacutesico de Presidente Bernardes (2015) e da Emater local apontam

como principais atividades agropecuaacuterias do municiacutepio a cafeicultura a extraccedilatildeo

de carvatildeo vegetal em pequena escala e a pecuaacuteria leiteira de pequeno porte

Haacute ainda a fabricaccedilatildeo agroindustrial em pequenos alambiques de aguardente e

uma empresa de fabricaccedilatildeo de queijo Aleacutem desses os dados do IBGE (2006)

apontam tambeacutem a produccedilatildeo de milho feijatildeo cana de accediluacutecar suinocultura e

avicultura

5 Faixa etaacuteria entre 15 a 29 anos de idade definida no Estatuto da Crianccedila e do Adolescente (ECA) e

Estatuto da Juventude no Brasil como a que corresponde agrave categoria de juventude

14

Porto Firme Dados do Relatoacuterio final do Plano Municipal de

Saneamento Baacutesico de Porto Firme (2015) e da Emater local apontam como

principais atividades agropecuaacuterias do municiacutepio Pecuaacuteria leiteira cafeicultura

extraccedilatildeo de carvatildeo vegetal e lavoura de feijatildeo No municiacutepio tambeacutem haacute

produccedilatildeo de aguardente artesanal por pequenos alambiques Aleacutem desses os

dados do IBGE (2006) apontam a produccedilatildeo de milho feijatildeo cana de accediluacutecar

suinocultura e avicultura

Piranga Dados do Relatoacuterio Anual da Emater Local (2014) e do IBGE

(2006) apontam como principais atividades agropecuaacuterias do municiacutepio

extraccedilatildeo de carvatildeo vegetal cafeicultura pecuaacuteria leiteira milho e feijatildeo cana de

accediluacutecar suinocultura e avicultura

Segundo as famiacutelias entrevistadas envolvidas na atividade de extraccedilatildeo

de carvatildeo vegetal esta atividade vem substituindo aos poucos a cafeicultura

nos uacuteltimos anos em funccedilatildeo do seu retorno financeiro mais favoraacutevel aos

agricultores aliado ao fato desta atividade lhes ser menos trabalhosa

A regiatildeo rural dos municiacutepios onde foi feita a pesquisa manteacutem muito de

suas caracteriacutesticas tradicionais em vaacuterios aspectos da alimentaccedilatildeo como seraacute

visto neste trabalho Mas tambeacutem na forma de produccedilatildeo transporte e

armazenamento dos produtos A Figura 4 mostra algumas dessas peculiaridades

observadas Segundo Martins (2008 p 26) a inserccedilatildeo das fotografias ldquoeacute um

recurso que amplia e enriquece a variedade de informaccedilotildees de que o

pesquisador pode dispor para reconstruir e interpretar determinada realidade

socialrdquo

A Figura 4 mostra a produccedilatildeo de um casal de aposentados que mora

sozinho Eles executam poucos serviccedilos no siacutetio Um de seus filhos mora na

cidade de Piranga e os outros em outras cidades mais distantes O casal paga

por serviccedilos de plantio e colheita do milho e do feijatildeo A quantidade de milho eacute

muito pequena apenas para uso local A Figura 4a mostra parte do milho no

paiol e a Figura 4b mostra parte do milho jaacute debulhado secando ao sol no quintal

para depois ser processado no moinho eleacutetrico para a produccedilatildeo de fubaacute

15

(a) (b)

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 4 ndash Milho colhido no siacutetio de Anita e Gilberto na comunidade de Manja em Piranga

Muitas estradas das comunidades mais distantes ainda contam com

muitas porteiras que ficam fechadas Eacute o caminho por onde se transita o veiacuteculo

automotor mas ela atende principalmente agrave loacutegica rural tradicional Quem

precisa transitar deve descer do veiacuteculo abrir as porteiras e fechaacute-las ao

atravessar A Figura 5 por exemplo registrada na estrada da comunidade de

Manja em Piranga mostra uma forma tradicional de transportar as espigas de

milho do roccedilado para o paiol mas ainda muito usada na regiatildeo Havia trecircs

pessoas fazendo esse transporte uma pessoa em cima da carroccedila e outros dois

candiando os bois e abrindo e fechando as porteiras

A Figura 6 mostra um engenho de cana que estava sem uso no ano de

2015 pela baixa produccedilatildeo de cana neste ano no siacutetio de Lola e Marcos em

Presidente Bernardes Nele se produz rapadura e melado que eacute vendida para o

comeacutercio de Presidente Bernardes e tambeacutem para os vizinhos das proximidades

16

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 5 ndash Carro de boi transportando espigas de milho da roccedila para o paiol na estrada da comunidade de Manja em Piranga

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 6 ndash Engenho de produccedilatildeo de rapadura no siacutetio de Lola e Marcos na comunidade Xopotoacute Presidente Bernardes

As caracteriacutesticas rurais dos trecircs municiacutepios satildeo muito semelhantes

tanto no que se refere agrave forma de produccedilatildeo agriacutecola quanto na cultura e no perfil

populacional cuja populaccedilatildeo rural supera a urbana Sendo uma regiatildeo cuja

formaccedilatildeo ocorreu a partir da mineraccedilatildeo muitas de suas caracteriacutesticas ainda

estatildeo ligadas a esse processo histoacuterico Outras peculiaridades sobre o perfil das

17

famiacutelias seratildeo apresentadas no capiacutetulo 4 No sistema alimentar o que se

praticava produzia e o que era consumido na fase da mineraccedilatildeo teve influecircncia

na manutenccedilatildeo de muitas das praacuteticas existentes atualmente na regiatildeo onde foi

feita a pesquisa Sobre o que representou a alimentaccedilatildeo na fase da mineraccedilatildeo

e da ruralizaccedilatildeo no periacuteodo de formaccedilatildeo dessa regiatildeo eacute o que seraacute tratado no

proacuteximo capiacutetulo

18

2 A COMIDA EM MINAS GERAIS DA ESCASSEZ Agrave FARTURA

Arruda (1990) destaca em Minas Gerais duas fases muito importantes

para a sua formaccedilatildeo histoacuterica e cultural a primeira eacute a do ciclo da mineraccedilatildeo

que teve iniacutecio no final do seacuteculo XVII e segue ateacute o final do seacuteculo XVIII Neste

periacuteodo a vida urbana emerge com uma intensa movimentaccedilatildeo a segunda fase

eacute a chamada ldquoruralizaccedilatildeordquo que se inicia ao final do seacuteculo XVIII justamente com

o decliacutenio da mineraccedilatildeo seguindo ateacute o iniacutecio do seacuteculo XX Segundo a autora

na segunda fase as aacutereas rurais (as fazendas) passam a ter maior valorizaccedilatildeo

se tornando o ldquomicrocosmo do universo material social e culturalrdquo (ARRUDA

1990 p 135) Aleacutem das duas principais fases a autora destaca uma terceira fase

em Minas que se configura a partir dos meados do seacuteculo XX com a

industrializaccedilatildeo

Para a autora as duas primeiras fases representam formas de

sociabilidade muito peculiares que se expressam nas praacuteticas alimentares

desses periacuteodos e que tiveram influecircncia direta na formaccedilatildeo dos haacutebitos

alimentares em Minas Gerais haacutebitos que se perpetuaram ateacute o periacuteodo

contemporacircneo sendo relevantes para este trabalho Essas informaccedilotildees

ajudaratildeo a analisar se as praacuteticas alimentares comuns a estas fases em Minas

continuam presentes sendo praticadas pelas famiacutelias rurais pesquisadas neste

trabalho

Antes de discutir especificamente as questotildees alimentares relativas agraves

duas fases eacute importante realizar uma sucinta passagem pelo contexto alimentar

no Brasil colonial

21 Contextualizando o lugar da comida no Brasil Colonial nos primoacuterdios

Segundo Panegassi (2013) o colonizador europeu estabeleceu uma

relaccedilatildeo etnocecircntrica com o territoacuterio natural americano e isso se deu tambeacutem e

principalmente em relaccedilatildeo agrave alimentaccedilatildeo No seacuteculo XVI ele natildeo encontrava em

territoacuterios da colocircnia os alimentos que estava habituado a consumir em Portugal

vivenciando assim uma realidade na qual o autor denomina de ldquoescassez

culturalrdquo de alimentos (p 14) O autor cita o exemplo da carta de Joatildeo de Mello

Cacircmara a Dom Joatildeo III por volta de 1530 quando este rei estabeleceu que a

19

colonizaccedilatildeo seria baseada na expansatildeo da ocupaccedilatildeo das terras atraveacutes das

capitanias hereditaacuterias Mello Cacircmara informa a Dom Joatildeo III que traria para a

colocircnia homens de Portugal para cultivarem alimentos mais comuns aos

portugueses evitando mudanccedilas draacutesticas de seus haacutebitos alimentares pois

considerava os alimentos originaacuterios da Colocircnia inferiores para o consumo dos

portugueses

No entanto por mais que os colonizadores portugueses tenham tido

dificuldade em se habituar ao consumo de alimentos aqui disponiacuteveis foi preciso

se render a eles como tambeacutem aponta Freyre (1964)

A adaptaccedilatildeo foi o caminho obrigatoacuterio como destaca Panegassi (2013

p 70)

No acircmbito de uma situaccedilatildeo na qual um grande nuacutemero de pessoas eacute inserido em um novo ambiente cultural ainda que os receacutem-chegados procurem preservar seus padrotildees culturais de origem a necessidade de sobreviver impotildee inuacutemeros ajustes principalmente nos primeiros anos de presenccedila na nova aacuterea

Nesse sentido Holanda (1995) afirma que o interesse pela aventura

pela obtenccedilatildeo de tiacutetulos de posiccedilatildeo social e de prosperidade econocircmica servia

como estiacutemulo para o ldquosacrifiacuteciordquo da adaptaccedilatildeo Os portugueses tentaram

portanto recriar aqui condiccedilotildees de sobrevivecircncia e de adaptaccedilatildeo com poucas

exigecircncias ldquoOnde lhes faltasse o patildeo de trigo aprendiam a comer o da terra

() soacute consumiam farinha de mandioca fresca feita no dia Habituaram-se

tambeacutem a dormir em redes agrave maneira dos iacutendios e a beber e a mastigar fumordquo

(HOLANDA 1995 p 47)

De acordo com Panegassi (2013) os padres jesuiacutetas preferiam comer o

patildeo de mandioca e as bebidas existentes na colocircnia do que os que vinham de

Portugal em navios pois a viagem era longa e os alimentos armazenados

inadequadamente Era comum que os produtos como os patildees chegassem

estragados ao destino ou seja sem condiccedilotildees de serem ingeridos Assim Mello

(1975 apud PANEGASSI 2013 p 104) conclui que

A mudanccedila que se processaraacute nos haacutebitos dieteacuteticos do portuguecircs colonizador do Brasil ou do portuguecircs colonizador de outras aacutereas tropicais eacute menos o resultado de uma capacidade especial de amoldaccedilatildeo do que da impossibilidade de obter um suprimento regular e abundante de trigo e outros viacuteveres de origem europeia

20

Dessa maneira num contexto de convivecircncia cultural e de costumes foi

se estabelecendo ao longo do processo de colonizaccedilatildeo brasileira a conformaccedilatildeo

inicial dos haacutebitos alimentares baseados na miscigenaccedilatildeo cultural alimentar

recebendo posteriormente a influecircncia africana com a chegada dos escravos

conforme seraacute tratado mais agrave frente Os alimentos autoacutectones inicialmente foram

os mais consumidos sobretudo a mandioca por substituir o trigo para a

elaboraccedilatildeo de patildees e bolos No entanto na regiatildeo de mineraccedilatildeo em Minas

Gerais ndash aacuterea de pesquisa deste trabalho ndash o milho e natildeo a mandioca foi

preponderante na alimentaccedilatildeo Como seraacute mostrado mais agrave frente o milho teve

papel fundamental natildeo apenas para alimentaccedilatildeo animal mas tambeacutem para

alimentar os escravos que trabalhavam nas lavras que o ingeriam segundo

Cacircmara Cascudo (2004) na forma de papa angu e canjica Segundo o mesmo

autor foram as mulheres portuguesas que criaram a receita da broa e do pudim

de milho que se tornaram e permanecem pratos tiacutepicos em Minas Gerais

Segundo Torres (2011 p100)

O mineiro nunca usou patildeo da ldquofarinha de paurdquo (mandioca) o patildeo da terra dos primeiros seacuteculos da colonizaccedilatildeo Sempre preferiu o angu os soacutelidos bolos de fubaacute e o cobu enrolado em folha de bananeira Para misturar o feijatildeo usou sempre a farinha de milho (o milho seco socado no monjolo e depois torrado) o angu a farinha de moinho As classes pobres usavam a ldquocanjiquinhardquo subproduto de despolpaccedilatildeo do milho com muito ecircxito para substituir o arroz

A carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei em 1500 aponta algumas

peculiaridades sobre a primeira percepccedilatildeo sobre alimentaccedilatildeo Os portugueses

ofereceram aos iacutendios ldquopatildeo (de trigo) peixe cozido (com condimentos)

confeitos mel massa de ovos figos passados e vinho de uvas mas os iacutendios

natildeo quiseram comer quase nadardquo (BORGES 2014 p 204) Segundo Cacircmara

Cascudo (2004) as novidades para os iacutendios era o patildeo de trigo massa de ovos

os condimentos incluindo o sal o accediluacutecar e finalmente o vinho feito de uvas

apesar de jaacute produzirem bebidas fermentadas a partir do milho da mandioca e

de frutas

A rejeiccedilatildeo dos iacutendios sinaliza que natildeo foi apenas da parte dos

portugueses que houve inicial rejeiccedilatildeo aos novos alimentos e haacutebitos

alimentares como registrado na carta de Mello Cacircmara a Dom Joatildeo III citado

anteriormente Os iacutendios tambeacutem expressaram seu interesse em manter seus

proacuteprios haacutebitos alimentares desconsiderando os alimentos vindos de Portugal

21

Segundo Cacircmara Cascudo (2004) animais como boi vaca porco

galinha cabra e ovelha foram introduzidos pelos portugueses bem como os

cultivos de arroz feijatildeo e verduras pela implantaccedilatildeo de hortas Registros do

padre jesuiacuteta Fernatildeo Cardim que chegou em 1584 descreve a existecircncia de

ldquoalface aboacutebora couve pepino nabos mostarda hortelatilde coentros endros

funchos ervilhas gergelim cebolas alhos e outros legumes que do Reino se

trouxeram que se datildeo bem na terrardquo (CARDIM 1939 p 94)

A partir do que eacute apresentado por Cacircmara Cascudo (2004) e Freyre

(1964) eacute possiacutevel verificar ainda os haacutebitos alimentares dos escravos africanos

que foram trazidos para a colocircnia em meados do seacuteculo XVI primeiramente

inseridos no trabalho dos engenhos de cana e algodatildeo e posteriormente na

mineraccedilatildeo e fazendas de gado

Segundo Cacircmara Cascudo (2004) quase todos escravos eram

obrigados a se alimentar da dieta que lhes era fornecida assim a possibilidade

de escolha do que comer era praticamente nula Eram melhor alimentados

apenas durante a viagem de navio ateacute chegar em terras brasileiras pois

precisariam estar em boas condiccedilotildees para serem revendidos

A refeiccedilatildeo consiste durante a viagem em feijatildeo farinha de milho e de mandioca agraves vezes tambeacutem peixe salgado Sua bebida eacute aacutegua e de quando em quando tambeacutem um pouco de aguardente Sendo levados do Brasil esses gecircneros teriam deterioraccedilatildeo raacutepida e natural (MARTIUS 21 apud CAcircMARA CASCUDO 2004 p 200)

Uma vez instalados nas aacutereas a que foram destinados na colocircnia a

alimentaccedilatildeo do europeu natildeo mudava significativamente Poreacutem em Minas

Gerais era comum a destinaccedilatildeo de pequenas parcelas de terra para que

escravos cultivassem vegetais de sua preferecircncia proacuteximo agraves senzalas

provendo uma alimentaccedilatildeo melhor pelo menos mais diversificada (CAcircMARA

CASCUDO 2004 GUIMARAtildeES REIS 2007) Citando relatos de Gabriel Soares

de Souza que esteve na Bahia de 1570 a 1587 e de Joatildeo Mauricio Rugendas

que passou pelo Brasil de 1821 a 1835 Cacircmara Cascudo (2004) relata que

nesses roccedilados os escravos podiam trabalhar em dias santos e em dias de festa

na casa-grande Era dado aos escravos pequenas parcelas de terra onde eles

podiam cultivar alimentos de seu interesse de consumo

Dessa forma as roccedilas de subsistecircncia aleacutem de contribuiacuterem para reduzir os custos de manutenccedilatildeo da matildeo de obra ao complementarem

22

a alimentaccedilatildeo fornecida pelos senhores criavam um espaccedilo proacuteprio para os escravos contribuindo assim para a prevenccedilatildeo de fugas e revoltas (GUIMARAtildeES REIS 2007 p 330)

A possibilidade de cultivar algumas roccedilas de alimentos preferidos na

cultura africana segundo Cacircmara Cascudo e Gilberto Freyre explica a inserccedilatildeo

de muitas plantas africanas que de alguma maneira os escravos conseguiram

transportaacute-las para o Brasil durante sua viagem Isso tambeacutem permitiu a

inserccedilatildeo de algumas peculiaridades das praacuteticas alimentares africanas na

formaccedilatildeo da comida brasileira atraveacutes das cozinheiras e tambeacutem embora mais

raramente dos cozinheiros que atuavam nas casas-grandes Segundo Freyre

(1964) pode-se atribuir a eles a introduccedilatildeo dos seguintes ingredientes

alimentos e modos de fazer na culinaacuteria brasileira

Azeite-de-dendecirc pimenta malagueta quiabo maior uso da banana variedade de formas de preparar a galinha e o peixerdquo (p 634) Dentro da extrema especializaccedilatildeo de escravos no serviccedilo domeacutestico das casas-grandes reservaram-se sempre dois agraves vezes trecircs indiviacuteduos aos trabalhos de cozinha (FREYRE 1964 p 634)

Freyre (1964) aponta que as influecircncias se deram primeiramente e mais

fortemente nos estados do Nordeste (Bahia Pernambuco e Maranhatildeo) em

funccedilatildeo dos trabalhos nos engenhos da regiatildeo Na Bahia foi muito marcante a

inserccedilatildeo das vendas dos quitutes doces e salgados em tabuleiros ou gamelas

pelas ruas sobretudo pelas mulheres alforriadas mas tambeacutem havia aquelas

que vendiam para reverter a renda agrave sua lsquosinhaacutersquo6 ldquoQuindim cocada sequilhos

mocotoacutes vatapaacutes mingaus pamonhas canjicas acaccedilaacutes abaraacutes arroz-de-coco

feijatildeo-de-coco angus patildeo-de-loacute de arroz patildeo-de-loacute de milho rebuccedilados7rdquo (p

636) Este autor afirma que os dois pratos de origem africana que mais fizeram

sucesso na mesa da casa-grande foram o vatapaacute e o caruru

Com a chegada da Corte Portuguesa em 1808 segundo Cacircmara

Cascudo (2004) Holanda (1995) e Ribeiro (2014) algumas alteraccedilotildees

importantes comeccedilaram a ocorrer no plano alimentar dos mais ricos com a

vinda inclusive de cozinheiros particulares com seus livros de receitas Criaram-

se modismos que tiveram influecircncia principalmente no Rio de Janeiro Um deles

6 No capiacutetulo 3 deste trabalho faccedilo uma discussatildeo mais detalhada sobre o papel das mulheres iacutendias

africanas e portuguesas na formaccedilatildeo da culinaacuteria brasileira 7 Como os portugueses se referem ao doce ldquobalardquo

23

foi a ampliaccedilatildeo do consumo de produtos importados da Europa e o estilo francecircs

de comer

Importava-se conservas doces frutos processados salsichas presuntos manteiga queijo chaacute e temperos () Desde entatildeo os haacutebitos agrave mesa se europeizaram os ideais alimentares e de paladar se tornaram cada vez mais semelhantes aos franceses berccedilo da gastronomia como a conhecida hoje (RIBEIRO 2014 p 50-51)

Freyre (1964) descreve informaccedilotildees dos livros de receitas dos

cozinheiros que vieram de Portugal e que passaram a inserir as novas praacuteticas

alimentares importadas para os mais abastados como a substituiccedilatildeo da gordura

pela manteiga francesa nas frituras diversas o reduzido uso da feijoada e dos

guisados do uso da pimenta e de outros condimentos picantes O proacuteprio trigo

antes uma raridade passou a chegar com maior facilidade e iniciando-se a

produccedilatildeo do patildeo de trigo tatildeo caracteriacutestico em Portugal e que passou a ser

muito consumido tambeacutem no Brasil

Em vez do aluaacute da garapa de tamarindo do caldo de cana ndash o chaacute agrave inglesa em vez de farinha do piratildeo ou do quibebe ndash a batata chamada inglesa Juntando-se a tudo isso o requinte do gelo Manteiga francesa batata inglesa chaacute tambeacutem agrave inglesa gelo ndash tudo isso agiu no sentido da desafricanizaccedilatildeo da mesa brasileira que ateacute os primeiros anos de independecircncia estivera sob maior influecircncia da Aacutefrica e dos frutos indiacutegenas (FREYRE 1964 p 642)

As influecircncias de outras culturas continuaram a se expandir a partir de

metade do seacuteculo XIX com a chegada de novos imigrantes ndash principalmente

italianos alematildees espanhoacuteis japoneses e siacuterio-libaneses ndash novos elementos da

culinaacuteria tiacutepica desses grupos eacutetnicos foram se incorporando a jaacute miscigenada

comida brasileira Na contemporaneidade a influecircncia alimentar mais relevante

de uma cultura externa eacute a norte-americana Poreacutem no seacuteculo XX o hibridismo

alimentar natildeo mais ocorre necessariamente pela intensidade da imigraccedilatildeo mas

sobretudo pela influecircncia da globalizaccedilatildeo Ao facilitar a divulgaccedilatildeo o transporte

e a aquisiccedilatildeo de alimentos de outros paiacuteses esse processo propiciou a

introduccedilatildeo constante de novas praacuteticas e haacutebitos alimentares

Apoacutes a breve introduccedilatildeo sobre os haacutebitos alimentares formados no Brasil

colonial passo a tratar especificamente da regiatildeo de Minas Gerais onde se deu

a fase mineradora regiatildeo na qual estatildeo inseridos os municiacutepios pesquisados

24

22 Fase da mineraccedilatildeo em Minas Gerais escassez de alimentos

O ciclo da mineraccedilatildeo foi muito importante para a economia da colocircnia

portuguesa e iniciou-se apoacutes a quase estagnaccedilatildeo do ciclo do accediluacutecar no final do

seacuteculo XVII Teve seu apogeu em Minas Gerais no seacuteculo XVIII e nesta fase

por determinaccedilatildeo da Coroa Portuguesa toda a matildeo de obra deveria estar

voltada basicamente agrave extraccedilatildeo de ouro e diamante Paula (2007) menciona que

a mineraccedilatildeo foi uma atividade central e decisiva na peculiaridade histoacuterica da

regiatildeo onde ela ocorreu Segundo o autor algumas caracteriacutesticas dessa

atividade foram a rapidez e amplitude com que a regiatildeo foi ocupada O intenso

fluxo imigratoacuterio gerado pela quantidade de ouro e seu preccedilo transformou-a na

Capitania mais populosa do periacuteodo colonial ao imperial Por sua importacircncia

econocircmica e dinamismo da atividade Minas Gerais teve o maior nuacutemero de

escravos da Ameacuterica Portuguesa

O fato de ser ele mesmo o ouro dinheiro em sua forma mais universal teraacute decisivo impacto sob o grau de dinamismo e mercantilizaccedilatildeo da economia mineira A riqueza decorrente da atividade induziraacute o Estado portuguecircs a efetivamente implantar a maacutequina estatal da colocircnia agrave qual seraacute durante muito tempo apenas fisco poliacutecia e justiccedila Satildeo essas dimensotildees que vatildeo determinar o desenvolvimento em Minas Gerais de uma estrutura urbana de uma certa vida poliacutetica e cultural em nada triviais no contexto colonial (PAULA 2007 p 279)

Assim a atividade mineradora fez surgir em Minas Gerais primeiramente

uma sociedade urbana baseada na extraccedilatildeo de ouro e diamantes com a

formaccedilatildeo de pequenos povoados e arraiais Segundo Zemella (1951) ldquoos

arraiais mineiros cresceram tatildeo vertiginosamente que em poucos anos muitos

deles atingiram a dignidade de vila Surgiram primeiramente Mariana Vila Rica

Caeteacute Sabaraacute Vila do Priacutencipe Arraial do Tijuco e outrosrdquo (ZEMELLA 1951 p

46) Nesses ldquooutrosrdquo citados pela autora estaacute incluiacuteda a vila de Guarapiranga

(atuais municiacutepios de Piranga Porto Firme e Presidente Bernardes) como jaacute foi

mencionado

Em funccedilatildeo disso analisa Cacircmara Cascudo (2004) com um contingente

elevado de pessoas que chegavam tanto do litoral da Colocircnia como tambeacutem de

Portugal em busca das riquezas minerais a escassez de alimento foi um fator

marcante nesse periacuteodo jaacute que se plantava muito pouco e boa parte da comida

25

era trazida por tropeiros8 a preccedilos elevados Aleacutem disso demorava a chegar

devido agraves dificuldades das tropas em avanccedilar pelas matas e estradas de difiacutecil

acesso

O excesso de ouro mal enfrentava o exageradiacutessimo preccedilo dos gecircneros alimentiacutecios transportados de longe porque natildeo havia vontade e tempo para plantar cereais Garimpeiros e faiscadores9 tinham que comprar qualquer elemento para compor a menor refeiccedilatildeo Toda a escravaria estava ocupada no desmonte das terras e lavagem do ouro (CAcircMARA CASCUDO 2004 p 208)

Segundo Frieiro (1982) e Paula (2007) as crises de abastecimento foram

graviacutessimas e causaram muitas mortes por fome aleacutem da acelerada alta de

preccedilos dos alimentos Magalhatildees (1978) aponta duas grandes crises de fome a

de 1697-1698 e a de 1700-1701 Essas crises propiciaram uma dispersatildeo

populacional do centro da regiatildeo mineradora ldquoOs primeiros habitantes natildeo

pensavam em perder tempo nas canseiras do amanho e plantio da terra A falta

de caminhos agravava sobremaneira o problema do abastecimentordquo (FRIEIRO

1982 p 56)

Segundo o autor tinha-se assim uma alimentaccedilatildeo de baixo valor

proteico Para minimizar isso comia-se o ldquobicho da taquarardquo assado ou torrado

Alimento que jaacute era consumido pelos indiacutegenas

O que comia o faisqueiro na sua lavra Comia do pouco que se plantava nas roccedilas Milho feijatildeo farinha de mandioca e alguma fruta da terra eram o cotidiano sustento dos mineradores O escravo negro pau para toda obra armava o tripeacute de varas fincado no chatildeo e pendurava nele o caldeiratildeo de ferro em que cozinhava o feijatildeo com toucinho servido em pratos de estanho Estendia-se a farinha ao sol numa toalha e ao lado natildeo faltava o ancorote de aacutegua ou aguardente Galinha ovos e doces quando os havia muito raros eram tudo por preccedilo da hora da morte (FRIEIRO 1982 p 57)

A partir disso pela necessidade de manter a atividade e portanto de

manter alimentados os homens para o trabalho o rei ordena a importaccedilatildeo de

carne de boi para Minas vinda de Satildeo Paulo Curitiba sertotildees da Bahia e

Pernambuco Essas regiotildees natildeo possuiacuteam grande plantel mas passaram a

ampliar a produccedilatildeo para atender agrave demanda mineira A carne chegava cara e

8 Uma importante e movimentada rota de comercializaccedilatildeo para abastecer a regiatildeo de suprimentos gerais e

comida surge da exploraccedilatildeo de ouro e diamante Detalhes dessa rota comercial por ser visto em Zemella (1951)

9 Muito comuns na mineraccedilatildeo os faiscadores eram homens livres e pobres havendo mesmo escravos entre eles que entregavam quantia fixa de ouro ao senhor e guardavam o eventual excedente (VAINFAS 2001 p 398)

26

tambeacutem tinha seu preccedilo elevado nas regiotildees de origem jaacute que se priorizava a

exportaccedilatildeo para Minas Apesar da escassez de comida representar um aspecto

negativo para Minas Gerais ela contribuiu para a expansatildeo do mercado de

outras regiotildees do paiacutes que investiram no abastecimento de alimentos da aacuterea de

mineraccedilatildeo conforme aponta Furtado (2000)10

Segundo Zemella (1951) apesar do empenho de Satildeo Paulo e das outras

regiotildees em fazer chegar a carne ateacute as Minas Gerais havia irregularidades no

fornecimento Em funccedilatildeo disso usava-se muito da carne de caccedila e de todo o

tipo de alimento que se poderia obter nas matas aleacutem do pouco que colhiam nas

pequenas roccedilas para subsistecircncia insuficiente para atender a demanda de todos

os trabalhadores que viviam na regiatildeo dedicada agrave mineraccedilatildeo

A situaccedilatildeo de inseguranccedila alimentar grave que se instalava e a grande

dificuldade na obtenccedilatildeo da carne bovina ldquoestimulou o governo metropolitano agrave

formaccedilatildeo de uma zona pecuarista em torno das minas distribuindo sesmarias

em profusatildeo sempre sob a condiccedilatildeo de os agraciados instalarem curraisrdquo

(ZEMELLA 1951 p 192) O objetivo era tambeacutem que com o tempo a produccedilatildeo

de gado se tornasse suficiente para natildeo mais haver comeacutercio com a Bahia

visando fechar os canais por onde escoava o contrabando de ouro

A outra accedilatildeo do governo da qual trata a autora foi instituir a criaccedilatildeo de

suiacutenos onde houvesse espaccedilo para tal Assim passou a ser frequente entre os

mineiros a implantaccedilatildeo de chiqueiros rudimentares no quintal das casas mesmo

nas casas urbanas Surge a partir dessa situaccedilatildeo a preferecircncia pela carne suiacutena

na dieta do mineiro da regiatildeo de mineraccedilatildeo11 carne que estaacute presente na maior

parte das receitas consideradas mineiras ainda nos dias atuais

Outra medida por parte da Coroa para garantir a subsistecircncia interna e

certa autonomia ao longo desse periacuteodo de mineraccedilatildeo foi a criaccedilatildeo da ldquoOrdem

10 A pecuaacuteria que encontrara no Sul um habitat excepcionalmente favoraacutevel para desenvolver-se - e que

natildeo obstante sua baixiacutessima rentabilidade subsistia graccedilas agraves exportaccedilotildees de couro ndash passaraacute por uma verdadeira revoluccedilatildeo com o advento da economia mineira O gado do Nordeste cujo mercado definhava com a decadecircncia da economia accedilucareira tende a deslocar-se em busca do florescente mercado da regiatildeo mineira Outra caracteriacutestica de profundas consequecircncias para as regiotildees vizinhas radicava em seu sistema de transporte A tropa de mulas constitui autecircntica infraestrutura de todo o sistema A quase inexistecircncia de abastecimento local de alimentos a grande distacircncia por terra que deveriam percorrer todas as mercadorias importadas a necessidade de vencer grandes caminhadas em regiatildeo montanhosa para alcanccedilar os locais de trabalho tudo contribuiacutea para que o sistema de transporte desempenhasse um papel baacutesico no funcionamento da economia Criou-se assim um grande mercado para animais de carga (FURTADO 2000 p 81)

11 Nas regiotildees do norte de Minas Gerais outros tipos de carne satildeo mais comuns por exemplo a carne de sol em que se usa mais frequentemente a carne de boi

27

Reacutegia de 27 de fevereiro de 1777rdquo que tornou obrigatoacuterio o cultivo nas aacutereas

rurais em quantidade suficiente para abastecimento de mandioca feijatildeo e milho

considerados alimentos baacutesicos naquela eacutepoca

O milho que na regiatildeo das Minas Gerais passou a ser mais importante

para consumo humano12 do que a mandioca tinha como derivados pipoca

curau pamonha farinha cuscuz biscoitos bolos cerveja de milho verde

aguardente canjica ldquoque os ricos comiam por gosto e os pobres por

necessidaderdquo (FRIEIRO 1982 p 57) Isso porque estes derivados eram

consumidos apenas pelos proprietaacuterios das terras e outros poucos abastados

Segundo Saint-Hilaire (1938) e Frieiro (1982) aos escravos soacute era dado o angu

que durante muito tempo foi a base de sua dieta Saint-Hilaire (1938) que

aprovou o paladar da alimentaccedilatildeo agrave base do milho descreve detalhes do fubaacute e

a importacircncia do angu para a alimentaccedilatildeo dos escravos

Para fazer servir o milho agrave alimentaccedilatildeo ordinaacuteria dos homens eacute ele preparado de duas maneiras diferentes Sua farinha simplesmente moiacuteda e separada do farelo com o auxiacutelio de uma peneira de bambu toma o nome de fubaacute Eacute fazendo cozer o fubaacute na aacutegua sem acrescentar sal que se faz essa espeacutecie de polenta grosseira que se chama como jaacute o disse anguacute e constitui o principal alimento dos escravos (SAINT-HILAIRE 1938 p 206)

O viajante Pohl (1951 apud FRIEIRO 1982) relata o que testemunhou

da alimentaccedilatildeo dos escravos ldquoalimentavam-se os negros ao almoccedilo e agrave ceia

com farinha de milho misturada com aacutegua quente o angu propriamente dito no

qual punham um naco de toucinho e ao jantar davam-lhes feijatildeordquo (POHL 1951

apud FRIEIRO 1982 p 75) O objetivo era alimentar o escravo somente daquilo

que o mantivesse em boas condiccedilotildees de sauacutede e com forccedila suficiente para fazer

render o trabalho na lavra

O angu era desde essa eacutepoca feito sem adiccedilatildeo de sal o que perdura ateacute

os dias de hoje A principal razatildeo para isso naquela eacutepoca era a dificuldade em

obter o sal em Minas Gerais e consequentemente o seu alto preccedilo Assim esse

produto era usado com parcimocircnia para alimentaccedilatildeo animal e alguns alimentos

12 Para fins de alimentaccedilatildeo animal o milho tambeacutem era mais importante do que a mandioca pois dele se

alimentavam os bovinos os suiacutenos os equinos e os galinaacuteceos conforme aponta Meneses (2007) Assim era necessaacuteria uma aacuterea muito grande destinada ao cultivo deste cereal Segundo este autor a praacutetica de produccedilatildeo consorciada de milho e feijatildeo era comum e atendiam a uma ldquoordem bioloacutegica cultural e econocircmica e ainda ecoloacutegica - condiccedilotildees de clima solo e relevordquo (p 344) Com o passar do tempo o milho caiu na preferecircncia dos habitantes das Minas e se tornou mais importante para fins de alimentaccedilatildeo humana tambeacutem

28

que precisariam dele para conservaccedilatildeo como toucinhos e feijatildeo por exemplo

Conforme Frieiro (1982) em funccedilatildeo dessa situaccedilatildeo poder-se-ia talvez atribuir

o angu sem sal como invenccedilatildeo mineira embora isso natildeo possa ser comprovado

jaacute que em outras regiotildees como Satildeo Paulo e Bahia o angu eacute temperado A

obtenccedilatildeo de sal foi um problema geral no paiacutes durante todo o seacuteculo XVIII

segundo o autor

Zemella (1951) em seu importante trabalho sobre o abastecimento de

capitania das Minas Gerais no seacuteculo XVIII destaca essa situaccedilatildeo

O suprimento de sal especialmente para as cidades vicentinas sempre foi difiacutecil e penoso Na Vila de Satildeo Paulo o mau fornecimento do preciso condimento causou ateacute revoltas Se na Vila de Satildeo Paulo que estava relativamente proacutexima do porto de importaccedilatildeo de sal havia tremendas dificuldades para a sua obtenccedilatildeo que seria entatildeo das Gerais As minas no seu desespero conseguiram uma regiatildeo interna os sertotildees marginais do Satildeo Francisco que lhe fornecesse tal mercadoria se bem que em pequenas quantidades O sal chegava agraves cidades mineiras subindo o rio Satildeo Francisco em barcaccedilas (ZEMELLA 1951 p 193)

A autora aponta que o sal assim como a carne os cereais o accediluacutecar e o

toucinho eram produtos vitais de consumo para os mineiros Sendo que a carne

e o sal eram aleacutem de necessaacuterios imprescindiacuteveis e vinham de longas

distacircncias Segundo Carrara (2013) o sal que chegava agraves Minas Gerais vinha

de Sobradinho Pilatildeo Arcado Casa Nova e Remanso na Bahia A autora inclui

na lista ainda dois produtos que eram considerados de grande importacircncia para

os mineiros a pinga e o tabaco A pinga ou cachaccedila era muitas vezes usada

para ajudar a remediar a fome

Como citado por Zemella (1951) e Frieiro (1982) a Ordem Reacutegia

estimulou pequenos cultivos para subsistecircncia e a venda dos excedentes

reduzindo o risco de uma nova crise de fome Com o tempo foi-se regulando o

abastecimento embora a preccedilos ainda estivessem muito elevados para a grande

maioria da populaccedilatildeo da regiatildeo mineradora Segundo Boxer (1969 apud Arruda

1999 p 139) ldquoAs pessoas que tinham uma fazenda ou roccedila nas quais

plantavam legumes criavam aves porcos etc para elas e seus escravos

vendendo o excesso para o consumo na cidade com bons lucrosrdquo

Arruda (1999) menciona que as pessoas mais ricas e que possuiacuteam um

grande nuacutemero de escravos foram as primeiras a iniciarem o cultivo de suas

29

terras para alimentar seus familiares os escravos e a aproveitar a demanda por

alimentos para obter algum lucro com a venda do excedente

Analisando o lugar da comida no processo de formaccedilatildeo do territoacuterio das

Minas Gerais na fase da mineraccedilatildeo verificamos que ela teve uma funccedilatildeo muito

mais fisioloacutegica ou seja a de matar a fome e sustentar a pesada lida diaacuteria que

era o trabalho na lavra Conforme os registros de Mawe (1922) Saint-Hilaire

(1938) e Cardim (1939) verifica-se que os habitantes da regiatildeo de Minas Gerais

faziam suas refeiccedilotildees com muita rapidez e com pouca conversa

Outra observaccedilatildeo importante eacute mencionada por Abdala (2007) que

aponta a existecircncia de uma combinaccedilatildeo de gecircneros adquiridos no comeacutercio com

a produccedilatildeo de alimentos do quintal isso ainda na fase da mineraccedilatildeo ndash no

periacuteodo apoacutes as crises de fome e organizaccedilatildeo do abastecimento interno Como

os preccedilos dos produtos importados eram muito elevados os produtos da terra

foram os principais alimentos consumidos Assim segundo a autora surge uma

cozinha com caracteriacutesticas peculiares que se adaptou agrave situaccedilatildeo vivenciada

pelos habitantes cujo controle poliacutetico e econocircmico era excessivo diante da

realidade em que atender agraves necessidades imediatas de sobrevivecircncia era o

principal objetivo ldquoAgrave exceccedilatildeo das compotas e doccedilarias de maneira geral

inspiradas nos haacutebitos lusitanos os pratos servidos no dia-a-dia caracterizavam-

se pela rusticidade dos produtos da terrardquo (ABDALA 2007 p 73) Nesse periacuteodo

tambeacutem foi muito importante dominar as teacutecnicas de conservaccedilatildeo dos alimentos

o que acarretou na adoccedilatildeo de haacutebitos alimentares muito caracteriacutesticos como a

conservaccedilatildeo da carne do porco na gordura retirada do proacuteprio animal

23 Fase da ruralizaccedilatildeo em Minas Gerais fartura de alimentos

A fase da ruralizaccedilatildeo em Minas Gerais eacute considerada aquela que

paulatinamente vai surgindo um novo dinamismo econocircmico e reprodutivo para

aleacutem da mineraccedilatildeo Segundo Arruda (1999) Igleacutesias (1970) Carrara (2007)

Guimaratildees e Reis (2007) Meneses (2007) Barbosa (1995) e Frieiro (1982) natildeo

ocorreu um corte radical uma linha divisoacuteria onde tenha se encerrado o ciclo da

mineraccedilatildeo e surgido o ciclo da ruralizaccedilatildeo A demarcaccedilatildeo de uma periodizaccedilatildeo

eacute feita pelos autores mais por razotildees metodoloacutegicas para discorrer sobre o ritmo

histoacuterico econocircmico e cultural daquele periacuteodo na regiatildeo

30

Iglesias (1970) utiliza os termos ldquoopulecircncia e decadecircnciardquo da mineraccedilatildeo

e sugere os periacuteodos da seguinte maneira Os anos de 1693 a 1770 a fase

considerada do surgimento ao auge da opulecircncia mineraccedilatildeo e 1770 a 1883 o

que abrangeria a sua decadecircncia Tal decliacutenio orientou consequentemente para

a atividade a agriacutecola Arruda (1999) aponta a Carta (ou Ordem) Reacutegia jaacute citada

no item anterior como o marco de reconhecimento da Coroa do decliacutenio da

mineraccedilatildeo e da necessidade de estimular a produccedilatildeo agriacutecola na regiatildeo Em

suas palavras

A Carta Reacutegia de 1777 consagra ao novo princiacutepio o postulado que reconhece a importacircncia da agropecuaacuteria no conjunto das atividades econocircmicas nas aacutereas de mineraccedilatildeo () A mudanccedila de atitude por parte das autoridades governamentais do Reino corresponde na realidade agrave avassaladora crise da produccedilatildeo auriacutefera depois dos anos sessenta Impunham-se novos caminhos agrave economia de Minas capazes de dar sustentaccedilatildeo aos significativos contingentes populacionais que laacute haviam se estabelecido na primeira deacutecada do seacuteculo XVIII (ARRUDA 1999 p 140)

Nesta fase o problema de abastecimento jaacute natildeo era mais tatildeo grave mas

os preccedilos dos alimentos continuavam altos Era tempo de maior fartura de

alimentos em relaccedilatildeo agrave fase de mineraccedilatildeo mas ainda assim com muitos

obstaacuteculos Zemella (1951) defende que em funccedilatildeo da situaccedilatildeo dada a regiatildeo

de Minas Gerais foi orientando pouco a pouco seus caminhos no sentido da

autossuficiecircncia e as atividades dos habitantes se desviando para a lavoura

pecuaacuteria e a manufatura ldquoNa proacutepria regiatildeo onde se localizavam as lavras13 ou

minas multiplicaram-se as plantaccedilotildees As minas agonizantes passaram a

apoiar-se na lavoura que se expandindo procurava gulosamente as manchas

de terra feacutertil que havia nas imediaccedilotildees das lavrasrdquo (ZEMELLA 1951 p 239)

Mas esse processo natildeo significou um rompimento abrupto da mineraccedilatildeo Assim

o trabalho na lavra permanecia embora em muito menor importacircncia do que

antes ndash nas fases poacutes-colheita ndash quando se utilizava a matildeo-de-obra dos escravos

que pudessem ser retirados temporariamente da lavoura

Guimaratildees e Reis (2007) apontam que os setores da manufatura

pecuaacuteria e lavoura permitiram que a economia de Minas Gerais continuasse a

13 ldquoEm 1702 foi criado a Intendecircncia das Minas oacutergatildeo encarregado de aplicar a legislaccedilatildeo sobre a

mineraccedilatildeo na colocircnia Cabia ainda ao oacutergatildeo dividir o local a ser explorado em Datas lotes de terra entregues ao descobridor das minas As aacutereas maiores que as Datas eram chamadas de Lavras lotes de terras em que a exploraccedilatildeo do ouro soacute seria possiacutevel com teacutecnicas de exploraccedilatildeo mais eficaz e com um grande nuacutemero de escravosrdquo (MUTTER 2012 p31)

31

se desenvolver e a Capitania continuasse a manter seu ritmo de crescimento

populacional durante a segunda metade do seacuteculo XVIII incluiacuteda a populaccedilatildeo

escrava

Com a crise da mineraccedilatildeo a mudanccedila nos rumos da economia mineira provocou transformaccedilotildees quantitativas e qualitativas na agricultura com o fortalecimento da produccedilatildeo interna e com o desenvolvimento de uma elite residente autocircnoma ante o mercado externo (GUIMARAtildeRES REIS 2007 p 332)

Na concepccedilatildeo de Arruda (1999) aleacutem de a agricultura ocorrer nas

regiotildees das lavras como afirmado por Zemella (1951) as sesmarias que foram

concedidas levaram muitos a estabelecerem suas fazendas no interior rural A

autora aponta que nesta fase jaacute ao final do seacuteculo XVIII Minas reduziu muito o

consumo de produtos importados basicamente de Satildeo Paulo Rio de Janeiro e

Bahia passando a comercializar principalmente para o Rio de Janeiro muito do

que passou a produzir embora a produccedilatildeo fosse principalmente para

abastecimento interno como tambeacutem apontado por Graccedila Filho (2007) e por

Guimaratildees e Reis (2007) Exportava-se ldquoqueijo fumo accediluacutecar aguardente e

cana e ainda mas em menor volume couros e solas marmelada e mandioca

algodatildeo pouco cafeacute gado vacum porcos cavalos e galinhasrdquo (DULCI 2007 p

348)

Este autor menciona ainda que as importaccedilotildees que continuaram pelo

seacuteculo XIX foram de produtos como sal tecidos vinho peixe salgado vinagre

e azeite doce

As compras no entanto eram muito menores do que as vendas O poder aquisitivo dos mineiros era baixo portanto jaacute que eles natildeo tinham condiccedilotildees de consumir muitos produtos importados havia espaccedilo para fabricaccedilatildeo local de bens indispensaacuteveis agrave vida diaacuteria (DULCI 2007 p 348)

Para Freyre (2008 p 67) o decliacutenio da mineraccedilatildeo ldquotransformou quase

toda a Proviacutencia de inquietamente mineira a pacatamente agriacutecolardquo Para este

autor a fase da ruralizaccedilatildeo foi melhor para Minas nos aspectos econocircmicos e

sociais Segundo Graccedila Filho (2007) Guimaratildees e Reis (2007) e Arruda (1999)

a fase da ruralizaccedilatildeo em Minas foi um processo relativamente lento que ocorreu

progressivamente e essa realidade natildeo mudou mundo durante quase todo o

seacuteculo XIX

32

Poreacutem a partir de segunda metade desse seacuteculo o setor cafeeiro e o

fabril tornaram essa realidade produtiva e econocircmica mais diversificada

sobretudo na Zona da Mata assim como a pecuaacuteria leiteira na regiatildeo mais ao

Sul do estado

A produccedilatildeo cafeeira na Zona da Mata conforme Pires (2013 p 331)

ldquodesenvolveu uma tiacutepica economia voltada para a produccedilatildeo e exportaccedilatildeo de cafeacute

que a partir de meados do seacuteculo XIX vai se tornando o espaccedilo econocircmico mais

rico do estado ateacute pelo menos o final da deacutecada de 1920rdquo

Tambeacutem foi na Zona da Mata que Dulci (2007) aponta ter surgido no final

do seacuteculo XIX e iniacutecio do XX agroinduacutestrias da cana e do leite que chegaram a

liderar o mercado nacional no iniacutecio do seacuteculo XX Antes disso os engenhos

existentes nas aacutereas rurais em Minas eram rudimentares O autor menciona que

no municiacutepio de Ponte Nova foram instaladas trecircs usinas de cana de accediluacutecar com

a importaccedilatildeo de equipamentos modernos para a produccedilatildeo em escala industrial

Com as usinas chegaram os trens da empresa Leopoldina o que foi muito

importante para o desenvolvimento regional

Em relaccedilatildeo agrave agroinduacutestria do leite em Minas no mesmo periacuteodo o autor

sinaliza que ela se deu de maneira constante acompanhando a evoluccedilatildeo da

pecuaacuteria regional A primeira agroinduacutestria de produtos laacutecteos do estado

estabeleceu-se onde hoje estaacute o municiacutepio de Santos Dumont

Satildeo muitas as teses e discussotildees baseadas em documentos e arquivos

sobre a Minas Colonial e sobre as dinacircmicas produtivas e o controle poliacutetico-

econocircmico nas duas fases a mineraccedilatildeo e a ruralizaccedilatildeo Poreacutem para os

objetivos deste trabalho como jaacute sinalizado no iniacutecio deste capiacutetulo importa

saber se o decliacutenio da mineraccedilatildeo e consequente ampliaccedilatildeo da produccedilatildeo

agropecuaacuteria (considerada assim a fase da ruralizaccedilatildeo) gerou mudanccedilas nos

haacutebitos alimentares da populaccedilatildeo mineira do entorno da regiatildeo mineradora

Conhecer os haacutebitos alimentares da populaccedilatildeo o que era cultivado e que

animais eram criados nesses dois periacuteodos eacute importante para correlacionar com

as informaccedilotildees obtidas na pesquisa de campo

Nesse sentido os autores que orientam a esse respeito satildeo Frieiro

(1982) Magalhatildees (2004) Arruda (1990) Abdala (2007) Vasconcellos (1968) e

Torres (2011)

33

Temos a impressatildeo (e Gilberto Freyre e Caio Prado Juacutenior pensam igualmente assim) que o mineiro tanto na Colocircnia nos tempos de mineraccedilatildeo no Impeacuterio passada a seacuterie de crises dos primeiros tempos de mineraccedilatildeo alimentava-se bem e melhor do que a maioria dos brasileiros ao menos quanto ao peso e valor nutritivo O mineiro exige ldquosustacircnciardquo quer comida substancial e pouco liga para refinamentos complicados (TORRES 2011 p 101)

A observaccedilatildeo de Torres (2011) corrobora a de Frieiro (1982) que

sinaliza para uma alimentaccedilatildeo mais farta na fase da ruralizaccedilatildeo e segundo

Arruda (1999) a produccedilatildeo diversificada nas fazendas era uma caracteriacutestica

deste periacuteodo Os excedentes de carne suiacutena toucinho carne seca farinha de

milho farinha de mandioca rapadura aguardente oacuteleo fumo cafeacute queijos

algodatildeo em fios e tecidos ruacutesticos eram vendidos nas cidades mais proacuteximas

O que os autores citados apontam eacute que houve fartura de produtos

alimentiacutecios sem diversificaccedilatildeo entre o que se comia na fase da mineraccedilatildeo para

a fase da ruralizaccedilatildeo exceto para os mais ricos que podiam investir na

importaccedilatildeo de vinhos azeites do reino e bacalhau Magalhatildees (2004) aponta a

abundacircncia na produccedilatildeo de legumes frutas hortaliccedilas tubeacuterculos e gratildeos

produzidos nos siacutetios e fazendas proacuteximos a Vila Rica e Mariana Ateacute mesmo

nos pequenos quintais das cidades existiam hortas Muitos dos alimentos eram

itens comuns no cotidiano alimentar da populaccedilatildeo como o feijatildeo a farinha e

milho e a couve

Quanto agrave produccedilatildeo de alimentos regionaislocais notam-se principalmente legumes hortaliccedilas frutas e gratildeos produzidos por pequenos sitiantes residentes nos termos das vilas Em Vila Rica por exemplo produziam-se os seguintes gecircneros laranjas bananas quiabos couves batata-doce caraacute mandioca ovos patildees leite azeite de mamona farinha de mandioca e de milho cevada arroz feijatildeo miuacutedo e fradinho (CHAVES 1995 apud MAGALHAtildeES 2004 p 71)

Em relaccedilatildeo agrave proteiacutena animal Magalhatildees (2004) e Frieiro (1982)

apontam que os suiacutenos e as galinhas caipiras continuaram sendo a principal

fonte de consumo Do suiacuteno aleacutem da carne continuou-se a usar o toucinho a

banha focinho orelhas mocotoacutes e fressuras que tambeacutem satildeo fonte de gordura

Diferentemente da carne cujo consumo era restrito aos abastados o toucinho e

a banha eram usados por todas as classes sociais para acompanhar as

hortaliccedilas e o feijatildeo

34

O angu e o feijatildeo continuaram presentes na mesa de todos sobretudo

na do pobre14 Segundo os autores nas famiacutelias mais ricas tinha-se como

costume servir refeiccedilotildees muito fartas para as visitas mesmo que essa natildeo fosse

a realidade cotidiana inclusive com variedades de doces numa tentativa de

apagar as privaccedilotildees alimentares vivenciadas anteriormente

Saint-Hilaire em uma de suas passagens por Minas Gerais no seacuteculo

XIX relata suas percepccedilotildees sobre a comida nas aacutereas rurais

Galinha e porco satildeo as carnes que se servem mais comumente em casa dos fazendeiros da proviacutencia das Minas O feijatildeo preto forma prato indispensaacutevel na mesa do rico e esse legume constitui quase que a uacutenica iguaria do pobre Se a esse grosseiro manjar este uacuteltimo acrescenta mais alguma coisa eacute arroz ou couve ou outras ervas picadas (hellip) Como natildeo se conhece o fabrico da manteiga substitui-se-lhe a gordura que escorre do toucinho que se frita Cada conviva salpica com farinha o feijatildeo ou outros alimentos aos quais se adiciona salsa e faz-se assim uma espeacutecie de pasta (hellip) Um dos pratos favoritos dos mineiros eacute galinha cozida com quiabo mas os quiabos natildeo se comem com prazer senatildeo acompanhados de anguacute espeacutecie de polenta sem sabor Em parte alguma talvez se consuma tanto doce como na proviacutencia das Minas fazem-se doces de uma multidatildeo de coisas diferentes (hellip) Eacute muito raro encontrar vinho em casa de fazendeiros a aacutegua eacute a sua bebida ordinaacuteria (SAINT-HILAIRE 1938 p 186-187)

Na percepccedilatildeo de Magalhatildees (2004) natildeo houve alteraccedilotildees importantes

na comida mineira ao longo dos anos na regiatildeo onde se iniciou a mineraccedilatildeo

Feijatildeo farinha de milho fubaacute e arroz continuaram a ser alimentos baacutesicos

Sobre as quitandas Frieiro (1982 p 166) e Abdala (2007 p 99) citam

o consumo comum dos biscoitos de polvilho assados ou fritos broas pamonhas

brevidades roscas sequilhos bolos broinhas de fubaacute de amendoim e matildees-

bentas As quitandas eram fundamentais nas aacutereas rurais Em funccedilatildeo da

distacircncia das cidades era preciso estar prevenido para a chegada de alguma

visita e para atender agrave famiacutelia diariamente O patildeo de queijo atualmente a

quitanda quase ldquosiacutembolordquo de Minas Gerais foi introduzida apenas em iniacutecio do

seacuteculo XX Natildeo haacute uma data precisa de seu surgimento mas como os autores

apontam o queijo passou a ser produzido para aproveitar as sobras do leite

Segundo Abdala (2007) os viajantes europeus que estiveram em Minas no

seacuteculo XIX relataram a raridade de queijo e manteiga nos menus locais Para a

14 Segundo Omegna (1961 apud FRIEIRO 1982) a parcela mais pobre e livre de Minas Gerais nunca

rejeitou o angu e nem a farinha de milho preferindo-o agrave mandioca Mas o mesmo natildeo se observava em outras regiotildees do Paiacutes justamente por ser comida prioritaacuteria para os escravos e assim optavam pela farinha de mandioca Essa era uma maneira de natildeo se igualar aos escravos

35

autora a introduccedilatildeo do queijo no biscoito de polvilho dando origem ao patildeo de

queijo surgiu justamente no periacuteodo de fartura alimentar quando se utilizava o

excedente para criar diversos pratos Na regiatildeo que pesquisei o patildeo de queijo

natildeo eacute uma quitanda tradicional e raramente eacute consumida

O que se percebe ao final deste capitulo eacute que a alimentaccedilatildeo baacutesica foi

a mesma em Minas desde o periacuteodo da mineraccedilatildeo A ruralizaccedilatildeo ampliou a

produccedilatildeo de alimentos para abastecimento interno e venda do excedente houve

o incremento de algumas produccedilotildees como cafeacute leite accediluacutecar e seus derivados

mas isso natildeo representou novidade em termos de consumo Percebe-se que os

haacutebitos alimentares permaneceram ao longo dos seacuteculos XVIII XIX e pelo

menos ateacute o iniacutecio do XX Os alimentos destacados como os baacutesicos pelos

autores citados aqui satildeo aqueles que atualmente ainda satildeo encontrados nas

receitas consideradas como mais tradicionais da cozinha mineira embora muitas

e dessas receitas sugiram algumas substituiccedilotildees como oacuteleo vegetal no lugar da

banha accediluacutecar cristal no lugar da rapadura ou do melado fermento quiacutemico no

lugar do bicarbonato de soacutedio etc

No capiacutetulo 5 seraacute possiacutevel observar se esses alimentos presentes na

regiatildeo de mineraccedilatildeo em Minas Gerais satildeo ainda adotados pelas famiacutelias rurais

entrevistadas e se existem relaccedilotildees da comida consumida na ocasiatildeo da

pesquisa com a comida do passado

36

3 ALIMENTACcedilAtildeO E CULTURA PERMANEcircNCIAS E TRANSFORMACcedilOtildeES

ldquoComer natildeo envolve apenas a natureza e a cultura Situa-se entre a natureza e a cultura Participa de ambas Tem muito a ver com a primeira e tambeacutem com a segundardquo

(Paolo Rossi 2014)

Apresento neste capiacutetulo a base conceitual e argumentativa da pesquisa

e os principais autores envolvidos com as abordagens contidas neste trabalho

O item 31 tem por objetivo apontar o lugar da alimentaccedilatildeo nas principais

anaacutelises das ciecircncias sociais e da histoacuteria Basicamente trecircs disciplinas

compotildeem as discussotildees presentes neste estudo e se complementam durante o

percurso a Antropologia a Sociologia e a Histoacuteria O item 32 traz a discussatildeo

existente em torno de sistema alimentar e suas relaccedilotildees com as praacuteticas

alimentares O item 33 analisa as diferenccedilas atribuiacutedas entre alimento e comida

na abordagem cultural e simboacutelica das praacuteticas alimentares inserindo a

importacircncia social e cultural do fogo no ato alimentar as dinacircmicas de

comensalidade as praacuteticas alimentares adotadas na contemporaneidade em

suas conexotildees com o tradicional e o moderno O item 34 discute as

possibilidades de permanecircncia ou extinccedilatildeo das praacuteticas tradicionais no contexto

alimentar contemporacircneo O item 35 discute o tradicional e o moderno no

contexto das dinacircmicas alimentares no meio rural e o item 36 trata do papel

feminino nas praacuteticas alimentares na famiacutelia

31 A alimentaccedilatildeo como categoria de estudo multidisciplinar contribui-ccedilotildees da antropologia da sociologia e da histoacuteria

Em importante artigo sobre as balizas historiograacuteficas da alimentaccedilatildeo

Meneses e Carneiro (1997) destacam os enfoques das diversas aacutereas neste

campo que satildeo bioloacutegico econocircmico social cultural e filosoacutefico Importa-nos

sobretudo aquelas referecircncias das ciecircncias sociais e da histoacuteria Para aqueles

autores a antropologia eacute a que mais daacute atenccedilatildeo a este tema e eacute a responsaacutevel

pela maior quantidade de informaccedilotildees a respeito Citam como principais

contribuiccedilotildees iniciais as obras de Claude Leacutevi-Strauss Marshall Sahlins Mary

Douglas entre outros

37

Os antropoacutelogos desde o seacuteculo XIX se empenharam em desenvolver uma etnografia sistemaacutetica dos haacutebitos alimentares e em buscar interpretaacute-los culturalmente A primeira fase da antropologia caracterizou-se por um comparativismo das diferentes tradiccedilotildees culturais A anaacutelise dos tabus onde se destacam os alimentares foi desde os primoacuterdios da Antropologia Cultural um terreno feacutertil para especulaccedilotildees sobre o significado simboacutelico da alimentaccedilatildeo (MENESES CARNEIRO 1997 p 19)

O socioacutelogo e antropoacutelogo brasileiro Gilberto Freyre jaacute em 1926 em seu

ldquoManifesto Regionalistardquo discute ainda que de forma pouco aprofundada sobre

a funccedilatildeo do accediluacutecar no Brasil Mas foi com sua obra publicada em 1939 em que

trata especificamente de uma sociologia do doce ao recolher receitas que eram

guardadas a sete chaves pelas mulheres e que eram repassadas de matildees para

filhas que o autor pode considerado como o precursor do mais importante

trabalho sobre o accediluacutecar Assunto que retoma mais tarde em ldquoCasa-Grande e

Senzalardquo publicado em 1964

O papel das ciecircncias sociais principalmente a contribuiccedilatildeo da

antropologia para os estudos da alimentaccedilatildeo eacute detalhadamente tratado por

Garciacutea (2009) Este autor aponta que apesar de o tema da alimentaccedilatildeo ter sido

importante para os antropoacutelogos desde os primoacuterdios ndash que registraram em seus

cadernos de campo os modos de comer de elaborar a comida e ainda os

principais alimentos consumidos pelos grupos estudados ndash o ano de 1968 eacute

considerado como sendo o iniacutecio aproximado dos estudos voltados mais

especificamente para a antropologia da alimentaccedilatildeo ou seja quando a

abordagem da comida como cultura passa a ser analisada de forma mais

institucionalizada pela antropologia ldquoCuando se fijen de manera clara las dos

maacutes potentes aproximaciones a la Antropologiacutea de la Alimentacioacuten el

estructuralismo y el materialismordquo (p 26) Sua observaccedilatildeo coincide com o

afirmado por Meneses e Carneiro (1997 p 20) de que ldquosomente nas deacutecadas

de 1960 e 1970 na voga do estruturalismo eacute que os estudos antropoloacutegicos

sobre alimentaccedilatildeo deslancham e se define um padratildeo de anaacutelise culturalrdquo

Garciacutea (2009) justifica ainda a fixaccedilatildeo da data de 1968 por este ser o ano da

primeira publicaccedilatildeo do terceiro volume da seacuterie ldquoMitoloacutegicasrdquo de Claude Leacutevi-

Strauss As Origens dos Modos agrave Mesa

Nesta obra Leacutevi-Strauss republicou o artigo ldquoO triacircngulo culinaacuteriordquo onde

apresenta seu entendimento sobre o fato alimentar e defende que a cozinha de

38

uma sociedade eacute uma linguagem inconsciente de sua estrutura Voltaremos a

este artigo mais agrave frente Em ldquoAs origens dos modos agrave mesardquo (Mitoloacutegicas 3)

assim como em ldquoDo mel agraves cinzas (Mitoloacutegicas 2)rdquo Leacutevi-Strauss analisa o que

chama de ldquoentornos e contornosrdquo da alimentaccedilatildeo A diferenccedila eacute que em

ldquoMitoloacutegicas 3rdquo ele analisa como os modos agrave mesa o uso de receitas e os modos

de preparaccedilatildeo em diferentes povos estatildeo conectados ao lado cultural e como

esses aspectos complementam o lado bioloacutegico que eacute o processo de ingestatildeo e

digestatildeo alimentar

Na deacutecada de 1970 Claude Fischler socioacutelogo e antropoacutelogo francecircs

passa a dar ecircnfase em seus estudos ao tema da alimentaccedilatildeo e desenvolve

importante trabalho sobre o accediluacutecar e seus aspectos de efeito simboacutelico e

bioloacutegico Como jaacute visto Gilberto Freyre (1939) trabalhou esta temaacutetica e sua

influecircncia no Brasil Depois de Claude Fischler Sidney Mintz de mesma

formaccedilatildeo acadecircmica tambeacutem publicou trabalhos sobre o accediluacutecar em 1986

analisando sobretudo as relaccedilotildees de poder existentes nesse tipo de produccedilatildeo

na regiatildeo caribenha Neste contexto seu trabalho inseriu o tema da alimentaccedilatildeo

na economia poliacutetica global Mas Sidney Mintz analisou tambeacutem o poder de

atraccedilatildeo de consumo do accediluacutecar e seu uso na culinaacuteria Sobre esse tema publicou

ldquoSweetness and Power The place of sugar in modern Historyrdquo e em Portuguecircs

foi publicado em 2003 o livro ldquoO Poder amargo do accediluacutecar produtores

escravizados consumidores proletarizadosrdquo

Voltando a Claude Fischler ainda na deacutecada de 1970 organizou a

coletacircnea La nourriture ndash Pour une anthropologie bioculturelle de lrsquoalimentation

Mas eacute na deacutecada de 1990 que publica seu mais importante trabalho

Lrsquohomnivore onde discute as transformaccedilotildees ocorridas nas sociedades

ocidentais modernas no campo da alimentaccedilatildeo e seus efeitos na vida das

pessoas

Tambeacutem entre as deacutecadas de 1970 e 1990 quem se destaca neste

campo eacute o antropoacutelogo americano Marvin Harris Seus estudos no campo da

alimentaccedilatildeo enfatizam sobretudo os enigmas culturais buscando explicar as

reaccedilotildees a alguns mitos e tabus alimentares Assim suas publicaccedilotildees mais

importantes foram ldquoVacas Porcos Guerras e Bruxas Os enigmas da Culturardquo

(1978) Bueno para comer enigmas de alimentacioacuten y cultura (1985) ldquoCanibais

e Reisrdquo (1990) Sobre o tema dos tabus alimentares outras importantes

39

contribuiccedilotildees satildeo as dos antropoacutelogos Mary Douglas sobretudo com a obra

ldquoPureza e Perigordquo publicada pela primeira vez em 1966 e Marshal Sallins com

a obra ldquoCultura e Razatildeo Praacuteticardquo publicada originalmente em 1976 Mary

Douglas e Marshal Sallins tecircm uma anaacutelise para os tabus alimentares que difere

da de Marvin Harris que opta pelo determinismo ecoloacutegico para justificar a razatildeo

de alguns grupos como os judeus em natildeo comer alguns alimentos como carne

de porco por exemplo No livro ldquoVacas Porcos Guerras e Bruxas ndash o enigma

da culturardquo ele defende que a Biacuteblia e o Alcoratildeo condenaram o consumo do

porco natildeo por razotildees espirituais de pecado ou impureza mas ldquoporque a sua

criaccedilatildeo constituiacutea uma ameaccedila agrave integridade dos ecossistemas culturais e

naturais baacutesicos do Oriente Meacutediordquo (HARRIS 1978 p 39) Aleacutem disso Harris

aponta que por ter uma alimentaccedilatildeo parecida com a dos humanos ou seja

viverem soltos nos bosques e se alimentarem de castanhas frutas tubeacuterculos e

cereais os porcos representavam uma disputa por comida Jaacute Mary Douglas e

Sallins defendem que a razatildeo para o natildeo consumo de porco se daacute por razotildees

simboacutelicas e religiosas Mary Douglas em ldquoPureza e Perigordquo recorre ao livro

biacuteblico de Leviacuteticos no Velho Testamento para justificar sua percepccedilatildeo Neste

livro haacute uma recomendaccedilatildeo expliacutecita aos judeus sobre os animais que podem

e que natildeo podem ser comidos divididos entre animais limpos e animais imundos

Assim eram considerados limpos e liberados para comer dentre os

quadruacutepedes os que tem unhas fendidas e divididas em dois e que rumina O

porco por natildeo ruminar eacute considerado imundo e proibido Aleacutem disso nada mais

eacute falado a respeito do porco no livro de Leviacutetico Assim a autora defende que os

judeus cumprem o mandamento apenas por razatildeo religiosa e nada tem a ver

com a questatildeo utilitaacuteria ou da disputa pela comida como alegado por Marvin

Harris Sallins em ldquoCultura e Razatildeo Praacuteticardquo compartilha de forma semelhante

a ideia de Mary Douglas ao tratar sobre os haacutebitos alimentares relativos agrave carne

dos americanos do Norte o que seraacute detalhado mais agrave frente

Outro autor importante no campo da alimentaccedilatildeo eacute o socioacutelogo inglecircs

Stephen Mennell Segundo Meneses e Carneiro (1997) na deacutecada de 1980

Mennell buscou investigar os usos sociais da domesticaccedilatildeo da natureza pela

cultura antes mesmo de Claude Leacutevi-Strauss analisando como se datildeo os

modos que lsquocivilizam o apetitersquo e publicou ldquoAll Manners of Food Eating and Taste

in England and France from the Middle Ages to the Presentrdquo (1996) Foi Mennell

40

ainda quem desenvolveu primeiramente estudos sobre as ldquocozinhas identitaacuteriasrdquo

sobre a valorizaccedilatildeo da cozinha nacional da Inglaterra e os ldquoestilos nacionais de

comerrdquo

Contreras e Gracia (2011 p 29) sugerem como objeto para a

antropologia da alimentaccedilatildeo ldquoo conjunto de representaccedilotildees crenccedilas

conhecimentos e praacuteticas herdadas eou aprendidas que estatildeo associadas agrave

alimentaccedilatildeo e satildeo compartilhadas pelos indiviacuteduos de uma dada cultura ou de

um grupo social determinadordquo

No acircmbito da sociologia segundo Meneses e Carneiro (1997) as

questotildees de gecircnero na divisatildeo social do trabalho domeacutestico e ainda gecircnero e

comida foram os que mais atraiacuteram as pesquisas iniciais Sobre este tema

Mabel Garcia Arnaiacutez (1996) antropoacuteloga espanhola a quem recorremos em

vaacuterios momentos neste trabalho destaca em seu estudo sobre os paradoxos da

alimentaccedilatildeo contemporacircnea as importantes contribuiccedilotildees de Mennell (1996) de

Murcott (1983) Pynson (1987) e Kaplan (1980)

Meneses e Carneiro (1997 p 24) mencionam que o tema da

comensalidade tambeacutem foi evidenciado a partir da deacutecada de 1970 ldquoOs estudos

nesta aacuterea se orientaram para a refeiccedilatildeo como instituiccedilatildeo social sua natureza e

funcionamento seus iacutecones ndash como a mesardquo Mais recentemente abrange

fortemente os estudos sobre os efeitos da tecnologia alimentar que propiciou o

haacutebito de comer fora de casa e o surgimento dos Fast food Em sua obra estes

autores citam os trabalhos de Stephen Mennel (1996) Anne Murcott (1983)

Harvey Levenstein (1988) Claude Fischler (1988)

Ao falar em comensalidade natildeo podemos deixar de citar a contribuiccedilatildeo

dada por Norbert Elias (2011) sobre as transformaccedilotildees nas normas de

comportamento social incluindo os modos agrave mesa na sociedade europeia a

partir do final da Idade Meacutedia Nesta obra cuja primeira publicaccedilatildeo ocorreu em

1939 o autor nos leva a descobrir como foram reproduzidas socialmente

algumas regras de boas maneiras de conviacutevio na sociedade e que tambeacutem se

refletem na comensalidade como por exemplo natildeo comer com as matildeos natildeo

colocar os peacutes sobre a mesa como usar os talheres a mesa natildeo falar de boca

cheia entre outras regras O que pode parecer superficialmente uma descriccedilatildeo

fuacutetil sobre coacutedigos de etiqueta social eacute na verdade uma anaacutelise interessante do

quanto aquilo que parece ser natural atualmente nada tem de natural pois satildeo

41

regras que foram sendo aprendidas agrave medida que o homem foi avanccedilando nos

estaacutegios de civilizaccedilatildeo ocidental O autor nos mostra o quanto foi delicado e difiacutecil

para o homem da cultura ocidental se tornar civilizado ao longo do processo

histoacuterico pois o civilizar-se envolvia a mudanccedila ldquoobrigatoacuteriardquo de comportamento

Em seu livro O Processo Civilizador ele se refere agrave sociedade europeia mas

principalmente agrave Franccedila e agrave Alemanha

No vieacutes da sociologia e da antropologia ocorre uma mudanccedila de

interesse no campo dos estudos sobre alimentaccedilatildeo que se observa a partir da

deacutecada de 1990 segundo Meneses e Carneiro (1997 p 20) deslocando-se o

interesse dos tabus para enfocar as ldquopraacuteticas culturais nos processos de

aculturaccedilatildeo e na identidade culturalrdquo

Eacute importante destacar a observaccedilatildeo feita por Contreras e Gracia (2011)

de que tem sido cada vez maior o nuacutemero de autores contemporacircneos que natildeo

fazem distinccedilatildeo nos enfoques disciplinares entre a antropologia e a sociologia

da alimentaccedilatildeo

Ainda natildeo estaacute bem definida a sucessatildeo de paradigmas dentro da antropologia e da sociologia da alimentaccedilatildeo pois a cada uma das correntes foram vinculados trabalhos sobre diferentes aspectos alimentares sem que necessariamente se tenha produzido um questionamento ou uma invalidaccedilatildeo decisiva das aproximaccedilotildees perguntas ou respostas anteriores Poreacutem dentro desse acircmbito de estudo encontramo-nos em uma fase de tentativas e erros ainda que jaacute se comece a definir um nuacutecleo teoacuterico soacutelido que conte com um miacutenimo de generalizaccedilotildees e de hipoacuteteses que podem ser organizadas em um programa teoacuterico comum cujo nuacutecleo consiste em defender a ideia de lsquosistema alimentarrsquo sem desconsiderar contudo a diversidade de definiccedilotildees e atribuiccedilotildees que tal sistema tem recebido (CONTRERAS GRACIA 2011 p 30)

Garciacutea (2009) defende que para a antropologia da alimentaccedilatildeo o

interesse estaacute em encontrar a loacutegica do significado social e cultural da comida

revelando como ela pode classificar accedilotildees pessoas espaccedilos e tempos e

correlacionar essas classificaccedilotildees e seus significados Jaacute na sociologia da

alimentaccedilatildeo o foco estaacute no espaccedilo social da comida as transformaccedilotildees

contemporacircneas e a evoluccedilotildees da comensalidade

Outros autores contemporacircneos utilizados como referecircncia nesta

pesquisa nos campos tanto da antropologia quanto da sociologia da

alimentaccedilatildeo satildeo Jean Pierre Poulain que eacute socioacutelogo e antropoacutelogo francecircs

Esse autor conduz estudos e pesquisas sobre comida cultura e sauacutede nas

42

universidades de Toulouse (Franccedila) e Taylor (Malaacutesia) Autor de ldquoSociologias da

Alimentaccedilatildeordquo e ldquoDictionnaire des cultures alimentairesrdquo entre outros Mabel

Gracia Arnaiz eacute antropoacuteloga e pesquisadora da universidade de Rovira e Virgili

na Espanha e membro da Comissatildeo Internacional da Antropologia da

Alimentaccedilatildeo Sua linha de investigaccedilatildeo cientiacutefica envolve estudos socioculturais

da alimentaccedilatildeo sauacutede e gecircnero Autora das obras ldquoAlimentacioacuten salud y cultura

encuentros interdisciplinaresrdquo ldquoParadojas de la alimentacioacuten contemporacircneardquo e

mais recentemente em 2015 publicou ldquoComemos lo que somos Reflexiones

sobre cuerpo geacutenero y saludrdquo Tambeacutem antropoacutelogo e pesquisador na Espanha

Jesuacutes Contreras eacute diretor do ldquoObservatorio de la Alimentacioacuten - ODELA)rdquo autor

de ldquoSubsistencia ritual y poder en los Andesrdquo e ldquoAlimentacioacuten y cultura

necesidades gustos y costumbresrdquo Richard Wranglam eacute um pesquisador inglecircs

que atua na aacuterea de antropologia fiacutesica e primatologia Sua importante

contribuiccedilatildeo para os estudos da alimentaccedilatildeo eacute o livro ldquoPegando Fogordquo em que

aponta a importacircncia do fogo para a transformaccedilatildeo da comida de natureza em

cultura e para a promoccedilatildeo da sociabilidade humana Igor de Garine eacute um

antropoacutelogo francecircs que pesquisa sobre comida e tradiccedilatildeo comida e identidade

comida e industrializaccedilatildeo Autor de ldquoLes Changements des habitudes et des

politiques alimentaires en Afrique Aspects des sciences humaines naturellesrdquo e

Social Aspects of Obesity (Culture and Ecology of Food and Nutrition Por fim

Michael Pollan que eacute americano e apesar de sua importante contribuiccedilatildeo

contemporacircnea sobre comida e cultura o que o tem feito despontar na miacutedia

sobre o assunto sua formaccedilatildeo acadecircmica eacute o jornalismo Autor de ldquoO Dilema do

Oniacutevorordquo e ldquoCozinhar uma histoacuteria natural da transformaccedilatildeordquo e outros

As referecircncias de artigos de publicaccedilatildeo internacional dos referidos

autores e outros que utilizei nesta pesquisa fazem parte do banco de dados do

ldquoObservatoire Cniel des Habitudes Alimentaires15rdquo e do ldquoObservatorio de la

Alimentacioacuten (ODELA)rdquo16

Dentre os brasileiros na aacuterea da alimentaccedilatildeo e cultura abordados nesta

pesquisa aleacutem dos claacutessicos trabalhos de Gilberto Freyre e Cacircmara Cascudo

jaacute citados estatildeo os seguintes autores Renata Menasche cujas pesquisas satildeo

mais centradas na alimentaccedilatildeo e consumo no meio rural e patrimocircnio alimentar

15 Site de acesso httpwwwlemangeur-ochacomconnexion 16 Site de acesso httpwwwodelaorglang=es

43

focadas na regiatildeo sul do Brasil Desta autora encontrei avaliando o periacuteodo 2005

a 2015 26 artigos em perioacutedicos envolvendo os temas relacionados acima (como

autora e coautora) 07 deles estatildeo inscritos no portal de perioacutedicos da CAPES

e tambeacutem eacute importante citar dois livros organizados pela autora ldquoA Agricultura

Familiar agrave Mesa saberes e praacuteticas da alimentaccedilatildeordquo publicado em 2007 e

ldquoDimensotildees socioculturais da alimentaccedilatildeordquo publicado em 2012 Maria Eunice

Maciel tambeacutem pesquisa o sul do Brasil em um vieacutes mais geral da comida e

cultura menos voltado ao rural do que a pesquisadora anterior Desta autora

encontrei 08 artigos em perioacutedicos quase todos eles voltados agrave estudos no sul

do Brasil 02 deles inscritos no portal de perioacutedicos da CAPES Ellen Woortmann

pesquisadora de Brasiacutelia cujas pesquisas em alimentaccedilatildeo concentram-se

sobretudo em memoacuteria e patrimocircnio alimentar e aspectos de gecircnero e

alimentaccedilatildeo Seu artigo mais recente na aacuterea de antropologia da comida

publicado em perioacutedico eacute ldquoA comida como linguagemrdquo Carlos Alberto Doacuteria

antropoacutelogo por meio da publicaccedilatildeo de dois recentes livros ldquoFormaccedilatildeo da

Culinaacuteria Brasileirardquo e ldquoe-Boca Livrerdquo Raul Lody tambeacutem antropoacutelogo Sua

publicaccedilatildeo recente mais importante para o campo da alimentaccedilatildeo eacute ldquoBrasil Bom

de Bocardquo Seus estudos tecircm sido mais concentrados na discussatildeo de patrimocircnio

e regionalismo alimentar Jaacute o antropoacutelogo Roberto DaMatta embora natildeo

pesquise especificamente sobre antropologia e comida possui importantes

trabalhos claacutessicos sobre essa temaacutetica e os quais utilizei nesta pesquisa Outras

importantes contribuiccedilotildees brasileiras satildeo as de Mocircnica Abdala Eduardo Frieiro

e Socircnia Maria de Magalhatildees com trabalhos sobre alimentaccedilatildeo com foco em

Minas Gerais de abordagens principalmente histoacutericas No periacuteodo de 2000 a

2015 encontrei 08 artigos de autoria e coautoria de Mocircnica Abdala sobre o tema

da comida e cultura

A leitura de alguns trabalhos dos autores destacados acima foi

fundamental para minha compreensatildeo quanto agrave necessidade de relativizar o

tema da alimentaccedilatildeo conhecer as experiecircncias conduzidas por eles e

correlaciona-las com a discussatildeo pretendida na minha pesquisa As anaacutelises

conduzidas pelos autores convidam agrave reflexatildeo sobre os significados da comida

e do comer na sociedade contemporacircnea Foi possiacutevel perceber que existem

lacunas nas discussotildees sobre a antropologia e sociologia da alimentaccedilatildeo no

Brasil sobretudo no que se refere aos estudos voltados para as populaccedilotildees

44

rurais Como o Brasil eacute constituiacutedo culturalmente de vaacuterios rurais variadas

tambeacutem satildeo as relaccedilotildees simboacutelicas com a comida e merecem ampliaccedilatildeo nos

estudos para que seja possiacutevel alcanccedilar toda a sua complexidade

Eacute importante destacar que as pesquisas nas aacutereas da sociologia e da

antropologia da alimentaccedilatildeo no Brasil ainda satildeo muito recentes apesar das

tradicionais obras jaacute citadas de Gilberto Freyre e Cacircmara Cascudo Em

levantamento feito no banco de teses da CAPES e da base do curriacuteculo lattes

dos docentes citados acima foi possiacutevel verificar que a maioria dos trabalhos no

tema da antropologia e sociologia da alimentaccedilatildeo estatildeo vinculados a programas

de poacutes-graduaccedilatildeo na aacuterea de Antropologia Social As teses e dissertaccedilotildees

concluiacutedas pertencentes aos programas nos quais alguns dos pesquisadores

citados acima atuam totalizam 11 dissertaccedilotildees de mestrado e 04 teses de

doutorado iniciadas a partir de 2007 e concluiacutedas ateacute 2013

Em relaccedilatildeo agraves pesquisas mais recentes no Brasil em levantamento feito

no banco de perioacutedicos da Capes ndash ao utilizar termos de busca sobre o tema de

interesse desta pesquisa ndash encontrei as seguintes informaccedilotildees a respeito de

publicaccedilotildees no periacuteodo de 2005 a 2015 Sobre ldquoalimentaccedilatildeo e culturardquo 07

artigos Sobre ldquocomida e culturardquo 02 artigos Sobre ldquoalimentaccedilatildeo e meio ruralrdquo

08 artigos sendo que 06 deles se referem ao ldquoPrograma de Aquisiccedilatildeo de

Alimentos (PAA)rdquo que natildeo eacute objeto de interesse da minha pesquisa Sobre

ldquoalimentaccedilatildeo e consumordquo 12 artigos sendo que a maior parte estaacute relacionada

aos aspectos nutricionais e fisioloacutegicos e natildeo de abordagem antropoloacutegica ou

socioloacutegica

Para as anaacutelises referentes ao campo da alimentaccedilatildeo e mundo rural

brasileiro destacando a cultura modos de vida e a influecircncia dos sistemas

alimentares contemporacircneos no contexto das novas ruralidades os autores que

trazem importantes contribuiccedilotildees a este trabalho satildeo Maria de Nazareth Baudel

Wanderley Joseacute Graziano da Silva Alfio Brandenburg Antocircnio Cacircndido Carlos

Rodrigues Brandatildeo Joseacute de Souza Martins Seacutergio Schneider e Maria Joseacute

Carneiro

Neste capiacutetulo a aacuterea da histoacuteria desempenha papel menos central do

que a antropologia e a sociologia Interessa-nos dessa disciplina sobretudo os

registros que auxiliem a pensar a perspectiva cultural da alimentaccedilatildeo ponto

central deste trabalho

45

Dentre os autores em quem buscamos as contribuiccedilotildees nesse sentido

estatildeo Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari Nas uacuteltimas trecircs deacutecadas eles

tecircm trazido importantes contribuiccedilotildees para a compreensatildeo da histoacuteria da

alimentaccedilatildeo sobretudo a histoacuteria da alimentaccedilatildeo na Europa A obra mais

importante que resultou da junccedilatildeo dos dois trata de um volumoso livro de 885

paacuteginas organizado por eles que reuniu vaacuterios pesquisadores da aacuterea com

enfoques diferentes sobre a alimentaccedilatildeo na histoacuteria O livro ldquoA Histoacuteria da

Alimentaccedilatildeordquo que foi publicado em 1996 possui um recorte temporal dividido em

sete partes 1 Preacute-histoacuteria e primeiras civilizaccedilotildees 2 O mundo claacutessico 3 Da

antiguidade tardia agrave alta idade meacutedia 4 Os ocidentais e os outros 5 Plena e

baixa idade meacutedia 6 Da cristandade ocidental agrave Europa dos Estados 7 A eacutepoca

contemporacircnea Para a presente pesquisa interessa sobretudo a seacutetima e

uacuteltima parte que trata da alimentaccedilatildeo contemporacircnea e nela dois capiacutetulos o

que discute ldquoas transformaccedilotildees do consumo alimentarrdquo e ldquoa emergecircncia das

cozinhas regionaisrdquo Nesta obra estatildeo presentes artigos de historiadores mas

tambeacutem de antropoacutelogos e socioacutelogos da alimentaccedilatildeo

Tambeacutem pesquisei e fiz uso de registros importantes da histoacuteria da

alimentaccedilatildeo presentes na coleccedilatildeo organizada por Philippe Ariegraves e Georges

Duby ldquoHistoacuteria da Vida Privadardquo bem como da coleccedilatildeo organizada por Fernando

A Novais Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Tais coleccedilotildees foram organizadas

por diversos autores de acordo com os volumes Utilizei trabalhos histoacutericos

dessa coleccedilatildeo nas discussotildees sobre o fogo comensalidade e sociabilidades que

ocorrem no espaccedilo da cozinha

Inclui-se ainda as anaacutelises do espanhol L Jacinto Garciacutea e seu livro

ldquoUna Historia Comestible homiacutenidos cocina cultura y ecologiardquo e ainda Brillat-

Savarin em ldquoA Fisiologia do Gostordquo Recorri com frequecircncia nesta pesquisa a

Luce Giard historiadora francesa Sua importante contribuiccedilatildeo para os estudos

da alimentaccedilatildeo estaacute no v 2 da obra de Michel De Certeau ldquoA Invenccedilatildeo do

Cotidiano II ndash Morar cozinharrdquo

Daniel Roche historiador social e cultural tambeacutem francecircs escreveu

sobre a cultura material francesa do seacuteculo XVIII Sua contribuiccedilatildeo para a histoacuteria

da alimentaccedilatildeo encontra-se no livro ldquoHistoacuteria das Coisas Banaisrdquo publicado

originalmente em 1997 em que trata do nascimento do consumo nos seacuteculos

XVII ao XIX Ao descrever aspectos cotidianos modos de vida comportamentos

46

e o funcionamento das sociedades da eacutepoca que passava por transformaccedilotildees

o autor mostra a famiacutelia como a unidade fundamental de produccedilatildeo e consumo

tanto na aacuterea rural quanto na urbana e isso se refletiu nas praacuteticas e haacutebitos

alimentares Um capiacutetulo do livro eacute dedicado agrave alimentaccedilatildeo como cultura e como

necessidade fisioloacutegica em uma eacutepoca em que obter a alimentaccedilatildeo era a

principal preocupaccedilatildeo das famiacutelias

Na histoacuteria da alimentaccedilatildeo brasileira as referecircncias mais importantes

que percorremos se referem aos trabalhos do historiador e tambeacutem folclorista

Luiacutes da Cacircmara Cascudo Suas obras nesta linha satildeo Histoacuteria da Alimentaccedilatildeo

no Brasil e Antologia da Alimentaccedilatildeo no Brasil Recorremos tambeacutem agrave vasta

contribuiccedilatildeo dada por Gilberto Freyre em ldquoCasa Grande e Senzalardquo e ldquoSobrados

e Mucambosrdquo que assim como Cacircmara Cascudo continuam sendo referecircncia

no campo da histoacuteria da alimentaccedilatildeo no Brasil Importante destacar que os dois

autores natildeo eram formados em curso de histoacuteria jaacute que segundo Silva e Ferreira

(2011) os primeiros cursos superiores de Histoacuteria no Brasil datam da deacutecada

de 1930 na USP no qual Gilberto Freyre lecionava a disciplina de antropologia

Assim os trabalhos de ambos mais do que apenas registros histoacutericos

perpassam fortemente pelas anaacutelises de cunho socioantropoloacutegico

No contexto analiacutetico desta pesquisa em que importa compreender as

mudanccedilas e ou permanecircncias nos haacutebitos alimentares das famiacutelias rurais o

uso do termo ldquosistema alimentarrdquo eacute recorrente Assim importa compreender o

seu significado atribuiacutedo por especialistas na aacuterea de alimentaccedilatildeo e cultura

Passaremos a essa discussatildeo no proacuteximo toacutepico deste capiacutetulo

32 Sistema alimentar17

Poulain (2001) define sistema alimentar como sendo

Lrsquoensemble de regravegles qui reacutesulte de lrsquoorganisation sociale des conceptions relatives au plaisir alimentaire et agrave la santeacute Les modegraveles alimentaires varient drsquoun espace culturel agrave lrsquoautre et au sein drsquoune

17 Nas disciplinas voltadas aos estudos de cunho fisioloacutegico e nutricional da alimentaccedilatildeo o termo adotado

eacute ldquopadratildeo alimentarrdquo Na sociologia e na antropologia da alimentaccedilatildeo utiliza-se principalmente a expressatildeo ldquosistema alimentarrdquo sobretudo na Europa como eacute o caso de Poulain (2001 2003 2013) Contreras e Gracia (2011) Montanari (2008) e Mennell (1996) Jaacute Fischler (1995) que tambeacutem eacute europeu utiliza a expressatildeo ldquosistema culinaacuteriordquo e mais raramente ldquocozinhardquo (cozinha moderna cozinha tradicional cozinha contemporacircnea) poreacutem com o mesmo sentido que o usado pelos outros autores Sistema alimentar eacute tambeacutem utilizado pelos americanos como Harris (2011) Sahlins (2003) Mintz e Dubois (2002)

47

mecircme socieacuteteacute eacutevoluent avec le temps Cette variabiliteacute est rendue possible par le fait que les contraintes biologiques de la meacutecanique physiologique et de lrsquoexploitation des ressources de la nature pegravesent sur les mangeurs18 humains de faccedilon relativement lacircche (POULAIN 2001 p 24)

Para este autor os sistemas alimentares satildeo formados por um conjunto

de conhecimentos tecnoloacutegicos herdados e repassados de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo

que incluem o saber-fazer o gosto as regras e as etiquetas etc Esses

conhecimentos facilitam no processo de escolha dos recursos presentes num

espaccedilo natural e sua transformaccedilatildeo em alimentos para consumo na forma de

pratos atrativos a uma determinada cultura Poulain afirma que esses

conhecimentos se definem concomitantemente como sistemas de coacutedigos

simboacutelicos que retratam os valores de um grupo humano participando da

construccedilatildeo de identidades culturais Na concepccedilatildeo de Poulain (2013) nesse

sistema o alimento estaacute em movimento desde o seu universo de produccedilatildeo

agriacutecola ateacute a chegada ao consumidor sofrendo algumas transformaccedilotildees ao

longo do percurso O sistema alimentar envolve fatores que vatildeo desde os

econocircmicos ateacute os do ambiente domeacutestico quando se adquire alimentos pela

compra ou ainda por meio de cultivo proacuteprio ou criaccedilatildeo de animais ou da pesca

Em um sentido semelhante ao atribuiacutedo por Poulain (2013 e 2014)

Fischler (1979 e 1995) define como sistema culinaacuterio um conjunto de

ingredientes e teacutecnicas que satildeo empregadas na elaboraccedilatildeo de uma refeiccedilatildeo as

combinaccedilotildees e correlaccedilotildees entre os alimentos utilizados e ainda as regras que

envolvem sua escolha preparaccedilatildeo e consumo Atrelados agraves teacutecnicas e aos

ingredientes e consequentemente agraves normas que regem o processo da escolha

ao consumo dos alimentos estatildeo crenccedilas valores siacutembolos representaccedilotildees e

os haacutebitos que satildeo indicadores de cultura de uma sociedade Ou seja normas

essas que estatildeo atreladas ao valor simboacutelico envolvidos no sistema alimentar e

natildeo somente o valor de uso no sentido utilitarista que neste caso seria

secundaacuterio conforme discutido por Sahlins (2003) Afinal como afirma o proacuteprio

Sahlins haacute uma ldquorazatildeo cultural em nossos haacutebitos alimentaresrdquo

Pelas definiccedilotildees dos autores acima percebe-se que as questotildees que

envolvem a alimentaccedilatildeo ou culinaacuteria satildeo estabelecidas pelas caracteriacutesticas e

regras mais ou menos comuns adotadas por grupos de pessoas e pela

18 Termo jaacute explicado na introduccedilatildeo

48

sociedade a qual pertencem Conforme Bourdieu (2007) o gosto que iraacute formar

o haacutebito eacute construiacutedo no convivio familiar e escolar Natildeo por acaso em relaccedilatildeo

agrave comida quase sempre as preferecircncias entre os membros de uma mesma

familia satildeo semelhantes Eacute o gosto tambeacutem que classifica e distingue uma

pessoa de outra um grupo de outro Na formaccedilatildeo do gosto alimentar estatildeo

presentes diferentes aspectos socioculturais que iratildeo inteferir nas escolhas

Embora possa ocorrer o sistema alimentar de um grupo natildeo

necessariamente seraacute adotado por um outro pois ele estaacute ligado agraves questotildees

culturais que em funccedilatildeo de diversos fatores pode gerar uma rejeiccedilatildeo a

determinadas praacuteticas alimentares Um exemplo disso eacute a atribuiccedilatildeo dada a um

determinado alimento ou prato como sendo ldquoexoacuteticordquo poreacutem exoacutetico aos olhos

de quem natildeo estaacute habituado a consumi-lo

Para Helman (1994) eacute a cultura local que assume maior peso no

processo de decisotildees alimentares Eacute ela que primeiramente define as regras

alimentares cabendo-lhe assim determinar

Quem prepara e quem serve o alimento para quem quais indiviacuteduos ou grupos comem reunidos onde e em que ocasiotildees a ingestatildeo do alimento acontece a ordem em que os pratos satildeo servidos dentro de uma refeiccedilatildeo e a maneira como os indiviacuteduos comem Todos esses estaacutegios de ingestatildeo dos alimentos satildeo padronizados rigorosamente pela cultura e constituem uma parte do modo de viver consagrado por aquela comunidade (HELMAN 1994 p 48-49)

Harris (2011) ao tratar da questatildeo lembra que por ser oniacutevora a

espeacutecie humana possui capacidade de ingerir alimentos tanto de origem animal

quanto vegetal Poreacutem por razotildees de adaptabilidade fisioloacutegica alguns

alimentos satildeo descartados do cardaacutepio Jaacute outros mesmo sendo biologicamente

possiacuteveis de ingestatildeo podem ser desprezados por algumas sociedades e

apreciados por outras O autor afirma que as razotildees de apreciaccedilatildeo e rejeiccedilatildeo de

um alimento vatildeo aleacutem da razatildeo fisioloacutegica da digestatildeo Tanto Harris (2011)

quanto Leacutevi-Strauss (1983) apontam que os alimentos rejeitados por razotildees

culturais ou sociais se tornam aceitos para consumo em caso de natildeo haver mais

nada a comer ou seja em caso de fome extrema

Em sentido semelhante Garciacutea (2013) esclarece que homens e animais

tendem a ser conservadores em mateacuteria de gosto embora isso natildeo represente

uma resistecircncia absoluta a experimentaccedilotildees Para o autor a razatildeo dos animais

se daacute por instinto bioloacutegico e a do homem por questotildees culturais Como a

49

formaccedilatildeo do gosto eacute de ordem cultural tambeacutem segundo Bourdieu (2007) isso

faz sentido uma vez que o gosto alimentar apreendido no nuacutecleo familiar

estabelece tambeacutem o haacutebito de cada indiviacuteduo Um haacutebito por ser condicionado

pela cultura eacute mais difiacutecil de ser mudado mas natildeo impossiacutevel pois haacute situaccedilotildees

em que o gosto e consequentemente o haacutebito alimentar podem sofrer

mudanccedilas Essa questatildeo seraacute relativizada mais agrave frente neste trabalho

Neste sentido Garcia (2013) a esclarece que os comportamentos

culturais se formam atraveacutes dos costumes e aprendizados Em geral os seres

humanos preferem o conhecido ao novo ou exoacutetico sobretudo em se tratando

de comida Isso pode estar tanto relacionado ao tipo de alimento como agrave forma

de seu cultivo colheita preparo e armazenamento Um mesmo alimento pode

assumir diferentes sabores e aspectos dependendo da forma como eacute preparado

O peixe tanto pode ser cru na preferecircncia de algumas culturas como pode ser

frito assado ou ensopado e com adiccedilatildeo de temperos e condimentos na

preferecircncia de outras

321 Alimentos aceitos e rejeitados

Esses aspectos dos padrotildees culturais alimentares satildeo tambeacutem tratados

por Sahlins (2003) ao chamar a atenccedilatildeo para o fato de que mesmo o

determinismo cultural de uma sociedade natildeo pode deixar de considerar a

sobrevivecircncia e portanto a continuaccedilatildeo da espeacutecie como por exemplo fazer a

distinccedilatildeo entre alimentos comestiacuteveis e natildeo comestiacuteveis Mas o autor destaca

que haacute uma junccedilatildeo e por isso tambeacutem um conflito entre o aspecto utilitarista

(objetivo) e simboacutelico (subjetivo) na produccedilatildeo e no consumo de produtos Em um

dos capiacutetulos o autor trata do sistema alimentar dos americanos do Norte de

suas preferecircncias alimentares e dos tabus em relaccedilatildeo ao consumo de animais

domeacutesticos Destaca que o aspecto simboacutelico predomina sobre o de ordem

praacutetica Segundo o autor a relaccedilatildeo produtiva estabelecida pela sociedade

americana estaacute pautada no aspecto do que eacute considerado por eles como

comestiacutevel e natildeo comestiacutevel que envolve tanto a exploraccedilatildeo do meio ambiente

quanto as formas de lidar com a terra Neste caso baseado numa relaccedilatildeo em

que ldquoa carne eacute elemento central e os carboidratos e legumes satildeo apoios

perifeacutericos na dietardquo (p 171)

50

A carne como siacutembolo de ldquoforccedilardquo evoca o polo masculino de um coacutedigo social da comida o qual deve originar-se na identificaccedilatildeo indo-europeia do boi ou da riqueza crescente com a virilidade A indispensabilidade da carne como ldquoforccedilardquo e do fileacute como a siacutenteses das carnes viris permanece condiccedilatildeo baacutesica da dieta americana (SAHLINS 2003 p 171)

Segundo o autor o que determina para os americanos qual carne eacute ou

natildeo comestiacutevel eacute a relaccedilatildeo das espeacutecies com a sociedade humana Animais de

estimaccedilatildeo recebem afagos e carinho tem nome proacuteprio diferente da situaccedilatildeo

dos animais para abate Mas essa natildeo eacute uma particularidade dos americanos do

Norte Tambeacutem eacute condiccedilatildeo para outras culturas ainda que os motivos sejam

religiosos como por exemplo na Iacutendia onde o consumo da carne de bovinos eacute

evitado por razotildees religiosas do hinduiacutesmo Os judeus e muccedilulmanos tambeacutem

por motivos religiosos rejeitam a carne de porco que eacute amplamente consumida

na maior parte do ocidente Por outro lado no ocidente eacute praticamente

impensaacutevel a possibilidade de se tomar uma sopa a base de carne de cachorro

alimento relativamente comum ao paladar dos chineses e dos vietnamitas por

exemplo Isso ocorre no ocidente porque catildees satildeo animais de estimaccedilatildeo e

estabelecem relaccedilotildees muito afetivas com os seres humanos vistos como um

membro da famiacutelia conforme aponta Sahlins (2003)

Da mesma forma a carne de cavalo agrada a alguns grupos de regiotildees

francesas belgas e italianas O Brasil natildeo tem por haacutebito consumir a carne de

cavalo apesar de ser um dos maiores exportadores Em meacutedia 15 mil toneladas

por ano19 Segundo Sahlins (2003) durante a crise inflacionaacuteria meteoacuterica nos

Estados Unidos no ano de 1973 foi sugerido pelos governantes que a populaccedilatildeo

adotasse o haacutebito de consumir alimentos mais baratos poreacutem tatildeo nutritivos

quanto a carne de boi (viacutesceras rins coraccedilatildeo) Isso soou como uma afronta para

a populaccedilatildeo A rejeiccedilatildeo pelas viacutesceras se deu por razatildeo socioeconocircmica Para

boa parte da populaccedilatildeo americana comer partes menos nobres do boi seria se

aproximar socialmente de classes mais pobres ldquoA razatildeo para essa repulsa

parece pertencer agrave loacutegica semelhante que recebeu com desagrado algumas

tentativas de substituir a carne bovina por carne de cavalo durante o mesmo

periacuteodordquo (p 172) Em funccedilatildeo disso foi realizado um ato como protesto dos

ldquoapreciadores dos cavalos como animais de estimaccedilatildeordquo

19 httpgrandschefsblogspotcombr201007carne-de-cavalo-o-brasil-e-um-doshtml

51

Tambeacutem eacute exoacutetico para o ocidente o haacutebito da populaccedilatildeo chinesa em

consumir escorpiotildees ratos e uma variedade de insetos Esses alimentos foram

inseridos no cardaacutepio chinecircs em periacuteodo de crise alimentar com o objetivo de

abastecer um paiacutes extremamente populoso Atualmente continuam sendo

consumidos no entanto muito mais como atrativo agrave curiosidade de turistas do

que por necessidade de consumo

Os indiacutegenas da Ameacuterica do Sul possuem o haacutebito de comer alguns

alimentos que os natildeo iacutendios consideram exoacuteticos como por exemplo formigas

larvas de abelhas cupins lagartas besouros etc Em algumas cidades do norte

do Brasil eacute possiacutevel encontrar nas feiras misturas como farofas agrave base de formiga

sauacuteva Eacute interessante ressaltar que um alimento exoacutetico perde essa classificaccedilatildeo

a partir do momento em que passa a agradar ao paladar e a ser consumido sem

aversatildeo a ele Deixando assim de ser exoacutetico para se transformar em familiar

parafraseando DaMatta (1978) Assim o conceito de exoacutetico varia de uma

cultura a outra mas tambeacutem de uma pessoa a outra em uma mesma sociedade

Houve um tempo no Brasil em que comer formiga sauacuteva frita ou tostada

natildeo fazia parte apenas da dieta indiacutegena Relatos de viagem apontam serem

elas importante complemento num periacuteodo de escassez alimentar nas viagens

dos bandeirantes desbravando as Minas Gerais Frieiro (1982) cita documento

da viagem do Conde de Assumar Dom Pedro a Vila Rica em 1717 passando

por Satildeo Paulo quando lhe foi oferecido a ele e agrave sua comitiva formigas sauacutevas

(icaacute) torradas20

Dependendo do contexto o exoacutetico pode ser um emblema de classe e

aqui novamente se insere a argumentaccedilatildeo do gosto como diferenciaccedilatildeo ou

distinccedilatildeo de classes como discutido por Bourdieu (2007) Por exemplo o exoacutetico

considerado ldquochiquerdquo ou ldquogourmetrdquo quando se trata de atribuir status de

consumo e portanto desejado como por exemplo o caviar ou o foie gras Ao

serem aceitos por um perfil de consumidores que aceitam pagar o elevado preccedilo

desses dois produtos eles perderam o status de exoacutetico rejeitaacutevel e passou a

20 Dom Pedro e sua comitiva mais duma vez nos ermos em que pousavam quase passaram fome em

razatildeo do pouco ou quase nada que lhes ofereciam para comer Em Santos e Satildeo Paulo pequenas vilas de algumas centenas de casas o passadio natildeo foi de todo mau Comia-se comumente o que as roccedilas produziam isto eacute milho mandioca feijatildeo e algumas frutas da terra que era o habitual sustento dos paulistas natildeo se comendo carne senatildeo em alguns dias do ano Penetrando no interior com alguns dias de jornada soacute encontraram para cear no rancho dum paulista meio macaco e umas poucas formigas O Conde agradeceu a oferta e comeu (FRIEIRO 1982 p 62)

52

ser visto como um exoacutetico aceitaacutevel assim como jaacute ocorre em boa parte do paiacutes

em relaccedilatildeo agraves comidas japonesas italianas indianas etc que se popularizaram

e jaacute natildeo satildeo mais estranhas ao paladar de boa parte da populaccedilatildeo das aacutereas

urbanas No entanto o exoacutetico popular raramente eacute desejado como a carne de

rato por exemplo consumida pelos chineses mas que no Brasil permanece

sendo rejeitada

Nessa discussatildeo estaacute presente a necessidade de relativizaccedilatildeo da

questatildeo do gosto e do haacutebito alimentar jaacute que apesar de tenderem a ser

tradicionais eacute possiacutevel muda-los ou incorporar novas percepccedilotildees por meio de

significados simboacutelicos (status curiosidade pelo novo para se inserir num

determinado grupo de interesse)

Garciacutea (2009) assim como Harris (2011) estabelece que a correlaccedilatildeo

entre alimentaccedilatildeo e cultura ocorre devido ao fator fisioloacutegico da atividade de

comer estar condicionado culturalmente e isso envolve desde as maneiras de

obtenccedilatildeo dos alimentos ateacute os modos de consumi-los Assim para Garcia

(2009) a escolha dos alimentos se daacute por fatores primeiramente de ordem

cultural e social e em segundo lugar pelas suas qualidades nutricionais e pelo

aspecto econocircmico Nesse sentido o alimento escolhido precisa ser ldquobom para

comerrdquo fazendo uso da expressatildeo utilizada por Harris (2011) ldquoLos alimentos

preferidos (buenos para comer) son aquellos que presentan uma relacioacuten de

costes y benefiacutecios praacutecticos maacutes favorables que los alimentos que se evitan

(malos para comer)rdquo (HARRIS 2011 p 17)

3211 Haacutebitos alimentares orientados por costumes e tradiccedilotildees

Retomando a discussatildeo de Harris (2011) o autor explica que os

costumes culturais e as tradiccedilotildees alimentares de cada sociedade eacute que orientam

os haacutebitos alimentares e essa diversidade deve ser respeitada e valorizada por

aqueles que estudam o tema da alimentaccedilatildeo ldquoComo antropoacutelogo tambieacuten

suscribo el relativismo cultural em mateacuteria de gustos culinarios no se debe

ridiculizar ni condenar los haacutebitos alimentarios por el mero hecho de ser

diferentesrdquo (HARRIS 2011 p 15)

Essa defesa tambeacutem foi feita por Mary Douglas e Ravindra Khare em

1979 quando escreveram uma apresentaccedilatildeo sobre a antropologia da

53

alimentaccedilatildeo no importante perioacutedico ldquoSocial Science Informationrdquo Nesse artigo

as autoras informaram sobre a criaccedilatildeo da ldquocomisioacuten internacional sobre la

antropologia de la alimentacioacutenrdquo A criaccedilatildeo da comissatildeo ocorreu em funccedilatildeo da

necessidade de se discutir as poliacuteticas e estrateacutegias que estavam sendo

desenvolvidas e implementadas nas situaccedilotildees de fome aguda eou crocircnica em

algumas naccedilotildees naquela eacutepoca Pontuaram neste artigo aspectos importantes

que devem ser observados na implantaccedilatildeo de poliacuteticas alimentares para

solucionar a fome Estes aspectos dizem respeito agrave necessidade de se planejar

a soluccedilatildeo de problemas que acometem paiacuteses em situaccedilatildeo de fome que satildeo as

questotildees que envolvem poliacutetica sanitaacuteria e higiene conhecimento de teacutecnicas de

armazenamento e distribuiccedilatildeo mas chamaram a atenccedilatildeo de forma enfaacutetica para

o respeito aos aspectos culturais ldquoHa de basarse em el anaacutelisis de la sociedade

La conviccioacuten de fondo es que los patrones locales de seleccioacuten de alimentos no

pueden ser impuestos sino que dependen de la vida domeacutestica de las ideias

locales sobre processos fisioloacutegicos de divisioacuten de trabajo de horaacuteriordquo

(DOUGLAS KHARE 1979 apud GARCIacuteA 2009 p 30)

Essa argumentaccedilatildeo deixa claro o entendimento diferenciado das autoras

sobre a necessidade da interaccedilatildeo dos antropoacutelogos da alimentaccedilatildeo com

profissionais de outras aacutereas nutricionistas ecologistas economistas

agrocircnomos poliacuteticos e outros atuantes em poliacuteticas sobre o combate agrave fome

para que a cultura alimentar seja respeitada nas intervenccedilotildees sociais Questatildeo

tambeacutem defendida por Valente (2003) ao criticar a limitaccedilatildeo que existe nos

trabalhos isolados em cada especialidade e ao defender a interdisciplinaridade

na elaboraccedilatildeo de projetos porque feitos de forma isolada cada profissional

tende a ver o problema da fome com suas proacuteprias lentes desprezando outras

possibilidades

O profissional da sauacutede ldquoenxergardquo desnutriccedilatildeo e doenccedila e propotildee vacinaccedilatildeo saneamento aleitamento materno etc O agrocircnomo ldquodiagnosticardquo falta de alimentos e propotildee maior produccedilatildeo de alimentos ajuda alimentar etc O educador vecirc ldquoignoracircncia e haacutebitos alimentares inadequadosrdquo e propotildee educaccedilatildeo alimentar Os economistas claacutessicos ldquoidentificamrdquo maacute distribuiccedilatildeo de alimentos e propotildeem uma melhor poliacutetica fiscal geraccedilatildeo de emprego e renda etc Os planejadores diagnosticam ldquofalta de coordenaccedilatildeordquo e propotildeem a criaccedilatildeo de conselhos de alimentaccedilatildeo e nutriccedilatildeo e capacitaccedilatildeo (VALENTE 2003 p 52)

Recentemente a FAOONU (2013) apresentou um projeto em que

propotildee a introduccedilatildeo de insetos como alimentos no combate agrave fome Como

54

justificativa informou que aproximadamente dois bilhotildees de pessoas no mundo

jaacute se alimentam de insetos como besouros lagartas abelhas vespas formigas

gafanhotos grilos cupins libeacutelulas e moscas Agrave praacutetica de se comer insetos da-

se o nome de entomofagia segundo a FAOONU (2013) As justificativas da FAO

estatildeo relacionadas a aspectos de sauacutede pois satildeo altamente nutritivos e ricos em

proteina podendo substituir facilmente em termos nutricionais as carnes de

porco de boi de frango e tambeacutem de peixe aspectos ambientais pois sua

produccedilatildeo gera baixo impacto ao meio ambiente e aspectos relacionados a

fatores econocircmicos e sociais Segundo este oacutergatildeo a criaccedilatildeo de insetos pode vir

a se tornar uma opccedilatildeo de investimento com pouco capital e pode ser importante

fonte de renda e de consumo para camadas mais pobres e populaccedilatildeo sem

acesso agrave propriedade da terra aleacutem de ser uma atividade que natildeo necessita de

tecnologia sofisticada

Sobre isso eacute importante de tecer algumas observaccedilotildees criacuteticas ao

considerar que tal projeto representa um desafio ao propor a inserccedilatildeo de insetos

na dieta em nivel global o que significa tornaacute-la atrativa tambeacutem naquelas

culturas onde satildeo atualmente rejeitadas Todos esses aspectos conduzem a

uma reflexatildeo sobre outro tipo de escolha alimentar que estaacute relacionada agrave

questatildeo de ordem social e econocircmica Ou seja estaacute em pauta se as pessoas

que sofrem de fome aguda ou crocircnica satildeo obrigadas a se adaptar ao exoacutetico se

assim lhes for oferecido em funccedilatildeo de uma poliacutetica puacuteblica ou se isso lhes seria

oferecido como escolha passiacutevel de adoccedilatildeo ou de rejeiccedilatildeo

Tal reflexatildeo remete agraves observaccedilotildees sobre direito agrave liberdade na forma

como eacute tratada por Sen (2000 p 23) ldquoa privaccedilatildeo de liberdade econocircmica pode

gerar a privaccedilatildeo de liberdade social assim como a privaccedilatildeo de liberdade social

da mesma forma pode gerar a liberdade econocircmicardquo O que implica em perda

de acesso e do direito de escolhas inclusive alimentares Portanto acredita-se

que caso esse tipo de alimentaccedilatildeo seja imposta o projeto vai no sentido

contraacuterio ao proposto pela comissatildeo de antropologia da alimentaccedilatildeo citado

acima por Douglas e Khare (1979 apud GARCIacuteA 2009) A imposiccedilatildeo de um

determinado alimento ou o convencimento em adota-lo pode tambeacutem ocorrer

de forma velada utilizando-se campanhas com os grupos locais e ou atraveacutes

da miacutedia como ocorre em relaccedilatildeo a vaacuterios alimentos que passam a ser

55

consumidos sobretudo pelas crianccedilas agrave partir de campanhas publictaacuterias

muitas vezes utilizando-se argumentos apelativos

Certamente essa proposta recente poderaacute ter o debate ampliado nos

proacuteximos anos O que nos interessa aqui eacute sobretudo chamar a atenccedilatildeo para a

inserccedilatildeo de novas praacuteticas alimentares na contemporaneidade Praacuteticas essas

que se mesclam num processo de ampliaccedilatildeo do multiculturalismo alimentar

O proacuteximo item trata da discussatildeo sobre a percepccedilatildeo do alimento como

caracteriacutestica cultural e ainda sobre os reflexos do sistema alimentar

contemporacircneo na vida dos comedores

33 Alimento comida e cultura

Aleacutem de ser uma atitude bioloacutegica a alimentaccedilatildeo assume tambeacutem um

comportamento cultural Discussatildeo jaacute iniciada nos itens anteriores

Bioloacutegica por uma questatildeo de sobrevivecircncia sendo um fator

insubstituiacutevel para a manutenccedilatildeo da vida e condiccedilatildeo sine qua non para todos os

seres humanos Relaciona-se diretamente agrave vitalidade do indiviacuteduo agrave

necessidade fisioloacutegica de ingerir nutrientes capazes de manter o corpo em

funcionamento sendo sob esse aspecto um comportamento relativo agrave natureza

humana O que ingerir e as quantidades a serem ingeridas para suprir as

necessidades variam de uma pessoa para outra de acordo com fatores como

idade altura peso tipo de atividade quadro cliacutenico entre outros

Corresponder a uma atitude natural e de caraacuteter instintivo natildeo torna

necessariamente o ato de alimentar-se como algo consciente sob o aspecto

nutricional porque nem todos os indiviacuteduos conhecem a composiccedilatildeo dos

alimentos e aqueles que conhecem nem sempre pensam a respeito disso ao

realizar as refeiccedilotildees cotidianas aspecto que foi tratado por Harris (2011) e

Garciacutea (2009)

O termo ldquoalimentordquo surgiu segundo Poulain (2013) por volta do ano

1120 mas o seu significado atual somente foi utilizado a partir do seacuteculo XVI

quando passou a substituir a expressatildeo ldquocarnerdquo e esta uacuteltima passou a se referir

apenas agrave carne tal qual a conhecemos ou seja a dos animais comestiacuteveis O

autor explica que anteriormente a expressatildeo ldquocarnerdquo era utilizada para se referir

a tudo o que era bom para manter a vida fossem alimentos caacuterneos ou natildeo

56

Para este autor um alimento deve possuir essas quatro qualidades nutricionais

organoleacutepticas higiecircnicas e simboacutelicas Sobre as simboacutelicas o autor destaca

Para ser um alimento aleacutem das trecircs primeiras caracteriacutesticas de qualidade um produto natural deve poder ser o objeto de projeccedilotildees de significados por parte do comedor Ele deve poder tornar-se significativo inscrever-se numa rede de comunicaccedilotildees numa constelaccedilatildeo imaginaacuteria numa visatildeo de mundo (POULAIN 2013 p 240)

De Garine (1987 p 4) ao resgatar o pensamento de Margaret Mead

destaca que as escolhas alimentares dos seres humanos estatildeo relacionadas agraves

possibilidades de alimentos disponibilizados pelo meio e ao potencial teacutecnico que

possuem

La supervivencia de un grupo humano exige por supuesto que su reacutegimen alimenticio satisfaga las necessidades nutritivas No obstante el nivel de satisfaccioacuten de estas necessidades cuya definicioacuten sigue siendo controvertida variacutea cualitativa y cuantitativamente de una sociedad a otra Tambieacuten cambia en el interior de cada una seguacuten la categoriacutea de edad el sexo el niacutevel econoacutemico y otros criterios (DE GARINE 1987 p 4)

De acordo com Contreras e Gracia (2011) e Woortmann (2007) as

escolhas alimentares que satildeo as formadoras dos haacutebitos se constituem em uma

parte da totalidade cultural Para Contreras e Gracia (2011) pode-se afirmar que

ldquosomos o que comemosrdquo21 tanto no aspecto fisioloacutegico como tambeacutem no

espiritual ao ldquoincorporarrdquo psicossocialmente os elementos culturais daquilo que

ingerimos que pode ser desde elementos ligados agrave espiritualidade como

tambeacutem agrave memoacuteria afetiva Pela mesma razatildeo defendem que ldquocomemos o que

somosrdquo

Comemos aquilo que nos faz bem ingerimos alimentos que satildeo atrativos para os nossos sentidos e nos proporcionam prazer enchemos a cesta de compras de produtos que estatildeo no mercado e na feira e nos satildeo permitidos por nosso orccedilamento servimos ou nos satildeo servidas refeiccedilotildees de acordo com nossas caracteriacutesticas se somos homens ou mulheres crianccedilas ou adultos pobres ou ricos E escolhemos ou recusamos alimentos com base em nossas experiecircncias diaacuterias e em nossas ideias dieteacuteticas religiosas ou filosoacuteficas (CONTRERAS GRACIA 2011 p 16)

21 Conhecido aforismo proferido pelo filoacutesofo alematildeo Ludwig Feuerbach na obra ldquoO misteacuterio do sacrifiacutecio

ou o homem eacute o que ele comerdquo (1862) Tambeacutem Brillat-Savarin escreveu em seu tratado sobre lsquoA Fisiologia do Gostorsquo ldquoDize-me o que comes e te direi quem eacutesrdquo (SAVARIN-BRILLAT 1995 p 15) Os dois aforismos satildeo muito utilizados por aqueles que escrevem sobre alimentaccedilatildeo

57

Em uma percepccedilatildeo semelhante Woortmann (2007) em estudos sobre

dimensotildees sociais da comida entre os camponeses defende a lsquocomidarsquo para

este grupo como sendo uma ldquocategoria cultural nucleante que se articula a

lsquotrabalhorsquo e a lsquoterrarsquo e que as escolhas alimentares que incluem alimentos

proibidos permitidos e os preferidos estatildeo ligadas agraves dimensotildees de gecircnero de

memoacuteria de famiacutelia de identidade de religiatildeo etc

DaMatta (2001 p 56) defende que ldquoo jeito de comer define natildeo soacute aquilo

que eacute ingerido como tambeacutem aquele que ingererdquo Pode-se afirmar portanto que

comer eacute mais do que apenas um ato de sobrevivecircncia eacute tambeacutem um

comportamento simboacutelico e cultural

A diferenccedila entre o alimento como fator bioloacutegico e o alimento como

cultura eacute discutida principalmente por Montanari (2008) Delormier et al (2009)

DaMatta (2001 e 1987) Maciel (2001) Ishige (1987) Silva Mello (1956) Crotty

(1993) De Garine (1987) Cacircmara Cascudo (2004) e Woortmann (1985)

Crotty (1993 apud DELORMIER et al 2009) defende que a praacutetica

alimentar abrange duas acepccedilotildees Aquela posterior agrave ingestatildeo do alimento e que

estaacute relacionada ao universo da biologia (fisiologia e bioquiacutemica) e aquela

anterior agrave ingestatildeo Este uacuteltimo estaacute relacionado agraves questotildees culturais e sociais

ou seja agrave natureza social do comer Segundo a autora no campo da disciplina

da nutriccedilatildeo da-se pouco valor a este uacuteltimo aspecto ateacute mesmo devido aos seus

objetivos teacutecnico-cientiacuteficos Concordando com a percepccedilatildeo de Crotty (1993)

Delormier et al (2009) defendem que natildeo considerar os aspectos sociais e

culturais no campo de interesse representa de certa forma uma limitaccedilatildeo a

qualquer disciplina Estes autores tambeacutem analisam que o processo de escolha

alimentar na maior parte das vezes natildeo se daacute primeiramente pela opccedilatildeo

nutricional mas sim pelas influecircncias do conviacutevio social cotidiano que podem

estar presentes nas relaccedilotildees familiares mas tambeacutem no local de trabalho na

escola e em outros locais de convivecircncia que permitem trocas e ajudam a moldar

as escolhas alimentares dos indiviacuteduos

A atribuiccedilatildeo de status simboacutelico dado ao alimento e ao ato de comer eacute

definida segundo alguns autores pela diferenccedila semacircntica entre ldquocomidardquo e

ldquoalimentordquo DaMatta (1987) ao estudar a comida brasileira defende que toda

substacircncia nutritiva eacute um alimento mas nem todo alimento eacute comida Alimento

aponta o autor eacute universal e geral eacute o que o indiviacuteduo ingere para se manter

58

vivo jaacute a comida ajuda a situar uma identidade e definir um grupo uma classe

uma pessoa ldquoTemos o alimento e temos a comida Comida natildeo eacute apenas uma

substacircncia alimentar mas eacute tambeacutem um modo um estilo e um jeito de alimentar-

serdquo (DAMATTA 2001 p 56) Em uma aproximaccedilatildeo a DaMatta (1987)

Woortmann (1985) aponta ldquocomidardquo como sendo o oposto de mantimento

embora derive dele Pois comida eacute a transformaccedilatildeo do mantimento atraveacutes da

culinaacuteria

Neste sentido comer proporciona uma relaccedilatildeo de intimidade com o ser

humano pois haacute ainda o investimento psicossocial no processo de escolha dos

alimentos O proacuteprio processo de ingerir demonstra a intimidade existente entre

a comida e o corpo considerando que trata daquilo que segundo Mintz (2001

p 31) ldquoeacute colocado para dentro do corpordquo O autor defende que ldquonenhum outro

comportamento natildeo automaacutetico se liga de modo tatildeo iacutentimo agrave nossa

sobrevivecircnciardquo Corroborando esse pensamento Cacircmara Cascudo (2004 p

348) defende que eacute ldquoinuacutetil pensar que o alimento contenha apenas es elementos

indispensaacuteveis agrave nutriccedilatildeo Conteacutem substacircncias imponderaacuteveis e decisivas para

o espiacuterito alegria disposiccedilatildeo criadora bom humorrdquo

Maciel (2001) tambeacutem compartilha da ideia de diferenciaccedilatildeo entre

ldquocomidardquo e ldquoalimentordquo ao reconhecer a junccedilatildeo entre natureza e cultura quando

se trata de alimentaccedilatildeo humana pois poucas horas apoacutes o nascimento

instintivamente a crianccedila chora em busca pelo leite materno Poreacutem a

amamentaccedilatildeo em humanos eacute um ato tambeacutem cultural considerando que o

receacutem-nascido ao ser amamentado experimenta a sensaccedilatildeo de aconchego

favorecendo o viacutenculo entre matildee e filho e ainda o prazer de comer A crianccedila

gosta do sabor do leite e natildeo o rejeita O leite eacute assim alimento e comida ndash

natureza e cultura22

Comida eacute assim o alimento transformado pelas representaccedilotildees sociais

e culturais Eacute o que sugere tambeacutem Montanari (2008) Para este autor

diferentemente das outras espeacutecies animais o homem aproveita os alimentos

que encontra na natureza mas isso natildeo o impede de querer tambeacutem criar a

proacutepria comida usando esses alimentos baacutesicos encontrados mas

transformando-os pelo uso do fogo e uso das praacuteticas tecnoloacutegicas que se

22 Silva Mello (1956) Sandre-Pereira (2012) Mead (1969) e Bosi Machado (2005) satildeo outros autores que

discutem mais profundamente a questatildeo sobre amamentaccedilatildeo e cultura

59

desenvolvem nas cozinhas ldquoOs valores de base do sistema alimentar se definem

como resultado e representaccedilatildeo de processos culturais que preveem a

domesticaccedilatildeo a transformaccedilatildeo e a reinterpretaccedilatildeo da naturezardquo (p 15) O

consumo dos alimentos tambeacutem eacute tratado como cultura pelo autor uma vez que

o homem escolhe o que comer baseado em criteacuterios de ordem econocircmica

nutricional preferecircncias mas tambeacutem em simbologias atribuiacutedas ao alimento

portanto comida Por essas razotildees ldquoa comida se apresenta como elemento

decisivo da identidade humana e um dos mais eficazes instrumentos para

comunica-lardquo (p 16) A natureza produz os alimentos mas a cultura faz surgir

coacutedigos importantes como por exemplo as diferentes opccedilotildees de cardaacutepios as

receitas os haacutebitos que por sua vez se relacionam ao paladar ao prazer

relacionado agraves propriedades organoleacutepticas dos alimentos e sobretudo ao

prazer da degustaccedilatildeo

331 A importacircncia social e cultural do uso do fogo e sua relaccedilatildeo com a comensalidade

O valor cultural do alimento se fortalece a partir da descoberta do fogo e

do iniacutecio do processo de cozimento dos alimentos Os pesquisadores das

Ciecircncias Sociais que primeiramente deram ecircnfase ao papel fundamental do fogo

na transformaccedilatildeo do alimento atribuindo-lhe assim uma funccedilatildeo cultural para

aleacutem da bioloacutegica foram Claude Leacutevi-Strauss Jean Anthelme Brillat-Savarin

Richard Wrangham e Massimo Montanari

Segundo Montanari (2008) para os seres humanos a comida eacute cultura

e natildeo apenas pura natureza devido agrave adoccedilatildeo ndash como parte essencial de suas

teacutecnicas ndash dos modos de produccedilatildeo de preparaccedilatildeo e de consumo de alimentos

bem como o conhecimento sobre plantas proacuteprias para consumo Para o autor

o uso do fogo eacute fundamental na transformaccedilatildeo do alimento bruto em produto

cultural em comida Referente agrave esta percepccedilatildeo Leacutevi Strauss discute em ldquoO Cru

e o Cozidordquo como o uso do fogo permitiu de certa forma o homem passar do

estado da natureza ndash ao se referir a ingestatildeo do alimento de caccedila ou coleta na

forma crua ndash para o estado da cultura a partir da transformaccedilatildeo do alimento em

cozido Numa analogia da linguagem verbal dos grupos em seu artigo

denominado ldquoO Triacircngulo Culinaacuteriordquo o autor propotildee explicar a relaccedilatildeo natureza

60

ndash cultura com a linguagem da comida conferindo status de linguagem universal

agrave comida ldquoassim como natildeo existe sociedade sem linguagem natildeo existe

nenhuma que de um modo ou de outro natildeo cozinhe pelo menos alguns de seus

alimentosrdquo (LEacuteVI-STRAUSS 1968 p 25) O Triacircngulo culinaacuterio proposto pelo

antropoacutelogo se forma pelo cru pelo cozido (assado e fervido) e pelo apodrecido

Estaacute claro que em relaccedilatildeo agrave cozinha o cru constitui o polo natildeo marcado e que os dois outros o satildeo acentuadamente mas em direccedilotildees opostas com efeito o cozido eacute uma transformaccedilatildeo cultural do cru enquanto que o apodrecido eacute uma transformaccedilatildeo cultural dele Subjacente ao triacircngulo primordial haacute portanto uma dupla oposiccedilatildeo entre elaboradonatildeo elaborado de um lado e entre culturanatureza de outro Sem duacutevida alguma estas noccedilotildees constituem formas vazias nada nos ensinam sobre a cozinha de tal ou tal sociedade particular uma vez que apenas a observaccedilatildeo pode nos dizer o que cada um entende por ldquocrurdquo ldquocozidordquo e ldquoapodrecidordquo e uma vez que pode se supor que natildeo seraacute a mesma coisa para todas (LEacuteVI-STRAUSS 1968 p 25)

Em uma escala de relevacircncia cultural o cru estaacute na base mais simples

da escala na sequecircncia viria o assado ocupando segunda posiccedilatildeo pois

necessita apenas do fogo Os mais elaborados satildeo assim fervidos ou

ensopados que por necessitar de maior envolvimento humano e de uma vasilha

com aacutegua estando num patamar de elaboraccedilatildeo mais complexo e portanto

numa escala de maior relevacircncia cultural

Apoacutes Leacutevi-Strauss que analisou a mitologia dos povos ameriacutendios e seu

ldquomundordquo culinaacuterio buscando traduzir entre outras questotildees os mitos sobre a

origem do fogo a partir da representaccedilatildeo desse grupo surgiram outros estudos

destacando a importacircncia do fogo na praacutetica de cozinhar Um desses estudos

recentes eacute do antropoacutelogo Wrangham (2010) que tambeacutem defende a descoberta

do fogo e o cozimento como sendo definidores da humanidade e responsaacutevel

por diferenciar os humanos dos macacos originando o gecircnero Homo

Semelhante afirmaccedilatildeo eacute feita por Garciacutea (2013)

La conquista del fuego supuso (de manera metafoacuterica) la separacioacuten definitiva del mundo de los seres vivos en dos grupos de un lado quedaron los hombres de otro los demaacutes animales El fuego nos transformoacute em humanos La domesticacioacuten del fuego supuso en definitiva un impulso decisivo en la historia humana un impulso fecundador que permitioacute que se produjeran nuevos avances que a su vez abrieron la viacutea a otros progresos generando una reaccioacuten en cadena que ha desembocado en el complejo y tecnificado mundo actual (GARCIacuteA 2013 p 167)

61

Cozinhar aumentou o valor da comida Assim o uso do fogo alterou

fisicamente o corpo humano reduzindo o aparelho digestivo e aumentando o

tamanho do ceacuterebro mas tambeacutem alterando o uso do tempo e a vida social O

impacto recaiu ainda sobre as relaccedilotildees com a natureza que conforme

(WRANGHAM 2010 p 7) ldquotransformou-nos em consumidores de energia

externa e assim criou um organismo com uma nova relaccedilatildeo com a natureza

dependente de combustiacutevelrdquo

O valor cultural do fogo na transformaccedilatildeo do alimento eacute tatildeo claro que

conforme aponta Leach (1970 apud WRANGHAM 2010 p 15) ldquoAs pessoas

natildeo precisam cozer sua comida elas o fazem por razotildees simboacutelicas para

mostrar que satildeo homens e natildeo animaisrdquo Afinal somos os uacutenicos animais

capazes de cozinhar o proacuteprio alimento

Por outro lado natildeo se pode afirmar que ingerir alimento cru natildeo possua

caracteriacutestica cultural pois como argumenta Giard (2012 p 232) ldquoMesmo cru e

colhido diretamente da aacutervore o fruto jaacute eacute um alimento culturalizado antes de

qualquer preparaccedilatildeo e pelo simples fato de ser tido como comestiacutevel rdquo Para a

autora a noccedilatildeo de alimento comestiacutevel iraacute variar de um grupo a outro ou seja

eacute definido pela cultura questotildees que vimos anteriormente neste capiacutetulo

Haacute outro fator muito importante a se destacar o qual se pode atribuir agrave

descoberta do fogo que eacute o fato de ter propiciado agraves pessoas e aos grupos

juntarem-se em torno dele para se aquecer mas tambeacutem para preparar a

comida distribui-la e ingeri-la Facilitou-se assim o estabelecimento de relaccedilotildees

de comensalidade23 que com o tempo foram se tornando encontros cotidianos e

transformando-se em uma atividade socializadora Conforme argumenta Fladrin

e Montanari (1998) independentemente da forma e das diferenccedilas nas normas

de comportamento existentes em cada sociedade o fato eacute que ldquoa comensalidade

eacute percebida como um elemento lsquofundadorrsquo da civilizaccedilatildeo humana em seu

processo de criaccedilatildeordquo (FLANDRIN MONTANARI 1998 p 109) e para Carneiro

(2003) a comensalidade se constitui em ldquoum complexo sistema simboacutelico de

23 Etimologicamente comensalidade deriva do latim ldquocomensalerdquo Accedilatildeo de comer junto na mesma mesa

Com ldquojuntordquo e Mensa ldquomesardquo Implica em partilhar do mesmo momento e local das refeiccedilotildees Para Poulain (2013) a comensalidade estabelece e reforccedila a sociabilidade ldquoEacute pela cozinha e pelas maneiras a mesa que se produzem as aprendizagens sociais mais fundamentais e que uma sociedade transmite e permite a interiorizaccedilatildeo de seus valores A alimentaccedilatildeo eacute uma das formas de se tecer e se manter os viacutenculos sociaisrdquo (POULAIN 2013 p 182)

62

significados sociais sexuais poliacuteticos religiosos eacuteticos esteacuteticos etc

(CARNEIRO 2003 p 2)

Ao redor do fogo eacute possiacutevel se aquecer preparar os alimentos e a

comida mas tambeacutem estabelecer o diaacutelogo Segundo Garciacutea (2013) nos

primoacuterdios da humanidade os encontros diaacuterios dos grupos se davam em torno

do fogo para trocar experiecircncias do dia e traccedilar estrateacutegias de caccedila por exemplo

Para Wrangham (2010) o advento do fogo mudou a maneira de nossos

ancestrais se relacionarem Passava-se mais tempo junto se aquecendo e

alimentando-se em grupo No volume I da primeira obra dirigida por Philippe

Ariegraves e Georges Duby (1990) Histoacuteria da Vida Privada a importacircncia do fogo eacute

destacada logo no iniacutecio do capiacutetulo de autoria de Yvon Theacutebert que trata da

vida privada e da arquitetura domeacutestica na Aacutefrica Romana Nas habitaccedilotildees natildeo

havia chamineacute nem fogotildees e sim lareiras ldquocuja fumaccedila saiacutea por um buraco no

teto e constituiacutea paradoxalmente um dos celebrados prazeres da rude existecircncia

rural quando a neve cobria os camposrdquo (THEacuteBERT 1990 p 303)

Segundo Flandrin e Montanari (1998) o uso do fogo permitiu ao homem

alimentar-se em conjunto inicialmente ao seu redor em aacutereas externas e com o

passar dos anos com a criaccedilatildeo do espaccedilo social alimentar nos ambientes

domeacutesticos (a cozinha e a sala de jantar) e na sequecircncia com a criaccedilatildeo de

espaccedilos externos agraves residecircncias (os restaurantes lanchonetes etc) Assim a

comida que eacute o alimento transformado pela cultura passa a possuir tambeacutem a

funccedilatildeo agregadora para os seres humanos A essa funccedilatildeo denomina-se de

comensalidade que tem como significado a capacidade de estabelecer relaccedilotildees

de sociabilidade importantes pois implica em reunir as pessoas em torno da

mesa Ou seja enquanto come o grupo tem tambeacutem a oportunidade de dialogar

e trocar experiecircncias do cotidiano

Para Fischler (2011) a comensalidade eacute uma das caracteriacutesticas mais

significantes no que se refere agrave sociabilidade humana relacionando-se natildeo

apenas agrave ingestatildeo de alimentos mas tambeacutem aos modos do comer envolvendo

haacutebitos culturais atos simboacutelicos organizaccedilatildeo social aleacutem do compartilhamento

de experiecircncias e valores Nesse sentido Woortmann (1985) esclarece que na

cultura brasileira a refeiccedilatildeo eacute considerada um ato social e que portanto deve

ser feita em grupo para ser percebida efetivamente como uma refeiccedilatildeo Tambeacutem

em nossa cultura segundo o autor criamos significados diferentes para essa

63

accedilatildeo como comer cotidianamente e comer em eventos especiais comer em

casa e comer fora de casa

O caraacuteter simboacutelico-ritual do comer se expressa claramente no haacutebito de convidar pessoas para jantar em nossa casa no ldquojantar forardquo em determinadas ocasiotildees ou no ldquoalmoccedilo de domingordquo Nessas e em outras ocasiotildees anaacutelogas haacute mais em jogo que necessidades nutricionais Natildeo convidamos pessoas para jantar em nossa casa para alimentaacute-las enquanto corpos bioloacutegicos mas para alimentar e reproduzir relaccedilotildees sociais isto eacute para reproduzir o corpo social o que supotildee que sejamos em troca convidados a comer na casa do nosso convidado O que estaacute em jogo eacute o princiacutepio da reciprocidade e da comensalidade A presenccedila da comida eacute contudo central reconstruindo-se necessidades bioloacutegicas em necessidades sociais (WOORTMANN 1985 p 3)

Em semelhante percepccedilatildeo Algranti (1997) aponta que haacute registros de

que desde o periacuteodo colonial no Brasil a reuniatildeo familiar durante as refeiccedilotildees

pelo menos uma vez ao dia se tornou um costume que se perpetuou nas famiacutelias

rurais bem como nas urbanas Tambeacutem Franco (2001) discorre sobre a

comensalidade no meio rural como sendo uma importante maneira de promover

a solidariedade e reforccedilar laccedilos entre os membros de um grupo de afinidade

Neste sentido ldquoo comerrdquo eacute um ato tanto social quanto poliacutetico e envolve

costumes diaacutelogos usos sabores odores e ateacute mesmo as etiquetas que

correspondem agraves maneiras de comer que satildeo aprendidas no proacuteprio processo

de comensalidade que se daacute nos grupos E segundo Giard (2012) momentos

de comensalidade demarcam relaccedilotildees sociais e afetivas entre os membros de

uma famiacutelia e tambeacutem influencia fortemente o desenvolvimento do gosto

alimentar24 A percepccedilatildeo da autora corrobora a discussatildeo de Bourdieu (2007)

sobre a formaccedilatildeo do gosto e da preferecircncia alimentar

3311 O local do fogo e da praacutetica da comensalidade na arquitetura domeacutestica

Na sociedade ocidental o local do fogo em uma habitaccedilatildeo eacute

principalmente a cozinha que primeiramente era anexa agrave casa e o equipamento

que o representa eacute o fogatildeo A cozinha segundo Flandrin (1990) surge em

24 Eacute preciso ressaltar que nem todas as culturas apreciam comer em conjunto Poreacutem natildeo se pode

considerar como regra os preceitos da comensalidade Como nos mostra Geertz (2008 p 190) sobre a cultura balinesa onde comer eacute considerado uma atividade que gera repulsa ldquo() mas ateacute comer eacute visto como uma atividade desagradaacutevel quase obscena que deve ser feita apressadamente e em particular devido agrave sua associaccedilatildeo com a animalidaderdquo

64

funccedilatildeo das transformaccedilotildees nos costumes sociais ao longo do tempo Assim o

prazer no comer e beber junto foi se modificando Isso ocorre

concomitantemente agraves mudanccedilas nas sociedades Ao longo dos anos e dos

seacuteculos a vida privada passou a ser preferida em lugar da vida puacuteblica

sobretudo nos aspectos de convivecircncia de desfrutar da intimidade e aconchego

familiar Avanccedilos tecnoloacutegicos e encontros com outras culturas favoreceram a

vida e a criaccedilatildeo de espaccedilos internos agrave casa destinados agrave comensalidade por

exemplo A cozinha que antes era compartilhada com vaacuterias pessoas ao redor

do paacutetio passa a ser parte interna de cada habitaccedilatildeo O espaccedilo privado estaacute

associado agrave intimidade e ao refuacutegio em contraste a um espaccedilo puacuteblico do qual o

cotidiano domeacutestico das famiacutelias vai se afastando aos poucos As refeiccedilotildees que

eram feitas ao ar livre ou em locais de faacutecil acesso passam a ser feitas em casas

de alvenaria que possuem portas da rua que ficam fechadas impedindo o

acesso a qualquer pessoa que chegar exceto sob o convite dos donos da casa

Mesmo que inicialmente a cozinha tenha se mantido distante dos outros

cocircmodos ocupava um lugar de destaque nas caracteriacutesticas habitacionais das

mais simples agraves mais requintadas desde o periacuteodo Colonial no Brasil conforme

aponta Lemos (1996) em seu estudo sobre as casas urbanas e rurais brasileiras

ldquoEm Portugal ateacute haacute pouco tempo e no Brasil Colonial sempre se chamou a

moradia de lsquofogorsquo ou lsquofogatildeorsquo Qualquer recenseamento dizia que determinada

cidade possuiacutea tantos habitantes em tantos lsquofogosrsquordquo (LEMOS 1996 p 11)

Segundo Lemos (1976) e Abrahatildeo (2007) as cozinhas do periacuteodo de

colonizaccedilatildeo no Brasil estavam sempre voltadas para o exterior da casa em seus

fundos ficando assim distantes dos cocircmodos de dormir mantendo-os livres do

cheiro de fumaccedila e de gordura Por natildeo haver aacutegua encanada na eacutepoca a

cozinha se localizava muitas vezes na aacuterea externa da habitaccedilatildeo Poreacutem

segundo Algranti (1997) jaacute a partir do seacuteculo XVIII estabeleceu-se dois tipos de

cozinhas a ldquocozinha sujardquo onde se preparavam carnes doces e frituras ou seja

destinava-se agraves atividades mais pesadas e portanto permanecia fora da casa e

a ldquocozinha limpardquo que se acopla agrave residecircncia e onde se prepara o cafeacute os bolos

as saladas etc

Segundo Abdala (2007) o espaccedilo da cozinha nas casas do periacuteodo

colonial em Minas Gerais e que perdurou pelo seacuteculo XIX era amplo bem

ventilado e o fogatildeo a lenha feito de barro ou de pedra sabatildeo ocupava local de

65

destaque Era ainda um espaccedilo iacutentimo natildeo sendo permitida a entrada de

estranhos25

A sala de jantar segundo Cacircmara Cascudo (2004) surgiu no final do

seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX Antes disso qualquer cocircmodo da habitaccedilatildeo servia a

esta finalidade mesmo nos imensos castelos onde o conforto era pequeno

apesar dos grandes espaccedilos Saint-Hilaire em seu registro da passagem por

Minas Gerais assim descreve a sala de jantar das casas que visitou

Nas casas dos pobres assim como nas dos ricos existe sempre uma peccedila denominada sala que daacute para o exterior Eacute ali que se recebem os estranhos e se fazem as refeiccedilotildees sentado em bancos de madeira em torno de uma mesa comprida A gente abastada tem o cuidado de reservar na frente de sua casa uma galeria ou varanda formada pelo teto que se prolonga aleacutem das paredes e eacute sustentado por colunas de madeira (SAINT-HILAIRE 1938 p 186)

Ambos os cocircmodos se constituiacuteram ao longo da histoacuteria nos espaccedilos

principais destinados agrave comensalidade E era tambeacutem um espaccedilo assim como

a cozinha em que as mulheres precisavam provar seus dotes como donas de

casa a sua capacidade de receber visitas atividades que faziam parte dos

saberes transmitidos das matildees para as filhas de forma que por mais simples

que fossem as salas de jantar refletiam a personalidade da dona da dona da

casa segundo Abrahatildeo (2010)

As modificaccedilotildees nos tamanhos e estrutura desses espaccedilos domeacutesticos

nos tempos atuais sinalizam que os arranjos destinados a esta atividade estatildeo

sendo redefinidos socialmente mas natildeo desapareceram No sul do Brasil ainda

eacute comum nos dias de hoje os fogotildees a lenha mesmo nas residecircncias urbanas

do interior Diferentemente da regiatildeo sudeste destacando-se Minas Gerais em

que o fogatildeo a lenha eacute em sua maioria feito de alvenaria nos estados do Sul

eles satildeo feitos industrialmente em ferro esmaltado Nos dias frios eacute em torno dele

que a famiacutelia e os amigos se reuacutenem para cozinhar e degustar o pinhatildeo por

exemplo acompanhado de vinho e muita conversa Em Minas o fogatildeo a lenha

estaacute presente em quase todas as habitaccedilotildees rurais e eacute um equipamento que

permanece no imaginaacuterio das pessoas ao pensar em interior e cozinha rural

25 Durante trabalho de pesquisa para mestrado realizado em 1998-1999 na zona rural de Minas Gerais

tive uma experiecircncia interessante em relaccedilatildeo a cozinha e a intimidade das famiacutelias pesquisadas No iniacutecio das vistas as conversas se davam sempre na sala ou na aacuterea externa da casa agrave medida que ia me tornando uma pessoa mais frequente em funccedilatildeo de novas visitas passei a ser recebida na cozinha Isso ocorreu em quase todas as habitaccedilotildees em que estive naquela fase

66

Martins (1998) em pesquisa realizada na regiatildeo amazocircnica expotildee os

detalhes de uma casa da sua cozinha e suas funccedilotildees de sociabilidade Sua

descriccedilatildeo deixa clara tambeacutem a relaccedilatildeo da cozinha como espaccedilo de pessoas da

intimidade do grupo

Nos povoados da fronteira onde haacute algum recurso a porta sempre aberta continua no corredor comprido que leva agrave cozinha Ela eacute o lugar de conversaccedilatildeo dos natildeo estranhos daqueles com quem os moradores da casa tecircm familiaridade e natildeo necessariamente parentesco Lugar dos que podem ir entrando bastando gritar o costumeiro ldquoOacute de casardquo Natildeo satildeo estranhos mas tambeacutem natildeo satildeo parentes Na entrada fica a saleta para receber os propriamente estranhos limite de seu acesso ao interior da casa (MARTINS 1998 p 695)

Nos falam sobre isso tambeacutem Luiacutes da Cacircmara Cascudo e Gilberto

Freyre em suas obras jaacute citadas anteriormente Freyre (2006) ao tratar sobre

as caracteriacutesticas das casas do periacuteodo dos engenhos de cana explica que

havia diferenccedilas entre as cozinhas existentes nas casas grandes de siacutetios

sobrados assobradadas de subuacuterbio com aquela da casa de engenho Nestas

uacuteltimas informa o autor a cozinha foi mais importante Essas diferenccedilas se

refletiam inclusive no tamanho da mesa destinada agraves refeiccedilotildees e que abrigavam

quem chegasse para almoccedilar

Viajantes e mascates aleacutem dos compadres que nunca faltavam dos papa-pirotildees os parentes pobres do administrador do feitor do capelatildeo dos vaqueiros das visitas de passar o dia famiacutelias inteiras que vinham de outros engenhos em carro de boi Eram mesas de jacarandaacute agraves vezes de seis oito metros de comprimento como as que ainda conhecemos na casa-grande ndash vasto sobrado rural do engenho Noruega26 (FREYRE 2006 p 143)

O autor esclarece que as mesas grandes ndash geralmente de cinco por dois

metros (5x2) ndash para receber famiacutelias enormes eram comuns nas casas grandes

de siacutetios e nos sobrados mas o que ocorria eacute que nas cidades e subuacuterbios o

modo de vida era mais retraiacutedo e sem muita movimentaccedilatildeo diferentemente do

que ocorria nas casas de engenho jaacute que aiacute ldquose recebia o viajante a qualquer

momento com bacia de prata toalha de linho um lugar agrave mesa uma rede ou

uma cama para dormirrdquo (FREYRE 2006 p 144)

Marcel Mauss (2003) em seu Ensaio sobre a Daacutediva cita a ldquoTaacutevola

Redondardquo das crocircnicas de Artur mesa cujo formato circular tinha o objetivo

26 Este engenho foi retrato na forma de gravura aquarelada 1933 por Ciacutecero Dias Esta aquarela compotildee

o livro Casa-Grande amp Senzala de Gilberto Freyre (1ordm Tomo 1964) como documento anexo ao livro e disposto em dobradura

67

simboacutelico de ajudar forma a seus cavaleiros a viver em harmonia pois viviam em

disputas e alimentando inveja entre si A ideia era que ao se sentarem ao seu

redor se reconhecessem como iguais jaacute que nela natildeo havia local de destaque

ou de superioridade

Poreacutem nem sempre o moacutevel ldquomesardquo era ou eacute utilizado Comer assentado

no chatildeo faz parte da cultura indiacutegena e tambeacutem oriental Os iacutendios sentam-se

diretamente no solo nu ou em esteiras e os orientais sobre tapetes nos informa

Cacircmara Cascudo (2004 p 794) Segundo o mesmo autor no Brasil colonial os

pobres tambeacutem comiam dessa maneira o que fez surgir o termo ldquocomida de

esteirardquo Os menos pobres comiam em mesa de madeira ldquoA histoacuteria da

alimentaccedilatildeo na esteira decorre precisamente da heranccedila cabocla do escravo

negro dos mesticcedilos humildesrdquo Mesmo entre os ricos no seacuteculo XIX a mesa

existia mas era improvisada feita em taacutebuas aplainadas na maioria das vezes

Apesar de ser um objeto frequente usado como apoio para os pratos os copos

bebidas e os vasilhames com as comidas durante as refeiccedilotildees nas discussotildees

antropoloacutegicas e socioloacutegicas importa principalmente o seu sentido figurado da

mesa relativo ao ldquocomer juntordquo independentemente de ser assentado ao chatildeo

no sofaacute ou em torno de uma mesa de madeira ou de ferro

Neste sentido importa-nos a conotaccedilatildeo entendimento da

comensalidade no processo socializador e agregador como aquele usado por

Poulain (2013) de que a comensalidade envolve comer acompanhando que eacute

tambeacutem semelhante ao sentido atribuiacutedo por Sobal e Nelson (2003) Fischler

(2011) acrescenta um atributo de espaccedilo a este sentido e diz que literalmente

significa ldquocomer na mesma mesardquo A mesa neste caso podendo ser ateacute mesmo

um ciacuterculo no meio de uma floresta ou o momento e local onde ocorrem as

refeiccedilotildees dos operaacuterios da construccedilatildeo civil com suas marmitas nas matildeos ou

ainda uma toalha posta para um pic nic ou em uma roda que se forma em um

evento social Toda a discussatildeo em torno da relaccedilatildeo mesa e comensalidade

aponta que natildeo ser obrigatoacuterio a existecircncia de um local fiacutesico e de um moacutevel

chamado de mesa para que a comensalidade e sociabilidade alimentar ocorra

basta que haja disponibilidade entre as pessoas e uma certa familiaridade na

convivecircncia Isso tanto vale para o meio rural quanto para o meio urbano No

meio rural ateacute mesmo o local de trabalho no meio de um roccedilado distante da

68

casa onde come-se de marmita eacute um local de relaccedilotildees de diaacutelogo e de comer

tendo uma companhia

Os momentos festivos satildeo outras possibilidades de tambeacutem haver

sociabilidade e de ocorrer a comensalidade Nestes momentos come-se natildeo

necessariamente por fome mas pelo prazer do conviacutevio ainda que temporaacuterio

conforme Fladrin e Montanari (1998)

O homem civilizado come natildeo somente (e menos) por fome para satisfazer uma necessidade elementar do corpo mas tambeacutem (e sobretudo) para transformar essa ocasiatildeo em um momento de sociabilidade em um ato carregado de forte conteuacutedo social e de grande poder de comunicaccedilatildeo (FLADRIN MONTANARI 1998 p 108)

Muitas vezes a sociabilidade inicia-se na proacutepria organizaccedilatildeo dos

festejos Nas aacutereas rurais eacute mais comum que as festas comunitaacuterias ou as da

esfera familiar sejam organizadas pelos moradores locais com ajuda da

vizinhanccedila o que propicia maior sociabilidade para aleacutem dos momentos de

comensalidade que ocorrem durante o evento Na cidade pela maior facilidade

de contratar por serviccedilos de organizaccedilatildeo de festas haacute um menor envolvimento

das pessoas que participaratildeo das festas no processo de sua organizaccedilatildeo

Poreacutem como a cultura eacute dinacircmica sofrendo o efeito dos modos de vida

modernos as relaccedilotildees de sociabilidade e tambeacutem de comensalidade ndash antes

mais tradicionais e com maior constacircncia de momentos em grupo ndash tecircm sido

alteradas conforme aponta alguns autores no toacutepico a seguir

34 Praacuteticas alimentares na contemporaneidade entre o tradicional e o moderno

Apesar de as mudanccedilas no consumo alimentar terem ocorrido de forma

tiacutemida antes do seacuteculo XIX eacute a partir da metade dele que autores como Fischler

(1998) Montanari (1998) Teuteberg e Flandrin (1998) Peacutehaut (1998) Capatti

(1998) Levenstein (1998) Cacircmara Cascudo (2004) Pollan (2014) Rossi (2014)

e Contreras e Gracia (2011) consideram como o iniacutecio de mudanccedilas mais

substanciais nas praacuteticas alimentares principalmente na Europa periacuteodo

marcado por profundas transformaccedilotildees nesse continente dentre elas a

expansatildeo da industrializaccedilatildeo que altera os modos de vida das famiacutelias o

aumento da populaccedilatildeo os avanccedilos na produccedilatildeo agriacutecola que gera em pouco

69

tempo o desenvolvimento da induacutestria alimentar Esses efeitos se ampliam

destacadamente nos seacuteculos XX e XXI Muitas dessas mudanccedilas ocorrem

paulatinamente com a introduccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos de outra cultura

como jaacute visto

Autores como Poulain (2013) Montanari (2008) Lody (2008) Pollan

(2014) Woortmann (2007 e 2013) De Garine (1987) Flandrin e Montanari

(1998) e Maciel (2001) discutem como alguns dos aspectos do modo de vida

moderno ndash tempo escasso para executar as vaacuterias atividades facilidade de

acesso agrave informaccedilatildeo estiacutemulo ao consumismo economia de tempo gerado pelo

uso de produtos alimentiacutecios industrializados dentre outros - influenciam as

praacuteticas alimentares e suas interfaces fazendo surgir diversas maneiras de se

alimentar na contemporaneidade

Maneiras essas que podem interferir nos haacutebitos alimentares nos

horaacuterios e locais das refeiccedilotildees no consumo de alimentos e nas praacuteticas

alimentares Por exemplo receitas de famiacutelia que antes estavam nos cadernos

e eram repassados por geraccedilotildees atualmente satildeo encontradas no verso das

embalagens de alimentos na internet em revistas e em programas de televisatildeo

Os horaacuterios de alimentaccedilatildeo nem sempre coincidem entre os membros da famiacutelia

tampouco o espaccedilo domeacutestico eacute mais o uacutenico a ser usado para tal finalidade A

vida contemporacircnea propotildee adaptaccedilotildees agraves novidades que satildeo apresentadas

constantemente Nesse contexto as mudanccedilas atingem tambeacutem as famiacutelias

rurais que encontram formas de se adaptar criando alternativas para lidar com

o novo

Em funccedilatildeo dessas questotildees alguns desses autores analisam

criticamente a tendecircncia atual de homogeneizaccedilatildeo das praacuteticas alimentares

sendo este talvez um caminho sem volta Essa homogeneizaccedilatildeo igualaria os

comedores contemporacircneos ocidentais que sob a influecircncia da globalizaccedilatildeo

passariam rapidamente a ter haacutebitos e gostos alimentares muito semelhantes

Estas consideraccedilotildees estatildeo presentes nas anaacutelises de Arnaiz (2005) que a partir

do estudo sobre a alimentaccedilatildeo dos espanhoacuteis e com base nas argumentaccedilotildees

de autores como Warde (1997) e Germov e Williams (1999) apresenta quatro

tendecircncias para o sistema alimentar moderno

O fenocircmeno da homogeneizaccedilatildeo do consumo em uma sociedade massificada a persistecircncia de um consumo diferencial e socialmente

70

desigual o incremento da oferta personalizada (poacutes-fordista nos termos dos autores) avaliada pela criaccedilatildeo de novos estilos de vida comuns e finalmente o incremento de uma individualizaccedilatildeo alimentar causada pela crescente ansiedade do comensal contemporacircneo ARNAIZ 2005 p 148)

Fischler (1979) se refere a essa tendecircncia alimentar nas sociedades

contemporacircneas como sendo lsquohiper-homogecircnearsquo Em funccedilatildeo disso citando o

estudo realizado por Mennell et al (1992) Fischler (2011) chama a atenccedilatildeo para

o fato de que as praacuteticas alimentares contemporacircneas colocam em risco a

comensalidade enquanto poder de sociabilidade de agregaccedilatildeo considerando

que o mundo moderno tem facilitado a individualizaccedilatildeo inclusive no que se

refere agrave alimentaccedilatildeo Exemplo disso eacute o nuacutemero crescente de pessoas que

mesmo no ambiente domeacutestico servem o seu prato e se assentam na frente da

televisatildeo ou do computador Situaccedilotildees que sinalizam que outras dinacircmicas tecircm

surgido no campo da comensalidade no mundo contemporacircneo Para esses

autores eacute fato o surgimento de um padratildeo alimentar Essa percepccedilatildeo parece

natildeo levar em consideraccedilatildeo a variaccedilatildeo de culturas realidades locais e modos

alimentares diferenciados entre os diversos povos mesmo no contexto

ocidental

Arnaiz (2005) Fischler (1979 e 2011) e Pollan (2014) afirmam que na

sociedade ocidental globalizada e industrializada o tempo aleacutem de escasso eacute

usado prioritariamente em prol da produtividade e do desenvolvimento

capitalista Nesse contexto o que sobra deste tempo eacute dividido entre as tantas

outras tarefas sociais como aquelas desenvolvidas no espaccedilo domeacutestico em

famiacutelia ou entre amigos Pollan (2014) aponta que o haacutebito de cozinhar em casa

vem diminuindo Arnaiz (2005) cita que outro motivo que contribui para isso estaacute

relacionado agraves facilidades geradas pelo processo agroalimentar ou seja vaacuterias

atividades de preparo de alimentos que antes ocupavam muito tempo da

cozinheira atualmente satildeo feitas pelas induacutestrias de alimentos

Poreacutem eacute arriscado afirmar uma tendecircncia agrave homogeneizaccedilatildeo alimentar

pois a cultura eacute dinacircmica e os indiviacuteduos tendem a buscar formas de adaptaccedilatildeo

aos modelos propostos e nessa adaptaccedilatildeo podem buscar praacuteticas alimentares

que mesclem novidade e tradiccedilatildeo Haacute que se levar em consideraccedilatildeo a

diversidade cultural dos grupos mesmo no contexto ocidental Se por um lado

busca-se acompanhar os avanccedilos haacute tambeacutem interesse em preservar

71

caracteriacutesticas culturais consideradas importantes dentre elas aquelas

relacionadas a algumas praacuteticas alimentares Portanto por mais que o peso da

homogeneizaccedilatildeo exista haacute tambeacutem o peso dos elementos da tradiccedilatildeo que

exerce importante influecircncia nas decisotildees e nas escolhas pessoais

Percebe-se na discussatildeo dos autores abordados neste toacutepico a

ocorrecircncia de trecircs vertentes ou movimentos Um primeiro apontado por Anaiz

(2005) Fischler (1979) e Pollan (2014) de que a sociedade tende a adotar um

padratildeo alimentar homogecircneo baseado no consumo prioritaacuterio de alimentos

industrializados de acordo com um estilo de vida moderno e atrelado agraves

novidades Um segundo movimento defendido por De Garine (1987) de que haacute

uma divisatildeo perceptiacutevel na sociedade ocidental formada por um lado por

consumidores prioritariamente tradicionais no seu estilo de exercer as praacuteticas

alimentares e de outro lado por consumidores com tendecircncias agraves praacuteticas

modernas Por fim um terceiro movimento encontrado em Doacuteria (2014) Giard

(2012) Garciacutea Canclini (2013) entre outros que defendem a coexistecircncia da

tradiccedilatildeo com a modernidade no que se refere tambeacutem agraves praacuteticas alimentares

conforme discussatildeo que seraacute apresentada mais agrave frente

Pollan (2014) apesar de acreditar que o ritmo de vida moderno estimule

modos de se alimentar mais homogecircneos com o comedor recorrendo

prioritariamente aos aspectos de praticidade por outro lado pondera algumas

questotildees que satildeo relativas Defende por exemplo que a despeito das mudanccedilas

em curso na sociedade ocidental contemporacircnea a magia e o prazer que

envolvem a atividade culinaacuteria ainda permanecem Mesmo que para um grande

nuacutemero de pessoas isso possa corresponder a uma atividade esporaacutedica em

eventos especiais ou nos finais de semana Por outro lado ainda que a

constacircncia do conviacutevio cotidiano nos momentos das refeiccedilotildees se reduza isso

natildeo implica na perda da qualidade desses momentos Mas o autor concorda

com Fischler (2011) que a diminuiccedilatildeo desta atividade implica em consequecircncias

como transformaccedilotildees no campo da comensalidade com seus significados e

simbolismos Com isso o estilo de vida acelerado e o tempo escasso para

realizar todas as demandas sociais afastam as pessoas do encontro familiar

cotidiano no compartilhamento da comida da manutenccedilatildeo de um horaacuterio fixo

para as refeiccedilotildees e tambeacutem da produccedilatildeo do proacuteprio alimento

72

Em relaccedilatildeo agrave essas questotildees Flandrin e Montanari (1998) consideram a

crenccedila absoluta na homogeneidade dos comportamentos alimentares

exagerada Apesar das mudanccedilas em curso os autores afirmam natildeo ser

evidente pelo menos ainda o desaparecimento das composiccedilotildees e elementos

tradicionais no campo da alimentaccedilatildeo Sinalizam que sobretudo na Europa a

funccedilatildeo social da comida ainda eacute importante Apontam as reuniotildees entre amigos

que ocorrem nos diferentes paiacuteses do planeta ou a reuniatildeo familiar em alguns

dias na semana e que natildeo ordinariamente no cotidiano ainda assim satildeo

momentos de sociabilidade e comensalidade e defendem a necessidade de

relativizaccedilatildeo sobre o assunto

A ldquonormalizaccedilatildeordquo dos comportamentos alimentares ainda natildeo se tornou irreversiacutevel se os modelos de consumo tendem a se assemelhar cada vez mais sua homogeneidade permanece bastante relativa e mais aparente do que real jaacute que os elementos que tem em comum satildeo de fato interpretados segundo a cultura de cada povo e paiacutes inserindo-se em estruturas ainda fortemente marcadas pelas particularidades locais que por sua vez foram-se formando na sequecircncia de um processo histoacuterico longo e articulado (FLADRIN MONTANARI (1998 p 867)

As possibilidades de as praacuteticas alimentares contemporacircneas serem

responsaacuteveis por manter ou de extinguir as tradiccedilotildees alimentares satildeo discutidas

por alguns autores como Berman (2000) Giddens (1991) Bauman (2007)

Garciacutea Canclini (2013) e Giard (2012) O mundo contemporacircneo estaacute

relacionado ao modo de vida moderno e em constante transformaccedilatildeo tendendo

ao dinamismo mesmo que aspectos do tradicional permaneccedilam ainda que com

pesos diferentes de acordo com cada cultura No mundo moderno nada

permanece fixamente e eacute neste contexto que os contrastes entre o moderno e o

tradicional ficam mais aflorados conforme defende Berman (2000)

Ser moderno eacute encontrar-se em um ambiente que promete aventura poder alegria crescimento autotransformaccedilatildeo e transformaccedilatildeo das coisas em redor ndash mas ao mesmo tempo ameaccedila destruir tudo o que temos tudo o que sabemos tudo o que somos (BERMAN 2000 p 15)

Nesse contexto de transformaccedilotildees e dinamismo da substituiccedilatildeo do

antigo pelo novo e da valorizaccedilatildeo do moderno aspectos expostos pelo autor

um dos fatores mais marcantes no campo das praacuteticas alimentares

contemporacircneas eacute a industrializaccedilatildeo dos alimentos e suas consequecircncias para

os comedores com suas benesses e problemas Este sistema apresenta um

73

novo jeito de vivenciar as praacuteticas alimentares no mundo contemporacircneo

sugerindo a ideia de praticidade e economia de tempo A induacutestria de alimentos

pode ser considerada um dos mais importantes promotores de mudanccedilas nos

haacutebitos alimentares das sociedades industriais Mudanccedilas essas que trazem

consequecircncias importantes como as que satildeo discutidas a seguir por Arnaiz

(2015) Pollan (2014) Silva Mello (1956) Cacircmara Cascudo (2004) e De Garine

(1987)

Para Arnaiz (2005) em relaccedilatildeo ao acesso aos alimentos a induacutestria

possui aspectos que podem ser considerados positivos e negativos Dentre os

positivos ela destaca o custo relativamente baixo de obtenccedilatildeo dos bens

alimentares pelos consumidores dos paiacuteses ocidentais industrializados e

tambeacutem a algumas parcelas populacionais dos paiacuteses em processo de

industrializaccedilatildeo Outro fator segundo a autora eacute que a tecnologia de produccedilatildeo

e organizaccedilatildeo da induacutestria de alimentos beneficiou os consumidores que

passaram a contar com maior diversidade de alimentos

A diversificaccedilatildeo alimentar eacute supostamente mais saudaacutevel em termos nutricionais uma vez que permite obter a adequaccedilatildeo de certos nutrientes e evita por exemplo doenccedilas como a pelagra que durante o seacuteculo XIX disseminou-se nas populaccedilotildees mais pobres que tinham o milho como base de sua alimentaccedilatildeo ou ainda doenccedilas como o cretinismo e o boacutecio ateacute recentemente (ARNAIZ 2005 p 148-149)

Para a autora algumas situaccedilotildees negativas se contrastam com as

positivas Cita por exemplo que apesar do acesso aos produtos em termos de

disponibilidade e a um preccedilo relativamente baixo a manutenccedilatildeo da

desigualdade social limita o acesso a muitos desses alimentos Outros fatores

destacados pela autora incluem ainda ldquoa diferenciaccedilatildeo conforme a bagagem

sociocultural que condiciona certos estilos alimentares de grupos de indiviacuteduos

e a persistecircncia das heterogeneidades intra e interterritorial e socialmente

verticalrdquo (ARNAIZ 2005 p 149)

Outro aspecto positivo mas natildeo citado pela autora diz respeito agraves

praticidades e facilidades geradas pela industrializaccedilatildeo dos alimentos Este tipo

de alimento jaacute preacute-processado contribuiu para reduzir o peso do trabalho

domeacutestico que historicamente e tradicionalmente era atribuiacutedo exclusivamente

agraves mulheres Poreacutem o lado positivo da comida industrializada como facilitadora

do dia-a-dia natildeo neutraliza outros fatores negativos tanto do aspecto

74

sociocultural como no aspecto da sauacutede humana conforme apontado por Pollan

(2014) Silva Mello (1956) e Cacircmara Cascudo (2004)

Pollan (2014) destaca o peso da comida industrializada para a sauacutede e

bem-estar humanos ao argumentar que as grandes empresas alimentiacutecias

processam alimentos o que para o autor eacute diferente de produzi-los Ele alerta

para o excesso de sal accediluacutecar e gordura nos produtos processados

industrialmente aleacutem dos produtos quiacutemicos que permitem maior durabilidade

aos alimentos nas prateleiras dos supermercados

Em um sentido semelhante Silva Mello (1956) defende a manutenccedilatildeo

de aspectos importantes da tradiccedilatildeo alimentar tanto para a sauacutede como para a

cultura ao criticar o excesso de modificaccedilotildees provocadas pela induacutestria

alimentar como por exemplo a transformaccedilatildeo do accediluacutecar natural escuro e grosso

em branco refinado e as vitaminas em caacutepsulas como discorre em seu livro

lsquoAlimentaccedilatildeo Instinto Culturarsquo ldquoNatildeo eacute com vitaminas que se mata a fome A

culinaacuteria jaacute que a alimentaccedilatildeo eacute a condiccedilatildeo vital do homem se impotildee como

obrigaccedilatildeo cultural () A chamada poliacutetica cultural comeccedila pela comidardquo (SILVA

MELLO 1956 p 622)

Focando o prejuiacutezo agrave sauacutede dos jovens no Brasil Cacircmara Cascudo

(2004) faz ressalvas agrave praacutetica alimentar moderna que eacute adotada por esse grupo

Para o autor os jovens tecircm maior atraccedilatildeo pelas refeiccedilotildees raacutepidas e substituiccedilatildeo

por lanches Possuem escassez de tempo para participar dos momentos sociais

familiares destinados agrave alimentaccedilatildeo pois sempre tecircm atividades e

compromissos caracteriacutesticos dessa fase da vida Na era dos lanches raacutepidos

eles acabam ldquoperdendo a personalidade do paladar sua fisionomia exigecircncias

predileccedilotildees simpatias Habituam-se agrave comida vulgar e venal raacutepida atendendo

aos reclamos imediatos do estocircmagordquo (p 350) Afirma ainda

Natildeo eacute o alimento em si na potecircncia intriacutenseca de sua substacircncia a fonte isolada da forccedila vital Satildeo os elementos psicoloacutegicos decorrentes da refeiccedilatildeo Cada vez menos refeiccedilatildeo e cada vez mais comidas faacuteceis encontraacuteveis vendidas nos botequins elegantes ou nas cantinas universitaacuterias (CAcircMARA CASCUDO 2004 p 348)

Muitas informaccedilotildees tecircm sido veiculadas nos uacuteltimos anos sobre a

relaccedilatildeo sauacutede-alimentaccedilatildeo referindo-se sobretudo aos alimentos

industrializados No Brasil o ldquoGuia Alimentar para a Populaccedilatildeo Brasileirardquo

publicado em 2006 com uma caracteriacutestica prioritariamente quantitativa foi

75

atualizado em 2014 trazendo um perfil mais qualitativo do que o primeiro e

discute sobre os perigos agrave sauacutede de uma alimentaccedilatildeo baseada em uma dieta de

produtos muito processados ou seja industrializados ao mesmo tempo em que

oferece sugestotildees mais saudaacuteveis para melhorar a qualidade de vida alimentar

da populaccedilatildeo evitando-se frituras e alimentos com grande quantidade de

aditivos quiacutemicos O Guia Alimentar sugere aos comedores uma priorizaccedilatildeo

pelos alimentos in natura e uma maior aproximaccedilatildeo com uma cultura alimentar

mais voltada agraves praacuteticas tradicionais

De Garine (1987) natildeo acredita que o consumo de alimentos

industrializados eacute adotado de maneira generalizada pelas pessoas seja de

forma individualizada seja por grupo familiares Para o autor se por um lado eacute

verdadeiro que a globalizaccedilatildeo tem propiciado uma homogeneizaccedilatildeo dos haacutebitos

alimentares por outro observa-se tambeacutem a permanecircncia da tradiccedilatildeo alimentar

com seus modelos locais de alimentaccedilatildeo A manutenccedilatildeo da tradiccedilatildeo alimentar

estaacute ligada agrave identificaccedilatildeo com as raiacutezes culturais que satildeo passadas por

geraccedilotildees e se esforccedilam por manter alguns rituais e simbologias dessa tradiccedilatildeo

alimentar e portanto natildeo cedendo prontamente ou totalmente aos apelos da

induacutestria pela adoccedilatildeo completa dos alimentos processados Assim para esse

autor natildeo eacute correto generalizar o poder da industrializaccedilatildeo de alimentos pois a

cultura local e a tradiccedilatildeo oferecem um peso que pode tambeacutem influenciar nas

escolhas alimentiacutecias Neste sentido o autor defende inclusive que os paiacuteses

em desenvolvimento se livrem de boa parte do peso das importaccedilotildees valorizando

os alimentos autoacutectones Na percepccedilatildeo deste autor existem dois tipos de

comedores Aqueles que tentam manter uma relaccedilatildeo tradicional e aqueles que

buscam pelo moderno

Possivelmente Gilberto Freyre concordaria com essa conclusatildeo de De

Garine pois era defensor da tradiccedilatildeo culinaacuteria como forma importante de

manutenccedilatildeo e continuidade de uma identidade regional e nacional Em texto

escrito em 1924 e publicado em ldquoTempo de Aprendizrdquo (1979) defende que ldquoo

paladar eacute talvez o uacuteltimo reduto do espiacuterito nacional quando ele se

desnacionaliza estaacute desnacionalizado tudo o maisrdquo (p 367) O autor tratou

sobretudo da cozinha e da comida nordestina de Pernambuco Em seu

ldquoManifesto Regionalistardquo (1996) ndash lido para a plenaacuteria durante o 1ordm Congresso

Brasileiro de Regionalismo ocorrido em Recife em 1926 ndash o maior destaque

76

sobre a importacircncia de se manter a tradiccedilatildeo foi dado agrave parte culinaacuteria Nele

Freyre propotildee uma retomada agrave valorizaccedilatildeo da cozinha regional seus modos de

fazer e de suas praacuteticas Apoacutes discorrer longamente e detalhadamente sobre

as caracteriacutesticas da culinaacuteria pernambucana ele conclui

Feitos estes reparos estou inteiramente dentro de um dos assuntos que me pareceu dever ser versado por algueacutem neste congresso os valores culinaacuterios do Nordeste A significaccedilatildeo social e cultural desses valores A importacircncia deles quer dos quitutes finos quer dos populares A necessidade de serem todos defendidos pela gente do Nordeste contra a crescente descaracterizaccedilatildeo da cozinha regional (FREYRE 1996 p 59)

No entanto esta natildeo eacute a percepccedilatildeo para outros autores que defendem

a existecircncia de um terceiro movimento mais coerente e menos radical que

privilegia a comunicaccedilatildeo entre tradiccedilatildeo e modernidade alimentar Afirmam isso

baseando-se nas raacutepidas transformaccedilotildees que ocorrem no campo da

alimentaccedilatildeo Observam que os espaccedilos para os contornos tradicionais da

produccedilatildeo da comida e dos modos de comer vatildeo sendo diluiacutedos poreacutem natildeo se

extinguem embora ao analisar a tradiccedilatildeo na oacutetica de um mundo em constante

mudanccedila surge sempre a duacutevida sobre a sua capacidade de permanecer

Assim Doacuteria (2014) Giddens (2012) Garciacutea Canclini (2013) Cacircndido (1982)

Cacircmara Cascudo (2004) e Giard (2012) defendem que a modernidade

pressupotildee e impotildee mudanccedilas de formato mas natildeo necessariamente isso

significa o rompimento absoluto com os moldes tradicionais Para estes o

caminho mais interessante eacute o de uma complementaridade pela convivecircncia dos

ldquofatores de persistecircncia ou permanecircncia que contribuem para a continuidade

dos modos tradicionais de vida (praacuteticas e saberes alimentares) com os de

transformaccedilatildeo que representam a incorporaccedilatildeo aos padrotildees modernosrdquo

(CAcircNDIDO 1982 p 200)

Doacuteria (2014) estimula um novo caminho para a culinaacuteria a junccedilatildeo da

tradiccedilatildeo com a inovaccedilatildeo pois a inovaccedilatildeo natildeo existe sem a tradiccedilatildeo natildeo se

chega a uma culinaacuteria dita como ldquonovardquo sem conhecer profundamente os

segredos da tradiccedilatildeo Assim pressupotildee-se a necessidade de um terceiro

caminho uma mescla culinaacuteria possiacutevel na qual o tradicional incorpore

elementos modernos e vice-versa

Sobre o potencial de as tradiccedilotildees alimentares resistirem ocupando

outros espaccedilos ou seja unindo-se ao moderno Poulain (2013 p 35) acena

77

esperanccedilosamente que ldquoa histoacuteria da alimentaccedilatildeo mostrou que cada vez que

identidades satildeo postas em perigo a cozinha e as maneiras agrave mesa satildeo os

lugares privilegiados de resistecircnciardquo

Em sentido semelhante ao exposto acima por Jean Pierre Poulain

Cacircmara Cascudo (2004) defende o peso da tradiccedilatildeo ldquoEspero mostrar a

antiguidade de certas predileccedilotildees alimentares que os seacuteculos fizeram haacutebitos

explicaacuteveis como uma norma de uso e um respeito de heranccedila dos mantimentos

da tradiccedilatildeordquo (p 14) No entanto diferentemente de Gilberto Freyre que defendia

uma tradiccedilatildeo culinaacuteria irretocaacutevel Luiacutes da Cacircmara Cascudo apesar de defensor

das tradiccedilotildees alimentares parecia compreender de forma menos resistente do

que Freyre que a inserccedilatildeo de atributos modernos no campo alimentar se

ampliaria para o bem e sobretudo para o mal segundo as observaccedilotildees

negativas do autor a respeito Mas ele entendia a necessidade de que isso

passasse a ser administrado ao inveacutes de puramente combatido

No povo haacute dois elementos autocircmatos e harmocircnicos coexistentes no assunto alimentar O primeiro estaacutetico basilar tiacutepico indeformaacutevel O segundo renovaacutevel dinacircmico plaacutestico Dos primeiros alguns podem desaparecer ou constituir uso minoritaacuterio Dos segundos outros descem agrave estratificaccedilatildeo tornando-se tradicionais superpondo-se imediatamente agrave camada profunda dos velhos usos participando do antigo patrimocircnio preferencial Essa mecacircnica regulariza a permanecircncia do cardaacutepio familiar Todos os grupos humanos tecircm uma fisionomia alimentar (CAcircMARA CASCUDO 2004 p 373)

Para Garciacutea Canclini (2013) a busca por aspectos tradicionais na

contemporaneidade sinaliza uma necessidade de distanciamento dos indiviacuteduos

com o excesso de modernidade e a inseguranccedila vivida no mundo

contemporacircneo No que se refere a alimentaccedilatildeo as inseguranccedilas ou

desconfianccedilas natildeo satildeo poucas Isso talvez explique a busca que tem ocorrido

pela comida de nossos antepassados

Natildeo obstante o tradicionalismo aparece muitas vezes como recurso para suportar as contradiccedilotildees contemporacircneas Nessa eacutepoca em que duvidamos dos benefiacutecios da modernidade multiplicam-se as tentaccedilotildees de retornar a algum passado que imaginamos mais toleraacutevel Frente agrave impotecircncia para enfrentar as desordens sociais o empobrecimento econocircmico e os desafios tecnoloacutegicos frente agrave dificuldade para entendecirc-los a evocaccedilatildeo de tempos remotos se reinstala na vida contemporacircnea arcaiacutesmos que a modernidade havia substituiacutedo (GARCIacuteA CANCLINI 2013 p 166)

78

Outro exemplo para que a tradiccedilatildeo mantenha sua importacircncia social e

de formaccedilatildeo da sociedade brasileira pode ser demonstrado atraveacutes das Leis de

Incentivo agrave cultura e ao patrimocircnio cultural valorizando tanto a culinaacuteria tiacutepica

quanto o turismo rural com foco na tradiccedilatildeo local No campo alimentar a forma

artesanal de fazer o queijo mineiro e o oficio das baianas do acarajeacute satildeo

exemplos de alimentos que estatildeo entre os patrimocircnios imateriais do paiacutes

catalogados pelo IPHAN (Instituto do Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional)

Outros saberes envolvendo a comida e a cultura encontram-se na lista de

espera Eacute o caso da produccedilatildeo de doces tradicionais pelotenses do modo de

fazer tradicional da cajuiacutena do Piauiacute e o saber fazer do queijo artesanal serrano

de Santa Catarina e Rio Grande do Sul Em niacutevel mundial muitas cozinhas

internacionais jaacute satildeo consideradas Patrimocircnio Imaterial da Humanidade pela

Unesco como eacute o caso das cozinhas Mexicana Francesa e Mediterracircnea

(Greacutecia Itaacutelia Espanha e Marrocos)

Pelo objetivo deste trabalho eacute fundamental dar continuidade agrave discussatildeo

no presente item analisando os reflexos dos haacutebitos alimentares

contemporacircneos sobre as dinacircmicas especificamente rurais buscando

compreender como o rural na atualidade se comporta diante das praacuteticas

alimentares tradicionais e modernas

35 Modernidade e tradiccedilatildeo no contexto alimentar rural contemporacircneo

Ao longo de sua histoacuteria pode-se dizer que o Brasil eacute um paiacutes de muitos

rurais por sua dimensatildeo geograacutefica por suas regiotildees de clima diferenciados e

formaccedilatildeo cultural diversa como exposto por Del Priore e Venacircncio (2006) o

Brasil eacute formado por

Grupos sociais em suas interconexotildees territoriais grupos que satildeo filhos de uma histoacuteria ou seja de um conjunto de costumes comuns ligados agrave religiatildeo ritos mitos praacuteticas econocircmicas crenccedilas teacutecnicas e usos do corpo relacionados com as culturas agriacutecolas ou com a criaccedilatildeo de animais (DEL PRIORE VENAcircNCIO 2006 p 14)

Esses muitos rurais implicam tambeacutem em haacutebitos e praacuteticas alimentares

peculiares Alimentos e praacuteticas que satildeo valorizados em uma determinada

cultura rural pode ser desinteressante para outra Outras tantas caracteriacutesticas

poreacutem podem se assemelhar No entanto eacute cada vez mais tecircnue a linha que

79

separa o rural do urbano e o dinamismo parece ser constante atualmente na

maior parte desses rurais Isso tem gerado a necessidade de reorganizaccedilatildeo do

trabalho e da vida cotidiana das famiacutelias como demonstram as anaacutelises

desenvolvidas por Graziano da Silva (1997) Wanderley (2000 e 2010) e Carneiro

(2005)

Definir o que eacute cultura rural hoje eacute um desafio Segundo Camarano e

Abramovay (1998 p 46) natildeo existe um criteacuterio universal que seja vaacutelido para

definir as fronteiras entre o rural e o urbano e que essa definiccedilatildeo varia de paiacutes a

paiacutes Assim ldquono Brasil eacute considerado como situaccedilatildeo rural os domiciacutelios e a

populaccedilatildeo recenseada que abrange toda a aacuterea fora do considerado urbano

inclusive os aglomerados rurais de extensatildeo urbana os povoados e os nuacutecleosrdquo

Mas esse criteacuterio natildeo explica por si soacute a cultura rural contemporacircnea incluindo

as suas praacuteticas alimentares

Carneiro (2005 p 8) considera outros aspectos para aleacutem da definiccedilatildeo

de limites geograacuteficos entre as duas categorias Segundo a autora durante muito

tempo a oposiccedilatildeo entre o rural e o urbano prevaleceu para a sociologia rural

como abordagem teoacuterico-conceitual em que o rural era determinado pela

ldquocentralidade na atividade agriacutecola isolamento geograacutefico e cultural fraca

mobilidade etcrdquo e tambeacutem o espaccedilo de manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo da tradiccedilatildeo e

dos costumes Mais correto seria dizer por concordarmos com a percepccedilatildeo da

autora de que nos tempos atuais natildeo cabe mais classificar categorias como

rural ou urbano partindo apenas de justificativas de limites geograacuteficos que uma

determinada populaccedilatildeo ocupa mas sim pelas relaccedilotildees sociais que se datildeo no

interior desses espaccedilos Reportando ao trabalho de Marc Mormont Carneiro

(2005) apresenta a distinccedilatildeo entre o rural como categoria analiacutetica e como

categoria operacional destacando que a dificuldade em pensar o rural estaacute no

uso do termo que eacute feito tanto por pesquisadores e na academia quanto por

agecircncias que elaboram estatiacutesticas e ainda utilizada no senso comum

Nos termos de Mormont as propriedades do rural satildeo possibilidades simboacutelicas mas tambeacutem possibilidades praacuteticas Elas orientam as praacuteticas sociais sobre um determinado espaccedilo de acordo com os significados simboacutelicos que lhes satildeo atribuiacutedos sendo portanto inuacutetil procurar em uma realidade fiacutesica econocircmica ou ecoloacutegica os fundamentos de uma ruralidade Tambeacutem seria inuacutetil procurar nesta realidade apenas um imaginaacuterio que faria do rural uma pura construccedilatildeo mental (CARNEIRO 2005 p 9)

80

Nos interessa compreender nessa discussatildeo teoacuterica o que prevalece no

rural contemporacircneo brasileiro uma continuidade atrelada aos modos

tradicionais dos modos de vida e a reproduccedilatildeo social destacando aquelas

questotildees relacionadas agraves praacuteticas alimentares Ou por outro lado se a

aproximaccedilatildeo com o urbano tem transformado o rural a ponto de se estar

perdendo algumas peculiaridades e tradiccedilotildees que historicamente foram

construiacutedas Para instrumentalizar essa anaacutelise torna-se necessaacuteria uma

reflexatildeo sobre a dinacircmica no mundo rural

351 A dinacircmica do rural entre a tradicional e o moderno

Segundo Carneiro (1998 e 2005) compreender o dinamismo que ocorre

no campo eacute importante no sentido de natildeo congelar o conceito de rural como uma

categoria imutaacutevel onde seus habitantes sejam incapazes ldquode absorver e de

acompanhar a dinacircmica da sociedade em que se insere e de se adaptar agraves novas

estruturas sem contudo abrir matildeo de valores visatildeo de mundo e formas de

organizaccedilatildeo social definidas em contextos soacutecio-histoacutericos especiacuteficosrdquo

(CARNEIRO 1998 p 1) A autora tambeacutem argumenta sobre a possibilidade e a

ocorrecircncia de uma nova ruralidade aquela que eacute capaz de fazer conviver com

os reflexos do moderno sobre o tradicional sem que isso signifique um

rompimento com a tradiccedilatildeo descaracterizando o rural Tampouco cabe falar em

uma volta ao passado mas sim do surgimento de uma ruralidade que resgate

determinadas praacuteticas do passado cujo conhecimento pertence aos mais

velhos

Desvendar os distintos significados socialmente atribuiacutedos a espaccedilos e manifestaccedilotildees culturais tidos como rurais sinaliza uma perspectiva de que o mundo rural natildeo estaria sucumbindo agraves pressotildees do universo urbano nem representaria uma ruptura com o urbano Esse processo entendido superficialmente por alguns como de ldquourbanizaccedilatildeordquo do campo produziria novas sociabilidades e novas identidades sociais que dificilmente caberiam em uma uacutenica classificaccedilatildeo mas que continuam a ser representadas socialmente como rurais (CARNEIRO 2005 p 9)

O que os estudos dos autores citados aqui tecircm apontado eacute que as

oposiccedilotildees entre rural e urbano natildeo devem mais ser usadas para pensar a

ruralidade atual brasileira Para Brandemburg (2010) o mundo rural se insere no

processo de modernizaccedilatildeo e ateacute busca por ele mas sem deixar de lado

81

totalmente o modo tradicional de vida Essa coexistecircncia significa a necessidade

de seguir resolvendo os conflitos que surgem a partir dessa dinacircmica O autor

defende que existam rurais em tempos diferentes no Brasil mas que ldquopersistem

ora na sua forma tiacutepica ora sobrepostos ora expressos na forma de um rural

novo reconstruiacutedo ou reflexivordquo (BRANDEMBURG 2010 p 423) O autor cita

Wanderley (1996) quando discorre que este rural reconstruiacutedo eacute aquele em que

o moderno natildeo substitui ou extingue o tradicional mas lhe permite passar por

ressignificaccedilotildees e que se reorganiza socialmente em um grupo ou comunidade

local

Algumas mudanccedilas que vem ocorrendo no meio rural podem alterar os

modos de vida e interferir nas escolhas alimentares das famiacutelias rurais A

facilidade de acesso ao comeacutercio da cidade mais proacutexima ou agrave existecircncia do

comeacutercio na proacutepria comunidade pode gerar interesse em consumir alguns

alimentos que natildeo faziam parte da dieta em tempos passados como os produtos

processados Alguns siacutembolos do estilo de vida moderno chegam mais

facilmente agraves famiacutelias rurais como o uso dos eletrodomeacutesticos que equipam a

cozinha facilitando o trabalho e a reproduccedilatildeo das praacuteticas alimentares como

por exemplo o fogatildeo a gaacutes e a geladeira

Referimos muito no presente trabalho agrave dicotomia ldquopraacuteticas alimentares

contemporacircneasrdquo e como contraponto a existecircncia de uma praacutetica voltada ao

tradicional Assim o tradicional e o novo (ou moderno) surgem como aspectos

importantes agraves vezes conflitantes agraves vezes em interaccedilatildeo Refletir sobre o

mundo moderno pensar sobre modernidade eacute pensar tambeacutem em passado em

tradiccedilatildeo Poreacutem natildeo se pode afirmar que o moderno implica na morte da

tradiccedilatildeo isso foi apontado por Doacuteria (2014) Montanari (2008) e Giard (2012)

Ao analisar-se um tema em que se evidenciem traccedilos de oposiccedilatildeo e ou

de relaccedilatildeo entre o tradicional e o moderno percebe-se que haacute uma tendecircncia

no senso comum em acreditar que a modernidade eacute capaz de extinguir a

tradiccedilatildeo Poreacutem estudiosos do assunto como Giddens (2012) Bartolomeacute (2006)

e Garciacutea Canclini (2013) tecircm mostrado que o caminho mais interessante e que

estaacute em evoluccedilatildeo eacute uma ligaccedilatildeo entre os dois polos da questatildeo

Para Giddens (1991) o tradicional eacute quase sempre atrelado ao passado

idealizado mas que por sua vez se torna dinacircmico com o processo de

82

modernizaccedilatildeo e de novas interpretaccedilotildees dadas pelas geraccedilotildees que recebem os

conhecimentos e experiecircncias vividas por seus antepassados

Nas culturas tradicionais o passado eacute honrado e os siacutembolos valorizados porque contecircm e perpetuam a experiecircncia de geraccedilotildees A tradiccedilatildeo eacute um modo de integrar a monitoraccedilatildeo da accedilatildeo com a organizaccedilatildeo tempo-espacial da comunidade A tradiccedilatildeo natildeo eacute inteiramente estaacutetica porque ela tem que ser reinventada a cada nova geraccedilatildeo conforme esta assume sua heranccedila cultural dos precedentes (GIDDENS 1991 p 31)

Em semelhante linha de pensamento Bartolomeacute (2006) entende a

tradiccedilatildeo como um importante veiacuteculo para se recriar identidades Em seu

continuo processo de construccedilatildeo e reconstruccedilatildeo as identidades mesclam

aspectos do passado com os elementos do presente no mundo contemporacircneo

aleacutem de enfrentar as mudanccedilas necessaacuterias para construir novas relaccedilotildees entre

o tradicional e o moderno ldquoEm um de seus niacuteveis implica uma busca no passado

para instituir uma nova relaccedilatildeo com a realidade contemporacircneardquo (BARTLOMEacute

2006 p 58)

Giddens (2012) e Simsom (2003) nos falam sobre o papel da tradiccedilatildeo e

da transmissatildeo dos saberes de uma geraccedilatildeo a outra feita com a presenccedila dos

ldquoguardiatildeesrdquo Para Giddens (2012) tradiccedilatildeo e memoacuteria andam juntas A tradiccedilatildeo

possui ldquoguardiatildeesrdquo e combina o conteuacutedo moral com o emocional O autor

entende a memoacuteria como um processo ativo e natildeo apenas como lembranccedila

Processo ativo porque as memoacuterias satildeo continuamente reproduzidas por esses

guardiatildees que lhes conferem um modo de continuidade das experiecircncias A

presenccedila desses guardiatildees se torna ainda mais importante no mundo

contemporacircneo para que as experiecircncias passadas seus erros e acertos natildeo se

percam da sociedade

Se nas culturas orais as pessoas mais velhas satildeo o repositoacuterio (e tambeacutem frequentemente os guardiatildees) das tradiccedilotildees natildeo eacute apenas porque as absorveram em um ponto mais distante no tempo que as outras pessoas mas porque tecircm tempo disponiacutevel para identificar os detalhes dessas tradiccedilotildees na interaccedilatildeo com os outros da sua idade e ensinaacute-las aos jovens Por isso podemos dizer que a memoacuteria eacute um meio organizador da memoacuteria coletiva (GIDDENS 2012 p 100-101)

Eacute possiacutevel considerar que muitas tradiccedilotildees tecircm sua origem no rural O

rural do passado com caracteriacutesticas muito tradicionais na produccedilatildeo e na

cultura eacute descrito e analisado por Cacircndido (1982) e Brandatildeo (1981) Antocircnio

Cacircndido mostra um dos rurais brasileiros com suas peculiaridades no que se

83

refere a alimentaccedilatildeo e a cultura Em ldquoParceiros do Rio Bonito estudo sobre o

caipira paulista e a transformaccedilatildeo dos seus meios de vidardquo o autor apresenta

suas anaacutelises antropoloacutegicas e socioloacutegicas do modo de vida caipira

Neste estudo o autor mostra detalhadamente os modos de vida do

grupo pesquisado seus meios de subsistecircncia a forma tradicional de conduccedilatildeo

dos trabalhos agriacutecolas a composiccedilatildeo de sua alimentaccedilatildeo e seus recursos para

obtecirc-la a cultura caipira as formas de solidariedade o cotidiano do trabalho rural

do momento de acordar sair para o trabalho ao momento de retornar ao siacutetio

No aspecto da comensalidade nos chama a atenccedilatildeo as observaccedilotildees do

autor para a praacutetica alimentar do agricultor estudado por ele que no dia a dia

levava o seu almoccedilo em marmita depositada no embornal para ser consumido

no local de trabalho Os momentos das refeiccedilotildees em famiacutelia na cozinha ficavam

restrito aos domingos

O uso da marmita eacute tambeacutem a realidade de muitas outras aacutereas rurais e

tambeacutem urbanas no Brasil em tempos passados em periacuteodo de grande

movimentaccedilatildeo no campo onde o trabalho era realizado muito distante da

habitaccedilatildeo Atualmente isso permanece e nas aacutereas urbanas tambeacutem eacute uma

praacutetica muita utilizada pelos trabalhadores Mas a comensalidade pode se dar

no local do trabalho havendo outras pessoas na mesma atividade Como jaacute visto

anteriormente para ocorrer a comensalidade natildeo eacute necessaacuterio que o espaccedilo

fiacutesico seja a habitaccedilatildeo

Em relaccedilatildeo ao tipo de comida Cacircndido (1982) descreve uma

alimentaccedilatildeo simples baseada no arroz feijatildeo milho aboacutebora e a mandioca

frutas como jabuticaba e verduras como a couve eram as mais comuns Do mato

se coletava o palmito e se caccedilava a carne Esse tipo de alimentaccedilatildeo natildeo difere

do que Cacircmara Cascudo (2004) descreve como sendo os elementos baacutesicos da

alimentaccedilatildeo presentes na cozinha rural brasileira sendo comum tambeacutem o

cultivo de verduras legumes e frutas para consumo proacuteprio da famiacutelia bem como

a produccedilatildeo de animais sobretudo a galinha e o porco A banha do porco era

usada no lugar do oacuteleo de cereais os animais eram alimentados com milho e

outros produtos plantados e colhidos no quintal

O mesmo tipo de dieta foi descrito por Brandatildeo (1981) em sua pesquisa

com lavradores na regiatildeo de Goiacircnia na deacutecada de 1970 Ao autor destaca que

a dieta das famiacutelias rurais tambeacutem consistia basicamente de arroz feijatildeo milho

84

e mandioca os produtos da horta do quintal (legumes e verduras) frutas

tubeacuterculos carne de porco de aves de caccedila e de peixes Com exceccedilatildeo da caccedila

e do peixe todos os outros itens eram produzidos por elas no entorno da

moradia

O rural tratado por Cacircndido (1982) e por Brandatildeo (1981) produz mais do

que alimentos produz um modo de vida que eacute rico em significados e simbologias

que orienta a reproduccedilatildeo social das famiacutelias rurais

Entre lavradores cuja atividade econocircmica estaacute quase toda dentro dos limites da produccedilatildeo diaacuteria e sazonal de comida para a famiacutelia o alimento e tudo o que envolve o acesso a ele aparecem como agentes reguladores entre o homem e o seu mundo Praticamente todo o seu trabalho eacute dirigido a obter alimentos para uma dieta cujos ingredientes produzem conservam ou comprometem as suas condiccedilotildees pessoais de presenccedila em esferas sociais de relaccedilotildees entre produtores de alimentos (BRANDAtildeO 1981 p 148)

No rural contemporacircneo natildeo se pode mais afirmar que a tradiccedilatildeo eacute

determinante nem que se manteacutem encerrada fechada num mundo agrave parte

conforme jaacute apontado por Brandemburg (2010) e Wanderley (1996) embora

muitos costumes ritos praacuteticas alimentares e de reproduccedilatildeo social e econocircmica

se mantenham Isso se aplica tambeacutem agraves praacuteticas alimentares cabendo agraves

famiacutelias rurais fazerem suas escolhas Escolhas essas que natildeo satildeo tatildeo simples

considerando um universo de possibilidades e a proacutepria dificuldade de opccedilatildeo do

ser humano diante do mundo moderno

Nesse universo de possibilidades de escolhas alimentares os

consumidores contemporacircneos buscam escolher aquilo que mais lhes

apetecem de acordo com razotildees de ordem cultural simboacutelica econocircmica social

etc

La variabilidad de las elecciones alimentarias humanas procede sin duda en gran medida de la variabilidad de los sistemas culturales si no consumimos todo lo que es bioloacutegicamente comestiblese debe a que todo lo que es bioloacutegicamente comible no es culturalmente comestible (FISCHLER 1995 p 33)

Segundo o autor as muitas opccedilotildees no processo de escolha geram

anguacutestias alimentares que eacute uma caracteriacutestica do comensal moderno

Inclusive porque ele tem consciecircncia de uma seacuterie de riscos no campo

alimentar sobretudo os riscos que o alimento pode causar agrave sua sauacutede

85

As discussotildees sobre ruralidade no Brasil natildeo satildeo conclusivas no sentido

de afirmar que o peso da tradiccedilatildeo alimentar se impotildee Especificamente sobre

haacutebitos alimentares das populaccedilotildees rurais no Brasil contemporacircneo haacute

necessidade de ampliar o leque de abrangecircncia e regiotildees de estudo No

levantamento que fiz para a presente pesquisa verifiquei que os estudos sobre

alimentaccedilatildeo no meio rural tecircm sido de caraacuteter regional a maior parte na regiatildeo

Sul do Paiacutes Outra informaccedilatildeo que verifiquei eacute uma variedade de estudos sobre

alimentaccedilatildeo elaborados com consumidores na aacuterea urbana Assim o que

existem de estudos sobre praacuteticas alimentares no meio rural satildeo apontamentos

importantes e relevantes poreacutem ainda incipientes para que que sejam capazes

de definir uma realidade sobre praacuteticas alimentares para todo o rural brasileiro

Se por um lado haacute autores que apontam para uma tendecircncia a uma

homogeneizaccedilatildeo alimentar nas sociedades ocidentais e por outro aqueles que

reforccedilam a importacircncia da tradiccedilatildeo e em sua capacidade de se sobrepor haacute uma

terceira posiccedilatildeo sobre a questatildeo Satildeo autores que percebem a possibilidade do

meio termo ou de uma convivecircncia entre os aspectos da contemporaneidade e

da tradiccedilatildeo no que se refere agrave alimentaccedilatildeo Doacuteria (2014) aponta que o tradicional

e o novo datildeo sinais de que sua interaccedilatildeo eacute fundamental Natildeo se inventam novas

comidas elas estatildeo sendo revisitadas e a induacutestria tem investido nisso

Aleacutem de Doacuteria (2014) Poulain (2013) e Lody (2008) partilham da opiniatildeo

de que mesmo que a cada dia modernas possibilidades alimentares ndash cujo foco

seja a ampliaccedilatildeo do consumo de alimentos processados e ultraprocessados ndash

ampliem seus espaccedilos na sociedade natildeo conseguimos abandonar

completamente os viacutenculos com os haacutebitos alimentares herdados dos pais e

avoacutes Haacute sempre aquele doce especial que a avoacute fazia aquele bolo que soacute se

comia na casa dos pais aquele jeito de comer que aprendemos na infacircncia e

por isso sentimos falta mesmo que adotemos um estilo de vida que nos afaste

cada vez mais do espaccedilo social alimentar domeacutestico Os indiviacuteduos se sentem

emocionalmente ligados aos haacutebitos alimentares de sua infacircncia em geral

marcados pela cultura tradicional

Assim apesar de estarem inseridas em uma cultura que lhes eacute peculiar

as famiacutelias rurais natildeo estatildeo imunes agraves influecircncias dos demais tipos culturais e

tambeacutem natildeo satildeo estaacuteticas como defende Carneiro (1998) Elas acompanham o

ritmo das mudanccedilas em sua realidade nas quais estatildeo incluiacutedas tambeacutem as

86

praacuteticas alimentares Como bem define Elias (1994 p 145) ldquoa relaccedilatildeo entre

sociedade e indiviacuteduo eacute tudo menos imoacutevel Modifica-se com o desenvolvimento

da humanidaderdquo No sentido dado por Norbert Elias para a noccedilatildeo de habitus

social empregado agraves sociedades modernas ocidentais haacute uma tendecircncia para

a diminuiccedilatildeo das diferenccedilas regionais entre as pessoas agrave medida que o

desenvolvimento cria maiores possibilidades de integraccedilatildeo entre as regiotildees O

que natildeo implica obrigatoriamente em substituiccedilatildeo de todas as praacuteticas

tradicionais e adoccedilatildeo a outras

36 O papel feminino nas praacuteticas alimentares na famiacutelia

No processo de decisatildeo alimentar envolvendo o cardaacutepio cotidiano das

principais refeiccedilotildees e as aquisiccedilotildees a serem feitas no mercado eacute a mulher que

na maioria das vezes exerce o poder de decisatildeo embora tome as decisotildees

baseadas no gosto e nos haacutebitos familiares Isso eacute apontado em Arnaiz (1996)

Mennell et al (1992) Carrasco (1992) Freyre (1964 2006) Cacircmara Cascudo

(2004) e Giard (2012) Segundo Doacuteria (2012) mesmo apoacutes a revoluccedilatildeo industrial

e a inserccedilatildeo da mulher no mercado de trabalho a funccedilatildeo alimentar continuou

sendo atribuiacuteda como sendo da mulher

Arnaiacutez (1996) destaca que um dos fatores que contribuiacuteram para que a

relaccedilatildeo mulher ndash alimentaccedilatildeo ocorresse eacute a sua ligaccedilatildeo bioloacutegica com a

maternidade Historicamente a sociedade atribuiu ao papel feminino a

transmissatildeo natural dos trabalhos domeacutesticos e por consequecircncia os cuidados

com os membros da famiacutelia Dentre as atribuiccedilotildees femininas estaacute a de alimentar

seus filhos Citando Carrasco (1992) a autora destaca que a funccedilatildeo de satisfazer

as necessidades atraveacutes da alimentaccedilatildeo eacute primeiramente fisioloacutegica mas

possui tambeacutem outras ldquoSin embargo esta tarea comporta ademaacutes la

reproduccioacuten y satisfaccioacuten de otras relaciones sociales tales como identidade

reciprocidade comensalidade y comunicacioacuten que se expresan em cada uno de

los contenidos de las atividades que incorporardquo (CARRASCO 1992 apud

ARNAIZ 1996 p 31)

Segundo Arnaiz (1996) o papel atribuiacutedo socialmente agrave mulher como

responsaacutevel pela tarefa alimentar para aleacutem de fisioloacutegica encontra principal

argumento no final do seacuteculo XIX quando tanto na famiacutelia burguesa quanto na

87

trabalhadora a funccedilatildeo era basicamente reprodutiva Diferentemente do espaccedilo

externo ao lar no qual repousava o objetivo de produccedilatildeo de mercadorias Assim

havia uma clara e explicita divisatildeo sexual do trabalho Ao homem (pai) cabendo

o papel de provedor e agrave mulher (matildee) o papel de reproduccedilatildeo tanto bioloacutegica

quanto social e a responsabilidade pela alimentaccedilatildeo e por outras necessidades

domeacutesticas dos membros da famiacutelia

Woortmann (1985) trata da divisatildeo tambeacutem dos espaccedilos fiacutesicos da

constituiccedilatildeo tradicional da famiacutelia Nessa percepccedilatildeo a famiacutelia supotildee a divisatildeo

do trabalho entre homens e mulheres e cria o espaccedilo do homem provedor como

aquele externo ao lar onde se constitui a relaccedilatildeo racional dos negoacutecios e da

ldquofriezardquo O espaccedilo da mulher como sendo o da casa o espaccedilo das relaccedilotildees

afetivas e portanto acolhedor encontrando dentre as atividades domeacutesticas a

responsabilidade pela elaboraccedilatildeo da comida como a mais caracteriacutestica

expressatildeo dessa afetividade Assim para o autor

O gecircnero eacute tambeacutem construiacutedo no plano das representaccedilotildees atraveacutes da percepccedilatildeo da comida A comida ldquofalardquo da famiacutelia de homens e de mulheres tanto para o antropoacutelogo que realiza a leitura consciente dos haacutebitos de comer como para os proacuteprios membros do grupo familiar ndash e atraveacutes deste ndash que realizam uma praacutetica inconsciente de um habitus alimentar (WOORTMANN 1985 p 2)

Ao atribuir diferenccedila de significado entre ldquocomidardquo e ldquomantimento o

autor mostra que essa diferenciaccedilatildeo tambeacutem possui conotaccedilatildeo de gecircnero pois

aleacutem de existir o antes e o depois da accedilatildeo culinaacuteria existe tambeacutem a conotaccedilatildeo

que envolve a mediaccedilatildeo masculina e a feminina O autor chama a atenccedilatildeo para

o que observou em seu estudo realizado com camponeses no Nordeste em que

mantimento era considerado um produto do roccedilado portanto de domiacutenio

masculino Mas esse mantimento se converteria em comida ao ser ldquoqueimado27rdquo

na cozinha que eacute compreendido como o espaccedilo feminino

O mantimento (natureza) eacute produto do roccedilado (cultura quando eacute oposto ao mato) pelo trabalho do homem Quando eacute queimado isto eacute quando de ldquocrurdquo passa a ldquocozidordquo processo que se realiza a casa domiacutenio da cultura mas no espaccedilo desta que corresponde agrave mulher (natureza) torna-se comida (cultura) Entatildeo o homem-cultura produz o mantimento-natureza e a mulher-natureza produz a comida-cultura (WOORTMANN 1985 p 9)

27 Expressatildeo muito utilizada pelos camponeses da regiatildeo nordeste segundo o autor

88

Cacircmara Cascudo (2004) discute a identidade social feminina na histoacuteria

da alimentaccedilatildeo no Brasil O papel das mulheres indiacutegenas africanas e

portuguesas que produziram uma importante miscigenaccedilatildeo do paladar que tanto

caracteriza a cozinha brasileira Mulheres que foram responsaacuteveis tambeacutem ao

longo da histoacuteria pela transmissatildeo dos segredos e da diversidade culinaacuteria que

dominaram

A culinaacuteria brasileira tem suas raiacutezes nos saberes que foram repassados

por geraccedilotildees de mulheres desses trecircs grupos eacutetnicos e na junccedilatildeo dos seus

saberes De cada grupo eacutetnico que formou a populaccedilatildeo brasileira detalhes foram

herdados e levados agrave mesa familiar ao longo da histoacuteria Muito do que estaacute

presente em nossas praacuteticas alimentares cotidianas e em festejos especiais eacute

reflexo de transmissatildeo cultural e histoacuterica

Sobre a influecircncia e importacircncia da mulher indiacutegena para a alimentaccedilatildeo

Freyre (1964 p 132) a descreve como sendo natildeo apenas ldquoa base fiacutesica da famiacutelia

brasileira mas valioso elemento de cultura material e alimentar na formaccedilatildeo

brasileirardquo Vaacuterios alimentos usados ateacute os dias atuais remeacutedios caseiros

formatos de utensiacutelios de cozinha etc satildeo heranccedilas das mulheres indiacutegenas

Da cunhatilde eacute que nos veio o melhor da cultura indiacutegena O asseio pessoal A higiene do corpo O milho O caju O mingau As comidas preparadas agrave base de mandioca e que se tornaram a base do regime alimentar do colonizador O brasileiro de hoje amante do banho e sempre de pente e espelhinho no bolso o cabelo brilhante de loccedilatildeo ou de oacuteleo de coco reflete a influecircncia de tatildeo remotas avoacutes (FREYRE 1964 p 132)

Segundo o autor a culinaacuteria brasileira natildeo seria a mesma sem os

quitutes de origem indiacutegena Ele destaca como a mescla dos conhecimentos da

mulher indiacutegena e da mulher portuguesa que se deu nas cozinhas das casas

grandes foi importante para tornarem esses quitutes com sabor ldquoabrasileiradordquo

O autor ainda ressalta a contribuiccedilatildeo da cultura africana por meio das mulheres

africanas para a culinaacuteria brasileira Originam dessa cultura a introduccedilatildeo de

azeite de dendecirc pimenta malagueta quiabo farofa quibebe vatapaacute mungunzaacute

caruru milho assado acarajeacute pipoca cuscuz de peixe novas variedades de

preparo de peixes e da galinha alguns doces broas e patildees de milho Segundo

o autor muitas mulheres alforriadas tiravam seu sustento com os tabuleiros de

doces vendiam cocadas quindins matildees bentas etc Algranti (2007) menciona

que antes de se tornarem populares e vendidos em tabuleiros os doces eram

89

considerados iguarias e apenas servidos em ocasiotildees especiais e eram por isso

demarcadores de distinccedilatildeo social

Assim como a junccedilatildeo dos saberes das mulheres indiacutegenas africanas e

portuguesas produziu comidas mais saborosas A troca de conhecimentos

propiciou novas adaptaccedilotildees aos pratos sobretudo aos doces A heranccedila

portuguesa no que se refere aos doces eacute muito forte segundo Freyre (2007)

mas era preciso a matildeo de obra e a intuiccedilatildeo das mulheres negras para dar o

toque certo nos pontos

Com sabores temperos supersticcedilotildees e haacutebitos das trecircs raccedilas que nos formaram a convivecircncia espontacircnea entre o cristal daquele accediluacutecar o sabor selvagem da fruta tropical e aquele que era o alimento baacutesico dos nossos iacutendios ndash a mandioca Juntando pilatildeo urupema saudade peneira de taquara raspador de coco esperanccedila colher de pau panela de barro mais a fartura de porcelana do oriente e bules e vasos de prata Eram doces preparados em tachos de cobre pesado heranccedila portuguesa largos quase trecircs palmos grandes duas alccedilas ardendo sobre velhos fogotildees a lenha Jovens negras tiravam os tachos pesados do fogo sem pedir ajuda As mais velhas usavam experiecircncia e sabedoria trazidas de terras distantes com olhares atentos para natildeo deixar o doce passar do ponto E sempre com aquela mesma forma de fazer ndash tranquila bem devagar sem pressa quase dolente (FREYRE 2007 p 13-14)

Bruit et al (2007) citam doces como as marmeladas goiabadas

rapaduras doces de frutas em calda acompanhados muitas vezes de queijo

como aqueles mais servidos nos jantares festivos que ocorriam nas casas-

grandes no interior de Satildeo Paulo e Minas Gerais Tanto as referecircncias de

Cacircmara Cascudo (2004) como as de Freyre (1964 2003 e 2007) revelam as

praacuteticas alimentares que ocorriam no Brasil colonial sobretudo nas casas-

grandes e dos sobrados que foram caracteriacutesticas primeiramente das regiotildees

dos engenhos de cana

Abdala (2007) afirma o controle da cozinha pelas mulheres no Brasil

colonial Referindo-se principalmente agraves escravas que viviam quase reclusas na

cozinha e por isso se tornaram personagem central na atividade da culinaacuteria

Segundo a autora essa era a realidade em Minas Gerais mas tambeacutem em

outras partes do paiacutes As escravas e as mulheres pobres executavam o serviccedilo

cotidiano Agraves senhoras ricas cabia dar as ordens e administrar os trabalhos

relativos agrave produccedilatildeo da comida Somente em algumas ocasiotildees elas se

dedicavam agrave elaboraccedilatildeo de algum prato ldquoEm casa no decorrer dos dias nas

festas intimas durante visitas como tambeacutem na rua no comeacutercio ambulante ou

90

das vendas cabia agrave mulher toda a funccedilatildeo relacionada agrave comidardquo (ABDALA

2007 p 80) Essa condiccedilatildeo tambeacutem eacute apontada por Vasconcellos (1968) que

apresenta a mulher deste periacuteodo em Minas Gerais como a dona absoluta dos

seus domiacutenios no interior das casas que compreendia tambeacutem a cozinha local

onde o homem raramente acessava

O domiacutenio feminino dos grupos eacutetnicos indiacutegenas africanos e portuguecircs

eacute perceptiacutevel na alimentaccedilatildeo brasileira ainda nos dias de hoje muito embora

com a chegada dos imigrantes europeus e tambeacutem de outras regiotildees a partir

da metade do seacuteculo XIX mulheres de outras culturas trouxeram importantes

contribuiccedilotildees para a culinaacuteria brasileira Destacando as italianas e as alematildes

cuja influecircncia se iniciou no Sul do Brasil mas tambeacutem na cidade de Satildeo Paulo

No interior do estado do Espirito Santo e na regiatildeo serrana do Rio de Janeiro as

culturas italianas e alematildes tambeacutem tiveram papel importante na formaccedilatildeo das

praacuteticas alimentares locais

Segundo Claval (2001) os saberes culinaacuterios foram repassados

matrilinearmente ao longo da histoacuteria e foram feitos principalmente por oralidade

pelas mulheres que podem ser chamadas de as ldquoguardiatildesrdquo termo usado por

Giddens (2012) e Simson (2003) Muitas mulheres mais velhas que natildeo tiveram

a oportunidade de estudar e sabiam apenas assinar o proacuteprio nome guardavam

na memoacuteria as receitas de suas matildees e avoacutes Pode-se dizer que a transmissatildeo

pela oralidade parece contribuir mais para aproximar as geraccedilotildees pela relaccedilatildeo

de proximidade necessaacuteria entre as mulheres Independente da forma se

escritas ou orais o importante eacute a compreensatildeo de que receitas repassadas

pelas geraccedilotildees carregam tambeacutem uma histoacuteria rica em significados e

experiecircncias vividas pelas mulheres das geraccedilotildees Afinal como dito por Doacuteria

(2006 p 103) ldquoreceitas como meros lsquomodos de fazerrsquo satildeo inuacuteteisrdquo

Tambeacutem Giard (2012) atribui agraves mulheres ndash as guardiatildes da tradiccedilatildeo ndash a

influecircncia na preferecircncia por determinados pratos Somos ldquovisitadosrdquo pelos

sabores e cheiros que a memoacuteria muitas vezes insiste em trazer agrave tona as

comidas de tempos de infacircncia e juventude que nos reporta a ocasiotildees

especiacuteficas da vida Em pesquisa etnograacutefica realizada com mulheres dedicadas

a culinaacuteria a autora concluiu que

A aquisiccedilatildeo dos ingredientes a preparaccedilatildeo e as regras de compatibilidade podem muito bem mudar de uma geraccedilatildeo agrave outra mas

91

o trabalho cotidiano das cozinhas continua sendo uma maneira de unir mateacuteria e memoacuteria vida e ternura instante presente e passado que jaacute se foi invenccedilatildeo e necessidade imaginaccedilatildeo e tradiccedilatildeo ndash gostos cheiros sabores formas consistecircncias atos gestos coisas e pessoas especiarias e condimentos (GIARD 2012 p 296)

Apesar do papel central da oralidade o caderno de receita eacute um

instrumento importante para se reportar aos haacutebitos alimentares de tempos

passados Talvez o primeiro registro de uma receita seja a que aponta Sitwell

(2012) Trata-se de um registro de 1700 aC na antiga Mesopotacircmia de uma

receita de ensopado de legumes e carne que foi esculpido em taacutebuas de argila

em fixada a um tuacutemulo Segundo Claval (2001) os registros de receitas em

cadernos tiveram iniacutecio em meados do seacuteculo XIX Haacute quem o tenha herdado

de pessoas da famiacutelia e mesmo que natildeo o utilize no dia-a-dia o manteacutem como

heranccedila afetiva

Abrahatildeo (2007) aponta que natildeo apenas receitas eram registradas em

muitos desses cadernos mas tambeacutem outras anotaccedilotildees necessaacuterias naquele

momento Ele menciona que as receitas culinaacuterias que foram arquivadas em

cadernos traziam ricas informaccedilotildees inclusive sobre outros aspectos

alimentares das eacutepocas como preccedilos ofertas e carecircncias temporaacuterias de

produtos

Atualmente e desde o surgimento da sociedade industrial as atividades

das mulheres passam por transformaccedilotildees com a saiacuteda para o mercado de

trabalho externamente ao lar a dupla jornada de trabalho as mudanccedilas sociais

poliacuteticas e econocircmicas que interferiram na dinacircmica da sociedade e

consequentemente na divisatildeo sexual do trabalho Isso propiciou a aproximaccedilatildeo

masculina da cozinha numa possiacutevel divisatildeo do trabalho domeacutestico espaccedilo

antes ocupado exclusivamente por mulheres Mas ainda assim segundo Doacuteria

(2012) a mulher eacute a principal responsaacutevel pela alimentaccedilatildeo da famiacutelia ldquoNatildeo haacute

duacutevidas de que ainda hoje a cozinha feminina eacute um dos pilares do poder da

mulher em que ela segue administrando a tradiccedilatildeo alimentar (DOacuteRIA 2012 p

255)

Segundo Giard (2012) ldquodentro de uma cultura uma mudanccedila das

condiccedilotildees materiais ou da organizaccedilatildeo poliacutetica eacute o que basta para modificar a

maneira de conceber e de repartir este tipo de tarefas cotidianas podendo

tambeacutem alterar a hierarquia dos diferentes trabalhosrdquo (GIARD 2012 p 211)

92

Para esta autora natildeo haacute nada de essecircncia feminina no fato de as mulheres de

ontem e as de hoje ainda serem as que mais se envolvem nas questotildees relativas

agrave alimentaccedilatildeo A questatildeo eacute puramente histoacuterica social e cultural

Diante das mudanccedilas e da permanecircncia feminina como principal

responsaacutevel pela alimentaccedilatildeo familiar as novas tecnologias disponibilizadas aos

espaccedilos da cozinha o acesso e a variedade de alimentos industrializados

facilitam a conduccedilatildeo desse papel pelas mulheres que desejam manter a

responsabilidade pela alimentaccedilatildeo da famiacutelia mas cujo tempo eacute escasso para

se dedicarem a todas as atividades que executam Por mais que possa haver

algum conflito em usaacute-los nos termos citados por Fischler (1995) haacute poreacutem o

aspecto da comodidade e economia de tempo que atuam como fatores

estimuladores ao seu uso

A dupla jornada de trabalho feminino natildeo ocorre apenas nas aacutereas

urbanas mas tambeacutem nas rurais seja para aquelas que possuem atividade

remunerada fora da propriedade em que moram seja para as que trabalham

apenas na propriedade As atividades das mulheres agricultoras envolvem o

ambiente interno e externo da casa e ainda o seu entorno e para muitas as

atividades tambeacutem do roccedilado conforme Panzutti (2006)

Na vida cotidiana a mulher se ocupa de cozinhar e servir a comida lavar a roupa cuidar dos animais prover a lenha costurar as roupas lavar a louccedila aleacutem de trabalhar na roccedila sempre acompanhada da prole que eacute de seu cuidado Eventualmente eacute auxiliada nessas tarefas por uma filha (PANZUTTI 2006 p 62)

Segundo a autora no meio rural a oposiccedilatildeo entre a casa e o

roccedilado apesar de socialmente ser dividida e hierarquizada mostrando os

domiacutenios dos homens e os das mulheres natildeo as livra de exercer muitas

atividades no espaccedilo considerado masculino Por outro lado a cozinha eacute um

espaccedilo bem definido como sendo o da mulher matildee de famiacutelia

Alguns estudos feitos no Sul do Brasil como o de Zanetti e Menasche

(2007) De Grandi (2003) Paulilo et al (2003) e Heredia (1984) relatam a

experiecircncia de mulheres atuando nas atividades agriacutecolas como o cuidado com

pequenos cultivos pomar pequenos animais mas tambeacutem mantendo a

responsabilidade pelas praacuteticas alimentares na preparaccedilatildeo e organizaccedilatildeo da

alimentaccedilatildeo da famiacutelia

93

Na apresentaccedilatildeo dos dados empiacutericos discuto as situaccedilotildees vivenciadas

pelas famiacutelias e o papel desempenhado pelas mulheres na alimentaccedilatildeo dos

membros da famiacutelia Tanto daquelas que trabalham apenas no siacutetio como

daquelas que exercem atividade remunerada fora dos siacutetios As mulheres

relataram sobre a dinacircmica exercida por elas no que se refere agraves praacuteticas

alimentares e cultura rural Na pesquisa de campo foram apontados pelos

entrevistados elementos aqui discutidos como a transmissatildeo de saberes

culinaacuterios e a relaccedilatildeo entre modos tradicionais e modos contemporacircneos das

praacuteticas culinaacuterias

94

4 ASPECTOS METODOLOacuteGICOS DA PESQUISA E A CHEGADA AO CAMPO

Neste capiacutetulo satildeo apresentados os aspectos metodoloacutegicos que

orientaram a pesquisa de campo bem como os resultados obtidos O trabalho

de campo foi conduzido utilizando-se um delineamento qualitativo agrave luz da

abordagem etnograacutefica no sentido dado por Peirano (1995) dando atenccedilatildeo

especial ao diaacutelogo com o outro Quivy e Campenhoudt (1992) defendem que o

trabalho de investigaccedilatildeo em Ciecircncias Sociais proporciona uma melhor anaacutelise

dos eventos qualitativos bem como uma compreensatildeo mais detalhada e sutil das

dinacircmicas de funcionamento do grupo estudado

Jaacute os direcionamentos de Poulain e Proenccedila (2003) tratam da pesquisa

voltada ao estudo das praacuteticas alimentares num contexto socioantropoloacutegico

Esses autores sugerem atenccedilatildeo conjunta por parte do pesquisador aos

comportamentos dos informantes naquilo que chamam de ldquopraacuteticas observadasrdquo

e ldquopraacuteticas reconstruiacutedasrdquo Para os autores aquilo que o pesquisador observa

durante a entrevista age em conjunto com os relatos dos entrevistados

auxiliando a interpretaccedilatildeo dos dados

As praacuteticas observadas dizem respeito ao que eacute testemunhado pelo

pesquisador satildeo detalhes muitas vezes relevantes mas que nem sempre satildeo

fornecidos pelos interlocutores por razotildees diversas Para facilitar posteriormente

o acesso agraves informaccedilotildees obtidas por meio da observaccedilatildeo o uso de alguns

instrumentos de apoio eacute importante o caderno de campo a cacircmera fotograacutefica

e o gravador As praacuteticas reconstruiacutedas dizem respeito ao trabalho de

rememorizaccedilatildeo Interessa investigar e comparar vivecircncias passadas com as

atuais no caso da alimentaccedilatildeo praacuteticas que foram adotadas alimentos que

fizeram parte da dieta traccedilos de comensalidade comemoraccedilotildees festivas onde

a comida esteja presente o que permanece e o que foi abandonado

Entre outras questotildees busquei verificar junto agraves famiacutelias a influecircncia da

heranccedila culinaacuteria envolvendo a cultura imaterial (eventos relacionados agrave comida

que satildeo tradicionais na famiacutelia) a representaccedilatildeo das praacuteticas alimentares no

tempo passado e presente e o papel dos guardiatildees da tradiccedilatildeo da culinaacuteria

familiar a relaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo bem como com os modos de alimentaccedilatildeo

moderna

95

41 Teacutecnica de pesquisa

A entrevista semiestruturada foi a teacutecnica de pesquisa utilizada para

obtenccedilatildeo de informaccedilotildees das praacuteticas reconstruiacutedas e observadas (POULAIN

PROENCcedilA 2003) justificam como sendo a forma mais confiaacutevel quando dirigida

pelo proacuteprio pesquisador e ainda por permitir aprofundamento das questotildees As

entrevistas podem ser reformuladas ao longo da sua ocorrecircncia com o objetivo

de redirecionar a discussatildeo para o assunto poreacutem sem se prender totalmente agrave

pergunta inicial ldquoAs digressotildees satildeo importantes porque permitem perceber as

representaccedilotildees e os quadros de referecircncia mais ou menos conscientes nos

quais se manifestam as loacutegicas dos atoresrdquo (p 373)

A entrevista permite ao pesquisador uma variedade de interpretaccedilotildees A

atenccedilatildeo do pesquisador e seu feeling tambeacutem satildeo muito importantes pois eacute

preciso estar atento para fazer tanto abordagens objetivas e palpaacuteveis como

simboacutelicas Neste uacuteltimo caso estar atento ao que natildeo aparece claramente na

mensagem e fica impliacutecito na fala

42 Os sujeitos da pesquisa

A definiccedilatildeo dos sujeitos da pesquisa foi realizada a partir de dados

fornecidos pela Emater relativos a cada municiacutepio selecionado Poreacutem como o

trabalho de campo eacute dinacircmico novos informantes surgiram durante esta fase

pois ao entrevistar uma famiacutelia sugiram durante as conversas nomes de outras

pessoas da proacutepria comunidade que pelos objetivos da pesquisa foi

interessante entrevistar Assim as informaccedilotildees da Emater representaram a

porta de entrada mas natildeo uma limitaccedilatildeo para a seleccedilatildeo dos entrevistados

O uacutenico preacute-requisito para a pesquisa era que os interlocutores

morassem na aacuterea rural dos trecircs municiacutepios delimitados O objetivo era conhecer

as praacuteticas que ocorriam no conjunto familiar e natildeo necessariamente as praacuteticas

individuais

Foram realizadas 40 entrevistas abrangendo 17 comunidades rurais

sendo 05 em Piranga 07 em Porto Firme e 05 em Presidente Bernardes cujos

nomes constam no Quadro 1 bem como o nuacutemero de famiacutelias entrevistadas 14

em Piranga 12 em Porto Firme e 14 em Presidente Bernardes O nuacutemero de

96

famiacutelias entrevistadas por comunidade eacute aquele que consta entre os parecircnteses

no referido quadro

Quadro 1 ndash Municiacutepios comunidades e nuacutemero de famiacutelias 2015

Municiacutepios Comunidades

Piranga Boa Vista (2) Manja (3) Mestre Campos (4) Bom Jesus do Bacalhau (2) Tatu (3)

Porto Firme Aacutegua Limpa (2) Bom Retiro (1) Vinte Alqueires (1) Limeira (2) Posses (2) Jacuba28 (2) Satildeo Domingos (2)

Presidente Bernardes Itapeva (3) Mato Dentro (3) Ribeiratildeo (3) Xopotoacute (3) Bananeiras (2)

Fonte Pesquisa de campo 2015

43 A conduccedilatildeo da pesquisa o caminho percorrido

A pesquisa de campo teve como objetivo analisar agrave luz da teoria

sistematizada o significado da comida e as relaccedilotildees de comensalidade atendo-

se agraves mudanccedilas e permanecircncias referentes agraves praacuteticas alimentares das famiacutelias

Mais especificamente analisar a articulaccedilatildeo entre o tradicional e o moderno o

processo de escolha alimentar e os princiacutepios que a determinam como haacutebitos

tradiccedilatildeo praticidade custo etc a influecircncia dos guardiatildees da tradiccedilatildeo na

reproduccedilatildeo do gosto no processo de significaccedilatildeo e ressignificaccedilatildeo da comida

atrelada agraves praacuteticas aos saberes e aos haacutebitos tanto no cotidiano quanto nos

rituais

A pesquisa de investigaccedilatildeo teoacutericobibliograacutefica me conduziu a pensar

as categorias analiacuteticas e as variaacuteveis para a conduccedilatildeo do processo empiacuterico

Assim a alimentaccedilatildeo em seu sentido cultural e simboacutelico como o que foi

discutido nos campos teoacutericos da antropologia e da sociologia da alimentaccedilatildeo

28 Perguntei aos entrevistados desse local se eles sabiam porque a comunidade se chamava Jacuba mas

natildeo souberam responder Os nomes das comunidades estatildeo quase todas relacionadas ao nome de primeira fazenda implantada na localidade Perguntei isso porque ldquojacubardquo eacute um termo indiacutegena usado para se referir a um tipo de comida parecida com o piratildeo agrave base de aacutegua e farinha de mandioca e rapadura muito consumida pelos tropeiros no periacuteodo da mineraccedilatildeo em Minas Antocircnio Cacircndido tambeacutem se refere a ela na descriccedilatildeo dos caipiras paulistas

97

no capiacutetulo anterior eacute eleita como categoria analiacutetica central A partir dela foram

definidas outras quatro subcategorias de suporte 1 As praacuteticas alimentares 2

A comensalidade 3 O espaccedilo social da alimentaccedilatildeo 4 A cultura Como

atributos importantes para a anaacutelise dessas categorias delineei as variaacuteveis

norteadoras da pesquisa empiacuterica e que me ajudaram a observar a descrever

a analisar e a interpretar os dados

Sobre a cultura o interesse foi traccedilar uma caracterizaccedilatildeo ou um ldquoretratordquo

das famiacutelias quanto agrave origem (rural ou urbana) o tempo em que moram na regiatildeo

pesquisada se a terra eacute herdada ou adquirida a faixa etaacuteria aproximada se satildeo

idosos ou jovens a produccedilatildeo de alimentos e as atividades realizadas no

cotidiano

Nas praacuteticas alimentares o interesse foi o de conhecer as informaccedilotildees

relativas aos alimentos mais consumidos no cotidiano e nos eventos especiais

o que eacute produzido no local e o que eacute comprado o horaacuterio das refeiccedilotildees a relaccedilatildeo

com a atividade (por prazer ou por obrigaccedilatildeo) a comida tradicional (o papel dos

guardiatildees da cultura alimentar os cadernos de receita o aprendizado por

oralidade) a comida de antigamente e a comida de hoje a comida para visita e

a comida para os de casa os aspectos levados em consideraccedilatildeo na escolha dos

alimentos (tradiccedilatildeo praticidade custo e atraccedilatildeo pelo moderno)

Para analisar a comensalidade foi preciso identificar se ela estaacute

presente nos haacutebitos familiares no cotidiano e em datas especiais os locais onde

ela ocorre (cozinha copa aacuterea externa da casa sala de visita) e o tempo

aproximado de duraccedilatildeo das refeiccedilotildees

O espaccedilo social da alimentaccedilatildeo se refere ao local de preparo e de

consumo das refeiccedilotildees Importa saber a este respeito quem prepara as

refeiccedilotildees e quais satildeo os equipamentos existentes neste espaccedilo por exemplo a

presenccedila do fogatildeo a lenha e a gaacutes e a constacircncia de seus usos ou seja qual

deles eacute mais utilizado Tambeacutem a existecircncia e usos de equipamentos eleacutetricos

como geladeira freezer forno eleacutetrico forno de micro-ondas batedeira de bolo

etc Neste sentido analisar se nesse espaccedilo social ocorre a relaccedilatildeo entre

tradiccedilatildeo e modernidade na posse e uso dos equipamentos ou o predomiacutenio de

uma dessas caracteriacutesticas Buscou-se ainda analisar se permanecem os

costumes alimentares quanto aos locais destinados agrave comensalidade ou este

espaccedilo social estaacute passando por transformaccedilotildees

98

44 A entrevista semiestruturada

As entrevistas foram gravadas com a permissatildeo dos interlocutores da

pesquisa Apenas uma famiacutelia na comunidade de Ribeiratildeo em Presidente

Bernardes natildeo se sentiu agrave vontade com o gravador e realizei as anotaccedilotildees em

caderno de campo Os nomes dos entrevistados citados no decorrer deste

capiacutetulo satildeo pseudocircnimos que substituiacuteram os verdadeiros para preservar a

identificaccedilatildeo dos participantes conforme exigecircncia constante no Parecer

Consubstanciado do Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa com Seres Humanos (CEP)

da Universidade Federal de Viccedilosa

O estilo da narrativa para apresentaccedilatildeo dos resultados da pesquisa

segue o direcionamento proposto na perspectiva etnograacutefica discutida por

Peirano (1995 e 2008) Marcus e Cushman (1998) e Uriarte (2012) Para Marcus

e Cushman (1998 p 175-176) a narrativa etnograacutefica do seacuteculo XX tem se

baseado no que chamam de realismo etnograacutefico sendo ldquoun modo de escritura

que busca representar la realidade de todo un mundo o de uma forma de vidardquo

Outras caracteriacutesticas da narrativa etnograacutefica realista segundo os autores satildeo

Una cuidadosa atencioacuten hacia nos detalles y demonstraciones redundantes de

que el escritor compartioacute y experimentoacute ese mundordquo

Para Peirano (2008 p 6) ldquoo trabalho de campo se faz pelo diaacutelogo vivo

e depois a escrita etnograacutefica pretende comunicar ao leitor (e convencecirc-lo) de

sua experiecircncia e sua interpretaccedilatildeordquo

45 A imersatildeo em campo a chegada e a travessia

Se a accedilatildeo de comer eacute algo tatildeo iacutentimo ao ser humano conforme reflete

Mintz (2001) analisar os haacutebitos e as praacuteticas alimentares de pessoas e grupos

se torna uma atividade de grande responsabilidade Trabalhar os dados de forma

analiacutetica e criacutetica agrave luz das abordagens teoacutericas e portanto longe do julgamento

do senso comum eacute o papel do pesquisador Foi com essa percepccedilatildeo que

enveredei no campo pensando a pesquisa empiacuterica como descobertas a serem

feitas pelo caminho naquele sentido absorvido quando li Grande Sertatildeo

Veredas de Guimaratildees Rosa pela primeira vez

99

O real natildeo estaacute na saiacuteda nem na chegada ele se dispotildee para a gente eacute no meio da travessia () Assaz o senhor sabe a gente quer passar um rio a nado e passa mas vai dar na outra banda eacute num ponto muito mais em baixo bem diverso do que em primeiro se pensou (ROSA 2001 p 51 e 80)

Fazer pesquisa de campo eacute algo semelhante Faz-se um planejamento

mas durante o percurso eacute preciso lidar por um lado com os ldquoimponderaacuteveis da

pesquisardquo29 e por outro com a expectativa das descobertas a serem feitas na

travessia A praacutetica empiacuterica eacute tambeacutem trabalho analiacutetico e reflexivo mas eacute

sobretudo ndash concordando com a ideia de Peirano (1995 p 57) ndash ldquotrabalho

artesanal microscoacutepico detalhista e que traduz como poucas outras o

reconhecimento do aspecto temporal das explicaccedilotildeesrdquo Ela argumenta ainda que

a conduccedilatildeo de uma pesquisa de campo ldquodepende entre outras coisas da

biografia do pesquisador das opccedilotildees teoacutericas do contexto sociohistoacuterico e das

imprevisiacuteveis situaccedilotildees que se configuram no dia-a-dia no proacuteprio local de

pesquisa entre pesquisador e pesquisadosrdquo (p 22)

Para esta pesquisa as questotildees em torno dos haacutebitos praacuteticas

alimentares e sociabilidades das famiacutelias rurais foram importantes para a

investigaccedilatildeo cientiacutefica pretendida Assim foi necessaacuteria a compreensatildeo por

parte dos interlocutores sobre a importacircncia de sua participaccedilatildeo Coube a eles

apoacutes o entendimento da pesquisa abrir a sua intimidade alimentar cotidiana Fui

convidada pelos entrevistados ndash mulheres na maior parte ndash a ldquoadentrar e puxar

assentordquo na cozinha Tambeacutem me convidaram para conhecer o quintal colher

verdura na horta e inclusive a participar das refeiccedilotildees em todas as casas

visitadas fosse almoccedilo fosse ldquomerendardquo ou mesmo apanhar frutas diretamente

do peacute durante conversas ocorridas no pomar

Assim percorri regiotildees rurais de Piranga Porto Firme e Presidente

Bernardes entre os meses de fevereiro a junho de 2015 fazendo descobertas

aprendendo apreendendo dialogando analisando questionando e refletindo

sobre os sentidos da comida e do comer no espaccedilo rural contemporacircneo das

famiacutelias pesquisadas

29 Termo que foi utilizado primeiramente por Bronislaw Malinowski (1976) ao falar sobre os ldquoimponderaacuteveis

da vida realrdquo para se referir a rotina do trabalho diaacuterio do nativo os detalhes de seus cuidados corporais o modo como prepara a comida e come as simpatias ou aversotildees e etc Utilizo o termo semelhante para pensar os eventos inesperados da pesquisa empirica

100

Naquelas famiacutelias em que fui apresentada diretamente pelos teacutecnicos da

Emater e a quem acompanhei em algumas de suas visitas agraves comunidades

atendidas no mecircs de janeiro de 2015 e mesmo naquelas onde minha preacutevia

apresentaccedilatildeo foi feita via telefone a chegada para a pesquisa foi mais simples

Entretanto naquelas em que houve indicaccedilatildeo por parte dos proacuteprios

entrevistados o processo foi mais lento mas natildeo difiacutecil ou impeditivo Apenas

levei mais tempo para organizar a visita Em um dia ia ao local me apresentava

explicava sobre a pesquisa que havia sido realizada com seus conhecidos na

mesma comunidade respondia agraves perguntas e curiosidades e por fim

agendava um retorno Considero como mais provaacutevel eacute que tenham aceitado

participar da pesquisa em funccedilatildeo de eu ter citado o mesmo trabalho feito com

pessoas conhecidas Natildeo sei dizer se foram buscar confirmaccedilatildeo sobre isso A

teacutecnica da Emater de Piranga que estava se aposentando se propocircs a percorrer

comigo algumas comunidades em alguns dias da segunda quinzena de janeiro

de 2015 me mostrando os caminhos e apresentando a algumas pessoas

Em geral as pessoas foram atenciosas Algumas se mostraram mais

interessadas do que outras e por isso o envolvimento foi maior Poreacutem todas

deram contribuiccedilotildees muito importantes Houve dois casos em que precisei

retornar em outro dia Em um dos casos porque houve falecimento de um

parente na manhatilde do dia da entrevista e natildeo tiveram como me avisar antes Na

outra situaccedilatildeo o casal de aposentados precisou ir agrave cidade resolver problemas

pessoais e pediu para marcarmos um outro dia Foi necessaacuterio tambeacutem o

adiamento da pesquisa em dias de chuva devido agraves condiccedilotildees ruins das

estradas

Optei por dividir o horaacuterio das entrevistas em manhatilde e tarde para

conviver com dois momentos do cotidiano das famiacutelias respeitando os horaacuterios

delas Assim consegui realizar 15 entrevistas na parte da manhatilde e as outras 25

na parte da tarde O horaacuterio de chegada pela manhatilde era entre 800 e 830

tambeacutem em acordo com as famiacutelias Na parte da tarde o horaacuterio era entre 1330

e 1400 Almocei porque era convidada nas casas onde iniciava o trabalho na

parte da manhatilde o que me permitia acompanhar o processo de elaboraccedilatildeo do

almoccedilo as conversas no geral aconteciam na cozinha mas parte delas ocorria

tambeacutem nas hortas e nos quintais

101

A partir do proacuteximo item passo a apresentar os dados obtidos em campo

baseados em informaccedilotildees fornecidas pelos interlocutores da pesquisa e tambeacutem

nas observaccedilotildees que fiz Os itens e subitens estatildeo relacionados agraves variaacuteveis

elencadas no projeto de pesquisa que compuseram o roteiro de entrevista

No item 46 apresento dados de caraacuteter descritivo-analiacutetico sobre a

cultura e os modos de vida do grupo pesquisado as atividades cotidianas de

trabalho as impressotildees empiacutericas e sua relativizaccedilatildeo agrave luz dos dados do IBGE

(2010) sobre uma regiatildeo que aos olhos dos entrevistados parece estar

envelhecendo Apresento e discuto tambeacutem outras percepccedilotildees culturais do

cotidiano Em todo o item algumas reflexotildees sobre as praacuteticas alimentares satildeo

sinalizadas ou apontadas No entanto as discussotildees mais especiacuteficas sobre as

praacuteticas alimentares satildeo feitas no capiacutetulo 5

46 Descobrindo a cultura local dos entrevistados

461 Perfil das famiacutelias

Na regiatildeo pesquisada predomina a agricultura de base familiar que eacute

aquela em que a propriedade a gestatildeo e o trabalho estatildeo ligados agrave famiacutelia no

sentido dado por Gasson e Errington (2003 p 20) O marido a esposa e tambeacutem

os filhos adolescentes quando chegam da escola satildeo os que trabalham na

propriedade Entre os casais idosos as atividades de produccedilatildeo satildeo muito

reduzidas por dificuldades fiacutesicas em executar alguns trabalhos Em alguns siacutetios

haacute filhos casados ou solteiros se responsabilizando pelas atividades dos pais

As aacutereas rurais dos trecircs municiacutepios se assemelham tanto ao que se

relaciona agraves atividades agriacutecolas quanto agrave cultura e haacutebitos cotidianos inclusive

os alimentares A maior parte das famiacutelias (899) mora em pequenos siacutetios que

se formaram por divisatildeo de heranccedila de propriedades maiores O restante

adquiriu por meio de compra Em todos os casos de heranccedila ela proveacutem dos

pais do marido Essas informaccedilotildees obtidas em campo coincidem com o que eacute

apresentado por Maria Joseacute Carneiro (2001 e 1998b) Abramovay et al (1998)

Woortmann (1995) Spanevello e Lago (2010) Paulilo (2003) Mendonccedila et al

(2013) e Moura (1978) ao discutirem o processo sucessoacuterio do meio rural

Apontam que historicamente a heranccedila eacute dada ao filho de sexo masculino que

102

assume a continuaccedilatildeo das atividades ldquoenquanto as mulheres se tornam

agricultoras por casamentordquo (Paulilo 2003 p 188) Situaccedilatildeo semelhante foi

verificada na minha pesquisa As mulheres disseram natildeo ter herdado terra dos

pais agricultores sendo possuidoras de terra a partir do momento em que se

casaram e passaram a partilhar a terra herdada pelo marido

Outros estudos como os de Woortmann (1995) Carneiro (1998b) e

Camarano e Abramovay (1998) tecircm sinalizado uma mudanccedila nos uacuteltimos anos

Uma das razotildees estaacute associada agraves transformaccedilotildees de perspectivas da juventude

rural em relaccedilatildeo ao campo Segundo os autores muitos jovens natildeo demonstram

mais tanto interesse em permanecer no campo e assumir a incumbecircncia total

pela manutenccedilatildeo da terra que pertenceu aos pais Em minha pesquisa natildeo tive

como objetivo discutir a questatildeo sucessoacuteria mas as famiacutelias cujos filhos

moravam nos siacutetios dos pais (666) eram sobretudo aquelas compostas por

casal de idosos e aposentados Nestes casos os filhos natildeo moravam

necessariamente na mesma casa Quando se tratava de filhos casados eles

moravam em casas separadas

A origem rural eacute predominante no grupo pesquisado sendo a realidade

de 95 das famiacutelias entrevistadas As famiacutelias satildeo pequenas sendo 36 pessoas

o tamanho meacutedio incluindo aquelas de casais aposentados e natildeo aposentados

que tecircm os filhos morando em casa Predominam aquelas compostas por

aposentados que moram sozinhos existindo no entanto algumas cujos filhos

solteiros moram com os pais Em alguns dos casos um dos filhos casados mora

no siacutetio mas em casa separada dos pais

As famiacutelias compostas por casais de aposentados correspondem a 24

delas (60) Desse total 11 famiacutelias estatildeo em Presidente Bernardes 08 em

Piranga e 05 em Porto Firme O municiacutepio de Presidente Bernardes representa

aquele com maior percentual de aposentados 80 Em Piranga eles

representam 6875 e em Porto Firme 50

As outras 16 famiacutelias satildeo compostas por casais cuja faixa etaacuteria varia de

30 a 50 anos Nestas famiacutelias os filhos a partir dos 16 anos tecircm saiacutedo para

estudar em outras cidades proacuteximas como Viccedilosa Ouro Preto ou Ouro Branco

onde possam cursar o niacutevel superior Essa foi a realidade encontrada em sete

delas Isso tem ocorrido por interesse tambeacutem dos pais que desejam vecirc-los

formados em um curso superior

103

Em relaccedilatildeo agrave escolaridade a maior parte (646) das pessoas com

idade acima de 60 anos tinham o ensino fundamental incompleto 187

concluiacuteram o ensino fundamental 104 disseram ter sido semialfabetizado ou

seja sabem assinar o nome e ler e escrever muito pouco30 e 63 possuem o

ensino meacutedio completo Entre o puacuteblico na faixa etaacuteria de 30 a 50 anos

predomina o ensino meacutedio completo (532) 373 natildeo completou o ensino

meacutedio e 95 possuem apenas o ensino fundamental completo As mulheres

representam o maior percentual dentre o puacuteblico que concluiu o ensino meacutedio

Os filhos que moram na casa dos pais com idade inferior a 30 anos estatildeo

estudando a maior parte deles crianccedilas e adolescentes

Embora o tema desse subitem natildeo seja objetivo analiacutetico deste trabalho

considerei interessante inserir uma breve discussatildeo em funccedilatildeo de que durante

as entrevistas muitos depoimentos destacaram a saiacuteda dos jovens e a

permanecircncia dos casais de aposentados das regiotildees em que vivem A busca

pela continuidade dos estudos tem determinado a saiacuteda dos jovens Sem

disponibilidade de ensino superior nos municiacutepios em que moram os filhos tecircm

saiacutedo para outras regiotildees proacuteximas e contam com o estimulo dos pais para isso

Os pais alegam que natildeo tiveram oportunidade de fazer um curso superior ou

mesmo teacutecnico e que desejam isso para os filhos porque percebem que a

realidade de trabalho no campo atualmente estaacute mais difiacutecil do que em tempos

atraacutes Relataram que seus pais conseguiram criar famiacutelias grandes com maior

facilidade do que hoje obtendo renda da agricultura Realidade que segundo os

entrevistados estaacute cada vez mais distante na contemporaneidade

Para Zefa moradora de Mato Dentro Presidente Bernardes uma das

explicaccedilotildees para o baixo nuacutemero de pessoas mais novas morando na aacuterea rural

da regiatildeo decorre da divisatildeo das propriedades chegando ao ponto de natildeo ter

mais como dividi-las entre os herdeiros e explica ldquoEsse siacutetio aqui jaacute foi dividido

quando meu sogro deixou aqui para noacutes Se a gente fosse dividir para nossos

nove filhos natildeo ir dar nada entatildeo os filhos foram pra cidade achar um jeito

melhor porque na roccedila eacute tudo mais difiacutecil mesmordquo

Muitos pais ao falarem dos seus filhos jovens destacam que eles se

sentem atraiacutedos por bens e tecnologias que natildeo estatildeo disponiacuteveis no campo o

30 Percebi o constrangimento de alguns quando eu lhes explicava sobre a necessidade de assinatura dos

entrevistados ao ldquoTermo de Consentimento Livre e Esclarecidordquo do Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa

104

mais citado foi o acesso agrave internet O filho de Lola e Marcos que tem 10 anos de

idade possui um celular que soacute utiliza quando vai agrave cidade Consegue acessar

a rede por laacute com o uso da senha que um amigo disponibilizou Os filhos de

Carmem quando visitam os pais reclamam de natildeo ter como acessar a internet

no siacutetio Por outro lado os depoimentos apontaram que os filhos que moram fora

dos siacutetios natildeo tem a mesma reclamaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave comida ao contraacuterio

sentem o desejo de comer a comida tradicional que consumiam quando

moravam no local

Quando os filhos vecircm eles querem comer comida daqui eles falam que eacute ldquocomida de matildeerdquo estatildeo enjoados do que comem na cidade eles falam isso porque eacute com essa comida daqui que foram acostumados comida deles laacute na cidade tem muito tempero artificial igual esse tal de sazon (Doca moradora de Boa Vista Piranga MG 2015)

Haacute no comportamento dos filhos jovens das famiacutelias que entrevistei um

conflito de ordem cultural Desejam manter identidades culturais locais sentem

necessidade da comida da matildee da comida tradicional e de sempre que possiacutevel

visitar os pais como eacute o caso das filhas de Nilsa e Jonas de Satildeo Domingos

Porto Firme que estudam em Viccedilosa Quase todos os finais de semana visitam

os pais Por outro lado sentem falta do acesso a tecnologias e outras opccedilotildees

oferecidas a eles na cidade

Mas o outro lado tambeacutem existe Haacute o exemplo dos filhos que optam por

permanecer junto dos pais por mais tempo embora eu tenha encontrado apenas

dois casos nas famiacutelias entrevistadas Um exemplo eacute o da filha mais nova de

Nanaacute e Custoacutedio moradores de Xopotoacute em Presidente Bernardes Ela continua

morando com os pais trabalha na cidade de Presidente Bernardes e o uso de

uma moto permite que vaacute almoccedilar em casa Ela tambeacutem estuda cursa Letras na

modalidade agrave distacircncia Como natildeo possui internet em casa se dedica ao curso

nos finais de semana na casa da irmatilde casada que mora em um siacutetio localizado

muito proacuteximo agrave cidade e tem acesso agrave internet Seu objetivo depois que se

formar eacute permanecer na regiatildeo como professora na escola estadual do

municiacutepio Seu irmatildeo de 27 anos tambeacutem permanece no siacutetio Apoacutes concluir o

ensino meacutedio optou por trabalhar na agricultura junto com o pai e eacute ele quem

assumia essas atividades na ocasiatildeo da pesquisa

105

Martins (2012) discute que uma das grandes dificuldades da

modernidade para o ldquohomem comumrdquo eacute conseguir superar as irracionalidades e

as contradiccedilotildees impostas por ela que geram conflitos de ordem cultural ldquode

permanente proposiccedilatildeo da necessidade de optar entre isto e aquilo entre o novo

e fugaz de um lado e o costumeiro e tradicional de outrordquo (p 20)

A literatura sobre juventude rural como os trabalhos de Carneiro e

Castro (2007) Brumer (2007) Abramovay et al (1998) Durston (1994) entre

outros tem apontado os desafios para esse grupo etaacuterio em encontrar formas

de permanecer no campo desenvolvendo atividades de trabalho que lhes sejam

atrativas no mundo contemporacircneo Dentre os motivos que estimulam a saiacuteda e

a busca de trabalho em atividades fora da aacuterea rural estatildeo as dificuldades tanto

para conduzir quanto para obter retorno financeiramente favoraacutevel da atividade

rural e a pequena disponibilidade de terra familiar para empreender uma

atividade proacutepria e constituir famiacutelia

Como visto a literatura aponta para uma tendecircncia ao envelhecimento

e masculinizaccedilatildeo do campo Esta foi a minha percepccedilatildeo empiacuterica tambeacutem

Apesar disso eacute preciso considerar que a entrevista abrangendo 40 famiacutelias nos

trecircs municiacutepios natildeo permite classificar essa situaccedilatildeo como generalizada pois a

realidade que encontrei em relaccedilatildeo agrave faixa etaacuteria na regiatildeo pesquisada natildeo

coincide com a realidade apontada pelo IBGE (2010) em termos percentuais

como seraacute mostrado a seguir Isso poreacutem natildeo interfere nos objetivos da

pesquisa pois se trata de uma abordagem qualitativa

No grupo de 40 famiacutelias que pesquisei a populaccedilatildeo idosa eacute

predominante Encontrei um puacuteblico constituiacutedo por 24 famiacutelias cujos casais

tinham acima de 60 anos e 16 famiacutelias cujos casais tinham entre 30-50 anos

Como natildeo havia pessoas viuacutevas a proporccedilatildeo de homens e mulheres era a

mesma 50

No montante das 40 famiacutelias 20 delas possuem filhos morando na casa

dos pais Dentre eles 10 satildeo crianccedilas 08 satildeo jovens e 02 satildeo adultos Nenhum

filho casado mora com os pais Dentre os vinte filhos 08 satildeo mulheres e 12 satildeo

homens Assim o universo de pessoas que constituiacuteam as famiacutelias entrevistadas

foi de 100 pessoas o que representa apenas 048 do total da populaccedilatildeo rural

total da pesquisa do IBGE (2010) mostrado na Tabela 4

106

Assim o perfil etaacuterio do grupo pesquisado se constitui de 48 de

populaccedilatildeo idosa 34 de populaccedilatildeo adulta 8 de populaccedilatildeo jovem e 10 de

populaccedilatildeo infantil

Exceto para o perfil adulto os demais perfis etaacuterios no grupo que

pesquisei apresentam dissonacircncia em relaccedilatildeo ao perfil etaacuterio rural do IBGE

(2010) mostrado nas Tabelas 3 e 4 Pelo IBGE o perfil etaacuterio da regiatildeo se

constitui de 13 de populaccedilatildeo idosa 36 de populaccedilatildeo adulta 26 de

populaccedilatildeo jovem e 23 7 de populaccedilatildeo infantil (Tabela 5)

Tabela 5 ndash Comparativo entre perfil etaacuterio do IBGE (2010) e da pesquisa de campo 2015 ()

Fonte Populaccedilatildeo

rural 1-14 anos

() 15-29

anos () 30-59

anos ()

Acima de 60 anos

()

IBGE (2010) 20755 237 26 36 13 Pesquisa de campo (2015) 100 10 08 34 48

Fonte IBGE (2010) e Pesquisa de campo (2015)

A composiccedilatildeo de gecircnero das famiacutelias pesquisadas se aproxima muito

ao perfil dos dados do IBGE (2010) sendo o puacuteblico masculino um pouco maior

do que o puacuteblico feminino em ambos os casos (Tabela 6)

Tabela 6 ndash Comparativo da composiccedilatildeo de gecircnero do IBGE e da pesquisa de campo 2015

Fonte Populaccedilatildeo

rural Mulheres () Homens ()

IBGE (2010) 20755 481 517 Pesquisa de campo (2015) 100 48 52

Fonte IBGE (2010) e Pesquisa de campo (2015)

107

Em funccedilatildeo dos dados acima eacute possiacutevel afirmar a ocorrecircncia de um

processo de envelhecimento no grupo pesquisado natildeo sendo possiacutevel afirmar

semelhante situaccedilatildeo para toda a regiatildeo rural dos municiacutepios

462 A produccedilatildeo agriacutecola local

A produccedilatildeo agriacutecola eacute pequena mesmo naqueles siacutetios cuja produccedilatildeo

tambeacutem se destina agrave comercializaccedilatildeo A pequena produccedilatildeo de milho objetiva a

produccedilatildeo de fubaacute que possui importacircncia fundamental para a alimentaccedilatildeo das

famiacutelias e dos animais O fubaacute obtido do milho possibilita suprir as famiacutelias com

o produto que eacute utilizado na preparaccedilatildeo do angu alimento consumido

diariamente no almoccedilo e no jantar e na elaboraccedilatildeo da broa uma das principais

quitandas que eacute elaborada diariamente para abastecer a famiacutelia com a

ldquomerendardquo do cotidiano e para ter o que oferecer agraves visitas que chegarem de

surpresa

A cana tambeacutem atende agraves necessidades alimentares animais Apenas

em um siacutetio ela eacute usada para fabricaccedilatildeo de cachaccedila e em outros dois na

fabricaccedilatildeo de rapadura e melado

As principais atividades geradoras de renda das famiacutelias pesquisadas

satildeo leite carvatildeo cafeacute feijatildeo e cachaccedila As famiacutelias que produzem para

comercializaccedilatildeo praticam de duas a trecircs atividades ao mesmo tempo leite e

carvatildeo cafeacute e feijatildeo consorciados e carvatildeo leite e cafeacute Apenas uma famiacutelia

produz cachaccedila para comercializaccedilatildeo e tem nessa atividade uma importante

fonte geradora de renda Nos demais siacutetios cuja produccedilatildeo se destina apenas ao

autoconsumo a produccedilatildeo se baseia em milho feijatildeo leguminosas hortaliccedilas

frutas frangos e porcos caipiras

No Quadro 2 eacute apresentada a origem da renda das famiacutelias Entre

aquelas em que a aposentadoria eacute a uacutenica fonte de renda a produccedilatildeo agriacutecola

se destina apenas para o autoconsumo Naquelas em que a aposentadoria e a

atividade agriacutecola estatildeo presentes a produccedilatildeo eacute administrada por um filho seja

casado ou solteiro mas a maior parte eacute casada e mora proacuteximo aos pais Eacute

importante ressaltar que satildeo sempre os filhos homens que exercem tal funccedilatildeo

Para os pais a presenccedila dos filhos por perto assumindo os trabalhos eacute fator

positivo pois leva-os a se sentir mais tranquilos

108

Quadro 2 ndash Fonte de renda das famiacutelias pesquisadas 2015

Fonte Nordm de famiacutelias

Apenas aposentadoria 14 350

Aposentadoria e atividade agropecuaacuteria no siacutetio 10 250

Atividade agropecuaacuteria no siacutetio e outra 09 225

Atividade agropecuaacuteria 07 175

Total de famiacutelias 40 1000

Fonte Pesquisa de campo 2015

Nas famiacutelias em que a renda eacute obtida da atividade agriacutecola e de outra

fonte a maior parte desta uacuteltima eacute gerada pelo trabalho das mulheres (889)

envolvidas nas seguintes atividades serventes e merendeiras nas escolas rurais

(Marina Ivone e Juliana)31 servente na escola da cidade (Solange) diarista em

casas proacuteximas (Arminda) Haacute tambeacutem aquelas mulheres que utilizam atividades

em casa como eacute o caso de Nilsa Marcelina e Ivone que produzem quitandas e

salgados para vender no entorno ou na cidade proacutexima e Nanaacute que trabalha

como costureira32 Na outra situaccedilatildeo trata-se de uma famiacutelia que possui um

pequeno comeacutercio na comunidade fora do siacutetio onde vive

463 Atividades cotidianas de trabalho nos siacutetios

A maior parte de meus interlocutores foi composta por mulheres e

mesmo quando os homens estavam presentes elas eram as mais ativas no

diaacutelogo Assim muitas das informaccedilotildees sobre o trabalho do cotidiano estatildeo

atreladas agrave realidade vivenciada por elas

Naquelas famiacutelias cuja renda eacute apenas a atividade agropecuaacuteria o

trabalho envolve tambeacutem a mulher e os filhos que estejam morando com os pais

As mulheres se envolvem em todas as atividades seja na lavoura de feijatildeo na

colheita de cafeacute na limpeza do suiacuteno abatido como eacute o caso de Lola (41 anos

31 Marina Ivone Marcelina e Nilsa satildeo moradoras de Porto Firme Arminda e Juliana de Piranga Nanaacute e

Solange de Presidente Bernardes 32 Em duas famiacutelias haacute filhas solteiras (uma em cada famiacutelia) que trabalham fora do siacutetio mas informaram

que suas rendas natildeo contribuem necessariamente para complementar a dos pais

109

moradora de Xopotoacute em Presidente Bernardes) ou na atividade leiteira e do

carvatildeo como eacute o caso de Neiva (39 anos moradora de Posses em Porto Firme)

que fez questatildeo de mostrar a suas unhas ainda manchadas do trabalho na

carvoaria no dia anterior

Mesmo as mulheres que trabalham fora dos siacutetios satildeo unacircnimes em

afirmar que continuam sendo agricultoras jaacute que continuam a exercer a funccedilatildeo

de cuidados da casa ndash incluindo aqueles referentes agrave alimentaccedilatildeo ndash assim como

as atividades agriacutecolas no quintal principalmente nos cuidados com a horta

ldquoSou diarista mas sou agricultora tambeacutemeu cuido da horta da casa mas

quando precisa de fazer algum trabalho na roccedila eu vou mas natildeo vou muitordquo

informou Arminda moradora de Mestre Campos em Piranga

Ivone (38 anos Posses ndash Porto Firme) se envolve muito com todas as

atividades do siacutetio As manhatildes satildeo passadas na escola da comunidade onde eacute

cantineira mas ao chegar em casa no iniacutecio da tarde se junta ao marido para o

trabalho na atividade leiteira na colheita na lavoura e tambeacutem na atividade da

carvoaria Costuma ainda receber encomendas de quitandas vindas da cidade

de Porto Firme e de acordo com o tempo disponiacutevel atende aos pedidos

Observei pelos depoimentos que o trabalho com a horta natildeo eacute visto

como uma atividade agriacutecola Ela eacute percebida como extensatildeo do quintal e da

cozinha e portanto estaacute atrelada aos elementos da casa Trabalhar na roccedila

para eles significa o serviccedilo de capina de roccedilar o milho o feijatildeo colher cafeacute

etc Nos siacutetios em que estive as hortas em sua maioria tambeacutem eram muito

proacuteximas agrave cozinha

As atividades de trabalho cotidiano das mulheres satildeo muito

diversificadas como jaacute visto Envolvem os cuidados da casa do quintal da horta

a alimentaccedilatildeo da famiacutelia atividade leiteira de roccedilado e carvoaria e em alguns

casos trabalho externo ou natildeo ao siacutetio que lhes garantem renda proacutepria

Marcelina (34 anos Satildeo Domingos ndash Porto Firme) diz ter encontrado na

culinaacuteria remunerada motivos para a famiacutelia desistir de se mudar para a cidade

Haacute pouco mais de um ano sua famiacutelia esteve prestes a se mudar para Viccedilosa

em busca de trabalho assalariado O principal motivo eacute que Marcelina natildeo estava

satisfeita com suas atividades no campo As considerava exaustiva mas eram

necessaacuterias para aumentar a renda do casal que era obtida principalmente da

atividade leiteira mas que por ser dividida entre outras duas famiacutelias de irmatildeos

110

do marido ndash que tambeacutem moram na propriedade que pertenceu aos pais ndash

originava uma renda insuficiente para manter sua famiacutelia Uma iniciativa poreacutem

trouxe oportunidade de o casal repensar a saiacuteda do campo A irmatilde de Marcelina

que reside em Viccedilosa produz salgados que satildeo vendidos em bares da periferia

da cidade Marcelina por insistecircncia da irmatilde aprendeu as teacutecnicas de produccedilatildeo

de salgados e passou a produzi-los e vende-los para bares da zona rural de

Porto Firme e Guaraciaba Na ocasiatildeo da pesquisa um ano depois de iniciar

esse trabalho ela conseguiu comprar um freezer novo com a renda dos

salgados o que lhe permitiu aumentar a produccedilatildeo Os salgados satildeo vendidos

na forma congelada e a entrega eacute feita pelo marido de moto Ela compartilhou

essa experiecircncia como sendo muito satisfatoacuteria em sua vida e da famiacutelia Afirmou

que esse foi o principal motivo de eles terem permanecido no campo

Agora o trabalho eacute muito melhor natildeo preciso trabalhar debaixo do sol ardendo natildeo tenho mais dor nas costas trabalho em casa perto dos meninos posso dar o almoccedilo para eles e ver quando eles chegam da escola antes meu marido eacute que tinha que esquentar o almoccedilo e dar para eles (Marcelina moradora de Satildeo DomingosPorto Firme MG 2015)

A experiecircncia de Marcelina sinaliza uma situaccedilatildeo nova na regiatildeo

pesquisada que eacute a produccedilatildeo de alimentos congelados diretamente para

abastecer bares e vendas no meio rural Estaacute presente nesta realidade a

inserccedilatildeo de elementos modernos o trabalho desenvolvido por Marcelina que eacute

uma novidade tambeacutem para ela pois precisou aprender a preparar esse tipo de

alimento a partir de meacutetodos baacutesicos de congelamento de alimentos e a utilizar

o freezer Outro aspecto de modernizaccedilatildeo se refere ao uso da moto como veiacuteculo

para fazer a entrega dos produtos que por sua vez eacute realizada pelo marido

agricultor ao final do dia apoacutes finalizar os trabalhos do siacutetio Por outro lado a

proacutepria famiacutelia pouco consome os produtos congelados feitos por Marcelina por

natildeo fazer parte do haacutebito alimentar da famiacutelia que permanece com preferecircncia

pela comida tradicional ldquoEles natildeo pedem os salgadosnatildeo ligamagraves vezes eu

ateacute faccedilo uns pra gente experimentar e ver como ficourdquo pondera Marcelina

Percebi que essa famiacutelia estaacute buscando se adaptar agraves novas estruturas e

dinacircmicas da sociedade no sentido discutido por Carneiro (1998) incorporando

elementos modernos importantes para sua reproduccedilatildeo sem contudo

abandonar o meio rural e abrir matildeo de suas praacuteticas alimentares tradicionais

111

Chama a atenccedilatildeo tambeacutem nessa experiecircncia o fato de haver consumo no meio

rural para os salgados congelados pelo menos pelos frequentadores dos bares

ou ldquovendasrdquo onde Marcelina fornece seus produtos Isso aponta que se os

congelados natildeo fazem parte do consumo domeacutestico das famiacutelias haacute um espaccedilo

para seu consumo nos bares (ldquovendasrdquo) da regiatildeo

Vemos na situaccedilatildeo exposta aqui um modo de vida tradicional agregando

fragmentos do moderno sem contudo converter-se a ele como discutido por

Martins (2012) percepccedilatildeo semelhante a apresentada por Carneiro (1998)

Os estudos sobre perspectivas e possibilidades para se pensar os rumos

de um novo rural brasileiro ou um rural reinventado vecircm sendo desenvolvidos

por autores como Wanderley (2000 e 2010) e Carneiro (1998 2005 e 2012) em

seus grupos de pesquisa Uma das discussotildees diz respeito agraves novas estrateacutegias

e possibilidades no campo que natildeo sejam necessariamente agriacutecolas como eacute o

caso do turismo do artesanato da agroinduacutestria etc

O cotidiano das mulheres que trabalham fora do siacutetio envolve mais de

uma jornada de atividades que se inicia antes das 600 da manhatilde e segue ateacute agrave

noite apoacutes o jantar ser servido e a louccedila ser lavada No capiacutetulo anterior introduzi

a discussatildeo sobre a dupla jornada de trabalho das mulheres tambeacutem no meio

rural apresentando as pesquisas de Panzutti (2006) com agricultoras no interior

de Satildeo Paulo e de Zanetti assim como as pesquisas de Menasche (2007) com

agricultoras do Sul Ainda sobre essa temaacutetica no sul do paiacutes haacute os trabalhos de

pesquisa de Paulilo et al (2003) e de De Grandi (2003) Analisando os casos

das mulheres da regiatildeo que pesquisei as caracteriacutesticas satildeo muitos

semelhantes agraves descritas pelas pesquisadoras ao estudarem outras regiotildees

O trabalho domeacutestico da mulher eacute considerado infinitamente elaacutestico uma vez que ela transita por ambos os espaccedilos o da produccedilatildeo e o da reproduccedilatildeo o que demonstra que haacute uma flexibilizaccedilatildeo das atividades consideradas produtivas o que natildeo acontece com as atividades reprodutivas e domeacutesticas (DE GRANDI 2003 p 40)

Em outra pesquisa neste caso em uma regiatildeo accedilucareira do Nordeste

do Brasil Heredia et al (1984) discutem a divisatildeo de gecircnero existente na

execuccedilatildeo do trabalho da produccedilatildeo rural Apontam o roccedilado como o lugar do

homem e como o espaccedilo de trabalho da mulher a casa envolvendo a sua

organizaccedilatildeo e a elaboraccedilatildeo da comida para a famiacutelia Mas tambeacutem indicam que

apesar da divisatildeo existem etapas do roccedilado onde a mulher atua como na

112

semeadura e limpeza ao redor das mudas No entanto o contraacuterio natildeo ocorre

como apontam Heredia et al (1984) e Woortmann (1985) Em suas pesquisas

natildeo foi registrado participaccedilatildeo masculina nos trabalhos voltados agrave organizaccedilatildeo

da casa e da elaboraccedilatildeo das refeiccedilotildees destinadas agrave famiacutelia Tampouco em

minha pesquisa identifiquei essa situaccedilatildeo pois satildeo atividades exercidas

basicamente pelas mulheres

Poreacutem encontrei na minha pesquisa uma sinalizaccedilatildeo de que mudanccedilas

ainda que tiacutemidas estatildeo ocorrendo na regiatildeo analisada e isso implica

diretamente nas praacuteticas alimentares Em depoimentos de duas famiacutelias as

mulheres e os maridos que estavam presentes durante a conversa falaram da

participaccedilatildeo destes na preparaccedilatildeo do almoccedilo O primeiro caso eacute o de Marcelina

e Luiz Durante um tempo quando Marcelina trabalhava como diarista Luiz (39

anos Satildeo Domingos ndash Porto Firme) que tem seu trabalho principal na atividade

leiteira assumiu a funccedilatildeo de alimentar os filhos Marcelina deixava o almoccedilo

adiantado quase pronto mas cabia a ele concluir algumas coisas aquecer a

comida e servi-la aos filhos O outro caso eacute o de Marina e Rui Marina sai de

casa cedo com as filhas para a escola onde trabalha como cozinheira Ela deixa

jaacute pronto o arroz e a carne restando ao marido e ao filho jovem temperar o feijatildeo

e refogar a verdura

Esses exemplos apontam para a necessidade de adaptaccedilatildeo agrave realidade

das mulheres rurais que buscam espaccedilos de trabalho remunerado fora dos siacutetios

onde moram e que contam com o apoio dos maridos pelo menos nas

experiecircncias que conheci em campo Os conflitos que permeiam esses ajustes

familiares se por ventura existirem natildeo foram declarados pelos interlocutores

Ao contraacuterio tanto mulheres quanto homens ao falarem sobre o assunto

expressaram naturalidade diante da situaccedilatildeo Eacute importante considerar que a

renda proveniente do trabalho feminino eacute usada para cobrir despesas familiares

e agraves vezes ateacute para cobrir pequenos custos de produccedilatildeo agriacutecola como relata

Solange (30 anos Itapeva - Presidente Bernardes) que trabalha como servente

em uma escola ldquoEu ganho um salaacuterio miacutenimo mas com esse dinheiro eu compro

coisas para a casa para mim e para minha menina ah eacute uma preocupaccedilatildeo a

menos jaacute aconteceu de ter que comprar adubo e pagar veterinaacuterio que veio ver

as vacasrdquo

113

As famiacutelias formadas por aposentados que representam a maioria nesta

pesquisa tecircm uma realidade cotidiana de trabalho que eacute menos ativa Executam

menos atividades no siacutetio embora natildeo deixem de trabalhar Ao falarem de seu

cotidiano os homens disseram que quase natildeo executam mais atividades

agriacutecolas como capina e roccedilado Fazem uma ou outra atividade como cuidar do

paiol do galinheiro da horta preparar a comida para dar aos porcos Fazem isso

ldquopara natildeo ficar parado de tudordquo conforme justificou Neacutelio (morador de Satildeo

Domingos em Porto Firme) Os homens afirmaram se sentirem desconfortaacuteveis

quando natildeo realizam algum trabalho no dia apenas evitam serviccedilos que exijam

grande esforccedilo fiacutesico

No caso das mulheres mais velhas elas continuam se responsabilizando

pela elaboraccedilatildeo das refeiccedilotildees e de todas as outras atividades domeacutesticas aleacutem

do cuidado com a horta e o quintal o que faz com que seu dia seja mais

dinacircmico Aleacutem do preparo das refeiccedilotildees elaboram tambeacutem cotidianamente

quitandas como broas e rosquinhas o que seraacute visto no proacuteximo capiacutetulo

114

5 CULTURA E PRAacuteTICAS ALIMENTARES NO SISTEMA FAMILIAR RURAL RELACcedilOtildeES COM A COMIDA PERMANEcircNCIAS E MUDANCcedilAS

ldquoA arte da cozinha eacute a mais brasileira de nossas artes A mais expressiva do nosso caraacuteter e a mais impregnada do nosso passadordquo

(Gilberto Freyre 1968)

Os toacutepicos de discussatildeo deste capiacutetulo estatildeo subdivididos nos seguintes

temas A discussatildeo sobre a comida considerada como ldquoforterdquo e a classificaccedilatildeo

da comida como cultura e como fator de necessidade fisioloacutegica as mudanccedilas

em curso na nos haacutebitos alimentares o papel ocupado pelo milho e seus

derivados na culinaacuteria cotidiana das famiacutelias a comida do cotidiano a comida

dos dias de festa e as relaccedilotildees de comensalidade nesses contextos os

alimentos comprados e os alimentos cultivados nos siacutetios as permanecircncias de

consumo e as mudanccedilas com a inserccedilatildeo de novos alimentos a mescla cultural

alimentar do tradicional com o moderno as manifestaccedilotildees de perpetuaccedilatildeo

tradicional na elaboraccedilatildeo das quitandas e as suas funccedilotildees no passado e no

presente nas praacuteticas alimentares do grupo pesquisado e por fim a oralidade

no saber fazer e na transmissatildeo das receitas

51 Comida ldquoforterdquo e comida ldquofraca contradiccedilotildees mudanccedilas e permanecircn-cias

Percebi nos depoimentos dos interlocutores a existecircncia de

categorizaccedilatildeo da comida entre ldquoforterdquo e ldquofracardquo Comida forte eacute aquela que

ldquosustentardquo sendo capaz de permitir um intervalo maior entre as refeiccedilotildees e ao

mesmo tempo executar as atividades mais pesadas sem sentir ldquofraquezardquo fiacutesica

Para eles isso tem a ver com a loacutegica de trabalho ou seja o objetivo eacute natildeo

precisar interromper as atividades com frequecircncia para se alimentar Os horaacuterios

apontados para as refeiccedilotildees satildeo cafeacute da manhatilde entre 530 e 600 merenda33

entre 830 e 900 almoccedilo entre 1100 e 1130 merenda da tarde entre 1430 e

1500 e jantar entre 630 e 1900 Em algumas famiacutelias foi citada a ldquomerenda da

noiterdquo que eacute feita pouco antes de dormir

33 ldquoMerendardquo eacute o termo que todos usam para se referir ao que se come nos intervalos entre o cafeacute da

manhatilde e o almoccedilo e entre o almoccedilo e o jantar e agrave noite antes de dormir

115

As informaccedilotildees relativas aos horaacuterios satildeo semelhantes para todas as

famiacutelias inclusive os aposentados disseram manter o ritual de acordar cedo

ainda que suas atividades de trabalho natildeo sejam mais intensas como no

passado

A percepccedilatildeo sobre ldquocomida forterdquo das famiacutelias se assemelha agravequela

discutida por Brandatildeo (1981) em sua pesquisa com agricultores em Goiacircnia O

autor aponta que para o grupo que pesquisou a relaccedilatildeo fortefraco que

atribuiacuteam agrave comida estava diretamente ligada agrave capacidade desse alimento em

garantir ao agricultor maior tempo de trabalho sem sentir fome

Homem forte eacute o homem sadio e resistente para o trabalho A comida forte eacute a que ldquotem sustanccedilardquo cujos efeitos satildeo reconhecidos de dois modos a) na sua capacidade de manter o trabalhador ldquoalimentadordquo por mais tempo sem vontade de comer de novo b) no seu poder de produzir e de conservar mais energia para a atividade braccedilal Eacute neste sentido que a ldquocomida forterdquo equivale ao ldquoalimentordquo categoria de que se exclui a ldquocomida fracardquo (BRANDAcircO 1981 p 109-110)

Para meus interlocutores comida forte eacute principalmente aquela feita com

gordura suiacutena Essa observaccedilatildeo eacute feita em contraposiccedilatildeo ao oacuteleo vegetal que eacute

um produto considerado ldquofracordquo e portanto natildeo oferece a ldquosustanccedila34rdquo desejada

por eles

Para quem trabalha na roccedila a comida feita com oacuteleo natildeo daacute muita sustanccedila A pessoa fica com fome fica meio fraco logo depois A gordura de porco segura mais (Maria 66 anos moradora do Coacuterrego de Itapeva Presidente Bernardes MG 2015)

Aqui se fizer a comida com oacuteleo a barriga comeccedila a roncar rapidinho o oacuteleo eacute fraco natildeo sustenta a gordura de porco eacute forte no serviccedilo que a gente mexe assim que eacute pesado tem de comer comida que sustenta (Carlos 49 anos morador de Posses Porto Firme MG 2015)

Sahlins (2003) ao discutir sobre a categoria de ldquoforccedilardquo atribuiacuteda a

comida relata que algumas culturas destacando a norte americana tem na

carne essa representaccedilatildeo fazendo dela um alimento baacutesico em sua dieta Pela

mesma razatildeo eacute grande consumidora de bacon No puacuteblico da pesquisa a

representaccedilatildeo da gordura e da carne tem uma aproximaccedilatildeo ao que eacute discutido

pelo autor por se tratar de alimento de origem animal como responsaacutevel pela

ldquoforccedilardquo Poreacutem a relaccedilatildeo de forccedila para consumo de carne e de bacon na cultura

34 O termo eacute a forma popular dada a ldquosubstacircnciardquo A capacidade de um alimento dar forccedila energia e

sustentar a fome

116

norte americana estaacute atrelada agrave fator socioeconocircmico como siacutembolo de riqueza

Para o grupo pesquisado a forccedila estaacute atrelada agrave capacidade que a gordura de

porco tem de ampliar o tempo de saciedade mas tambeacutem pelo paladar que

confere agrave comida Neste uacuteltimo aspecto ou seja o da preferecircncia pelo sabor da

gordura se comparada ao oacuteleo Essa preferecircncia eacute tambeacutem justificada pela razatildeo

praacutetica do uso da gordura que eacute o de ser um alimento mais forte e o que melhor

daacute sustentaccedilatildeo

Zaluar (1979) observou a importacircncia da classificaccedilatildeo da comida em

estudo com comunidade de baixa renda na aacuterea urbana Descreve que o grupo

classifica alimentos que consideram como ldquocomidasrdquo porque conferem

saciedade (carne gordura de porco arroz feijatildeo e macarratildeo) e alimentos que

apenas ldquoenganam a fomerdquo (saladas frutas verduras peixe etc) servindo para

o grupo apenas como complemento Nesta classificaccedilatildeo haacute uma diferenccedila do

conceito de comida que se difere de alimento atribuiacuteda por DaMatta (1987)

Tanto no caso do grupo pesquisado por Zaluar na aacuterea urbana quanto no grupo

que pesquisei em aacuterea rural a razatildeo praacutetica para classificar alimentos como

forte estaacute associada agrave necessidade de garantir condiccedilotildees fisioloacutegicas no tempo

dedicado ao trabalho pesado

No grupo que pesquisei visando facilitar o consumo da gordura mais da

metade das famiacutelias cria suiacutenos para essa finalidade Engordam um animal de

cada vez Em apenas uma dessas famiacutelias cria-se um nuacutemero maior para

comercializaccedilatildeo do animal

Haacute um ditado que diz que ldquodo porco soacute natildeo se aproveita o gritordquo pois eacute

possiacutevel usar tambeacutem o intestino para envolver as massas de linguiccedilas e

chouriccedilos o peacute o rabo a orelha e o focinho para feijoada a pele para fazer

torresmo Natildeo eacute difiacutecil entender porque a criaccedilatildeo dos suiacutenos caipiras demonstrou

ser tatildeo importante no grupo pesquisado A alimentaccedilatildeo dos porcos pode ser

produzida nos proacuteprios siacutetios como o fubaacute a cana de accediluacutecar a silagem de

mandioca e ateacute aboacuteboras e batatas doces cozidas misturadas ao fubaacute Nos siacutetios

que visitei o mais usado era o fubaacute

Segundo os agricultores que ldquoengordam o capadordquo35 o animal eacute abatido

sempre que a gordura acaba mas mata-se tambeacutem em veacutespera de festas como

35 Termo que escutei com frequecircncia durante a pesquisa Trata-se do porco castrado destinado agrave engorda

117

natal e ano novo e ainda em casamentos e demais festividades que acontecem

na aacuterea rural Em 2012 na festa de bodas de ouro dos sogros de Lola moradores

da comunidade de Xopotoacute em Presidente Bernardes parte da criaccedilatildeo existente

no siacutetio foi abatida Segundo Lola ldquomatamos dois capados de 17 arrobas e mais

de 15 galinhas caipirasa carne de boi noacutes compramosah e muita linguiccedila

tambeacutemrdquo Da mesma forma Eliana (69 anos moradora de Itapeva em

Presidente Bernardes) compartilhou que para a sua festa de bodas de ouro com

Saturnino ocorrida em junho de 2014 no quintal da casa a famiacutelia matou dois

suiacutenos e aproximadamente 10 frangos caipiras

No cotidiano das famiacutelias engordar um porco no quintal tem a funccedilatildeo

tanto de obter a gordura (banha) como a carne que na maioria das casas eacute

conservada na gordura O que mais ocorre eacute a carne acabar primeiro do que a

gordura Se em tempos passados usar a gordura para conservar as carnes era

uma necessidade jaacute que natildeo havia geladeira atualmente esse haacutebito permanece

por razotildees culturais e tambeacutem pelo sabor diferenciado prevalecendo assim seu

consumo como apontado no depoimento de Laeacutercio 68 anos

Mesmo tendo geladeira a gente ainda conserva a carne na gordura de porco tempera a carne hoje amanhatilde a gente cozinha e frita um pouco quando ela estaacute coradinha a gente potildee na gordura e ela pode ficar ateacute 3 4 meses na gordura natildeo estraga natildeo Uma parte a gente ateacute potildee na geladeira e congela mas natildeo eacute gostoso igual natildeo Muda muito com o frango eacute a mesma coisa Se a gente arruma ele para comer logo depois que mata o sabor eacute um se congela quando vai comer depois eacute outro gosto Natildeo fica bom (Laeacutercio morador de Itapeva em Presidente Bernardes MG 2015)

Tambeacutem na aacuterea urbana o consumo da gordura de porco tem suas

ramificaccedilotildees Natildeo raro eacute possiacutevel verificar em lojas especializadas em produtos

artesanais em Minas Gerais principalmente em lanchonetes de beira de estrada

e pequenos armazeacutens a venda do chamado ldquoporco na latardquo

O sabor conferido agrave comida foi constantemente relacionado com a

gordura suiacutena Os interlocutores deixaram transparecer em suas falas que a

apreciaccedilatildeo do sabor da comida refogada na gordura tem suas raiacutezes no gosto

herdado de geraccedilotildees passadas Cresceram comendo dessa forma Todos

afirmaram preferir o sabor da comida preparada na gordura agrave que eacute feita no oacuteleo

principalmente a verdura o feijatildeo e o arroz como declara Afonso (79 anos

morador de Ribeiratildeo em Presidente Bernardes) ldquoPara mim a verdura tem que

ser feita na gorduraa couve na gordura tem outro saborrdquo e Gilberto (75 anos

118

morador de Manja em Piranga) ldquoA comida feita na gordura de porco eacute mais

saborosa a gente jaacute acostumou com o sabor a couve feita no oacuteleo fica lisa na

gordura ela fica suculentardquo

A gordura eacute usada principalmente para refogar36 hortaliccedilas legumes e

feijatildeo Todos as famiacutelias apreciam a couve refogada na gorduraldquoDeus o livre

de comer uma verdura feita com oacuteleo natildeo fica gostoso do mesmo jeitordquo

Verdura eacute o termo utilizado pelos interlocutores para todos os produtos derivados

da horta inclusive os legumes Encontramos em Frieiro (1982) a explicaccedilatildeo

sobre essa heranccedila cultural

Eacute de recente data o uso de gorduras vegetais alimentiacutecias Antes natildeo era assim a gordura geralmente usada era a de toucinho a banha de porco Os dois alimentos de maior importacircncia para a gente mineira sempre foram o feijatildeo e o toucinho Feijatildeo eacute que escora a casa diz um ditado popular Sim e o toucinho daacute substacircncia ao feijatildeo podia agregar-se Sem a banha que o tempera seria comestiacutevel ldquoo feijatildeo nosso de cada diardquo A comida tradicional dos mineiros nada em banha de porco Dos assados e frituras de todos os guisados e ensopados das sopas dos molhos e farofas pinga a gordura em que satildeo preparados (FRIEIRO 1982 p 156)

Garcia (2013) discute a relaccedilatildeo de comportamentos culturais associados

agrave alimentaccedilatildeo afirmando que a heranccedila do gosto por certo tipo de comida e pela

forma de preparaccedilatildeo eacute responsaacutevel na maioria das vezes pela resistecircncia em

adotar praacuteticas novas e experimentar comidas diferentes e aceitar novos sabores

e texturas ao paladar tradicional Uma das razotildees para a couve permanecer

como verdura predileta do cotidiano natildeo eacute apenas por ser a hortaliccedila mais

resistente da horta mas principalmente pela sua preparaccedilatildeo combinada com a

gordura de porco Essa forma de preparaccedilatildeo compreende aquele ldquosistema

culinaacuteriordquo tratado por Poulain (2013 e 2014) e Fischler (1979 e 1995) que

envolvem regras determinantes (crenccedilas valores siacutembolos representaccedilotildees e

haacutebitos) na escolha preparo e consumo de alguns alimentos O que Sahlins

(2003) chama de ldquorazotildees culturaisrdquo que envolvem o haacutebito alimentar Essa

discussatildeo de sistema culinaacuterio se aplica tambeacutem a outras praacuteticas tradicionais

que fazem parte do grupo pesquisado como a tradiccedilatildeo de fazer as proacuteprias

quitandas mais consumidas

36 Refogar segundo Cacircmara Cascudo (2004 p 522) significa ldquoferver na gordurardquo

119

A estrateacutegia de quem natildeo tem essa criaccedilatildeo no siacutetio eacute comprar a gordura

produzida pelos vizinhos ou mesmo no accedilougue da cidade Eacute comum ocorrer o

abate em parceria familiar ou com a participaccedilatildeo de vizinhos proacuteximos com a

distribuiccedilatildeo entre eles das partes do animal mesmo porque para o abate satildeo

necessaacuterias pelo menos trecircs pessoas segundo a explicaccedilatildeo de Lola O sistema

de partilha no abate de suiacutenos eacute tradicional em muitas aacutereas rurais brasileiras e

uma heranccedila dos portugueses Moura (2013) em seu interessante livro sobre a

tradiccedilatildeo dos embutidos e da produccedilatildeo de suiacuteno caipira na regiatildeo de Traacutes-os-

Montes e Auto Douro em Portugal mostra que os procedimentos de criaccedilatildeo

matanccedila e distribuiccedilatildeo das carnes se assemelham muito agraves que ocorrem no meio

rural brasileiro Tambeacutem Cacircndido (1982) relata em sua pesquisa como se dava

o processo relativo agrave distribuiccedilatildeo da carne suiacutena e de caccedila entre os caipiras

paulistas

Segundo os velhos desde sempre eacute haacutebito ndash quase se diria ndash instituiccedilatildeo a oferta daqueles tipos de carne aos vizinhos imediatos que moram agrave vista ou constituem uma unidade vicinal Quando se mata um porco ou uma caccedila envia-se um pedaccedilo a cada vizinho () Do ponto de vista alimentar essa praacutetica funciona como uma forma de regularizaccedilatildeo do abastecimento caacuterneo jaacute que cada um mata um porco de tempos em tempos (CAcircNDIDO 1982 p 163-164)

Compreendo que este contexto de sociabilidade entre vizinhos eou

familiares que envolve tambeacutem doar ou receber uma parte do animal se

assemelha agrave relaccedilatildeo ldquodaacutediva-trocardquo discutida por Mauss (2003) como forma de

manter a sociabilidade os laccedilos e a dependecircncia reciacuteproca entre os grupos No

caso de vizinhos que ajudam na atividade quando aquele que recebeu vier a

matar o seu animal a reciprocidade ocorreraacute ou seja ele doaraacute ao outro vizinho

parte do animal O que tambeacutem se aproxima do que Cacircndido (1982) discute

sobre a informalidade e obrigaccedilatildeo moral que compotildee as relaccedilotildees de mutiratildeo no

meio rural

Mas haacute nesse sistema algo mais do que simplesmente uma troca de

favor como no entendimento de Mauss (2003) de que a daacutediva natildeo eacute meramente

uma retribuiccedilatildeo formal ou proveniente de um contrato verbal Ela se constitui em

uma relaccedilatildeo que envolve respeito e um tipo de acordo que eacute simboacutelico tanto

assim que a parte da carne a ser doada eacute escolhida pelo doador sem nenhum

acordo anterior

120

Apesar do sabor da gordura de porco ser preferido ao oacuteleo em todas as

famiacutelias em algumas esse consumo tem sido reduzido como nas famiacutelias de

Zefa e Armando e de Maria e Laeacutercio Nos dois casos haacute restriccedilotildees alimentares

para os filhos que satildeo transplantados renais37 Em funccedilatildeo disso os pais jaacute

aposentados optaram pela reduccedilatildeo do consumo de gordura de porco e outros

alimentos gordurosos Disseram que por um tempo tentaram acompanhar

totalmente a dieta dos filhos mas natildeo conseguiram sucesso por sentirem falta

tanto da gordura quanto da carne suiacutena Assim a comida tem sido preparada de

forma separada Como esse preparo separado eacute mais trabalhoso Zefa 67 anos

e o marido 75 anos continuam no esforccedilo de adaptaccedilatildeo ao consumo do oacuteleo

demonstrando solidariedade ao filho 42 anos cuja abstinecircncia alimentar tem

sido difiacutecil

Os outros dois casos de restriccedilatildeo agrave gordura de porco satildeo de mulheres

que demonstraram preocupaccedilatildeo com a sauacutede embora natildeo tenham apontado

nenhum problema especifico Relacionam o consumo da gordura como

prejudicial e em funccedilatildeo disso tambeacutem tecircm tentado reduzir o seu consumo Nilsa

(42 anos moradora de Satildeo Domingos em Porto Firme) justificou ldquoTodo mundo

fala que gordura de porco faz mal para a sauacutederdquo Na sua famiacutelia tem havido

resistecircncia por parte do marido que natildeo abre matildeo da carne de porco e da verdura

refogada na gordura Embora ela admita preferir o sabor da comida com a

gordura de porco acredita que para ter uma qualidade de vida melhor devem

abrir matildeo de seu consumo O marido discorda da esposa natildeo abrindo matildeo do

consumo da gordura e nem da carne de porco A diminuiccedilatildeo tem ocorrido com

dificuldade e tem gerado algum tipo de conflito sobre as escolhas alimentares

deste casal que mora sozinho pois os filhos estudam em outras cidades

O depoimento acima de Nilsa estaacute relacionado agraves divulgaccedilotildees sobre

sauacutede em programas de televisatildeo matinais que ela informou assistir de vez em

quando enquanto cuida dos afazeres da casa Informaccedilotildees sobre pesquisas de

alimentos e sobre sauacutede tecircm sido divulgadas frequentemente pelos meios de

comunicaccedilatildeo O risco de tais informaccedilotildees eacute confundir as pessoas quando natildeo

se faz uma reflexatildeo sobre o assunto Para o consumidor leigo o resultado de

37 Interessante a coincidecircncia de haver dois adultos jovens do sexo masculino com problemas renais e que

passaram por transplante Ambas famiacutelias pertencem agrave mesma comunidade mas natildeo haacute grau de parentesco entre eles

121

uma pesquisa divulgada em meios de comunicaccedilatildeo pode dar uma ideia

distorcida sobre o consumo de um alimento No caso de Nilsa ela demonstrou

considerar que o consumo de gordura de porco prejudica a sauacutede de sua famiacutelia

baseado no que ldquoescuta dizerrdquo Ainda assim houve um momento da conversa

em que ela ponderou criticamente ldquoAgora eu natildeo sei porque faz malnossos

pais e avoacutes a vida inteira comeram comida com gordura e natildeo sei de nenhum

deles que ficou doente por causa dissordquo

Em relaccedilatildeo agrave carne vermelha e a gordura principalmente o bacon e

outras carnes processadas a Organizaccedilatildeo Mundial de Sauacutede (OMS) acaba de

publicar o relatoacuterio do International Agency for Research on Cancer (IARC)38

sobre a associaccedilatildeo do consumo desses alimentos ao cacircncer de intestino O

resultado da pesquisa foi amplamente divulgado por jornais de televisatildeo e na

internet Eacute constante a divulgaccedilatildeo de novas pesquisas de alimentos associados

agrave sauacutede repassar esta informaccedilatildeo eacute funccedilatildeo da OMS como pondera Contreras

(2015) No entanto vaacuterios alimentos jaacute foram apontados como vilotildees da sauacutede

e tempos depois a partir de novas pesquisas deixaram de ser Em funccedilatildeo disso

Fischler (2015) denomina essa situaccedilatildeo como uma espeacutecie de cacofonia sobre

o tema da comida jaacute que o conhecimento cientiacutefico eacute dinacircmico e passiacutevel de

sofrer alteraccedilotildees e cita o exemplo do cafeacute que foi classificado como canceriacutegeno

para depois ser considerado como siacutembolo de longevidade

Profissionais de sauacutede e socioacutelogos da alimentaccedilatildeo tecircm se manifestado

publicamente a respeito da divulgaccedilatildeo recente sobre a carne vermelha Alertam

para o risco que uma leitura apressada sobre o assunto possa gerar ao comedor

fazendo com que abandone por completo o consumo de carne e com isso

apresente problemas de outra natureza por carecircncia de proteiacutenas por exemplo

Destacam a necessidade de relativizar e discutir mais sobre o quanto se come

de um determinado alimento O que natildeo se deve eacute ldquodemonizar alimentosrdquo

pondera Rivera (2015) para natildeo gerar pacircnico desnecessaacuterio nos consumidores

ldquoEs necesaria una estrategia de comunicacioacuten que explique bien las

conclusiones de un informe sin caer en el dramardquo esclarece o antropoacutelogo Xavier

Medina (2015) Para a antropoacuteloga Vilagrave (2015) falar dos riscos agrave sauacutede causado

por alimentos que fazem parte da cultura alimentar de boa parte da populaccedilatildeo

38 Disponiacutevel em httpwwwiarcfrenmedia-centrepr2015pdfspr240_Spdf Acesso em 28 out 2015

122

mundial eacute assunto que merece muito cuidado Assim defende que o mais

interessante seria divulgar que as pessoas sem quadro de doenccedilas podem

comer de tudo mas sempre com moderaccedilatildeo

Outra famiacutelia entrevistada a de Carmem (48 anos moradora de Jacuba

em Porto Firme) tem optado por reduzir o consumo de vaacuterios alimentos aos

quais sempre esteve habituada em funccedilatildeo da dieta de emagrecimento por

recomendaccedilatildeo profissional Assim abriu matildeo da carne e da gordura de porco

de alimentos que contenham gluacuteten do leite de vaca e seus derivados Como no

caso anterior seu marido tambeacutem natildeo adotou a mesma dieta A diferenccedila eacute que

ela prepara separadamente a comida do casal39 No dia a dia Carmem tem uma

atividade de trabalho pesada cuida da casa da horta prepara todas as

refeiccedilotildees tira leite lava o curral varre o quintal em torno da casa ndash atividade que

estava fazendo quando cheguei em sua casa pela manhatilde Ela reclama que sente

fome mas ainda assim estaacute resistindo e seguindo a restriccedilatildeo alimentar

Eu agora soacute posso tomar leite de soja com biscoito de polvilho de manhatilde cedo ai eu tomo isso mas eu tenho que tirar leite muito cedo quando eu acabo eu jaacute estou morrendo de fome aquilo natildeo sustenta ai eu vou comer a mesma coisa de novo Natildeo eu faccedilo um mingau de fubaacute natildeo fica gostoso como como o com leite de vaca mas ajuda a esperar o almoccedilo (Carmem 48 anos moradora de Jacuba em Porto Firme MG 2015)

Nossa conversa continuou na cozinha onde a observei preparando as

comidas separadas Almoccedilamos agraves 1130 Comi a mesma comida feita para o

marido arroz feijatildeo couve carne de porco cozida e meio frita angu e moranga

Carmem comeu moranga com feijatildeo que cozinhou separadamente sem

gordura e sem oacuteleo temperados com sal e alho ovo frito e couve refogada no

oacuteleo de soja

Carmem demonstrou ansiedade em relaccedilatildeo ao que comer ao longo do

dia sendo que parte dessa preocupaccedilatildeo estaacute presente em seu depoimento

acima A outra ansiedade foi demonstrada pela dificuldade em obter resultados

satisfatoacuterios em relaccedilatildeo agrave perda de peso Ela precisa fazer a dieta mas ao

mesmo tempo precisa se sentir ldquoforterdquo para realizar os trabalhos no siacutetio A

situaccedilatildeo vivenciada por ela estaacute relacionada agrave discussatildeo feita por Arnaiz (2005) e

Fischler (1995 e 2015) sobre a ansiedade do comedor contemporacircneo Para os

39 Seus filhos tambeacutem estudam e moram em outras cidades

123

autores eacute cada vez mais difiacutecil saber o que se estaacute comendo e eacute tambeacutem mais

complexo fazer escolhas alimentares No processo de escolha o alimento

precisa ser de boa aparecircncia e qualidade ter baixas calorias natildeo fazer mal agrave

sauacutede natildeo ser caro Aleacutem disso o autor menciona a necessidade de

identificaccedilatildeo do alimento se identificar com a opccedilatildeo moral do comedor por

exemplo seu cultivo natildeo deve ser prejudicial ao meio ambiente natildeo deve utilizar

matildeo de obra escrava etc Tudo isso gera ansiedade na escolha do que comer

Dessa forma Fischler (1995 e 2015) defende que uma nova patologia estaacute

surgindo para aquelas pessoas obcecadas por dieta a ortorexia nervosa que

tem como uma de suas caracteriacutesticas o fato de uma pessoa passar mais de trecircs

horas diaacuterias preocupada com o que vai comer40

Haacute ainda o caso da famiacutelia de Joatildeo e Marli (81 e 72 anos

respectivamente aposentados moradores de Aacutegua Lima em Porto Firme) Em

seu siacutetio a atividade leiteira gera renda para o casal mas sobretudo para o filho

que administra a atividade e mora na cidade A famiacutelia optou por abandonar a

criaccedilatildeo extensiva de suiacutenos porque escutava falar ldquoque a gordura faz mal ao

coraccedilatildeordquo Em funccedilatildeo disso o consumo foi reduzido acreditando natildeo compensar

manter a criaccedilatildeo Aleacutem disso segundo Joatildeo antes havia muitos filhos em casa

para alimentar assim ldquoengordar o porcordquo era mais barato do que comprar a

carne e a gordura Embora tenham reduzido o uso da gordura de porco natildeo a

retiraram da dieta por completo Compram no accedilougue e ela continua sendo

usada dois dias na semana aproximadamente Como criam gado costuma-se

matar um animal e assim o consumo de carne de boi natildeo eacute raro nesta famiacutelia

como o eacute nas outras O depoimento de Joatildeo a seguir chama a atenccedilatildeo para o

fubaacute assunto que seraacute discutido no toacutepico especiacutefico mais agrave frente nesse

trabalho e essa parte de seu depoimento seraacute retomado na discussatildeo A

dificuldade de acessar o uacutenico moinho drsquoaacutegua existente na regiatildeo tambeacutem foi um

motivo que levou a famiacutelia a desistir da criaccedilatildeo dos suiacutenos

Eu engordava porco mas os meacutedicos estatildeo proibindo a gente de comer gordura ai nem engordo mais porco natildeoquando daacute vontade a gente compra um toucinho a carne compra sempre Tambeacutem natildeo compensa engordar natildeo porque o moinho de fazer fubaacute pra porco eacute longe daqui e esses fubaacutes moiacutedos nessas maquinas de hoje (eleacutetrica) nem os porcos gostam muito sabe a gente ateacute que tem um moinho

40 Mais informaccedilotildees sobre esse assunto ver Martins et al (2011)

124

bem pequeno aqui mas eacute soacute pra moer o milho para gente fazer angu e broa (Joatildeo morador de Aacutegua Limpa em Porto Firme MG 2015)

As situaccedilotildees das cinco famiacutelias citadas acima sinalizam o quanto mudar

o haacutebito alimentar e abrir matildeo do costume e do gosto aprendido eacute uma tarefa

difiacutecil mesmo que o apelo para isso seja a sauacutede principalmente quando o

alimento em questatildeo estaacute relacionado a uma atividade produtiva que tambeacutem

possui um apego tradicional como eacute o caso do porco caipira Para Bourdieu

(2007) formaccedilatildeo do gosto e a construccedilatildeo do haacutebito alimentar que eacute algo

aprendido na convivecircncia social sendo a famiacutelia o principal grupo de

aprendizado De Garine (1987) discute que em funccedilatildeo do haacutebito alimentar estar

ligado aos costumes herdados de geraccedilotildees passadas a mudanccedila de uma

alimentaccedilatildeo mais tradicional para uma industrializada natildeo ocorre facilmente

tampouco se daacute de maneira raacutepida Eacute um processo lento e que encontra

resistecircncia do comedor o quanto for possiacutevel

O oacuteleo vegetal eacute um desses exemplos de resistecircncia mas que aos

poucos se insere nas praacuteticas alimentares das famiacutelias Seu uso estaacute presente

em quase todas as casas pesquisadas exceto na famiacutelia de Eliana e Saturnino

que natildeo se adaptaram ao seu consumo para o preparo de nenhum alimento que

consomem no dia a dia No restante das famiacutelias o oacuteleo tem sido usado com

parcimocircnia principalmente para algumas frituras conforme os relatos a seguir

ldquoPorque o oacuteleo deixa a batata mais bonita e mais sequinha o peixe tambeacutem fica

melhor mais crocanterdquo (Margarida 74 anos moradora de Xopotoacute em Presidente

Bernardes) ldquoo arroz fica mais soltordquo (Luisa 57 anos moradora de Bom Retiro

em Porto Firme) ldquonatildeo uso mais gordura para fritar batata doce natildeo soacute oacuteleo

ateacute para lavar a panela eacute mais faacutecilrdquo (Juliana 48 anos moradora de Tatu em

Piranga)

Apesar da preferecircncia pela gordura suiacutena o oacuteleo vegetal tem dividido

espaccedilo com a gordura de porco no sistema culinaacuterio das famiacutelias Nestes casos

eacute um exemplo da possibilidade de introduccedilatildeo de um produto industrializado na

alimentaccedilatildeo sem que tenha sido necessaacuterio abrir matildeo radicalmente de um

produto tradicional excetuados os casos onde haacute restriccedilatildeo alimentar como jaacute

citado

O apego ao sabor e agrave crenccedila na capacidade de sustentaccedilatildeo alimentar

gerada pelo uso da gordura de porco faz com que seu consumo permaneccedila

125

como prioritaacuterio nas famiacutelias Poreacutem novos haacutebitos podem ser aprendidos

conforme argumenta Nevot (2011) Para este autor as mudanccedilas de haacutebitos

alimentares na sociedade atual satildeo permanentes Quanto mais novidades

alimentares emergem com novas tecnologias de produccedilatildeo novas informaccedilotildees

sobre os alimentos satildeo fornecidas ampliando a possibilidade de mudanccedilas de

haacutebitos Surge a necessidade de se aprender cada vez mais a escolher o que

comer Se por um lado herdamos haacutebitos alimentares as circunstacircncias nos

fazem adquirir outros novos

Por outro lado o excesso de novidades alimentares faz com que alguns

alimentos tradicionais sejam colocados em questatildeo gerando a anguacutestia

alimentar do comedor contemporacircneo apontada por Fischler (1995 2011 e

2015) No caso da gordura de porco de um lado estaacute um alimento habitual que

eacute heranccedila cultural tradicional e repassado oralmente por avoacutes e pais um

alimento considerado importante ldquoforterdquo de paladar agradaacutevel e que natildeo era

visto como prejudicial agrave sauacutede dos seus antepassados De outro lado existe a

preocupaccedilatildeo gerada nos tempos atuais que indica o mesmo alimento como

maleacutefico agrave sauacutede e portanto a ser evitado e substituiacutedo por um produto de fonte

vegetal e industrializado o oacuteleo

No grupo pesquisado a questatildeo relacionada agrave origem do oacuteleo vegetal

natildeo surgiu como preocupaccedilatildeo Nenhum interlocutor tocou no assunto da

transgenia associado a esse produto por exemplo Apenas destacaram como

pouco saudaacutevel o consumo da gordura do porco Por outro lado a opccedilatildeo da

maioria das famiacutelias em continuar a consumir a gordura de porco sinaliza uma

influecircncia mais acentuada dos fatores culturais em relaccedilatildeo aos fatores

nutricionais e cientiacuteficos na escolha dos alimentos questatildeo discutida por Garcia

(2009) e Mintz (2001)

511 Outras comidas ldquofortesrdquo

No capiacutetulo 2 utilizei Frieiro (1982) e Zemella (1951) para destacar a

importacircncia histoacuterica da criaccedilatildeo dos suiacutenos no quintal das casas com objetivo

de mitigar o problema da fome surgida durante a fase da mineraccedilatildeo em Minas

Gerais Surgiu daiacute o haacutebito de consumir a carne a gordura e o uso de outras

partes do animal adicionadas ao feijatildeo que se constituiacutea em alimento de grande

126

valor energeacutetico e proteico muito usado em funccedilatildeo disso como alimento dos

escravos Dessa mistura surgiu o que hoje conhecemos como feijoada O feijatildeo

foi tatildeo importante quanto o milho a mandioca a couve a gordura o toucinho e

o arroz para a manutenccedilatildeo das atividades mineradoras

No cotidiano alimentar das famiacutelias pesquisas eacute haacutebito cozinhar o feijatildeo

com toucinho que eacute tambeacutem considerado como alimento ldquoforterdquo O feijatildeo eacute item

diaacuterio nas refeiccedilotildees e seu consumo e cultivo tem laccedilos de heranccedila cultural e

histoacuterica assim como o suiacuteno caipira Apenas trecircs famiacutelias natildeo cultivam o feijatildeo

Uma parte do que eacute produzido eacute comercializada por seis famiacutelias nas demais

em 31 delas a produccedilatildeo destina-se apenas ao autoconsumo Durante a

pesquisa de campo algumas famiacutelias estavam comeccedilando a fase da colheita e

pude observar algumas pessoas no trabalho homens no geral Eacute um trabalho

difiacutecil pois eacute feita no modo tradicional arrancados agrave matildeo O trabalho das

mulheres se daacute principalmente na hora de bater e limpar o produto que seraacute

armazenado no paiol

Para aleacutem da gordura da carne suiacutena e do feijatildeo outros alimentos satildeo

considerados como sendo ldquofortesrdquo para manter o organismo bem nutrido para o

trabalho e satildeo consumidos com muita frequecircncia Satildeo eles o arroz a batata

doce a mandioca o angu e as farinhas de milho e de mandioca

O arroz consumido diariamente natildeo eacute mais produzido pelas famiacutelias

pela dificuldade que seu cultivo tem representado nos uacuteltimos anos segundo os

depoimentos de alguns dos interlocutores

Noacutes colhiacuteamos muito arroz natildeo precisava comprar mas jaacute tem uns cinco anos que a gente parou de mexer com arroz porque fica muito caro produzir do que comprar e tem os passarinhos que atacam a plantaccedilatildeo de arroz um passarinho preto que a gente chama de chupin A gente natildeo pode fazer nada contra eles porque eacute proibido mas quando chega a hora da colheita natildeo tem mais quase nada nos cachinhos de arroz (Lucio 46 anos morador de Bom Jesus do Bacalhau em Piranga MG 2015)

Ateacute uns anos atraacutes a gente plantava arroz socava no pilatildeo soacute para o consumo da famiacuteliamas comeccedilou a dar problema na uacuteltima vez que plantamos quando chegou a eacutepoca de cachear veio o sol muito forte ai natildeo saiu o cachoai resolvemos acabar com a plantaccedilatildeo (Onofre 67 anos morador de Mestre Campos em Piranga MG 2015)

Os entrevistados mencionaram uma diferenccedila no sabor e no aspecto do

arroz industrializado em comparaccedilatildeo ao que cultivavam como mostra o

depoimento de Mafalda (57 anos moradora de Ribeiratildeo em Presidente

127

Bernardes) a seguir Destacaram que o aspecto do tradicional que eles

cultivavam era mais grosseiro e amarelado e que o sabor era diferente aleacutem de

ser mais macio e poroso o que fazia com que o tempero impregnasse melhor

Por outro lado disseram que o industrializado leva menos tempo para ser cozido

Apesar de preferirem o arroz tradicional adquirir arroz no mercado atualmente

eacute mais interessante do que cultivaacute-lo levando-se em consideraccedilatildeo o custo-

benefiacutecio Mais uma vez aparecem aqui aspectos que pesam na escolha

alimentar semelhante ao que acontece com a escolha do oacuteleo vegetal e da

gordura de porco Mafalda expotildee em seu depoimento os aspectos que

considera positivos do arroz atual industrializado (ficar soltinho com a cor clara)

e os negativos (menos saboroso demora para absorver o tempero natildeo daacute a

ldquoligardquo considerada necessaacuteria na elaboraccedilatildeo do arroz doce)

Tem bastante diferenccedila O arroz que a gente colhia ele nunca ficava clarinho sempre tinhas uns gratildeos amarelos no meio poreacutem ele era um arroz mais gostoso Ele era mais macio e pegava mais o tempero Ele era melhor tambeacutem para fazer arroz doce porque ele dava mais liga Esses comprados natildeo daacute liga entatildeo o arroz de hoje natildeo eacute igual ao que a gente fazia antes Mas ele tambeacutem natildeo ficava soltinho na panela como o arroz que a gente refoga hoje Antigamente para ele ficar soltinho a gente tinha que espremer um limatildeo Hoje ficou mais faacutecil pra gente fazer (Mafalda moradora de Ribeiratildeo em Presidente Bernardes MG 2015)

Os demais alimentos considerados ldquofortesrdquo como a mandioca a batata

doce e o milho satildeo produzidos nos siacutetios e satildeo consumidos quase que

cotidianamente seja no cafeacute da manhatilde no almoccedilo e no jantar

A batata doce eacute quase sempre frita ou assada na brasa do fogatildeo a lenha

Usa-se consumi-la pela manhatilde acompanhada de cafeacute41 O mesmo ocorre em

relaccedilatildeo agrave mandioca Mas para consumo no almoccedilo e jantar o mais comum eacute

servi-la cozida ou ensopada com carne

O polvilho derivado da mandioca tambeacutem natildeo eacute mais produzido pelas

famiacutelias em todas elas esse produto agora eacute comprado O polvilho eacute usado

principalmente para fazer brevidade um tipo de bolo que eacute elaborado

esporadicamente Observei que em todas as casas haacute o consumo do biscoito de

polvilho assado poreacutem eacute tambeacutem comprado no mercado Agraves vezes se faz o

biscoito de polvilho frito mas as mulheres alegam que por espirrar muito durante

41 O cafeacute eacute feito em aacutegua adoccedilada e passado no coador de pano Natildeo vi o uso de coadores de papel em

nenhuma das casas

128

a fritura e ser bom para comer apenas por algumas horas apoacutes o preparo ele

natildeo eacute mais habitual como no passado Foi um tempo segundo as mulheres em

que sempre havia muita gente para comer e os produtos industrializados eram

parcos e caros no mercado Aleacutem disso o acesso aos mercados era mais difiacutecil

tornando necessaacuterio produzir praticamente tudo o que era destinado a

alimentaccedilatildeo das famiacutelias Os depoimentos a seguir de Anita (71 anos moradora

de Manja em Piranga) e de Lena (70 anos moradora de Ribeiratildeo em Presidente

Bernardes) tambeacutem sinalizam assim como ocorreu com o arroz que em razatildeo

da praticidade alguns modos tradicionais satildeo substituiacutedas ou passam a ser

retomados apenas em momentos especiacuteficos como naqueles que envolvem

reuniatildeo familiar e um grupo maior de pessoas nas casas Lena menciona o fato

da reduccedilatildeo do tamanho das famiacutelias quando comparadas com as famiacutelias dos

antepassados Outros entrevistados fizeram a observaccedilatildeo de que ldquoantes havia

muita gente na roccedilardquo ldquoantigamente as famiacutelias eram maioresrdquo A reduccedilatildeo do

nuacutemero de pessoas nas famiacutelias ndash na minha pesquisa o tamanho meacutedio eacute 36

pessoas por famiacutelia ndash interfere nas praacuteticas alimentares seja haacute menos pessoas

para se alimentar no dia a dia seja pelo fato de natildeo haver quem ajude na cozinha

e na elaboraccedilatildeo das quitandas Motivos que geram um certo tipo de desacircnimo

em investir em pratos mais trabalhosos que eram feitos e socializados nos

grupos familiares de antigamente

ldquoNa casa da minha matildee fazia muito polvilho Naquela eacutepoca todo mundo fazia muita brevidade agora ficou tatildeo faacutecil comprar o polvilho mas daacute muito trabalho fazer o biscoito frito e o assado natildeo eacute caro no mercado quase todo mundo prefere comprarrdquo (Anita moradora de Manja Piranga MG 2015)

ldquoEu fazia muito biscoito de polvilho frito quando os meninos eram pequenos eles gostavam Mas hoje eu quase natildeo faccedilo maissoacute se eles quando estatildeo aqui me pedem ai eu faccedilo Soacute para noacutes dois a gente compra esse do mercado mesmordquo (Lena moradora de Ribeiratildeo em Presidente Bernardes MG 2015)

Aleacutem do polvilho obtido da mandioca o milho e os seus derivados fazem

parte da cultura alimentar mineira como foi mostrado no capiacutetulo 2 a partir dos

apontamentos de Frieiro (1982) Zemella (1951) Meneses (2007) Arruda

(1999) Cacircmara Cascudo (2004) e Abdala (2007) O milho nesse periacuteodo foi

considerado mais importante do que a mandioca em funccedilatildeo de ser muito usado

tambeacutem para alimentaccedilatildeo animal conforme Meneses (2007) Com o passar dos

anos o milho assumiu lugar mais destacado do que a mandioca na culinaacuteria

129

mineira conforme Frieiro (1982) e Abdala (2007) A regiatildeo da pesquisa como jaacute

visto no referido capiacutetulo eacute uma das primeiras a serem ocupadas por ocasiatildeo da

mineraccedilatildeo em Minas Gerais Isso pode ter influenciado a permanecircncia da

tradiccedilatildeo do consumo do fubaacute que como mostrarei a seguir tem presenccedila

marcante na dieta das famiacutelias

52 Consideraccedilotildees sobre a importacircncia do milho e do fubaacute

Oraccedilatildeo ao Milho (Cora Coralina)

Fui o angu pesado e constante do escravo na exaustatildeo do eito Sou a broa grosseira e modesta do pequeno sitiante Sou a farinha econocircmica do proprietaacuterio sou a polenta do imigrante e a amiga dos que comeccedilam a vida em terra estranha Alimento de porcos e do triste mu de carga o que me planta natildeo levanta comeacutercio nem avantaja dinheiro Sou apenas a fartura generosa e despreocupada dos paioacuteis Sou o cocho abastecido donde rumina o gado Sou o canto festivo dos galos na gloacuteria do dia que amanhece Sou o cacarejo alegre das poedeiras agrave volta dos ninhos Sou a pobreza vegetal agradecida a voacutes Senhor que me fizestes necessaacuterio e humilde Sou o milho

Com exceccedilatildeo das famiacutelias de Antocircnio e Marieta e de Marilia todas as

outras cultivam o milho A produccedilatildeo eacute pequena e destinada agrave alimentaccedilatildeo

animal mas tambeacutem agrave elaboraccedilatildeo de fubaacute produzido em todos os siacutetios onde a

planta eacute cultivada Apenas uma famiacutelia possui moinho movido agrave aacutegua o restante

utiliza moinho eleacutetrico Na ocasiatildeo da pesquisa o moinho drsquoaacutegua era uma

raridade na aacuterea rural pesquisada segundo informaccedilatildeo dos entrevistados Tive

a oportunidade de ver um moinho muito antigo em funcionamento no siacutetio de

Manoel e Donana (72 e 54 anos respectivamente moradores de Limeira em

Porto Firme) (Figura 7) Este moinho tem sua estrutura feita em madeira e jaacute

apresentava sinais de sua idade com algumas peccedilas presas com arame O

trabalho eacute perfeito poreacutem lento Pertenceu aos pais de Manoel foi muito utilizado

no passado e permanece em uso para autoconsumo familiar O moinho se

localiza na margem da estrada por onde passa o coacuterrego A porta de acesso fica

130

constantemente entreaberta mas nunca houve roubo de fubaacute ou depredaccedilatildeo do

local

(a) (b)

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 7 ndash Moinho drsquoaacutegua no siacutetio de Manoel e Donana na Comunidade Limeira Porto Firme

A Figura 8 mostra o moinho eleacutetrico adotado atualmente pelas famiacutelias

O moinho da figura pertence agrave famiacutelia de Nanaacute e Custoacutedio na comunidade

Xopotoacute em Piranga Muito diferente do anterior executa o trabalho com maior

rapidez do que o de moinho drsquoaacutegua poreacutem com qualidade inferior como

apontado pelos entrevistados Neste tipo de moinho natildeo pode observar o

moinho sendo feito jaacute que ele segue direto para o pequeno silo acoplado agrave

maacutequina

Apesar da preferecircncia pelo fubaacute feito no moinho drsquoaacutegua meus

interlocutores afirmaram ter sido necessaacuteria a adaptaccedilatildeo ao moinho eleacutetrico que

se tornou mais usual principalmente em funccedilatildeo da reduccedilatildeo de aacutegua disponiacutevel

nos uacuteltimos anos Mencionaram ainda outro fator que consideram importante

para a reduccedilatildeo da utilizaccedilatildeo do moinho drsquoaacutegua Segundo eles as pessoas mais

velhas se importavam mais em manter os moinhos drsquoaacutegua por ser considerada

uma praacutetica tradicional mas quando os moinhos eleacutetricos surgiram o apelo agrave

praticidade falou mais alto e o moinho drsquoaacutegua foi perdendo espaccedilo nos siacutetios

administrados pelas geraccedilotildees mais novas

131

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 8 ndash Moinho eleacutetrico no siacutetio de Nanaacute e Custoacutedio na Comunidade Xopotoacute em Piranga

Antigamente muita gente tinha moinho drsquoaacutegua aqui mesmo tinham uns 3 ou 4 numa distacircncia de 5 Km por aquifoi acabando os velhos foram morrendo e os mais novos natildeo quiseram saber de mexer com isso natildeo (Alonso 82 anos morador de Xopotoacute em Presidente Bernardes MG 2015)

Os moinhos tocados a aacutegua ficam quase sempre mais longe da casa perto de onde corre uma aacutegua neacute O eleacutetrico pode ficar em qualquer lugar debaixo de uma coberta ou perto do paiol daacute menos trabalho e de primeiro tinha muita gente na roccedila natildeo tinha problema ter muito serviccedilo mas hoje dessa gente nova natildeo tem quase ningueacutem mais aqui (Francisco 64 anos morador de Satildeo Domingos em Porto Firme MG 2015)

A reduccedilatildeo no uso desses moinhos comeccedilou a ocorrer haacute

aproximadamente 15 anos quando ainda era possiacutevel encontrar mais facilmente

o ldquofubaacute de moinho drsquoagua para comprar Se por um lado a adoccedilatildeo do moinho

eleacutetrico facilitou o trabalho por outro o fubaacute produzido por ele sofreu alteraccedilatildeo

na textura e sabor Joatildeo (81 anos morador de Aacutegua Limpa em Porto Firme)

pondera que o fubaacute originado do moinho eleacutetrico ldquonatildeo agrada nem aos animaisrdquo

Segundo os depoimentos o fubaacute de moinho drsquoaacutegua era fino e mais

uacutemido A diferenccedila para o produto do moinho eleacutetrico eacute que ele produz um fubaacute

mais grosso e ressecado Essas caracteriacutesticas alteraram o sabor e a textura de

dois alimentos muito importantes na culinaacuteria da regiatildeo pesquisada a broa e o

132

angu Segundo as mulheres ldquoa broa de antes tinha mais ligardquo Assim para

melhorar sua textura a broa que era elaborada de puro fubaacute passou a ter a

adiccedilatildeo de uma parte de farinha de trigo

As discussotildees em torno das mudanccedilas ocasionadas no fubaacute foram

longas e contaram com participaccedilatildeo interessada de muitos homens que

culturalmente natildeo costumam a discutir assuntos culinaacuterios Talvez isso se

explique pelo fato de os produtos derivados do fubaacute serem tatildeo importantes na

alimentaccedilatildeo cotidiana de todas as famiacutelias e por ser utilizado uma maacutequina para

produzi-lo objeto considerado culturalmente como de domiacutenio masculino Em

funccedilatildeo da importacircncia desses alimentos considero interessante adicionar um

nuacutemero maior de depoimentos mesmo ciente de que em um vieacutes etnograacutefico

deve-se tomar cuidado com o excesso de depoimentos em que estejam

evidenciadas ideias semelhantes conforme observaccedilatildeo feita por Peirano (1995)

() pena que hoje quase natildeo acha mais fubaacute de moinho drsquoaacutegua o fubaacute era fininho e dava uma broa maciahoje as maacutequinas quase que torram o fubaacute A broa fica mais ou menos neacute Eu faccedilo uma broinha com rapadura que ficava muito deliciosa mesmo era quando feita com o fubaacute fino (Neuzeli 63 anos moradora de Vinte Alqueires em Porto Firme MG 2015)

A broa feita com fubaacute do moinho eleacutetrico fica muito solta o sabor da comida mudou muito taacute tudo muito mudado em tudo na roccedila (Vanilda 55 anos moradora de Mestre Campos em Piranga MG 2015)

Por ser raridade o fubaacute produzido no moinho drsquoaacutegua tem ganhado

valorizaccedilatildeo no mercado Encontrado agrave venda apenas nos mercados de produtos

artesanais o seu preccedilo eacute superior ao fubaacute industrializado Poucos produtores

colocam o produto agrave venda pois como a produccedilatildeo eacute pequena ela objetiva

atender agraves necessidades das famiacutelias como o caso de Manoel e Donana Ter

um moinho drsquoaacutegua na propriedade no periacuteodo colonial significava haver ali um

grande uso do fubaacute para diferentes funccedilotildees no local Era considerado na eacutepoca

um equipamento sofisticado segundo Andrade (2014) Atualmente ele eacute visto

como ultrapassado de trabalho lento e atividade trabalhosa perdendo seu

espaccedilo para a tecnologia oferecida pelo moinho eleacutetrico A relaccedilatildeo tradicional e

moderno referente aos moinhos reportam agraves diferentes geraccedilotildees no grupo

pesquisado Em vaacuterios depoimentos foi constante a associaccedilatildeo dos moinhos

drsquoaacutegua como objetos de desinteresse das geraccedilotildees mais novas Assim o

produto gerado pelo moinho tradicional apesar de ser preferido em termos de

133

sabor e textura natildeo eacute um argumento forte o suficiente para que seu uso se

mantenha sob os cuidados dos mais jovens

Ao tratar sobre as substituiccedilotildees dos equipamentos modernos pelos

tradicionais no preparo dos alimentos Giard (2012) discute que a mudanccedila natildeo

se daacute apenas pela substituiccedilatildeo do aparelho ou utensiacutelio mas tambeacutem da relaccedilatildeo

instrumental entre o utilizador o objeto utilizado O moinho dacuteaacutegua eacute mais

trabalhoso de ser utilizado porque se localizava distante das casas como o

exemplo daquele da famiacutelia que visitei Eacute preciso controlar o tempo e fazecirc-lo

parar de funcionar manualmente diferente do moinho eleacutetrico que desliga

sozinho Aleacutem disso a sua produccedilatildeo eacute lenta produz-se muito menos fubaacute no

moinho drsquoaacutegua do que no moinho eleacutetrico no mesmo espaccedilo de tempo Na

contemporaneidade em uma sociedade liacutequido-moderna adaptar-se agraves novas

tecnologias eacute uma forma de natildeo perder tempo como reflete Bauman (2009)

Para Giard (2012) algumas mudanccedilas nas praacuteticas alimentares satildeo inevitaacuteveis

e para usufruir as vantagens de uma cultura material eacute preciso estar pronto para

lidar com seus inconvenientes Em alguns casos a convivecircncia entre uma

praacutetica tradicional e uma moderna eacute possiacutevel mas nem sempre No caso do fubaacute

do moinho tradicional e do eleacutetrico por exemplo natildeo haacute alternativa Eacute preciso

fazer a escolha No caso do fubaacute produzido nos dois tipos de moinhos a

lembranccedila do produto tradicional ainda estaacute na memoacuteria inclusive a do paladar

como mostra a fala de Jonas

Fubaacute de moinho drsquoaacutegua eacute coisa rara demaisquando eu falo chego a sentir o gosto do bolo feito de fubaacute de antigamente e angu o angu de fubaacute de moinho drsquoaacutegua era alaranjado assim meio avermelhado hoje ele fica branco (Jonas 53 anos morador da comunidade Satildeo Domingos em Porto Firme MG 2015)

Sobre a ligaccedilatildeo entre memoacuteria e tradiccedilatildeo Giddens (2012) citando

Halbwachs (1992 p 100) diz que ldquoo passado desmorona mas soacute desvanece

na aparecircncia pois continua a existir no inconscienterdquo As observaccedilotildees sobre o

passado em que existia o moinho drsquoaacutegua foram carregadas de memoacuterias

lembranccedilas de sabores e por que natildeo de idealizaccedilatildeo Um passado que para

meus interlocutores se opotildee ao presente em vaacuterios aspectos dentre eles o

alimentar o artesanal versus o industrial ou seja ou moinho drsquoaacutegua versus o

moinho eleacutetrico Identificar e destacar a comida e os modos de fazer do passado

como no depoimento anterior de Jonas eacute um exemplo dos momentos em que

134

somos visitados pelos cheiros e sabores do passado discutido por Giard (2012)

sobre a memoacuteria afetiva e do quanto o presente e o passado se entrelaccedilam no

imaginaacuterio das pessoas quando se trata de falar sobre comida Para Moulin

(1975 apud GIARD 2012) o tipo de comida preferida de uma pessoa eacute sempre

o mesmo ou muito semelhante agravequele dos pais

Em suma noacutes comemos o que nossa matildee nos ensinou a comer Gostamos daquilo que ela gostava do doce ou do salgado da geleia de manhatilde ou dos cereais do chaacute ou do cafeacute de tal forma que eacute mais loacutegico acreditar que comemos nossas lembranccedilas as mais seguras temperadas de ternuras e de ritos que marcaram nossa primeira infacircncia (MOULIN apud GIARD 2012 p 251)

Depoimentos semelhantes agravequele dado por Vanilda sobre as mudanccedilas

relacionadas agrave comida ldquoo sabor da comida mudou muito estaacute tudo muito

mudado em tudo na roccedilardquo me conduziam a perguntar O que mudou na comida

As respostas dos interlocutores foram no sentido de apontar aqueles alimentos

que eram comuns para eles no passado na infacircncia e juventude e que jaacute natildeo

satildeo mais facilmente encontrados Aleacutem da gordura animal que jaacute foi discutida o

fubaacute tambeacutem permanece no cotidiano Mesmo natildeo sendo mais aquele preferido

produzido no moinho drsquoaacutegua ainda continua presente em vaacuterias elaboraccedilotildees de

quitandas principalmente na broa e no angu alimento que eacute consumido

diariamente pelas famiacutelias

O angu mineiro possui uma mistura simples fubaacute e aacutegua No capiacutetulo 2

mostrei que esse alimento natildeo usava sal pois era um produto raro na regiatildeo

mineradora e portanto caro

Outra maneira de consumir o angu aleacutem daquela servida em almoccedilo e

jantar foi apontada pelas famiacutelias como sendo muito apreciada pelos mais

velhos Eacute o angu adicionado ao leite e sal formando um mingau grosso

geralmente se comia assim na merenda usando a sobra do angu

Antigamente a merenda mais comumisso quando eu ainda era solteira era leite com angu no leite quente ou frio agraves vezes quando me daacute saudade de comer ai eu faccedilo quando a gente era crianccedila tinha sempre (Mercecircs 41 anos moradora de Bom Jesus do Bacalhau em Piranga MG 2015)

O curau doce agrave base de milho foi citado como uma iguaria feita em dias

festivos como no Natal O mingau salgado que tambeacutem eacute a base de fubaacute eacute muito

consumido principalmente em dias frios Trata-se do ldquomingau de couverdquo ou

135

ldquobambaacute de couverdquo Este prato eacute assim como a canjiquinha de milho um dos

caldos preferidos

A canjiquinha e o mingau de couve a gente faz muito aquimas quando estaacute muito calor natildeo neacute Porque eacute para comer bem quentinho que eacute gostoso eu tambeacutem faccedilo quando a comida do almoccedilo eacute pouca para o jantar ai a gente costuma jantar uma sopa coloca muita couve e cebolinha vocecirc natildeo conhece essas comidas natildeo neacute42 (Selma 68 anos moradora de Tatu em Piranga MG 2015)

Outro derivado do milho que jaacute foi muito consumido mas que raramente

eacute elaborado hoje eacute o cuscuz doce agrave base de fubaacute accediluacutecar aacutegua e queijo43 Esse

tipo de cuscuz segundo ele pode ser comido puro com cafeacute ou com leite Um

doce que segundo os interlocutores pode ser comido com colher por ter a

consistecircncia de uma farofa grossa Apesar de ser doce ele possui queijo na

mistura e que tambeacutem era preferencialmente consumido nas merendas

Geralmente eacute feito em uma panela proacutepria o cuscuzeiro mas as mulheres

disseram que nem todos tinham o cuscuzeiro por isso se fazia em uma panela

dentro de outra com aacutegua semelhante agrave teacutecnica do banho maria O cuscuz

salgado natildeo foi citado e quando perguntei sobre ele disseram natildeo ser conhecido

na regiatildeo

Antocircnio 78 anos que aleacutem de agricultor teve uma pequena padaria em

Piranga haacute deacutecadas atraacutes foi dentre os homens entrevistados o que se

mostrou mais interessado em culinaacuteria e relatou algumas de suas experiecircncias

como padeiro e sobre as quitandas patildees e bolos que fazia Contou

detalhadamente como era o cuscuz que fazia Ao compartilhar sua experiecircncia

e reviver as lembranccedilas de eacutepocas passadas Antonio demonstrou emoccedilatildeo pois

esse era um alimento que sentia prazer em fazer e em degustar Ele guarda as

receitas de tudo que fazia na memoacuteria revelando a importacircncia que a padaria

teve em sua vida

O cuscuz natildeo eacute mais elaborado pelas famiacutelias como antes porque eacute

possiacutevel encontrar outros alimentos que os substituem e porque alguns

alimentos permaneceram como haacutebitos cotidianos como os bolos broas que

42 Eu tambeacutem era constantemente ldquoentrevistadardquo por eles Respondi que conheccedilo os dois pratos e que

gosto muito de ambos 43 O queijo usado em muitos ingredientes e consumidos no dia a dia eacute produzido por todas as 34 famiacutelias

(85) que tem atividade leiteira nos siacutetios mas a produccedilatildeo do queijo eacute basicamente para autoconsumo Jaacute a manteiga eacute um produto menos comum de ser fabricado atualmente pelo trabalho de sua produccedilatildeo Mas eacute um alimento que permanece como haacutebito alimentar Compra-se a industrializada ou de vizinhos que porventura fabriquem

136

satildeo feitas em casa e caso contraacuterio satildeo facilmente encontradas no mercado

Segundo Giard (2012) uma explicaccedilatildeo para o abandono de algumas praacuteticas

passadas na culinaacuteria estaacute nas mudanccedilas das provisotildees e ofertas no mercado

Nesse caso ldquopermanece apenas a lembranccedila interiorizada dos sabores antigosrdquo

(p 274) como eacute o caso das recordaccedilotildees de Antonio sobre o cuscuz que fazia

com frequecircncia no passado e que tinha muita aceitaccedilatildeo de seus clientes da

padaria

Uma coisa que eu jaacute fiz muito e que vocecirc natildeo deve nem nunca ter ouvido falar Cuscuz torrado Veja bem natildeo eacute cuscuz cozido no vapor natildeo eacute assado O cuscuz torrado eu fazia assim Socava no pilatildeo 1 quilo e meio de fubaacute 34 de rapadura uma pitada de sal socava ateacute que desmanchava e ficava um beiju sabe Ai levava na focircrma peneirava quando enchia apertava bem cortava e punha no forno brando para torraroh Mas ficava uma coisa fora do comum Jaacute vendi demais isso aqui por essas bandas depois que eu parei de fazer nunca mais eu vi Ele esfarinhava na hora de comervocecirc conhece paccediloca A consistecircncia era parecida com a paccediloca de amendoim (Antonio 78 anos morador de Boa Vista em Piranga MG 2015)

Segundo Cacircmara Cascudo (2004) o cuscuz eacute originaacuterio dos Mouros na

Aacutefrica (Egito a Marrocos) e se escreve originalmente ldquokuz-kuzrdquo Agrave base de arroz

farinha de trigo ou sorgo passou a ser feito de milho com o avanccedilo do cultivo da

plantam do a partir do seacuteculo XVI Mas tanto os africanos quanto os portugueses

jaacute conheciam o cuscuz quando chegaram ao Brasil se em Portugal era

considerado prato aristocraacutetico em final do seacuteculo XVII ldquoNo Brasil pela

humildade do fabrico era manutenccedilatildeo de famiacutelias pobres julgava-se lsquocomida de

negrosrsquo trazida pelos escravosrdquo (p 190)

A pesquisa mostrou que o fubaacute assume posiccedilatildeo de destaque no

cotidiano alimentar das famiacutelias Aleacutem de alimento considerado ldquoforterdquo guarda

tambeacutem um significativo papel cultural as recordaccedilotildees de alimentos que eram

elaborados antes e que natildeo se fazem mais os modos de moer o fubaacute de antes

e de agora interagem com os lugares de emoccedilatildeo relacionados agrave comida Ao

lembrar de como um alimento ou uma praacutetica ocorria acontece tambeacutem o

resgate daqueles que o faziam ou seja dos ldquoguardiatildees da tradiccedilatildeordquo dos quais

nos falam Giddens (2012) e Simsom (2003) A razatildeo alegada para explicar o

porquecirc de alguns alimentos do passado que faziam parte da merenda terem

deixado de ser consumidos como o angu com leite e o cuscuz foi que na

contemporaneidade existem muitas opccedilotildees de merenda que a opccedilatildeo passa a

137

ser pela praticidade neste caso Satildeo alimentos a serem feitos quando se sente

vontade de comecirc-los No cotidiano eacute a broa que assumiu o lugar das outras

merendas agrave base de milho justamente pela rapidez de sua elaboraccedilatildeo

53 Comida de todo dia comida de festa e as relaccedilotildees de comensalidade

531 Comida de todo dia o trivial

Aqui na roccedila falando a verdade o que a gente come mesmo eacute angu arroz feijatildeo e uma verdura (Afonso 79 anos morador de Ribeiratildeo em Presidente Bernardes MG 2015)

A comida de todo dia eacute angu ateacute mesmo para alimentar os animais (cachorro gato galinha) couve arroz feijatildeo e uma carne quase sempre de porco (Ana Luisa 45 anos moradora de Bom Jesus do Bacalhau em Piranga MG 2015)

Destaco o iniacutecio do item com dois depoimentos porque eles sintetizam o

que eacute a comida cotidiana das famiacutelias pesquisadas inclusive naquelas famiacutelias

que possuem crianccedilas adolescente e jovens embora eu tenha conversado com

apenas cinco jovens que se encontravam no siacutetio na ocasiatildeo da entrevista

Segundo os meus interlocutores os pais cultivam nos filhos os seus haacutebitos

alimentares ao manter o mesmo tipo de alimentaccedilatildeo para adultos e crianccedilas

Assim pelo menos em casa dos pais a comida natildeo varia em funccedilatildeo de outras

preferecircncias alimentares e segundo as informaccedilotildees natildeo ocorre disparidades

nesse sentido

Em todas as famiacutelias quatro alimentos estatildeo presentes no almoccedilo de

todos os dias da semana angu arroz feijatildeo ovo ou carne e verdura refogada

em gordura de porco Mesmo havendo variaccedilatildeo para a verdura como serralha

almeiratildeo e mostarda a couve eacute a mais consumida na contemporaneidade assim

era tambeacutem no periacuteodo da mineraccedilatildeo e da ruralizaccedilatildeo

Todas as famiacutelias tecircm hortas nos quintais algumas bem cuidadas e com

grande variedade de plantas outras fragilizadas e com poucos cultivos A

estiagem do periacuteodo foi a grande responsaacutevel pelas ldquohortas fracasrdquo mas em

todas elas havia couve Em uma horta por exemplo havia apenas couve

cebolinha salsa quiabo e jiloacute As hortaliccedilas e ldquocheiro verderdquo mais presentes eram

a couve a serralha a mostarda o almeiratildeo a alface a cebolinha de folha a

138

salsa o manjericatildeo e a hortelatilde Uma hortaliccedila comum na culinaacuteria mineira a

taioba estava presente em poucas hortas Segundo as mulheres por ser

periacuteodo de estiagem a produccedilatildeo dessa hortaliccedila estava prejudicada pois

necessita de muita umidade

Frieiro (1982) Magalhatildees (2004) e Arruda (1990) tratam da importacircncia

que o cultivo da horta teve para a regiatildeo mineradora em Minas Gerais numa fase

de escassez de alimentos Ela era cultivada nos quintais de todas as casas para

garantir o acesso nas refeiccedilotildees agraves fontes de legumes frutas hortaliccedilas e

tubeacuterculos Passado a fase da escassez alimentar na regiatildeo mineradora de

Minas as hortas permaneceram sendo cultivadas Atualmente cultivar a horta

natildeo se daacute mais por carecircncia alimentar jaacute que o acesso agrave compra no mercado eacute

possiacutevel e a baixo custo Mas eacute importante para os entrevistados ter o prazer de

colher a hortaliccedila fresca pouco antes de preparar a refeiccedilatildeo As razotildees satildeo

sobretudo culturais e simboacutelicas para manter a tradiccedilatildeo como no caso das

famiacutelias que pesquisei Ter uma horta ldquobonitardquo eacute motivo de orgulho Maria (66

anos moradora de Itapeva Presidente Bernardes) enquanto mostrava e falava

com tristeza de sua horta que estava sofrendo com a estiagem comentou

ldquominha horta estaacute mirrada feiaparecendo ateacute horta de gente preguiccedilosardquo

Outro motivo para a importacircncia da horta para as famiacutelias pesquisadas eacute a

certeza da qualidade do alimento que cultiva As famiacutelias demonstraram

preocupaccedilatildeo com o uso de agrotoacutexico e natildeo sentem seguranccedila na aquisiccedilatildeo de

alimentos in natura que agraves vezes precisam adquirir no mercado

Os demais vegetais cultivados pelas famiacutelias pesquisadas satildeo aboacutebora

moranga batata doce mandioca inhame chuchu jiloacute quiabo berinjela e tomate

do mato Esses vegetais satildeo produzidos em todas as hortas e muito consumidos

nas refeiccedilotildees diaacuterias A exceccedilatildeo eacute para o tomate que natildeo eacute habito de consumo

local Esporadicamente consomem o tomate que chamam de ldquotomate do matordquo

que nascem naturalmente sem precisar cultivar O principal motivo para natildeo

cultivarem e natildeo consumirem o tomate eacute a necessidade de utilizar muito

inseticida Evitam o maacuteximo o uso de agrotoacutexico nos produtos cultivados no siacutetio

mas natildeo conseguem deixar de usaacute-lo no milho para substituir o roccedilado manual

com a enxada e tambeacutem no feijatildeo armazenado Eacute interessante que esse receio

natildeo os impede de consumir a massa de tomate na macarronada dos domingos

139

Vegetais como cenoura beterraba batata baroa berinjela couve-flor

broacutecolis repolho cebola de cabeccedila e alho satildeo produzidos por poucas famiacutelias

Mas a cebola e o alho jaacute foram cultivados com frequecircncia na regiatildeo No siacutetio de

Maria e Laeacutercio em Itapeva Presidente Bernardes as hortaliccedilas estavam muito

fragilizadas e havia pouquiacutessimas plantas basicamente couve quiabo e

cebolinha mas ela mostrou orgulhosa sua colheita de cebola de cabeccedila e alho

que estava no paiol (Figura 9) dois produtos que natildeo satildeo cultivados por todas

as famiacutelias embora muito consumidas A cebola de cabeccedila por exemplo era

um produto comprado no comeacutercio da comunidade pela maioria das famiacutelias

Isso aponta para a importacircncia que tem para essa famiacutelia a produccedilatildeo de

alimentos que consomem no dia a dia Percebi na conversa com Maria e Laeacutercio

a valorizaccedilatildeo dada agrave produccedilatildeo para autoconsumo Em funccedilatildeo disso o lamento

pela ausecircncia de chuvas foi muito presente durante o diaacutelogo

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 9 ndash Cebolas e alhos armazenados no paiol do siacutetio de Maria e Laeacutercio na comunidade Itapeva em Presidente Bernardes

A pesquisa ocorreu em periacuteodo de colheita do amendoim cultivadas por

quase todas as famiacutelias basicamente para autoconsumo embora uma delas

tenha produzido o suficiente para comercializar Tive a oportunidade de em uma

delas acompanhar parte da colheita e ateacute experimentar arrancar a planta do

chatildeo Algumas mulheres disseram que iriam aproveitar para fazer peacute-de-

moleque A rapadura teria que ser comprada no mercado da cidade jaacute que natildeo

140

eacute mais produzida no siacutetio e em toda a regiatildeo eacute um produto pouco encontrado

Das famiacutelias que entrevistei apenas trecircs produziam rapadura e melado No

periacuteodo de campo a cana estava sendo toda utilizada para alimentaccedilatildeo do gado

A horta de Eliana e Saturnino (69 e 75 anos respectivamente) tambeacutem

de Itapeva Presidente Bernardes (Figura 10) eacute bem diversificada e bem cuidada

Eliana que gosta de cultivar plantas medicinais me mostrou uma delas e

perguntou ldquoVocecirc conhece o remeacutedio ldquoVickrdquo Olhe ele aqui eu tenho plantado

cheire uma folha muita gente aqui de perto vem buscar para tratar a gripe

chiado no peito sempre tratei a gripe dos meus filhos com elardquo Mariacutelia (62

anos moradora de Mestre Campos Piranga) tambeacutem possui uma horta muito

rica e com grande variedade de plantas medicinais Tanto ela quanto Eliana se

mostraram detentoras do conhecimento tradicional dos cultivos e das funccedilotildees

terapecircuticas das ervas medicinais e disseram ter aprendido com as matildees e avoacutes

Apesar de eu eleger as hortas das famiacutelias de Eliana e de Mariacutelia como as

melhores encontrar hortas bem cuidadas e diversificadas foi comum durante a

pesquisa Haacute uma preocupaccedilatildeo especial das mulheres em mantecirc-las produtivas

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 10 ndash Horta no siacutetio de Eliana e Saturnino em Itapeva Presidente Bernardes MG

Os vegetais produzidos nos siacutetios das famiacutelias satildeo aqueles consumidos

nas refeiccedilotildees diaacuterias No dia a dia raramente algum produto vegetal eacute comprado

no mercado exceto quando se deseja algum legume ldquodiferenterdquo como dizem O

periacuteodo de estiagem tambeacutem interfere nisso devido ao fato de que algumas

141

plantas satildeo menos resistentes agrave seca prolongada Durante o periacuteodo da

pesquisa isso ocorria em relaccedilatildeo a alface que natildeo eacute uma hortaliccedila consumida

com frequecircncia pois a preferecircncia eacute pelas verduras que podem ser refogadas

A batata inglesa tambeacutem eacute um produto muito raro na dieta dessas famiacutelias

passa-se meses sem consumi-la a preferecircncia eacute pela batata doce bem como o

inhame e a mandioca

Percebi que a alimentaccedilatildeo cotidiana das famiacutelias eacute muito semelhante

agravequela da fase da mineraccedilatildeo e ruralizaccedilatildeo descritas pelos autores que utilizei no

capiacutetulo como Frieiro (1982) Magalhatildees (2004) Arruda (1990) e Torres (2011)

A tradiccedilatildeo se perpetuou na regiatildeo sem grandes modificaccedilotildees Os mesmos

cultivos nas hortas as mesmas praacuteticas alimentares satildeo mantidas embora

novidades sejam inseridas como a panela eleacutetrica de fazer arroz que seraacute

discutida mais agrave frente

Outra hortaliccedila muito comum na culinaacuteria mineira o ora-pro-noacutebis ou

lobrobrocirc estava presente em quase todas as hortas embora seu consumo natildeo

seja cotidiano como as demais jaacute citadas Embora natildeo seja uma hortaliccedila muito

apreciada encontrei uma crianccedila que prefere o ora-pro-noacutebis agrave couve Ao

perguntar agrave Marcelina e Luiz moradores de Satildeo Domingos em Porto Firme

sobre as verduras que cultivavam e quais eram as mais consumidas

imediatamente o filho Faacutebio de 9 anos acrescentou ldquolobrobocirc taiobardquo

Perguntei-lhe entatildeo se gostava de verduras e ele confirmou Segundo a matildee

ldquoele adora todas as verduras lobrobrocirc ele come as folhas ateacute cruas e taioba e

folha de batata doce ele tambeacutem adora pede para eu fazer com angu e carne

de frangordquo Lola de Presidente Bernardes compartilhou situaccedilatildeo semelhante

sobre seu filho Andreacute de 10 anos O filho aprecia suco de couve (mais que os

refrigerantes) ldquoEles satildeo assim porque natildeo foram acostumados com isso

sempre ensinei que essas coisas fazem mal pra genterdquo

Conhecer o gosto destas duas crianccedilas por verduras e saber que esse

gosto estaacute atrelado aos haacutebitos alimentares dos pais nos conduz mais uma vez

agrave discussatildeo sobre heranccedila dos haacutebitos e gosto alimentar jaacute discutido no capiacutetulo

anterior Na casa dos pais de Faacutebio e tambeacutem em sua escola rural a presenccedila

de verduras de todos os tipos de acordo com a sazonalidade eacute comum Desde

muito novos os filhos deste casal foram introduzidos nos haacutebitos alimentares dos

pais Natildeo haacute o haacutebito familiar de consumir refrigerante que soacute eacute comprado para

142

a casa em dias de festa As bebidas do dia a dia da famiacutelia satildeo aacutegua e suco de

fruta da estaccedilatildeo Insisti em saber se era uma preocupaccedilatildeo com a sauacutede e a

resposta foi que a sauacutede vem como consequecircncia Para eles a prioridade eacute

consumir alimentos que produzem no local e evitar gastos com alimentaccedilatildeo no

mercado Aleacutem disso eacute a comida que estatildeo acostumados

Natildeo tive a oportunidade de conversar com outras crianccedilas durante a

entrevista mas tive depoimentos dos pais a respeito dos haacutebitos alimentares dos

filhos quando eram crianccedilas e que ainda sendo adolescentes manteacutem haacutebitos

alimentares muito parecidos com os dos pais Haacute o caso por exemplo dos filhos

de Antonina (74 anos moradora de Bananeiras em Presidente Bernardes

Antonina) que moram em Satildeo Paulo e que mesmo sendo adultos quando

visitam os pais nas feacuterias pedem para a matildee fazer ldquoa comida que eles estavam

acostumados a comer quando eram pequenosrdquo Esta fala coincide com a

compreensatildeo de Bourdieu (2007) sobre a formaccedilatildeo de haacutebitos alimentares que

sofrem grande influecircncia da convivecircncia dos grupos o que gera gostos muito

semelhantes entre os membros O haacutebito alimentar eacute construiacutedo nesse contexto

e podem ser diferentes de uma cultura para outra

Fui convidada a participar da mesa de refeiccedilotildees ldquode todo diardquo em 15

casas onde fui convidada a almoccedilar com a famiacutelia O horaacuterio de almoccedilo variou

de 1100 a 1130 e essa variaccedilatildeo tem a ver com o horaacuterio em que acordam e

iniciam as atividades que jaacute natildeo eacute mais tatildeo riacutegido como jaacute foi no passado Como

parte das conversas aconteciam geralmente nas cozinhas enquanto o almoccedilo

era preparado pude acompanhar todo o processo Me ofereci para ajudar em

alguma coisa na atividade da cozinha mas a uacutenica ajuda permitida foi

acompanhaacute-las ateacute a horta para ldquoapanharrdquo verdura

Em todos os almoccedilos que participei estavam presentes no cardaacutepio o

ldquotrivial mineirordquo denominaccedilatildeo atribuiacuteda por Eduardo Frieiro para ldquofeijatildeo angu e

couverdquo O autor apoacutes as pesquisas sobre a alimentaccedilatildeo em Minas Gerais da

fase mineradora ateacute meados da deacutecada de 1950 sugeriu alguns dos alimentos

que considerava possiacutevel serem caracterizados como tiacutepicos de Minas Gerais

A sugestatildeo se deu em funccedilatildeo da peculiaridade de seus preparos satildeo eles o

tutu de feijatildeo com torresmo ou linguiccedila o lombo de porco assado a couve

cortada fina e refogada e o angu sem sal

143

Aleacutem do feijatildeo do angu e da couve havia todos os dias tambeacutem o arroz

nas refeiccedilotildees que participei Assim eu elegeria como a comida tiacutepica do almoccedilo

do conjunto das famiacutelias desta pesquisa a seguinte composiccedilatildeo arroz feijatildeo

batido no liquidificador angu couve refogada e carne (de frango ou porco) O

feijatildeo batido eacute comum em Minas e no interior de Satildeo Paulo mas quase

desconhecido nos outros estados Eacute comum associar a Minas Gerais o feijatildeo

tropeiro e ao tutu mas nas famiacutelias que pesquisei a forma de servi-lo eacute

predominantemente batido temperado com gordura de porco e alho Antes de

haver o liquidificador o feijatildeo era amassado agrave matildeo com o uso de um ldquosocadorrdquo

depois adicionava-se aacutegua o resultado era um feijatildeo de caldo grosso e

diferentemente do tutu e do tropeiro natildeo lhe eacute adicionado farinha o que o torna

mais diferente do tutu e mais leve jaacute que a farinha lhe confere a categoria de

comida com ldquosustanccedilardquo Embora a carne de porco tenha sido a mais presente

a de frango tambeacutem foi marcante A carne de boi eu comi em apenas duas casas

na forma moiacuteda e cozida O frango sempre frito ou ensopado algumas vezes era

acompanhado de quiabo O peixe foi servido em uma casa pescado no rio que

passa na propriedade A disponibilidade da carne natildeo era farta mas suficiente

para tecirc-la no prato sem esbanjamento e proporcionar satisfaccedilatildeo Mas os outros

alimentos eram preparados em grande quantidade

Foi recorrente ser servida mais de uma fonte de carboidrato nas

refeiccedilotildees por exemplo arroz angu e ou moranga e ou mandioca e ou batata

doce e ou farinha e ou macarratildeo O carboidrato eacute responsaacutevel pelo suprimento

de energia do organismo Para as famiacutelias esses alimentos satildeo importantes para

dar ldquosustanccedilardquo e tambeacutem satildeo responsaacuteveis por compor um almoccedilo ldquoforterdquo assim

como sinalizaram em relaccedilatildeo agrave gordura de porco Esse aprendizado eacute por

transmissatildeo cultural a mesma loacutegica para o consumo da gordura de porco

532 Comida de domingo de dias festivos e comensalidade

A comida de domingo varia pouco O arroz e o feijatildeo satildeo consumidos

tambeacutem nesse dia Agraves vezes o feijatildeo batido eacute substituiacutedo pelo tutu com cebola

e pelo feijatildeo tropeiro A macarronada com frango ou com carne de panela

tambeacutem eacute um prato presente com frequecircncia aos domingos Todas as famiacutelias

que tecircm os filhos morando proacuteximos inclusive em Viccedilosa afirmaram que aos

144

domingos o almoccedilo eacute dia de reuniatildeo em famiacutelia os filhos e netos chegam para

o almoccedilo e laacute passam o dia Quando os sogros dos filhos moram perto eacute feita

uma divisatildeo almoccedilo em uma casa cafeacute da tarde ou jantar em outra As filhas e

ou noras ajudam no preparo do almoccedilo e de lavar a louccedila Os casais

aposentados que ficam muito sozinhos durante a semana consideram esses

momentos fundamentais porque ldquoo dia fica mais alegrerdquo

() eu fico soacute por conta de cozinhar para eles a mesa essas duas ai ficam sempre cheias de coisas em cima eacute biscoito eacute bolo eacute doce eu gosto de ver os filhos e os netos tranccedilando por ai eles gostam de ficar na cozinha na mesa natildeo cabe todo mundo ai eles colocam umas cadeiras e ficam aqui tambeacutem eles gostam de pegar ovos no galinheiro e bater gemada acostumei eles a comer gemada desde pequenos e eles soacute comem gemada aqui por causa do ovo daqui (Eliana 69 anos moradora de Itapeva em Presidente Bernardes MG 2015)

Nos dias de domingo a casa fica cheia minhas filhas costumam trazer um prato feito por elas e junta com o que eu faccedilo aqui eacute muita fartura eacute muito bom todo mundo conversa ri pena que no fim do dia vai todo mundo embora (Laurinda 77 anos moradora de Tatu em Piranga MG 2015)

A ldquofarturardquo da comida destacada por Laurinda nas ocasiotildees de encontro

familiar eacute um grande valor atribuiacutedo pelas famiacutelias rurais Fartura de alimentos

significa uma boa produtividade de alimentos na roccedila mas significa tambeacutem

seguranccedila Ter ldquoo de comerrdquo todos os dias garantido na mesa eacute um atributo que

lhes eacute importante nas suas condiccedilotildees de famiacutelias agricultoras

O espaccedilo de comensalidade nessas ocasiotildees eacute basicamente a cozinha

lugar preferido da famiacutelia quando estaacute reunida Lody (2008) defende que muitos

haacutebitos alimentares soacute se desenvolvem na medida em que a casa e sua cozinha

tornaram-se capazes de permitir a reuniatildeo da famiacutelia e amigos Talvez por isso

as cozinhas das casas que visitei fossem amplas mesmo que outros cocircmodos

da casa como a sala fossem pequenos Em todas as cozinhas havia um

cocircmodo acoplado pequeno e que funcionava como despensa A presenccedila de

mais de uma mesa foi comum mesa na cozinha com pelo menos seis cadeiras

e bancos de madeira recostados a uma das paredes a outra mesa ficava em

uma copa ou em uma aacuterea externa geralmente de meia parede tambeacutem

proacutexima agrave cozinha onde foi ficava instalado o forno de barro quando existia em

algumas casas ele costumava estar proacuteximo ao paiol embaixo de uma coberta

Assim esses satildeo os espaccedilos onde ocorre a comensalidade nas famiacutelias

145

sobretudo em ocasiotildees especiais como nos almoccedilos de domingo e nos

momentos de convivecircncia familiar nos finais de ano

A comensalidade no grupo entrevistado ocorre tambeacutem nos eventos

maiores Nesse caso pode-se formar uma rede de cooperaccedilatildeo de trabalho para

fazer os festejos acontecerem Duas mulheres contaram com riqueza de

detalhes sobre as festas de bodas de ouro que ocorreram no quintal das casas

Coincidentemente trata-se de duas famiacutelias de Presidente Bernardes A festa

dos sogros de Lola e Marcos ocorreu no siacutetio dos sogros na comunidade de

Xopotoacute em 2011 A festa de Eliana e Saturnino ocorreu tambeacutem no siacutetio na

comunidade de Itapeva em 2014 Jaacute citei essas duas festas anteriormente ao

falar dos animais que foram abatidos para o almoccedilo Em ambas algumas

caracteriacutesticas satildeo comuns uma delas eacute que a festa aconteceu no quintal o que

segundo Eliana ldquoeacute costume na regiatildeo aqui eacute muito pouca gente que aluga

salatildeo pra fazer festa e mesmo casamento acontece tudo aqui na roccedila mesmordquo

Os vizinhos dos siacutetios proacuteximos foram convidados Filhos e outros parentes que

moram fora tambeacutem estiveram presentes Nas duas festas a comida servida foi

a ldquocomida de roccedilardquo e como jaacute dito antes suiacutenos e frangos criados no local foram

abatidos O prato principal foi a carne o restante foi acompanhamento porque

como destacou Lola ldquoem dias de festa tem que ter muita carne que eacute do que o

povo gostardquo

Eliana contou que as mulheres da vizinhanccedila ajudaram com a

organizaccedilatildeo e tambeacutem a fazer ldquoa comida de veacutespera descascando batata

cozinhando mandioca matando e depenando os frangos para o dia da festa

os meus filhos contrataram umas cozinheirasrdquo

Foi realizada uma missa no paacutetio na frente da sua casa No quintal foram

colocados dois grandes ldquofogotildees de cupimrdquo e seu funcionamento seraacute detalhado

mais agrave frente Nestes fogotildees foram feitos os seguintes pratos macarratildeo com

pato tutu arroz frango frito farinha torrada mandioca frita e batata doce Natildeo

foi servida salada De bebida foram servidos refrigerante e cerveja A sobremesa

servida foi o ldquobolo de festa bem granderdquo que os filhos encomendaram da cidade

Foi muito boa a festa a missa a ajuda das mulheres aqui eacute assim todo mundo ajuda uns aos outros quando precisa Teve muacutesica e danccedila as pessoas podiam danccedilar se quisessem (Eliana Itapeva Piranga MG 2015)

146

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 11 ndash Fogatildeo de cupim no quintal do siacutetio de Eliana e Saturnino em Itapeva

Presidente Bernardes

Para a festa de bodas de ouro dos sogros de Lola estiveram presentes

em torno de 200 pessoas entre familiares e vizinhos de siacutetios proacuteximos Pelas

informaccedilotildees de Lola a festa teve maior investimento em produccedilatildeo Foi colocado

um telatildeo no quintal onde se mostrou a retrospectiva do casal desde o

casamento com montagens de fotos Soltaram muitos foguetes e teve muacutesica

de forroacute com espaccedilo para as pessoas danccedilarem no quintal Os filhos que moram

em cidades vizinhas e em Satildeo Paulo foram os responsaacuteveis pela organizaccedilatildeo

do evento e ao contraacuterio da festa do primeiro casal esta natildeo contou muito com

a participaccedilatildeo cooperativa dos vizinhos Todo o trabalho de veacutespera da cozinha

foi feito pela famiacutelia filhas filhos noras e genros do casal Foram contratadas

matildeo de obra para cozinhar no dia e servir a comida O cardaacutepio desta festa

consistiu de churrasco de carne bovina e suiacutena (a carne suiacutena de produccedilatildeo

local) linguiccedila frango frito arroz salpicatildeo farofa de milho vinagrete e uma

mesa de frutas Assim como na primeira festa nesta tambeacutem natildeo teve um prato

147

de saladas ou verduras refogadas apesar de elas estarem presentes nas

comidas de todo dia

Reportamos a Woortmann (1985) quando ele trata dos convites para

refeiccedilotildees em casa com o objetivo de reestabelecer sociabilidades e que nestas

ocasiotildees o aspecto fisioloacutegico ou nutritivo da alimentaccedilatildeo eacute pouco relevante

Mais importante eacute o papel social que ela exerce para agradar aos olhos ao olfato

e por fim ao paladar Eacute importante que as pessoas ao irem embora da festa

faccedilam elogios agrave comida e por isso ela precisa tambeacutem ser farta Como foi visto

no capiacutetulo 2 a carne em Minas nos primoacuterdios da mineraccedilatildeo era uma raridade

nas refeiccedilotildees e por isso passou a assumir um status simboacutelico importante na

refeiccedilatildeo a partir da fase da ruralizaccedilatildeo Fazer uma festa sem servir muita carne

seria motivo de criacutetica e natildeo de elogios Ao contraacuterio o excesso de carne eacute tanto

valorizado quanto classifica um ldquoalmoccedilo na roccedilardquo como farto e bom

Brandatildeo (1982) em sua pesquisa com agricultores do interior de Goiaacutes

trata da comida de festa na roccedila Para o seu grupo pesquisado o sabor e a

fartura da comida oferecida tambeacutem foi declarado como sendo o principal para

o sucesso de uma festa

O valor da comida ldquoboardquo ldquocom gostordquo estaacute em seu modo de preparo ruacutestico e na fartura o tempero forte ldquomuita banha de porco muito toucinho pimenta agrave vontaderdquo sobre uma comida tambeacutem forte e abundante ldquomuita carne de capado muito arroz e feijatildeo mandioca agrave vontaderdquo (BRANDAtildeO 1982 p 136)

Tambeacutem Falci (1995) relata sobre as festas de casamento na roccedila

regiatildeo do Piauiacute no final do seacuteculo XIX onde muita quantidade de comida era

servida mesmo sendo simples a festa de casamento precisava ser farta e era

tambeacutem importante que se convidasse toda a vizinhanccedila rural

Para a festa havia toda a organizaccedilatildeo pois natildeo se dispunha de armazenamento Os porcos tinham jaacute sido postos a sevar nos chiqueiros e estavam no ponto (de uns 8 a 10 kg cada um) assim como os outros animais Ateacute os parentes ajudavam no abastecimento da festa engordavam leitoas ou perus para a festa da sobrinha ou afilhada e no dia faziam-se assados em muitas casas amigas ou de parentes dos noivos (FALCI 1995 p 260)

Nessas ocasiotildees mais do que em dias normais a comida se apresenta

como um coacutedigo que expressa niacuteveis de relacionamento e de interaccedilatildeo social

como no sentido atribuiacutedo por Douglas (1972) Em festas ou manifestaccedilotildees

culturais tradicionais o alimento assume uma categoria de ldquocomidas-coacutedigordquo que

148

se apresenta com a funccedilatildeo binaacuteria de alimentaccedilatildeo e socializaccedilatildeo sendo

carregada de mensagens simboacutelicas

If food is treated as a code the message it encodes will be found in the pattern of social relations being expressed The message is about different degrees of hierarchy inclusion and exclusion boundaries and transactions across the boundaries Like sex the taking of food has a social component as well as a biological one Food categories therefore encode social events (DOUGLAS 1972 p 61)

Em um saacutebado pela manhatilde em que passei no siacutetio de Ana Luisa e Lucas

(45 e 52 anos respectivamente) na comunidade de Bom Jesus do Bacalhau para

agendar entrevista para a semana seguinte havia uma movimentaccedilatildeo de

pessoas Logo descobri que eram parentes que vieram de Ouro Preto e de Belo

Horizonte para passar o final de semana e como uma das sobrinhas estava

fazendo 15 anos de idade naquele dia a famiacutelia resolveu organizar

improvisadamente uma comemoraccedilatildeo no siacutetio Muitos balotildees coloridos estavam

sendo pendurados no teto e nos pilares da varanda Logo que entrei no corredor

externo que daacute acesso agrave cozinha avistei um bolo de aniversaacuterio sendo montado

O bolo jaacute estava com trecircs camadas e recheado de doce de leite e ameixa

faltando ainda a cobertura que seria com creme de coco Para a execuccedilatildeo do

bolo foram utilizados leite longa vida doce de leite e coco ralado ambos

industrializados O bolo estava sendo feito pelas irmatildes de Ana Luiacutesa enquanto

ela e o marido se dividiam na cozinha preparando ldquotira-gostosrdquo e a carne para o

almoccedilo Em um tacho de ferro sobre a trempe do fogatildeo a lenha Ana Luisa fritava

pedaccedilos de carne de porco e outra panela estava sendo frito o ldquomilhopatilderdquo (Figura

12) produzido por Ana Luisa Esse salgado eacute feito de uma mistura agrave base de

fubaacute caldo de galinha e polvilho azedo Segundo Lucas cujo avocirc foi tropeiro o

ldquomilhopatilderdquo artesanal eacute tradiccedilatildeo em sua famiacutelia e foi com a sogra que Ana Luisa

diz ter aprendido a fazer ldquoTodo mundo gosta a gente vende muito dele laacute no

mercadordquo

149

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 12 ndash Processo de fritura do ldquomilhopatilderdquo

A mesa da cozinha estava posta com rosquinha de sal amoniacuteaco queijo

bolo de milho e cafeacute Fui convidada a tomar ldquoum cafezinho e comer alguma coisardquo

e tambeacutem a experimentar o milhopatilde frito Em um dia tumultuado para a famiacutelia

minha visita se encerrou logo

Pude perceber alguns aspectos relacionados agraves praacuteticas alimentares

que satildeo tratados nesta pesquisa a sociabilidade demonstrada no trabalho

conjunto de organizaccedilatildeo da festa a utilizaccedilatildeo de produtos industrializados na

elaboraccedilatildeo do bolo a produccedilatildeo do ldquomilhopatilde alimento de receita tradicional da

famiacutelia a carne e o torresmo de porco caipira criado no siacutetio Nessas praacuteticas

alimentares desenvolvidas na cozinha dessa famiacutelia estiveram presentes agrave

praticidade em utilizar os produtos industrializados mas tambeacutem a manutenccedilatildeo

de praacuteticas tradicionais sinalizando nessa mescla fatores de permanecircncia e de

mudanccedila no sentido tratado por Poulain (2013) Giard (2012) Cacircmara Cascudo

(2004) e Doacuteria (2014)

A comensalidade tambeacutem ocorre envolvendo formas natildeo tradicionais agrave

cultura local Eacute o caso que ocorre na famiacutelia de Antocircnio e Marieta (78 e 73 anos

respectivamente) Antonio o ex-padeiro jaacute citado aqui que para agradar os netos

ndash crianccedilas e adolescentes que moram em aacuterea urbana ndash quando passam feacuterias

em seu siacutetio promove o que os netos chamam de a noite da ldquoPizzada do vovocircrdquo

Neste evento ele eacute o responsaacutevel por produzir pizzas no forno de barro do siacutetio

Disse jaacute ter virado uma tradiccedilatildeo familiar dos uacuteltimos anos Ele prepara as massas

e convoca os netos para ajudar a rechear as pizzas Esses satildeo momentos de

150

comensalidade familiar muito interessantes aleacutem de comerem juntos produzem

a comida em conjunto Geraccedilotildees diferentes partilhando os saberes e prazeres

da comida e da convivecircncia

A produccedilatildeo das pizzas chamou a atenccedilatildeo por natildeo ser um alimento que

faz parte da cultura da regiatildeo pesquisada Nenhum entrevistado aleacutem de

Antocircnio falou sobre esse alimento Tampouco ela eacute citada por Frieiro (1982) ou

Cacircmara Cascudo (2004) como alimentos consumidos em Minas Colonial A

pizza tem sua origem atribuiacuteda agrave Itaacutelia e passou a ser consumida no Brasil

justamente com a chegada desses imigrantes ao Paiacutes Segundo Antonio e

Marieta as pizzas comeccedilaram a ser produzidas por ele no forno de barro nos

encontros de feacuterias dos filhos e netos no siacutetio Uma de suas filhas mora no Rio

Grande do Sul e eacute casada com um descendente de italiano Com um nuacutemero

grande de familiares em casa nessas ocasiotildees e para agradar aos netos

Antocircnio que domina a atividade de panificaccedilatildeo optou em aprender a fazer as

pizzas Um exemplo de hibridismo cultural alimentar em funccedilatildeo de haacutebitos

diferentes de membros da famiacutelia O avocirc valorizando o habito alimentar dos

netos e praticando ao mesmo tempo a atividade de produzir massas que

considera como muito prazerosa Outro aspecto interessante eacute que se trata de

um alimento associado ao mercado fast food nos centros urbanos mas no caso

especificamente dessa famiacutelia o seu consumo tem uma loacutegica que se associa

ao ritmo do slow food

Juntar a famiacutelia para fazer a ldquopizzada do vovocircrdquo eacute uma forma de Antonio

resgatar esse tempo vivido onde era produzida grande quantidade de quitandas

aleacutem de patildees e eacute para os netos um importante momento de aprendizado com o

avocirc como aquele que agrega a famiacutelia usando da comida e assim assumindo

seu papel de guardiatildeo da cultura Nos dias atuais segundo o casal o forno de

barro raramente eacute utilizado soacute mesmo em dias de festa nos finais de ano Nos

depoimentos de Antonio estaacute presente a memoacuteria afetiva ligada agraves praacuteticas

culinaacuterias que lhe foram muito presentes no passado mas que se distancia do

seu cotidiano na contemporaneidade Natildeo por acaso a chegada dos netos eacute

sempre um evento ansiosamente esperado pelo casal

151

533 Os doces

Em relaccedilatildeo agraves frutas as mais comuns nos pomares e quintais eram a

laranja bahia e serra drsquoaacutegua a poncatilde a mexerica o limatildeo galego ou limatildeo

capeta o limatildeo taiti a goiaba a banana a jabuticaba o figo a cidra a pitanga

a acerola a amora a manga e o abacate As frutas satildeo consumidas de acordo

com a sazonalidade e algumas mesmo estando presentes natildeo satildeo

preferenciais como eacute o caso do mamatildeo exceto para fazer doce de mamatildeo

verde Os sucos mais consumidos satildeo de laranja acerola limatildeo e manga

Os doces mais produzidos a partir de frutas locais satildeo os de goiaba

banana e figo Em uma das famiacutelias tive a oportunidade de provar dois doces

receacutem elaborados por Marieta moradora de Boa Vista Piranga doce de ameixa

em calda e doce de figo

Cacircmara Cascudo (2004) relata que o doce representava grande

importacircncia social no periacuteodo Colonial brasileiro heranccedila de Portugal Quando

se queria presentear algueacutem ou homenagear uma bandeja de doce era sempre

uma excelente escolha Era considerado uma boa qualidade feminina saber

fazer o doce de receita de famiacutelia e esse ensinamento era repassado agraves jovens

pelas matildees Tambeacutem Algranti (2007) destaca que nesse periacuteodo os doces natildeo

faziam parte do trivial mas de eventos festivos e por isso consideradas iguarias

Mesmo que com o tempo eles tenham ganhado espaccedilos mais populares e

vendidos em tabuleiros nas ruas

Essa relaccedilatildeo com os momentos especiais descrito pela autora parece

persistir na regiatildeo pesquisada Dentre as famiacutelias que entrevistei a elaboraccedilatildeo

de doces natildeo eacute uma atividade culinaacuteria cotidiana seu consumo e fabricaccedilatildeo

estatildeo associados aos dias de domingo e agraves datas festivas sobretudo agraves festas

de final de ano Natal e Ano Novo

Laurinda 77 anos moradora de Tatu em Piranga relatou que fazia

doces para agradar a todos os filhos quando havia festas de aniversaacuterio em casa

quando eles ainda eram crianccedilas e adolescentes ldquoPara aquele que preferia

rocambole eu fazia rocambole para aquele que preferia pudim eu fazia pudim

agradava a todos os filhos eu gostavardquo

Zefa 67 anos moradora de Mato Dentro em Presidente Bernardes

tambeacutem disse gostar das eacutepocas de elaborar doces Para as festas de final de

152

ano ela comeccedila a fazer um mecircs antes do Natal Os doces tradicionais da sua

famiacutelia satildeo o rocambole de doce de leite e o doce de figo Ela descreveu o

processo de elaboraccedilatildeo

O doce de leite eu comeccedilo a fazer ele agraves 0800 e soacute vou tirar ele do fogo agraves 14 horas ponho num tacho grande ele vai fervendo aos pouquinhos ateacute secar e ficar cremoso mas tem que ser com leite de roccedila leite gordo e leva pouco accediluacutecar Para 8 litros e leite soacute duas xiacutecaras de accediluacutecar O doce de figo antigamente quando natildeo tinha geladeira a gente tinha que ficar fervendo ele para ele natildeo azedar enquanto tivesse doce tinha que fazer isso Hoje natildeo a gente faz o doce e guarda na geladeira e fica verdinho e pode ficar muito tempo guardado (Zefa 67 anos moradora da Comunidade Mato Dentro Presidente Bernardes MG 2015)

O depoimento de Zefa deixa transparecer a dedicaccedilatildeo de tempo ao

preparo do doce e a tenccedilatildeo cuidadosa agraves etapas para natildeo passar do ponto Natildeo

se podia ter pressa Por isso a elaboraccedilatildeo dos doces eram atividades

esporaacutedicas para eventos especiais principalmente para as festas de final de

ano consideradas eventos familiares de grande importacircncia para essas famiacutelias

Percebi durante a pesquisa que essa percepccedilatildeo permanece entre as mulheres

ao falarem da elaboraccedilatildeo dos doces Haacute nos gestuais descritos por Zefa uma

relaccedilatildeo semelhante ao que eacute tratado por Giard (2012) ao relacionar ao trabalho

das cozinheiras de tempos passados em que a paciecircncia para conduzir as

praacuteticas culinaacuterias era a tocircnica

Outrora a cozinheira se servia de um instrumento simples de tipo primaacuterio cujas funccedilotildees tambeacutem eram simples era ela que dirigia o desenrolar da operaccedilatildeo vigiava a sucessatildeo dos momentos da sequecircncia de accedilatildeo e podia representar mentalmente o processo Nessa forma de cozinhar havia uma habilidade de artesatildeo empenhado em aperfeiccediloar seu meacutetodo ou variar suas produccedilotildees (p 284)

Outros dois pontos no depoimento de Zefa merecem destaque O

primeiro quando ela fala de um tempo em que a geladeira natildeo existia Havia a

necessidade de ferver constantemente o doce para natildeo estragar Aqui presente

a relaccedilatildeo com a modernidade Atualmente com o acesso agrave geladeira esse

trabalho foi reduzido Nesse sentido eacute preciso considerar o quanto a tecnologia

industrial facilitou a fabricaccedilatildeo de alimentos sem que necessariamente tenha

alterado a obtenccedilatildeo de um produto de igual qualidade e sabor Zefa continua

fazendo o doce de figo assim como as outras mulheres mas utilizando uma

tecnologia de conservaccedilatildeo moderna e muito importante

153

O segundo ponto diz respeito ao uso do tacho Todas as mulheres que

entrevistei tinham um tacho de cobre que foi herdado de matildee da avoacute ou que foi

comprado por elas Fazer doces em tacho de cobre faz parte da tradiccedilatildeo da

culinaacuteria em vaacuterios lugares do Brasil Poreacutem haacute atualmente uma discussatildeo sobre

o seu uso Em Minas Gerais a Vigilacircncia Sanitaacuteria Estadual proibiu o seu uso

para fabricaccedilatildeo de doces em funccedilatildeo dos resiacuteduos toacutexicos que podem ser

liberados exceto se forem revestidos por banho de ouro prata niacutequel ou

estanho material que natildeo estatildeo presentes nos tachos mais comuns na zona

rural o mais comum e mais barato eacute o revestimento em estanho Surgiu em

funccedilatildeo disso movimentos que defendem a manutenccedilatildeo do uso do tacho de

cobre e que eacute possiacutevel conscientizar as pessoas sobre o uso e higienizaccedilatildeo

correta do tacho sem extinguir seu uso Zefa por exemplo limpa o seu tacho

com sal e limatildeo para retirar todo o azinhavre44 Aleacutem do tacho de cobre haacute o caso

da colher de pau cuja proibiccedilatildeo fez surgir o ldquoManifesto Colher de Paurdquo de autoria

do antropoacutelogo da alimentaccedilatildeo Raul Lody e apoiado pelo FBSSAN (Foacuterum

Brasileiro de Soberania e Seguranccedila Alimentar e Tradicional) O objetivo do

Manifesto eacute cobrar dos oacutergatildeos fiscalizadores um canal de discussatildeo com a

sociedade civil no sentido de encontrar soluccedilotildees menos radicais como a

extinccedilatildeo de usos tradicionais na fabricaccedilatildeo de doces e outros produtos

culinaacuterios45

Joana 39 anos moradora de Jacuba em Porto Firme contou sobre a

festa de casamento de uma parente que aconteceu na roccedila e em que todos os

doces servidos foram feitos pelas mulheres da famiacutelia e outras amigas do casal

Ela proacutepria ajudou na elaboraccedilatildeo Fizeram goiabada figo doce de leite

cajuzinho brigadeiro doce de aboacutebora com coco e outros

A Figura 13 mostra o doce de ameixa que Marieta estava preparando

Trata-se da ameixa vermelha (tambeacutem conhecida como ameixa japonesa) Natildeo

eacute uma fruta muito comum na regiatildeo da pesquisa mas Marieta possui uma aacutervore

que todos os anos daacute muito fruto e ela aproveita para fazer o doce que eacute muito

saboroso

44 Nome que se daacute a oxidaccedilatildeo do cobre a camada esverdeada que resulta desse processo 45 Para ver mais sobre o Manifesto e acessaacute-lo na iacutentegra ver o site da FBSSAN (httpwwwfbssanorgbr

indexphpoption=com_contentampview=articleampid=419manifesto-colher-de-pauampcatid=79ampItemid=672ampl ang=pt-br)

154

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 13 ndash Doce de ameixa feito por Marieta na comunidade Boa Vista em Piranga MG

54 A comensalidade para aleacutem das festas e datas especiais

A comensalidade ocorre de forma diferenciada nas famiacutelias

pesquisadas Em todas elas a maior frequecircncia eacute no jantar indicando o

fechamento de um dia de trabalho mesmo que ela se decirc na sala com o prato

na matildeo e assistindo agrave programaccedilatildeo da TV costume citado pela maioria das

famiacutelias Nesses momentos a conversa gira em torno dos assuntos divulgados

no programa (em geral o telejornal)

Se natildeo se daacute nesse ambiente ela ocorre na cozinha e em ambos os

casos natildeo eacute um momento demorado Mas a comensalidade ocorre sempre no

cafeacute da manhatilde jaacute que quase todos se levantam na mesma hora e tomam o cafeacute

juntos O cafeacute da manhatilde tambeacutem ldquotoma-se ligeirordquo muitas vezes de peacute que ldquoeacute

para natildeo dar preguiccedilardquo observou Carlos (morador de Posses em Porto Firme)

No horaacuterio de almoccedilo dos dias de semana as refeiccedilotildees satildeo feitas em tempo

curto e o assunto costuma ser basicamente em torno de trabalho pelo menos

foi o presenciei nas casas onde almocei A possibilidade de a famiacutelia estar

reunida para o almoccedilo iraacute depender da disponibilidade de tempo e das atividades

de quem estaacute agrave frente do trabalho no local Nas famiacutelias onde as mulheres

trabalham fora do siacutetio elas raramente estatildeo presentes para essa refeiccedilatildeo

quase sempre soacute aos finais de semana As crianccedilas chegam entre 1200 e 1230

155

horas e eacute comum almoccedilarem na escola Neste caso a comensalidade das

crianccedilas e das mulheres ocorre com outro grupo que natildeo o familiar Natildeo haacute uma

restriccedilatildeo para que a comensalidade se decirc apenas no grupo familiar O proacuteprio

conceito definido por Poulain (2013) destaca isso bem como a discussatildeo de

Fladrin e Montanari (1998) sobre o assunto

Em uma das casas visitadas em Presidente Bernardes almoccedilamos na

mesa da cozinha apenas eu e a Nanaacute (dona da casa) O filho que estava

trabalhando na lavoura de cafeacute saiu de moto pouco antes do almoccedilo para buscar

uma ferramenta de trabalho no siacutetio da irmatilde o marido foi almoccedilar em outro

cocircmodo escutando o raacutedio e a filha que trabalha na cidade e almoccedila em casa

serviu o seu prato e foi almoccedilar na frente da televisatildeo na sala Perguntei a Nanaacute

se eles natildeo costumavam almoccedilar juntos na cozinha ela apenas sorriu e disse

ldquoEacute assim mesmo tem dia que eles preferem ir para laacuterdquo Apesar de sua resposta

fiquei na duacutevida se o motivo de isso ter ocorrido foi minha presenccedila afinal

tratava-se de uma pessoa desconhecida O marido Custoacutedio participou da

conversa todo o tempo ateacute o almoccedilo ser servido Me mostrou a lavoura de cafeacute

e a local onde passaraacute o mineroduto cortando seu siacutetio46 e me explicou o

funcionamento do moinho eleacutetrico A filha chegou pouco antes do almoccedilo e

pudemos conversar um pouco quando ela falou do curso que faz na modalidade

agrave distacircncia e de seus planos para o futuro Em todas as outras famiacutelias almocei

em companhia dos que estavam em casa e natildeo percebi constrangimento

semelhante embora tenha observado uma certa timidez inicial principalmente

por parte dos homens e talvez por isso os diaacutelogos eram curtos Em quase

todas as casas escutei expressotildees que tinham conotaccedilatildeo semelhante ldquoVocecirc

natildeo repara natildeoa comida eacute simplesrdquo Entendi isso como uma reaccedilatildeo normal a

uma visita que eacute de fora do seu nuacutecleo iacutentimo Os homens se levantavam e se

ausentavam da cozinha assim que terminaram a refeiccedilatildeo e as mulheres lavavam

a louccedila

Se hoje eacute mais faacutecil para as pessoas interromperem o trabalho e

almoccedilarem em casa em tempos passados a situaccedilatildeo era diferente Quando o

trabalho era mais intenso as atividades eram quase ininterruptas e as refeiccedilotildees

46 Boa parte do siacutetio de Nanaacute e Custoacutedio seraacute desapropriado em funccedilatildeo da passagem do Mineroduto Isso

tem gerado efeitos em suas vidas desde que o processo se iniciou O processo se arrasta haacute anos e eles natildeo sabem muito bem o que vai acontecer Continuam plantando e vendendo o cafeacute que comercializam e outras pequenas lavouras como milho e cana enquanto aguardam o desenrolar da situaccedilatildeo

156

aconteciam distante da casa com o uso de marmitas como explica Neuzeli

moradora de Vinte Alqueires em Porto Firme

O almoccedilo quando o povo trabalhava na roccedila diretoos trabalhadores comiam de marmita Eu arrumava uma marmita caprichadinha para meu marido e meus filhos Mas na casa de meus pais natildeo levava marmita natildeo levava era uns panelotildees grandes de comida em um punha feijatildeo em outro punha a sopa de mandioca ou de inhame com uns pedaccedilos de carne e tinha que encaixar aqui no ombrocomo uma canga e necessitava de duas e trecircs pessoas para levar E laacute na roccedila juntava todo mundo pra comer junto cada um servia o seu coiteacute47 (Neuzeli 63 anos moradora de Vinte Alqueires Porto Firme MG 2015)

Mais um exemplo de como a comensalidade ocorria nas aacutereas rurais

por mais raacutepidas que fossem as refeiccedilotildees Este exemplo assim como aquele em

que as refeiccedilotildees ocorrem na sala assistindo televisatildeo falam de momentos de

comensalidade onde a presenccedila do objeto ldquomesardquo natildeo eacute necessaacuterio precisa-se

eacute que os momentos das refeiccedilotildees sejam partilhados por mais de uma pessoa

55 Mescla cultural praacuteticas de consumo alimentar de ontem e de hoje

Tem sido comum nos uacuteltimos anos na regiatildeo pesquisada a circulaccedilatildeo

de veiacuteculos que comercializam frutas hortaliccedilas e legumes Os alimentos satildeo

vendidos aos moradores locais mas tambeacutem para os pequenos comeacutercios

rurais Por razotildees diversas alguns agricultores estatildeo optando em comprar

determinados produtos in natura ao inveacutes de cultivaacute-los O principal motivo citado

foi a estiagem dos uacuteltimos anos aliado ao custo-benefiacutecio (praticidade ndash preccedilo)

Satildeo vendidos produtos tais como batata inglesa inhame batata doce moranga

banana alface laranja tomate maccedilatilde pera abacaxi e outros Segundo os

interlocutores os produtos satildeo do CEASA

Aqui em Presidente tem caminhatildeo que vem vender fruta e verdura pro povo das roccedilas Aqui em casa noacutes compramos agraves vezes mas eacute maccedilatilde que aqui natildeo daacute mamatildeo tambeacutem porque aqui natildeo daacute mamatildeo bom mais mas eacute soacute mas eu vejo gente aqui comprando inhame mandioca do caminhatildeo ah isso eu natildeo concordo natildeo (Germana 58 anos moradora de Mato Dentro em Presidente Bernardes MG 2015)

Tem muita gente na roccedila hoje que taacute eacute comprando mesmoeles acham difiacutecil criar um frangopreferem compraraqui o frango eacute criado soltono quintaldaacute uns frangos bons gordinhosalguns falam assim gente daqui mesmo que fica mais caro plantar do que

47 Cuia feita a partir do fruto da aacutervore Coiteacute que depois de colhido maduro cortado ao meio e retirado as

sementes eacute utilizado como utensiacutelio na cozinha e em outras atividades

157

comprar ai eu falo para eles que agraves vezes fica mesmo soacute que plantar a gente gasta devagar e se for para comprar a gente tem que tirar tudo de uma vez soacute para pagar aquele montatildeo aleacutem disso tem a sauacutede a gente compra tudo hoje com remeacutedio esses frangos ai de granja eu sei porque meu cunhado tem uma granja aquilo ali o pintinho chega com 45 dias ele jaacute eacute frango pra abate e isso natildeo eacute com comida soacute que consegue natildeodeve ter algum remeacutedio ali (Maacuterio 44 anos morador de Posses em Porto Firme MG 2015)

Os interlocutores na pesquisa disseram que compram tais alimentos

muito raramente soacute mesmo em situaccedilotildees muito especiacuteficas como estiagem

longa um exemplo eacute o da alface que no ano de 2015 quando foi realizado o

trabalho de campo teve produccedilatildeo muito ruim assim como algumas outras

hortaliccedilas Segundo as informaccedilotildees que deram essa forma de aquisiccedilatildeo eacute

relevante entre essas famiacutelias Os aposentados que natildeo possuem filhos para

ajuda-los na produccedilatildeo ponderaram que natildeo acham ruim o caminhatildeo levar esses

produtos ateacute eles porque muitas vezes a produccedilatildeo de alguns alimentos eacute muito

pequena e quando acaba eles precisam mesmo comprar e se o caminhatildeo vai

ateacute os siacutetios isso facilita natildeo se trata todavia de um costume mas de uma

ocorrecircncia esporaacutedica

O depoimento anterior de Mario demonstra uma preocupaccedilatildeo que foi

manifestada por outros entrevistados tambeacutem Haacute nas famiacutelias uma grande

preocupaccedilatildeo com agrotoacutexicos ateacute por isso evitam cultivar tomate como jaacute

mencionado anteriormente Pelo fato de os alimentos serem provenientes do

CEASA a desconfianccedila em relaccedilatildeo a eles eacute fator de resistecircncia no consumo

acreditam que os alimentos possuem ldquomuito venenordquo Assim esses alimentos

representam para eles o oposto dos alimentos que produzem nos proacuteprios siacutetios

considerados como mais saudaacuteveis do que os comprados Novamente pode-se

associar essa preocupaccedilatildeo agrave ldquoangustia alimentarrdquo tratada por Fischler (1995 e

2011)

Esse tipo de comercializaccedilatildeo tambeacutem foi identificado por Sacco dos

Anjos et al (2010) em sua pesquisa na regiatildeo rural de Pelotas no Rio Grande

do Sul Os consumidores de laacute tinham como justificativa a especializaccedilatildeo em

uma determinada atividade produtiva como fruticultura e aviaacuterio A falta de

tempo para produzir para autoconsumo e o alto custo da produccedilatildeo os fez

priorizar a aquisiccedilatildeo dos alimentos que consumiam no dia a dia

158

Apesar de os alimentos cultivados no siacutetio predominarem na alimentaccedilatildeo

das famiacutelias os alimentos industrializados tambeacutem satildeo consumidos Pude ver

alguns desses produtos expostos em moacuteveis da cozinha Outros foram

informados pelos entrevistados A lista dos industrializados consta de manteiga

margarina oacuteleo de soja sal arroz biscoito de polvilho biscoito de maisena

biscoito de aacutegua e sal farinha de trigo farinha de milho farinha de mandioca

leite longa vida leite de soja accediluacutecar macarratildeo massa de tomate polvilho leite

condensado e poacute de cafeacute (naquelas famiacutelias que natildeo o produz ou quando o

produto local acaba) Natildeo houve registro de compra de refrigerantes (usado

apenas em ocasiotildees festivas) alimentos congelados (massas patildees de queijo e

carnes etc) embutidos (salsichas presunto mortadela) Nem todos os produtos

listados satildeo consumidos por todas as famiacutelias trata-se de uma lista de produtos

consumidos pelo montante das famiacutelias

Duas das famiacutelias de Piranga a de Ana Luisa e Lucas e a de Juliana e

Jacinto satildeo proprietaacuterias de um pequeno comeacutercio rural nas comunidades de

Bacalhau e Tatu respectivamente Em ambos eacute comercializado parte do que

produzem nos siacutetios Os alimentos mais vendidos satildeo oacuteleo vegetal arroz (que

passou a ser vendido haacute cerca de 15 anos quando se reduziu drasticamente o

cultivo nas regiotildees) farinha de trigo biscoito de polvilho do tipo ldquopapa-ovordquo

macarratildeo massa de tomate ovos (de granja) nos periacuteodos mais frios do ano

porque a produccedilatildeo de ovos de galinhas caipiras diminui e finalmente a laranja

(da CEASA) a partir dos meses de novembro quando a produccedilatildeo nos pomares

diminui

A escolha de consumo referente aos alimentos industrializados pelas

famiacutelias se daacute pela praticidade aliada a preccedilo pela necessidade de consumo ou

por terem se tornado inviaacuteveis a sua produccedilatildeo nos siacutetios Eacute o caso do arroz do

polvilho do accediluacutecar da rapadura do biscoito de polvilho assado e da manteiga

Sobre as opccedilotildees atuais de consumo e as mudanccedilas nos modos de vida os

depoimentos abaixo apresentam importantes reflexotildees

O ritmo na roccedila taacute muito corrido parece que o pessoal natildeo tem muito prazo mais de ficar cuidando das coisas igual antigamente acho que o pessoal tambeacutem era mais pobre precisava trabalhar mais na roccedila pra produzir e arrumar renda hoje consegue comprar mais coisa Antes soacute compravam sal agora eacute mais faacutecil comprar de tudo antes todo mundo plantava arroz e colhia agrave vontade e ainda sobrava para vender (Joel 71 anos morador de Limeira em Porto Firme MG 2015)

159

A gente compra muita coisa que natildeo compensa mais produzir e nem gente suficiente para produzir aqui na roccedila Tem coisa que natildeo daacute pra produzir aqui igual macarratildeo e rapadura natildeo daacute mais pra fazer nem arroz porque natildeo compensa cafeacute a gente ainda planta um pouquinho e feijatildeo mas soacute daacute para o gasto mesmo (Joseacute 47 anos morador de Mato Dentro Presidente Bernardes MG 2015)

Outro item comprado por todos eacute o accediluacutecar cristal que veio a substituir a

rapadura o accediluacutecar mascavo e o melado que antigamente eram produzidos

Mesmo nas famiacutelias que ainda possuem um pequeno engenho o accediluacutecar cristal

tambeacutem eacute consumido por exemplo para adoccedilar o suco de frutas fazer bolo

broa e outras quitandas Segundo os meus interlocutores o uso do accediluacutecar cristal

industrializado eacute recente datando de cerca de 30 anos

Meus pais tinham um engenho de cana e faziam rapadura e melado hoje a gente planta cana soacute para dar agraves vacasos que que tinham engenho e que continuam a plantar cana usam soacute para produzir cachaccedila ou alimentar as vacas (Lucas 52 anos morador de Bom Jesus do Bacalhau em Piranga MG 2015)

A gente fazia muito melado accediluacutecar mascavo rapadura meus filhos cresceram comendo inhame com melado era muito gostoso e um alimento forte (Luisa 57 anos moradora de Bom Retiro em Porto Firme MG 2015)

Marilia 65 anos moradora de Mestre Campos em Piranga explica

como a sua avoacute fazia o que denominava de ldquoaccediluacutecar brancordquo mas que nada tem

a ver com o accediluacutecar cristal industrializado Recebia esse nome porque era mais

claro do que o accediluacutecar mascavo constituiacutea tambeacutem em um modo ruacutestico de

fabricar o accediluacutecar no siacutetio conforme sua descriccedilatildeo

Ela batia o caldo para rapadura mas sem chegar no ponto de rapadura ai colocava essa massa numa mesa de madeira com beiral por cima da massa ainda quente ela colocava argila escura e deixava no dia seguinte a massa ficava toda quebradiccedila e bem mais clara do que a mascavo Tirava os torrotildees de argila que ficavam bem sequinhos e duro e ficava soacute o accediluacutecar (Marilia 65 anos moradora de Mestre Campos em Piranga MG 2015)

Sobre o que chamei de mescla alimentar no subtiacutetulo ou seja o

consumo concomitante de produtos tradicionais e produzidos pelas proacuteprias

famiacutelias e aqueles adquiridos no mercado ou no caminhatildeo o que a pesquisa

apontou eacute que apesar de as famiacutelias considerarem que o sabor do fubaacute e do

accediluacutecar ficou ruim comparando-se ao que conheceram anos atraacutes as famiacutelias se

mostraram adaptadas ao consumo das formas atuais desses produtos O arroz

permanece nas refeiccedilotildees de todos os dias mesmo sendo industrialmente

160

produzido De forma semelhante o fubaacute do moinho eleacutetrico continua sendo

usado para a fabricaccedilatildeo da broa e do angu a serem consumidos cotidianamente

O accediluacutecar cristal eacute usado com frequecircncia para adoccedilar bolos sucos cafeacutes e

doces Natildeo observei no grupo pesquisado resistecircncia aos produtos

industrializados que consomem Apenas o consumo do oacuteleo vegetal sofreu um

pouco de rejeiccedilatildeo embora tenha sido bem aceito para preparo de frituras exceto

para o casal Eliana e Saturnino que continua resistindo em consumi-lo

O arroz natildeo perdeu a importacircncia que tinha por ser industrializado nem

o fubaacute perdeu seu lugar nas refeiccedilotildees e nas quitandas de todos os dias por deixar

de ser produzido no moinho drsquoaacutegua tampouco a manteiga deixou de ser

consumida por ser industrializada e a margarina eacute usada na elaboraccedilatildeo de bolo

e quitandas embora natildeo seja usada para passar no patildeo O que percebi foi uma

certa resignaccedilatildeo dos meus interlocutores diante de uma realidade alimentar em

transformaccedilatildeo uma vez que as mudanccedilas em curso natildeo ocasionaram draacutesticas

adaptaccedilotildees alimentares Na medida do possiacutevel continuam a comer o que

sempre comeram e a preparar os alimentos da forma que sempre fizeram seus

pais Isso sinaliza que a cultura eacute dinacircmica e estaacute em constante transformaccedilatildeo

Em funccedilatildeo de eventos diversos novos elementos vatildeo surgindo outros vatildeo

sendo incorporados Alguns permanecem na memoacuteria e nas histoacuterias das

famiacutelias assim como outros caem no esquecimento

56 As quitandas para a merenda e para servir agraves visitas

O termo quitanda segundo Silva (2014) e Dourado (2006) origina da

palavra Kitanda da liacutengua quimbundo falada em Angola No Brasil em Minas

Gerais principalmente assumiu a significaccedilatildeo tambeacutem para comidas feitas nos

intervalos das refeiccedilotildees e agrave noite antes de dormir

Nas famiacutelias pesquisadas as quitandas satildeo elaboradas com frequecircncia

Sempre que estatildeo proacuteximas de acabar eacute o momento de fazer outra fornada mas

os dias de saacutebado especialmente satildeo os dias de abastecer a casa para receber

as visitas no domingo que geralmente satildeo a proacutepria famiacutelia os filhos os netos

e mesmo os irmatildeos Nos demais dias da semana a quitanda natildeo pode faltar

pois supre a necessidade diaacuteria pelas merendas A principal quitanda eacute a

ldquorosquinha de sal amoniacuteacordquo que tive a oportunidade de experimentar Algumas

161

mulheres tambeacutem a produzem sob encomenda geralmente para moradores das

cidades proacuteximas As outras quitandas comuns satildeo a broa e o bolo de milho O

cobu de milho (Figura 14) que eacute uma broa enrolada e assada em folha de

bananeira jaacute foi muito comum nas famiacutelias mas por ser de elaboraccedilatildeo mais

trabalhosa foi deixando se ser produzido e hoje o eacute muito raramente Agraves vezes

nos finais de ano quando as casas ficam cheias com a chegada dos filhos e

outros parentes algumas quitandas tradicionais satildeo resgatadas pelas famiacutelias

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 14 ndash Broa do tipo Cobu ou ldquopau a piquerdquo

A broa de fubaacute da Figura 15 havia receacutem-saiacutedo do forno e fui a primeira

a experimentar ainda em temperatura morna Comer bolo quente possui um

prazer especial e muitas pessoas tem essa preferecircncia Natildeo eacute pelo sabor mas

sim pelo fato de saber que se trata de bolo fresco que acaba de sair do forno

com o seu perfume ainda espalhado pelo ambiente A broa feita por Eliana (69

anos moradora de Itapeva Presidente Bernardes) me fez sentir essa sensaccedilatildeo

e neste momento minha memoacuteria afetiva eacute que me levou de volta agrave infacircncia no

siacutetio de meus avoacutes e me trouxe o cheiro que exalava de sua cozinha pela manhatilde

Neste momento da pesquisa senti fortemente a atuaccedilatildeo do tal ldquoimponderaacutevel da

pesquisardquo ao ser recebida com essa delicadeza tatildeo presente nas mulheres

162

rurais com quem tive o prazer de conviver durante a pesquisa Sensaccedilatildeo

semelhante tive ao chegar para a entrevista no siacutetio de Marilia (65 anos

moradora de Mestre Campos em Piranga) e encontrar uma mesa posta com

bolo queijo suco e cafeacute As conversas foram longas com essas e outras

mulheres Experimentei durante a pesquisa o poder da comensalidade

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 15 ndash Broa de fubaacute feita por Eliana em Itapeva Presidente Bernardes

Menos comuns de serem feitos satildeo o bolo agrave base apenas de farinha de

trigo e a ldquorosca da rainhardquo que eacute um tipo de patildeo e que utiliza a farinha de trigo e

fermento bioloacutegico que satildeo opccedilotildees agrave broa de milho Como quitandas

caracteriacutesticas da regiatildeo pesquisada eu elegeria as duas que satildeo consumidas

em todas as casas em que estive broa de fubaacute e rosquinha de sal amoniacuteaco

Mesmo naquelas casas em que natildeo se faz a rosquinha ela eacute consumida porque

eacute comprada nas proximidades

A elaboraccedilatildeo de quitandas sempre foi fundamental na zona rural desde

os tempos dos avoacutes Tanto em tempos atraacutes quanto na contemporaneidade ela

eacute a principal ldquomerendardquo nas famiacutelias Nos tempos antigos os motivos para ter a

despensa abastecida com quitandas eram o difiacutecil acesso agraves cidades e a

necessidade de economizar com essa alimentaccedilatildeo Mas pelos depoimentos das

mulheres com quem conversei e ainda segundo Frieiro (1982) as razotildees satildeo

tambeacutem culturais e simboacutelicas No periacuteodo colonial em Minas quitanda era algo

163

que se fazia em todas as casas nos fornos de barro Era uma caracteriacutestica de

virtude que se atribuiacutea agrave mulher Para ser considerada prendada a mulher

precisava ser boa quitandeira assim cada uma devia dominar bem uma receita

de quitanda que fosse sempre elogiada por quem a degustasse Freyre (2007)

tambeacutem reforccedila a valorizaccedilatildeo dada agrave mulher que dominasse muito bem a

elaboraccedilatildeo de uma receita Essas receitas soacute se passavam oralmente e a

pessoas muito iacutentimas geralmente para agraves filhas e netas

Nas famiacutelias pesquisadas essa tradiccedilatildeo perpetuou com poucas

modificaccedilotildees ao longo do tempo As receitas elaboradas satildeo as mesmas que as

matildees tias e avoacutes faziam Atualmente os siacutetios das famiacutelias pesquisadas natildeo

distam mais do que 20 quilocircmetros das cidades mais proacuteximas mas ainda assim

as idas agrave cidade exceto para quem laacute trabalha ou estuda natildeo eacute constante O

normal eacute o deslocamento com o objetivo de fazer compras receber

aposentadoria eou resolver outros assuntos e ir agrave missa uma vez ao mecircs

Assim semelhantemente aos que ocorria nos tempos passados dos

antepassados ldquoeacute preciso ter a quitanda pronta para o caso de chegar uma visita

e ter o que servir com um cafeacuterdquo

As quitandas a gente faz em casa Broa eu faccedilo todos os dias Broa de fubaacute agraves vezes bolo de farinha o biscoito eacute comprado mas eu faccedilo rosquinha Aqui na roccedila a gente tem que estar prevenida porque se chegar algueacutem a gente natildeo tem tempo de fazer e nem tem onde achar as coisas perto A venda natildeo tem muita coisachega uma visita raacutepidanatildeo daacute nem tempo pra fazer as coisas entatildeo tem que ter uma broa pronta um bolinho uma rosquinha (Lucia 61 anos moradora de Manja em Piranga MG 2015)

Na fala acima Lucia se refere a biscoito e rosquinha Biscoito para eles

eacute o que se compra como o de polvilho assado ndash que tambeacutem eacute consumido com

muita frequecircncia - o de maisena e o de aacutegua e sal para eles pode-se servir os

biscoitos comprados para as visitas mas eacute preciso ter tambeacutem uma quitanda

feita em casa neste caso a broa ou a rosquinha A expressatildeo ldquobolinhordquo natildeo se

refere a bolinho de alguma coisa como ldquobolinho de chuvardquo mas ao bolo no

diminutivo modo comum de se expressar em Minas Gerais

Em tempos passados a elaboraccedilatildeo das quitandas era tambeacutem um

momento de socializaccedilatildeo havia mais mulheres envolvidas no trabalho

geralmente matildees e filhas como citaram minhas interlocutoras As rosquinhas e

broinhas de rapadura o cobu e outras quitandas eram armazenadas em grandes

164

latas bem vedadas para natildeo perder a textura e o sabor De maneira semelhante

se dava o armazenamento na ocasiatildeo da pesquisa Poreacutem o espaccedilo de

socializaccedilatildeo no preparo natildeo eacute como outrora mas um trabalho feito de forma

praticamente individualizada Em algumas ocasiotildees como em periacuteodos de feacuterias

das filhas pode ocorrer de haver uma filha que ajude mas natildeo eacute a regra Poreacutem

trata-se de uma atividade de execuccedilatildeo totalmente feminina

No dia da entrevista com Zefa (67 anos moradora de Mato Dentro

Presidente Bernardes) natildeo havia quitanda sendo preparada no forno a lenha

mas sim um tabuleiro grande de amendoim em casca colhido no quintal que

estava sendo torrado para a elaboraccedilatildeo do lsquocajuzinhorsquo doce que seria servido

na festinha de aniversaacuterio de um ano do neto que mora na cidade de Presidente

Bernardes Ela e suas filhas que moram na cidade iriam organizar juntas essa

festinha familiar

As quitandas satildeo assadas atualmente nos fornos do fogatildeo a lenha jaacute

que os fornos de barro soacute compensam ser acesos para assar grandes

quantidades Assim a broa por ser mais simples eacute assada durante o preparo

do almoccedilo jaacute as rosquinhas satildeo assadas na parte da tarde quando as mulheres

estatildeo mais livres dos outros trabalhos por necessitarem de maior tempo na

elaboraccedilatildeo e muita atenccedilatildeo ao tempo de forno A massa da broa ou do bolo eacute

batida agrave matildeo apesar de a batedeira estar presente em todas as cozinhas e que

satildeo quase sempre presente de filhos ldquoEu bato bolo eacute na matildeo mesmo soacute uso

batedeira quando um faccedilo o ldquobolo drsquoaacuteguardquo que precisa de clara em neverdquo

(Neiva 41 anos moradora de Posses em Porto Firme) No caso de Mariacutelia (62

anos moradora de Mestre Campos Piranga) a batedeira que possui pertenceu

agrave sogra e fica guardada no soacutetatildeo da casa muito raramente utilizada A

praticidade atribuiacuteda agraves batedeiras natildeo convenceu as mulheres que entrevistei

Na realidade elas consideram mais trabalhoso lavar as paacutes da batedeira do que

bater a massa do bolo e da broa na matildeo O uso para as claras em neve

compensa pela rapidez do processo usando o equipamento eleacutetrico Ou seja a

batedeira eacute usada apenas quando se quer um bolo menos ruacutestico O meacutetodo

tradicional prevalece neste caso

Eu tenho dois fornos de barro grande no quintalfazia quitanda umas duas vezes na semana a famiacutelia era grande sete filhos hoje acaboueu faccedilo as coisas eacute no forninho do fogatildeo a lenha mesmo eu

165

jaacute vou fazendo o almoccedilo e assando a quitanda do dia (Uacutersula 78 anos moradora de Bananeiras em Presidente Bernardes MG 2015)

Eu gosto de fazer quitanda tem dia que a gente enjoa mas eu gosto de fazer sim faccedilo broa bolo rosquinha minha neta me ajuda a enrolar as rosquinhas eacute assim que as filhas e netas aprendem a cozinhar comigo tambeacutem era assim (Inecircs 72 anos moradora de Ribeiratildeo em Porto Firme MG 2015)

Para as mulheres a elaboraccedilatildeo das quitandas e doces eacute o que mais

mexe com a memoacuteria afetiva relacionada a alimentos por remeter agrave infacircncia agraves

quitandas feitas pela matildee tias e avoacutes Giard (2012) Lody (2008) e Cacircmara

Cascudo (2004) mencionam como as lembranccedilas e viacutenculos com as comidas

ajudam a manter os haacutebitos vida afora Mesmo que algumas mudanccedilas nos

modos de vida tenham ocorrido permanece o desejo de manter as quitandas do

passado

O relato acima de Inecircs sobre a participaccedilatildeo da neta ajudando a enrolar

as rosquinhas de sal amoniacuteaco que sinaliza o desejo de perpetuar uma receita

tradicional da famiacutelia bem como o de ensinar a neta eacute tambeacutem uma lembranccedila

de si mesma quando ajudava a matildee e da forma como o repasse dessa tradiccedilatildeo

se deu em sua vida Dessa maneira o aprendizado ocorre de maneira luacutedica

Gosta-se da rosquinha feita pela matildee ou avoacute tambeacutem porque era divertido ajudaacute-

las a enrolar e a pincelar com a gema Para uma crianccedila a massa da rosquinha

eacute quase como brincar com as massinhas coloridas na escola e neste caso

ldquobrinca-serdquo com a massinha feita pela avoacute e em sua companhia e ainda pode-

se comecirc-la depois de assada porque tem sabor agradaacutevel ao paladar e agrave

memoacuteria A rosquinha que Inecircs faz com a neta eacute a mesma que ela aprendeu a

fazer com a sua matildee e eacute a mesma que ensinou agraves suas filhas A transmissatildeo do

saber-fazer e dos gestuais de enrolar as rosquinhas e pincelar as gemas satildeo

registros simboacutelicos que ficam na memoacuteria Neste sentido como pondera Leacutevi-

Strauss (2003 p 15) ldquoGestos aparentemente insignificantes transmitidos de

geraccedilatildeo em geraccedilatildeo e protegidos por sua insignificacircncia mesma satildeo

testemunhos geralmente melhores do que jazidas arqueoloacutegicas ou

monumentos figuradosrdquo

O papel de Inecircs nesses momentos eacute pois o da ldquoGuardiatilderdquo da tradiccedilatildeo

(GIDDENS 2012) assunto jaacute discutido no capiacutetulo teoacuterico Em vaacuterios momentos

da entrevista os agricultores reportavam agrave figura dos avoacutes e dos pais ldquoA minha

166

matildee fazia assimrdquo ldquo Quando eu era crianccedila eu gostava de ficar acompanhando

a minha avoacute na cozinha na hortaeu aprendi muito com elardquo

Mesmo que a origem dos ingredientes mudasse por exemplo utilizando

ovo de granja no lugar do ovo caipira e manteiga industrializada o sentido

simboacutelico da receita seria o mesmo Para a neta isso natildeo faria diferenccedila

tampouco para a avoacute transmitir seu saber como pondera Giard (2012)

A aquisiccedilatildeo dos ingredientes a preparaccedilatildeo a cocccedilatildeo e as regras de compatibilidade podem muito bem mudar de uma geraccedilatildeo agrave outra Mas o trabalho cotidiano das cozinhas continua sendo uma maneira de unir mateacuteria e memoacuteria vida e ternura instante presente e passado que jaacute se foi invenccedilatildeo e necessidade imaginaccedilatildeo e tradiccedilatildeo ndash gostos cheiros cores sabores formas consistecircncias atos gestos movimentos coisas e pessoas calores sabores especiarias e condimentos (GIARD 2012 p 296)

Outra questatildeo tambeacutem discutida no item 36 do capiacutetulo anterior trata do

papel historicamente e culturalmente atribuiacutedo agrave mulher no que se refere agrave

alimentaccedilatildeo e agrave cozinha A heranccedila culinaacuteria nas famiacutelias eacute claramente feminina

A matildee ensina a filha eou a neta Antocircnio 78 anos jaacute citado anteriormente

agricultor que tambeacutem foi padeiro eacute o uacutenico exemplo de envolvimento masculino

na atividade ligada agrave culinaacuteria uma exceccedilatildeo

Um assunto jaacute mencionado no capiacutetulo anterior trata da naturalizaccedilatildeo do

gostar de cozinhar Culturalmente tende-se a imputar agraves mulheres o prazer da

culinaacuteria como se o normal fosse que todas gostassem de cozinhar e de assumir

a responsabilidade de alimentar o outro Essa naturalizaccedilatildeo ocorre segundo

Arnaiz (1996) primeiramente em funccedilatildeo da funccedilatildeo bioloacutegica da amamentaccedilatildeo

Um aspecto bioloacutegico que se ampliou para a funccedilatildeo domeacutestica como se fosse

natural Natildeo eacute Algumas mulheres podem gostar muito de cozinhar outras

podem gostar mais ou menos o que parece ser o caso de Inecircs ndash quando diz

ldquotem dia que enjoardquo e pode haver aquelas mulheres que natildeo gostam Durante a

entrevista apoacutes um longo tempo de conversa eu lhes perguntava ndash Vocecirc gosta

de cozinhar Algumas sorriam timidamente ao responder que natildeo gostavam

muito o que me pareceu um certo constrangimento em negar uma condiccedilatildeo

atribuiacuteda como sendo natural ou normal como se eu esperasse uma

confirmaccedilatildeo Como resultado dessas respostas apenas onze mulheres

disseram realmente gostar da atividade e sentir prazer com as funccedilotildees

alimentares que assumem O restante natildeo gosta muito da atividade mas

167

nenhuma delas disse detestar a atividade culinaacuteria As falas reproduziam o

sentido de fazer ldquoporque eacute precisordquo ldquoEu pra falar a verdade natildeo gosto muito

natildeo eu fico na cozinha porque natildeo tem outro recurso mas natildeo gosto muito de

cozinha natildeo eu preferiria ficar soacute costurandordquo (Nanaacute 62 anos moradora de

Xopotoacute em Presidente Bernardes)

Eu gosto Eu natildeo faccedilo por obrigaccedilatildeo natildeo eu gosto aprendi a cozinhar com minha matildee aprendi ajudando Faccedilo broa todo dia Vocecirc viu neacute hoje mesmo eu tocirc fazendo doce de figo e de ameixa vou ali colho e faccedilo faccedilo doce de cidra doce de manga doce de goiaba doce de banana que a gente colhe aqui tambeacutem (Marieta 73 anos moradora de Boa Vista em Piranga MG 2015)

Assim gostar gostar eu natildeo gosto natildeo preferia natildeo ter que cozinhar todo dia porque cansa mas tambeacutem ficar parado sem ter o que fazer eacute ruim pelo menos enquanto eu estou fazendo as coisas eu distraio (Antonina 74 anos moradora de Bananeiras em Presidente Bernardes MG 2015)

As mulheres que dizem gostar de cozinhar principalmente fazer

quitandas e doces satildeo aquelas que mais relataram o prazer de ver a casa cheia

de filhos e netos nas feacuterias feriados e aos domingos Satildeo tambeacutem as mulheres

mais velhas aposentadas Os casais de aposentados relataram certa solidatildeo de

vida nos siacutetios principalmente os que natildeo tecircm filhos por perto o que torna o fato

de receber a famiacutelia em casa uma forma de romper temporariamente com a

solidatildeo Para essas mulheres casa cheia eacute sinal de consumo de muita comida

principalmente porque a cozinha eacute sempre o lugar preferido da casa nessas

ocasiotildees como afirmaram

Dentre as atividades culinaacuterias preferidas lidar com a elaboraccedilatildeo das

quitandas se destaca preferem fazer bolos broas e rosquinhas (a favorita entre

todas as outras) do que preparar a comida do almoccedilo e do jantar

O patildeo francecircs alimento comum nos lanches ou rdquomerendasrdquo na aacuterea

urbana natildeo eacute comumente consumido e natildeo faz parte dos haacutebitos alimentares

das famiacutelias pesquisadas Eacute um item agraves vezes adquirido nas idas agrave cidade

quando costumam comprar rosca doce ou outro patildeo doce Algumas mulheres

gostam de fazer de vez em quando a ldquorosca da rainhardquo Eacute o uacutenico patildeo que foi

citado como elaboraccedilatildeo em algumas poucas casas Antonio informou durante

nossa conversa que ele natildeo conseguia vender patildeo na aacuterea rural porque as

mulheres tinham o haacutebito de fazer broa diariamente Soacute conseguia vender patildees

franceses para moradores da cidade

168

57 Receitas oralidade e registros em cadernos

Esse tema na pesquisa teve como objetivo verificar se as receitas satildeo

transmitidas por oralidade ou por registros escritos O caderno de receitas natildeo eacute

comum para todas as mulheres sobretudo entre as mulheres mais velhas acima

de 50 anos Entre elas satildeo poucas as que possuem receitas escritas

predominando a oralidade na transmissatildeo e o registro na memoacuteria das receitas

que fazem com mais frequecircncia do arroz doce ao doce de figo natildeo se recorre

agraves receitas escritas para elabora-los

Eliana por exemplo natildeo possui cadernos de receitas Tudo o que

aprendeu foi repassado oralmente ao observar e ajudar a matildee e a avoacute

Minha matildee natildeo sabia escrever e nem ler entatildeo natildeo tinha caderno ela aprendeu vendo a matildee dela fazer eu aprendi do mesmo jeito e as minhas filhas tambeacutem aprenderam a cozinhar comigo assim me vendo fazer elas devem ter caderno de receita eu nem sei mas devem de ter sim elas estudaram satildeo inteligentes (Eliana 69 anos moradora de Itapeva em Presidente Bernardes MG 2015)

A filha que mora aqui em casa natildeo gosta de cozinha natildeo mas a outra filha casada gosta Eu aprendi a cozinhar com minha matildee desde novinha mas eu natildeo faccedilo nada de receita natildeo minha matildee nunca teve caderno de receita minha filha casada aprendeu comigo ela me ajudava mas ela tem caderno de receita ela gosta de experimentar umas coisas diferentes para os filhos (Nanaacute 62 anos moradora de Xopotoacute em Presidente Bernardes MG 2015)

Nanaacute aponta em sua fala que das duas filhas uma que eacute casada e tem

filhos gosta de cozinhar e de experimentar novidades e ela associa as ldquocoisas

diferentesrdquo das quais a filha gosta como sendo comidas modernas e por isso

devem estar registradas em um caderno de receita pois o que eacute tradicional fica

registrado na mente eacute memorizado Sua outra filha a mais nova com 26 anos

que eacute solteira e estuda na faculdade natildeo gosta de culinaacuteria No depoimento de

Eliana haacute uma associaccedilatildeo do caderno de receitas com inteligecircncia e a falta dele

com o analfabetismo A sua matildee natildeo sabia ler ela mesmo lecirc pouco e justifica

isso como motivo pelo qual ela natildeo tem um caderno mas destaca que as filhas

por terem estudado devem possuir um

Giard (2012) relata depoimentos de mulheres que pesquisou na Europa

sobre cadernos de receitas tradicionais da famiacutelia que possuem semelhanccedila ao

depoimento de Eliana Uma das mulheres do trabalho de Giard respondeu que

169

as avoacutes eram tatildeo pobres que mal tinham uma cozinha e caderno de receitas natildeo

tiveram tambeacutem

Se a oralidade eacute ainda a forma mais presente de transmissatildeo dos

saberes nas famiacutelias pesquisadas fica a reflexatildeo de como isso poderaacute vir a

ocorrer no futuro com a tendecircncia de saiacuteda dos jovens das aacutereas rurais O maior

comprometimento neste sentido seria em relaccedilatildeo aos modos de fazer

tradicionais nas famiacutelias A oralidade estaacute muito ligada agraves mulheres mais velhas

acima de 50 anos As mulheres mais novas falando aqui da faixa etaacuteria

aproximada de 30 a 45 anos apesar de terem aprendido por oralidade com as

matildees natildeo tecircm aplicado a transmissatildeo das suas praacuteticas culinaacuterias agraves filhas

mesmo porque segundo mencionaram natildeo observam muito interesse ldquodas

filhasrdquo (falaram em relaccedilatildeo agraves filhas e natildeo filhos) na atividade culinaacuteria

Considerando que receitas culinaacuterias atualmente satildeo facilmente

encontradas em banca de revista na internet e no verso de embalagens

industrializadas registrar receitas na memoacuteria ou possuir um caderno de receitas

personalizado pode natildeo fazer muito sentido para as geraccedilotildees mais jovens

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 16 ndash Caderno de receitas que pertenceu agrave matildee de Anita moradora da Comunidade Manja em Piranga

A Figura 16 mostra um ldquocadernordquo que pertenceu a matildee de Anita (71

anos moradora da Comunidade Manja em Piranga) jaacute falecida Trata-se de um

caderno de contas usado tambeacutem para registrar as receitas Na receita haacute uma

170

referecircncia a um ldquopacote de creme infantilrdquo Pesquisei sobre isso e verifiquei que

produtos da Marca Nestleacute jaacute eram vendidos no Brasil na deacutecada de 1920 e na

faacutebrica na cidade de Araras produtos ldquoLactogenordquo (tipo de leite em poacute infantil)

farinha laacutectea e leite condensado Tambeacutem jaacute se vendia na forma embalada a

farinha de trigo poacute Royal e a Maisena A duacutevida que fica eacute se eram produtos que

chegavam facilmente no interior de MG na eacutepoca Haacute que se observar tambeacutem

que o caderno de contas utilizado para anotaccedilotildees estava datado o que natildeo se

sabe eacute se a receita anotada tambeacutem pertence ao mesmo periacuteodo ou se foi

aproveitado como cadernos para anotaccedilotildees de receitas e o tal ldquobolo de Mirardquo

pode ter sido registrado em data posterior Sobre anotaccedilotildees de receitas em

diversos tipos de materiais reporto a Abrahatildeo (2007) que aponta para registros

de receitas culinaacuterias que encontrou anotadas em diversos tipos de lugares e

natildeo raro em conjunto com lista de compras informaccedilotildees sobre plantio etc

A Figura 17 mostra um caderno feito com capricho que pertence a Lucia

(61 anos moradora de Manja Piranga) Ela possui trecircs cadernos de receitas

Um deles pertenceu a sua matildee e os outros dois ela mesma fez com a ajuda das

filhas Quando queria guardar uma receita pedia a uma das filhas para copiar

no caderno outras vezes ela mesmo registrava e recortava figuras de revistas

que encontrasse para ilustrar Na ocasiatildeo da pesquisa ela mencionou que natildeo

tem mais paciecircncia para registrar as receitas mas como gosta de cozinhar

costuma fazer uma ou outra receita poreacutem a maioria dos pratos que gosta de

fazer jaacute estaacute registrada na memoacuteria

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 17 ndash Caderno de receitas de Lucia da Comunidade Manja em Piranga

171

Algumas mulheres demonstraram certo constrangimento em mostrar os

cadernos Diziam que estavam ldquomanchadosrdquo ldquosujosrdquo ldquorasgadosrdquo ldquobagunccediladosrdquo

ldquomal escritosrdquo mas outras se sentiram agrave vontade e mostravam as receitas que

mais gostavam Apenas um caderno estava mais organizado o restante possuiacutea

folhas soltas anotaccedilotildees diversas e desordenadas inclusive endereccedilos de

pessoas contas lembretes e listas de compra As anotaccedilotildees eventuais nesses

cadernos ocorrem porque eles estatildeo visiacuteveis em locais de faacutecil acesso na

cozinha e na falta de outro papel para anotaccedilotildees raacutepidas ele assume esta

funccedilatildeo Pela mesma razatildeo muitos possuem manchas de gordura e respingos

de ingredientes que estavam sendo usados durante a elaboraccedilatildeo da receita Satildeo

detalhes que tambeacutem ldquofalamrdquo da cozinha e dos haacutebitos alimentares das famiacutelias

Eu tenho caderno de receita soacute que taacute tudo rasgado elas satildeo todas testadas ou foi por minha matildee ou minhas avoacutes ou minhas tias primas nada eacute copiado de televisatildeo ou de revista As folhas estatildeo quase todas soltas mas hoje quase tudo que faccedilo eu jaacute sei de cabeccedila (Claudia 66 anos moradora de Limeira em Porto Firme MG 2015)

Tenho uma agenda que uso como caderno de receita eacute uma agenda que desde 1977 quando eu casei que eu anotava tudo inclusive coisa de costura e tem ateacute receita tambeacutem (Mariacutelia 62 anos moradora de Mestre Campos em Piranga MG 2015)

Fonte Luiacutes Pereira pesquisa de campo 2015

Figura 18 ndash Mariacutelia da Comunidade de Mestre Campos em Piranga mostrando seus livros e cadernos de receitas

172

Folheando o caderno de Marieta (73 anos moradora de Boa Vista em

Piranga) me deparei com uma receita de brevidade Comentei que aprecio muito

esse bolo mas que seguindo a receita de minha matildee registrada em seu caderno

a minha nunca fica igual agrave que ela fazia Marieta resolveu entatildeo me ensinar

uma receita faacutecil que prometi testar

ldquoVou te ensinar uma receita faacutecil e muito gostosa A receita chama assim ldquo5 10 15rdquo e eacute assim Vocecirc potildee numa vasilha 5 (cinco) ovos inteiros 10 (dez) colheres de accediluacutecar bate bem e ai coloca as 15 (quinze) colheres de maisena e bate mais ainda Coloca numa forma redonda untada e potildee no fornordquo (Marieta 73 anos moradora de Boa Vista Piranga MG 2015)

Em relaccedilatildeo agraves receitas e agrave cozinha Marieta e Zefa de Presidente

Bernardes foram as mulheres mais empolgadas Contaram detalhes de algumas

quitandas que fazem e de outras que eram feitas por suas matildees e avoacutes Elas

fazem parte das poucas mulheres que entrevistei que confirmaram um grande

prazer em cozinhar

58 Os equipamentos da cozinha rural do fogatildeo a lenha agrave panela eleacutetrica de arroz

Foi em torno do fogatildeo a lenha que muitas das entrevistas aconteceram

enquanto as mulheres preparavam o almoccedilo O fogatildeo a lenha eacute o equipamento

que eu elegeria como o mais representativo na realidade das famiacutelias presente

em todas as cozinhas que visitei durante a pesquisa de campo dos mais

tradicionais feitos de argila aos mais modernos revestidos por azulejo

Instrumento transformador do ldquocru em cozidordquo e da ldquonatureza em culturardquo

propiciador de socializaccedilatildeo e de comensalidade nos dias de inverno por manter

a cozinha aquecida as pessoas gostam de ficar em torno dele sendo assim um

instrumento propiciador de sociabilidades Aleacutem desses aspectos eacute tambeacutem

usado para aquecer a aacutegua do chuveiro via serpentina

Aquela copa ali com aquela mesa eu falo que eacute pra enfeite porque quando meus filhos vem pra caacute com os filhos deles eles juntam tudo eacute aqui na cozinha Senta nesse banco ai nas cadeiras trazem mais cadeira e ficam aqui tem um filho meu que gosta de fritar torresmo ai jaacute viu neacute (Antonina 74 anos moradora de Bananeiras Presidente Bernardes MG 2015)

Eu fico ateacute meio brava agraves vezes e jaacute falo logo - Se ficar em volta de mim no fogatildeo a comida natildeo vai sair natildeo pode esparrodar todo

173

mundo pra laacute (Anita 71 anos moradora de Manja Piranga MG 2015)

Os fogotildees revestidos por azulejos representam um aspecto recente

Segundo os interlocutores uma famiacutelia reformou e revestiu o seu fogatildeo o vizinho

viu aprovou e tambeacutem reformou o seu e em pouco tempo vaacuterios fogotildees na

regiatildeo seguiram a mesma tendecircncia Para eles o revestimento em azulejo

manteacutem o fogatildeo mais limpo por fora porque eacute de faacutecil limpeza Em 11 casas

nos diferentes municiacutepios o fogatildeo estava revestido com esse material No

restante o revestimento era de argila e tinta avermelhada na tonalidade de tijolo

ou amarelado Todos possuem formato semelhante com forno anexo usado

para assar a maior parte das quitandas alguns possuem compartimento para

armazenar lenha e outros natildeo A respeito dos dois modelos de revestimento

apesar de o azulejado dar ao fogatildeo uma conotaccedilatildeo ldquomodernardquo pelo tipo de

revestimento isso natildeo altera em nada a tecnologia do fogatildeo A modernidade

conferida pelo revestimento do azulejo eacute de ordem mais esteacutetica do que

funcional

As Figuras 19 e 20 mostram os fogotildees a lenha comuns e de uso

prioritaacuterio nas casas O primeiro fogatildeo (Figura 19) pertencente agrave Mariacutelia (62 anos

moradora de Mestre Campos Piranga MG) eacute feito em alvenaria revestido por

cimento queimado no estilo tradicional e pintado de amarelo e com barras de

contorno na cor vermelha Sobre ele panelas feitas de materiais diversos como

alumiacutenio pedra barro e ferro Colher de pau e de accedilo inoxidaacutevel O fogatildeo estaacute

com o almoccedilo do dia pronto para ser servido (feijatildeo arroz angu couve carne

de boi moiacuteda com cebolinha de folha) Para evitar sujeiras e proteger o fogatildeo

uma taacutebua de madeira eacute usada como suporte para as panelas e uma lata de tinta

foi reaproveitada para forrar o local do fogo

174

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 19 ndash Fogatildeo a lenha no siacutetio de Mariacutelia

O segundo fogatildeo (Figura 20) pertencente agrave famiacutelia de Nanaacute e Custoacutedio

(61 e 72 anos respectivamente moradores de Xopotoacute em Presidente

Bernardes) eacute revestido por azulejo no estilo mais moderno Como eacute de mais

faacutecil higienizaccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria a proteccedilatildeo pela taacutebua de madeira e pela

placa de lata que haacute no fogatildeo anterior Sobre este fogatildeo estatildeo apenas panelas

de alumiacutenio com o almoccedilo a ser servido (feijatildeo angu batata doce frita couve e

peixe frito (Carpa-capim pescado no rio que passa nos fundos da casa)

Tambeacutem foi servido arroz mas neste caso feito em panela eleacutetrica um item

moderno e do qual falarei mais adiante Outro elemento da modernidade que se

observa na foto satildeo os dois potes de margarina em uma cozinha de caraacuteter

tradicional mas onde elementos da modernidade tambeacutem se fazem presentes

Nesta casa a panela eleacutetrica de fazer arroz fica sobre a pia e um moedor de cafeacute

preso afixado na parede ao lado da mesma pia O peixe e a batata doce por

exemplo foram fritos em oacuteleo de soja e a verdura e o feijatildeo refogados em gordura

de porco Nesta cozinha observei muitos dos elementos da mescla cultural

relativos agraves praacuteticas alimentares

175

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 20 - Fogatildeo a lenha no siacutetio de Nanaacute e Custoacutedio

Um detalhe que observei tambeacutem em todas as cozinhas eacute o cuidado com

a higiene e organizaccedilatildeo das cozinhas Na Figura 20 a pia possui uma cortina

estampada feita pela proacutepria Nanaacute que eacute tambeacutem costureira Coincidentemente

ou natildeo as cores das garrafas teacutermicas combinam com a cor da cortina Na Figura

19 tambeacutem os detalhes chamam a atenccedilatildeo Haacute nessas cozinhas uma noccedilatildeo de

esteacutetica e cuidado com a decoraccedilatildeo que indicam o quanto a cozinha eacute parte

importante da casa e merece destaque pelas famiacutelias em sua organizaccedilatildeo

A Figura 21 eacute outro exemplo Mostra a cozinha pertencente a Eliana e

Saturnino (69 e 75 anos respectivamente moradores de Itapeva Presidente

Bernardes) onde as cadeiras verdes combinam com a cor da porta do forno e

ficam em local estrateacutegico proacuteximo ao calor do fogo Em geral todas as cozinhas

das casas em que estive tem caracteriacutesticas como essas umas mais tradicionais

do que outras mais bonitas esteticamente do que outras mas todas muito

organizadas e limpas

176

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 21 ndash Cozinha com fogatildeo a lenha (azulejado) em siacutetio de Eliana e Saturnino

O fogo eacute destacado por Leacutevi-Strauss (1968) Wrangham (2010)

Montanari (2008) e outros como sendo fundamental para a transformaccedilatildeo do

alimento em comida e no processo da transformaccedilatildeo da natureza em cultura Se

em tempos remotos cozinhavam-se as caccedilas e outros alimentos a ceacuteu aberto

com o passar do tempo o fogo passou a ser inserido no ambiente domeacutestico e a

fazer parte do ambiente fiacutesico das casas Lemos (1996) aponta que durante

muito tempo tanto em Portugal quanto no Brasil as moradias eram chamadas

de fogos ou fogotildees tamanha a importacircncia deste equipamento

Wilson (2014 p 126) aponta que o fogo foi aos poucos sendo apagado

no mundo desenvolvido uma condiccedilatildeo necessaacuteria inclusive para que ele se

incorporasse agraves estruturas das casas Assim surgiram na Inglaterra os ldquofogotildees

fechadosrdquo que funcionavam agrave lenha e que serviam tambeacutem para aquecer a agua

ldquoUm fogatildeo nunca servia apenas para cozinhar tambeacutem era essencial para

fornecer aacutegua quente a toda a famiacutelia esquentar ferros de passar e aquecer as

matildeosrdquo Com o evento da Revoluccedilatildeo Industrial surgiram os fogotildees agrave base de

ferro fundido que funcionavam a carvatildeo Mas a autora explica que seu uso era

comum nas cidades pois nas aacutereas rurais permaneceu o uso do fogatildeo agrave lenha

por muitos anos O avanccedilo tecnoloacutegico logo propiciou o surgimento do fogatildeo a

gaacutes na deacutecada de 1880 considerado pela autora como um equipamento que

177

gerou ldquoum progresso real na cozinhardquo A sua aceitaccedilatildeo foi raacutepida em funccedilatildeo de

sua facilidade e praticidade e como mencionado pela autora em 1939 na

Inglaterra trecircs quartos das famiacutelias cozinhavam no fogatildeo a gaacutes

No que se refere ao grupo pesquisado mesmo em virtude de sua

praticidade o fogatildeo a gaacutes natildeo substituiu o fogatildeo agrave lenha Esse siacutembolo de

modernidade natildeo foi forte o suficiente para romper com a tradiccedilatildeo do fogatildeo agrave

lenha O fogatildeo a gaacutes eacute pouquiacutessimo utilizado ndash apenas para preparar o cafeacute da

manhatilde enquanto acende-se o fogatildeo a lenha ou para fazer ldquocoisa menorrdquo como

aquecer uma aacutegua ou o leite agrave tarde

No caso das famiacutelias em que as mulheres trabalham fora do siacutetio o fogatildeo

a gaacutes eacute mais usado para elaboraccedilatildeo do almoccedilo do que o fogatildeo a lenha A razatildeo

eacute a facilidade para os maridos e os filhos que aquecem o almoccedilo que elas deixam

pronto ou adiantado mas o fogatildeo a lenha permanece usado para aquecer a aacutegua

aquecer a aacutegua do chuveiro pela serpentina como citado por Ivone

Usamos mais o fogatildeo a gaacutes no dia a dia porque eu trabalho na escola do arraial de manhatilde e quando eu chego costumo ir ajudar meu marido ai ateacute acender o fogo demora muito pra aquecer entatildeo o fogatildeo a gaacutes eacute mais praacutetico para noacutesa gente liga o fogatildeo a lenha mesmo mais pra esquentar a aacutegua do chuveiro porque a gente tem serpentina mas a comida mesmo eacute no gaacutes Mas agrave tarde eacute mais faacutecil esquentar a comida no fogatildeo a lenha ainda mais agora que o frio vai chegando porque ele esquenta a casa (Ivone 38 anos moradora de Posses em Porto Firme MG 2015)

Nos que se refere ao uso dos fogotildees eacute tambeacutem possiacutevel perceber a

mescla cultural o moderno e o tradicional convivendo sem que isso gere

mudanccedilas radical nos costumes

As localizaccedilotildees das cozinhas nas casas que visitei satildeo nos fundos da

casa voltadas para o quintal semelhantemente ao que eacute apontado por Lemos

(1976) e Abrahatildeo (2007) sobre a disposiccedilatildeo do fogatildeo e da cozinha das casas

coloniais brasileiras Os fogotildees a lenha assim como o fogatildeo a gaacutes ficam na

ldquocozinha limpardquo expressatildeo usada por Algranti (1997) que eacute interna agrave casa Em

algumas casas havia tambeacutem a ldquocozinha sujardquo que possui mais um fogatildeo a

lenha e ou a gaacutes para torrar pequenas quantidades de cafeacute ligar o acendedor

de ldquolimparrdquo o porco apoacutes o abate fazer frituras de toucinho torresmo etc Natildeo se

trata de uma outra cozinha de alvenaria fechada mas sim de uma pequena

coberta no quintal

178

Outro fogatildeo que fica externo agrave casa eacute o fogatildeo de Cupim jaacute citado (Figura

21) Os fogotildees de cupim tambeacutem satildeo usados para fazer as comidas mais

gordurosas como descreve Doca (55 anos moradora de Boa Vista Piranga)

ldquoQuando a gente mata capado a gente frita as carnes os toucinhos no fogatildeo

de cupim laacute forardquo Os cupins satildeo retirados dos pastos e transportados por

carroccedila ateacute o quintal Neles satildeo feitos um buraco na lateral e rente ao chatildeo onde

eacute colocada a lenha e outro buraco em cima onde coloca-se a panela

Como jaacute mencionado o forno de barro apesar de existente nas casas

quase natildeo eacute utilizado pelas famiacutelias atualmente por motivos jaacute expostos Em uma

das casas o forno estava sendo usado para guardar objetos em desuso

Mas quando meus filhos vecircm ai sim eu acendo o forno grande laacute fora Eles sempre vecircm no natal A casa fica cheia ai daacute gosto usar o forno eles pedem pra fazer o que eles gostam ai a gente faz neacute (Zefa 67anos moradora de Mato Dentro em Presidente Bernardes MG 2015)

A Figura 22 pertence ao siacutetio de Selma e Lourival (68 e 76 anos

respetivamente) moradores da comunidade Tatu em Piranga Ao lado do forno

em alvenaria haacute uma espeacutecie de churrasqueira coberta com uma chapa de ferro

e uma churrasqueira menor de ferro fundido Esse espaccedilo segundo Selma eacute

utilizado apenas quando a casa estaacute cheia com a presenccedila dos filhos que gostam

e fazer churrascos quando estatildeo reunidos Nessas ocasiotildees ela tambeacutem utiliza

o forno para assar maior quantidade de quitandas

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 22 ndash Forno de barro e churrasqueira no siacutetio de Selma e Lourival

179

As famiacutelias possuem alguns equipamentos eleacutetricos nas cozinhas forno

de micro-ondas forno eleacutetrico panela eleacutetrica de fazer arroz e freezer mas nem

todos faziam parte da realidade de todas as famiacutelias Jaacute o liquidificador a

batedeira de bolo o espremedor de frutas e a geladeira existentes em todas as

casas O forno de micro-ondas o freezer e a batedeira de bolo satildeo usados

esporadicamente como jaacute visto no assunto sobre as quitandas com exceccedilatildeo do

freezer de Marcelina que estoca os salgados que produz para vender Natildeo

gostam de usar a batedeira porque ldquodaacute trabalho para lavar e depois guardarrdquo

A gente usa o micro-ondas para esquentar uma comida um leite agrave noite agraves vezes para descongelar uma carne comprar carne no accedilougue taacute muito caro assim eu mato um garrote vem um moccedilo do accedilougue da cidade e mata para noacutes ele conhece as partes desossa e ai congela as partes separadaspotildee nome das carnes em todos os pacotes separados e fica num freezer que a gente tem soacute pra isso (Joatildeo 81 anos morador de Aacutegua Limpa Porto Firme MG 2015)

Considerei interessante o desprendimento com o qual Joatildeo com seus

81 anos falava sobre o uso do micro-ondas Sabe utilizar o equipamento e

apesar de natildeo usar com frequecircncia natildeo demonstrou resistecircncia em utiliza-lo

quando necessaacuterio mas natildeo foi sempre assim O equipamento foi presente dado

por um dos filhos que moram fora da regiatildeo e durante muito tempo o casal

atribuiacutea utilidade a ele ateacute os filhos mostrarem alguns resultados de

descongelamento e aquecimento como o que a famiacutelia mais utiliza explicitado

na sua fala Wilson (2014) discute sobre a resistecircncia que muitos equipamentos

de uso corriqueiro na contemporaneidade ndash dentre eles o micro-ondas ndash tiveram

quando do seu surgimento tendo sido recebido sob protestos de que os meacutetodos

antigos eram melhores e mais seguros

Em quatros das casas que visitei havia a panela eleacutetrica de fazer arroz

Foram presentes de filhos ou mesmo adquiridos pelas mulheres inicialmente

pela curiosidade associada ao preccedilo relativamente baixo Este equipamento

surgiu no Japatildeo na deacutecada de 1960 mudando completamente a rotina de

produzir o tipo de arroz nas cozinhas asiaacuteticas Wilson (2014) destaca que esse

tipo de panela eacute equipamento mais importante nas casas japonesas do que a

televisatildeo Nas famiacutelias que pesquisei e que possui a panela eleacutetrica ela nem de

longe eacute mais importante do que outros equipamentos tradicionais como o fogatildeo

mas estaacute ganhando espaccedilo de convivecircncia na cozinha sem maiores conflitos

180

Em uma das casas onde almocei tive a oportunidade de conhecer seu

funcionamento e experimentar o arroz produzido As mulheres elogiaram o

equipamento afirmando que ldquoO arroz fica mais soltinho eacute muito melhor fazer

arroz nela natildeo daacute trabalho nenhumrdquo (Nanaacute moradora de Xopotoacute em Presidente

Bernardes)

A presenccedila e uso desses equipamentos satildeo tambeacutem exemplos da

coexistecircncia entre elementos modernos e tradicionais nas famiacutelias Enquanto se

faz o restante da comida no fogatildeo a lenha a panela eleacutetrica de arroz fica em

funcionamento sobre a pia Giard (2012) ao tratar da introduccedilatildeo dos

equipamentos eleacutetricos na cozinha destaca que o uso de um aparelho eleacutetrico

envolve a relaccedilatildeo instrumental que se estabelece entre utilizador e objeto

utilizado ldquoA cozinheira apenas alimenta esse objeto teacutecnico com ingredientes

que devem ser transformados depois liga o aparelho apertando um botatildeo

eleacutetrico e recolhe a mateacuteria transformada sem controlar as etapas intermediaacuterias

da operaccedilatildeordquo (GIARD 2012 p 284) Para esta autora apesar da praticidade

desses equipamentos eleacutetricos eles propiciaram rompimentos na transmissatildeo

de algumas habilidades culinaacuterias mas ainda assim considera perfeitamente

possiacutevel a junccedilatildeo da modernidade dos equipamentos eleacutetricos com os utensiacutelios

tradicionais usufruindo das comodidades oferecidas pelos primeiros e mantendo

relaccedilatildeo igualmente necessaacuteria e importante com os objetos tradicionais Mas

defende que satildeo formas de convivecircncia que natildeo devem ser impostas cada

grupo ou pessoa deve fazer sua escolha de acordo com suas manifestaccedilotildees

culturais

Finalizando a pesquisa de campo destaco que ela trouxe informaccedilotildees

ricas sobre o modo de vida a sociabilidade e a cultura das famiacutelias pesquisadas

no que se refere agraves praacuteticas alimentares e a comensalidade A pesquisa mostrou

que as famiacutelias estatildeo inseridas em uma cultura que eacute dinacircmica mas que

preserva e valoriza a cultural tradicional Percebi durante a investigaccedilatildeo muitas

conexotildees e correlaccedilotildees com a pesquisa teoacuterica me conduzindo o tempo a fazer

reflexotildees analiacuteticas pensando na interface entre a teoria e a praacutetica Sobre as

percepccedilotildees finais relacionadas ao campo teccedilo consideraccedilotildees no item a seguir

181

CONCLUSOtildeES

Neste trabalho apontei caracteriacutesticas e peculiaridades das praacuteticas

alimentares das famiacutelias rurais que entrevistei O tema da alimentaccedilatildeo natildeo se

conclui pelo contraacuterio ele eacute dinacircmico Chamo de conclusatildeo aqui o fechamento

analiacutetico com outras discussotildees e reflexotildees sobre esta pesquisa

Haacute uma discussatildeo na antropologia e sociologia da alimentaccedilatildeo sobre a

tendecircncia a homogeneizaccedilatildeo alimentar na sociedade ocidental seguindo os

rumos da sociedade moderna e globalizada como tratado por Bauman (2001)

Esta premissa foi um dos pontos que me fez refletir inicialmente o problema de

pesquisa ao questionar se nela natildeo estava impliacutecita uma desconsideraccedilatildeo agraves

diversidades culturais Nesse sentido pensei a questatildeo no contexto rural ndash

especialmente no contexto rural da Zona da Mata mineira por ser nele onde

mais tive a oportunidade de conviver socialmente e academicamente ateacute hoje

Assim conhecer e analisar o sistema alimentar de famiacutelias rurais seus

haacutebitos praacuteticas e a comensalidade foi fundamental para ponderar e tecer

consideraccedilotildees conclusivas a respeito dessa questatildeo Este trabalho permitiu

compreender que tal premissa natildeo se aplica agrave realidade sociocultural das

famiacutelias pesquisadas No contexto cultural em que vivem natildeo se verificou a

adoccedilatildeo das praacuteticas alimentares homogeneizantes das quais trata Fischler (1979

e 1998) homogeneidade considerada como um resultado natural na dinacircmica

da sociedade contemporacircnea em funccedilatildeo das constantes inovaccedilotildees na induacutestria

de alimentos tornando potencialmente inevitaacutevel a praacutetica e o consumo

alimentar cada vez mais padronizados no ocidente Embora as famiacutelias natildeo

estejam imunes agraves modernidades alimentares da induacutestria demonstraram

capacidade e interesse em selecionar o que desse contexto deve ser adotado e

o que deve ser rejeitado por elas

A pesquisa mostrou a existecircncia de uma homogeneizaccedilatildeo alimentar na

realidade cultural das famiacutelias pesquisadas poreacutem uma homogeneizaccedilatildeo local

e pontual que natildeo eacute semelhante a homogeneizaccedilatildeo alimentar tratada pelo autor

acima Ao contraacuterio nas famiacutelias que pesquisei essa homogeneidade alimentar

estaacute inteiramente ligada agrave tradiccedilatildeo e agrave produccedilatildeo local de alimentos Ela eacute

inclusive compatiacutevel com o processo sociohistoacuterico de ocupaccedilatildeo da regiatildeo e

diretamente determinada por ele Coincidindo com o que pondera Flandrin e

182

Montanari (1998) sobre a necessidade de relativizar a discussatildeo sobre a

homogeneizaccedilatildeo cultural e considerar as particularidades sociais e culturais dos

grupos

Todas as famiacutelias pesquisadas abrangendo os trecircs municiacutepios tecircm

haacutebitos e praacuteticas alimentares semelhantes independente da faixa etaacuteria dos

casais e filhos que formam o grupo familiar A semelhanccedila tambeacutem se aplica aos

produtos cultivados nos siacutetios que representam quase que a totalidade da dieta

baacutesica das famiacutelias Assemelham-se tambeacutem os alimentos adquiridos do

mercado

As mudanccedilas observadas nas praacuteticas alimentares tais como a adoccedilatildeo

de novas tecnologias ndash entre elas a substituiccedilatildeo do moinho drsquoaacutegua pelo moinho

eleacutetrico e a opccedilatildeo de comprar alguns alimentos antes produzidos por eles como

o arroz e o accediluacutecar ndash natildeo implica um abandono total da tradiccedilatildeo As famiacutelias estatildeo

convivendo ou se adaptando aos processos de mudanccedilas no mundo

contemporacircneo sem transformar significativamente a proacutepria cultura O uso do

moinho eleacutetrico em lugar do moinho drsquoaacutegua natildeo tem colocado em risco o

consumo do fubaacute na elaboraccedilatildeo de comidas tradicionais como o angu e a broa

Esse comportamento se assemelha agravequele entendimento apresentado por

autores como Giddens (2012) Doacuteria (2014) e Cacircndido (1982) que acreditam

que a convivecircncia possiacutevel e mais provaacutevel de ocorrer na contemporaneidade

se daacute por meio da mescla entre fatores de persistecircncia e os de mudanccedilas que

se complementam mas sem extinguir as construccedilotildees simboacutelicas tradicionais

Eacute importante ressaltar que a incorporaccedilatildeo das opccedilotildees de praacuteticas

alimentares modernas tambeacutem natildeo eacute acriacutetica As famiacutelias sabem que a

substituiccedilatildeo de uma pratica por outra implica em riscos e em perdas e ganhos

como no caso da gordura de porco Mostraram-se conscientes quanto agrave questatildeo

relativa agrave sauacutede no consumo desse alimento mas ele continua sendo

prioritariamente utilizado na preparaccedilatildeo de comidas tradicionais O que

prevalece neste caso eacute a escolha pelo sabor do alimento e pelo significado

simboacutelico e tradicional atrelado a ele Tal como reforccedilado pelos interlocutores a

comida feita com gordura de porco eacute mais saborosa e eacute a que daacute ldquosustanccedilardquo

Ainda que algumas pessoas tenham demonstrado estar mais preocupadas com

a sauacutede do que com o sabor e preferissem utilizar somente o oacuteleo vegetal natildeo

eacute essa opccedilatildeo que prevalece no montante das famiacutelias porque as mudanccedilas satildeo

183

ou natildeo incorporadas nas praacuteticas alimentares levando em consideraccedilatildeo

tambeacutem a cultura familiar

Pode-se afirmar tambeacutem que a adoccedilatildeo pelas tecnologias e praacuteticas

alimentares modernas natildeo tem sido radical Um exemplo disso eacute a manutenccedilatildeo

prioritaacuteria do uso do fogatildeo a lenha O fogatildeo a gaacutes assume um lugar importante

no preparo do almoccedilo nas famiacutelias onde as mulheres trabalham fora do siacutetio o

que aponta para um dos ajustes necessaacuterios que as famiacutelias tecircm precisado fazer

para se adaptar agraves novas realidades vividas Ainda assim o fogatildeo a lenha

continua sendo utilizado para fazer o jantar e para aquecer a aacutegua do chuveiro

evitando-se com isso o consumo de energia eleacutetrica Natildeo houve tambeacutem

nessas famiacutelias a substituiccedilatildeo de alimentos in natura por industrializados

congelados visando a praticidade na preparaccedilatildeo do almoccedilo Eacute importante

ressaltar que nessas famiacutelias ocorre uma alteraccedilatildeo no papel masculino relativo

a culinaacuteria jaacute que os maridos e os filhos passam a aquecer e a preparar alguns

itens de sua alimentaccedilatildeo Se antes essa era uma responsabilidade

exclusivamente feminina as mudanccedilas no papel masculino sinalizam ainda que

timidamente novas negociaccedilotildees de gecircnero nessas famiacutelias sinalizando

alteraccedilotildees em um espaccedilo que historicamente e culturalmente eacute de domiacutenio

feminino Eacute uma heranccedila que ainda vem resistindo e passando de avoacutes para

matildees e netas e de matildee para filhas

A articulaccedilatildeo entre o tradicional e o moderno na cultura alimentar das

famiacutelias mostrou estar ocorrendo sem impasses ou conflitos significativos

Mesmo que a compra de um alimento in natura proveniente da CEASA vendido

pelos caminhotildees gere receio da ingestatildeo de agrotoacutexicos essa aquisiccedilatildeo ocorre

ainda que eventualmente e por necessidade especiacutefica

A tradiccedilatildeo do consumo e elaboraccedilatildeo das quitandas permanece em todas

as famiacutelias Ela representa aleacutem de uma ldquomerendardquo importante para as famiacutelias

no dia a dia uma importante continuidade tradicional Elaboram-se as mesmas

quitandas haacute geraccedilotildees e ao mesmo tempo ocorrem ligeiras substituiccedilotildees como

o biscoito de polvilho frito pelo assado e adquirido no mercado local O patildeo

francecircs que eacute tatildeo consumido nas aacutereas urbanas natildeo faz parte do gosto

alimentar das famiacutelias e eacute de consumo muito raro

Na manutenccedilatildeo dos haacutebitos alimentares tradicionais estaacute presente a

influecircncia dos guardiatildees da tradiccedilatildeo na reproduccedilatildeo do gosto no processo de

184

significaccedilatildeo e ressignificaccedilatildeo da comida atrelada agraves praacuteticas aos saberes e aos

haacutebitos tanto no cotidiano quanto nas comidas de dias festivos A constacircncia

das expressotildees ldquoaprendemos a comer assimrdquo ldquoaprendi a cozinhar vendo minha

matildee fazerrdquo ldquona casa de meus pais fazia assimrdquo denotam a valorizaccedilatildeo dos

aprendizados e o interesse na perpetuaccedilatildeo dos haacutebitos

No que se refere agrave comensalidade no grupo familiar a pesquisa mostrou

que ela estaacute passando por modificaccedilotildees importantes em algumas famiacutelias

Naquelas em que as mulheres trabalham nas escolas a comensalidade ocorre

na escola em companhia de outras colegas e alunos nos horaacuterios de almoccedilo No

restante do grupo a comensalidade se daacute entre aqueles que estatildeo em casa jaacute

que nessas famiacutelias natildeo foi citado casos de pessoas que almoccedilam na atividade

local com o uso de marmita A comensalidade no horaacuterio de jantar tem sofrido

modificaccedilotildees nos uacuteltimos anos em todas as famiacutelias mesmo naquelas com

pessoas mais velhas Ocorre com frequecircncia entre eles servir o prato e se

sentarem na sala para assistir televisatildeo enquanto jantam Houve entatildeo um

deslocamento da mesa da cozinha para o sofaacute da sala Se em tempos passados

o fogo era um fator socializador e propiciador da comensalidade que ocorria

em torno da fogueira da lareira e do fogatildeo a lenha como apontado por

Wrangham (2010) e Montanari (2008) na modernidade a televisatildeo pode tambeacutem

assumir essa funccedilatildeo tanto no meio urbano quanto no meio rural pelo menos no

que se refere agraves famiacutelias que entrevistei

Alimentos industrializados satildeo consumidos em todas as famiacutelias

embora natildeo em grande quantidade e diversidade proporcionalmente ao que se

encontra disponiacutevel nos mercados e satildeo itens importantes nos cardaacutepios As

famiacutelias adquirem alimentos que sempre fizeram parte dos haacutebitos alimentares

e que em tempos passados jaacute foram produzidos nos siacutetios No entanto compram

tambeacutem alguns alimentos que nunca foram produzidos localmente mas que

passaram a ser adotados o que aponta para a dinacircmica da cultura

O significado da comida para as famiacutelias tem importante ligaccedilatildeo com a

tradiccedilatildeo e representa uma identificaccedilatildeo significativa com as geraccedilotildees passadas

Marca ainda a ligaccedilatildeo com a terra ao serem consumidos prioritariamente o que

se produz no local As comidas tradicionais e elaboradas de modo simples satildeo

as que mais agradam ao paladar das famiacutelias e apesar de ser um cardaacutepio de

certa forma monoacutetono natildeo se torna indesejado e natildeo foi apontado pelas famiacutelias

185

algum desejo ou necessidade por experimentar comidas diferentes das que

estatildeo habituados A prioridade do grupo pesquisados pela alimentaccedilatildeo baseada

em produtos cultivados localmente e em praacuteticas mais tradicionais coincide com

o que proposto pelo ldquoGuia Alimentar para a Populaccedilatildeo Brasileirardquo (2015)

publicado pelo Ministeacuterio da Sauacutede contendo diretrizes de uma alimentaccedilatildeo

saudaacutevel e considerando como importante tambeacutem o aspecto cultural

As famiacutelias estatildeo conscientes de que as transformaccedilotildees constantes que

ocorrem na sociedade atual tecircm o poder de interferir em suas praacuteticas e haacutebitos

alimentares Consideram que vai se tornando cada vez mais difiacutecil manter seus

haacutebitos alimentares por fatores de caraacuteter mais externos do que internos e que

interferem na sua dinacircmica de reproduccedilatildeo social e econocircmica

Inseridas no processo que envolve tanto o desejo de manter sua

autonomia produtiva e cultura alimentar quanto agrave necessidade de ceder a

algumas mudanccedilas essas famiacutelias estatildeo aprendendo a se adaptar com as

experiecircncias do cotidiano natildeo se fecham em seus nuacutecleos culturais e nem se

posicionam avessos agraves mudanccedilas demonstram uma atitude resignada poreacutem

criacutetica acatando os itens da modernidade alimentar que lhes agrada e lhes satildeo

importantes e rejeitando o que natildeo lhes interessa respeitando prioritariamente

a cultura local no sentido tratado por Helman (1994) no processo de escolha

alimentar Haacute nessa percepccedilatildeo um sentido de resistecircncia identitaacuteria alimentar

semelhante agrave que Poulain (2013) discute como sendo uma das caracteriacutesticas

das culturas alimentares locais

Por fim concluo que na ocasiatildeo da pesquisa a comida possuiacutea a

mesma centralidade cultural para as famiacutelias que pesquisei que aquela da eacutepoca

de seus antepassados Apesar de estarem inseridas na dinacircmica

contemporacircnea de mudanccedilas a vida cotidiana ainda segue um ritmo lento que

de certa forma difere do ritmo das aacutereas urbanas o que permite ainda este status

central da comida em sua cultura

186

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Page 2: PRÁTICAS ALIMENTARES E SOCIABILIDADES EM FAMÍLIAS … · 2016. 4. 20. · 5.5. Mescla cultural: práticas de consumo alimentar de ontem e de hoje.. 156 5.6. As quitandas para a

ROMILDA DE SOUZA LIMA

PRAacuteTICAS ALIMENTARES E SOCIABILIDADES EM FAMIacuteLIAS RURAIS DA ZONA DA MATA MINEIRA MUDANCcedilAS E PERMANEcircNCIAS

Tese apresentada agrave Universidade Federal de Viccedilosa como parte das exigecircncias do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Extensatildeo Rural para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doctor Scientiae

APROVADA 25 de novembro de 2015

ii

Aos meus pais que me ensinaram a fazer escolhas na vida baseadas no amor

e a me dedicar com responsabilidade a tudo que faccedilo Ao meu pai que sempre

se despede dos filhos e netos dizendo ldquovai em paz seja felizrdquo Agrave minha matildee

que adoeceu e faleceu no meio do processo do doutorado e que apesar de

seu estado de sauacutede esteve sempre atenta e preocupada com meu trabalho

Ela que gostava de experimentar pratos novos mas elaborava a comida

tradicional como ningueacutem me ensinou que a cozinha eacute um lugar onde coisas

boas acontecem para quem estaacute disposto a vivenciar sua ldquoalquimiardquo

iii

AGRADECIMENTOS

A Deus por tudo Por me sentir capaz de superar os momentos de

tristeza e fragilidade e vivenciar sem culpa os momentos de alegria e de

bonanccedila

Ao meu orientador Joseacute Ambroacutesio Ferreira Neto pela orientaccedilatildeo apoio

e confianccedila Por assumir minha orientaccedilatildeo em 2014 e me ajudar nesta travessia

Pela oacutetima orientaccedilatildeo pelas criacuteticas e elogios

A Rita de Caacutessia Pereira Farias pela coorientaccedilatildeo pelas importantes

contribuiccedilotildees ao trabalho pelo incentivo e as conversas que tivemos

Aos professores membros da banca examinadora Eliana Gomes de

Souza Douglas Mansur da Silva Ricardo Ferreira Ribeiro e ainda Joseacute

Ambroacutesio Ferreira Neto e Rita de Caacutessia Pereira Farias pela participaccedilatildeo pelas

criacuteticas e sugestotildees

Aos teacutecnicos da Emater dos municiacutepios pesquisados Rita Maria

Brumano Oliveira Geraldo Antocircnio da Silva Eduardo Muniz e ao assistente de

escritoacuterio Luiz Antocircnio Faria por todo apoio necessaacuterio agrave realizaccedilatildeo da pesquisa

de campo pela companhia em muitas das comunidades visitadas

Agraves famiacutelias que entrevistei e que me receberam tatildeo bem Agradeccedilo pela

compreensatildeo a respeito da pesquisa e pelas longas horas dedicadas ao diaacutelogo

pelas deliciosas refeiccedilotildees que fiz em companhia delas Meu aprendizado com

essa convivecircncia foi imenso

Agradeccedilo ao meu pai e minha matildee ndash ldquoouro de Minardquo E agradeccedilo pelo

carinho de sempre a toda minha famiacutelia que estaacute o tempo todo presente na

travessia que faccedilo pela vida ainda que muitas vezes agrave distacircncia Aos meus

irmatildeos Cristina e Joseacute Mauro sempre preocupados com a irmatilde mais nova Ao

meu irmatildeo Gumercindo pelo apoio nos momentos difiacuteceis e pelos conselhos

acadecircmicos durante o doutorado Agrave minha cunhada Luciana pelo socorro em

momentos de fragilidade com a sauacutede apoacutes noitadas sem dormir

Ao Felipe amor que chegou no meio da trajetoacuteria do doutorado

companheiro que soacute tem me trazido alegria amor e apoio incondicional e muita

muacutesica

iv

A Luana minha enteada querida pelas revisotildees dos abstracts para

artigos e por ter compreendido facilmente minha ausecircncia em seu casamento

no Rio de Janeiro em funccedilatildeo do trabalho

Agrave Universidade Federal de Viccedilosa pela oportunidade de realizar o

doutorado e aos professores do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Extensatildeo

Rural pelas trocas de experiecircncias e conhecimentos Aos funcionaacuterios do

Departamento de Economia Rural sobretudo Romildo e Carminha pela atenccedilatildeo

e simpatia

Agrave Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute instituiccedilatildeo onde atuo haacute

12 anos por ter permitido meu afastamento para fazer o doutorado

Agrave CAPES pelos dois anos de bolsa REUNI (2012 e 2013)

Agraves colegas de doutorado pelas conversas pelas alegrias e tristezas que

compartilhamos em alguns momentos e pelas boas energias que partilhaacutevamos

na conduccedilatildeo do trabalho Agradeccedilo tambeacutem os estudantes do mestrado com

quem fiz amizade ao longo de todo o periacuteodo A Fernanda Machado por me

socorrer elaborando os dois mapas que precisei

v

SUMAacuteRIO

LISTA DE TABELAS vii

LISTA DE QUADROS viii

LISTA DE FIGURAS ix

LISTA DE SIGLAS xi

RESUMO xii

ABSTRACT xiv

INTRODUCcedilAtildeO 1

1 A REGIAtildeO DE ESTUDO 5

11 Um breve histoacuterico de ocupaccedilatildeo da regiatildeo estudada 6

12 Informaccedilotildees atuais sobre a populaccedilatildeo rural e as principais atividades agriacutecolas dos municiacutepios pesquisados 10

13 Atividades produtivas 13

2 A COMIDA EM MINAS GERAIS DA ESCASSEZ Agrave FARTURA 18

21 Contextualizando o lugar da comida no Brasil Colonial nos primoacuterdios 18

22 Fase da mineraccedilatildeo em Minas Gerais escassez de alimentos 24

23 Fase da ruralizaccedilatildeo em Minas Gerais fartura de alimentos 29

3 ALIMENTACcedilAtildeO E CULTURA PERMANEcircNCIAS E TRANSFORMACcedilOtildeES 36

31 A alimentaccedilatildeo como categoria de estudo multidisciplinar contribui-ccedilotildees da antropologia da sociologia e da histoacuteria 36

32 Sistema alimentar 46

321 Alimentos aceitos e rejeitados 49

3211 Haacutebitos alimentares orientados por costumes e tradiccedilotildees 52

33 Alimento comida e cultura 55

331 A importacircncia social e cultural do uso do fogo e sua relaccedilatildeo com a comensalidade 59

3311 O local do fogo e da praacutetica da comensalidade na arquitetura domeacutestica 63

34 Praacuteticas alimentares na contemporaneidade entre o tradicional e o moderno 68

35 Modernidade e tradiccedilatildeo no contexto alimentar rural contemporacircneo 78

36 O papel feminino nas praacuteticas alimentares na famiacutelia 86

4 ASPECTOS METODOLOacuteGICOS DA PESQUISA E A CHEGADA AO CAMPO 94

41 Teacutecnica de pesquisa 95

vi

42 Os sujeitos da pesquisa 95

43 A conduccedilatildeo da pesquisa o caminho percorrido 96

44 A entrevista semiestruturada 98

45 A imersatildeo em campo a chegada e a travessia 98

46 Descobrindo a cultura local dos entrevistados 101

461 Perfil das famiacutelias 101

462 A produccedilatildeo agriacutecola local 107

463 Atividades cotidianas de trabalho nos siacutetios 108

5 CULTURA E PRAacuteTICAS ALIMENTARES NO SISTEMA FAMILIAR RURAL RELACcedilOtildeES COM A COMIDA PERMANEcircNCIAS E MUDANCcedilAS 114

51 Comida ldquoforterdquo e comida ldquofraca contradiccedilotildees mudanccedilas e permanecircn-cias 114

511 Outras comidas ldquofortesrdquo 125

52 Consideraccedilotildees sobre a importacircncia do milho e do fubaacute 129

53 Comida de todo dia comida de festa e as relaccedilotildees de comensalidade 137

531 Comida de todo dia o trivial 137

532 Comida de domingo de dias festivos e comensalidade 143

533 Os doces 151

54 A comensalidade para aleacutem das festas e datas especiais 154

55 Mescla cultural praacuteticas de consumo alimentar de ontem e de hoje 156

56 As quitandas para a merenda e para servir agraves visitas 160

57 Receitas oralidade e registros em cadernos 168

58 Os equipamentos da cozinha rural do fogatildeo a lenha agrave panela eleacutetrica de arroz 172

CONCLUSOtildeES 181

REFEREcircNCIAS 186

vii

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 ndash Aacuterea e populaccedilatildeo da microrregiatildeo de Viccedilosa (2015) 11

Tabela 2 ndash Percentual da populaccedilatildeo urbana e rural da microrregiatildeo de Viccedilosa nas deacutecadas de 1980 a 2010 (2015) 11

Tabela 3 ndash Populaccedilatildeo rural por diferentes faixas etaacuterias 12

Tabela 4 ndash Percentual da populaccedilatildeo rural por diferentes faixas etaacuterias () 13

Tabela 5 ndash Comparativo entre perfil etaacuterio do IBGE (2010) e da pesquisa de campo 2015 () 106

Tabela 6 ndash Comparativo da composiccedilatildeo de gecircnero do IBGE e da pesquisa de campo 2015 106

viii

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 ndash Municiacutepios comunidades e nuacutemero de famiacutelias 2015 96

Quadro 2 ndash Fonte de renda das famiacutelias pesquisadas 2015 108

ix

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 ndash Microrregiotildees da Zona da Mata de Minas Gerais 5

Figura 2 ndash Microrregiatildeo de Viccedilosa Minas Gerais 6

Figura 3 ndash Santuaacuterio de Bom Jesus de Matozinhos em Bom Jesus do Bacalhau 9

Figura 4 ndash Milho colhido no siacutetio de Anita e Gilberto na comunidade de Manja em Piranga 15

Figura 5 ndash Carro de boi transportando espigas de milho da roccedila para o paiol na estrada da comunidade de Manja em Piranga 16

Figura 6 ndash Engenho de produccedilatildeo de rapadura no siacutetio de Lola e Marcos na comunidade Xopotoacute Presidente Bernardes 16

Figura 7 ndash Moinho drsquoaacutegua no siacutetio de Manoel e Donana na Comunidade Limeira Porto Firme 130

Figura 8 ndash Moinho eleacutetrico no siacutetio de Nanaacute e Custoacutedio na Comunidade Xopotoacute em Piranga 131

Figura 9 ndash Cebolas e alhos armazenados no paiol do siacutetio de Maria e Laeacutercio na comunidade Itapeva em Presidente Bernardes 139

Figura 10 ndash Horta no siacutetio de Eliana e Saturnino em Itapeva Presidente Bernardes MG 140

Figura 11 ndash Fogatildeo de cupim no quintal do siacutetio de Eliana e Saturnino em Itapeva Presidente Bernardes 146

Figura 12 ndash Processo de fritura do ldquomilhopatilderdquo 149

Figura 13 ndash Doce de ameixa feito por Marieta na comunidade Boa Vista em Piranga MG 154

Figura 14 ndash Broa do tipo Cobu ou ldquopau a piquerdquo 161

Figura 15 ndash Broa de fubaacute feita por Eliana em Itapeva Presidente Bernardes 162

Figura 16 ndash Caderno de receitas que pertenceu agrave matildee de Anita moradora da Comunidade Manja em Piranga 169

Figura 17 ndash Caderno de receitas de Lucia da Comunidade Manja em Piranga 170

Figura 18 ndash Mariacutelia da Comunidade de Mestre Campos em Piranga mostrando seus livros e cadernos de receitas 171

x

Figura 19 ndash Fogatildeo a lenha no siacutetio de Mariacutelia 174

Figura 20 - Fogatildeo a lenha no siacutetio de Nanaacute e Custoacutedio 175

Figura 21 ndash Cozinha com fogatildeo a lenha (azulejado) em siacutetio de Eliana e Saturnino 176

Figura 22 ndash Forno de barro e churrasqueira no siacutetio de Selma e Lourival 178

xi

LISTA DE SIGLAS

CAPES ndash Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior

CEP ndash Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa com Seres Humanos

ECA ndash Estatuto da Crianccedila e do Adolescente

EMATER-MG ndash Empresa de Assistecircncia Teacutecnica e Extensatildeo Rural do Estado de

Minas Gerais

FAOONU ndash Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas para Agricultura e Alimentaccedilatildeo

FBSSAN ndash Foacuterum Brasileiro de Soberania e Seguranccedila Alimentar e Tradicional

IARC ndash International Agency for Research on Cancer

IBGE ndash Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica

IPHAN ndash Instituto do Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional

ODELA ndash Observatorio de la Alimentacioacuten

OMS ndash Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede

PAA ndash Programa de Aquisiccedilatildeo de Alimentos

UFV ndash Universidade Federal de Viccedilosa

USP ndash Universidade de Satildeo Paulo

xii

RESUMO

LIMA Romilda de Souza DSc Universidade Federal de Viccedilosa novembro de 2015 Praacuteticas alimentares e sociabilidades em famiacutelias rurais da Zona da Mata mineira mudanccedilas e permanecircncias Orientador Joseacute Ambroacutesio Ferreira Neto Coorientadora Rita de Caacutessia Pereira Farias

Este trabalho tem como objetivo analisar e compreender os significados da

comida e as relaccedilotildees de comensalidade atendo-se agraves mudanccedilas e

permanecircncias referentes agraves praacuteticas alimentares de famiacutelias rurais dos

municiacutepios mineiros de Piranga Porto Firme e Presidente Bernardes A

metodologia escolhida foi qualitativa utilizando-se da entrevista

semiestruturada observaccedilatildeo registros fotograacuteficos e o caderno de campo As

anaacutelises da pesquisa empiacuterica foram construiacutedas agrave luz das abordagens teoacutericas

da antropologia e sociologia da alimentaccedilatildeo e da histoacuteria da alimentaccedilatildeo Apesar

da tendecircncia apontada por alguns autores contemporacircneos de uma

homogeneizaccedilatildeo alimentar na sociedade ocidental fruto do processo de

modernizaccedilatildeo e globalizaccedilatildeo que teria o poder de influenciar e transformar as

praacuteticas alimentares esta natildeo foi a realidade observada nas famiacutelias rurais

pesquisadas A pesquisa apontou para a necessidade de considerar a

diversidade cultural e o contexto sociohistoacuterico ao estudar as questotildees relativas

a alimentaccedilatildeo dos grupos Nas famiacutelias estudadas as praacuteticas alimentares

possuem forte viacutenculo com a tradiccedilatildeo e agrave produccedilatildeo local de alimentos Isso natildeo

significa que elas estatildeo imunes agraves interferecircncias e agraves mudanccedilas

contemporacircneas Neste sentido as mudanccedilas observadas nas praacuteticas

alimentares tais como a adoccedilatildeo de novas tecnologias tecircm ocorrido de forma

ainda tiacutemida e natildeo implica um abandono da tradiccedilatildeo As famiacutelias estatildeo

convivendo ou se adaptando aos processos de mudanccedilas no mundo

contemporacircneo sem negar suas raiacutezes histoacutericas A incorporaccedilatildeo das praacuteticas

alimentares modernas tambeacutem natildeo eacute acriacutetica As famiacutelias sabem que a

substituiccedilatildeo implica em riscos perdas e ganhos No caso da gordura de porco

por exemplo mostraram-se conscientes quanto agrave questatildeo relativa agrave sauacutede no

consumo desse alimento que continua sendo prioritariamente utilizado na

preparaccedilatildeo de comidas tradicionais O que prevalece neste caso eacute a escolha

xiii

pelo sabor do alimento e pelo significado simboacutelico e tradicional atrelado a ele

Inseridas no processo que envolve tanto o desejo de manter sua autonomia

produtiva e cultura alimentar quanto agrave necessidade de ceder a algumas

mudanccedilas essas famiacutelias estatildeo aprendendo a se adaptar agraves dinacircmicas da

modernidade aderindo agraves novidades alimentares que lhes agradam e lhes satildeo

importantes e rejeitando o que natildeo lhes eacute interessante

xiv

ABSTRACT

LIMA Romilda de Souza DSc Universidade Federal de Viccedilosa November 2015 Eating habits and sociabilities in rural families of Minas Geraisrsquo Zona da Mata changings and remainings Adviser Joseacute Ambroacutesio Ferreira Neto Co-adviser Rita de Caacutessia Pereira Farias

This work aims to analyze and understand the meaning of food and commensality

relations limited to the changes and remains related to the eating habits of rural

families in the municipalities of Piranga Porto Firme and Presidente Bernardes

The chosen methodology was qualitative using semi-structured interviews and

observation The instruments used were the recorded interviews photographic

register and field notebook The empirical research analysis was built under the

light of theoretical approaches of anthropology and sociology of the alimentation

and history of the alimentation Despite the tendency pointed out by some

contemporary authors of a food homogenization in Western society as a result

of the modernization and globalization process that would have the power to

influence and transform the eating habits this was not the reality observed in the

surveyed rural families The research indicated the need to consider the cultural

diversity and the socio-historical context in order to study issues related to eating

habits of the groups In the studied families the issues related to eating habits

have a strong bond with the tradition and local food production That doesnrsquot

mean they are immune to interference and to contemporary changes In this

sense the observed changes in dietary practices such as the adoption of new

technologies have occurred still timidly and donrsquot imply a total abandonment of

tradition Families are living or adapting themselves to the changing processes in

the contemporary world without however transforming significantly their own

culture Itrsquos important to highlight that the incorporation of modern eating habits

options is not uncritical too The families know that the replacement of a habit by

another entails risks losses and gains as in the case of pork fat They proved to

be conscious about the matter on health in consumption of that food but it

remains primarily used in the preparation of traditional foods What prevails in this

case it is the choice by the flavor of the food and by the symbolic and traditional

meaning attached to it Inserted in the process involving both the desire to

xv

maintain its productive autonomy and eating culture and the need to give in to

some changes these families are learning to adapt to the everyday experiences

they arenrsquot closed in their cultural cores and even take posiacutetion averse to change

they demonstrate a resigned but critical attitude by submitting to the items of food

modernity they please and consider important as well as rejecting what is not

interesting to them

1

INTRODUCcedilAtildeO

ldquoDepois do idioma a comida eacute o mais importante elo entre o homem e a culturardquo

(Raul Lody 1997)

A alimentaccedilatildeo elemento baacutesico de sobrevivecircncia humana eacute tema

carregado de complexidade Se a razatildeo primeira do ato alimentar eacute a

necessidade fisioloacutegica de nutrir-se as demais satildeo carregadas de justificativas

culturais sociais e econocircmicas que por sua vez determinam as escolhas

alimentares

Aleacutem de ser um comportamento automaacutetico a sociologia a antropologia

e a histoacuteria da alimentaccedilatildeo tecircm mostrado que comer eacute um comportamento que

se liga de forma iacutentima com o comedor1 Em sentido semelhante o entendimento

da comida como categoria analiacutetica nessas trecircs aacutereas de estudo mostra que

pela comida eacute possiacutevel perceber as transformaccedilotildees do mundo social no decorrer

dos tempos Essa relaccedilatildeo se estabelece na escolha e ingestatildeo do alimento pois

conforme pondera Lody (2008 p 12) ldquonenhum alimento que entra em nossas

bocas eacute neutrordquo

Dessa forma este trabalho se fundamenta na compreensatildeo cultural e

social da comida vista como categoria de pensamento simboacutelico Trata-se

daquele sentido em que por meio das regras socialmente estabelecidas no ato

de comer criam-se viacutenculos com quem se come com o que se produz e com as

demais dinacircmicas que envolvem as praacuteticas alimentares O sentido dado por

Cacircndido (1982 p 30) elucida esse intuito

Qualquer que seja a posiccedilatildeo do alimento eacute sempre acentuada a sua importacircncia como fulcro de sociabilidade ndash natildeo apenas do que se organiza em torno dele mas daquelas em que ele aparece como expressatildeo tangiacutevel dos atos e das intenccedilotildees (CAcircNDIDO1982 p 30)

A escolha do tema da pesquisa se deu a partir de um processo que foi

sendo delineado e construiacutedo aos poucos considerando inicialmente o interesse

1 Expressatildeo francesa que na traduccedilatildeo das obras de Poulain (2013) e Poulain e Proenccedila (2003) para o

portuguecircs significa ldquocomedorescomedorrdquo Esta expressatildeo apareceraacute em citaccedilotildees do autor ao longo deste trabalho Representa para a Sociologia da Alimentaccedilatildeo atual o homem que come razatildeo da utilizaccedilatildeo da palavra ldquocomedorrdquo em portuguecircs A utilizaccedilatildeo desse termo segundo os autores surgiu a partir da publicaccedilatildeo de autoria de Aron (1976) ldquoLe mangeur du 19eacutemerdquo (POULAIN PROENCcedilA 2003 p 367)

2

pessoal e profissional pelo assunto2 mas tambeacutem estimulado por questotildees

instigantes proporcionadas por algumas disciplinas cursadas durante o

programa de doutorado Assim para se pensar o problema foram realizadas

leituras de pesquisas e de conteuacutedo teoacuterico das trecircs disciplinas apontadas acima

no que se refere agrave alimentaccedilatildeo O investimento teoacuterico realizado para conduzir

a pesquisa partiu da compreensatildeo de que a reflexatildeo teoacuterica e a pesquisa

empiacuterica se complementam em um percurso de matildeo dupla naquele sentido

apontado por Trajano (1990) Para este autor a priorizaccedilatildeo da teoria em

detrimento da pesquisa de campo ou vice-versa compromete o trabalho em sua

riqueza e profundidade

Atraveacutes da relaccedilatildeo entre pesquisa de campo e anaacutelise teoacuterica o conhecimento antropoloacutegico ganha impulso e avanccedila pois a pesquisa fornece o combustiacutevel que a teoria necessita para adentrar por novos campos e caminhos Por sua vez a teorizaccedilatildeo abre trilhas frescas e inexploradas para o trabalho de pesquisardquo (TRAJANO 1990 p 2)

A pesquisa de campo envolveu famiacutelias rurais de trecircs municiacutepios da

microrregiatildeo de Viccedilosa Piranga Presidente Bernardes e Porto Firme A escolha

desses municiacutepios se deu por eles formarem uma regiatildeo com maior populaccedilatildeo

rural da microrregiatildeo de Viccedilosa e pela sua interessante histoacuteria de ocupaccedilatildeo jaacute

que se trata de uma regiatildeo importante na busca do ouro pelos bandeirantes que

passaram pela zona da Mata questatildeo que seraacute detalhada em um dos capiacutetulos

deste trabalho

Analisar e buscar compreender como as famiacutelias estatildeo lidando com as

transformaccedilotildees alimentares que ocorrem na contemporaneidade foi o eixo

norteador da pesquisa A experiecircncia dessas famiacutelias neste contexto ldquofalardquo de

um grupo que busca responder e se adaptar agraves mudanccedilas sinalizando que o

rural contemporacircneo natildeo estaacute alheio e distante do que ocorre na sociedade mais

ampla questatildeo muito bem sinalizada nos estudos de Maria de Nazareth

Wanderley (2000 e 2009) Maria Joseacute Carneiro (1998) e Joseacute Graziano da Silva

(1997) Mas tambeacutem ldquofalardquo de um grupo que respeita sua tradiccedilatildeo e seus haacutebitos

alimentares suas necessidades de natildeo ceder a todas as mudanccedilas decorrentes

da contemporaneidade

2 Discussotildees de interesse dos grupos de pesquisa em que participo na Universidade Estadual do Oeste do

Paranaacute instituiccedilatildeo onde atuo haacute 12 anos

3

Segundo Wanderley (2009) um dos desafios enfrentados pelos

pesquisadores na contemporaneidade consiste em desvendar os processos

pelos quais se articulam as dinacircmicas internas e externas do mundo rural em

sua diversidade

Neste sentido esta pesquisa tem como objetivo analisar e compreender

o significado da comida e as relaccedilotildees de comensalidade atendo-se agraves

mudanccedilas e permanecircncias referentes agraves praacuteticas alimentares das famiacutelias Mais

especificamente analisar a articulaccedilatildeo entre o tradicional e o moderno o

processo de escolha alimentar e os princiacutepios que a determinam tais como

haacutebitos tradiccedilatildeo praticidade custo a influecircncia dos guardiatildees da tradiccedilatildeo na

reproduccedilatildeo do gosto no processo de significaccedilatildeo e ressignificaccedilatildeo da comida

atrelada agraves praacuteticas aos saberes e aos haacutebitos tanto no cotidiano quanto nos

rituais

Com esta pesquisa pretendo contribuir com as discussotildees sobre o

sistema alimentar contemporacircneo e a necessidade de nessa discussatildeo

relativizar os argumentos levando-se em consideraccedilatildeo a diversidade cultural

especialmente a rural

Esta tese estaacute organizada em cinco capiacutetulos aleacutem da introduccedilatildeo e

conclusatildeo O capiacutetulo 1 apresenta um breve histoacuterico de ocupaccedilatildeo da regiatildeo

estudada e as principais atividades rurais a partir de dados do IBGE (2010) O

capiacutetulo 2 trata de duas fases histoacutericas importantes de Minas Gerais e que

determinaram o sistema alimentar na regiatildeo de exploraccedilatildeo de ouro ateacute meados

do seacuteculo XX as fases da mineraccedilatildeo e a fase da ruralizaccedilatildeo As situaccedilotildees

alimentares ocorridas nesses periacuteodos foram marcantes na formaccedilatildeo cultural

alimentar da regiatildeo que pesquisei O capiacutetulo 3 apresenta a discussatildeo teoacuterica

das aacutereas da antropologia da sociologia e da histoacuteria da alimentaccedilatildeo apontando

o lugar da alimentaccedilatildeo nas principais anaacutelises dessas disciplinas a discussatildeo

existente em torno do sistema alimentar a anaacutelise das diferenccedilas atribuiacutedas

entre alimento e comida em uma abordagem cultural e simboacutelica as

possibilidades de permanecircncia ou extinccedilatildeo dos sistemas tradicionais no contexto

alimentar contemporacircneo a discussatildeo sobre o tradicional e o moderno no

contexto das dinacircmicas alimentares no meio rural e por fim uma breve

discussatildeo sobre o papel feminino nas praacuteticas alimentares na famiacutelia O capiacutetulo

4 apresenta as opccedilotildees e o direcionamento metodoloacutegicos da pesquisa de

4

empiacuterica a imersatildeo em campo e os resultados e algumas das caracteriacutesticas

relativas ao perfil das famiacutelias entrevistadas O capiacutetulo 5 trata da pesquisa

empiacuterica ou seja sobre as praacuteticas alimentares das famiacutelias rurais objeto de

interesse principal desta pesquisa Atraveacutes das entrevistas semiestruturadas o

cotidiano das famiacutelias no que diz respeito a sua cultura alimentar foi relatado e

discutido agrave luz dos objetivos propostos para a pesquisa e das abordagens

teoacutericas utilizadas Concluindo teccedilo outras discussotildees nas conclusotildees sobre a

pesquisa

5

1 A REGIAtildeO DE ESTUDO

As aacutereas rurais pesquisadas estatildeo situadas nos municiacutepios de Piranga

Porto Firme e Presidente Bernardes que pertencem agrave microrregiatildeo de Viccedilosa

localizados na Zona da Mata de Minas Gerais

A Figura 1 apresenta as microrregiotildees que compotildeem a Zona da Mata e

a Figura 2 os municiacutepios que fazem parte da microrregiatildeo de Viccedilosa

Fonte IBGE (2013)

Figura 1 ndash Microrregiotildees da Zona da Mata de Minas Gerais

6

Fonte IBGE (2013)

Figura 2 ndash Microrregiatildeo de Viccedilosa Minas Gerais

11 Um breve histoacuterico de ocupaccedilatildeo da regiatildeo estudada

Segundo Venacircncio (2007) descobertas arqueoloacutegicas recentes

apontam que na ocasiatildeo do descobrimento do Brasil pelos portugueses a regiatildeo

de Minas Gerais era habitada por diferentes grupos eacutetnicos Essas pesquisas

conseguiram estabelecer uma data de povoamento com registros entre 11 mil e

12 mil anos atraacutes O autor destaca que natildeo se pode esclarecer totalmente quais

eram todos esses grupos eacutetnicos mas no que se refere aos seacuteculos XVI e XVII

pelo material arqueoloacutegico encontrado acredita-se que muitos grupos indiacutegenas

entraram em Minas Gerais vindos de aacutereas litoracircneas provavelmente fugindo

da escravidatildeo e da dominaccedilatildeo dos portugueses Ainda segundo o autor na

regiatildeo de estudo que compreende a bacia do Rio Doce e a Zona da Mata mineira

os registros apontam que aqui habitavam primeiramente os botocudos e os

puri-coroados e que mais tarde chegaram os iacutendios goitacaacute fugidos do avanccedilo

7

da colonizaccedilatildeo portuguesa no norte da capitania fluminense hoje conhecida

como Campos dos Goitacazes

Registros feitos por Joatildeo Mawe3 viajante inglecircs que esteve em Minas

Gerais entre 1809 e 1810 detalham o conflito existente tambeacutem entre os

portugueses e os botocudos que rejeitavam ceder aos objetivos de

ldquodomesticaccedilatildeordquo dos colonizadores interessados na aacuterea que jaacute havia sido

identificada como muito rica em ouro Na regiatildeo de Piranga visando garantir a

exploraccedilatildeo do ouro informa Mawe (1922) ldquoexiste uma tropa pouco numerosa

de soldados para fazer patrulhas ao longo das fronteiras reconhecimentos nos

bosques ir procurar os selvagens por toda a parte onde lhes informam que

podem encontra-losrdquo (MAWE 1922 p 60)

A ocupaccedilatildeo da regiatildeo pelos portugueses se deu a partir dos caminhos

que se abriram para a exploraccedilatildeo de ouro no local que teve iniacutecio com os

bandeirantes paulistas Resende (2007) Zemella (1951) e Teixeira (2002)

apontam que esta regiatildeo comeccedilou a ser desbravada a partir de 1693 por uma

expediccedilatildeo bandeirante que saiu de Garganta do Embauacute (regiatildeo da Serra da

Mantiqueira e divisa entre Minas Gerais e Satildeo Paulo) conduzida por Antocircnio

Rodrigues Arzatildeo Essa bandeira pretendia chegar ateacute a regiatildeo denominada

Casa da Casca que se localizava entre Viccedilosa e Abre Campo em busca de

ouro O percurso incluiu o entatildeo arraial de Guarapiranga (atual Piranga) e foi no

rio Piranga na localidade onde hoje eacute a cidade de Itaverava o primeiro lugar

onde se encontrou ouro desde o iniacutecio do referido trajeto

Os nuacutecleos urbanos primeiramente como arraiais ou vilas iam se

formando em torno das Minas e locais dos rios que pareciam mais propiacutecios a

obtenccedilatildeo de grandes quantidades de ouro conforme aponta Torres (2011 p

69)

Os bandeirantes subindo o rio instalaram-se nos vales () Sempre usaram de dois tipos de pontos de referecircncia naturais durante suas interminaacuteveis excursotildees pelas florestas Primeiro os rios cujos cursos subiam ou desciam conforme era o caso ou entatildeo os grandes picos azuis marcos lanccedilados pela natureza para indicar onde estava o ouro

Naquela eacutepoca os atuais municiacutepios de Presidente Bernardes e Porto

Firme natildeo existiam como tal e faziam parte de Guarapiranga (atual Piranga)

3 Ver Mawe (1922)

8

Com a descoberta de ouro no rio Piranga a regiatildeo passou a ser de interesse

para a mineraccedilatildeo e iniciou por consequecircncia a chegada de muitos adventiacutecios

Segundo Resende (2007) e Furtado (2000) a exploraccedilatildeo de ouro em Minas

Gerais historicamente serviu de movimentaccedilatildeo geograacutefica de grande nuacutemero

de pessoas interessadas em enriquecer em Minas Gerais

() Nesse contexto marcado por um tracircnsito volumoso e desordenado de pessoas e de mercadorias tem iniacutecio de forma precoce e espetacular a ocupaccedilatildeo das terras de mineraccedilatildeo em que a uma ldquosede insaciaacutevel do ourordquo corresponde com enorme rapidez a formaccedilatildeo de grandes fortunas e uma desordem perigosa regulada a balas de chumbo (RESENDE 2007 p 29)

Assim a regiatildeo que abrange os municiacutepios da pesquisa passou a se

inserir na dinacircmica econocircmica e social da mineraccedilatildeo Ainda segundo Resende

(2007) os territoacuterios mineiros comeccedilaram a ser ocupados primeiramente onde

havia sido encontrado ouro aos quais eram denominados como o ldquocaminho do

ourordquo Nesse trajeto era possiacutevel encontrar alguma infraestrutura de apoio como

por exemplo vendas estalagens e capelas Eacute no entorno dessas localizaccedilotildees

fiacutesicas estruturais que surgem mais tarde as pequenas vilas os arraiais e ateacute

nuacutecleos urbanos mais importantes no estado de Minas Gerais

Segundo Barbosa (1995) em 1708 o arraial de Guarapiranga sofreu as

consequecircncias da Guerra dos Emboabas conflito entre bandeirantes paulistas

e portugueses em disputa pelo controle das minas e por pouco natildeo foi destruiacutedo

durante os embates

As batalhas foram mais concentradas no lugar onde estaacute o Santuaacuterio do

Senhor Bom Jesus do Matozinhos na comunidade do ldquoBacalhaurdquo em Piranga

Neste local possui uma placa e uma escultura simboacutelica lembrando o ocorrido

Neste santuaacuterio ocorre anualmente a festa religiosa do Jubileu do Bom Jesus e

os fieacuteis (romeiros) permanecem no local por dois a trecircs dias de festejos

9

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 3 ndash Santuaacuterio de Bom Jesus de Matozinhos em Bom Jesus do Bacalhau

Com o decliacutenio da mineraccedilatildeo entre os anos de 1753 a 1756 a regiatildeo

de Guarapiranga foi intensamente povoada quando ldquoinuacutemeras sesmarias foram

concedidas nas quais se mencionavam grandes roccedilas de milho casas de

vivenda paiol senzala engenhos bananais e outras aacutervoresrdquo (BARBOSA 1995

p 254) Ocorria nesse periacuteodo o processo de fortalecimento da agricultura

seguindo um percurso que se deu em toda a regiatildeo de mineraccedilatildeo de Minas

Gerais como seraacute visto no capiacutetulo 2 sobre a fase da ruralizaccedilatildeo em Minas

Em final do seacuteculo XVIII e iniacutecio do seacuteculo XIX a regiatildeo de Guarapiranga

possuiacutea a maior populaccedilatildeo de toda a Zona da Mata mineira com forte dinamismo

econocircmico Segundo Carrara (2007) Guarapiranga abastecia a entatildeo Vila Rica

e regiatildeo com aguardente e alguns produtos agriacutecolas baacutesicos os quais o autor

natildeo detalha quais eram Mas segundo o autor natildeo houve um corte que marcou

o fim da mineraccedilatildeo e iniacutecio da fase agriacutecola na regiatildeo pois durante muitos anos

foi marcante a presenccedila concomitante das minas dos currais e das lavouras

Enquanto a agricultura se fortalecia alguns poucos aventureiros insistiam na

busca de algum sinal de ouro restante nos rios

Segundo Lemos (2012) na fase de fortalecimento da agricultura

sobretudo na primeira metade do seacuteculo XIX houve intenso fluxo migratoacuterio que

fomentou a economia agriacutecola na regiatildeo principalmente voltada para a produccedilatildeo

de aguardente rapadura e melado Segundo Godoy (2012) os engenhos se

10

concentravam sobretudo na regiatildeo do distrito de Santo Antocircnio do Calambau

hoje Presidente Bernardes que na eacutepoca era distrito de Guarapiranga (Piranga)

A prodccedilatildeo da cana de accediluacutecar perdeu forccedila ao longo do tempo e na

ocasiatildeo da pesquisa natildeo era mais atividade central na regiatildeo embora existam

alambiques e algumas marcas de aguardente conhecidas no cenaacuterio nacional

como a ldquoVelha Aroreirardquo produzida em Porto Firme e a ldquoVale do Pirangardquo

produzida em Piranga Mas o que se produz ainda de aguardente eacute de caraacuteter

quase que apenas artesanal e pequena produccedilatildeo Em presidente Bernardes

todos os anos acontece o ldquoFestival da Cachaccedilardquo guardando ainda relaccedilotildees com

a tradiccedilatildeo deste produto

Os dados do IBGE de 1980 a 2010 apontam que os municiacutepios que

compunham como distritos a antiga Guarapiranga (Piranga Presidente

Bernardes e Porto Firme) apresentam queda em sua populaccedilatildeo rural como seraacute

visto a seguir

Tambeacutem segundo informaccedilotildees do IBGE (2010) Presidente Bernardes

e Porto Firme foram emancipados de Piranga em 1953 quando Calambau

passou a se chamar Presidente Bernardes e Porto Seguro passou a se chamar

Porto Firme Ambos os municiacutepios continuam pertencendo juridicamente agrave

Comarca de Piranga

12 Informaccedilotildees atuais sobre a populaccedilatildeo rural e as principais atividades agriacutecolas dos municiacutepios pesquisados

Segundo o IBGE (2010) a microrregiatildeo de Viccedilosa possui aacuterea total de

4826137 kmsup2 Eacute composta por vinte municiacutepios com aacutereas que variam entre

65881 kmsup2 (Piranga) e 8304 kmsup2 (Cajuri) Porto Firme e Presidente Bernardes

possuem aacutereas de 28478 kmsup2 e 2368 kmsup2 respectivamente conforme

apresentado na Tabela 1

Em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo observa-se que em 50 dos municiacutepios da

microrregiatildeo a populaccedilatildeo rural ultrapassa a urbana conforme a Tabela 1 Os

trecircs municiacutepios desta pesquisa encontram-se entre aqueles que possuem

populaccedilatildeo rural maior que a urbana sendo que entre todos os municiacutepios

Presidente Bernardes e Piranga satildeo os que possuem o maior percentual de

populaccedilatildeo rural em relaccedilatildeo a urbana conforme apontado na Tabela 2

11

Tabela 1 ndash Aacuterea e populaccedilatildeo da microrregiatildeo de Viccedilosa (2015)

Municiacutepio Aacuterea (kmsup2) Densidade

demograacutefica Populaccedilatildeo

total Populaccedilatildeo

rural Populaccedilatildeo

urbana

Piranga 65881 2616 17232 11274 5958 Pres Bernardes 2368 2338 5537 3895 1642 Porto Firme 28478 3658 10417 5586 4831 Araponga 30379 2683 8152 5111 3041 Rio Espera 2386 2544 6070 3667 2403 Canaatilde 1749 2646 4628 2769 1859 Alto Rio Doce 51805 2347 12159 7089 5070 Lamim 1186 2911 3452 1941 1511 Cipotacircnea 15348 4266 6547 3533 3014 Braacutes Pires 22335 2076 4637 2414 2223 Cajuri 8304 4874 4047 1951 2096 Amparo do Serra 14591 3463 5053 2411 2642 Ervaacutelia 35749 5020 17946 8476 9470 Paula Cacircndido 26832 3455 9271 4335 4936 Satildeo Miguel do Anta 15211 4444 6790 3014 3746 Senhora de Oliveira 17075 3328 5683 2427 3256 Pedra do Anta 16345 2059 3365 1173 2192 Teixeiras 16674 6871 11355 3732 7623 Coimbra 10688 6600 7054 1898 5156 Viccedilosa 29942 2412 72220 4915 67305

Fonte IBGE - Censo Demograacutefico de 2010

Tabela 2 ndash Percentual da populaccedilatildeo urbana e rural da microrregiatildeo de Viccedilosa nas deacutecadas de 1980 a 2010 (2015)

Populaccedilatildeo ()

Municiacutepio 1980 1991 2000 2010

Urbana Rural Urbana Rural Urbana Rural Urbana Rural

Piranga 197 803 237 763 299 701 346 654 Pres Bernardes 121 879 154 846 233 767 297 703 Porto Firme 23 77 293 707 411 589 463 537 Araponga 166 834 208 792 32 68 373 627 Rio Espera 264 736 268 732 322 678 396 604 Canaatilde 174 826 207 793 297 703 401 599 Alto Rio Doce 222 778 28 72 354 646 417 583 Lamim 226 774 287 713 38 62 438 562 Cipotacircnea 197 803 26 74 381 619 46 54 Braacutes Pires 153 847 24 76 353 647 48 52 Cajuri 387 613 46 54 546 454 518 482 Amparo Serra 246 754 35 65 458 542 522 478 Ervaacutelia 263 737 323 673 444 556 528 472 Paula Cacircndido 286 714 362 638 43 57 532 468 Satildeo Miguel Anta 389 611 44 56 501 499 554 446 Senhora Oliveira 363 637 451 549 482 518 572 428 Pedra do Anta 232 768 373 627 53 47 651 349 Teixeiras 445 555 533 467 623 377 671 329 Coimbra 456 544 54 46 539 466 73 30 Viccedilosa 806 194 90 10 921 79 931 69

Fonte IBGE - Censos Demograacuteficos de 1980 1991 2000 e 2010

12

A reduccedilatildeo da populaccedilatildeo rural eacute observada em todos os 20 municiacutepios

conforme mostra a Tabela 2 que apresenta informaccedilatildeo demograacutefica da

microrregiatildeo de Viccedilosa nas uacuteltimas trecircs deacutecadas segundo IBGE (2010) Esta

microrregiatildeo encontra-se proporcionalmente dividida em 50 de municiacutepios com

populaccedilatildeo urbana maior do que a rural e 50 em situaccedilatildeo inversa

Nos trecircs municiacutepios desta pesquisa a populaccedilatildeo rural vem diminuindo

ao longo das uacuteltimas deacutecadas Em Piranga Presidente Bernardes e Porto Firme

a populaccedilatildeo rural correspondia a 803 879 e 77 em 1980

respectivamente caindo para 655 703 e 537 respectivamente em 2010

Apesar disso Presidente Bernardes permanece sendo o municiacutepio com maior

populaccedilatildeo residente no campo na microrregiatildeo de Viccedilosa ao longo desse

periacuteodo seguido por Piranga que aparece como o segundo maior municiacutepio com

populaccedilatildeo rural no Censo de 2010 Alguns estudos apontam para a reduccedilatildeo da

populaccedilatildeo rural em outras partes do paiacutes e do mundo como Alves e Marra

(2009) Nunes (2007) ONU (2014) Camarano e Beltratildeo (2000) e Camarano e

Abramovay (1998)

As Tabelas 3 e 4 apontam que a populaccedilatildeo que compreende a faixa

etaacuteria de 30 a 50 anos eacute a maior na aacuterea rural nos trecircs municiacutepios e a populaccedilatildeo

idosa4 apresenta o menor nuacutemero de pessoas residentes no campo

Tabela 3 ndash Populaccedilatildeo rural por diferentes faixas etaacuterias

Municiacutepio Populaccedilatildeo

rural 1 - 14 anos 15 - 29 anos 30 - 59 anos

Acima de 60 anos

Piranga 11274 2748 3203 3751 1308 Pres Bernardes 3895 845 856 1421 610 Porto Firme 5586 1338 1378 2322 780 Total 20755 4931 5437 7494 2698

Fonte IBGE ndash Censo Demograacutefico 2010

Os dados da Tabela 4 mostram que o maior percentual de populaccedilatildeo

idosa se encontra em Presidente Bernardes mas natildeo se destaca em relaccedilatildeo

aos demais municiacutepios Neste municiacutepio tambeacutem estaacute o menor percentual da

4 Puacuteblico considerado acima de 60 anos de idade de acordo com Organizaccedilatildeo Mundial de Sauacutede

13

populaccedilatildeo jovem5 O maior percentual de populaccedilatildeo adulta (30-59 anos)

encontra-se em Porto Firme A maior diferenccedila entre o percentual de populaccedilatildeo

jovem e adulta encontra-se em Porto Firme e a menor em Piranga O percentual

da populaccedilatildeo adulta eacute superior agrave populaccedilatildeo idosa nos trecircs municiacutepios mas se

destaca em Porto Firme As informaccedilotildees das tabelas seratildeo retomadas no item

46 deste trabalho

Tabela 4 ndash Percentual da populaccedilatildeo rural por diferentes faixas etaacuterias ()

Municiacutepio Populaccedilatildeo

rural 1 - 14 anos 15 - 29 anos 30 - 59 anos

Acima de 60 anos

Piranga 11274 243 284 333 116

Pres Bernardes 3895 217 220 364 155

Porto Firme 5586 239 246 415 140

Fonte IBGE ndash Censo Demograacutefico 2010

13 Atividades produtivas

Nos municiacutepios onde foi realizado o trabalho de campo predominam

pequenas e meacutedias propriedades e produccedilatildeo em pequena escala basicamente

para consumo com venda do excedente Os tipos de produccedilatildeo natildeo sofrem

variaccedilotildees importantes entre os trecircs municiacutepios seja em tipo de produccedilatildeo seja

em quantidade produzida

Presidente Bernardes Dados do Relatoacuterio final do Plano Municipal de

Saneamento Baacutesico de Presidente Bernardes (2015) e da Emater local apontam

como principais atividades agropecuaacuterias do municiacutepio a cafeicultura a extraccedilatildeo

de carvatildeo vegetal em pequena escala e a pecuaacuteria leiteira de pequeno porte

Haacute ainda a fabricaccedilatildeo agroindustrial em pequenos alambiques de aguardente e

uma empresa de fabricaccedilatildeo de queijo Aleacutem desses os dados do IBGE (2006)

apontam tambeacutem a produccedilatildeo de milho feijatildeo cana de accediluacutecar suinocultura e

avicultura

5 Faixa etaacuteria entre 15 a 29 anos de idade definida no Estatuto da Crianccedila e do Adolescente (ECA) e

Estatuto da Juventude no Brasil como a que corresponde agrave categoria de juventude

14

Porto Firme Dados do Relatoacuterio final do Plano Municipal de

Saneamento Baacutesico de Porto Firme (2015) e da Emater local apontam como

principais atividades agropecuaacuterias do municiacutepio Pecuaacuteria leiteira cafeicultura

extraccedilatildeo de carvatildeo vegetal e lavoura de feijatildeo No municiacutepio tambeacutem haacute

produccedilatildeo de aguardente artesanal por pequenos alambiques Aleacutem desses os

dados do IBGE (2006) apontam a produccedilatildeo de milho feijatildeo cana de accediluacutecar

suinocultura e avicultura

Piranga Dados do Relatoacuterio Anual da Emater Local (2014) e do IBGE

(2006) apontam como principais atividades agropecuaacuterias do municiacutepio

extraccedilatildeo de carvatildeo vegetal cafeicultura pecuaacuteria leiteira milho e feijatildeo cana de

accediluacutecar suinocultura e avicultura

Segundo as famiacutelias entrevistadas envolvidas na atividade de extraccedilatildeo

de carvatildeo vegetal esta atividade vem substituindo aos poucos a cafeicultura

nos uacuteltimos anos em funccedilatildeo do seu retorno financeiro mais favoraacutevel aos

agricultores aliado ao fato desta atividade lhes ser menos trabalhosa

A regiatildeo rural dos municiacutepios onde foi feita a pesquisa manteacutem muito de

suas caracteriacutesticas tradicionais em vaacuterios aspectos da alimentaccedilatildeo como seraacute

visto neste trabalho Mas tambeacutem na forma de produccedilatildeo transporte e

armazenamento dos produtos A Figura 4 mostra algumas dessas peculiaridades

observadas Segundo Martins (2008 p 26) a inserccedilatildeo das fotografias ldquoeacute um

recurso que amplia e enriquece a variedade de informaccedilotildees de que o

pesquisador pode dispor para reconstruir e interpretar determinada realidade

socialrdquo

A Figura 4 mostra a produccedilatildeo de um casal de aposentados que mora

sozinho Eles executam poucos serviccedilos no siacutetio Um de seus filhos mora na

cidade de Piranga e os outros em outras cidades mais distantes O casal paga

por serviccedilos de plantio e colheita do milho e do feijatildeo A quantidade de milho eacute

muito pequena apenas para uso local A Figura 4a mostra parte do milho no

paiol e a Figura 4b mostra parte do milho jaacute debulhado secando ao sol no quintal

para depois ser processado no moinho eleacutetrico para a produccedilatildeo de fubaacute

15

(a) (b)

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 4 ndash Milho colhido no siacutetio de Anita e Gilberto na comunidade de Manja em Piranga

Muitas estradas das comunidades mais distantes ainda contam com

muitas porteiras que ficam fechadas Eacute o caminho por onde se transita o veiacuteculo

automotor mas ela atende principalmente agrave loacutegica rural tradicional Quem

precisa transitar deve descer do veiacuteculo abrir as porteiras e fechaacute-las ao

atravessar A Figura 5 por exemplo registrada na estrada da comunidade de

Manja em Piranga mostra uma forma tradicional de transportar as espigas de

milho do roccedilado para o paiol mas ainda muito usada na regiatildeo Havia trecircs

pessoas fazendo esse transporte uma pessoa em cima da carroccedila e outros dois

candiando os bois e abrindo e fechando as porteiras

A Figura 6 mostra um engenho de cana que estava sem uso no ano de

2015 pela baixa produccedilatildeo de cana neste ano no siacutetio de Lola e Marcos em

Presidente Bernardes Nele se produz rapadura e melado que eacute vendida para o

comeacutercio de Presidente Bernardes e tambeacutem para os vizinhos das proximidades

16

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 5 ndash Carro de boi transportando espigas de milho da roccedila para o paiol na estrada da comunidade de Manja em Piranga

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 6 ndash Engenho de produccedilatildeo de rapadura no siacutetio de Lola e Marcos na comunidade Xopotoacute Presidente Bernardes

As caracteriacutesticas rurais dos trecircs municiacutepios satildeo muito semelhantes

tanto no que se refere agrave forma de produccedilatildeo agriacutecola quanto na cultura e no perfil

populacional cuja populaccedilatildeo rural supera a urbana Sendo uma regiatildeo cuja

formaccedilatildeo ocorreu a partir da mineraccedilatildeo muitas de suas caracteriacutesticas ainda

estatildeo ligadas a esse processo histoacuterico Outras peculiaridades sobre o perfil das

17

famiacutelias seratildeo apresentadas no capiacutetulo 4 No sistema alimentar o que se

praticava produzia e o que era consumido na fase da mineraccedilatildeo teve influecircncia

na manutenccedilatildeo de muitas das praacuteticas existentes atualmente na regiatildeo onde foi

feita a pesquisa Sobre o que representou a alimentaccedilatildeo na fase da mineraccedilatildeo

e da ruralizaccedilatildeo no periacuteodo de formaccedilatildeo dessa regiatildeo eacute o que seraacute tratado no

proacuteximo capiacutetulo

18

2 A COMIDA EM MINAS GERAIS DA ESCASSEZ Agrave FARTURA

Arruda (1990) destaca em Minas Gerais duas fases muito importantes

para a sua formaccedilatildeo histoacuterica e cultural a primeira eacute a do ciclo da mineraccedilatildeo

que teve iniacutecio no final do seacuteculo XVII e segue ateacute o final do seacuteculo XVIII Neste

periacuteodo a vida urbana emerge com uma intensa movimentaccedilatildeo a segunda fase

eacute a chamada ldquoruralizaccedilatildeordquo que se inicia ao final do seacuteculo XVIII justamente com

o decliacutenio da mineraccedilatildeo seguindo ateacute o iniacutecio do seacuteculo XX Segundo a autora

na segunda fase as aacutereas rurais (as fazendas) passam a ter maior valorizaccedilatildeo

se tornando o ldquomicrocosmo do universo material social e culturalrdquo (ARRUDA

1990 p 135) Aleacutem das duas principais fases a autora destaca uma terceira fase

em Minas que se configura a partir dos meados do seacuteculo XX com a

industrializaccedilatildeo

Para a autora as duas primeiras fases representam formas de

sociabilidade muito peculiares que se expressam nas praacuteticas alimentares

desses periacuteodos e que tiveram influecircncia direta na formaccedilatildeo dos haacutebitos

alimentares em Minas Gerais haacutebitos que se perpetuaram ateacute o periacuteodo

contemporacircneo sendo relevantes para este trabalho Essas informaccedilotildees

ajudaratildeo a analisar se as praacuteticas alimentares comuns a estas fases em Minas

continuam presentes sendo praticadas pelas famiacutelias rurais pesquisadas neste

trabalho

Antes de discutir especificamente as questotildees alimentares relativas agraves

duas fases eacute importante realizar uma sucinta passagem pelo contexto alimentar

no Brasil colonial

21 Contextualizando o lugar da comida no Brasil Colonial nos primoacuterdios

Segundo Panegassi (2013) o colonizador europeu estabeleceu uma

relaccedilatildeo etnocecircntrica com o territoacuterio natural americano e isso se deu tambeacutem e

principalmente em relaccedilatildeo agrave alimentaccedilatildeo No seacuteculo XVI ele natildeo encontrava em

territoacuterios da colocircnia os alimentos que estava habituado a consumir em Portugal

vivenciando assim uma realidade na qual o autor denomina de ldquoescassez

culturalrdquo de alimentos (p 14) O autor cita o exemplo da carta de Joatildeo de Mello

Cacircmara a Dom Joatildeo III por volta de 1530 quando este rei estabeleceu que a

19

colonizaccedilatildeo seria baseada na expansatildeo da ocupaccedilatildeo das terras atraveacutes das

capitanias hereditaacuterias Mello Cacircmara informa a Dom Joatildeo III que traria para a

colocircnia homens de Portugal para cultivarem alimentos mais comuns aos

portugueses evitando mudanccedilas draacutesticas de seus haacutebitos alimentares pois

considerava os alimentos originaacuterios da Colocircnia inferiores para o consumo dos

portugueses

No entanto por mais que os colonizadores portugueses tenham tido

dificuldade em se habituar ao consumo de alimentos aqui disponiacuteveis foi preciso

se render a eles como tambeacutem aponta Freyre (1964)

A adaptaccedilatildeo foi o caminho obrigatoacuterio como destaca Panegassi (2013

p 70)

No acircmbito de uma situaccedilatildeo na qual um grande nuacutemero de pessoas eacute inserido em um novo ambiente cultural ainda que os receacutem-chegados procurem preservar seus padrotildees culturais de origem a necessidade de sobreviver impotildee inuacutemeros ajustes principalmente nos primeiros anos de presenccedila na nova aacuterea

Nesse sentido Holanda (1995) afirma que o interesse pela aventura

pela obtenccedilatildeo de tiacutetulos de posiccedilatildeo social e de prosperidade econocircmica servia

como estiacutemulo para o ldquosacrifiacuteciordquo da adaptaccedilatildeo Os portugueses tentaram

portanto recriar aqui condiccedilotildees de sobrevivecircncia e de adaptaccedilatildeo com poucas

exigecircncias ldquoOnde lhes faltasse o patildeo de trigo aprendiam a comer o da terra

() soacute consumiam farinha de mandioca fresca feita no dia Habituaram-se

tambeacutem a dormir em redes agrave maneira dos iacutendios e a beber e a mastigar fumordquo

(HOLANDA 1995 p 47)

De acordo com Panegassi (2013) os padres jesuiacutetas preferiam comer o

patildeo de mandioca e as bebidas existentes na colocircnia do que os que vinham de

Portugal em navios pois a viagem era longa e os alimentos armazenados

inadequadamente Era comum que os produtos como os patildees chegassem

estragados ao destino ou seja sem condiccedilotildees de serem ingeridos Assim Mello

(1975 apud PANEGASSI 2013 p 104) conclui que

A mudanccedila que se processaraacute nos haacutebitos dieteacuteticos do portuguecircs colonizador do Brasil ou do portuguecircs colonizador de outras aacutereas tropicais eacute menos o resultado de uma capacidade especial de amoldaccedilatildeo do que da impossibilidade de obter um suprimento regular e abundante de trigo e outros viacuteveres de origem europeia

20

Dessa maneira num contexto de convivecircncia cultural e de costumes foi

se estabelecendo ao longo do processo de colonizaccedilatildeo brasileira a conformaccedilatildeo

inicial dos haacutebitos alimentares baseados na miscigenaccedilatildeo cultural alimentar

recebendo posteriormente a influecircncia africana com a chegada dos escravos

conforme seraacute tratado mais agrave frente Os alimentos autoacutectones inicialmente foram

os mais consumidos sobretudo a mandioca por substituir o trigo para a

elaboraccedilatildeo de patildees e bolos No entanto na regiatildeo de mineraccedilatildeo em Minas

Gerais ndash aacuterea de pesquisa deste trabalho ndash o milho e natildeo a mandioca foi

preponderante na alimentaccedilatildeo Como seraacute mostrado mais agrave frente o milho teve

papel fundamental natildeo apenas para alimentaccedilatildeo animal mas tambeacutem para

alimentar os escravos que trabalhavam nas lavras que o ingeriam segundo

Cacircmara Cascudo (2004) na forma de papa angu e canjica Segundo o mesmo

autor foram as mulheres portuguesas que criaram a receita da broa e do pudim

de milho que se tornaram e permanecem pratos tiacutepicos em Minas Gerais

Segundo Torres (2011 p100)

O mineiro nunca usou patildeo da ldquofarinha de paurdquo (mandioca) o patildeo da terra dos primeiros seacuteculos da colonizaccedilatildeo Sempre preferiu o angu os soacutelidos bolos de fubaacute e o cobu enrolado em folha de bananeira Para misturar o feijatildeo usou sempre a farinha de milho (o milho seco socado no monjolo e depois torrado) o angu a farinha de moinho As classes pobres usavam a ldquocanjiquinhardquo subproduto de despolpaccedilatildeo do milho com muito ecircxito para substituir o arroz

A carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei em 1500 aponta algumas

peculiaridades sobre a primeira percepccedilatildeo sobre alimentaccedilatildeo Os portugueses

ofereceram aos iacutendios ldquopatildeo (de trigo) peixe cozido (com condimentos)

confeitos mel massa de ovos figos passados e vinho de uvas mas os iacutendios

natildeo quiseram comer quase nadardquo (BORGES 2014 p 204) Segundo Cacircmara

Cascudo (2004) as novidades para os iacutendios era o patildeo de trigo massa de ovos

os condimentos incluindo o sal o accediluacutecar e finalmente o vinho feito de uvas

apesar de jaacute produzirem bebidas fermentadas a partir do milho da mandioca e

de frutas

A rejeiccedilatildeo dos iacutendios sinaliza que natildeo foi apenas da parte dos

portugueses que houve inicial rejeiccedilatildeo aos novos alimentos e haacutebitos

alimentares como registrado na carta de Mello Cacircmara a Dom Joatildeo III citado

anteriormente Os iacutendios tambeacutem expressaram seu interesse em manter seus

proacuteprios haacutebitos alimentares desconsiderando os alimentos vindos de Portugal

21

Segundo Cacircmara Cascudo (2004) animais como boi vaca porco

galinha cabra e ovelha foram introduzidos pelos portugueses bem como os

cultivos de arroz feijatildeo e verduras pela implantaccedilatildeo de hortas Registros do

padre jesuiacuteta Fernatildeo Cardim que chegou em 1584 descreve a existecircncia de

ldquoalface aboacutebora couve pepino nabos mostarda hortelatilde coentros endros

funchos ervilhas gergelim cebolas alhos e outros legumes que do Reino se

trouxeram que se datildeo bem na terrardquo (CARDIM 1939 p 94)

A partir do que eacute apresentado por Cacircmara Cascudo (2004) e Freyre

(1964) eacute possiacutevel verificar ainda os haacutebitos alimentares dos escravos africanos

que foram trazidos para a colocircnia em meados do seacuteculo XVI primeiramente

inseridos no trabalho dos engenhos de cana e algodatildeo e posteriormente na

mineraccedilatildeo e fazendas de gado

Segundo Cacircmara Cascudo (2004) quase todos escravos eram

obrigados a se alimentar da dieta que lhes era fornecida assim a possibilidade

de escolha do que comer era praticamente nula Eram melhor alimentados

apenas durante a viagem de navio ateacute chegar em terras brasileiras pois

precisariam estar em boas condiccedilotildees para serem revendidos

A refeiccedilatildeo consiste durante a viagem em feijatildeo farinha de milho e de mandioca agraves vezes tambeacutem peixe salgado Sua bebida eacute aacutegua e de quando em quando tambeacutem um pouco de aguardente Sendo levados do Brasil esses gecircneros teriam deterioraccedilatildeo raacutepida e natural (MARTIUS 21 apud CAcircMARA CASCUDO 2004 p 200)

Uma vez instalados nas aacutereas a que foram destinados na colocircnia a

alimentaccedilatildeo do europeu natildeo mudava significativamente Poreacutem em Minas

Gerais era comum a destinaccedilatildeo de pequenas parcelas de terra para que

escravos cultivassem vegetais de sua preferecircncia proacuteximo agraves senzalas

provendo uma alimentaccedilatildeo melhor pelo menos mais diversificada (CAcircMARA

CASCUDO 2004 GUIMARAtildeES REIS 2007) Citando relatos de Gabriel Soares

de Souza que esteve na Bahia de 1570 a 1587 e de Joatildeo Mauricio Rugendas

que passou pelo Brasil de 1821 a 1835 Cacircmara Cascudo (2004) relata que

nesses roccedilados os escravos podiam trabalhar em dias santos e em dias de festa

na casa-grande Era dado aos escravos pequenas parcelas de terra onde eles

podiam cultivar alimentos de seu interesse de consumo

Dessa forma as roccedilas de subsistecircncia aleacutem de contribuiacuterem para reduzir os custos de manutenccedilatildeo da matildeo de obra ao complementarem

22

a alimentaccedilatildeo fornecida pelos senhores criavam um espaccedilo proacuteprio para os escravos contribuindo assim para a prevenccedilatildeo de fugas e revoltas (GUIMARAtildeES REIS 2007 p 330)

A possibilidade de cultivar algumas roccedilas de alimentos preferidos na

cultura africana segundo Cacircmara Cascudo e Gilberto Freyre explica a inserccedilatildeo

de muitas plantas africanas que de alguma maneira os escravos conseguiram

transportaacute-las para o Brasil durante sua viagem Isso tambeacutem permitiu a

inserccedilatildeo de algumas peculiaridades das praacuteticas alimentares africanas na

formaccedilatildeo da comida brasileira atraveacutes das cozinheiras e tambeacutem embora mais

raramente dos cozinheiros que atuavam nas casas-grandes Segundo Freyre

(1964) pode-se atribuir a eles a introduccedilatildeo dos seguintes ingredientes

alimentos e modos de fazer na culinaacuteria brasileira

Azeite-de-dendecirc pimenta malagueta quiabo maior uso da banana variedade de formas de preparar a galinha e o peixerdquo (p 634) Dentro da extrema especializaccedilatildeo de escravos no serviccedilo domeacutestico das casas-grandes reservaram-se sempre dois agraves vezes trecircs indiviacuteduos aos trabalhos de cozinha (FREYRE 1964 p 634)

Freyre (1964) aponta que as influecircncias se deram primeiramente e mais

fortemente nos estados do Nordeste (Bahia Pernambuco e Maranhatildeo) em

funccedilatildeo dos trabalhos nos engenhos da regiatildeo Na Bahia foi muito marcante a

inserccedilatildeo das vendas dos quitutes doces e salgados em tabuleiros ou gamelas

pelas ruas sobretudo pelas mulheres alforriadas mas tambeacutem havia aquelas

que vendiam para reverter a renda agrave sua lsquosinhaacutersquo6 ldquoQuindim cocada sequilhos

mocotoacutes vatapaacutes mingaus pamonhas canjicas acaccedilaacutes abaraacutes arroz-de-coco

feijatildeo-de-coco angus patildeo-de-loacute de arroz patildeo-de-loacute de milho rebuccedilados7rdquo (p

636) Este autor afirma que os dois pratos de origem africana que mais fizeram

sucesso na mesa da casa-grande foram o vatapaacute e o caruru

Com a chegada da Corte Portuguesa em 1808 segundo Cacircmara

Cascudo (2004) Holanda (1995) e Ribeiro (2014) algumas alteraccedilotildees

importantes comeccedilaram a ocorrer no plano alimentar dos mais ricos com a

vinda inclusive de cozinheiros particulares com seus livros de receitas Criaram-

se modismos que tiveram influecircncia principalmente no Rio de Janeiro Um deles

6 No capiacutetulo 3 deste trabalho faccedilo uma discussatildeo mais detalhada sobre o papel das mulheres iacutendias

africanas e portuguesas na formaccedilatildeo da culinaacuteria brasileira 7 Como os portugueses se referem ao doce ldquobalardquo

23

foi a ampliaccedilatildeo do consumo de produtos importados da Europa e o estilo francecircs

de comer

Importava-se conservas doces frutos processados salsichas presuntos manteiga queijo chaacute e temperos () Desde entatildeo os haacutebitos agrave mesa se europeizaram os ideais alimentares e de paladar se tornaram cada vez mais semelhantes aos franceses berccedilo da gastronomia como a conhecida hoje (RIBEIRO 2014 p 50-51)

Freyre (1964) descreve informaccedilotildees dos livros de receitas dos

cozinheiros que vieram de Portugal e que passaram a inserir as novas praacuteticas

alimentares importadas para os mais abastados como a substituiccedilatildeo da gordura

pela manteiga francesa nas frituras diversas o reduzido uso da feijoada e dos

guisados do uso da pimenta e de outros condimentos picantes O proacuteprio trigo

antes uma raridade passou a chegar com maior facilidade e iniciando-se a

produccedilatildeo do patildeo de trigo tatildeo caracteriacutestico em Portugal e que passou a ser

muito consumido tambeacutem no Brasil

Em vez do aluaacute da garapa de tamarindo do caldo de cana ndash o chaacute agrave inglesa em vez de farinha do piratildeo ou do quibebe ndash a batata chamada inglesa Juntando-se a tudo isso o requinte do gelo Manteiga francesa batata inglesa chaacute tambeacutem agrave inglesa gelo ndash tudo isso agiu no sentido da desafricanizaccedilatildeo da mesa brasileira que ateacute os primeiros anos de independecircncia estivera sob maior influecircncia da Aacutefrica e dos frutos indiacutegenas (FREYRE 1964 p 642)

As influecircncias de outras culturas continuaram a se expandir a partir de

metade do seacuteculo XIX com a chegada de novos imigrantes ndash principalmente

italianos alematildees espanhoacuteis japoneses e siacuterio-libaneses ndash novos elementos da

culinaacuteria tiacutepica desses grupos eacutetnicos foram se incorporando a jaacute miscigenada

comida brasileira Na contemporaneidade a influecircncia alimentar mais relevante

de uma cultura externa eacute a norte-americana Poreacutem no seacuteculo XX o hibridismo

alimentar natildeo mais ocorre necessariamente pela intensidade da imigraccedilatildeo mas

sobretudo pela influecircncia da globalizaccedilatildeo Ao facilitar a divulgaccedilatildeo o transporte

e a aquisiccedilatildeo de alimentos de outros paiacuteses esse processo propiciou a

introduccedilatildeo constante de novas praacuteticas e haacutebitos alimentares

Apoacutes a breve introduccedilatildeo sobre os haacutebitos alimentares formados no Brasil

colonial passo a tratar especificamente da regiatildeo de Minas Gerais onde se deu

a fase mineradora regiatildeo na qual estatildeo inseridos os municiacutepios pesquisados

24

22 Fase da mineraccedilatildeo em Minas Gerais escassez de alimentos

O ciclo da mineraccedilatildeo foi muito importante para a economia da colocircnia

portuguesa e iniciou-se apoacutes a quase estagnaccedilatildeo do ciclo do accediluacutecar no final do

seacuteculo XVII Teve seu apogeu em Minas Gerais no seacuteculo XVIII e nesta fase

por determinaccedilatildeo da Coroa Portuguesa toda a matildeo de obra deveria estar

voltada basicamente agrave extraccedilatildeo de ouro e diamante Paula (2007) menciona que

a mineraccedilatildeo foi uma atividade central e decisiva na peculiaridade histoacuterica da

regiatildeo onde ela ocorreu Segundo o autor algumas caracteriacutesticas dessa

atividade foram a rapidez e amplitude com que a regiatildeo foi ocupada O intenso

fluxo imigratoacuterio gerado pela quantidade de ouro e seu preccedilo transformou-a na

Capitania mais populosa do periacuteodo colonial ao imperial Por sua importacircncia

econocircmica e dinamismo da atividade Minas Gerais teve o maior nuacutemero de

escravos da Ameacuterica Portuguesa

O fato de ser ele mesmo o ouro dinheiro em sua forma mais universal teraacute decisivo impacto sob o grau de dinamismo e mercantilizaccedilatildeo da economia mineira A riqueza decorrente da atividade induziraacute o Estado portuguecircs a efetivamente implantar a maacutequina estatal da colocircnia agrave qual seraacute durante muito tempo apenas fisco poliacutecia e justiccedila Satildeo essas dimensotildees que vatildeo determinar o desenvolvimento em Minas Gerais de uma estrutura urbana de uma certa vida poliacutetica e cultural em nada triviais no contexto colonial (PAULA 2007 p 279)

Assim a atividade mineradora fez surgir em Minas Gerais primeiramente

uma sociedade urbana baseada na extraccedilatildeo de ouro e diamantes com a

formaccedilatildeo de pequenos povoados e arraiais Segundo Zemella (1951) ldquoos

arraiais mineiros cresceram tatildeo vertiginosamente que em poucos anos muitos

deles atingiram a dignidade de vila Surgiram primeiramente Mariana Vila Rica

Caeteacute Sabaraacute Vila do Priacutencipe Arraial do Tijuco e outrosrdquo (ZEMELLA 1951 p

46) Nesses ldquooutrosrdquo citados pela autora estaacute incluiacuteda a vila de Guarapiranga

(atuais municiacutepios de Piranga Porto Firme e Presidente Bernardes) como jaacute foi

mencionado

Em funccedilatildeo disso analisa Cacircmara Cascudo (2004) com um contingente

elevado de pessoas que chegavam tanto do litoral da Colocircnia como tambeacutem de

Portugal em busca das riquezas minerais a escassez de alimento foi um fator

marcante nesse periacuteodo jaacute que se plantava muito pouco e boa parte da comida

25

era trazida por tropeiros8 a preccedilos elevados Aleacutem disso demorava a chegar

devido agraves dificuldades das tropas em avanccedilar pelas matas e estradas de difiacutecil

acesso

O excesso de ouro mal enfrentava o exageradiacutessimo preccedilo dos gecircneros alimentiacutecios transportados de longe porque natildeo havia vontade e tempo para plantar cereais Garimpeiros e faiscadores9 tinham que comprar qualquer elemento para compor a menor refeiccedilatildeo Toda a escravaria estava ocupada no desmonte das terras e lavagem do ouro (CAcircMARA CASCUDO 2004 p 208)

Segundo Frieiro (1982) e Paula (2007) as crises de abastecimento foram

graviacutessimas e causaram muitas mortes por fome aleacutem da acelerada alta de

preccedilos dos alimentos Magalhatildees (1978) aponta duas grandes crises de fome a

de 1697-1698 e a de 1700-1701 Essas crises propiciaram uma dispersatildeo

populacional do centro da regiatildeo mineradora ldquoOs primeiros habitantes natildeo

pensavam em perder tempo nas canseiras do amanho e plantio da terra A falta

de caminhos agravava sobremaneira o problema do abastecimentordquo (FRIEIRO

1982 p 56)

Segundo o autor tinha-se assim uma alimentaccedilatildeo de baixo valor

proteico Para minimizar isso comia-se o ldquobicho da taquarardquo assado ou torrado

Alimento que jaacute era consumido pelos indiacutegenas

O que comia o faisqueiro na sua lavra Comia do pouco que se plantava nas roccedilas Milho feijatildeo farinha de mandioca e alguma fruta da terra eram o cotidiano sustento dos mineradores O escravo negro pau para toda obra armava o tripeacute de varas fincado no chatildeo e pendurava nele o caldeiratildeo de ferro em que cozinhava o feijatildeo com toucinho servido em pratos de estanho Estendia-se a farinha ao sol numa toalha e ao lado natildeo faltava o ancorote de aacutegua ou aguardente Galinha ovos e doces quando os havia muito raros eram tudo por preccedilo da hora da morte (FRIEIRO 1982 p 57)

A partir disso pela necessidade de manter a atividade e portanto de

manter alimentados os homens para o trabalho o rei ordena a importaccedilatildeo de

carne de boi para Minas vinda de Satildeo Paulo Curitiba sertotildees da Bahia e

Pernambuco Essas regiotildees natildeo possuiacuteam grande plantel mas passaram a

ampliar a produccedilatildeo para atender agrave demanda mineira A carne chegava cara e

8 Uma importante e movimentada rota de comercializaccedilatildeo para abastecer a regiatildeo de suprimentos gerais e

comida surge da exploraccedilatildeo de ouro e diamante Detalhes dessa rota comercial por ser visto em Zemella (1951)

9 Muito comuns na mineraccedilatildeo os faiscadores eram homens livres e pobres havendo mesmo escravos entre eles que entregavam quantia fixa de ouro ao senhor e guardavam o eventual excedente (VAINFAS 2001 p 398)

26

tambeacutem tinha seu preccedilo elevado nas regiotildees de origem jaacute que se priorizava a

exportaccedilatildeo para Minas Apesar da escassez de comida representar um aspecto

negativo para Minas Gerais ela contribuiu para a expansatildeo do mercado de

outras regiotildees do paiacutes que investiram no abastecimento de alimentos da aacuterea de

mineraccedilatildeo conforme aponta Furtado (2000)10

Segundo Zemella (1951) apesar do empenho de Satildeo Paulo e das outras

regiotildees em fazer chegar a carne ateacute as Minas Gerais havia irregularidades no

fornecimento Em funccedilatildeo disso usava-se muito da carne de caccedila e de todo o

tipo de alimento que se poderia obter nas matas aleacutem do pouco que colhiam nas

pequenas roccedilas para subsistecircncia insuficiente para atender a demanda de todos

os trabalhadores que viviam na regiatildeo dedicada agrave mineraccedilatildeo

A situaccedilatildeo de inseguranccedila alimentar grave que se instalava e a grande

dificuldade na obtenccedilatildeo da carne bovina ldquoestimulou o governo metropolitano agrave

formaccedilatildeo de uma zona pecuarista em torno das minas distribuindo sesmarias

em profusatildeo sempre sob a condiccedilatildeo de os agraciados instalarem curraisrdquo

(ZEMELLA 1951 p 192) O objetivo era tambeacutem que com o tempo a produccedilatildeo

de gado se tornasse suficiente para natildeo mais haver comeacutercio com a Bahia

visando fechar os canais por onde escoava o contrabando de ouro

A outra accedilatildeo do governo da qual trata a autora foi instituir a criaccedilatildeo de

suiacutenos onde houvesse espaccedilo para tal Assim passou a ser frequente entre os

mineiros a implantaccedilatildeo de chiqueiros rudimentares no quintal das casas mesmo

nas casas urbanas Surge a partir dessa situaccedilatildeo a preferecircncia pela carne suiacutena

na dieta do mineiro da regiatildeo de mineraccedilatildeo11 carne que estaacute presente na maior

parte das receitas consideradas mineiras ainda nos dias atuais

Outra medida por parte da Coroa para garantir a subsistecircncia interna e

certa autonomia ao longo desse periacuteodo de mineraccedilatildeo foi a criaccedilatildeo da ldquoOrdem

10 A pecuaacuteria que encontrara no Sul um habitat excepcionalmente favoraacutevel para desenvolver-se - e que

natildeo obstante sua baixiacutessima rentabilidade subsistia graccedilas agraves exportaccedilotildees de couro ndash passaraacute por uma verdadeira revoluccedilatildeo com o advento da economia mineira O gado do Nordeste cujo mercado definhava com a decadecircncia da economia accedilucareira tende a deslocar-se em busca do florescente mercado da regiatildeo mineira Outra caracteriacutestica de profundas consequecircncias para as regiotildees vizinhas radicava em seu sistema de transporte A tropa de mulas constitui autecircntica infraestrutura de todo o sistema A quase inexistecircncia de abastecimento local de alimentos a grande distacircncia por terra que deveriam percorrer todas as mercadorias importadas a necessidade de vencer grandes caminhadas em regiatildeo montanhosa para alcanccedilar os locais de trabalho tudo contribuiacutea para que o sistema de transporte desempenhasse um papel baacutesico no funcionamento da economia Criou-se assim um grande mercado para animais de carga (FURTADO 2000 p 81)

11 Nas regiotildees do norte de Minas Gerais outros tipos de carne satildeo mais comuns por exemplo a carne de sol em que se usa mais frequentemente a carne de boi

27

Reacutegia de 27 de fevereiro de 1777rdquo que tornou obrigatoacuterio o cultivo nas aacutereas

rurais em quantidade suficiente para abastecimento de mandioca feijatildeo e milho

considerados alimentos baacutesicos naquela eacutepoca

O milho que na regiatildeo das Minas Gerais passou a ser mais importante

para consumo humano12 do que a mandioca tinha como derivados pipoca

curau pamonha farinha cuscuz biscoitos bolos cerveja de milho verde

aguardente canjica ldquoque os ricos comiam por gosto e os pobres por

necessidaderdquo (FRIEIRO 1982 p 57) Isso porque estes derivados eram

consumidos apenas pelos proprietaacuterios das terras e outros poucos abastados

Segundo Saint-Hilaire (1938) e Frieiro (1982) aos escravos soacute era dado o angu

que durante muito tempo foi a base de sua dieta Saint-Hilaire (1938) que

aprovou o paladar da alimentaccedilatildeo agrave base do milho descreve detalhes do fubaacute e

a importacircncia do angu para a alimentaccedilatildeo dos escravos

Para fazer servir o milho agrave alimentaccedilatildeo ordinaacuteria dos homens eacute ele preparado de duas maneiras diferentes Sua farinha simplesmente moiacuteda e separada do farelo com o auxiacutelio de uma peneira de bambu toma o nome de fubaacute Eacute fazendo cozer o fubaacute na aacutegua sem acrescentar sal que se faz essa espeacutecie de polenta grosseira que se chama como jaacute o disse anguacute e constitui o principal alimento dos escravos (SAINT-HILAIRE 1938 p 206)

O viajante Pohl (1951 apud FRIEIRO 1982) relata o que testemunhou

da alimentaccedilatildeo dos escravos ldquoalimentavam-se os negros ao almoccedilo e agrave ceia

com farinha de milho misturada com aacutegua quente o angu propriamente dito no

qual punham um naco de toucinho e ao jantar davam-lhes feijatildeordquo (POHL 1951

apud FRIEIRO 1982 p 75) O objetivo era alimentar o escravo somente daquilo

que o mantivesse em boas condiccedilotildees de sauacutede e com forccedila suficiente para fazer

render o trabalho na lavra

O angu era desde essa eacutepoca feito sem adiccedilatildeo de sal o que perdura ateacute

os dias de hoje A principal razatildeo para isso naquela eacutepoca era a dificuldade em

obter o sal em Minas Gerais e consequentemente o seu alto preccedilo Assim esse

produto era usado com parcimocircnia para alimentaccedilatildeo animal e alguns alimentos

12 Para fins de alimentaccedilatildeo animal o milho tambeacutem era mais importante do que a mandioca pois dele se

alimentavam os bovinos os suiacutenos os equinos e os galinaacuteceos conforme aponta Meneses (2007) Assim era necessaacuteria uma aacuterea muito grande destinada ao cultivo deste cereal Segundo este autor a praacutetica de produccedilatildeo consorciada de milho e feijatildeo era comum e atendiam a uma ldquoordem bioloacutegica cultural e econocircmica e ainda ecoloacutegica - condiccedilotildees de clima solo e relevordquo (p 344) Com o passar do tempo o milho caiu na preferecircncia dos habitantes das Minas e se tornou mais importante para fins de alimentaccedilatildeo humana tambeacutem

28

que precisariam dele para conservaccedilatildeo como toucinhos e feijatildeo por exemplo

Conforme Frieiro (1982) em funccedilatildeo dessa situaccedilatildeo poder-se-ia talvez atribuir

o angu sem sal como invenccedilatildeo mineira embora isso natildeo possa ser comprovado

jaacute que em outras regiotildees como Satildeo Paulo e Bahia o angu eacute temperado A

obtenccedilatildeo de sal foi um problema geral no paiacutes durante todo o seacuteculo XVIII

segundo o autor

Zemella (1951) em seu importante trabalho sobre o abastecimento de

capitania das Minas Gerais no seacuteculo XVIII destaca essa situaccedilatildeo

O suprimento de sal especialmente para as cidades vicentinas sempre foi difiacutecil e penoso Na Vila de Satildeo Paulo o mau fornecimento do preciso condimento causou ateacute revoltas Se na Vila de Satildeo Paulo que estava relativamente proacutexima do porto de importaccedilatildeo de sal havia tremendas dificuldades para a sua obtenccedilatildeo que seria entatildeo das Gerais As minas no seu desespero conseguiram uma regiatildeo interna os sertotildees marginais do Satildeo Francisco que lhe fornecesse tal mercadoria se bem que em pequenas quantidades O sal chegava agraves cidades mineiras subindo o rio Satildeo Francisco em barcaccedilas (ZEMELLA 1951 p 193)

A autora aponta que o sal assim como a carne os cereais o accediluacutecar e o

toucinho eram produtos vitais de consumo para os mineiros Sendo que a carne

e o sal eram aleacutem de necessaacuterios imprescindiacuteveis e vinham de longas

distacircncias Segundo Carrara (2013) o sal que chegava agraves Minas Gerais vinha

de Sobradinho Pilatildeo Arcado Casa Nova e Remanso na Bahia A autora inclui

na lista ainda dois produtos que eram considerados de grande importacircncia para

os mineiros a pinga e o tabaco A pinga ou cachaccedila era muitas vezes usada

para ajudar a remediar a fome

Como citado por Zemella (1951) e Frieiro (1982) a Ordem Reacutegia

estimulou pequenos cultivos para subsistecircncia e a venda dos excedentes

reduzindo o risco de uma nova crise de fome Com o tempo foi-se regulando o

abastecimento embora a preccedilos ainda estivessem muito elevados para a grande

maioria da populaccedilatildeo da regiatildeo mineradora Segundo Boxer (1969 apud Arruda

1999 p 139) ldquoAs pessoas que tinham uma fazenda ou roccedila nas quais

plantavam legumes criavam aves porcos etc para elas e seus escravos

vendendo o excesso para o consumo na cidade com bons lucrosrdquo

Arruda (1999) menciona que as pessoas mais ricas e que possuiacuteam um

grande nuacutemero de escravos foram as primeiras a iniciarem o cultivo de suas

29

terras para alimentar seus familiares os escravos e a aproveitar a demanda por

alimentos para obter algum lucro com a venda do excedente

Analisando o lugar da comida no processo de formaccedilatildeo do territoacuterio das

Minas Gerais na fase da mineraccedilatildeo verificamos que ela teve uma funccedilatildeo muito

mais fisioloacutegica ou seja a de matar a fome e sustentar a pesada lida diaacuteria que

era o trabalho na lavra Conforme os registros de Mawe (1922) Saint-Hilaire

(1938) e Cardim (1939) verifica-se que os habitantes da regiatildeo de Minas Gerais

faziam suas refeiccedilotildees com muita rapidez e com pouca conversa

Outra observaccedilatildeo importante eacute mencionada por Abdala (2007) que

aponta a existecircncia de uma combinaccedilatildeo de gecircneros adquiridos no comeacutercio com

a produccedilatildeo de alimentos do quintal isso ainda na fase da mineraccedilatildeo ndash no

periacuteodo apoacutes as crises de fome e organizaccedilatildeo do abastecimento interno Como

os preccedilos dos produtos importados eram muito elevados os produtos da terra

foram os principais alimentos consumidos Assim segundo a autora surge uma

cozinha com caracteriacutesticas peculiares que se adaptou agrave situaccedilatildeo vivenciada

pelos habitantes cujo controle poliacutetico e econocircmico era excessivo diante da

realidade em que atender agraves necessidades imediatas de sobrevivecircncia era o

principal objetivo ldquoAgrave exceccedilatildeo das compotas e doccedilarias de maneira geral

inspiradas nos haacutebitos lusitanos os pratos servidos no dia-a-dia caracterizavam-

se pela rusticidade dos produtos da terrardquo (ABDALA 2007 p 73) Nesse periacuteodo

tambeacutem foi muito importante dominar as teacutecnicas de conservaccedilatildeo dos alimentos

o que acarretou na adoccedilatildeo de haacutebitos alimentares muito caracteriacutesticos como a

conservaccedilatildeo da carne do porco na gordura retirada do proacuteprio animal

23 Fase da ruralizaccedilatildeo em Minas Gerais fartura de alimentos

A fase da ruralizaccedilatildeo em Minas Gerais eacute considerada aquela que

paulatinamente vai surgindo um novo dinamismo econocircmico e reprodutivo para

aleacutem da mineraccedilatildeo Segundo Arruda (1999) Igleacutesias (1970) Carrara (2007)

Guimaratildees e Reis (2007) Meneses (2007) Barbosa (1995) e Frieiro (1982) natildeo

ocorreu um corte radical uma linha divisoacuteria onde tenha se encerrado o ciclo da

mineraccedilatildeo e surgido o ciclo da ruralizaccedilatildeo A demarcaccedilatildeo de uma periodizaccedilatildeo

eacute feita pelos autores mais por razotildees metodoloacutegicas para discorrer sobre o ritmo

histoacuterico econocircmico e cultural daquele periacuteodo na regiatildeo

30

Iglesias (1970) utiliza os termos ldquoopulecircncia e decadecircnciardquo da mineraccedilatildeo

e sugere os periacuteodos da seguinte maneira Os anos de 1693 a 1770 a fase

considerada do surgimento ao auge da opulecircncia mineraccedilatildeo e 1770 a 1883 o

que abrangeria a sua decadecircncia Tal decliacutenio orientou consequentemente para

a atividade a agriacutecola Arruda (1999) aponta a Carta (ou Ordem) Reacutegia jaacute citada

no item anterior como o marco de reconhecimento da Coroa do decliacutenio da

mineraccedilatildeo e da necessidade de estimular a produccedilatildeo agriacutecola na regiatildeo Em

suas palavras

A Carta Reacutegia de 1777 consagra ao novo princiacutepio o postulado que reconhece a importacircncia da agropecuaacuteria no conjunto das atividades econocircmicas nas aacutereas de mineraccedilatildeo () A mudanccedila de atitude por parte das autoridades governamentais do Reino corresponde na realidade agrave avassaladora crise da produccedilatildeo auriacutefera depois dos anos sessenta Impunham-se novos caminhos agrave economia de Minas capazes de dar sustentaccedilatildeo aos significativos contingentes populacionais que laacute haviam se estabelecido na primeira deacutecada do seacuteculo XVIII (ARRUDA 1999 p 140)

Nesta fase o problema de abastecimento jaacute natildeo era mais tatildeo grave mas

os preccedilos dos alimentos continuavam altos Era tempo de maior fartura de

alimentos em relaccedilatildeo agrave fase de mineraccedilatildeo mas ainda assim com muitos

obstaacuteculos Zemella (1951) defende que em funccedilatildeo da situaccedilatildeo dada a regiatildeo

de Minas Gerais foi orientando pouco a pouco seus caminhos no sentido da

autossuficiecircncia e as atividades dos habitantes se desviando para a lavoura

pecuaacuteria e a manufatura ldquoNa proacutepria regiatildeo onde se localizavam as lavras13 ou

minas multiplicaram-se as plantaccedilotildees As minas agonizantes passaram a

apoiar-se na lavoura que se expandindo procurava gulosamente as manchas

de terra feacutertil que havia nas imediaccedilotildees das lavrasrdquo (ZEMELLA 1951 p 239)

Mas esse processo natildeo significou um rompimento abrupto da mineraccedilatildeo Assim

o trabalho na lavra permanecia embora em muito menor importacircncia do que

antes ndash nas fases poacutes-colheita ndash quando se utilizava a matildeo-de-obra dos escravos

que pudessem ser retirados temporariamente da lavoura

Guimaratildees e Reis (2007) apontam que os setores da manufatura

pecuaacuteria e lavoura permitiram que a economia de Minas Gerais continuasse a

13 ldquoEm 1702 foi criado a Intendecircncia das Minas oacutergatildeo encarregado de aplicar a legislaccedilatildeo sobre a

mineraccedilatildeo na colocircnia Cabia ainda ao oacutergatildeo dividir o local a ser explorado em Datas lotes de terra entregues ao descobridor das minas As aacutereas maiores que as Datas eram chamadas de Lavras lotes de terras em que a exploraccedilatildeo do ouro soacute seria possiacutevel com teacutecnicas de exploraccedilatildeo mais eficaz e com um grande nuacutemero de escravosrdquo (MUTTER 2012 p31)

31

se desenvolver e a Capitania continuasse a manter seu ritmo de crescimento

populacional durante a segunda metade do seacuteculo XVIII incluiacuteda a populaccedilatildeo

escrava

Com a crise da mineraccedilatildeo a mudanccedila nos rumos da economia mineira provocou transformaccedilotildees quantitativas e qualitativas na agricultura com o fortalecimento da produccedilatildeo interna e com o desenvolvimento de uma elite residente autocircnoma ante o mercado externo (GUIMARAtildeRES REIS 2007 p 332)

Na concepccedilatildeo de Arruda (1999) aleacutem de a agricultura ocorrer nas

regiotildees das lavras como afirmado por Zemella (1951) as sesmarias que foram

concedidas levaram muitos a estabelecerem suas fazendas no interior rural A

autora aponta que nesta fase jaacute ao final do seacuteculo XVIII Minas reduziu muito o

consumo de produtos importados basicamente de Satildeo Paulo Rio de Janeiro e

Bahia passando a comercializar principalmente para o Rio de Janeiro muito do

que passou a produzir embora a produccedilatildeo fosse principalmente para

abastecimento interno como tambeacutem apontado por Graccedila Filho (2007) e por

Guimaratildees e Reis (2007) Exportava-se ldquoqueijo fumo accediluacutecar aguardente e

cana e ainda mas em menor volume couros e solas marmelada e mandioca

algodatildeo pouco cafeacute gado vacum porcos cavalos e galinhasrdquo (DULCI 2007 p

348)

Este autor menciona ainda que as importaccedilotildees que continuaram pelo

seacuteculo XIX foram de produtos como sal tecidos vinho peixe salgado vinagre

e azeite doce

As compras no entanto eram muito menores do que as vendas O poder aquisitivo dos mineiros era baixo portanto jaacute que eles natildeo tinham condiccedilotildees de consumir muitos produtos importados havia espaccedilo para fabricaccedilatildeo local de bens indispensaacuteveis agrave vida diaacuteria (DULCI 2007 p 348)

Para Freyre (2008 p 67) o decliacutenio da mineraccedilatildeo ldquotransformou quase

toda a Proviacutencia de inquietamente mineira a pacatamente agriacutecolardquo Para este

autor a fase da ruralizaccedilatildeo foi melhor para Minas nos aspectos econocircmicos e

sociais Segundo Graccedila Filho (2007) Guimaratildees e Reis (2007) e Arruda (1999)

a fase da ruralizaccedilatildeo em Minas foi um processo relativamente lento que ocorreu

progressivamente e essa realidade natildeo mudou mundo durante quase todo o

seacuteculo XIX

32

Poreacutem a partir de segunda metade desse seacuteculo o setor cafeeiro e o

fabril tornaram essa realidade produtiva e econocircmica mais diversificada

sobretudo na Zona da Mata assim como a pecuaacuteria leiteira na regiatildeo mais ao

Sul do estado

A produccedilatildeo cafeeira na Zona da Mata conforme Pires (2013 p 331)

ldquodesenvolveu uma tiacutepica economia voltada para a produccedilatildeo e exportaccedilatildeo de cafeacute

que a partir de meados do seacuteculo XIX vai se tornando o espaccedilo econocircmico mais

rico do estado ateacute pelo menos o final da deacutecada de 1920rdquo

Tambeacutem foi na Zona da Mata que Dulci (2007) aponta ter surgido no final

do seacuteculo XIX e iniacutecio do XX agroinduacutestrias da cana e do leite que chegaram a

liderar o mercado nacional no iniacutecio do seacuteculo XX Antes disso os engenhos

existentes nas aacutereas rurais em Minas eram rudimentares O autor menciona que

no municiacutepio de Ponte Nova foram instaladas trecircs usinas de cana de accediluacutecar com

a importaccedilatildeo de equipamentos modernos para a produccedilatildeo em escala industrial

Com as usinas chegaram os trens da empresa Leopoldina o que foi muito

importante para o desenvolvimento regional

Em relaccedilatildeo agrave agroinduacutestria do leite em Minas no mesmo periacuteodo o autor

sinaliza que ela se deu de maneira constante acompanhando a evoluccedilatildeo da

pecuaacuteria regional A primeira agroinduacutestria de produtos laacutecteos do estado

estabeleceu-se onde hoje estaacute o municiacutepio de Santos Dumont

Satildeo muitas as teses e discussotildees baseadas em documentos e arquivos

sobre a Minas Colonial e sobre as dinacircmicas produtivas e o controle poliacutetico-

econocircmico nas duas fases a mineraccedilatildeo e a ruralizaccedilatildeo Poreacutem para os

objetivos deste trabalho como jaacute sinalizado no iniacutecio deste capiacutetulo importa

saber se o decliacutenio da mineraccedilatildeo e consequente ampliaccedilatildeo da produccedilatildeo

agropecuaacuteria (considerada assim a fase da ruralizaccedilatildeo) gerou mudanccedilas nos

haacutebitos alimentares da populaccedilatildeo mineira do entorno da regiatildeo mineradora

Conhecer os haacutebitos alimentares da populaccedilatildeo o que era cultivado e que

animais eram criados nesses dois periacuteodos eacute importante para correlacionar com

as informaccedilotildees obtidas na pesquisa de campo

Nesse sentido os autores que orientam a esse respeito satildeo Frieiro

(1982) Magalhatildees (2004) Arruda (1990) Abdala (2007) Vasconcellos (1968) e

Torres (2011)

33

Temos a impressatildeo (e Gilberto Freyre e Caio Prado Juacutenior pensam igualmente assim) que o mineiro tanto na Colocircnia nos tempos de mineraccedilatildeo no Impeacuterio passada a seacuterie de crises dos primeiros tempos de mineraccedilatildeo alimentava-se bem e melhor do que a maioria dos brasileiros ao menos quanto ao peso e valor nutritivo O mineiro exige ldquosustacircnciardquo quer comida substancial e pouco liga para refinamentos complicados (TORRES 2011 p 101)

A observaccedilatildeo de Torres (2011) corrobora a de Frieiro (1982) que

sinaliza para uma alimentaccedilatildeo mais farta na fase da ruralizaccedilatildeo e segundo

Arruda (1999) a produccedilatildeo diversificada nas fazendas era uma caracteriacutestica

deste periacuteodo Os excedentes de carne suiacutena toucinho carne seca farinha de

milho farinha de mandioca rapadura aguardente oacuteleo fumo cafeacute queijos

algodatildeo em fios e tecidos ruacutesticos eram vendidos nas cidades mais proacuteximas

O que os autores citados apontam eacute que houve fartura de produtos

alimentiacutecios sem diversificaccedilatildeo entre o que se comia na fase da mineraccedilatildeo para

a fase da ruralizaccedilatildeo exceto para os mais ricos que podiam investir na

importaccedilatildeo de vinhos azeites do reino e bacalhau Magalhatildees (2004) aponta a

abundacircncia na produccedilatildeo de legumes frutas hortaliccedilas tubeacuterculos e gratildeos

produzidos nos siacutetios e fazendas proacuteximos a Vila Rica e Mariana Ateacute mesmo

nos pequenos quintais das cidades existiam hortas Muitos dos alimentos eram

itens comuns no cotidiano alimentar da populaccedilatildeo como o feijatildeo a farinha e

milho e a couve

Quanto agrave produccedilatildeo de alimentos regionaislocais notam-se principalmente legumes hortaliccedilas frutas e gratildeos produzidos por pequenos sitiantes residentes nos termos das vilas Em Vila Rica por exemplo produziam-se os seguintes gecircneros laranjas bananas quiabos couves batata-doce caraacute mandioca ovos patildees leite azeite de mamona farinha de mandioca e de milho cevada arroz feijatildeo miuacutedo e fradinho (CHAVES 1995 apud MAGALHAtildeES 2004 p 71)

Em relaccedilatildeo agrave proteiacutena animal Magalhatildees (2004) e Frieiro (1982)

apontam que os suiacutenos e as galinhas caipiras continuaram sendo a principal

fonte de consumo Do suiacuteno aleacutem da carne continuou-se a usar o toucinho a

banha focinho orelhas mocotoacutes e fressuras que tambeacutem satildeo fonte de gordura

Diferentemente da carne cujo consumo era restrito aos abastados o toucinho e

a banha eram usados por todas as classes sociais para acompanhar as

hortaliccedilas e o feijatildeo

34

O angu e o feijatildeo continuaram presentes na mesa de todos sobretudo

na do pobre14 Segundo os autores nas famiacutelias mais ricas tinha-se como

costume servir refeiccedilotildees muito fartas para as visitas mesmo que essa natildeo fosse

a realidade cotidiana inclusive com variedades de doces numa tentativa de

apagar as privaccedilotildees alimentares vivenciadas anteriormente

Saint-Hilaire em uma de suas passagens por Minas Gerais no seacuteculo

XIX relata suas percepccedilotildees sobre a comida nas aacutereas rurais

Galinha e porco satildeo as carnes que se servem mais comumente em casa dos fazendeiros da proviacutencia das Minas O feijatildeo preto forma prato indispensaacutevel na mesa do rico e esse legume constitui quase que a uacutenica iguaria do pobre Se a esse grosseiro manjar este uacuteltimo acrescenta mais alguma coisa eacute arroz ou couve ou outras ervas picadas (hellip) Como natildeo se conhece o fabrico da manteiga substitui-se-lhe a gordura que escorre do toucinho que se frita Cada conviva salpica com farinha o feijatildeo ou outros alimentos aos quais se adiciona salsa e faz-se assim uma espeacutecie de pasta (hellip) Um dos pratos favoritos dos mineiros eacute galinha cozida com quiabo mas os quiabos natildeo se comem com prazer senatildeo acompanhados de anguacute espeacutecie de polenta sem sabor Em parte alguma talvez se consuma tanto doce como na proviacutencia das Minas fazem-se doces de uma multidatildeo de coisas diferentes (hellip) Eacute muito raro encontrar vinho em casa de fazendeiros a aacutegua eacute a sua bebida ordinaacuteria (SAINT-HILAIRE 1938 p 186-187)

Na percepccedilatildeo de Magalhatildees (2004) natildeo houve alteraccedilotildees importantes

na comida mineira ao longo dos anos na regiatildeo onde se iniciou a mineraccedilatildeo

Feijatildeo farinha de milho fubaacute e arroz continuaram a ser alimentos baacutesicos

Sobre as quitandas Frieiro (1982 p 166) e Abdala (2007 p 99) citam

o consumo comum dos biscoitos de polvilho assados ou fritos broas pamonhas

brevidades roscas sequilhos bolos broinhas de fubaacute de amendoim e matildees-

bentas As quitandas eram fundamentais nas aacutereas rurais Em funccedilatildeo da

distacircncia das cidades era preciso estar prevenido para a chegada de alguma

visita e para atender agrave famiacutelia diariamente O patildeo de queijo atualmente a

quitanda quase ldquosiacutembolordquo de Minas Gerais foi introduzida apenas em iniacutecio do

seacuteculo XX Natildeo haacute uma data precisa de seu surgimento mas como os autores

apontam o queijo passou a ser produzido para aproveitar as sobras do leite

Segundo Abdala (2007) os viajantes europeus que estiveram em Minas no

seacuteculo XIX relataram a raridade de queijo e manteiga nos menus locais Para a

14 Segundo Omegna (1961 apud FRIEIRO 1982) a parcela mais pobre e livre de Minas Gerais nunca

rejeitou o angu e nem a farinha de milho preferindo-o agrave mandioca Mas o mesmo natildeo se observava em outras regiotildees do Paiacutes justamente por ser comida prioritaacuteria para os escravos e assim optavam pela farinha de mandioca Essa era uma maneira de natildeo se igualar aos escravos

35

autora a introduccedilatildeo do queijo no biscoito de polvilho dando origem ao patildeo de

queijo surgiu justamente no periacuteodo de fartura alimentar quando se utilizava o

excedente para criar diversos pratos Na regiatildeo que pesquisei o patildeo de queijo

natildeo eacute uma quitanda tradicional e raramente eacute consumida

O que se percebe ao final deste capitulo eacute que a alimentaccedilatildeo baacutesica foi

a mesma em Minas desde o periacuteodo da mineraccedilatildeo A ruralizaccedilatildeo ampliou a

produccedilatildeo de alimentos para abastecimento interno e venda do excedente houve

o incremento de algumas produccedilotildees como cafeacute leite accediluacutecar e seus derivados

mas isso natildeo representou novidade em termos de consumo Percebe-se que os

haacutebitos alimentares permaneceram ao longo dos seacuteculos XVIII XIX e pelo

menos ateacute o iniacutecio do XX Os alimentos destacados como os baacutesicos pelos

autores citados aqui satildeo aqueles que atualmente ainda satildeo encontrados nas

receitas consideradas como mais tradicionais da cozinha mineira embora muitas

e dessas receitas sugiram algumas substituiccedilotildees como oacuteleo vegetal no lugar da

banha accediluacutecar cristal no lugar da rapadura ou do melado fermento quiacutemico no

lugar do bicarbonato de soacutedio etc

No capiacutetulo 5 seraacute possiacutevel observar se esses alimentos presentes na

regiatildeo de mineraccedilatildeo em Minas Gerais satildeo ainda adotados pelas famiacutelias rurais

entrevistadas e se existem relaccedilotildees da comida consumida na ocasiatildeo da

pesquisa com a comida do passado

36

3 ALIMENTACcedilAtildeO E CULTURA PERMANEcircNCIAS E TRANSFORMACcedilOtildeES

ldquoComer natildeo envolve apenas a natureza e a cultura Situa-se entre a natureza e a cultura Participa de ambas Tem muito a ver com a primeira e tambeacutem com a segundardquo

(Paolo Rossi 2014)

Apresento neste capiacutetulo a base conceitual e argumentativa da pesquisa

e os principais autores envolvidos com as abordagens contidas neste trabalho

O item 31 tem por objetivo apontar o lugar da alimentaccedilatildeo nas principais

anaacutelises das ciecircncias sociais e da histoacuteria Basicamente trecircs disciplinas

compotildeem as discussotildees presentes neste estudo e se complementam durante o

percurso a Antropologia a Sociologia e a Histoacuteria O item 32 traz a discussatildeo

existente em torno de sistema alimentar e suas relaccedilotildees com as praacuteticas

alimentares O item 33 analisa as diferenccedilas atribuiacutedas entre alimento e comida

na abordagem cultural e simboacutelica das praacuteticas alimentares inserindo a

importacircncia social e cultural do fogo no ato alimentar as dinacircmicas de

comensalidade as praacuteticas alimentares adotadas na contemporaneidade em

suas conexotildees com o tradicional e o moderno O item 34 discute as

possibilidades de permanecircncia ou extinccedilatildeo das praacuteticas tradicionais no contexto

alimentar contemporacircneo O item 35 discute o tradicional e o moderno no

contexto das dinacircmicas alimentares no meio rural e o item 36 trata do papel

feminino nas praacuteticas alimentares na famiacutelia

31 A alimentaccedilatildeo como categoria de estudo multidisciplinar contribui-ccedilotildees da antropologia da sociologia e da histoacuteria

Em importante artigo sobre as balizas historiograacuteficas da alimentaccedilatildeo

Meneses e Carneiro (1997) destacam os enfoques das diversas aacutereas neste

campo que satildeo bioloacutegico econocircmico social cultural e filosoacutefico Importa-nos

sobretudo aquelas referecircncias das ciecircncias sociais e da histoacuteria Para aqueles

autores a antropologia eacute a que mais daacute atenccedilatildeo a este tema e eacute a responsaacutevel

pela maior quantidade de informaccedilotildees a respeito Citam como principais

contribuiccedilotildees iniciais as obras de Claude Leacutevi-Strauss Marshall Sahlins Mary

Douglas entre outros

37

Os antropoacutelogos desde o seacuteculo XIX se empenharam em desenvolver uma etnografia sistemaacutetica dos haacutebitos alimentares e em buscar interpretaacute-los culturalmente A primeira fase da antropologia caracterizou-se por um comparativismo das diferentes tradiccedilotildees culturais A anaacutelise dos tabus onde se destacam os alimentares foi desde os primoacuterdios da Antropologia Cultural um terreno feacutertil para especulaccedilotildees sobre o significado simboacutelico da alimentaccedilatildeo (MENESES CARNEIRO 1997 p 19)

O socioacutelogo e antropoacutelogo brasileiro Gilberto Freyre jaacute em 1926 em seu

ldquoManifesto Regionalistardquo discute ainda que de forma pouco aprofundada sobre

a funccedilatildeo do accediluacutecar no Brasil Mas foi com sua obra publicada em 1939 em que

trata especificamente de uma sociologia do doce ao recolher receitas que eram

guardadas a sete chaves pelas mulheres e que eram repassadas de matildees para

filhas que o autor pode considerado como o precursor do mais importante

trabalho sobre o accediluacutecar Assunto que retoma mais tarde em ldquoCasa-Grande e

Senzalardquo publicado em 1964

O papel das ciecircncias sociais principalmente a contribuiccedilatildeo da

antropologia para os estudos da alimentaccedilatildeo eacute detalhadamente tratado por

Garciacutea (2009) Este autor aponta que apesar de o tema da alimentaccedilatildeo ter sido

importante para os antropoacutelogos desde os primoacuterdios ndash que registraram em seus

cadernos de campo os modos de comer de elaborar a comida e ainda os

principais alimentos consumidos pelos grupos estudados ndash o ano de 1968 eacute

considerado como sendo o iniacutecio aproximado dos estudos voltados mais

especificamente para a antropologia da alimentaccedilatildeo ou seja quando a

abordagem da comida como cultura passa a ser analisada de forma mais

institucionalizada pela antropologia ldquoCuando se fijen de manera clara las dos

maacutes potentes aproximaciones a la Antropologiacutea de la Alimentacioacuten el

estructuralismo y el materialismordquo (p 26) Sua observaccedilatildeo coincide com o

afirmado por Meneses e Carneiro (1997 p 20) de que ldquosomente nas deacutecadas

de 1960 e 1970 na voga do estruturalismo eacute que os estudos antropoloacutegicos

sobre alimentaccedilatildeo deslancham e se define um padratildeo de anaacutelise culturalrdquo

Garciacutea (2009) justifica ainda a fixaccedilatildeo da data de 1968 por este ser o ano da

primeira publicaccedilatildeo do terceiro volume da seacuterie ldquoMitoloacutegicasrdquo de Claude Leacutevi-

Strauss As Origens dos Modos agrave Mesa

Nesta obra Leacutevi-Strauss republicou o artigo ldquoO triacircngulo culinaacuteriordquo onde

apresenta seu entendimento sobre o fato alimentar e defende que a cozinha de

38

uma sociedade eacute uma linguagem inconsciente de sua estrutura Voltaremos a

este artigo mais agrave frente Em ldquoAs origens dos modos agrave mesardquo (Mitoloacutegicas 3)

assim como em ldquoDo mel agraves cinzas (Mitoloacutegicas 2)rdquo Leacutevi-Strauss analisa o que

chama de ldquoentornos e contornosrdquo da alimentaccedilatildeo A diferenccedila eacute que em

ldquoMitoloacutegicas 3rdquo ele analisa como os modos agrave mesa o uso de receitas e os modos

de preparaccedilatildeo em diferentes povos estatildeo conectados ao lado cultural e como

esses aspectos complementam o lado bioloacutegico que eacute o processo de ingestatildeo e

digestatildeo alimentar

Na deacutecada de 1970 Claude Fischler socioacutelogo e antropoacutelogo francecircs

passa a dar ecircnfase em seus estudos ao tema da alimentaccedilatildeo e desenvolve

importante trabalho sobre o accediluacutecar e seus aspectos de efeito simboacutelico e

bioloacutegico Como jaacute visto Gilberto Freyre (1939) trabalhou esta temaacutetica e sua

influecircncia no Brasil Depois de Claude Fischler Sidney Mintz de mesma

formaccedilatildeo acadecircmica tambeacutem publicou trabalhos sobre o accediluacutecar em 1986

analisando sobretudo as relaccedilotildees de poder existentes nesse tipo de produccedilatildeo

na regiatildeo caribenha Neste contexto seu trabalho inseriu o tema da alimentaccedilatildeo

na economia poliacutetica global Mas Sidney Mintz analisou tambeacutem o poder de

atraccedilatildeo de consumo do accediluacutecar e seu uso na culinaacuteria Sobre esse tema publicou

ldquoSweetness and Power The place of sugar in modern Historyrdquo e em Portuguecircs

foi publicado em 2003 o livro ldquoO Poder amargo do accediluacutecar produtores

escravizados consumidores proletarizadosrdquo

Voltando a Claude Fischler ainda na deacutecada de 1970 organizou a

coletacircnea La nourriture ndash Pour une anthropologie bioculturelle de lrsquoalimentation

Mas eacute na deacutecada de 1990 que publica seu mais importante trabalho

Lrsquohomnivore onde discute as transformaccedilotildees ocorridas nas sociedades

ocidentais modernas no campo da alimentaccedilatildeo e seus efeitos na vida das

pessoas

Tambeacutem entre as deacutecadas de 1970 e 1990 quem se destaca neste

campo eacute o antropoacutelogo americano Marvin Harris Seus estudos no campo da

alimentaccedilatildeo enfatizam sobretudo os enigmas culturais buscando explicar as

reaccedilotildees a alguns mitos e tabus alimentares Assim suas publicaccedilotildees mais

importantes foram ldquoVacas Porcos Guerras e Bruxas Os enigmas da Culturardquo

(1978) Bueno para comer enigmas de alimentacioacuten y cultura (1985) ldquoCanibais

e Reisrdquo (1990) Sobre o tema dos tabus alimentares outras importantes

39

contribuiccedilotildees satildeo as dos antropoacutelogos Mary Douglas sobretudo com a obra

ldquoPureza e Perigordquo publicada pela primeira vez em 1966 e Marshal Sallins com

a obra ldquoCultura e Razatildeo Praacuteticardquo publicada originalmente em 1976 Mary

Douglas e Marshal Sallins tecircm uma anaacutelise para os tabus alimentares que difere

da de Marvin Harris que opta pelo determinismo ecoloacutegico para justificar a razatildeo

de alguns grupos como os judeus em natildeo comer alguns alimentos como carne

de porco por exemplo No livro ldquoVacas Porcos Guerras e Bruxas ndash o enigma

da culturardquo ele defende que a Biacuteblia e o Alcoratildeo condenaram o consumo do

porco natildeo por razotildees espirituais de pecado ou impureza mas ldquoporque a sua

criaccedilatildeo constituiacutea uma ameaccedila agrave integridade dos ecossistemas culturais e

naturais baacutesicos do Oriente Meacutediordquo (HARRIS 1978 p 39) Aleacutem disso Harris

aponta que por ter uma alimentaccedilatildeo parecida com a dos humanos ou seja

viverem soltos nos bosques e se alimentarem de castanhas frutas tubeacuterculos e

cereais os porcos representavam uma disputa por comida Jaacute Mary Douglas e

Sallins defendem que a razatildeo para o natildeo consumo de porco se daacute por razotildees

simboacutelicas e religiosas Mary Douglas em ldquoPureza e Perigordquo recorre ao livro

biacuteblico de Leviacuteticos no Velho Testamento para justificar sua percepccedilatildeo Neste

livro haacute uma recomendaccedilatildeo expliacutecita aos judeus sobre os animais que podem

e que natildeo podem ser comidos divididos entre animais limpos e animais imundos

Assim eram considerados limpos e liberados para comer dentre os

quadruacutepedes os que tem unhas fendidas e divididas em dois e que rumina O

porco por natildeo ruminar eacute considerado imundo e proibido Aleacutem disso nada mais

eacute falado a respeito do porco no livro de Leviacutetico Assim a autora defende que os

judeus cumprem o mandamento apenas por razatildeo religiosa e nada tem a ver

com a questatildeo utilitaacuteria ou da disputa pela comida como alegado por Marvin

Harris Sallins em ldquoCultura e Razatildeo Praacuteticardquo compartilha de forma semelhante

a ideia de Mary Douglas ao tratar sobre os haacutebitos alimentares relativos agrave carne

dos americanos do Norte o que seraacute detalhado mais agrave frente

Outro autor importante no campo da alimentaccedilatildeo eacute o socioacutelogo inglecircs

Stephen Mennell Segundo Meneses e Carneiro (1997) na deacutecada de 1980

Mennell buscou investigar os usos sociais da domesticaccedilatildeo da natureza pela

cultura antes mesmo de Claude Leacutevi-Strauss analisando como se datildeo os

modos que lsquocivilizam o apetitersquo e publicou ldquoAll Manners of Food Eating and Taste

in England and France from the Middle Ages to the Presentrdquo (1996) Foi Mennell

40

ainda quem desenvolveu primeiramente estudos sobre as ldquocozinhas identitaacuteriasrdquo

sobre a valorizaccedilatildeo da cozinha nacional da Inglaterra e os ldquoestilos nacionais de

comerrdquo

Contreras e Gracia (2011 p 29) sugerem como objeto para a

antropologia da alimentaccedilatildeo ldquoo conjunto de representaccedilotildees crenccedilas

conhecimentos e praacuteticas herdadas eou aprendidas que estatildeo associadas agrave

alimentaccedilatildeo e satildeo compartilhadas pelos indiviacuteduos de uma dada cultura ou de

um grupo social determinadordquo

No acircmbito da sociologia segundo Meneses e Carneiro (1997) as

questotildees de gecircnero na divisatildeo social do trabalho domeacutestico e ainda gecircnero e

comida foram os que mais atraiacuteram as pesquisas iniciais Sobre este tema

Mabel Garcia Arnaiacutez (1996) antropoacuteloga espanhola a quem recorremos em

vaacuterios momentos neste trabalho destaca em seu estudo sobre os paradoxos da

alimentaccedilatildeo contemporacircnea as importantes contribuiccedilotildees de Mennell (1996) de

Murcott (1983) Pynson (1987) e Kaplan (1980)

Meneses e Carneiro (1997 p 24) mencionam que o tema da

comensalidade tambeacutem foi evidenciado a partir da deacutecada de 1970 ldquoOs estudos

nesta aacuterea se orientaram para a refeiccedilatildeo como instituiccedilatildeo social sua natureza e

funcionamento seus iacutecones ndash como a mesardquo Mais recentemente abrange

fortemente os estudos sobre os efeitos da tecnologia alimentar que propiciou o

haacutebito de comer fora de casa e o surgimento dos Fast food Em sua obra estes

autores citam os trabalhos de Stephen Mennel (1996) Anne Murcott (1983)

Harvey Levenstein (1988) Claude Fischler (1988)

Ao falar em comensalidade natildeo podemos deixar de citar a contribuiccedilatildeo

dada por Norbert Elias (2011) sobre as transformaccedilotildees nas normas de

comportamento social incluindo os modos agrave mesa na sociedade europeia a

partir do final da Idade Meacutedia Nesta obra cuja primeira publicaccedilatildeo ocorreu em

1939 o autor nos leva a descobrir como foram reproduzidas socialmente

algumas regras de boas maneiras de conviacutevio na sociedade e que tambeacutem se

refletem na comensalidade como por exemplo natildeo comer com as matildeos natildeo

colocar os peacutes sobre a mesa como usar os talheres a mesa natildeo falar de boca

cheia entre outras regras O que pode parecer superficialmente uma descriccedilatildeo

fuacutetil sobre coacutedigos de etiqueta social eacute na verdade uma anaacutelise interessante do

quanto aquilo que parece ser natural atualmente nada tem de natural pois satildeo

41

regras que foram sendo aprendidas agrave medida que o homem foi avanccedilando nos

estaacutegios de civilizaccedilatildeo ocidental O autor nos mostra o quanto foi delicado e difiacutecil

para o homem da cultura ocidental se tornar civilizado ao longo do processo

histoacuterico pois o civilizar-se envolvia a mudanccedila ldquoobrigatoacuteriardquo de comportamento

Em seu livro O Processo Civilizador ele se refere agrave sociedade europeia mas

principalmente agrave Franccedila e agrave Alemanha

No vieacutes da sociologia e da antropologia ocorre uma mudanccedila de

interesse no campo dos estudos sobre alimentaccedilatildeo que se observa a partir da

deacutecada de 1990 segundo Meneses e Carneiro (1997 p 20) deslocando-se o

interesse dos tabus para enfocar as ldquopraacuteticas culturais nos processos de

aculturaccedilatildeo e na identidade culturalrdquo

Eacute importante destacar a observaccedilatildeo feita por Contreras e Gracia (2011)

de que tem sido cada vez maior o nuacutemero de autores contemporacircneos que natildeo

fazem distinccedilatildeo nos enfoques disciplinares entre a antropologia e a sociologia

da alimentaccedilatildeo

Ainda natildeo estaacute bem definida a sucessatildeo de paradigmas dentro da antropologia e da sociologia da alimentaccedilatildeo pois a cada uma das correntes foram vinculados trabalhos sobre diferentes aspectos alimentares sem que necessariamente se tenha produzido um questionamento ou uma invalidaccedilatildeo decisiva das aproximaccedilotildees perguntas ou respostas anteriores Poreacutem dentro desse acircmbito de estudo encontramo-nos em uma fase de tentativas e erros ainda que jaacute se comece a definir um nuacutecleo teoacuterico soacutelido que conte com um miacutenimo de generalizaccedilotildees e de hipoacuteteses que podem ser organizadas em um programa teoacuterico comum cujo nuacutecleo consiste em defender a ideia de lsquosistema alimentarrsquo sem desconsiderar contudo a diversidade de definiccedilotildees e atribuiccedilotildees que tal sistema tem recebido (CONTRERAS GRACIA 2011 p 30)

Garciacutea (2009) defende que para a antropologia da alimentaccedilatildeo o

interesse estaacute em encontrar a loacutegica do significado social e cultural da comida

revelando como ela pode classificar accedilotildees pessoas espaccedilos e tempos e

correlacionar essas classificaccedilotildees e seus significados Jaacute na sociologia da

alimentaccedilatildeo o foco estaacute no espaccedilo social da comida as transformaccedilotildees

contemporacircneas e a evoluccedilotildees da comensalidade

Outros autores contemporacircneos utilizados como referecircncia nesta

pesquisa nos campos tanto da antropologia quanto da sociologia da

alimentaccedilatildeo satildeo Jean Pierre Poulain que eacute socioacutelogo e antropoacutelogo francecircs

Esse autor conduz estudos e pesquisas sobre comida cultura e sauacutede nas

42

universidades de Toulouse (Franccedila) e Taylor (Malaacutesia) Autor de ldquoSociologias da

Alimentaccedilatildeordquo e ldquoDictionnaire des cultures alimentairesrdquo entre outros Mabel

Gracia Arnaiz eacute antropoacuteloga e pesquisadora da universidade de Rovira e Virgili

na Espanha e membro da Comissatildeo Internacional da Antropologia da

Alimentaccedilatildeo Sua linha de investigaccedilatildeo cientiacutefica envolve estudos socioculturais

da alimentaccedilatildeo sauacutede e gecircnero Autora das obras ldquoAlimentacioacuten salud y cultura

encuentros interdisciplinaresrdquo ldquoParadojas de la alimentacioacuten contemporacircneardquo e

mais recentemente em 2015 publicou ldquoComemos lo que somos Reflexiones

sobre cuerpo geacutenero y saludrdquo Tambeacutem antropoacutelogo e pesquisador na Espanha

Jesuacutes Contreras eacute diretor do ldquoObservatorio de la Alimentacioacuten - ODELA)rdquo autor

de ldquoSubsistencia ritual y poder en los Andesrdquo e ldquoAlimentacioacuten y cultura

necesidades gustos y costumbresrdquo Richard Wranglam eacute um pesquisador inglecircs

que atua na aacuterea de antropologia fiacutesica e primatologia Sua importante

contribuiccedilatildeo para os estudos da alimentaccedilatildeo eacute o livro ldquoPegando Fogordquo em que

aponta a importacircncia do fogo para a transformaccedilatildeo da comida de natureza em

cultura e para a promoccedilatildeo da sociabilidade humana Igor de Garine eacute um

antropoacutelogo francecircs que pesquisa sobre comida e tradiccedilatildeo comida e identidade

comida e industrializaccedilatildeo Autor de ldquoLes Changements des habitudes et des

politiques alimentaires en Afrique Aspects des sciences humaines naturellesrdquo e

Social Aspects of Obesity (Culture and Ecology of Food and Nutrition Por fim

Michael Pollan que eacute americano e apesar de sua importante contribuiccedilatildeo

contemporacircnea sobre comida e cultura o que o tem feito despontar na miacutedia

sobre o assunto sua formaccedilatildeo acadecircmica eacute o jornalismo Autor de ldquoO Dilema do

Oniacutevorordquo e ldquoCozinhar uma histoacuteria natural da transformaccedilatildeordquo e outros

As referecircncias de artigos de publicaccedilatildeo internacional dos referidos

autores e outros que utilizei nesta pesquisa fazem parte do banco de dados do

ldquoObservatoire Cniel des Habitudes Alimentaires15rdquo e do ldquoObservatorio de la

Alimentacioacuten (ODELA)rdquo16

Dentre os brasileiros na aacuterea da alimentaccedilatildeo e cultura abordados nesta

pesquisa aleacutem dos claacutessicos trabalhos de Gilberto Freyre e Cacircmara Cascudo

jaacute citados estatildeo os seguintes autores Renata Menasche cujas pesquisas satildeo

mais centradas na alimentaccedilatildeo e consumo no meio rural e patrimocircnio alimentar

15 Site de acesso httpwwwlemangeur-ochacomconnexion 16 Site de acesso httpwwwodelaorglang=es

43

focadas na regiatildeo sul do Brasil Desta autora encontrei avaliando o periacuteodo 2005

a 2015 26 artigos em perioacutedicos envolvendo os temas relacionados acima (como

autora e coautora) 07 deles estatildeo inscritos no portal de perioacutedicos da CAPES

e tambeacutem eacute importante citar dois livros organizados pela autora ldquoA Agricultura

Familiar agrave Mesa saberes e praacuteticas da alimentaccedilatildeordquo publicado em 2007 e

ldquoDimensotildees socioculturais da alimentaccedilatildeordquo publicado em 2012 Maria Eunice

Maciel tambeacutem pesquisa o sul do Brasil em um vieacutes mais geral da comida e

cultura menos voltado ao rural do que a pesquisadora anterior Desta autora

encontrei 08 artigos em perioacutedicos quase todos eles voltados agrave estudos no sul

do Brasil 02 deles inscritos no portal de perioacutedicos da CAPES Ellen Woortmann

pesquisadora de Brasiacutelia cujas pesquisas em alimentaccedilatildeo concentram-se

sobretudo em memoacuteria e patrimocircnio alimentar e aspectos de gecircnero e

alimentaccedilatildeo Seu artigo mais recente na aacuterea de antropologia da comida

publicado em perioacutedico eacute ldquoA comida como linguagemrdquo Carlos Alberto Doacuteria

antropoacutelogo por meio da publicaccedilatildeo de dois recentes livros ldquoFormaccedilatildeo da

Culinaacuteria Brasileirardquo e ldquoe-Boca Livrerdquo Raul Lody tambeacutem antropoacutelogo Sua

publicaccedilatildeo recente mais importante para o campo da alimentaccedilatildeo eacute ldquoBrasil Bom

de Bocardquo Seus estudos tecircm sido mais concentrados na discussatildeo de patrimocircnio

e regionalismo alimentar Jaacute o antropoacutelogo Roberto DaMatta embora natildeo

pesquise especificamente sobre antropologia e comida possui importantes

trabalhos claacutessicos sobre essa temaacutetica e os quais utilizei nesta pesquisa Outras

importantes contribuiccedilotildees brasileiras satildeo as de Mocircnica Abdala Eduardo Frieiro

e Socircnia Maria de Magalhatildees com trabalhos sobre alimentaccedilatildeo com foco em

Minas Gerais de abordagens principalmente histoacutericas No periacuteodo de 2000 a

2015 encontrei 08 artigos de autoria e coautoria de Mocircnica Abdala sobre o tema

da comida e cultura

A leitura de alguns trabalhos dos autores destacados acima foi

fundamental para minha compreensatildeo quanto agrave necessidade de relativizar o

tema da alimentaccedilatildeo conhecer as experiecircncias conduzidas por eles e

correlaciona-las com a discussatildeo pretendida na minha pesquisa As anaacutelises

conduzidas pelos autores convidam agrave reflexatildeo sobre os significados da comida

e do comer na sociedade contemporacircnea Foi possiacutevel perceber que existem

lacunas nas discussotildees sobre a antropologia e sociologia da alimentaccedilatildeo no

Brasil sobretudo no que se refere aos estudos voltados para as populaccedilotildees

44

rurais Como o Brasil eacute constituiacutedo culturalmente de vaacuterios rurais variadas

tambeacutem satildeo as relaccedilotildees simboacutelicas com a comida e merecem ampliaccedilatildeo nos

estudos para que seja possiacutevel alcanccedilar toda a sua complexidade

Eacute importante destacar que as pesquisas nas aacutereas da sociologia e da

antropologia da alimentaccedilatildeo no Brasil ainda satildeo muito recentes apesar das

tradicionais obras jaacute citadas de Gilberto Freyre e Cacircmara Cascudo Em

levantamento feito no banco de teses da CAPES e da base do curriacuteculo lattes

dos docentes citados acima foi possiacutevel verificar que a maioria dos trabalhos no

tema da antropologia e sociologia da alimentaccedilatildeo estatildeo vinculados a programas

de poacutes-graduaccedilatildeo na aacuterea de Antropologia Social As teses e dissertaccedilotildees

concluiacutedas pertencentes aos programas nos quais alguns dos pesquisadores

citados acima atuam totalizam 11 dissertaccedilotildees de mestrado e 04 teses de

doutorado iniciadas a partir de 2007 e concluiacutedas ateacute 2013

Em relaccedilatildeo agraves pesquisas mais recentes no Brasil em levantamento feito

no banco de perioacutedicos da Capes ndash ao utilizar termos de busca sobre o tema de

interesse desta pesquisa ndash encontrei as seguintes informaccedilotildees a respeito de

publicaccedilotildees no periacuteodo de 2005 a 2015 Sobre ldquoalimentaccedilatildeo e culturardquo 07

artigos Sobre ldquocomida e culturardquo 02 artigos Sobre ldquoalimentaccedilatildeo e meio ruralrdquo

08 artigos sendo que 06 deles se referem ao ldquoPrograma de Aquisiccedilatildeo de

Alimentos (PAA)rdquo que natildeo eacute objeto de interesse da minha pesquisa Sobre

ldquoalimentaccedilatildeo e consumordquo 12 artigos sendo que a maior parte estaacute relacionada

aos aspectos nutricionais e fisioloacutegicos e natildeo de abordagem antropoloacutegica ou

socioloacutegica

Para as anaacutelises referentes ao campo da alimentaccedilatildeo e mundo rural

brasileiro destacando a cultura modos de vida e a influecircncia dos sistemas

alimentares contemporacircneos no contexto das novas ruralidades os autores que

trazem importantes contribuiccedilotildees a este trabalho satildeo Maria de Nazareth Baudel

Wanderley Joseacute Graziano da Silva Alfio Brandenburg Antocircnio Cacircndido Carlos

Rodrigues Brandatildeo Joseacute de Souza Martins Seacutergio Schneider e Maria Joseacute

Carneiro

Neste capiacutetulo a aacuterea da histoacuteria desempenha papel menos central do

que a antropologia e a sociologia Interessa-nos dessa disciplina sobretudo os

registros que auxiliem a pensar a perspectiva cultural da alimentaccedilatildeo ponto

central deste trabalho

45

Dentre os autores em quem buscamos as contribuiccedilotildees nesse sentido

estatildeo Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari Nas uacuteltimas trecircs deacutecadas eles

tecircm trazido importantes contribuiccedilotildees para a compreensatildeo da histoacuteria da

alimentaccedilatildeo sobretudo a histoacuteria da alimentaccedilatildeo na Europa A obra mais

importante que resultou da junccedilatildeo dos dois trata de um volumoso livro de 885

paacuteginas organizado por eles que reuniu vaacuterios pesquisadores da aacuterea com

enfoques diferentes sobre a alimentaccedilatildeo na histoacuteria O livro ldquoA Histoacuteria da

Alimentaccedilatildeordquo que foi publicado em 1996 possui um recorte temporal dividido em

sete partes 1 Preacute-histoacuteria e primeiras civilizaccedilotildees 2 O mundo claacutessico 3 Da

antiguidade tardia agrave alta idade meacutedia 4 Os ocidentais e os outros 5 Plena e

baixa idade meacutedia 6 Da cristandade ocidental agrave Europa dos Estados 7 A eacutepoca

contemporacircnea Para a presente pesquisa interessa sobretudo a seacutetima e

uacuteltima parte que trata da alimentaccedilatildeo contemporacircnea e nela dois capiacutetulos o

que discute ldquoas transformaccedilotildees do consumo alimentarrdquo e ldquoa emergecircncia das

cozinhas regionaisrdquo Nesta obra estatildeo presentes artigos de historiadores mas

tambeacutem de antropoacutelogos e socioacutelogos da alimentaccedilatildeo

Tambeacutem pesquisei e fiz uso de registros importantes da histoacuteria da

alimentaccedilatildeo presentes na coleccedilatildeo organizada por Philippe Ariegraves e Georges

Duby ldquoHistoacuteria da Vida Privadardquo bem como da coleccedilatildeo organizada por Fernando

A Novais Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Tais coleccedilotildees foram organizadas

por diversos autores de acordo com os volumes Utilizei trabalhos histoacutericos

dessa coleccedilatildeo nas discussotildees sobre o fogo comensalidade e sociabilidades que

ocorrem no espaccedilo da cozinha

Inclui-se ainda as anaacutelises do espanhol L Jacinto Garciacutea e seu livro

ldquoUna Historia Comestible homiacutenidos cocina cultura y ecologiardquo e ainda Brillat-

Savarin em ldquoA Fisiologia do Gostordquo Recorri com frequecircncia nesta pesquisa a

Luce Giard historiadora francesa Sua importante contribuiccedilatildeo para os estudos

da alimentaccedilatildeo estaacute no v 2 da obra de Michel De Certeau ldquoA Invenccedilatildeo do

Cotidiano II ndash Morar cozinharrdquo

Daniel Roche historiador social e cultural tambeacutem francecircs escreveu

sobre a cultura material francesa do seacuteculo XVIII Sua contribuiccedilatildeo para a histoacuteria

da alimentaccedilatildeo encontra-se no livro ldquoHistoacuteria das Coisas Banaisrdquo publicado

originalmente em 1997 em que trata do nascimento do consumo nos seacuteculos

XVII ao XIX Ao descrever aspectos cotidianos modos de vida comportamentos

46

e o funcionamento das sociedades da eacutepoca que passava por transformaccedilotildees

o autor mostra a famiacutelia como a unidade fundamental de produccedilatildeo e consumo

tanto na aacuterea rural quanto na urbana e isso se refletiu nas praacuteticas e haacutebitos

alimentares Um capiacutetulo do livro eacute dedicado agrave alimentaccedilatildeo como cultura e como

necessidade fisioloacutegica em uma eacutepoca em que obter a alimentaccedilatildeo era a

principal preocupaccedilatildeo das famiacutelias

Na histoacuteria da alimentaccedilatildeo brasileira as referecircncias mais importantes

que percorremos se referem aos trabalhos do historiador e tambeacutem folclorista

Luiacutes da Cacircmara Cascudo Suas obras nesta linha satildeo Histoacuteria da Alimentaccedilatildeo

no Brasil e Antologia da Alimentaccedilatildeo no Brasil Recorremos tambeacutem agrave vasta

contribuiccedilatildeo dada por Gilberto Freyre em ldquoCasa Grande e Senzalardquo e ldquoSobrados

e Mucambosrdquo que assim como Cacircmara Cascudo continuam sendo referecircncia

no campo da histoacuteria da alimentaccedilatildeo no Brasil Importante destacar que os dois

autores natildeo eram formados em curso de histoacuteria jaacute que segundo Silva e Ferreira

(2011) os primeiros cursos superiores de Histoacuteria no Brasil datam da deacutecada

de 1930 na USP no qual Gilberto Freyre lecionava a disciplina de antropologia

Assim os trabalhos de ambos mais do que apenas registros histoacutericos

perpassam fortemente pelas anaacutelises de cunho socioantropoloacutegico

No contexto analiacutetico desta pesquisa em que importa compreender as

mudanccedilas e ou permanecircncias nos haacutebitos alimentares das famiacutelias rurais o

uso do termo ldquosistema alimentarrdquo eacute recorrente Assim importa compreender o

seu significado atribuiacutedo por especialistas na aacuterea de alimentaccedilatildeo e cultura

Passaremos a essa discussatildeo no proacuteximo toacutepico deste capiacutetulo

32 Sistema alimentar17

Poulain (2001) define sistema alimentar como sendo

Lrsquoensemble de regravegles qui reacutesulte de lrsquoorganisation sociale des conceptions relatives au plaisir alimentaire et agrave la santeacute Les modegraveles alimentaires varient drsquoun espace culturel agrave lrsquoautre et au sein drsquoune

17 Nas disciplinas voltadas aos estudos de cunho fisioloacutegico e nutricional da alimentaccedilatildeo o termo adotado

eacute ldquopadratildeo alimentarrdquo Na sociologia e na antropologia da alimentaccedilatildeo utiliza-se principalmente a expressatildeo ldquosistema alimentarrdquo sobretudo na Europa como eacute o caso de Poulain (2001 2003 2013) Contreras e Gracia (2011) Montanari (2008) e Mennell (1996) Jaacute Fischler (1995) que tambeacutem eacute europeu utiliza a expressatildeo ldquosistema culinaacuteriordquo e mais raramente ldquocozinhardquo (cozinha moderna cozinha tradicional cozinha contemporacircnea) poreacutem com o mesmo sentido que o usado pelos outros autores Sistema alimentar eacute tambeacutem utilizado pelos americanos como Harris (2011) Sahlins (2003) Mintz e Dubois (2002)

47

mecircme socieacuteteacute eacutevoluent avec le temps Cette variabiliteacute est rendue possible par le fait que les contraintes biologiques de la meacutecanique physiologique et de lrsquoexploitation des ressources de la nature pegravesent sur les mangeurs18 humains de faccedilon relativement lacircche (POULAIN 2001 p 24)

Para este autor os sistemas alimentares satildeo formados por um conjunto

de conhecimentos tecnoloacutegicos herdados e repassados de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo

que incluem o saber-fazer o gosto as regras e as etiquetas etc Esses

conhecimentos facilitam no processo de escolha dos recursos presentes num

espaccedilo natural e sua transformaccedilatildeo em alimentos para consumo na forma de

pratos atrativos a uma determinada cultura Poulain afirma que esses

conhecimentos se definem concomitantemente como sistemas de coacutedigos

simboacutelicos que retratam os valores de um grupo humano participando da

construccedilatildeo de identidades culturais Na concepccedilatildeo de Poulain (2013) nesse

sistema o alimento estaacute em movimento desde o seu universo de produccedilatildeo

agriacutecola ateacute a chegada ao consumidor sofrendo algumas transformaccedilotildees ao

longo do percurso O sistema alimentar envolve fatores que vatildeo desde os

econocircmicos ateacute os do ambiente domeacutestico quando se adquire alimentos pela

compra ou ainda por meio de cultivo proacuteprio ou criaccedilatildeo de animais ou da pesca

Em um sentido semelhante ao atribuiacutedo por Poulain (2013 e 2014)

Fischler (1979 e 1995) define como sistema culinaacuterio um conjunto de

ingredientes e teacutecnicas que satildeo empregadas na elaboraccedilatildeo de uma refeiccedilatildeo as

combinaccedilotildees e correlaccedilotildees entre os alimentos utilizados e ainda as regras que

envolvem sua escolha preparaccedilatildeo e consumo Atrelados agraves teacutecnicas e aos

ingredientes e consequentemente agraves normas que regem o processo da escolha

ao consumo dos alimentos estatildeo crenccedilas valores siacutembolos representaccedilotildees e

os haacutebitos que satildeo indicadores de cultura de uma sociedade Ou seja normas

essas que estatildeo atreladas ao valor simboacutelico envolvidos no sistema alimentar e

natildeo somente o valor de uso no sentido utilitarista que neste caso seria

secundaacuterio conforme discutido por Sahlins (2003) Afinal como afirma o proacuteprio

Sahlins haacute uma ldquorazatildeo cultural em nossos haacutebitos alimentaresrdquo

Pelas definiccedilotildees dos autores acima percebe-se que as questotildees que

envolvem a alimentaccedilatildeo ou culinaacuteria satildeo estabelecidas pelas caracteriacutesticas e

regras mais ou menos comuns adotadas por grupos de pessoas e pela

18 Termo jaacute explicado na introduccedilatildeo

48

sociedade a qual pertencem Conforme Bourdieu (2007) o gosto que iraacute formar

o haacutebito eacute construiacutedo no convivio familiar e escolar Natildeo por acaso em relaccedilatildeo

agrave comida quase sempre as preferecircncias entre os membros de uma mesma

familia satildeo semelhantes Eacute o gosto tambeacutem que classifica e distingue uma

pessoa de outra um grupo de outro Na formaccedilatildeo do gosto alimentar estatildeo

presentes diferentes aspectos socioculturais que iratildeo inteferir nas escolhas

Embora possa ocorrer o sistema alimentar de um grupo natildeo

necessariamente seraacute adotado por um outro pois ele estaacute ligado agraves questotildees

culturais que em funccedilatildeo de diversos fatores pode gerar uma rejeiccedilatildeo a

determinadas praacuteticas alimentares Um exemplo disso eacute a atribuiccedilatildeo dada a um

determinado alimento ou prato como sendo ldquoexoacuteticordquo poreacutem exoacutetico aos olhos

de quem natildeo estaacute habituado a consumi-lo

Para Helman (1994) eacute a cultura local que assume maior peso no

processo de decisotildees alimentares Eacute ela que primeiramente define as regras

alimentares cabendo-lhe assim determinar

Quem prepara e quem serve o alimento para quem quais indiviacuteduos ou grupos comem reunidos onde e em que ocasiotildees a ingestatildeo do alimento acontece a ordem em que os pratos satildeo servidos dentro de uma refeiccedilatildeo e a maneira como os indiviacuteduos comem Todos esses estaacutegios de ingestatildeo dos alimentos satildeo padronizados rigorosamente pela cultura e constituem uma parte do modo de viver consagrado por aquela comunidade (HELMAN 1994 p 48-49)

Harris (2011) ao tratar da questatildeo lembra que por ser oniacutevora a

espeacutecie humana possui capacidade de ingerir alimentos tanto de origem animal

quanto vegetal Poreacutem por razotildees de adaptabilidade fisioloacutegica alguns

alimentos satildeo descartados do cardaacutepio Jaacute outros mesmo sendo biologicamente

possiacuteveis de ingestatildeo podem ser desprezados por algumas sociedades e

apreciados por outras O autor afirma que as razotildees de apreciaccedilatildeo e rejeiccedilatildeo de

um alimento vatildeo aleacutem da razatildeo fisioloacutegica da digestatildeo Tanto Harris (2011)

quanto Leacutevi-Strauss (1983) apontam que os alimentos rejeitados por razotildees

culturais ou sociais se tornam aceitos para consumo em caso de natildeo haver mais

nada a comer ou seja em caso de fome extrema

Em sentido semelhante Garciacutea (2013) esclarece que homens e animais

tendem a ser conservadores em mateacuteria de gosto embora isso natildeo represente

uma resistecircncia absoluta a experimentaccedilotildees Para o autor a razatildeo dos animais

se daacute por instinto bioloacutegico e a do homem por questotildees culturais Como a

49

formaccedilatildeo do gosto eacute de ordem cultural tambeacutem segundo Bourdieu (2007) isso

faz sentido uma vez que o gosto alimentar apreendido no nuacutecleo familiar

estabelece tambeacutem o haacutebito de cada indiviacuteduo Um haacutebito por ser condicionado

pela cultura eacute mais difiacutecil de ser mudado mas natildeo impossiacutevel pois haacute situaccedilotildees

em que o gosto e consequentemente o haacutebito alimentar podem sofrer

mudanccedilas Essa questatildeo seraacute relativizada mais agrave frente neste trabalho

Neste sentido Garcia (2013) a esclarece que os comportamentos

culturais se formam atraveacutes dos costumes e aprendizados Em geral os seres

humanos preferem o conhecido ao novo ou exoacutetico sobretudo em se tratando

de comida Isso pode estar tanto relacionado ao tipo de alimento como agrave forma

de seu cultivo colheita preparo e armazenamento Um mesmo alimento pode

assumir diferentes sabores e aspectos dependendo da forma como eacute preparado

O peixe tanto pode ser cru na preferecircncia de algumas culturas como pode ser

frito assado ou ensopado e com adiccedilatildeo de temperos e condimentos na

preferecircncia de outras

321 Alimentos aceitos e rejeitados

Esses aspectos dos padrotildees culturais alimentares satildeo tambeacutem tratados

por Sahlins (2003) ao chamar a atenccedilatildeo para o fato de que mesmo o

determinismo cultural de uma sociedade natildeo pode deixar de considerar a

sobrevivecircncia e portanto a continuaccedilatildeo da espeacutecie como por exemplo fazer a

distinccedilatildeo entre alimentos comestiacuteveis e natildeo comestiacuteveis Mas o autor destaca

que haacute uma junccedilatildeo e por isso tambeacutem um conflito entre o aspecto utilitarista

(objetivo) e simboacutelico (subjetivo) na produccedilatildeo e no consumo de produtos Em um

dos capiacutetulos o autor trata do sistema alimentar dos americanos do Norte de

suas preferecircncias alimentares e dos tabus em relaccedilatildeo ao consumo de animais

domeacutesticos Destaca que o aspecto simboacutelico predomina sobre o de ordem

praacutetica Segundo o autor a relaccedilatildeo produtiva estabelecida pela sociedade

americana estaacute pautada no aspecto do que eacute considerado por eles como

comestiacutevel e natildeo comestiacutevel que envolve tanto a exploraccedilatildeo do meio ambiente

quanto as formas de lidar com a terra Neste caso baseado numa relaccedilatildeo em

que ldquoa carne eacute elemento central e os carboidratos e legumes satildeo apoios

perifeacutericos na dietardquo (p 171)

50

A carne como siacutembolo de ldquoforccedilardquo evoca o polo masculino de um coacutedigo social da comida o qual deve originar-se na identificaccedilatildeo indo-europeia do boi ou da riqueza crescente com a virilidade A indispensabilidade da carne como ldquoforccedilardquo e do fileacute como a siacutenteses das carnes viris permanece condiccedilatildeo baacutesica da dieta americana (SAHLINS 2003 p 171)

Segundo o autor o que determina para os americanos qual carne eacute ou

natildeo comestiacutevel eacute a relaccedilatildeo das espeacutecies com a sociedade humana Animais de

estimaccedilatildeo recebem afagos e carinho tem nome proacuteprio diferente da situaccedilatildeo

dos animais para abate Mas essa natildeo eacute uma particularidade dos americanos do

Norte Tambeacutem eacute condiccedilatildeo para outras culturas ainda que os motivos sejam

religiosos como por exemplo na Iacutendia onde o consumo da carne de bovinos eacute

evitado por razotildees religiosas do hinduiacutesmo Os judeus e muccedilulmanos tambeacutem

por motivos religiosos rejeitam a carne de porco que eacute amplamente consumida

na maior parte do ocidente Por outro lado no ocidente eacute praticamente

impensaacutevel a possibilidade de se tomar uma sopa a base de carne de cachorro

alimento relativamente comum ao paladar dos chineses e dos vietnamitas por

exemplo Isso ocorre no ocidente porque catildees satildeo animais de estimaccedilatildeo e

estabelecem relaccedilotildees muito afetivas com os seres humanos vistos como um

membro da famiacutelia conforme aponta Sahlins (2003)

Da mesma forma a carne de cavalo agrada a alguns grupos de regiotildees

francesas belgas e italianas O Brasil natildeo tem por haacutebito consumir a carne de

cavalo apesar de ser um dos maiores exportadores Em meacutedia 15 mil toneladas

por ano19 Segundo Sahlins (2003) durante a crise inflacionaacuteria meteoacuterica nos

Estados Unidos no ano de 1973 foi sugerido pelos governantes que a populaccedilatildeo

adotasse o haacutebito de consumir alimentos mais baratos poreacutem tatildeo nutritivos

quanto a carne de boi (viacutesceras rins coraccedilatildeo) Isso soou como uma afronta para

a populaccedilatildeo A rejeiccedilatildeo pelas viacutesceras se deu por razatildeo socioeconocircmica Para

boa parte da populaccedilatildeo americana comer partes menos nobres do boi seria se

aproximar socialmente de classes mais pobres ldquoA razatildeo para essa repulsa

parece pertencer agrave loacutegica semelhante que recebeu com desagrado algumas

tentativas de substituir a carne bovina por carne de cavalo durante o mesmo

periacuteodordquo (p 172) Em funccedilatildeo disso foi realizado um ato como protesto dos

ldquoapreciadores dos cavalos como animais de estimaccedilatildeordquo

19 httpgrandschefsblogspotcombr201007carne-de-cavalo-o-brasil-e-um-doshtml

51

Tambeacutem eacute exoacutetico para o ocidente o haacutebito da populaccedilatildeo chinesa em

consumir escorpiotildees ratos e uma variedade de insetos Esses alimentos foram

inseridos no cardaacutepio chinecircs em periacuteodo de crise alimentar com o objetivo de

abastecer um paiacutes extremamente populoso Atualmente continuam sendo

consumidos no entanto muito mais como atrativo agrave curiosidade de turistas do

que por necessidade de consumo

Os indiacutegenas da Ameacuterica do Sul possuem o haacutebito de comer alguns

alimentos que os natildeo iacutendios consideram exoacuteticos como por exemplo formigas

larvas de abelhas cupins lagartas besouros etc Em algumas cidades do norte

do Brasil eacute possiacutevel encontrar nas feiras misturas como farofas agrave base de formiga

sauacuteva Eacute interessante ressaltar que um alimento exoacutetico perde essa classificaccedilatildeo

a partir do momento em que passa a agradar ao paladar e a ser consumido sem

aversatildeo a ele Deixando assim de ser exoacutetico para se transformar em familiar

parafraseando DaMatta (1978) Assim o conceito de exoacutetico varia de uma

cultura a outra mas tambeacutem de uma pessoa a outra em uma mesma sociedade

Houve um tempo no Brasil em que comer formiga sauacuteva frita ou tostada

natildeo fazia parte apenas da dieta indiacutegena Relatos de viagem apontam serem

elas importante complemento num periacuteodo de escassez alimentar nas viagens

dos bandeirantes desbravando as Minas Gerais Frieiro (1982) cita documento

da viagem do Conde de Assumar Dom Pedro a Vila Rica em 1717 passando

por Satildeo Paulo quando lhe foi oferecido a ele e agrave sua comitiva formigas sauacutevas

(icaacute) torradas20

Dependendo do contexto o exoacutetico pode ser um emblema de classe e

aqui novamente se insere a argumentaccedilatildeo do gosto como diferenciaccedilatildeo ou

distinccedilatildeo de classes como discutido por Bourdieu (2007) Por exemplo o exoacutetico

considerado ldquochiquerdquo ou ldquogourmetrdquo quando se trata de atribuir status de

consumo e portanto desejado como por exemplo o caviar ou o foie gras Ao

serem aceitos por um perfil de consumidores que aceitam pagar o elevado preccedilo

desses dois produtos eles perderam o status de exoacutetico rejeitaacutevel e passou a

20 Dom Pedro e sua comitiva mais duma vez nos ermos em que pousavam quase passaram fome em

razatildeo do pouco ou quase nada que lhes ofereciam para comer Em Santos e Satildeo Paulo pequenas vilas de algumas centenas de casas o passadio natildeo foi de todo mau Comia-se comumente o que as roccedilas produziam isto eacute milho mandioca feijatildeo e algumas frutas da terra que era o habitual sustento dos paulistas natildeo se comendo carne senatildeo em alguns dias do ano Penetrando no interior com alguns dias de jornada soacute encontraram para cear no rancho dum paulista meio macaco e umas poucas formigas O Conde agradeceu a oferta e comeu (FRIEIRO 1982 p 62)

52

ser visto como um exoacutetico aceitaacutevel assim como jaacute ocorre em boa parte do paiacutes

em relaccedilatildeo agraves comidas japonesas italianas indianas etc que se popularizaram

e jaacute natildeo satildeo mais estranhas ao paladar de boa parte da populaccedilatildeo das aacutereas

urbanas No entanto o exoacutetico popular raramente eacute desejado como a carne de

rato por exemplo consumida pelos chineses mas que no Brasil permanece

sendo rejeitada

Nessa discussatildeo estaacute presente a necessidade de relativizaccedilatildeo da

questatildeo do gosto e do haacutebito alimentar jaacute que apesar de tenderem a ser

tradicionais eacute possiacutevel muda-los ou incorporar novas percepccedilotildees por meio de

significados simboacutelicos (status curiosidade pelo novo para se inserir num

determinado grupo de interesse)

Garciacutea (2009) assim como Harris (2011) estabelece que a correlaccedilatildeo

entre alimentaccedilatildeo e cultura ocorre devido ao fator fisioloacutegico da atividade de

comer estar condicionado culturalmente e isso envolve desde as maneiras de

obtenccedilatildeo dos alimentos ateacute os modos de consumi-los Assim para Garcia

(2009) a escolha dos alimentos se daacute por fatores primeiramente de ordem

cultural e social e em segundo lugar pelas suas qualidades nutricionais e pelo

aspecto econocircmico Nesse sentido o alimento escolhido precisa ser ldquobom para

comerrdquo fazendo uso da expressatildeo utilizada por Harris (2011) ldquoLos alimentos

preferidos (buenos para comer) son aquellos que presentan uma relacioacuten de

costes y benefiacutecios praacutecticos maacutes favorables que los alimentos que se evitan

(malos para comer)rdquo (HARRIS 2011 p 17)

3211 Haacutebitos alimentares orientados por costumes e tradiccedilotildees

Retomando a discussatildeo de Harris (2011) o autor explica que os

costumes culturais e as tradiccedilotildees alimentares de cada sociedade eacute que orientam

os haacutebitos alimentares e essa diversidade deve ser respeitada e valorizada por

aqueles que estudam o tema da alimentaccedilatildeo ldquoComo antropoacutelogo tambieacuten

suscribo el relativismo cultural em mateacuteria de gustos culinarios no se debe

ridiculizar ni condenar los haacutebitos alimentarios por el mero hecho de ser

diferentesrdquo (HARRIS 2011 p 15)

Essa defesa tambeacutem foi feita por Mary Douglas e Ravindra Khare em

1979 quando escreveram uma apresentaccedilatildeo sobre a antropologia da

53

alimentaccedilatildeo no importante perioacutedico ldquoSocial Science Informationrdquo Nesse artigo

as autoras informaram sobre a criaccedilatildeo da ldquocomisioacuten internacional sobre la

antropologia de la alimentacioacutenrdquo A criaccedilatildeo da comissatildeo ocorreu em funccedilatildeo da

necessidade de se discutir as poliacuteticas e estrateacutegias que estavam sendo

desenvolvidas e implementadas nas situaccedilotildees de fome aguda eou crocircnica em

algumas naccedilotildees naquela eacutepoca Pontuaram neste artigo aspectos importantes

que devem ser observados na implantaccedilatildeo de poliacuteticas alimentares para

solucionar a fome Estes aspectos dizem respeito agrave necessidade de se planejar

a soluccedilatildeo de problemas que acometem paiacuteses em situaccedilatildeo de fome que satildeo as

questotildees que envolvem poliacutetica sanitaacuteria e higiene conhecimento de teacutecnicas de

armazenamento e distribuiccedilatildeo mas chamaram a atenccedilatildeo de forma enfaacutetica para

o respeito aos aspectos culturais ldquoHa de basarse em el anaacutelisis de la sociedade

La conviccioacuten de fondo es que los patrones locales de seleccioacuten de alimentos no

pueden ser impuestos sino que dependen de la vida domeacutestica de las ideias

locales sobre processos fisioloacutegicos de divisioacuten de trabajo de horaacuteriordquo

(DOUGLAS KHARE 1979 apud GARCIacuteA 2009 p 30)

Essa argumentaccedilatildeo deixa claro o entendimento diferenciado das autoras

sobre a necessidade da interaccedilatildeo dos antropoacutelogos da alimentaccedilatildeo com

profissionais de outras aacutereas nutricionistas ecologistas economistas

agrocircnomos poliacuteticos e outros atuantes em poliacuteticas sobre o combate agrave fome

para que a cultura alimentar seja respeitada nas intervenccedilotildees sociais Questatildeo

tambeacutem defendida por Valente (2003) ao criticar a limitaccedilatildeo que existe nos

trabalhos isolados em cada especialidade e ao defender a interdisciplinaridade

na elaboraccedilatildeo de projetos porque feitos de forma isolada cada profissional

tende a ver o problema da fome com suas proacuteprias lentes desprezando outras

possibilidades

O profissional da sauacutede ldquoenxergardquo desnutriccedilatildeo e doenccedila e propotildee vacinaccedilatildeo saneamento aleitamento materno etc O agrocircnomo ldquodiagnosticardquo falta de alimentos e propotildee maior produccedilatildeo de alimentos ajuda alimentar etc O educador vecirc ldquoignoracircncia e haacutebitos alimentares inadequadosrdquo e propotildee educaccedilatildeo alimentar Os economistas claacutessicos ldquoidentificamrdquo maacute distribuiccedilatildeo de alimentos e propotildeem uma melhor poliacutetica fiscal geraccedilatildeo de emprego e renda etc Os planejadores diagnosticam ldquofalta de coordenaccedilatildeordquo e propotildeem a criaccedilatildeo de conselhos de alimentaccedilatildeo e nutriccedilatildeo e capacitaccedilatildeo (VALENTE 2003 p 52)

Recentemente a FAOONU (2013) apresentou um projeto em que

propotildee a introduccedilatildeo de insetos como alimentos no combate agrave fome Como

54

justificativa informou que aproximadamente dois bilhotildees de pessoas no mundo

jaacute se alimentam de insetos como besouros lagartas abelhas vespas formigas

gafanhotos grilos cupins libeacutelulas e moscas Agrave praacutetica de se comer insetos da-

se o nome de entomofagia segundo a FAOONU (2013) As justificativas da FAO

estatildeo relacionadas a aspectos de sauacutede pois satildeo altamente nutritivos e ricos em

proteina podendo substituir facilmente em termos nutricionais as carnes de

porco de boi de frango e tambeacutem de peixe aspectos ambientais pois sua

produccedilatildeo gera baixo impacto ao meio ambiente e aspectos relacionados a

fatores econocircmicos e sociais Segundo este oacutergatildeo a criaccedilatildeo de insetos pode vir

a se tornar uma opccedilatildeo de investimento com pouco capital e pode ser importante

fonte de renda e de consumo para camadas mais pobres e populaccedilatildeo sem

acesso agrave propriedade da terra aleacutem de ser uma atividade que natildeo necessita de

tecnologia sofisticada

Sobre isso eacute importante de tecer algumas observaccedilotildees criacuteticas ao

considerar que tal projeto representa um desafio ao propor a inserccedilatildeo de insetos

na dieta em nivel global o que significa tornaacute-la atrativa tambeacutem naquelas

culturas onde satildeo atualmente rejeitadas Todos esses aspectos conduzem a

uma reflexatildeo sobre outro tipo de escolha alimentar que estaacute relacionada agrave

questatildeo de ordem social e econocircmica Ou seja estaacute em pauta se as pessoas

que sofrem de fome aguda ou crocircnica satildeo obrigadas a se adaptar ao exoacutetico se

assim lhes for oferecido em funccedilatildeo de uma poliacutetica puacuteblica ou se isso lhes seria

oferecido como escolha passiacutevel de adoccedilatildeo ou de rejeiccedilatildeo

Tal reflexatildeo remete agraves observaccedilotildees sobre direito agrave liberdade na forma

como eacute tratada por Sen (2000 p 23) ldquoa privaccedilatildeo de liberdade econocircmica pode

gerar a privaccedilatildeo de liberdade social assim como a privaccedilatildeo de liberdade social

da mesma forma pode gerar a liberdade econocircmicardquo O que implica em perda

de acesso e do direito de escolhas inclusive alimentares Portanto acredita-se

que caso esse tipo de alimentaccedilatildeo seja imposta o projeto vai no sentido

contraacuterio ao proposto pela comissatildeo de antropologia da alimentaccedilatildeo citado

acima por Douglas e Khare (1979 apud GARCIacuteA 2009) A imposiccedilatildeo de um

determinado alimento ou o convencimento em adota-lo pode tambeacutem ocorrer

de forma velada utilizando-se campanhas com os grupos locais e ou atraveacutes

da miacutedia como ocorre em relaccedilatildeo a vaacuterios alimentos que passam a ser

55

consumidos sobretudo pelas crianccedilas agrave partir de campanhas publictaacuterias

muitas vezes utilizando-se argumentos apelativos

Certamente essa proposta recente poderaacute ter o debate ampliado nos

proacuteximos anos O que nos interessa aqui eacute sobretudo chamar a atenccedilatildeo para a

inserccedilatildeo de novas praacuteticas alimentares na contemporaneidade Praacuteticas essas

que se mesclam num processo de ampliaccedilatildeo do multiculturalismo alimentar

O proacuteximo item trata da discussatildeo sobre a percepccedilatildeo do alimento como

caracteriacutestica cultural e ainda sobre os reflexos do sistema alimentar

contemporacircneo na vida dos comedores

33 Alimento comida e cultura

Aleacutem de ser uma atitude bioloacutegica a alimentaccedilatildeo assume tambeacutem um

comportamento cultural Discussatildeo jaacute iniciada nos itens anteriores

Bioloacutegica por uma questatildeo de sobrevivecircncia sendo um fator

insubstituiacutevel para a manutenccedilatildeo da vida e condiccedilatildeo sine qua non para todos os

seres humanos Relaciona-se diretamente agrave vitalidade do indiviacuteduo agrave

necessidade fisioloacutegica de ingerir nutrientes capazes de manter o corpo em

funcionamento sendo sob esse aspecto um comportamento relativo agrave natureza

humana O que ingerir e as quantidades a serem ingeridas para suprir as

necessidades variam de uma pessoa para outra de acordo com fatores como

idade altura peso tipo de atividade quadro cliacutenico entre outros

Corresponder a uma atitude natural e de caraacuteter instintivo natildeo torna

necessariamente o ato de alimentar-se como algo consciente sob o aspecto

nutricional porque nem todos os indiviacuteduos conhecem a composiccedilatildeo dos

alimentos e aqueles que conhecem nem sempre pensam a respeito disso ao

realizar as refeiccedilotildees cotidianas aspecto que foi tratado por Harris (2011) e

Garciacutea (2009)

O termo ldquoalimentordquo surgiu segundo Poulain (2013) por volta do ano

1120 mas o seu significado atual somente foi utilizado a partir do seacuteculo XVI

quando passou a substituir a expressatildeo ldquocarnerdquo e esta uacuteltima passou a se referir

apenas agrave carne tal qual a conhecemos ou seja a dos animais comestiacuteveis O

autor explica que anteriormente a expressatildeo ldquocarnerdquo era utilizada para se referir

a tudo o que era bom para manter a vida fossem alimentos caacuterneos ou natildeo

56

Para este autor um alimento deve possuir essas quatro qualidades nutricionais

organoleacutepticas higiecircnicas e simboacutelicas Sobre as simboacutelicas o autor destaca

Para ser um alimento aleacutem das trecircs primeiras caracteriacutesticas de qualidade um produto natural deve poder ser o objeto de projeccedilotildees de significados por parte do comedor Ele deve poder tornar-se significativo inscrever-se numa rede de comunicaccedilotildees numa constelaccedilatildeo imaginaacuteria numa visatildeo de mundo (POULAIN 2013 p 240)

De Garine (1987 p 4) ao resgatar o pensamento de Margaret Mead

destaca que as escolhas alimentares dos seres humanos estatildeo relacionadas agraves

possibilidades de alimentos disponibilizados pelo meio e ao potencial teacutecnico que

possuem

La supervivencia de un grupo humano exige por supuesto que su reacutegimen alimenticio satisfaga las necessidades nutritivas No obstante el nivel de satisfaccioacuten de estas necessidades cuya definicioacuten sigue siendo controvertida variacutea cualitativa y cuantitativamente de una sociedad a otra Tambieacuten cambia en el interior de cada una seguacuten la categoriacutea de edad el sexo el niacutevel econoacutemico y otros criterios (DE GARINE 1987 p 4)

De acordo com Contreras e Gracia (2011) e Woortmann (2007) as

escolhas alimentares que satildeo as formadoras dos haacutebitos se constituem em uma

parte da totalidade cultural Para Contreras e Gracia (2011) pode-se afirmar que

ldquosomos o que comemosrdquo21 tanto no aspecto fisioloacutegico como tambeacutem no

espiritual ao ldquoincorporarrdquo psicossocialmente os elementos culturais daquilo que

ingerimos que pode ser desde elementos ligados agrave espiritualidade como

tambeacutem agrave memoacuteria afetiva Pela mesma razatildeo defendem que ldquocomemos o que

somosrdquo

Comemos aquilo que nos faz bem ingerimos alimentos que satildeo atrativos para os nossos sentidos e nos proporcionam prazer enchemos a cesta de compras de produtos que estatildeo no mercado e na feira e nos satildeo permitidos por nosso orccedilamento servimos ou nos satildeo servidas refeiccedilotildees de acordo com nossas caracteriacutesticas se somos homens ou mulheres crianccedilas ou adultos pobres ou ricos E escolhemos ou recusamos alimentos com base em nossas experiecircncias diaacuterias e em nossas ideias dieteacuteticas religiosas ou filosoacuteficas (CONTRERAS GRACIA 2011 p 16)

21 Conhecido aforismo proferido pelo filoacutesofo alematildeo Ludwig Feuerbach na obra ldquoO misteacuterio do sacrifiacutecio

ou o homem eacute o que ele comerdquo (1862) Tambeacutem Brillat-Savarin escreveu em seu tratado sobre lsquoA Fisiologia do Gostorsquo ldquoDize-me o que comes e te direi quem eacutesrdquo (SAVARIN-BRILLAT 1995 p 15) Os dois aforismos satildeo muito utilizados por aqueles que escrevem sobre alimentaccedilatildeo

57

Em uma percepccedilatildeo semelhante Woortmann (2007) em estudos sobre

dimensotildees sociais da comida entre os camponeses defende a lsquocomidarsquo para

este grupo como sendo uma ldquocategoria cultural nucleante que se articula a

lsquotrabalhorsquo e a lsquoterrarsquo e que as escolhas alimentares que incluem alimentos

proibidos permitidos e os preferidos estatildeo ligadas agraves dimensotildees de gecircnero de

memoacuteria de famiacutelia de identidade de religiatildeo etc

DaMatta (2001 p 56) defende que ldquoo jeito de comer define natildeo soacute aquilo

que eacute ingerido como tambeacutem aquele que ingererdquo Pode-se afirmar portanto que

comer eacute mais do que apenas um ato de sobrevivecircncia eacute tambeacutem um

comportamento simboacutelico e cultural

A diferenccedila entre o alimento como fator bioloacutegico e o alimento como

cultura eacute discutida principalmente por Montanari (2008) Delormier et al (2009)

DaMatta (2001 e 1987) Maciel (2001) Ishige (1987) Silva Mello (1956) Crotty

(1993) De Garine (1987) Cacircmara Cascudo (2004) e Woortmann (1985)

Crotty (1993 apud DELORMIER et al 2009) defende que a praacutetica

alimentar abrange duas acepccedilotildees Aquela posterior agrave ingestatildeo do alimento e que

estaacute relacionada ao universo da biologia (fisiologia e bioquiacutemica) e aquela

anterior agrave ingestatildeo Este uacuteltimo estaacute relacionado agraves questotildees culturais e sociais

ou seja agrave natureza social do comer Segundo a autora no campo da disciplina

da nutriccedilatildeo da-se pouco valor a este uacuteltimo aspecto ateacute mesmo devido aos seus

objetivos teacutecnico-cientiacuteficos Concordando com a percepccedilatildeo de Crotty (1993)

Delormier et al (2009) defendem que natildeo considerar os aspectos sociais e

culturais no campo de interesse representa de certa forma uma limitaccedilatildeo a

qualquer disciplina Estes autores tambeacutem analisam que o processo de escolha

alimentar na maior parte das vezes natildeo se daacute primeiramente pela opccedilatildeo

nutricional mas sim pelas influecircncias do conviacutevio social cotidiano que podem

estar presentes nas relaccedilotildees familiares mas tambeacutem no local de trabalho na

escola e em outros locais de convivecircncia que permitem trocas e ajudam a moldar

as escolhas alimentares dos indiviacuteduos

A atribuiccedilatildeo de status simboacutelico dado ao alimento e ao ato de comer eacute

definida segundo alguns autores pela diferenccedila semacircntica entre ldquocomidardquo e

ldquoalimentordquo DaMatta (1987) ao estudar a comida brasileira defende que toda

substacircncia nutritiva eacute um alimento mas nem todo alimento eacute comida Alimento

aponta o autor eacute universal e geral eacute o que o indiviacuteduo ingere para se manter

58

vivo jaacute a comida ajuda a situar uma identidade e definir um grupo uma classe

uma pessoa ldquoTemos o alimento e temos a comida Comida natildeo eacute apenas uma

substacircncia alimentar mas eacute tambeacutem um modo um estilo e um jeito de alimentar-

serdquo (DAMATTA 2001 p 56) Em uma aproximaccedilatildeo a DaMatta (1987)

Woortmann (1985) aponta ldquocomidardquo como sendo o oposto de mantimento

embora derive dele Pois comida eacute a transformaccedilatildeo do mantimento atraveacutes da

culinaacuteria

Neste sentido comer proporciona uma relaccedilatildeo de intimidade com o ser

humano pois haacute ainda o investimento psicossocial no processo de escolha dos

alimentos O proacuteprio processo de ingerir demonstra a intimidade existente entre

a comida e o corpo considerando que trata daquilo que segundo Mintz (2001

p 31) ldquoeacute colocado para dentro do corpordquo O autor defende que ldquonenhum outro

comportamento natildeo automaacutetico se liga de modo tatildeo iacutentimo agrave nossa

sobrevivecircnciardquo Corroborando esse pensamento Cacircmara Cascudo (2004 p

348) defende que eacute ldquoinuacutetil pensar que o alimento contenha apenas es elementos

indispensaacuteveis agrave nutriccedilatildeo Conteacutem substacircncias imponderaacuteveis e decisivas para

o espiacuterito alegria disposiccedilatildeo criadora bom humorrdquo

Maciel (2001) tambeacutem compartilha da ideia de diferenciaccedilatildeo entre

ldquocomidardquo e ldquoalimentordquo ao reconhecer a junccedilatildeo entre natureza e cultura quando

se trata de alimentaccedilatildeo humana pois poucas horas apoacutes o nascimento

instintivamente a crianccedila chora em busca pelo leite materno Poreacutem a

amamentaccedilatildeo em humanos eacute um ato tambeacutem cultural considerando que o

receacutem-nascido ao ser amamentado experimenta a sensaccedilatildeo de aconchego

favorecendo o viacutenculo entre matildee e filho e ainda o prazer de comer A crianccedila

gosta do sabor do leite e natildeo o rejeita O leite eacute assim alimento e comida ndash

natureza e cultura22

Comida eacute assim o alimento transformado pelas representaccedilotildees sociais

e culturais Eacute o que sugere tambeacutem Montanari (2008) Para este autor

diferentemente das outras espeacutecies animais o homem aproveita os alimentos

que encontra na natureza mas isso natildeo o impede de querer tambeacutem criar a

proacutepria comida usando esses alimentos baacutesicos encontrados mas

transformando-os pelo uso do fogo e uso das praacuteticas tecnoloacutegicas que se

22 Silva Mello (1956) Sandre-Pereira (2012) Mead (1969) e Bosi Machado (2005) satildeo outros autores que

discutem mais profundamente a questatildeo sobre amamentaccedilatildeo e cultura

59

desenvolvem nas cozinhas ldquoOs valores de base do sistema alimentar se definem

como resultado e representaccedilatildeo de processos culturais que preveem a

domesticaccedilatildeo a transformaccedilatildeo e a reinterpretaccedilatildeo da naturezardquo (p 15) O

consumo dos alimentos tambeacutem eacute tratado como cultura pelo autor uma vez que

o homem escolhe o que comer baseado em criteacuterios de ordem econocircmica

nutricional preferecircncias mas tambeacutem em simbologias atribuiacutedas ao alimento

portanto comida Por essas razotildees ldquoa comida se apresenta como elemento

decisivo da identidade humana e um dos mais eficazes instrumentos para

comunica-lardquo (p 16) A natureza produz os alimentos mas a cultura faz surgir

coacutedigos importantes como por exemplo as diferentes opccedilotildees de cardaacutepios as

receitas os haacutebitos que por sua vez se relacionam ao paladar ao prazer

relacionado agraves propriedades organoleacutepticas dos alimentos e sobretudo ao

prazer da degustaccedilatildeo

331 A importacircncia social e cultural do uso do fogo e sua relaccedilatildeo com a comensalidade

O valor cultural do alimento se fortalece a partir da descoberta do fogo e

do iniacutecio do processo de cozimento dos alimentos Os pesquisadores das

Ciecircncias Sociais que primeiramente deram ecircnfase ao papel fundamental do fogo

na transformaccedilatildeo do alimento atribuindo-lhe assim uma funccedilatildeo cultural para

aleacutem da bioloacutegica foram Claude Leacutevi-Strauss Jean Anthelme Brillat-Savarin

Richard Wrangham e Massimo Montanari

Segundo Montanari (2008) para os seres humanos a comida eacute cultura

e natildeo apenas pura natureza devido agrave adoccedilatildeo ndash como parte essencial de suas

teacutecnicas ndash dos modos de produccedilatildeo de preparaccedilatildeo e de consumo de alimentos

bem como o conhecimento sobre plantas proacuteprias para consumo Para o autor

o uso do fogo eacute fundamental na transformaccedilatildeo do alimento bruto em produto

cultural em comida Referente agrave esta percepccedilatildeo Leacutevi Strauss discute em ldquoO Cru

e o Cozidordquo como o uso do fogo permitiu de certa forma o homem passar do

estado da natureza ndash ao se referir a ingestatildeo do alimento de caccedila ou coleta na

forma crua ndash para o estado da cultura a partir da transformaccedilatildeo do alimento em

cozido Numa analogia da linguagem verbal dos grupos em seu artigo

denominado ldquoO Triacircngulo Culinaacuteriordquo o autor propotildee explicar a relaccedilatildeo natureza

60

ndash cultura com a linguagem da comida conferindo status de linguagem universal

agrave comida ldquoassim como natildeo existe sociedade sem linguagem natildeo existe

nenhuma que de um modo ou de outro natildeo cozinhe pelo menos alguns de seus

alimentosrdquo (LEacuteVI-STRAUSS 1968 p 25) O Triacircngulo culinaacuterio proposto pelo

antropoacutelogo se forma pelo cru pelo cozido (assado e fervido) e pelo apodrecido

Estaacute claro que em relaccedilatildeo agrave cozinha o cru constitui o polo natildeo marcado e que os dois outros o satildeo acentuadamente mas em direccedilotildees opostas com efeito o cozido eacute uma transformaccedilatildeo cultural do cru enquanto que o apodrecido eacute uma transformaccedilatildeo cultural dele Subjacente ao triacircngulo primordial haacute portanto uma dupla oposiccedilatildeo entre elaboradonatildeo elaborado de um lado e entre culturanatureza de outro Sem duacutevida alguma estas noccedilotildees constituem formas vazias nada nos ensinam sobre a cozinha de tal ou tal sociedade particular uma vez que apenas a observaccedilatildeo pode nos dizer o que cada um entende por ldquocrurdquo ldquocozidordquo e ldquoapodrecidordquo e uma vez que pode se supor que natildeo seraacute a mesma coisa para todas (LEacuteVI-STRAUSS 1968 p 25)

Em uma escala de relevacircncia cultural o cru estaacute na base mais simples

da escala na sequecircncia viria o assado ocupando segunda posiccedilatildeo pois

necessita apenas do fogo Os mais elaborados satildeo assim fervidos ou

ensopados que por necessitar de maior envolvimento humano e de uma vasilha

com aacutegua estando num patamar de elaboraccedilatildeo mais complexo e portanto

numa escala de maior relevacircncia cultural

Apoacutes Leacutevi-Strauss que analisou a mitologia dos povos ameriacutendios e seu

ldquomundordquo culinaacuterio buscando traduzir entre outras questotildees os mitos sobre a

origem do fogo a partir da representaccedilatildeo desse grupo surgiram outros estudos

destacando a importacircncia do fogo na praacutetica de cozinhar Um desses estudos

recentes eacute do antropoacutelogo Wrangham (2010) que tambeacutem defende a descoberta

do fogo e o cozimento como sendo definidores da humanidade e responsaacutevel

por diferenciar os humanos dos macacos originando o gecircnero Homo

Semelhante afirmaccedilatildeo eacute feita por Garciacutea (2013)

La conquista del fuego supuso (de manera metafoacuterica) la separacioacuten definitiva del mundo de los seres vivos en dos grupos de un lado quedaron los hombres de otro los demaacutes animales El fuego nos transformoacute em humanos La domesticacioacuten del fuego supuso en definitiva un impulso decisivo en la historia humana un impulso fecundador que permitioacute que se produjeran nuevos avances que a su vez abrieron la viacutea a otros progresos generando una reaccioacuten en cadena que ha desembocado en el complejo y tecnificado mundo actual (GARCIacuteA 2013 p 167)

61

Cozinhar aumentou o valor da comida Assim o uso do fogo alterou

fisicamente o corpo humano reduzindo o aparelho digestivo e aumentando o

tamanho do ceacuterebro mas tambeacutem alterando o uso do tempo e a vida social O

impacto recaiu ainda sobre as relaccedilotildees com a natureza que conforme

(WRANGHAM 2010 p 7) ldquotransformou-nos em consumidores de energia

externa e assim criou um organismo com uma nova relaccedilatildeo com a natureza

dependente de combustiacutevelrdquo

O valor cultural do fogo na transformaccedilatildeo do alimento eacute tatildeo claro que

conforme aponta Leach (1970 apud WRANGHAM 2010 p 15) ldquoAs pessoas

natildeo precisam cozer sua comida elas o fazem por razotildees simboacutelicas para

mostrar que satildeo homens e natildeo animaisrdquo Afinal somos os uacutenicos animais

capazes de cozinhar o proacuteprio alimento

Por outro lado natildeo se pode afirmar que ingerir alimento cru natildeo possua

caracteriacutestica cultural pois como argumenta Giard (2012 p 232) ldquoMesmo cru e

colhido diretamente da aacutervore o fruto jaacute eacute um alimento culturalizado antes de

qualquer preparaccedilatildeo e pelo simples fato de ser tido como comestiacutevel rdquo Para a

autora a noccedilatildeo de alimento comestiacutevel iraacute variar de um grupo a outro ou seja

eacute definido pela cultura questotildees que vimos anteriormente neste capiacutetulo

Haacute outro fator muito importante a se destacar o qual se pode atribuir agrave

descoberta do fogo que eacute o fato de ter propiciado agraves pessoas e aos grupos

juntarem-se em torno dele para se aquecer mas tambeacutem para preparar a

comida distribui-la e ingeri-la Facilitou-se assim o estabelecimento de relaccedilotildees

de comensalidade23 que com o tempo foram se tornando encontros cotidianos e

transformando-se em uma atividade socializadora Conforme argumenta Fladrin

e Montanari (1998) independentemente da forma e das diferenccedilas nas normas

de comportamento existentes em cada sociedade o fato eacute que ldquoa comensalidade

eacute percebida como um elemento lsquofundadorrsquo da civilizaccedilatildeo humana em seu

processo de criaccedilatildeordquo (FLANDRIN MONTANARI 1998 p 109) e para Carneiro

(2003) a comensalidade se constitui em ldquoum complexo sistema simboacutelico de

23 Etimologicamente comensalidade deriva do latim ldquocomensalerdquo Accedilatildeo de comer junto na mesma mesa

Com ldquojuntordquo e Mensa ldquomesardquo Implica em partilhar do mesmo momento e local das refeiccedilotildees Para Poulain (2013) a comensalidade estabelece e reforccedila a sociabilidade ldquoEacute pela cozinha e pelas maneiras a mesa que se produzem as aprendizagens sociais mais fundamentais e que uma sociedade transmite e permite a interiorizaccedilatildeo de seus valores A alimentaccedilatildeo eacute uma das formas de se tecer e se manter os viacutenculos sociaisrdquo (POULAIN 2013 p 182)

62

significados sociais sexuais poliacuteticos religiosos eacuteticos esteacuteticos etc

(CARNEIRO 2003 p 2)

Ao redor do fogo eacute possiacutevel se aquecer preparar os alimentos e a

comida mas tambeacutem estabelecer o diaacutelogo Segundo Garciacutea (2013) nos

primoacuterdios da humanidade os encontros diaacuterios dos grupos se davam em torno

do fogo para trocar experiecircncias do dia e traccedilar estrateacutegias de caccedila por exemplo

Para Wrangham (2010) o advento do fogo mudou a maneira de nossos

ancestrais se relacionarem Passava-se mais tempo junto se aquecendo e

alimentando-se em grupo No volume I da primeira obra dirigida por Philippe

Ariegraves e Georges Duby (1990) Histoacuteria da Vida Privada a importacircncia do fogo eacute

destacada logo no iniacutecio do capiacutetulo de autoria de Yvon Theacutebert que trata da

vida privada e da arquitetura domeacutestica na Aacutefrica Romana Nas habitaccedilotildees natildeo

havia chamineacute nem fogotildees e sim lareiras ldquocuja fumaccedila saiacutea por um buraco no

teto e constituiacutea paradoxalmente um dos celebrados prazeres da rude existecircncia

rural quando a neve cobria os camposrdquo (THEacuteBERT 1990 p 303)

Segundo Flandrin e Montanari (1998) o uso do fogo permitiu ao homem

alimentar-se em conjunto inicialmente ao seu redor em aacutereas externas e com o

passar dos anos com a criaccedilatildeo do espaccedilo social alimentar nos ambientes

domeacutesticos (a cozinha e a sala de jantar) e na sequecircncia com a criaccedilatildeo de

espaccedilos externos agraves residecircncias (os restaurantes lanchonetes etc) Assim a

comida que eacute o alimento transformado pela cultura passa a possuir tambeacutem a

funccedilatildeo agregadora para os seres humanos A essa funccedilatildeo denomina-se de

comensalidade que tem como significado a capacidade de estabelecer relaccedilotildees

de sociabilidade importantes pois implica em reunir as pessoas em torno da

mesa Ou seja enquanto come o grupo tem tambeacutem a oportunidade de dialogar

e trocar experiecircncias do cotidiano

Para Fischler (2011) a comensalidade eacute uma das caracteriacutesticas mais

significantes no que se refere agrave sociabilidade humana relacionando-se natildeo

apenas agrave ingestatildeo de alimentos mas tambeacutem aos modos do comer envolvendo

haacutebitos culturais atos simboacutelicos organizaccedilatildeo social aleacutem do compartilhamento

de experiecircncias e valores Nesse sentido Woortmann (1985) esclarece que na

cultura brasileira a refeiccedilatildeo eacute considerada um ato social e que portanto deve

ser feita em grupo para ser percebida efetivamente como uma refeiccedilatildeo Tambeacutem

em nossa cultura segundo o autor criamos significados diferentes para essa

63

accedilatildeo como comer cotidianamente e comer em eventos especiais comer em

casa e comer fora de casa

O caraacuteter simboacutelico-ritual do comer se expressa claramente no haacutebito de convidar pessoas para jantar em nossa casa no ldquojantar forardquo em determinadas ocasiotildees ou no ldquoalmoccedilo de domingordquo Nessas e em outras ocasiotildees anaacutelogas haacute mais em jogo que necessidades nutricionais Natildeo convidamos pessoas para jantar em nossa casa para alimentaacute-las enquanto corpos bioloacutegicos mas para alimentar e reproduzir relaccedilotildees sociais isto eacute para reproduzir o corpo social o que supotildee que sejamos em troca convidados a comer na casa do nosso convidado O que estaacute em jogo eacute o princiacutepio da reciprocidade e da comensalidade A presenccedila da comida eacute contudo central reconstruindo-se necessidades bioloacutegicas em necessidades sociais (WOORTMANN 1985 p 3)

Em semelhante percepccedilatildeo Algranti (1997) aponta que haacute registros de

que desde o periacuteodo colonial no Brasil a reuniatildeo familiar durante as refeiccedilotildees

pelo menos uma vez ao dia se tornou um costume que se perpetuou nas famiacutelias

rurais bem como nas urbanas Tambeacutem Franco (2001) discorre sobre a

comensalidade no meio rural como sendo uma importante maneira de promover

a solidariedade e reforccedilar laccedilos entre os membros de um grupo de afinidade

Neste sentido ldquoo comerrdquo eacute um ato tanto social quanto poliacutetico e envolve

costumes diaacutelogos usos sabores odores e ateacute mesmo as etiquetas que

correspondem agraves maneiras de comer que satildeo aprendidas no proacuteprio processo

de comensalidade que se daacute nos grupos E segundo Giard (2012) momentos

de comensalidade demarcam relaccedilotildees sociais e afetivas entre os membros de

uma famiacutelia e tambeacutem influencia fortemente o desenvolvimento do gosto

alimentar24 A percepccedilatildeo da autora corrobora a discussatildeo de Bourdieu (2007)

sobre a formaccedilatildeo do gosto e da preferecircncia alimentar

3311 O local do fogo e da praacutetica da comensalidade na arquitetura domeacutestica

Na sociedade ocidental o local do fogo em uma habitaccedilatildeo eacute

principalmente a cozinha que primeiramente era anexa agrave casa e o equipamento

que o representa eacute o fogatildeo A cozinha segundo Flandrin (1990) surge em

24 Eacute preciso ressaltar que nem todas as culturas apreciam comer em conjunto Poreacutem natildeo se pode

considerar como regra os preceitos da comensalidade Como nos mostra Geertz (2008 p 190) sobre a cultura balinesa onde comer eacute considerado uma atividade que gera repulsa ldquo() mas ateacute comer eacute visto como uma atividade desagradaacutevel quase obscena que deve ser feita apressadamente e em particular devido agrave sua associaccedilatildeo com a animalidaderdquo

64

funccedilatildeo das transformaccedilotildees nos costumes sociais ao longo do tempo Assim o

prazer no comer e beber junto foi se modificando Isso ocorre

concomitantemente agraves mudanccedilas nas sociedades Ao longo dos anos e dos

seacuteculos a vida privada passou a ser preferida em lugar da vida puacuteblica

sobretudo nos aspectos de convivecircncia de desfrutar da intimidade e aconchego

familiar Avanccedilos tecnoloacutegicos e encontros com outras culturas favoreceram a

vida e a criaccedilatildeo de espaccedilos internos agrave casa destinados agrave comensalidade por

exemplo A cozinha que antes era compartilhada com vaacuterias pessoas ao redor

do paacutetio passa a ser parte interna de cada habitaccedilatildeo O espaccedilo privado estaacute

associado agrave intimidade e ao refuacutegio em contraste a um espaccedilo puacuteblico do qual o

cotidiano domeacutestico das famiacutelias vai se afastando aos poucos As refeiccedilotildees que

eram feitas ao ar livre ou em locais de faacutecil acesso passam a ser feitas em casas

de alvenaria que possuem portas da rua que ficam fechadas impedindo o

acesso a qualquer pessoa que chegar exceto sob o convite dos donos da casa

Mesmo que inicialmente a cozinha tenha se mantido distante dos outros

cocircmodos ocupava um lugar de destaque nas caracteriacutesticas habitacionais das

mais simples agraves mais requintadas desde o periacuteodo Colonial no Brasil conforme

aponta Lemos (1996) em seu estudo sobre as casas urbanas e rurais brasileiras

ldquoEm Portugal ateacute haacute pouco tempo e no Brasil Colonial sempre se chamou a

moradia de lsquofogorsquo ou lsquofogatildeorsquo Qualquer recenseamento dizia que determinada

cidade possuiacutea tantos habitantes em tantos lsquofogosrsquordquo (LEMOS 1996 p 11)

Segundo Lemos (1976) e Abrahatildeo (2007) as cozinhas do periacuteodo de

colonizaccedilatildeo no Brasil estavam sempre voltadas para o exterior da casa em seus

fundos ficando assim distantes dos cocircmodos de dormir mantendo-os livres do

cheiro de fumaccedila e de gordura Por natildeo haver aacutegua encanada na eacutepoca a

cozinha se localizava muitas vezes na aacuterea externa da habitaccedilatildeo Poreacutem

segundo Algranti (1997) jaacute a partir do seacuteculo XVIII estabeleceu-se dois tipos de

cozinhas a ldquocozinha sujardquo onde se preparavam carnes doces e frituras ou seja

destinava-se agraves atividades mais pesadas e portanto permanecia fora da casa e

a ldquocozinha limpardquo que se acopla agrave residecircncia e onde se prepara o cafeacute os bolos

as saladas etc

Segundo Abdala (2007) o espaccedilo da cozinha nas casas do periacuteodo

colonial em Minas Gerais e que perdurou pelo seacuteculo XIX era amplo bem

ventilado e o fogatildeo a lenha feito de barro ou de pedra sabatildeo ocupava local de

65

destaque Era ainda um espaccedilo iacutentimo natildeo sendo permitida a entrada de

estranhos25

A sala de jantar segundo Cacircmara Cascudo (2004) surgiu no final do

seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX Antes disso qualquer cocircmodo da habitaccedilatildeo servia a

esta finalidade mesmo nos imensos castelos onde o conforto era pequeno

apesar dos grandes espaccedilos Saint-Hilaire em seu registro da passagem por

Minas Gerais assim descreve a sala de jantar das casas que visitou

Nas casas dos pobres assim como nas dos ricos existe sempre uma peccedila denominada sala que daacute para o exterior Eacute ali que se recebem os estranhos e se fazem as refeiccedilotildees sentado em bancos de madeira em torno de uma mesa comprida A gente abastada tem o cuidado de reservar na frente de sua casa uma galeria ou varanda formada pelo teto que se prolonga aleacutem das paredes e eacute sustentado por colunas de madeira (SAINT-HILAIRE 1938 p 186)

Ambos os cocircmodos se constituiacuteram ao longo da histoacuteria nos espaccedilos

principais destinados agrave comensalidade E era tambeacutem um espaccedilo assim como

a cozinha em que as mulheres precisavam provar seus dotes como donas de

casa a sua capacidade de receber visitas atividades que faziam parte dos

saberes transmitidos das matildees para as filhas de forma que por mais simples

que fossem as salas de jantar refletiam a personalidade da dona da dona da

casa segundo Abrahatildeo (2010)

As modificaccedilotildees nos tamanhos e estrutura desses espaccedilos domeacutesticos

nos tempos atuais sinalizam que os arranjos destinados a esta atividade estatildeo

sendo redefinidos socialmente mas natildeo desapareceram No sul do Brasil ainda

eacute comum nos dias de hoje os fogotildees a lenha mesmo nas residecircncias urbanas

do interior Diferentemente da regiatildeo sudeste destacando-se Minas Gerais em

que o fogatildeo a lenha eacute em sua maioria feito de alvenaria nos estados do Sul

eles satildeo feitos industrialmente em ferro esmaltado Nos dias frios eacute em torno dele

que a famiacutelia e os amigos se reuacutenem para cozinhar e degustar o pinhatildeo por

exemplo acompanhado de vinho e muita conversa Em Minas o fogatildeo a lenha

estaacute presente em quase todas as habitaccedilotildees rurais e eacute um equipamento que

permanece no imaginaacuterio das pessoas ao pensar em interior e cozinha rural

25 Durante trabalho de pesquisa para mestrado realizado em 1998-1999 na zona rural de Minas Gerais

tive uma experiecircncia interessante em relaccedilatildeo a cozinha e a intimidade das famiacutelias pesquisadas No iniacutecio das vistas as conversas se davam sempre na sala ou na aacuterea externa da casa agrave medida que ia me tornando uma pessoa mais frequente em funccedilatildeo de novas visitas passei a ser recebida na cozinha Isso ocorreu em quase todas as habitaccedilotildees em que estive naquela fase

66

Martins (1998) em pesquisa realizada na regiatildeo amazocircnica expotildee os

detalhes de uma casa da sua cozinha e suas funccedilotildees de sociabilidade Sua

descriccedilatildeo deixa clara tambeacutem a relaccedilatildeo da cozinha como espaccedilo de pessoas da

intimidade do grupo

Nos povoados da fronteira onde haacute algum recurso a porta sempre aberta continua no corredor comprido que leva agrave cozinha Ela eacute o lugar de conversaccedilatildeo dos natildeo estranhos daqueles com quem os moradores da casa tecircm familiaridade e natildeo necessariamente parentesco Lugar dos que podem ir entrando bastando gritar o costumeiro ldquoOacute de casardquo Natildeo satildeo estranhos mas tambeacutem natildeo satildeo parentes Na entrada fica a saleta para receber os propriamente estranhos limite de seu acesso ao interior da casa (MARTINS 1998 p 695)

Nos falam sobre isso tambeacutem Luiacutes da Cacircmara Cascudo e Gilberto

Freyre em suas obras jaacute citadas anteriormente Freyre (2006) ao tratar sobre

as caracteriacutesticas das casas do periacuteodo dos engenhos de cana explica que

havia diferenccedilas entre as cozinhas existentes nas casas grandes de siacutetios

sobrados assobradadas de subuacuterbio com aquela da casa de engenho Nestas

uacuteltimas informa o autor a cozinha foi mais importante Essas diferenccedilas se

refletiam inclusive no tamanho da mesa destinada agraves refeiccedilotildees e que abrigavam

quem chegasse para almoccedilar

Viajantes e mascates aleacutem dos compadres que nunca faltavam dos papa-pirotildees os parentes pobres do administrador do feitor do capelatildeo dos vaqueiros das visitas de passar o dia famiacutelias inteiras que vinham de outros engenhos em carro de boi Eram mesas de jacarandaacute agraves vezes de seis oito metros de comprimento como as que ainda conhecemos na casa-grande ndash vasto sobrado rural do engenho Noruega26 (FREYRE 2006 p 143)

O autor esclarece que as mesas grandes ndash geralmente de cinco por dois

metros (5x2) ndash para receber famiacutelias enormes eram comuns nas casas grandes

de siacutetios e nos sobrados mas o que ocorria eacute que nas cidades e subuacuterbios o

modo de vida era mais retraiacutedo e sem muita movimentaccedilatildeo diferentemente do

que ocorria nas casas de engenho jaacute que aiacute ldquose recebia o viajante a qualquer

momento com bacia de prata toalha de linho um lugar agrave mesa uma rede ou

uma cama para dormirrdquo (FREYRE 2006 p 144)

Marcel Mauss (2003) em seu Ensaio sobre a Daacutediva cita a ldquoTaacutevola

Redondardquo das crocircnicas de Artur mesa cujo formato circular tinha o objetivo

26 Este engenho foi retrato na forma de gravura aquarelada 1933 por Ciacutecero Dias Esta aquarela compotildee

o livro Casa-Grande amp Senzala de Gilberto Freyre (1ordm Tomo 1964) como documento anexo ao livro e disposto em dobradura

67

simboacutelico de ajudar forma a seus cavaleiros a viver em harmonia pois viviam em

disputas e alimentando inveja entre si A ideia era que ao se sentarem ao seu

redor se reconhecessem como iguais jaacute que nela natildeo havia local de destaque

ou de superioridade

Poreacutem nem sempre o moacutevel ldquomesardquo era ou eacute utilizado Comer assentado

no chatildeo faz parte da cultura indiacutegena e tambeacutem oriental Os iacutendios sentam-se

diretamente no solo nu ou em esteiras e os orientais sobre tapetes nos informa

Cacircmara Cascudo (2004 p 794) Segundo o mesmo autor no Brasil colonial os

pobres tambeacutem comiam dessa maneira o que fez surgir o termo ldquocomida de

esteirardquo Os menos pobres comiam em mesa de madeira ldquoA histoacuteria da

alimentaccedilatildeo na esteira decorre precisamente da heranccedila cabocla do escravo

negro dos mesticcedilos humildesrdquo Mesmo entre os ricos no seacuteculo XIX a mesa

existia mas era improvisada feita em taacutebuas aplainadas na maioria das vezes

Apesar de ser um objeto frequente usado como apoio para os pratos os copos

bebidas e os vasilhames com as comidas durante as refeiccedilotildees nas discussotildees

antropoloacutegicas e socioloacutegicas importa principalmente o seu sentido figurado da

mesa relativo ao ldquocomer juntordquo independentemente de ser assentado ao chatildeo

no sofaacute ou em torno de uma mesa de madeira ou de ferro

Neste sentido importa-nos a conotaccedilatildeo entendimento da

comensalidade no processo socializador e agregador como aquele usado por

Poulain (2013) de que a comensalidade envolve comer acompanhando que eacute

tambeacutem semelhante ao sentido atribuiacutedo por Sobal e Nelson (2003) Fischler

(2011) acrescenta um atributo de espaccedilo a este sentido e diz que literalmente

significa ldquocomer na mesma mesardquo A mesa neste caso podendo ser ateacute mesmo

um ciacuterculo no meio de uma floresta ou o momento e local onde ocorrem as

refeiccedilotildees dos operaacuterios da construccedilatildeo civil com suas marmitas nas matildeos ou

ainda uma toalha posta para um pic nic ou em uma roda que se forma em um

evento social Toda a discussatildeo em torno da relaccedilatildeo mesa e comensalidade

aponta que natildeo ser obrigatoacuterio a existecircncia de um local fiacutesico e de um moacutevel

chamado de mesa para que a comensalidade e sociabilidade alimentar ocorra

basta que haja disponibilidade entre as pessoas e uma certa familiaridade na

convivecircncia Isso tanto vale para o meio rural quanto para o meio urbano No

meio rural ateacute mesmo o local de trabalho no meio de um roccedilado distante da

68

casa onde come-se de marmita eacute um local de relaccedilotildees de diaacutelogo e de comer

tendo uma companhia

Os momentos festivos satildeo outras possibilidades de tambeacutem haver

sociabilidade e de ocorrer a comensalidade Nestes momentos come-se natildeo

necessariamente por fome mas pelo prazer do conviacutevio ainda que temporaacuterio

conforme Fladrin e Montanari (1998)

O homem civilizado come natildeo somente (e menos) por fome para satisfazer uma necessidade elementar do corpo mas tambeacutem (e sobretudo) para transformar essa ocasiatildeo em um momento de sociabilidade em um ato carregado de forte conteuacutedo social e de grande poder de comunicaccedilatildeo (FLADRIN MONTANARI 1998 p 108)

Muitas vezes a sociabilidade inicia-se na proacutepria organizaccedilatildeo dos

festejos Nas aacutereas rurais eacute mais comum que as festas comunitaacuterias ou as da

esfera familiar sejam organizadas pelos moradores locais com ajuda da

vizinhanccedila o que propicia maior sociabilidade para aleacutem dos momentos de

comensalidade que ocorrem durante o evento Na cidade pela maior facilidade

de contratar por serviccedilos de organizaccedilatildeo de festas haacute um menor envolvimento

das pessoas que participaratildeo das festas no processo de sua organizaccedilatildeo

Poreacutem como a cultura eacute dinacircmica sofrendo o efeito dos modos de vida

modernos as relaccedilotildees de sociabilidade e tambeacutem de comensalidade ndash antes

mais tradicionais e com maior constacircncia de momentos em grupo ndash tecircm sido

alteradas conforme aponta alguns autores no toacutepico a seguir

34 Praacuteticas alimentares na contemporaneidade entre o tradicional e o moderno

Apesar de as mudanccedilas no consumo alimentar terem ocorrido de forma

tiacutemida antes do seacuteculo XIX eacute a partir da metade dele que autores como Fischler

(1998) Montanari (1998) Teuteberg e Flandrin (1998) Peacutehaut (1998) Capatti

(1998) Levenstein (1998) Cacircmara Cascudo (2004) Pollan (2014) Rossi (2014)

e Contreras e Gracia (2011) consideram como o iniacutecio de mudanccedilas mais

substanciais nas praacuteticas alimentares principalmente na Europa periacuteodo

marcado por profundas transformaccedilotildees nesse continente dentre elas a

expansatildeo da industrializaccedilatildeo que altera os modos de vida das famiacutelias o

aumento da populaccedilatildeo os avanccedilos na produccedilatildeo agriacutecola que gera em pouco

69

tempo o desenvolvimento da induacutestria alimentar Esses efeitos se ampliam

destacadamente nos seacuteculos XX e XXI Muitas dessas mudanccedilas ocorrem

paulatinamente com a introduccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos de outra cultura

como jaacute visto

Autores como Poulain (2013) Montanari (2008) Lody (2008) Pollan

(2014) Woortmann (2007 e 2013) De Garine (1987) Flandrin e Montanari

(1998) e Maciel (2001) discutem como alguns dos aspectos do modo de vida

moderno ndash tempo escasso para executar as vaacuterias atividades facilidade de

acesso agrave informaccedilatildeo estiacutemulo ao consumismo economia de tempo gerado pelo

uso de produtos alimentiacutecios industrializados dentre outros - influenciam as

praacuteticas alimentares e suas interfaces fazendo surgir diversas maneiras de se

alimentar na contemporaneidade

Maneiras essas que podem interferir nos haacutebitos alimentares nos

horaacuterios e locais das refeiccedilotildees no consumo de alimentos e nas praacuteticas

alimentares Por exemplo receitas de famiacutelia que antes estavam nos cadernos

e eram repassados por geraccedilotildees atualmente satildeo encontradas no verso das

embalagens de alimentos na internet em revistas e em programas de televisatildeo

Os horaacuterios de alimentaccedilatildeo nem sempre coincidem entre os membros da famiacutelia

tampouco o espaccedilo domeacutestico eacute mais o uacutenico a ser usado para tal finalidade A

vida contemporacircnea propotildee adaptaccedilotildees agraves novidades que satildeo apresentadas

constantemente Nesse contexto as mudanccedilas atingem tambeacutem as famiacutelias

rurais que encontram formas de se adaptar criando alternativas para lidar com

o novo

Em funccedilatildeo dessas questotildees alguns desses autores analisam

criticamente a tendecircncia atual de homogeneizaccedilatildeo das praacuteticas alimentares

sendo este talvez um caminho sem volta Essa homogeneizaccedilatildeo igualaria os

comedores contemporacircneos ocidentais que sob a influecircncia da globalizaccedilatildeo

passariam rapidamente a ter haacutebitos e gostos alimentares muito semelhantes

Estas consideraccedilotildees estatildeo presentes nas anaacutelises de Arnaiz (2005) que a partir

do estudo sobre a alimentaccedilatildeo dos espanhoacuteis e com base nas argumentaccedilotildees

de autores como Warde (1997) e Germov e Williams (1999) apresenta quatro

tendecircncias para o sistema alimentar moderno

O fenocircmeno da homogeneizaccedilatildeo do consumo em uma sociedade massificada a persistecircncia de um consumo diferencial e socialmente

70

desigual o incremento da oferta personalizada (poacutes-fordista nos termos dos autores) avaliada pela criaccedilatildeo de novos estilos de vida comuns e finalmente o incremento de uma individualizaccedilatildeo alimentar causada pela crescente ansiedade do comensal contemporacircneo ARNAIZ 2005 p 148)

Fischler (1979) se refere a essa tendecircncia alimentar nas sociedades

contemporacircneas como sendo lsquohiper-homogecircnearsquo Em funccedilatildeo disso citando o

estudo realizado por Mennell et al (1992) Fischler (2011) chama a atenccedilatildeo para

o fato de que as praacuteticas alimentares contemporacircneas colocam em risco a

comensalidade enquanto poder de sociabilidade de agregaccedilatildeo considerando

que o mundo moderno tem facilitado a individualizaccedilatildeo inclusive no que se

refere agrave alimentaccedilatildeo Exemplo disso eacute o nuacutemero crescente de pessoas que

mesmo no ambiente domeacutestico servem o seu prato e se assentam na frente da

televisatildeo ou do computador Situaccedilotildees que sinalizam que outras dinacircmicas tecircm

surgido no campo da comensalidade no mundo contemporacircneo Para esses

autores eacute fato o surgimento de um padratildeo alimentar Essa percepccedilatildeo parece

natildeo levar em consideraccedilatildeo a variaccedilatildeo de culturas realidades locais e modos

alimentares diferenciados entre os diversos povos mesmo no contexto

ocidental

Arnaiz (2005) Fischler (1979 e 2011) e Pollan (2014) afirmam que na

sociedade ocidental globalizada e industrializada o tempo aleacutem de escasso eacute

usado prioritariamente em prol da produtividade e do desenvolvimento

capitalista Nesse contexto o que sobra deste tempo eacute dividido entre as tantas

outras tarefas sociais como aquelas desenvolvidas no espaccedilo domeacutestico em

famiacutelia ou entre amigos Pollan (2014) aponta que o haacutebito de cozinhar em casa

vem diminuindo Arnaiz (2005) cita que outro motivo que contribui para isso estaacute

relacionado agraves facilidades geradas pelo processo agroalimentar ou seja vaacuterias

atividades de preparo de alimentos que antes ocupavam muito tempo da

cozinheira atualmente satildeo feitas pelas induacutestrias de alimentos

Poreacutem eacute arriscado afirmar uma tendecircncia agrave homogeneizaccedilatildeo alimentar

pois a cultura eacute dinacircmica e os indiviacuteduos tendem a buscar formas de adaptaccedilatildeo

aos modelos propostos e nessa adaptaccedilatildeo podem buscar praacuteticas alimentares

que mesclem novidade e tradiccedilatildeo Haacute que se levar em consideraccedilatildeo a

diversidade cultural dos grupos mesmo no contexto ocidental Se por um lado

busca-se acompanhar os avanccedilos haacute tambeacutem interesse em preservar

71

caracteriacutesticas culturais consideradas importantes dentre elas aquelas

relacionadas a algumas praacuteticas alimentares Portanto por mais que o peso da

homogeneizaccedilatildeo exista haacute tambeacutem o peso dos elementos da tradiccedilatildeo que

exerce importante influecircncia nas decisotildees e nas escolhas pessoais

Percebe-se na discussatildeo dos autores abordados neste toacutepico a

ocorrecircncia de trecircs vertentes ou movimentos Um primeiro apontado por Anaiz

(2005) Fischler (1979) e Pollan (2014) de que a sociedade tende a adotar um

padratildeo alimentar homogecircneo baseado no consumo prioritaacuterio de alimentos

industrializados de acordo com um estilo de vida moderno e atrelado agraves

novidades Um segundo movimento defendido por De Garine (1987) de que haacute

uma divisatildeo perceptiacutevel na sociedade ocidental formada por um lado por

consumidores prioritariamente tradicionais no seu estilo de exercer as praacuteticas

alimentares e de outro lado por consumidores com tendecircncias agraves praacuteticas

modernas Por fim um terceiro movimento encontrado em Doacuteria (2014) Giard

(2012) Garciacutea Canclini (2013) entre outros que defendem a coexistecircncia da

tradiccedilatildeo com a modernidade no que se refere tambeacutem agraves praacuteticas alimentares

conforme discussatildeo que seraacute apresentada mais agrave frente

Pollan (2014) apesar de acreditar que o ritmo de vida moderno estimule

modos de se alimentar mais homogecircneos com o comedor recorrendo

prioritariamente aos aspectos de praticidade por outro lado pondera algumas

questotildees que satildeo relativas Defende por exemplo que a despeito das mudanccedilas

em curso na sociedade ocidental contemporacircnea a magia e o prazer que

envolvem a atividade culinaacuteria ainda permanecem Mesmo que para um grande

nuacutemero de pessoas isso possa corresponder a uma atividade esporaacutedica em

eventos especiais ou nos finais de semana Por outro lado ainda que a

constacircncia do conviacutevio cotidiano nos momentos das refeiccedilotildees se reduza isso

natildeo implica na perda da qualidade desses momentos Mas o autor concorda

com Fischler (2011) que a diminuiccedilatildeo desta atividade implica em consequecircncias

como transformaccedilotildees no campo da comensalidade com seus significados e

simbolismos Com isso o estilo de vida acelerado e o tempo escasso para

realizar todas as demandas sociais afastam as pessoas do encontro familiar

cotidiano no compartilhamento da comida da manutenccedilatildeo de um horaacuterio fixo

para as refeiccedilotildees e tambeacutem da produccedilatildeo do proacuteprio alimento

72

Em relaccedilatildeo agrave essas questotildees Flandrin e Montanari (1998) consideram a

crenccedila absoluta na homogeneidade dos comportamentos alimentares

exagerada Apesar das mudanccedilas em curso os autores afirmam natildeo ser

evidente pelo menos ainda o desaparecimento das composiccedilotildees e elementos

tradicionais no campo da alimentaccedilatildeo Sinalizam que sobretudo na Europa a

funccedilatildeo social da comida ainda eacute importante Apontam as reuniotildees entre amigos

que ocorrem nos diferentes paiacuteses do planeta ou a reuniatildeo familiar em alguns

dias na semana e que natildeo ordinariamente no cotidiano ainda assim satildeo

momentos de sociabilidade e comensalidade e defendem a necessidade de

relativizaccedilatildeo sobre o assunto

A ldquonormalizaccedilatildeordquo dos comportamentos alimentares ainda natildeo se tornou irreversiacutevel se os modelos de consumo tendem a se assemelhar cada vez mais sua homogeneidade permanece bastante relativa e mais aparente do que real jaacute que os elementos que tem em comum satildeo de fato interpretados segundo a cultura de cada povo e paiacutes inserindo-se em estruturas ainda fortemente marcadas pelas particularidades locais que por sua vez foram-se formando na sequecircncia de um processo histoacuterico longo e articulado (FLADRIN MONTANARI (1998 p 867)

As possibilidades de as praacuteticas alimentares contemporacircneas serem

responsaacuteveis por manter ou de extinguir as tradiccedilotildees alimentares satildeo discutidas

por alguns autores como Berman (2000) Giddens (1991) Bauman (2007)

Garciacutea Canclini (2013) e Giard (2012) O mundo contemporacircneo estaacute

relacionado ao modo de vida moderno e em constante transformaccedilatildeo tendendo

ao dinamismo mesmo que aspectos do tradicional permaneccedilam ainda que com

pesos diferentes de acordo com cada cultura No mundo moderno nada

permanece fixamente e eacute neste contexto que os contrastes entre o moderno e o

tradicional ficam mais aflorados conforme defende Berman (2000)

Ser moderno eacute encontrar-se em um ambiente que promete aventura poder alegria crescimento autotransformaccedilatildeo e transformaccedilatildeo das coisas em redor ndash mas ao mesmo tempo ameaccedila destruir tudo o que temos tudo o que sabemos tudo o que somos (BERMAN 2000 p 15)

Nesse contexto de transformaccedilotildees e dinamismo da substituiccedilatildeo do

antigo pelo novo e da valorizaccedilatildeo do moderno aspectos expostos pelo autor

um dos fatores mais marcantes no campo das praacuteticas alimentares

contemporacircneas eacute a industrializaccedilatildeo dos alimentos e suas consequecircncias para

os comedores com suas benesses e problemas Este sistema apresenta um

73

novo jeito de vivenciar as praacuteticas alimentares no mundo contemporacircneo

sugerindo a ideia de praticidade e economia de tempo A induacutestria de alimentos

pode ser considerada um dos mais importantes promotores de mudanccedilas nos

haacutebitos alimentares das sociedades industriais Mudanccedilas essas que trazem

consequecircncias importantes como as que satildeo discutidas a seguir por Arnaiz

(2015) Pollan (2014) Silva Mello (1956) Cacircmara Cascudo (2004) e De Garine

(1987)

Para Arnaiz (2005) em relaccedilatildeo ao acesso aos alimentos a induacutestria

possui aspectos que podem ser considerados positivos e negativos Dentre os

positivos ela destaca o custo relativamente baixo de obtenccedilatildeo dos bens

alimentares pelos consumidores dos paiacuteses ocidentais industrializados e

tambeacutem a algumas parcelas populacionais dos paiacuteses em processo de

industrializaccedilatildeo Outro fator segundo a autora eacute que a tecnologia de produccedilatildeo

e organizaccedilatildeo da induacutestria de alimentos beneficiou os consumidores que

passaram a contar com maior diversidade de alimentos

A diversificaccedilatildeo alimentar eacute supostamente mais saudaacutevel em termos nutricionais uma vez que permite obter a adequaccedilatildeo de certos nutrientes e evita por exemplo doenccedilas como a pelagra que durante o seacuteculo XIX disseminou-se nas populaccedilotildees mais pobres que tinham o milho como base de sua alimentaccedilatildeo ou ainda doenccedilas como o cretinismo e o boacutecio ateacute recentemente (ARNAIZ 2005 p 148-149)

Para a autora algumas situaccedilotildees negativas se contrastam com as

positivas Cita por exemplo que apesar do acesso aos produtos em termos de

disponibilidade e a um preccedilo relativamente baixo a manutenccedilatildeo da

desigualdade social limita o acesso a muitos desses alimentos Outros fatores

destacados pela autora incluem ainda ldquoa diferenciaccedilatildeo conforme a bagagem

sociocultural que condiciona certos estilos alimentares de grupos de indiviacuteduos

e a persistecircncia das heterogeneidades intra e interterritorial e socialmente

verticalrdquo (ARNAIZ 2005 p 149)

Outro aspecto positivo mas natildeo citado pela autora diz respeito agraves

praticidades e facilidades geradas pela industrializaccedilatildeo dos alimentos Este tipo

de alimento jaacute preacute-processado contribuiu para reduzir o peso do trabalho

domeacutestico que historicamente e tradicionalmente era atribuiacutedo exclusivamente

agraves mulheres Poreacutem o lado positivo da comida industrializada como facilitadora

do dia-a-dia natildeo neutraliza outros fatores negativos tanto do aspecto

74

sociocultural como no aspecto da sauacutede humana conforme apontado por Pollan

(2014) Silva Mello (1956) e Cacircmara Cascudo (2004)

Pollan (2014) destaca o peso da comida industrializada para a sauacutede e

bem-estar humanos ao argumentar que as grandes empresas alimentiacutecias

processam alimentos o que para o autor eacute diferente de produzi-los Ele alerta

para o excesso de sal accediluacutecar e gordura nos produtos processados

industrialmente aleacutem dos produtos quiacutemicos que permitem maior durabilidade

aos alimentos nas prateleiras dos supermercados

Em um sentido semelhante Silva Mello (1956) defende a manutenccedilatildeo

de aspectos importantes da tradiccedilatildeo alimentar tanto para a sauacutede como para a

cultura ao criticar o excesso de modificaccedilotildees provocadas pela induacutestria

alimentar como por exemplo a transformaccedilatildeo do accediluacutecar natural escuro e grosso

em branco refinado e as vitaminas em caacutepsulas como discorre em seu livro

lsquoAlimentaccedilatildeo Instinto Culturarsquo ldquoNatildeo eacute com vitaminas que se mata a fome A

culinaacuteria jaacute que a alimentaccedilatildeo eacute a condiccedilatildeo vital do homem se impotildee como

obrigaccedilatildeo cultural () A chamada poliacutetica cultural comeccedila pela comidardquo (SILVA

MELLO 1956 p 622)

Focando o prejuiacutezo agrave sauacutede dos jovens no Brasil Cacircmara Cascudo

(2004) faz ressalvas agrave praacutetica alimentar moderna que eacute adotada por esse grupo

Para o autor os jovens tecircm maior atraccedilatildeo pelas refeiccedilotildees raacutepidas e substituiccedilatildeo

por lanches Possuem escassez de tempo para participar dos momentos sociais

familiares destinados agrave alimentaccedilatildeo pois sempre tecircm atividades e

compromissos caracteriacutesticos dessa fase da vida Na era dos lanches raacutepidos

eles acabam ldquoperdendo a personalidade do paladar sua fisionomia exigecircncias

predileccedilotildees simpatias Habituam-se agrave comida vulgar e venal raacutepida atendendo

aos reclamos imediatos do estocircmagordquo (p 350) Afirma ainda

Natildeo eacute o alimento em si na potecircncia intriacutenseca de sua substacircncia a fonte isolada da forccedila vital Satildeo os elementos psicoloacutegicos decorrentes da refeiccedilatildeo Cada vez menos refeiccedilatildeo e cada vez mais comidas faacuteceis encontraacuteveis vendidas nos botequins elegantes ou nas cantinas universitaacuterias (CAcircMARA CASCUDO 2004 p 348)

Muitas informaccedilotildees tecircm sido veiculadas nos uacuteltimos anos sobre a

relaccedilatildeo sauacutede-alimentaccedilatildeo referindo-se sobretudo aos alimentos

industrializados No Brasil o ldquoGuia Alimentar para a Populaccedilatildeo Brasileirardquo

publicado em 2006 com uma caracteriacutestica prioritariamente quantitativa foi

75

atualizado em 2014 trazendo um perfil mais qualitativo do que o primeiro e

discute sobre os perigos agrave sauacutede de uma alimentaccedilatildeo baseada em uma dieta de

produtos muito processados ou seja industrializados ao mesmo tempo em que

oferece sugestotildees mais saudaacuteveis para melhorar a qualidade de vida alimentar

da populaccedilatildeo evitando-se frituras e alimentos com grande quantidade de

aditivos quiacutemicos O Guia Alimentar sugere aos comedores uma priorizaccedilatildeo

pelos alimentos in natura e uma maior aproximaccedilatildeo com uma cultura alimentar

mais voltada agraves praacuteticas tradicionais

De Garine (1987) natildeo acredita que o consumo de alimentos

industrializados eacute adotado de maneira generalizada pelas pessoas seja de

forma individualizada seja por grupo familiares Para o autor se por um lado eacute

verdadeiro que a globalizaccedilatildeo tem propiciado uma homogeneizaccedilatildeo dos haacutebitos

alimentares por outro observa-se tambeacutem a permanecircncia da tradiccedilatildeo alimentar

com seus modelos locais de alimentaccedilatildeo A manutenccedilatildeo da tradiccedilatildeo alimentar

estaacute ligada agrave identificaccedilatildeo com as raiacutezes culturais que satildeo passadas por

geraccedilotildees e se esforccedilam por manter alguns rituais e simbologias dessa tradiccedilatildeo

alimentar e portanto natildeo cedendo prontamente ou totalmente aos apelos da

induacutestria pela adoccedilatildeo completa dos alimentos processados Assim para esse

autor natildeo eacute correto generalizar o poder da industrializaccedilatildeo de alimentos pois a

cultura local e a tradiccedilatildeo oferecem um peso que pode tambeacutem influenciar nas

escolhas alimentiacutecias Neste sentido o autor defende inclusive que os paiacuteses

em desenvolvimento se livrem de boa parte do peso das importaccedilotildees valorizando

os alimentos autoacutectones Na percepccedilatildeo deste autor existem dois tipos de

comedores Aqueles que tentam manter uma relaccedilatildeo tradicional e aqueles que

buscam pelo moderno

Possivelmente Gilberto Freyre concordaria com essa conclusatildeo de De

Garine pois era defensor da tradiccedilatildeo culinaacuteria como forma importante de

manutenccedilatildeo e continuidade de uma identidade regional e nacional Em texto

escrito em 1924 e publicado em ldquoTempo de Aprendizrdquo (1979) defende que ldquoo

paladar eacute talvez o uacuteltimo reduto do espiacuterito nacional quando ele se

desnacionaliza estaacute desnacionalizado tudo o maisrdquo (p 367) O autor tratou

sobretudo da cozinha e da comida nordestina de Pernambuco Em seu

ldquoManifesto Regionalistardquo (1996) ndash lido para a plenaacuteria durante o 1ordm Congresso

Brasileiro de Regionalismo ocorrido em Recife em 1926 ndash o maior destaque

76

sobre a importacircncia de se manter a tradiccedilatildeo foi dado agrave parte culinaacuteria Nele

Freyre propotildee uma retomada agrave valorizaccedilatildeo da cozinha regional seus modos de

fazer e de suas praacuteticas Apoacutes discorrer longamente e detalhadamente sobre

as caracteriacutesticas da culinaacuteria pernambucana ele conclui

Feitos estes reparos estou inteiramente dentro de um dos assuntos que me pareceu dever ser versado por algueacutem neste congresso os valores culinaacuterios do Nordeste A significaccedilatildeo social e cultural desses valores A importacircncia deles quer dos quitutes finos quer dos populares A necessidade de serem todos defendidos pela gente do Nordeste contra a crescente descaracterizaccedilatildeo da cozinha regional (FREYRE 1996 p 59)

No entanto esta natildeo eacute a percepccedilatildeo para outros autores que defendem

a existecircncia de um terceiro movimento mais coerente e menos radical que

privilegia a comunicaccedilatildeo entre tradiccedilatildeo e modernidade alimentar Afirmam isso

baseando-se nas raacutepidas transformaccedilotildees que ocorrem no campo da

alimentaccedilatildeo Observam que os espaccedilos para os contornos tradicionais da

produccedilatildeo da comida e dos modos de comer vatildeo sendo diluiacutedos poreacutem natildeo se

extinguem embora ao analisar a tradiccedilatildeo na oacutetica de um mundo em constante

mudanccedila surge sempre a duacutevida sobre a sua capacidade de permanecer

Assim Doacuteria (2014) Giddens (2012) Garciacutea Canclini (2013) Cacircndido (1982)

Cacircmara Cascudo (2004) e Giard (2012) defendem que a modernidade

pressupotildee e impotildee mudanccedilas de formato mas natildeo necessariamente isso

significa o rompimento absoluto com os moldes tradicionais Para estes o

caminho mais interessante eacute o de uma complementaridade pela convivecircncia dos

ldquofatores de persistecircncia ou permanecircncia que contribuem para a continuidade

dos modos tradicionais de vida (praacuteticas e saberes alimentares) com os de

transformaccedilatildeo que representam a incorporaccedilatildeo aos padrotildees modernosrdquo

(CAcircNDIDO 1982 p 200)

Doacuteria (2014) estimula um novo caminho para a culinaacuteria a junccedilatildeo da

tradiccedilatildeo com a inovaccedilatildeo pois a inovaccedilatildeo natildeo existe sem a tradiccedilatildeo natildeo se

chega a uma culinaacuteria dita como ldquonovardquo sem conhecer profundamente os

segredos da tradiccedilatildeo Assim pressupotildee-se a necessidade de um terceiro

caminho uma mescla culinaacuteria possiacutevel na qual o tradicional incorpore

elementos modernos e vice-versa

Sobre o potencial de as tradiccedilotildees alimentares resistirem ocupando

outros espaccedilos ou seja unindo-se ao moderno Poulain (2013 p 35) acena

77

esperanccedilosamente que ldquoa histoacuteria da alimentaccedilatildeo mostrou que cada vez que

identidades satildeo postas em perigo a cozinha e as maneiras agrave mesa satildeo os

lugares privilegiados de resistecircnciardquo

Em sentido semelhante ao exposto acima por Jean Pierre Poulain

Cacircmara Cascudo (2004) defende o peso da tradiccedilatildeo ldquoEspero mostrar a

antiguidade de certas predileccedilotildees alimentares que os seacuteculos fizeram haacutebitos

explicaacuteveis como uma norma de uso e um respeito de heranccedila dos mantimentos

da tradiccedilatildeordquo (p 14) No entanto diferentemente de Gilberto Freyre que defendia

uma tradiccedilatildeo culinaacuteria irretocaacutevel Luiacutes da Cacircmara Cascudo apesar de defensor

das tradiccedilotildees alimentares parecia compreender de forma menos resistente do

que Freyre que a inserccedilatildeo de atributos modernos no campo alimentar se

ampliaria para o bem e sobretudo para o mal segundo as observaccedilotildees

negativas do autor a respeito Mas ele entendia a necessidade de que isso

passasse a ser administrado ao inveacutes de puramente combatido

No povo haacute dois elementos autocircmatos e harmocircnicos coexistentes no assunto alimentar O primeiro estaacutetico basilar tiacutepico indeformaacutevel O segundo renovaacutevel dinacircmico plaacutestico Dos primeiros alguns podem desaparecer ou constituir uso minoritaacuterio Dos segundos outros descem agrave estratificaccedilatildeo tornando-se tradicionais superpondo-se imediatamente agrave camada profunda dos velhos usos participando do antigo patrimocircnio preferencial Essa mecacircnica regulariza a permanecircncia do cardaacutepio familiar Todos os grupos humanos tecircm uma fisionomia alimentar (CAcircMARA CASCUDO 2004 p 373)

Para Garciacutea Canclini (2013) a busca por aspectos tradicionais na

contemporaneidade sinaliza uma necessidade de distanciamento dos indiviacuteduos

com o excesso de modernidade e a inseguranccedila vivida no mundo

contemporacircneo No que se refere a alimentaccedilatildeo as inseguranccedilas ou

desconfianccedilas natildeo satildeo poucas Isso talvez explique a busca que tem ocorrido

pela comida de nossos antepassados

Natildeo obstante o tradicionalismo aparece muitas vezes como recurso para suportar as contradiccedilotildees contemporacircneas Nessa eacutepoca em que duvidamos dos benefiacutecios da modernidade multiplicam-se as tentaccedilotildees de retornar a algum passado que imaginamos mais toleraacutevel Frente agrave impotecircncia para enfrentar as desordens sociais o empobrecimento econocircmico e os desafios tecnoloacutegicos frente agrave dificuldade para entendecirc-los a evocaccedilatildeo de tempos remotos se reinstala na vida contemporacircnea arcaiacutesmos que a modernidade havia substituiacutedo (GARCIacuteA CANCLINI 2013 p 166)

78

Outro exemplo para que a tradiccedilatildeo mantenha sua importacircncia social e

de formaccedilatildeo da sociedade brasileira pode ser demonstrado atraveacutes das Leis de

Incentivo agrave cultura e ao patrimocircnio cultural valorizando tanto a culinaacuteria tiacutepica

quanto o turismo rural com foco na tradiccedilatildeo local No campo alimentar a forma

artesanal de fazer o queijo mineiro e o oficio das baianas do acarajeacute satildeo

exemplos de alimentos que estatildeo entre os patrimocircnios imateriais do paiacutes

catalogados pelo IPHAN (Instituto do Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional)

Outros saberes envolvendo a comida e a cultura encontram-se na lista de

espera Eacute o caso da produccedilatildeo de doces tradicionais pelotenses do modo de

fazer tradicional da cajuiacutena do Piauiacute e o saber fazer do queijo artesanal serrano

de Santa Catarina e Rio Grande do Sul Em niacutevel mundial muitas cozinhas

internacionais jaacute satildeo consideradas Patrimocircnio Imaterial da Humanidade pela

Unesco como eacute o caso das cozinhas Mexicana Francesa e Mediterracircnea

(Greacutecia Itaacutelia Espanha e Marrocos)

Pelo objetivo deste trabalho eacute fundamental dar continuidade agrave discussatildeo

no presente item analisando os reflexos dos haacutebitos alimentares

contemporacircneos sobre as dinacircmicas especificamente rurais buscando

compreender como o rural na atualidade se comporta diante das praacuteticas

alimentares tradicionais e modernas

35 Modernidade e tradiccedilatildeo no contexto alimentar rural contemporacircneo

Ao longo de sua histoacuteria pode-se dizer que o Brasil eacute um paiacutes de muitos

rurais por sua dimensatildeo geograacutefica por suas regiotildees de clima diferenciados e

formaccedilatildeo cultural diversa como exposto por Del Priore e Venacircncio (2006) o

Brasil eacute formado por

Grupos sociais em suas interconexotildees territoriais grupos que satildeo filhos de uma histoacuteria ou seja de um conjunto de costumes comuns ligados agrave religiatildeo ritos mitos praacuteticas econocircmicas crenccedilas teacutecnicas e usos do corpo relacionados com as culturas agriacutecolas ou com a criaccedilatildeo de animais (DEL PRIORE VENAcircNCIO 2006 p 14)

Esses muitos rurais implicam tambeacutem em haacutebitos e praacuteticas alimentares

peculiares Alimentos e praacuteticas que satildeo valorizados em uma determinada

cultura rural pode ser desinteressante para outra Outras tantas caracteriacutesticas

poreacutem podem se assemelhar No entanto eacute cada vez mais tecircnue a linha que

79

separa o rural do urbano e o dinamismo parece ser constante atualmente na

maior parte desses rurais Isso tem gerado a necessidade de reorganizaccedilatildeo do

trabalho e da vida cotidiana das famiacutelias como demonstram as anaacutelises

desenvolvidas por Graziano da Silva (1997) Wanderley (2000 e 2010) e Carneiro

(2005)

Definir o que eacute cultura rural hoje eacute um desafio Segundo Camarano e

Abramovay (1998 p 46) natildeo existe um criteacuterio universal que seja vaacutelido para

definir as fronteiras entre o rural e o urbano e que essa definiccedilatildeo varia de paiacutes a

paiacutes Assim ldquono Brasil eacute considerado como situaccedilatildeo rural os domiciacutelios e a

populaccedilatildeo recenseada que abrange toda a aacuterea fora do considerado urbano

inclusive os aglomerados rurais de extensatildeo urbana os povoados e os nuacutecleosrdquo

Mas esse criteacuterio natildeo explica por si soacute a cultura rural contemporacircnea incluindo

as suas praacuteticas alimentares

Carneiro (2005 p 8) considera outros aspectos para aleacutem da definiccedilatildeo

de limites geograacuteficos entre as duas categorias Segundo a autora durante muito

tempo a oposiccedilatildeo entre o rural e o urbano prevaleceu para a sociologia rural

como abordagem teoacuterico-conceitual em que o rural era determinado pela

ldquocentralidade na atividade agriacutecola isolamento geograacutefico e cultural fraca

mobilidade etcrdquo e tambeacutem o espaccedilo de manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo da tradiccedilatildeo e

dos costumes Mais correto seria dizer por concordarmos com a percepccedilatildeo da

autora de que nos tempos atuais natildeo cabe mais classificar categorias como

rural ou urbano partindo apenas de justificativas de limites geograacuteficos que uma

determinada populaccedilatildeo ocupa mas sim pelas relaccedilotildees sociais que se datildeo no

interior desses espaccedilos Reportando ao trabalho de Marc Mormont Carneiro

(2005) apresenta a distinccedilatildeo entre o rural como categoria analiacutetica e como

categoria operacional destacando que a dificuldade em pensar o rural estaacute no

uso do termo que eacute feito tanto por pesquisadores e na academia quanto por

agecircncias que elaboram estatiacutesticas e ainda utilizada no senso comum

Nos termos de Mormont as propriedades do rural satildeo possibilidades simboacutelicas mas tambeacutem possibilidades praacuteticas Elas orientam as praacuteticas sociais sobre um determinado espaccedilo de acordo com os significados simboacutelicos que lhes satildeo atribuiacutedos sendo portanto inuacutetil procurar em uma realidade fiacutesica econocircmica ou ecoloacutegica os fundamentos de uma ruralidade Tambeacutem seria inuacutetil procurar nesta realidade apenas um imaginaacuterio que faria do rural uma pura construccedilatildeo mental (CARNEIRO 2005 p 9)

80

Nos interessa compreender nessa discussatildeo teoacuterica o que prevalece no

rural contemporacircneo brasileiro uma continuidade atrelada aos modos

tradicionais dos modos de vida e a reproduccedilatildeo social destacando aquelas

questotildees relacionadas agraves praacuteticas alimentares Ou por outro lado se a

aproximaccedilatildeo com o urbano tem transformado o rural a ponto de se estar

perdendo algumas peculiaridades e tradiccedilotildees que historicamente foram

construiacutedas Para instrumentalizar essa anaacutelise torna-se necessaacuteria uma

reflexatildeo sobre a dinacircmica no mundo rural

351 A dinacircmica do rural entre a tradicional e o moderno

Segundo Carneiro (1998 e 2005) compreender o dinamismo que ocorre

no campo eacute importante no sentido de natildeo congelar o conceito de rural como uma

categoria imutaacutevel onde seus habitantes sejam incapazes ldquode absorver e de

acompanhar a dinacircmica da sociedade em que se insere e de se adaptar agraves novas

estruturas sem contudo abrir matildeo de valores visatildeo de mundo e formas de

organizaccedilatildeo social definidas em contextos soacutecio-histoacutericos especiacuteficosrdquo

(CARNEIRO 1998 p 1) A autora tambeacutem argumenta sobre a possibilidade e a

ocorrecircncia de uma nova ruralidade aquela que eacute capaz de fazer conviver com

os reflexos do moderno sobre o tradicional sem que isso signifique um

rompimento com a tradiccedilatildeo descaracterizando o rural Tampouco cabe falar em

uma volta ao passado mas sim do surgimento de uma ruralidade que resgate

determinadas praacuteticas do passado cujo conhecimento pertence aos mais

velhos

Desvendar os distintos significados socialmente atribuiacutedos a espaccedilos e manifestaccedilotildees culturais tidos como rurais sinaliza uma perspectiva de que o mundo rural natildeo estaria sucumbindo agraves pressotildees do universo urbano nem representaria uma ruptura com o urbano Esse processo entendido superficialmente por alguns como de ldquourbanizaccedilatildeordquo do campo produziria novas sociabilidades e novas identidades sociais que dificilmente caberiam em uma uacutenica classificaccedilatildeo mas que continuam a ser representadas socialmente como rurais (CARNEIRO 2005 p 9)

O que os estudos dos autores citados aqui tecircm apontado eacute que as

oposiccedilotildees entre rural e urbano natildeo devem mais ser usadas para pensar a

ruralidade atual brasileira Para Brandemburg (2010) o mundo rural se insere no

processo de modernizaccedilatildeo e ateacute busca por ele mas sem deixar de lado

81

totalmente o modo tradicional de vida Essa coexistecircncia significa a necessidade

de seguir resolvendo os conflitos que surgem a partir dessa dinacircmica O autor

defende que existam rurais em tempos diferentes no Brasil mas que ldquopersistem

ora na sua forma tiacutepica ora sobrepostos ora expressos na forma de um rural

novo reconstruiacutedo ou reflexivordquo (BRANDEMBURG 2010 p 423) O autor cita

Wanderley (1996) quando discorre que este rural reconstruiacutedo eacute aquele em que

o moderno natildeo substitui ou extingue o tradicional mas lhe permite passar por

ressignificaccedilotildees e que se reorganiza socialmente em um grupo ou comunidade

local

Algumas mudanccedilas que vem ocorrendo no meio rural podem alterar os

modos de vida e interferir nas escolhas alimentares das famiacutelias rurais A

facilidade de acesso ao comeacutercio da cidade mais proacutexima ou agrave existecircncia do

comeacutercio na proacutepria comunidade pode gerar interesse em consumir alguns

alimentos que natildeo faziam parte da dieta em tempos passados como os produtos

processados Alguns siacutembolos do estilo de vida moderno chegam mais

facilmente agraves famiacutelias rurais como o uso dos eletrodomeacutesticos que equipam a

cozinha facilitando o trabalho e a reproduccedilatildeo das praacuteticas alimentares como

por exemplo o fogatildeo a gaacutes e a geladeira

Referimos muito no presente trabalho agrave dicotomia ldquopraacuteticas alimentares

contemporacircneasrdquo e como contraponto a existecircncia de uma praacutetica voltada ao

tradicional Assim o tradicional e o novo (ou moderno) surgem como aspectos

importantes agraves vezes conflitantes agraves vezes em interaccedilatildeo Refletir sobre o

mundo moderno pensar sobre modernidade eacute pensar tambeacutem em passado em

tradiccedilatildeo Poreacutem natildeo se pode afirmar que o moderno implica na morte da

tradiccedilatildeo isso foi apontado por Doacuteria (2014) Montanari (2008) e Giard (2012)

Ao analisar-se um tema em que se evidenciem traccedilos de oposiccedilatildeo e ou

de relaccedilatildeo entre o tradicional e o moderno percebe-se que haacute uma tendecircncia

no senso comum em acreditar que a modernidade eacute capaz de extinguir a

tradiccedilatildeo Poreacutem estudiosos do assunto como Giddens (2012) Bartolomeacute (2006)

e Garciacutea Canclini (2013) tecircm mostrado que o caminho mais interessante e que

estaacute em evoluccedilatildeo eacute uma ligaccedilatildeo entre os dois polos da questatildeo

Para Giddens (1991) o tradicional eacute quase sempre atrelado ao passado

idealizado mas que por sua vez se torna dinacircmico com o processo de

82

modernizaccedilatildeo e de novas interpretaccedilotildees dadas pelas geraccedilotildees que recebem os

conhecimentos e experiecircncias vividas por seus antepassados

Nas culturas tradicionais o passado eacute honrado e os siacutembolos valorizados porque contecircm e perpetuam a experiecircncia de geraccedilotildees A tradiccedilatildeo eacute um modo de integrar a monitoraccedilatildeo da accedilatildeo com a organizaccedilatildeo tempo-espacial da comunidade A tradiccedilatildeo natildeo eacute inteiramente estaacutetica porque ela tem que ser reinventada a cada nova geraccedilatildeo conforme esta assume sua heranccedila cultural dos precedentes (GIDDENS 1991 p 31)

Em semelhante linha de pensamento Bartolomeacute (2006) entende a

tradiccedilatildeo como um importante veiacuteculo para se recriar identidades Em seu

continuo processo de construccedilatildeo e reconstruccedilatildeo as identidades mesclam

aspectos do passado com os elementos do presente no mundo contemporacircneo

aleacutem de enfrentar as mudanccedilas necessaacuterias para construir novas relaccedilotildees entre

o tradicional e o moderno ldquoEm um de seus niacuteveis implica uma busca no passado

para instituir uma nova relaccedilatildeo com a realidade contemporacircneardquo (BARTLOMEacute

2006 p 58)

Giddens (2012) e Simsom (2003) nos falam sobre o papel da tradiccedilatildeo e

da transmissatildeo dos saberes de uma geraccedilatildeo a outra feita com a presenccedila dos

ldquoguardiatildeesrdquo Para Giddens (2012) tradiccedilatildeo e memoacuteria andam juntas A tradiccedilatildeo

possui ldquoguardiatildeesrdquo e combina o conteuacutedo moral com o emocional O autor

entende a memoacuteria como um processo ativo e natildeo apenas como lembranccedila

Processo ativo porque as memoacuterias satildeo continuamente reproduzidas por esses

guardiatildees que lhes conferem um modo de continuidade das experiecircncias A

presenccedila desses guardiatildees se torna ainda mais importante no mundo

contemporacircneo para que as experiecircncias passadas seus erros e acertos natildeo se

percam da sociedade

Se nas culturas orais as pessoas mais velhas satildeo o repositoacuterio (e tambeacutem frequentemente os guardiatildees) das tradiccedilotildees natildeo eacute apenas porque as absorveram em um ponto mais distante no tempo que as outras pessoas mas porque tecircm tempo disponiacutevel para identificar os detalhes dessas tradiccedilotildees na interaccedilatildeo com os outros da sua idade e ensinaacute-las aos jovens Por isso podemos dizer que a memoacuteria eacute um meio organizador da memoacuteria coletiva (GIDDENS 2012 p 100-101)

Eacute possiacutevel considerar que muitas tradiccedilotildees tecircm sua origem no rural O

rural do passado com caracteriacutesticas muito tradicionais na produccedilatildeo e na

cultura eacute descrito e analisado por Cacircndido (1982) e Brandatildeo (1981) Antocircnio

Cacircndido mostra um dos rurais brasileiros com suas peculiaridades no que se

83

refere a alimentaccedilatildeo e a cultura Em ldquoParceiros do Rio Bonito estudo sobre o

caipira paulista e a transformaccedilatildeo dos seus meios de vidardquo o autor apresenta

suas anaacutelises antropoloacutegicas e socioloacutegicas do modo de vida caipira

Neste estudo o autor mostra detalhadamente os modos de vida do

grupo pesquisado seus meios de subsistecircncia a forma tradicional de conduccedilatildeo

dos trabalhos agriacutecolas a composiccedilatildeo de sua alimentaccedilatildeo e seus recursos para

obtecirc-la a cultura caipira as formas de solidariedade o cotidiano do trabalho rural

do momento de acordar sair para o trabalho ao momento de retornar ao siacutetio

No aspecto da comensalidade nos chama a atenccedilatildeo as observaccedilotildees do

autor para a praacutetica alimentar do agricultor estudado por ele que no dia a dia

levava o seu almoccedilo em marmita depositada no embornal para ser consumido

no local de trabalho Os momentos das refeiccedilotildees em famiacutelia na cozinha ficavam

restrito aos domingos

O uso da marmita eacute tambeacutem a realidade de muitas outras aacutereas rurais e

tambeacutem urbanas no Brasil em tempos passados em periacuteodo de grande

movimentaccedilatildeo no campo onde o trabalho era realizado muito distante da

habitaccedilatildeo Atualmente isso permanece e nas aacutereas urbanas tambeacutem eacute uma

praacutetica muita utilizada pelos trabalhadores Mas a comensalidade pode se dar

no local do trabalho havendo outras pessoas na mesma atividade Como jaacute visto

anteriormente para ocorrer a comensalidade natildeo eacute necessaacuterio que o espaccedilo

fiacutesico seja a habitaccedilatildeo

Em relaccedilatildeo ao tipo de comida Cacircndido (1982) descreve uma

alimentaccedilatildeo simples baseada no arroz feijatildeo milho aboacutebora e a mandioca

frutas como jabuticaba e verduras como a couve eram as mais comuns Do mato

se coletava o palmito e se caccedilava a carne Esse tipo de alimentaccedilatildeo natildeo difere

do que Cacircmara Cascudo (2004) descreve como sendo os elementos baacutesicos da

alimentaccedilatildeo presentes na cozinha rural brasileira sendo comum tambeacutem o

cultivo de verduras legumes e frutas para consumo proacuteprio da famiacutelia bem como

a produccedilatildeo de animais sobretudo a galinha e o porco A banha do porco era

usada no lugar do oacuteleo de cereais os animais eram alimentados com milho e

outros produtos plantados e colhidos no quintal

O mesmo tipo de dieta foi descrito por Brandatildeo (1981) em sua pesquisa

com lavradores na regiatildeo de Goiacircnia na deacutecada de 1970 Ao autor destaca que

a dieta das famiacutelias rurais tambeacutem consistia basicamente de arroz feijatildeo milho

84

e mandioca os produtos da horta do quintal (legumes e verduras) frutas

tubeacuterculos carne de porco de aves de caccedila e de peixes Com exceccedilatildeo da caccedila

e do peixe todos os outros itens eram produzidos por elas no entorno da

moradia

O rural tratado por Cacircndido (1982) e por Brandatildeo (1981) produz mais do

que alimentos produz um modo de vida que eacute rico em significados e simbologias

que orienta a reproduccedilatildeo social das famiacutelias rurais

Entre lavradores cuja atividade econocircmica estaacute quase toda dentro dos limites da produccedilatildeo diaacuteria e sazonal de comida para a famiacutelia o alimento e tudo o que envolve o acesso a ele aparecem como agentes reguladores entre o homem e o seu mundo Praticamente todo o seu trabalho eacute dirigido a obter alimentos para uma dieta cujos ingredientes produzem conservam ou comprometem as suas condiccedilotildees pessoais de presenccedila em esferas sociais de relaccedilotildees entre produtores de alimentos (BRANDAtildeO 1981 p 148)

No rural contemporacircneo natildeo se pode mais afirmar que a tradiccedilatildeo eacute

determinante nem que se manteacutem encerrada fechada num mundo agrave parte

conforme jaacute apontado por Brandemburg (2010) e Wanderley (1996) embora

muitos costumes ritos praacuteticas alimentares e de reproduccedilatildeo social e econocircmica

se mantenham Isso se aplica tambeacutem agraves praacuteticas alimentares cabendo agraves

famiacutelias rurais fazerem suas escolhas Escolhas essas que natildeo satildeo tatildeo simples

considerando um universo de possibilidades e a proacutepria dificuldade de opccedilatildeo do

ser humano diante do mundo moderno

Nesse universo de possibilidades de escolhas alimentares os

consumidores contemporacircneos buscam escolher aquilo que mais lhes

apetecem de acordo com razotildees de ordem cultural simboacutelica econocircmica social

etc

La variabilidad de las elecciones alimentarias humanas procede sin duda en gran medida de la variabilidad de los sistemas culturales si no consumimos todo lo que es bioloacutegicamente comestiblese debe a que todo lo que es bioloacutegicamente comible no es culturalmente comestible (FISCHLER 1995 p 33)

Segundo o autor as muitas opccedilotildees no processo de escolha geram

anguacutestias alimentares que eacute uma caracteriacutestica do comensal moderno

Inclusive porque ele tem consciecircncia de uma seacuterie de riscos no campo

alimentar sobretudo os riscos que o alimento pode causar agrave sua sauacutede

85

As discussotildees sobre ruralidade no Brasil natildeo satildeo conclusivas no sentido

de afirmar que o peso da tradiccedilatildeo alimentar se impotildee Especificamente sobre

haacutebitos alimentares das populaccedilotildees rurais no Brasil contemporacircneo haacute

necessidade de ampliar o leque de abrangecircncia e regiotildees de estudo No

levantamento que fiz para a presente pesquisa verifiquei que os estudos sobre

alimentaccedilatildeo no meio rural tecircm sido de caraacuteter regional a maior parte na regiatildeo

Sul do Paiacutes Outra informaccedilatildeo que verifiquei eacute uma variedade de estudos sobre

alimentaccedilatildeo elaborados com consumidores na aacuterea urbana Assim o que

existem de estudos sobre praacuteticas alimentares no meio rural satildeo apontamentos

importantes e relevantes poreacutem ainda incipientes para que que sejam capazes

de definir uma realidade sobre praacuteticas alimentares para todo o rural brasileiro

Se por um lado haacute autores que apontam para uma tendecircncia a uma

homogeneizaccedilatildeo alimentar nas sociedades ocidentais e por outro aqueles que

reforccedilam a importacircncia da tradiccedilatildeo e em sua capacidade de se sobrepor haacute uma

terceira posiccedilatildeo sobre a questatildeo Satildeo autores que percebem a possibilidade do

meio termo ou de uma convivecircncia entre os aspectos da contemporaneidade e

da tradiccedilatildeo no que se refere agrave alimentaccedilatildeo Doacuteria (2014) aponta que o tradicional

e o novo datildeo sinais de que sua interaccedilatildeo eacute fundamental Natildeo se inventam novas

comidas elas estatildeo sendo revisitadas e a induacutestria tem investido nisso

Aleacutem de Doacuteria (2014) Poulain (2013) e Lody (2008) partilham da opiniatildeo

de que mesmo que a cada dia modernas possibilidades alimentares ndash cujo foco

seja a ampliaccedilatildeo do consumo de alimentos processados e ultraprocessados ndash

ampliem seus espaccedilos na sociedade natildeo conseguimos abandonar

completamente os viacutenculos com os haacutebitos alimentares herdados dos pais e

avoacutes Haacute sempre aquele doce especial que a avoacute fazia aquele bolo que soacute se

comia na casa dos pais aquele jeito de comer que aprendemos na infacircncia e

por isso sentimos falta mesmo que adotemos um estilo de vida que nos afaste

cada vez mais do espaccedilo social alimentar domeacutestico Os indiviacuteduos se sentem

emocionalmente ligados aos haacutebitos alimentares de sua infacircncia em geral

marcados pela cultura tradicional

Assim apesar de estarem inseridas em uma cultura que lhes eacute peculiar

as famiacutelias rurais natildeo estatildeo imunes agraves influecircncias dos demais tipos culturais e

tambeacutem natildeo satildeo estaacuteticas como defende Carneiro (1998) Elas acompanham o

ritmo das mudanccedilas em sua realidade nas quais estatildeo incluiacutedas tambeacutem as

86

praacuteticas alimentares Como bem define Elias (1994 p 145) ldquoa relaccedilatildeo entre

sociedade e indiviacuteduo eacute tudo menos imoacutevel Modifica-se com o desenvolvimento

da humanidaderdquo No sentido dado por Norbert Elias para a noccedilatildeo de habitus

social empregado agraves sociedades modernas ocidentais haacute uma tendecircncia para

a diminuiccedilatildeo das diferenccedilas regionais entre as pessoas agrave medida que o

desenvolvimento cria maiores possibilidades de integraccedilatildeo entre as regiotildees O

que natildeo implica obrigatoriamente em substituiccedilatildeo de todas as praacuteticas

tradicionais e adoccedilatildeo a outras

36 O papel feminino nas praacuteticas alimentares na famiacutelia

No processo de decisatildeo alimentar envolvendo o cardaacutepio cotidiano das

principais refeiccedilotildees e as aquisiccedilotildees a serem feitas no mercado eacute a mulher que

na maioria das vezes exerce o poder de decisatildeo embora tome as decisotildees

baseadas no gosto e nos haacutebitos familiares Isso eacute apontado em Arnaiz (1996)

Mennell et al (1992) Carrasco (1992) Freyre (1964 2006) Cacircmara Cascudo

(2004) e Giard (2012) Segundo Doacuteria (2012) mesmo apoacutes a revoluccedilatildeo industrial

e a inserccedilatildeo da mulher no mercado de trabalho a funccedilatildeo alimentar continuou

sendo atribuiacuteda como sendo da mulher

Arnaiacutez (1996) destaca que um dos fatores que contribuiacuteram para que a

relaccedilatildeo mulher ndash alimentaccedilatildeo ocorresse eacute a sua ligaccedilatildeo bioloacutegica com a

maternidade Historicamente a sociedade atribuiu ao papel feminino a

transmissatildeo natural dos trabalhos domeacutesticos e por consequecircncia os cuidados

com os membros da famiacutelia Dentre as atribuiccedilotildees femininas estaacute a de alimentar

seus filhos Citando Carrasco (1992) a autora destaca que a funccedilatildeo de satisfazer

as necessidades atraveacutes da alimentaccedilatildeo eacute primeiramente fisioloacutegica mas

possui tambeacutem outras ldquoSin embargo esta tarea comporta ademaacutes la

reproduccioacuten y satisfaccioacuten de otras relaciones sociales tales como identidade

reciprocidade comensalidade y comunicacioacuten que se expresan em cada uno de

los contenidos de las atividades que incorporardquo (CARRASCO 1992 apud

ARNAIZ 1996 p 31)

Segundo Arnaiz (1996) o papel atribuiacutedo socialmente agrave mulher como

responsaacutevel pela tarefa alimentar para aleacutem de fisioloacutegica encontra principal

argumento no final do seacuteculo XIX quando tanto na famiacutelia burguesa quanto na

87

trabalhadora a funccedilatildeo era basicamente reprodutiva Diferentemente do espaccedilo

externo ao lar no qual repousava o objetivo de produccedilatildeo de mercadorias Assim

havia uma clara e explicita divisatildeo sexual do trabalho Ao homem (pai) cabendo

o papel de provedor e agrave mulher (matildee) o papel de reproduccedilatildeo tanto bioloacutegica

quanto social e a responsabilidade pela alimentaccedilatildeo e por outras necessidades

domeacutesticas dos membros da famiacutelia

Woortmann (1985) trata da divisatildeo tambeacutem dos espaccedilos fiacutesicos da

constituiccedilatildeo tradicional da famiacutelia Nessa percepccedilatildeo a famiacutelia supotildee a divisatildeo

do trabalho entre homens e mulheres e cria o espaccedilo do homem provedor como

aquele externo ao lar onde se constitui a relaccedilatildeo racional dos negoacutecios e da

ldquofriezardquo O espaccedilo da mulher como sendo o da casa o espaccedilo das relaccedilotildees

afetivas e portanto acolhedor encontrando dentre as atividades domeacutesticas a

responsabilidade pela elaboraccedilatildeo da comida como a mais caracteriacutestica

expressatildeo dessa afetividade Assim para o autor

O gecircnero eacute tambeacutem construiacutedo no plano das representaccedilotildees atraveacutes da percepccedilatildeo da comida A comida ldquofalardquo da famiacutelia de homens e de mulheres tanto para o antropoacutelogo que realiza a leitura consciente dos haacutebitos de comer como para os proacuteprios membros do grupo familiar ndash e atraveacutes deste ndash que realizam uma praacutetica inconsciente de um habitus alimentar (WOORTMANN 1985 p 2)

Ao atribuir diferenccedila de significado entre ldquocomidardquo e ldquomantimento o

autor mostra que essa diferenciaccedilatildeo tambeacutem possui conotaccedilatildeo de gecircnero pois

aleacutem de existir o antes e o depois da accedilatildeo culinaacuteria existe tambeacutem a conotaccedilatildeo

que envolve a mediaccedilatildeo masculina e a feminina O autor chama a atenccedilatildeo para

o que observou em seu estudo realizado com camponeses no Nordeste em que

mantimento era considerado um produto do roccedilado portanto de domiacutenio

masculino Mas esse mantimento se converteria em comida ao ser ldquoqueimado27rdquo

na cozinha que eacute compreendido como o espaccedilo feminino

O mantimento (natureza) eacute produto do roccedilado (cultura quando eacute oposto ao mato) pelo trabalho do homem Quando eacute queimado isto eacute quando de ldquocrurdquo passa a ldquocozidordquo processo que se realiza a casa domiacutenio da cultura mas no espaccedilo desta que corresponde agrave mulher (natureza) torna-se comida (cultura) Entatildeo o homem-cultura produz o mantimento-natureza e a mulher-natureza produz a comida-cultura (WOORTMANN 1985 p 9)

27 Expressatildeo muito utilizada pelos camponeses da regiatildeo nordeste segundo o autor

88

Cacircmara Cascudo (2004) discute a identidade social feminina na histoacuteria

da alimentaccedilatildeo no Brasil O papel das mulheres indiacutegenas africanas e

portuguesas que produziram uma importante miscigenaccedilatildeo do paladar que tanto

caracteriza a cozinha brasileira Mulheres que foram responsaacuteveis tambeacutem ao

longo da histoacuteria pela transmissatildeo dos segredos e da diversidade culinaacuteria que

dominaram

A culinaacuteria brasileira tem suas raiacutezes nos saberes que foram repassados

por geraccedilotildees de mulheres desses trecircs grupos eacutetnicos e na junccedilatildeo dos seus

saberes De cada grupo eacutetnico que formou a populaccedilatildeo brasileira detalhes foram

herdados e levados agrave mesa familiar ao longo da histoacuteria Muito do que estaacute

presente em nossas praacuteticas alimentares cotidianas e em festejos especiais eacute

reflexo de transmissatildeo cultural e histoacuterica

Sobre a influecircncia e importacircncia da mulher indiacutegena para a alimentaccedilatildeo

Freyre (1964 p 132) a descreve como sendo natildeo apenas ldquoa base fiacutesica da famiacutelia

brasileira mas valioso elemento de cultura material e alimentar na formaccedilatildeo

brasileirardquo Vaacuterios alimentos usados ateacute os dias atuais remeacutedios caseiros

formatos de utensiacutelios de cozinha etc satildeo heranccedilas das mulheres indiacutegenas

Da cunhatilde eacute que nos veio o melhor da cultura indiacutegena O asseio pessoal A higiene do corpo O milho O caju O mingau As comidas preparadas agrave base de mandioca e que se tornaram a base do regime alimentar do colonizador O brasileiro de hoje amante do banho e sempre de pente e espelhinho no bolso o cabelo brilhante de loccedilatildeo ou de oacuteleo de coco reflete a influecircncia de tatildeo remotas avoacutes (FREYRE 1964 p 132)

Segundo o autor a culinaacuteria brasileira natildeo seria a mesma sem os

quitutes de origem indiacutegena Ele destaca como a mescla dos conhecimentos da

mulher indiacutegena e da mulher portuguesa que se deu nas cozinhas das casas

grandes foi importante para tornarem esses quitutes com sabor ldquoabrasileiradordquo

O autor ainda ressalta a contribuiccedilatildeo da cultura africana por meio das mulheres

africanas para a culinaacuteria brasileira Originam dessa cultura a introduccedilatildeo de

azeite de dendecirc pimenta malagueta quiabo farofa quibebe vatapaacute mungunzaacute

caruru milho assado acarajeacute pipoca cuscuz de peixe novas variedades de

preparo de peixes e da galinha alguns doces broas e patildees de milho Segundo

o autor muitas mulheres alforriadas tiravam seu sustento com os tabuleiros de

doces vendiam cocadas quindins matildees bentas etc Algranti (2007) menciona

que antes de se tornarem populares e vendidos em tabuleiros os doces eram

89

considerados iguarias e apenas servidos em ocasiotildees especiais e eram por isso

demarcadores de distinccedilatildeo social

Assim como a junccedilatildeo dos saberes das mulheres indiacutegenas africanas e

portuguesas produziu comidas mais saborosas A troca de conhecimentos

propiciou novas adaptaccedilotildees aos pratos sobretudo aos doces A heranccedila

portuguesa no que se refere aos doces eacute muito forte segundo Freyre (2007)

mas era preciso a matildeo de obra e a intuiccedilatildeo das mulheres negras para dar o

toque certo nos pontos

Com sabores temperos supersticcedilotildees e haacutebitos das trecircs raccedilas que nos formaram a convivecircncia espontacircnea entre o cristal daquele accediluacutecar o sabor selvagem da fruta tropical e aquele que era o alimento baacutesico dos nossos iacutendios ndash a mandioca Juntando pilatildeo urupema saudade peneira de taquara raspador de coco esperanccedila colher de pau panela de barro mais a fartura de porcelana do oriente e bules e vasos de prata Eram doces preparados em tachos de cobre pesado heranccedila portuguesa largos quase trecircs palmos grandes duas alccedilas ardendo sobre velhos fogotildees a lenha Jovens negras tiravam os tachos pesados do fogo sem pedir ajuda As mais velhas usavam experiecircncia e sabedoria trazidas de terras distantes com olhares atentos para natildeo deixar o doce passar do ponto E sempre com aquela mesma forma de fazer ndash tranquila bem devagar sem pressa quase dolente (FREYRE 2007 p 13-14)

Bruit et al (2007) citam doces como as marmeladas goiabadas

rapaduras doces de frutas em calda acompanhados muitas vezes de queijo

como aqueles mais servidos nos jantares festivos que ocorriam nas casas-

grandes no interior de Satildeo Paulo e Minas Gerais Tanto as referecircncias de

Cacircmara Cascudo (2004) como as de Freyre (1964 2003 e 2007) revelam as

praacuteticas alimentares que ocorriam no Brasil colonial sobretudo nas casas-

grandes e dos sobrados que foram caracteriacutesticas primeiramente das regiotildees

dos engenhos de cana

Abdala (2007) afirma o controle da cozinha pelas mulheres no Brasil

colonial Referindo-se principalmente agraves escravas que viviam quase reclusas na

cozinha e por isso se tornaram personagem central na atividade da culinaacuteria

Segundo a autora essa era a realidade em Minas Gerais mas tambeacutem em

outras partes do paiacutes As escravas e as mulheres pobres executavam o serviccedilo

cotidiano Agraves senhoras ricas cabia dar as ordens e administrar os trabalhos

relativos agrave produccedilatildeo da comida Somente em algumas ocasiotildees elas se

dedicavam agrave elaboraccedilatildeo de algum prato ldquoEm casa no decorrer dos dias nas

festas intimas durante visitas como tambeacutem na rua no comeacutercio ambulante ou

90

das vendas cabia agrave mulher toda a funccedilatildeo relacionada agrave comidardquo (ABDALA

2007 p 80) Essa condiccedilatildeo tambeacutem eacute apontada por Vasconcellos (1968) que

apresenta a mulher deste periacuteodo em Minas Gerais como a dona absoluta dos

seus domiacutenios no interior das casas que compreendia tambeacutem a cozinha local

onde o homem raramente acessava

O domiacutenio feminino dos grupos eacutetnicos indiacutegenas africanos e portuguecircs

eacute perceptiacutevel na alimentaccedilatildeo brasileira ainda nos dias de hoje muito embora

com a chegada dos imigrantes europeus e tambeacutem de outras regiotildees a partir

da metade do seacuteculo XIX mulheres de outras culturas trouxeram importantes

contribuiccedilotildees para a culinaacuteria brasileira Destacando as italianas e as alematildes

cuja influecircncia se iniciou no Sul do Brasil mas tambeacutem na cidade de Satildeo Paulo

No interior do estado do Espirito Santo e na regiatildeo serrana do Rio de Janeiro as

culturas italianas e alematildes tambeacutem tiveram papel importante na formaccedilatildeo das

praacuteticas alimentares locais

Segundo Claval (2001) os saberes culinaacuterios foram repassados

matrilinearmente ao longo da histoacuteria e foram feitos principalmente por oralidade

pelas mulheres que podem ser chamadas de as ldquoguardiatildesrdquo termo usado por

Giddens (2012) e Simson (2003) Muitas mulheres mais velhas que natildeo tiveram

a oportunidade de estudar e sabiam apenas assinar o proacuteprio nome guardavam

na memoacuteria as receitas de suas matildees e avoacutes Pode-se dizer que a transmissatildeo

pela oralidade parece contribuir mais para aproximar as geraccedilotildees pela relaccedilatildeo

de proximidade necessaacuteria entre as mulheres Independente da forma se

escritas ou orais o importante eacute a compreensatildeo de que receitas repassadas

pelas geraccedilotildees carregam tambeacutem uma histoacuteria rica em significados e

experiecircncias vividas pelas mulheres das geraccedilotildees Afinal como dito por Doacuteria

(2006 p 103) ldquoreceitas como meros lsquomodos de fazerrsquo satildeo inuacuteteisrdquo

Tambeacutem Giard (2012) atribui agraves mulheres ndash as guardiatildes da tradiccedilatildeo ndash a

influecircncia na preferecircncia por determinados pratos Somos ldquovisitadosrdquo pelos

sabores e cheiros que a memoacuteria muitas vezes insiste em trazer agrave tona as

comidas de tempos de infacircncia e juventude que nos reporta a ocasiotildees

especiacuteficas da vida Em pesquisa etnograacutefica realizada com mulheres dedicadas

a culinaacuteria a autora concluiu que

A aquisiccedilatildeo dos ingredientes a preparaccedilatildeo e as regras de compatibilidade podem muito bem mudar de uma geraccedilatildeo agrave outra mas

91

o trabalho cotidiano das cozinhas continua sendo uma maneira de unir mateacuteria e memoacuteria vida e ternura instante presente e passado que jaacute se foi invenccedilatildeo e necessidade imaginaccedilatildeo e tradiccedilatildeo ndash gostos cheiros sabores formas consistecircncias atos gestos coisas e pessoas especiarias e condimentos (GIARD 2012 p 296)

Apesar do papel central da oralidade o caderno de receita eacute um

instrumento importante para se reportar aos haacutebitos alimentares de tempos

passados Talvez o primeiro registro de uma receita seja a que aponta Sitwell

(2012) Trata-se de um registro de 1700 aC na antiga Mesopotacircmia de uma

receita de ensopado de legumes e carne que foi esculpido em taacutebuas de argila

em fixada a um tuacutemulo Segundo Claval (2001) os registros de receitas em

cadernos tiveram iniacutecio em meados do seacuteculo XIX Haacute quem o tenha herdado

de pessoas da famiacutelia e mesmo que natildeo o utilize no dia-a-dia o manteacutem como

heranccedila afetiva

Abrahatildeo (2007) aponta que natildeo apenas receitas eram registradas em

muitos desses cadernos mas tambeacutem outras anotaccedilotildees necessaacuterias naquele

momento Ele menciona que as receitas culinaacuterias que foram arquivadas em

cadernos traziam ricas informaccedilotildees inclusive sobre outros aspectos

alimentares das eacutepocas como preccedilos ofertas e carecircncias temporaacuterias de

produtos

Atualmente e desde o surgimento da sociedade industrial as atividades

das mulheres passam por transformaccedilotildees com a saiacuteda para o mercado de

trabalho externamente ao lar a dupla jornada de trabalho as mudanccedilas sociais

poliacuteticas e econocircmicas que interferiram na dinacircmica da sociedade e

consequentemente na divisatildeo sexual do trabalho Isso propiciou a aproximaccedilatildeo

masculina da cozinha numa possiacutevel divisatildeo do trabalho domeacutestico espaccedilo

antes ocupado exclusivamente por mulheres Mas ainda assim segundo Doacuteria

(2012) a mulher eacute a principal responsaacutevel pela alimentaccedilatildeo da famiacutelia ldquoNatildeo haacute

duacutevidas de que ainda hoje a cozinha feminina eacute um dos pilares do poder da

mulher em que ela segue administrando a tradiccedilatildeo alimentar (DOacuteRIA 2012 p

255)

Segundo Giard (2012) ldquodentro de uma cultura uma mudanccedila das

condiccedilotildees materiais ou da organizaccedilatildeo poliacutetica eacute o que basta para modificar a

maneira de conceber e de repartir este tipo de tarefas cotidianas podendo

tambeacutem alterar a hierarquia dos diferentes trabalhosrdquo (GIARD 2012 p 211)

92

Para esta autora natildeo haacute nada de essecircncia feminina no fato de as mulheres de

ontem e as de hoje ainda serem as que mais se envolvem nas questotildees relativas

agrave alimentaccedilatildeo A questatildeo eacute puramente histoacuterica social e cultural

Diante das mudanccedilas e da permanecircncia feminina como principal

responsaacutevel pela alimentaccedilatildeo familiar as novas tecnologias disponibilizadas aos

espaccedilos da cozinha o acesso e a variedade de alimentos industrializados

facilitam a conduccedilatildeo desse papel pelas mulheres que desejam manter a

responsabilidade pela alimentaccedilatildeo da famiacutelia mas cujo tempo eacute escasso para

se dedicarem a todas as atividades que executam Por mais que possa haver

algum conflito em usaacute-los nos termos citados por Fischler (1995) haacute poreacutem o

aspecto da comodidade e economia de tempo que atuam como fatores

estimuladores ao seu uso

A dupla jornada de trabalho feminino natildeo ocorre apenas nas aacutereas

urbanas mas tambeacutem nas rurais seja para aquelas que possuem atividade

remunerada fora da propriedade em que moram seja para as que trabalham

apenas na propriedade As atividades das mulheres agricultoras envolvem o

ambiente interno e externo da casa e ainda o seu entorno e para muitas as

atividades tambeacutem do roccedilado conforme Panzutti (2006)

Na vida cotidiana a mulher se ocupa de cozinhar e servir a comida lavar a roupa cuidar dos animais prover a lenha costurar as roupas lavar a louccedila aleacutem de trabalhar na roccedila sempre acompanhada da prole que eacute de seu cuidado Eventualmente eacute auxiliada nessas tarefas por uma filha (PANZUTTI 2006 p 62)

Segundo a autora no meio rural a oposiccedilatildeo entre a casa e o

roccedilado apesar de socialmente ser dividida e hierarquizada mostrando os

domiacutenios dos homens e os das mulheres natildeo as livra de exercer muitas

atividades no espaccedilo considerado masculino Por outro lado a cozinha eacute um

espaccedilo bem definido como sendo o da mulher matildee de famiacutelia

Alguns estudos feitos no Sul do Brasil como o de Zanetti e Menasche

(2007) De Grandi (2003) Paulilo et al (2003) e Heredia (1984) relatam a

experiecircncia de mulheres atuando nas atividades agriacutecolas como o cuidado com

pequenos cultivos pomar pequenos animais mas tambeacutem mantendo a

responsabilidade pelas praacuteticas alimentares na preparaccedilatildeo e organizaccedilatildeo da

alimentaccedilatildeo da famiacutelia

93

Na apresentaccedilatildeo dos dados empiacutericos discuto as situaccedilotildees vivenciadas

pelas famiacutelias e o papel desempenhado pelas mulheres na alimentaccedilatildeo dos

membros da famiacutelia Tanto daquelas que trabalham apenas no siacutetio como

daquelas que exercem atividade remunerada fora dos siacutetios As mulheres

relataram sobre a dinacircmica exercida por elas no que se refere agraves praacuteticas

alimentares e cultura rural Na pesquisa de campo foram apontados pelos

entrevistados elementos aqui discutidos como a transmissatildeo de saberes

culinaacuterios e a relaccedilatildeo entre modos tradicionais e modos contemporacircneos das

praacuteticas culinaacuterias

94

4 ASPECTOS METODOLOacuteGICOS DA PESQUISA E A CHEGADA AO CAMPO

Neste capiacutetulo satildeo apresentados os aspectos metodoloacutegicos que

orientaram a pesquisa de campo bem como os resultados obtidos O trabalho

de campo foi conduzido utilizando-se um delineamento qualitativo agrave luz da

abordagem etnograacutefica no sentido dado por Peirano (1995) dando atenccedilatildeo

especial ao diaacutelogo com o outro Quivy e Campenhoudt (1992) defendem que o

trabalho de investigaccedilatildeo em Ciecircncias Sociais proporciona uma melhor anaacutelise

dos eventos qualitativos bem como uma compreensatildeo mais detalhada e sutil das

dinacircmicas de funcionamento do grupo estudado

Jaacute os direcionamentos de Poulain e Proenccedila (2003) tratam da pesquisa

voltada ao estudo das praacuteticas alimentares num contexto socioantropoloacutegico

Esses autores sugerem atenccedilatildeo conjunta por parte do pesquisador aos

comportamentos dos informantes naquilo que chamam de ldquopraacuteticas observadasrdquo

e ldquopraacuteticas reconstruiacutedasrdquo Para os autores aquilo que o pesquisador observa

durante a entrevista age em conjunto com os relatos dos entrevistados

auxiliando a interpretaccedilatildeo dos dados

As praacuteticas observadas dizem respeito ao que eacute testemunhado pelo

pesquisador satildeo detalhes muitas vezes relevantes mas que nem sempre satildeo

fornecidos pelos interlocutores por razotildees diversas Para facilitar posteriormente

o acesso agraves informaccedilotildees obtidas por meio da observaccedilatildeo o uso de alguns

instrumentos de apoio eacute importante o caderno de campo a cacircmera fotograacutefica

e o gravador As praacuteticas reconstruiacutedas dizem respeito ao trabalho de

rememorizaccedilatildeo Interessa investigar e comparar vivecircncias passadas com as

atuais no caso da alimentaccedilatildeo praacuteticas que foram adotadas alimentos que

fizeram parte da dieta traccedilos de comensalidade comemoraccedilotildees festivas onde

a comida esteja presente o que permanece e o que foi abandonado

Entre outras questotildees busquei verificar junto agraves famiacutelias a influecircncia da

heranccedila culinaacuteria envolvendo a cultura imaterial (eventos relacionados agrave comida

que satildeo tradicionais na famiacutelia) a representaccedilatildeo das praacuteticas alimentares no

tempo passado e presente e o papel dos guardiatildees da tradiccedilatildeo da culinaacuteria

familiar a relaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo bem como com os modos de alimentaccedilatildeo

moderna

95

41 Teacutecnica de pesquisa

A entrevista semiestruturada foi a teacutecnica de pesquisa utilizada para

obtenccedilatildeo de informaccedilotildees das praacuteticas reconstruiacutedas e observadas (POULAIN

PROENCcedilA 2003) justificam como sendo a forma mais confiaacutevel quando dirigida

pelo proacuteprio pesquisador e ainda por permitir aprofundamento das questotildees As

entrevistas podem ser reformuladas ao longo da sua ocorrecircncia com o objetivo

de redirecionar a discussatildeo para o assunto poreacutem sem se prender totalmente agrave

pergunta inicial ldquoAs digressotildees satildeo importantes porque permitem perceber as

representaccedilotildees e os quadros de referecircncia mais ou menos conscientes nos

quais se manifestam as loacutegicas dos atoresrdquo (p 373)

A entrevista permite ao pesquisador uma variedade de interpretaccedilotildees A

atenccedilatildeo do pesquisador e seu feeling tambeacutem satildeo muito importantes pois eacute

preciso estar atento para fazer tanto abordagens objetivas e palpaacuteveis como

simboacutelicas Neste uacuteltimo caso estar atento ao que natildeo aparece claramente na

mensagem e fica impliacutecito na fala

42 Os sujeitos da pesquisa

A definiccedilatildeo dos sujeitos da pesquisa foi realizada a partir de dados

fornecidos pela Emater relativos a cada municiacutepio selecionado Poreacutem como o

trabalho de campo eacute dinacircmico novos informantes surgiram durante esta fase

pois ao entrevistar uma famiacutelia sugiram durante as conversas nomes de outras

pessoas da proacutepria comunidade que pelos objetivos da pesquisa foi

interessante entrevistar Assim as informaccedilotildees da Emater representaram a

porta de entrada mas natildeo uma limitaccedilatildeo para a seleccedilatildeo dos entrevistados

O uacutenico preacute-requisito para a pesquisa era que os interlocutores

morassem na aacuterea rural dos trecircs municiacutepios delimitados O objetivo era conhecer

as praacuteticas que ocorriam no conjunto familiar e natildeo necessariamente as praacuteticas

individuais

Foram realizadas 40 entrevistas abrangendo 17 comunidades rurais

sendo 05 em Piranga 07 em Porto Firme e 05 em Presidente Bernardes cujos

nomes constam no Quadro 1 bem como o nuacutemero de famiacutelias entrevistadas 14

em Piranga 12 em Porto Firme e 14 em Presidente Bernardes O nuacutemero de

96

famiacutelias entrevistadas por comunidade eacute aquele que consta entre os parecircnteses

no referido quadro

Quadro 1 ndash Municiacutepios comunidades e nuacutemero de famiacutelias 2015

Municiacutepios Comunidades

Piranga Boa Vista (2) Manja (3) Mestre Campos (4) Bom Jesus do Bacalhau (2) Tatu (3)

Porto Firme Aacutegua Limpa (2) Bom Retiro (1) Vinte Alqueires (1) Limeira (2) Posses (2) Jacuba28 (2) Satildeo Domingos (2)

Presidente Bernardes Itapeva (3) Mato Dentro (3) Ribeiratildeo (3) Xopotoacute (3) Bananeiras (2)

Fonte Pesquisa de campo 2015

43 A conduccedilatildeo da pesquisa o caminho percorrido

A pesquisa de campo teve como objetivo analisar agrave luz da teoria

sistematizada o significado da comida e as relaccedilotildees de comensalidade atendo-

se agraves mudanccedilas e permanecircncias referentes agraves praacuteticas alimentares das famiacutelias

Mais especificamente analisar a articulaccedilatildeo entre o tradicional e o moderno o

processo de escolha alimentar e os princiacutepios que a determinam como haacutebitos

tradiccedilatildeo praticidade custo etc a influecircncia dos guardiatildees da tradiccedilatildeo na

reproduccedilatildeo do gosto no processo de significaccedilatildeo e ressignificaccedilatildeo da comida

atrelada agraves praacuteticas aos saberes e aos haacutebitos tanto no cotidiano quanto nos

rituais

A pesquisa de investigaccedilatildeo teoacutericobibliograacutefica me conduziu a pensar

as categorias analiacuteticas e as variaacuteveis para a conduccedilatildeo do processo empiacuterico

Assim a alimentaccedilatildeo em seu sentido cultural e simboacutelico como o que foi

discutido nos campos teoacutericos da antropologia e da sociologia da alimentaccedilatildeo

28 Perguntei aos entrevistados desse local se eles sabiam porque a comunidade se chamava Jacuba mas

natildeo souberam responder Os nomes das comunidades estatildeo quase todas relacionadas ao nome de primeira fazenda implantada na localidade Perguntei isso porque ldquojacubardquo eacute um termo indiacutegena usado para se referir a um tipo de comida parecida com o piratildeo agrave base de aacutegua e farinha de mandioca e rapadura muito consumida pelos tropeiros no periacuteodo da mineraccedilatildeo em Minas Antocircnio Cacircndido tambeacutem se refere a ela na descriccedilatildeo dos caipiras paulistas

97

no capiacutetulo anterior eacute eleita como categoria analiacutetica central A partir dela foram

definidas outras quatro subcategorias de suporte 1 As praacuteticas alimentares 2

A comensalidade 3 O espaccedilo social da alimentaccedilatildeo 4 A cultura Como

atributos importantes para a anaacutelise dessas categorias delineei as variaacuteveis

norteadoras da pesquisa empiacuterica e que me ajudaram a observar a descrever

a analisar e a interpretar os dados

Sobre a cultura o interesse foi traccedilar uma caracterizaccedilatildeo ou um ldquoretratordquo

das famiacutelias quanto agrave origem (rural ou urbana) o tempo em que moram na regiatildeo

pesquisada se a terra eacute herdada ou adquirida a faixa etaacuteria aproximada se satildeo

idosos ou jovens a produccedilatildeo de alimentos e as atividades realizadas no

cotidiano

Nas praacuteticas alimentares o interesse foi o de conhecer as informaccedilotildees

relativas aos alimentos mais consumidos no cotidiano e nos eventos especiais

o que eacute produzido no local e o que eacute comprado o horaacuterio das refeiccedilotildees a relaccedilatildeo

com a atividade (por prazer ou por obrigaccedilatildeo) a comida tradicional (o papel dos

guardiatildees da cultura alimentar os cadernos de receita o aprendizado por

oralidade) a comida de antigamente e a comida de hoje a comida para visita e

a comida para os de casa os aspectos levados em consideraccedilatildeo na escolha dos

alimentos (tradiccedilatildeo praticidade custo e atraccedilatildeo pelo moderno)

Para analisar a comensalidade foi preciso identificar se ela estaacute

presente nos haacutebitos familiares no cotidiano e em datas especiais os locais onde

ela ocorre (cozinha copa aacuterea externa da casa sala de visita) e o tempo

aproximado de duraccedilatildeo das refeiccedilotildees

O espaccedilo social da alimentaccedilatildeo se refere ao local de preparo e de

consumo das refeiccedilotildees Importa saber a este respeito quem prepara as

refeiccedilotildees e quais satildeo os equipamentos existentes neste espaccedilo por exemplo a

presenccedila do fogatildeo a lenha e a gaacutes e a constacircncia de seus usos ou seja qual

deles eacute mais utilizado Tambeacutem a existecircncia e usos de equipamentos eleacutetricos

como geladeira freezer forno eleacutetrico forno de micro-ondas batedeira de bolo

etc Neste sentido analisar se nesse espaccedilo social ocorre a relaccedilatildeo entre

tradiccedilatildeo e modernidade na posse e uso dos equipamentos ou o predomiacutenio de

uma dessas caracteriacutesticas Buscou-se ainda analisar se permanecem os

costumes alimentares quanto aos locais destinados agrave comensalidade ou este

espaccedilo social estaacute passando por transformaccedilotildees

98

44 A entrevista semiestruturada

As entrevistas foram gravadas com a permissatildeo dos interlocutores da

pesquisa Apenas uma famiacutelia na comunidade de Ribeiratildeo em Presidente

Bernardes natildeo se sentiu agrave vontade com o gravador e realizei as anotaccedilotildees em

caderno de campo Os nomes dos entrevistados citados no decorrer deste

capiacutetulo satildeo pseudocircnimos que substituiacuteram os verdadeiros para preservar a

identificaccedilatildeo dos participantes conforme exigecircncia constante no Parecer

Consubstanciado do Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa com Seres Humanos (CEP)

da Universidade Federal de Viccedilosa

O estilo da narrativa para apresentaccedilatildeo dos resultados da pesquisa

segue o direcionamento proposto na perspectiva etnograacutefica discutida por

Peirano (1995 e 2008) Marcus e Cushman (1998) e Uriarte (2012) Para Marcus

e Cushman (1998 p 175-176) a narrativa etnograacutefica do seacuteculo XX tem se

baseado no que chamam de realismo etnograacutefico sendo ldquoun modo de escritura

que busca representar la realidade de todo un mundo o de uma forma de vidardquo

Outras caracteriacutesticas da narrativa etnograacutefica realista segundo os autores satildeo

Una cuidadosa atencioacuten hacia nos detalles y demonstraciones redundantes de

que el escritor compartioacute y experimentoacute ese mundordquo

Para Peirano (2008 p 6) ldquoo trabalho de campo se faz pelo diaacutelogo vivo

e depois a escrita etnograacutefica pretende comunicar ao leitor (e convencecirc-lo) de

sua experiecircncia e sua interpretaccedilatildeordquo

45 A imersatildeo em campo a chegada e a travessia

Se a accedilatildeo de comer eacute algo tatildeo iacutentimo ao ser humano conforme reflete

Mintz (2001) analisar os haacutebitos e as praacuteticas alimentares de pessoas e grupos

se torna uma atividade de grande responsabilidade Trabalhar os dados de forma

analiacutetica e criacutetica agrave luz das abordagens teoacutericas e portanto longe do julgamento

do senso comum eacute o papel do pesquisador Foi com essa percepccedilatildeo que

enveredei no campo pensando a pesquisa empiacuterica como descobertas a serem

feitas pelo caminho naquele sentido absorvido quando li Grande Sertatildeo

Veredas de Guimaratildees Rosa pela primeira vez

99

O real natildeo estaacute na saiacuteda nem na chegada ele se dispotildee para a gente eacute no meio da travessia () Assaz o senhor sabe a gente quer passar um rio a nado e passa mas vai dar na outra banda eacute num ponto muito mais em baixo bem diverso do que em primeiro se pensou (ROSA 2001 p 51 e 80)

Fazer pesquisa de campo eacute algo semelhante Faz-se um planejamento

mas durante o percurso eacute preciso lidar por um lado com os ldquoimponderaacuteveis da

pesquisardquo29 e por outro com a expectativa das descobertas a serem feitas na

travessia A praacutetica empiacuterica eacute tambeacutem trabalho analiacutetico e reflexivo mas eacute

sobretudo ndash concordando com a ideia de Peirano (1995 p 57) ndash ldquotrabalho

artesanal microscoacutepico detalhista e que traduz como poucas outras o

reconhecimento do aspecto temporal das explicaccedilotildeesrdquo Ela argumenta ainda que

a conduccedilatildeo de uma pesquisa de campo ldquodepende entre outras coisas da

biografia do pesquisador das opccedilotildees teoacutericas do contexto sociohistoacuterico e das

imprevisiacuteveis situaccedilotildees que se configuram no dia-a-dia no proacuteprio local de

pesquisa entre pesquisador e pesquisadosrdquo (p 22)

Para esta pesquisa as questotildees em torno dos haacutebitos praacuteticas

alimentares e sociabilidades das famiacutelias rurais foram importantes para a

investigaccedilatildeo cientiacutefica pretendida Assim foi necessaacuteria a compreensatildeo por

parte dos interlocutores sobre a importacircncia de sua participaccedilatildeo Coube a eles

apoacutes o entendimento da pesquisa abrir a sua intimidade alimentar cotidiana Fui

convidada pelos entrevistados ndash mulheres na maior parte ndash a ldquoadentrar e puxar

assentordquo na cozinha Tambeacutem me convidaram para conhecer o quintal colher

verdura na horta e inclusive a participar das refeiccedilotildees em todas as casas

visitadas fosse almoccedilo fosse ldquomerendardquo ou mesmo apanhar frutas diretamente

do peacute durante conversas ocorridas no pomar

Assim percorri regiotildees rurais de Piranga Porto Firme e Presidente

Bernardes entre os meses de fevereiro a junho de 2015 fazendo descobertas

aprendendo apreendendo dialogando analisando questionando e refletindo

sobre os sentidos da comida e do comer no espaccedilo rural contemporacircneo das

famiacutelias pesquisadas

29 Termo que foi utilizado primeiramente por Bronislaw Malinowski (1976) ao falar sobre os ldquoimponderaacuteveis

da vida realrdquo para se referir a rotina do trabalho diaacuterio do nativo os detalhes de seus cuidados corporais o modo como prepara a comida e come as simpatias ou aversotildees e etc Utilizo o termo semelhante para pensar os eventos inesperados da pesquisa empirica

100

Naquelas famiacutelias em que fui apresentada diretamente pelos teacutecnicos da

Emater e a quem acompanhei em algumas de suas visitas agraves comunidades

atendidas no mecircs de janeiro de 2015 e mesmo naquelas onde minha preacutevia

apresentaccedilatildeo foi feita via telefone a chegada para a pesquisa foi mais simples

Entretanto naquelas em que houve indicaccedilatildeo por parte dos proacuteprios

entrevistados o processo foi mais lento mas natildeo difiacutecil ou impeditivo Apenas

levei mais tempo para organizar a visita Em um dia ia ao local me apresentava

explicava sobre a pesquisa que havia sido realizada com seus conhecidos na

mesma comunidade respondia agraves perguntas e curiosidades e por fim

agendava um retorno Considero como mais provaacutevel eacute que tenham aceitado

participar da pesquisa em funccedilatildeo de eu ter citado o mesmo trabalho feito com

pessoas conhecidas Natildeo sei dizer se foram buscar confirmaccedilatildeo sobre isso A

teacutecnica da Emater de Piranga que estava se aposentando se propocircs a percorrer

comigo algumas comunidades em alguns dias da segunda quinzena de janeiro

de 2015 me mostrando os caminhos e apresentando a algumas pessoas

Em geral as pessoas foram atenciosas Algumas se mostraram mais

interessadas do que outras e por isso o envolvimento foi maior Poreacutem todas

deram contribuiccedilotildees muito importantes Houve dois casos em que precisei

retornar em outro dia Em um dos casos porque houve falecimento de um

parente na manhatilde do dia da entrevista e natildeo tiveram como me avisar antes Na

outra situaccedilatildeo o casal de aposentados precisou ir agrave cidade resolver problemas

pessoais e pediu para marcarmos um outro dia Foi necessaacuterio tambeacutem o

adiamento da pesquisa em dias de chuva devido agraves condiccedilotildees ruins das

estradas

Optei por dividir o horaacuterio das entrevistas em manhatilde e tarde para

conviver com dois momentos do cotidiano das famiacutelias respeitando os horaacuterios

delas Assim consegui realizar 15 entrevistas na parte da manhatilde e as outras 25

na parte da tarde O horaacuterio de chegada pela manhatilde era entre 800 e 830

tambeacutem em acordo com as famiacutelias Na parte da tarde o horaacuterio era entre 1330

e 1400 Almocei porque era convidada nas casas onde iniciava o trabalho na

parte da manhatilde o que me permitia acompanhar o processo de elaboraccedilatildeo do

almoccedilo as conversas no geral aconteciam na cozinha mas parte delas ocorria

tambeacutem nas hortas e nos quintais

101

A partir do proacuteximo item passo a apresentar os dados obtidos em campo

baseados em informaccedilotildees fornecidas pelos interlocutores da pesquisa e tambeacutem

nas observaccedilotildees que fiz Os itens e subitens estatildeo relacionados agraves variaacuteveis

elencadas no projeto de pesquisa que compuseram o roteiro de entrevista

No item 46 apresento dados de caraacuteter descritivo-analiacutetico sobre a

cultura e os modos de vida do grupo pesquisado as atividades cotidianas de

trabalho as impressotildees empiacutericas e sua relativizaccedilatildeo agrave luz dos dados do IBGE

(2010) sobre uma regiatildeo que aos olhos dos entrevistados parece estar

envelhecendo Apresento e discuto tambeacutem outras percepccedilotildees culturais do

cotidiano Em todo o item algumas reflexotildees sobre as praacuteticas alimentares satildeo

sinalizadas ou apontadas No entanto as discussotildees mais especiacuteficas sobre as

praacuteticas alimentares satildeo feitas no capiacutetulo 5

46 Descobrindo a cultura local dos entrevistados

461 Perfil das famiacutelias

Na regiatildeo pesquisada predomina a agricultura de base familiar que eacute

aquela em que a propriedade a gestatildeo e o trabalho estatildeo ligados agrave famiacutelia no

sentido dado por Gasson e Errington (2003 p 20) O marido a esposa e tambeacutem

os filhos adolescentes quando chegam da escola satildeo os que trabalham na

propriedade Entre os casais idosos as atividades de produccedilatildeo satildeo muito

reduzidas por dificuldades fiacutesicas em executar alguns trabalhos Em alguns siacutetios

haacute filhos casados ou solteiros se responsabilizando pelas atividades dos pais

As aacutereas rurais dos trecircs municiacutepios se assemelham tanto ao que se

relaciona agraves atividades agriacutecolas quanto agrave cultura e haacutebitos cotidianos inclusive

os alimentares A maior parte das famiacutelias (899) mora em pequenos siacutetios que

se formaram por divisatildeo de heranccedila de propriedades maiores O restante

adquiriu por meio de compra Em todos os casos de heranccedila ela proveacutem dos

pais do marido Essas informaccedilotildees obtidas em campo coincidem com o que eacute

apresentado por Maria Joseacute Carneiro (2001 e 1998b) Abramovay et al (1998)

Woortmann (1995) Spanevello e Lago (2010) Paulilo (2003) Mendonccedila et al

(2013) e Moura (1978) ao discutirem o processo sucessoacuterio do meio rural

Apontam que historicamente a heranccedila eacute dada ao filho de sexo masculino que

102

assume a continuaccedilatildeo das atividades ldquoenquanto as mulheres se tornam

agricultoras por casamentordquo (Paulilo 2003 p 188) Situaccedilatildeo semelhante foi

verificada na minha pesquisa As mulheres disseram natildeo ter herdado terra dos

pais agricultores sendo possuidoras de terra a partir do momento em que se

casaram e passaram a partilhar a terra herdada pelo marido

Outros estudos como os de Woortmann (1995) Carneiro (1998b) e

Camarano e Abramovay (1998) tecircm sinalizado uma mudanccedila nos uacuteltimos anos

Uma das razotildees estaacute associada agraves transformaccedilotildees de perspectivas da juventude

rural em relaccedilatildeo ao campo Segundo os autores muitos jovens natildeo demonstram

mais tanto interesse em permanecer no campo e assumir a incumbecircncia total

pela manutenccedilatildeo da terra que pertenceu aos pais Em minha pesquisa natildeo tive

como objetivo discutir a questatildeo sucessoacuteria mas as famiacutelias cujos filhos

moravam nos siacutetios dos pais (666) eram sobretudo aquelas compostas por

casal de idosos e aposentados Nestes casos os filhos natildeo moravam

necessariamente na mesma casa Quando se tratava de filhos casados eles

moravam em casas separadas

A origem rural eacute predominante no grupo pesquisado sendo a realidade

de 95 das famiacutelias entrevistadas As famiacutelias satildeo pequenas sendo 36 pessoas

o tamanho meacutedio incluindo aquelas de casais aposentados e natildeo aposentados

que tecircm os filhos morando em casa Predominam aquelas compostas por

aposentados que moram sozinhos existindo no entanto algumas cujos filhos

solteiros moram com os pais Em alguns dos casos um dos filhos casados mora

no siacutetio mas em casa separada dos pais

As famiacutelias compostas por casais de aposentados correspondem a 24

delas (60) Desse total 11 famiacutelias estatildeo em Presidente Bernardes 08 em

Piranga e 05 em Porto Firme O municiacutepio de Presidente Bernardes representa

aquele com maior percentual de aposentados 80 Em Piranga eles

representam 6875 e em Porto Firme 50

As outras 16 famiacutelias satildeo compostas por casais cuja faixa etaacuteria varia de

30 a 50 anos Nestas famiacutelias os filhos a partir dos 16 anos tecircm saiacutedo para

estudar em outras cidades proacuteximas como Viccedilosa Ouro Preto ou Ouro Branco

onde possam cursar o niacutevel superior Essa foi a realidade encontrada em sete

delas Isso tem ocorrido por interesse tambeacutem dos pais que desejam vecirc-los

formados em um curso superior

103

Em relaccedilatildeo agrave escolaridade a maior parte (646) das pessoas com

idade acima de 60 anos tinham o ensino fundamental incompleto 187

concluiacuteram o ensino fundamental 104 disseram ter sido semialfabetizado ou

seja sabem assinar o nome e ler e escrever muito pouco30 e 63 possuem o

ensino meacutedio completo Entre o puacuteblico na faixa etaacuteria de 30 a 50 anos

predomina o ensino meacutedio completo (532) 373 natildeo completou o ensino

meacutedio e 95 possuem apenas o ensino fundamental completo As mulheres

representam o maior percentual dentre o puacuteblico que concluiu o ensino meacutedio

Os filhos que moram na casa dos pais com idade inferior a 30 anos estatildeo

estudando a maior parte deles crianccedilas e adolescentes

Embora o tema desse subitem natildeo seja objetivo analiacutetico deste trabalho

considerei interessante inserir uma breve discussatildeo em funccedilatildeo de que durante

as entrevistas muitos depoimentos destacaram a saiacuteda dos jovens e a

permanecircncia dos casais de aposentados das regiotildees em que vivem A busca

pela continuidade dos estudos tem determinado a saiacuteda dos jovens Sem

disponibilidade de ensino superior nos municiacutepios em que moram os filhos tecircm

saiacutedo para outras regiotildees proacuteximas e contam com o estimulo dos pais para isso

Os pais alegam que natildeo tiveram oportunidade de fazer um curso superior ou

mesmo teacutecnico e que desejam isso para os filhos porque percebem que a

realidade de trabalho no campo atualmente estaacute mais difiacutecil do que em tempos

atraacutes Relataram que seus pais conseguiram criar famiacutelias grandes com maior

facilidade do que hoje obtendo renda da agricultura Realidade que segundo os

entrevistados estaacute cada vez mais distante na contemporaneidade

Para Zefa moradora de Mato Dentro Presidente Bernardes uma das

explicaccedilotildees para o baixo nuacutemero de pessoas mais novas morando na aacuterea rural

da regiatildeo decorre da divisatildeo das propriedades chegando ao ponto de natildeo ter

mais como dividi-las entre os herdeiros e explica ldquoEsse siacutetio aqui jaacute foi dividido

quando meu sogro deixou aqui para noacutes Se a gente fosse dividir para nossos

nove filhos natildeo ir dar nada entatildeo os filhos foram pra cidade achar um jeito

melhor porque na roccedila eacute tudo mais difiacutecil mesmordquo

Muitos pais ao falarem dos seus filhos jovens destacam que eles se

sentem atraiacutedos por bens e tecnologias que natildeo estatildeo disponiacuteveis no campo o

30 Percebi o constrangimento de alguns quando eu lhes explicava sobre a necessidade de assinatura dos

entrevistados ao ldquoTermo de Consentimento Livre e Esclarecidordquo do Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa

104

mais citado foi o acesso agrave internet O filho de Lola e Marcos que tem 10 anos de

idade possui um celular que soacute utiliza quando vai agrave cidade Consegue acessar

a rede por laacute com o uso da senha que um amigo disponibilizou Os filhos de

Carmem quando visitam os pais reclamam de natildeo ter como acessar a internet

no siacutetio Por outro lado os depoimentos apontaram que os filhos que moram fora

dos siacutetios natildeo tem a mesma reclamaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave comida ao contraacuterio

sentem o desejo de comer a comida tradicional que consumiam quando

moravam no local

Quando os filhos vecircm eles querem comer comida daqui eles falam que eacute ldquocomida de matildeerdquo estatildeo enjoados do que comem na cidade eles falam isso porque eacute com essa comida daqui que foram acostumados comida deles laacute na cidade tem muito tempero artificial igual esse tal de sazon (Doca moradora de Boa Vista Piranga MG 2015)

Haacute no comportamento dos filhos jovens das famiacutelias que entrevistei um

conflito de ordem cultural Desejam manter identidades culturais locais sentem

necessidade da comida da matildee da comida tradicional e de sempre que possiacutevel

visitar os pais como eacute o caso das filhas de Nilsa e Jonas de Satildeo Domingos

Porto Firme que estudam em Viccedilosa Quase todos os finais de semana visitam

os pais Por outro lado sentem falta do acesso a tecnologias e outras opccedilotildees

oferecidas a eles na cidade

Mas o outro lado tambeacutem existe Haacute o exemplo dos filhos que optam por

permanecer junto dos pais por mais tempo embora eu tenha encontrado apenas

dois casos nas famiacutelias entrevistadas Um exemplo eacute o da filha mais nova de

Nanaacute e Custoacutedio moradores de Xopotoacute em Presidente Bernardes Ela continua

morando com os pais trabalha na cidade de Presidente Bernardes e o uso de

uma moto permite que vaacute almoccedilar em casa Ela tambeacutem estuda cursa Letras na

modalidade agrave distacircncia Como natildeo possui internet em casa se dedica ao curso

nos finais de semana na casa da irmatilde casada que mora em um siacutetio localizado

muito proacuteximo agrave cidade e tem acesso agrave internet Seu objetivo depois que se

formar eacute permanecer na regiatildeo como professora na escola estadual do

municiacutepio Seu irmatildeo de 27 anos tambeacutem permanece no siacutetio Apoacutes concluir o

ensino meacutedio optou por trabalhar na agricultura junto com o pai e eacute ele quem

assumia essas atividades na ocasiatildeo da pesquisa

105

Martins (2012) discute que uma das grandes dificuldades da

modernidade para o ldquohomem comumrdquo eacute conseguir superar as irracionalidades e

as contradiccedilotildees impostas por ela que geram conflitos de ordem cultural ldquode

permanente proposiccedilatildeo da necessidade de optar entre isto e aquilo entre o novo

e fugaz de um lado e o costumeiro e tradicional de outrordquo (p 20)

A literatura sobre juventude rural como os trabalhos de Carneiro e

Castro (2007) Brumer (2007) Abramovay et al (1998) Durston (1994) entre

outros tem apontado os desafios para esse grupo etaacuterio em encontrar formas

de permanecer no campo desenvolvendo atividades de trabalho que lhes sejam

atrativas no mundo contemporacircneo Dentre os motivos que estimulam a saiacuteda e

a busca de trabalho em atividades fora da aacuterea rural estatildeo as dificuldades tanto

para conduzir quanto para obter retorno financeiramente favoraacutevel da atividade

rural e a pequena disponibilidade de terra familiar para empreender uma

atividade proacutepria e constituir famiacutelia

Como visto a literatura aponta para uma tendecircncia ao envelhecimento

e masculinizaccedilatildeo do campo Esta foi a minha percepccedilatildeo empiacuterica tambeacutem

Apesar disso eacute preciso considerar que a entrevista abrangendo 40 famiacutelias nos

trecircs municiacutepios natildeo permite classificar essa situaccedilatildeo como generalizada pois a

realidade que encontrei em relaccedilatildeo agrave faixa etaacuteria na regiatildeo pesquisada natildeo

coincide com a realidade apontada pelo IBGE (2010) em termos percentuais

como seraacute mostrado a seguir Isso poreacutem natildeo interfere nos objetivos da

pesquisa pois se trata de uma abordagem qualitativa

No grupo de 40 famiacutelias que pesquisei a populaccedilatildeo idosa eacute

predominante Encontrei um puacuteblico constituiacutedo por 24 famiacutelias cujos casais

tinham acima de 60 anos e 16 famiacutelias cujos casais tinham entre 30-50 anos

Como natildeo havia pessoas viuacutevas a proporccedilatildeo de homens e mulheres era a

mesma 50

No montante das 40 famiacutelias 20 delas possuem filhos morando na casa

dos pais Dentre eles 10 satildeo crianccedilas 08 satildeo jovens e 02 satildeo adultos Nenhum

filho casado mora com os pais Dentre os vinte filhos 08 satildeo mulheres e 12 satildeo

homens Assim o universo de pessoas que constituiacuteam as famiacutelias entrevistadas

foi de 100 pessoas o que representa apenas 048 do total da populaccedilatildeo rural

total da pesquisa do IBGE (2010) mostrado na Tabela 4

106

Assim o perfil etaacuterio do grupo pesquisado se constitui de 48 de

populaccedilatildeo idosa 34 de populaccedilatildeo adulta 8 de populaccedilatildeo jovem e 10 de

populaccedilatildeo infantil

Exceto para o perfil adulto os demais perfis etaacuterios no grupo que

pesquisei apresentam dissonacircncia em relaccedilatildeo ao perfil etaacuterio rural do IBGE

(2010) mostrado nas Tabelas 3 e 4 Pelo IBGE o perfil etaacuterio da regiatildeo se

constitui de 13 de populaccedilatildeo idosa 36 de populaccedilatildeo adulta 26 de

populaccedilatildeo jovem e 23 7 de populaccedilatildeo infantil (Tabela 5)

Tabela 5 ndash Comparativo entre perfil etaacuterio do IBGE (2010) e da pesquisa de campo 2015 ()

Fonte Populaccedilatildeo

rural 1-14 anos

() 15-29

anos () 30-59

anos ()

Acima de 60 anos

()

IBGE (2010) 20755 237 26 36 13 Pesquisa de campo (2015) 100 10 08 34 48

Fonte IBGE (2010) e Pesquisa de campo (2015)

A composiccedilatildeo de gecircnero das famiacutelias pesquisadas se aproxima muito

ao perfil dos dados do IBGE (2010) sendo o puacuteblico masculino um pouco maior

do que o puacuteblico feminino em ambos os casos (Tabela 6)

Tabela 6 ndash Comparativo da composiccedilatildeo de gecircnero do IBGE e da pesquisa de campo 2015

Fonte Populaccedilatildeo

rural Mulheres () Homens ()

IBGE (2010) 20755 481 517 Pesquisa de campo (2015) 100 48 52

Fonte IBGE (2010) e Pesquisa de campo (2015)

107

Em funccedilatildeo dos dados acima eacute possiacutevel afirmar a ocorrecircncia de um

processo de envelhecimento no grupo pesquisado natildeo sendo possiacutevel afirmar

semelhante situaccedilatildeo para toda a regiatildeo rural dos municiacutepios

462 A produccedilatildeo agriacutecola local

A produccedilatildeo agriacutecola eacute pequena mesmo naqueles siacutetios cuja produccedilatildeo

tambeacutem se destina agrave comercializaccedilatildeo A pequena produccedilatildeo de milho objetiva a

produccedilatildeo de fubaacute que possui importacircncia fundamental para a alimentaccedilatildeo das

famiacutelias e dos animais O fubaacute obtido do milho possibilita suprir as famiacutelias com

o produto que eacute utilizado na preparaccedilatildeo do angu alimento consumido

diariamente no almoccedilo e no jantar e na elaboraccedilatildeo da broa uma das principais

quitandas que eacute elaborada diariamente para abastecer a famiacutelia com a

ldquomerendardquo do cotidiano e para ter o que oferecer agraves visitas que chegarem de

surpresa

A cana tambeacutem atende agraves necessidades alimentares animais Apenas

em um siacutetio ela eacute usada para fabricaccedilatildeo de cachaccedila e em outros dois na

fabricaccedilatildeo de rapadura e melado

As principais atividades geradoras de renda das famiacutelias pesquisadas

satildeo leite carvatildeo cafeacute feijatildeo e cachaccedila As famiacutelias que produzem para

comercializaccedilatildeo praticam de duas a trecircs atividades ao mesmo tempo leite e

carvatildeo cafeacute e feijatildeo consorciados e carvatildeo leite e cafeacute Apenas uma famiacutelia

produz cachaccedila para comercializaccedilatildeo e tem nessa atividade uma importante

fonte geradora de renda Nos demais siacutetios cuja produccedilatildeo se destina apenas ao

autoconsumo a produccedilatildeo se baseia em milho feijatildeo leguminosas hortaliccedilas

frutas frangos e porcos caipiras

No Quadro 2 eacute apresentada a origem da renda das famiacutelias Entre

aquelas em que a aposentadoria eacute a uacutenica fonte de renda a produccedilatildeo agriacutecola

se destina apenas para o autoconsumo Naquelas em que a aposentadoria e a

atividade agriacutecola estatildeo presentes a produccedilatildeo eacute administrada por um filho seja

casado ou solteiro mas a maior parte eacute casada e mora proacuteximo aos pais Eacute

importante ressaltar que satildeo sempre os filhos homens que exercem tal funccedilatildeo

Para os pais a presenccedila dos filhos por perto assumindo os trabalhos eacute fator

positivo pois leva-os a se sentir mais tranquilos

108

Quadro 2 ndash Fonte de renda das famiacutelias pesquisadas 2015

Fonte Nordm de famiacutelias

Apenas aposentadoria 14 350

Aposentadoria e atividade agropecuaacuteria no siacutetio 10 250

Atividade agropecuaacuteria no siacutetio e outra 09 225

Atividade agropecuaacuteria 07 175

Total de famiacutelias 40 1000

Fonte Pesquisa de campo 2015

Nas famiacutelias em que a renda eacute obtida da atividade agriacutecola e de outra

fonte a maior parte desta uacuteltima eacute gerada pelo trabalho das mulheres (889)

envolvidas nas seguintes atividades serventes e merendeiras nas escolas rurais

(Marina Ivone e Juliana)31 servente na escola da cidade (Solange) diarista em

casas proacuteximas (Arminda) Haacute tambeacutem aquelas mulheres que utilizam atividades

em casa como eacute o caso de Nilsa Marcelina e Ivone que produzem quitandas e

salgados para vender no entorno ou na cidade proacutexima e Nanaacute que trabalha

como costureira32 Na outra situaccedilatildeo trata-se de uma famiacutelia que possui um

pequeno comeacutercio na comunidade fora do siacutetio onde vive

463 Atividades cotidianas de trabalho nos siacutetios

A maior parte de meus interlocutores foi composta por mulheres e

mesmo quando os homens estavam presentes elas eram as mais ativas no

diaacutelogo Assim muitas das informaccedilotildees sobre o trabalho do cotidiano estatildeo

atreladas agrave realidade vivenciada por elas

Naquelas famiacutelias cuja renda eacute apenas a atividade agropecuaacuteria o

trabalho envolve tambeacutem a mulher e os filhos que estejam morando com os pais

As mulheres se envolvem em todas as atividades seja na lavoura de feijatildeo na

colheita de cafeacute na limpeza do suiacuteno abatido como eacute o caso de Lola (41 anos

31 Marina Ivone Marcelina e Nilsa satildeo moradoras de Porto Firme Arminda e Juliana de Piranga Nanaacute e

Solange de Presidente Bernardes 32 Em duas famiacutelias haacute filhas solteiras (uma em cada famiacutelia) que trabalham fora do siacutetio mas informaram

que suas rendas natildeo contribuem necessariamente para complementar a dos pais

109

moradora de Xopotoacute em Presidente Bernardes) ou na atividade leiteira e do

carvatildeo como eacute o caso de Neiva (39 anos moradora de Posses em Porto Firme)

que fez questatildeo de mostrar a suas unhas ainda manchadas do trabalho na

carvoaria no dia anterior

Mesmo as mulheres que trabalham fora dos siacutetios satildeo unacircnimes em

afirmar que continuam sendo agricultoras jaacute que continuam a exercer a funccedilatildeo

de cuidados da casa ndash incluindo aqueles referentes agrave alimentaccedilatildeo ndash assim como

as atividades agriacutecolas no quintal principalmente nos cuidados com a horta

ldquoSou diarista mas sou agricultora tambeacutemeu cuido da horta da casa mas

quando precisa de fazer algum trabalho na roccedila eu vou mas natildeo vou muitordquo

informou Arminda moradora de Mestre Campos em Piranga

Ivone (38 anos Posses ndash Porto Firme) se envolve muito com todas as

atividades do siacutetio As manhatildes satildeo passadas na escola da comunidade onde eacute

cantineira mas ao chegar em casa no iniacutecio da tarde se junta ao marido para o

trabalho na atividade leiteira na colheita na lavoura e tambeacutem na atividade da

carvoaria Costuma ainda receber encomendas de quitandas vindas da cidade

de Porto Firme e de acordo com o tempo disponiacutevel atende aos pedidos

Observei pelos depoimentos que o trabalho com a horta natildeo eacute visto

como uma atividade agriacutecola Ela eacute percebida como extensatildeo do quintal e da

cozinha e portanto estaacute atrelada aos elementos da casa Trabalhar na roccedila

para eles significa o serviccedilo de capina de roccedilar o milho o feijatildeo colher cafeacute

etc Nos siacutetios em que estive as hortas em sua maioria tambeacutem eram muito

proacuteximas agrave cozinha

As atividades de trabalho cotidiano das mulheres satildeo muito

diversificadas como jaacute visto Envolvem os cuidados da casa do quintal da horta

a alimentaccedilatildeo da famiacutelia atividade leiteira de roccedilado e carvoaria e em alguns

casos trabalho externo ou natildeo ao siacutetio que lhes garantem renda proacutepria

Marcelina (34 anos Satildeo Domingos ndash Porto Firme) diz ter encontrado na

culinaacuteria remunerada motivos para a famiacutelia desistir de se mudar para a cidade

Haacute pouco mais de um ano sua famiacutelia esteve prestes a se mudar para Viccedilosa

em busca de trabalho assalariado O principal motivo eacute que Marcelina natildeo estava

satisfeita com suas atividades no campo As considerava exaustiva mas eram

necessaacuterias para aumentar a renda do casal que era obtida principalmente da

atividade leiteira mas que por ser dividida entre outras duas famiacutelias de irmatildeos

110

do marido ndash que tambeacutem moram na propriedade que pertenceu aos pais ndash

originava uma renda insuficiente para manter sua famiacutelia Uma iniciativa poreacutem

trouxe oportunidade de o casal repensar a saiacuteda do campo A irmatilde de Marcelina

que reside em Viccedilosa produz salgados que satildeo vendidos em bares da periferia

da cidade Marcelina por insistecircncia da irmatilde aprendeu as teacutecnicas de produccedilatildeo

de salgados e passou a produzi-los e vende-los para bares da zona rural de

Porto Firme e Guaraciaba Na ocasiatildeo da pesquisa um ano depois de iniciar

esse trabalho ela conseguiu comprar um freezer novo com a renda dos

salgados o que lhe permitiu aumentar a produccedilatildeo Os salgados satildeo vendidos

na forma congelada e a entrega eacute feita pelo marido de moto Ela compartilhou

essa experiecircncia como sendo muito satisfatoacuteria em sua vida e da famiacutelia Afirmou

que esse foi o principal motivo de eles terem permanecido no campo

Agora o trabalho eacute muito melhor natildeo preciso trabalhar debaixo do sol ardendo natildeo tenho mais dor nas costas trabalho em casa perto dos meninos posso dar o almoccedilo para eles e ver quando eles chegam da escola antes meu marido eacute que tinha que esquentar o almoccedilo e dar para eles (Marcelina moradora de Satildeo DomingosPorto Firme MG 2015)

A experiecircncia de Marcelina sinaliza uma situaccedilatildeo nova na regiatildeo

pesquisada que eacute a produccedilatildeo de alimentos congelados diretamente para

abastecer bares e vendas no meio rural Estaacute presente nesta realidade a

inserccedilatildeo de elementos modernos o trabalho desenvolvido por Marcelina que eacute

uma novidade tambeacutem para ela pois precisou aprender a preparar esse tipo de

alimento a partir de meacutetodos baacutesicos de congelamento de alimentos e a utilizar

o freezer Outro aspecto de modernizaccedilatildeo se refere ao uso da moto como veiacuteculo

para fazer a entrega dos produtos que por sua vez eacute realizada pelo marido

agricultor ao final do dia apoacutes finalizar os trabalhos do siacutetio Por outro lado a

proacutepria famiacutelia pouco consome os produtos congelados feitos por Marcelina por

natildeo fazer parte do haacutebito alimentar da famiacutelia que permanece com preferecircncia

pela comida tradicional ldquoEles natildeo pedem os salgadosnatildeo ligamagraves vezes eu

ateacute faccedilo uns pra gente experimentar e ver como ficourdquo pondera Marcelina

Percebi que essa famiacutelia estaacute buscando se adaptar agraves novas estruturas e

dinacircmicas da sociedade no sentido discutido por Carneiro (1998) incorporando

elementos modernos importantes para sua reproduccedilatildeo sem contudo

abandonar o meio rural e abrir matildeo de suas praacuteticas alimentares tradicionais

111

Chama a atenccedilatildeo tambeacutem nessa experiecircncia o fato de haver consumo no meio

rural para os salgados congelados pelo menos pelos frequentadores dos bares

ou ldquovendasrdquo onde Marcelina fornece seus produtos Isso aponta que se os

congelados natildeo fazem parte do consumo domeacutestico das famiacutelias haacute um espaccedilo

para seu consumo nos bares (ldquovendasrdquo) da regiatildeo

Vemos na situaccedilatildeo exposta aqui um modo de vida tradicional agregando

fragmentos do moderno sem contudo converter-se a ele como discutido por

Martins (2012) percepccedilatildeo semelhante a apresentada por Carneiro (1998)

Os estudos sobre perspectivas e possibilidades para se pensar os rumos

de um novo rural brasileiro ou um rural reinventado vecircm sendo desenvolvidos

por autores como Wanderley (2000 e 2010) e Carneiro (1998 2005 e 2012) em

seus grupos de pesquisa Uma das discussotildees diz respeito agraves novas estrateacutegias

e possibilidades no campo que natildeo sejam necessariamente agriacutecolas como eacute o

caso do turismo do artesanato da agroinduacutestria etc

O cotidiano das mulheres que trabalham fora do siacutetio envolve mais de

uma jornada de atividades que se inicia antes das 600 da manhatilde e segue ateacute agrave

noite apoacutes o jantar ser servido e a louccedila ser lavada No capiacutetulo anterior introduzi

a discussatildeo sobre a dupla jornada de trabalho das mulheres tambeacutem no meio

rural apresentando as pesquisas de Panzutti (2006) com agricultoras no interior

de Satildeo Paulo e de Zanetti assim como as pesquisas de Menasche (2007) com

agricultoras do Sul Ainda sobre essa temaacutetica no sul do paiacutes haacute os trabalhos de

pesquisa de Paulilo et al (2003) e de De Grandi (2003) Analisando os casos

das mulheres da regiatildeo que pesquisei as caracteriacutesticas satildeo muitos

semelhantes agraves descritas pelas pesquisadoras ao estudarem outras regiotildees

O trabalho domeacutestico da mulher eacute considerado infinitamente elaacutestico uma vez que ela transita por ambos os espaccedilos o da produccedilatildeo e o da reproduccedilatildeo o que demonstra que haacute uma flexibilizaccedilatildeo das atividades consideradas produtivas o que natildeo acontece com as atividades reprodutivas e domeacutesticas (DE GRANDI 2003 p 40)

Em outra pesquisa neste caso em uma regiatildeo accedilucareira do Nordeste

do Brasil Heredia et al (1984) discutem a divisatildeo de gecircnero existente na

execuccedilatildeo do trabalho da produccedilatildeo rural Apontam o roccedilado como o lugar do

homem e como o espaccedilo de trabalho da mulher a casa envolvendo a sua

organizaccedilatildeo e a elaboraccedilatildeo da comida para a famiacutelia Mas tambeacutem indicam que

apesar da divisatildeo existem etapas do roccedilado onde a mulher atua como na

112

semeadura e limpeza ao redor das mudas No entanto o contraacuterio natildeo ocorre

como apontam Heredia et al (1984) e Woortmann (1985) Em suas pesquisas

natildeo foi registrado participaccedilatildeo masculina nos trabalhos voltados agrave organizaccedilatildeo

da casa e da elaboraccedilatildeo das refeiccedilotildees destinadas agrave famiacutelia Tampouco em

minha pesquisa identifiquei essa situaccedilatildeo pois satildeo atividades exercidas

basicamente pelas mulheres

Poreacutem encontrei na minha pesquisa uma sinalizaccedilatildeo de que mudanccedilas

ainda que tiacutemidas estatildeo ocorrendo na regiatildeo analisada e isso implica

diretamente nas praacuteticas alimentares Em depoimentos de duas famiacutelias as

mulheres e os maridos que estavam presentes durante a conversa falaram da

participaccedilatildeo destes na preparaccedilatildeo do almoccedilo O primeiro caso eacute o de Marcelina

e Luiz Durante um tempo quando Marcelina trabalhava como diarista Luiz (39

anos Satildeo Domingos ndash Porto Firme) que tem seu trabalho principal na atividade

leiteira assumiu a funccedilatildeo de alimentar os filhos Marcelina deixava o almoccedilo

adiantado quase pronto mas cabia a ele concluir algumas coisas aquecer a

comida e servi-la aos filhos O outro caso eacute o de Marina e Rui Marina sai de

casa cedo com as filhas para a escola onde trabalha como cozinheira Ela deixa

jaacute pronto o arroz e a carne restando ao marido e ao filho jovem temperar o feijatildeo

e refogar a verdura

Esses exemplos apontam para a necessidade de adaptaccedilatildeo agrave realidade

das mulheres rurais que buscam espaccedilos de trabalho remunerado fora dos siacutetios

onde moram e que contam com o apoio dos maridos pelo menos nas

experiecircncias que conheci em campo Os conflitos que permeiam esses ajustes

familiares se por ventura existirem natildeo foram declarados pelos interlocutores

Ao contraacuterio tanto mulheres quanto homens ao falarem sobre o assunto

expressaram naturalidade diante da situaccedilatildeo Eacute importante considerar que a

renda proveniente do trabalho feminino eacute usada para cobrir despesas familiares

e agraves vezes ateacute para cobrir pequenos custos de produccedilatildeo agriacutecola como relata

Solange (30 anos Itapeva - Presidente Bernardes) que trabalha como servente

em uma escola ldquoEu ganho um salaacuterio miacutenimo mas com esse dinheiro eu compro

coisas para a casa para mim e para minha menina ah eacute uma preocupaccedilatildeo a

menos jaacute aconteceu de ter que comprar adubo e pagar veterinaacuterio que veio ver

as vacasrdquo

113

As famiacutelias formadas por aposentados que representam a maioria nesta

pesquisa tecircm uma realidade cotidiana de trabalho que eacute menos ativa Executam

menos atividades no siacutetio embora natildeo deixem de trabalhar Ao falarem de seu

cotidiano os homens disseram que quase natildeo executam mais atividades

agriacutecolas como capina e roccedilado Fazem uma ou outra atividade como cuidar do

paiol do galinheiro da horta preparar a comida para dar aos porcos Fazem isso

ldquopara natildeo ficar parado de tudordquo conforme justificou Neacutelio (morador de Satildeo

Domingos em Porto Firme) Os homens afirmaram se sentirem desconfortaacuteveis

quando natildeo realizam algum trabalho no dia apenas evitam serviccedilos que exijam

grande esforccedilo fiacutesico

No caso das mulheres mais velhas elas continuam se responsabilizando

pela elaboraccedilatildeo das refeiccedilotildees e de todas as outras atividades domeacutesticas aleacutem

do cuidado com a horta e o quintal o que faz com que seu dia seja mais

dinacircmico Aleacutem do preparo das refeiccedilotildees elaboram tambeacutem cotidianamente

quitandas como broas e rosquinhas o que seraacute visto no proacuteximo capiacutetulo

114

5 CULTURA E PRAacuteTICAS ALIMENTARES NO SISTEMA FAMILIAR RURAL RELACcedilOtildeES COM A COMIDA PERMANEcircNCIAS E MUDANCcedilAS

ldquoA arte da cozinha eacute a mais brasileira de nossas artes A mais expressiva do nosso caraacuteter e a mais impregnada do nosso passadordquo

(Gilberto Freyre 1968)

Os toacutepicos de discussatildeo deste capiacutetulo estatildeo subdivididos nos seguintes

temas A discussatildeo sobre a comida considerada como ldquoforterdquo e a classificaccedilatildeo

da comida como cultura e como fator de necessidade fisioloacutegica as mudanccedilas

em curso na nos haacutebitos alimentares o papel ocupado pelo milho e seus

derivados na culinaacuteria cotidiana das famiacutelias a comida do cotidiano a comida

dos dias de festa e as relaccedilotildees de comensalidade nesses contextos os

alimentos comprados e os alimentos cultivados nos siacutetios as permanecircncias de

consumo e as mudanccedilas com a inserccedilatildeo de novos alimentos a mescla cultural

alimentar do tradicional com o moderno as manifestaccedilotildees de perpetuaccedilatildeo

tradicional na elaboraccedilatildeo das quitandas e as suas funccedilotildees no passado e no

presente nas praacuteticas alimentares do grupo pesquisado e por fim a oralidade

no saber fazer e na transmissatildeo das receitas

51 Comida ldquoforterdquo e comida ldquofraca contradiccedilotildees mudanccedilas e permanecircn-cias

Percebi nos depoimentos dos interlocutores a existecircncia de

categorizaccedilatildeo da comida entre ldquoforterdquo e ldquofracardquo Comida forte eacute aquela que

ldquosustentardquo sendo capaz de permitir um intervalo maior entre as refeiccedilotildees e ao

mesmo tempo executar as atividades mais pesadas sem sentir ldquofraquezardquo fiacutesica

Para eles isso tem a ver com a loacutegica de trabalho ou seja o objetivo eacute natildeo

precisar interromper as atividades com frequecircncia para se alimentar Os horaacuterios

apontados para as refeiccedilotildees satildeo cafeacute da manhatilde entre 530 e 600 merenda33

entre 830 e 900 almoccedilo entre 1100 e 1130 merenda da tarde entre 1430 e

1500 e jantar entre 630 e 1900 Em algumas famiacutelias foi citada a ldquomerenda da

noiterdquo que eacute feita pouco antes de dormir

33 ldquoMerendardquo eacute o termo que todos usam para se referir ao que se come nos intervalos entre o cafeacute da

manhatilde e o almoccedilo e entre o almoccedilo e o jantar e agrave noite antes de dormir

115

As informaccedilotildees relativas aos horaacuterios satildeo semelhantes para todas as

famiacutelias inclusive os aposentados disseram manter o ritual de acordar cedo

ainda que suas atividades de trabalho natildeo sejam mais intensas como no

passado

A percepccedilatildeo sobre ldquocomida forterdquo das famiacutelias se assemelha agravequela

discutida por Brandatildeo (1981) em sua pesquisa com agricultores em Goiacircnia O

autor aponta que para o grupo que pesquisou a relaccedilatildeo fortefraco que

atribuiacuteam agrave comida estava diretamente ligada agrave capacidade desse alimento em

garantir ao agricultor maior tempo de trabalho sem sentir fome

Homem forte eacute o homem sadio e resistente para o trabalho A comida forte eacute a que ldquotem sustanccedilardquo cujos efeitos satildeo reconhecidos de dois modos a) na sua capacidade de manter o trabalhador ldquoalimentadordquo por mais tempo sem vontade de comer de novo b) no seu poder de produzir e de conservar mais energia para a atividade braccedilal Eacute neste sentido que a ldquocomida forterdquo equivale ao ldquoalimentordquo categoria de que se exclui a ldquocomida fracardquo (BRANDAcircO 1981 p 109-110)

Para meus interlocutores comida forte eacute principalmente aquela feita com

gordura suiacutena Essa observaccedilatildeo eacute feita em contraposiccedilatildeo ao oacuteleo vegetal que eacute

um produto considerado ldquofracordquo e portanto natildeo oferece a ldquosustanccedila34rdquo desejada

por eles

Para quem trabalha na roccedila a comida feita com oacuteleo natildeo daacute muita sustanccedila A pessoa fica com fome fica meio fraco logo depois A gordura de porco segura mais (Maria 66 anos moradora do Coacuterrego de Itapeva Presidente Bernardes MG 2015)

Aqui se fizer a comida com oacuteleo a barriga comeccedila a roncar rapidinho o oacuteleo eacute fraco natildeo sustenta a gordura de porco eacute forte no serviccedilo que a gente mexe assim que eacute pesado tem de comer comida que sustenta (Carlos 49 anos morador de Posses Porto Firme MG 2015)

Sahlins (2003) ao discutir sobre a categoria de ldquoforccedilardquo atribuiacuteda a

comida relata que algumas culturas destacando a norte americana tem na

carne essa representaccedilatildeo fazendo dela um alimento baacutesico em sua dieta Pela

mesma razatildeo eacute grande consumidora de bacon No puacuteblico da pesquisa a

representaccedilatildeo da gordura e da carne tem uma aproximaccedilatildeo ao que eacute discutido

pelo autor por se tratar de alimento de origem animal como responsaacutevel pela

ldquoforccedilardquo Poreacutem a relaccedilatildeo de forccedila para consumo de carne e de bacon na cultura

34 O termo eacute a forma popular dada a ldquosubstacircnciardquo A capacidade de um alimento dar forccedila energia e

sustentar a fome

116

norte americana estaacute atrelada agrave fator socioeconocircmico como siacutembolo de riqueza

Para o grupo pesquisado a forccedila estaacute atrelada agrave capacidade que a gordura de

porco tem de ampliar o tempo de saciedade mas tambeacutem pelo paladar que

confere agrave comida Neste uacuteltimo aspecto ou seja o da preferecircncia pelo sabor da

gordura se comparada ao oacuteleo Essa preferecircncia eacute tambeacutem justificada pela razatildeo

praacutetica do uso da gordura que eacute o de ser um alimento mais forte e o que melhor

daacute sustentaccedilatildeo

Zaluar (1979) observou a importacircncia da classificaccedilatildeo da comida em

estudo com comunidade de baixa renda na aacuterea urbana Descreve que o grupo

classifica alimentos que consideram como ldquocomidasrdquo porque conferem

saciedade (carne gordura de porco arroz feijatildeo e macarratildeo) e alimentos que

apenas ldquoenganam a fomerdquo (saladas frutas verduras peixe etc) servindo para

o grupo apenas como complemento Nesta classificaccedilatildeo haacute uma diferenccedila do

conceito de comida que se difere de alimento atribuiacuteda por DaMatta (1987)

Tanto no caso do grupo pesquisado por Zaluar na aacuterea urbana quanto no grupo

que pesquisei em aacuterea rural a razatildeo praacutetica para classificar alimentos como

forte estaacute associada agrave necessidade de garantir condiccedilotildees fisioloacutegicas no tempo

dedicado ao trabalho pesado

No grupo que pesquisei visando facilitar o consumo da gordura mais da

metade das famiacutelias cria suiacutenos para essa finalidade Engordam um animal de

cada vez Em apenas uma dessas famiacutelias cria-se um nuacutemero maior para

comercializaccedilatildeo do animal

Haacute um ditado que diz que ldquodo porco soacute natildeo se aproveita o gritordquo pois eacute

possiacutevel usar tambeacutem o intestino para envolver as massas de linguiccedilas e

chouriccedilos o peacute o rabo a orelha e o focinho para feijoada a pele para fazer

torresmo Natildeo eacute difiacutecil entender porque a criaccedilatildeo dos suiacutenos caipiras demonstrou

ser tatildeo importante no grupo pesquisado A alimentaccedilatildeo dos porcos pode ser

produzida nos proacuteprios siacutetios como o fubaacute a cana de accediluacutecar a silagem de

mandioca e ateacute aboacuteboras e batatas doces cozidas misturadas ao fubaacute Nos siacutetios

que visitei o mais usado era o fubaacute

Segundo os agricultores que ldquoengordam o capadordquo35 o animal eacute abatido

sempre que a gordura acaba mas mata-se tambeacutem em veacutespera de festas como

35 Termo que escutei com frequecircncia durante a pesquisa Trata-se do porco castrado destinado agrave engorda

117

natal e ano novo e ainda em casamentos e demais festividades que acontecem

na aacuterea rural Em 2012 na festa de bodas de ouro dos sogros de Lola moradores

da comunidade de Xopotoacute em Presidente Bernardes parte da criaccedilatildeo existente

no siacutetio foi abatida Segundo Lola ldquomatamos dois capados de 17 arrobas e mais

de 15 galinhas caipirasa carne de boi noacutes compramosah e muita linguiccedila

tambeacutemrdquo Da mesma forma Eliana (69 anos moradora de Itapeva em

Presidente Bernardes) compartilhou que para a sua festa de bodas de ouro com

Saturnino ocorrida em junho de 2014 no quintal da casa a famiacutelia matou dois

suiacutenos e aproximadamente 10 frangos caipiras

No cotidiano das famiacutelias engordar um porco no quintal tem a funccedilatildeo

tanto de obter a gordura (banha) como a carne que na maioria das casas eacute

conservada na gordura O que mais ocorre eacute a carne acabar primeiro do que a

gordura Se em tempos passados usar a gordura para conservar as carnes era

uma necessidade jaacute que natildeo havia geladeira atualmente esse haacutebito permanece

por razotildees culturais e tambeacutem pelo sabor diferenciado prevalecendo assim seu

consumo como apontado no depoimento de Laeacutercio 68 anos

Mesmo tendo geladeira a gente ainda conserva a carne na gordura de porco tempera a carne hoje amanhatilde a gente cozinha e frita um pouco quando ela estaacute coradinha a gente potildee na gordura e ela pode ficar ateacute 3 4 meses na gordura natildeo estraga natildeo Uma parte a gente ateacute potildee na geladeira e congela mas natildeo eacute gostoso igual natildeo Muda muito com o frango eacute a mesma coisa Se a gente arruma ele para comer logo depois que mata o sabor eacute um se congela quando vai comer depois eacute outro gosto Natildeo fica bom (Laeacutercio morador de Itapeva em Presidente Bernardes MG 2015)

Tambeacutem na aacuterea urbana o consumo da gordura de porco tem suas

ramificaccedilotildees Natildeo raro eacute possiacutevel verificar em lojas especializadas em produtos

artesanais em Minas Gerais principalmente em lanchonetes de beira de estrada

e pequenos armazeacutens a venda do chamado ldquoporco na latardquo

O sabor conferido agrave comida foi constantemente relacionado com a

gordura suiacutena Os interlocutores deixaram transparecer em suas falas que a

apreciaccedilatildeo do sabor da comida refogada na gordura tem suas raiacutezes no gosto

herdado de geraccedilotildees passadas Cresceram comendo dessa forma Todos

afirmaram preferir o sabor da comida preparada na gordura agrave que eacute feita no oacuteleo

principalmente a verdura o feijatildeo e o arroz como declara Afonso (79 anos

morador de Ribeiratildeo em Presidente Bernardes) ldquoPara mim a verdura tem que

ser feita na gorduraa couve na gordura tem outro saborrdquo e Gilberto (75 anos

118

morador de Manja em Piranga) ldquoA comida feita na gordura de porco eacute mais

saborosa a gente jaacute acostumou com o sabor a couve feita no oacuteleo fica lisa na

gordura ela fica suculentardquo

A gordura eacute usada principalmente para refogar36 hortaliccedilas legumes e

feijatildeo Todos as famiacutelias apreciam a couve refogada na gorduraldquoDeus o livre

de comer uma verdura feita com oacuteleo natildeo fica gostoso do mesmo jeitordquo

Verdura eacute o termo utilizado pelos interlocutores para todos os produtos derivados

da horta inclusive os legumes Encontramos em Frieiro (1982) a explicaccedilatildeo

sobre essa heranccedila cultural

Eacute de recente data o uso de gorduras vegetais alimentiacutecias Antes natildeo era assim a gordura geralmente usada era a de toucinho a banha de porco Os dois alimentos de maior importacircncia para a gente mineira sempre foram o feijatildeo e o toucinho Feijatildeo eacute que escora a casa diz um ditado popular Sim e o toucinho daacute substacircncia ao feijatildeo podia agregar-se Sem a banha que o tempera seria comestiacutevel ldquoo feijatildeo nosso de cada diardquo A comida tradicional dos mineiros nada em banha de porco Dos assados e frituras de todos os guisados e ensopados das sopas dos molhos e farofas pinga a gordura em que satildeo preparados (FRIEIRO 1982 p 156)

Garcia (2013) discute a relaccedilatildeo de comportamentos culturais associados

agrave alimentaccedilatildeo afirmando que a heranccedila do gosto por certo tipo de comida e pela

forma de preparaccedilatildeo eacute responsaacutevel na maioria das vezes pela resistecircncia em

adotar praacuteticas novas e experimentar comidas diferentes e aceitar novos sabores

e texturas ao paladar tradicional Uma das razotildees para a couve permanecer

como verdura predileta do cotidiano natildeo eacute apenas por ser a hortaliccedila mais

resistente da horta mas principalmente pela sua preparaccedilatildeo combinada com a

gordura de porco Essa forma de preparaccedilatildeo compreende aquele ldquosistema

culinaacuteriordquo tratado por Poulain (2013 e 2014) e Fischler (1979 e 1995) que

envolvem regras determinantes (crenccedilas valores siacutembolos representaccedilotildees e

haacutebitos) na escolha preparo e consumo de alguns alimentos O que Sahlins

(2003) chama de ldquorazotildees culturaisrdquo que envolvem o haacutebito alimentar Essa

discussatildeo de sistema culinaacuterio se aplica tambeacutem a outras praacuteticas tradicionais

que fazem parte do grupo pesquisado como a tradiccedilatildeo de fazer as proacuteprias

quitandas mais consumidas

36 Refogar segundo Cacircmara Cascudo (2004 p 522) significa ldquoferver na gordurardquo

119

A estrateacutegia de quem natildeo tem essa criaccedilatildeo no siacutetio eacute comprar a gordura

produzida pelos vizinhos ou mesmo no accedilougue da cidade Eacute comum ocorrer o

abate em parceria familiar ou com a participaccedilatildeo de vizinhos proacuteximos com a

distribuiccedilatildeo entre eles das partes do animal mesmo porque para o abate satildeo

necessaacuterias pelo menos trecircs pessoas segundo a explicaccedilatildeo de Lola O sistema

de partilha no abate de suiacutenos eacute tradicional em muitas aacutereas rurais brasileiras e

uma heranccedila dos portugueses Moura (2013) em seu interessante livro sobre a

tradiccedilatildeo dos embutidos e da produccedilatildeo de suiacuteno caipira na regiatildeo de Traacutes-os-

Montes e Auto Douro em Portugal mostra que os procedimentos de criaccedilatildeo

matanccedila e distribuiccedilatildeo das carnes se assemelham muito agraves que ocorrem no meio

rural brasileiro Tambeacutem Cacircndido (1982) relata em sua pesquisa como se dava

o processo relativo agrave distribuiccedilatildeo da carne suiacutena e de caccedila entre os caipiras

paulistas

Segundo os velhos desde sempre eacute haacutebito ndash quase se diria ndash instituiccedilatildeo a oferta daqueles tipos de carne aos vizinhos imediatos que moram agrave vista ou constituem uma unidade vicinal Quando se mata um porco ou uma caccedila envia-se um pedaccedilo a cada vizinho () Do ponto de vista alimentar essa praacutetica funciona como uma forma de regularizaccedilatildeo do abastecimento caacuterneo jaacute que cada um mata um porco de tempos em tempos (CAcircNDIDO 1982 p 163-164)

Compreendo que este contexto de sociabilidade entre vizinhos eou

familiares que envolve tambeacutem doar ou receber uma parte do animal se

assemelha agrave relaccedilatildeo ldquodaacutediva-trocardquo discutida por Mauss (2003) como forma de

manter a sociabilidade os laccedilos e a dependecircncia reciacuteproca entre os grupos No

caso de vizinhos que ajudam na atividade quando aquele que recebeu vier a

matar o seu animal a reciprocidade ocorreraacute ou seja ele doaraacute ao outro vizinho

parte do animal O que tambeacutem se aproxima do que Cacircndido (1982) discute

sobre a informalidade e obrigaccedilatildeo moral que compotildee as relaccedilotildees de mutiratildeo no

meio rural

Mas haacute nesse sistema algo mais do que simplesmente uma troca de

favor como no entendimento de Mauss (2003) de que a daacutediva natildeo eacute meramente

uma retribuiccedilatildeo formal ou proveniente de um contrato verbal Ela se constitui em

uma relaccedilatildeo que envolve respeito e um tipo de acordo que eacute simboacutelico tanto

assim que a parte da carne a ser doada eacute escolhida pelo doador sem nenhum

acordo anterior

120

Apesar do sabor da gordura de porco ser preferido ao oacuteleo em todas as

famiacutelias em algumas esse consumo tem sido reduzido como nas famiacutelias de

Zefa e Armando e de Maria e Laeacutercio Nos dois casos haacute restriccedilotildees alimentares

para os filhos que satildeo transplantados renais37 Em funccedilatildeo disso os pais jaacute

aposentados optaram pela reduccedilatildeo do consumo de gordura de porco e outros

alimentos gordurosos Disseram que por um tempo tentaram acompanhar

totalmente a dieta dos filhos mas natildeo conseguiram sucesso por sentirem falta

tanto da gordura quanto da carne suiacutena Assim a comida tem sido preparada de

forma separada Como esse preparo separado eacute mais trabalhoso Zefa 67 anos

e o marido 75 anos continuam no esforccedilo de adaptaccedilatildeo ao consumo do oacuteleo

demonstrando solidariedade ao filho 42 anos cuja abstinecircncia alimentar tem

sido difiacutecil

Os outros dois casos de restriccedilatildeo agrave gordura de porco satildeo de mulheres

que demonstraram preocupaccedilatildeo com a sauacutede embora natildeo tenham apontado

nenhum problema especifico Relacionam o consumo da gordura como

prejudicial e em funccedilatildeo disso tambeacutem tecircm tentado reduzir o seu consumo Nilsa

(42 anos moradora de Satildeo Domingos em Porto Firme) justificou ldquoTodo mundo

fala que gordura de porco faz mal para a sauacutederdquo Na sua famiacutelia tem havido

resistecircncia por parte do marido que natildeo abre matildeo da carne de porco e da verdura

refogada na gordura Embora ela admita preferir o sabor da comida com a

gordura de porco acredita que para ter uma qualidade de vida melhor devem

abrir matildeo de seu consumo O marido discorda da esposa natildeo abrindo matildeo do

consumo da gordura e nem da carne de porco A diminuiccedilatildeo tem ocorrido com

dificuldade e tem gerado algum tipo de conflito sobre as escolhas alimentares

deste casal que mora sozinho pois os filhos estudam em outras cidades

O depoimento acima de Nilsa estaacute relacionado agraves divulgaccedilotildees sobre

sauacutede em programas de televisatildeo matinais que ela informou assistir de vez em

quando enquanto cuida dos afazeres da casa Informaccedilotildees sobre pesquisas de

alimentos e sobre sauacutede tecircm sido divulgadas frequentemente pelos meios de

comunicaccedilatildeo O risco de tais informaccedilotildees eacute confundir as pessoas quando natildeo

se faz uma reflexatildeo sobre o assunto Para o consumidor leigo o resultado de

37 Interessante a coincidecircncia de haver dois adultos jovens do sexo masculino com problemas renais e que

passaram por transplante Ambas famiacutelias pertencem agrave mesma comunidade mas natildeo haacute grau de parentesco entre eles

121

uma pesquisa divulgada em meios de comunicaccedilatildeo pode dar uma ideia

distorcida sobre o consumo de um alimento No caso de Nilsa ela demonstrou

considerar que o consumo de gordura de porco prejudica a sauacutede de sua famiacutelia

baseado no que ldquoescuta dizerrdquo Ainda assim houve um momento da conversa

em que ela ponderou criticamente ldquoAgora eu natildeo sei porque faz malnossos

pais e avoacutes a vida inteira comeram comida com gordura e natildeo sei de nenhum

deles que ficou doente por causa dissordquo

Em relaccedilatildeo agrave carne vermelha e a gordura principalmente o bacon e

outras carnes processadas a Organizaccedilatildeo Mundial de Sauacutede (OMS) acaba de

publicar o relatoacuterio do International Agency for Research on Cancer (IARC)38

sobre a associaccedilatildeo do consumo desses alimentos ao cacircncer de intestino O

resultado da pesquisa foi amplamente divulgado por jornais de televisatildeo e na

internet Eacute constante a divulgaccedilatildeo de novas pesquisas de alimentos associados

agrave sauacutede repassar esta informaccedilatildeo eacute funccedilatildeo da OMS como pondera Contreras

(2015) No entanto vaacuterios alimentos jaacute foram apontados como vilotildees da sauacutede

e tempos depois a partir de novas pesquisas deixaram de ser Em funccedilatildeo disso

Fischler (2015) denomina essa situaccedilatildeo como uma espeacutecie de cacofonia sobre

o tema da comida jaacute que o conhecimento cientiacutefico eacute dinacircmico e passiacutevel de

sofrer alteraccedilotildees e cita o exemplo do cafeacute que foi classificado como canceriacutegeno

para depois ser considerado como siacutembolo de longevidade

Profissionais de sauacutede e socioacutelogos da alimentaccedilatildeo tecircm se manifestado

publicamente a respeito da divulgaccedilatildeo recente sobre a carne vermelha Alertam

para o risco que uma leitura apressada sobre o assunto possa gerar ao comedor

fazendo com que abandone por completo o consumo de carne e com isso

apresente problemas de outra natureza por carecircncia de proteiacutenas por exemplo

Destacam a necessidade de relativizar e discutir mais sobre o quanto se come

de um determinado alimento O que natildeo se deve eacute ldquodemonizar alimentosrdquo

pondera Rivera (2015) para natildeo gerar pacircnico desnecessaacuterio nos consumidores

ldquoEs necesaria una estrategia de comunicacioacuten que explique bien las

conclusiones de un informe sin caer en el dramardquo esclarece o antropoacutelogo Xavier

Medina (2015) Para a antropoacuteloga Vilagrave (2015) falar dos riscos agrave sauacutede causado

por alimentos que fazem parte da cultura alimentar de boa parte da populaccedilatildeo

38 Disponiacutevel em httpwwwiarcfrenmedia-centrepr2015pdfspr240_Spdf Acesso em 28 out 2015

122

mundial eacute assunto que merece muito cuidado Assim defende que o mais

interessante seria divulgar que as pessoas sem quadro de doenccedilas podem

comer de tudo mas sempre com moderaccedilatildeo

Outra famiacutelia entrevistada a de Carmem (48 anos moradora de Jacuba

em Porto Firme) tem optado por reduzir o consumo de vaacuterios alimentos aos

quais sempre esteve habituada em funccedilatildeo da dieta de emagrecimento por

recomendaccedilatildeo profissional Assim abriu matildeo da carne e da gordura de porco

de alimentos que contenham gluacuteten do leite de vaca e seus derivados Como no

caso anterior seu marido tambeacutem natildeo adotou a mesma dieta A diferenccedila eacute que

ela prepara separadamente a comida do casal39 No dia a dia Carmem tem uma

atividade de trabalho pesada cuida da casa da horta prepara todas as

refeiccedilotildees tira leite lava o curral varre o quintal em torno da casa ndash atividade que

estava fazendo quando cheguei em sua casa pela manhatilde Ela reclama que sente

fome mas ainda assim estaacute resistindo e seguindo a restriccedilatildeo alimentar

Eu agora soacute posso tomar leite de soja com biscoito de polvilho de manhatilde cedo ai eu tomo isso mas eu tenho que tirar leite muito cedo quando eu acabo eu jaacute estou morrendo de fome aquilo natildeo sustenta ai eu vou comer a mesma coisa de novo Natildeo eu faccedilo um mingau de fubaacute natildeo fica gostoso como como o com leite de vaca mas ajuda a esperar o almoccedilo (Carmem 48 anos moradora de Jacuba em Porto Firme MG 2015)

Nossa conversa continuou na cozinha onde a observei preparando as

comidas separadas Almoccedilamos agraves 1130 Comi a mesma comida feita para o

marido arroz feijatildeo couve carne de porco cozida e meio frita angu e moranga

Carmem comeu moranga com feijatildeo que cozinhou separadamente sem

gordura e sem oacuteleo temperados com sal e alho ovo frito e couve refogada no

oacuteleo de soja

Carmem demonstrou ansiedade em relaccedilatildeo ao que comer ao longo do

dia sendo que parte dessa preocupaccedilatildeo estaacute presente em seu depoimento

acima A outra ansiedade foi demonstrada pela dificuldade em obter resultados

satisfatoacuterios em relaccedilatildeo agrave perda de peso Ela precisa fazer a dieta mas ao

mesmo tempo precisa se sentir ldquoforterdquo para realizar os trabalhos no siacutetio A

situaccedilatildeo vivenciada por ela estaacute relacionada agrave discussatildeo feita por Arnaiz (2005) e

Fischler (1995 e 2015) sobre a ansiedade do comedor contemporacircneo Para os

39 Seus filhos tambeacutem estudam e moram em outras cidades

123

autores eacute cada vez mais difiacutecil saber o que se estaacute comendo e eacute tambeacutem mais

complexo fazer escolhas alimentares No processo de escolha o alimento

precisa ser de boa aparecircncia e qualidade ter baixas calorias natildeo fazer mal agrave

sauacutede natildeo ser caro Aleacutem disso o autor menciona a necessidade de

identificaccedilatildeo do alimento se identificar com a opccedilatildeo moral do comedor por

exemplo seu cultivo natildeo deve ser prejudicial ao meio ambiente natildeo deve utilizar

matildeo de obra escrava etc Tudo isso gera ansiedade na escolha do que comer

Dessa forma Fischler (1995 e 2015) defende que uma nova patologia estaacute

surgindo para aquelas pessoas obcecadas por dieta a ortorexia nervosa que

tem como uma de suas caracteriacutesticas o fato de uma pessoa passar mais de trecircs

horas diaacuterias preocupada com o que vai comer40

Haacute ainda o caso da famiacutelia de Joatildeo e Marli (81 e 72 anos

respectivamente aposentados moradores de Aacutegua Lima em Porto Firme) Em

seu siacutetio a atividade leiteira gera renda para o casal mas sobretudo para o filho

que administra a atividade e mora na cidade A famiacutelia optou por abandonar a

criaccedilatildeo extensiva de suiacutenos porque escutava falar ldquoque a gordura faz mal ao

coraccedilatildeordquo Em funccedilatildeo disso o consumo foi reduzido acreditando natildeo compensar

manter a criaccedilatildeo Aleacutem disso segundo Joatildeo antes havia muitos filhos em casa

para alimentar assim ldquoengordar o porcordquo era mais barato do que comprar a

carne e a gordura Embora tenham reduzido o uso da gordura de porco natildeo a

retiraram da dieta por completo Compram no accedilougue e ela continua sendo

usada dois dias na semana aproximadamente Como criam gado costuma-se

matar um animal e assim o consumo de carne de boi natildeo eacute raro nesta famiacutelia

como o eacute nas outras O depoimento de Joatildeo a seguir chama a atenccedilatildeo para o

fubaacute assunto que seraacute discutido no toacutepico especiacutefico mais agrave frente nesse

trabalho e essa parte de seu depoimento seraacute retomado na discussatildeo A

dificuldade de acessar o uacutenico moinho drsquoaacutegua existente na regiatildeo tambeacutem foi um

motivo que levou a famiacutelia a desistir da criaccedilatildeo dos suiacutenos

Eu engordava porco mas os meacutedicos estatildeo proibindo a gente de comer gordura ai nem engordo mais porco natildeoquando daacute vontade a gente compra um toucinho a carne compra sempre Tambeacutem natildeo compensa engordar natildeo porque o moinho de fazer fubaacute pra porco eacute longe daqui e esses fubaacutes moiacutedos nessas maquinas de hoje (eleacutetrica) nem os porcos gostam muito sabe a gente ateacute que tem um moinho

40 Mais informaccedilotildees sobre esse assunto ver Martins et al (2011)

124

bem pequeno aqui mas eacute soacute pra moer o milho para gente fazer angu e broa (Joatildeo morador de Aacutegua Limpa em Porto Firme MG 2015)

As situaccedilotildees das cinco famiacutelias citadas acima sinalizam o quanto mudar

o haacutebito alimentar e abrir matildeo do costume e do gosto aprendido eacute uma tarefa

difiacutecil mesmo que o apelo para isso seja a sauacutede principalmente quando o

alimento em questatildeo estaacute relacionado a uma atividade produtiva que tambeacutem

possui um apego tradicional como eacute o caso do porco caipira Para Bourdieu

(2007) formaccedilatildeo do gosto e a construccedilatildeo do haacutebito alimentar que eacute algo

aprendido na convivecircncia social sendo a famiacutelia o principal grupo de

aprendizado De Garine (1987) discute que em funccedilatildeo do haacutebito alimentar estar

ligado aos costumes herdados de geraccedilotildees passadas a mudanccedila de uma

alimentaccedilatildeo mais tradicional para uma industrializada natildeo ocorre facilmente

tampouco se daacute de maneira raacutepida Eacute um processo lento e que encontra

resistecircncia do comedor o quanto for possiacutevel

O oacuteleo vegetal eacute um desses exemplos de resistecircncia mas que aos

poucos se insere nas praacuteticas alimentares das famiacutelias Seu uso estaacute presente

em quase todas as casas pesquisadas exceto na famiacutelia de Eliana e Saturnino

que natildeo se adaptaram ao seu consumo para o preparo de nenhum alimento que

consomem no dia a dia No restante das famiacutelias o oacuteleo tem sido usado com

parcimocircnia principalmente para algumas frituras conforme os relatos a seguir

ldquoPorque o oacuteleo deixa a batata mais bonita e mais sequinha o peixe tambeacutem fica

melhor mais crocanterdquo (Margarida 74 anos moradora de Xopotoacute em Presidente

Bernardes) ldquoo arroz fica mais soltordquo (Luisa 57 anos moradora de Bom Retiro

em Porto Firme) ldquonatildeo uso mais gordura para fritar batata doce natildeo soacute oacuteleo

ateacute para lavar a panela eacute mais faacutecilrdquo (Juliana 48 anos moradora de Tatu em

Piranga)

Apesar da preferecircncia pela gordura suiacutena o oacuteleo vegetal tem dividido

espaccedilo com a gordura de porco no sistema culinaacuterio das famiacutelias Nestes casos

eacute um exemplo da possibilidade de introduccedilatildeo de um produto industrializado na

alimentaccedilatildeo sem que tenha sido necessaacuterio abrir matildeo radicalmente de um

produto tradicional excetuados os casos onde haacute restriccedilatildeo alimentar como jaacute

citado

O apego ao sabor e agrave crenccedila na capacidade de sustentaccedilatildeo alimentar

gerada pelo uso da gordura de porco faz com que seu consumo permaneccedila

125

como prioritaacuterio nas famiacutelias Poreacutem novos haacutebitos podem ser aprendidos

conforme argumenta Nevot (2011) Para este autor as mudanccedilas de haacutebitos

alimentares na sociedade atual satildeo permanentes Quanto mais novidades

alimentares emergem com novas tecnologias de produccedilatildeo novas informaccedilotildees

sobre os alimentos satildeo fornecidas ampliando a possibilidade de mudanccedilas de

haacutebitos Surge a necessidade de se aprender cada vez mais a escolher o que

comer Se por um lado herdamos haacutebitos alimentares as circunstacircncias nos

fazem adquirir outros novos

Por outro lado o excesso de novidades alimentares faz com que alguns

alimentos tradicionais sejam colocados em questatildeo gerando a anguacutestia

alimentar do comedor contemporacircneo apontada por Fischler (1995 2011 e

2015) No caso da gordura de porco de um lado estaacute um alimento habitual que

eacute heranccedila cultural tradicional e repassado oralmente por avoacutes e pais um

alimento considerado importante ldquoforterdquo de paladar agradaacutevel e que natildeo era

visto como prejudicial agrave sauacutede dos seus antepassados De outro lado existe a

preocupaccedilatildeo gerada nos tempos atuais que indica o mesmo alimento como

maleacutefico agrave sauacutede e portanto a ser evitado e substituiacutedo por um produto de fonte

vegetal e industrializado o oacuteleo

No grupo pesquisado a questatildeo relacionada agrave origem do oacuteleo vegetal

natildeo surgiu como preocupaccedilatildeo Nenhum interlocutor tocou no assunto da

transgenia associado a esse produto por exemplo Apenas destacaram como

pouco saudaacutevel o consumo da gordura do porco Por outro lado a opccedilatildeo da

maioria das famiacutelias em continuar a consumir a gordura de porco sinaliza uma

influecircncia mais acentuada dos fatores culturais em relaccedilatildeo aos fatores

nutricionais e cientiacuteficos na escolha dos alimentos questatildeo discutida por Garcia

(2009) e Mintz (2001)

511 Outras comidas ldquofortesrdquo

No capiacutetulo 2 utilizei Frieiro (1982) e Zemella (1951) para destacar a

importacircncia histoacuterica da criaccedilatildeo dos suiacutenos no quintal das casas com objetivo

de mitigar o problema da fome surgida durante a fase da mineraccedilatildeo em Minas

Gerais Surgiu daiacute o haacutebito de consumir a carne a gordura e o uso de outras

partes do animal adicionadas ao feijatildeo que se constituiacutea em alimento de grande

126

valor energeacutetico e proteico muito usado em funccedilatildeo disso como alimento dos

escravos Dessa mistura surgiu o que hoje conhecemos como feijoada O feijatildeo

foi tatildeo importante quanto o milho a mandioca a couve a gordura o toucinho e

o arroz para a manutenccedilatildeo das atividades mineradoras

No cotidiano alimentar das famiacutelias pesquisas eacute haacutebito cozinhar o feijatildeo

com toucinho que eacute tambeacutem considerado como alimento ldquoforterdquo O feijatildeo eacute item

diaacuterio nas refeiccedilotildees e seu consumo e cultivo tem laccedilos de heranccedila cultural e

histoacuterica assim como o suiacuteno caipira Apenas trecircs famiacutelias natildeo cultivam o feijatildeo

Uma parte do que eacute produzido eacute comercializada por seis famiacutelias nas demais

em 31 delas a produccedilatildeo destina-se apenas ao autoconsumo Durante a

pesquisa de campo algumas famiacutelias estavam comeccedilando a fase da colheita e

pude observar algumas pessoas no trabalho homens no geral Eacute um trabalho

difiacutecil pois eacute feita no modo tradicional arrancados agrave matildeo O trabalho das

mulheres se daacute principalmente na hora de bater e limpar o produto que seraacute

armazenado no paiol

Para aleacutem da gordura da carne suiacutena e do feijatildeo outros alimentos satildeo

considerados como sendo ldquofortesrdquo para manter o organismo bem nutrido para o

trabalho e satildeo consumidos com muita frequecircncia Satildeo eles o arroz a batata

doce a mandioca o angu e as farinhas de milho e de mandioca

O arroz consumido diariamente natildeo eacute mais produzido pelas famiacutelias

pela dificuldade que seu cultivo tem representado nos uacuteltimos anos segundo os

depoimentos de alguns dos interlocutores

Noacutes colhiacuteamos muito arroz natildeo precisava comprar mas jaacute tem uns cinco anos que a gente parou de mexer com arroz porque fica muito caro produzir do que comprar e tem os passarinhos que atacam a plantaccedilatildeo de arroz um passarinho preto que a gente chama de chupin A gente natildeo pode fazer nada contra eles porque eacute proibido mas quando chega a hora da colheita natildeo tem mais quase nada nos cachinhos de arroz (Lucio 46 anos morador de Bom Jesus do Bacalhau em Piranga MG 2015)

Ateacute uns anos atraacutes a gente plantava arroz socava no pilatildeo soacute para o consumo da famiacuteliamas comeccedilou a dar problema na uacuteltima vez que plantamos quando chegou a eacutepoca de cachear veio o sol muito forte ai natildeo saiu o cachoai resolvemos acabar com a plantaccedilatildeo (Onofre 67 anos morador de Mestre Campos em Piranga MG 2015)

Os entrevistados mencionaram uma diferenccedila no sabor e no aspecto do

arroz industrializado em comparaccedilatildeo ao que cultivavam como mostra o

depoimento de Mafalda (57 anos moradora de Ribeiratildeo em Presidente

127

Bernardes) a seguir Destacaram que o aspecto do tradicional que eles

cultivavam era mais grosseiro e amarelado e que o sabor era diferente aleacutem de

ser mais macio e poroso o que fazia com que o tempero impregnasse melhor

Por outro lado disseram que o industrializado leva menos tempo para ser cozido

Apesar de preferirem o arroz tradicional adquirir arroz no mercado atualmente

eacute mais interessante do que cultivaacute-lo levando-se em consideraccedilatildeo o custo-

benefiacutecio Mais uma vez aparecem aqui aspectos que pesam na escolha

alimentar semelhante ao que acontece com a escolha do oacuteleo vegetal e da

gordura de porco Mafalda expotildee em seu depoimento os aspectos que

considera positivos do arroz atual industrializado (ficar soltinho com a cor clara)

e os negativos (menos saboroso demora para absorver o tempero natildeo daacute a

ldquoligardquo considerada necessaacuteria na elaboraccedilatildeo do arroz doce)

Tem bastante diferenccedila O arroz que a gente colhia ele nunca ficava clarinho sempre tinhas uns gratildeos amarelos no meio poreacutem ele era um arroz mais gostoso Ele era mais macio e pegava mais o tempero Ele era melhor tambeacutem para fazer arroz doce porque ele dava mais liga Esses comprados natildeo daacute liga entatildeo o arroz de hoje natildeo eacute igual ao que a gente fazia antes Mas ele tambeacutem natildeo ficava soltinho na panela como o arroz que a gente refoga hoje Antigamente para ele ficar soltinho a gente tinha que espremer um limatildeo Hoje ficou mais faacutecil pra gente fazer (Mafalda moradora de Ribeiratildeo em Presidente Bernardes MG 2015)

Os demais alimentos considerados ldquofortesrdquo como a mandioca a batata

doce e o milho satildeo produzidos nos siacutetios e satildeo consumidos quase que

cotidianamente seja no cafeacute da manhatilde no almoccedilo e no jantar

A batata doce eacute quase sempre frita ou assada na brasa do fogatildeo a lenha

Usa-se consumi-la pela manhatilde acompanhada de cafeacute41 O mesmo ocorre em

relaccedilatildeo agrave mandioca Mas para consumo no almoccedilo e jantar o mais comum eacute

servi-la cozida ou ensopada com carne

O polvilho derivado da mandioca tambeacutem natildeo eacute mais produzido pelas

famiacutelias em todas elas esse produto agora eacute comprado O polvilho eacute usado

principalmente para fazer brevidade um tipo de bolo que eacute elaborado

esporadicamente Observei que em todas as casas haacute o consumo do biscoito de

polvilho assado poreacutem eacute tambeacutem comprado no mercado Agraves vezes se faz o

biscoito de polvilho frito mas as mulheres alegam que por espirrar muito durante

41 O cafeacute eacute feito em aacutegua adoccedilada e passado no coador de pano Natildeo vi o uso de coadores de papel em

nenhuma das casas

128

a fritura e ser bom para comer apenas por algumas horas apoacutes o preparo ele

natildeo eacute mais habitual como no passado Foi um tempo segundo as mulheres em

que sempre havia muita gente para comer e os produtos industrializados eram

parcos e caros no mercado Aleacutem disso o acesso aos mercados era mais difiacutecil

tornando necessaacuterio produzir praticamente tudo o que era destinado a

alimentaccedilatildeo das famiacutelias Os depoimentos a seguir de Anita (71 anos moradora

de Manja em Piranga) e de Lena (70 anos moradora de Ribeiratildeo em Presidente

Bernardes) tambeacutem sinalizam assim como ocorreu com o arroz que em razatildeo

da praticidade alguns modos tradicionais satildeo substituiacutedas ou passam a ser

retomados apenas em momentos especiacuteficos como naqueles que envolvem

reuniatildeo familiar e um grupo maior de pessoas nas casas Lena menciona o fato

da reduccedilatildeo do tamanho das famiacutelias quando comparadas com as famiacutelias dos

antepassados Outros entrevistados fizeram a observaccedilatildeo de que ldquoantes havia

muita gente na roccedilardquo ldquoantigamente as famiacutelias eram maioresrdquo A reduccedilatildeo do

nuacutemero de pessoas nas famiacutelias ndash na minha pesquisa o tamanho meacutedio eacute 36

pessoas por famiacutelia ndash interfere nas praacuteticas alimentares seja haacute menos pessoas

para se alimentar no dia a dia seja pelo fato de natildeo haver quem ajude na cozinha

e na elaboraccedilatildeo das quitandas Motivos que geram um certo tipo de desacircnimo

em investir em pratos mais trabalhosos que eram feitos e socializados nos

grupos familiares de antigamente

ldquoNa casa da minha matildee fazia muito polvilho Naquela eacutepoca todo mundo fazia muita brevidade agora ficou tatildeo faacutecil comprar o polvilho mas daacute muito trabalho fazer o biscoito frito e o assado natildeo eacute caro no mercado quase todo mundo prefere comprarrdquo (Anita moradora de Manja Piranga MG 2015)

ldquoEu fazia muito biscoito de polvilho frito quando os meninos eram pequenos eles gostavam Mas hoje eu quase natildeo faccedilo maissoacute se eles quando estatildeo aqui me pedem ai eu faccedilo Soacute para noacutes dois a gente compra esse do mercado mesmordquo (Lena moradora de Ribeiratildeo em Presidente Bernardes MG 2015)

Aleacutem do polvilho obtido da mandioca o milho e os seus derivados fazem

parte da cultura alimentar mineira como foi mostrado no capiacutetulo 2 a partir dos

apontamentos de Frieiro (1982) Zemella (1951) Meneses (2007) Arruda

(1999) Cacircmara Cascudo (2004) e Abdala (2007) O milho nesse periacuteodo foi

considerado mais importante do que a mandioca em funccedilatildeo de ser muito usado

tambeacutem para alimentaccedilatildeo animal conforme Meneses (2007) Com o passar dos

anos o milho assumiu lugar mais destacado do que a mandioca na culinaacuteria

129

mineira conforme Frieiro (1982) e Abdala (2007) A regiatildeo da pesquisa como jaacute

visto no referido capiacutetulo eacute uma das primeiras a serem ocupadas por ocasiatildeo da

mineraccedilatildeo em Minas Gerais Isso pode ter influenciado a permanecircncia da

tradiccedilatildeo do consumo do fubaacute que como mostrarei a seguir tem presenccedila

marcante na dieta das famiacutelias

52 Consideraccedilotildees sobre a importacircncia do milho e do fubaacute

Oraccedilatildeo ao Milho (Cora Coralina)

Fui o angu pesado e constante do escravo na exaustatildeo do eito Sou a broa grosseira e modesta do pequeno sitiante Sou a farinha econocircmica do proprietaacuterio sou a polenta do imigrante e a amiga dos que comeccedilam a vida em terra estranha Alimento de porcos e do triste mu de carga o que me planta natildeo levanta comeacutercio nem avantaja dinheiro Sou apenas a fartura generosa e despreocupada dos paioacuteis Sou o cocho abastecido donde rumina o gado Sou o canto festivo dos galos na gloacuteria do dia que amanhece Sou o cacarejo alegre das poedeiras agrave volta dos ninhos Sou a pobreza vegetal agradecida a voacutes Senhor que me fizestes necessaacuterio e humilde Sou o milho

Com exceccedilatildeo das famiacutelias de Antocircnio e Marieta e de Marilia todas as

outras cultivam o milho A produccedilatildeo eacute pequena e destinada agrave alimentaccedilatildeo

animal mas tambeacutem agrave elaboraccedilatildeo de fubaacute produzido em todos os siacutetios onde a

planta eacute cultivada Apenas uma famiacutelia possui moinho movido agrave aacutegua o restante

utiliza moinho eleacutetrico Na ocasiatildeo da pesquisa o moinho drsquoaacutegua era uma

raridade na aacuterea rural pesquisada segundo informaccedilatildeo dos entrevistados Tive

a oportunidade de ver um moinho muito antigo em funcionamento no siacutetio de

Manoel e Donana (72 e 54 anos respectivamente moradores de Limeira em

Porto Firme) (Figura 7) Este moinho tem sua estrutura feita em madeira e jaacute

apresentava sinais de sua idade com algumas peccedilas presas com arame O

trabalho eacute perfeito poreacutem lento Pertenceu aos pais de Manoel foi muito utilizado

no passado e permanece em uso para autoconsumo familiar O moinho se

localiza na margem da estrada por onde passa o coacuterrego A porta de acesso fica

130

constantemente entreaberta mas nunca houve roubo de fubaacute ou depredaccedilatildeo do

local

(a) (b)

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 7 ndash Moinho drsquoaacutegua no siacutetio de Manoel e Donana na Comunidade Limeira Porto Firme

A Figura 8 mostra o moinho eleacutetrico adotado atualmente pelas famiacutelias

O moinho da figura pertence agrave famiacutelia de Nanaacute e Custoacutedio na comunidade

Xopotoacute em Piranga Muito diferente do anterior executa o trabalho com maior

rapidez do que o de moinho drsquoaacutegua poreacutem com qualidade inferior como

apontado pelos entrevistados Neste tipo de moinho natildeo pode observar o

moinho sendo feito jaacute que ele segue direto para o pequeno silo acoplado agrave

maacutequina

Apesar da preferecircncia pelo fubaacute feito no moinho drsquoaacutegua meus

interlocutores afirmaram ter sido necessaacuteria a adaptaccedilatildeo ao moinho eleacutetrico que

se tornou mais usual principalmente em funccedilatildeo da reduccedilatildeo de aacutegua disponiacutevel

nos uacuteltimos anos Mencionaram ainda outro fator que consideram importante

para a reduccedilatildeo da utilizaccedilatildeo do moinho drsquoaacutegua Segundo eles as pessoas mais

velhas se importavam mais em manter os moinhos drsquoaacutegua por ser considerada

uma praacutetica tradicional mas quando os moinhos eleacutetricos surgiram o apelo agrave

praticidade falou mais alto e o moinho drsquoaacutegua foi perdendo espaccedilo nos siacutetios

administrados pelas geraccedilotildees mais novas

131

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 8 ndash Moinho eleacutetrico no siacutetio de Nanaacute e Custoacutedio na Comunidade Xopotoacute em Piranga

Antigamente muita gente tinha moinho drsquoaacutegua aqui mesmo tinham uns 3 ou 4 numa distacircncia de 5 Km por aquifoi acabando os velhos foram morrendo e os mais novos natildeo quiseram saber de mexer com isso natildeo (Alonso 82 anos morador de Xopotoacute em Presidente Bernardes MG 2015)

Os moinhos tocados a aacutegua ficam quase sempre mais longe da casa perto de onde corre uma aacutegua neacute O eleacutetrico pode ficar em qualquer lugar debaixo de uma coberta ou perto do paiol daacute menos trabalho e de primeiro tinha muita gente na roccedila natildeo tinha problema ter muito serviccedilo mas hoje dessa gente nova natildeo tem quase ningueacutem mais aqui (Francisco 64 anos morador de Satildeo Domingos em Porto Firme MG 2015)

A reduccedilatildeo no uso desses moinhos comeccedilou a ocorrer haacute

aproximadamente 15 anos quando ainda era possiacutevel encontrar mais facilmente

o ldquofubaacute de moinho drsquoagua para comprar Se por um lado a adoccedilatildeo do moinho

eleacutetrico facilitou o trabalho por outro o fubaacute produzido por ele sofreu alteraccedilatildeo

na textura e sabor Joatildeo (81 anos morador de Aacutegua Limpa em Porto Firme)

pondera que o fubaacute originado do moinho eleacutetrico ldquonatildeo agrada nem aos animaisrdquo

Segundo os depoimentos o fubaacute de moinho drsquoaacutegua era fino e mais

uacutemido A diferenccedila para o produto do moinho eleacutetrico eacute que ele produz um fubaacute

mais grosso e ressecado Essas caracteriacutesticas alteraram o sabor e a textura de

dois alimentos muito importantes na culinaacuteria da regiatildeo pesquisada a broa e o

132

angu Segundo as mulheres ldquoa broa de antes tinha mais ligardquo Assim para

melhorar sua textura a broa que era elaborada de puro fubaacute passou a ter a

adiccedilatildeo de uma parte de farinha de trigo

As discussotildees em torno das mudanccedilas ocasionadas no fubaacute foram

longas e contaram com participaccedilatildeo interessada de muitos homens que

culturalmente natildeo costumam a discutir assuntos culinaacuterios Talvez isso se

explique pelo fato de os produtos derivados do fubaacute serem tatildeo importantes na

alimentaccedilatildeo cotidiana de todas as famiacutelias e por ser utilizado uma maacutequina para

produzi-lo objeto considerado culturalmente como de domiacutenio masculino Em

funccedilatildeo da importacircncia desses alimentos considero interessante adicionar um

nuacutemero maior de depoimentos mesmo ciente de que em um vieacutes etnograacutefico

deve-se tomar cuidado com o excesso de depoimentos em que estejam

evidenciadas ideias semelhantes conforme observaccedilatildeo feita por Peirano (1995)

() pena que hoje quase natildeo acha mais fubaacute de moinho drsquoaacutegua o fubaacute era fininho e dava uma broa maciahoje as maacutequinas quase que torram o fubaacute A broa fica mais ou menos neacute Eu faccedilo uma broinha com rapadura que ficava muito deliciosa mesmo era quando feita com o fubaacute fino (Neuzeli 63 anos moradora de Vinte Alqueires em Porto Firme MG 2015)

A broa feita com fubaacute do moinho eleacutetrico fica muito solta o sabor da comida mudou muito taacute tudo muito mudado em tudo na roccedila (Vanilda 55 anos moradora de Mestre Campos em Piranga MG 2015)

Por ser raridade o fubaacute produzido no moinho drsquoaacutegua tem ganhado

valorizaccedilatildeo no mercado Encontrado agrave venda apenas nos mercados de produtos

artesanais o seu preccedilo eacute superior ao fubaacute industrializado Poucos produtores

colocam o produto agrave venda pois como a produccedilatildeo eacute pequena ela objetiva

atender agraves necessidades das famiacutelias como o caso de Manoel e Donana Ter

um moinho drsquoaacutegua na propriedade no periacuteodo colonial significava haver ali um

grande uso do fubaacute para diferentes funccedilotildees no local Era considerado na eacutepoca

um equipamento sofisticado segundo Andrade (2014) Atualmente ele eacute visto

como ultrapassado de trabalho lento e atividade trabalhosa perdendo seu

espaccedilo para a tecnologia oferecida pelo moinho eleacutetrico A relaccedilatildeo tradicional e

moderno referente aos moinhos reportam agraves diferentes geraccedilotildees no grupo

pesquisado Em vaacuterios depoimentos foi constante a associaccedilatildeo dos moinhos

drsquoaacutegua como objetos de desinteresse das geraccedilotildees mais novas Assim o

produto gerado pelo moinho tradicional apesar de ser preferido em termos de

133

sabor e textura natildeo eacute um argumento forte o suficiente para que seu uso se

mantenha sob os cuidados dos mais jovens

Ao tratar sobre as substituiccedilotildees dos equipamentos modernos pelos

tradicionais no preparo dos alimentos Giard (2012) discute que a mudanccedila natildeo

se daacute apenas pela substituiccedilatildeo do aparelho ou utensiacutelio mas tambeacutem da relaccedilatildeo

instrumental entre o utilizador o objeto utilizado O moinho dacuteaacutegua eacute mais

trabalhoso de ser utilizado porque se localizava distante das casas como o

exemplo daquele da famiacutelia que visitei Eacute preciso controlar o tempo e fazecirc-lo

parar de funcionar manualmente diferente do moinho eleacutetrico que desliga

sozinho Aleacutem disso a sua produccedilatildeo eacute lenta produz-se muito menos fubaacute no

moinho drsquoaacutegua do que no moinho eleacutetrico no mesmo espaccedilo de tempo Na

contemporaneidade em uma sociedade liacutequido-moderna adaptar-se agraves novas

tecnologias eacute uma forma de natildeo perder tempo como reflete Bauman (2009)

Para Giard (2012) algumas mudanccedilas nas praacuteticas alimentares satildeo inevitaacuteveis

e para usufruir as vantagens de uma cultura material eacute preciso estar pronto para

lidar com seus inconvenientes Em alguns casos a convivecircncia entre uma

praacutetica tradicional e uma moderna eacute possiacutevel mas nem sempre No caso do fubaacute

do moinho tradicional e do eleacutetrico por exemplo natildeo haacute alternativa Eacute preciso

fazer a escolha No caso do fubaacute produzido nos dois tipos de moinhos a

lembranccedila do produto tradicional ainda estaacute na memoacuteria inclusive a do paladar

como mostra a fala de Jonas

Fubaacute de moinho drsquoaacutegua eacute coisa rara demaisquando eu falo chego a sentir o gosto do bolo feito de fubaacute de antigamente e angu o angu de fubaacute de moinho drsquoaacutegua era alaranjado assim meio avermelhado hoje ele fica branco (Jonas 53 anos morador da comunidade Satildeo Domingos em Porto Firme MG 2015)

Sobre a ligaccedilatildeo entre memoacuteria e tradiccedilatildeo Giddens (2012) citando

Halbwachs (1992 p 100) diz que ldquoo passado desmorona mas soacute desvanece

na aparecircncia pois continua a existir no inconscienterdquo As observaccedilotildees sobre o

passado em que existia o moinho drsquoaacutegua foram carregadas de memoacuterias

lembranccedilas de sabores e por que natildeo de idealizaccedilatildeo Um passado que para

meus interlocutores se opotildee ao presente em vaacuterios aspectos dentre eles o

alimentar o artesanal versus o industrial ou seja ou moinho drsquoaacutegua versus o

moinho eleacutetrico Identificar e destacar a comida e os modos de fazer do passado

como no depoimento anterior de Jonas eacute um exemplo dos momentos em que

134

somos visitados pelos cheiros e sabores do passado discutido por Giard (2012)

sobre a memoacuteria afetiva e do quanto o presente e o passado se entrelaccedilam no

imaginaacuterio das pessoas quando se trata de falar sobre comida Para Moulin

(1975 apud GIARD 2012) o tipo de comida preferida de uma pessoa eacute sempre

o mesmo ou muito semelhante agravequele dos pais

Em suma noacutes comemos o que nossa matildee nos ensinou a comer Gostamos daquilo que ela gostava do doce ou do salgado da geleia de manhatilde ou dos cereais do chaacute ou do cafeacute de tal forma que eacute mais loacutegico acreditar que comemos nossas lembranccedilas as mais seguras temperadas de ternuras e de ritos que marcaram nossa primeira infacircncia (MOULIN apud GIARD 2012 p 251)

Depoimentos semelhantes agravequele dado por Vanilda sobre as mudanccedilas

relacionadas agrave comida ldquoo sabor da comida mudou muito estaacute tudo muito

mudado em tudo na roccedilardquo me conduziam a perguntar O que mudou na comida

As respostas dos interlocutores foram no sentido de apontar aqueles alimentos

que eram comuns para eles no passado na infacircncia e juventude e que jaacute natildeo

satildeo mais facilmente encontrados Aleacutem da gordura animal que jaacute foi discutida o

fubaacute tambeacutem permanece no cotidiano Mesmo natildeo sendo mais aquele preferido

produzido no moinho drsquoaacutegua ainda continua presente em vaacuterias elaboraccedilotildees de

quitandas principalmente na broa e no angu alimento que eacute consumido

diariamente pelas famiacutelias

O angu mineiro possui uma mistura simples fubaacute e aacutegua No capiacutetulo 2

mostrei que esse alimento natildeo usava sal pois era um produto raro na regiatildeo

mineradora e portanto caro

Outra maneira de consumir o angu aleacutem daquela servida em almoccedilo e

jantar foi apontada pelas famiacutelias como sendo muito apreciada pelos mais

velhos Eacute o angu adicionado ao leite e sal formando um mingau grosso

geralmente se comia assim na merenda usando a sobra do angu

Antigamente a merenda mais comumisso quando eu ainda era solteira era leite com angu no leite quente ou frio agraves vezes quando me daacute saudade de comer ai eu faccedilo quando a gente era crianccedila tinha sempre (Mercecircs 41 anos moradora de Bom Jesus do Bacalhau em Piranga MG 2015)

O curau doce agrave base de milho foi citado como uma iguaria feita em dias

festivos como no Natal O mingau salgado que tambeacutem eacute a base de fubaacute eacute muito

consumido principalmente em dias frios Trata-se do ldquomingau de couverdquo ou

135

ldquobambaacute de couverdquo Este prato eacute assim como a canjiquinha de milho um dos

caldos preferidos

A canjiquinha e o mingau de couve a gente faz muito aquimas quando estaacute muito calor natildeo neacute Porque eacute para comer bem quentinho que eacute gostoso eu tambeacutem faccedilo quando a comida do almoccedilo eacute pouca para o jantar ai a gente costuma jantar uma sopa coloca muita couve e cebolinha vocecirc natildeo conhece essas comidas natildeo neacute42 (Selma 68 anos moradora de Tatu em Piranga MG 2015)

Outro derivado do milho que jaacute foi muito consumido mas que raramente

eacute elaborado hoje eacute o cuscuz doce agrave base de fubaacute accediluacutecar aacutegua e queijo43 Esse

tipo de cuscuz segundo ele pode ser comido puro com cafeacute ou com leite Um

doce que segundo os interlocutores pode ser comido com colher por ter a

consistecircncia de uma farofa grossa Apesar de ser doce ele possui queijo na

mistura e que tambeacutem era preferencialmente consumido nas merendas

Geralmente eacute feito em uma panela proacutepria o cuscuzeiro mas as mulheres

disseram que nem todos tinham o cuscuzeiro por isso se fazia em uma panela

dentro de outra com aacutegua semelhante agrave teacutecnica do banho maria O cuscuz

salgado natildeo foi citado e quando perguntei sobre ele disseram natildeo ser conhecido

na regiatildeo

Antocircnio 78 anos que aleacutem de agricultor teve uma pequena padaria em

Piranga haacute deacutecadas atraacutes foi dentre os homens entrevistados o que se

mostrou mais interessado em culinaacuteria e relatou algumas de suas experiecircncias

como padeiro e sobre as quitandas patildees e bolos que fazia Contou

detalhadamente como era o cuscuz que fazia Ao compartilhar sua experiecircncia

e reviver as lembranccedilas de eacutepocas passadas Antonio demonstrou emoccedilatildeo pois

esse era um alimento que sentia prazer em fazer e em degustar Ele guarda as

receitas de tudo que fazia na memoacuteria revelando a importacircncia que a padaria

teve em sua vida

O cuscuz natildeo eacute mais elaborado pelas famiacutelias como antes porque eacute

possiacutevel encontrar outros alimentos que os substituem e porque alguns

alimentos permaneceram como haacutebitos cotidianos como os bolos broas que

42 Eu tambeacutem era constantemente ldquoentrevistadardquo por eles Respondi que conheccedilo os dois pratos e que

gosto muito de ambos 43 O queijo usado em muitos ingredientes e consumidos no dia a dia eacute produzido por todas as 34 famiacutelias

(85) que tem atividade leiteira nos siacutetios mas a produccedilatildeo do queijo eacute basicamente para autoconsumo Jaacute a manteiga eacute um produto menos comum de ser fabricado atualmente pelo trabalho de sua produccedilatildeo Mas eacute um alimento que permanece como haacutebito alimentar Compra-se a industrializada ou de vizinhos que porventura fabriquem

136

satildeo feitas em casa e caso contraacuterio satildeo facilmente encontradas no mercado

Segundo Giard (2012) uma explicaccedilatildeo para o abandono de algumas praacuteticas

passadas na culinaacuteria estaacute nas mudanccedilas das provisotildees e ofertas no mercado

Nesse caso ldquopermanece apenas a lembranccedila interiorizada dos sabores antigosrdquo

(p 274) como eacute o caso das recordaccedilotildees de Antonio sobre o cuscuz que fazia

com frequecircncia no passado e que tinha muita aceitaccedilatildeo de seus clientes da

padaria

Uma coisa que eu jaacute fiz muito e que vocecirc natildeo deve nem nunca ter ouvido falar Cuscuz torrado Veja bem natildeo eacute cuscuz cozido no vapor natildeo eacute assado O cuscuz torrado eu fazia assim Socava no pilatildeo 1 quilo e meio de fubaacute 34 de rapadura uma pitada de sal socava ateacute que desmanchava e ficava um beiju sabe Ai levava na focircrma peneirava quando enchia apertava bem cortava e punha no forno brando para torraroh Mas ficava uma coisa fora do comum Jaacute vendi demais isso aqui por essas bandas depois que eu parei de fazer nunca mais eu vi Ele esfarinhava na hora de comervocecirc conhece paccediloca A consistecircncia era parecida com a paccediloca de amendoim (Antonio 78 anos morador de Boa Vista em Piranga MG 2015)

Segundo Cacircmara Cascudo (2004) o cuscuz eacute originaacuterio dos Mouros na

Aacutefrica (Egito a Marrocos) e se escreve originalmente ldquokuz-kuzrdquo Agrave base de arroz

farinha de trigo ou sorgo passou a ser feito de milho com o avanccedilo do cultivo da

plantam do a partir do seacuteculo XVI Mas tanto os africanos quanto os portugueses

jaacute conheciam o cuscuz quando chegaram ao Brasil se em Portugal era

considerado prato aristocraacutetico em final do seacuteculo XVII ldquoNo Brasil pela

humildade do fabrico era manutenccedilatildeo de famiacutelias pobres julgava-se lsquocomida de

negrosrsquo trazida pelos escravosrdquo (p 190)

A pesquisa mostrou que o fubaacute assume posiccedilatildeo de destaque no

cotidiano alimentar das famiacutelias Aleacutem de alimento considerado ldquoforterdquo guarda

tambeacutem um significativo papel cultural as recordaccedilotildees de alimentos que eram

elaborados antes e que natildeo se fazem mais os modos de moer o fubaacute de antes

e de agora interagem com os lugares de emoccedilatildeo relacionados agrave comida Ao

lembrar de como um alimento ou uma praacutetica ocorria acontece tambeacutem o

resgate daqueles que o faziam ou seja dos ldquoguardiatildees da tradiccedilatildeordquo dos quais

nos falam Giddens (2012) e Simsom (2003) A razatildeo alegada para explicar o

porquecirc de alguns alimentos do passado que faziam parte da merenda terem

deixado de ser consumidos como o angu com leite e o cuscuz foi que na

contemporaneidade existem muitas opccedilotildees de merenda que a opccedilatildeo passa a

137

ser pela praticidade neste caso Satildeo alimentos a serem feitos quando se sente

vontade de comecirc-los No cotidiano eacute a broa que assumiu o lugar das outras

merendas agrave base de milho justamente pela rapidez de sua elaboraccedilatildeo

53 Comida de todo dia comida de festa e as relaccedilotildees de comensalidade

531 Comida de todo dia o trivial

Aqui na roccedila falando a verdade o que a gente come mesmo eacute angu arroz feijatildeo e uma verdura (Afonso 79 anos morador de Ribeiratildeo em Presidente Bernardes MG 2015)

A comida de todo dia eacute angu ateacute mesmo para alimentar os animais (cachorro gato galinha) couve arroz feijatildeo e uma carne quase sempre de porco (Ana Luisa 45 anos moradora de Bom Jesus do Bacalhau em Piranga MG 2015)

Destaco o iniacutecio do item com dois depoimentos porque eles sintetizam o

que eacute a comida cotidiana das famiacutelias pesquisadas inclusive naquelas famiacutelias

que possuem crianccedilas adolescente e jovens embora eu tenha conversado com

apenas cinco jovens que se encontravam no siacutetio na ocasiatildeo da entrevista

Segundo os meus interlocutores os pais cultivam nos filhos os seus haacutebitos

alimentares ao manter o mesmo tipo de alimentaccedilatildeo para adultos e crianccedilas

Assim pelo menos em casa dos pais a comida natildeo varia em funccedilatildeo de outras

preferecircncias alimentares e segundo as informaccedilotildees natildeo ocorre disparidades

nesse sentido

Em todas as famiacutelias quatro alimentos estatildeo presentes no almoccedilo de

todos os dias da semana angu arroz feijatildeo ovo ou carne e verdura refogada

em gordura de porco Mesmo havendo variaccedilatildeo para a verdura como serralha

almeiratildeo e mostarda a couve eacute a mais consumida na contemporaneidade assim

era tambeacutem no periacuteodo da mineraccedilatildeo e da ruralizaccedilatildeo

Todas as famiacutelias tecircm hortas nos quintais algumas bem cuidadas e com

grande variedade de plantas outras fragilizadas e com poucos cultivos A

estiagem do periacuteodo foi a grande responsaacutevel pelas ldquohortas fracasrdquo mas em

todas elas havia couve Em uma horta por exemplo havia apenas couve

cebolinha salsa quiabo e jiloacute As hortaliccedilas e ldquocheiro verderdquo mais presentes eram

a couve a serralha a mostarda o almeiratildeo a alface a cebolinha de folha a

138

salsa o manjericatildeo e a hortelatilde Uma hortaliccedila comum na culinaacuteria mineira a

taioba estava presente em poucas hortas Segundo as mulheres por ser

periacuteodo de estiagem a produccedilatildeo dessa hortaliccedila estava prejudicada pois

necessita de muita umidade

Frieiro (1982) Magalhatildees (2004) e Arruda (1990) tratam da importacircncia

que o cultivo da horta teve para a regiatildeo mineradora em Minas Gerais numa fase

de escassez de alimentos Ela era cultivada nos quintais de todas as casas para

garantir o acesso nas refeiccedilotildees agraves fontes de legumes frutas hortaliccedilas e

tubeacuterculos Passado a fase da escassez alimentar na regiatildeo mineradora de

Minas as hortas permaneceram sendo cultivadas Atualmente cultivar a horta

natildeo se daacute mais por carecircncia alimentar jaacute que o acesso agrave compra no mercado eacute

possiacutevel e a baixo custo Mas eacute importante para os entrevistados ter o prazer de

colher a hortaliccedila fresca pouco antes de preparar a refeiccedilatildeo As razotildees satildeo

sobretudo culturais e simboacutelicas para manter a tradiccedilatildeo como no caso das

famiacutelias que pesquisei Ter uma horta ldquobonitardquo eacute motivo de orgulho Maria (66

anos moradora de Itapeva Presidente Bernardes) enquanto mostrava e falava

com tristeza de sua horta que estava sofrendo com a estiagem comentou

ldquominha horta estaacute mirrada feiaparecendo ateacute horta de gente preguiccedilosardquo

Outro motivo para a importacircncia da horta para as famiacutelias pesquisadas eacute a

certeza da qualidade do alimento que cultiva As famiacutelias demonstraram

preocupaccedilatildeo com o uso de agrotoacutexico e natildeo sentem seguranccedila na aquisiccedilatildeo de

alimentos in natura que agraves vezes precisam adquirir no mercado

Os demais vegetais cultivados pelas famiacutelias pesquisadas satildeo aboacutebora

moranga batata doce mandioca inhame chuchu jiloacute quiabo berinjela e tomate

do mato Esses vegetais satildeo produzidos em todas as hortas e muito consumidos

nas refeiccedilotildees diaacuterias A exceccedilatildeo eacute para o tomate que natildeo eacute habito de consumo

local Esporadicamente consomem o tomate que chamam de ldquotomate do matordquo

que nascem naturalmente sem precisar cultivar O principal motivo para natildeo

cultivarem e natildeo consumirem o tomate eacute a necessidade de utilizar muito

inseticida Evitam o maacuteximo o uso de agrotoacutexico nos produtos cultivados no siacutetio

mas natildeo conseguem deixar de usaacute-lo no milho para substituir o roccedilado manual

com a enxada e tambeacutem no feijatildeo armazenado Eacute interessante que esse receio

natildeo os impede de consumir a massa de tomate na macarronada dos domingos

139

Vegetais como cenoura beterraba batata baroa berinjela couve-flor

broacutecolis repolho cebola de cabeccedila e alho satildeo produzidos por poucas famiacutelias

Mas a cebola e o alho jaacute foram cultivados com frequecircncia na regiatildeo No siacutetio de

Maria e Laeacutercio em Itapeva Presidente Bernardes as hortaliccedilas estavam muito

fragilizadas e havia pouquiacutessimas plantas basicamente couve quiabo e

cebolinha mas ela mostrou orgulhosa sua colheita de cebola de cabeccedila e alho

que estava no paiol (Figura 9) dois produtos que natildeo satildeo cultivados por todas

as famiacutelias embora muito consumidas A cebola de cabeccedila por exemplo era

um produto comprado no comeacutercio da comunidade pela maioria das famiacutelias

Isso aponta para a importacircncia que tem para essa famiacutelia a produccedilatildeo de

alimentos que consomem no dia a dia Percebi na conversa com Maria e Laeacutercio

a valorizaccedilatildeo dada agrave produccedilatildeo para autoconsumo Em funccedilatildeo disso o lamento

pela ausecircncia de chuvas foi muito presente durante o diaacutelogo

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 9 ndash Cebolas e alhos armazenados no paiol do siacutetio de Maria e Laeacutercio na comunidade Itapeva em Presidente Bernardes

A pesquisa ocorreu em periacuteodo de colheita do amendoim cultivadas por

quase todas as famiacutelias basicamente para autoconsumo embora uma delas

tenha produzido o suficiente para comercializar Tive a oportunidade de em uma

delas acompanhar parte da colheita e ateacute experimentar arrancar a planta do

chatildeo Algumas mulheres disseram que iriam aproveitar para fazer peacute-de-

moleque A rapadura teria que ser comprada no mercado da cidade jaacute que natildeo

140

eacute mais produzida no siacutetio e em toda a regiatildeo eacute um produto pouco encontrado

Das famiacutelias que entrevistei apenas trecircs produziam rapadura e melado No

periacuteodo de campo a cana estava sendo toda utilizada para alimentaccedilatildeo do gado

A horta de Eliana e Saturnino (69 e 75 anos respectivamente) tambeacutem

de Itapeva Presidente Bernardes (Figura 10) eacute bem diversificada e bem cuidada

Eliana que gosta de cultivar plantas medicinais me mostrou uma delas e

perguntou ldquoVocecirc conhece o remeacutedio ldquoVickrdquo Olhe ele aqui eu tenho plantado

cheire uma folha muita gente aqui de perto vem buscar para tratar a gripe

chiado no peito sempre tratei a gripe dos meus filhos com elardquo Mariacutelia (62

anos moradora de Mestre Campos Piranga) tambeacutem possui uma horta muito

rica e com grande variedade de plantas medicinais Tanto ela quanto Eliana se

mostraram detentoras do conhecimento tradicional dos cultivos e das funccedilotildees

terapecircuticas das ervas medicinais e disseram ter aprendido com as matildees e avoacutes

Apesar de eu eleger as hortas das famiacutelias de Eliana e de Mariacutelia como as

melhores encontrar hortas bem cuidadas e diversificadas foi comum durante a

pesquisa Haacute uma preocupaccedilatildeo especial das mulheres em mantecirc-las produtivas

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 10 ndash Horta no siacutetio de Eliana e Saturnino em Itapeva Presidente Bernardes MG

Os vegetais produzidos nos siacutetios das famiacutelias satildeo aqueles consumidos

nas refeiccedilotildees diaacuterias No dia a dia raramente algum produto vegetal eacute comprado

no mercado exceto quando se deseja algum legume ldquodiferenterdquo como dizem O

periacuteodo de estiagem tambeacutem interfere nisso devido ao fato de que algumas

141

plantas satildeo menos resistentes agrave seca prolongada Durante o periacuteodo da

pesquisa isso ocorria em relaccedilatildeo a alface que natildeo eacute uma hortaliccedila consumida

com frequecircncia pois a preferecircncia eacute pelas verduras que podem ser refogadas

A batata inglesa tambeacutem eacute um produto muito raro na dieta dessas famiacutelias

passa-se meses sem consumi-la a preferecircncia eacute pela batata doce bem como o

inhame e a mandioca

Percebi que a alimentaccedilatildeo cotidiana das famiacutelias eacute muito semelhante

agravequela da fase da mineraccedilatildeo e ruralizaccedilatildeo descritas pelos autores que utilizei no

capiacutetulo como Frieiro (1982) Magalhatildees (2004) Arruda (1990) e Torres (2011)

A tradiccedilatildeo se perpetuou na regiatildeo sem grandes modificaccedilotildees Os mesmos

cultivos nas hortas as mesmas praacuteticas alimentares satildeo mantidas embora

novidades sejam inseridas como a panela eleacutetrica de fazer arroz que seraacute

discutida mais agrave frente

Outra hortaliccedila muito comum na culinaacuteria mineira o ora-pro-noacutebis ou

lobrobrocirc estava presente em quase todas as hortas embora seu consumo natildeo

seja cotidiano como as demais jaacute citadas Embora natildeo seja uma hortaliccedila muito

apreciada encontrei uma crianccedila que prefere o ora-pro-noacutebis agrave couve Ao

perguntar agrave Marcelina e Luiz moradores de Satildeo Domingos em Porto Firme

sobre as verduras que cultivavam e quais eram as mais consumidas

imediatamente o filho Faacutebio de 9 anos acrescentou ldquolobrobocirc taiobardquo

Perguntei-lhe entatildeo se gostava de verduras e ele confirmou Segundo a matildee

ldquoele adora todas as verduras lobrobrocirc ele come as folhas ateacute cruas e taioba e

folha de batata doce ele tambeacutem adora pede para eu fazer com angu e carne

de frangordquo Lola de Presidente Bernardes compartilhou situaccedilatildeo semelhante

sobre seu filho Andreacute de 10 anos O filho aprecia suco de couve (mais que os

refrigerantes) ldquoEles satildeo assim porque natildeo foram acostumados com isso

sempre ensinei que essas coisas fazem mal pra genterdquo

Conhecer o gosto destas duas crianccedilas por verduras e saber que esse

gosto estaacute atrelado aos haacutebitos alimentares dos pais nos conduz mais uma vez

agrave discussatildeo sobre heranccedila dos haacutebitos e gosto alimentar jaacute discutido no capiacutetulo

anterior Na casa dos pais de Faacutebio e tambeacutem em sua escola rural a presenccedila

de verduras de todos os tipos de acordo com a sazonalidade eacute comum Desde

muito novos os filhos deste casal foram introduzidos nos haacutebitos alimentares dos

pais Natildeo haacute o haacutebito familiar de consumir refrigerante que soacute eacute comprado para

142

a casa em dias de festa As bebidas do dia a dia da famiacutelia satildeo aacutegua e suco de

fruta da estaccedilatildeo Insisti em saber se era uma preocupaccedilatildeo com a sauacutede e a

resposta foi que a sauacutede vem como consequecircncia Para eles a prioridade eacute

consumir alimentos que produzem no local e evitar gastos com alimentaccedilatildeo no

mercado Aleacutem disso eacute a comida que estatildeo acostumados

Natildeo tive a oportunidade de conversar com outras crianccedilas durante a

entrevista mas tive depoimentos dos pais a respeito dos haacutebitos alimentares dos

filhos quando eram crianccedilas e que ainda sendo adolescentes manteacutem haacutebitos

alimentares muito parecidos com os dos pais Haacute o caso por exemplo dos filhos

de Antonina (74 anos moradora de Bananeiras em Presidente Bernardes

Antonina) que moram em Satildeo Paulo e que mesmo sendo adultos quando

visitam os pais nas feacuterias pedem para a matildee fazer ldquoa comida que eles estavam

acostumados a comer quando eram pequenosrdquo Esta fala coincide com a

compreensatildeo de Bourdieu (2007) sobre a formaccedilatildeo de haacutebitos alimentares que

sofrem grande influecircncia da convivecircncia dos grupos o que gera gostos muito

semelhantes entre os membros O haacutebito alimentar eacute construiacutedo nesse contexto

e podem ser diferentes de uma cultura para outra

Fui convidada a participar da mesa de refeiccedilotildees ldquode todo diardquo em 15

casas onde fui convidada a almoccedilar com a famiacutelia O horaacuterio de almoccedilo variou

de 1100 a 1130 e essa variaccedilatildeo tem a ver com o horaacuterio em que acordam e

iniciam as atividades que jaacute natildeo eacute mais tatildeo riacutegido como jaacute foi no passado Como

parte das conversas aconteciam geralmente nas cozinhas enquanto o almoccedilo

era preparado pude acompanhar todo o processo Me ofereci para ajudar em

alguma coisa na atividade da cozinha mas a uacutenica ajuda permitida foi

acompanhaacute-las ateacute a horta para ldquoapanharrdquo verdura

Em todos os almoccedilos que participei estavam presentes no cardaacutepio o

ldquotrivial mineirordquo denominaccedilatildeo atribuiacuteda por Eduardo Frieiro para ldquofeijatildeo angu e

couverdquo O autor apoacutes as pesquisas sobre a alimentaccedilatildeo em Minas Gerais da

fase mineradora ateacute meados da deacutecada de 1950 sugeriu alguns dos alimentos

que considerava possiacutevel serem caracterizados como tiacutepicos de Minas Gerais

A sugestatildeo se deu em funccedilatildeo da peculiaridade de seus preparos satildeo eles o

tutu de feijatildeo com torresmo ou linguiccedila o lombo de porco assado a couve

cortada fina e refogada e o angu sem sal

143

Aleacutem do feijatildeo do angu e da couve havia todos os dias tambeacutem o arroz

nas refeiccedilotildees que participei Assim eu elegeria como a comida tiacutepica do almoccedilo

do conjunto das famiacutelias desta pesquisa a seguinte composiccedilatildeo arroz feijatildeo

batido no liquidificador angu couve refogada e carne (de frango ou porco) O

feijatildeo batido eacute comum em Minas e no interior de Satildeo Paulo mas quase

desconhecido nos outros estados Eacute comum associar a Minas Gerais o feijatildeo

tropeiro e ao tutu mas nas famiacutelias que pesquisei a forma de servi-lo eacute

predominantemente batido temperado com gordura de porco e alho Antes de

haver o liquidificador o feijatildeo era amassado agrave matildeo com o uso de um ldquosocadorrdquo

depois adicionava-se aacutegua o resultado era um feijatildeo de caldo grosso e

diferentemente do tutu e do tropeiro natildeo lhe eacute adicionado farinha o que o torna

mais diferente do tutu e mais leve jaacute que a farinha lhe confere a categoria de

comida com ldquosustanccedilardquo Embora a carne de porco tenha sido a mais presente

a de frango tambeacutem foi marcante A carne de boi eu comi em apenas duas casas

na forma moiacuteda e cozida O frango sempre frito ou ensopado algumas vezes era

acompanhado de quiabo O peixe foi servido em uma casa pescado no rio que

passa na propriedade A disponibilidade da carne natildeo era farta mas suficiente

para tecirc-la no prato sem esbanjamento e proporcionar satisfaccedilatildeo Mas os outros

alimentos eram preparados em grande quantidade

Foi recorrente ser servida mais de uma fonte de carboidrato nas

refeiccedilotildees por exemplo arroz angu e ou moranga e ou mandioca e ou batata

doce e ou farinha e ou macarratildeo O carboidrato eacute responsaacutevel pelo suprimento

de energia do organismo Para as famiacutelias esses alimentos satildeo importantes para

dar ldquosustanccedilardquo e tambeacutem satildeo responsaacuteveis por compor um almoccedilo ldquoforterdquo assim

como sinalizaram em relaccedilatildeo agrave gordura de porco Esse aprendizado eacute por

transmissatildeo cultural a mesma loacutegica para o consumo da gordura de porco

532 Comida de domingo de dias festivos e comensalidade

A comida de domingo varia pouco O arroz e o feijatildeo satildeo consumidos

tambeacutem nesse dia Agraves vezes o feijatildeo batido eacute substituiacutedo pelo tutu com cebola

e pelo feijatildeo tropeiro A macarronada com frango ou com carne de panela

tambeacutem eacute um prato presente com frequecircncia aos domingos Todas as famiacutelias

que tecircm os filhos morando proacuteximos inclusive em Viccedilosa afirmaram que aos

144

domingos o almoccedilo eacute dia de reuniatildeo em famiacutelia os filhos e netos chegam para

o almoccedilo e laacute passam o dia Quando os sogros dos filhos moram perto eacute feita

uma divisatildeo almoccedilo em uma casa cafeacute da tarde ou jantar em outra As filhas e

ou noras ajudam no preparo do almoccedilo e de lavar a louccedila Os casais

aposentados que ficam muito sozinhos durante a semana consideram esses

momentos fundamentais porque ldquoo dia fica mais alegrerdquo

() eu fico soacute por conta de cozinhar para eles a mesa essas duas ai ficam sempre cheias de coisas em cima eacute biscoito eacute bolo eacute doce eu gosto de ver os filhos e os netos tranccedilando por ai eles gostam de ficar na cozinha na mesa natildeo cabe todo mundo ai eles colocam umas cadeiras e ficam aqui tambeacutem eles gostam de pegar ovos no galinheiro e bater gemada acostumei eles a comer gemada desde pequenos e eles soacute comem gemada aqui por causa do ovo daqui (Eliana 69 anos moradora de Itapeva em Presidente Bernardes MG 2015)

Nos dias de domingo a casa fica cheia minhas filhas costumam trazer um prato feito por elas e junta com o que eu faccedilo aqui eacute muita fartura eacute muito bom todo mundo conversa ri pena que no fim do dia vai todo mundo embora (Laurinda 77 anos moradora de Tatu em Piranga MG 2015)

A ldquofarturardquo da comida destacada por Laurinda nas ocasiotildees de encontro

familiar eacute um grande valor atribuiacutedo pelas famiacutelias rurais Fartura de alimentos

significa uma boa produtividade de alimentos na roccedila mas significa tambeacutem

seguranccedila Ter ldquoo de comerrdquo todos os dias garantido na mesa eacute um atributo que

lhes eacute importante nas suas condiccedilotildees de famiacutelias agricultoras

O espaccedilo de comensalidade nessas ocasiotildees eacute basicamente a cozinha

lugar preferido da famiacutelia quando estaacute reunida Lody (2008) defende que muitos

haacutebitos alimentares soacute se desenvolvem na medida em que a casa e sua cozinha

tornaram-se capazes de permitir a reuniatildeo da famiacutelia e amigos Talvez por isso

as cozinhas das casas que visitei fossem amplas mesmo que outros cocircmodos

da casa como a sala fossem pequenos Em todas as cozinhas havia um

cocircmodo acoplado pequeno e que funcionava como despensa A presenccedila de

mais de uma mesa foi comum mesa na cozinha com pelo menos seis cadeiras

e bancos de madeira recostados a uma das paredes a outra mesa ficava em

uma copa ou em uma aacuterea externa geralmente de meia parede tambeacutem

proacutexima agrave cozinha onde foi ficava instalado o forno de barro quando existia em

algumas casas ele costumava estar proacuteximo ao paiol embaixo de uma coberta

Assim esses satildeo os espaccedilos onde ocorre a comensalidade nas famiacutelias

145

sobretudo em ocasiotildees especiais como nos almoccedilos de domingo e nos

momentos de convivecircncia familiar nos finais de ano

A comensalidade no grupo entrevistado ocorre tambeacutem nos eventos

maiores Nesse caso pode-se formar uma rede de cooperaccedilatildeo de trabalho para

fazer os festejos acontecerem Duas mulheres contaram com riqueza de

detalhes sobre as festas de bodas de ouro que ocorreram no quintal das casas

Coincidentemente trata-se de duas famiacutelias de Presidente Bernardes A festa

dos sogros de Lola e Marcos ocorreu no siacutetio dos sogros na comunidade de

Xopotoacute em 2011 A festa de Eliana e Saturnino ocorreu tambeacutem no siacutetio na

comunidade de Itapeva em 2014 Jaacute citei essas duas festas anteriormente ao

falar dos animais que foram abatidos para o almoccedilo Em ambas algumas

caracteriacutesticas satildeo comuns uma delas eacute que a festa aconteceu no quintal o que

segundo Eliana ldquoeacute costume na regiatildeo aqui eacute muito pouca gente que aluga

salatildeo pra fazer festa e mesmo casamento acontece tudo aqui na roccedila mesmordquo

Os vizinhos dos siacutetios proacuteximos foram convidados Filhos e outros parentes que

moram fora tambeacutem estiveram presentes Nas duas festas a comida servida foi

a ldquocomida de roccedilardquo e como jaacute dito antes suiacutenos e frangos criados no local foram

abatidos O prato principal foi a carne o restante foi acompanhamento porque

como destacou Lola ldquoem dias de festa tem que ter muita carne que eacute do que o

povo gostardquo

Eliana contou que as mulheres da vizinhanccedila ajudaram com a

organizaccedilatildeo e tambeacutem a fazer ldquoa comida de veacutespera descascando batata

cozinhando mandioca matando e depenando os frangos para o dia da festa

os meus filhos contrataram umas cozinheirasrdquo

Foi realizada uma missa no paacutetio na frente da sua casa No quintal foram

colocados dois grandes ldquofogotildees de cupimrdquo e seu funcionamento seraacute detalhado

mais agrave frente Nestes fogotildees foram feitos os seguintes pratos macarratildeo com

pato tutu arroz frango frito farinha torrada mandioca frita e batata doce Natildeo

foi servida salada De bebida foram servidos refrigerante e cerveja A sobremesa

servida foi o ldquobolo de festa bem granderdquo que os filhos encomendaram da cidade

Foi muito boa a festa a missa a ajuda das mulheres aqui eacute assim todo mundo ajuda uns aos outros quando precisa Teve muacutesica e danccedila as pessoas podiam danccedilar se quisessem (Eliana Itapeva Piranga MG 2015)

146

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 11 ndash Fogatildeo de cupim no quintal do siacutetio de Eliana e Saturnino em Itapeva

Presidente Bernardes

Para a festa de bodas de ouro dos sogros de Lola estiveram presentes

em torno de 200 pessoas entre familiares e vizinhos de siacutetios proacuteximos Pelas

informaccedilotildees de Lola a festa teve maior investimento em produccedilatildeo Foi colocado

um telatildeo no quintal onde se mostrou a retrospectiva do casal desde o

casamento com montagens de fotos Soltaram muitos foguetes e teve muacutesica

de forroacute com espaccedilo para as pessoas danccedilarem no quintal Os filhos que moram

em cidades vizinhas e em Satildeo Paulo foram os responsaacuteveis pela organizaccedilatildeo

do evento e ao contraacuterio da festa do primeiro casal esta natildeo contou muito com

a participaccedilatildeo cooperativa dos vizinhos Todo o trabalho de veacutespera da cozinha

foi feito pela famiacutelia filhas filhos noras e genros do casal Foram contratadas

matildeo de obra para cozinhar no dia e servir a comida O cardaacutepio desta festa

consistiu de churrasco de carne bovina e suiacutena (a carne suiacutena de produccedilatildeo

local) linguiccedila frango frito arroz salpicatildeo farofa de milho vinagrete e uma

mesa de frutas Assim como na primeira festa nesta tambeacutem natildeo teve um prato

147

de saladas ou verduras refogadas apesar de elas estarem presentes nas

comidas de todo dia

Reportamos a Woortmann (1985) quando ele trata dos convites para

refeiccedilotildees em casa com o objetivo de reestabelecer sociabilidades e que nestas

ocasiotildees o aspecto fisioloacutegico ou nutritivo da alimentaccedilatildeo eacute pouco relevante

Mais importante eacute o papel social que ela exerce para agradar aos olhos ao olfato

e por fim ao paladar Eacute importante que as pessoas ao irem embora da festa

faccedilam elogios agrave comida e por isso ela precisa tambeacutem ser farta Como foi visto

no capiacutetulo 2 a carne em Minas nos primoacuterdios da mineraccedilatildeo era uma raridade

nas refeiccedilotildees e por isso passou a assumir um status simboacutelico importante na

refeiccedilatildeo a partir da fase da ruralizaccedilatildeo Fazer uma festa sem servir muita carne

seria motivo de criacutetica e natildeo de elogios Ao contraacuterio o excesso de carne eacute tanto

valorizado quanto classifica um ldquoalmoccedilo na roccedilardquo como farto e bom

Brandatildeo (1982) em sua pesquisa com agricultores do interior de Goiaacutes

trata da comida de festa na roccedila Para o seu grupo pesquisado o sabor e a

fartura da comida oferecida tambeacutem foi declarado como sendo o principal para

o sucesso de uma festa

O valor da comida ldquoboardquo ldquocom gostordquo estaacute em seu modo de preparo ruacutestico e na fartura o tempero forte ldquomuita banha de porco muito toucinho pimenta agrave vontaderdquo sobre uma comida tambeacutem forte e abundante ldquomuita carne de capado muito arroz e feijatildeo mandioca agrave vontaderdquo (BRANDAtildeO 1982 p 136)

Tambeacutem Falci (1995) relata sobre as festas de casamento na roccedila

regiatildeo do Piauiacute no final do seacuteculo XIX onde muita quantidade de comida era

servida mesmo sendo simples a festa de casamento precisava ser farta e era

tambeacutem importante que se convidasse toda a vizinhanccedila rural

Para a festa havia toda a organizaccedilatildeo pois natildeo se dispunha de armazenamento Os porcos tinham jaacute sido postos a sevar nos chiqueiros e estavam no ponto (de uns 8 a 10 kg cada um) assim como os outros animais Ateacute os parentes ajudavam no abastecimento da festa engordavam leitoas ou perus para a festa da sobrinha ou afilhada e no dia faziam-se assados em muitas casas amigas ou de parentes dos noivos (FALCI 1995 p 260)

Nessas ocasiotildees mais do que em dias normais a comida se apresenta

como um coacutedigo que expressa niacuteveis de relacionamento e de interaccedilatildeo social

como no sentido atribuiacutedo por Douglas (1972) Em festas ou manifestaccedilotildees

culturais tradicionais o alimento assume uma categoria de ldquocomidas-coacutedigordquo que

148

se apresenta com a funccedilatildeo binaacuteria de alimentaccedilatildeo e socializaccedilatildeo sendo

carregada de mensagens simboacutelicas

If food is treated as a code the message it encodes will be found in the pattern of social relations being expressed The message is about different degrees of hierarchy inclusion and exclusion boundaries and transactions across the boundaries Like sex the taking of food has a social component as well as a biological one Food categories therefore encode social events (DOUGLAS 1972 p 61)

Em um saacutebado pela manhatilde em que passei no siacutetio de Ana Luisa e Lucas

(45 e 52 anos respectivamente) na comunidade de Bom Jesus do Bacalhau para

agendar entrevista para a semana seguinte havia uma movimentaccedilatildeo de

pessoas Logo descobri que eram parentes que vieram de Ouro Preto e de Belo

Horizonte para passar o final de semana e como uma das sobrinhas estava

fazendo 15 anos de idade naquele dia a famiacutelia resolveu organizar

improvisadamente uma comemoraccedilatildeo no siacutetio Muitos balotildees coloridos estavam

sendo pendurados no teto e nos pilares da varanda Logo que entrei no corredor

externo que daacute acesso agrave cozinha avistei um bolo de aniversaacuterio sendo montado

O bolo jaacute estava com trecircs camadas e recheado de doce de leite e ameixa

faltando ainda a cobertura que seria com creme de coco Para a execuccedilatildeo do

bolo foram utilizados leite longa vida doce de leite e coco ralado ambos

industrializados O bolo estava sendo feito pelas irmatildes de Ana Luiacutesa enquanto

ela e o marido se dividiam na cozinha preparando ldquotira-gostosrdquo e a carne para o

almoccedilo Em um tacho de ferro sobre a trempe do fogatildeo a lenha Ana Luisa fritava

pedaccedilos de carne de porco e outra panela estava sendo frito o ldquomilhopatilderdquo (Figura

12) produzido por Ana Luisa Esse salgado eacute feito de uma mistura agrave base de

fubaacute caldo de galinha e polvilho azedo Segundo Lucas cujo avocirc foi tropeiro o

ldquomilhopatilderdquo artesanal eacute tradiccedilatildeo em sua famiacutelia e foi com a sogra que Ana Luisa

diz ter aprendido a fazer ldquoTodo mundo gosta a gente vende muito dele laacute no

mercadordquo

149

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 12 ndash Processo de fritura do ldquomilhopatilderdquo

A mesa da cozinha estava posta com rosquinha de sal amoniacuteaco queijo

bolo de milho e cafeacute Fui convidada a tomar ldquoum cafezinho e comer alguma coisardquo

e tambeacutem a experimentar o milhopatilde frito Em um dia tumultuado para a famiacutelia

minha visita se encerrou logo

Pude perceber alguns aspectos relacionados agraves praacuteticas alimentares

que satildeo tratados nesta pesquisa a sociabilidade demonstrada no trabalho

conjunto de organizaccedilatildeo da festa a utilizaccedilatildeo de produtos industrializados na

elaboraccedilatildeo do bolo a produccedilatildeo do ldquomilhopatilde alimento de receita tradicional da

famiacutelia a carne e o torresmo de porco caipira criado no siacutetio Nessas praacuteticas

alimentares desenvolvidas na cozinha dessa famiacutelia estiveram presentes agrave

praticidade em utilizar os produtos industrializados mas tambeacutem a manutenccedilatildeo

de praacuteticas tradicionais sinalizando nessa mescla fatores de permanecircncia e de

mudanccedila no sentido tratado por Poulain (2013) Giard (2012) Cacircmara Cascudo

(2004) e Doacuteria (2014)

A comensalidade tambeacutem ocorre envolvendo formas natildeo tradicionais agrave

cultura local Eacute o caso que ocorre na famiacutelia de Antocircnio e Marieta (78 e 73 anos

respectivamente) Antonio o ex-padeiro jaacute citado aqui que para agradar os netos

ndash crianccedilas e adolescentes que moram em aacuterea urbana ndash quando passam feacuterias

em seu siacutetio promove o que os netos chamam de a noite da ldquoPizzada do vovocircrdquo

Neste evento ele eacute o responsaacutevel por produzir pizzas no forno de barro do siacutetio

Disse jaacute ter virado uma tradiccedilatildeo familiar dos uacuteltimos anos Ele prepara as massas

e convoca os netos para ajudar a rechear as pizzas Esses satildeo momentos de

150

comensalidade familiar muito interessantes aleacutem de comerem juntos produzem

a comida em conjunto Geraccedilotildees diferentes partilhando os saberes e prazeres

da comida e da convivecircncia

A produccedilatildeo das pizzas chamou a atenccedilatildeo por natildeo ser um alimento que

faz parte da cultura da regiatildeo pesquisada Nenhum entrevistado aleacutem de

Antocircnio falou sobre esse alimento Tampouco ela eacute citada por Frieiro (1982) ou

Cacircmara Cascudo (2004) como alimentos consumidos em Minas Colonial A

pizza tem sua origem atribuiacuteda agrave Itaacutelia e passou a ser consumida no Brasil

justamente com a chegada desses imigrantes ao Paiacutes Segundo Antonio e

Marieta as pizzas comeccedilaram a ser produzidas por ele no forno de barro nos

encontros de feacuterias dos filhos e netos no siacutetio Uma de suas filhas mora no Rio

Grande do Sul e eacute casada com um descendente de italiano Com um nuacutemero

grande de familiares em casa nessas ocasiotildees e para agradar aos netos

Antocircnio que domina a atividade de panificaccedilatildeo optou em aprender a fazer as

pizzas Um exemplo de hibridismo cultural alimentar em funccedilatildeo de haacutebitos

diferentes de membros da famiacutelia O avocirc valorizando o habito alimentar dos

netos e praticando ao mesmo tempo a atividade de produzir massas que

considera como muito prazerosa Outro aspecto interessante eacute que se trata de

um alimento associado ao mercado fast food nos centros urbanos mas no caso

especificamente dessa famiacutelia o seu consumo tem uma loacutegica que se associa

ao ritmo do slow food

Juntar a famiacutelia para fazer a ldquopizzada do vovocircrdquo eacute uma forma de Antonio

resgatar esse tempo vivido onde era produzida grande quantidade de quitandas

aleacutem de patildees e eacute para os netos um importante momento de aprendizado com o

avocirc como aquele que agrega a famiacutelia usando da comida e assim assumindo

seu papel de guardiatildeo da cultura Nos dias atuais segundo o casal o forno de

barro raramente eacute utilizado soacute mesmo em dias de festa nos finais de ano Nos

depoimentos de Antonio estaacute presente a memoacuteria afetiva ligada agraves praacuteticas

culinaacuterias que lhe foram muito presentes no passado mas que se distancia do

seu cotidiano na contemporaneidade Natildeo por acaso a chegada dos netos eacute

sempre um evento ansiosamente esperado pelo casal

151

533 Os doces

Em relaccedilatildeo agraves frutas as mais comuns nos pomares e quintais eram a

laranja bahia e serra drsquoaacutegua a poncatilde a mexerica o limatildeo galego ou limatildeo

capeta o limatildeo taiti a goiaba a banana a jabuticaba o figo a cidra a pitanga

a acerola a amora a manga e o abacate As frutas satildeo consumidas de acordo

com a sazonalidade e algumas mesmo estando presentes natildeo satildeo

preferenciais como eacute o caso do mamatildeo exceto para fazer doce de mamatildeo

verde Os sucos mais consumidos satildeo de laranja acerola limatildeo e manga

Os doces mais produzidos a partir de frutas locais satildeo os de goiaba

banana e figo Em uma das famiacutelias tive a oportunidade de provar dois doces

receacutem elaborados por Marieta moradora de Boa Vista Piranga doce de ameixa

em calda e doce de figo

Cacircmara Cascudo (2004) relata que o doce representava grande

importacircncia social no periacuteodo Colonial brasileiro heranccedila de Portugal Quando

se queria presentear algueacutem ou homenagear uma bandeja de doce era sempre

uma excelente escolha Era considerado uma boa qualidade feminina saber

fazer o doce de receita de famiacutelia e esse ensinamento era repassado agraves jovens

pelas matildees Tambeacutem Algranti (2007) destaca que nesse periacuteodo os doces natildeo

faziam parte do trivial mas de eventos festivos e por isso consideradas iguarias

Mesmo que com o tempo eles tenham ganhado espaccedilos mais populares e

vendidos em tabuleiros nas ruas

Essa relaccedilatildeo com os momentos especiais descrito pela autora parece

persistir na regiatildeo pesquisada Dentre as famiacutelias que entrevistei a elaboraccedilatildeo

de doces natildeo eacute uma atividade culinaacuteria cotidiana seu consumo e fabricaccedilatildeo

estatildeo associados aos dias de domingo e agraves datas festivas sobretudo agraves festas

de final de ano Natal e Ano Novo

Laurinda 77 anos moradora de Tatu em Piranga relatou que fazia

doces para agradar a todos os filhos quando havia festas de aniversaacuterio em casa

quando eles ainda eram crianccedilas e adolescentes ldquoPara aquele que preferia

rocambole eu fazia rocambole para aquele que preferia pudim eu fazia pudim

agradava a todos os filhos eu gostavardquo

Zefa 67 anos moradora de Mato Dentro em Presidente Bernardes

tambeacutem disse gostar das eacutepocas de elaborar doces Para as festas de final de

152

ano ela comeccedila a fazer um mecircs antes do Natal Os doces tradicionais da sua

famiacutelia satildeo o rocambole de doce de leite e o doce de figo Ela descreveu o

processo de elaboraccedilatildeo

O doce de leite eu comeccedilo a fazer ele agraves 0800 e soacute vou tirar ele do fogo agraves 14 horas ponho num tacho grande ele vai fervendo aos pouquinhos ateacute secar e ficar cremoso mas tem que ser com leite de roccedila leite gordo e leva pouco accediluacutecar Para 8 litros e leite soacute duas xiacutecaras de accediluacutecar O doce de figo antigamente quando natildeo tinha geladeira a gente tinha que ficar fervendo ele para ele natildeo azedar enquanto tivesse doce tinha que fazer isso Hoje natildeo a gente faz o doce e guarda na geladeira e fica verdinho e pode ficar muito tempo guardado (Zefa 67 anos moradora da Comunidade Mato Dentro Presidente Bernardes MG 2015)

O depoimento de Zefa deixa transparecer a dedicaccedilatildeo de tempo ao

preparo do doce e a tenccedilatildeo cuidadosa agraves etapas para natildeo passar do ponto Natildeo

se podia ter pressa Por isso a elaboraccedilatildeo dos doces eram atividades

esporaacutedicas para eventos especiais principalmente para as festas de final de

ano consideradas eventos familiares de grande importacircncia para essas famiacutelias

Percebi durante a pesquisa que essa percepccedilatildeo permanece entre as mulheres

ao falarem da elaboraccedilatildeo dos doces Haacute nos gestuais descritos por Zefa uma

relaccedilatildeo semelhante ao que eacute tratado por Giard (2012) ao relacionar ao trabalho

das cozinheiras de tempos passados em que a paciecircncia para conduzir as

praacuteticas culinaacuterias era a tocircnica

Outrora a cozinheira se servia de um instrumento simples de tipo primaacuterio cujas funccedilotildees tambeacutem eram simples era ela que dirigia o desenrolar da operaccedilatildeo vigiava a sucessatildeo dos momentos da sequecircncia de accedilatildeo e podia representar mentalmente o processo Nessa forma de cozinhar havia uma habilidade de artesatildeo empenhado em aperfeiccediloar seu meacutetodo ou variar suas produccedilotildees (p 284)

Outros dois pontos no depoimento de Zefa merecem destaque O

primeiro quando ela fala de um tempo em que a geladeira natildeo existia Havia a

necessidade de ferver constantemente o doce para natildeo estragar Aqui presente

a relaccedilatildeo com a modernidade Atualmente com o acesso agrave geladeira esse

trabalho foi reduzido Nesse sentido eacute preciso considerar o quanto a tecnologia

industrial facilitou a fabricaccedilatildeo de alimentos sem que necessariamente tenha

alterado a obtenccedilatildeo de um produto de igual qualidade e sabor Zefa continua

fazendo o doce de figo assim como as outras mulheres mas utilizando uma

tecnologia de conservaccedilatildeo moderna e muito importante

153

O segundo ponto diz respeito ao uso do tacho Todas as mulheres que

entrevistei tinham um tacho de cobre que foi herdado de matildee da avoacute ou que foi

comprado por elas Fazer doces em tacho de cobre faz parte da tradiccedilatildeo da

culinaacuteria em vaacuterios lugares do Brasil Poreacutem haacute atualmente uma discussatildeo sobre

o seu uso Em Minas Gerais a Vigilacircncia Sanitaacuteria Estadual proibiu o seu uso

para fabricaccedilatildeo de doces em funccedilatildeo dos resiacuteduos toacutexicos que podem ser

liberados exceto se forem revestidos por banho de ouro prata niacutequel ou

estanho material que natildeo estatildeo presentes nos tachos mais comuns na zona

rural o mais comum e mais barato eacute o revestimento em estanho Surgiu em

funccedilatildeo disso movimentos que defendem a manutenccedilatildeo do uso do tacho de

cobre e que eacute possiacutevel conscientizar as pessoas sobre o uso e higienizaccedilatildeo

correta do tacho sem extinguir seu uso Zefa por exemplo limpa o seu tacho

com sal e limatildeo para retirar todo o azinhavre44 Aleacutem do tacho de cobre haacute o caso

da colher de pau cuja proibiccedilatildeo fez surgir o ldquoManifesto Colher de Paurdquo de autoria

do antropoacutelogo da alimentaccedilatildeo Raul Lody e apoiado pelo FBSSAN (Foacuterum

Brasileiro de Soberania e Seguranccedila Alimentar e Tradicional) O objetivo do

Manifesto eacute cobrar dos oacutergatildeos fiscalizadores um canal de discussatildeo com a

sociedade civil no sentido de encontrar soluccedilotildees menos radicais como a

extinccedilatildeo de usos tradicionais na fabricaccedilatildeo de doces e outros produtos

culinaacuterios45

Joana 39 anos moradora de Jacuba em Porto Firme contou sobre a

festa de casamento de uma parente que aconteceu na roccedila e em que todos os

doces servidos foram feitos pelas mulheres da famiacutelia e outras amigas do casal

Ela proacutepria ajudou na elaboraccedilatildeo Fizeram goiabada figo doce de leite

cajuzinho brigadeiro doce de aboacutebora com coco e outros

A Figura 13 mostra o doce de ameixa que Marieta estava preparando

Trata-se da ameixa vermelha (tambeacutem conhecida como ameixa japonesa) Natildeo

eacute uma fruta muito comum na regiatildeo da pesquisa mas Marieta possui uma aacutervore

que todos os anos daacute muito fruto e ela aproveita para fazer o doce que eacute muito

saboroso

44 Nome que se daacute a oxidaccedilatildeo do cobre a camada esverdeada que resulta desse processo 45 Para ver mais sobre o Manifesto e acessaacute-lo na iacutentegra ver o site da FBSSAN (httpwwwfbssanorgbr

indexphpoption=com_contentampview=articleampid=419manifesto-colher-de-pauampcatid=79ampItemid=672ampl ang=pt-br)

154

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 13 ndash Doce de ameixa feito por Marieta na comunidade Boa Vista em Piranga MG

54 A comensalidade para aleacutem das festas e datas especiais

A comensalidade ocorre de forma diferenciada nas famiacutelias

pesquisadas Em todas elas a maior frequecircncia eacute no jantar indicando o

fechamento de um dia de trabalho mesmo que ela se decirc na sala com o prato

na matildeo e assistindo agrave programaccedilatildeo da TV costume citado pela maioria das

famiacutelias Nesses momentos a conversa gira em torno dos assuntos divulgados

no programa (em geral o telejornal)

Se natildeo se daacute nesse ambiente ela ocorre na cozinha e em ambos os

casos natildeo eacute um momento demorado Mas a comensalidade ocorre sempre no

cafeacute da manhatilde jaacute que quase todos se levantam na mesma hora e tomam o cafeacute

juntos O cafeacute da manhatilde tambeacutem ldquotoma-se ligeirordquo muitas vezes de peacute que ldquoeacute

para natildeo dar preguiccedilardquo observou Carlos (morador de Posses em Porto Firme)

No horaacuterio de almoccedilo dos dias de semana as refeiccedilotildees satildeo feitas em tempo

curto e o assunto costuma ser basicamente em torno de trabalho pelo menos

foi o presenciei nas casas onde almocei A possibilidade de a famiacutelia estar

reunida para o almoccedilo iraacute depender da disponibilidade de tempo e das atividades

de quem estaacute agrave frente do trabalho no local Nas famiacutelias onde as mulheres

trabalham fora do siacutetio elas raramente estatildeo presentes para essa refeiccedilatildeo

quase sempre soacute aos finais de semana As crianccedilas chegam entre 1200 e 1230

155

horas e eacute comum almoccedilarem na escola Neste caso a comensalidade das

crianccedilas e das mulheres ocorre com outro grupo que natildeo o familiar Natildeo haacute uma

restriccedilatildeo para que a comensalidade se decirc apenas no grupo familiar O proacuteprio

conceito definido por Poulain (2013) destaca isso bem como a discussatildeo de

Fladrin e Montanari (1998) sobre o assunto

Em uma das casas visitadas em Presidente Bernardes almoccedilamos na

mesa da cozinha apenas eu e a Nanaacute (dona da casa) O filho que estava

trabalhando na lavoura de cafeacute saiu de moto pouco antes do almoccedilo para buscar

uma ferramenta de trabalho no siacutetio da irmatilde o marido foi almoccedilar em outro

cocircmodo escutando o raacutedio e a filha que trabalha na cidade e almoccedila em casa

serviu o seu prato e foi almoccedilar na frente da televisatildeo na sala Perguntei a Nanaacute

se eles natildeo costumavam almoccedilar juntos na cozinha ela apenas sorriu e disse

ldquoEacute assim mesmo tem dia que eles preferem ir para laacuterdquo Apesar de sua resposta

fiquei na duacutevida se o motivo de isso ter ocorrido foi minha presenccedila afinal

tratava-se de uma pessoa desconhecida O marido Custoacutedio participou da

conversa todo o tempo ateacute o almoccedilo ser servido Me mostrou a lavoura de cafeacute

e a local onde passaraacute o mineroduto cortando seu siacutetio46 e me explicou o

funcionamento do moinho eleacutetrico A filha chegou pouco antes do almoccedilo e

pudemos conversar um pouco quando ela falou do curso que faz na modalidade

agrave distacircncia e de seus planos para o futuro Em todas as outras famiacutelias almocei

em companhia dos que estavam em casa e natildeo percebi constrangimento

semelhante embora tenha observado uma certa timidez inicial principalmente

por parte dos homens e talvez por isso os diaacutelogos eram curtos Em quase

todas as casas escutei expressotildees que tinham conotaccedilatildeo semelhante ldquoVocecirc

natildeo repara natildeoa comida eacute simplesrdquo Entendi isso como uma reaccedilatildeo normal a

uma visita que eacute de fora do seu nuacutecleo iacutentimo Os homens se levantavam e se

ausentavam da cozinha assim que terminaram a refeiccedilatildeo e as mulheres lavavam

a louccedila

Se hoje eacute mais faacutecil para as pessoas interromperem o trabalho e

almoccedilarem em casa em tempos passados a situaccedilatildeo era diferente Quando o

trabalho era mais intenso as atividades eram quase ininterruptas e as refeiccedilotildees

46 Boa parte do siacutetio de Nanaacute e Custoacutedio seraacute desapropriado em funccedilatildeo da passagem do Mineroduto Isso

tem gerado efeitos em suas vidas desde que o processo se iniciou O processo se arrasta haacute anos e eles natildeo sabem muito bem o que vai acontecer Continuam plantando e vendendo o cafeacute que comercializam e outras pequenas lavouras como milho e cana enquanto aguardam o desenrolar da situaccedilatildeo

156

aconteciam distante da casa com o uso de marmitas como explica Neuzeli

moradora de Vinte Alqueires em Porto Firme

O almoccedilo quando o povo trabalhava na roccedila diretoos trabalhadores comiam de marmita Eu arrumava uma marmita caprichadinha para meu marido e meus filhos Mas na casa de meus pais natildeo levava marmita natildeo levava era uns panelotildees grandes de comida em um punha feijatildeo em outro punha a sopa de mandioca ou de inhame com uns pedaccedilos de carne e tinha que encaixar aqui no ombrocomo uma canga e necessitava de duas e trecircs pessoas para levar E laacute na roccedila juntava todo mundo pra comer junto cada um servia o seu coiteacute47 (Neuzeli 63 anos moradora de Vinte Alqueires Porto Firme MG 2015)

Mais um exemplo de como a comensalidade ocorria nas aacutereas rurais

por mais raacutepidas que fossem as refeiccedilotildees Este exemplo assim como aquele em

que as refeiccedilotildees ocorrem na sala assistindo televisatildeo falam de momentos de

comensalidade onde a presenccedila do objeto ldquomesardquo natildeo eacute necessaacuterio precisa-se

eacute que os momentos das refeiccedilotildees sejam partilhados por mais de uma pessoa

55 Mescla cultural praacuteticas de consumo alimentar de ontem e de hoje

Tem sido comum nos uacuteltimos anos na regiatildeo pesquisada a circulaccedilatildeo

de veiacuteculos que comercializam frutas hortaliccedilas e legumes Os alimentos satildeo

vendidos aos moradores locais mas tambeacutem para os pequenos comeacutercios

rurais Por razotildees diversas alguns agricultores estatildeo optando em comprar

determinados produtos in natura ao inveacutes de cultivaacute-los O principal motivo citado

foi a estiagem dos uacuteltimos anos aliado ao custo-benefiacutecio (praticidade ndash preccedilo)

Satildeo vendidos produtos tais como batata inglesa inhame batata doce moranga

banana alface laranja tomate maccedilatilde pera abacaxi e outros Segundo os

interlocutores os produtos satildeo do CEASA

Aqui em Presidente tem caminhatildeo que vem vender fruta e verdura pro povo das roccedilas Aqui em casa noacutes compramos agraves vezes mas eacute maccedilatilde que aqui natildeo daacute mamatildeo tambeacutem porque aqui natildeo daacute mamatildeo bom mais mas eacute soacute mas eu vejo gente aqui comprando inhame mandioca do caminhatildeo ah isso eu natildeo concordo natildeo (Germana 58 anos moradora de Mato Dentro em Presidente Bernardes MG 2015)

Tem muita gente na roccedila hoje que taacute eacute comprando mesmoeles acham difiacutecil criar um frangopreferem compraraqui o frango eacute criado soltono quintaldaacute uns frangos bons gordinhosalguns falam assim gente daqui mesmo que fica mais caro plantar do que

47 Cuia feita a partir do fruto da aacutervore Coiteacute que depois de colhido maduro cortado ao meio e retirado as

sementes eacute utilizado como utensiacutelio na cozinha e em outras atividades

157

comprar ai eu falo para eles que agraves vezes fica mesmo soacute que plantar a gente gasta devagar e se for para comprar a gente tem que tirar tudo de uma vez soacute para pagar aquele montatildeo aleacutem disso tem a sauacutede a gente compra tudo hoje com remeacutedio esses frangos ai de granja eu sei porque meu cunhado tem uma granja aquilo ali o pintinho chega com 45 dias ele jaacute eacute frango pra abate e isso natildeo eacute com comida soacute que consegue natildeodeve ter algum remeacutedio ali (Maacuterio 44 anos morador de Posses em Porto Firme MG 2015)

Os interlocutores na pesquisa disseram que compram tais alimentos

muito raramente soacute mesmo em situaccedilotildees muito especiacuteficas como estiagem

longa um exemplo eacute o da alface que no ano de 2015 quando foi realizado o

trabalho de campo teve produccedilatildeo muito ruim assim como algumas outras

hortaliccedilas Segundo as informaccedilotildees que deram essa forma de aquisiccedilatildeo eacute

relevante entre essas famiacutelias Os aposentados que natildeo possuem filhos para

ajuda-los na produccedilatildeo ponderaram que natildeo acham ruim o caminhatildeo levar esses

produtos ateacute eles porque muitas vezes a produccedilatildeo de alguns alimentos eacute muito

pequena e quando acaba eles precisam mesmo comprar e se o caminhatildeo vai

ateacute os siacutetios isso facilita natildeo se trata todavia de um costume mas de uma

ocorrecircncia esporaacutedica

O depoimento anterior de Mario demonstra uma preocupaccedilatildeo que foi

manifestada por outros entrevistados tambeacutem Haacute nas famiacutelias uma grande

preocupaccedilatildeo com agrotoacutexicos ateacute por isso evitam cultivar tomate como jaacute

mencionado anteriormente Pelo fato de os alimentos serem provenientes do

CEASA a desconfianccedila em relaccedilatildeo a eles eacute fator de resistecircncia no consumo

acreditam que os alimentos possuem ldquomuito venenordquo Assim esses alimentos

representam para eles o oposto dos alimentos que produzem nos proacuteprios siacutetios

considerados como mais saudaacuteveis do que os comprados Novamente pode-se

associar essa preocupaccedilatildeo agrave ldquoangustia alimentarrdquo tratada por Fischler (1995 e

2011)

Esse tipo de comercializaccedilatildeo tambeacutem foi identificado por Sacco dos

Anjos et al (2010) em sua pesquisa na regiatildeo rural de Pelotas no Rio Grande

do Sul Os consumidores de laacute tinham como justificativa a especializaccedilatildeo em

uma determinada atividade produtiva como fruticultura e aviaacuterio A falta de

tempo para produzir para autoconsumo e o alto custo da produccedilatildeo os fez

priorizar a aquisiccedilatildeo dos alimentos que consumiam no dia a dia

158

Apesar de os alimentos cultivados no siacutetio predominarem na alimentaccedilatildeo

das famiacutelias os alimentos industrializados tambeacutem satildeo consumidos Pude ver

alguns desses produtos expostos em moacuteveis da cozinha Outros foram

informados pelos entrevistados A lista dos industrializados consta de manteiga

margarina oacuteleo de soja sal arroz biscoito de polvilho biscoito de maisena

biscoito de aacutegua e sal farinha de trigo farinha de milho farinha de mandioca

leite longa vida leite de soja accediluacutecar macarratildeo massa de tomate polvilho leite

condensado e poacute de cafeacute (naquelas famiacutelias que natildeo o produz ou quando o

produto local acaba) Natildeo houve registro de compra de refrigerantes (usado

apenas em ocasiotildees festivas) alimentos congelados (massas patildees de queijo e

carnes etc) embutidos (salsichas presunto mortadela) Nem todos os produtos

listados satildeo consumidos por todas as famiacutelias trata-se de uma lista de produtos

consumidos pelo montante das famiacutelias

Duas das famiacutelias de Piranga a de Ana Luisa e Lucas e a de Juliana e

Jacinto satildeo proprietaacuterias de um pequeno comeacutercio rural nas comunidades de

Bacalhau e Tatu respectivamente Em ambos eacute comercializado parte do que

produzem nos siacutetios Os alimentos mais vendidos satildeo oacuteleo vegetal arroz (que

passou a ser vendido haacute cerca de 15 anos quando se reduziu drasticamente o

cultivo nas regiotildees) farinha de trigo biscoito de polvilho do tipo ldquopapa-ovordquo

macarratildeo massa de tomate ovos (de granja) nos periacuteodos mais frios do ano

porque a produccedilatildeo de ovos de galinhas caipiras diminui e finalmente a laranja

(da CEASA) a partir dos meses de novembro quando a produccedilatildeo nos pomares

diminui

A escolha de consumo referente aos alimentos industrializados pelas

famiacutelias se daacute pela praticidade aliada a preccedilo pela necessidade de consumo ou

por terem se tornado inviaacuteveis a sua produccedilatildeo nos siacutetios Eacute o caso do arroz do

polvilho do accediluacutecar da rapadura do biscoito de polvilho assado e da manteiga

Sobre as opccedilotildees atuais de consumo e as mudanccedilas nos modos de vida os

depoimentos abaixo apresentam importantes reflexotildees

O ritmo na roccedila taacute muito corrido parece que o pessoal natildeo tem muito prazo mais de ficar cuidando das coisas igual antigamente acho que o pessoal tambeacutem era mais pobre precisava trabalhar mais na roccedila pra produzir e arrumar renda hoje consegue comprar mais coisa Antes soacute compravam sal agora eacute mais faacutecil comprar de tudo antes todo mundo plantava arroz e colhia agrave vontade e ainda sobrava para vender (Joel 71 anos morador de Limeira em Porto Firme MG 2015)

159

A gente compra muita coisa que natildeo compensa mais produzir e nem gente suficiente para produzir aqui na roccedila Tem coisa que natildeo daacute pra produzir aqui igual macarratildeo e rapadura natildeo daacute mais pra fazer nem arroz porque natildeo compensa cafeacute a gente ainda planta um pouquinho e feijatildeo mas soacute daacute para o gasto mesmo (Joseacute 47 anos morador de Mato Dentro Presidente Bernardes MG 2015)

Outro item comprado por todos eacute o accediluacutecar cristal que veio a substituir a

rapadura o accediluacutecar mascavo e o melado que antigamente eram produzidos

Mesmo nas famiacutelias que ainda possuem um pequeno engenho o accediluacutecar cristal

tambeacutem eacute consumido por exemplo para adoccedilar o suco de frutas fazer bolo

broa e outras quitandas Segundo os meus interlocutores o uso do accediluacutecar cristal

industrializado eacute recente datando de cerca de 30 anos

Meus pais tinham um engenho de cana e faziam rapadura e melado hoje a gente planta cana soacute para dar agraves vacasos que que tinham engenho e que continuam a plantar cana usam soacute para produzir cachaccedila ou alimentar as vacas (Lucas 52 anos morador de Bom Jesus do Bacalhau em Piranga MG 2015)

A gente fazia muito melado accediluacutecar mascavo rapadura meus filhos cresceram comendo inhame com melado era muito gostoso e um alimento forte (Luisa 57 anos moradora de Bom Retiro em Porto Firme MG 2015)

Marilia 65 anos moradora de Mestre Campos em Piranga explica

como a sua avoacute fazia o que denominava de ldquoaccediluacutecar brancordquo mas que nada tem

a ver com o accediluacutecar cristal industrializado Recebia esse nome porque era mais

claro do que o accediluacutecar mascavo constituiacutea tambeacutem em um modo ruacutestico de

fabricar o accediluacutecar no siacutetio conforme sua descriccedilatildeo

Ela batia o caldo para rapadura mas sem chegar no ponto de rapadura ai colocava essa massa numa mesa de madeira com beiral por cima da massa ainda quente ela colocava argila escura e deixava no dia seguinte a massa ficava toda quebradiccedila e bem mais clara do que a mascavo Tirava os torrotildees de argila que ficavam bem sequinhos e duro e ficava soacute o accediluacutecar (Marilia 65 anos moradora de Mestre Campos em Piranga MG 2015)

Sobre o que chamei de mescla alimentar no subtiacutetulo ou seja o

consumo concomitante de produtos tradicionais e produzidos pelas proacuteprias

famiacutelias e aqueles adquiridos no mercado ou no caminhatildeo o que a pesquisa

apontou eacute que apesar de as famiacutelias considerarem que o sabor do fubaacute e do

accediluacutecar ficou ruim comparando-se ao que conheceram anos atraacutes as famiacutelias se

mostraram adaptadas ao consumo das formas atuais desses produtos O arroz

permanece nas refeiccedilotildees de todos os dias mesmo sendo industrialmente

160

produzido De forma semelhante o fubaacute do moinho eleacutetrico continua sendo

usado para a fabricaccedilatildeo da broa e do angu a serem consumidos cotidianamente

O accediluacutecar cristal eacute usado com frequecircncia para adoccedilar bolos sucos cafeacutes e

doces Natildeo observei no grupo pesquisado resistecircncia aos produtos

industrializados que consomem Apenas o consumo do oacuteleo vegetal sofreu um

pouco de rejeiccedilatildeo embora tenha sido bem aceito para preparo de frituras exceto

para o casal Eliana e Saturnino que continua resistindo em consumi-lo

O arroz natildeo perdeu a importacircncia que tinha por ser industrializado nem

o fubaacute perdeu seu lugar nas refeiccedilotildees e nas quitandas de todos os dias por deixar

de ser produzido no moinho drsquoaacutegua tampouco a manteiga deixou de ser

consumida por ser industrializada e a margarina eacute usada na elaboraccedilatildeo de bolo

e quitandas embora natildeo seja usada para passar no patildeo O que percebi foi uma

certa resignaccedilatildeo dos meus interlocutores diante de uma realidade alimentar em

transformaccedilatildeo uma vez que as mudanccedilas em curso natildeo ocasionaram draacutesticas

adaptaccedilotildees alimentares Na medida do possiacutevel continuam a comer o que

sempre comeram e a preparar os alimentos da forma que sempre fizeram seus

pais Isso sinaliza que a cultura eacute dinacircmica e estaacute em constante transformaccedilatildeo

Em funccedilatildeo de eventos diversos novos elementos vatildeo surgindo outros vatildeo

sendo incorporados Alguns permanecem na memoacuteria e nas histoacuterias das

famiacutelias assim como outros caem no esquecimento

56 As quitandas para a merenda e para servir agraves visitas

O termo quitanda segundo Silva (2014) e Dourado (2006) origina da

palavra Kitanda da liacutengua quimbundo falada em Angola No Brasil em Minas

Gerais principalmente assumiu a significaccedilatildeo tambeacutem para comidas feitas nos

intervalos das refeiccedilotildees e agrave noite antes de dormir

Nas famiacutelias pesquisadas as quitandas satildeo elaboradas com frequecircncia

Sempre que estatildeo proacuteximas de acabar eacute o momento de fazer outra fornada mas

os dias de saacutebado especialmente satildeo os dias de abastecer a casa para receber

as visitas no domingo que geralmente satildeo a proacutepria famiacutelia os filhos os netos

e mesmo os irmatildeos Nos demais dias da semana a quitanda natildeo pode faltar

pois supre a necessidade diaacuteria pelas merendas A principal quitanda eacute a

ldquorosquinha de sal amoniacuteacordquo que tive a oportunidade de experimentar Algumas

161

mulheres tambeacutem a produzem sob encomenda geralmente para moradores das

cidades proacuteximas As outras quitandas comuns satildeo a broa e o bolo de milho O

cobu de milho (Figura 14) que eacute uma broa enrolada e assada em folha de

bananeira jaacute foi muito comum nas famiacutelias mas por ser de elaboraccedilatildeo mais

trabalhosa foi deixando se ser produzido e hoje o eacute muito raramente Agraves vezes

nos finais de ano quando as casas ficam cheias com a chegada dos filhos e

outros parentes algumas quitandas tradicionais satildeo resgatadas pelas famiacutelias

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 14 ndash Broa do tipo Cobu ou ldquopau a piquerdquo

A broa de fubaacute da Figura 15 havia receacutem-saiacutedo do forno e fui a primeira

a experimentar ainda em temperatura morna Comer bolo quente possui um

prazer especial e muitas pessoas tem essa preferecircncia Natildeo eacute pelo sabor mas

sim pelo fato de saber que se trata de bolo fresco que acaba de sair do forno

com o seu perfume ainda espalhado pelo ambiente A broa feita por Eliana (69

anos moradora de Itapeva Presidente Bernardes) me fez sentir essa sensaccedilatildeo

e neste momento minha memoacuteria afetiva eacute que me levou de volta agrave infacircncia no

siacutetio de meus avoacutes e me trouxe o cheiro que exalava de sua cozinha pela manhatilde

Neste momento da pesquisa senti fortemente a atuaccedilatildeo do tal ldquoimponderaacutevel da

pesquisardquo ao ser recebida com essa delicadeza tatildeo presente nas mulheres

162

rurais com quem tive o prazer de conviver durante a pesquisa Sensaccedilatildeo

semelhante tive ao chegar para a entrevista no siacutetio de Marilia (65 anos

moradora de Mestre Campos em Piranga) e encontrar uma mesa posta com

bolo queijo suco e cafeacute As conversas foram longas com essas e outras

mulheres Experimentei durante a pesquisa o poder da comensalidade

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 15 ndash Broa de fubaacute feita por Eliana em Itapeva Presidente Bernardes

Menos comuns de serem feitos satildeo o bolo agrave base apenas de farinha de

trigo e a ldquorosca da rainhardquo que eacute um tipo de patildeo e que utiliza a farinha de trigo e

fermento bioloacutegico que satildeo opccedilotildees agrave broa de milho Como quitandas

caracteriacutesticas da regiatildeo pesquisada eu elegeria as duas que satildeo consumidas

em todas as casas em que estive broa de fubaacute e rosquinha de sal amoniacuteaco

Mesmo naquelas casas em que natildeo se faz a rosquinha ela eacute consumida porque

eacute comprada nas proximidades

A elaboraccedilatildeo de quitandas sempre foi fundamental na zona rural desde

os tempos dos avoacutes Tanto em tempos atraacutes quanto na contemporaneidade ela

eacute a principal ldquomerendardquo nas famiacutelias Nos tempos antigos os motivos para ter a

despensa abastecida com quitandas eram o difiacutecil acesso agraves cidades e a

necessidade de economizar com essa alimentaccedilatildeo Mas pelos depoimentos das

mulheres com quem conversei e ainda segundo Frieiro (1982) as razotildees satildeo

tambeacutem culturais e simboacutelicas No periacuteodo colonial em Minas quitanda era algo

163

que se fazia em todas as casas nos fornos de barro Era uma caracteriacutestica de

virtude que se atribuiacutea agrave mulher Para ser considerada prendada a mulher

precisava ser boa quitandeira assim cada uma devia dominar bem uma receita

de quitanda que fosse sempre elogiada por quem a degustasse Freyre (2007)

tambeacutem reforccedila a valorizaccedilatildeo dada agrave mulher que dominasse muito bem a

elaboraccedilatildeo de uma receita Essas receitas soacute se passavam oralmente e a

pessoas muito iacutentimas geralmente para agraves filhas e netas

Nas famiacutelias pesquisadas essa tradiccedilatildeo perpetuou com poucas

modificaccedilotildees ao longo do tempo As receitas elaboradas satildeo as mesmas que as

matildees tias e avoacutes faziam Atualmente os siacutetios das famiacutelias pesquisadas natildeo

distam mais do que 20 quilocircmetros das cidades mais proacuteximas mas ainda assim

as idas agrave cidade exceto para quem laacute trabalha ou estuda natildeo eacute constante O

normal eacute o deslocamento com o objetivo de fazer compras receber

aposentadoria eou resolver outros assuntos e ir agrave missa uma vez ao mecircs

Assim semelhantemente aos que ocorria nos tempos passados dos

antepassados ldquoeacute preciso ter a quitanda pronta para o caso de chegar uma visita

e ter o que servir com um cafeacuterdquo

As quitandas a gente faz em casa Broa eu faccedilo todos os dias Broa de fubaacute agraves vezes bolo de farinha o biscoito eacute comprado mas eu faccedilo rosquinha Aqui na roccedila a gente tem que estar prevenida porque se chegar algueacutem a gente natildeo tem tempo de fazer e nem tem onde achar as coisas perto A venda natildeo tem muita coisachega uma visita raacutepidanatildeo daacute nem tempo pra fazer as coisas entatildeo tem que ter uma broa pronta um bolinho uma rosquinha (Lucia 61 anos moradora de Manja em Piranga MG 2015)

Na fala acima Lucia se refere a biscoito e rosquinha Biscoito para eles

eacute o que se compra como o de polvilho assado ndash que tambeacutem eacute consumido com

muita frequecircncia - o de maisena e o de aacutegua e sal para eles pode-se servir os

biscoitos comprados para as visitas mas eacute preciso ter tambeacutem uma quitanda

feita em casa neste caso a broa ou a rosquinha A expressatildeo ldquobolinhordquo natildeo se

refere a bolinho de alguma coisa como ldquobolinho de chuvardquo mas ao bolo no

diminutivo modo comum de se expressar em Minas Gerais

Em tempos passados a elaboraccedilatildeo das quitandas era tambeacutem um

momento de socializaccedilatildeo havia mais mulheres envolvidas no trabalho

geralmente matildees e filhas como citaram minhas interlocutoras As rosquinhas e

broinhas de rapadura o cobu e outras quitandas eram armazenadas em grandes

164

latas bem vedadas para natildeo perder a textura e o sabor De maneira semelhante

se dava o armazenamento na ocasiatildeo da pesquisa Poreacutem o espaccedilo de

socializaccedilatildeo no preparo natildeo eacute como outrora mas um trabalho feito de forma

praticamente individualizada Em algumas ocasiotildees como em periacuteodos de feacuterias

das filhas pode ocorrer de haver uma filha que ajude mas natildeo eacute a regra Poreacutem

trata-se de uma atividade de execuccedilatildeo totalmente feminina

No dia da entrevista com Zefa (67 anos moradora de Mato Dentro

Presidente Bernardes) natildeo havia quitanda sendo preparada no forno a lenha

mas sim um tabuleiro grande de amendoim em casca colhido no quintal que

estava sendo torrado para a elaboraccedilatildeo do lsquocajuzinhorsquo doce que seria servido

na festinha de aniversaacuterio de um ano do neto que mora na cidade de Presidente

Bernardes Ela e suas filhas que moram na cidade iriam organizar juntas essa

festinha familiar

As quitandas satildeo assadas atualmente nos fornos do fogatildeo a lenha jaacute

que os fornos de barro soacute compensam ser acesos para assar grandes

quantidades Assim a broa por ser mais simples eacute assada durante o preparo

do almoccedilo jaacute as rosquinhas satildeo assadas na parte da tarde quando as mulheres

estatildeo mais livres dos outros trabalhos por necessitarem de maior tempo na

elaboraccedilatildeo e muita atenccedilatildeo ao tempo de forno A massa da broa ou do bolo eacute

batida agrave matildeo apesar de a batedeira estar presente em todas as cozinhas e que

satildeo quase sempre presente de filhos ldquoEu bato bolo eacute na matildeo mesmo soacute uso

batedeira quando um faccedilo o ldquobolo drsquoaacuteguardquo que precisa de clara em neverdquo

(Neiva 41 anos moradora de Posses em Porto Firme) No caso de Mariacutelia (62

anos moradora de Mestre Campos Piranga) a batedeira que possui pertenceu

agrave sogra e fica guardada no soacutetatildeo da casa muito raramente utilizada A

praticidade atribuiacuteda agraves batedeiras natildeo convenceu as mulheres que entrevistei

Na realidade elas consideram mais trabalhoso lavar as paacutes da batedeira do que

bater a massa do bolo e da broa na matildeo O uso para as claras em neve

compensa pela rapidez do processo usando o equipamento eleacutetrico Ou seja a

batedeira eacute usada apenas quando se quer um bolo menos ruacutestico O meacutetodo

tradicional prevalece neste caso

Eu tenho dois fornos de barro grande no quintalfazia quitanda umas duas vezes na semana a famiacutelia era grande sete filhos hoje acaboueu faccedilo as coisas eacute no forninho do fogatildeo a lenha mesmo eu

165

jaacute vou fazendo o almoccedilo e assando a quitanda do dia (Uacutersula 78 anos moradora de Bananeiras em Presidente Bernardes MG 2015)

Eu gosto de fazer quitanda tem dia que a gente enjoa mas eu gosto de fazer sim faccedilo broa bolo rosquinha minha neta me ajuda a enrolar as rosquinhas eacute assim que as filhas e netas aprendem a cozinhar comigo tambeacutem era assim (Inecircs 72 anos moradora de Ribeiratildeo em Porto Firme MG 2015)

Para as mulheres a elaboraccedilatildeo das quitandas e doces eacute o que mais

mexe com a memoacuteria afetiva relacionada a alimentos por remeter agrave infacircncia agraves

quitandas feitas pela matildee tias e avoacutes Giard (2012) Lody (2008) e Cacircmara

Cascudo (2004) mencionam como as lembranccedilas e viacutenculos com as comidas

ajudam a manter os haacutebitos vida afora Mesmo que algumas mudanccedilas nos

modos de vida tenham ocorrido permanece o desejo de manter as quitandas do

passado

O relato acima de Inecircs sobre a participaccedilatildeo da neta ajudando a enrolar

as rosquinhas de sal amoniacuteaco que sinaliza o desejo de perpetuar uma receita

tradicional da famiacutelia bem como o de ensinar a neta eacute tambeacutem uma lembranccedila

de si mesma quando ajudava a matildee e da forma como o repasse dessa tradiccedilatildeo

se deu em sua vida Dessa maneira o aprendizado ocorre de maneira luacutedica

Gosta-se da rosquinha feita pela matildee ou avoacute tambeacutem porque era divertido ajudaacute-

las a enrolar e a pincelar com a gema Para uma crianccedila a massa da rosquinha

eacute quase como brincar com as massinhas coloridas na escola e neste caso

ldquobrinca-serdquo com a massinha feita pela avoacute e em sua companhia e ainda pode-

se comecirc-la depois de assada porque tem sabor agradaacutevel ao paladar e agrave

memoacuteria A rosquinha que Inecircs faz com a neta eacute a mesma que ela aprendeu a

fazer com a sua matildee e eacute a mesma que ensinou agraves suas filhas A transmissatildeo do

saber-fazer e dos gestuais de enrolar as rosquinhas e pincelar as gemas satildeo

registros simboacutelicos que ficam na memoacuteria Neste sentido como pondera Leacutevi-

Strauss (2003 p 15) ldquoGestos aparentemente insignificantes transmitidos de

geraccedilatildeo em geraccedilatildeo e protegidos por sua insignificacircncia mesma satildeo

testemunhos geralmente melhores do que jazidas arqueoloacutegicas ou

monumentos figuradosrdquo

O papel de Inecircs nesses momentos eacute pois o da ldquoGuardiatilderdquo da tradiccedilatildeo

(GIDDENS 2012) assunto jaacute discutido no capiacutetulo teoacuterico Em vaacuterios momentos

da entrevista os agricultores reportavam agrave figura dos avoacutes e dos pais ldquoA minha

166

matildee fazia assimrdquo ldquo Quando eu era crianccedila eu gostava de ficar acompanhando

a minha avoacute na cozinha na hortaeu aprendi muito com elardquo

Mesmo que a origem dos ingredientes mudasse por exemplo utilizando

ovo de granja no lugar do ovo caipira e manteiga industrializada o sentido

simboacutelico da receita seria o mesmo Para a neta isso natildeo faria diferenccedila

tampouco para a avoacute transmitir seu saber como pondera Giard (2012)

A aquisiccedilatildeo dos ingredientes a preparaccedilatildeo a cocccedilatildeo e as regras de compatibilidade podem muito bem mudar de uma geraccedilatildeo agrave outra Mas o trabalho cotidiano das cozinhas continua sendo uma maneira de unir mateacuteria e memoacuteria vida e ternura instante presente e passado que jaacute se foi invenccedilatildeo e necessidade imaginaccedilatildeo e tradiccedilatildeo ndash gostos cheiros cores sabores formas consistecircncias atos gestos movimentos coisas e pessoas calores sabores especiarias e condimentos (GIARD 2012 p 296)

Outra questatildeo tambeacutem discutida no item 36 do capiacutetulo anterior trata do

papel historicamente e culturalmente atribuiacutedo agrave mulher no que se refere agrave

alimentaccedilatildeo e agrave cozinha A heranccedila culinaacuteria nas famiacutelias eacute claramente feminina

A matildee ensina a filha eou a neta Antocircnio 78 anos jaacute citado anteriormente

agricultor que tambeacutem foi padeiro eacute o uacutenico exemplo de envolvimento masculino

na atividade ligada agrave culinaacuteria uma exceccedilatildeo

Um assunto jaacute mencionado no capiacutetulo anterior trata da naturalizaccedilatildeo do

gostar de cozinhar Culturalmente tende-se a imputar agraves mulheres o prazer da

culinaacuteria como se o normal fosse que todas gostassem de cozinhar e de assumir

a responsabilidade de alimentar o outro Essa naturalizaccedilatildeo ocorre segundo

Arnaiz (1996) primeiramente em funccedilatildeo da funccedilatildeo bioloacutegica da amamentaccedilatildeo

Um aspecto bioloacutegico que se ampliou para a funccedilatildeo domeacutestica como se fosse

natural Natildeo eacute Algumas mulheres podem gostar muito de cozinhar outras

podem gostar mais ou menos o que parece ser o caso de Inecircs ndash quando diz

ldquotem dia que enjoardquo e pode haver aquelas mulheres que natildeo gostam Durante a

entrevista apoacutes um longo tempo de conversa eu lhes perguntava ndash Vocecirc gosta

de cozinhar Algumas sorriam timidamente ao responder que natildeo gostavam

muito o que me pareceu um certo constrangimento em negar uma condiccedilatildeo

atribuiacuteda como sendo natural ou normal como se eu esperasse uma

confirmaccedilatildeo Como resultado dessas respostas apenas onze mulheres

disseram realmente gostar da atividade e sentir prazer com as funccedilotildees

alimentares que assumem O restante natildeo gosta muito da atividade mas

167

nenhuma delas disse detestar a atividade culinaacuteria As falas reproduziam o

sentido de fazer ldquoporque eacute precisordquo ldquoEu pra falar a verdade natildeo gosto muito

natildeo eu fico na cozinha porque natildeo tem outro recurso mas natildeo gosto muito de

cozinha natildeo eu preferiria ficar soacute costurandordquo (Nanaacute 62 anos moradora de

Xopotoacute em Presidente Bernardes)

Eu gosto Eu natildeo faccedilo por obrigaccedilatildeo natildeo eu gosto aprendi a cozinhar com minha matildee aprendi ajudando Faccedilo broa todo dia Vocecirc viu neacute hoje mesmo eu tocirc fazendo doce de figo e de ameixa vou ali colho e faccedilo faccedilo doce de cidra doce de manga doce de goiaba doce de banana que a gente colhe aqui tambeacutem (Marieta 73 anos moradora de Boa Vista em Piranga MG 2015)

Assim gostar gostar eu natildeo gosto natildeo preferia natildeo ter que cozinhar todo dia porque cansa mas tambeacutem ficar parado sem ter o que fazer eacute ruim pelo menos enquanto eu estou fazendo as coisas eu distraio (Antonina 74 anos moradora de Bananeiras em Presidente Bernardes MG 2015)

As mulheres que dizem gostar de cozinhar principalmente fazer

quitandas e doces satildeo aquelas que mais relataram o prazer de ver a casa cheia

de filhos e netos nas feacuterias feriados e aos domingos Satildeo tambeacutem as mulheres

mais velhas aposentadas Os casais de aposentados relataram certa solidatildeo de

vida nos siacutetios principalmente os que natildeo tecircm filhos por perto o que torna o fato

de receber a famiacutelia em casa uma forma de romper temporariamente com a

solidatildeo Para essas mulheres casa cheia eacute sinal de consumo de muita comida

principalmente porque a cozinha eacute sempre o lugar preferido da casa nessas

ocasiotildees como afirmaram

Dentre as atividades culinaacuterias preferidas lidar com a elaboraccedilatildeo das

quitandas se destaca preferem fazer bolos broas e rosquinhas (a favorita entre

todas as outras) do que preparar a comida do almoccedilo e do jantar

O patildeo francecircs alimento comum nos lanches ou rdquomerendasrdquo na aacuterea

urbana natildeo eacute comumente consumido e natildeo faz parte dos haacutebitos alimentares

das famiacutelias pesquisadas Eacute um item agraves vezes adquirido nas idas agrave cidade

quando costumam comprar rosca doce ou outro patildeo doce Algumas mulheres

gostam de fazer de vez em quando a ldquorosca da rainhardquo Eacute o uacutenico patildeo que foi

citado como elaboraccedilatildeo em algumas poucas casas Antonio informou durante

nossa conversa que ele natildeo conseguia vender patildeo na aacuterea rural porque as

mulheres tinham o haacutebito de fazer broa diariamente Soacute conseguia vender patildees

franceses para moradores da cidade

168

57 Receitas oralidade e registros em cadernos

Esse tema na pesquisa teve como objetivo verificar se as receitas satildeo

transmitidas por oralidade ou por registros escritos O caderno de receitas natildeo eacute

comum para todas as mulheres sobretudo entre as mulheres mais velhas acima

de 50 anos Entre elas satildeo poucas as que possuem receitas escritas

predominando a oralidade na transmissatildeo e o registro na memoacuteria das receitas

que fazem com mais frequecircncia do arroz doce ao doce de figo natildeo se recorre

agraves receitas escritas para elabora-los

Eliana por exemplo natildeo possui cadernos de receitas Tudo o que

aprendeu foi repassado oralmente ao observar e ajudar a matildee e a avoacute

Minha matildee natildeo sabia escrever e nem ler entatildeo natildeo tinha caderno ela aprendeu vendo a matildee dela fazer eu aprendi do mesmo jeito e as minhas filhas tambeacutem aprenderam a cozinhar comigo assim me vendo fazer elas devem ter caderno de receita eu nem sei mas devem de ter sim elas estudaram satildeo inteligentes (Eliana 69 anos moradora de Itapeva em Presidente Bernardes MG 2015)

A filha que mora aqui em casa natildeo gosta de cozinha natildeo mas a outra filha casada gosta Eu aprendi a cozinhar com minha matildee desde novinha mas eu natildeo faccedilo nada de receita natildeo minha matildee nunca teve caderno de receita minha filha casada aprendeu comigo ela me ajudava mas ela tem caderno de receita ela gosta de experimentar umas coisas diferentes para os filhos (Nanaacute 62 anos moradora de Xopotoacute em Presidente Bernardes MG 2015)

Nanaacute aponta em sua fala que das duas filhas uma que eacute casada e tem

filhos gosta de cozinhar e de experimentar novidades e ela associa as ldquocoisas

diferentesrdquo das quais a filha gosta como sendo comidas modernas e por isso

devem estar registradas em um caderno de receita pois o que eacute tradicional fica

registrado na mente eacute memorizado Sua outra filha a mais nova com 26 anos

que eacute solteira e estuda na faculdade natildeo gosta de culinaacuteria No depoimento de

Eliana haacute uma associaccedilatildeo do caderno de receitas com inteligecircncia e a falta dele

com o analfabetismo A sua matildee natildeo sabia ler ela mesmo lecirc pouco e justifica

isso como motivo pelo qual ela natildeo tem um caderno mas destaca que as filhas

por terem estudado devem possuir um

Giard (2012) relata depoimentos de mulheres que pesquisou na Europa

sobre cadernos de receitas tradicionais da famiacutelia que possuem semelhanccedila ao

depoimento de Eliana Uma das mulheres do trabalho de Giard respondeu que

169

as avoacutes eram tatildeo pobres que mal tinham uma cozinha e caderno de receitas natildeo

tiveram tambeacutem

Se a oralidade eacute ainda a forma mais presente de transmissatildeo dos

saberes nas famiacutelias pesquisadas fica a reflexatildeo de como isso poderaacute vir a

ocorrer no futuro com a tendecircncia de saiacuteda dos jovens das aacutereas rurais O maior

comprometimento neste sentido seria em relaccedilatildeo aos modos de fazer

tradicionais nas famiacutelias A oralidade estaacute muito ligada agraves mulheres mais velhas

acima de 50 anos As mulheres mais novas falando aqui da faixa etaacuteria

aproximada de 30 a 45 anos apesar de terem aprendido por oralidade com as

matildees natildeo tecircm aplicado a transmissatildeo das suas praacuteticas culinaacuterias agraves filhas

mesmo porque segundo mencionaram natildeo observam muito interesse ldquodas

filhasrdquo (falaram em relaccedilatildeo agraves filhas e natildeo filhos) na atividade culinaacuteria

Considerando que receitas culinaacuterias atualmente satildeo facilmente

encontradas em banca de revista na internet e no verso de embalagens

industrializadas registrar receitas na memoacuteria ou possuir um caderno de receitas

personalizado pode natildeo fazer muito sentido para as geraccedilotildees mais jovens

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 16 ndash Caderno de receitas que pertenceu agrave matildee de Anita moradora da Comunidade Manja em Piranga

A Figura 16 mostra um ldquocadernordquo que pertenceu a matildee de Anita (71

anos moradora da Comunidade Manja em Piranga) jaacute falecida Trata-se de um

caderno de contas usado tambeacutem para registrar as receitas Na receita haacute uma

170

referecircncia a um ldquopacote de creme infantilrdquo Pesquisei sobre isso e verifiquei que

produtos da Marca Nestleacute jaacute eram vendidos no Brasil na deacutecada de 1920 e na

faacutebrica na cidade de Araras produtos ldquoLactogenordquo (tipo de leite em poacute infantil)

farinha laacutectea e leite condensado Tambeacutem jaacute se vendia na forma embalada a

farinha de trigo poacute Royal e a Maisena A duacutevida que fica eacute se eram produtos que

chegavam facilmente no interior de MG na eacutepoca Haacute que se observar tambeacutem

que o caderno de contas utilizado para anotaccedilotildees estava datado o que natildeo se

sabe eacute se a receita anotada tambeacutem pertence ao mesmo periacuteodo ou se foi

aproveitado como cadernos para anotaccedilotildees de receitas e o tal ldquobolo de Mirardquo

pode ter sido registrado em data posterior Sobre anotaccedilotildees de receitas em

diversos tipos de materiais reporto a Abrahatildeo (2007) que aponta para registros

de receitas culinaacuterias que encontrou anotadas em diversos tipos de lugares e

natildeo raro em conjunto com lista de compras informaccedilotildees sobre plantio etc

A Figura 17 mostra um caderno feito com capricho que pertence a Lucia

(61 anos moradora de Manja Piranga) Ela possui trecircs cadernos de receitas

Um deles pertenceu a sua matildee e os outros dois ela mesma fez com a ajuda das

filhas Quando queria guardar uma receita pedia a uma das filhas para copiar

no caderno outras vezes ela mesmo registrava e recortava figuras de revistas

que encontrasse para ilustrar Na ocasiatildeo da pesquisa ela mencionou que natildeo

tem mais paciecircncia para registrar as receitas mas como gosta de cozinhar

costuma fazer uma ou outra receita poreacutem a maioria dos pratos que gosta de

fazer jaacute estaacute registrada na memoacuteria

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 17 ndash Caderno de receitas de Lucia da Comunidade Manja em Piranga

171

Algumas mulheres demonstraram certo constrangimento em mostrar os

cadernos Diziam que estavam ldquomanchadosrdquo ldquosujosrdquo ldquorasgadosrdquo ldquobagunccediladosrdquo

ldquomal escritosrdquo mas outras se sentiram agrave vontade e mostravam as receitas que

mais gostavam Apenas um caderno estava mais organizado o restante possuiacutea

folhas soltas anotaccedilotildees diversas e desordenadas inclusive endereccedilos de

pessoas contas lembretes e listas de compra As anotaccedilotildees eventuais nesses

cadernos ocorrem porque eles estatildeo visiacuteveis em locais de faacutecil acesso na

cozinha e na falta de outro papel para anotaccedilotildees raacutepidas ele assume esta

funccedilatildeo Pela mesma razatildeo muitos possuem manchas de gordura e respingos

de ingredientes que estavam sendo usados durante a elaboraccedilatildeo da receita Satildeo

detalhes que tambeacutem ldquofalamrdquo da cozinha e dos haacutebitos alimentares das famiacutelias

Eu tenho caderno de receita soacute que taacute tudo rasgado elas satildeo todas testadas ou foi por minha matildee ou minhas avoacutes ou minhas tias primas nada eacute copiado de televisatildeo ou de revista As folhas estatildeo quase todas soltas mas hoje quase tudo que faccedilo eu jaacute sei de cabeccedila (Claudia 66 anos moradora de Limeira em Porto Firme MG 2015)

Tenho uma agenda que uso como caderno de receita eacute uma agenda que desde 1977 quando eu casei que eu anotava tudo inclusive coisa de costura e tem ateacute receita tambeacutem (Mariacutelia 62 anos moradora de Mestre Campos em Piranga MG 2015)

Fonte Luiacutes Pereira pesquisa de campo 2015

Figura 18 ndash Mariacutelia da Comunidade de Mestre Campos em Piranga mostrando seus livros e cadernos de receitas

172

Folheando o caderno de Marieta (73 anos moradora de Boa Vista em

Piranga) me deparei com uma receita de brevidade Comentei que aprecio muito

esse bolo mas que seguindo a receita de minha matildee registrada em seu caderno

a minha nunca fica igual agrave que ela fazia Marieta resolveu entatildeo me ensinar

uma receita faacutecil que prometi testar

ldquoVou te ensinar uma receita faacutecil e muito gostosa A receita chama assim ldquo5 10 15rdquo e eacute assim Vocecirc potildee numa vasilha 5 (cinco) ovos inteiros 10 (dez) colheres de accediluacutecar bate bem e ai coloca as 15 (quinze) colheres de maisena e bate mais ainda Coloca numa forma redonda untada e potildee no fornordquo (Marieta 73 anos moradora de Boa Vista Piranga MG 2015)

Em relaccedilatildeo agraves receitas e agrave cozinha Marieta e Zefa de Presidente

Bernardes foram as mulheres mais empolgadas Contaram detalhes de algumas

quitandas que fazem e de outras que eram feitas por suas matildees e avoacutes Elas

fazem parte das poucas mulheres que entrevistei que confirmaram um grande

prazer em cozinhar

58 Os equipamentos da cozinha rural do fogatildeo a lenha agrave panela eleacutetrica de arroz

Foi em torno do fogatildeo a lenha que muitas das entrevistas aconteceram

enquanto as mulheres preparavam o almoccedilo O fogatildeo a lenha eacute o equipamento

que eu elegeria como o mais representativo na realidade das famiacutelias presente

em todas as cozinhas que visitei durante a pesquisa de campo dos mais

tradicionais feitos de argila aos mais modernos revestidos por azulejo

Instrumento transformador do ldquocru em cozidordquo e da ldquonatureza em culturardquo

propiciador de socializaccedilatildeo e de comensalidade nos dias de inverno por manter

a cozinha aquecida as pessoas gostam de ficar em torno dele sendo assim um

instrumento propiciador de sociabilidades Aleacutem desses aspectos eacute tambeacutem

usado para aquecer a aacutegua do chuveiro via serpentina

Aquela copa ali com aquela mesa eu falo que eacute pra enfeite porque quando meus filhos vem pra caacute com os filhos deles eles juntam tudo eacute aqui na cozinha Senta nesse banco ai nas cadeiras trazem mais cadeira e ficam aqui tem um filho meu que gosta de fritar torresmo ai jaacute viu neacute (Antonina 74 anos moradora de Bananeiras Presidente Bernardes MG 2015)

Eu fico ateacute meio brava agraves vezes e jaacute falo logo - Se ficar em volta de mim no fogatildeo a comida natildeo vai sair natildeo pode esparrodar todo

173

mundo pra laacute (Anita 71 anos moradora de Manja Piranga MG 2015)

Os fogotildees revestidos por azulejos representam um aspecto recente

Segundo os interlocutores uma famiacutelia reformou e revestiu o seu fogatildeo o vizinho

viu aprovou e tambeacutem reformou o seu e em pouco tempo vaacuterios fogotildees na

regiatildeo seguiram a mesma tendecircncia Para eles o revestimento em azulejo

manteacutem o fogatildeo mais limpo por fora porque eacute de faacutecil limpeza Em 11 casas

nos diferentes municiacutepios o fogatildeo estava revestido com esse material No

restante o revestimento era de argila e tinta avermelhada na tonalidade de tijolo

ou amarelado Todos possuem formato semelhante com forno anexo usado

para assar a maior parte das quitandas alguns possuem compartimento para

armazenar lenha e outros natildeo A respeito dos dois modelos de revestimento

apesar de o azulejado dar ao fogatildeo uma conotaccedilatildeo ldquomodernardquo pelo tipo de

revestimento isso natildeo altera em nada a tecnologia do fogatildeo A modernidade

conferida pelo revestimento do azulejo eacute de ordem mais esteacutetica do que

funcional

As Figuras 19 e 20 mostram os fogotildees a lenha comuns e de uso

prioritaacuterio nas casas O primeiro fogatildeo (Figura 19) pertencente agrave Mariacutelia (62 anos

moradora de Mestre Campos Piranga MG) eacute feito em alvenaria revestido por

cimento queimado no estilo tradicional e pintado de amarelo e com barras de

contorno na cor vermelha Sobre ele panelas feitas de materiais diversos como

alumiacutenio pedra barro e ferro Colher de pau e de accedilo inoxidaacutevel O fogatildeo estaacute

com o almoccedilo do dia pronto para ser servido (feijatildeo arroz angu couve carne

de boi moiacuteda com cebolinha de folha) Para evitar sujeiras e proteger o fogatildeo

uma taacutebua de madeira eacute usada como suporte para as panelas e uma lata de tinta

foi reaproveitada para forrar o local do fogo

174

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 19 ndash Fogatildeo a lenha no siacutetio de Mariacutelia

O segundo fogatildeo (Figura 20) pertencente agrave famiacutelia de Nanaacute e Custoacutedio

(61 e 72 anos respectivamente moradores de Xopotoacute em Presidente

Bernardes) eacute revestido por azulejo no estilo mais moderno Como eacute de mais

faacutecil higienizaccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria a proteccedilatildeo pela taacutebua de madeira e pela

placa de lata que haacute no fogatildeo anterior Sobre este fogatildeo estatildeo apenas panelas

de alumiacutenio com o almoccedilo a ser servido (feijatildeo angu batata doce frita couve e

peixe frito (Carpa-capim pescado no rio que passa nos fundos da casa)

Tambeacutem foi servido arroz mas neste caso feito em panela eleacutetrica um item

moderno e do qual falarei mais adiante Outro elemento da modernidade que se

observa na foto satildeo os dois potes de margarina em uma cozinha de caraacuteter

tradicional mas onde elementos da modernidade tambeacutem se fazem presentes

Nesta casa a panela eleacutetrica de fazer arroz fica sobre a pia e um moedor de cafeacute

preso afixado na parede ao lado da mesma pia O peixe e a batata doce por

exemplo foram fritos em oacuteleo de soja e a verdura e o feijatildeo refogados em gordura

de porco Nesta cozinha observei muitos dos elementos da mescla cultural

relativos agraves praacuteticas alimentares

175

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 20 - Fogatildeo a lenha no siacutetio de Nanaacute e Custoacutedio

Um detalhe que observei tambeacutem em todas as cozinhas eacute o cuidado com

a higiene e organizaccedilatildeo das cozinhas Na Figura 20 a pia possui uma cortina

estampada feita pela proacutepria Nanaacute que eacute tambeacutem costureira Coincidentemente

ou natildeo as cores das garrafas teacutermicas combinam com a cor da cortina Na Figura

19 tambeacutem os detalhes chamam a atenccedilatildeo Haacute nessas cozinhas uma noccedilatildeo de

esteacutetica e cuidado com a decoraccedilatildeo que indicam o quanto a cozinha eacute parte

importante da casa e merece destaque pelas famiacutelias em sua organizaccedilatildeo

A Figura 21 eacute outro exemplo Mostra a cozinha pertencente a Eliana e

Saturnino (69 e 75 anos respectivamente moradores de Itapeva Presidente

Bernardes) onde as cadeiras verdes combinam com a cor da porta do forno e

ficam em local estrateacutegico proacuteximo ao calor do fogo Em geral todas as cozinhas

das casas em que estive tem caracteriacutesticas como essas umas mais tradicionais

do que outras mais bonitas esteticamente do que outras mas todas muito

organizadas e limpas

176

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 21 ndash Cozinha com fogatildeo a lenha (azulejado) em siacutetio de Eliana e Saturnino

O fogo eacute destacado por Leacutevi-Strauss (1968) Wrangham (2010)

Montanari (2008) e outros como sendo fundamental para a transformaccedilatildeo do

alimento em comida e no processo da transformaccedilatildeo da natureza em cultura Se

em tempos remotos cozinhavam-se as caccedilas e outros alimentos a ceacuteu aberto

com o passar do tempo o fogo passou a ser inserido no ambiente domeacutestico e a

fazer parte do ambiente fiacutesico das casas Lemos (1996) aponta que durante

muito tempo tanto em Portugal quanto no Brasil as moradias eram chamadas

de fogos ou fogotildees tamanha a importacircncia deste equipamento

Wilson (2014 p 126) aponta que o fogo foi aos poucos sendo apagado

no mundo desenvolvido uma condiccedilatildeo necessaacuteria inclusive para que ele se

incorporasse agraves estruturas das casas Assim surgiram na Inglaterra os ldquofogotildees

fechadosrdquo que funcionavam agrave lenha e que serviam tambeacutem para aquecer a agua

ldquoUm fogatildeo nunca servia apenas para cozinhar tambeacutem era essencial para

fornecer aacutegua quente a toda a famiacutelia esquentar ferros de passar e aquecer as

matildeosrdquo Com o evento da Revoluccedilatildeo Industrial surgiram os fogotildees agrave base de

ferro fundido que funcionavam a carvatildeo Mas a autora explica que seu uso era

comum nas cidades pois nas aacutereas rurais permaneceu o uso do fogatildeo agrave lenha

por muitos anos O avanccedilo tecnoloacutegico logo propiciou o surgimento do fogatildeo a

gaacutes na deacutecada de 1880 considerado pela autora como um equipamento que

177

gerou ldquoum progresso real na cozinhardquo A sua aceitaccedilatildeo foi raacutepida em funccedilatildeo de

sua facilidade e praticidade e como mencionado pela autora em 1939 na

Inglaterra trecircs quartos das famiacutelias cozinhavam no fogatildeo a gaacutes

No que se refere ao grupo pesquisado mesmo em virtude de sua

praticidade o fogatildeo a gaacutes natildeo substituiu o fogatildeo agrave lenha Esse siacutembolo de

modernidade natildeo foi forte o suficiente para romper com a tradiccedilatildeo do fogatildeo agrave

lenha O fogatildeo a gaacutes eacute pouquiacutessimo utilizado ndash apenas para preparar o cafeacute da

manhatilde enquanto acende-se o fogatildeo a lenha ou para fazer ldquocoisa menorrdquo como

aquecer uma aacutegua ou o leite agrave tarde

No caso das famiacutelias em que as mulheres trabalham fora do siacutetio o fogatildeo

a gaacutes eacute mais usado para elaboraccedilatildeo do almoccedilo do que o fogatildeo a lenha A razatildeo

eacute a facilidade para os maridos e os filhos que aquecem o almoccedilo que elas deixam

pronto ou adiantado mas o fogatildeo a lenha permanece usado para aquecer a aacutegua

aquecer a aacutegua do chuveiro pela serpentina como citado por Ivone

Usamos mais o fogatildeo a gaacutes no dia a dia porque eu trabalho na escola do arraial de manhatilde e quando eu chego costumo ir ajudar meu marido ai ateacute acender o fogo demora muito pra aquecer entatildeo o fogatildeo a gaacutes eacute mais praacutetico para noacutesa gente liga o fogatildeo a lenha mesmo mais pra esquentar a aacutegua do chuveiro porque a gente tem serpentina mas a comida mesmo eacute no gaacutes Mas agrave tarde eacute mais faacutecil esquentar a comida no fogatildeo a lenha ainda mais agora que o frio vai chegando porque ele esquenta a casa (Ivone 38 anos moradora de Posses em Porto Firme MG 2015)

Nos que se refere ao uso dos fogotildees eacute tambeacutem possiacutevel perceber a

mescla cultural o moderno e o tradicional convivendo sem que isso gere

mudanccedilas radical nos costumes

As localizaccedilotildees das cozinhas nas casas que visitei satildeo nos fundos da

casa voltadas para o quintal semelhantemente ao que eacute apontado por Lemos

(1976) e Abrahatildeo (2007) sobre a disposiccedilatildeo do fogatildeo e da cozinha das casas

coloniais brasileiras Os fogotildees a lenha assim como o fogatildeo a gaacutes ficam na

ldquocozinha limpardquo expressatildeo usada por Algranti (1997) que eacute interna agrave casa Em

algumas casas havia tambeacutem a ldquocozinha sujardquo que possui mais um fogatildeo a

lenha e ou a gaacutes para torrar pequenas quantidades de cafeacute ligar o acendedor

de ldquolimparrdquo o porco apoacutes o abate fazer frituras de toucinho torresmo etc Natildeo se

trata de uma outra cozinha de alvenaria fechada mas sim de uma pequena

coberta no quintal

178

Outro fogatildeo que fica externo agrave casa eacute o fogatildeo de Cupim jaacute citado (Figura

21) Os fogotildees de cupim tambeacutem satildeo usados para fazer as comidas mais

gordurosas como descreve Doca (55 anos moradora de Boa Vista Piranga)

ldquoQuando a gente mata capado a gente frita as carnes os toucinhos no fogatildeo

de cupim laacute forardquo Os cupins satildeo retirados dos pastos e transportados por

carroccedila ateacute o quintal Neles satildeo feitos um buraco na lateral e rente ao chatildeo onde

eacute colocada a lenha e outro buraco em cima onde coloca-se a panela

Como jaacute mencionado o forno de barro apesar de existente nas casas

quase natildeo eacute utilizado pelas famiacutelias atualmente por motivos jaacute expostos Em uma

das casas o forno estava sendo usado para guardar objetos em desuso

Mas quando meus filhos vecircm ai sim eu acendo o forno grande laacute fora Eles sempre vecircm no natal A casa fica cheia ai daacute gosto usar o forno eles pedem pra fazer o que eles gostam ai a gente faz neacute (Zefa 67anos moradora de Mato Dentro em Presidente Bernardes MG 2015)

A Figura 22 pertence ao siacutetio de Selma e Lourival (68 e 76 anos

respetivamente) moradores da comunidade Tatu em Piranga Ao lado do forno

em alvenaria haacute uma espeacutecie de churrasqueira coberta com uma chapa de ferro

e uma churrasqueira menor de ferro fundido Esse espaccedilo segundo Selma eacute

utilizado apenas quando a casa estaacute cheia com a presenccedila dos filhos que gostam

e fazer churrascos quando estatildeo reunidos Nessas ocasiotildees ela tambeacutem utiliza

o forno para assar maior quantidade de quitandas

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 22 ndash Forno de barro e churrasqueira no siacutetio de Selma e Lourival

179

As famiacutelias possuem alguns equipamentos eleacutetricos nas cozinhas forno

de micro-ondas forno eleacutetrico panela eleacutetrica de fazer arroz e freezer mas nem

todos faziam parte da realidade de todas as famiacutelias Jaacute o liquidificador a

batedeira de bolo o espremedor de frutas e a geladeira existentes em todas as

casas O forno de micro-ondas o freezer e a batedeira de bolo satildeo usados

esporadicamente como jaacute visto no assunto sobre as quitandas com exceccedilatildeo do

freezer de Marcelina que estoca os salgados que produz para vender Natildeo

gostam de usar a batedeira porque ldquodaacute trabalho para lavar e depois guardarrdquo

A gente usa o micro-ondas para esquentar uma comida um leite agrave noite agraves vezes para descongelar uma carne comprar carne no accedilougue taacute muito caro assim eu mato um garrote vem um moccedilo do accedilougue da cidade e mata para noacutes ele conhece as partes desossa e ai congela as partes separadaspotildee nome das carnes em todos os pacotes separados e fica num freezer que a gente tem soacute pra isso (Joatildeo 81 anos morador de Aacutegua Limpa Porto Firme MG 2015)

Considerei interessante o desprendimento com o qual Joatildeo com seus

81 anos falava sobre o uso do micro-ondas Sabe utilizar o equipamento e

apesar de natildeo usar com frequecircncia natildeo demonstrou resistecircncia em utiliza-lo

quando necessaacuterio mas natildeo foi sempre assim O equipamento foi presente dado

por um dos filhos que moram fora da regiatildeo e durante muito tempo o casal

atribuiacutea utilidade a ele ateacute os filhos mostrarem alguns resultados de

descongelamento e aquecimento como o que a famiacutelia mais utiliza explicitado

na sua fala Wilson (2014) discute sobre a resistecircncia que muitos equipamentos

de uso corriqueiro na contemporaneidade ndash dentre eles o micro-ondas ndash tiveram

quando do seu surgimento tendo sido recebido sob protestos de que os meacutetodos

antigos eram melhores e mais seguros

Em quatros das casas que visitei havia a panela eleacutetrica de fazer arroz

Foram presentes de filhos ou mesmo adquiridos pelas mulheres inicialmente

pela curiosidade associada ao preccedilo relativamente baixo Este equipamento

surgiu no Japatildeo na deacutecada de 1960 mudando completamente a rotina de

produzir o tipo de arroz nas cozinhas asiaacuteticas Wilson (2014) destaca que esse

tipo de panela eacute equipamento mais importante nas casas japonesas do que a

televisatildeo Nas famiacutelias que pesquisei e que possui a panela eleacutetrica ela nem de

longe eacute mais importante do que outros equipamentos tradicionais como o fogatildeo

mas estaacute ganhando espaccedilo de convivecircncia na cozinha sem maiores conflitos

180

Em uma das casas onde almocei tive a oportunidade de conhecer seu

funcionamento e experimentar o arroz produzido As mulheres elogiaram o

equipamento afirmando que ldquoO arroz fica mais soltinho eacute muito melhor fazer

arroz nela natildeo daacute trabalho nenhumrdquo (Nanaacute moradora de Xopotoacute em Presidente

Bernardes)

A presenccedila e uso desses equipamentos satildeo tambeacutem exemplos da

coexistecircncia entre elementos modernos e tradicionais nas famiacutelias Enquanto se

faz o restante da comida no fogatildeo a lenha a panela eleacutetrica de arroz fica em

funcionamento sobre a pia Giard (2012) ao tratar da introduccedilatildeo dos

equipamentos eleacutetricos na cozinha destaca que o uso de um aparelho eleacutetrico

envolve a relaccedilatildeo instrumental que se estabelece entre utilizador e objeto

utilizado ldquoA cozinheira apenas alimenta esse objeto teacutecnico com ingredientes

que devem ser transformados depois liga o aparelho apertando um botatildeo

eleacutetrico e recolhe a mateacuteria transformada sem controlar as etapas intermediaacuterias

da operaccedilatildeordquo (GIARD 2012 p 284) Para esta autora apesar da praticidade

desses equipamentos eleacutetricos eles propiciaram rompimentos na transmissatildeo

de algumas habilidades culinaacuterias mas ainda assim considera perfeitamente

possiacutevel a junccedilatildeo da modernidade dos equipamentos eleacutetricos com os utensiacutelios

tradicionais usufruindo das comodidades oferecidas pelos primeiros e mantendo

relaccedilatildeo igualmente necessaacuteria e importante com os objetos tradicionais Mas

defende que satildeo formas de convivecircncia que natildeo devem ser impostas cada

grupo ou pessoa deve fazer sua escolha de acordo com suas manifestaccedilotildees

culturais

Finalizando a pesquisa de campo destaco que ela trouxe informaccedilotildees

ricas sobre o modo de vida a sociabilidade e a cultura das famiacutelias pesquisadas

no que se refere agraves praacuteticas alimentares e a comensalidade A pesquisa mostrou

que as famiacutelias estatildeo inseridas em uma cultura que eacute dinacircmica mas que

preserva e valoriza a cultural tradicional Percebi durante a investigaccedilatildeo muitas

conexotildees e correlaccedilotildees com a pesquisa teoacuterica me conduzindo o tempo a fazer

reflexotildees analiacuteticas pensando na interface entre a teoria e a praacutetica Sobre as

percepccedilotildees finais relacionadas ao campo teccedilo consideraccedilotildees no item a seguir

181

CONCLUSOtildeES

Neste trabalho apontei caracteriacutesticas e peculiaridades das praacuteticas

alimentares das famiacutelias rurais que entrevistei O tema da alimentaccedilatildeo natildeo se

conclui pelo contraacuterio ele eacute dinacircmico Chamo de conclusatildeo aqui o fechamento

analiacutetico com outras discussotildees e reflexotildees sobre esta pesquisa

Haacute uma discussatildeo na antropologia e sociologia da alimentaccedilatildeo sobre a

tendecircncia a homogeneizaccedilatildeo alimentar na sociedade ocidental seguindo os

rumos da sociedade moderna e globalizada como tratado por Bauman (2001)

Esta premissa foi um dos pontos que me fez refletir inicialmente o problema de

pesquisa ao questionar se nela natildeo estava impliacutecita uma desconsideraccedilatildeo agraves

diversidades culturais Nesse sentido pensei a questatildeo no contexto rural ndash

especialmente no contexto rural da Zona da Mata mineira por ser nele onde

mais tive a oportunidade de conviver socialmente e academicamente ateacute hoje

Assim conhecer e analisar o sistema alimentar de famiacutelias rurais seus

haacutebitos praacuteticas e a comensalidade foi fundamental para ponderar e tecer

consideraccedilotildees conclusivas a respeito dessa questatildeo Este trabalho permitiu

compreender que tal premissa natildeo se aplica agrave realidade sociocultural das

famiacutelias pesquisadas No contexto cultural em que vivem natildeo se verificou a

adoccedilatildeo das praacuteticas alimentares homogeneizantes das quais trata Fischler (1979

e 1998) homogeneidade considerada como um resultado natural na dinacircmica

da sociedade contemporacircnea em funccedilatildeo das constantes inovaccedilotildees na induacutestria

de alimentos tornando potencialmente inevitaacutevel a praacutetica e o consumo

alimentar cada vez mais padronizados no ocidente Embora as famiacutelias natildeo

estejam imunes agraves modernidades alimentares da induacutestria demonstraram

capacidade e interesse em selecionar o que desse contexto deve ser adotado e

o que deve ser rejeitado por elas

A pesquisa mostrou a existecircncia de uma homogeneizaccedilatildeo alimentar na

realidade cultural das famiacutelias pesquisadas poreacutem uma homogeneizaccedilatildeo local

e pontual que natildeo eacute semelhante a homogeneizaccedilatildeo alimentar tratada pelo autor

acima Ao contraacuterio nas famiacutelias que pesquisei essa homogeneidade alimentar

estaacute inteiramente ligada agrave tradiccedilatildeo e agrave produccedilatildeo local de alimentos Ela eacute

inclusive compatiacutevel com o processo sociohistoacuterico de ocupaccedilatildeo da regiatildeo e

diretamente determinada por ele Coincidindo com o que pondera Flandrin e

182

Montanari (1998) sobre a necessidade de relativizar a discussatildeo sobre a

homogeneizaccedilatildeo cultural e considerar as particularidades sociais e culturais dos

grupos

Todas as famiacutelias pesquisadas abrangendo os trecircs municiacutepios tecircm

haacutebitos e praacuteticas alimentares semelhantes independente da faixa etaacuteria dos

casais e filhos que formam o grupo familiar A semelhanccedila tambeacutem se aplica aos

produtos cultivados nos siacutetios que representam quase que a totalidade da dieta

baacutesica das famiacutelias Assemelham-se tambeacutem os alimentos adquiridos do

mercado

As mudanccedilas observadas nas praacuteticas alimentares tais como a adoccedilatildeo

de novas tecnologias ndash entre elas a substituiccedilatildeo do moinho drsquoaacutegua pelo moinho

eleacutetrico e a opccedilatildeo de comprar alguns alimentos antes produzidos por eles como

o arroz e o accediluacutecar ndash natildeo implica um abandono total da tradiccedilatildeo As famiacutelias estatildeo

convivendo ou se adaptando aos processos de mudanccedilas no mundo

contemporacircneo sem transformar significativamente a proacutepria cultura O uso do

moinho eleacutetrico em lugar do moinho drsquoaacutegua natildeo tem colocado em risco o

consumo do fubaacute na elaboraccedilatildeo de comidas tradicionais como o angu e a broa

Esse comportamento se assemelha agravequele entendimento apresentado por

autores como Giddens (2012) Doacuteria (2014) e Cacircndido (1982) que acreditam

que a convivecircncia possiacutevel e mais provaacutevel de ocorrer na contemporaneidade

se daacute por meio da mescla entre fatores de persistecircncia e os de mudanccedilas que

se complementam mas sem extinguir as construccedilotildees simboacutelicas tradicionais

Eacute importante ressaltar que a incorporaccedilatildeo das opccedilotildees de praacuteticas

alimentares modernas tambeacutem natildeo eacute acriacutetica As famiacutelias sabem que a

substituiccedilatildeo de uma pratica por outra implica em riscos e em perdas e ganhos

como no caso da gordura de porco Mostraram-se conscientes quanto agrave questatildeo

relativa agrave sauacutede no consumo desse alimento mas ele continua sendo

prioritariamente utilizado na preparaccedilatildeo de comidas tradicionais O que

prevalece neste caso eacute a escolha pelo sabor do alimento e pelo significado

simboacutelico e tradicional atrelado a ele Tal como reforccedilado pelos interlocutores a

comida feita com gordura de porco eacute mais saborosa e eacute a que daacute ldquosustanccedilardquo

Ainda que algumas pessoas tenham demonstrado estar mais preocupadas com

a sauacutede do que com o sabor e preferissem utilizar somente o oacuteleo vegetal natildeo

eacute essa opccedilatildeo que prevalece no montante das famiacutelias porque as mudanccedilas satildeo

183

ou natildeo incorporadas nas praacuteticas alimentares levando em consideraccedilatildeo

tambeacutem a cultura familiar

Pode-se afirmar tambeacutem que a adoccedilatildeo pelas tecnologias e praacuteticas

alimentares modernas natildeo tem sido radical Um exemplo disso eacute a manutenccedilatildeo

prioritaacuteria do uso do fogatildeo a lenha O fogatildeo a gaacutes assume um lugar importante

no preparo do almoccedilo nas famiacutelias onde as mulheres trabalham fora do siacutetio o

que aponta para um dos ajustes necessaacuterios que as famiacutelias tecircm precisado fazer

para se adaptar agraves novas realidades vividas Ainda assim o fogatildeo a lenha

continua sendo utilizado para fazer o jantar e para aquecer a aacutegua do chuveiro

evitando-se com isso o consumo de energia eleacutetrica Natildeo houve tambeacutem

nessas famiacutelias a substituiccedilatildeo de alimentos in natura por industrializados

congelados visando a praticidade na preparaccedilatildeo do almoccedilo Eacute importante

ressaltar que nessas famiacutelias ocorre uma alteraccedilatildeo no papel masculino relativo

a culinaacuteria jaacute que os maridos e os filhos passam a aquecer e a preparar alguns

itens de sua alimentaccedilatildeo Se antes essa era uma responsabilidade

exclusivamente feminina as mudanccedilas no papel masculino sinalizam ainda que

timidamente novas negociaccedilotildees de gecircnero nessas famiacutelias sinalizando

alteraccedilotildees em um espaccedilo que historicamente e culturalmente eacute de domiacutenio

feminino Eacute uma heranccedila que ainda vem resistindo e passando de avoacutes para

matildees e netas e de matildee para filhas

A articulaccedilatildeo entre o tradicional e o moderno na cultura alimentar das

famiacutelias mostrou estar ocorrendo sem impasses ou conflitos significativos

Mesmo que a compra de um alimento in natura proveniente da CEASA vendido

pelos caminhotildees gere receio da ingestatildeo de agrotoacutexicos essa aquisiccedilatildeo ocorre

ainda que eventualmente e por necessidade especiacutefica

A tradiccedilatildeo do consumo e elaboraccedilatildeo das quitandas permanece em todas

as famiacutelias Ela representa aleacutem de uma ldquomerendardquo importante para as famiacutelias

no dia a dia uma importante continuidade tradicional Elaboram-se as mesmas

quitandas haacute geraccedilotildees e ao mesmo tempo ocorrem ligeiras substituiccedilotildees como

o biscoito de polvilho frito pelo assado e adquirido no mercado local O patildeo

francecircs que eacute tatildeo consumido nas aacutereas urbanas natildeo faz parte do gosto

alimentar das famiacutelias e eacute de consumo muito raro

Na manutenccedilatildeo dos haacutebitos alimentares tradicionais estaacute presente a

influecircncia dos guardiatildees da tradiccedilatildeo na reproduccedilatildeo do gosto no processo de

184

significaccedilatildeo e ressignificaccedilatildeo da comida atrelada agraves praacuteticas aos saberes e aos

haacutebitos tanto no cotidiano quanto nas comidas de dias festivos A constacircncia

das expressotildees ldquoaprendemos a comer assimrdquo ldquoaprendi a cozinhar vendo minha

matildee fazerrdquo ldquona casa de meus pais fazia assimrdquo denotam a valorizaccedilatildeo dos

aprendizados e o interesse na perpetuaccedilatildeo dos haacutebitos

No que se refere agrave comensalidade no grupo familiar a pesquisa mostrou

que ela estaacute passando por modificaccedilotildees importantes em algumas famiacutelias

Naquelas em que as mulheres trabalham nas escolas a comensalidade ocorre

na escola em companhia de outras colegas e alunos nos horaacuterios de almoccedilo No

restante do grupo a comensalidade se daacute entre aqueles que estatildeo em casa jaacute

que nessas famiacutelias natildeo foi citado casos de pessoas que almoccedilam na atividade

local com o uso de marmita A comensalidade no horaacuterio de jantar tem sofrido

modificaccedilotildees nos uacuteltimos anos em todas as famiacutelias mesmo naquelas com

pessoas mais velhas Ocorre com frequecircncia entre eles servir o prato e se

sentarem na sala para assistir televisatildeo enquanto jantam Houve entatildeo um

deslocamento da mesa da cozinha para o sofaacute da sala Se em tempos passados

o fogo era um fator socializador e propiciador da comensalidade que ocorria

em torno da fogueira da lareira e do fogatildeo a lenha como apontado por

Wrangham (2010) e Montanari (2008) na modernidade a televisatildeo pode tambeacutem

assumir essa funccedilatildeo tanto no meio urbano quanto no meio rural pelo menos no

que se refere agraves famiacutelias que entrevistei

Alimentos industrializados satildeo consumidos em todas as famiacutelias

embora natildeo em grande quantidade e diversidade proporcionalmente ao que se

encontra disponiacutevel nos mercados e satildeo itens importantes nos cardaacutepios As

famiacutelias adquirem alimentos que sempre fizeram parte dos haacutebitos alimentares

e que em tempos passados jaacute foram produzidos nos siacutetios No entanto compram

tambeacutem alguns alimentos que nunca foram produzidos localmente mas que

passaram a ser adotados o que aponta para a dinacircmica da cultura

O significado da comida para as famiacutelias tem importante ligaccedilatildeo com a

tradiccedilatildeo e representa uma identificaccedilatildeo significativa com as geraccedilotildees passadas

Marca ainda a ligaccedilatildeo com a terra ao serem consumidos prioritariamente o que

se produz no local As comidas tradicionais e elaboradas de modo simples satildeo

as que mais agradam ao paladar das famiacutelias e apesar de ser um cardaacutepio de

certa forma monoacutetono natildeo se torna indesejado e natildeo foi apontado pelas famiacutelias

185

algum desejo ou necessidade por experimentar comidas diferentes das que

estatildeo habituados A prioridade do grupo pesquisados pela alimentaccedilatildeo baseada

em produtos cultivados localmente e em praacuteticas mais tradicionais coincide com

o que proposto pelo ldquoGuia Alimentar para a Populaccedilatildeo Brasileirardquo (2015)

publicado pelo Ministeacuterio da Sauacutede contendo diretrizes de uma alimentaccedilatildeo

saudaacutevel e considerando como importante tambeacutem o aspecto cultural

As famiacutelias estatildeo conscientes de que as transformaccedilotildees constantes que

ocorrem na sociedade atual tecircm o poder de interferir em suas praacuteticas e haacutebitos

alimentares Consideram que vai se tornando cada vez mais difiacutecil manter seus

haacutebitos alimentares por fatores de caraacuteter mais externos do que internos e que

interferem na sua dinacircmica de reproduccedilatildeo social e econocircmica

Inseridas no processo que envolve tanto o desejo de manter sua

autonomia produtiva e cultura alimentar quanto agrave necessidade de ceder a

algumas mudanccedilas essas famiacutelias estatildeo aprendendo a se adaptar com as

experiecircncias do cotidiano natildeo se fecham em seus nuacutecleos culturais e nem se

posicionam avessos agraves mudanccedilas demonstram uma atitude resignada poreacutem

criacutetica acatando os itens da modernidade alimentar que lhes agrada e lhes satildeo

importantes e rejeitando o que natildeo lhes interessa respeitando prioritariamente

a cultura local no sentido tratado por Helman (1994) no processo de escolha

alimentar Haacute nessa percepccedilatildeo um sentido de resistecircncia identitaacuteria alimentar

semelhante agrave que Poulain (2013) discute como sendo uma das caracteriacutesticas

das culturas alimentares locais

Por fim concluo que na ocasiatildeo da pesquisa a comida possuiacutea a

mesma centralidade cultural para as famiacutelias que pesquisei que aquela da eacutepoca

de seus antepassados Apesar de estarem inseridas na dinacircmica

contemporacircnea de mudanccedilas a vida cotidiana ainda segue um ritmo lento que

de certa forma difere do ritmo das aacutereas urbanas o que permite ainda este status

central da comida em sua cultura

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ii

Aos meus pais que me ensinaram a fazer escolhas na vida baseadas no amor

e a me dedicar com responsabilidade a tudo que faccedilo Ao meu pai que sempre

se despede dos filhos e netos dizendo ldquovai em paz seja felizrdquo Agrave minha matildee

que adoeceu e faleceu no meio do processo do doutorado e que apesar de

seu estado de sauacutede esteve sempre atenta e preocupada com meu trabalho

Ela que gostava de experimentar pratos novos mas elaborava a comida

tradicional como ningueacutem me ensinou que a cozinha eacute um lugar onde coisas

boas acontecem para quem estaacute disposto a vivenciar sua ldquoalquimiardquo

iii

AGRADECIMENTOS

A Deus por tudo Por me sentir capaz de superar os momentos de

tristeza e fragilidade e vivenciar sem culpa os momentos de alegria e de

bonanccedila

Ao meu orientador Joseacute Ambroacutesio Ferreira Neto pela orientaccedilatildeo apoio

e confianccedila Por assumir minha orientaccedilatildeo em 2014 e me ajudar nesta travessia

Pela oacutetima orientaccedilatildeo pelas criacuteticas e elogios

A Rita de Caacutessia Pereira Farias pela coorientaccedilatildeo pelas importantes

contribuiccedilotildees ao trabalho pelo incentivo e as conversas que tivemos

Aos professores membros da banca examinadora Eliana Gomes de

Souza Douglas Mansur da Silva Ricardo Ferreira Ribeiro e ainda Joseacute

Ambroacutesio Ferreira Neto e Rita de Caacutessia Pereira Farias pela participaccedilatildeo pelas

criacuteticas e sugestotildees

Aos teacutecnicos da Emater dos municiacutepios pesquisados Rita Maria

Brumano Oliveira Geraldo Antocircnio da Silva Eduardo Muniz e ao assistente de

escritoacuterio Luiz Antocircnio Faria por todo apoio necessaacuterio agrave realizaccedilatildeo da pesquisa

de campo pela companhia em muitas das comunidades visitadas

Agraves famiacutelias que entrevistei e que me receberam tatildeo bem Agradeccedilo pela

compreensatildeo a respeito da pesquisa e pelas longas horas dedicadas ao diaacutelogo

pelas deliciosas refeiccedilotildees que fiz em companhia delas Meu aprendizado com

essa convivecircncia foi imenso

Agradeccedilo ao meu pai e minha matildee ndash ldquoouro de Minardquo E agradeccedilo pelo

carinho de sempre a toda minha famiacutelia que estaacute o tempo todo presente na

travessia que faccedilo pela vida ainda que muitas vezes agrave distacircncia Aos meus

irmatildeos Cristina e Joseacute Mauro sempre preocupados com a irmatilde mais nova Ao

meu irmatildeo Gumercindo pelo apoio nos momentos difiacuteceis e pelos conselhos

acadecircmicos durante o doutorado Agrave minha cunhada Luciana pelo socorro em

momentos de fragilidade com a sauacutede apoacutes noitadas sem dormir

Ao Felipe amor que chegou no meio da trajetoacuteria do doutorado

companheiro que soacute tem me trazido alegria amor e apoio incondicional e muita

muacutesica

iv

A Luana minha enteada querida pelas revisotildees dos abstracts para

artigos e por ter compreendido facilmente minha ausecircncia em seu casamento

no Rio de Janeiro em funccedilatildeo do trabalho

Agrave Universidade Federal de Viccedilosa pela oportunidade de realizar o

doutorado e aos professores do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Extensatildeo

Rural pelas trocas de experiecircncias e conhecimentos Aos funcionaacuterios do

Departamento de Economia Rural sobretudo Romildo e Carminha pela atenccedilatildeo

e simpatia

Agrave Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute instituiccedilatildeo onde atuo haacute

12 anos por ter permitido meu afastamento para fazer o doutorado

Agrave CAPES pelos dois anos de bolsa REUNI (2012 e 2013)

Agraves colegas de doutorado pelas conversas pelas alegrias e tristezas que

compartilhamos em alguns momentos e pelas boas energias que partilhaacutevamos

na conduccedilatildeo do trabalho Agradeccedilo tambeacutem os estudantes do mestrado com

quem fiz amizade ao longo de todo o periacuteodo A Fernanda Machado por me

socorrer elaborando os dois mapas que precisei

v

SUMAacuteRIO

LISTA DE TABELAS vii

LISTA DE QUADROS viii

LISTA DE FIGURAS ix

LISTA DE SIGLAS xi

RESUMO xii

ABSTRACT xiv

INTRODUCcedilAtildeO 1

1 A REGIAtildeO DE ESTUDO 5

11 Um breve histoacuterico de ocupaccedilatildeo da regiatildeo estudada 6

12 Informaccedilotildees atuais sobre a populaccedilatildeo rural e as principais atividades agriacutecolas dos municiacutepios pesquisados 10

13 Atividades produtivas 13

2 A COMIDA EM MINAS GERAIS DA ESCASSEZ Agrave FARTURA 18

21 Contextualizando o lugar da comida no Brasil Colonial nos primoacuterdios 18

22 Fase da mineraccedilatildeo em Minas Gerais escassez de alimentos 24

23 Fase da ruralizaccedilatildeo em Minas Gerais fartura de alimentos 29

3 ALIMENTACcedilAtildeO E CULTURA PERMANEcircNCIAS E TRANSFORMACcedilOtildeES 36

31 A alimentaccedilatildeo como categoria de estudo multidisciplinar contribui-ccedilotildees da antropologia da sociologia e da histoacuteria 36

32 Sistema alimentar 46

321 Alimentos aceitos e rejeitados 49

3211 Haacutebitos alimentares orientados por costumes e tradiccedilotildees 52

33 Alimento comida e cultura 55

331 A importacircncia social e cultural do uso do fogo e sua relaccedilatildeo com a comensalidade 59

3311 O local do fogo e da praacutetica da comensalidade na arquitetura domeacutestica 63

34 Praacuteticas alimentares na contemporaneidade entre o tradicional e o moderno 68

35 Modernidade e tradiccedilatildeo no contexto alimentar rural contemporacircneo 78

36 O papel feminino nas praacuteticas alimentares na famiacutelia 86

4 ASPECTOS METODOLOacuteGICOS DA PESQUISA E A CHEGADA AO CAMPO 94

41 Teacutecnica de pesquisa 95

vi

42 Os sujeitos da pesquisa 95

43 A conduccedilatildeo da pesquisa o caminho percorrido 96

44 A entrevista semiestruturada 98

45 A imersatildeo em campo a chegada e a travessia 98

46 Descobrindo a cultura local dos entrevistados 101

461 Perfil das famiacutelias 101

462 A produccedilatildeo agriacutecola local 107

463 Atividades cotidianas de trabalho nos siacutetios 108

5 CULTURA E PRAacuteTICAS ALIMENTARES NO SISTEMA FAMILIAR RURAL RELACcedilOtildeES COM A COMIDA PERMANEcircNCIAS E MUDANCcedilAS 114

51 Comida ldquoforterdquo e comida ldquofraca contradiccedilotildees mudanccedilas e permanecircn-cias 114

511 Outras comidas ldquofortesrdquo 125

52 Consideraccedilotildees sobre a importacircncia do milho e do fubaacute 129

53 Comida de todo dia comida de festa e as relaccedilotildees de comensalidade 137

531 Comida de todo dia o trivial 137

532 Comida de domingo de dias festivos e comensalidade 143

533 Os doces 151

54 A comensalidade para aleacutem das festas e datas especiais 154

55 Mescla cultural praacuteticas de consumo alimentar de ontem e de hoje 156

56 As quitandas para a merenda e para servir agraves visitas 160

57 Receitas oralidade e registros em cadernos 168

58 Os equipamentos da cozinha rural do fogatildeo a lenha agrave panela eleacutetrica de arroz 172

CONCLUSOtildeES 181

REFEREcircNCIAS 186

vii

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 ndash Aacuterea e populaccedilatildeo da microrregiatildeo de Viccedilosa (2015) 11

Tabela 2 ndash Percentual da populaccedilatildeo urbana e rural da microrregiatildeo de Viccedilosa nas deacutecadas de 1980 a 2010 (2015) 11

Tabela 3 ndash Populaccedilatildeo rural por diferentes faixas etaacuterias 12

Tabela 4 ndash Percentual da populaccedilatildeo rural por diferentes faixas etaacuterias () 13

Tabela 5 ndash Comparativo entre perfil etaacuterio do IBGE (2010) e da pesquisa de campo 2015 () 106

Tabela 6 ndash Comparativo da composiccedilatildeo de gecircnero do IBGE e da pesquisa de campo 2015 106

viii

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 ndash Municiacutepios comunidades e nuacutemero de famiacutelias 2015 96

Quadro 2 ndash Fonte de renda das famiacutelias pesquisadas 2015 108

ix

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 ndash Microrregiotildees da Zona da Mata de Minas Gerais 5

Figura 2 ndash Microrregiatildeo de Viccedilosa Minas Gerais 6

Figura 3 ndash Santuaacuterio de Bom Jesus de Matozinhos em Bom Jesus do Bacalhau 9

Figura 4 ndash Milho colhido no siacutetio de Anita e Gilberto na comunidade de Manja em Piranga 15

Figura 5 ndash Carro de boi transportando espigas de milho da roccedila para o paiol na estrada da comunidade de Manja em Piranga 16

Figura 6 ndash Engenho de produccedilatildeo de rapadura no siacutetio de Lola e Marcos na comunidade Xopotoacute Presidente Bernardes 16

Figura 7 ndash Moinho drsquoaacutegua no siacutetio de Manoel e Donana na Comunidade Limeira Porto Firme 130

Figura 8 ndash Moinho eleacutetrico no siacutetio de Nanaacute e Custoacutedio na Comunidade Xopotoacute em Piranga 131

Figura 9 ndash Cebolas e alhos armazenados no paiol do siacutetio de Maria e Laeacutercio na comunidade Itapeva em Presidente Bernardes 139

Figura 10 ndash Horta no siacutetio de Eliana e Saturnino em Itapeva Presidente Bernardes MG 140

Figura 11 ndash Fogatildeo de cupim no quintal do siacutetio de Eliana e Saturnino em Itapeva Presidente Bernardes 146

Figura 12 ndash Processo de fritura do ldquomilhopatilderdquo 149

Figura 13 ndash Doce de ameixa feito por Marieta na comunidade Boa Vista em Piranga MG 154

Figura 14 ndash Broa do tipo Cobu ou ldquopau a piquerdquo 161

Figura 15 ndash Broa de fubaacute feita por Eliana em Itapeva Presidente Bernardes 162

Figura 16 ndash Caderno de receitas que pertenceu agrave matildee de Anita moradora da Comunidade Manja em Piranga 169

Figura 17 ndash Caderno de receitas de Lucia da Comunidade Manja em Piranga 170

Figura 18 ndash Mariacutelia da Comunidade de Mestre Campos em Piranga mostrando seus livros e cadernos de receitas 171

x

Figura 19 ndash Fogatildeo a lenha no siacutetio de Mariacutelia 174

Figura 20 - Fogatildeo a lenha no siacutetio de Nanaacute e Custoacutedio 175

Figura 21 ndash Cozinha com fogatildeo a lenha (azulejado) em siacutetio de Eliana e Saturnino 176

Figura 22 ndash Forno de barro e churrasqueira no siacutetio de Selma e Lourival 178

xi

LISTA DE SIGLAS

CAPES ndash Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior

CEP ndash Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa com Seres Humanos

ECA ndash Estatuto da Crianccedila e do Adolescente

EMATER-MG ndash Empresa de Assistecircncia Teacutecnica e Extensatildeo Rural do Estado de

Minas Gerais

FAOONU ndash Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas para Agricultura e Alimentaccedilatildeo

FBSSAN ndash Foacuterum Brasileiro de Soberania e Seguranccedila Alimentar e Tradicional

IARC ndash International Agency for Research on Cancer

IBGE ndash Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica

IPHAN ndash Instituto do Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional

ODELA ndash Observatorio de la Alimentacioacuten

OMS ndash Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede

PAA ndash Programa de Aquisiccedilatildeo de Alimentos

UFV ndash Universidade Federal de Viccedilosa

USP ndash Universidade de Satildeo Paulo

xii

RESUMO

LIMA Romilda de Souza DSc Universidade Federal de Viccedilosa novembro de 2015 Praacuteticas alimentares e sociabilidades em famiacutelias rurais da Zona da Mata mineira mudanccedilas e permanecircncias Orientador Joseacute Ambroacutesio Ferreira Neto Coorientadora Rita de Caacutessia Pereira Farias

Este trabalho tem como objetivo analisar e compreender os significados da

comida e as relaccedilotildees de comensalidade atendo-se agraves mudanccedilas e

permanecircncias referentes agraves praacuteticas alimentares de famiacutelias rurais dos

municiacutepios mineiros de Piranga Porto Firme e Presidente Bernardes A

metodologia escolhida foi qualitativa utilizando-se da entrevista

semiestruturada observaccedilatildeo registros fotograacuteficos e o caderno de campo As

anaacutelises da pesquisa empiacuterica foram construiacutedas agrave luz das abordagens teoacutericas

da antropologia e sociologia da alimentaccedilatildeo e da histoacuteria da alimentaccedilatildeo Apesar

da tendecircncia apontada por alguns autores contemporacircneos de uma

homogeneizaccedilatildeo alimentar na sociedade ocidental fruto do processo de

modernizaccedilatildeo e globalizaccedilatildeo que teria o poder de influenciar e transformar as

praacuteticas alimentares esta natildeo foi a realidade observada nas famiacutelias rurais

pesquisadas A pesquisa apontou para a necessidade de considerar a

diversidade cultural e o contexto sociohistoacuterico ao estudar as questotildees relativas

a alimentaccedilatildeo dos grupos Nas famiacutelias estudadas as praacuteticas alimentares

possuem forte viacutenculo com a tradiccedilatildeo e agrave produccedilatildeo local de alimentos Isso natildeo

significa que elas estatildeo imunes agraves interferecircncias e agraves mudanccedilas

contemporacircneas Neste sentido as mudanccedilas observadas nas praacuteticas

alimentares tais como a adoccedilatildeo de novas tecnologias tecircm ocorrido de forma

ainda tiacutemida e natildeo implica um abandono da tradiccedilatildeo As famiacutelias estatildeo

convivendo ou se adaptando aos processos de mudanccedilas no mundo

contemporacircneo sem negar suas raiacutezes histoacutericas A incorporaccedilatildeo das praacuteticas

alimentares modernas tambeacutem natildeo eacute acriacutetica As famiacutelias sabem que a

substituiccedilatildeo implica em riscos perdas e ganhos No caso da gordura de porco

por exemplo mostraram-se conscientes quanto agrave questatildeo relativa agrave sauacutede no

consumo desse alimento que continua sendo prioritariamente utilizado na

preparaccedilatildeo de comidas tradicionais O que prevalece neste caso eacute a escolha

xiii

pelo sabor do alimento e pelo significado simboacutelico e tradicional atrelado a ele

Inseridas no processo que envolve tanto o desejo de manter sua autonomia

produtiva e cultura alimentar quanto agrave necessidade de ceder a algumas

mudanccedilas essas famiacutelias estatildeo aprendendo a se adaptar agraves dinacircmicas da

modernidade aderindo agraves novidades alimentares que lhes agradam e lhes satildeo

importantes e rejeitando o que natildeo lhes eacute interessante

xiv

ABSTRACT

LIMA Romilda de Souza DSc Universidade Federal de Viccedilosa November 2015 Eating habits and sociabilities in rural families of Minas Geraisrsquo Zona da Mata changings and remainings Adviser Joseacute Ambroacutesio Ferreira Neto Co-adviser Rita de Caacutessia Pereira Farias

This work aims to analyze and understand the meaning of food and commensality

relations limited to the changes and remains related to the eating habits of rural

families in the municipalities of Piranga Porto Firme and Presidente Bernardes

The chosen methodology was qualitative using semi-structured interviews and

observation The instruments used were the recorded interviews photographic

register and field notebook The empirical research analysis was built under the

light of theoretical approaches of anthropology and sociology of the alimentation

and history of the alimentation Despite the tendency pointed out by some

contemporary authors of a food homogenization in Western society as a result

of the modernization and globalization process that would have the power to

influence and transform the eating habits this was not the reality observed in the

surveyed rural families The research indicated the need to consider the cultural

diversity and the socio-historical context in order to study issues related to eating

habits of the groups In the studied families the issues related to eating habits

have a strong bond with the tradition and local food production That doesnrsquot

mean they are immune to interference and to contemporary changes In this

sense the observed changes in dietary practices such as the adoption of new

technologies have occurred still timidly and donrsquot imply a total abandonment of

tradition Families are living or adapting themselves to the changing processes in

the contemporary world without however transforming significantly their own

culture Itrsquos important to highlight that the incorporation of modern eating habits

options is not uncritical too The families know that the replacement of a habit by

another entails risks losses and gains as in the case of pork fat They proved to

be conscious about the matter on health in consumption of that food but it

remains primarily used in the preparation of traditional foods What prevails in this

case it is the choice by the flavor of the food and by the symbolic and traditional

meaning attached to it Inserted in the process involving both the desire to

xv

maintain its productive autonomy and eating culture and the need to give in to

some changes these families are learning to adapt to the everyday experiences

they arenrsquot closed in their cultural cores and even take posiacutetion averse to change

they demonstrate a resigned but critical attitude by submitting to the items of food

modernity they please and consider important as well as rejecting what is not

interesting to them

1

INTRODUCcedilAtildeO

ldquoDepois do idioma a comida eacute o mais importante elo entre o homem e a culturardquo

(Raul Lody 1997)

A alimentaccedilatildeo elemento baacutesico de sobrevivecircncia humana eacute tema

carregado de complexidade Se a razatildeo primeira do ato alimentar eacute a

necessidade fisioloacutegica de nutrir-se as demais satildeo carregadas de justificativas

culturais sociais e econocircmicas que por sua vez determinam as escolhas

alimentares

Aleacutem de ser um comportamento automaacutetico a sociologia a antropologia

e a histoacuteria da alimentaccedilatildeo tecircm mostrado que comer eacute um comportamento que

se liga de forma iacutentima com o comedor1 Em sentido semelhante o entendimento

da comida como categoria analiacutetica nessas trecircs aacutereas de estudo mostra que

pela comida eacute possiacutevel perceber as transformaccedilotildees do mundo social no decorrer

dos tempos Essa relaccedilatildeo se estabelece na escolha e ingestatildeo do alimento pois

conforme pondera Lody (2008 p 12) ldquonenhum alimento que entra em nossas

bocas eacute neutrordquo

Dessa forma este trabalho se fundamenta na compreensatildeo cultural e

social da comida vista como categoria de pensamento simboacutelico Trata-se

daquele sentido em que por meio das regras socialmente estabelecidas no ato

de comer criam-se viacutenculos com quem se come com o que se produz e com as

demais dinacircmicas que envolvem as praacuteticas alimentares O sentido dado por

Cacircndido (1982 p 30) elucida esse intuito

Qualquer que seja a posiccedilatildeo do alimento eacute sempre acentuada a sua importacircncia como fulcro de sociabilidade ndash natildeo apenas do que se organiza em torno dele mas daquelas em que ele aparece como expressatildeo tangiacutevel dos atos e das intenccedilotildees (CAcircNDIDO1982 p 30)

A escolha do tema da pesquisa se deu a partir de um processo que foi

sendo delineado e construiacutedo aos poucos considerando inicialmente o interesse

1 Expressatildeo francesa que na traduccedilatildeo das obras de Poulain (2013) e Poulain e Proenccedila (2003) para o

portuguecircs significa ldquocomedorescomedorrdquo Esta expressatildeo apareceraacute em citaccedilotildees do autor ao longo deste trabalho Representa para a Sociologia da Alimentaccedilatildeo atual o homem que come razatildeo da utilizaccedilatildeo da palavra ldquocomedorrdquo em portuguecircs A utilizaccedilatildeo desse termo segundo os autores surgiu a partir da publicaccedilatildeo de autoria de Aron (1976) ldquoLe mangeur du 19eacutemerdquo (POULAIN PROENCcedilA 2003 p 367)

2

pessoal e profissional pelo assunto2 mas tambeacutem estimulado por questotildees

instigantes proporcionadas por algumas disciplinas cursadas durante o

programa de doutorado Assim para se pensar o problema foram realizadas

leituras de pesquisas e de conteuacutedo teoacuterico das trecircs disciplinas apontadas acima

no que se refere agrave alimentaccedilatildeo O investimento teoacuterico realizado para conduzir

a pesquisa partiu da compreensatildeo de que a reflexatildeo teoacuterica e a pesquisa

empiacuterica se complementam em um percurso de matildeo dupla naquele sentido

apontado por Trajano (1990) Para este autor a priorizaccedilatildeo da teoria em

detrimento da pesquisa de campo ou vice-versa compromete o trabalho em sua

riqueza e profundidade

Atraveacutes da relaccedilatildeo entre pesquisa de campo e anaacutelise teoacuterica o conhecimento antropoloacutegico ganha impulso e avanccedila pois a pesquisa fornece o combustiacutevel que a teoria necessita para adentrar por novos campos e caminhos Por sua vez a teorizaccedilatildeo abre trilhas frescas e inexploradas para o trabalho de pesquisardquo (TRAJANO 1990 p 2)

A pesquisa de campo envolveu famiacutelias rurais de trecircs municiacutepios da

microrregiatildeo de Viccedilosa Piranga Presidente Bernardes e Porto Firme A escolha

desses municiacutepios se deu por eles formarem uma regiatildeo com maior populaccedilatildeo

rural da microrregiatildeo de Viccedilosa e pela sua interessante histoacuteria de ocupaccedilatildeo jaacute

que se trata de uma regiatildeo importante na busca do ouro pelos bandeirantes que

passaram pela zona da Mata questatildeo que seraacute detalhada em um dos capiacutetulos

deste trabalho

Analisar e buscar compreender como as famiacutelias estatildeo lidando com as

transformaccedilotildees alimentares que ocorrem na contemporaneidade foi o eixo

norteador da pesquisa A experiecircncia dessas famiacutelias neste contexto ldquofalardquo de

um grupo que busca responder e se adaptar agraves mudanccedilas sinalizando que o

rural contemporacircneo natildeo estaacute alheio e distante do que ocorre na sociedade mais

ampla questatildeo muito bem sinalizada nos estudos de Maria de Nazareth

Wanderley (2000 e 2009) Maria Joseacute Carneiro (1998) e Joseacute Graziano da Silva

(1997) Mas tambeacutem ldquofalardquo de um grupo que respeita sua tradiccedilatildeo e seus haacutebitos

alimentares suas necessidades de natildeo ceder a todas as mudanccedilas decorrentes

da contemporaneidade

2 Discussotildees de interesse dos grupos de pesquisa em que participo na Universidade Estadual do Oeste do

Paranaacute instituiccedilatildeo onde atuo haacute 12 anos

3

Segundo Wanderley (2009) um dos desafios enfrentados pelos

pesquisadores na contemporaneidade consiste em desvendar os processos

pelos quais se articulam as dinacircmicas internas e externas do mundo rural em

sua diversidade

Neste sentido esta pesquisa tem como objetivo analisar e compreender

o significado da comida e as relaccedilotildees de comensalidade atendo-se agraves

mudanccedilas e permanecircncias referentes agraves praacuteticas alimentares das famiacutelias Mais

especificamente analisar a articulaccedilatildeo entre o tradicional e o moderno o

processo de escolha alimentar e os princiacutepios que a determinam tais como

haacutebitos tradiccedilatildeo praticidade custo a influecircncia dos guardiatildees da tradiccedilatildeo na

reproduccedilatildeo do gosto no processo de significaccedilatildeo e ressignificaccedilatildeo da comida

atrelada agraves praacuteticas aos saberes e aos haacutebitos tanto no cotidiano quanto nos

rituais

Com esta pesquisa pretendo contribuir com as discussotildees sobre o

sistema alimentar contemporacircneo e a necessidade de nessa discussatildeo

relativizar os argumentos levando-se em consideraccedilatildeo a diversidade cultural

especialmente a rural

Esta tese estaacute organizada em cinco capiacutetulos aleacutem da introduccedilatildeo e

conclusatildeo O capiacutetulo 1 apresenta um breve histoacuterico de ocupaccedilatildeo da regiatildeo

estudada e as principais atividades rurais a partir de dados do IBGE (2010) O

capiacutetulo 2 trata de duas fases histoacutericas importantes de Minas Gerais e que

determinaram o sistema alimentar na regiatildeo de exploraccedilatildeo de ouro ateacute meados

do seacuteculo XX as fases da mineraccedilatildeo e a fase da ruralizaccedilatildeo As situaccedilotildees

alimentares ocorridas nesses periacuteodos foram marcantes na formaccedilatildeo cultural

alimentar da regiatildeo que pesquisei O capiacutetulo 3 apresenta a discussatildeo teoacuterica

das aacutereas da antropologia da sociologia e da histoacuteria da alimentaccedilatildeo apontando

o lugar da alimentaccedilatildeo nas principais anaacutelises dessas disciplinas a discussatildeo

existente em torno do sistema alimentar a anaacutelise das diferenccedilas atribuiacutedas

entre alimento e comida em uma abordagem cultural e simboacutelica as

possibilidades de permanecircncia ou extinccedilatildeo dos sistemas tradicionais no contexto

alimentar contemporacircneo a discussatildeo sobre o tradicional e o moderno no

contexto das dinacircmicas alimentares no meio rural e por fim uma breve

discussatildeo sobre o papel feminino nas praacuteticas alimentares na famiacutelia O capiacutetulo

4 apresenta as opccedilotildees e o direcionamento metodoloacutegicos da pesquisa de

4

empiacuterica a imersatildeo em campo e os resultados e algumas das caracteriacutesticas

relativas ao perfil das famiacutelias entrevistadas O capiacutetulo 5 trata da pesquisa

empiacuterica ou seja sobre as praacuteticas alimentares das famiacutelias rurais objeto de

interesse principal desta pesquisa Atraveacutes das entrevistas semiestruturadas o

cotidiano das famiacutelias no que diz respeito a sua cultura alimentar foi relatado e

discutido agrave luz dos objetivos propostos para a pesquisa e das abordagens

teoacutericas utilizadas Concluindo teccedilo outras discussotildees nas conclusotildees sobre a

pesquisa

5

1 A REGIAtildeO DE ESTUDO

As aacutereas rurais pesquisadas estatildeo situadas nos municiacutepios de Piranga

Porto Firme e Presidente Bernardes que pertencem agrave microrregiatildeo de Viccedilosa

localizados na Zona da Mata de Minas Gerais

A Figura 1 apresenta as microrregiotildees que compotildeem a Zona da Mata e

a Figura 2 os municiacutepios que fazem parte da microrregiatildeo de Viccedilosa

Fonte IBGE (2013)

Figura 1 ndash Microrregiotildees da Zona da Mata de Minas Gerais

6

Fonte IBGE (2013)

Figura 2 ndash Microrregiatildeo de Viccedilosa Minas Gerais

11 Um breve histoacuterico de ocupaccedilatildeo da regiatildeo estudada

Segundo Venacircncio (2007) descobertas arqueoloacutegicas recentes

apontam que na ocasiatildeo do descobrimento do Brasil pelos portugueses a regiatildeo

de Minas Gerais era habitada por diferentes grupos eacutetnicos Essas pesquisas

conseguiram estabelecer uma data de povoamento com registros entre 11 mil e

12 mil anos atraacutes O autor destaca que natildeo se pode esclarecer totalmente quais

eram todos esses grupos eacutetnicos mas no que se refere aos seacuteculos XVI e XVII

pelo material arqueoloacutegico encontrado acredita-se que muitos grupos indiacutegenas

entraram em Minas Gerais vindos de aacutereas litoracircneas provavelmente fugindo

da escravidatildeo e da dominaccedilatildeo dos portugueses Ainda segundo o autor na

regiatildeo de estudo que compreende a bacia do Rio Doce e a Zona da Mata mineira

os registros apontam que aqui habitavam primeiramente os botocudos e os

puri-coroados e que mais tarde chegaram os iacutendios goitacaacute fugidos do avanccedilo

7

da colonizaccedilatildeo portuguesa no norte da capitania fluminense hoje conhecida

como Campos dos Goitacazes

Registros feitos por Joatildeo Mawe3 viajante inglecircs que esteve em Minas

Gerais entre 1809 e 1810 detalham o conflito existente tambeacutem entre os

portugueses e os botocudos que rejeitavam ceder aos objetivos de

ldquodomesticaccedilatildeordquo dos colonizadores interessados na aacuterea que jaacute havia sido

identificada como muito rica em ouro Na regiatildeo de Piranga visando garantir a

exploraccedilatildeo do ouro informa Mawe (1922) ldquoexiste uma tropa pouco numerosa

de soldados para fazer patrulhas ao longo das fronteiras reconhecimentos nos

bosques ir procurar os selvagens por toda a parte onde lhes informam que

podem encontra-losrdquo (MAWE 1922 p 60)

A ocupaccedilatildeo da regiatildeo pelos portugueses se deu a partir dos caminhos

que se abriram para a exploraccedilatildeo de ouro no local que teve iniacutecio com os

bandeirantes paulistas Resende (2007) Zemella (1951) e Teixeira (2002)

apontam que esta regiatildeo comeccedilou a ser desbravada a partir de 1693 por uma

expediccedilatildeo bandeirante que saiu de Garganta do Embauacute (regiatildeo da Serra da

Mantiqueira e divisa entre Minas Gerais e Satildeo Paulo) conduzida por Antocircnio

Rodrigues Arzatildeo Essa bandeira pretendia chegar ateacute a regiatildeo denominada

Casa da Casca que se localizava entre Viccedilosa e Abre Campo em busca de

ouro O percurso incluiu o entatildeo arraial de Guarapiranga (atual Piranga) e foi no

rio Piranga na localidade onde hoje eacute a cidade de Itaverava o primeiro lugar

onde se encontrou ouro desde o iniacutecio do referido trajeto

Os nuacutecleos urbanos primeiramente como arraiais ou vilas iam se

formando em torno das Minas e locais dos rios que pareciam mais propiacutecios a

obtenccedilatildeo de grandes quantidades de ouro conforme aponta Torres (2011 p

69)

Os bandeirantes subindo o rio instalaram-se nos vales () Sempre usaram de dois tipos de pontos de referecircncia naturais durante suas interminaacuteveis excursotildees pelas florestas Primeiro os rios cujos cursos subiam ou desciam conforme era o caso ou entatildeo os grandes picos azuis marcos lanccedilados pela natureza para indicar onde estava o ouro

Naquela eacutepoca os atuais municiacutepios de Presidente Bernardes e Porto

Firme natildeo existiam como tal e faziam parte de Guarapiranga (atual Piranga)

3 Ver Mawe (1922)

8

Com a descoberta de ouro no rio Piranga a regiatildeo passou a ser de interesse

para a mineraccedilatildeo e iniciou por consequecircncia a chegada de muitos adventiacutecios

Segundo Resende (2007) e Furtado (2000) a exploraccedilatildeo de ouro em Minas

Gerais historicamente serviu de movimentaccedilatildeo geograacutefica de grande nuacutemero

de pessoas interessadas em enriquecer em Minas Gerais

() Nesse contexto marcado por um tracircnsito volumoso e desordenado de pessoas e de mercadorias tem iniacutecio de forma precoce e espetacular a ocupaccedilatildeo das terras de mineraccedilatildeo em que a uma ldquosede insaciaacutevel do ourordquo corresponde com enorme rapidez a formaccedilatildeo de grandes fortunas e uma desordem perigosa regulada a balas de chumbo (RESENDE 2007 p 29)

Assim a regiatildeo que abrange os municiacutepios da pesquisa passou a se

inserir na dinacircmica econocircmica e social da mineraccedilatildeo Ainda segundo Resende

(2007) os territoacuterios mineiros comeccedilaram a ser ocupados primeiramente onde

havia sido encontrado ouro aos quais eram denominados como o ldquocaminho do

ourordquo Nesse trajeto era possiacutevel encontrar alguma infraestrutura de apoio como

por exemplo vendas estalagens e capelas Eacute no entorno dessas localizaccedilotildees

fiacutesicas estruturais que surgem mais tarde as pequenas vilas os arraiais e ateacute

nuacutecleos urbanos mais importantes no estado de Minas Gerais

Segundo Barbosa (1995) em 1708 o arraial de Guarapiranga sofreu as

consequecircncias da Guerra dos Emboabas conflito entre bandeirantes paulistas

e portugueses em disputa pelo controle das minas e por pouco natildeo foi destruiacutedo

durante os embates

As batalhas foram mais concentradas no lugar onde estaacute o Santuaacuterio do

Senhor Bom Jesus do Matozinhos na comunidade do ldquoBacalhaurdquo em Piranga

Neste local possui uma placa e uma escultura simboacutelica lembrando o ocorrido

Neste santuaacuterio ocorre anualmente a festa religiosa do Jubileu do Bom Jesus e

os fieacuteis (romeiros) permanecem no local por dois a trecircs dias de festejos

9

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 3 ndash Santuaacuterio de Bom Jesus de Matozinhos em Bom Jesus do Bacalhau

Com o decliacutenio da mineraccedilatildeo entre os anos de 1753 a 1756 a regiatildeo

de Guarapiranga foi intensamente povoada quando ldquoinuacutemeras sesmarias foram

concedidas nas quais se mencionavam grandes roccedilas de milho casas de

vivenda paiol senzala engenhos bananais e outras aacutervoresrdquo (BARBOSA 1995

p 254) Ocorria nesse periacuteodo o processo de fortalecimento da agricultura

seguindo um percurso que se deu em toda a regiatildeo de mineraccedilatildeo de Minas

Gerais como seraacute visto no capiacutetulo 2 sobre a fase da ruralizaccedilatildeo em Minas

Em final do seacuteculo XVIII e iniacutecio do seacuteculo XIX a regiatildeo de Guarapiranga

possuiacutea a maior populaccedilatildeo de toda a Zona da Mata mineira com forte dinamismo

econocircmico Segundo Carrara (2007) Guarapiranga abastecia a entatildeo Vila Rica

e regiatildeo com aguardente e alguns produtos agriacutecolas baacutesicos os quais o autor

natildeo detalha quais eram Mas segundo o autor natildeo houve um corte que marcou

o fim da mineraccedilatildeo e iniacutecio da fase agriacutecola na regiatildeo pois durante muitos anos

foi marcante a presenccedila concomitante das minas dos currais e das lavouras

Enquanto a agricultura se fortalecia alguns poucos aventureiros insistiam na

busca de algum sinal de ouro restante nos rios

Segundo Lemos (2012) na fase de fortalecimento da agricultura

sobretudo na primeira metade do seacuteculo XIX houve intenso fluxo migratoacuterio que

fomentou a economia agriacutecola na regiatildeo principalmente voltada para a produccedilatildeo

de aguardente rapadura e melado Segundo Godoy (2012) os engenhos se

10

concentravam sobretudo na regiatildeo do distrito de Santo Antocircnio do Calambau

hoje Presidente Bernardes que na eacutepoca era distrito de Guarapiranga (Piranga)

A prodccedilatildeo da cana de accediluacutecar perdeu forccedila ao longo do tempo e na

ocasiatildeo da pesquisa natildeo era mais atividade central na regiatildeo embora existam

alambiques e algumas marcas de aguardente conhecidas no cenaacuterio nacional

como a ldquoVelha Aroreirardquo produzida em Porto Firme e a ldquoVale do Pirangardquo

produzida em Piranga Mas o que se produz ainda de aguardente eacute de caraacuteter

quase que apenas artesanal e pequena produccedilatildeo Em presidente Bernardes

todos os anos acontece o ldquoFestival da Cachaccedilardquo guardando ainda relaccedilotildees com

a tradiccedilatildeo deste produto

Os dados do IBGE de 1980 a 2010 apontam que os municiacutepios que

compunham como distritos a antiga Guarapiranga (Piranga Presidente

Bernardes e Porto Firme) apresentam queda em sua populaccedilatildeo rural como seraacute

visto a seguir

Tambeacutem segundo informaccedilotildees do IBGE (2010) Presidente Bernardes

e Porto Firme foram emancipados de Piranga em 1953 quando Calambau

passou a se chamar Presidente Bernardes e Porto Seguro passou a se chamar

Porto Firme Ambos os municiacutepios continuam pertencendo juridicamente agrave

Comarca de Piranga

12 Informaccedilotildees atuais sobre a populaccedilatildeo rural e as principais atividades agriacutecolas dos municiacutepios pesquisados

Segundo o IBGE (2010) a microrregiatildeo de Viccedilosa possui aacuterea total de

4826137 kmsup2 Eacute composta por vinte municiacutepios com aacutereas que variam entre

65881 kmsup2 (Piranga) e 8304 kmsup2 (Cajuri) Porto Firme e Presidente Bernardes

possuem aacutereas de 28478 kmsup2 e 2368 kmsup2 respectivamente conforme

apresentado na Tabela 1

Em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo observa-se que em 50 dos municiacutepios da

microrregiatildeo a populaccedilatildeo rural ultrapassa a urbana conforme a Tabela 1 Os

trecircs municiacutepios desta pesquisa encontram-se entre aqueles que possuem

populaccedilatildeo rural maior que a urbana sendo que entre todos os municiacutepios

Presidente Bernardes e Piranga satildeo os que possuem o maior percentual de

populaccedilatildeo rural em relaccedilatildeo a urbana conforme apontado na Tabela 2

11

Tabela 1 ndash Aacuterea e populaccedilatildeo da microrregiatildeo de Viccedilosa (2015)

Municiacutepio Aacuterea (kmsup2) Densidade

demograacutefica Populaccedilatildeo

total Populaccedilatildeo

rural Populaccedilatildeo

urbana

Piranga 65881 2616 17232 11274 5958 Pres Bernardes 2368 2338 5537 3895 1642 Porto Firme 28478 3658 10417 5586 4831 Araponga 30379 2683 8152 5111 3041 Rio Espera 2386 2544 6070 3667 2403 Canaatilde 1749 2646 4628 2769 1859 Alto Rio Doce 51805 2347 12159 7089 5070 Lamim 1186 2911 3452 1941 1511 Cipotacircnea 15348 4266 6547 3533 3014 Braacutes Pires 22335 2076 4637 2414 2223 Cajuri 8304 4874 4047 1951 2096 Amparo do Serra 14591 3463 5053 2411 2642 Ervaacutelia 35749 5020 17946 8476 9470 Paula Cacircndido 26832 3455 9271 4335 4936 Satildeo Miguel do Anta 15211 4444 6790 3014 3746 Senhora de Oliveira 17075 3328 5683 2427 3256 Pedra do Anta 16345 2059 3365 1173 2192 Teixeiras 16674 6871 11355 3732 7623 Coimbra 10688 6600 7054 1898 5156 Viccedilosa 29942 2412 72220 4915 67305

Fonte IBGE - Censo Demograacutefico de 2010

Tabela 2 ndash Percentual da populaccedilatildeo urbana e rural da microrregiatildeo de Viccedilosa nas deacutecadas de 1980 a 2010 (2015)

Populaccedilatildeo ()

Municiacutepio 1980 1991 2000 2010

Urbana Rural Urbana Rural Urbana Rural Urbana Rural

Piranga 197 803 237 763 299 701 346 654 Pres Bernardes 121 879 154 846 233 767 297 703 Porto Firme 23 77 293 707 411 589 463 537 Araponga 166 834 208 792 32 68 373 627 Rio Espera 264 736 268 732 322 678 396 604 Canaatilde 174 826 207 793 297 703 401 599 Alto Rio Doce 222 778 28 72 354 646 417 583 Lamim 226 774 287 713 38 62 438 562 Cipotacircnea 197 803 26 74 381 619 46 54 Braacutes Pires 153 847 24 76 353 647 48 52 Cajuri 387 613 46 54 546 454 518 482 Amparo Serra 246 754 35 65 458 542 522 478 Ervaacutelia 263 737 323 673 444 556 528 472 Paula Cacircndido 286 714 362 638 43 57 532 468 Satildeo Miguel Anta 389 611 44 56 501 499 554 446 Senhora Oliveira 363 637 451 549 482 518 572 428 Pedra do Anta 232 768 373 627 53 47 651 349 Teixeiras 445 555 533 467 623 377 671 329 Coimbra 456 544 54 46 539 466 73 30 Viccedilosa 806 194 90 10 921 79 931 69

Fonte IBGE - Censos Demograacuteficos de 1980 1991 2000 e 2010

12

A reduccedilatildeo da populaccedilatildeo rural eacute observada em todos os 20 municiacutepios

conforme mostra a Tabela 2 que apresenta informaccedilatildeo demograacutefica da

microrregiatildeo de Viccedilosa nas uacuteltimas trecircs deacutecadas segundo IBGE (2010) Esta

microrregiatildeo encontra-se proporcionalmente dividida em 50 de municiacutepios com

populaccedilatildeo urbana maior do que a rural e 50 em situaccedilatildeo inversa

Nos trecircs municiacutepios desta pesquisa a populaccedilatildeo rural vem diminuindo

ao longo das uacuteltimas deacutecadas Em Piranga Presidente Bernardes e Porto Firme

a populaccedilatildeo rural correspondia a 803 879 e 77 em 1980

respectivamente caindo para 655 703 e 537 respectivamente em 2010

Apesar disso Presidente Bernardes permanece sendo o municiacutepio com maior

populaccedilatildeo residente no campo na microrregiatildeo de Viccedilosa ao longo desse

periacuteodo seguido por Piranga que aparece como o segundo maior municiacutepio com

populaccedilatildeo rural no Censo de 2010 Alguns estudos apontam para a reduccedilatildeo da

populaccedilatildeo rural em outras partes do paiacutes e do mundo como Alves e Marra

(2009) Nunes (2007) ONU (2014) Camarano e Beltratildeo (2000) e Camarano e

Abramovay (1998)

As Tabelas 3 e 4 apontam que a populaccedilatildeo que compreende a faixa

etaacuteria de 30 a 50 anos eacute a maior na aacuterea rural nos trecircs municiacutepios e a populaccedilatildeo

idosa4 apresenta o menor nuacutemero de pessoas residentes no campo

Tabela 3 ndash Populaccedilatildeo rural por diferentes faixas etaacuterias

Municiacutepio Populaccedilatildeo

rural 1 - 14 anos 15 - 29 anos 30 - 59 anos

Acima de 60 anos

Piranga 11274 2748 3203 3751 1308 Pres Bernardes 3895 845 856 1421 610 Porto Firme 5586 1338 1378 2322 780 Total 20755 4931 5437 7494 2698

Fonte IBGE ndash Censo Demograacutefico 2010

Os dados da Tabela 4 mostram que o maior percentual de populaccedilatildeo

idosa se encontra em Presidente Bernardes mas natildeo se destaca em relaccedilatildeo

aos demais municiacutepios Neste municiacutepio tambeacutem estaacute o menor percentual da

4 Puacuteblico considerado acima de 60 anos de idade de acordo com Organizaccedilatildeo Mundial de Sauacutede

13

populaccedilatildeo jovem5 O maior percentual de populaccedilatildeo adulta (30-59 anos)

encontra-se em Porto Firme A maior diferenccedila entre o percentual de populaccedilatildeo

jovem e adulta encontra-se em Porto Firme e a menor em Piranga O percentual

da populaccedilatildeo adulta eacute superior agrave populaccedilatildeo idosa nos trecircs municiacutepios mas se

destaca em Porto Firme As informaccedilotildees das tabelas seratildeo retomadas no item

46 deste trabalho

Tabela 4 ndash Percentual da populaccedilatildeo rural por diferentes faixas etaacuterias ()

Municiacutepio Populaccedilatildeo

rural 1 - 14 anos 15 - 29 anos 30 - 59 anos

Acima de 60 anos

Piranga 11274 243 284 333 116

Pres Bernardes 3895 217 220 364 155

Porto Firme 5586 239 246 415 140

Fonte IBGE ndash Censo Demograacutefico 2010

13 Atividades produtivas

Nos municiacutepios onde foi realizado o trabalho de campo predominam

pequenas e meacutedias propriedades e produccedilatildeo em pequena escala basicamente

para consumo com venda do excedente Os tipos de produccedilatildeo natildeo sofrem

variaccedilotildees importantes entre os trecircs municiacutepios seja em tipo de produccedilatildeo seja

em quantidade produzida

Presidente Bernardes Dados do Relatoacuterio final do Plano Municipal de

Saneamento Baacutesico de Presidente Bernardes (2015) e da Emater local apontam

como principais atividades agropecuaacuterias do municiacutepio a cafeicultura a extraccedilatildeo

de carvatildeo vegetal em pequena escala e a pecuaacuteria leiteira de pequeno porte

Haacute ainda a fabricaccedilatildeo agroindustrial em pequenos alambiques de aguardente e

uma empresa de fabricaccedilatildeo de queijo Aleacutem desses os dados do IBGE (2006)

apontam tambeacutem a produccedilatildeo de milho feijatildeo cana de accediluacutecar suinocultura e

avicultura

5 Faixa etaacuteria entre 15 a 29 anos de idade definida no Estatuto da Crianccedila e do Adolescente (ECA) e

Estatuto da Juventude no Brasil como a que corresponde agrave categoria de juventude

14

Porto Firme Dados do Relatoacuterio final do Plano Municipal de

Saneamento Baacutesico de Porto Firme (2015) e da Emater local apontam como

principais atividades agropecuaacuterias do municiacutepio Pecuaacuteria leiteira cafeicultura

extraccedilatildeo de carvatildeo vegetal e lavoura de feijatildeo No municiacutepio tambeacutem haacute

produccedilatildeo de aguardente artesanal por pequenos alambiques Aleacutem desses os

dados do IBGE (2006) apontam a produccedilatildeo de milho feijatildeo cana de accediluacutecar

suinocultura e avicultura

Piranga Dados do Relatoacuterio Anual da Emater Local (2014) e do IBGE

(2006) apontam como principais atividades agropecuaacuterias do municiacutepio

extraccedilatildeo de carvatildeo vegetal cafeicultura pecuaacuteria leiteira milho e feijatildeo cana de

accediluacutecar suinocultura e avicultura

Segundo as famiacutelias entrevistadas envolvidas na atividade de extraccedilatildeo

de carvatildeo vegetal esta atividade vem substituindo aos poucos a cafeicultura

nos uacuteltimos anos em funccedilatildeo do seu retorno financeiro mais favoraacutevel aos

agricultores aliado ao fato desta atividade lhes ser menos trabalhosa

A regiatildeo rural dos municiacutepios onde foi feita a pesquisa manteacutem muito de

suas caracteriacutesticas tradicionais em vaacuterios aspectos da alimentaccedilatildeo como seraacute

visto neste trabalho Mas tambeacutem na forma de produccedilatildeo transporte e

armazenamento dos produtos A Figura 4 mostra algumas dessas peculiaridades

observadas Segundo Martins (2008 p 26) a inserccedilatildeo das fotografias ldquoeacute um

recurso que amplia e enriquece a variedade de informaccedilotildees de que o

pesquisador pode dispor para reconstruir e interpretar determinada realidade

socialrdquo

A Figura 4 mostra a produccedilatildeo de um casal de aposentados que mora

sozinho Eles executam poucos serviccedilos no siacutetio Um de seus filhos mora na

cidade de Piranga e os outros em outras cidades mais distantes O casal paga

por serviccedilos de plantio e colheita do milho e do feijatildeo A quantidade de milho eacute

muito pequena apenas para uso local A Figura 4a mostra parte do milho no

paiol e a Figura 4b mostra parte do milho jaacute debulhado secando ao sol no quintal

para depois ser processado no moinho eleacutetrico para a produccedilatildeo de fubaacute

15

(a) (b)

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 4 ndash Milho colhido no siacutetio de Anita e Gilberto na comunidade de Manja em Piranga

Muitas estradas das comunidades mais distantes ainda contam com

muitas porteiras que ficam fechadas Eacute o caminho por onde se transita o veiacuteculo

automotor mas ela atende principalmente agrave loacutegica rural tradicional Quem

precisa transitar deve descer do veiacuteculo abrir as porteiras e fechaacute-las ao

atravessar A Figura 5 por exemplo registrada na estrada da comunidade de

Manja em Piranga mostra uma forma tradicional de transportar as espigas de

milho do roccedilado para o paiol mas ainda muito usada na regiatildeo Havia trecircs

pessoas fazendo esse transporte uma pessoa em cima da carroccedila e outros dois

candiando os bois e abrindo e fechando as porteiras

A Figura 6 mostra um engenho de cana que estava sem uso no ano de

2015 pela baixa produccedilatildeo de cana neste ano no siacutetio de Lola e Marcos em

Presidente Bernardes Nele se produz rapadura e melado que eacute vendida para o

comeacutercio de Presidente Bernardes e tambeacutem para os vizinhos das proximidades

16

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 5 ndash Carro de boi transportando espigas de milho da roccedila para o paiol na estrada da comunidade de Manja em Piranga

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 6 ndash Engenho de produccedilatildeo de rapadura no siacutetio de Lola e Marcos na comunidade Xopotoacute Presidente Bernardes

As caracteriacutesticas rurais dos trecircs municiacutepios satildeo muito semelhantes

tanto no que se refere agrave forma de produccedilatildeo agriacutecola quanto na cultura e no perfil

populacional cuja populaccedilatildeo rural supera a urbana Sendo uma regiatildeo cuja

formaccedilatildeo ocorreu a partir da mineraccedilatildeo muitas de suas caracteriacutesticas ainda

estatildeo ligadas a esse processo histoacuterico Outras peculiaridades sobre o perfil das

17

famiacutelias seratildeo apresentadas no capiacutetulo 4 No sistema alimentar o que se

praticava produzia e o que era consumido na fase da mineraccedilatildeo teve influecircncia

na manutenccedilatildeo de muitas das praacuteticas existentes atualmente na regiatildeo onde foi

feita a pesquisa Sobre o que representou a alimentaccedilatildeo na fase da mineraccedilatildeo

e da ruralizaccedilatildeo no periacuteodo de formaccedilatildeo dessa regiatildeo eacute o que seraacute tratado no

proacuteximo capiacutetulo

18

2 A COMIDA EM MINAS GERAIS DA ESCASSEZ Agrave FARTURA

Arruda (1990) destaca em Minas Gerais duas fases muito importantes

para a sua formaccedilatildeo histoacuterica e cultural a primeira eacute a do ciclo da mineraccedilatildeo

que teve iniacutecio no final do seacuteculo XVII e segue ateacute o final do seacuteculo XVIII Neste

periacuteodo a vida urbana emerge com uma intensa movimentaccedilatildeo a segunda fase

eacute a chamada ldquoruralizaccedilatildeordquo que se inicia ao final do seacuteculo XVIII justamente com

o decliacutenio da mineraccedilatildeo seguindo ateacute o iniacutecio do seacuteculo XX Segundo a autora

na segunda fase as aacutereas rurais (as fazendas) passam a ter maior valorizaccedilatildeo

se tornando o ldquomicrocosmo do universo material social e culturalrdquo (ARRUDA

1990 p 135) Aleacutem das duas principais fases a autora destaca uma terceira fase

em Minas que se configura a partir dos meados do seacuteculo XX com a

industrializaccedilatildeo

Para a autora as duas primeiras fases representam formas de

sociabilidade muito peculiares que se expressam nas praacuteticas alimentares

desses periacuteodos e que tiveram influecircncia direta na formaccedilatildeo dos haacutebitos

alimentares em Minas Gerais haacutebitos que se perpetuaram ateacute o periacuteodo

contemporacircneo sendo relevantes para este trabalho Essas informaccedilotildees

ajudaratildeo a analisar se as praacuteticas alimentares comuns a estas fases em Minas

continuam presentes sendo praticadas pelas famiacutelias rurais pesquisadas neste

trabalho

Antes de discutir especificamente as questotildees alimentares relativas agraves

duas fases eacute importante realizar uma sucinta passagem pelo contexto alimentar

no Brasil colonial

21 Contextualizando o lugar da comida no Brasil Colonial nos primoacuterdios

Segundo Panegassi (2013) o colonizador europeu estabeleceu uma

relaccedilatildeo etnocecircntrica com o territoacuterio natural americano e isso se deu tambeacutem e

principalmente em relaccedilatildeo agrave alimentaccedilatildeo No seacuteculo XVI ele natildeo encontrava em

territoacuterios da colocircnia os alimentos que estava habituado a consumir em Portugal

vivenciando assim uma realidade na qual o autor denomina de ldquoescassez

culturalrdquo de alimentos (p 14) O autor cita o exemplo da carta de Joatildeo de Mello

Cacircmara a Dom Joatildeo III por volta de 1530 quando este rei estabeleceu que a

19

colonizaccedilatildeo seria baseada na expansatildeo da ocupaccedilatildeo das terras atraveacutes das

capitanias hereditaacuterias Mello Cacircmara informa a Dom Joatildeo III que traria para a

colocircnia homens de Portugal para cultivarem alimentos mais comuns aos

portugueses evitando mudanccedilas draacutesticas de seus haacutebitos alimentares pois

considerava os alimentos originaacuterios da Colocircnia inferiores para o consumo dos

portugueses

No entanto por mais que os colonizadores portugueses tenham tido

dificuldade em se habituar ao consumo de alimentos aqui disponiacuteveis foi preciso

se render a eles como tambeacutem aponta Freyre (1964)

A adaptaccedilatildeo foi o caminho obrigatoacuterio como destaca Panegassi (2013

p 70)

No acircmbito de uma situaccedilatildeo na qual um grande nuacutemero de pessoas eacute inserido em um novo ambiente cultural ainda que os receacutem-chegados procurem preservar seus padrotildees culturais de origem a necessidade de sobreviver impotildee inuacutemeros ajustes principalmente nos primeiros anos de presenccedila na nova aacuterea

Nesse sentido Holanda (1995) afirma que o interesse pela aventura

pela obtenccedilatildeo de tiacutetulos de posiccedilatildeo social e de prosperidade econocircmica servia

como estiacutemulo para o ldquosacrifiacuteciordquo da adaptaccedilatildeo Os portugueses tentaram

portanto recriar aqui condiccedilotildees de sobrevivecircncia e de adaptaccedilatildeo com poucas

exigecircncias ldquoOnde lhes faltasse o patildeo de trigo aprendiam a comer o da terra

() soacute consumiam farinha de mandioca fresca feita no dia Habituaram-se

tambeacutem a dormir em redes agrave maneira dos iacutendios e a beber e a mastigar fumordquo

(HOLANDA 1995 p 47)

De acordo com Panegassi (2013) os padres jesuiacutetas preferiam comer o

patildeo de mandioca e as bebidas existentes na colocircnia do que os que vinham de

Portugal em navios pois a viagem era longa e os alimentos armazenados

inadequadamente Era comum que os produtos como os patildees chegassem

estragados ao destino ou seja sem condiccedilotildees de serem ingeridos Assim Mello

(1975 apud PANEGASSI 2013 p 104) conclui que

A mudanccedila que se processaraacute nos haacutebitos dieteacuteticos do portuguecircs colonizador do Brasil ou do portuguecircs colonizador de outras aacutereas tropicais eacute menos o resultado de uma capacidade especial de amoldaccedilatildeo do que da impossibilidade de obter um suprimento regular e abundante de trigo e outros viacuteveres de origem europeia

20

Dessa maneira num contexto de convivecircncia cultural e de costumes foi

se estabelecendo ao longo do processo de colonizaccedilatildeo brasileira a conformaccedilatildeo

inicial dos haacutebitos alimentares baseados na miscigenaccedilatildeo cultural alimentar

recebendo posteriormente a influecircncia africana com a chegada dos escravos

conforme seraacute tratado mais agrave frente Os alimentos autoacutectones inicialmente foram

os mais consumidos sobretudo a mandioca por substituir o trigo para a

elaboraccedilatildeo de patildees e bolos No entanto na regiatildeo de mineraccedilatildeo em Minas

Gerais ndash aacuterea de pesquisa deste trabalho ndash o milho e natildeo a mandioca foi

preponderante na alimentaccedilatildeo Como seraacute mostrado mais agrave frente o milho teve

papel fundamental natildeo apenas para alimentaccedilatildeo animal mas tambeacutem para

alimentar os escravos que trabalhavam nas lavras que o ingeriam segundo

Cacircmara Cascudo (2004) na forma de papa angu e canjica Segundo o mesmo

autor foram as mulheres portuguesas que criaram a receita da broa e do pudim

de milho que se tornaram e permanecem pratos tiacutepicos em Minas Gerais

Segundo Torres (2011 p100)

O mineiro nunca usou patildeo da ldquofarinha de paurdquo (mandioca) o patildeo da terra dos primeiros seacuteculos da colonizaccedilatildeo Sempre preferiu o angu os soacutelidos bolos de fubaacute e o cobu enrolado em folha de bananeira Para misturar o feijatildeo usou sempre a farinha de milho (o milho seco socado no monjolo e depois torrado) o angu a farinha de moinho As classes pobres usavam a ldquocanjiquinhardquo subproduto de despolpaccedilatildeo do milho com muito ecircxito para substituir o arroz

A carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei em 1500 aponta algumas

peculiaridades sobre a primeira percepccedilatildeo sobre alimentaccedilatildeo Os portugueses

ofereceram aos iacutendios ldquopatildeo (de trigo) peixe cozido (com condimentos)

confeitos mel massa de ovos figos passados e vinho de uvas mas os iacutendios

natildeo quiseram comer quase nadardquo (BORGES 2014 p 204) Segundo Cacircmara

Cascudo (2004) as novidades para os iacutendios era o patildeo de trigo massa de ovos

os condimentos incluindo o sal o accediluacutecar e finalmente o vinho feito de uvas

apesar de jaacute produzirem bebidas fermentadas a partir do milho da mandioca e

de frutas

A rejeiccedilatildeo dos iacutendios sinaliza que natildeo foi apenas da parte dos

portugueses que houve inicial rejeiccedilatildeo aos novos alimentos e haacutebitos

alimentares como registrado na carta de Mello Cacircmara a Dom Joatildeo III citado

anteriormente Os iacutendios tambeacutem expressaram seu interesse em manter seus

proacuteprios haacutebitos alimentares desconsiderando os alimentos vindos de Portugal

21

Segundo Cacircmara Cascudo (2004) animais como boi vaca porco

galinha cabra e ovelha foram introduzidos pelos portugueses bem como os

cultivos de arroz feijatildeo e verduras pela implantaccedilatildeo de hortas Registros do

padre jesuiacuteta Fernatildeo Cardim que chegou em 1584 descreve a existecircncia de

ldquoalface aboacutebora couve pepino nabos mostarda hortelatilde coentros endros

funchos ervilhas gergelim cebolas alhos e outros legumes que do Reino se

trouxeram que se datildeo bem na terrardquo (CARDIM 1939 p 94)

A partir do que eacute apresentado por Cacircmara Cascudo (2004) e Freyre

(1964) eacute possiacutevel verificar ainda os haacutebitos alimentares dos escravos africanos

que foram trazidos para a colocircnia em meados do seacuteculo XVI primeiramente

inseridos no trabalho dos engenhos de cana e algodatildeo e posteriormente na

mineraccedilatildeo e fazendas de gado

Segundo Cacircmara Cascudo (2004) quase todos escravos eram

obrigados a se alimentar da dieta que lhes era fornecida assim a possibilidade

de escolha do que comer era praticamente nula Eram melhor alimentados

apenas durante a viagem de navio ateacute chegar em terras brasileiras pois

precisariam estar em boas condiccedilotildees para serem revendidos

A refeiccedilatildeo consiste durante a viagem em feijatildeo farinha de milho e de mandioca agraves vezes tambeacutem peixe salgado Sua bebida eacute aacutegua e de quando em quando tambeacutem um pouco de aguardente Sendo levados do Brasil esses gecircneros teriam deterioraccedilatildeo raacutepida e natural (MARTIUS 21 apud CAcircMARA CASCUDO 2004 p 200)

Uma vez instalados nas aacutereas a que foram destinados na colocircnia a

alimentaccedilatildeo do europeu natildeo mudava significativamente Poreacutem em Minas

Gerais era comum a destinaccedilatildeo de pequenas parcelas de terra para que

escravos cultivassem vegetais de sua preferecircncia proacuteximo agraves senzalas

provendo uma alimentaccedilatildeo melhor pelo menos mais diversificada (CAcircMARA

CASCUDO 2004 GUIMARAtildeES REIS 2007) Citando relatos de Gabriel Soares

de Souza que esteve na Bahia de 1570 a 1587 e de Joatildeo Mauricio Rugendas

que passou pelo Brasil de 1821 a 1835 Cacircmara Cascudo (2004) relata que

nesses roccedilados os escravos podiam trabalhar em dias santos e em dias de festa

na casa-grande Era dado aos escravos pequenas parcelas de terra onde eles

podiam cultivar alimentos de seu interesse de consumo

Dessa forma as roccedilas de subsistecircncia aleacutem de contribuiacuterem para reduzir os custos de manutenccedilatildeo da matildeo de obra ao complementarem

22

a alimentaccedilatildeo fornecida pelos senhores criavam um espaccedilo proacuteprio para os escravos contribuindo assim para a prevenccedilatildeo de fugas e revoltas (GUIMARAtildeES REIS 2007 p 330)

A possibilidade de cultivar algumas roccedilas de alimentos preferidos na

cultura africana segundo Cacircmara Cascudo e Gilberto Freyre explica a inserccedilatildeo

de muitas plantas africanas que de alguma maneira os escravos conseguiram

transportaacute-las para o Brasil durante sua viagem Isso tambeacutem permitiu a

inserccedilatildeo de algumas peculiaridades das praacuteticas alimentares africanas na

formaccedilatildeo da comida brasileira atraveacutes das cozinheiras e tambeacutem embora mais

raramente dos cozinheiros que atuavam nas casas-grandes Segundo Freyre

(1964) pode-se atribuir a eles a introduccedilatildeo dos seguintes ingredientes

alimentos e modos de fazer na culinaacuteria brasileira

Azeite-de-dendecirc pimenta malagueta quiabo maior uso da banana variedade de formas de preparar a galinha e o peixerdquo (p 634) Dentro da extrema especializaccedilatildeo de escravos no serviccedilo domeacutestico das casas-grandes reservaram-se sempre dois agraves vezes trecircs indiviacuteduos aos trabalhos de cozinha (FREYRE 1964 p 634)

Freyre (1964) aponta que as influecircncias se deram primeiramente e mais

fortemente nos estados do Nordeste (Bahia Pernambuco e Maranhatildeo) em

funccedilatildeo dos trabalhos nos engenhos da regiatildeo Na Bahia foi muito marcante a

inserccedilatildeo das vendas dos quitutes doces e salgados em tabuleiros ou gamelas

pelas ruas sobretudo pelas mulheres alforriadas mas tambeacutem havia aquelas

que vendiam para reverter a renda agrave sua lsquosinhaacutersquo6 ldquoQuindim cocada sequilhos

mocotoacutes vatapaacutes mingaus pamonhas canjicas acaccedilaacutes abaraacutes arroz-de-coco

feijatildeo-de-coco angus patildeo-de-loacute de arroz patildeo-de-loacute de milho rebuccedilados7rdquo (p

636) Este autor afirma que os dois pratos de origem africana que mais fizeram

sucesso na mesa da casa-grande foram o vatapaacute e o caruru

Com a chegada da Corte Portuguesa em 1808 segundo Cacircmara

Cascudo (2004) Holanda (1995) e Ribeiro (2014) algumas alteraccedilotildees

importantes comeccedilaram a ocorrer no plano alimentar dos mais ricos com a

vinda inclusive de cozinheiros particulares com seus livros de receitas Criaram-

se modismos que tiveram influecircncia principalmente no Rio de Janeiro Um deles

6 No capiacutetulo 3 deste trabalho faccedilo uma discussatildeo mais detalhada sobre o papel das mulheres iacutendias

africanas e portuguesas na formaccedilatildeo da culinaacuteria brasileira 7 Como os portugueses se referem ao doce ldquobalardquo

23

foi a ampliaccedilatildeo do consumo de produtos importados da Europa e o estilo francecircs

de comer

Importava-se conservas doces frutos processados salsichas presuntos manteiga queijo chaacute e temperos () Desde entatildeo os haacutebitos agrave mesa se europeizaram os ideais alimentares e de paladar se tornaram cada vez mais semelhantes aos franceses berccedilo da gastronomia como a conhecida hoje (RIBEIRO 2014 p 50-51)

Freyre (1964) descreve informaccedilotildees dos livros de receitas dos

cozinheiros que vieram de Portugal e que passaram a inserir as novas praacuteticas

alimentares importadas para os mais abastados como a substituiccedilatildeo da gordura

pela manteiga francesa nas frituras diversas o reduzido uso da feijoada e dos

guisados do uso da pimenta e de outros condimentos picantes O proacuteprio trigo

antes uma raridade passou a chegar com maior facilidade e iniciando-se a

produccedilatildeo do patildeo de trigo tatildeo caracteriacutestico em Portugal e que passou a ser

muito consumido tambeacutem no Brasil

Em vez do aluaacute da garapa de tamarindo do caldo de cana ndash o chaacute agrave inglesa em vez de farinha do piratildeo ou do quibebe ndash a batata chamada inglesa Juntando-se a tudo isso o requinte do gelo Manteiga francesa batata inglesa chaacute tambeacutem agrave inglesa gelo ndash tudo isso agiu no sentido da desafricanizaccedilatildeo da mesa brasileira que ateacute os primeiros anos de independecircncia estivera sob maior influecircncia da Aacutefrica e dos frutos indiacutegenas (FREYRE 1964 p 642)

As influecircncias de outras culturas continuaram a se expandir a partir de

metade do seacuteculo XIX com a chegada de novos imigrantes ndash principalmente

italianos alematildees espanhoacuteis japoneses e siacuterio-libaneses ndash novos elementos da

culinaacuteria tiacutepica desses grupos eacutetnicos foram se incorporando a jaacute miscigenada

comida brasileira Na contemporaneidade a influecircncia alimentar mais relevante

de uma cultura externa eacute a norte-americana Poreacutem no seacuteculo XX o hibridismo

alimentar natildeo mais ocorre necessariamente pela intensidade da imigraccedilatildeo mas

sobretudo pela influecircncia da globalizaccedilatildeo Ao facilitar a divulgaccedilatildeo o transporte

e a aquisiccedilatildeo de alimentos de outros paiacuteses esse processo propiciou a

introduccedilatildeo constante de novas praacuteticas e haacutebitos alimentares

Apoacutes a breve introduccedilatildeo sobre os haacutebitos alimentares formados no Brasil

colonial passo a tratar especificamente da regiatildeo de Minas Gerais onde se deu

a fase mineradora regiatildeo na qual estatildeo inseridos os municiacutepios pesquisados

24

22 Fase da mineraccedilatildeo em Minas Gerais escassez de alimentos

O ciclo da mineraccedilatildeo foi muito importante para a economia da colocircnia

portuguesa e iniciou-se apoacutes a quase estagnaccedilatildeo do ciclo do accediluacutecar no final do

seacuteculo XVII Teve seu apogeu em Minas Gerais no seacuteculo XVIII e nesta fase

por determinaccedilatildeo da Coroa Portuguesa toda a matildeo de obra deveria estar

voltada basicamente agrave extraccedilatildeo de ouro e diamante Paula (2007) menciona que

a mineraccedilatildeo foi uma atividade central e decisiva na peculiaridade histoacuterica da

regiatildeo onde ela ocorreu Segundo o autor algumas caracteriacutesticas dessa

atividade foram a rapidez e amplitude com que a regiatildeo foi ocupada O intenso

fluxo imigratoacuterio gerado pela quantidade de ouro e seu preccedilo transformou-a na

Capitania mais populosa do periacuteodo colonial ao imperial Por sua importacircncia

econocircmica e dinamismo da atividade Minas Gerais teve o maior nuacutemero de

escravos da Ameacuterica Portuguesa

O fato de ser ele mesmo o ouro dinheiro em sua forma mais universal teraacute decisivo impacto sob o grau de dinamismo e mercantilizaccedilatildeo da economia mineira A riqueza decorrente da atividade induziraacute o Estado portuguecircs a efetivamente implantar a maacutequina estatal da colocircnia agrave qual seraacute durante muito tempo apenas fisco poliacutecia e justiccedila Satildeo essas dimensotildees que vatildeo determinar o desenvolvimento em Minas Gerais de uma estrutura urbana de uma certa vida poliacutetica e cultural em nada triviais no contexto colonial (PAULA 2007 p 279)

Assim a atividade mineradora fez surgir em Minas Gerais primeiramente

uma sociedade urbana baseada na extraccedilatildeo de ouro e diamantes com a

formaccedilatildeo de pequenos povoados e arraiais Segundo Zemella (1951) ldquoos

arraiais mineiros cresceram tatildeo vertiginosamente que em poucos anos muitos

deles atingiram a dignidade de vila Surgiram primeiramente Mariana Vila Rica

Caeteacute Sabaraacute Vila do Priacutencipe Arraial do Tijuco e outrosrdquo (ZEMELLA 1951 p

46) Nesses ldquooutrosrdquo citados pela autora estaacute incluiacuteda a vila de Guarapiranga

(atuais municiacutepios de Piranga Porto Firme e Presidente Bernardes) como jaacute foi

mencionado

Em funccedilatildeo disso analisa Cacircmara Cascudo (2004) com um contingente

elevado de pessoas que chegavam tanto do litoral da Colocircnia como tambeacutem de

Portugal em busca das riquezas minerais a escassez de alimento foi um fator

marcante nesse periacuteodo jaacute que se plantava muito pouco e boa parte da comida

25

era trazida por tropeiros8 a preccedilos elevados Aleacutem disso demorava a chegar

devido agraves dificuldades das tropas em avanccedilar pelas matas e estradas de difiacutecil

acesso

O excesso de ouro mal enfrentava o exageradiacutessimo preccedilo dos gecircneros alimentiacutecios transportados de longe porque natildeo havia vontade e tempo para plantar cereais Garimpeiros e faiscadores9 tinham que comprar qualquer elemento para compor a menor refeiccedilatildeo Toda a escravaria estava ocupada no desmonte das terras e lavagem do ouro (CAcircMARA CASCUDO 2004 p 208)

Segundo Frieiro (1982) e Paula (2007) as crises de abastecimento foram

graviacutessimas e causaram muitas mortes por fome aleacutem da acelerada alta de

preccedilos dos alimentos Magalhatildees (1978) aponta duas grandes crises de fome a

de 1697-1698 e a de 1700-1701 Essas crises propiciaram uma dispersatildeo

populacional do centro da regiatildeo mineradora ldquoOs primeiros habitantes natildeo

pensavam em perder tempo nas canseiras do amanho e plantio da terra A falta

de caminhos agravava sobremaneira o problema do abastecimentordquo (FRIEIRO

1982 p 56)

Segundo o autor tinha-se assim uma alimentaccedilatildeo de baixo valor

proteico Para minimizar isso comia-se o ldquobicho da taquarardquo assado ou torrado

Alimento que jaacute era consumido pelos indiacutegenas

O que comia o faisqueiro na sua lavra Comia do pouco que se plantava nas roccedilas Milho feijatildeo farinha de mandioca e alguma fruta da terra eram o cotidiano sustento dos mineradores O escravo negro pau para toda obra armava o tripeacute de varas fincado no chatildeo e pendurava nele o caldeiratildeo de ferro em que cozinhava o feijatildeo com toucinho servido em pratos de estanho Estendia-se a farinha ao sol numa toalha e ao lado natildeo faltava o ancorote de aacutegua ou aguardente Galinha ovos e doces quando os havia muito raros eram tudo por preccedilo da hora da morte (FRIEIRO 1982 p 57)

A partir disso pela necessidade de manter a atividade e portanto de

manter alimentados os homens para o trabalho o rei ordena a importaccedilatildeo de

carne de boi para Minas vinda de Satildeo Paulo Curitiba sertotildees da Bahia e

Pernambuco Essas regiotildees natildeo possuiacuteam grande plantel mas passaram a

ampliar a produccedilatildeo para atender agrave demanda mineira A carne chegava cara e

8 Uma importante e movimentada rota de comercializaccedilatildeo para abastecer a regiatildeo de suprimentos gerais e

comida surge da exploraccedilatildeo de ouro e diamante Detalhes dessa rota comercial por ser visto em Zemella (1951)

9 Muito comuns na mineraccedilatildeo os faiscadores eram homens livres e pobres havendo mesmo escravos entre eles que entregavam quantia fixa de ouro ao senhor e guardavam o eventual excedente (VAINFAS 2001 p 398)

26

tambeacutem tinha seu preccedilo elevado nas regiotildees de origem jaacute que se priorizava a

exportaccedilatildeo para Minas Apesar da escassez de comida representar um aspecto

negativo para Minas Gerais ela contribuiu para a expansatildeo do mercado de

outras regiotildees do paiacutes que investiram no abastecimento de alimentos da aacuterea de

mineraccedilatildeo conforme aponta Furtado (2000)10

Segundo Zemella (1951) apesar do empenho de Satildeo Paulo e das outras

regiotildees em fazer chegar a carne ateacute as Minas Gerais havia irregularidades no

fornecimento Em funccedilatildeo disso usava-se muito da carne de caccedila e de todo o

tipo de alimento que se poderia obter nas matas aleacutem do pouco que colhiam nas

pequenas roccedilas para subsistecircncia insuficiente para atender a demanda de todos

os trabalhadores que viviam na regiatildeo dedicada agrave mineraccedilatildeo

A situaccedilatildeo de inseguranccedila alimentar grave que se instalava e a grande

dificuldade na obtenccedilatildeo da carne bovina ldquoestimulou o governo metropolitano agrave

formaccedilatildeo de uma zona pecuarista em torno das minas distribuindo sesmarias

em profusatildeo sempre sob a condiccedilatildeo de os agraciados instalarem curraisrdquo

(ZEMELLA 1951 p 192) O objetivo era tambeacutem que com o tempo a produccedilatildeo

de gado se tornasse suficiente para natildeo mais haver comeacutercio com a Bahia

visando fechar os canais por onde escoava o contrabando de ouro

A outra accedilatildeo do governo da qual trata a autora foi instituir a criaccedilatildeo de

suiacutenos onde houvesse espaccedilo para tal Assim passou a ser frequente entre os

mineiros a implantaccedilatildeo de chiqueiros rudimentares no quintal das casas mesmo

nas casas urbanas Surge a partir dessa situaccedilatildeo a preferecircncia pela carne suiacutena

na dieta do mineiro da regiatildeo de mineraccedilatildeo11 carne que estaacute presente na maior

parte das receitas consideradas mineiras ainda nos dias atuais

Outra medida por parte da Coroa para garantir a subsistecircncia interna e

certa autonomia ao longo desse periacuteodo de mineraccedilatildeo foi a criaccedilatildeo da ldquoOrdem

10 A pecuaacuteria que encontrara no Sul um habitat excepcionalmente favoraacutevel para desenvolver-se - e que

natildeo obstante sua baixiacutessima rentabilidade subsistia graccedilas agraves exportaccedilotildees de couro ndash passaraacute por uma verdadeira revoluccedilatildeo com o advento da economia mineira O gado do Nordeste cujo mercado definhava com a decadecircncia da economia accedilucareira tende a deslocar-se em busca do florescente mercado da regiatildeo mineira Outra caracteriacutestica de profundas consequecircncias para as regiotildees vizinhas radicava em seu sistema de transporte A tropa de mulas constitui autecircntica infraestrutura de todo o sistema A quase inexistecircncia de abastecimento local de alimentos a grande distacircncia por terra que deveriam percorrer todas as mercadorias importadas a necessidade de vencer grandes caminhadas em regiatildeo montanhosa para alcanccedilar os locais de trabalho tudo contribuiacutea para que o sistema de transporte desempenhasse um papel baacutesico no funcionamento da economia Criou-se assim um grande mercado para animais de carga (FURTADO 2000 p 81)

11 Nas regiotildees do norte de Minas Gerais outros tipos de carne satildeo mais comuns por exemplo a carne de sol em que se usa mais frequentemente a carne de boi

27

Reacutegia de 27 de fevereiro de 1777rdquo que tornou obrigatoacuterio o cultivo nas aacutereas

rurais em quantidade suficiente para abastecimento de mandioca feijatildeo e milho

considerados alimentos baacutesicos naquela eacutepoca

O milho que na regiatildeo das Minas Gerais passou a ser mais importante

para consumo humano12 do que a mandioca tinha como derivados pipoca

curau pamonha farinha cuscuz biscoitos bolos cerveja de milho verde

aguardente canjica ldquoque os ricos comiam por gosto e os pobres por

necessidaderdquo (FRIEIRO 1982 p 57) Isso porque estes derivados eram

consumidos apenas pelos proprietaacuterios das terras e outros poucos abastados

Segundo Saint-Hilaire (1938) e Frieiro (1982) aos escravos soacute era dado o angu

que durante muito tempo foi a base de sua dieta Saint-Hilaire (1938) que

aprovou o paladar da alimentaccedilatildeo agrave base do milho descreve detalhes do fubaacute e

a importacircncia do angu para a alimentaccedilatildeo dos escravos

Para fazer servir o milho agrave alimentaccedilatildeo ordinaacuteria dos homens eacute ele preparado de duas maneiras diferentes Sua farinha simplesmente moiacuteda e separada do farelo com o auxiacutelio de uma peneira de bambu toma o nome de fubaacute Eacute fazendo cozer o fubaacute na aacutegua sem acrescentar sal que se faz essa espeacutecie de polenta grosseira que se chama como jaacute o disse anguacute e constitui o principal alimento dos escravos (SAINT-HILAIRE 1938 p 206)

O viajante Pohl (1951 apud FRIEIRO 1982) relata o que testemunhou

da alimentaccedilatildeo dos escravos ldquoalimentavam-se os negros ao almoccedilo e agrave ceia

com farinha de milho misturada com aacutegua quente o angu propriamente dito no

qual punham um naco de toucinho e ao jantar davam-lhes feijatildeordquo (POHL 1951

apud FRIEIRO 1982 p 75) O objetivo era alimentar o escravo somente daquilo

que o mantivesse em boas condiccedilotildees de sauacutede e com forccedila suficiente para fazer

render o trabalho na lavra

O angu era desde essa eacutepoca feito sem adiccedilatildeo de sal o que perdura ateacute

os dias de hoje A principal razatildeo para isso naquela eacutepoca era a dificuldade em

obter o sal em Minas Gerais e consequentemente o seu alto preccedilo Assim esse

produto era usado com parcimocircnia para alimentaccedilatildeo animal e alguns alimentos

12 Para fins de alimentaccedilatildeo animal o milho tambeacutem era mais importante do que a mandioca pois dele se

alimentavam os bovinos os suiacutenos os equinos e os galinaacuteceos conforme aponta Meneses (2007) Assim era necessaacuteria uma aacuterea muito grande destinada ao cultivo deste cereal Segundo este autor a praacutetica de produccedilatildeo consorciada de milho e feijatildeo era comum e atendiam a uma ldquoordem bioloacutegica cultural e econocircmica e ainda ecoloacutegica - condiccedilotildees de clima solo e relevordquo (p 344) Com o passar do tempo o milho caiu na preferecircncia dos habitantes das Minas e se tornou mais importante para fins de alimentaccedilatildeo humana tambeacutem

28

que precisariam dele para conservaccedilatildeo como toucinhos e feijatildeo por exemplo

Conforme Frieiro (1982) em funccedilatildeo dessa situaccedilatildeo poder-se-ia talvez atribuir

o angu sem sal como invenccedilatildeo mineira embora isso natildeo possa ser comprovado

jaacute que em outras regiotildees como Satildeo Paulo e Bahia o angu eacute temperado A

obtenccedilatildeo de sal foi um problema geral no paiacutes durante todo o seacuteculo XVIII

segundo o autor

Zemella (1951) em seu importante trabalho sobre o abastecimento de

capitania das Minas Gerais no seacuteculo XVIII destaca essa situaccedilatildeo

O suprimento de sal especialmente para as cidades vicentinas sempre foi difiacutecil e penoso Na Vila de Satildeo Paulo o mau fornecimento do preciso condimento causou ateacute revoltas Se na Vila de Satildeo Paulo que estava relativamente proacutexima do porto de importaccedilatildeo de sal havia tremendas dificuldades para a sua obtenccedilatildeo que seria entatildeo das Gerais As minas no seu desespero conseguiram uma regiatildeo interna os sertotildees marginais do Satildeo Francisco que lhe fornecesse tal mercadoria se bem que em pequenas quantidades O sal chegava agraves cidades mineiras subindo o rio Satildeo Francisco em barcaccedilas (ZEMELLA 1951 p 193)

A autora aponta que o sal assim como a carne os cereais o accediluacutecar e o

toucinho eram produtos vitais de consumo para os mineiros Sendo que a carne

e o sal eram aleacutem de necessaacuterios imprescindiacuteveis e vinham de longas

distacircncias Segundo Carrara (2013) o sal que chegava agraves Minas Gerais vinha

de Sobradinho Pilatildeo Arcado Casa Nova e Remanso na Bahia A autora inclui

na lista ainda dois produtos que eram considerados de grande importacircncia para

os mineiros a pinga e o tabaco A pinga ou cachaccedila era muitas vezes usada

para ajudar a remediar a fome

Como citado por Zemella (1951) e Frieiro (1982) a Ordem Reacutegia

estimulou pequenos cultivos para subsistecircncia e a venda dos excedentes

reduzindo o risco de uma nova crise de fome Com o tempo foi-se regulando o

abastecimento embora a preccedilos ainda estivessem muito elevados para a grande

maioria da populaccedilatildeo da regiatildeo mineradora Segundo Boxer (1969 apud Arruda

1999 p 139) ldquoAs pessoas que tinham uma fazenda ou roccedila nas quais

plantavam legumes criavam aves porcos etc para elas e seus escravos

vendendo o excesso para o consumo na cidade com bons lucrosrdquo

Arruda (1999) menciona que as pessoas mais ricas e que possuiacuteam um

grande nuacutemero de escravos foram as primeiras a iniciarem o cultivo de suas

29

terras para alimentar seus familiares os escravos e a aproveitar a demanda por

alimentos para obter algum lucro com a venda do excedente

Analisando o lugar da comida no processo de formaccedilatildeo do territoacuterio das

Minas Gerais na fase da mineraccedilatildeo verificamos que ela teve uma funccedilatildeo muito

mais fisioloacutegica ou seja a de matar a fome e sustentar a pesada lida diaacuteria que

era o trabalho na lavra Conforme os registros de Mawe (1922) Saint-Hilaire

(1938) e Cardim (1939) verifica-se que os habitantes da regiatildeo de Minas Gerais

faziam suas refeiccedilotildees com muita rapidez e com pouca conversa

Outra observaccedilatildeo importante eacute mencionada por Abdala (2007) que

aponta a existecircncia de uma combinaccedilatildeo de gecircneros adquiridos no comeacutercio com

a produccedilatildeo de alimentos do quintal isso ainda na fase da mineraccedilatildeo ndash no

periacuteodo apoacutes as crises de fome e organizaccedilatildeo do abastecimento interno Como

os preccedilos dos produtos importados eram muito elevados os produtos da terra

foram os principais alimentos consumidos Assim segundo a autora surge uma

cozinha com caracteriacutesticas peculiares que se adaptou agrave situaccedilatildeo vivenciada

pelos habitantes cujo controle poliacutetico e econocircmico era excessivo diante da

realidade em que atender agraves necessidades imediatas de sobrevivecircncia era o

principal objetivo ldquoAgrave exceccedilatildeo das compotas e doccedilarias de maneira geral

inspiradas nos haacutebitos lusitanos os pratos servidos no dia-a-dia caracterizavam-

se pela rusticidade dos produtos da terrardquo (ABDALA 2007 p 73) Nesse periacuteodo

tambeacutem foi muito importante dominar as teacutecnicas de conservaccedilatildeo dos alimentos

o que acarretou na adoccedilatildeo de haacutebitos alimentares muito caracteriacutesticos como a

conservaccedilatildeo da carne do porco na gordura retirada do proacuteprio animal

23 Fase da ruralizaccedilatildeo em Minas Gerais fartura de alimentos

A fase da ruralizaccedilatildeo em Minas Gerais eacute considerada aquela que

paulatinamente vai surgindo um novo dinamismo econocircmico e reprodutivo para

aleacutem da mineraccedilatildeo Segundo Arruda (1999) Igleacutesias (1970) Carrara (2007)

Guimaratildees e Reis (2007) Meneses (2007) Barbosa (1995) e Frieiro (1982) natildeo

ocorreu um corte radical uma linha divisoacuteria onde tenha se encerrado o ciclo da

mineraccedilatildeo e surgido o ciclo da ruralizaccedilatildeo A demarcaccedilatildeo de uma periodizaccedilatildeo

eacute feita pelos autores mais por razotildees metodoloacutegicas para discorrer sobre o ritmo

histoacuterico econocircmico e cultural daquele periacuteodo na regiatildeo

30

Iglesias (1970) utiliza os termos ldquoopulecircncia e decadecircnciardquo da mineraccedilatildeo

e sugere os periacuteodos da seguinte maneira Os anos de 1693 a 1770 a fase

considerada do surgimento ao auge da opulecircncia mineraccedilatildeo e 1770 a 1883 o

que abrangeria a sua decadecircncia Tal decliacutenio orientou consequentemente para

a atividade a agriacutecola Arruda (1999) aponta a Carta (ou Ordem) Reacutegia jaacute citada

no item anterior como o marco de reconhecimento da Coroa do decliacutenio da

mineraccedilatildeo e da necessidade de estimular a produccedilatildeo agriacutecola na regiatildeo Em

suas palavras

A Carta Reacutegia de 1777 consagra ao novo princiacutepio o postulado que reconhece a importacircncia da agropecuaacuteria no conjunto das atividades econocircmicas nas aacutereas de mineraccedilatildeo () A mudanccedila de atitude por parte das autoridades governamentais do Reino corresponde na realidade agrave avassaladora crise da produccedilatildeo auriacutefera depois dos anos sessenta Impunham-se novos caminhos agrave economia de Minas capazes de dar sustentaccedilatildeo aos significativos contingentes populacionais que laacute haviam se estabelecido na primeira deacutecada do seacuteculo XVIII (ARRUDA 1999 p 140)

Nesta fase o problema de abastecimento jaacute natildeo era mais tatildeo grave mas

os preccedilos dos alimentos continuavam altos Era tempo de maior fartura de

alimentos em relaccedilatildeo agrave fase de mineraccedilatildeo mas ainda assim com muitos

obstaacuteculos Zemella (1951) defende que em funccedilatildeo da situaccedilatildeo dada a regiatildeo

de Minas Gerais foi orientando pouco a pouco seus caminhos no sentido da

autossuficiecircncia e as atividades dos habitantes se desviando para a lavoura

pecuaacuteria e a manufatura ldquoNa proacutepria regiatildeo onde se localizavam as lavras13 ou

minas multiplicaram-se as plantaccedilotildees As minas agonizantes passaram a

apoiar-se na lavoura que se expandindo procurava gulosamente as manchas

de terra feacutertil que havia nas imediaccedilotildees das lavrasrdquo (ZEMELLA 1951 p 239)

Mas esse processo natildeo significou um rompimento abrupto da mineraccedilatildeo Assim

o trabalho na lavra permanecia embora em muito menor importacircncia do que

antes ndash nas fases poacutes-colheita ndash quando se utilizava a matildeo-de-obra dos escravos

que pudessem ser retirados temporariamente da lavoura

Guimaratildees e Reis (2007) apontam que os setores da manufatura

pecuaacuteria e lavoura permitiram que a economia de Minas Gerais continuasse a

13 ldquoEm 1702 foi criado a Intendecircncia das Minas oacutergatildeo encarregado de aplicar a legislaccedilatildeo sobre a

mineraccedilatildeo na colocircnia Cabia ainda ao oacutergatildeo dividir o local a ser explorado em Datas lotes de terra entregues ao descobridor das minas As aacutereas maiores que as Datas eram chamadas de Lavras lotes de terras em que a exploraccedilatildeo do ouro soacute seria possiacutevel com teacutecnicas de exploraccedilatildeo mais eficaz e com um grande nuacutemero de escravosrdquo (MUTTER 2012 p31)

31

se desenvolver e a Capitania continuasse a manter seu ritmo de crescimento

populacional durante a segunda metade do seacuteculo XVIII incluiacuteda a populaccedilatildeo

escrava

Com a crise da mineraccedilatildeo a mudanccedila nos rumos da economia mineira provocou transformaccedilotildees quantitativas e qualitativas na agricultura com o fortalecimento da produccedilatildeo interna e com o desenvolvimento de uma elite residente autocircnoma ante o mercado externo (GUIMARAtildeRES REIS 2007 p 332)

Na concepccedilatildeo de Arruda (1999) aleacutem de a agricultura ocorrer nas

regiotildees das lavras como afirmado por Zemella (1951) as sesmarias que foram

concedidas levaram muitos a estabelecerem suas fazendas no interior rural A

autora aponta que nesta fase jaacute ao final do seacuteculo XVIII Minas reduziu muito o

consumo de produtos importados basicamente de Satildeo Paulo Rio de Janeiro e

Bahia passando a comercializar principalmente para o Rio de Janeiro muito do

que passou a produzir embora a produccedilatildeo fosse principalmente para

abastecimento interno como tambeacutem apontado por Graccedila Filho (2007) e por

Guimaratildees e Reis (2007) Exportava-se ldquoqueijo fumo accediluacutecar aguardente e

cana e ainda mas em menor volume couros e solas marmelada e mandioca

algodatildeo pouco cafeacute gado vacum porcos cavalos e galinhasrdquo (DULCI 2007 p

348)

Este autor menciona ainda que as importaccedilotildees que continuaram pelo

seacuteculo XIX foram de produtos como sal tecidos vinho peixe salgado vinagre

e azeite doce

As compras no entanto eram muito menores do que as vendas O poder aquisitivo dos mineiros era baixo portanto jaacute que eles natildeo tinham condiccedilotildees de consumir muitos produtos importados havia espaccedilo para fabricaccedilatildeo local de bens indispensaacuteveis agrave vida diaacuteria (DULCI 2007 p 348)

Para Freyre (2008 p 67) o decliacutenio da mineraccedilatildeo ldquotransformou quase

toda a Proviacutencia de inquietamente mineira a pacatamente agriacutecolardquo Para este

autor a fase da ruralizaccedilatildeo foi melhor para Minas nos aspectos econocircmicos e

sociais Segundo Graccedila Filho (2007) Guimaratildees e Reis (2007) e Arruda (1999)

a fase da ruralizaccedilatildeo em Minas foi um processo relativamente lento que ocorreu

progressivamente e essa realidade natildeo mudou mundo durante quase todo o

seacuteculo XIX

32

Poreacutem a partir de segunda metade desse seacuteculo o setor cafeeiro e o

fabril tornaram essa realidade produtiva e econocircmica mais diversificada

sobretudo na Zona da Mata assim como a pecuaacuteria leiteira na regiatildeo mais ao

Sul do estado

A produccedilatildeo cafeeira na Zona da Mata conforme Pires (2013 p 331)

ldquodesenvolveu uma tiacutepica economia voltada para a produccedilatildeo e exportaccedilatildeo de cafeacute

que a partir de meados do seacuteculo XIX vai se tornando o espaccedilo econocircmico mais

rico do estado ateacute pelo menos o final da deacutecada de 1920rdquo

Tambeacutem foi na Zona da Mata que Dulci (2007) aponta ter surgido no final

do seacuteculo XIX e iniacutecio do XX agroinduacutestrias da cana e do leite que chegaram a

liderar o mercado nacional no iniacutecio do seacuteculo XX Antes disso os engenhos

existentes nas aacutereas rurais em Minas eram rudimentares O autor menciona que

no municiacutepio de Ponte Nova foram instaladas trecircs usinas de cana de accediluacutecar com

a importaccedilatildeo de equipamentos modernos para a produccedilatildeo em escala industrial

Com as usinas chegaram os trens da empresa Leopoldina o que foi muito

importante para o desenvolvimento regional

Em relaccedilatildeo agrave agroinduacutestria do leite em Minas no mesmo periacuteodo o autor

sinaliza que ela se deu de maneira constante acompanhando a evoluccedilatildeo da

pecuaacuteria regional A primeira agroinduacutestria de produtos laacutecteos do estado

estabeleceu-se onde hoje estaacute o municiacutepio de Santos Dumont

Satildeo muitas as teses e discussotildees baseadas em documentos e arquivos

sobre a Minas Colonial e sobre as dinacircmicas produtivas e o controle poliacutetico-

econocircmico nas duas fases a mineraccedilatildeo e a ruralizaccedilatildeo Poreacutem para os

objetivos deste trabalho como jaacute sinalizado no iniacutecio deste capiacutetulo importa

saber se o decliacutenio da mineraccedilatildeo e consequente ampliaccedilatildeo da produccedilatildeo

agropecuaacuteria (considerada assim a fase da ruralizaccedilatildeo) gerou mudanccedilas nos

haacutebitos alimentares da populaccedilatildeo mineira do entorno da regiatildeo mineradora

Conhecer os haacutebitos alimentares da populaccedilatildeo o que era cultivado e que

animais eram criados nesses dois periacuteodos eacute importante para correlacionar com

as informaccedilotildees obtidas na pesquisa de campo

Nesse sentido os autores que orientam a esse respeito satildeo Frieiro

(1982) Magalhatildees (2004) Arruda (1990) Abdala (2007) Vasconcellos (1968) e

Torres (2011)

33

Temos a impressatildeo (e Gilberto Freyre e Caio Prado Juacutenior pensam igualmente assim) que o mineiro tanto na Colocircnia nos tempos de mineraccedilatildeo no Impeacuterio passada a seacuterie de crises dos primeiros tempos de mineraccedilatildeo alimentava-se bem e melhor do que a maioria dos brasileiros ao menos quanto ao peso e valor nutritivo O mineiro exige ldquosustacircnciardquo quer comida substancial e pouco liga para refinamentos complicados (TORRES 2011 p 101)

A observaccedilatildeo de Torres (2011) corrobora a de Frieiro (1982) que

sinaliza para uma alimentaccedilatildeo mais farta na fase da ruralizaccedilatildeo e segundo

Arruda (1999) a produccedilatildeo diversificada nas fazendas era uma caracteriacutestica

deste periacuteodo Os excedentes de carne suiacutena toucinho carne seca farinha de

milho farinha de mandioca rapadura aguardente oacuteleo fumo cafeacute queijos

algodatildeo em fios e tecidos ruacutesticos eram vendidos nas cidades mais proacuteximas

O que os autores citados apontam eacute que houve fartura de produtos

alimentiacutecios sem diversificaccedilatildeo entre o que se comia na fase da mineraccedilatildeo para

a fase da ruralizaccedilatildeo exceto para os mais ricos que podiam investir na

importaccedilatildeo de vinhos azeites do reino e bacalhau Magalhatildees (2004) aponta a

abundacircncia na produccedilatildeo de legumes frutas hortaliccedilas tubeacuterculos e gratildeos

produzidos nos siacutetios e fazendas proacuteximos a Vila Rica e Mariana Ateacute mesmo

nos pequenos quintais das cidades existiam hortas Muitos dos alimentos eram

itens comuns no cotidiano alimentar da populaccedilatildeo como o feijatildeo a farinha e

milho e a couve

Quanto agrave produccedilatildeo de alimentos regionaislocais notam-se principalmente legumes hortaliccedilas frutas e gratildeos produzidos por pequenos sitiantes residentes nos termos das vilas Em Vila Rica por exemplo produziam-se os seguintes gecircneros laranjas bananas quiabos couves batata-doce caraacute mandioca ovos patildees leite azeite de mamona farinha de mandioca e de milho cevada arroz feijatildeo miuacutedo e fradinho (CHAVES 1995 apud MAGALHAtildeES 2004 p 71)

Em relaccedilatildeo agrave proteiacutena animal Magalhatildees (2004) e Frieiro (1982)

apontam que os suiacutenos e as galinhas caipiras continuaram sendo a principal

fonte de consumo Do suiacuteno aleacutem da carne continuou-se a usar o toucinho a

banha focinho orelhas mocotoacutes e fressuras que tambeacutem satildeo fonte de gordura

Diferentemente da carne cujo consumo era restrito aos abastados o toucinho e

a banha eram usados por todas as classes sociais para acompanhar as

hortaliccedilas e o feijatildeo

34

O angu e o feijatildeo continuaram presentes na mesa de todos sobretudo

na do pobre14 Segundo os autores nas famiacutelias mais ricas tinha-se como

costume servir refeiccedilotildees muito fartas para as visitas mesmo que essa natildeo fosse

a realidade cotidiana inclusive com variedades de doces numa tentativa de

apagar as privaccedilotildees alimentares vivenciadas anteriormente

Saint-Hilaire em uma de suas passagens por Minas Gerais no seacuteculo

XIX relata suas percepccedilotildees sobre a comida nas aacutereas rurais

Galinha e porco satildeo as carnes que se servem mais comumente em casa dos fazendeiros da proviacutencia das Minas O feijatildeo preto forma prato indispensaacutevel na mesa do rico e esse legume constitui quase que a uacutenica iguaria do pobre Se a esse grosseiro manjar este uacuteltimo acrescenta mais alguma coisa eacute arroz ou couve ou outras ervas picadas (hellip) Como natildeo se conhece o fabrico da manteiga substitui-se-lhe a gordura que escorre do toucinho que se frita Cada conviva salpica com farinha o feijatildeo ou outros alimentos aos quais se adiciona salsa e faz-se assim uma espeacutecie de pasta (hellip) Um dos pratos favoritos dos mineiros eacute galinha cozida com quiabo mas os quiabos natildeo se comem com prazer senatildeo acompanhados de anguacute espeacutecie de polenta sem sabor Em parte alguma talvez se consuma tanto doce como na proviacutencia das Minas fazem-se doces de uma multidatildeo de coisas diferentes (hellip) Eacute muito raro encontrar vinho em casa de fazendeiros a aacutegua eacute a sua bebida ordinaacuteria (SAINT-HILAIRE 1938 p 186-187)

Na percepccedilatildeo de Magalhatildees (2004) natildeo houve alteraccedilotildees importantes

na comida mineira ao longo dos anos na regiatildeo onde se iniciou a mineraccedilatildeo

Feijatildeo farinha de milho fubaacute e arroz continuaram a ser alimentos baacutesicos

Sobre as quitandas Frieiro (1982 p 166) e Abdala (2007 p 99) citam

o consumo comum dos biscoitos de polvilho assados ou fritos broas pamonhas

brevidades roscas sequilhos bolos broinhas de fubaacute de amendoim e matildees-

bentas As quitandas eram fundamentais nas aacutereas rurais Em funccedilatildeo da

distacircncia das cidades era preciso estar prevenido para a chegada de alguma

visita e para atender agrave famiacutelia diariamente O patildeo de queijo atualmente a

quitanda quase ldquosiacutembolordquo de Minas Gerais foi introduzida apenas em iniacutecio do

seacuteculo XX Natildeo haacute uma data precisa de seu surgimento mas como os autores

apontam o queijo passou a ser produzido para aproveitar as sobras do leite

Segundo Abdala (2007) os viajantes europeus que estiveram em Minas no

seacuteculo XIX relataram a raridade de queijo e manteiga nos menus locais Para a

14 Segundo Omegna (1961 apud FRIEIRO 1982) a parcela mais pobre e livre de Minas Gerais nunca

rejeitou o angu e nem a farinha de milho preferindo-o agrave mandioca Mas o mesmo natildeo se observava em outras regiotildees do Paiacutes justamente por ser comida prioritaacuteria para os escravos e assim optavam pela farinha de mandioca Essa era uma maneira de natildeo se igualar aos escravos

35

autora a introduccedilatildeo do queijo no biscoito de polvilho dando origem ao patildeo de

queijo surgiu justamente no periacuteodo de fartura alimentar quando se utilizava o

excedente para criar diversos pratos Na regiatildeo que pesquisei o patildeo de queijo

natildeo eacute uma quitanda tradicional e raramente eacute consumida

O que se percebe ao final deste capitulo eacute que a alimentaccedilatildeo baacutesica foi

a mesma em Minas desde o periacuteodo da mineraccedilatildeo A ruralizaccedilatildeo ampliou a

produccedilatildeo de alimentos para abastecimento interno e venda do excedente houve

o incremento de algumas produccedilotildees como cafeacute leite accediluacutecar e seus derivados

mas isso natildeo representou novidade em termos de consumo Percebe-se que os

haacutebitos alimentares permaneceram ao longo dos seacuteculos XVIII XIX e pelo

menos ateacute o iniacutecio do XX Os alimentos destacados como os baacutesicos pelos

autores citados aqui satildeo aqueles que atualmente ainda satildeo encontrados nas

receitas consideradas como mais tradicionais da cozinha mineira embora muitas

e dessas receitas sugiram algumas substituiccedilotildees como oacuteleo vegetal no lugar da

banha accediluacutecar cristal no lugar da rapadura ou do melado fermento quiacutemico no

lugar do bicarbonato de soacutedio etc

No capiacutetulo 5 seraacute possiacutevel observar se esses alimentos presentes na

regiatildeo de mineraccedilatildeo em Minas Gerais satildeo ainda adotados pelas famiacutelias rurais

entrevistadas e se existem relaccedilotildees da comida consumida na ocasiatildeo da

pesquisa com a comida do passado

36

3 ALIMENTACcedilAtildeO E CULTURA PERMANEcircNCIAS E TRANSFORMACcedilOtildeES

ldquoComer natildeo envolve apenas a natureza e a cultura Situa-se entre a natureza e a cultura Participa de ambas Tem muito a ver com a primeira e tambeacutem com a segundardquo

(Paolo Rossi 2014)

Apresento neste capiacutetulo a base conceitual e argumentativa da pesquisa

e os principais autores envolvidos com as abordagens contidas neste trabalho

O item 31 tem por objetivo apontar o lugar da alimentaccedilatildeo nas principais

anaacutelises das ciecircncias sociais e da histoacuteria Basicamente trecircs disciplinas

compotildeem as discussotildees presentes neste estudo e se complementam durante o

percurso a Antropologia a Sociologia e a Histoacuteria O item 32 traz a discussatildeo

existente em torno de sistema alimentar e suas relaccedilotildees com as praacuteticas

alimentares O item 33 analisa as diferenccedilas atribuiacutedas entre alimento e comida

na abordagem cultural e simboacutelica das praacuteticas alimentares inserindo a

importacircncia social e cultural do fogo no ato alimentar as dinacircmicas de

comensalidade as praacuteticas alimentares adotadas na contemporaneidade em

suas conexotildees com o tradicional e o moderno O item 34 discute as

possibilidades de permanecircncia ou extinccedilatildeo das praacuteticas tradicionais no contexto

alimentar contemporacircneo O item 35 discute o tradicional e o moderno no

contexto das dinacircmicas alimentares no meio rural e o item 36 trata do papel

feminino nas praacuteticas alimentares na famiacutelia

31 A alimentaccedilatildeo como categoria de estudo multidisciplinar contribui-ccedilotildees da antropologia da sociologia e da histoacuteria

Em importante artigo sobre as balizas historiograacuteficas da alimentaccedilatildeo

Meneses e Carneiro (1997) destacam os enfoques das diversas aacutereas neste

campo que satildeo bioloacutegico econocircmico social cultural e filosoacutefico Importa-nos

sobretudo aquelas referecircncias das ciecircncias sociais e da histoacuteria Para aqueles

autores a antropologia eacute a que mais daacute atenccedilatildeo a este tema e eacute a responsaacutevel

pela maior quantidade de informaccedilotildees a respeito Citam como principais

contribuiccedilotildees iniciais as obras de Claude Leacutevi-Strauss Marshall Sahlins Mary

Douglas entre outros

37

Os antropoacutelogos desde o seacuteculo XIX se empenharam em desenvolver uma etnografia sistemaacutetica dos haacutebitos alimentares e em buscar interpretaacute-los culturalmente A primeira fase da antropologia caracterizou-se por um comparativismo das diferentes tradiccedilotildees culturais A anaacutelise dos tabus onde se destacam os alimentares foi desde os primoacuterdios da Antropologia Cultural um terreno feacutertil para especulaccedilotildees sobre o significado simboacutelico da alimentaccedilatildeo (MENESES CARNEIRO 1997 p 19)

O socioacutelogo e antropoacutelogo brasileiro Gilberto Freyre jaacute em 1926 em seu

ldquoManifesto Regionalistardquo discute ainda que de forma pouco aprofundada sobre

a funccedilatildeo do accediluacutecar no Brasil Mas foi com sua obra publicada em 1939 em que

trata especificamente de uma sociologia do doce ao recolher receitas que eram

guardadas a sete chaves pelas mulheres e que eram repassadas de matildees para

filhas que o autor pode considerado como o precursor do mais importante

trabalho sobre o accediluacutecar Assunto que retoma mais tarde em ldquoCasa-Grande e

Senzalardquo publicado em 1964

O papel das ciecircncias sociais principalmente a contribuiccedilatildeo da

antropologia para os estudos da alimentaccedilatildeo eacute detalhadamente tratado por

Garciacutea (2009) Este autor aponta que apesar de o tema da alimentaccedilatildeo ter sido

importante para os antropoacutelogos desde os primoacuterdios ndash que registraram em seus

cadernos de campo os modos de comer de elaborar a comida e ainda os

principais alimentos consumidos pelos grupos estudados ndash o ano de 1968 eacute

considerado como sendo o iniacutecio aproximado dos estudos voltados mais

especificamente para a antropologia da alimentaccedilatildeo ou seja quando a

abordagem da comida como cultura passa a ser analisada de forma mais

institucionalizada pela antropologia ldquoCuando se fijen de manera clara las dos

maacutes potentes aproximaciones a la Antropologiacutea de la Alimentacioacuten el

estructuralismo y el materialismordquo (p 26) Sua observaccedilatildeo coincide com o

afirmado por Meneses e Carneiro (1997 p 20) de que ldquosomente nas deacutecadas

de 1960 e 1970 na voga do estruturalismo eacute que os estudos antropoloacutegicos

sobre alimentaccedilatildeo deslancham e se define um padratildeo de anaacutelise culturalrdquo

Garciacutea (2009) justifica ainda a fixaccedilatildeo da data de 1968 por este ser o ano da

primeira publicaccedilatildeo do terceiro volume da seacuterie ldquoMitoloacutegicasrdquo de Claude Leacutevi-

Strauss As Origens dos Modos agrave Mesa

Nesta obra Leacutevi-Strauss republicou o artigo ldquoO triacircngulo culinaacuteriordquo onde

apresenta seu entendimento sobre o fato alimentar e defende que a cozinha de

38

uma sociedade eacute uma linguagem inconsciente de sua estrutura Voltaremos a

este artigo mais agrave frente Em ldquoAs origens dos modos agrave mesardquo (Mitoloacutegicas 3)

assim como em ldquoDo mel agraves cinzas (Mitoloacutegicas 2)rdquo Leacutevi-Strauss analisa o que

chama de ldquoentornos e contornosrdquo da alimentaccedilatildeo A diferenccedila eacute que em

ldquoMitoloacutegicas 3rdquo ele analisa como os modos agrave mesa o uso de receitas e os modos

de preparaccedilatildeo em diferentes povos estatildeo conectados ao lado cultural e como

esses aspectos complementam o lado bioloacutegico que eacute o processo de ingestatildeo e

digestatildeo alimentar

Na deacutecada de 1970 Claude Fischler socioacutelogo e antropoacutelogo francecircs

passa a dar ecircnfase em seus estudos ao tema da alimentaccedilatildeo e desenvolve

importante trabalho sobre o accediluacutecar e seus aspectos de efeito simboacutelico e

bioloacutegico Como jaacute visto Gilberto Freyre (1939) trabalhou esta temaacutetica e sua

influecircncia no Brasil Depois de Claude Fischler Sidney Mintz de mesma

formaccedilatildeo acadecircmica tambeacutem publicou trabalhos sobre o accediluacutecar em 1986

analisando sobretudo as relaccedilotildees de poder existentes nesse tipo de produccedilatildeo

na regiatildeo caribenha Neste contexto seu trabalho inseriu o tema da alimentaccedilatildeo

na economia poliacutetica global Mas Sidney Mintz analisou tambeacutem o poder de

atraccedilatildeo de consumo do accediluacutecar e seu uso na culinaacuteria Sobre esse tema publicou

ldquoSweetness and Power The place of sugar in modern Historyrdquo e em Portuguecircs

foi publicado em 2003 o livro ldquoO Poder amargo do accediluacutecar produtores

escravizados consumidores proletarizadosrdquo

Voltando a Claude Fischler ainda na deacutecada de 1970 organizou a

coletacircnea La nourriture ndash Pour une anthropologie bioculturelle de lrsquoalimentation

Mas eacute na deacutecada de 1990 que publica seu mais importante trabalho

Lrsquohomnivore onde discute as transformaccedilotildees ocorridas nas sociedades

ocidentais modernas no campo da alimentaccedilatildeo e seus efeitos na vida das

pessoas

Tambeacutem entre as deacutecadas de 1970 e 1990 quem se destaca neste

campo eacute o antropoacutelogo americano Marvin Harris Seus estudos no campo da

alimentaccedilatildeo enfatizam sobretudo os enigmas culturais buscando explicar as

reaccedilotildees a alguns mitos e tabus alimentares Assim suas publicaccedilotildees mais

importantes foram ldquoVacas Porcos Guerras e Bruxas Os enigmas da Culturardquo

(1978) Bueno para comer enigmas de alimentacioacuten y cultura (1985) ldquoCanibais

e Reisrdquo (1990) Sobre o tema dos tabus alimentares outras importantes

39

contribuiccedilotildees satildeo as dos antropoacutelogos Mary Douglas sobretudo com a obra

ldquoPureza e Perigordquo publicada pela primeira vez em 1966 e Marshal Sallins com

a obra ldquoCultura e Razatildeo Praacuteticardquo publicada originalmente em 1976 Mary

Douglas e Marshal Sallins tecircm uma anaacutelise para os tabus alimentares que difere

da de Marvin Harris que opta pelo determinismo ecoloacutegico para justificar a razatildeo

de alguns grupos como os judeus em natildeo comer alguns alimentos como carne

de porco por exemplo No livro ldquoVacas Porcos Guerras e Bruxas ndash o enigma

da culturardquo ele defende que a Biacuteblia e o Alcoratildeo condenaram o consumo do

porco natildeo por razotildees espirituais de pecado ou impureza mas ldquoporque a sua

criaccedilatildeo constituiacutea uma ameaccedila agrave integridade dos ecossistemas culturais e

naturais baacutesicos do Oriente Meacutediordquo (HARRIS 1978 p 39) Aleacutem disso Harris

aponta que por ter uma alimentaccedilatildeo parecida com a dos humanos ou seja

viverem soltos nos bosques e se alimentarem de castanhas frutas tubeacuterculos e

cereais os porcos representavam uma disputa por comida Jaacute Mary Douglas e

Sallins defendem que a razatildeo para o natildeo consumo de porco se daacute por razotildees

simboacutelicas e religiosas Mary Douglas em ldquoPureza e Perigordquo recorre ao livro

biacuteblico de Leviacuteticos no Velho Testamento para justificar sua percepccedilatildeo Neste

livro haacute uma recomendaccedilatildeo expliacutecita aos judeus sobre os animais que podem

e que natildeo podem ser comidos divididos entre animais limpos e animais imundos

Assim eram considerados limpos e liberados para comer dentre os

quadruacutepedes os que tem unhas fendidas e divididas em dois e que rumina O

porco por natildeo ruminar eacute considerado imundo e proibido Aleacutem disso nada mais

eacute falado a respeito do porco no livro de Leviacutetico Assim a autora defende que os

judeus cumprem o mandamento apenas por razatildeo religiosa e nada tem a ver

com a questatildeo utilitaacuteria ou da disputa pela comida como alegado por Marvin

Harris Sallins em ldquoCultura e Razatildeo Praacuteticardquo compartilha de forma semelhante

a ideia de Mary Douglas ao tratar sobre os haacutebitos alimentares relativos agrave carne

dos americanos do Norte o que seraacute detalhado mais agrave frente

Outro autor importante no campo da alimentaccedilatildeo eacute o socioacutelogo inglecircs

Stephen Mennell Segundo Meneses e Carneiro (1997) na deacutecada de 1980

Mennell buscou investigar os usos sociais da domesticaccedilatildeo da natureza pela

cultura antes mesmo de Claude Leacutevi-Strauss analisando como se datildeo os

modos que lsquocivilizam o apetitersquo e publicou ldquoAll Manners of Food Eating and Taste

in England and France from the Middle Ages to the Presentrdquo (1996) Foi Mennell

40

ainda quem desenvolveu primeiramente estudos sobre as ldquocozinhas identitaacuteriasrdquo

sobre a valorizaccedilatildeo da cozinha nacional da Inglaterra e os ldquoestilos nacionais de

comerrdquo

Contreras e Gracia (2011 p 29) sugerem como objeto para a

antropologia da alimentaccedilatildeo ldquoo conjunto de representaccedilotildees crenccedilas

conhecimentos e praacuteticas herdadas eou aprendidas que estatildeo associadas agrave

alimentaccedilatildeo e satildeo compartilhadas pelos indiviacuteduos de uma dada cultura ou de

um grupo social determinadordquo

No acircmbito da sociologia segundo Meneses e Carneiro (1997) as

questotildees de gecircnero na divisatildeo social do trabalho domeacutestico e ainda gecircnero e

comida foram os que mais atraiacuteram as pesquisas iniciais Sobre este tema

Mabel Garcia Arnaiacutez (1996) antropoacuteloga espanhola a quem recorremos em

vaacuterios momentos neste trabalho destaca em seu estudo sobre os paradoxos da

alimentaccedilatildeo contemporacircnea as importantes contribuiccedilotildees de Mennell (1996) de

Murcott (1983) Pynson (1987) e Kaplan (1980)

Meneses e Carneiro (1997 p 24) mencionam que o tema da

comensalidade tambeacutem foi evidenciado a partir da deacutecada de 1970 ldquoOs estudos

nesta aacuterea se orientaram para a refeiccedilatildeo como instituiccedilatildeo social sua natureza e

funcionamento seus iacutecones ndash como a mesardquo Mais recentemente abrange

fortemente os estudos sobre os efeitos da tecnologia alimentar que propiciou o

haacutebito de comer fora de casa e o surgimento dos Fast food Em sua obra estes

autores citam os trabalhos de Stephen Mennel (1996) Anne Murcott (1983)

Harvey Levenstein (1988) Claude Fischler (1988)

Ao falar em comensalidade natildeo podemos deixar de citar a contribuiccedilatildeo

dada por Norbert Elias (2011) sobre as transformaccedilotildees nas normas de

comportamento social incluindo os modos agrave mesa na sociedade europeia a

partir do final da Idade Meacutedia Nesta obra cuja primeira publicaccedilatildeo ocorreu em

1939 o autor nos leva a descobrir como foram reproduzidas socialmente

algumas regras de boas maneiras de conviacutevio na sociedade e que tambeacutem se

refletem na comensalidade como por exemplo natildeo comer com as matildeos natildeo

colocar os peacutes sobre a mesa como usar os talheres a mesa natildeo falar de boca

cheia entre outras regras O que pode parecer superficialmente uma descriccedilatildeo

fuacutetil sobre coacutedigos de etiqueta social eacute na verdade uma anaacutelise interessante do

quanto aquilo que parece ser natural atualmente nada tem de natural pois satildeo

41

regras que foram sendo aprendidas agrave medida que o homem foi avanccedilando nos

estaacutegios de civilizaccedilatildeo ocidental O autor nos mostra o quanto foi delicado e difiacutecil

para o homem da cultura ocidental se tornar civilizado ao longo do processo

histoacuterico pois o civilizar-se envolvia a mudanccedila ldquoobrigatoacuteriardquo de comportamento

Em seu livro O Processo Civilizador ele se refere agrave sociedade europeia mas

principalmente agrave Franccedila e agrave Alemanha

No vieacutes da sociologia e da antropologia ocorre uma mudanccedila de

interesse no campo dos estudos sobre alimentaccedilatildeo que se observa a partir da

deacutecada de 1990 segundo Meneses e Carneiro (1997 p 20) deslocando-se o

interesse dos tabus para enfocar as ldquopraacuteticas culturais nos processos de

aculturaccedilatildeo e na identidade culturalrdquo

Eacute importante destacar a observaccedilatildeo feita por Contreras e Gracia (2011)

de que tem sido cada vez maior o nuacutemero de autores contemporacircneos que natildeo

fazem distinccedilatildeo nos enfoques disciplinares entre a antropologia e a sociologia

da alimentaccedilatildeo

Ainda natildeo estaacute bem definida a sucessatildeo de paradigmas dentro da antropologia e da sociologia da alimentaccedilatildeo pois a cada uma das correntes foram vinculados trabalhos sobre diferentes aspectos alimentares sem que necessariamente se tenha produzido um questionamento ou uma invalidaccedilatildeo decisiva das aproximaccedilotildees perguntas ou respostas anteriores Poreacutem dentro desse acircmbito de estudo encontramo-nos em uma fase de tentativas e erros ainda que jaacute se comece a definir um nuacutecleo teoacuterico soacutelido que conte com um miacutenimo de generalizaccedilotildees e de hipoacuteteses que podem ser organizadas em um programa teoacuterico comum cujo nuacutecleo consiste em defender a ideia de lsquosistema alimentarrsquo sem desconsiderar contudo a diversidade de definiccedilotildees e atribuiccedilotildees que tal sistema tem recebido (CONTRERAS GRACIA 2011 p 30)

Garciacutea (2009) defende que para a antropologia da alimentaccedilatildeo o

interesse estaacute em encontrar a loacutegica do significado social e cultural da comida

revelando como ela pode classificar accedilotildees pessoas espaccedilos e tempos e

correlacionar essas classificaccedilotildees e seus significados Jaacute na sociologia da

alimentaccedilatildeo o foco estaacute no espaccedilo social da comida as transformaccedilotildees

contemporacircneas e a evoluccedilotildees da comensalidade

Outros autores contemporacircneos utilizados como referecircncia nesta

pesquisa nos campos tanto da antropologia quanto da sociologia da

alimentaccedilatildeo satildeo Jean Pierre Poulain que eacute socioacutelogo e antropoacutelogo francecircs

Esse autor conduz estudos e pesquisas sobre comida cultura e sauacutede nas

42

universidades de Toulouse (Franccedila) e Taylor (Malaacutesia) Autor de ldquoSociologias da

Alimentaccedilatildeordquo e ldquoDictionnaire des cultures alimentairesrdquo entre outros Mabel

Gracia Arnaiz eacute antropoacuteloga e pesquisadora da universidade de Rovira e Virgili

na Espanha e membro da Comissatildeo Internacional da Antropologia da

Alimentaccedilatildeo Sua linha de investigaccedilatildeo cientiacutefica envolve estudos socioculturais

da alimentaccedilatildeo sauacutede e gecircnero Autora das obras ldquoAlimentacioacuten salud y cultura

encuentros interdisciplinaresrdquo ldquoParadojas de la alimentacioacuten contemporacircneardquo e

mais recentemente em 2015 publicou ldquoComemos lo que somos Reflexiones

sobre cuerpo geacutenero y saludrdquo Tambeacutem antropoacutelogo e pesquisador na Espanha

Jesuacutes Contreras eacute diretor do ldquoObservatorio de la Alimentacioacuten - ODELA)rdquo autor

de ldquoSubsistencia ritual y poder en los Andesrdquo e ldquoAlimentacioacuten y cultura

necesidades gustos y costumbresrdquo Richard Wranglam eacute um pesquisador inglecircs

que atua na aacuterea de antropologia fiacutesica e primatologia Sua importante

contribuiccedilatildeo para os estudos da alimentaccedilatildeo eacute o livro ldquoPegando Fogordquo em que

aponta a importacircncia do fogo para a transformaccedilatildeo da comida de natureza em

cultura e para a promoccedilatildeo da sociabilidade humana Igor de Garine eacute um

antropoacutelogo francecircs que pesquisa sobre comida e tradiccedilatildeo comida e identidade

comida e industrializaccedilatildeo Autor de ldquoLes Changements des habitudes et des

politiques alimentaires en Afrique Aspects des sciences humaines naturellesrdquo e

Social Aspects of Obesity (Culture and Ecology of Food and Nutrition Por fim

Michael Pollan que eacute americano e apesar de sua importante contribuiccedilatildeo

contemporacircnea sobre comida e cultura o que o tem feito despontar na miacutedia

sobre o assunto sua formaccedilatildeo acadecircmica eacute o jornalismo Autor de ldquoO Dilema do

Oniacutevorordquo e ldquoCozinhar uma histoacuteria natural da transformaccedilatildeordquo e outros

As referecircncias de artigos de publicaccedilatildeo internacional dos referidos

autores e outros que utilizei nesta pesquisa fazem parte do banco de dados do

ldquoObservatoire Cniel des Habitudes Alimentaires15rdquo e do ldquoObservatorio de la

Alimentacioacuten (ODELA)rdquo16

Dentre os brasileiros na aacuterea da alimentaccedilatildeo e cultura abordados nesta

pesquisa aleacutem dos claacutessicos trabalhos de Gilberto Freyre e Cacircmara Cascudo

jaacute citados estatildeo os seguintes autores Renata Menasche cujas pesquisas satildeo

mais centradas na alimentaccedilatildeo e consumo no meio rural e patrimocircnio alimentar

15 Site de acesso httpwwwlemangeur-ochacomconnexion 16 Site de acesso httpwwwodelaorglang=es

43

focadas na regiatildeo sul do Brasil Desta autora encontrei avaliando o periacuteodo 2005

a 2015 26 artigos em perioacutedicos envolvendo os temas relacionados acima (como

autora e coautora) 07 deles estatildeo inscritos no portal de perioacutedicos da CAPES

e tambeacutem eacute importante citar dois livros organizados pela autora ldquoA Agricultura

Familiar agrave Mesa saberes e praacuteticas da alimentaccedilatildeordquo publicado em 2007 e

ldquoDimensotildees socioculturais da alimentaccedilatildeordquo publicado em 2012 Maria Eunice

Maciel tambeacutem pesquisa o sul do Brasil em um vieacutes mais geral da comida e

cultura menos voltado ao rural do que a pesquisadora anterior Desta autora

encontrei 08 artigos em perioacutedicos quase todos eles voltados agrave estudos no sul

do Brasil 02 deles inscritos no portal de perioacutedicos da CAPES Ellen Woortmann

pesquisadora de Brasiacutelia cujas pesquisas em alimentaccedilatildeo concentram-se

sobretudo em memoacuteria e patrimocircnio alimentar e aspectos de gecircnero e

alimentaccedilatildeo Seu artigo mais recente na aacuterea de antropologia da comida

publicado em perioacutedico eacute ldquoA comida como linguagemrdquo Carlos Alberto Doacuteria

antropoacutelogo por meio da publicaccedilatildeo de dois recentes livros ldquoFormaccedilatildeo da

Culinaacuteria Brasileirardquo e ldquoe-Boca Livrerdquo Raul Lody tambeacutem antropoacutelogo Sua

publicaccedilatildeo recente mais importante para o campo da alimentaccedilatildeo eacute ldquoBrasil Bom

de Bocardquo Seus estudos tecircm sido mais concentrados na discussatildeo de patrimocircnio

e regionalismo alimentar Jaacute o antropoacutelogo Roberto DaMatta embora natildeo

pesquise especificamente sobre antropologia e comida possui importantes

trabalhos claacutessicos sobre essa temaacutetica e os quais utilizei nesta pesquisa Outras

importantes contribuiccedilotildees brasileiras satildeo as de Mocircnica Abdala Eduardo Frieiro

e Socircnia Maria de Magalhatildees com trabalhos sobre alimentaccedilatildeo com foco em

Minas Gerais de abordagens principalmente histoacutericas No periacuteodo de 2000 a

2015 encontrei 08 artigos de autoria e coautoria de Mocircnica Abdala sobre o tema

da comida e cultura

A leitura de alguns trabalhos dos autores destacados acima foi

fundamental para minha compreensatildeo quanto agrave necessidade de relativizar o

tema da alimentaccedilatildeo conhecer as experiecircncias conduzidas por eles e

correlaciona-las com a discussatildeo pretendida na minha pesquisa As anaacutelises

conduzidas pelos autores convidam agrave reflexatildeo sobre os significados da comida

e do comer na sociedade contemporacircnea Foi possiacutevel perceber que existem

lacunas nas discussotildees sobre a antropologia e sociologia da alimentaccedilatildeo no

Brasil sobretudo no que se refere aos estudos voltados para as populaccedilotildees

44

rurais Como o Brasil eacute constituiacutedo culturalmente de vaacuterios rurais variadas

tambeacutem satildeo as relaccedilotildees simboacutelicas com a comida e merecem ampliaccedilatildeo nos

estudos para que seja possiacutevel alcanccedilar toda a sua complexidade

Eacute importante destacar que as pesquisas nas aacutereas da sociologia e da

antropologia da alimentaccedilatildeo no Brasil ainda satildeo muito recentes apesar das

tradicionais obras jaacute citadas de Gilberto Freyre e Cacircmara Cascudo Em

levantamento feito no banco de teses da CAPES e da base do curriacuteculo lattes

dos docentes citados acima foi possiacutevel verificar que a maioria dos trabalhos no

tema da antropologia e sociologia da alimentaccedilatildeo estatildeo vinculados a programas

de poacutes-graduaccedilatildeo na aacuterea de Antropologia Social As teses e dissertaccedilotildees

concluiacutedas pertencentes aos programas nos quais alguns dos pesquisadores

citados acima atuam totalizam 11 dissertaccedilotildees de mestrado e 04 teses de

doutorado iniciadas a partir de 2007 e concluiacutedas ateacute 2013

Em relaccedilatildeo agraves pesquisas mais recentes no Brasil em levantamento feito

no banco de perioacutedicos da Capes ndash ao utilizar termos de busca sobre o tema de

interesse desta pesquisa ndash encontrei as seguintes informaccedilotildees a respeito de

publicaccedilotildees no periacuteodo de 2005 a 2015 Sobre ldquoalimentaccedilatildeo e culturardquo 07

artigos Sobre ldquocomida e culturardquo 02 artigos Sobre ldquoalimentaccedilatildeo e meio ruralrdquo

08 artigos sendo que 06 deles se referem ao ldquoPrograma de Aquisiccedilatildeo de

Alimentos (PAA)rdquo que natildeo eacute objeto de interesse da minha pesquisa Sobre

ldquoalimentaccedilatildeo e consumordquo 12 artigos sendo que a maior parte estaacute relacionada

aos aspectos nutricionais e fisioloacutegicos e natildeo de abordagem antropoloacutegica ou

socioloacutegica

Para as anaacutelises referentes ao campo da alimentaccedilatildeo e mundo rural

brasileiro destacando a cultura modos de vida e a influecircncia dos sistemas

alimentares contemporacircneos no contexto das novas ruralidades os autores que

trazem importantes contribuiccedilotildees a este trabalho satildeo Maria de Nazareth Baudel

Wanderley Joseacute Graziano da Silva Alfio Brandenburg Antocircnio Cacircndido Carlos

Rodrigues Brandatildeo Joseacute de Souza Martins Seacutergio Schneider e Maria Joseacute

Carneiro

Neste capiacutetulo a aacuterea da histoacuteria desempenha papel menos central do

que a antropologia e a sociologia Interessa-nos dessa disciplina sobretudo os

registros que auxiliem a pensar a perspectiva cultural da alimentaccedilatildeo ponto

central deste trabalho

45

Dentre os autores em quem buscamos as contribuiccedilotildees nesse sentido

estatildeo Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari Nas uacuteltimas trecircs deacutecadas eles

tecircm trazido importantes contribuiccedilotildees para a compreensatildeo da histoacuteria da

alimentaccedilatildeo sobretudo a histoacuteria da alimentaccedilatildeo na Europa A obra mais

importante que resultou da junccedilatildeo dos dois trata de um volumoso livro de 885

paacuteginas organizado por eles que reuniu vaacuterios pesquisadores da aacuterea com

enfoques diferentes sobre a alimentaccedilatildeo na histoacuteria O livro ldquoA Histoacuteria da

Alimentaccedilatildeordquo que foi publicado em 1996 possui um recorte temporal dividido em

sete partes 1 Preacute-histoacuteria e primeiras civilizaccedilotildees 2 O mundo claacutessico 3 Da

antiguidade tardia agrave alta idade meacutedia 4 Os ocidentais e os outros 5 Plena e

baixa idade meacutedia 6 Da cristandade ocidental agrave Europa dos Estados 7 A eacutepoca

contemporacircnea Para a presente pesquisa interessa sobretudo a seacutetima e

uacuteltima parte que trata da alimentaccedilatildeo contemporacircnea e nela dois capiacutetulos o

que discute ldquoas transformaccedilotildees do consumo alimentarrdquo e ldquoa emergecircncia das

cozinhas regionaisrdquo Nesta obra estatildeo presentes artigos de historiadores mas

tambeacutem de antropoacutelogos e socioacutelogos da alimentaccedilatildeo

Tambeacutem pesquisei e fiz uso de registros importantes da histoacuteria da

alimentaccedilatildeo presentes na coleccedilatildeo organizada por Philippe Ariegraves e Georges

Duby ldquoHistoacuteria da Vida Privadardquo bem como da coleccedilatildeo organizada por Fernando

A Novais Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Tais coleccedilotildees foram organizadas

por diversos autores de acordo com os volumes Utilizei trabalhos histoacutericos

dessa coleccedilatildeo nas discussotildees sobre o fogo comensalidade e sociabilidades que

ocorrem no espaccedilo da cozinha

Inclui-se ainda as anaacutelises do espanhol L Jacinto Garciacutea e seu livro

ldquoUna Historia Comestible homiacutenidos cocina cultura y ecologiardquo e ainda Brillat-

Savarin em ldquoA Fisiologia do Gostordquo Recorri com frequecircncia nesta pesquisa a

Luce Giard historiadora francesa Sua importante contribuiccedilatildeo para os estudos

da alimentaccedilatildeo estaacute no v 2 da obra de Michel De Certeau ldquoA Invenccedilatildeo do

Cotidiano II ndash Morar cozinharrdquo

Daniel Roche historiador social e cultural tambeacutem francecircs escreveu

sobre a cultura material francesa do seacuteculo XVIII Sua contribuiccedilatildeo para a histoacuteria

da alimentaccedilatildeo encontra-se no livro ldquoHistoacuteria das Coisas Banaisrdquo publicado

originalmente em 1997 em que trata do nascimento do consumo nos seacuteculos

XVII ao XIX Ao descrever aspectos cotidianos modos de vida comportamentos

46

e o funcionamento das sociedades da eacutepoca que passava por transformaccedilotildees

o autor mostra a famiacutelia como a unidade fundamental de produccedilatildeo e consumo

tanto na aacuterea rural quanto na urbana e isso se refletiu nas praacuteticas e haacutebitos

alimentares Um capiacutetulo do livro eacute dedicado agrave alimentaccedilatildeo como cultura e como

necessidade fisioloacutegica em uma eacutepoca em que obter a alimentaccedilatildeo era a

principal preocupaccedilatildeo das famiacutelias

Na histoacuteria da alimentaccedilatildeo brasileira as referecircncias mais importantes

que percorremos se referem aos trabalhos do historiador e tambeacutem folclorista

Luiacutes da Cacircmara Cascudo Suas obras nesta linha satildeo Histoacuteria da Alimentaccedilatildeo

no Brasil e Antologia da Alimentaccedilatildeo no Brasil Recorremos tambeacutem agrave vasta

contribuiccedilatildeo dada por Gilberto Freyre em ldquoCasa Grande e Senzalardquo e ldquoSobrados

e Mucambosrdquo que assim como Cacircmara Cascudo continuam sendo referecircncia

no campo da histoacuteria da alimentaccedilatildeo no Brasil Importante destacar que os dois

autores natildeo eram formados em curso de histoacuteria jaacute que segundo Silva e Ferreira

(2011) os primeiros cursos superiores de Histoacuteria no Brasil datam da deacutecada

de 1930 na USP no qual Gilberto Freyre lecionava a disciplina de antropologia

Assim os trabalhos de ambos mais do que apenas registros histoacutericos

perpassam fortemente pelas anaacutelises de cunho socioantropoloacutegico

No contexto analiacutetico desta pesquisa em que importa compreender as

mudanccedilas e ou permanecircncias nos haacutebitos alimentares das famiacutelias rurais o

uso do termo ldquosistema alimentarrdquo eacute recorrente Assim importa compreender o

seu significado atribuiacutedo por especialistas na aacuterea de alimentaccedilatildeo e cultura

Passaremos a essa discussatildeo no proacuteximo toacutepico deste capiacutetulo

32 Sistema alimentar17

Poulain (2001) define sistema alimentar como sendo

Lrsquoensemble de regravegles qui reacutesulte de lrsquoorganisation sociale des conceptions relatives au plaisir alimentaire et agrave la santeacute Les modegraveles alimentaires varient drsquoun espace culturel agrave lrsquoautre et au sein drsquoune

17 Nas disciplinas voltadas aos estudos de cunho fisioloacutegico e nutricional da alimentaccedilatildeo o termo adotado

eacute ldquopadratildeo alimentarrdquo Na sociologia e na antropologia da alimentaccedilatildeo utiliza-se principalmente a expressatildeo ldquosistema alimentarrdquo sobretudo na Europa como eacute o caso de Poulain (2001 2003 2013) Contreras e Gracia (2011) Montanari (2008) e Mennell (1996) Jaacute Fischler (1995) que tambeacutem eacute europeu utiliza a expressatildeo ldquosistema culinaacuteriordquo e mais raramente ldquocozinhardquo (cozinha moderna cozinha tradicional cozinha contemporacircnea) poreacutem com o mesmo sentido que o usado pelos outros autores Sistema alimentar eacute tambeacutem utilizado pelos americanos como Harris (2011) Sahlins (2003) Mintz e Dubois (2002)

47

mecircme socieacuteteacute eacutevoluent avec le temps Cette variabiliteacute est rendue possible par le fait que les contraintes biologiques de la meacutecanique physiologique et de lrsquoexploitation des ressources de la nature pegravesent sur les mangeurs18 humains de faccedilon relativement lacircche (POULAIN 2001 p 24)

Para este autor os sistemas alimentares satildeo formados por um conjunto

de conhecimentos tecnoloacutegicos herdados e repassados de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo

que incluem o saber-fazer o gosto as regras e as etiquetas etc Esses

conhecimentos facilitam no processo de escolha dos recursos presentes num

espaccedilo natural e sua transformaccedilatildeo em alimentos para consumo na forma de

pratos atrativos a uma determinada cultura Poulain afirma que esses

conhecimentos se definem concomitantemente como sistemas de coacutedigos

simboacutelicos que retratam os valores de um grupo humano participando da

construccedilatildeo de identidades culturais Na concepccedilatildeo de Poulain (2013) nesse

sistema o alimento estaacute em movimento desde o seu universo de produccedilatildeo

agriacutecola ateacute a chegada ao consumidor sofrendo algumas transformaccedilotildees ao

longo do percurso O sistema alimentar envolve fatores que vatildeo desde os

econocircmicos ateacute os do ambiente domeacutestico quando se adquire alimentos pela

compra ou ainda por meio de cultivo proacuteprio ou criaccedilatildeo de animais ou da pesca

Em um sentido semelhante ao atribuiacutedo por Poulain (2013 e 2014)

Fischler (1979 e 1995) define como sistema culinaacuterio um conjunto de

ingredientes e teacutecnicas que satildeo empregadas na elaboraccedilatildeo de uma refeiccedilatildeo as

combinaccedilotildees e correlaccedilotildees entre os alimentos utilizados e ainda as regras que

envolvem sua escolha preparaccedilatildeo e consumo Atrelados agraves teacutecnicas e aos

ingredientes e consequentemente agraves normas que regem o processo da escolha

ao consumo dos alimentos estatildeo crenccedilas valores siacutembolos representaccedilotildees e

os haacutebitos que satildeo indicadores de cultura de uma sociedade Ou seja normas

essas que estatildeo atreladas ao valor simboacutelico envolvidos no sistema alimentar e

natildeo somente o valor de uso no sentido utilitarista que neste caso seria

secundaacuterio conforme discutido por Sahlins (2003) Afinal como afirma o proacuteprio

Sahlins haacute uma ldquorazatildeo cultural em nossos haacutebitos alimentaresrdquo

Pelas definiccedilotildees dos autores acima percebe-se que as questotildees que

envolvem a alimentaccedilatildeo ou culinaacuteria satildeo estabelecidas pelas caracteriacutesticas e

regras mais ou menos comuns adotadas por grupos de pessoas e pela

18 Termo jaacute explicado na introduccedilatildeo

48

sociedade a qual pertencem Conforme Bourdieu (2007) o gosto que iraacute formar

o haacutebito eacute construiacutedo no convivio familiar e escolar Natildeo por acaso em relaccedilatildeo

agrave comida quase sempre as preferecircncias entre os membros de uma mesma

familia satildeo semelhantes Eacute o gosto tambeacutem que classifica e distingue uma

pessoa de outra um grupo de outro Na formaccedilatildeo do gosto alimentar estatildeo

presentes diferentes aspectos socioculturais que iratildeo inteferir nas escolhas

Embora possa ocorrer o sistema alimentar de um grupo natildeo

necessariamente seraacute adotado por um outro pois ele estaacute ligado agraves questotildees

culturais que em funccedilatildeo de diversos fatores pode gerar uma rejeiccedilatildeo a

determinadas praacuteticas alimentares Um exemplo disso eacute a atribuiccedilatildeo dada a um

determinado alimento ou prato como sendo ldquoexoacuteticordquo poreacutem exoacutetico aos olhos

de quem natildeo estaacute habituado a consumi-lo

Para Helman (1994) eacute a cultura local que assume maior peso no

processo de decisotildees alimentares Eacute ela que primeiramente define as regras

alimentares cabendo-lhe assim determinar

Quem prepara e quem serve o alimento para quem quais indiviacuteduos ou grupos comem reunidos onde e em que ocasiotildees a ingestatildeo do alimento acontece a ordem em que os pratos satildeo servidos dentro de uma refeiccedilatildeo e a maneira como os indiviacuteduos comem Todos esses estaacutegios de ingestatildeo dos alimentos satildeo padronizados rigorosamente pela cultura e constituem uma parte do modo de viver consagrado por aquela comunidade (HELMAN 1994 p 48-49)

Harris (2011) ao tratar da questatildeo lembra que por ser oniacutevora a

espeacutecie humana possui capacidade de ingerir alimentos tanto de origem animal

quanto vegetal Poreacutem por razotildees de adaptabilidade fisioloacutegica alguns

alimentos satildeo descartados do cardaacutepio Jaacute outros mesmo sendo biologicamente

possiacuteveis de ingestatildeo podem ser desprezados por algumas sociedades e

apreciados por outras O autor afirma que as razotildees de apreciaccedilatildeo e rejeiccedilatildeo de

um alimento vatildeo aleacutem da razatildeo fisioloacutegica da digestatildeo Tanto Harris (2011)

quanto Leacutevi-Strauss (1983) apontam que os alimentos rejeitados por razotildees

culturais ou sociais se tornam aceitos para consumo em caso de natildeo haver mais

nada a comer ou seja em caso de fome extrema

Em sentido semelhante Garciacutea (2013) esclarece que homens e animais

tendem a ser conservadores em mateacuteria de gosto embora isso natildeo represente

uma resistecircncia absoluta a experimentaccedilotildees Para o autor a razatildeo dos animais

se daacute por instinto bioloacutegico e a do homem por questotildees culturais Como a

49

formaccedilatildeo do gosto eacute de ordem cultural tambeacutem segundo Bourdieu (2007) isso

faz sentido uma vez que o gosto alimentar apreendido no nuacutecleo familiar

estabelece tambeacutem o haacutebito de cada indiviacuteduo Um haacutebito por ser condicionado

pela cultura eacute mais difiacutecil de ser mudado mas natildeo impossiacutevel pois haacute situaccedilotildees

em que o gosto e consequentemente o haacutebito alimentar podem sofrer

mudanccedilas Essa questatildeo seraacute relativizada mais agrave frente neste trabalho

Neste sentido Garcia (2013) a esclarece que os comportamentos

culturais se formam atraveacutes dos costumes e aprendizados Em geral os seres

humanos preferem o conhecido ao novo ou exoacutetico sobretudo em se tratando

de comida Isso pode estar tanto relacionado ao tipo de alimento como agrave forma

de seu cultivo colheita preparo e armazenamento Um mesmo alimento pode

assumir diferentes sabores e aspectos dependendo da forma como eacute preparado

O peixe tanto pode ser cru na preferecircncia de algumas culturas como pode ser

frito assado ou ensopado e com adiccedilatildeo de temperos e condimentos na

preferecircncia de outras

321 Alimentos aceitos e rejeitados

Esses aspectos dos padrotildees culturais alimentares satildeo tambeacutem tratados

por Sahlins (2003) ao chamar a atenccedilatildeo para o fato de que mesmo o

determinismo cultural de uma sociedade natildeo pode deixar de considerar a

sobrevivecircncia e portanto a continuaccedilatildeo da espeacutecie como por exemplo fazer a

distinccedilatildeo entre alimentos comestiacuteveis e natildeo comestiacuteveis Mas o autor destaca

que haacute uma junccedilatildeo e por isso tambeacutem um conflito entre o aspecto utilitarista

(objetivo) e simboacutelico (subjetivo) na produccedilatildeo e no consumo de produtos Em um

dos capiacutetulos o autor trata do sistema alimentar dos americanos do Norte de

suas preferecircncias alimentares e dos tabus em relaccedilatildeo ao consumo de animais

domeacutesticos Destaca que o aspecto simboacutelico predomina sobre o de ordem

praacutetica Segundo o autor a relaccedilatildeo produtiva estabelecida pela sociedade

americana estaacute pautada no aspecto do que eacute considerado por eles como

comestiacutevel e natildeo comestiacutevel que envolve tanto a exploraccedilatildeo do meio ambiente

quanto as formas de lidar com a terra Neste caso baseado numa relaccedilatildeo em

que ldquoa carne eacute elemento central e os carboidratos e legumes satildeo apoios

perifeacutericos na dietardquo (p 171)

50

A carne como siacutembolo de ldquoforccedilardquo evoca o polo masculino de um coacutedigo social da comida o qual deve originar-se na identificaccedilatildeo indo-europeia do boi ou da riqueza crescente com a virilidade A indispensabilidade da carne como ldquoforccedilardquo e do fileacute como a siacutenteses das carnes viris permanece condiccedilatildeo baacutesica da dieta americana (SAHLINS 2003 p 171)

Segundo o autor o que determina para os americanos qual carne eacute ou

natildeo comestiacutevel eacute a relaccedilatildeo das espeacutecies com a sociedade humana Animais de

estimaccedilatildeo recebem afagos e carinho tem nome proacuteprio diferente da situaccedilatildeo

dos animais para abate Mas essa natildeo eacute uma particularidade dos americanos do

Norte Tambeacutem eacute condiccedilatildeo para outras culturas ainda que os motivos sejam

religiosos como por exemplo na Iacutendia onde o consumo da carne de bovinos eacute

evitado por razotildees religiosas do hinduiacutesmo Os judeus e muccedilulmanos tambeacutem

por motivos religiosos rejeitam a carne de porco que eacute amplamente consumida

na maior parte do ocidente Por outro lado no ocidente eacute praticamente

impensaacutevel a possibilidade de se tomar uma sopa a base de carne de cachorro

alimento relativamente comum ao paladar dos chineses e dos vietnamitas por

exemplo Isso ocorre no ocidente porque catildees satildeo animais de estimaccedilatildeo e

estabelecem relaccedilotildees muito afetivas com os seres humanos vistos como um

membro da famiacutelia conforme aponta Sahlins (2003)

Da mesma forma a carne de cavalo agrada a alguns grupos de regiotildees

francesas belgas e italianas O Brasil natildeo tem por haacutebito consumir a carne de

cavalo apesar de ser um dos maiores exportadores Em meacutedia 15 mil toneladas

por ano19 Segundo Sahlins (2003) durante a crise inflacionaacuteria meteoacuterica nos

Estados Unidos no ano de 1973 foi sugerido pelos governantes que a populaccedilatildeo

adotasse o haacutebito de consumir alimentos mais baratos poreacutem tatildeo nutritivos

quanto a carne de boi (viacutesceras rins coraccedilatildeo) Isso soou como uma afronta para

a populaccedilatildeo A rejeiccedilatildeo pelas viacutesceras se deu por razatildeo socioeconocircmica Para

boa parte da populaccedilatildeo americana comer partes menos nobres do boi seria se

aproximar socialmente de classes mais pobres ldquoA razatildeo para essa repulsa

parece pertencer agrave loacutegica semelhante que recebeu com desagrado algumas

tentativas de substituir a carne bovina por carne de cavalo durante o mesmo

periacuteodordquo (p 172) Em funccedilatildeo disso foi realizado um ato como protesto dos

ldquoapreciadores dos cavalos como animais de estimaccedilatildeordquo

19 httpgrandschefsblogspotcombr201007carne-de-cavalo-o-brasil-e-um-doshtml

51

Tambeacutem eacute exoacutetico para o ocidente o haacutebito da populaccedilatildeo chinesa em

consumir escorpiotildees ratos e uma variedade de insetos Esses alimentos foram

inseridos no cardaacutepio chinecircs em periacuteodo de crise alimentar com o objetivo de

abastecer um paiacutes extremamente populoso Atualmente continuam sendo

consumidos no entanto muito mais como atrativo agrave curiosidade de turistas do

que por necessidade de consumo

Os indiacutegenas da Ameacuterica do Sul possuem o haacutebito de comer alguns

alimentos que os natildeo iacutendios consideram exoacuteticos como por exemplo formigas

larvas de abelhas cupins lagartas besouros etc Em algumas cidades do norte

do Brasil eacute possiacutevel encontrar nas feiras misturas como farofas agrave base de formiga

sauacuteva Eacute interessante ressaltar que um alimento exoacutetico perde essa classificaccedilatildeo

a partir do momento em que passa a agradar ao paladar e a ser consumido sem

aversatildeo a ele Deixando assim de ser exoacutetico para se transformar em familiar

parafraseando DaMatta (1978) Assim o conceito de exoacutetico varia de uma

cultura a outra mas tambeacutem de uma pessoa a outra em uma mesma sociedade

Houve um tempo no Brasil em que comer formiga sauacuteva frita ou tostada

natildeo fazia parte apenas da dieta indiacutegena Relatos de viagem apontam serem

elas importante complemento num periacuteodo de escassez alimentar nas viagens

dos bandeirantes desbravando as Minas Gerais Frieiro (1982) cita documento

da viagem do Conde de Assumar Dom Pedro a Vila Rica em 1717 passando

por Satildeo Paulo quando lhe foi oferecido a ele e agrave sua comitiva formigas sauacutevas

(icaacute) torradas20

Dependendo do contexto o exoacutetico pode ser um emblema de classe e

aqui novamente se insere a argumentaccedilatildeo do gosto como diferenciaccedilatildeo ou

distinccedilatildeo de classes como discutido por Bourdieu (2007) Por exemplo o exoacutetico

considerado ldquochiquerdquo ou ldquogourmetrdquo quando se trata de atribuir status de

consumo e portanto desejado como por exemplo o caviar ou o foie gras Ao

serem aceitos por um perfil de consumidores que aceitam pagar o elevado preccedilo

desses dois produtos eles perderam o status de exoacutetico rejeitaacutevel e passou a

20 Dom Pedro e sua comitiva mais duma vez nos ermos em que pousavam quase passaram fome em

razatildeo do pouco ou quase nada que lhes ofereciam para comer Em Santos e Satildeo Paulo pequenas vilas de algumas centenas de casas o passadio natildeo foi de todo mau Comia-se comumente o que as roccedilas produziam isto eacute milho mandioca feijatildeo e algumas frutas da terra que era o habitual sustento dos paulistas natildeo se comendo carne senatildeo em alguns dias do ano Penetrando no interior com alguns dias de jornada soacute encontraram para cear no rancho dum paulista meio macaco e umas poucas formigas O Conde agradeceu a oferta e comeu (FRIEIRO 1982 p 62)

52

ser visto como um exoacutetico aceitaacutevel assim como jaacute ocorre em boa parte do paiacutes

em relaccedilatildeo agraves comidas japonesas italianas indianas etc que se popularizaram

e jaacute natildeo satildeo mais estranhas ao paladar de boa parte da populaccedilatildeo das aacutereas

urbanas No entanto o exoacutetico popular raramente eacute desejado como a carne de

rato por exemplo consumida pelos chineses mas que no Brasil permanece

sendo rejeitada

Nessa discussatildeo estaacute presente a necessidade de relativizaccedilatildeo da

questatildeo do gosto e do haacutebito alimentar jaacute que apesar de tenderem a ser

tradicionais eacute possiacutevel muda-los ou incorporar novas percepccedilotildees por meio de

significados simboacutelicos (status curiosidade pelo novo para se inserir num

determinado grupo de interesse)

Garciacutea (2009) assim como Harris (2011) estabelece que a correlaccedilatildeo

entre alimentaccedilatildeo e cultura ocorre devido ao fator fisioloacutegico da atividade de

comer estar condicionado culturalmente e isso envolve desde as maneiras de

obtenccedilatildeo dos alimentos ateacute os modos de consumi-los Assim para Garcia

(2009) a escolha dos alimentos se daacute por fatores primeiramente de ordem

cultural e social e em segundo lugar pelas suas qualidades nutricionais e pelo

aspecto econocircmico Nesse sentido o alimento escolhido precisa ser ldquobom para

comerrdquo fazendo uso da expressatildeo utilizada por Harris (2011) ldquoLos alimentos

preferidos (buenos para comer) son aquellos que presentan uma relacioacuten de

costes y benefiacutecios praacutecticos maacutes favorables que los alimentos que se evitan

(malos para comer)rdquo (HARRIS 2011 p 17)

3211 Haacutebitos alimentares orientados por costumes e tradiccedilotildees

Retomando a discussatildeo de Harris (2011) o autor explica que os

costumes culturais e as tradiccedilotildees alimentares de cada sociedade eacute que orientam

os haacutebitos alimentares e essa diversidade deve ser respeitada e valorizada por

aqueles que estudam o tema da alimentaccedilatildeo ldquoComo antropoacutelogo tambieacuten

suscribo el relativismo cultural em mateacuteria de gustos culinarios no se debe

ridiculizar ni condenar los haacutebitos alimentarios por el mero hecho de ser

diferentesrdquo (HARRIS 2011 p 15)

Essa defesa tambeacutem foi feita por Mary Douglas e Ravindra Khare em

1979 quando escreveram uma apresentaccedilatildeo sobre a antropologia da

53

alimentaccedilatildeo no importante perioacutedico ldquoSocial Science Informationrdquo Nesse artigo

as autoras informaram sobre a criaccedilatildeo da ldquocomisioacuten internacional sobre la

antropologia de la alimentacioacutenrdquo A criaccedilatildeo da comissatildeo ocorreu em funccedilatildeo da

necessidade de se discutir as poliacuteticas e estrateacutegias que estavam sendo

desenvolvidas e implementadas nas situaccedilotildees de fome aguda eou crocircnica em

algumas naccedilotildees naquela eacutepoca Pontuaram neste artigo aspectos importantes

que devem ser observados na implantaccedilatildeo de poliacuteticas alimentares para

solucionar a fome Estes aspectos dizem respeito agrave necessidade de se planejar

a soluccedilatildeo de problemas que acometem paiacuteses em situaccedilatildeo de fome que satildeo as

questotildees que envolvem poliacutetica sanitaacuteria e higiene conhecimento de teacutecnicas de

armazenamento e distribuiccedilatildeo mas chamaram a atenccedilatildeo de forma enfaacutetica para

o respeito aos aspectos culturais ldquoHa de basarse em el anaacutelisis de la sociedade

La conviccioacuten de fondo es que los patrones locales de seleccioacuten de alimentos no

pueden ser impuestos sino que dependen de la vida domeacutestica de las ideias

locales sobre processos fisioloacutegicos de divisioacuten de trabajo de horaacuteriordquo

(DOUGLAS KHARE 1979 apud GARCIacuteA 2009 p 30)

Essa argumentaccedilatildeo deixa claro o entendimento diferenciado das autoras

sobre a necessidade da interaccedilatildeo dos antropoacutelogos da alimentaccedilatildeo com

profissionais de outras aacutereas nutricionistas ecologistas economistas

agrocircnomos poliacuteticos e outros atuantes em poliacuteticas sobre o combate agrave fome

para que a cultura alimentar seja respeitada nas intervenccedilotildees sociais Questatildeo

tambeacutem defendida por Valente (2003) ao criticar a limitaccedilatildeo que existe nos

trabalhos isolados em cada especialidade e ao defender a interdisciplinaridade

na elaboraccedilatildeo de projetos porque feitos de forma isolada cada profissional

tende a ver o problema da fome com suas proacuteprias lentes desprezando outras

possibilidades

O profissional da sauacutede ldquoenxergardquo desnutriccedilatildeo e doenccedila e propotildee vacinaccedilatildeo saneamento aleitamento materno etc O agrocircnomo ldquodiagnosticardquo falta de alimentos e propotildee maior produccedilatildeo de alimentos ajuda alimentar etc O educador vecirc ldquoignoracircncia e haacutebitos alimentares inadequadosrdquo e propotildee educaccedilatildeo alimentar Os economistas claacutessicos ldquoidentificamrdquo maacute distribuiccedilatildeo de alimentos e propotildeem uma melhor poliacutetica fiscal geraccedilatildeo de emprego e renda etc Os planejadores diagnosticam ldquofalta de coordenaccedilatildeordquo e propotildeem a criaccedilatildeo de conselhos de alimentaccedilatildeo e nutriccedilatildeo e capacitaccedilatildeo (VALENTE 2003 p 52)

Recentemente a FAOONU (2013) apresentou um projeto em que

propotildee a introduccedilatildeo de insetos como alimentos no combate agrave fome Como

54

justificativa informou que aproximadamente dois bilhotildees de pessoas no mundo

jaacute se alimentam de insetos como besouros lagartas abelhas vespas formigas

gafanhotos grilos cupins libeacutelulas e moscas Agrave praacutetica de se comer insetos da-

se o nome de entomofagia segundo a FAOONU (2013) As justificativas da FAO

estatildeo relacionadas a aspectos de sauacutede pois satildeo altamente nutritivos e ricos em

proteina podendo substituir facilmente em termos nutricionais as carnes de

porco de boi de frango e tambeacutem de peixe aspectos ambientais pois sua

produccedilatildeo gera baixo impacto ao meio ambiente e aspectos relacionados a

fatores econocircmicos e sociais Segundo este oacutergatildeo a criaccedilatildeo de insetos pode vir

a se tornar uma opccedilatildeo de investimento com pouco capital e pode ser importante

fonte de renda e de consumo para camadas mais pobres e populaccedilatildeo sem

acesso agrave propriedade da terra aleacutem de ser uma atividade que natildeo necessita de

tecnologia sofisticada

Sobre isso eacute importante de tecer algumas observaccedilotildees criacuteticas ao

considerar que tal projeto representa um desafio ao propor a inserccedilatildeo de insetos

na dieta em nivel global o que significa tornaacute-la atrativa tambeacutem naquelas

culturas onde satildeo atualmente rejeitadas Todos esses aspectos conduzem a

uma reflexatildeo sobre outro tipo de escolha alimentar que estaacute relacionada agrave

questatildeo de ordem social e econocircmica Ou seja estaacute em pauta se as pessoas

que sofrem de fome aguda ou crocircnica satildeo obrigadas a se adaptar ao exoacutetico se

assim lhes for oferecido em funccedilatildeo de uma poliacutetica puacuteblica ou se isso lhes seria

oferecido como escolha passiacutevel de adoccedilatildeo ou de rejeiccedilatildeo

Tal reflexatildeo remete agraves observaccedilotildees sobre direito agrave liberdade na forma

como eacute tratada por Sen (2000 p 23) ldquoa privaccedilatildeo de liberdade econocircmica pode

gerar a privaccedilatildeo de liberdade social assim como a privaccedilatildeo de liberdade social

da mesma forma pode gerar a liberdade econocircmicardquo O que implica em perda

de acesso e do direito de escolhas inclusive alimentares Portanto acredita-se

que caso esse tipo de alimentaccedilatildeo seja imposta o projeto vai no sentido

contraacuterio ao proposto pela comissatildeo de antropologia da alimentaccedilatildeo citado

acima por Douglas e Khare (1979 apud GARCIacuteA 2009) A imposiccedilatildeo de um

determinado alimento ou o convencimento em adota-lo pode tambeacutem ocorrer

de forma velada utilizando-se campanhas com os grupos locais e ou atraveacutes

da miacutedia como ocorre em relaccedilatildeo a vaacuterios alimentos que passam a ser

55

consumidos sobretudo pelas crianccedilas agrave partir de campanhas publictaacuterias

muitas vezes utilizando-se argumentos apelativos

Certamente essa proposta recente poderaacute ter o debate ampliado nos

proacuteximos anos O que nos interessa aqui eacute sobretudo chamar a atenccedilatildeo para a

inserccedilatildeo de novas praacuteticas alimentares na contemporaneidade Praacuteticas essas

que se mesclam num processo de ampliaccedilatildeo do multiculturalismo alimentar

O proacuteximo item trata da discussatildeo sobre a percepccedilatildeo do alimento como

caracteriacutestica cultural e ainda sobre os reflexos do sistema alimentar

contemporacircneo na vida dos comedores

33 Alimento comida e cultura

Aleacutem de ser uma atitude bioloacutegica a alimentaccedilatildeo assume tambeacutem um

comportamento cultural Discussatildeo jaacute iniciada nos itens anteriores

Bioloacutegica por uma questatildeo de sobrevivecircncia sendo um fator

insubstituiacutevel para a manutenccedilatildeo da vida e condiccedilatildeo sine qua non para todos os

seres humanos Relaciona-se diretamente agrave vitalidade do indiviacuteduo agrave

necessidade fisioloacutegica de ingerir nutrientes capazes de manter o corpo em

funcionamento sendo sob esse aspecto um comportamento relativo agrave natureza

humana O que ingerir e as quantidades a serem ingeridas para suprir as

necessidades variam de uma pessoa para outra de acordo com fatores como

idade altura peso tipo de atividade quadro cliacutenico entre outros

Corresponder a uma atitude natural e de caraacuteter instintivo natildeo torna

necessariamente o ato de alimentar-se como algo consciente sob o aspecto

nutricional porque nem todos os indiviacuteduos conhecem a composiccedilatildeo dos

alimentos e aqueles que conhecem nem sempre pensam a respeito disso ao

realizar as refeiccedilotildees cotidianas aspecto que foi tratado por Harris (2011) e

Garciacutea (2009)

O termo ldquoalimentordquo surgiu segundo Poulain (2013) por volta do ano

1120 mas o seu significado atual somente foi utilizado a partir do seacuteculo XVI

quando passou a substituir a expressatildeo ldquocarnerdquo e esta uacuteltima passou a se referir

apenas agrave carne tal qual a conhecemos ou seja a dos animais comestiacuteveis O

autor explica que anteriormente a expressatildeo ldquocarnerdquo era utilizada para se referir

a tudo o que era bom para manter a vida fossem alimentos caacuterneos ou natildeo

56

Para este autor um alimento deve possuir essas quatro qualidades nutricionais

organoleacutepticas higiecircnicas e simboacutelicas Sobre as simboacutelicas o autor destaca

Para ser um alimento aleacutem das trecircs primeiras caracteriacutesticas de qualidade um produto natural deve poder ser o objeto de projeccedilotildees de significados por parte do comedor Ele deve poder tornar-se significativo inscrever-se numa rede de comunicaccedilotildees numa constelaccedilatildeo imaginaacuteria numa visatildeo de mundo (POULAIN 2013 p 240)

De Garine (1987 p 4) ao resgatar o pensamento de Margaret Mead

destaca que as escolhas alimentares dos seres humanos estatildeo relacionadas agraves

possibilidades de alimentos disponibilizados pelo meio e ao potencial teacutecnico que

possuem

La supervivencia de un grupo humano exige por supuesto que su reacutegimen alimenticio satisfaga las necessidades nutritivas No obstante el nivel de satisfaccioacuten de estas necessidades cuya definicioacuten sigue siendo controvertida variacutea cualitativa y cuantitativamente de una sociedad a otra Tambieacuten cambia en el interior de cada una seguacuten la categoriacutea de edad el sexo el niacutevel econoacutemico y otros criterios (DE GARINE 1987 p 4)

De acordo com Contreras e Gracia (2011) e Woortmann (2007) as

escolhas alimentares que satildeo as formadoras dos haacutebitos se constituem em uma

parte da totalidade cultural Para Contreras e Gracia (2011) pode-se afirmar que

ldquosomos o que comemosrdquo21 tanto no aspecto fisioloacutegico como tambeacutem no

espiritual ao ldquoincorporarrdquo psicossocialmente os elementos culturais daquilo que

ingerimos que pode ser desde elementos ligados agrave espiritualidade como

tambeacutem agrave memoacuteria afetiva Pela mesma razatildeo defendem que ldquocomemos o que

somosrdquo

Comemos aquilo que nos faz bem ingerimos alimentos que satildeo atrativos para os nossos sentidos e nos proporcionam prazer enchemos a cesta de compras de produtos que estatildeo no mercado e na feira e nos satildeo permitidos por nosso orccedilamento servimos ou nos satildeo servidas refeiccedilotildees de acordo com nossas caracteriacutesticas se somos homens ou mulheres crianccedilas ou adultos pobres ou ricos E escolhemos ou recusamos alimentos com base em nossas experiecircncias diaacuterias e em nossas ideias dieteacuteticas religiosas ou filosoacuteficas (CONTRERAS GRACIA 2011 p 16)

21 Conhecido aforismo proferido pelo filoacutesofo alematildeo Ludwig Feuerbach na obra ldquoO misteacuterio do sacrifiacutecio

ou o homem eacute o que ele comerdquo (1862) Tambeacutem Brillat-Savarin escreveu em seu tratado sobre lsquoA Fisiologia do Gostorsquo ldquoDize-me o que comes e te direi quem eacutesrdquo (SAVARIN-BRILLAT 1995 p 15) Os dois aforismos satildeo muito utilizados por aqueles que escrevem sobre alimentaccedilatildeo

57

Em uma percepccedilatildeo semelhante Woortmann (2007) em estudos sobre

dimensotildees sociais da comida entre os camponeses defende a lsquocomidarsquo para

este grupo como sendo uma ldquocategoria cultural nucleante que se articula a

lsquotrabalhorsquo e a lsquoterrarsquo e que as escolhas alimentares que incluem alimentos

proibidos permitidos e os preferidos estatildeo ligadas agraves dimensotildees de gecircnero de

memoacuteria de famiacutelia de identidade de religiatildeo etc

DaMatta (2001 p 56) defende que ldquoo jeito de comer define natildeo soacute aquilo

que eacute ingerido como tambeacutem aquele que ingererdquo Pode-se afirmar portanto que

comer eacute mais do que apenas um ato de sobrevivecircncia eacute tambeacutem um

comportamento simboacutelico e cultural

A diferenccedila entre o alimento como fator bioloacutegico e o alimento como

cultura eacute discutida principalmente por Montanari (2008) Delormier et al (2009)

DaMatta (2001 e 1987) Maciel (2001) Ishige (1987) Silva Mello (1956) Crotty

(1993) De Garine (1987) Cacircmara Cascudo (2004) e Woortmann (1985)

Crotty (1993 apud DELORMIER et al 2009) defende que a praacutetica

alimentar abrange duas acepccedilotildees Aquela posterior agrave ingestatildeo do alimento e que

estaacute relacionada ao universo da biologia (fisiologia e bioquiacutemica) e aquela

anterior agrave ingestatildeo Este uacuteltimo estaacute relacionado agraves questotildees culturais e sociais

ou seja agrave natureza social do comer Segundo a autora no campo da disciplina

da nutriccedilatildeo da-se pouco valor a este uacuteltimo aspecto ateacute mesmo devido aos seus

objetivos teacutecnico-cientiacuteficos Concordando com a percepccedilatildeo de Crotty (1993)

Delormier et al (2009) defendem que natildeo considerar os aspectos sociais e

culturais no campo de interesse representa de certa forma uma limitaccedilatildeo a

qualquer disciplina Estes autores tambeacutem analisam que o processo de escolha

alimentar na maior parte das vezes natildeo se daacute primeiramente pela opccedilatildeo

nutricional mas sim pelas influecircncias do conviacutevio social cotidiano que podem

estar presentes nas relaccedilotildees familiares mas tambeacutem no local de trabalho na

escola e em outros locais de convivecircncia que permitem trocas e ajudam a moldar

as escolhas alimentares dos indiviacuteduos

A atribuiccedilatildeo de status simboacutelico dado ao alimento e ao ato de comer eacute

definida segundo alguns autores pela diferenccedila semacircntica entre ldquocomidardquo e

ldquoalimentordquo DaMatta (1987) ao estudar a comida brasileira defende que toda

substacircncia nutritiva eacute um alimento mas nem todo alimento eacute comida Alimento

aponta o autor eacute universal e geral eacute o que o indiviacuteduo ingere para se manter

58

vivo jaacute a comida ajuda a situar uma identidade e definir um grupo uma classe

uma pessoa ldquoTemos o alimento e temos a comida Comida natildeo eacute apenas uma

substacircncia alimentar mas eacute tambeacutem um modo um estilo e um jeito de alimentar-

serdquo (DAMATTA 2001 p 56) Em uma aproximaccedilatildeo a DaMatta (1987)

Woortmann (1985) aponta ldquocomidardquo como sendo o oposto de mantimento

embora derive dele Pois comida eacute a transformaccedilatildeo do mantimento atraveacutes da

culinaacuteria

Neste sentido comer proporciona uma relaccedilatildeo de intimidade com o ser

humano pois haacute ainda o investimento psicossocial no processo de escolha dos

alimentos O proacuteprio processo de ingerir demonstra a intimidade existente entre

a comida e o corpo considerando que trata daquilo que segundo Mintz (2001

p 31) ldquoeacute colocado para dentro do corpordquo O autor defende que ldquonenhum outro

comportamento natildeo automaacutetico se liga de modo tatildeo iacutentimo agrave nossa

sobrevivecircnciardquo Corroborando esse pensamento Cacircmara Cascudo (2004 p

348) defende que eacute ldquoinuacutetil pensar que o alimento contenha apenas es elementos

indispensaacuteveis agrave nutriccedilatildeo Conteacutem substacircncias imponderaacuteveis e decisivas para

o espiacuterito alegria disposiccedilatildeo criadora bom humorrdquo

Maciel (2001) tambeacutem compartilha da ideia de diferenciaccedilatildeo entre

ldquocomidardquo e ldquoalimentordquo ao reconhecer a junccedilatildeo entre natureza e cultura quando

se trata de alimentaccedilatildeo humana pois poucas horas apoacutes o nascimento

instintivamente a crianccedila chora em busca pelo leite materno Poreacutem a

amamentaccedilatildeo em humanos eacute um ato tambeacutem cultural considerando que o

receacutem-nascido ao ser amamentado experimenta a sensaccedilatildeo de aconchego

favorecendo o viacutenculo entre matildee e filho e ainda o prazer de comer A crianccedila

gosta do sabor do leite e natildeo o rejeita O leite eacute assim alimento e comida ndash

natureza e cultura22

Comida eacute assim o alimento transformado pelas representaccedilotildees sociais

e culturais Eacute o que sugere tambeacutem Montanari (2008) Para este autor

diferentemente das outras espeacutecies animais o homem aproveita os alimentos

que encontra na natureza mas isso natildeo o impede de querer tambeacutem criar a

proacutepria comida usando esses alimentos baacutesicos encontrados mas

transformando-os pelo uso do fogo e uso das praacuteticas tecnoloacutegicas que se

22 Silva Mello (1956) Sandre-Pereira (2012) Mead (1969) e Bosi Machado (2005) satildeo outros autores que

discutem mais profundamente a questatildeo sobre amamentaccedilatildeo e cultura

59

desenvolvem nas cozinhas ldquoOs valores de base do sistema alimentar se definem

como resultado e representaccedilatildeo de processos culturais que preveem a

domesticaccedilatildeo a transformaccedilatildeo e a reinterpretaccedilatildeo da naturezardquo (p 15) O

consumo dos alimentos tambeacutem eacute tratado como cultura pelo autor uma vez que

o homem escolhe o que comer baseado em criteacuterios de ordem econocircmica

nutricional preferecircncias mas tambeacutem em simbologias atribuiacutedas ao alimento

portanto comida Por essas razotildees ldquoa comida se apresenta como elemento

decisivo da identidade humana e um dos mais eficazes instrumentos para

comunica-lardquo (p 16) A natureza produz os alimentos mas a cultura faz surgir

coacutedigos importantes como por exemplo as diferentes opccedilotildees de cardaacutepios as

receitas os haacutebitos que por sua vez se relacionam ao paladar ao prazer

relacionado agraves propriedades organoleacutepticas dos alimentos e sobretudo ao

prazer da degustaccedilatildeo

331 A importacircncia social e cultural do uso do fogo e sua relaccedilatildeo com a comensalidade

O valor cultural do alimento se fortalece a partir da descoberta do fogo e

do iniacutecio do processo de cozimento dos alimentos Os pesquisadores das

Ciecircncias Sociais que primeiramente deram ecircnfase ao papel fundamental do fogo

na transformaccedilatildeo do alimento atribuindo-lhe assim uma funccedilatildeo cultural para

aleacutem da bioloacutegica foram Claude Leacutevi-Strauss Jean Anthelme Brillat-Savarin

Richard Wrangham e Massimo Montanari

Segundo Montanari (2008) para os seres humanos a comida eacute cultura

e natildeo apenas pura natureza devido agrave adoccedilatildeo ndash como parte essencial de suas

teacutecnicas ndash dos modos de produccedilatildeo de preparaccedilatildeo e de consumo de alimentos

bem como o conhecimento sobre plantas proacuteprias para consumo Para o autor

o uso do fogo eacute fundamental na transformaccedilatildeo do alimento bruto em produto

cultural em comida Referente agrave esta percepccedilatildeo Leacutevi Strauss discute em ldquoO Cru

e o Cozidordquo como o uso do fogo permitiu de certa forma o homem passar do

estado da natureza ndash ao se referir a ingestatildeo do alimento de caccedila ou coleta na

forma crua ndash para o estado da cultura a partir da transformaccedilatildeo do alimento em

cozido Numa analogia da linguagem verbal dos grupos em seu artigo

denominado ldquoO Triacircngulo Culinaacuteriordquo o autor propotildee explicar a relaccedilatildeo natureza

60

ndash cultura com a linguagem da comida conferindo status de linguagem universal

agrave comida ldquoassim como natildeo existe sociedade sem linguagem natildeo existe

nenhuma que de um modo ou de outro natildeo cozinhe pelo menos alguns de seus

alimentosrdquo (LEacuteVI-STRAUSS 1968 p 25) O Triacircngulo culinaacuterio proposto pelo

antropoacutelogo se forma pelo cru pelo cozido (assado e fervido) e pelo apodrecido

Estaacute claro que em relaccedilatildeo agrave cozinha o cru constitui o polo natildeo marcado e que os dois outros o satildeo acentuadamente mas em direccedilotildees opostas com efeito o cozido eacute uma transformaccedilatildeo cultural do cru enquanto que o apodrecido eacute uma transformaccedilatildeo cultural dele Subjacente ao triacircngulo primordial haacute portanto uma dupla oposiccedilatildeo entre elaboradonatildeo elaborado de um lado e entre culturanatureza de outro Sem duacutevida alguma estas noccedilotildees constituem formas vazias nada nos ensinam sobre a cozinha de tal ou tal sociedade particular uma vez que apenas a observaccedilatildeo pode nos dizer o que cada um entende por ldquocrurdquo ldquocozidordquo e ldquoapodrecidordquo e uma vez que pode se supor que natildeo seraacute a mesma coisa para todas (LEacuteVI-STRAUSS 1968 p 25)

Em uma escala de relevacircncia cultural o cru estaacute na base mais simples

da escala na sequecircncia viria o assado ocupando segunda posiccedilatildeo pois

necessita apenas do fogo Os mais elaborados satildeo assim fervidos ou

ensopados que por necessitar de maior envolvimento humano e de uma vasilha

com aacutegua estando num patamar de elaboraccedilatildeo mais complexo e portanto

numa escala de maior relevacircncia cultural

Apoacutes Leacutevi-Strauss que analisou a mitologia dos povos ameriacutendios e seu

ldquomundordquo culinaacuterio buscando traduzir entre outras questotildees os mitos sobre a

origem do fogo a partir da representaccedilatildeo desse grupo surgiram outros estudos

destacando a importacircncia do fogo na praacutetica de cozinhar Um desses estudos

recentes eacute do antropoacutelogo Wrangham (2010) que tambeacutem defende a descoberta

do fogo e o cozimento como sendo definidores da humanidade e responsaacutevel

por diferenciar os humanos dos macacos originando o gecircnero Homo

Semelhante afirmaccedilatildeo eacute feita por Garciacutea (2013)

La conquista del fuego supuso (de manera metafoacuterica) la separacioacuten definitiva del mundo de los seres vivos en dos grupos de un lado quedaron los hombres de otro los demaacutes animales El fuego nos transformoacute em humanos La domesticacioacuten del fuego supuso en definitiva un impulso decisivo en la historia humana un impulso fecundador que permitioacute que se produjeran nuevos avances que a su vez abrieron la viacutea a otros progresos generando una reaccioacuten en cadena que ha desembocado en el complejo y tecnificado mundo actual (GARCIacuteA 2013 p 167)

61

Cozinhar aumentou o valor da comida Assim o uso do fogo alterou

fisicamente o corpo humano reduzindo o aparelho digestivo e aumentando o

tamanho do ceacuterebro mas tambeacutem alterando o uso do tempo e a vida social O

impacto recaiu ainda sobre as relaccedilotildees com a natureza que conforme

(WRANGHAM 2010 p 7) ldquotransformou-nos em consumidores de energia

externa e assim criou um organismo com uma nova relaccedilatildeo com a natureza

dependente de combustiacutevelrdquo

O valor cultural do fogo na transformaccedilatildeo do alimento eacute tatildeo claro que

conforme aponta Leach (1970 apud WRANGHAM 2010 p 15) ldquoAs pessoas

natildeo precisam cozer sua comida elas o fazem por razotildees simboacutelicas para

mostrar que satildeo homens e natildeo animaisrdquo Afinal somos os uacutenicos animais

capazes de cozinhar o proacuteprio alimento

Por outro lado natildeo se pode afirmar que ingerir alimento cru natildeo possua

caracteriacutestica cultural pois como argumenta Giard (2012 p 232) ldquoMesmo cru e

colhido diretamente da aacutervore o fruto jaacute eacute um alimento culturalizado antes de

qualquer preparaccedilatildeo e pelo simples fato de ser tido como comestiacutevel rdquo Para a

autora a noccedilatildeo de alimento comestiacutevel iraacute variar de um grupo a outro ou seja

eacute definido pela cultura questotildees que vimos anteriormente neste capiacutetulo

Haacute outro fator muito importante a se destacar o qual se pode atribuir agrave

descoberta do fogo que eacute o fato de ter propiciado agraves pessoas e aos grupos

juntarem-se em torno dele para se aquecer mas tambeacutem para preparar a

comida distribui-la e ingeri-la Facilitou-se assim o estabelecimento de relaccedilotildees

de comensalidade23 que com o tempo foram se tornando encontros cotidianos e

transformando-se em uma atividade socializadora Conforme argumenta Fladrin

e Montanari (1998) independentemente da forma e das diferenccedilas nas normas

de comportamento existentes em cada sociedade o fato eacute que ldquoa comensalidade

eacute percebida como um elemento lsquofundadorrsquo da civilizaccedilatildeo humana em seu

processo de criaccedilatildeordquo (FLANDRIN MONTANARI 1998 p 109) e para Carneiro

(2003) a comensalidade se constitui em ldquoum complexo sistema simboacutelico de

23 Etimologicamente comensalidade deriva do latim ldquocomensalerdquo Accedilatildeo de comer junto na mesma mesa

Com ldquojuntordquo e Mensa ldquomesardquo Implica em partilhar do mesmo momento e local das refeiccedilotildees Para Poulain (2013) a comensalidade estabelece e reforccedila a sociabilidade ldquoEacute pela cozinha e pelas maneiras a mesa que se produzem as aprendizagens sociais mais fundamentais e que uma sociedade transmite e permite a interiorizaccedilatildeo de seus valores A alimentaccedilatildeo eacute uma das formas de se tecer e se manter os viacutenculos sociaisrdquo (POULAIN 2013 p 182)

62

significados sociais sexuais poliacuteticos religiosos eacuteticos esteacuteticos etc

(CARNEIRO 2003 p 2)

Ao redor do fogo eacute possiacutevel se aquecer preparar os alimentos e a

comida mas tambeacutem estabelecer o diaacutelogo Segundo Garciacutea (2013) nos

primoacuterdios da humanidade os encontros diaacuterios dos grupos se davam em torno

do fogo para trocar experiecircncias do dia e traccedilar estrateacutegias de caccedila por exemplo

Para Wrangham (2010) o advento do fogo mudou a maneira de nossos

ancestrais se relacionarem Passava-se mais tempo junto se aquecendo e

alimentando-se em grupo No volume I da primeira obra dirigida por Philippe

Ariegraves e Georges Duby (1990) Histoacuteria da Vida Privada a importacircncia do fogo eacute

destacada logo no iniacutecio do capiacutetulo de autoria de Yvon Theacutebert que trata da

vida privada e da arquitetura domeacutestica na Aacutefrica Romana Nas habitaccedilotildees natildeo

havia chamineacute nem fogotildees e sim lareiras ldquocuja fumaccedila saiacutea por um buraco no

teto e constituiacutea paradoxalmente um dos celebrados prazeres da rude existecircncia

rural quando a neve cobria os camposrdquo (THEacuteBERT 1990 p 303)

Segundo Flandrin e Montanari (1998) o uso do fogo permitiu ao homem

alimentar-se em conjunto inicialmente ao seu redor em aacutereas externas e com o

passar dos anos com a criaccedilatildeo do espaccedilo social alimentar nos ambientes

domeacutesticos (a cozinha e a sala de jantar) e na sequecircncia com a criaccedilatildeo de

espaccedilos externos agraves residecircncias (os restaurantes lanchonetes etc) Assim a

comida que eacute o alimento transformado pela cultura passa a possuir tambeacutem a

funccedilatildeo agregadora para os seres humanos A essa funccedilatildeo denomina-se de

comensalidade que tem como significado a capacidade de estabelecer relaccedilotildees

de sociabilidade importantes pois implica em reunir as pessoas em torno da

mesa Ou seja enquanto come o grupo tem tambeacutem a oportunidade de dialogar

e trocar experiecircncias do cotidiano

Para Fischler (2011) a comensalidade eacute uma das caracteriacutesticas mais

significantes no que se refere agrave sociabilidade humana relacionando-se natildeo

apenas agrave ingestatildeo de alimentos mas tambeacutem aos modos do comer envolvendo

haacutebitos culturais atos simboacutelicos organizaccedilatildeo social aleacutem do compartilhamento

de experiecircncias e valores Nesse sentido Woortmann (1985) esclarece que na

cultura brasileira a refeiccedilatildeo eacute considerada um ato social e que portanto deve

ser feita em grupo para ser percebida efetivamente como uma refeiccedilatildeo Tambeacutem

em nossa cultura segundo o autor criamos significados diferentes para essa

63

accedilatildeo como comer cotidianamente e comer em eventos especiais comer em

casa e comer fora de casa

O caraacuteter simboacutelico-ritual do comer se expressa claramente no haacutebito de convidar pessoas para jantar em nossa casa no ldquojantar forardquo em determinadas ocasiotildees ou no ldquoalmoccedilo de domingordquo Nessas e em outras ocasiotildees anaacutelogas haacute mais em jogo que necessidades nutricionais Natildeo convidamos pessoas para jantar em nossa casa para alimentaacute-las enquanto corpos bioloacutegicos mas para alimentar e reproduzir relaccedilotildees sociais isto eacute para reproduzir o corpo social o que supotildee que sejamos em troca convidados a comer na casa do nosso convidado O que estaacute em jogo eacute o princiacutepio da reciprocidade e da comensalidade A presenccedila da comida eacute contudo central reconstruindo-se necessidades bioloacutegicas em necessidades sociais (WOORTMANN 1985 p 3)

Em semelhante percepccedilatildeo Algranti (1997) aponta que haacute registros de

que desde o periacuteodo colonial no Brasil a reuniatildeo familiar durante as refeiccedilotildees

pelo menos uma vez ao dia se tornou um costume que se perpetuou nas famiacutelias

rurais bem como nas urbanas Tambeacutem Franco (2001) discorre sobre a

comensalidade no meio rural como sendo uma importante maneira de promover

a solidariedade e reforccedilar laccedilos entre os membros de um grupo de afinidade

Neste sentido ldquoo comerrdquo eacute um ato tanto social quanto poliacutetico e envolve

costumes diaacutelogos usos sabores odores e ateacute mesmo as etiquetas que

correspondem agraves maneiras de comer que satildeo aprendidas no proacuteprio processo

de comensalidade que se daacute nos grupos E segundo Giard (2012) momentos

de comensalidade demarcam relaccedilotildees sociais e afetivas entre os membros de

uma famiacutelia e tambeacutem influencia fortemente o desenvolvimento do gosto

alimentar24 A percepccedilatildeo da autora corrobora a discussatildeo de Bourdieu (2007)

sobre a formaccedilatildeo do gosto e da preferecircncia alimentar

3311 O local do fogo e da praacutetica da comensalidade na arquitetura domeacutestica

Na sociedade ocidental o local do fogo em uma habitaccedilatildeo eacute

principalmente a cozinha que primeiramente era anexa agrave casa e o equipamento

que o representa eacute o fogatildeo A cozinha segundo Flandrin (1990) surge em

24 Eacute preciso ressaltar que nem todas as culturas apreciam comer em conjunto Poreacutem natildeo se pode

considerar como regra os preceitos da comensalidade Como nos mostra Geertz (2008 p 190) sobre a cultura balinesa onde comer eacute considerado uma atividade que gera repulsa ldquo() mas ateacute comer eacute visto como uma atividade desagradaacutevel quase obscena que deve ser feita apressadamente e em particular devido agrave sua associaccedilatildeo com a animalidaderdquo

64

funccedilatildeo das transformaccedilotildees nos costumes sociais ao longo do tempo Assim o

prazer no comer e beber junto foi se modificando Isso ocorre

concomitantemente agraves mudanccedilas nas sociedades Ao longo dos anos e dos

seacuteculos a vida privada passou a ser preferida em lugar da vida puacuteblica

sobretudo nos aspectos de convivecircncia de desfrutar da intimidade e aconchego

familiar Avanccedilos tecnoloacutegicos e encontros com outras culturas favoreceram a

vida e a criaccedilatildeo de espaccedilos internos agrave casa destinados agrave comensalidade por

exemplo A cozinha que antes era compartilhada com vaacuterias pessoas ao redor

do paacutetio passa a ser parte interna de cada habitaccedilatildeo O espaccedilo privado estaacute

associado agrave intimidade e ao refuacutegio em contraste a um espaccedilo puacuteblico do qual o

cotidiano domeacutestico das famiacutelias vai se afastando aos poucos As refeiccedilotildees que

eram feitas ao ar livre ou em locais de faacutecil acesso passam a ser feitas em casas

de alvenaria que possuem portas da rua que ficam fechadas impedindo o

acesso a qualquer pessoa que chegar exceto sob o convite dos donos da casa

Mesmo que inicialmente a cozinha tenha se mantido distante dos outros

cocircmodos ocupava um lugar de destaque nas caracteriacutesticas habitacionais das

mais simples agraves mais requintadas desde o periacuteodo Colonial no Brasil conforme

aponta Lemos (1996) em seu estudo sobre as casas urbanas e rurais brasileiras

ldquoEm Portugal ateacute haacute pouco tempo e no Brasil Colonial sempre se chamou a

moradia de lsquofogorsquo ou lsquofogatildeorsquo Qualquer recenseamento dizia que determinada

cidade possuiacutea tantos habitantes em tantos lsquofogosrsquordquo (LEMOS 1996 p 11)

Segundo Lemos (1976) e Abrahatildeo (2007) as cozinhas do periacuteodo de

colonizaccedilatildeo no Brasil estavam sempre voltadas para o exterior da casa em seus

fundos ficando assim distantes dos cocircmodos de dormir mantendo-os livres do

cheiro de fumaccedila e de gordura Por natildeo haver aacutegua encanada na eacutepoca a

cozinha se localizava muitas vezes na aacuterea externa da habitaccedilatildeo Poreacutem

segundo Algranti (1997) jaacute a partir do seacuteculo XVIII estabeleceu-se dois tipos de

cozinhas a ldquocozinha sujardquo onde se preparavam carnes doces e frituras ou seja

destinava-se agraves atividades mais pesadas e portanto permanecia fora da casa e

a ldquocozinha limpardquo que se acopla agrave residecircncia e onde se prepara o cafeacute os bolos

as saladas etc

Segundo Abdala (2007) o espaccedilo da cozinha nas casas do periacuteodo

colonial em Minas Gerais e que perdurou pelo seacuteculo XIX era amplo bem

ventilado e o fogatildeo a lenha feito de barro ou de pedra sabatildeo ocupava local de

65

destaque Era ainda um espaccedilo iacutentimo natildeo sendo permitida a entrada de

estranhos25

A sala de jantar segundo Cacircmara Cascudo (2004) surgiu no final do

seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX Antes disso qualquer cocircmodo da habitaccedilatildeo servia a

esta finalidade mesmo nos imensos castelos onde o conforto era pequeno

apesar dos grandes espaccedilos Saint-Hilaire em seu registro da passagem por

Minas Gerais assim descreve a sala de jantar das casas que visitou

Nas casas dos pobres assim como nas dos ricos existe sempre uma peccedila denominada sala que daacute para o exterior Eacute ali que se recebem os estranhos e se fazem as refeiccedilotildees sentado em bancos de madeira em torno de uma mesa comprida A gente abastada tem o cuidado de reservar na frente de sua casa uma galeria ou varanda formada pelo teto que se prolonga aleacutem das paredes e eacute sustentado por colunas de madeira (SAINT-HILAIRE 1938 p 186)

Ambos os cocircmodos se constituiacuteram ao longo da histoacuteria nos espaccedilos

principais destinados agrave comensalidade E era tambeacutem um espaccedilo assim como

a cozinha em que as mulheres precisavam provar seus dotes como donas de

casa a sua capacidade de receber visitas atividades que faziam parte dos

saberes transmitidos das matildees para as filhas de forma que por mais simples

que fossem as salas de jantar refletiam a personalidade da dona da dona da

casa segundo Abrahatildeo (2010)

As modificaccedilotildees nos tamanhos e estrutura desses espaccedilos domeacutesticos

nos tempos atuais sinalizam que os arranjos destinados a esta atividade estatildeo

sendo redefinidos socialmente mas natildeo desapareceram No sul do Brasil ainda

eacute comum nos dias de hoje os fogotildees a lenha mesmo nas residecircncias urbanas

do interior Diferentemente da regiatildeo sudeste destacando-se Minas Gerais em

que o fogatildeo a lenha eacute em sua maioria feito de alvenaria nos estados do Sul

eles satildeo feitos industrialmente em ferro esmaltado Nos dias frios eacute em torno dele

que a famiacutelia e os amigos se reuacutenem para cozinhar e degustar o pinhatildeo por

exemplo acompanhado de vinho e muita conversa Em Minas o fogatildeo a lenha

estaacute presente em quase todas as habitaccedilotildees rurais e eacute um equipamento que

permanece no imaginaacuterio das pessoas ao pensar em interior e cozinha rural

25 Durante trabalho de pesquisa para mestrado realizado em 1998-1999 na zona rural de Minas Gerais

tive uma experiecircncia interessante em relaccedilatildeo a cozinha e a intimidade das famiacutelias pesquisadas No iniacutecio das vistas as conversas se davam sempre na sala ou na aacuterea externa da casa agrave medida que ia me tornando uma pessoa mais frequente em funccedilatildeo de novas visitas passei a ser recebida na cozinha Isso ocorreu em quase todas as habitaccedilotildees em que estive naquela fase

66

Martins (1998) em pesquisa realizada na regiatildeo amazocircnica expotildee os

detalhes de uma casa da sua cozinha e suas funccedilotildees de sociabilidade Sua

descriccedilatildeo deixa clara tambeacutem a relaccedilatildeo da cozinha como espaccedilo de pessoas da

intimidade do grupo

Nos povoados da fronteira onde haacute algum recurso a porta sempre aberta continua no corredor comprido que leva agrave cozinha Ela eacute o lugar de conversaccedilatildeo dos natildeo estranhos daqueles com quem os moradores da casa tecircm familiaridade e natildeo necessariamente parentesco Lugar dos que podem ir entrando bastando gritar o costumeiro ldquoOacute de casardquo Natildeo satildeo estranhos mas tambeacutem natildeo satildeo parentes Na entrada fica a saleta para receber os propriamente estranhos limite de seu acesso ao interior da casa (MARTINS 1998 p 695)

Nos falam sobre isso tambeacutem Luiacutes da Cacircmara Cascudo e Gilberto

Freyre em suas obras jaacute citadas anteriormente Freyre (2006) ao tratar sobre

as caracteriacutesticas das casas do periacuteodo dos engenhos de cana explica que

havia diferenccedilas entre as cozinhas existentes nas casas grandes de siacutetios

sobrados assobradadas de subuacuterbio com aquela da casa de engenho Nestas

uacuteltimas informa o autor a cozinha foi mais importante Essas diferenccedilas se

refletiam inclusive no tamanho da mesa destinada agraves refeiccedilotildees e que abrigavam

quem chegasse para almoccedilar

Viajantes e mascates aleacutem dos compadres que nunca faltavam dos papa-pirotildees os parentes pobres do administrador do feitor do capelatildeo dos vaqueiros das visitas de passar o dia famiacutelias inteiras que vinham de outros engenhos em carro de boi Eram mesas de jacarandaacute agraves vezes de seis oito metros de comprimento como as que ainda conhecemos na casa-grande ndash vasto sobrado rural do engenho Noruega26 (FREYRE 2006 p 143)

O autor esclarece que as mesas grandes ndash geralmente de cinco por dois

metros (5x2) ndash para receber famiacutelias enormes eram comuns nas casas grandes

de siacutetios e nos sobrados mas o que ocorria eacute que nas cidades e subuacuterbios o

modo de vida era mais retraiacutedo e sem muita movimentaccedilatildeo diferentemente do

que ocorria nas casas de engenho jaacute que aiacute ldquose recebia o viajante a qualquer

momento com bacia de prata toalha de linho um lugar agrave mesa uma rede ou

uma cama para dormirrdquo (FREYRE 2006 p 144)

Marcel Mauss (2003) em seu Ensaio sobre a Daacutediva cita a ldquoTaacutevola

Redondardquo das crocircnicas de Artur mesa cujo formato circular tinha o objetivo

26 Este engenho foi retrato na forma de gravura aquarelada 1933 por Ciacutecero Dias Esta aquarela compotildee

o livro Casa-Grande amp Senzala de Gilberto Freyre (1ordm Tomo 1964) como documento anexo ao livro e disposto em dobradura

67

simboacutelico de ajudar forma a seus cavaleiros a viver em harmonia pois viviam em

disputas e alimentando inveja entre si A ideia era que ao se sentarem ao seu

redor se reconhecessem como iguais jaacute que nela natildeo havia local de destaque

ou de superioridade

Poreacutem nem sempre o moacutevel ldquomesardquo era ou eacute utilizado Comer assentado

no chatildeo faz parte da cultura indiacutegena e tambeacutem oriental Os iacutendios sentam-se

diretamente no solo nu ou em esteiras e os orientais sobre tapetes nos informa

Cacircmara Cascudo (2004 p 794) Segundo o mesmo autor no Brasil colonial os

pobres tambeacutem comiam dessa maneira o que fez surgir o termo ldquocomida de

esteirardquo Os menos pobres comiam em mesa de madeira ldquoA histoacuteria da

alimentaccedilatildeo na esteira decorre precisamente da heranccedila cabocla do escravo

negro dos mesticcedilos humildesrdquo Mesmo entre os ricos no seacuteculo XIX a mesa

existia mas era improvisada feita em taacutebuas aplainadas na maioria das vezes

Apesar de ser um objeto frequente usado como apoio para os pratos os copos

bebidas e os vasilhames com as comidas durante as refeiccedilotildees nas discussotildees

antropoloacutegicas e socioloacutegicas importa principalmente o seu sentido figurado da

mesa relativo ao ldquocomer juntordquo independentemente de ser assentado ao chatildeo

no sofaacute ou em torno de uma mesa de madeira ou de ferro

Neste sentido importa-nos a conotaccedilatildeo entendimento da

comensalidade no processo socializador e agregador como aquele usado por

Poulain (2013) de que a comensalidade envolve comer acompanhando que eacute

tambeacutem semelhante ao sentido atribuiacutedo por Sobal e Nelson (2003) Fischler

(2011) acrescenta um atributo de espaccedilo a este sentido e diz que literalmente

significa ldquocomer na mesma mesardquo A mesa neste caso podendo ser ateacute mesmo

um ciacuterculo no meio de uma floresta ou o momento e local onde ocorrem as

refeiccedilotildees dos operaacuterios da construccedilatildeo civil com suas marmitas nas matildeos ou

ainda uma toalha posta para um pic nic ou em uma roda que se forma em um

evento social Toda a discussatildeo em torno da relaccedilatildeo mesa e comensalidade

aponta que natildeo ser obrigatoacuterio a existecircncia de um local fiacutesico e de um moacutevel

chamado de mesa para que a comensalidade e sociabilidade alimentar ocorra

basta que haja disponibilidade entre as pessoas e uma certa familiaridade na

convivecircncia Isso tanto vale para o meio rural quanto para o meio urbano No

meio rural ateacute mesmo o local de trabalho no meio de um roccedilado distante da

68

casa onde come-se de marmita eacute um local de relaccedilotildees de diaacutelogo e de comer

tendo uma companhia

Os momentos festivos satildeo outras possibilidades de tambeacutem haver

sociabilidade e de ocorrer a comensalidade Nestes momentos come-se natildeo

necessariamente por fome mas pelo prazer do conviacutevio ainda que temporaacuterio

conforme Fladrin e Montanari (1998)

O homem civilizado come natildeo somente (e menos) por fome para satisfazer uma necessidade elementar do corpo mas tambeacutem (e sobretudo) para transformar essa ocasiatildeo em um momento de sociabilidade em um ato carregado de forte conteuacutedo social e de grande poder de comunicaccedilatildeo (FLADRIN MONTANARI 1998 p 108)

Muitas vezes a sociabilidade inicia-se na proacutepria organizaccedilatildeo dos

festejos Nas aacutereas rurais eacute mais comum que as festas comunitaacuterias ou as da

esfera familiar sejam organizadas pelos moradores locais com ajuda da

vizinhanccedila o que propicia maior sociabilidade para aleacutem dos momentos de

comensalidade que ocorrem durante o evento Na cidade pela maior facilidade

de contratar por serviccedilos de organizaccedilatildeo de festas haacute um menor envolvimento

das pessoas que participaratildeo das festas no processo de sua organizaccedilatildeo

Poreacutem como a cultura eacute dinacircmica sofrendo o efeito dos modos de vida

modernos as relaccedilotildees de sociabilidade e tambeacutem de comensalidade ndash antes

mais tradicionais e com maior constacircncia de momentos em grupo ndash tecircm sido

alteradas conforme aponta alguns autores no toacutepico a seguir

34 Praacuteticas alimentares na contemporaneidade entre o tradicional e o moderno

Apesar de as mudanccedilas no consumo alimentar terem ocorrido de forma

tiacutemida antes do seacuteculo XIX eacute a partir da metade dele que autores como Fischler

(1998) Montanari (1998) Teuteberg e Flandrin (1998) Peacutehaut (1998) Capatti

(1998) Levenstein (1998) Cacircmara Cascudo (2004) Pollan (2014) Rossi (2014)

e Contreras e Gracia (2011) consideram como o iniacutecio de mudanccedilas mais

substanciais nas praacuteticas alimentares principalmente na Europa periacuteodo

marcado por profundas transformaccedilotildees nesse continente dentre elas a

expansatildeo da industrializaccedilatildeo que altera os modos de vida das famiacutelias o

aumento da populaccedilatildeo os avanccedilos na produccedilatildeo agriacutecola que gera em pouco

69

tempo o desenvolvimento da induacutestria alimentar Esses efeitos se ampliam

destacadamente nos seacuteculos XX e XXI Muitas dessas mudanccedilas ocorrem

paulatinamente com a introduccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos de outra cultura

como jaacute visto

Autores como Poulain (2013) Montanari (2008) Lody (2008) Pollan

(2014) Woortmann (2007 e 2013) De Garine (1987) Flandrin e Montanari

(1998) e Maciel (2001) discutem como alguns dos aspectos do modo de vida

moderno ndash tempo escasso para executar as vaacuterias atividades facilidade de

acesso agrave informaccedilatildeo estiacutemulo ao consumismo economia de tempo gerado pelo

uso de produtos alimentiacutecios industrializados dentre outros - influenciam as

praacuteticas alimentares e suas interfaces fazendo surgir diversas maneiras de se

alimentar na contemporaneidade

Maneiras essas que podem interferir nos haacutebitos alimentares nos

horaacuterios e locais das refeiccedilotildees no consumo de alimentos e nas praacuteticas

alimentares Por exemplo receitas de famiacutelia que antes estavam nos cadernos

e eram repassados por geraccedilotildees atualmente satildeo encontradas no verso das

embalagens de alimentos na internet em revistas e em programas de televisatildeo

Os horaacuterios de alimentaccedilatildeo nem sempre coincidem entre os membros da famiacutelia

tampouco o espaccedilo domeacutestico eacute mais o uacutenico a ser usado para tal finalidade A

vida contemporacircnea propotildee adaptaccedilotildees agraves novidades que satildeo apresentadas

constantemente Nesse contexto as mudanccedilas atingem tambeacutem as famiacutelias

rurais que encontram formas de se adaptar criando alternativas para lidar com

o novo

Em funccedilatildeo dessas questotildees alguns desses autores analisam

criticamente a tendecircncia atual de homogeneizaccedilatildeo das praacuteticas alimentares

sendo este talvez um caminho sem volta Essa homogeneizaccedilatildeo igualaria os

comedores contemporacircneos ocidentais que sob a influecircncia da globalizaccedilatildeo

passariam rapidamente a ter haacutebitos e gostos alimentares muito semelhantes

Estas consideraccedilotildees estatildeo presentes nas anaacutelises de Arnaiz (2005) que a partir

do estudo sobre a alimentaccedilatildeo dos espanhoacuteis e com base nas argumentaccedilotildees

de autores como Warde (1997) e Germov e Williams (1999) apresenta quatro

tendecircncias para o sistema alimentar moderno

O fenocircmeno da homogeneizaccedilatildeo do consumo em uma sociedade massificada a persistecircncia de um consumo diferencial e socialmente

70

desigual o incremento da oferta personalizada (poacutes-fordista nos termos dos autores) avaliada pela criaccedilatildeo de novos estilos de vida comuns e finalmente o incremento de uma individualizaccedilatildeo alimentar causada pela crescente ansiedade do comensal contemporacircneo ARNAIZ 2005 p 148)

Fischler (1979) se refere a essa tendecircncia alimentar nas sociedades

contemporacircneas como sendo lsquohiper-homogecircnearsquo Em funccedilatildeo disso citando o

estudo realizado por Mennell et al (1992) Fischler (2011) chama a atenccedilatildeo para

o fato de que as praacuteticas alimentares contemporacircneas colocam em risco a

comensalidade enquanto poder de sociabilidade de agregaccedilatildeo considerando

que o mundo moderno tem facilitado a individualizaccedilatildeo inclusive no que se

refere agrave alimentaccedilatildeo Exemplo disso eacute o nuacutemero crescente de pessoas que

mesmo no ambiente domeacutestico servem o seu prato e se assentam na frente da

televisatildeo ou do computador Situaccedilotildees que sinalizam que outras dinacircmicas tecircm

surgido no campo da comensalidade no mundo contemporacircneo Para esses

autores eacute fato o surgimento de um padratildeo alimentar Essa percepccedilatildeo parece

natildeo levar em consideraccedilatildeo a variaccedilatildeo de culturas realidades locais e modos

alimentares diferenciados entre os diversos povos mesmo no contexto

ocidental

Arnaiz (2005) Fischler (1979 e 2011) e Pollan (2014) afirmam que na

sociedade ocidental globalizada e industrializada o tempo aleacutem de escasso eacute

usado prioritariamente em prol da produtividade e do desenvolvimento

capitalista Nesse contexto o que sobra deste tempo eacute dividido entre as tantas

outras tarefas sociais como aquelas desenvolvidas no espaccedilo domeacutestico em

famiacutelia ou entre amigos Pollan (2014) aponta que o haacutebito de cozinhar em casa

vem diminuindo Arnaiz (2005) cita que outro motivo que contribui para isso estaacute

relacionado agraves facilidades geradas pelo processo agroalimentar ou seja vaacuterias

atividades de preparo de alimentos que antes ocupavam muito tempo da

cozinheira atualmente satildeo feitas pelas induacutestrias de alimentos

Poreacutem eacute arriscado afirmar uma tendecircncia agrave homogeneizaccedilatildeo alimentar

pois a cultura eacute dinacircmica e os indiviacuteduos tendem a buscar formas de adaptaccedilatildeo

aos modelos propostos e nessa adaptaccedilatildeo podem buscar praacuteticas alimentares

que mesclem novidade e tradiccedilatildeo Haacute que se levar em consideraccedilatildeo a

diversidade cultural dos grupos mesmo no contexto ocidental Se por um lado

busca-se acompanhar os avanccedilos haacute tambeacutem interesse em preservar

71

caracteriacutesticas culturais consideradas importantes dentre elas aquelas

relacionadas a algumas praacuteticas alimentares Portanto por mais que o peso da

homogeneizaccedilatildeo exista haacute tambeacutem o peso dos elementos da tradiccedilatildeo que

exerce importante influecircncia nas decisotildees e nas escolhas pessoais

Percebe-se na discussatildeo dos autores abordados neste toacutepico a

ocorrecircncia de trecircs vertentes ou movimentos Um primeiro apontado por Anaiz

(2005) Fischler (1979) e Pollan (2014) de que a sociedade tende a adotar um

padratildeo alimentar homogecircneo baseado no consumo prioritaacuterio de alimentos

industrializados de acordo com um estilo de vida moderno e atrelado agraves

novidades Um segundo movimento defendido por De Garine (1987) de que haacute

uma divisatildeo perceptiacutevel na sociedade ocidental formada por um lado por

consumidores prioritariamente tradicionais no seu estilo de exercer as praacuteticas

alimentares e de outro lado por consumidores com tendecircncias agraves praacuteticas

modernas Por fim um terceiro movimento encontrado em Doacuteria (2014) Giard

(2012) Garciacutea Canclini (2013) entre outros que defendem a coexistecircncia da

tradiccedilatildeo com a modernidade no que se refere tambeacutem agraves praacuteticas alimentares

conforme discussatildeo que seraacute apresentada mais agrave frente

Pollan (2014) apesar de acreditar que o ritmo de vida moderno estimule

modos de se alimentar mais homogecircneos com o comedor recorrendo

prioritariamente aos aspectos de praticidade por outro lado pondera algumas

questotildees que satildeo relativas Defende por exemplo que a despeito das mudanccedilas

em curso na sociedade ocidental contemporacircnea a magia e o prazer que

envolvem a atividade culinaacuteria ainda permanecem Mesmo que para um grande

nuacutemero de pessoas isso possa corresponder a uma atividade esporaacutedica em

eventos especiais ou nos finais de semana Por outro lado ainda que a

constacircncia do conviacutevio cotidiano nos momentos das refeiccedilotildees se reduza isso

natildeo implica na perda da qualidade desses momentos Mas o autor concorda

com Fischler (2011) que a diminuiccedilatildeo desta atividade implica em consequecircncias

como transformaccedilotildees no campo da comensalidade com seus significados e

simbolismos Com isso o estilo de vida acelerado e o tempo escasso para

realizar todas as demandas sociais afastam as pessoas do encontro familiar

cotidiano no compartilhamento da comida da manutenccedilatildeo de um horaacuterio fixo

para as refeiccedilotildees e tambeacutem da produccedilatildeo do proacuteprio alimento

72

Em relaccedilatildeo agrave essas questotildees Flandrin e Montanari (1998) consideram a

crenccedila absoluta na homogeneidade dos comportamentos alimentares

exagerada Apesar das mudanccedilas em curso os autores afirmam natildeo ser

evidente pelo menos ainda o desaparecimento das composiccedilotildees e elementos

tradicionais no campo da alimentaccedilatildeo Sinalizam que sobretudo na Europa a

funccedilatildeo social da comida ainda eacute importante Apontam as reuniotildees entre amigos

que ocorrem nos diferentes paiacuteses do planeta ou a reuniatildeo familiar em alguns

dias na semana e que natildeo ordinariamente no cotidiano ainda assim satildeo

momentos de sociabilidade e comensalidade e defendem a necessidade de

relativizaccedilatildeo sobre o assunto

A ldquonormalizaccedilatildeordquo dos comportamentos alimentares ainda natildeo se tornou irreversiacutevel se os modelos de consumo tendem a se assemelhar cada vez mais sua homogeneidade permanece bastante relativa e mais aparente do que real jaacute que os elementos que tem em comum satildeo de fato interpretados segundo a cultura de cada povo e paiacutes inserindo-se em estruturas ainda fortemente marcadas pelas particularidades locais que por sua vez foram-se formando na sequecircncia de um processo histoacuterico longo e articulado (FLADRIN MONTANARI (1998 p 867)

As possibilidades de as praacuteticas alimentares contemporacircneas serem

responsaacuteveis por manter ou de extinguir as tradiccedilotildees alimentares satildeo discutidas

por alguns autores como Berman (2000) Giddens (1991) Bauman (2007)

Garciacutea Canclini (2013) e Giard (2012) O mundo contemporacircneo estaacute

relacionado ao modo de vida moderno e em constante transformaccedilatildeo tendendo

ao dinamismo mesmo que aspectos do tradicional permaneccedilam ainda que com

pesos diferentes de acordo com cada cultura No mundo moderno nada

permanece fixamente e eacute neste contexto que os contrastes entre o moderno e o

tradicional ficam mais aflorados conforme defende Berman (2000)

Ser moderno eacute encontrar-se em um ambiente que promete aventura poder alegria crescimento autotransformaccedilatildeo e transformaccedilatildeo das coisas em redor ndash mas ao mesmo tempo ameaccedila destruir tudo o que temos tudo o que sabemos tudo o que somos (BERMAN 2000 p 15)

Nesse contexto de transformaccedilotildees e dinamismo da substituiccedilatildeo do

antigo pelo novo e da valorizaccedilatildeo do moderno aspectos expostos pelo autor

um dos fatores mais marcantes no campo das praacuteticas alimentares

contemporacircneas eacute a industrializaccedilatildeo dos alimentos e suas consequecircncias para

os comedores com suas benesses e problemas Este sistema apresenta um

73

novo jeito de vivenciar as praacuteticas alimentares no mundo contemporacircneo

sugerindo a ideia de praticidade e economia de tempo A induacutestria de alimentos

pode ser considerada um dos mais importantes promotores de mudanccedilas nos

haacutebitos alimentares das sociedades industriais Mudanccedilas essas que trazem

consequecircncias importantes como as que satildeo discutidas a seguir por Arnaiz

(2015) Pollan (2014) Silva Mello (1956) Cacircmara Cascudo (2004) e De Garine

(1987)

Para Arnaiz (2005) em relaccedilatildeo ao acesso aos alimentos a induacutestria

possui aspectos que podem ser considerados positivos e negativos Dentre os

positivos ela destaca o custo relativamente baixo de obtenccedilatildeo dos bens

alimentares pelos consumidores dos paiacuteses ocidentais industrializados e

tambeacutem a algumas parcelas populacionais dos paiacuteses em processo de

industrializaccedilatildeo Outro fator segundo a autora eacute que a tecnologia de produccedilatildeo

e organizaccedilatildeo da induacutestria de alimentos beneficiou os consumidores que

passaram a contar com maior diversidade de alimentos

A diversificaccedilatildeo alimentar eacute supostamente mais saudaacutevel em termos nutricionais uma vez que permite obter a adequaccedilatildeo de certos nutrientes e evita por exemplo doenccedilas como a pelagra que durante o seacuteculo XIX disseminou-se nas populaccedilotildees mais pobres que tinham o milho como base de sua alimentaccedilatildeo ou ainda doenccedilas como o cretinismo e o boacutecio ateacute recentemente (ARNAIZ 2005 p 148-149)

Para a autora algumas situaccedilotildees negativas se contrastam com as

positivas Cita por exemplo que apesar do acesso aos produtos em termos de

disponibilidade e a um preccedilo relativamente baixo a manutenccedilatildeo da

desigualdade social limita o acesso a muitos desses alimentos Outros fatores

destacados pela autora incluem ainda ldquoa diferenciaccedilatildeo conforme a bagagem

sociocultural que condiciona certos estilos alimentares de grupos de indiviacuteduos

e a persistecircncia das heterogeneidades intra e interterritorial e socialmente

verticalrdquo (ARNAIZ 2005 p 149)

Outro aspecto positivo mas natildeo citado pela autora diz respeito agraves

praticidades e facilidades geradas pela industrializaccedilatildeo dos alimentos Este tipo

de alimento jaacute preacute-processado contribuiu para reduzir o peso do trabalho

domeacutestico que historicamente e tradicionalmente era atribuiacutedo exclusivamente

agraves mulheres Poreacutem o lado positivo da comida industrializada como facilitadora

do dia-a-dia natildeo neutraliza outros fatores negativos tanto do aspecto

74

sociocultural como no aspecto da sauacutede humana conforme apontado por Pollan

(2014) Silva Mello (1956) e Cacircmara Cascudo (2004)

Pollan (2014) destaca o peso da comida industrializada para a sauacutede e

bem-estar humanos ao argumentar que as grandes empresas alimentiacutecias

processam alimentos o que para o autor eacute diferente de produzi-los Ele alerta

para o excesso de sal accediluacutecar e gordura nos produtos processados

industrialmente aleacutem dos produtos quiacutemicos que permitem maior durabilidade

aos alimentos nas prateleiras dos supermercados

Em um sentido semelhante Silva Mello (1956) defende a manutenccedilatildeo

de aspectos importantes da tradiccedilatildeo alimentar tanto para a sauacutede como para a

cultura ao criticar o excesso de modificaccedilotildees provocadas pela induacutestria

alimentar como por exemplo a transformaccedilatildeo do accediluacutecar natural escuro e grosso

em branco refinado e as vitaminas em caacutepsulas como discorre em seu livro

lsquoAlimentaccedilatildeo Instinto Culturarsquo ldquoNatildeo eacute com vitaminas que se mata a fome A

culinaacuteria jaacute que a alimentaccedilatildeo eacute a condiccedilatildeo vital do homem se impotildee como

obrigaccedilatildeo cultural () A chamada poliacutetica cultural comeccedila pela comidardquo (SILVA

MELLO 1956 p 622)

Focando o prejuiacutezo agrave sauacutede dos jovens no Brasil Cacircmara Cascudo

(2004) faz ressalvas agrave praacutetica alimentar moderna que eacute adotada por esse grupo

Para o autor os jovens tecircm maior atraccedilatildeo pelas refeiccedilotildees raacutepidas e substituiccedilatildeo

por lanches Possuem escassez de tempo para participar dos momentos sociais

familiares destinados agrave alimentaccedilatildeo pois sempre tecircm atividades e

compromissos caracteriacutesticos dessa fase da vida Na era dos lanches raacutepidos

eles acabam ldquoperdendo a personalidade do paladar sua fisionomia exigecircncias

predileccedilotildees simpatias Habituam-se agrave comida vulgar e venal raacutepida atendendo

aos reclamos imediatos do estocircmagordquo (p 350) Afirma ainda

Natildeo eacute o alimento em si na potecircncia intriacutenseca de sua substacircncia a fonte isolada da forccedila vital Satildeo os elementos psicoloacutegicos decorrentes da refeiccedilatildeo Cada vez menos refeiccedilatildeo e cada vez mais comidas faacuteceis encontraacuteveis vendidas nos botequins elegantes ou nas cantinas universitaacuterias (CAcircMARA CASCUDO 2004 p 348)

Muitas informaccedilotildees tecircm sido veiculadas nos uacuteltimos anos sobre a

relaccedilatildeo sauacutede-alimentaccedilatildeo referindo-se sobretudo aos alimentos

industrializados No Brasil o ldquoGuia Alimentar para a Populaccedilatildeo Brasileirardquo

publicado em 2006 com uma caracteriacutestica prioritariamente quantitativa foi

75

atualizado em 2014 trazendo um perfil mais qualitativo do que o primeiro e

discute sobre os perigos agrave sauacutede de uma alimentaccedilatildeo baseada em uma dieta de

produtos muito processados ou seja industrializados ao mesmo tempo em que

oferece sugestotildees mais saudaacuteveis para melhorar a qualidade de vida alimentar

da populaccedilatildeo evitando-se frituras e alimentos com grande quantidade de

aditivos quiacutemicos O Guia Alimentar sugere aos comedores uma priorizaccedilatildeo

pelos alimentos in natura e uma maior aproximaccedilatildeo com uma cultura alimentar

mais voltada agraves praacuteticas tradicionais

De Garine (1987) natildeo acredita que o consumo de alimentos

industrializados eacute adotado de maneira generalizada pelas pessoas seja de

forma individualizada seja por grupo familiares Para o autor se por um lado eacute

verdadeiro que a globalizaccedilatildeo tem propiciado uma homogeneizaccedilatildeo dos haacutebitos

alimentares por outro observa-se tambeacutem a permanecircncia da tradiccedilatildeo alimentar

com seus modelos locais de alimentaccedilatildeo A manutenccedilatildeo da tradiccedilatildeo alimentar

estaacute ligada agrave identificaccedilatildeo com as raiacutezes culturais que satildeo passadas por

geraccedilotildees e se esforccedilam por manter alguns rituais e simbologias dessa tradiccedilatildeo

alimentar e portanto natildeo cedendo prontamente ou totalmente aos apelos da

induacutestria pela adoccedilatildeo completa dos alimentos processados Assim para esse

autor natildeo eacute correto generalizar o poder da industrializaccedilatildeo de alimentos pois a

cultura local e a tradiccedilatildeo oferecem um peso que pode tambeacutem influenciar nas

escolhas alimentiacutecias Neste sentido o autor defende inclusive que os paiacuteses

em desenvolvimento se livrem de boa parte do peso das importaccedilotildees valorizando

os alimentos autoacutectones Na percepccedilatildeo deste autor existem dois tipos de

comedores Aqueles que tentam manter uma relaccedilatildeo tradicional e aqueles que

buscam pelo moderno

Possivelmente Gilberto Freyre concordaria com essa conclusatildeo de De

Garine pois era defensor da tradiccedilatildeo culinaacuteria como forma importante de

manutenccedilatildeo e continuidade de uma identidade regional e nacional Em texto

escrito em 1924 e publicado em ldquoTempo de Aprendizrdquo (1979) defende que ldquoo

paladar eacute talvez o uacuteltimo reduto do espiacuterito nacional quando ele se

desnacionaliza estaacute desnacionalizado tudo o maisrdquo (p 367) O autor tratou

sobretudo da cozinha e da comida nordestina de Pernambuco Em seu

ldquoManifesto Regionalistardquo (1996) ndash lido para a plenaacuteria durante o 1ordm Congresso

Brasileiro de Regionalismo ocorrido em Recife em 1926 ndash o maior destaque

76

sobre a importacircncia de se manter a tradiccedilatildeo foi dado agrave parte culinaacuteria Nele

Freyre propotildee uma retomada agrave valorizaccedilatildeo da cozinha regional seus modos de

fazer e de suas praacuteticas Apoacutes discorrer longamente e detalhadamente sobre

as caracteriacutesticas da culinaacuteria pernambucana ele conclui

Feitos estes reparos estou inteiramente dentro de um dos assuntos que me pareceu dever ser versado por algueacutem neste congresso os valores culinaacuterios do Nordeste A significaccedilatildeo social e cultural desses valores A importacircncia deles quer dos quitutes finos quer dos populares A necessidade de serem todos defendidos pela gente do Nordeste contra a crescente descaracterizaccedilatildeo da cozinha regional (FREYRE 1996 p 59)

No entanto esta natildeo eacute a percepccedilatildeo para outros autores que defendem

a existecircncia de um terceiro movimento mais coerente e menos radical que

privilegia a comunicaccedilatildeo entre tradiccedilatildeo e modernidade alimentar Afirmam isso

baseando-se nas raacutepidas transformaccedilotildees que ocorrem no campo da

alimentaccedilatildeo Observam que os espaccedilos para os contornos tradicionais da

produccedilatildeo da comida e dos modos de comer vatildeo sendo diluiacutedos poreacutem natildeo se

extinguem embora ao analisar a tradiccedilatildeo na oacutetica de um mundo em constante

mudanccedila surge sempre a duacutevida sobre a sua capacidade de permanecer

Assim Doacuteria (2014) Giddens (2012) Garciacutea Canclini (2013) Cacircndido (1982)

Cacircmara Cascudo (2004) e Giard (2012) defendem que a modernidade

pressupotildee e impotildee mudanccedilas de formato mas natildeo necessariamente isso

significa o rompimento absoluto com os moldes tradicionais Para estes o

caminho mais interessante eacute o de uma complementaridade pela convivecircncia dos

ldquofatores de persistecircncia ou permanecircncia que contribuem para a continuidade

dos modos tradicionais de vida (praacuteticas e saberes alimentares) com os de

transformaccedilatildeo que representam a incorporaccedilatildeo aos padrotildees modernosrdquo

(CAcircNDIDO 1982 p 200)

Doacuteria (2014) estimula um novo caminho para a culinaacuteria a junccedilatildeo da

tradiccedilatildeo com a inovaccedilatildeo pois a inovaccedilatildeo natildeo existe sem a tradiccedilatildeo natildeo se

chega a uma culinaacuteria dita como ldquonovardquo sem conhecer profundamente os

segredos da tradiccedilatildeo Assim pressupotildee-se a necessidade de um terceiro

caminho uma mescla culinaacuteria possiacutevel na qual o tradicional incorpore

elementos modernos e vice-versa

Sobre o potencial de as tradiccedilotildees alimentares resistirem ocupando

outros espaccedilos ou seja unindo-se ao moderno Poulain (2013 p 35) acena

77

esperanccedilosamente que ldquoa histoacuteria da alimentaccedilatildeo mostrou que cada vez que

identidades satildeo postas em perigo a cozinha e as maneiras agrave mesa satildeo os

lugares privilegiados de resistecircnciardquo

Em sentido semelhante ao exposto acima por Jean Pierre Poulain

Cacircmara Cascudo (2004) defende o peso da tradiccedilatildeo ldquoEspero mostrar a

antiguidade de certas predileccedilotildees alimentares que os seacuteculos fizeram haacutebitos

explicaacuteveis como uma norma de uso e um respeito de heranccedila dos mantimentos

da tradiccedilatildeordquo (p 14) No entanto diferentemente de Gilberto Freyre que defendia

uma tradiccedilatildeo culinaacuteria irretocaacutevel Luiacutes da Cacircmara Cascudo apesar de defensor

das tradiccedilotildees alimentares parecia compreender de forma menos resistente do

que Freyre que a inserccedilatildeo de atributos modernos no campo alimentar se

ampliaria para o bem e sobretudo para o mal segundo as observaccedilotildees

negativas do autor a respeito Mas ele entendia a necessidade de que isso

passasse a ser administrado ao inveacutes de puramente combatido

No povo haacute dois elementos autocircmatos e harmocircnicos coexistentes no assunto alimentar O primeiro estaacutetico basilar tiacutepico indeformaacutevel O segundo renovaacutevel dinacircmico plaacutestico Dos primeiros alguns podem desaparecer ou constituir uso minoritaacuterio Dos segundos outros descem agrave estratificaccedilatildeo tornando-se tradicionais superpondo-se imediatamente agrave camada profunda dos velhos usos participando do antigo patrimocircnio preferencial Essa mecacircnica regulariza a permanecircncia do cardaacutepio familiar Todos os grupos humanos tecircm uma fisionomia alimentar (CAcircMARA CASCUDO 2004 p 373)

Para Garciacutea Canclini (2013) a busca por aspectos tradicionais na

contemporaneidade sinaliza uma necessidade de distanciamento dos indiviacuteduos

com o excesso de modernidade e a inseguranccedila vivida no mundo

contemporacircneo No que se refere a alimentaccedilatildeo as inseguranccedilas ou

desconfianccedilas natildeo satildeo poucas Isso talvez explique a busca que tem ocorrido

pela comida de nossos antepassados

Natildeo obstante o tradicionalismo aparece muitas vezes como recurso para suportar as contradiccedilotildees contemporacircneas Nessa eacutepoca em que duvidamos dos benefiacutecios da modernidade multiplicam-se as tentaccedilotildees de retornar a algum passado que imaginamos mais toleraacutevel Frente agrave impotecircncia para enfrentar as desordens sociais o empobrecimento econocircmico e os desafios tecnoloacutegicos frente agrave dificuldade para entendecirc-los a evocaccedilatildeo de tempos remotos se reinstala na vida contemporacircnea arcaiacutesmos que a modernidade havia substituiacutedo (GARCIacuteA CANCLINI 2013 p 166)

78

Outro exemplo para que a tradiccedilatildeo mantenha sua importacircncia social e

de formaccedilatildeo da sociedade brasileira pode ser demonstrado atraveacutes das Leis de

Incentivo agrave cultura e ao patrimocircnio cultural valorizando tanto a culinaacuteria tiacutepica

quanto o turismo rural com foco na tradiccedilatildeo local No campo alimentar a forma

artesanal de fazer o queijo mineiro e o oficio das baianas do acarajeacute satildeo

exemplos de alimentos que estatildeo entre os patrimocircnios imateriais do paiacutes

catalogados pelo IPHAN (Instituto do Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional)

Outros saberes envolvendo a comida e a cultura encontram-se na lista de

espera Eacute o caso da produccedilatildeo de doces tradicionais pelotenses do modo de

fazer tradicional da cajuiacutena do Piauiacute e o saber fazer do queijo artesanal serrano

de Santa Catarina e Rio Grande do Sul Em niacutevel mundial muitas cozinhas

internacionais jaacute satildeo consideradas Patrimocircnio Imaterial da Humanidade pela

Unesco como eacute o caso das cozinhas Mexicana Francesa e Mediterracircnea

(Greacutecia Itaacutelia Espanha e Marrocos)

Pelo objetivo deste trabalho eacute fundamental dar continuidade agrave discussatildeo

no presente item analisando os reflexos dos haacutebitos alimentares

contemporacircneos sobre as dinacircmicas especificamente rurais buscando

compreender como o rural na atualidade se comporta diante das praacuteticas

alimentares tradicionais e modernas

35 Modernidade e tradiccedilatildeo no contexto alimentar rural contemporacircneo

Ao longo de sua histoacuteria pode-se dizer que o Brasil eacute um paiacutes de muitos

rurais por sua dimensatildeo geograacutefica por suas regiotildees de clima diferenciados e

formaccedilatildeo cultural diversa como exposto por Del Priore e Venacircncio (2006) o

Brasil eacute formado por

Grupos sociais em suas interconexotildees territoriais grupos que satildeo filhos de uma histoacuteria ou seja de um conjunto de costumes comuns ligados agrave religiatildeo ritos mitos praacuteticas econocircmicas crenccedilas teacutecnicas e usos do corpo relacionados com as culturas agriacutecolas ou com a criaccedilatildeo de animais (DEL PRIORE VENAcircNCIO 2006 p 14)

Esses muitos rurais implicam tambeacutem em haacutebitos e praacuteticas alimentares

peculiares Alimentos e praacuteticas que satildeo valorizados em uma determinada

cultura rural pode ser desinteressante para outra Outras tantas caracteriacutesticas

poreacutem podem se assemelhar No entanto eacute cada vez mais tecircnue a linha que

79

separa o rural do urbano e o dinamismo parece ser constante atualmente na

maior parte desses rurais Isso tem gerado a necessidade de reorganizaccedilatildeo do

trabalho e da vida cotidiana das famiacutelias como demonstram as anaacutelises

desenvolvidas por Graziano da Silva (1997) Wanderley (2000 e 2010) e Carneiro

(2005)

Definir o que eacute cultura rural hoje eacute um desafio Segundo Camarano e

Abramovay (1998 p 46) natildeo existe um criteacuterio universal que seja vaacutelido para

definir as fronteiras entre o rural e o urbano e que essa definiccedilatildeo varia de paiacutes a

paiacutes Assim ldquono Brasil eacute considerado como situaccedilatildeo rural os domiciacutelios e a

populaccedilatildeo recenseada que abrange toda a aacuterea fora do considerado urbano

inclusive os aglomerados rurais de extensatildeo urbana os povoados e os nuacutecleosrdquo

Mas esse criteacuterio natildeo explica por si soacute a cultura rural contemporacircnea incluindo

as suas praacuteticas alimentares

Carneiro (2005 p 8) considera outros aspectos para aleacutem da definiccedilatildeo

de limites geograacuteficos entre as duas categorias Segundo a autora durante muito

tempo a oposiccedilatildeo entre o rural e o urbano prevaleceu para a sociologia rural

como abordagem teoacuterico-conceitual em que o rural era determinado pela

ldquocentralidade na atividade agriacutecola isolamento geograacutefico e cultural fraca

mobilidade etcrdquo e tambeacutem o espaccedilo de manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo da tradiccedilatildeo e

dos costumes Mais correto seria dizer por concordarmos com a percepccedilatildeo da

autora de que nos tempos atuais natildeo cabe mais classificar categorias como

rural ou urbano partindo apenas de justificativas de limites geograacuteficos que uma

determinada populaccedilatildeo ocupa mas sim pelas relaccedilotildees sociais que se datildeo no

interior desses espaccedilos Reportando ao trabalho de Marc Mormont Carneiro

(2005) apresenta a distinccedilatildeo entre o rural como categoria analiacutetica e como

categoria operacional destacando que a dificuldade em pensar o rural estaacute no

uso do termo que eacute feito tanto por pesquisadores e na academia quanto por

agecircncias que elaboram estatiacutesticas e ainda utilizada no senso comum

Nos termos de Mormont as propriedades do rural satildeo possibilidades simboacutelicas mas tambeacutem possibilidades praacuteticas Elas orientam as praacuteticas sociais sobre um determinado espaccedilo de acordo com os significados simboacutelicos que lhes satildeo atribuiacutedos sendo portanto inuacutetil procurar em uma realidade fiacutesica econocircmica ou ecoloacutegica os fundamentos de uma ruralidade Tambeacutem seria inuacutetil procurar nesta realidade apenas um imaginaacuterio que faria do rural uma pura construccedilatildeo mental (CARNEIRO 2005 p 9)

80

Nos interessa compreender nessa discussatildeo teoacuterica o que prevalece no

rural contemporacircneo brasileiro uma continuidade atrelada aos modos

tradicionais dos modos de vida e a reproduccedilatildeo social destacando aquelas

questotildees relacionadas agraves praacuteticas alimentares Ou por outro lado se a

aproximaccedilatildeo com o urbano tem transformado o rural a ponto de se estar

perdendo algumas peculiaridades e tradiccedilotildees que historicamente foram

construiacutedas Para instrumentalizar essa anaacutelise torna-se necessaacuteria uma

reflexatildeo sobre a dinacircmica no mundo rural

351 A dinacircmica do rural entre a tradicional e o moderno

Segundo Carneiro (1998 e 2005) compreender o dinamismo que ocorre

no campo eacute importante no sentido de natildeo congelar o conceito de rural como uma

categoria imutaacutevel onde seus habitantes sejam incapazes ldquode absorver e de

acompanhar a dinacircmica da sociedade em que se insere e de se adaptar agraves novas

estruturas sem contudo abrir matildeo de valores visatildeo de mundo e formas de

organizaccedilatildeo social definidas em contextos soacutecio-histoacutericos especiacuteficosrdquo

(CARNEIRO 1998 p 1) A autora tambeacutem argumenta sobre a possibilidade e a

ocorrecircncia de uma nova ruralidade aquela que eacute capaz de fazer conviver com

os reflexos do moderno sobre o tradicional sem que isso signifique um

rompimento com a tradiccedilatildeo descaracterizando o rural Tampouco cabe falar em

uma volta ao passado mas sim do surgimento de uma ruralidade que resgate

determinadas praacuteticas do passado cujo conhecimento pertence aos mais

velhos

Desvendar os distintos significados socialmente atribuiacutedos a espaccedilos e manifestaccedilotildees culturais tidos como rurais sinaliza uma perspectiva de que o mundo rural natildeo estaria sucumbindo agraves pressotildees do universo urbano nem representaria uma ruptura com o urbano Esse processo entendido superficialmente por alguns como de ldquourbanizaccedilatildeordquo do campo produziria novas sociabilidades e novas identidades sociais que dificilmente caberiam em uma uacutenica classificaccedilatildeo mas que continuam a ser representadas socialmente como rurais (CARNEIRO 2005 p 9)

O que os estudos dos autores citados aqui tecircm apontado eacute que as

oposiccedilotildees entre rural e urbano natildeo devem mais ser usadas para pensar a

ruralidade atual brasileira Para Brandemburg (2010) o mundo rural se insere no

processo de modernizaccedilatildeo e ateacute busca por ele mas sem deixar de lado

81

totalmente o modo tradicional de vida Essa coexistecircncia significa a necessidade

de seguir resolvendo os conflitos que surgem a partir dessa dinacircmica O autor

defende que existam rurais em tempos diferentes no Brasil mas que ldquopersistem

ora na sua forma tiacutepica ora sobrepostos ora expressos na forma de um rural

novo reconstruiacutedo ou reflexivordquo (BRANDEMBURG 2010 p 423) O autor cita

Wanderley (1996) quando discorre que este rural reconstruiacutedo eacute aquele em que

o moderno natildeo substitui ou extingue o tradicional mas lhe permite passar por

ressignificaccedilotildees e que se reorganiza socialmente em um grupo ou comunidade

local

Algumas mudanccedilas que vem ocorrendo no meio rural podem alterar os

modos de vida e interferir nas escolhas alimentares das famiacutelias rurais A

facilidade de acesso ao comeacutercio da cidade mais proacutexima ou agrave existecircncia do

comeacutercio na proacutepria comunidade pode gerar interesse em consumir alguns

alimentos que natildeo faziam parte da dieta em tempos passados como os produtos

processados Alguns siacutembolos do estilo de vida moderno chegam mais

facilmente agraves famiacutelias rurais como o uso dos eletrodomeacutesticos que equipam a

cozinha facilitando o trabalho e a reproduccedilatildeo das praacuteticas alimentares como

por exemplo o fogatildeo a gaacutes e a geladeira

Referimos muito no presente trabalho agrave dicotomia ldquopraacuteticas alimentares

contemporacircneasrdquo e como contraponto a existecircncia de uma praacutetica voltada ao

tradicional Assim o tradicional e o novo (ou moderno) surgem como aspectos

importantes agraves vezes conflitantes agraves vezes em interaccedilatildeo Refletir sobre o

mundo moderno pensar sobre modernidade eacute pensar tambeacutem em passado em

tradiccedilatildeo Poreacutem natildeo se pode afirmar que o moderno implica na morte da

tradiccedilatildeo isso foi apontado por Doacuteria (2014) Montanari (2008) e Giard (2012)

Ao analisar-se um tema em que se evidenciem traccedilos de oposiccedilatildeo e ou

de relaccedilatildeo entre o tradicional e o moderno percebe-se que haacute uma tendecircncia

no senso comum em acreditar que a modernidade eacute capaz de extinguir a

tradiccedilatildeo Poreacutem estudiosos do assunto como Giddens (2012) Bartolomeacute (2006)

e Garciacutea Canclini (2013) tecircm mostrado que o caminho mais interessante e que

estaacute em evoluccedilatildeo eacute uma ligaccedilatildeo entre os dois polos da questatildeo

Para Giddens (1991) o tradicional eacute quase sempre atrelado ao passado

idealizado mas que por sua vez se torna dinacircmico com o processo de

82

modernizaccedilatildeo e de novas interpretaccedilotildees dadas pelas geraccedilotildees que recebem os

conhecimentos e experiecircncias vividas por seus antepassados

Nas culturas tradicionais o passado eacute honrado e os siacutembolos valorizados porque contecircm e perpetuam a experiecircncia de geraccedilotildees A tradiccedilatildeo eacute um modo de integrar a monitoraccedilatildeo da accedilatildeo com a organizaccedilatildeo tempo-espacial da comunidade A tradiccedilatildeo natildeo eacute inteiramente estaacutetica porque ela tem que ser reinventada a cada nova geraccedilatildeo conforme esta assume sua heranccedila cultural dos precedentes (GIDDENS 1991 p 31)

Em semelhante linha de pensamento Bartolomeacute (2006) entende a

tradiccedilatildeo como um importante veiacuteculo para se recriar identidades Em seu

continuo processo de construccedilatildeo e reconstruccedilatildeo as identidades mesclam

aspectos do passado com os elementos do presente no mundo contemporacircneo

aleacutem de enfrentar as mudanccedilas necessaacuterias para construir novas relaccedilotildees entre

o tradicional e o moderno ldquoEm um de seus niacuteveis implica uma busca no passado

para instituir uma nova relaccedilatildeo com a realidade contemporacircneardquo (BARTLOMEacute

2006 p 58)

Giddens (2012) e Simsom (2003) nos falam sobre o papel da tradiccedilatildeo e

da transmissatildeo dos saberes de uma geraccedilatildeo a outra feita com a presenccedila dos

ldquoguardiatildeesrdquo Para Giddens (2012) tradiccedilatildeo e memoacuteria andam juntas A tradiccedilatildeo

possui ldquoguardiatildeesrdquo e combina o conteuacutedo moral com o emocional O autor

entende a memoacuteria como um processo ativo e natildeo apenas como lembranccedila

Processo ativo porque as memoacuterias satildeo continuamente reproduzidas por esses

guardiatildees que lhes conferem um modo de continuidade das experiecircncias A

presenccedila desses guardiatildees se torna ainda mais importante no mundo

contemporacircneo para que as experiecircncias passadas seus erros e acertos natildeo se

percam da sociedade

Se nas culturas orais as pessoas mais velhas satildeo o repositoacuterio (e tambeacutem frequentemente os guardiatildees) das tradiccedilotildees natildeo eacute apenas porque as absorveram em um ponto mais distante no tempo que as outras pessoas mas porque tecircm tempo disponiacutevel para identificar os detalhes dessas tradiccedilotildees na interaccedilatildeo com os outros da sua idade e ensinaacute-las aos jovens Por isso podemos dizer que a memoacuteria eacute um meio organizador da memoacuteria coletiva (GIDDENS 2012 p 100-101)

Eacute possiacutevel considerar que muitas tradiccedilotildees tecircm sua origem no rural O

rural do passado com caracteriacutesticas muito tradicionais na produccedilatildeo e na

cultura eacute descrito e analisado por Cacircndido (1982) e Brandatildeo (1981) Antocircnio

Cacircndido mostra um dos rurais brasileiros com suas peculiaridades no que se

83

refere a alimentaccedilatildeo e a cultura Em ldquoParceiros do Rio Bonito estudo sobre o

caipira paulista e a transformaccedilatildeo dos seus meios de vidardquo o autor apresenta

suas anaacutelises antropoloacutegicas e socioloacutegicas do modo de vida caipira

Neste estudo o autor mostra detalhadamente os modos de vida do

grupo pesquisado seus meios de subsistecircncia a forma tradicional de conduccedilatildeo

dos trabalhos agriacutecolas a composiccedilatildeo de sua alimentaccedilatildeo e seus recursos para

obtecirc-la a cultura caipira as formas de solidariedade o cotidiano do trabalho rural

do momento de acordar sair para o trabalho ao momento de retornar ao siacutetio

No aspecto da comensalidade nos chama a atenccedilatildeo as observaccedilotildees do

autor para a praacutetica alimentar do agricultor estudado por ele que no dia a dia

levava o seu almoccedilo em marmita depositada no embornal para ser consumido

no local de trabalho Os momentos das refeiccedilotildees em famiacutelia na cozinha ficavam

restrito aos domingos

O uso da marmita eacute tambeacutem a realidade de muitas outras aacutereas rurais e

tambeacutem urbanas no Brasil em tempos passados em periacuteodo de grande

movimentaccedilatildeo no campo onde o trabalho era realizado muito distante da

habitaccedilatildeo Atualmente isso permanece e nas aacutereas urbanas tambeacutem eacute uma

praacutetica muita utilizada pelos trabalhadores Mas a comensalidade pode se dar

no local do trabalho havendo outras pessoas na mesma atividade Como jaacute visto

anteriormente para ocorrer a comensalidade natildeo eacute necessaacuterio que o espaccedilo

fiacutesico seja a habitaccedilatildeo

Em relaccedilatildeo ao tipo de comida Cacircndido (1982) descreve uma

alimentaccedilatildeo simples baseada no arroz feijatildeo milho aboacutebora e a mandioca

frutas como jabuticaba e verduras como a couve eram as mais comuns Do mato

se coletava o palmito e se caccedilava a carne Esse tipo de alimentaccedilatildeo natildeo difere

do que Cacircmara Cascudo (2004) descreve como sendo os elementos baacutesicos da

alimentaccedilatildeo presentes na cozinha rural brasileira sendo comum tambeacutem o

cultivo de verduras legumes e frutas para consumo proacuteprio da famiacutelia bem como

a produccedilatildeo de animais sobretudo a galinha e o porco A banha do porco era

usada no lugar do oacuteleo de cereais os animais eram alimentados com milho e

outros produtos plantados e colhidos no quintal

O mesmo tipo de dieta foi descrito por Brandatildeo (1981) em sua pesquisa

com lavradores na regiatildeo de Goiacircnia na deacutecada de 1970 Ao autor destaca que

a dieta das famiacutelias rurais tambeacutem consistia basicamente de arroz feijatildeo milho

84

e mandioca os produtos da horta do quintal (legumes e verduras) frutas

tubeacuterculos carne de porco de aves de caccedila e de peixes Com exceccedilatildeo da caccedila

e do peixe todos os outros itens eram produzidos por elas no entorno da

moradia

O rural tratado por Cacircndido (1982) e por Brandatildeo (1981) produz mais do

que alimentos produz um modo de vida que eacute rico em significados e simbologias

que orienta a reproduccedilatildeo social das famiacutelias rurais

Entre lavradores cuja atividade econocircmica estaacute quase toda dentro dos limites da produccedilatildeo diaacuteria e sazonal de comida para a famiacutelia o alimento e tudo o que envolve o acesso a ele aparecem como agentes reguladores entre o homem e o seu mundo Praticamente todo o seu trabalho eacute dirigido a obter alimentos para uma dieta cujos ingredientes produzem conservam ou comprometem as suas condiccedilotildees pessoais de presenccedila em esferas sociais de relaccedilotildees entre produtores de alimentos (BRANDAtildeO 1981 p 148)

No rural contemporacircneo natildeo se pode mais afirmar que a tradiccedilatildeo eacute

determinante nem que se manteacutem encerrada fechada num mundo agrave parte

conforme jaacute apontado por Brandemburg (2010) e Wanderley (1996) embora

muitos costumes ritos praacuteticas alimentares e de reproduccedilatildeo social e econocircmica

se mantenham Isso se aplica tambeacutem agraves praacuteticas alimentares cabendo agraves

famiacutelias rurais fazerem suas escolhas Escolhas essas que natildeo satildeo tatildeo simples

considerando um universo de possibilidades e a proacutepria dificuldade de opccedilatildeo do

ser humano diante do mundo moderno

Nesse universo de possibilidades de escolhas alimentares os

consumidores contemporacircneos buscam escolher aquilo que mais lhes

apetecem de acordo com razotildees de ordem cultural simboacutelica econocircmica social

etc

La variabilidad de las elecciones alimentarias humanas procede sin duda en gran medida de la variabilidad de los sistemas culturales si no consumimos todo lo que es bioloacutegicamente comestiblese debe a que todo lo que es bioloacutegicamente comible no es culturalmente comestible (FISCHLER 1995 p 33)

Segundo o autor as muitas opccedilotildees no processo de escolha geram

anguacutestias alimentares que eacute uma caracteriacutestica do comensal moderno

Inclusive porque ele tem consciecircncia de uma seacuterie de riscos no campo

alimentar sobretudo os riscos que o alimento pode causar agrave sua sauacutede

85

As discussotildees sobre ruralidade no Brasil natildeo satildeo conclusivas no sentido

de afirmar que o peso da tradiccedilatildeo alimentar se impotildee Especificamente sobre

haacutebitos alimentares das populaccedilotildees rurais no Brasil contemporacircneo haacute

necessidade de ampliar o leque de abrangecircncia e regiotildees de estudo No

levantamento que fiz para a presente pesquisa verifiquei que os estudos sobre

alimentaccedilatildeo no meio rural tecircm sido de caraacuteter regional a maior parte na regiatildeo

Sul do Paiacutes Outra informaccedilatildeo que verifiquei eacute uma variedade de estudos sobre

alimentaccedilatildeo elaborados com consumidores na aacuterea urbana Assim o que

existem de estudos sobre praacuteticas alimentares no meio rural satildeo apontamentos

importantes e relevantes poreacutem ainda incipientes para que que sejam capazes

de definir uma realidade sobre praacuteticas alimentares para todo o rural brasileiro

Se por um lado haacute autores que apontam para uma tendecircncia a uma

homogeneizaccedilatildeo alimentar nas sociedades ocidentais e por outro aqueles que

reforccedilam a importacircncia da tradiccedilatildeo e em sua capacidade de se sobrepor haacute uma

terceira posiccedilatildeo sobre a questatildeo Satildeo autores que percebem a possibilidade do

meio termo ou de uma convivecircncia entre os aspectos da contemporaneidade e

da tradiccedilatildeo no que se refere agrave alimentaccedilatildeo Doacuteria (2014) aponta que o tradicional

e o novo datildeo sinais de que sua interaccedilatildeo eacute fundamental Natildeo se inventam novas

comidas elas estatildeo sendo revisitadas e a induacutestria tem investido nisso

Aleacutem de Doacuteria (2014) Poulain (2013) e Lody (2008) partilham da opiniatildeo

de que mesmo que a cada dia modernas possibilidades alimentares ndash cujo foco

seja a ampliaccedilatildeo do consumo de alimentos processados e ultraprocessados ndash

ampliem seus espaccedilos na sociedade natildeo conseguimos abandonar

completamente os viacutenculos com os haacutebitos alimentares herdados dos pais e

avoacutes Haacute sempre aquele doce especial que a avoacute fazia aquele bolo que soacute se

comia na casa dos pais aquele jeito de comer que aprendemos na infacircncia e

por isso sentimos falta mesmo que adotemos um estilo de vida que nos afaste

cada vez mais do espaccedilo social alimentar domeacutestico Os indiviacuteduos se sentem

emocionalmente ligados aos haacutebitos alimentares de sua infacircncia em geral

marcados pela cultura tradicional

Assim apesar de estarem inseridas em uma cultura que lhes eacute peculiar

as famiacutelias rurais natildeo estatildeo imunes agraves influecircncias dos demais tipos culturais e

tambeacutem natildeo satildeo estaacuteticas como defende Carneiro (1998) Elas acompanham o

ritmo das mudanccedilas em sua realidade nas quais estatildeo incluiacutedas tambeacutem as

86

praacuteticas alimentares Como bem define Elias (1994 p 145) ldquoa relaccedilatildeo entre

sociedade e indiviacuteduo eacute tudo menos imoacutevel Modifica-se com o desenvolvimento

da humanidaderdquo No sentido dado por Norbert Elias para a noccedilatildeo de habitus

social empregado agraves sociedades modernas ocidentais haacute uma tendecircncia para

a diminuiccedilatildeo das diferenccedilas regionais entre as pessoas agrave medida que o

desenvolvimento cria maiores possibilidades de integraccedilatildeo entre as regiotildees O

que natildeo implica obrigatoriamente em substituiccedilatildeo de todas as praacuteticas

tradicionais e adoccedilatildeo a outras

36 O papel feminino nas praacuteticas alimentares na famiacutelia

No processo de decisatildeo alimentar envolvendo o cardaacutepio cotidiano das

principais refeiccedilotildees e as aquisiccedilotildees a serem feitas no mercado eacute a mulher que

na maioria das vezes exerce o poder de decisatildeo embora tome as decisotildees

baseadas no gosto e nos haacutebitos familiares Isso eacute apontado em Arnaiz (1996)

Mennell et al (1992) Carrasco (1992) Freyre (1964 2006) Cacircmara Cascudo

(2004) e Giard (2012) Segundo Doacuteria (2012) mesmo apoacutes a revoluccedilatildeo industrial

e a inserccedilatildeo da mulher no mercado de trabalho a funccedilatildeo alimentar continuou

sendo atribuiacuteda como sendo da mulher

Arnaiacutez (1996) destaca que um dos fatores que contribuiacuteram para que a

relaccedilatildeo mulher ndash alimentaccedilatildeo ocorresse eacute a sua ligaccedilatildeo bioloacutegica com a

maternidade Historicamente a sociedade atribuiu ao papel feminino a

transmissatildeo natural dos trabalhos domeacutesticos e por consequecircncia os cuidados

com os membros da famiacutelia Dentre as atribuiccedilotildees femininas estaacute a de alimentar

seus filhos Citando Carrasco (1992) a autora destaca que a funccedilatildeo de satisfazer

as necessidades atraveacutes da alimentaccedilatildeo eacute primeiramente fisioloacutegica mas

possui tambeacutem outras ldquoSin embargo esta tarea comporta ademaacutes la

reproduccioacuten y satisfaccioacuten de otras relaciones sociales tales como identidade

reciprocidade comensalidade y comunicacioacuten que se expresan em cada uno de

los contenidos de las atividades que incorporardquo (CARRASCO 1992 apud

ARNAIZ 1996 p 31)

Segundo Arnaiz (1996) o papel atribuiacutedo socialmente agrave mulher como

responsaacutevel pela tarefa alimentar para aleacutem de fisioloacutegica encontra principal

argumento no final do seacuteculo XIX quando tanto na famiacutelia burguesa quanto na

87

trabalhadora a funccedilatildeo era basicamente reprodutiva Diferentemente do espaccedilo

externo ao lar no qual repousava o objetivo de produccedilatildeo de mercadorias Assim

havia uma clara e explicita divisatildeo sexual do trabalho Ao homem (pai) cabendo

o papel de provedor e agrave mulher (matildee) o papel de reproduccedilatildeo tanto bioloacutegica

quanto social e a responsabilidade pela alimentaccedilatildeo e por outras necessidades

domeacutesticas dos membros da famiacutelia

Woortmann (1985) trata da divisatildeo tambeacutem dos espaccedilos fiacutesicos da

constituiccedilatildeo tradicional da famiacutelia Nessa percepccedilatildeo a famiacutelia supotildee a divisatildeo

do trabalho entre homens e mulheres e cria o espaccedilo do homem provedor como

aquele externo ao lar onde se constitui a relaccedilatildeo racional dos negoacutecios e da

ldquofriezardquo O espaccedilo da mulher como sendo o da casa o espaccedilo das relaccedilotildees

afetivas e portanto acolhedor encontrando dentre as atividades domeacutesticas a

responsabilidade pela elaboraccedilatildeo da comida como a mais caracteriacutestica

expressatildeo dessa afetividade Assim para o autor

O gecircnero eacute tambeacutem construiacutedo no plano das representaccedilotildees atraveacutes da percepccedilatildeo da comida A comida ldquofalardquo da famiacutelia de homens e de mulheres tanto para o antropoacutelogo que realiza a leitura consciente dos haacutebitos de comer como para os proacuteprios membros do grupo familiar ndash e atraveacutes deste ndash que realizam uma praacutetica inconsciente de um habitus alimentar (WOORTMANN 1985 p 2)

Ao atribuir diferenccedila de significado entre ldquocomidardquo e ldquomantimento o

autor mostra que essa diferenciaccedilatildeo tambeacutem possui conotaccedilatildeo de gecircnero pois

aleacutem de existir o antes e o depois da accedilatildeo culinaacuteria existe tambeacutem a conotaccedilatildeo

que envolve a mediaccedilatildeo masculina e a feminina O autor chama a atenccedilatildeo para

o que observou em seu estudo realizado com camponeses no Nordeste em que

mantimento era considerado um produto do roccedilado portanto de domiacutenio

masculino Mas esse mantimento se converteria em comida ao ser ldquoqueimado27rdquo

na cozinha que eacute compreendido como o espaccedilo feminino

O mantimento (natureza) eacute produto do roccedilado (cultura quando eacute oposto ao mato) pelo trabalho do homem Quando eacute queimado isto eacute quando de ldquocrurdquo passa a ldquocozidordquo processo que se realiza a casa domiacutenio da cultura mas no espaccedilo desta que corresponde agrave mulher (natureza) torna-se comida (cultura) Entatildeo o homem-cultura produz o mantimento-natureza e a mulher-natureza produz a comida-cultura (WOORTMANN 1985 p 9)

27 Expressatildeo muito utilizada pelos camponeses da regiatildeo nordeste segundo o autor

88

Cacircmara Cascudo (2004) discute a identidade social feminina na histoacuteria

da alimentaccedilatildeo no Brasil O papel das mulheres indiacutegenas africanas e

portuguesas que produziram uma importante miscigenaccedilatildeo do paladar que tanto

caracteriza a cozinha brasileira Mulheres que foram responsaacuteveis tambeacutem ao

longo da histoacuteria pela transmissatildeo dos segredos e da diversidade culinaacuteria que

dominaram

A culinaacuteria brasileira tem suas raiacutezes nos saberes que foram repassados

por geraccedilotildees de mulheres desses trecircs grupos eacutetnicos e na junccedilatildeo dos seus

saberes De cada grupo eacutetnico que formou a populaccedilatildeo brasileira detalhes foram

herdados e levados agrave mesa familiar ao longo da histoacuteria Muito do que estaacute

presente em nossas praacuteticas alimentares cotidianas e em festejos especiais eacute

reflexo de transmissatildeo cultural e histoacuterica

Sobre a influecircncia e importacircncia da mulher indiacutegena para a alimentaccedilatildeo

Freyre (1964 p 132) a descreve como sendo natildeo apenas ldquoa base fiacutesica da famiacutelia

brasileira mas valioso elemento de cultura material e alimentar na formaccedilatildeo

brasileirardquo Vaacuterios alimentos usados ateacute os dias atuais remeacutedios caseiros

formatos de utensiacutelios de cozinha etc satildeo heranccedilas das mulheres indiacutegenas

Da cunhatilde eacute que nos veio o melhor da cultura indiacutegena O asseio pessoal A higiene do corpo O milho O caju O mingau As comidas preparadas agrave base de mandioca e que se tornaram a base do regime alimentar do colonizador O brasileiro de hoje amante do banho e sempre de pente e espelhinho no bolso o cabelo brilhante de loccedilatildeo ou de oacuteleo de coco reflete a influecircncia de tatildeo remotas avoacutes (FREYRE 1964 p 132)

Segundo o autor a culinaacuteria brasileira natildeo seria a mesma sem os

quitutes de origem indiacutegena Ele destaca como a mescla dos conhecimentos da

mulher indiacutegena e da mulher portuguesa que se deu nas cozinhas das casas

grandes foi importante para tornarem esses quitutes com sabor ldquoabrasileiradordquo

O autor ainda ressalta a contribuiccedilatildeo da cultura africana por meio das mulheres

africanas para a culinaacuteria brasileira Originam dessa cultura a introduccedilatildeo de

azeite de dendecirc pimenta malagueta quiabo farofa quibebe vatapaacute mungunzaacute

caruru milho assado acarajeacute pipoca cuscuz de peixe novas variedades de

preparo de peixes e da galinha alguns doces broas e patildees de milho Segundo

o autor muitas mulheres alforriadas tiravam seu sustento com os tabuleiros de

doces vendiam cocadas quindins matildees bentas etc Algranti (2007) menciona

que antes de se tornarem populares e vendidos em tabuleiros os doces eram

89

considerados iguarias e apenas servidos em ocasiotildees especiais e eram por isso

demarcadores de distinccedilatildeo social

Assim como a junccedilatildeo dos saberes das mulheres indiacutegenas africanas e

portuguesas produziu comidas mais saborosas A troca de conhecimentos

propiciou novas adaptaccedilotildees aos pratos sobretudo aos doces A heranccedila

portuguesa no que se refere aos doces eacute muito forte segundo Freyre (2007)

mas era preciso a matildeo de obra e a intuiccedilatildeo das mulheres negras para dar o

toque certo nos pontos

Com sabores temperos supersticcedilotildees e haacutebitos das trecircs raccedilas que nos formaram a convivecircncia espontacircnea entre o cristal daquele accediluacutecar o sabor selvagem da fruta tropical e aquele que era o alimento baacutesico dos nossos iacutendios ndash a mandioca Juntando pilatildeo urupema saudade peneira de taquara raspador de coco esperanccedila colher de pau panela de barro mais a fartura de porcelana do oriente e bules e vasos de prata Eram doces preparados em tachos de cobre pesado heranccedila portuguesa largos quase trecircs palmos grandes duas alccedilas ardendo sobre velhos fogotildees a lenha Jovens negras tiravam os tachos pesados do fogo sem pedir ajuda As mais velhas usavam experiecircncia e sabedoria trazidas de terras distantes com olhares atentos para natildeo deixar o doce passar do ponto E sempre com aquela mesma forma de fazer ndash tranquila bem devagar sem pressa quase dolente (FREYRE 2007 p 13-14)

Bruit et al (2007) citam doces como as marmeladas goiabadas

rapaduras doces de frutas em calda acompanhados muitas vezes de queijo

como aqueles mais servidos nos jantares festivos que ocorriam nas casas-

grandes no interior de Satildeo Paulo e Minas Gerais Tanto as referecircncias de

Cacircmara Cascudo (2004) como as de Freyre (1964 2003 e 2007) revelam as

praacuteticas alimentares que ocorriam no Brasil colonial sobretudo nas casas-

grandes e dos sobrados que foram caracteriacutesticas primeiramente das regiotildees

dos engenhos de cana

Abdala (2007) afirma o controle da cozinha pelas mulheres no Brasil

colonial Referindo-se principalmente agraves escravas que viviam quase reclusas na

cozinha e por isso se tornaram personagem central na atividade da culinaacuteria

Segundo a autora essa era a realidade em Minas Gerais mas tambeacutem em

outras partes do paiacutes As escravas e as mulheres pobres executavam o serviccedilo

cotidiano Agraves senhoras ricas cabia dar as ordens e administrar os trabalhos

relativos agrave produccedilatildeo da comida Somente em algumas ocasiotildees elas se

dedicavam agrave elaboraccedilatildeo de algum prato ldquoEm casa no decorrer dos dias nas

festas intimas durante visitas como tambeacutem na rua no comeacutercio ambulante ou

90

das vendas cabia agrave mulher toda a funccedilatildeo relacionada agrave comidardquo (ABDALA

2007 p 80) Essa condiccedilatildeo tambeacutem eacute apontada por Vasconcellos (1968) que

apresenta a mulher deste periacuteodo em Minas Gerais como a dona absoluta dos

seus domiacutenios no interior das casas que compreendia tambeacutem a cozinha local

onde o homem raramente acessava

O domiacutenio feminino dos grupos eacutetnicos indiacutegenas africanos e portuguecircs

eacute perceptiacutevel na alimentaccedilatildeo brasileira ainda nos dias de hoje muito embora

com a chegada dos imigrantes europeus e tambeacutem de outras regiotildees a partir

da metade do seacuteculo XIX mulheres de outras culturas trouxeram importantes

contribuiccedilotildees para a culinaacuteria brasileira Destacando as italianas e as alematildes

cuja influecircncia se iniciou no Sul do Brasil mas tambeacutem na cidade de Satildeo Paulo

No interior do estado do Espirito Santo e na regiatildeo serrana do Rio de Janeiro as

culturas italianas e alematildes tambeacutem tiveram papel importante na formaccedilatildeo das

praacuteticas alimentares locais

Segundo Claval (2001) os saberes culinaacuterios foram repassados

matrilinearmente ao longo da histoacuteria e foram feitos principalmente por oralidade

pelas mulheres que podem ser chamadas de as ldquoguardiatildesrdquo termo usado por

Giddens (2012) e Simson (2003) Muitas mulheres mais velhas que natildeo tiveram

a oportunidade de estudar e sabiam apenas assinar o proacuteprio nome guardavam

na memoacuteria as receitas de suas matildees e avoacutes Pode-se dizer que a transmissatildeo

pela oralidade parece contribuir mais para aproximar as geraccedilotildees pela relaccedilatildeo

de proximidade necessaacuteria entre as mulheres Independente da forma se

escritas ou orais o importante eacute a compreensatildeo de que receitas repassadas

pelas geraccedilotildees carregam tambeacutem uma histoacuteria rica em significados e

experiecircncias vividas pelas mulheres das geraccedilotildees Afinal como dito por Doacuteria

(2006 p 103) ldquoreceitas como meros lsquomodos de fazerrsquo satildeo inuacuteteisrdquo

Tambeacutem Giard (2012) atribui agraves mulheres ndash as guardiatildes da tradiccedilatildeo ndash a

influecircncia na preferecircncia por determinados pratos Somos ldquovisitadosrdquo pelos

sabores e cheiros que a memoacuteria muitas vezes insiste em trazer agrave tona as

comidas de tempos de infacircncia e juventude que nos reporta a ocasiotildees

especiacuteficas da vida Em pesquisa etnograacutefica realizada com mulheres dedicadas

a culinaacuteria a autora concluiu que

A aquisiccedilatildeo dos ingredientes a preparaccedilatildeo e as regras de compatibilidade podem muito bem mudar de uma geraccedilatildeo agrave outra mas

91

o trabalho cotidiano das cozinhas continua sendo uma maneira de unir mateacuteria e memoacuteria vida e ternura instante presente e passado que jaacute se foi invenccedilatildeo e necessidade imaginaccedilatildeo e tradiccedilatildeo ndash gostos cheiros sabores formas consistecircncias atos gestos coisas e pessoas especiarias e condimentos (GIARD 2012 p 296)

Apesar do papel central da oralidade o caderno de receita eacute um

instrumento importante para se reportar aos haacutebitos alimentares de tempos

passados Talvez o primeiro registro de uma receita seja a que aponta Sitwell

(2012) Trata-se de um registro de 1700 aC na antiga Mesopotacircmia de uma

receita de ensopado de legumes e carne que foi esculpido em taacutebuas de argila

em fixada a um tuacutemulo Segundo Claval (2001) os registros de receitas em

cadernos tiveram iniacutecio em meados do seacuteculo XIX Haacute quem o tenha herdado

de pessoas da famiacutelia e mesmo que natildeo o utilize no dia-a-dia o manteacutem como

heranccedila afetiva

Abrahatildeo (2007) aponta que natildeo apenas receitas eram registradas em

muitos desses cadernos mas tambeacutem outras anotaccedilotildees necessaacuterias naquele

momento Ele menciona que as receitas culinaacuterias que foram arquivadas em

cadernos traziam ricas informaccedilotildees inclusive sobre outros aspectos

alimentares das eacutepocas como preccedilos ofertas e carecircncias temporaacuterias de

produtos

Atualmente e desde o surgimento da sociedade industrial as atividades

das mulheres passam por transformaccedilotildees com a saiacuteda para o mercado de

trabalho externamente ao lar a dupla jornada de trabalho as mudanccedilas sociais

poliacuteticas e econocircmicas que interferiram na dinacircmica da sociedade e

consequentemente na divisatildeo sexual do trabalho Isso propiciou a aproximaccedilatildeo

masculina da cozinha numa possiacutevel divisatildeo do trabalho domeacutestico espaccedilo

antes ocupado exclusivamente por mulheres Mas ainda assim segundo Doacuteria

(2012) a mulher eacute a principal responsaacutevel pela alimentaccedilatildeo da famiacutelia ldquoNatildeo haacute

duacutevidas de que ainda hoje a cozinha feminina eacute um dos pilares do poder da

mulher em que ela segue administrando a tradiccedilatildeo alimentar (DOacuteRIA 2012 p

255)

Segundo Giard (2012) ldquodentro de uma cultura uma mudanccedila das

condiccedilotildees materiais ou da organizaccedilatildeo poliacutetica eacute o que basta para modificar a

maneira de conceber e de repartir este tipo de tarefas cotidianas podendo

tambeacutem alterar a hierarquia dos diferentes trabalhosrdquo (GIARD 2012 p 211)

92

Para esta autora natildeo haacute nada de essecircncia feminina no fato de as mulheres de

ontem e as de hoje ainda serem as que mais se envolvem nas questotildees relativas

agrave alimentaccedilatildeo A questatildeo eacute puramente histoacuterica social e cultural

Diante das mudanccedilas e da permanecircncia feminina como principal

responsaacutevel pela alimentaccedilatildeo familiar as novas tecnologias disponibilizadas aos

espaccedilos da cozinha o acesso e a variedade de alimentos industrializados

facilitam a conduccedilatildeo desse papel pelas mulheres que desejam manter a

responsabilidade pela alimentaccedilatildeo da famiacutelia mas cujo tempo eacute escasso para

se dedicarem a todas as atividades que executam Por mais que possa haver

algum conflito em usaacute-los nos termos citados por Fischler (1995) haacute poreacutem o

aspecto da comodidade e economia de tempo que atuam como fatores

estimuladores ao seu uso

A dupla jornada de trabalho feminino natildeo ocorre apenas nas aacutereas

urbanas mas tambeacutem nas rurais seja para aquelas que possuem atividade

remunerada fora da propriedade em que moram seja para as que trabalham

apenas na propriedade As atividades das mulheres agricultoras envolvem o

ambiente interno e externo da casa e ainda o seu entorno e para muitas as

atividades tambeacutem do roccedilado conforme Panzutti (2006)

Na vida cotidiana a mulher se ocupa de cozinhar e servir a comida lavar a roupa cuidar dos animais prover a lenha costurar as roupas lavar a louccedila aleacutem de trabalhar na roccedila sempre acompanhada da prole que eacute de seu cuidado Eventualmente eacute auxiliada nessas tarefas por uma filha (PANZUTTI 2006 p 62)

Segundo a autora no meio rural a oposiccedilatildeo entre a casa e o

roccedilado apesar de socialmente ser dividida e hierarquizada mostrando os

domiacutenios dos homens e os das mulheres natildeo as livra de exercer muitas

atividades no espaccedilo considerado masculino Por outro lado a cozinha eacute um

espaccedilo bem definido como sendo o da mulher matildee de famiacutelia

Alguns estudos feitos no Sul do Brasil como o de Zanetti e Menasche

(2007) De Grandi (2003) Paulilo et al (2003) e Heredia (1984) relatam a

experiecircncia de mulheres atuando nas atividades agriacutecolas como o cuidado com

pequenos cultivos pomar pequenos animais mas tambeacutem mantendo a

responsabilidade pelas praacuteticas alimentares na preparaccedilatildeo e organizaccedilatildeo da

alimentaccedilatildeo da famiacutelia

93

Na apresentaccedilatildeo dos dados empiacutericos discuto as situaccedilotildees vivenciadas

pelas famiacutelias e o papel desempenhado pelas mulheres na alimentaccedilatildeo dos

membros da famiacutelia Tanto daquelas que trabalham apenas no siacutetio como

daquelas que exercem atividade remunerada fora dos siacutetios As mulheres

relataram sobre a dinacircmica exercida por elas no que se refere agraves praacuteticas

alimentares e cultura rural Na pesquisa de campo foram apontados pelos

entrevistados elementos aqui discutidos como a transmissatildeo de saberes

culinaacuterios e a relaccedilatildeo entre modos tradicionais e modos contemporacircneos das

praacuteticas culinaacuterias

94

4 ASPECTOS METODOLOacuteGICOS DA PESQUISA E A CHEGADA AO CAMPO

Neste capiacutetulo satildeo apresentados os aspectos metodoloacutegicos que

orientaram a pesquisa de campo bem como os resultados obtidos O trabalho

de campo foi conduzido utilizando-se um delineamento qualitativo agrave luz da

abordagem etnograacutefica no sentido dado por Peirano (1995) dando atenccedilatildeo

especial ao diaacutelogo com o outro Quivy e Campenhoudt (1992) defendem que o

trabalho de investigaccedilatildeo em Ciecircncias Sociais proporciona uma melhor anaacutelise

dos eventos qualitativos bem como uma compreensatildeo mais detalhada e sutil das

dinacircmicas de funcionamento do grupo estudado

Jaacute os direcionamentos de Poulain e Proenccedila (2003) tratam da pesquisa

voltada ao estudo das praacuteticas alimentares num contexto socioantropoloacutegico

Esses autores sugerem atenccedilatildeo conjunta por parte do pesquisador aos

comportamentos dos informantes naquilo que chamam de ldquopraacuteticas observadasrdquo

e ldquopraacuteticas reconstruiacutedasrdquo Para os autores aquilo que o pesquisador observa

durante a entrevista age em conjunto com os relatos dos entrevistados

auxiliando a interpretaccedilatildeo dos dados

As praacuteticas observadas dizem respeito ao que eacute testemunhado pelo

pesquisador satildeo detalhes muitas vezes relevantes mas que nem sempre satildeo

fornecidos pelos interlocutores por razotildees diversas Para facilitar posteriormente

o acesso agraves informaccedilotildees obtidas por meio da observaccedilatildeo o uso de alguns

instrumentos de apoio eacute importante o caderno de campo a cacircmera fotograacutefica

e o gravador As praacuteticas reconstruiacutedas dizem respeito ao trabalho de

rememorizaccedilatildeo Interessa investigar e comparar vivecircncias passadas com as

atuais no caso da alimentaccedilatildeo praacuteticas que foram adotadas alimentos que

fizeram parte da dieta traccedilos de comensalidade comemoraccedilotildees festivas onde

a comida esteja presente o que permanece e o que foi abandonado

Entre outras questotildees busquei verificar junto agraves famiacutelias a influecircncia da

heranccedila culinaacuteria envolvendo a cultura imaterial (eventos relacionados agrave comida

que satildeo tradicionais na famiacutelia) a representaccedilatildeo das praacuteticas alimentares no

tempo passado e presente e o papel dos guardiatildees da tradiccedilatildeo da culinaacuteria

familiar a relaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo bem como com os modos de alimentaccedilatildeo

moderna

95

41 Teacutecnica de pesquisa

A entrevista semiestruturada foi a teacutecnica de pesquisa utilizada para

obtenccedilatildeo de informaccedilotildees das praacuteticas reconstruiacutedas e observadas (POULAIN

PROENCcedilA 2003) justificam como sendo a forma mais confiaacutevel quando dirigida

pelo proacuteprio pesquisador e ainda por permitir aprofundamento das questotildees As

entrevistas podem ser reformuladas ao longo da sua ocorrecircncia com o objetivo

de redirecionar a discussatildeo para o assunto poreacutem sem se prender totalmente agrave

pergunta inicial ldquoAs digressotildees satildeo importantes porque permitem perceber as

representaccedilotildees e os quadros de referecircncia mais ou menos conscientes nos

quais se manifestam as loacutegicas dos atoresrdquo (p 373)

A entrevista permite ao pesquisador uma variedade de interpretaccedilotildees A

atenccedilatildeo do pesquisador e seu feeling tambeacutem satildeo muito importantes pois eacute

preciso estar atento para fazer tanto abordagens objetivas e palpaacuteveis como

simboacutelicas Neste uacuteltimo caso estar atento ao que natildeo aparece claramente na

mensagem e fica impliacutecito na fala

42 Os sujeitos da pesquisa

A definiccedilatildeo dos sujeitos da pesquisa foi realizada a partir de dados

fornecidos pela Emater relativos a cada municiacutepio selecionado Poreacutem como o

trabalho de campo eacute dinacircmico novos informantes surgiram durante esta fase

pois ao entrevistar uma famiacutelia sugiram durante as conversas nomes de outras

pessoas da proacutepria comunidade que pelos objetivos da pesquisa foi

interessante entrevistar Assim as informaccedilotildees da Emater representaram a

porta de entrada mas natildeo uma limitaccedilatildeo para a seleccedilatildeo dos entrevistados

O uacutenico preacute-requisito para a pesquisa era que os interlocutores

morassem na aacuterea rural dos trecircs municiacutepios delimitados O objetivo era conhecer

as praacuteticas que ocorriam no conjunto familiar e natildeo necessariamente as praacuteticas

individuais

Foram realizadas 40 entrevistas abrangendo 17 comunidades rurais

sendo 05 em Piranga 07 em Porto Firme e 05 em Presidente Bernardes cujos

nomes constam no Quadro 1 bem como o nuacutemero de famiacutelias entrevistadas 14

em Piranga 12 em Porto Firme e 14 em Presidente Bernardes O nuacutemero de

96

famiacutelias entrevistadas por comunidade eacute aquele que consta entre os parecircnteses

no referido quadro

Quadro 1 ndash Municiacutepios comunidades e nuacutemero de famiacutelias 2015

Municiacutepios Comunidades

Piranga Boa Vista (2) Manja (3) Mestre Campos (4) Bom Jesus do Bacalhau (2) Tatu (3)

Porto Firme Aacutegua Limpa (2) Bom Retiro (1) Vinte Alqueires (1) Limeira (2) Posses (2) Jacuba28 (2) Satildeo Domingos (2)

Presidente Bernardes Itapeva (3) Mato Dentro (3) Ribeiratildeo (3) Xopotoacute (3) Bananeiras (2)

Fonte Pesquisa de campo 2015

43 A conduccedilatildeo da pesquisa o caminho percorrido

A pesquisa de campo teve como objetivo analisar agrave luz da teoria

sistematizada o significado da comida e as relaccedilotildees de comensalidade atendo-

se agraves mudanccedilas e permanecircncias referentes agraves praacuteticas alimentares das famiacutelias

Mais especificamente analisar a articulaccedilatildeo entre o tradicional e o moderno o

processo de escolha alimentar e os princiacutepios que a determinam como haacutebitos

tradiccedilatildeo praticidade custo etc a influecircncia dos guardiatildees da tradiccedilatildeo na

reproduccedilatildeo do gosto no processo de significaccedilatildeo e ressignificaccedilatildeo da comida

atrelada agraves praacuteticas aos saberes e aos haacutebitos tanto no cotidiano quanto nos

rituais

A pesquisa de investigaccedilatildeo teoacutericobibliograacutefica me conduziu a pensar

as categorias analiacuteticas e as variaacuteveis para a conduccedilatildeo do processo empiacuterico

Assim a alimentaccedilatildeo em seu sentido cultural e simboacutelico como o que foi

discutido nos campos teoacutericos da antropologia e da sociologia da alimentaccedilatildeo

28 Perguntei aos entrevistados desse local se eles sabiam porque a comunidade se chamava Jacuba mas

natildeo souberam responder Os nomes das comunidades estatildeo quase todas relacionadas ao nome de primeira fazenda implantada na localidade Perguntei isso porque ldquojacubardquo eacute um termo indiacutegena usado para se referir a um tipo de comida parecida com o piratildeo agrave base de aacutegua e farinha de mandioca e rapadura muito consumida pelos tropeiros no periacuteodo da mineraccedilatildeo em Minas Antocircnio Cacircndido tambeacutem se refere a ela na descriccedilatildeo dos caipiras paulistas

97

no capiacutetulo anterior eacute eleita como categoria analiacutetica central A partir dela foram

definidas outras quatro subcategorias de suporte 1 As praacuteticas alimentares 2

A comensalidade 3 O espaccedilo social da alimentaccedilatildeo 4 A cultura Como

atributos importantes para a anaacutelise dessas categorias delineei as variaacuteveis

norteadoras da pesquisa empiacuterica e que me ajudaram a observar a descrever

a analisar e a interpretar os dados

Sobre a cultura o interesse foi traccedilar uma caracterizaccedilatildeo ou um ldquoretratordquo

das famiacutelias quanto agrave origem (rural ou urbana) o tempo em que moram na regiatildeo

pesquisada se a terra eacute herdada ou adquirida a faixa etaacuteria aproximada se satildeo

idosos ou jovens a produccedilatildeo de alimentos e as atividades realizadas no

cotidiano

Nas praacuteticas alimentares o interesse foi o de conhecer as informaccedilotildees

relativas aos alimentos mais consumidos no cotidiano e nos eventos especiais

o que eacute produzido no local e o que eacute comprado o horaacuterio das refeiccedilotildees a relaccedilatildeo

com a atividade (por prazer ou por obrigaccedilatildeo) a comida tradicional (o papel dos

guardiatildees da cultura alimentar os cadernos de receita o aprendizado por

oralidade) a comida de antigamente e a comida de hoje a comida para visita e

a comida para os de casa os aspectos levados em consideraccedilatildeo na escolha dos

alimentos (tradiccedilatildeo praticidade custo e atraccedilatildeo pelo moderno)

Para analisar a comensalidade foi preciso identificar se ela estaacute

presente nos haacutebitos familiares no cotidiano e em datas especiais os locais onde

ela ocorre (cozinha copa aacuterea externa da casa sala de visita) e o tempo

aproximado de duraccedilatildeo das refeiccedilotildees

O espaccedilo social da alimentaccedilatildeo se refere ao local de preparo e de

consumo das refeiccedilotildees Importa saber a este respeito quem prepara as

refeiccedilotildees e quais satildeo os equipamentos existentes neste espaccedilo por exemplo a

presenccedila do fogatildeo a lenha e a gaacutes e a constacircncia de seus usos ou seja qual

deles eacute mais utilizado Tambeacutem a existecircncia e usos de equipamentos eleacutetricos

como geladeira freezer forno eleacutetrico forno de micro-ondas batedeira de bolo

etc Neste sentido analisar se nesse espaccedilo social ocorre a relaccedilatildeo entre

tradiccedilatildeo e modernidade na posse e uso dos equipamentos ou o predomiacutenio de

uma dessas caracteriacutesticas Buscou-se ainda analisar se permanecem os

costumes alimentares quanto aos locais destinados agrave comensalidade ou este

espaccedilo social estaacute passando por transformaccedilotildees

98

44 A entrevista semiestruturada

As entrevistas foram gravadas com a permissatildeo dos interlocutores da

pesquisa Apenas uma famiacutelia na comunidade de Ribeiratildeo em Presidente

Bernardes natildeo se sentiu agrave vontade com o gravador e realizei as anotaccedilotildees em

caderno de campo Os nomes dos entrevistados citados no decorrer deste

capiacutetulo satildeo pseudocircnimos que substituiacuteram os verdadeiros para preservar a

identificaccedilatildeo dos participantes conforme exigecircncia constante no Parecer

Consubstanciado do Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa com Seres Humanos (CEP)

da Universidade Federal de Viccedilosa

O estilo da narrativa para apresentaccedilatildeo dos resultados da pesquisa

segue o direcionamento proposto na perspectiva etnograacutefica discutida por

Peirano (1995 e 2008) Marcus e Cushman (1998) e Uriarte (2012) Para Marcus

e Cushman (1998 p 175-176) a narrativa etnograacutefica do seacuteculo XX tem se

baseado no que chamam de realismo etnograacutefico sendo ldquoun modo de escritura

que busca representar la realidade de todo un mundo o de uma forma de vidardquo

Outras caracteriacutesticas da narrativa etnograacutefica realista segundo os autores satildeo

Una cuidadosa atencioacuten hacia nos detalles y demonstraciones redundantes de

que el escritor compartioacute y experimentoacute ese mundordquo

Para Peirano (2008 p 6) ldquoo trabalho de campo se faz pelo diaacutelogo vivo

e depois a escrita etnograacutefica pretende comunicar ao leitor (e convencecirc-lo) de

sua experiecircncia e sua interpretaccedilatildeordquo

45 A imersatildeo em campo a chegada e a travessia

Se a accedilatildeo de comer eacute algo tatildeo iacutentimo ao ser humano conforme reflete

Mintz (2001) analisar os haacutebitos e as praacuteticas alimentares de pessoas e grupos

se torna uma atividade de grande responsabilidade Trabalhar os dados de forma

analiacutetica e criacutetica agrave luz das abordagens teoacutericas e portanto longe do julgamento

do senso comum eacute o papel do pesquisador Foi com essa percepccedilatildeo que

enveredei no campo pensando a pesquisa empiacuterica como descobertas a serem

feitas pelo caminho naquele sentido absorvido quando li Grande Sertatildeo

Veredas de Guimaratildees Rosa pela primeira vez

99

O real natildeo estaacute na saiacuteda nem na chegada ele se dispotildee para a gente eacute no meio da travessia () Assaz o senhor sabe a gente quer passar um rio a nado e passa mas vai dar na outra banda eacute num ponto muito mais em baixo bem diverso do que em primeiro se pensou (ROSA 2001 p 51 e 80)

Fazer pesquisa de campo eacute algo semelhante Faz-se um planejamento

mas durante o percurso eacute preciso lidar por um lado com os ldquoimponderaacuteveis da

pesquisardquo29 e por outro com a expectativa das descobertas a serem feitas na

travessia A praacutetica empiacuterica eacute tambeacutem trabalho analiacutetico e reflexivo mas eacute

sobretudo ndash concordando com a ideia de Peirano (1995 p 57) ndash ldquotrabalho

artesanal microscoacutepico detalhista e que traduz como poucas outras o

reconhecimento do aspecto temporal das explicaccedilotildeesrdquo Ela argumenta ainda que

a conduccedilatildeo de uma pesquisa de campo ldquodepende entre outras coisas da

biografia do pesquisador das opccedilotildees teoacutericas do contexto sociohistoacuterico e das

imprevisiacuteveis situaccedilotildees que se configuram no dia-a-dia no proacuteprio local de

pesquisa entre pesquisador e pesquisadosrdquo (p 22)

Para esta pesquisa as questotildees em torno dos haacutebitos praacuteticas

alimentares e sociabilidades das famiacutelias rurais foram importantes para a

investigaccedilatildeo cientiacutefica pretendida Assim foi necessaacuteria a compreensatildeo por

parte dos interlocutores sobre a importacircncia de sua participaccedilatildeo Coube a eles

apoacutes o entendimento da pesquisa abrir a sua intimidade alimentar cotidiana Fui

convidada pelos entrevistados ndash mulheres na maior parte ndash a ldquoadentrar e puxar

assentordquo na cozinha Tambeacutem me convidaram para conhecer o quintal colher

verdura na horta e inclusive a participar das refeiccedilotildees em todas as casas

visitadas fosse almoccedilo fosse ldquomerendardquo ou mesmo apanhar frutas diretamente

do peacute durante conversas ocorridas no pomar

Assim percorri regiotildees rurais de Piranga Porto Firme e Presidente

Bernardes entre os meses de fevereiro a junho de 2015 fazendo descobertas

aprendendo apreendendo dialogando analisando questionando e refletindo

sobre os sentidos da comida e do comer no espaccedilo rural contemporacircneo das

famiacutelias pesquisadas

29 Termo que foi utilizado primeiramente por Bronislaw Malinowski (1976) ao falar sobre os ldquoimponderaacuteveis

da vida realrdquo para se referir a rotina do trabalho diaacuterio do nativo os detalhes de seus cuidados corporais o modo como prepara a comida e come as simpatias ou aversotildees e etc Utilizo o termo semelhante para pensar os eventos inesperados da pesquisa empirica

100

Naquelas famiacutelias em que fui apresentada diretamente pelos teacutecnicos da

Emater e a quem acompanhei em algumas de suas visitas agraves comunidades

atendidas no mecircs de janeiro de 2015 e mesmo naquelas onde minha preacutevia

apresentaccedilatildeo foi feita via telefone a chegada para a pesquisa foi mais simples

Entretanto naquelas em que houve indicaccedilatildeo por parte dos proacuteprios

entrevistados o processo foi mais lento mas natildeo difiacutecil ou impeditivo Apenas

levei mais tempo para organizar a visita Em um dia ia ao local me apresentava

explicava sobre a pesquisa que havia sido realizada com seus conhecidos na

mesma comunidade respondia agraves perguntas e curiosidades e por fim

agendava um retorno Considero como mais provaacutevel eacute que tenham aceitado

participar da pesquisa em funccedilatildeo de eu ter citado o mesmo trabalho feito com

pessoas conhecidas Natildeo sei dizer se foram buscar confirmaccedilatildeo sobre isso A

teacutecnica da Emater de Piranga que estava se aposentando se propocircs a percorrer

comigo algumas comunidades em alguns dias da segunda quinzena de janeiro

de 2015 me mostrando os caminhos e apresentando a algumas pessoas

Em geral as pessoas foram atenciosas Algumas se mostraram mais

interessadas do que outras e por isso o envolvimento foi maior Poreacutem todas

deram contribuiccedilotildees muito importantes Houve dois casos em que precisei

retornar em outro dia Em um dos casos porque houve falecimento de um

parente na manhatilde do dia da entrevista e natildeo tiveram como me avisar antes Na

outra situaccedilatildeo o casal de aposentados precisou ir agrave cidade resolver problemas

pessoais e pediu para marcarmos um outro dia Foi necessaacuterio tambeacutem o

adiamento da pesquisa em dias de chuva devido agraves condiccedilotildees ruins das

estradas

Optei por dividir o horaacuterio das entrevistas em manhatilde e tarde para

conviver com dois momentos do cotidiano das famiacutelias respeitando os horaacuterios

delas Assim consegui realizar 15 entrevistas na parte da manhatilde e as outras 25

na parte da tarde O horaacuterio de chegada pela manhatilde era entre 800 e 830

tambeacutem em acordo com as famiacutelias Na parte da tarde o horaacuterio era entre 1330

e 1400 Almocei porque era convidada nas casas onde iniciava o trabalho na

parte da manhatilde o que me permitia acompanhar o processo de elaboraccedilatildeo do

almoccedilo as conversas no geral aconteciam na cozinha mas parte delas ocorria

tambeacutem nas hortas e nos quintais

101

A partir do proacuteximo item passo a apresentar os dados obtidos em campo

baseados em informaccedilotildees fornecidas pelos interlocutores da pesquisa e tambeacutem

nas observaccedilotildees que fiz Os itens e subitens estatildeo relacionados agraves variaacuteveis

elencadas no projeto de pesquisa que compuseram o roteiro de entrevista

No item 46 apresento dados de caraacuteter descritivo-analiacutetico sobre a

cultura e os modos de vida do grupo pesquisado as atividades cotidianas de

trabalho as impressotildees empiacutericas e sua relativizaccedilatildeo agrave luz dos dados do IBGE

(2010) sobre uma regiatildeo que aos olhos dos entrevistados parece estar

envelhecendo Apresento e discuto tambeacutem outras percepccedilotildees culturais do

cotidiano Em todo o item algumas reflexotildees sobre as praacuteticas alimentares satildeo

sinalizadas ou apontadas No entanto as discussotildees mais especiacuteficas sobre as

praacuteticas alimentares satildeo feitas no capiacutetulo 5

46 Descobrindo a cultura local dos entrevistados

461 Perfil das famiacutelias

Na regiatildeo pesquisada predomina a agricultura de base familiar que eacute

aquela em que a propriedade a gestatildeo e o trabalho estatildeo ligados agrave famiacutelia no

sentido dado por Gasson e Errington (2003 p 20) O marido a esposa e tambeacutem

os filhos adolescentes quando chegam da escola satildeo os que trabalham na

propriedade Entre os casais idosos as atividades de produccedilatildeo satildeo muito

reduzidas por dificuldades fiacutesicas em executar alguns trabalhos Em alguns siacutetios

haacute filhos casados ou solteiros se responsabilizando pelas atividades dos pais

As aacutereas rurais dos trecircs municiacutepios se assemelham tanto ao que se

relaciona agraves atividades agriacutecolas quanto agrave cultura e haacutebitos cotidianos inclusive

os alimentares A maior parte das famiacutelias (899) mora em pequenos siacutetios que

se formaram por divisatildeo de heranccedila de propriedades maiores O restante

adquiriu por meio de compra Em todos os casos de heranccedila ela proveacutem dos

pais do marido Essas informaccedilotildees obtidas em campo coincidem com o que eacute

apresentado por Maria Joseacute Carneiro (2001 e 1998b) Abramovay et al (1998)

Woortmann (1995) Spanevello e Lago (2010) Paulilo (2003) Mendonccedila et al

(2013) e Moura (1978) ao discutirem o processo sucessoacuterio do meio rural

Apontam que historicamente a heranccedila eacute dada ao filho de sexo masculino que

102

assume a continuaccedilatildeo das atividades ldquoenquanto as mulheres se tornam

agricultoras por casamentordquo (Paulilo 2003 p 188) Situaccedilatildeo semelhante foi

verificada na minha pesquisa As mulheres disseram natildeo ter herdado terra dos

pais agricultores sendo possuidoras de terra a partir do momento em que se

casaram e passaram a partilhar a terra herdada pelo marido

Outros estudos como os de Woortmann (1995) Carneiro (1998b) e

Camarano e Abramovay (1998) tecircm sinalizado uma mudanccedila nos uacuteltimos anos

Uma das razotildees estaacute associada agraves transformaccedilotildees de perspectivas da juventude

rural em relaccedilatildeo ao campo Segundo os autores muitos jovens natildeo demonstram

mais tanto interesse em permanecer no campo e assumir a incumbecircncia total

pela manutenccedilatildeo da terra que pertenceu aos pais Em minha pesquisa natildeo tive

como objetivo discutir a questatildeo sucessoacuteria mas as famiacutelias cujos filhos

moravam nos siacutetios dos pais (666) eram sobretudo aquelas compostas por

casal de idosos e aposentados Nestes casos os filhos natildeo moravam

necessariamente na mesma casa Quando se tratava de filhos casados eles

moravam em casas separadas

A origem rural eacute predominante no grupo pesquisado sendo a realidade

de 95 das famiacutelias entrevistadas As famiacutelias satildeo pequenas sendo 36 pessoas

o tamanho meacutedio incluindo aquelas de casais aposentados e natildeo aposentados

que tecircm os filhos morando em casa Predominam aquelas compostas por

aposentados que moram sozinhos existindo no entanto algumas cujos filhos

solteiros moram com os pais Em alguns dos casos um dos filhos casados mora

no siacutetio mas em casa separada dos pais

As famiacutelias compostas por casais de aposentados correspondem a 24

delas (60) Desse total 11 famiacutelias estatildeo em Presidente Bernardes 08 em

Piranga e 05 em Porto Firme O municiacutepio de Presidente Bernardes representa

aquele com maior percentual de aposentados 80 Em Piranga eles

representam 6875 e em Porto Firme 50

As outras 16 famiacutelias satildeo compostas por casais cuja faixa etaacuteria varia de

30 a 50 anos Nestas famiacutelias os filhos a partir dos 16 anos tecircm saiacutedo para

estudar em outras cidades proacuteximas como Viccedilosa Ouro Preto ou Ouro Branco

onde possam cursar o niacutevel superior Essa foi a realidade encontrada em sete

delas Isso tem ocorrido por interesse tambeacutem dos pais que desejam vecirc-los

formados em um curso superior

103

Em relaccedilatildeo agrave escolaridade a maior parte (646) das pessoas com

idade acima de 60 anos tinham o ensino fundamental incompleto 187

concluiacuteram o ensino fundamental 104 disseram ter sido semialfabetizado ou

seja sabem assinar o nome e ler e escrever muito pouco30 e 63 possuem o

ensino meacutedio completo Entre o puacuteblico na faixa etaacuteria de 30 a 50 anos

predomina o ensino meacutedio completo (532) 373 natildeo completou o ensino

meacutedio e 95 possuem apenas o ensino fundamental completo As mulheres

representam o maior percentual dentre o puacuteblico que concluiu o ensino meacutedio

Os filhos que moram na casa dos pais com idade inferior a 30 anos estatildeo

estudando a maior parte deles crianccedilas e adolescentes

Embora o tema desse subitem natildeo seja objetivo analiacutetico deste trabalho

considerei interessante inserir uma breve discussatildeo em funccedilatildeo de que durante

as entrevistas muitos depoimentos destacaram a saiacuteda dos jovens e a

permanecircncia dos casais de aposentados das regiotildees em que vivem A busca

pela continuidade dos estudos tem determinado a saiacuteda dos jovens Sem

disponibilidade de ensino superior nos municiacutepios em que moram os filhos tecircm

saiacutedo para outras regiotildees proacuteximas e contam com o estimulo dos pais para isso

Os pais alegam que natildeo tiveram oportunidade de fazer um curso superior ou

mesmo teacutecnico e que desejam isso para os filhos porque percebem que a

realidade de trabalho no campo atualmente estaacute mais difiacutecil do que em tempos

atraacutes Relataram que seus pais conseguiram criar famiacutelias grandes com maior

facilidade do que hoje obtendo renda da agricultura Realidade que segundo os

entrevistados estaacute cada vez mais distante na contemporaneidade

Para Zefa moradora de Mato Dentro Presidente Bernardes uma das

explicaccedilotildees para o baixo nuacutemero de pessoas mais novas morando na aacuterea rural

da regiatildeo decorre da divisatildeo das propriedades chegando ao ponto de natildeo ter

mais como dividi-las entre os herdeiros e explica ldquoEsse siacutetio aqui jaacute foi dividido

quando meu sogro deixou aqui para noacutes Se a gente fosse dividir para nossos

nove filhos natildeo ir dar nada entatildeo os filhos foram pra cidade achar um jeito

melhor porque na roccedila eacute tudo mais difiacutecil mesmordquo

Muitos pais ao falarem dos seus filhos jovens destacam que eles se

sentem atraiacutedos por bens e tecnologias que natildeo estatildeo disponiacuteveis no campo o

30 Percebi o constrangimento de alguns quando eu lhes explicava sobre a necessidade de assinatura dos

entrevistados ao ldquoTermo de Consentimento Livre e Esclarecidordquo do Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa

104

mais citado foi o acesso agrave internet O filho de Lola e Marcos que tem 10 anos de

idade possui um celular que soacute utiliza quando vai agrave cidade Consegue acessar

a rede por laacute com o uso da senha que um amigo disponibilizou Os filhos de

Carmem quando visitam os pais reclamam de natildeo ter como acessar a internet

no siacutetio Por outro lado os depoimentos apontaram que os filhos que moram fora

dos siacutetios natildeo tem a mesma reclamaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave comida ao contraacuterio

sentem o desejo de comer a comida tradicional que consumiam quando

moravam no local

Quando os filhos vecircm eles querem comer comida daqui eles falam que eacute ldquocomida de matildeerdquo estatildeo enjoados do que comem na cidade eles falam isso porque eacute com essa comida daqui que foram acostumados comida deles laacute na cidade tem muito tempero artificial igual esse tal de sazon (Doca moradora de Boa Vista Piranga MG 2015)

Haacute no comportamento dos filhos jovens das famiacutelias que entrevistei um

conflito de ordem cultural Desejam manter identidades culturais locais sentem

necessidade da comida da matildee da comida tradicional e de sempre que possiacutevel

visitar os pais como eacute o caso das filhas de Nilsa e Jonas de Satildeo Domingos

Porto Firme que estudam em Viccedilosa Quase todos os finais de semana visitam

os pais Por outro lado sentem falta do acesso a tecnologias e outras opccedilotildees

oferecidas a eles na cidade

Mas o outro lado tambeacutem existe Haacute o exemplo dos filhos que optam por

permanecer junto dos pais por mais tempo embora eu tenha encontrado apenas

dois casos nas famiacutelias entrevistadas Um exemplo eacute o da filha mais nova de

Nanaacute e Custoacutedio moradores de Xopotoacute em Presidente Bernardes Ela continua

morando com os pais trabalha na cidade de Presidente Bernardes e o uso de

uma moto permite que vaacute almoccedilar em casa Ela tambeacutem estuda cursa Letras na

modalidade agrave distacircncia Como natildeo possui internet em casa se dedica ao curso

nos finais de semana na casa da irmatilde casada que mora em um siacutetio localizado

muito proacuteximo agrave cidade e tem acesso agrave internet Seu objetivo depois que se

formar eacute permanecer na regiatildeo como professora na escola estadual do

municiacutepio Seu irmatildeo de 27 anos tambeacutem permanece no siacutetio Apoacutes concluir o

ensino meacutedio optou por trabalhar na agricultura junto com o pai e eacute ele quem

assumia essas atividades na ocasiatildeo da pesquisa

105

Martins (2012) discute que uma das grandes dificuldades da

modernidade para o ldquohomem comumrdquo eacute conseguir superar as irracionalidades e

as contradiccedilotildees impostas por ela que geram conflitos de ordem cultural ldquode

permanente proposiccedilatildeo da necessidade de optar entre isto e aquilo entre o novo

e fugaz de um lado e o costumeiro e tradicional de outrordquo (p 20)

A literatura sobre juventude rural como os trabalhos de Carneiro e

Castro (2007) Brumer (2007) Abramovay et al (1998) Durston (1994) entre

outros tem apontado os desafios para esse grupo etaacuterio em encontrar formas

de permanecer no campo desenvolvendo atividades de trabalho que lhes sejam

atrativas no mundo contemporacircneo Dentre os motivos que estimulam a saiacuteda e

a busca de trabalho em atividades fora da aacuterea rural estatildeo as dificuldades tanto

para conduzir quanto para obter retorno financeiramente favoraacutevel da atividade

rural e a pequena disponibilidade de terra familiar para empreender uma

atividade proacutepria e constituir famiacutelia

Como visto a literatura aponta para uma tendecircncia ao envelhecimento

e masculinizaccedilatildeo do campo Esta foi a minha percepccedilatildeo empiacuterica tambeacutem

Apesar disso eacute preciso considerar que a entrevista abrangendo 40 famiacutelias nos

trecircs municiacutepios natildeo permite classificar essa situaccedilatildeo como generalizada pois a

realidade que encontrei em relaccedilatildeo agrave faixa etaacuteria na regiatildeo pesquisada natildeo

coincide com a realidade apontada pelo IBGE (2010) em termos percentuais

como seraacute mostrado a seguir Isso poreacutem natildeo interfere nos objetivos da

pesquisa pois se trata de uma abordagem qualitativa

No grupo de 40 famiacutelias que pesquisei a populaccedilatildeo idosa eacute

predominante Encontrei um puacuteblico constituiacutedo por 24 famiacutelias cujos casais

tinham acima de 60 anos e 16 famiacutelias cujos casais tinham entre 30-50 anos

Como natildeo havia pessoas viuacutevas a proporccedilatildeo de homens e mulheres era a

mesma 50

No montante das 40 famiacutelias 20 delas possuem filhos morando na casa

dos pais Dentre eles 10 satildeo crianccedilas 08 satildeo jovens e 02 satildeo adultos Nenhum

filho casado mora com os pais Dentre os vinte filhos 08 satildeo mulheres e 12 satildeo

homens Assim o universo de pessoas que constituiacuteam as famiacutelias entrevistadas

foi de 100 pessoas o que representa apenas 048 do total da populaccedilatildeo rural

total da pesquisa do IBGE (2010) mostrado na Tabela 4

106

Assim o perfil etaacuterio do grupo pesquisado se constitui de 48 de

populaccedilatildeo idosa 34 de populaccedilatildeo adulta 8 de populaccedilatildeo jovem e 10 de

populaccedilatildeo infantil

Exceto para o perfil adulto os demais perfis etaacuterios no grupo que

pesquisei apresentam dissonacircncia em relaccedilatildeo ao perfil etaacuterio rural do IBGE

(2010) mostrado nas Tabelas 3 e 4 Pelo IBGE o perfil etaacuterio da regiatildeo se

constitui de 13 de populaccedilatildeo idosa 36 de populaccedilatildeo adulta 26 de

populaccedilatildeo jovem e 23 7 de populaccedilatildeo infantil (Tabela 5)

Tabela 5 ndash Comparativo entre perfil etaacuterio do IBGE (2010) e da pesquisa de campo 2015 ()

Fonte Populaccedilatildeo

rural 1-14 anos

() 15-29

anos () 30-59

anos ()

Acima de 60 anos

()

IBGE (2010) 20755 237 26 36 13 Pesquisa de campo (2015) 100 10 08 34 48

Fonte IBGE (2010) e Pesquisa de campo (2015)

A composiccedilatildeo de gecircnero das famiacutelias pesquisadas se aproxima muito

ao perfil dos dados do IBGE (2010) sendo o puacuteblico masculino um pouco maior

do que o puacuteblico feminino em ambos os casos (Tabela 6)

Tabela 6 ndash Comparativo da composiccedilatildeo de gecircnero do IBGE e da pesquisa de campo 2015

Fonte Populaccedilatildeo

rural Mulheres () Homens ()

IBGE (2010) 20755 481 517 Pesquisa de campo (2015) 100 48 52

Fonte IBGE (2010) e Pesquisa de campo (2015)

107

Em funccedilatildeo dos dados acima eacute possiacutevel afirmar a ocorrecircncia de um

processo de envelhecimento no grupo pesquisado natildeo sendo possiacutevel afirmar

semelhante situaccedilatildeo para toda a regiatildeo rural dos municiacutepios

462 A produccedilatildeo agriacutecola local

A produccedilatildeo agriacutecola eacute pequena mesmo naqueles siacutetios cuja produccedilatildeo

tambeacutem se destina agrave comercializaccedilatildeo A pequena produccedilatildeo de milho objetiva a

produccedilatildeo de fubaacute que possui importacircncia fundamental para a alimentaccedilatildeo das

famiacutelias e dos animais O fubaacute obtido do milho possibilita suprir as famiacutelias com

o produto que eacute utilizado na preparaccedilatildeo do angu alimento consumido

diariamente no almoccedilo e no jantar e na elaboraccedilatildeo da broa uma das principais

quitandas que eacute elaborada diariamente para abastecer a famiacutelia com a

ldquomerendardquo do cotidiano e para ter o que oferecer agraves visitas que chegarem de

surpresa

A cana tambeacutem atende agraves necessidades alimentares animais Apenas

em um siacutetio ela eacute usada para fabricaccedilatildeo de cachaccedila e em outros dois na

fabricaccedilatildeo de rapadura e melado

As principais atividades geradoras de renda das famiacutelias pesquisadas

satildeo leite carvatildeo cafeacute feijatildeo e cachaccedila As famiacutelias que produzem para

comercializaccedilatildeo praticam de duas a trecircs atividades ao mesmo tempo leite e

carvatildeo cafeacute e feijatildeo consorciados e carvatildeo leite e cafeacute Apenas uma famiacutelia

produz cachaccedila para comercializaccedilatildeo e tem nessa atividade uma importante

fonte geradora de renda Nos demais siacutetios cuja produccedilatildeo se destina apenas ao

autoconsumo a produccedilatildeo se baseia em milho feijatildeo leguminosas hortaliccedilas

frutas frangos e porcos caipiras

No Quadro 2 eacute apresentada a origem da renda das famiacutelias Entre

aquelas em que a aposentadoria eacute a uacutenica fonte de renda a produccedilatildeo agriacutecola

se destina apenas para o autoconsumo Naquelas em que a aposentadoria e a

atividade agriacutecola estatildeo presentes a produccedilatildeo eacute administrada por um filho seja

casado ou solteiro mas a maior parte eacute casada e mora proacuteximo aos pais Eacute

importante ressaltar que satildeo sempre os filhos homens que exercem tal funccedilatildeo

Para os pais a presenccedila dos filhos por perto assumindo os trabalhos eacute fator

positivo pois leva-os a se sentir mais tranquilos

108

Quadro 2 ndash Fonte de renda das famiacutelias pesquisadas 2015

Fonte Nordm de famiacutelias

Apenas aposentadoria 14 350

Aposentadoria e atividade agropecuaacuteria no siacutetio 10 250

Atividade agropecuaacuteria no siacutetio e outra 09 225

Atividade agropecuaacuteria 07 175

Total de famiacutelias 40 1000

Fonte Pesquisa de campo 2015

Nas famiacutelias em que a renda eacute obtida da atividade agriacutecola e de outra

fonte a maior parte desta uacuteltima eacute gerada pelo trabalho das mulheres (889)

envolvidas nas seguintes atividades serventes e merendeiras nas escolas rurais

(Marina Ivone e Juliana)31 servente na escola da cidade (Solange) diarista em

casas proacuteximas (Arminda) Haacute tambeacutem aquelas mulheres que utilizam atividades

em casa como eacute o caso de Nilsa Marcelina e Ivone que produzem quitandas e

salgados para vender no entorno ou na cidade proacutexima e Nanaacute que trabalha

como costureira32 Na outra situaccedilatildeo trata-se de uma famiacutelia que possui um

pequeno comeacutercio na comunidade fora do siacutetio onde vive

463 Atividades cotidianas de trabalho nos siacutetios

A maior parte de meus interlocutores foi composta por mulheres e

mesmo quando os homens estavam presentes elas eram as mais ativas no

diaacutelogo Assim muitas das informaccedilotildees sobre o trabalho do cotidiano estatildeo

atreladas agrave realidade vivenciada por elas

Naquelas famiacutelias cuja renda eacute apenas a atividade agropecuaacuteria o

trabalho envolve tambeacutem a mulher e os filhos que estejam morando com os pais

As mulheres se envolvem em todas as atividades seja na lavoura de feijatildeo na

colheita de cafeacute na limpeza do suiacuteno abatido como eacute o caso de Lola (41 anos

31 Marina Ivone Marcelina e Nilsa satildeo moradoras de Porto Firme Arminda e Juliana de Piranga Nanaacute e

Solange de Presidente Bernardes 32 Em duas famiacutelias haacute filhas solteiras (uma em cada famiacutelia) que trabalham fora do siacutetio mas informaram

que suas rendas natildeo contribuem necessariamente para complementar a dos pais

109

moradora de Xopotoacute em Presidente Bernardes) ou na atividade leiteira e do

carvatildeo como eacute o caso de Neiva (39 anos moradora de Posses em Porto Firme)

que fez questatildeo de mostrar a suas unhas ainda manchadas do trabalho na

carvoaria no dia anterior

Mesmo as mulheres que trabalham fora dos siacutetios satildeo unacircnimes em

afirmar que continuam sendo agricultoras jaacute que continuam a exercer a funccedilatildeo

de cuidados da casa ndash incluindo aqueles referentes agrave alimentaccedilatildeo ndash assim como

as atividades agriacutecolas no quintal principalmente nos cuidados com a horta

ldquoSou diarista mas sou agricultora tambeacutemeu cuido da horta da casa mas

quando precisa de fazer algum trabalho na roccedila eu vou mas natildeo vou muitordquo

informou Arminda moradora de Mestre Campos em Piranga

Ivone (38 anos Posses ndash Porto Firme) se envolve muito com todas as

atividades do siacutetio As manhatildes satildeo passadas na escola da comunidade onde eacute

cantineira mas ao chegar em casa no iniacutecio da tarde se junta ao marido para o

trabalho na atividade leiteira na colheita na lavoura e tambeacutem na atividade da

carvoaria Costuma ainda receber encomendas de quitandas vindas da cidade

de Porto Firme e de acordo com o tempo disponiacutevel atende aos pedidos

Observei pelos depoimentos que o trabalho com a horta natildeo eacute visto

como uma atividade agriacutecola Ela eacute percebida como extensatildeo do quintal e da

cozinha e portanto estaacute atrelada aos elementos da casa Trabalhar na roccedila

para eles significa o serviccedilo de capina de roccedilar o milho o feijatildeo colher cafeacute

etc Nos siacutetios em que estive as hortas em sua maioria tambeacutem eram muito

proacuteximas agrave cozinha

As atividades de trabalho cotidiano das mulheres satildeo muito

diversificadas como jaacute visto Envolvem os cuidados da casa do quintal da horta

a alimentaccedilatildeo da famiacutelia atividade leiteira de roccedilado e carvoaria e em alguns

casos trabalho externo ou natildeo ao siacutetio que lhes garantem renda proacutepria

Marcelina (34 anos Satildeo Domingos ndash Porto Firme) diz ter encontrado na

culinaacuteria remunerada motivos para a famiacutelia desistir de se mudar para a cidade

Haacute pouco mais de um ano sua famiacutelia esteve prestes a se mudar para Viccedilosa

em busca de trabalho assalariado O principal motivo eacute que Marcelina natildeo estava

satisfeita com suas atividades no campo As considerava exaustiva mas eram

necessaacuterias para aumentar a renda do casal que era obtida principalmente da

atividade leiteira mas que por ser dividida entre outras duas famiacutelias de irmatildeos

110

do marido ndash que tambeacutem moram na propriedade que pertenceu aos pais ndash

originava uma renda insuficiente para manter sua famiacutelia Uma iniciativa poreacutem

trouxe oportunidade de o casal repensar a saiacuteda do campo A irmatilde de Marcelina

que reside em Viccedilosa produz salgados que satildeo vendidos em bares da periferia

da cidade Marcelina por insistecircncia da irmatilde aprendeu as teacutecnicas de produccedilatildeo

de salgados e passou a produzi-los e vende-los para bares da zona rural de

Porto Firme e Guaraciaba Na ocasiatildeo da pesquisa um ano depois de iniciar

esse trabalho ela conseguiu comprar um freezer novo com a renda dos

salgados o que lhe permitiu aumentar a produccedilatildeo Os salgados satildeo vendidos

na forma congelada e a entrega eacute feita pelo marido de moto Ela compartilhou

essa experiecircncia como sendo muito satisfatoacuteria em sua vida e da famiacutelia Afirmou

que esse foi o principal motivo de eles terem permanecido no campo

Agora o trabalho eacute muito melhor natildeo preciso trabalhar debaixo do sol ardendo natildeo tenho mais dor nas costas trabalho em casa perto dos meninos posso dar o almoccedilo para eles e ver quando eles chegam da escola antes meu marido eacute que tinha que esquentar o almoccedilo e dar para eles (Marcelina moradora de Satildeo DomingosPorto Firme MG 2015)

A experiecircncia de Marcelina sinaliza uma situaccedilatildeo nova na regiatildeo

pesquisada que eacute a produccedilatildeo de alimentos congelados diretamente para

abastecer bares e vendas no meio rural Estaacute presente nesta realidade a

inserccedilatildeo de elementos modernos o trabalho desenvolvido por Marcelina que eacute

uma novidade tambeacutem para ela pois precisou aprender a preparar esse tipo de

alimento a partir de meacutetodos baacutesicos de congelamento de alimentos e a utilizar

o freezer Outro aspecto de modernizaccedilatildeo se refere ao uso da moto como veiacuteculo

para fazer a entrega dos produtos que por sua vez eacute realizada pelo marido

agricultor ao final do dia apoacutes finalizar os trabalhos do siacutetio Por outro lado a

proacutepria famiacutelia pouco consome os produtos congelados feitos por Marcelina por

natildeo fazer parte do haacutebito alimentar da famiacutelia que permanece com preferecircncia

pela comida tradicional ldquoEles natildeo pedem os salgadosnatildeo ligamagraves vezes eu

ateacute faccedilo uns pra gente experimentar e ver como ficourdquo pondera Marcelina

Percebi que essa famiacutelia estaacute buscando se adaptar agraves novas estruturas e

dinacircmicas da sociedade no sentido discutido por Carneiro (1998) incorporando

elementos modernos importantes para sua reproduccedilatildeo sem contudo

abandonar o meio rural e abrir matildeo de suas praacuteticas alimentares tradicionais

111

Chama a atenccedilatildeo tambeacutem nessa experiecircncia o fato de haver consumo no meio

rural para os salgados congelados pelo menos pelos frequentadores dos bares

ou ldquovendasrdquo onde Marcelina fornece seus produtos Isso aponta que se os

congelados natildeo fazem parte do consumo domeacutestico das famiacutelias haacute um espaccedilo

para seu consumo nos bares (ldquovendasrdquo) da regiatildeo

Vemos na situaccedilatildeo exposta aqui um modo de vida tradicional agregando

fragmentos do moderno sem contudo converter-se a ele como discutido por

Martins (2012) percepccedilatildeo semelhante a apresentada por Carneiro (1998)

Os estudos sobre perspectivas e possibilidades para se pensar os rumos

de um novo rural brasileiro ou um rural reinventado vecircm sendo desenvolvidos

por autores como Wanderley (2000 e 2010) e Carneiro (1998 2005 e 2012) em

seus grupos de pesquisa Uma das discussotildees diz respeito agraves novas estrateacutegias

e possibilidades no campo que natildeo sejam necessariamente agriacutecolas como eacute o

caso do turismo do artesanato da agroinduacutestria etc

O cotidiano das mulheres que trabalham fora do siacutetio envolve mais de

uma jornada de atividades que se inicia antes das 600 da manhatilde e segue ateacute agrave

noite apoacutes o jantar ser servido e a louccedila ser lavada No capiacutetulo anterior introduzi

a discussatildeo sobre a dupla jornada de trabalho das mulheres tambeacutem no meio

rural apresentando as pesquisas de Panzutti (2006) com agricultoras no interior

de Satildeo Paulo e de Zanetti assim como as pesquisas de Menasche (2007) com

agricultoras do Sul Ainda sobre essa temaacutetica no sul do paiacutes haacute os trabalhos de

pesquisa de Paulilo et al (2003) e de De Grandi (2003) Analisando os casos

das mulheres da regiatildeo que pesquisei as caracteriacutesticas satildeo muitos

semelhantes agraves descritas pelas pesquisadoras ao estudarem outras regiotildees

O trabalho domeacutestico da mulher eacute considerado infinitamente elaacutestico uma vez que ela transita por ambos os espaccedilos o da produccedilatildeo e o da reproduccedilatildeo o que demonstra que haacute uma flexibilizaccedilatildeo das atividades consideradas produtivas o que natildeo acontece com as atividades reprodutivas e domeacutesticas (DE GRANDI 2003 p 40)

Em outra pesquisa neste caso em uma regiatildeo accedilucareira do Nordeste

do Brasil Heredia et al (1984) discutem a divisatildeo de gecircnero existente na

execuccedilatildeo do trabalho da produccedilatildeo rural Apontam o roccedilado como o lugar do

homem e como o espaccedilo de trabalho da mulher a casa envolvendo a sua

organizaccedilatildeo e a elaboraccedilatildeo da comida para a famiacutelia Mas tambeacutem indicam que

apesar da divisatildeo existem etapas do roccedilado onde a mulher atua como na

112

semeadura e limpeza ao redor das mudas No entanto o contraacuterio natildeo ocorre

como apontam Heredia et al (1984) e Woortmann (1985) Em suas pesquisas

natildeo foi registrado participaccedilatildeo masculina nos trabalhos voltados agrave organizaccedilatildeo

da casa e da elaboraccedilatildeo das refeiccedilotildees destinadas agrave famiacutelia Tampouco em

minha pesquisa identifiquei essa situaccedilatildeo pois satildeo atividades exercidas

basicamente pelas mulheres

Poreacutem encontrei na minha pesquisa uma sinalizaccedilatildeo de que mudanccedilas

ainda que tiacutemidas estatildeo ocorrendo na regiatildeo analisada e isso implica

diretamente nas praacuteticas alimentares Em depoimentos de duas famiacutelias as

mulheres e os maridos que estavam presentes durante a conversa falaram da

participaccedilatildeo destes na preparaccedilatildeo do almoccedilo O primeiro caso eacute o de Marcelina

e Luiz Durante um tempo quando Marcelina trabalhava como diarista Luiz (39

anos Satildeo Domingos ndash Porto Firme) que tem seu trabalho principal na atividade

leiteira assumiu a funccedilatildeo de alimentar os filhos Marcelina deixava o almoccedilo

adiantado quase pronto mas cabia a ele concluir algumas coisas aquecer a

comida e servi-la aos filhos O outro caso eacute o de Marina e Rui Marina sai de

casa cedo com as filhas para a escola onde trabalha como cozinheira Ela deixa

jaacute pronto o arroz e a carne restando ao marido e ao filho jovem temperar o feijatildeo

e refogar a verdura

Esses exemplos apontam para a necessidade de adaptaccedilatildeo agrave realidade

das mulheres rurais que buscam espaccedilos de trabalho remunerado fora dos siacutetios

onde moram e que contam com o apoio dos maridos pelo menos nas

experiecircncias que conheci em campo Os conflitos que permeiam esses ajustes

familiares se por ventura existirem natildeo foram declarados pelos interlocutores

Ao contraacuterio tanto mulheres quanto homens ao falarem sobre o assunto

expressaram naturalidade diante da situaccedilatildeo Eacute importante considerar que a

renda proveniente do trabalho feminino eacute usada para cobrir despesas familiares

e agraves vezes ateacute para cobrir pequenos custos de produccedilatildeo agriacutecola como relata

Solange (30 anos Itapeva - Presidente Bernardes) que trabalha como servente

em uma escola ldquoEu ganho um salaacuterio miacutenimo mas com esse dinheiro eu compro

coisas para a casa para mim e para minha menina ah eacute uma preocupaccedilatildeo a

menos jaacute aconteceu de ter que comprar adubo e pagar veterinaacuterio que veio ver

as vacasrdquo

113

As famiacutelias formadas por aposentados que representam a maioria nesta

pesquisa tecircm uma realidade cotidiana de trabalho que eacute menos ativa Executam

menos atividades no siacutetio embora natildeo deixem de trabalhar Ao falarem de seu

cotidiano os homens disseram que quase natildeo executam mais atividades

agriacutecolas como capina e roccedilado Fazem uma ou outra atividade como cuidar do

paiol do galinheiro da horta preparar a comida para dar aos porcos Fazem isso

ldquopara natildeo ficar parado de tudordquo conforme justificou Neacutelio (morador de Satildeo

Domingos em Porto Firme) Os homens afirmaram se sentirem desconfortaacuteveis

quando natildeo realizam algum trabalho no dia apenas evitam serviccedilos que exijam

grande esforccedilo fiacutesico

No caso das mulheres mais velhas elas continuam se responsabilizando

pela elaboraccedilatildeo das refeiccedilotildees e de todas as outras atividades domeacutesticas aleacutem

do cuidado com a horta e o quintal o que faz com que seu dia seja mais

dinacircmico Aleacutem do preparo das refeiccedilotildees elaboram tambeacutem cotidianamente

quitandas como broas e rosquinhas o que seraacute visto no proacuteximo capiacutetulo

114

5 CULTURA E PRAacuteTICAS ALIMENTARES NO SISTEMA FAMILIAR RURAL RELACcedilOtildeES COM A COMIDA PERMANEcircNCIAS E MUDANCcedilAS

ldquoA arte da cozinha eacute a mais brasileira de nossas artes A mais expressiva do nosso caraacuteter e a mais impregnada do nosso passadordquo

(Gilberto Freyre 1968)

Os toacutepicos de discussatildeo deste capiacutetulo estatildeo subdivididos nos seguintes

temas A discussatildeo sobre a comida considerada como ldquoforterdquo e a classificaccedilatildeo

da comida como cultura e como fator de necessidade fisioloacutegica as mudanccedilas

em curso na nos haacutebitos alimentares o papel ocupado pelo milho e seus

derivados na culinaacuteria cotidiana das famiacutelias a comida do cotidiano a comida

dos dias de festa e as relaccedilotildees de comensalidade nesses contextos os

alimentos comprados e os alimentos cultivados nos siacutetios as permanecircncias de

consumo e as mudanccedilas com a inserccedilatildeo de novos alimentos a mescla cultural

alimentar do tradicional com o moderno as manifestaccedilotildees de perpetuaccedilatildeo

tradicional na elaboraccedilatildeo das quitandas e as suas funccedilotildees no passado e no

presente nas praacuteticas alimentares do grupo pesquisado e por fim a oralidade

no saber fazer e na transmissatildeo das receitas

51 Comida ldquoforterdquo e comida ldquofraca contradiccedilotildees mudanccedilas e permanecircn-cias

Percebi nos depoimentos dos interlocutores a existecircncia de

categorizaccedilatildeo da comida entre ldquoforterdquo e ldquofracardquo Comida forte eacute aquela que

ldquosustentardquo sendo capaz de permitir um intervalo maior entre as refeiccedilotildees e ao

mesmo tempo executar as atividades mais pesadas sem sentir ldquofraquezardquo fiacutesica

Para eles isso tem a ver com a loacutegica de trabalho ou seja o objetivo eacute natildeo

precisar interromper as atividades com frequecircncia para se alimentar Os horaacuterios

apontados para as refeiccedilotildees satildeo cafeacute da manhatilde entre 530 e 600 merenda33

entre 830 e 900 almoccedilo entre 1100 e 1130 merenda da tarde entre 1430 e

1500 e jantar entre 630 e 1900 Em algumas famiacutelias foi citada a ldquomerenda da

noiterdquo que eacute feita pouco antes de dormir

33 ldquoMerendardquo eacute o termo que todos usam para se referir ao que se come nos intervalos entre o cafeacute da

manhatilde e o almoccedilo e entre o almoccedilo e o jantar e agrave noite antes de dormir

115

As informaccedilotildees relativas aos horaacuterios satildeo semelhantes para todas as

famiacutelias inclusive os aposentados disseram manter o ritual de acordar cedo

ainda que suas atividades de trabalho natildeo sejam mais intensas como no

passado

A percepccedilatildeo sobre ldquocomida forterdquo das famiacutelias se assemelha agravequela

discutida por Brandatildeo (1981) em sua pesquisa com agricultores em Goiacircnia O

autor aponta que para o grupo que pesquisou a relaccedilatildeo fortefraco que

atribuiacuteam agrave comida estava diretamente ligada agrave capacidade desse alimento em

garantir ao agricultor maior tempo de trabalho sem sentir fome

Homem forte eacute o homem sadio e resistente para o trabalho A comida forte eacute a que ldquotem sustanccedilardquo cujos efeitos satildeo reconhecidos de dois modos a) na sua capacidade de manter o trabalhador ldquoalimentadordquo por mais tempo sem vontade de comer de novo b) no seu poder de produzir e de conservar mais energia para a atividade braccedilal Eacute neste sentido que a ldquocomida forterdquo equivale ao ldquoalimentordquo categoria de que se exclui a ldquocomida fracardquo (BRANDAcircO 1981 p 109-110)

Para meus interlocutores comida forte eacute principalmente aquela feita com

gordura suiacutena Essa observaccedilatildeo eacute feita em contraposiccedilatildeo ao oacuteleo vegetal que eacute

um produto considerado ldquofracordquo e portanto natildeo oferece a ldquosustanccedila34rdquo desejada

por eles

Para quem trabalha na roccedila a comida feita com oacuteleo natildeo daacute muita sustanccedila A pessoa fica com fome fica meio fraco logo depois A gordura de porco segura mais (Maria 66 anos moradora do Coacuterrego de Itapeva Presidente Bernardes MG 2015)

Aqui se fizer a comida com oacuteleo a barriga comeccedila a roncar rapidinho o oacuteleo eacute fraco natildeo sustenta a gordura de porco eacute forte no serviccedilo que a gente mexe assim que eacute pesado tem de comer comida que sustenta (Carlos 49 anos morador de Posses Porto Firme MG 2015)

Sahlins (2003) ao discutir sobre a categoria de ldquoforccedilardquo atribuiacuteda a

comida relata que algumas culturas destacando a norte americana tem na

carne essa representaccedilatildeo fazendo dela um alimento baacutesico em sua dieta Pela

mesma razatildeo eacute grande consumidora de bacon No puacuteblico da pesquisa a

representaccedilatildeo da gordura e da carne tem uma aproximaccedilatildeo ao que eacute discutido

pelo autor por se tratar de alimento de origem animal como responsaacutevel pela

ldquoforccedilardquo Poreacutem a relaccedilatildeo de forccedila para consumo de carne e de bacon na cultura

34 O termo eacute a forma popular dada a ldquosubstacircnciardquo A capacidade de um alimento dar forccedila energia e

sustentar a fome

116

norte americana estaacute atrelada agrave fator socioeconocircmico como siacutembolo de riqueza

Para o grupo pesquisado a forccedila estaacute atrelada agrave capacidade que a gordura de

porco tem de ampliar o tempo de saciedade mas tambeacutem pelo paladar que

confere agrave comida Neste uacuteltimo aspecto ou seja o da preferecircncia pelo sabor da

gordura se comparada ao oacuteleo Essa preferecircncia eacute tambeacutem justificada pela razatildeo

praacutetica do uso da gordura que eacute o de ser um alimento mais forte e o que melhor

daacute sustentaccedilatildeo

Zaluar (1979) observou a importacircncia da classificaccedilatildeo da comida em

estudo com comunidade de baixa renda na aacuterea urbana Descreve que o grupo

classifica alimentos que consideram como ldquocomidasrdquo porque conferem

saciedade (carne gordura de porco arroz feijatildeo e macarratildeo) e alimentos que

apenas ldquoenganam a fomerdquo (saladas frutas verduras peixe etc) servindo para

o grupo apenas como complemento Nesta classificaccedilatildeo haacute uma diferenccedila do

conceito de comida que se difere de alimento atribuiacuteda por DaMatta (1987)

Tanto no caso do grupo pesquisado por Zaluar na aacuterea urbana quanto no grupo

que pesquisei em aacuterea rural a razatildeo praacutetica para classificar alimentos como

forte estaacute associada agrave necessidade de garantir condiccedilotildees fisioloacutegicas no tempo

dedicado ao trabalho pesado

No grupo que pesquisei visando facilitar o consumo da gordura mais da

metade das famiacutelias cria suiacutenos para essa finalidade Engordam um animal de

cada vez Em apenas uma dessas famiacutelias cria-se um nuacutemero maior para

comercializaccedilatildeo do animal

Haacute um ditado que diz que ldquodo porco soacute natildeo se aproveita o gritordquo pois eacute

possiacutevel usar tambeacutem o intestino para envolver as massas de linguiccedilas e

chouriccedilos o peacute o rabo a orelha e o focinho para feijoada a pele para fazer

torresmo Natildeo eacute difiacutecil entender porque a criaccedilatildeo dos suiacutenos caipiras demonstrou

ser tatildeo importante no grupo pesquisado A alimentaccedilatildeo dos porcos pode ser

produzida nos proacuteprios siacutetios como o fubaacute a cana de accediluacutecar a silagem de

mandioca e ateacute aboacuteboras e batatas doces cozidas misturadas ao fubaacute Nos siacutetios

que visitei o mais usado era o fubaacute

Segundo os agricultores que ldquoengordam o capadordquo35 o animal eacute abatido

sempre que a gordura acaba mas mata-se tambeacutem em veacutespera de festas como

35 Termo que escutei com frequecircncia durante a pesquisa Trata-se do porco castrado destinado agrave engorda

117

natal e ano novo e ainda em casamentos e demais festividades que acontecem

na aacuterea rural Em 2012 na festa de bodas de ouro dos sogros de Lola moradores

da comunidade de Xopotoacute em Presidente Bernardes parte da criaccedilatildeo existente

no siacutetio foi abatida Segundo Lola ldquomatamos dois capados de 17 arrobas e mais

de 15 galinhas caipirasa carne de boi noacutes compramosah e muita linguiccedila

tambeacutemrdquo Da mesma forma Eliana (69 anos moradora de Itapeva em

Presidente Bernardes) compartilhou que para a sua festa de bodas de ouro com

Saturnino ocorrida em junho de 2014 no quintal da casa a famiacutelia matou dois

suiacutenos e aproximadamente 10 frangos caipiras

No cotidiano das famiacutelias engordar um porco no quintal tem a funccedilatildeo

tanto de obter a gordura (banha) como a carne que na maioria das casas eacute

conservada na gordura O que mais ocorre eacute a carne acabar primeiro do que a

gordura Se em tempos passados usar a gordura para conservar as carnes era

uma necessidade jaacute que natildeo havia geladeira atualmente esse haacutebito permanece

por razotildees culturais e tambeacutem pelo sabor diferenciado prevalecendo assim seu

consumo como apontado no depoimento de Laeacutercio 68 anos

Mesmo tendo geladeira a gente ainda conserva a carne na gordura de porco tempera a carne hoje amanhatilde a gente cozinha e frita um pouco quando ela estaacute coradinha a gente potildee na gordura e ela pode ficar ateacute 3 4 meses na gordura natildeo estraga natildeo Uma parte a gente ateacute potildee na geladeira e congela mas natildeo eacute gostoso igual natildeo Muda muito com o frango eacute a mesma coisa Se a gente arruma ele para comer logo depois que mata o sabor eacute um se congela quando vai comer depois eacute outro gosto Natildeo fica bom (Laeacutercio morador de Itapeva em Presidente Bernardes MG 2015)

Tambeacutem na aacuterea urbana o consumo da gordura de porco tem suas

ramificaccedilotildees Natildeo raro eacute possiacutevel verificar em lojas especializadas em produtos

artesanais em Minas Gerais principalmente em lanchonetes de beira de estrada

e pequenos armazeacutens a venda do chamado ldquoporco na latardquo

O sabor conferido agrave comida foi constantemente relacionado com a

gordura suiacutena Os interlocutores deixaram transparecer em suas falas que a

apreciaccedilatildeo do sabor da comida refogada na gordura tem suas raiacutezes no gosto

herdado de geraccedilotildees passadas Cresceram comendo dessa forma Todos

afirmaram preferir o sabor da comida preparada na gordura agrave que eacute feita no oacuteleo

principalmente a verdura o feijatildeo e o arroz como declara Afonso (79 anos

morador de Ribeiratildeo em Presidente Bernardes) ldquoPara mim a verdura tem que

ser feita na gorduraa couve na gordura tem outro saborrdquo e Gilberto (75 anos

118

morador de Manja em Piranga) ldquoA comida feita na gordura de porco eacute mais

saborosa a gente jaacute acostumou com o sabor a couve feita no oacuteleo fica lisa na

gordura ela fica suculentardquo

A gordura eacute usada principalmente para refogar36 hortaliccedilas legumes e

feijatildeo Todos as famiacutelias apreciam a couve refogada na gorduraldquoDeus o livre

de comer uma verdura feita com oacuteleo natildeo fica gostoso do mesmo jeitordquo

Verdura eacute o termo utilizado pelos interlocutores para todos os produtos derivados

da horta inclusive os legumes Encontramos em Frieiro (1982) a explicaccedilatildeo

sobre essa heranccedila cultural

Eacute de recente data o uso de gorduras vegetais alimentiacutecias Antes natildeo era assim a gordura geralmente usada era a de toucinho a banha de porco Os dois alimentos de maior importacircncia para a gente mineira sempre foram o feijatildeo e o toucinho Feijatildeo eacute que escora a casa diz um ditado popular Sim e o toucinho daacute substacircncia ao feijatildeo podia agregar-se Sem a banha que o tempera seria comestiacutevel ldquoo feijatildeo nosso de cada diardquo A comida tradicional dos mineiros nada em banha de porco Dos assados e frituras de todos os guisados e ensopados das sopas dos molhos e farofas pinga a gordura em que satildeo preparados (FRIEIRO 1982 p 156)

Garcia (2013) discute a relaccedilatildeo de comportamentos culturais associados

agrave alimentaccedilatildeo afirmando que a heranccedila do gosto por certo tipo de comida e pela

forma de preparaccedilatildeo eacute responsaacutevel na maioria das vezes pela resistecircncia em

adotar praacuteticas novas e experimentar comidas diferentes e aceitar novos sabores

e texturas ao paladar tradicional Uma das razotildees para a couve permanecer

como verdura predileta do cotidiano natildeo eacute apenas por ser a hortaliccedila mais

resistente da horta mas principalmente pela sua preparaccedilatildeo combinada com a

gordura de porco Essa forma de preparaccedilatildeo compreende aquele ldquosistema

culinaacuteriordquo tratado por Poulain (2013 e 2014) e Fischler (1979 e 1995) que

envolvem regras determinantes (crenccedilas valores siacutembolos representaccedilotildees e

haacutebitos) na escolha preparo e consumo de alguns alimentos O que Sahlins

(2003) chama de ldquorazotildees culturaisrdquo que envolvem o haacutebito alimentar Essa

discussatildeo de sistema culinaacuterio se aplica tambeacutem a outras praacuteticas tradicionais

que fazem parte do grupo pesquisado como a tradiccedilatildeo de fazer as proacuteprias

quitandas mais consumidas

36 Refogar segundo Cacircmara Cascudo (2004 p 522) significa ldquoferver na gordurardquo

119

A estrateacutegia de quem natildeo tem essa criaccedilatildeo no siacutetio eacute comprar a gordura

produzida pelos vizinhos ou mesmo no accedilougue da cidade Eacute comum ocorrer o

abate em parceria familiar ou com a participaccedilatildeo de vizinhos proacuteximos com a

distribuiccedilatildeo entre eles das partes do animal mesmo porque para o abate satildeo

necessaacuterias pelo menos trecircs pessoas segundo a explicaccedilatildeo de Lola O sistema

de partilha no abate de suiacutenos eacute tradicional em muitas aacutereas rurais brasileiras e

uma heranccedila dos portugueses Moura (2013) em seu interessante livro sobre a

tradiccedilatildeo dos embutidos e da produccedilatildeo de suiacuteno caipira na regiatildeo de Traacutes-os-

Montes e Auto Douro em Portugal mostra que os procedimentos de criaccedilatildeo

matanccedila e distribuiccedilatildeo das carnes se assemelham muito agraves que ocorrem no meio

rural brasileiro Tambeacutem Cacircndido (1982) relata em sua pesquisa como se dava

o processo relativo agrave distribuiccedilatildeo da carne suiacutena e de caccedila entre os caipiras

paulistas

Segundo os velhos desde sempre eacute haacutebito ndash quase se diria ndash instituiccedilatildeo a oferta daqueles tipos de carne aos vizinhos imediatos que moram agrave vista ou constituem uma unidade vicinal Quando se mata um porco ou uma caccedila envia-se um pedaccedilo a cada vizinho () Do ponto de vista alimentar essa praacutetica funciona como uma forma de regularizaccedilatildeo do abastecimento caacuterneo jaacute que cada um mata um porco de tempos em tempos (CAcircNDIDO 1982 p 163-164)

Compreendo que este contexto de sociabilidade entre vizinhos eou

familiares que envolve tambeacutem doar ou receber uma parte do animal se

assemelha agrave relaccedilatildeo ldquodaacutediva-trocardquo discutida por Mauss (2003) como forma de

manter a sociabilidade os laccedilos e a dependecircncia reciacuteproca entre os grupos No

caso de vizinhos que ajudam na atividade quando aquele que recebeu vier a

matar o seu animal a reciprocidade ocorreraacute ou seja ele doaraacute ao outro vizinho

parte do animal O que tambeacutem se aproxima do que Cacircndido (1982) discute

sobre a informalidade e obrigaccedilatildeo moral que compotildee as relaccedilotildees de mutiratildeo no

meio rural

Mas haacute nesse sistema algo mais do que simplesmente uma troca de

favor como no entendimento de Mauss (2003) de que a daacutediva natildeo eacute meramente

uma retribuiccedilatildeo formal ou proveniente de um contrato verbal Ela se constitui em

uma relaccedilatildeo que envolve respeito e um tipo de acordo que eacute simboacutelico tanto

assim que a parte da carne a ser doada eacute escolhida pelo doador sem nenhum

acordo anterior

120

Apesar do sabor da gordura de porco ser preferido ao oacuteleo em todas as

famiacutelias em algumas esse consumo tem sido reduzido como nas famiacutelias de

Zefa e Armando e de Maria e Laeacutercio Nos dois casos haacute restriccedilotildees alimentares

para os filhos que satildeo transplantados renais37 Em funccedilatildeo disso os pais jaacute

aposentados optaram pela reduccedilatildeo do consumo de gordura de porco e outros

alimentos gordurosos Disseram que por um tempo tentaram acompanhar

totalmente a dieta dos filhos mas natildeo conseguiram sucesso por sentirem falta

tanto da gordura quanto da carne suiacutena Assim a comida tem sido preparada de

forma separada Como esse preparo separado eacute mais trabalhoso Zefa 67 anos

e o marido 75 anos continuam no esforccedilo de adaptaccedilatildeo ao consumo do oacuteleo

demonstrando solidariedade ao filho 42 anos cuja abstinecircncia alimentar tem

sido difiacutecil

Os outros dois casos de restriccedilatildeo agrave gordura de porco satildeo de mulheres

que demonstraram preocupaccedilatildeo com a sauacutede embora natildeo tenham apontado

nenhum problema especifico Relacionam o consumo da gordura como

prejudicial e em funccedilatildeo disso tambeacutem tecircm tentado reduzir o seu consumo Nilsa

(42 anos moradora de Satildeo Domingos em Porto Firme) justificou ldquoTodo mundo

fala que gordura de porco faz mal para a sauacutederdquo Na sua famiacutelia tem havido

resistecircncia por parte do marido que natildeo abre matildeo da carne de porco e da verdura

refogada na gordura Embora ela admita preferir o sabor da comida com a

gordura de porco acredita que para ter uma qualidade de vida melhor devem

abrir matildeo de seu consumo O marido discorda da esposa natildeo abrindo matildeo do

consumo da gordura e nem da carne de porco A diminuiccedilatildeo tem ocorrido com

dificuldade e tem gerado algum tipo de conflito sobre as escolhas alimentares

deste casal que mora sozinho pois os filhos estudam em outras cidades

O depoimento acima de Nilsa estaacute relacionado agraves divulgaccedilotildees sobre

sauacutede em programas de televisatildeo matinais que ela informou assistir de vez em

quando enquanto cuida dos afazeres da casa Informaccedilotildees sobre pesquisas de

alimentos e sobre sauacutede tecircm sido divulgadas frequentemente pelos meios de

comunicaccedilatildeo O risco de tais informaccedilotildees eacute confundir as pessoas quando natildeo

se faz uma reflexatildeo sobre o assunto Para o consumidor leigo o resultado de

37 Interessante a coincidecircncia de haver dois adultos jovens do sexo masculino com problemas renais e que

passaram por transplante Ambas famiacutelias pertencem agrave mesma comunidade mas natildeo haacute grau de parentesco entre eles

121

uma pesquisa divulgada em meios de comunicaccedilatildeo pode dar uma ideia

distorcida sobre o consumo de um alimento No caso de Nilsa ela demonstrou

considerar que o consumo de gordura de porco prejudica a sauacutede de sua famiacutelia

baseado no que ldquoescuta dizerrdquo Ainda assim houve um momento da conversa

em que ela ponderou criticamente ldquoAgora eu natildeo sei porque faz malnossos

pais e avoacutes a vida inteira comeram comida com gordura e natildeo sei de nenhum

deles que ficou doente por causa dissordquo

Em relaccedilatildeo agrave carne vermelha e a gordura principalmente o bacon e

outras carnes processadas a Organizaccedilatildeo Mundial de Sauacutede (OMS) acaba de

publicar o relatoacuterio do International Agency for Research on Cancer (IARC)38

sobre a associaccedilatildeo do consumo desses alimentos ao cacircncer de intestino O

resultado da pesquisa foi amplamente divulgado por jornais de televisatildeo e na

internet Eacute constante a divulgaccedilatildeo de novas pesquisas de alimentos associados

agrave sauacutede repassar esta informaccedilatildeo eacute funccedilatildeo da OMS como pondera Contreras

(2015) No entanto vaacuterios alimentos jaacute foram apontados como vilotildees da sauacutede

e tempos depois a partir de novas pesquisas deixaram de ser Em funccedilatildeo disso

Fischler (2015) denomina essa situaccedilatildeo como uma espeacutecie de cacofonia sobre

o tema da comida jaacute que o conhecimento cientiacutefico eacute dinacircmico e passiacutevel de

sofrer alteraccedilotildees e cita o exemplo do cafeacute que foi classificado como canceriacutegeno

para depois ser considerado como siacutembolo de longevidade

Profissionais de sauacutede e socioacutelogos da alimentaccedilatildeo tecircm se manifestado

publicamente a respeito da divulgaccedilatildeo recente sobre a carne vermelha Alertam

para o risco que uma leitura apressada sobre o assunto possa gerar ao comedor

fazendo com que abandone por completo o consumo de carne e com isso

apresente problemas de outra natureza por carecircncia de proteiacutenas por exemplo

Destacam a necessidade de relativizar e discutir mais sobre o quanto se come

de um determinado alimento O que natildeo se deve eacute ldquodemonizar alimentosrdquo

pondera Rivera (2015) para natildeo gerar pacircnico desnecessaacuterio nos consumidores

ldquoEs necesaria una estrategia de comunicacioacuten que explique bien las

conclusiones de un informe sin caer en el dramardquo esclarece o antropoacutelogo Xavier

Medina (2015) Para a antropoacuteloga Vilagrave (2015) falar dos riscos agrave sauacutede causado

por alimentos que fazem parte da cultura alimentar de boa parte da populaccedilatildeo

38 Disponiacutevel em httpwwwiarcfrenmedia-centrepr2015pdfspr240_Spdf Acesso em 28 out 2015

122

mundial eacute assunto que merece muito cuidado Assim defende que o mais

interessante seria divulgar que as pessoas sem quadro de doenccedilas podem

comer de tudo mas sempre com moderaccedilatildeo

Outra famiacutelia entrevistada a de Carmem (48 anos moradora de Jacuba

em Porto Firme) tem optado por reduzir o consumo de vaacuterios alimentos aos

quais sempre esteve habituada em funccedilatildeo da dieta de emagrecimento por

recomendaccedilatildeo profissional Assim abriu matildeo da carne e da gordura de porco

de alimentos que contenham gluacuteten do leite de vaca e seus derivados Como no

caso anterior seu marido tambeacutem natildeo adotou a mesma dieta A diferenccedila eacute que

ela prepara separadamente a comida do casal39 No dia a dia Carmem tem uma

atividade de trabalho pesada cuida da casa da horta prepara todas as

refeiccedilotildees tira leite lava o curral varre o quintal em torno da casa ndash atividade que

estava fazendo quando cheguei em sua casa pela manhatilde Ela reclama que sente

fome mas ainda assim estaacute resistindo e seguindo a restriccedilatildeo alimentar

Eu agora soacute posso tomar leite de soja com biscoito de polvilho de manhatilde cedo ai eu tomo isso mas eu tenho que tirar leite muito cedo quando eu acabo eu jaacute estou morrendo de fome aquilo natildeo sustenta ai eu vou comer a mesma coisa de novo Natildeo eu faccedilo um mingau de fubaacute natildeo fica gostoso como como o com leite de vaca mas ajuda a esperar o almoccedilo (Carmem 48 anos moradora de Jacuba em Porto Firme MG 2015)

Nossa conversa continuou na cozinha onde a observei preparando as

comidas separadas Almoccedilamos agraves 1130 Comi a mesma comida feita para o

marido arroz feijatildeo couve carne de porco cozida e meio frita angu e moranga

Carmem comeu moranga com feijatildeo que cozinhou separadamente sem

gordura e sem oacuteleo temperados com sal e alho ovo frito e couve refogada no

oacuteleo de soja

Carmem demonstrou ansiedade em relaccedilatildeo ao que comer ao longo do

dia sendo que parte dessa preocupaccedilatildeo estaacute presente em seu depoimento

acima A outra ansiedade foi demonstrada pela dificuldade em obter resultados

satisfatoacuterios em relaccedilatildeo agrave perda de peso Ela precisa fazer a dieta mas ao

mesmo tempo precisa se sentir ldquoforterdquo para realizar os trabalhos no siacutetio A

situaccedilatildeo vivenciada por ela estaacute relacionada agrave discussatildeo feita por Arnaiz (2005) e

Fischler (1995 e 2015) sobre a ansiedade do comedor contemporacircneo Para os

39 Seus filhos tambeacutem estudam e moram em outras cidades

123

autores eacute cada vez mais difiacutecil saber o que se estaacute comendo e eacute tambeacutem mais

complexo fazer escolhas alimentares No processo de escolha o alimento

precisa ser de boa aparecircncia e qualidade ter baixas calorias natildeo fazer mal agrave

sauacutede natildeo ser caro Aleacutem disso o autor menciona a necessidade de

identificaccedilatildeo do alimento se identificar com a opccedilatildeo moral do comedor por

exemplo seu cultivo natildeo deve ser prejudicial ao meio ambiente natildeo deve utilizar

matildeo de obra escrava etc Tudo isso gera ansiedade na escolha do que comer

Dessa forma Fischler (1995 e 2015) defende que uma nova patologia estaacute

surgindo para aquelas pessoas obcecadas por dieta a ortorexia nervosa que

tem como uma de suas caracteriacutesticas o fato de uma pessoa passar mais de trecircs

horas diaacuterias preocupada com o que vai comer40

Haacute ainda o caso da famiacutelia de Joatildeo e Marli (81 e 72 anos

respectivamente aposentados moradores de Aacutegua Lima em Porto Firme) Em

seu siacutetio a atividade leiteira gera renda para o casal mas sobretudo para o filho

que administra a atividade e mora na cidade A famiacutelia optou por abandonar a

criaccedilatildeo extensiva de suiacutenos porque escutava falar ldquoque a gordura faz mal ao

coraccedilatildeordquo Em funccedilatildeo disso o consumo foi reduzido acreditando natildeo compensar

manter a criaccedilatildeo Aleacutem disso segundo Joatildeo antes havia muitos filhos em casa

para alimentar assim ldquoengordar o porcordquo era mais barato do que comprar a

carne e a gordura Embora tenham reduzido o uso da gordura de porco natildeo a

retiraram da dieta por completo Compram no accedilougue e ela continua sendo

usada dois dias na semana aproximadamente Como criam gado costuma-se

matar um animal e assim o consumo de carne de boi natildeo eacute raro nesta famiacutelia

como o eacute nas outras O depoimento de Joatildeo a seguir chama a atenccedilatildeo para o

fubaacute assunto que seraacute discutido no toacutepico especiacutefico mais agrave frente nesse

trabalho e essa parte de seu depoimento seraacute retomado na discussatildeo A

dificuldade de acessar o uacutenico moinho drsquoaacutegua existente na regiatildeo tambeacutem foi um

motivo que levou a famiacutelia a desistir da criaccedilatildeo dos suiacutenos

Eu engordava porco mas os meacutedicos estatildeo proibindo a gente de comer gordura ai nem engordo mais porco natildeoquando daacute vontade a gente compra um toucinho a carne compra sempre Tambeacutem natildeo compensa engordar natildeo porque o moinho de fazer fubaacute pra porco eacute longe daqui e esses fubaacutes moiacutedos nessas maquinas de hoje (eleacutetrica) nem os porcos gostam muito sabe a gente ateacute que tem um moinho

40 Mais informaccedilotildees sobre esse assunto ver Martins et al (2011)

124

bem pequeno aqui mas eacute soacute pra moer o milho para gente fazer angu e broa (Joatildeo morador de Aacutegua Limpa em Porto Firme MG 2015)

As situaccedilotildees das cinco famiacutelias citadas acima sinalizam o quanto mudar

o haacutebito alimentar e abrir matildeo do costume e do gosto aprendido eacute uma tarefa

difiacutecil mesmo que o apelo para isso seja a sauacutede principalmente quando o

alimento em questatildeo estaacute relacionado a uma atividade produtiva que tambeacutem

possui um apego tradicional como eacute o caso do porco caipira Para Bourdieu

(2007) formaccedilatildeo do gosto e a construccedilatildeo do haacutebito alimentar que eacute algo

aprendido na convivecircncia social sendo a famiacutelia o principal grupo de

aprendizado De Garine (1987) discute que em funccedilatildeo do haacutebito alimentar estar

ligado aos costumes herdados de geraccedilotildees passadas a mudanccedila de uma

alimentaccedilatildeo mais tradicional para uma industrializada natildeo ocorre facilmente

tampouco se daacute de maneira raacutepida Eacute um processo lento e que encontra

resistecircncia do comedor o quanto for possiacutevel

O oacuteleo vegetal eacute um desses exemplos de resistecircncia mas que aos

poucos se insere nas praacuteticas alimentares das famiacutelias Seu uso estaacute presente

em quase todas as casas pesquisadas exceto na famiacutelia de Eliana e Saturnino

que natildeo se adaptaram ao seu consumo para o preparo de nenhum alimento que

consomem no dia a dia No restante das famiacutelias o oacuteleo tem sido usado com

parcimocircnia principalmente para algumas frituras conforme os relatos a seguir

ldquoPorque o oacuteleo deixa a batata mais bonita e mais sequinha o peixe tambeacutem fica

melhor mais crocanterdquo (Margarida 74 anos moradora de Xopotoacute em Presidente

Bernardes) ldquoo arroz fica mais soltordquo (Luisa 57 anos moradora de Bom Retiro

em Porto Firme) ldquonatildeo uso mais gordura para fritar batata doce natildeo soacute oacuteleo

ateacute para lavar a panela eacute mais faacutecilrdquo (Juliana 48 anos moradora de Tatu em

Piranga)

Apesar da preferecircncia pela gordura suiacutena o oacuteleo vegetal tem dividido

espaccedilo com a gordura de porco no sistema culinaacuterio das famiacutelias Nestes casos

eacute um exemplo da possibilidade de introduccedilatildeo de um produto industrializado na

alimentaccedilatildeo sem que tenha sido necessaacuterio abrir matildeo radicalmente de um

produto tradicional excetuados os casos onde haacute restriccedilatildeo alimentar como jaacute

citado

O apego ao sabor e agrave crenccedila na capacidade de sustentaccedilatildeo alimentar

gerada pelo uso da gordura de porco faz com que seu consumo permaneccedila

125

como prioritaacuterio nas famiacutelias Poreacutem novos haacutebitos podem ser aprendidos

conforme argumenta Nevot (2011) Para este autor as mudanccedilas de haacutebitos

alimentares na sociedade atual satildeo permanentes Quanto mais novidades

alimentares emergem com novas tecnologias de produccedilatildeo novas informaccedilotildees

sobre os alimentos satildeo fornecidas ampliando a possibilidade de mudanccedilas de

haacutebitos Surge a necessidade de se aprender cada vez mais a escolher o que

comer Se por um lado herdamos haacutebitos alimentares as circunstacircncias nos

fazem adquirir outros novos

Por outro lado o excesso de novidades alimentares faz com que alguns

alimentos tradicionais sejam colocados em questatildeo gerando a anguacutestia

alimentar do comedor contemporacircneo apontada por Fischler (1995 2011 e

2015) No caso da gordura de porco de um lado estaacute um alimento habitual que

eacute heranccedila cultural tradicional e repassado oralmente por avoacutes e pais um

alimento considerado importante ldquoforterdquo de paladar agradaacutevel e que natildeo era

visto como prejudicial agrave sauacutede dos seus antepassados De outro lado existe a

preocupaccedilatildeo gerada nos tempos atuais que indica o mesmo alimento como

maleacutefico agrave sauacutede e portanto a ser evitado e substituiacutedo por um produto de fonte

vegetal e industrializado o oacuteleo

No grupo pesquisado a questatildeo relacionada agrave origem do oacuteleo vegetal

natildeo surgiu como preocupaccedilatildeo Nenhum interlocutor tocou no assunto da

transgenia associado a esse produto por exemplo Apenas destacaram como

pouco saudaacutevel o consumo da gordura do porco Por outro lado a opccedilatildeo da

maioria das famiacutelias em continuar a consumir a gordura de porco sinaliza uma

influecircncia mais acentuada dos fatores culturais em relaccedilatildeo aos fatores

nutricionais e cientiacuteficos na escolha dos alimentos questatildeo discutida por Garcia

(2009) e Mintz (2001)

511 Outras comidas ldquofortesrdquo

No capiacutetulo 2 utilizei Frieiro (1982) e Zemella (1951) para destacar a

importacircncia histoacuterica da criaccedilatildeo dos suiacutenos no quintal das casas com objetivo

de mitigar o problema da fome surgida durante a fase da mineraccedilatildeo em Minas

Gerais Surgiu daiacute o haacutebito de consumir a carne a gordura e o uso de outras

partes do animal adicionadas ao feijatildeo que se constituiacutea em alimento de grande

126

valor energeacutetico e proteico muito usado em funccedilatildeo disso como alimento dos

escravos Dessa mistura surgiu o que hoje conhecemos como feijoada O feijatildeo

foi tatildeo importante quanto o milho a mandioca a couve a gordura o toucinho e

o arroz para a manutenccedilatildeo das atividades mineradoras

No cotidiano alimentar das famiacutelias pesquisas eacute haacutebito cozinhar o feijatildeo

com toucinho que eacute tambeacutem considerado como alimento ldquoforterdquo O feijatildeo eacute item

diaacuterio nas refeiccedilotildees e seu consumo e cultivo tem laccedilos de heranccedila cultural e

histoacuterica assim como o suiacuteno caipira Apenas trecircs famiacutelias natildeo cultivam o feijatildeo

Uma parte do que eacute produzido eacute comercializada por seis famiacutelias nas demais

em 31 delas a produccedilatildeo destina-se apenas ao autoconsumo Durante a

pesquisa de campo algumas famiacutelias estavam comeccedilando a fase da colheita e

pude observar algumas pessoas no trabalho homens no geral Eacute um trabalho

difiacutecil pois eacute feita no modo tradicional arrancados agrave matildeo O trabalho das

mulheres se daacute principalmente na hora de bater e limpar o produto que seraacute

armazenado no paiol

Para aleacutem da gordura da carne suiacutena e do feijatildeo outros alimentos satildeo

considerados como sendo ldquofortesrdquo para manter o organismo bem nutrido para o

trabalho e satildeo consumidos com muita frequecircncia Satildeo eles o arroz a batata

doce a mandioca o angu e as farinhas de milho e de mandioca

O arroz consumido diariamente natildeo eacute mais produzido pelas famiacutelias

pela dificuldade que seu cultivo tem representado nos uacuteltimos anos segundo os

depoimentos de alguns dos interlocutores

Noacutes colhiacuteamos muito arroz natildeo precisava comprar mas jaacute tem uns cinco anos que a gente parou de mexer com arroz porque fica muito caro produzir do que comprar e tem os passarinhos que atacam a plantaccedilatildeo de arroz um passarinho preto que a gente chama de chupin A gente natildeo pode fazer nada contra eles porque eacute proibido mas quando chega a hora da colheita natildeo tem mais quase nada nos cachinhos de arroz (Lucio 46 anos morador de Bom Jesus do Bacalhau em Piranga MG 2015)

Ateacute uns anos atraacutes a gente plantava arroz socava no pilatildeo soacute para o consumo da famiacuteliamas comeccedilou a dar problema na uacuteltima vez que plantamos quando chegou a eacutepoca de cachear veio o sol muito forte ai natildeo saiu o cachoai resolvemos acabar com a plantaccedilatildeo (Onofre 67 anos morador de Mestre Campos em Piranga MG 2015)

Os entrevistados mencionaram uma diferenccedila no sabor e no aspecto do

arroz industrializado em comparaccedilatildeo ao que cultivavam como mostra o

depoimento de Mafalda (57 anos moradora de Ribeiratildeo em Presidente

127

Bernardes) a seguir Destacaram que o aspecto do tradicional que eles

cultivavam era mais grosseiro e amarelado e que o sabor era diferente aleacutem de

ser mais macio e poroso o que fazia com que o tempero impregnasse melhor

Por outro lado disseram que o industrializado leva menos tempo para ser cozido

Apesar de preferirem o arroz tradicional adquirir arroz no mercado atualmente

eacute mais interessante do que cultivaacute-lo levando-se em consideraccedilatildeo o custo-

benefiacutecio Mais uma vez aparecem aqui aspectos que pesam na escolha

alimentar semelhante ao que acontece com a escolha do oacuteleo vegetal e da

gordura de porco Mafalda expotildee em seu depoimento os aspectos que

considera positivos do arroz atual industrializado (ficar soltinho com a cor clara)

e os negativos (menos saboroso demora para absorver o tempero natildeo daacute a

ldquoligardquo considerada necessaacuteria na elaboraccedilatildeo do arroz doce)

Tem bastante diferenccedila O arroz que a gente colhia ele nunca ficava clarinho sempre tinhas uns gratildeos amarelos no meio poreacutem ele era um arroz mais gostoso Ele era mais macio e pegava mais o tempero Ele era melhor tambeacutem para fazer arroz doce porque ele dava mais liga Esses comprados natildeo daacute liga entatildeo o arroz de hoje natildeo eacute igual ao que a gente fazia antes Mas ele tambeacutem natildeo ficava soltinho na panela como o arroz que a gente refoga hoje Antigamente para ele ficar soltinho a gente tinha que espremer um limatildeo Hoje ficou mais faacutecil pra gente fazer (Mafalda moradora de Ribeiratildeo em Presidente Bernardes MG 2015)

Os demais alimentos considerados ldquofortesrdquo como a mandioca a batata

doce e o milho satildeo produzidos nos siacutetios e satildeo consumidos quase que

cotidianamente seja no cafeacute da manhatilde no almoccedilo e no jantar

A batata doce eacute quase sempre frita ou assada na brasa do fogatildeo a lenha

Usa-se consumi-la pela manhatilde acompanhada de cafeacute41 O mesmo ocorre em

relaccedilatildeo agrave mandioca Mas para consumo no almoccedilo e jantar o mais comum eacute

servi-la cozida ou ensopada com carne

O polvilho derivado da mandioca tambeacutem natildeo eacute mais produzido pelas

famiacutelias em todas elas esse produto agora eacute comprado O polvilho eacute usado

principalmente para fazer brevidade um tipo de bolo que eacute elaborado

esporadicamente Observei que em todas as casas haacute o consumo do biscoito de

polvilho assado poreacutem eacute tambeacutem comprado no mercado Agraves vezes se faz o

biscoito de polvilho frito mas as mulheres alegam que por espirrar muito durante

41 O cafeacute eacute feito em aacutegua adoccedilada e passado no coador de pano Natildeo vi o uso de coadores de papel em

nenhuma das casas

128

a fritura e ser bom para comer apenas por algumas horas apoacutes o preparo ele

natildeo eacute mais habitual como no passado Foi um tempo segundo as mulheres em

que sempre havia muita gente para comer e os produtos industrializados eram

parcos e caros no mercado Aleacutem disso o acesso aos mercados era mais difiacutecil

tornando necessaacuterio produzir praticamente tudo o que era destinado a

alimentaccedilatildeo das famiacutelias Os depoimentos a seguir de Anita (71 anos moradora

de Manja em Piranga) e de Lena (70 anos moradora de Ribeiratildeo em Presidente

Bernardes) tambeacutem sinalizam assim como ocorreu com o arroz que em razatildeo

da praticidade alguns modos tradicionais satildeo substituiacutedas ou passam a ser

retomados apenas em momentos especiacuteficos como naqueles que envolvem

reuniatildeo familiar e um grupo maior de pessoas nas casas Lena menciona o fato

da reduccedilatildeo do tamanho das famiacutelias quando comparadas com as famiacutelias dos

antepassados Outros entrevistados fizeram a observaccedilatildeo de que ldquoantes havia

muita gente na roccedilardquo ldquoantigamente as famiacutelias eram maioresrdquo A reduccedilatildeo do

nuacutemero de pessoas nas famiacutelias ndash na minha pesquisa o tamanho meacutedio eacute 36

pessoas por famiacutelia ndash interfere nas praacuteticas alimentares seja haacute menos pessoas

para se alimentar no dia a dia seja pelo fato de natildeo haver quem ajude na cozinha

e na elaboraccedilatildeo das quitandas Motivos que geram um certo tipo de desacircnimo

em investir em pratos mais trabalhosos que eram feitos e socializados nos

grupos familiares de antigamente

ldquoNa casa da minha matildee fazia muito polvilho Naquela eacutepoca todo mundo fazia muita brevidade agora ficou tatildeo faacutecil comprar o polvilho mas daacute muito trabalho fazer o biscoito frito e o assado natildeo eacute caro no mercado quase todo mundo prefere comprarrdquo (Anita moradora de Manja Piranga MG 2015)

ldquoEu fazia muito biscoito de polvilho frito quando os meninos eram pequenos eles gostavam Mas hoje eu quase natildeo faccedilo maissoacute se eles quando estatildeo aqui me pedem ai eu faccedilo Soacute para noacutes dois a gente compra esse do mercado mesmordquo (Lena moradora de Ribeiratildeo em Presidente Bernardes MG 2015)

Aleacutem do polvilho obtido da mandioca o milho e os seus derivados fazem

parte da cultura alimentar mineira como foi mostrado no capiacutetulo 2 a partir dos

apontamentos de Frieiro (1982) Zemella (1951) Meneses (2007) Arruda

(1999) Cacircmara Cascudo (2004) e Abdala (2007) O milho nesse periacuteodo foi

considerado mais importante do que a mandioca em funccedilatildeo de ser muito usado

tambeacutem para alimentaccedilatildeo animal conforme Meneses (2007) Com o passar dos

anos o milho assumiu lugar mais destacado do que a mandioca na culinaacuteria

129

mineira conforme Frieiro (1982) e Abdala (2007) A regiatildeo da pesquisa como jaacute

visto no referido capiacutetulo eacute uma das primeiras a serem ocupadas por ocasiatildeo da

mineraccedilatildeo em Minas Gerais Isso pode ter influenciado a permanecircncia da

tradiccedilatildeo do consumo do fubaacute que como mostrarei a seguir tem presenccedila

marcante na dieta das famiacutelias

52 Consideraccedilotildees sobre a importacircncia do milho e do fubaacute

Oraccedilatildeo ao Milho (Cora Coralina)

Fui o angu pesado e constante do escravo na exaustatildeo do eito Sou a broa grosseira e modesta do pequeno sitiante Sou a farinha econocircmica do proprietaacuterio sou a polenta do imigrante e a amiga dos que comeccedilam a vida em terra estranha Alimento de porcos e do triste mu de carga o que me planta natildeo levanta comeacutercio nem avantaja dinheiro Sou apenas a fartura generosa e despreocupada dos paioacuteis Sou o cocho abastecido donde rumina o gado Sou o canto festivo dos galos na gloacuteria do dia que amanhece Sou o cacarejo alegre das poedeiras agrave volta dos ninhos Sou a pobreza vegetal agradecida a voacutes Senhor que me fizestes necessaacuterio e humilde Sou o milho

Com exceccedilatildeo das famiacutelias de Antocircnio e Marieta e de Marilia todas as

outras cultivam o milho A produccedilatildeo eacute pequena e destinada agrave alimentaccedilatildeo

animal mas tambeacutem agrave elaboraccedilatildeo de fubaacute produzido em todos os siacutetios onde a

planta eacute cultivada Apenas uma famiacutelia possui moinho movido agrave aacutegua o restante

utiliza moinho eleacutetrico Na ocasiatildeo da pesquisa o moinho drsquoaacutegua era uma

raridade na aacuterea rural pesquisada segundo informaccedilatildeo dos entrevistados Tive

a oportunidade de ver um moinho muito antigo em funcionamento no siacutetio de

Manoel e Donana (72 e 54 anos respectivamente moradores de Limeira em

Porto Firme) (Figura 7) Este moinho tem sua estrutura feita em madeira e jaacute

apresentava sinais de sua idade com algumas peccedilas presas com arame O

trabalho eacute perfeito poreacutem lento Pertenceu aos pais de Manoel foi muito utilizado

no passado e permanece em uso para autoconsumo familiar O moinho se

localiza na margem da estrada por onde passa o coacuterrego A porta de acesso fica

130

constantemente entreaberta mas nunca houve roubo de fubaacute ou depredaccedilatildeo do

local

(a) (b)

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 7 ndash Moinho drsquoaacutegua no siacutetio de Manoel e Donana na Comunidade Limeira Porto Firme

A Figura 8 mostra o moinho eleacutetrico adotado atualmente pelas famiacutelias

O moinho da figura pertence agrave famiacutelia de Nanaacute e Custoacutedio na comunidade

Xopotoacute em Piranga Muito diferente do anterior executa o trabalho com maior

rapidez do que o de moinho drsquoaacutegua poreacutem com qualidade inferior como

apontado pelos entrevistados Neste tipo de moinho natildeo pode observar o

moinho sendo feito jaacute que ele segue direto para o pequeno silo acoplado agrave

maacutequina

Apesar da preferecircncia pelo fubaacute feito no moinho drsquoaacutegua meus

interlocutores afirmaram ter sido necessaacuteria a adaptaccedilatildeo ao moinho eleacutetrico que

se tornou mais usual principalmente em funccedilatildeo da reduccedilatildeo de aacutegua disponiacutevel

nos uacuteltimos anos Mencionaram ainda outro fator que consideram importante

para a reduccedilatildeo da utilizaccedilatildeo do moinho drsquoaacutegua Segundo eles as pessoas mais

velhas se importavam mais em manter os moinhos drsquoaacutegua por ser considerada

uma praacutetica tradicional mas quando os moinhos eleacutetricos surgiram o apelo agrave

praticidade falou mais alto e o moinho drsquoaacutegua foi perdendo espaccedilo nos siacutetios

administrados pelas geraccedilotildees mais novas

131

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 8 ndash Moinho eleacutetrico no siacutetio de Nanaacute e Custoacutedio na Comunidade Xopotoacute em Piranga

Antigamente muita gente tinha moinho drsquoaacutegua aqui mesmo tinham uns 3 ou 4 numa distacircncia de 5 Km por aquifoi acabando os velhos foram morrendo e os mais novos natildeo quiseram saber de mexer com isso natildeo (Alonso 82 anos morador de Xopotoacute em Presidente Bernardes MG 2015)

Os moinhos tocados a aacutegua ficam quase sempre mais longe da casa perto de onde corre uma aacutegua neacute O eleacutetrico pode ficar em qualquer lugar debaixo de uma coberta ou perto do paiol daacute menos trabalho e de primeiro tinha muita gente na roccedila natildeo tinha problema ter muito serviccedilo mas hoje dessa gente nova natildeo tem quase ningueacutem mais aqui (Francisco 64 anos morador de Satildeo Domingos em Porto Firme MG 2015)

A reduccedilatildeo no uso desses moinhos comeccedilou a ocorrer haacute

aproximadamente 15 anos quando ainda era possiacutevel encontrar mais facilmente

o ldquofubaacute de moinho drsquoagua para comprar Se por um lado a adoccedilatildeo do moinho

eleacutetrico facilitou o trabalho por outro o fubaacute produzido por ele sofreu alteraccedilatildeo

na textura e sabor Joatildeo (81 anos morador de Aacutegua Limpa em Porto Firme)

pondera que o fubaacute originado do moinho eleacutetrico ldquonatildeo agrada nem aos animaisrdquo

Segundo os depoimentos o fubaacute de moinho drsquoaacutegua era fino e mais

uacutemido A diferenccedila para o produto do moinho eleacutetrico eacute que ele produz um fubaacute

mais grosso e ressecado Essas caracteriacutesticas alteraram o sabor e a textura de

dois alimentos muito importantes na culinaacuteria da regiatildeo pesquisada a broa e o

132

angu Segundo as mulheres ldquoa broa de antes tinha mais ligardquo Assim para

melhorar sua textura a broa que era elaborada de puro fubaacute passou a ter a

adiccedilatildeo de uma parte de farinha de trigo

As discussotildees em torno das mudanccedilas ocasionadas no fubaacute foram

longas e contaram com participaccedilatildeo interessada de muitos homens que

culturalmente natildeo costumam a discutir assuntos culinaacuterios Talvez isso se

explique pelo fato de os produtos derivados do fubaacute serem tatildeo importantes na

alimentaccedilatildeo cotidiana de todas as famiacutelias e por ser utilizado uma maacutequina para

produzi-lo objeto considerado culturalmente como de domiacutenio masculino Em

funccedilatildeo da importacircncia desses alimentos considero interessante adicionar um

nuacutemero maior de depoimentos mesmo ciente de que em um vieacutes etnograacutefico

deve-se tomar cuidado com o excesso de depoimentos em que estejam

evidenciadas ideias semelhantes conforme observaccedilatildeo feita por Peirano (1995)

() pena que hoje quase natildeo acha mais fubaacute de moinho drsquoaacutegua o fubaacute era fininho e dava uma broa maciahoje as maacutequinas quase que torram o fubaacute A broa fica mais ou menos neacute Eu faccedilo uma broinha com rapadura que ficava muito deliciosa mesmo era quando feita com o fubaacute fino (Neuzeli 63 anos moradora de Vinte Alqueires em Porto Firme MG 2015)

A broa feita com fubaacute do moinho eleacutetrico fica muito solta o sabor da comida mudou muito taacute tudo muito mudado em tudo na roccedila (Vanilda 55 anos moradora de Mestre Campos em Piranga MG 2015)

Por ser raridade o fubaacute produzido no moinho drsquoaacutegua tem ganhado

valorizaccedilatildeo no mercado Encontrado agrave venda apenas nos mercados de produtos

artesanais o seu preccedilo eacute superior ao fubaacute industrializado Poucos produtores

colocam o produto agrave venda pois como a produccedilatildeo eacute pequena ela objetiva

atender agraves necessidades das famiacutelias como o caso de Manoel e Donana Ter

um moinho drsquoaacutegua na propriedade no periacuteodo colonial significava haver ali um

grande uso do fubaacute para diferentes funccedilotildees no local Era considerado na eacutepoca

um equipamento sofisticado segundo Andrade (2014) Atualmente ele eacute visto

como ultrapassado de trabalho lento e atividade trabalhosa perdendo seu

espaccedilo para a tecnologia oferecida pelo moinho eleacutetrico A relaccedilatildeo tradicional e

moderno referente aos moinhos reportam agraves diferentes geraccedilotildees no grupo

pesquisado Em vaacuterios depoimentos foi constante a associaccedilatildeo dos moinhos

drsquoaacutegua como objetos de desinteresse das geraccedilotildees mais novas Assim o

produto gerado pelo moinho tradicional apesar de ser preferido em termos de

133

sabor e textura natildeo eacute um argumento forte o suficiente para que seu uso se

mantenha sob os cuidados dos mais jovens

Ao tratar sobre as substituiccedilotildees dos equipamentos modernos pelos

tradicionais no preparo dos alimentos Giard (2012) discute que a mudanccedila natildeo

se daacute apenas pela substituiccedilatildeo do aparelho ou utensiacutelio mas tambeacutem da relaccedilatildeo

instrumental entre o utilizador o objeto utilizado O moinho dacuteaacutegua eacute mais

trabalhoso de ser utilizado porque se localizava distante das casas como o

exemplo daquele da famiacutelia que visitei Eacute preciso controlar o tempo e fazecirc-lo

parar de funcionar manualmente diferente do moinho eleacutetrico que desliga

sozinho Aleacutem disso a sua produccedilatildeo eacute lenta produz-se muito menos fubaacute no

moinho drsquoaacutegua do que no moinho eleacutetrico no mesmo espaccedilo de tempo Na

contemporaneidade em uma sociedade liacutequido-moderna adaptar-se agraves novas

tecnologias eacute uma forma de natildeo perder tempo como reflete Bauman (2009)

Para Giard (2012) algumas mudanccedilas nas praacuteticas alimentares satildeo inevitaacuteveis

e para usufruir as vantagens de uma cultura material eacute preciso estar pronto para

lidar com seus inconvenientes Em alguns casos a convivecircncia entre uma

praacutetica tradicional e uma moderna eacute possiacutevel mas nem sempre No caso do fubaacute

do moinho tradicional e do eleacutetrico por exemplo natildeo haacute alternativa Eacute preciso

fazer a escolha No caso do fubaacute produzido nos dois tipos de moinhos a

lembranccedila do produto tradicional ainda estaacute na memoacuteria inclusive a do paladar

como mostra a fala de Jonas

Fubaacute de moinho drsquoaacutegua eacute coisa rara demaisquando eu falo chego a sentir o gosto do bolo feito de fubaacute de antigamente e angu o angu de fubaacute de moinho drsquoaacutegua era alaranjado assim meio avermelhado hoje ele fica branco (Jonas 53 anos morador da comunidade Satildeo Domingos em Porto Firme MG 2015)

Sobre a ligaccedilatildeo entre memoacuteria e tradiccedilatildeo Giddens (2012) citando

Halbwachs (1992 p 100) diz que ldquoo passado desmorona mas soacute desvanece

na aparecircncia pois continua a existir no inconscienterdquo As observaccedilotildees sobre o

passado em que existia o moinho drsquoaacutegua foram carregadas de memoacuterias

lembranccedilas de sabores e por que natildeo de idealizaccedilatildeo Um passado que para

meus interlocutores se opotildee ao presente em vaacuterios aspectos dentre eles o

alimentar o artesanal versus o industrial ou seja ou moinho drsquoaacutegua versus o

moinho eleacutetrico Identificar e destacar a comida e os modos de fazer do passado

como no depoimento anterior de Jonas eacute um exemplo dos momentos em que

134

somos visitados pelos cheiros e sabores do passado discutido por Giard (2012)

sobre a memoacuteria afetiva e do quanto o presente e o passado se entrelaccedilam no

imaginaacuterio das pessoas quando se trata de falar sobre comida Para Moulin

(1975 apud GIARD 2012) o tipo de comida preferida de uma pessoa eacute sempre

o mesmo ou muito semelhante agravequele dos pais

Em suma noacutes comemos o que nossa matildee nos ensinou a comer Gostamos daquilo que ela gostava do doce ou do salgado da geleia de manhatilde ou dos cereais do chaacute ou do cafeacute de tal forma que eacute mais loacutegico acreditar que comemos nossas lembranccedilas as mais seguras temperadas de ternuras e de ritos que marcaram nossa primeira infacircncia (MOULIN apud GIARD 2012 p 251)

Depoimentos semelhantes agravequele dado por Vanilda sobre as mudanccedilas

relacionadas agrave comida ldquoo sabor da comida mudou muito estaacute tudo muito

mudado em tudo na roccedilardquo me conduziam a perguntar O que mudou na comida

As respostas dos interlocutores foram no sentido de apontar aqueles alimentos

que eram comuns para eles no passado na infacircncia e juventude e que jaacute natildeo

satildeo mais facilmente encontrados Aleacutem da gordura animal que jaacute foi discutida o

fubaacute tambeacutem permanece no cotidiano Mesmo natildeo sendo mais aquele preferido

produzido no moinho drsquoaacutegua ainda continua presente em vaacuterias elaboraccedilotildees de

quitandas principalmente na broa e no angu alimento que eacute consumido

diariamente pelas famiacutelias

O angu mineiro possui uma mistura simples fubaacute e aacutegua No capiacutetulo 2

mostrei que esse alimento natildeo usava sal pois era um produto raro na regiatildeo

mineradora e portanto caro

Outra maneira de consumir o angu aleacutem daquela servida em almoccedilo e

jantar foi apontada pelas famiacutelias como sendo muito apreciada pelos mais

velhos Eacute o angu adicionado ao leite e sal formando um mingau grosso

geralmente se comia assim na merenda usando a sobra do angu

Antigamente a merenda mais comumisso quando eu ainda era solteira era leite com angu no leite quente ou frio agraves vezes quando me daacute saudade de comer ai eu faccedilo quando a gente era crianccedila tinha sempre (Mercecircs 41 anos moradora de Bom Jesus do Bacalhau em Piranga MG 2015)

O curau doce agrave base de milho foi citado como uma iguaria feita em dias

festivos como no Natal O mingau salgado que tambeacutem eacute a base de fubaacute eacute muito

consumido principalmente em dias frios Trata-se do ldquomingau de couverdquo ou

135

ldquobambaacute de couverdquo Este prato eacute assim como a canjiquinha de milho um dos

caldos preferidos

A canjiquinha e o mingau de couve a gente faz muito aquimas quando estaacute muito calor natildeo neacute Porque eacute para comer bem quentinho que eacute gostoso eu tambeacutem faccedilo quando a comida do almoccedilo eacute pouca para o jantar ai a gente costuma jantar uma sopa coloca muita couve e cebolinha vocecirc natildeo conhece essas comidas natildeo neacute42 (Selma 68 anos moradora de Tatu em Piranga MG 2015)

Outro derivado do milho que jaacute foi muito consumido mas que raramente

eacute elaborado hoje eacute o cuscuz doce agrave base de fubaacute accediluacutecar aacutegua e queijo43 Esse

tipo de cuscuz segundo ele pode ser comido puro com cafeacute ou com leite Um

doce que segundo os interlocutores pode ser comido com colher por ter a

consistecircncia de uma farofa grossa Apesar de ser doce ele possui queijo na

mistura e que tambeacutem era preferencialmente consumido nas merendas

Geralmente eacute feito em uma panela proacutepria o cuscuzeiro mas as mulheres

disseram que nem todos tinham o cuscuzeiro por isso se fazia em uma panela

dentro de outra com aacutegua semelhante agrave teacutecnica do banho maria O cuscuz

salgado natildeo foi citado e quando perguntei sobre ele disseram natildeo ser conhecido

na regiatildeo

Antocircnio 78 anos que aleacutem de agricultor teve uma pequena padaria em

Piranga haacute deacutecadas atraacutes foi dentre os homens entrevistados o que se

mostrou mais interessado em culinaacuteria e relatou algumas de suas experiecircncias

como padeiro e sobre as quitandas patildees e bolos que fazia Contou

detalhadamente como era o cuscuz que fazia Ao compartilhar sua experiecircncia

e reviver as lembranccedilas de eacutepocas passadas Antonio demonstrou emoccedilatildeo pois

esse era um alimento que sentia prazer em fazer e em degustar Ele guarda as

receitas de tudo que fazia na memoacuteria revelando a importacircncia que a padaria

teve em sua vida

O cuscuz natildeo eacute mais elaborado pelas famiacutelias como antes porque eacute

possiacutevel encontrar outros alimentos que os substituem e porque alguns

alimentos permaneceram como haacutebitos cotidianos como os bolos broas que

42 Eu tambeacutem era constantemente ldquoentrevistadardquo por eles Respondi que conheccedilo os dois pratos e que

gosto muito de ambos 43 O queijo usado em muitos ingredientes e consumidos no dia a dia eacute produzido por todas as 34 famiacutelias

(85) que tem atividade leiteira nos siacutetios mas a produccedilatildeo do queijo eacute basicamente para autoconsumo Jaacute a manteiga eacute um produto menos comum de ser fabricado atualmente pelo trabalho de sua produccedilatildeo Mas eacute um alimento que permanece como haacutebito alimentar Compra-se a industrializada ou de vizinhos que porventura fabriquem

136

satildeo feitas em casa e caso contraacuterio satildeo facilmente encontradas no mercado

Segundo Giard (2012) uma explicaccedilatildeo para o abandono de algumas praacuteticas

passadas na culinaacuteria estaacute nas mudanccedilas das provisotildees e ofertas no mercado

Nesse caso ldquopermanece apenas a lembranccedila interiorizada dos sabores antigosrdquo

(p 274) como eacute o caso das recordaccedilotildees de Antonio sobre o cuscuz que fazia

com frequecircncia no passado e que tinha muita aceitaccedilatildeo de seus clientes da

padaria

Uma coisa que eu jaacute fiz muito e que vocecirc natildeo deve nem nunca ter ouvido falar Cuscuz torrado Veja bem natildeo eacute cuscuz cozido no vapor natildeo eacute assado O cuscuz torrado eu fazia assim Socava no pilatildeo 1 quilo e meio de fubaacute 34 de rapadura uma pitada de sal socava ateacute que desmanchava e ficava um beiju sabe Ai levava na focircrma peneirava quando enchia apertava bem cortava e punha no forno brando para torraroh Mas ficava uma coisa fora do comum Jaacute vendi demais isso aqui por essas bandas depois que eu parei de fazer nunca mais eu vi Ele esfarinhava na hora de comervocecirc conhece paccediloca A consistecircncia era parecida com a paccediloca de amendoim (Antonio 78 anos morador de Boa Vista em Piranga MG 2015)

Segundo Cacircmara Cascudo (2004) o cuscuz eacute originaacuterio dos Mouros na

Aacutefrica (Egito a Marrocos) e se escreve originalmente ldquokuz-kuzrdquo Agrave base de arroz

farinha de trigo ou sorgo passou a ser feito de milho com o avanccedilo do cultivo da

plantam do a partir do seacuteculo XVI Mas tanto os africanos quanto os portugueses

jaacute conheciam o cuscuz quando chegaram ao Brasil se em Portugal era

considerado prato aristocraacutetico em final do seacuteculo XVII ldquoNo Brasil pela

humildade do fabrico era manutenccedilatildeo de famiacutelias pobres julgava-se lsquocomida de

negrosrsquo trazida pelos escravosrdquo (p 190)

A pesquisa mostrou que o fubaacute assume posiccedilatildeo de destaque no

cotidiano alimentar das famiacutelias Aleacutem de alimento considerado ldquoforterdquo guarda

tambeacutem um significativo papel cultural as recordaccedilotildees de alimentos que eram

elaborados antes e que natildeo se fazem mais os modos de moer o fubaacute de antes

e de agora interagem com os lugares de emoccedilatildeo relacionados agrave comida Ao

lembrar de como um alimento ou uma praacutetica ocorria acontece tambeacutem o

resgate daqueles que o faziam ou seja dos ldquoguardiatildees da tradiccedilatildeordquo dos quais

nos falam Giddens (2012) e Simsom (2003) A razatildeo alegada para explicar o

porquecirc de alguns alimentos do passado que faziam parte da merenda terem

deixado de ser consumidos como o angu com leite e o cuscuz foi que na

contemporaneidade existem muitas opccedilotildees de merenda que a opccedilatildeo passa a

137

ser pela praticidade neste caso Satildeo alimentos a serem feitos quando se sente

vontade de comecirc-los No cotidiano eacute a broa que assumiu o lugar das outras

merendas agrave base de milho justamente pela rapidez de sua elaboraccedilatildeo

53 Comida de todo dia comida de festa e as relaccedilotildees de comensalidade

531 Comida de todo dia o trivial

Aqui na roccedila falando a verdade o que a gente come mesmo eacute angu arroz feijatildeo e uma verdura (Afonso 79 anos morador de Ribeiratildeo em Presidente Bernardes MG 2015)

A comida de todo dia eacute angu ateacute mesmo para alimentar os animais (cachorro gato galinha) couve arroz feijatildeo e uma carne quase sempre de porco (Ana Luisa 45 anos moradora de Bom Jesus do Bacalhau em Piranga MG 2015)

Destaco o iniacutecio do item com dois depoimentos porque eles sintetizam o

que eacute a comida cotidiana das famiacutelias pesquisadas inclusive naquelas famiacutelias

que possuem crianccedilas adolescente e jovens embora eu tenha conversado com

apenas cinco jovens que se encontravam no siacutetio na ocasiatildeo da entrevista

Segundo os meus interlocutores os pais cultivam nos filhos os seus haacutebitos

alimentares ao manter o mesmo tipo de alimentaccedilatildeo para adultos e crianccedilas

Assim pelo menos em casa dos pais a comida natildeo varia em funccedilatildeo de outras

preferecircncias alimentares e segundo as informaccedilotildees natildeo ocorre disparidades

nesse sentido

Em todas as famiacutelias quatro alimentos estatildeo presentes no almoccedilo de

todos os dias da semana angu arroz feijatildeo ovo ou carne e verdura refogada

em gordura de porco Mesmo havendo variaccedilatildeo para a verdura como serralha

almeiratildeo e mostarda a couve eacute a mais consumida na contemporaneidade assim

era tambeacutem no periacuteodo da mineraccedilatildeo e da ruralizaccedilatildeo

Todas as famiacutelias tecircm hortas nos quintais algumas bem cuidadas e com

grande variedade de plantas outras fragilizadas e com poucos cultivos A

estiagem do periacuteodo foi a grande responsaacutevel pelas ldquohortas fracasrdquo mas em

todas elas havia couve Em uma horta por exemplo havia apenas couve

cebolinha salsa quiabo e jiloacute As hortaliccedilas e ldquocheiro verderdquo mais presentes eram

a couve a serralha a mostarda o almeiratildeo a alface a cebolinha de folha a

138

salsa o manjericatildeo e a hortelatilde Uma hortaliccedila comum na culinaacuteria mineira a

taioba estava presente em poucas hortas Segundo as mulheres por ser

periacuteodo de estiagem a produccedilatildeo dessa hortaliccedila estava prejudicada pois

necessita de muita umidade

Frieiro (1982) Magalhatildees (2004) e Arruda (1990) tratam da importacircncia

que o cultivo da horta teve para a regiatildeo mineradora em Minas Gerais numa fase

de escassez de alimentos Ela era cultivada nos quintais de todas as casas para

garantir o acesso nas refeiccedilotildees agraves fontes de legumes frutas hortaliccedilas e

tubeacuterculos Passado a fase da escassez alimentar na regiatildeo mineradora de

Minas as hortas permaneceram sendo cultivadas Atualmente cultivar a horta

natildeo se daacute mais por carecircncia alimentar jaacute que o acesso agrave compra no mercado eacute

possiacutevel e a baixo custo Mas eacute importante para os entrevistados ter o prazer de

colher a hortaliccedila fresca pouco antes de preparar a refeiccedilatildeo As razotildees satildeo

sobretudo culturais e simboacutelicas para manter a tradiccedilatildeo como no caso das

famiacutelias que pesquisei Ter uma horta ldquobonitardquo eacute motivo de orgulho Maria (66

anos moradora de Itapeva Presidente Bernardes) enquanto mostrava e falava

com tristeza de sua horta que estava sofrendo com a estiagem comentou

ldquominha horta estaacute mirrada feiaparecendo ateacute horta de gente preguiccedilosardquo

Outro motivo para a importacircncia da horta para as famiacutelias pesquisadas eacute a

certeza da qualidade do alimento que cultiva As famiacutelias demonstraram

preocupaccedilatildeo com o uso de agrotoacutexico e natildeo sentem seguranccedila na aquisiccedilatildeo de

alimentos in natura que agraves vezes precisam adquirir no mercado

Os demais vegetais cultivados pelas famiacutelias pesquisadas satildeo aboacutebora

moranga batata doce mandioca inhame chuchu jiloacute quiabo berinjela e tomate

do mato Esses vegetais satildeo produzidos em todas as hortas e muito consumidos

nas refeiccedilotildees diaacuterias A exceccedilatildeo eacute para o tomate que natildeo eacute habito de consumo

local Esporadicamente consomem o tomate que chamam de ldquotomate do matordquo

que nascem naturalmente sem precisar cultivar O principal motivo para natildeo

cultivarem e natildeo consumirem o tomate eacute a necessidade de utilizar muito

inseticida Evitam o maacuteximo o uso de agrotoacutexico nos produtos cultivados no siacutetio

mas natildeo conseguem deixar de usaacute-lo no milho para substituir o roccedilado manual

com a enxada e tambeacutem no feijatildeo armazenado Eacute interessante que esse receio

natildeo os impede de consumir a massa de tomate na macarronada dos domingos

139

Vegetais como cenoura beterraba batata baroa berinjela couve-flor

broacutecolis repolho cebola de cabeccedila e alho satildeo produzidos por poucas famiacutelias

Mas a cebola e o alho jaacute foram cultivados com frequecircncia na regiatildeo No siacutetio de

Maria e Laeacutercio em Itapeva Presidente Bernardes as hortaliccedilas estavam muito

fragilizadas e havia pouquiacutessimas plantas basicamente couve quiabo e

cebolinha mas ela mostrou orgulhosa sua colheita de cebola de cabeccedila e alho

que estava no paiol (Figura 9) dois produtos que natildeo satildeo cultivados por todas

as famiacutelias embora muito consumidas A cebola de cabeccedila por exemplo era

um produto comprado no comeacutercio da comunidade pela maioria das famiacutelias

Isso aponta para a importacircncia que tem para essa famiacutelia a produccedilatildeo de

alimentos que consomem no dia a dia Percebi na conversa com Maria e Laeacutercio

a valorizaccedilatildeo dada agrave produccedilatildeo para autoconsumo Em funccedilatildeo disso o lamento

pela ausecircncia de chuvas foi muito presente durante o diaacutelogo

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 9 ndash Cebolas e alhos armazenados no paiol do siacutetio de Maria e Laeacutercio na comunidade Itapeva em Presidente Bernardes

A pesquisa ocorreu em periacuteodo de colheita do amendoim cultivadas por

quase todas as famiacutelias basicamente para autoconsumo embora uma delas

tenha produzido o suficiente para comercializar Tive a oportunidade de em uma

delas acompanhar parte da colheita e ateacute experimentar arrancar a planta do

chatildeo Algumas mulheres disseram que iriam aproveitar para fazer peacute-de-

moleque A rapadura teria que ser comprada no mercado da cidade jaacute que natildeo

140

eacute mais produzida no siacutetio e em toda a regiatildeo eacute um produto pouco encontrado

Das famiacutelias que entrevistei apenas trecircs produziam rapadura e melado No

periacuteodo de campo a cana estava sendo toda utilizada para alimentaccedilatildeo do gado

A horta de Eliana e Saturnino (69 e 75 anos respectivamente) tambeacutem

de Itapeva Presidente Bernardes (Figura 10) eacute bem diversificada e bem cuidada

Eliana que gosta de cultivar plantas medicinais me mostrou uma delas e

perguntou ldquoVocecirc conhece o remeacutedio ldquoVickrdquo Olhe ele aqui eu tenho plantado

cheire uma folha muita gente aqui de perto vem buscar para tratar a gripe

chiado no peito sempre tratei a gripe dos meus filhos com elardquo Mariacutelia (62

anos moradora de Mestre Campos Piranga) tambeacutem possui uma horta muito

rica e com grande variedade de plantas medicinais Tanto ela quanto Eliana se

mostraram detentoras do conhecimento tradicional dos cultivos e das funccedilotildees

terapecircuticas das ervas medicinais e disseram ter aprendido com as matildees e avoacutes

Apesar de eu eleger as hortas das famiacutelias de Eliana e de Mariacutelia como as

melhores encontrar hortas bem cuidadas e diversificadas foi comum durante a

pesquisa Haacute uma preocupaccedilatildeo especial das mulheres em mantecirc-las produtivas

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 10 ndash Horta no siacutetio de Eliana e Saturnino em Itapeva Presidente Bernardes MG

Os vegetais produzidos nos siacutetios das famiacutelias satildeo aqueles consumidos

nas refeiccedilotildees diaacuterias No dia a dia raramente algum produto vegetal eacute comprado

no mercado exceto quando se deseja algum legume ldquodiferenterdquo como dizem O

periacuteodo de estiagem tambeacutem interfere nisso devido ao fato de que algumas

141

plantas satildeo menos resistentes agrave seca prolongada Durante o periacuteodo da

pesquisa isso ocorria em relaccedilatildeo a alface que natildeo eacute uma hortaliccedila consumida

com frequecircncia pois a preferecircncia eacute pelas verduras que podem ser refogadas

A batata inglesa tambeacutem eacute um produto muito raro na dieta dessas famiacutelias

passa-se meses sem consumi-la a preferecircncia eacute pela batata doce bem como o

inhame e a mandioca

Percebi que a alimentaccedilatildeo cotidiana das famiacutelias eacute muito semelhante

agravequela da fase da mineraccedilatildeo e ruralizaccedilatildeo descritas pelos autores que utilizei no

capiacutetulo como Frieiro (1982) Magalhatildees (2004) Arruda (1990) e Torres (2011)

A tradiccedilatildeo se perpetuou na regiatildeo sem grandes modificaccedilotildees Os mesmos

cultivos nas hortas as mesmas praacuteticas alimentares satildeo mantidas embora

novidades sejam inseridas como a panela eleacutetrica de fazer arroz que seraacute

discutida mais agrave frente

Outra hortaliccedila muito comum na culinaacuteria mineira o ora-pro-noacutebis ou

lobrobrocirc estava presente em quase todas as hortas embora seu consumo natildeo

seja cotidiano como as demais jaacute citadas Embora natildeo seja uma hortaliccedila muito

apreciada encontrei uma crianccedila que prefere o ora-pro-noacutebis agrave couve Ao

perguntar agrave Marcelina e Luiz moradores de Satildeo Domingos em Porto Firme

sobre as verduras que cultivavam e quais eram as mais consumidas

imediatamente o filho Faacutebio de 9 anos acrescentou ldquolobrobocirc taiobardquo

Perguntei-lhe entatildeo se gostava de verduras e ele confirmou Segundo a matildee

ldquoele adora todas as verduras lobrobrocirc ele come as folhas ateacute cruas e taioba e

folha de batata doce ele tambeacutem adora pede para eu fazer com angu e carne

de frangordquo Lola de Presidente Bernardes compartilhou situaccedilatildeo semelhante

sobre seu filho Andreacute de 10 anos O filho aprecia suco de couve (mais que os

refrigerantes) ldquoEles satildeo assim porque natildeo foram acostumados com isso

sempre ensinei que essas coisas fazem mal pra genterdquo

Conhecer o gosto destas duas crianccedilas por verduras e saber que esse

gosto estaacute atrelado aos haacutebitos alimentares dos pais nos conduz mais uma vez

agrave discussatildeo sobre heranccedila dos haacutebitos e gosto alimentar jaacute discutido no capiacutetulo

anterior Na casa dos pais de Faacutebio e tambeacutem em sua escola rural a presenccedila

de verduras de todos os tipos de acordo com a sazonalidade eacute comum Desde

muito novos os filhos deste casal foram introduzidos nos haacutebitos alimentares dos

pais Natildeo haacute o haacutebito familiar de consumir refrigerante que soacute eacute comprado para

142

a casa em dias de festa As bebidas do dia a dia da famiacutelia satildeo aacutegua e suco de

fruta da estaccedilatildeo Insisti em saber se era uma preocupaccedilatildeo com a sauacutede e a

resposta foi que a sauacutede vem como consequecircncia Para eles a prioridade eacute

consumir alimentos que produzem no local e evitar gastos com alimentaccedilatildeo no

mercado Aleacutem disso eacute a comida que estatildeo acostumados

Natildeo tive a oportunidade de conversar com outras crianccedilas durante a

entrevista mas tive depoimentos dos pais a respeito dos haacutebitos alimentares dos

filhos quando eram crianccedilas e que ainda sendo adolescentes manteacutem haacutebitos

alimentares muito parecidos com os dos pais Haacute o caso por exemplo dos filhos

de Antonina (74 anos moradora de Bananeiras em Presidente Bernardes

Antonina) que moram em Satildeo Paulo e que mesmo sendo adultos quando

visitam os pais nas feacuterias pedem para a matildee fazer ldquoa comida que eles estavam

acostumados a comer quando eram pequenosrdquo Esta fala coincide com a

compreensatildeo de Bourdieu (2007) sobre a formaccedilatildeo de haacutebitos alimentares que

sofrem grande influecircncia da convivecircncia dos grupos o que gera gostos muito

semelhantes entre os membros O haacutebito alimentar eacute construiacutedo nesse contexto

e podem ser diferentes de uma cultura para outra

Fui convidada a participar da mesa de refeiccedilotildees ldquode todo diardquo em 15

casas onde fui convidada a almoccedilar com a famiacutelia O horaacuterio de almoccedilo variou

de 1100 a 1130 e essa variaccedilatildeo tem a ver com o horaacuterio em que acordam e

iniciam as atividades que jaacute natildeo eacute mais tatildeo riacutegido como jaacute foi no passado Como

parte das conversas aconteciam geralmente nas cozinhas enquanto o almoccedilo

era preparado pude acompanhar todo o processo Me ofereci para ajudar em

alguma coisa na atividade da cozinha mas a uacutenica ajuda permitida foi

acompanhaacute-las ateacute a horta para ldquoapanharrdquo verdura

Em todos os almoccedilos que participei estavam presentes no cardaacutepio o

ldquotrivial mineirordquo denominaccedilatildeo atribuiacuteda por Eduardo Frieiro para ldquofeijatildeo angu e

couverdquo O autor apoacutes as pesquisas sobre a alimentaccedilatildeo em Minas Gerais da

fase mineradora ateacute meados da deacutecada de 1950 sugeriu alguns dos alimentos

que considerava possiacutevel serem caracterizados como tiacutepicos de Minas Gerais

A sugestatildeo se deu em funccedilatildeo da peculiaridade de seus preparos satildeo eles o

tutu de feijatildeo com torresmo ou linguiccedila o lombo de porco assado a couve

cortada fina e refogada e o angu sem sal

143

Aleacutem do feijatildeo do angu e da couve havia todos os dias tambeacutem o arroz

nas refeiccedilotildees que participei Assim eu elegeria como a comida tiacutepica do almoccedilo

do conjunto das famiacutelias desta pesquisa a seguinte composiccedilatildeo arroz feijatildeo

batido no liquidificador angu couve refogada e carne (de frango ou porco) O

feijatildeo batido eacute comum em Minas e no interior de Satildeo Paulo mas quase

desconhecido nos outros estados Eacute comum associar a Minas Gerais o feijatildeo

tropeiro e ao tutu mas nas famiacutelias que pesquisei a forma de servi-lo eacute

predominantemente batido temperado com gordura de porco e alho Antes de

haver o liquidificador o feijatildeo era amassado agrave matildeo com o uso de um ldquosocadorrdquo

depois adicionava-se aacutegua o resultado era um feijatildeo de caldo grosso e

diferentemente do tutu e do tropeiro natildeo lhe eacute adicionado farinha o que o torna

mais diferente do tutu e mais leve jaacute que a farinha lhe confere a categoria de

comida com ldquosustanccedilardquo Embora a carne de porco tenha sido a mais presente

a de frango tambeacutem foi marcante A carne de boi eu comi em apenas duas casas

na forma moiacuteda e cozida O frango sempre frito ou ensopado algumas vezes era

acompanhado de quiabo O peixe foi servido em uma casa pescado no rio que

passa na propriedade A disponibilidade da carne natildeo era farta mas suficiente

para tecirc-la no prato sem esbanjamento e proporcionar satisfaccedilatildeo Mas os outros

alimentos eram preparados em grande quantidade

Foi recorrente ser servida mais de uma fonte de carboidrato nas

refeiccedilotildees por exemplo arroz angu e ou moranga e ou mandioca e ou batata

doce e ou farinha e ou macarratildeo O carboidrato eacute responsaacutevel pelo suprimento

de energia do organismo Para as famiacutelias esses alimentos satildeo importantes para

dar ldquosustanccedilardquo e tambeacutem satildeo responsaacuteveis por compor um almoccedilo ldquoforterdquo assim

como sinalizaram em relaccedilatildeo agrave gordura de porco Esse aprendizado eacute por

transmissatildeo cultural a mesma loacutegica para o consumo da gordura de porco

532 Comida de domingo de dias festivos e comensalidade

A comida de domingo varia pouco O arroz e o feijatildeo satildeo consumidos

tambeacutem nesse dia Agraves vezes o feijatildeo batido eacute substituiacutedo pelo tutu com cebola

e pelo feijatildeo tropeiro A macarronada com frango ou com carne de panela

tambeacutem eacute um prato presente com frequecircncia aos domingos Todas as famiacutelias

que tecircm os filhos morando proacuteximos inclusive em Viccedilosa afirmaram que aos

144

domingos o almoccedilo eacute dia de reuniatildeo em famiacutelia os filhos e netos chegam para

o almoccedilo e laacute passam o dia Quando os sogros dos filhos moram perto eacute feita

uma divisatildeo almoccedilo em uma casa cafeacute da tarde ou jantar em outra As filhas e

ou noras ajudam no preparo do almoccedilo e de lavar a louccedila Os casais

aposentados que ficam muito sozinhos durante a semana consideram esses

momentos fundamentais porque ldquoo dia fica mais alegrerdquo

() eu fico soacute por conta de cozinhar para eles a mesa essas duas ai ficam sempre cheias de coisas em cima eacute biscoito eacute bolo eacute doce eu gosto de ver os filhos e os netos tranccedilando por ai eles gostam de ficar na cozinha na mesa natildeo cabe todo mundo ai eles colocam umas cadeiras e ficam aqui tambeacutem eles gostam de pegar ovos no galinheiro e bater gemada acostumei eles a comer gemada desde pequenos e eles soacute comem gemada aqui por causa do ovo daqui (Eliana 69 anos moradora de Itapeva em Presidente Bernardes MG 2015)

Nos dias de domingo a casa fica cheia minhas filhas costumam trazer um prato feito por elas e junta com o que eu faccedilo aqui eacute muita fartura eacute muito bom todo mundo conversa ri pena que no fim do dia vai todo mundo embora (Laurinda 77 anos moradora de Tatu em Piranga MG 2015)

A ldquofarturardquo da comida destacada por Laurinda nas ocasiotildees de encontro

familiar eacute um grande valor atribuiacutedo pelas famiacutelias rurais Fartura de alimentos

significa uma boa produtividade de alimentos na roccedila mas significa tambeacutem

seguranccedila Ter ldquoo de comerrdquo todos os dias garantido na mesa eacute um atributo que

lhes eacute importante nas suas condiccedilotildees de famiacutelias agricultoras

O espaccedilo de comensalidade nessas ocasiotildees eacute basicamente a cozinha

lugar preferido da famiacutelia quando estaacute reunida Lody (2008) defende que muitos

haacutebitos alimentares soacute se desenvolvem na medida em que a casa e sua cozinha

tornaram-se capazes de permitir a reuniatildeo da famiacutelia e amigos Talvez por isso

as cozinhas das casas que visitei fossem amplas mesmo que outros cocircmodos

da casa como a sala fossem pequenos Em todas as cozinhas havia um

cocircmodo acoplado pequeno e que funcionava como despensa A presenccedila de

mais de uma mesa foi comum mesa na cozinha com pelo menos seis cadeiras

e bancos de madeira recostados a uma das paredes a outra mesa ficava em

uma copa ou em uma aacuterea externa geralmente de meia parede tambeacutem

proacutexima agrave cozinha onde foi ficava instalado o forno de barro quando existia em

algumas casas ele costumava estar proacuteximo ao paiol embaixo de uma coberta

Assim esses satildeo os espaccedilos onde ocorre a comensalidade nas famiacutelias

145

sobretudo em ocasiotildees especiais como nos almoccedilos de domingo e nos

momentos de convivecircncia familiar nos finais de ano

A comensalidade no grupo entrevistado ocorre tambeacutem nos eventos

maiores Nesse caso pode-se formar uma rede de cooperaccedilatildeo de trabalho para

fazer os festejos acontecerem Duas mulheres contaram com riqueza de

detalhes sobre as festas de bodas de ouro que ocorreram no quintal das casas

Coincidentemente trata-se de duas famiacutelias de Presidente Bernardes A festa

dos sogros de Lola e Marcos ocorreu no siacutetio dos sogros na comunidade de

Xopotoacute em 2011 A festa de Eliana e Saturnino ocorreu tambeacutem no siacutetio na

comunidade de Itapeva em 2014 Jaacute citei essas duas festas anteriormente ao

falar dos animais que foram abatidos para o almoccedilo Em ambas algumas

caracteriacutesticas satildeo comuns uma delas eacute que a festa aconteceu no quintal o que

segundo Eliana ldquoeacute costume na regiatildeo aqui eacute muito pouca gente que aluga

salatildeo pra fazer festa e mesmo casamento acontece tudo aqui na roccedila mesmordquo

Os vizinhos dos siacutetios proacuteximos foram convidados Filhos e outros parentes que

moram fora tambeacutem estiveram presentes Nas duas festas a comida servida foi

a ldquocomida de roccedilardquo e como jaacute dito antes suiacutenos e frangos criados no local foram

abatidos O prato principal foi a carne o restante foi acompanhamento porque

como destacou Lola ldquoem dias de festa tem que ter muita carne que eacute do que o

povo gostardquo

Eliana contou que as mulheres da vizinhanccedila ajudaram com a

organizaccedilatildeo e tambeacutem a fazer ldquoa comida de veacutespera descascando batata

cozinhando mandioca matando e depenando os frangos para o dia da festa

os meus filhos contrataram umas cozinheirasrdquo

Foi realizada uma missa no paacutetio na frente da sua casa No quintal foram

colocados dois grandes ldquofogotildees de cupimrdquo e seu funcionamento seraacute detalhado

mais agrave frente Nestes fogotildees foram feitos os seguintes pratos macarratildeo com

pato tutu arroz frango frito farinha torrada mandioca frita e batata doce Natildeo

foi servida salada De bebida foram servidos refrigerante e cerveja A sobremesa

servida foi o ldquobolo de festa bem granderdquo que os filhos encomendaram da cidade

Foi muito boa a festa a missa a ajuda das mulheres aqui eacute assim todo mundo ajuda uns aos outros quando precisa Teve muacutesica e danccedila as pessoas podiam danccedilar se quisessem (Eliana Itapeva Piranga MG 2015)

146

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 11 ndash Fogatildeo de cupim no quintal do siacutetio de Eliana e Saturnino em Itapeva

Presidente Bernardes

Para a festa de bodas de ouro dos sogros de Lola estiveram presentes

em torno de 200 pessoas entre familiares e vizinhos de siacutetios proacuteximos Pelas

informaccedilotildees de Lola a festa teve maior investimento em produccedilatildeo Foi colocado

um telatildeo no quintal onde se mostrou a retrospectiva do casal desde o

casamento com montagens de fotos Soltaram muitos foguetes e teve muacutesica

de forroacute com espaccedilo para as pessoas danccedilarem no quintal Os filhos que moram

em cidades vizinhas e em Satildeo Paulo foram os responsaacuteveis pela organizaccedilatildeo

do evento e ao contraacuterio da festa do primeiro casal esta natildeo contou muito com

a participaccedilatildeo cooperativa dos vizinhos Todo o trabalho de veacutespera da cozinha

foi feito pela famiacutelia filhas filhos noras e genros do casal Foram contratadas

matildeo de obra para cozinhar no dia e servir a comida O cardaacutepio desta festa

consistiu de churrasco de carne bovina e suiacutena (a carne suiacutena de produccedilatildeo

local) linguiccedila frango frito arroz salpicatildeo farofa de milho vinagrete e uma

mesa de frutas Assim como na primeira festa nesta tambeacutem natildeo teve um prato

147

de saladas ou verduras refogadas apesar de elas estarem presentes nas

comidas de todo dia

Reportamos a Woortmann (1985) quando ele trata dos convites para

refeiccedilotildees em casa com o objetivo de reestabelecer sociabilidades e que nestas

ocasiotildees o aspecto fisioloacutegico ou nutritivo da alimentaccedilatildeo eacute pouco relevante

Mais importante eacute o papel social que ela exerce para agradar aos olhos ao olfato

e por fim ao paladar Eacute importante que as pessoas ao irem embora da festa

faccedilam elogios agrave comida e por isso ela precisa tambeacutem ser farta Como foi visto

no capiacutetulo 2 a carne em Minas nos primoacuterdios da mineraccedilatildeo era uma raridade

nas refeiccedilotildees e por isso passou a assumir um status simboacutelico importante na

refeiccedilatildeo a partir da fase da ruralizaccedilatildeo Fazer uma festa sem servir muita carne

seria motivo de criacutetica e natildeo de elogios Ao contraacuterio o excesso de carne eacute tanto

valorizado quanto classifica um ldquoalmoccedilo na roccedilardquo como farto e bom

Brandatildeo (1982) em sua pesquisa com agricultores do interior de Goiaacutes

trata da comida de festa na roccedila Para o seu grupo pesquisado o sabor e a

fartura da comida oferecida tambeacutem foi declarado como sendo o principal para

o sucesso de uma festa

O valor da comida ldquoboardquo ldquocom gostordquo estaacute em seu modo de preparo ruacutestico e na fartura o tempero forte ldquomuita banha de porco muito toucinho pimenta agrave vontaderdquo sobre uma comida tambeacutem forte e abundante ldquomuita carne de capado muito arroz e feijatildeo mandioca agrave vontaderdquo (BRANDAtildeO 1982 p 136)

Tambeacutem Falci (1995) relata sobre as festas de casamento na roccedila

regiatildeo do Piauiacute no final do seacuteculo XIX onde muita quantidade de comida era

servida mesmo sendo simples a festa de casamento precisava ser farta e era

tambeacutem importante que se convidasse toda a vizinhanccedila rural

Para a festa havia toda a organizaccedilatildeo pois natildeo se dispunha de armazenamento Os porcos tinham jaacute sido postos a sevar nos chiqueiros e estavam no ponto (de uns 8 a 10 kg cada um) assim como os outros animais Ateacute os parentes ajudavam no abastecimento da festa engordavam leitoas ou perus para a festa da sobrinha ou afilhada e no dia faziam-se assados em muitas casas amigas ou de parentes dos noivos (FALCI 1995 p 260)

Nessas ocasiotildees mais do que em dias normais a comida se apresenta

como um coacutedigo que expressa niacuteveis de relacionamento e de interaccedilatildeo social

como no sentido atribuiacutedo por Douglas (1972) Em festas ou manifestaccedilotildees

culturais tradicionais o alimento assume uma categoria de ldquocomidas-coacutedigordquo que

148

se apresenta com a funccedilatildeo binaacuteria de alimentaccedilatildeo e socializaccedilatildeo sendo

carregada de mensagens simboacutelicas

If food is treated as a code the message it encodes will be found in the pattern of social relations being expressed The message is about different degrees of hierarchy inclusion and exclusion boundaries and transactions across the boundaries Like sex the taking of food has a social component as well as a biological one Food categories therefore encode social events (DOUGLAS 1972 p 61)

Em um saacutebado pela manhatilde em que passei no siacutetio de Ana Luisa e Lucas

(45 e 52 anos respectivamente) na comunidade de Bom Jesus do Bacalhau para

agendar entrevista para a semana seguinte havia uma movimentaccedilatildeo de

pessoas Logo descobri que eram parentes que vieram de Ouro Preto e de Belo

Horizonte para passar o final de semana e como uma das sobrinhas estava

fazendo 15 anos de idade naquele dia a famiacutelia resolveu organizar

improvisadamente uma comemoraccedilatildeo no siacutetio Muitos balotildees coloridos estavam

sendo pendurados no teto e nos pilares da varanda Logo que entrei no corredor

externo que daacute acesso agrave cozinha avistei um bolo de aniversaacuterio sendo montado

O bolo jaacute estava com trecircs camadas e recheado de doce de leite e ameixa

faltando ainda a cobertura que seria com creme de coco Para a execuccedilatildeo do

bolo foram utilizados leite longa vida doce de leite e coco ralado ambos

industrializados O bolo estava sendo feito pelas irmatildes de Ana Luiacutesa enquanto

ela e o marido se dividiam na cozinha preparando ldquotira-gostosrdquo e a carne para o

almoccedilo Em um tacho de ferro sobre a trempe do fogatildeo a lenha Ana Luisa fritava

pedaccedilos de carne de porco e outra panela estava sendo frito o ldquomilhopatilderdquo (Figura

12) produzido por Ana Luisa Esse salgado eacute feito de uma mistura agrave base de

fubaacute caldo de galinha e polvilho azedo Segundo Lucas cujo avocirc foi tropeiro o

ldquomilhopatilderdquo artesanal eacute tradiccedilatildeo em sua famiacutelia e foi com a sogra que Ana Luisa

diz ter aprendido a fazer ldquoTodo mundo gosta a gente vende muito dele laacute no

mercadordquo

149

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 12 ndash Processo de fritura do ldquomilhopatilderdquo

A mesa da cozinha estava posta com rosquinha de sal amoniacuteaco queijo

bolo de milho e cafeacute Fui convidada a tomar ldquoum cafezinho e comer alguma coisardquo

e tambeacutem a experimentar o milhopatilde frito Em um dia tumultuado para a famiacutelia

minha visita se encerrou logo

Pude perceber alguns aspectos relacionados agraves praacuteticas alimentares

que satildeo tratados nesta pesquisa a sociabilidade demonstrada no trabalho

conjunto de organizaccedilatildeo da festa a utilizaccedilatildeo de produtos industrializados na

elaboraccedilatildeo do bolo a produccedilatildeo do ldquomilhopatilde alimento de receita tradicional da

famiacutelia a carne e o torresmo de porco caipira criado no siacutetio Nessas praacuteticas

alimentares desenvolvidas na cozinha dessa famiacutelia estiveram presentes agrave

praticidade em utilizar os produtos industrializados mas tambeacutem a manutenccedilatildeo

de praacuteticas tradicionais sinalizando nessa mescla fatores de permanecircncia e de

mudanccedila no sentido tratado por Poulain (2013) Giard (2012) Cacircmara Cascudo

(2004) e Doacuteria (2014)

A comensalidade tambeacutem ocorre envolvendo formas natildeo tradicionais agrave

cultura local Eacute o caso que ocorre na famiacutelia de Antocircnio e Marieta (78 e 73 anos

respectivamente) Antonio o ex-padeiro jaacute citado aqui que para agradar os netos

ndash crianccedilas e adolescentes que moram em aacuterea urbana ndash quando passam feacuterias

em seu siacutetio promove o que os netos chamam de a noite da ldquoPizzada do vovocircrdquo

Neste evento ele eacute o responsaacutevel por produzir pizzas no forno de barro do siacutetio

Disse jaacute ter virado uma tradiccedilatildeo familiar dos uacuteltimos anos Ele prepara as massas

e convoca os netos para ajudar a rechear as pizzas Esses satildeo momentos de

150

comensalidade familiar muito interessantes aleacutem de comerem juntos produzem

a comida em conjunto Geraccedilotildees diferentes partilhando os saberes e prazeres

da comida e da convivecircncia

A produccedilatildeo das pizzas chamou a atenccedilatildeo por natildeo ser um alimento que

faz parte da cultura da regiatildeo pesquisada Nenhum entrevistado aleacutem de

Antocircnio falou sobre esse alimento Tampouco ela eacute citada por Frieiro (1982) ou

Cacircmara Cascudo (2004) como alimentos consumidos em Minas Colonial A

pizza tem sua origem atribuiacuteda agrave Itaacutelia e passou a ser consumida no Brasil

justamente com a chegada desses imigrantes ao Paiacutes Segundo Antonio e

Marieta as pizzas comeccedilaram a ser produzidas por ele no forno de barro nos

encontros de feacuterias dos filhos e netos no siacutetio Uma de suas filhas mora no Rio

Grande do Sul e eacute casada com um descendente de italiano Com um nuacutemero

grande de familiares em casa nessas ocasiotildees e para agradar aos netos

Antocircnio que domina a atividade de panificaccedilatildeo optou em aprender a fazer as

pizzas Um exemplo de hibridismo cultural alimentar em funccedilatildeo de haacutebitos

diferentes de membros da famiacutelia O avocirc valorizando o habito alimentar dos

netos e praticando ao mesmo tempo a atividade de produzir massas que

considera como muito prazerosa Outro aspecto interessante eacute que se trata de

um alimento associado ao mercado fast food nos centros urbanos mas no caso

especificamente dessa famiacutelia o seu consumo tem uma loacutegica que se associa

ao ritmo do slow food

Juntar a famiacutelia para fazer a ldquopizzada do vovocircrdquo eacute uma forma de Antonio

resgatar esse tempo vivido onde era produzida grande quantidade de quitandas

aleacutem de patildees e eacute para os netos um importante momento de aprendizado com o

avocirc como aquele que agrega a famiacutelia usando da comida e assim assumindo

seu papel de guardiatildeo da cultura Nos dias atuais segundo o casal o forno de

barro raramente eacute utilizado soacute mesmo em dias de festa nos finais de ano Nos

depoimentos de Antonio estaacute presente a memoacuteria afetiva ligada agraves praacuteticas

culinaacuterias que lhe foram muito presentes no passado mas que se distancia do

seu cotidiano na contemporaneidade Natildeo por acaso a chegada dos netos eacute

sempre um evento ansiosamente esperado pelo casal

151

533 Os doces

Em relaccedilatildeo agraves frutas as mais comuns nos pomares e quintais eram a

laranja bahia e serra drsquoaacutegua a poncatilde a mexerica o limatildeo galego ou limatildeo

capeta o limatildeo taiti a goiaba a banana a jabuticaba o figo a cidra a pitanga

a acerola a amora a manga e o abacate As frutas satildeo consumidas de acordo

com a sazonalidade e algumas mesmo estando presentes natildeo satildeo

preferenciais como eacute o caso do mamatildeo exceto para fazer doce de mamatildeo

verde Os sucos mais consumidos satildeo de laranja acerola limatildeo e manga

Os doces mais produzidos a partir de frutas locais satildeo os de goiaba

banana e figo Em uma das famiacutelias tive a oportunidade de provar dois doces

receacutem elaborados por Marieta moradora de Boa Vista Piranga doce de ameixa

em calda e doce de figo

Cacircmara Cascudo (2004) relata que o doce representava grande

importacircncia social no periacuteodo Colonial brasileiro heranccedila de Portugal Quando

se queria presentear algueacutem ou homenagear uma bandeja de doce era sempre

uma excelente escolha Era considerado uma boa qualidade feminina saber

fazer o doce de receita de famiacutelia e esse ensinamento era repassado agraves jovens

pelas matildees Tambeacutem Algranti (2007) destaca que nesse periacuteodo os doces natildeo

faziam parte do trivial mas de eventos festivos e por isso consideradas iguarias

Mesmo que com o tempo eles tenham ganhado espaccedilos mais populares e

vendidos em tabuleiros nas ruas

Essa relaccedilatildeo com os momentos especiais descrito pela autora parece

persistir na regiatildeo pesquisada Dentre as famiacutelias que entrevistei a elaboraccedilatildeo

de doces natildeo eacute uma atividade culinaacuteria cotidiana seu consumo e fabricaccedilatildeo

estatildeo associados aos dias de domingo e agraves datas festivas sobretudo agraves festas

de final de ano Natal e Ano Novo

Laurinda 77 anos moradora de Tatu em Piranga relatou que fazia

doces para agradar a todos os filhos quando havia festas de aniversaacuterio em casa

quando eles ainda eram crianccedilas e adolescentes ldquoPara aquele que preferia

rocambole eu fazia rocambole para aquele que preferia pudim eu fazia pudim

agradava a todos os filhos eu gostavardquo

Zefa 67 anos moradora de Mato Dentro em Presidente Bernardes

tambeacutem disse gostar das eacutepocas de elaborar doces Para as festas de final de

152

ano ela comeccedila a fazer um mecircs antes do Natal Os doces tradicionais da sua

famiacutelia satildeo o rocambole de doce de leite e o doce de figo Ela descreveu o

processo de elaboraccedilatildeo

O doce de leite eu comeccedilo a fazer ele agraves 0800 e soacute vou tirar ele do fogo agraves 14 horas ponho num tacho grande ele vai fervendo aos pouquinhos ateacute secar e ficar cremoso mas tem que ser com leite de roccedila leite gordo e leva pouco accediluacutecar Para 8 litros e leite soacute duas xiacutecaras de accediluacutecar O doce de figo antigamente quando natildeo tinha geladeira a gente tinha que ficar fervendo ele para ele natildeo azedar enquanto tivesse doce tinha que fazer isso Hoje natildeo a gente faz o doce e guarda na geladeira e fica verdinho e pode ficar muito tempo guardado (Zefa 67 anos moradora da Comunidade Mato Dentro Presidente Bernardes MG 2015)

O depoimento de Zefa deixa transparecer a dedicaccedilatildeo de tempo ao

preparo do doce e a tenccedilatildeo cuidadosa agraves etapas para natildeo passar do ponto Natildeo

se podia ter pressa Por isso a elaboraccedilatildeo dos doces eram atividades

esporaacutedicas para eventos especiais principalmente para as festas de final de

ano consideradas eventos familiares de grande importacircncia para essas famiacutelias

Percebi durante a pesquisa que essa percepccedilatildeo permanece entre as mulheres

ao falarem da elaboraccedilatildeo dos doces Haacute nos gestuais descritos por Zefa uma

relaccedilatildeo semelhante ao que eacute tratado por Giard (2012) ao relacionar ao trabalho

das cozinheiras de tempos passados em que a paciecircncia para conduzir as

praacuteticas culinaacuterias era a tocircnica

Outrora a cozinheira se servia de um instrumento simples de tipo primaacuterio cujas funccedilotildees tambeacutem eram simples era ela que dirigia o desenrolar da operaccedilatildeo vigiava a sucessatildeo dos momentos da sequecircncia de accedilatildeo e podia representar mentalmente o processo Nessa forma de cozinhar havia uma habilidade de artesatildeo empenhado em aperfeiccediloar seu meacutetodo ou variar suas produccedilotildees (p 284)

Outros dois pontos no depoimento de Zefa merecem destaque O

primeiro quando ela fala de um tempo em que a geladeira natildeo existia Havia a

necessidade de ferver constantemente o doce para natildeo estragar Aqui presente

a relaccedilatildeo com a modernidade Atualmente com o acesso agrave geladeira esse

trabalho foi reduzido Nesse sentido eacute preciso considerar o quanto a tecnologia

industrial facilitou a fabricaccedilatildeo de alimentos sem que necessariamente tenha

alterado a obtenccedilatildeo de um produto de igual qualidade e sabor Zefa continua

fazendo o doce de figo assim como as outras mulheres mas utilizando uma

tecnologia de conservaccedilatildeo moderna e muito importante

153

O segundo ponto diz respeito ao uso do tacho Todas as mulheres que

entrevistei tinham um tacho de cobre que foi herdado de matildee da avoacute ou que foi

comprado por elas Fazer doces em tacho de cobre faz parte da tradiccedilatildeo da

culinaacuteria em vaacuterios lugares do Brasil Poreacutem haacute atualmente uma discussatildeo sobre

o seu uso Em Minas Gerais a Vigilacircncia Sanitaacuteria Estadual proibiu o seu uso

para fabricaccedilatildeo de doces em funccedilatildeo dos resiacuteduos toacutexicos que podem ser

liberados exceto se forem revestidos por banho de ouro prata niacutequel ou

estanho material que natildeo estatildeo presentes nos tachos mais comuns na zona

rural o mais comum e mais barato eacute o revestimento em estanho Surgiu em

funccedilatildeo disso movimentos que defendem a manutenccedilatildeo do uso do tacho de

cobre e que eacute possiacutevel conscientizar as pessoas sobre o uso e higienizaccedilatildeo

correta do tacho sem extinguir seu uso Zefa por exemplo limpa o seu tacho

com sal e limatildeo para retirar todo o azinhavre44 Aleacutem do tacho de cobre haacute o caso

da colher de pau cuja proibiccedilatildeo fez surgir o ldquoManifesto Colher de Paurdquo de autoria

do antropoacutelogo da alimentaccedilatildeo Raul Lody e apoiado pelo FBSSAN (Foacuterum

Brasileiro de Soberania e Seguranccedila Alimentar e Tradicional) O objetivo do

Manifesto eacute cobrar dos oacutergatildeos fiscalizadores um canal de discussatildeo com a

sociedade civil no sentido de encontrar soluccedilotildees menos radicais como a

extinccedilatildeo de usos tradicionais na fabricaccedilatildeo de doces e outros produtos

culinaacuterios45

Joana 39 anos moradora de Jacuba em Porto Firme contou sobre a

festa de casamento de uma parente que aconteceu na roccedila e em que todos os

doces servidos foram feitos pelas mulheres da famiacutelia e outras amigas do casal

Ela proacutepria ajudou na elaboraccedilatildeo Fizeram goiabada figo doce de leite

cajuzinho brigadeiro doce de aboacutebora com coco e outros

A Figura 13 mostra o doce de ameixa que Marieta estava preparando

Trata-se da ameixa vermelha (tambeacutem conhecida como ameixa japonesa) Natildeo

eacute uma fruta muito comum na regiatildeo da pesquisa mas Marieta possui uma aacutervore

que todos os anos daacute muito fruto e ela aproveita para fazer o doce que eacute muito

saboroso

44 Nome que se daacute a oxidaccedilatildeo do cobre a camada esverdeada que resulta desse processo 45 Para ver mais sobre o Manifesto e acessaacute-lo na iacutentegra ver o site da FBSSAN (httpwwwfbssanorgbr

indexphpoption=com_contentampview=articleampid=419manifesto-colher-de-pauampcatid=79ampItemid=672ampl ang=pt-br)

154

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 13 ndash Doce de ameixa feito por Marieta na comunidade Boa Vista em Piranga MG

54 A comensalidade para aleacutem das festas e datas especiais

A comensalidade ocorre de forma diferenciada nas famiacutelias

pesquisadas Em todas elas a maior frequecircncia eacute no jantar indicando o

fechamento de um dia de trabalho mesmo que ela se decirc na sala com o prato

na matildeo e assistindo agrave programaccedilatildeo da TV costume citado pela maioria das

famiacutelias Nesses momentos a conversa gira em torno dos assuntos divulgados

no programa (em geral o telejornal)

Se natildeo se daacute nesse ambiente ela ocorre na cozinha e em ambos os

casos natildeo eacute um momento demorado Mas a comensalidade ocorre sempre no

cafeacute da manhatilde jaacute que quase todos se levantam na mesma hora e tomam o cafeacute

juntos O cafeacute da manhatilde tambeacutem ldquotoma-se ligeirordquo muitas vezes de peacute que ldquoeacute

para natildeo dar preguiccedilardquo observou Carlos (morador de Posses em Porto Firme)

No horaacuterio de almoccedilo dos dias de semana as refeiccedilotildees satildeo feitas em tempo

curto e o assunto costuma ser basicamente em torno de trabalho pelo menos

foi o presenciei nas casas onde almocei A possibilidade de a famiacutelia estar

reunida para o almoccedilo iraacute depender da disponibilidade de tempo e das atividades

de quem estaacute agrave frente do trabalho no local Nas famiacutelias onde as mulheres

trabalham fora do siacutetio elas raramente estatildeo presentes para essa refeiccedilatildeo

quase sempre soacute aos finais de semana As crianccedilas chegam entre 1200 e 1230

155

horas e eacute comum almoccedilarem na escola Neste caso a comensalidade das

crianccedilas e das mulheres ocorre com outro grupo que natildeo o familiar Natildeo haacute uma

restriccedilatildeo para que a comensalidade se decirc apenas no grupo familiar O proacuteprio

conceito definido por Poulain (2013) destaca isso bem como a discussatildeo de

Fladrin e Montanari (1998) sobre o assunto

Em uma das casas visitadas em Presidente Bernardes almoccedilamos na

mesa da cozinha apenas eu e a Nanaacute (dona da casa) O filho que estava

trabalhando na lavoura de cafeacute saiu de moto pouco antes do almoccedilo para buscar

uma ferramenta de trabalho no siacutetio da irmatilde o marido foi almoccedilar em outro

cocircmodo escutando o raacutedio e a filha que trabalha na cidade e almoccedila em casa

serviu o seu prato e foi almoccedilar na frente da televisatildeo na sala Perguntei a Nanaacute

se eles natildeo costumavam almoccedilar juntos na cozinha ela apenas sorriu e disse

ldquoEacute assim mesmo tem dia que eles preferem ir para laacuterdquo Apesar de sua resposta

fiquei na duacutevida se o motivo de isso ter ocorrido foi minha presenccedila afinal

tratava-se de uma pessoa desconhecida O marido Custoacutedio participou da

conversa todo o tempo ateacute o almoccedilo ser servido Me mostrou a lavoura de cafeacute

e a local onde passaraacute o mineroduto cortando seu siacutetio46 e me explicou o

funcionamento do moinho eleacutetrico A filha chegou pouco antes do almoccedilo e

pudemos conversar um pouco quando ela falou do curso que faz na modalidade

agrave distacircncia e de seus planos para o futuro Em todas as outras famiacutelias almocei

em companhia dos que estavam em casa e natildeo percebi constrangimento

semelhante embora tenha observado uma certa timidez inicial principalmente

por parte dos homens e talvez por isso os diaacutelogos eram curtos Em quase

todas as casas escutei expressotildees que tinham conotaccedilatildeo semelhante ldquoVocecirc

natildeo repara natildeoa comida eacute simplesrdquo Entendi isso como uma reaccedilatildeo normal a

uma visita que eacute de fora do seu nuacutecleo iacutentimo Os homens se levantavam e se

ausentavam da cozinha assim que terminaram a refeiccedilatildeo e as mulheres lavavam

a louccedila

Se hoje eacute mais faacutecil para as pessoas interromperem o trabalho e

almoccedilarem em casa em tempos passados a situaccedilatildeo era diferente Quando o

trabalho era mais intenso as atividades eram quase ininterruptas e as refeiccedilotildees

46 Boa parte do siacutetio de Nanaacute e Custoacutedio seraacute desapropriado em funccedilatildeo da passagem do Mineroduto Isso

tem gerado efeitos em suas vidas desde que o processo se iniciou O processo se arrasta haacute anos e eles natildeo sabem muito bem o que vai acontecer Continuam plantando e vendendo o cafeacute que comercializam e outras pequenas lavouras como milho e cana enquanto aguardam o desenrolar da situaccedilatildeo

156

aconteciam distante da casa com o uso de marmitas como explica Neuzeli

moradora de Vinte Alqueires em Porto Firme

O almoccedilo quando o povo trabalhava na roccedila diretoos trabalhadores comiam de marmita Eu arrumava uma marmita caprichadinha para meu marido e meus filhos Mas na casa de meus pais natildeo levava marmita natildeo levava era uns panelotildees grandes de comida em um punha feijatildeo em outro punha a sopa de mandioca ou de inhame com uns pedaccedilos de carne e tinha que encaixar aqui no ombrocomo uma canga e necessitava de duas e trecircs pessoas para levar E laacute na roccedila juntava todo mundo pra comer junto cada um servia o seu coiteacute47 (Neuzeli 63 anos moradora de Vinte Alqueires Porto Firme MG 2015)

Mais um exemplo de como a comensalidade ocorria nas aacutereas rurais

por mais raacutepidas que fossem as refeiccedilotildees Este exemplo assim como aquele em

que as refeiccedilotildees ocorrem na sala assistindo televisatildeo falam de momentos de

comensalidade onde a presenccedila do objeto ldquomesardquo natildeo eacute necessaacuterio precisa-se

eacute que os momentos das refeiccedilotildees sejam partilhados por mais de uma pessoa

55 Mescla cultural praacuteticas de consumo alimentar de ontem e de hoje

Tem sido comum nos uacuteltimos anos na regiatildeo pesquisada a circulaccedilatildeo

de veiacuteculos que comercializam frutas hortaliccedilas e legumes Os alimentos satildeo

vendidos aos moradores locais mas tambeacutem para os pequenos comeacutercios

rurais Por razotildees diversas alguns agricultores estatildeo optando em comprar

determinados produtos in natura ao inveacutes de cultivaacute-los O principal motivo citado

foi a estiagem dos uacuteltimos anos aliado ao custo-benefiacutecio (praticidade ndash preccedilo)

Satildeo vendidos produtos tais como batata inglesa inhame batata doce moranga

banana alface laranja tomate maccedilatilde pera abacaxi e outros Segundo os

interlocutores os produtos satildeo do CEASA

Aqui em Presidente tem caminhatildeo que vem vender fruta e verdura pro povo das roccedilas Aqui em casa noacutes compramos agraves vezes mas eacute maccedilatilde que aqui natildeo daacute mamatildeo tambeacutem porque aqui natildeo daacute mamatildeo bom mais mas eacute soacute mas eu vejo gente aqui comprando inhame mandioca do caminhatildeo ah isso eu natildeo concordo natildeo (Germana 58 anos moradora de Mato Dentro em Presidente Bernardes MG 2015)

Tem muita gente na roccedila hoje que taacute eacute comprando mesmoeles acham difiacutecil criar um frangopreferem compraraqui o frango eacute criado soltono quintaldaacute uns frangos bons gordinhosalguns falam assim gente daqui mesmo que fica mais caro plantar do que

47 Cuia feita a partir do fruto da aacutervore Coiteacute que depois de colhido maduro cortado ao meio e retirado as

sementes eacute utilizado como utensiacutelio na cozinha e em outras atividades

157

comprar ai eu falo para eles que agraves vezes fica mesmo soacute que plantar a gente gasta devagar e se for para comprar a gente tem que tirar tudo de uma vez soacute para pagar aquele montatildeo aleacutem disso tem a sauacutede a gente compra tudo hoje com remeacutedio esses frangos ai de granja eu sei porque meu cunhado tem uma granja aquilo ali o pintinho chega com 45 dias ele jaacute eacute frango pra abate e isso natildeo eacute com comida soacute que consegue natildeodeve ter algum remeacutedio ali (Maacuterio 44 anos morador de Posses em Porto Firme MG 2015)

Os interlocutores na pesquisa disseram que compram tais alimentos

muito raramente soacute mesmo em situaccedilotildees muito especiacuteficas como estiagem

longa um exemplo eacute o da alface que no ano de 2015 quando foi realizado o

trabalho de campo teve produccedilatildeo muito ruim assim como algumas outras

hortaliccedilas Segundo as informaccedilotildees que deram essa forma de aquisiccedilatildeo eacute

relevante entre essas famiacutelias Os aposentados que natildeo possuem filhos para

ajuda-los na produccedilatildeo ponderaram que natildeo acham ruim o caminhatildeo levar esses

produtos ateacute eles porque muitas vezes a produccedilatildeo de alguns alimentos eacute muito

pequena e quando acaba eles precisam mesmo comprar e se o caminhatildeo vai

ateacute os siacutetios isso facilita natildeo se trata todavia de um costume mas de uma

ocorrecircncia esporaacutedica

O depoimento anterior de Mario demonstra uma preocupaccedilatildeo que foi

manifestada por outros entrevistados tambeacutem Haacute nas famiacutelias uma grande

preocupaccedilatildeo com agrotoacutexicos ateacute por isso evitam cultivar tomate como jaacute

mencionado anteriormente Pelo fato de os alimentos serem provenientes do

CEASA a desconfianccedila em relaccedilatildeo a eles eacute fator de resistecircncia no consumo

acreditam que os alimentos possuem ldquomuito venenordquo Assim esses alimentos

representam para eles o oposto dos alimentos que produzem nos proacuteprios siacutetios

considerados como mais saudaacuteveis do que os comprados Novamente pode-se

associar essa preocupaccedilatildeo agrave ldquoangustia alimentarrdquo tratada por Fischler (1995 e

2011)

Esse tipo de comercializaccedilatildeo tambeacutem foi identificado por Sacco dos

Anjos et al (2010) em sua pesquisa na regiatildeo rural de Pelotas no Rio Grande

do Sul Os consumidores de laacute tinham como justificativa a especializaccedilatildeo em

uma determinada atividade produtiva como fruticultura e aviaacuterio A falta de

tempo para produzir para autoconsumo e o alto custo da produccedilatildeo os fez

priorizar a aquisiccedilatildeo dos alimentos que consumiam no dia a dia

158

Apesar de os alimentos cultivados no siacutetio predominarem na alimentaccedilatildeo

das famiacutelias os alimentos industrializados tambeacutem satildeo consumidos Pude ver

alguns desses produtos expostos em moacuteveis da cozinha Outros foram

informados pelos entrevistados A lista dos industrializados consta de manteiga

margarina oacuteleo de soja sal arroz biscoito de polvilho biscoito de maisena

biscoito de aacutegua e sal farinha de trigo farinha de milho farinha de mandioca

leite longa vida leite de soja accediluacutecar macarratildeo massa de tomate polvilho leite

condensado e poacute de cafeacute (naquelas famiacutelias que natildeo o produz ou quando o

produto local acaba) Natildeo houve registro de compra de refrigerantes (usado

apenas em ocasiotildees festivas) alimentos congelados (massas patildees de queijo e

carnes etc) embutidos (salsichas presunto mortadela) Nem todos os produtos

listados satildeo consumidos por todas as famiacutelias trata-se de uma lista de produtos

consumidos pelo montante das famiacutelias

Duas das famiacutelias de Piranga a de Ana Luisa e Lucas e a de Juliana e

Jacinto satildeo proprietaacuterias de um pequeno comeacutercio rural nas comunidades de

Bacalhau e Tatu respectivamente Em ambos eacute comercializado parte do que

produzem nos siacutetios Os alimentos mais vendidos satildeo oacuteleo vegetal arroz (que

passou a ser vendido haacute cerca de 15 anos quando se reduziu drasticamente o

cultivo nas regiotildees) farinha de trigo biscoito de polvilho do tipo ldquopapa-ovordquo

macarratildeo massa de tomate ovos (de granja) nos periacuteodos mais frios do ano

porque a produccedilatildeo de ovos de galinhas caipiras diminui e finalmente a laranja

(da CEASA) a partir dos meses de novembro quando a produccedilatildeo nos pomares

diminui

A escolha de consumo referente aos alimentos industrializados pelas

famiacutelias se daacute pela praticidade aliada a preccedilo pela necessidade de consumo ou

por terem se tornado inviaacuteveis a sua produccedilatildeo nos siacutetios Eacute o caso do arroz do

polvilho do accediluacutecar da rapadura do biscoito de polvilho assado e da manteiga

Sobre as opccedilotildees atuais de consumo e as mudanccedilas nos modos de vida os

depoimentos abaixo apresentam importantes reflexotildees

O ritmo na roccedila taacute muito corrido parece que o pessoal natildeo tem muito prazo mais de ficar cuidando das coisas igual antigamente acho que o pessoal tambeacutem era mais pobre precisava trabalhar mais na roccedila pra produzir e arrumar renda hoje consegue comprar mais coisa Antes soacute compravam sal agora eacute mais faacutecil comprar de tudo antes todo mundo plantava arroz e colhia agrave vontade e ainda sobrava para vender (Joel 71 anos morador de Limeira em Porto Firme MG 2015)

159

A gente compra muita coisa que natildeo compensa mais produzir e nem gente suficiente para produzir aqui na roccedila Tem coisa que natildeo daacute pra produzir aqui igual macarratildeo e rapadura natildeo daacute mais pra fazer nem arroz porque natildeo compensa cafeacute a gente ainda planta um pouquinho e feijatildeo mas soacute daacute para o gasto mesmo (Joseacute 47 anos morador de Mato Dentro Presidente Bernardes MG 2015)

Outro item comprado por todos eacute o accediluacutecar cristal que veio a substituir a

rapadura o accediluacutecar mascavo e o melado que antigamente eram produzidos

Mesmo nas famiacutelias que ainda possuem um pequeno engenho o accediluacutecar cristal

tambeacutem eacute consumido por exemplo para adoccedilar o suco de frutas fazer bolo

broa e outras quitandas Segundo os meus interlocutores o uso do accediluacutecar cristal

industrializado eacute recente datando de cerca de 30 anos

Meus pais tinham um engenho de cana e faziam rapadura e melado hoje a gente planta cana soacute para dar agraves vacasos que que tinham engenho e que continuam a plantar cana usam soacute para produzir cachaccedila ou alimentar as vacas (Lucas 52 anos morador de Bom Jesus do Bacalhau em Piranga MG 2015)

A gente fazia muito melado accediluacutecar mascavo rapadura meus filhos cresceram comendo inhame com melado era muito gostoso e um alimento forte (Luisa 57 anos moradora de Bom Retiro em Porto Firme MG 2015)

Marilia 65 anos moradora de Mestre Campos em Piranga explica

como a sua avoacute fazia o que denominava de ldquoaccediluacutecar brancordquo mas que nada tem

a ver com o accediluacutecar cristal industrializado Recebia esse nome porque era mais

claro do que o accediluacutecar mascavo constituiacutea tambeacutem em um modo ruacutestico de

fabricar o accediluacutecar no siacutetio conforme sua descriccedilatildeo

Ela batia o caldo para rapadura mas sem chegar no ponto de rapadura ai colocava essa massa numa mesa de madeira com beiral por cima da massa ainda quente ela colocava argila escura e deixava no dia seguinte a massa ficava toda quebradiccedila e bem mais clara do que a mascavo Tirava os torrotildees de argila que ficavam bem sequinhos e duro e ficava soacute o accediluacutecar (Marilia 65 anos moradora de Mestre Campos em Piranga MG 2015)

Sobre o que chamei de mescla alimentar no subtiacutetulo ou seja o

consumo concomitante de produtos tradicionais e produzidos pelas proacuteprias

famiacutelias e aqueles adquiridos no mercado ou no caminhatildeo o que a pesquisa

apontou eacute que apesar de as famiacutelias considerarem que o sabor do fubaacute e do

accediluacutecar ficou ruim comparando-se ao que conheceram anos atraacutes as famiacutelias se

mostraram adaptadas ao consumo das formas atuais desses produtos O arroz

permanece nas refeiccedilotildees de todos os dias mesmo sendo industrialmente

160

produzido De forma semelhante o fubaacute do moinho eleacutetrico continua sendo

usado para a fabricaccedilatildeo da broa e do angu a serem consumidos cotidianamente

O accediluacutecar cristal eacute usado com frequecircncia para adoccedilar bolos sucos cafeacutes e

doces Natildeo observei no grupo pesquisado resistecircncia aos produtos

industrializados que consomem Apenas o consumo do oacuteleo vegetal sofreu um

pouco de rejeiccedilatildeo embora tenha sido bem aceito para preparo de frituras exceto

para o casal Eliana e Saturnino que continua resistindo em consumi-lo

O arroz natildeo perdeu a importacircncia que tinha por ser industrializado nem

o fubaacute perdeu seu lugar nas refeiccedilotildees e nas quitandas de todos os dias por deixar

de ser produzido no moinho drsquoaacutegua tampouco a manteiga deixou de ser

consumida por ser industrializada e a margarina eacute usada na elaboraccedilatildeo de bolo

e quitandas embora natildeo seja usada para passar no patildeo O que percebi foi uma

certa resignaccedilatildeo dos meus interlocutores diante de uma realidade alimentar em

transformaccedilatildeo uma vez que as mudanccedilas em curso natildeo ocasionaram draacutesticas

adaptaccedilotildees alimentares Na medida do possiacutevel continuam a comer o que

sempre comeram e a preparar os alimentos da forma que sempre fizeram seus

pais Isso sinaliza que a cultura eacute dinacircmica e estaacute em constante transformaccedilatildeo

Em funccedilatildeo de eventos diversos novos elementos vatildeo surgindo outros vatildeo

sendo incorporados Alguns permanecem na memoacuteria e nas histoacuterias das

famiacutelias assim como outros caem no esquecimento

56 As quitandas para a merenda e para servir agraves visitas

O termo quitanda segundo Silva (2014) e Dourado (2006) origina da

palavra Kitanda da liacutengua quimbundo falada em Angola No Brasil em Minas

Gerais principalmente assumiu a significaccedilatildeo tambeacutem para comidas feitas nos

intervalos das refeiccedilotildees e agrave noite antes de dormir

Nas famiacutelias pesquisadas as quitandas satildeo elaboradas com frequecircncia

Sempre que estatildeo proacuteximas de acabar eacute o momento de fazer outra fornada mas

os dias de saacutebado especialmente satildeo os dias de abastecer a casa para receber

as visitas no domingo que geralmente satildeo a proacutepria famiacutelia os filhos os netos

e mesmo os irmatildeos Nos demais dias da semana a quitanda natildeo pode faltar

pois supre a necessidade diaacuteria pelas merendas A principal quitanda eacute a

ldquorosquinha de sal amoniacuteacordquo que tive a oportunidade de experimentar Algumas

161

mulheres tambeacutem a produzem sob encomenda geralmente para moradores das

cidades proacuteximas As outras quitandas comuns satildeo a broa e o bolo de milho O

cobu de milho (Figura 14) que eacute uma broa enrolada e assada em folha de

bananeira jaacute foi muito comum nas famiacutelias mas por ser de elaboraccedilatildeo mais

trabalhosa foi deixando se ser produzido e hoje o eacute muito raramente Agraves vezes

nos finais de ano quando as casas ficam cheias com a chegada dos filhos e

outros parentes algumas quitandas tradicionais satildeo resgatadas pelas famiacutelias

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 14 ndash Broa do tipo Cobu ou ldquopau a piquerdquo

A broa de fubaacute da Figura 15 havia receacutem-saiacutedo do forno e fui a primeira

a experimentar ainda em temperatura morna Comer bolo quente possui um

prazer especial e muitas pessoas tem essa preferecircncia Natildeo eacute pelo sabor mas

sim pelo fato de saber que se trata de bolo fresco que acaba de sair do forno

com o seu perfume ainda espalhado pelo ambiente A broa feita por Eliana (69

anos moradora de Itapeva Presidente Bernardes) me fez sentir essa sensaccedilatildeo

e neste momento minha memoacuteria afetiva eacute que me levou de volta agrave infacircncia no

siacutetio de meus avoacutes e me trouxe o cheiro que exalava de sua cozinha pela manhatilde

Neste momento da pesquisa senti fortemente a atuaccedilatildeo do tal ldquoimponderaacutevel da

pesquisardquo ao ser recebida com essa delicadeza tatildeo presente nas mulheres

162

rurais com quem tive o prazer de conviver durante a pesquisa Sensaccedilatildeo

semelhante tive ao chegar para a entrevista no siacutetio de Marilia (65 anos

moradora de Mestre Campos em Piranga) e encontrar uma mesa posta com

bolo queijo suco e cafeacute As conversas foram longas com essas e outras

mulheres Experimentei durante a pesquisa o poder da comensalidade

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 15 ndash Broa de fubaacute feita por Eliana em Itapeva Presidente Bernardes

Menos comuns de serem feitos satildeo o bolo agrave base apenas de farinha de

trigo e a ldquorosca da rainhardquo que eacute um tipo de patildeo e que utiliza a farinha de trigo e

fermento bioloacutegico que satildeo opccedilotildees agrave broa de milho Como quitandas

caracteriacutesticas da regiatildeo pesquisada eu elegeria as duas que satildeo consumidas

em todas as casas em que estive broa de fubaacute e rosquinha de sal amoniacuteaco

Mesmo naquelas casas em que natildeo se faz a rosquinha ela eacute consumida porque

eacute comprada nas proximidades

A elaboraccedilatildeo de quitandas sempre foi fundamental na zona rural desde

os tempos dos avoacutes Tanto em tempos atraacutes quanto na contemporaneidade ela

eacute a principal ldquomerendardquo nas famiacutelias Nos tempos antigos os motivos para ter a

despensa abastecida com quitandas eram o difiacutecil acesso agraves cidades e a

necessidade de economizar com essa alimentaccedilatildeo Mas pelos depoimentos das

mulheres com quem conversei e ainda segundo Frieiro (1982) as razotildees satildeo

tambeacutem culturais e simboacutelicas No periacuteodo colonial em Minas quitanda era algo

163

que se fazia em todas as casas nos fornos de barro Era uma caracteriacutestica de

virtude que se atribuiacutea agrave mulher Para ser considerada prendada a mulher

precisava ser boa quitandeira assim cada uma devia dominar bem uma receita

de quitanda que fosse sempre elogiada por quem a degustasse Freyre (2007)

tambeacutem reforccedila a valorizaccedilatildeo dada agrave mulher que dominasse muito bem a

elaboraccedilatildeo de uma receita Essas receitas soacute se passavam oralmente e a

pessoas muito iacutentimas geralmente para agraves filhas e netas

Nas famiacutelias pesquisadas essa tradiccedilatildeo perpetuou com poucas

modificaccedilotildees ao longo do tempo As receitas elaboradas satildeo as mesmas que as

matildees tias e avoacutes faziam Atualmente os siacutetios das famiacutelias pesquisadas natildeo

distam mais do que 20 quilocircmetros das cidades mais proacuteximas mas ainda assim

as idas agrave cidade exceto para quem laacute trabalha ou estuda natildeo eacute constante O

normal eacute o deslocamento com o objetivo de fazer compras receber

aposentadoria eou resolver outros assuntos e ir agrave missa uma vez ao mecircs

Assim semelhantemente aos que ocorria nos tempos passados dos

antepassados ldquoeacute preciso ter a quitanda pronta para o caso de chegar uma visita

e ter o que servir com um cafeacuterdquo

As quitandas a gente faz em casa Broa eu faccedilo todos os dias Broa de fubaacute agraves vezes bolo de farinha o biscoito eacute comprado mas eu faccedilo rosquinha Aqui na roccedila a gente tem que estar prevenida porque se chegar algueacutem a gente natildeo tem tempo de fazer e nem tem onde achar as coisas perto A venda natildeo tem muita coisachega uma visita raacutepidanatildeo daacute nem tempo pra fazer as coisas entatildeo tem que ter uma broa pronta um bolinho uma rosquinha (Lucia 61 anos moradora de Manja em Piranga MG 2015)

Na fala acima Lucia se refere a biscoito e rosquinha Biscoito para eles

eacute o que se compra como o de polvilho assado ndash que tambeacutem eacute consumido com

muita frequecircncia - o de maisena e o de aacutegua e sal para eles pode-se servir os

biscoitos comprados para as visitas mas eacute preciso ter tambeacutem uma quitanda

feita em casa neste caso a broa ou a rosquinha A expressatildeo ldquobolinhordquo natildeo se

refere a bolinho de alguma coisa como ldquobolinho de chuvardquo mas ao bolo no

diminutivo modo comum de se expressar em Minas Gerais

Em tempos passados a elaboraccedilatildeo das quitandas era tambeacutem um

momento de socializaccedilatildeo havia mais mulheres envolvidas no trabalho

geralmente matildees e filhas como citaram minhas interlocutoras As rosquinhas e

broinhas de rapadura o cobu e outras quitandas eram armazenadas em grandes

164

latas bem vedadas para natildeo perder a textura e o sabor De maneira semelhante

se dava o armazenamento na ocasiatildeo da pesquisa Poreacutem o espaccedilo de

socializaccedilatildeo no preparo natildeo eacute como outrora mas um trabalho feito de forma

praticamente individualizada Em algumas ocasiotildees como em periacuteodos de feacuterias

das filhas pode ocorrer de haver uma filha que ajude mas natildeo eacute a regra Poreacutem

trata-se de uma atividade de execuccedilatildeo totalmente feminina

No dia da entrevista com Zefa (67 anos moradora de Mato Dentro

Presidente Bernardes) natildeo havia quitanda sendo preparada no forno a lenha

mas sim um tabuleiro grande de amendoim em casca colhido no quintal que

estava sendo torrado para a elaboraccedilatildeo do lsquocajuzinhorsquo doce que seria servido

na festinha de aniversaacuterio de um ano do neto que mora na cidade de Presidente

Bernardes Ela e suas filhas que moram na cidade iriam organizar juntas essa

festinha familiar

As quitandas satildeo assadas atualmente nos fornos do fogatildeo a lenha jaacute

que os fornos de barro soacute compensam ser acesos para assar grandes

quantidades Assim a broa por ser mais simples eacute assada durante o preparo

do almoccedilo jaacute as rosquinhas satildeo assadas na parte da tarde quando as mulheres

estatildeo mais livres dos outros trabalhos por necessitarem de maior tempo na

elaboraccedilatildeo e muita atenccedilatildeo ao tempo de forno A massa da broa ou do bolo eacute

batida agrave matildeo apesar de a batedeira estar presente em todas as cozinhas e que

satildeo quase sempre presente de filhos ldquoEu bato bolo eacute na matildeo mesmo soacute uso

batedeira quando um faccedilo o ldquobolo drsquoaacuteguardquo que precisa de clara em neverdquo

(Neiva 41 anos moradora de Posses em Porto Firme) No caso de Mariacutelia (62

anos moradora de Mestre Campos Piranga) a batedeira que possui pertenceu

agrave sogra e fica guardada no soacutetatildeo da casa muito raramente utilizada A

praticidade atribuiacuteda agraves batedeiras natildeo convenceu as mulheres que entrevistei

Na realidade elas consideram mais trabalhoso lavar as paacutes da batedeira do que

bater a massa do bolo e da broa na matildeo O uso para as claras em neve

compensa pela rapidez do processo usando o equipamento eleacutetrico Ou seja a

batedeira eacute usada apenas quando se quer um bolo menos ruacutestico O meacutetodo

tradicional prevalece neste caso

Eu tenho dois fornos de barro grande no quintalfazia quitanda umas duas vezes na semana a famiacutelia era grande sete filhos hoje acaboueu faccedilo as coisas eacute no forninho do fogatildeo a lenha mesmo eu

165

jaacute vou fazendo o almoccedilo e assando a quitanda do dia (Uacutersula 78 anos moradora de Bananeiras em Presidente Bernardes MG 2015)

Eu gosto de fazer quitanda tem dia que a gente enjoa mas eu gosto de fazer sim faccedilo broa bolo rosquinha minha neta me ajuda a enrolar as rosquinhas eacute assim que as filhas e netas aprendem a cozinhar comigo tambeacutem era assim (Inecircs 72 anos moradora de Ribeiratildeo em Porto Firme MG 2015)

Para as mulheres a elaboraccedilatildeo das quitandas e doces eacute o que mais

mexe com a memoacuteria afetiva relacionada a alimentos por remeter agrave infacircncia agraves

quitandas feitas pela matildee tias e avoacutes Giard (2012) Lody (2008) e Cacircmara

Cascudo (2004) mencionam como as lembranccedilas e viacutenculos com as comidas

ajudam a manter os haacutebitos vida afora Mesmo que algumas mudanccedilas nos

modos de vida tenham ocorrido permanece o desejo de manter as quitandas do

passado

O relato acima de Inecircs sobre a participaccedilatildeo da neta ajudando a enrolar

as rosquinhas de sal amoniacuteaco que sinaliza o desejo de perpetuar uma receita

tradicional da famiacutelia bem como o de ensinar a neta eacute tambeacutem uma lembranccedila

de si mesma quando ajudava a matildee e da forma como o repasse dessa tradiccedilatildeo

se deu em sua vida Dessa maneira o aprendizado ocorre de maneira luacutedica

Gosta-se da rosquinha feita pela matildee ou avoacute tambeacutem porque era divertido ajudaacute-

las a enrolar e a pincelar com a gema Para uma crianccedila a massa da rosquinha

eacute quase como brincar com as massinhas coloridas na escola e neste caso

ldquobrinca-serdquo com a massinha feita pela avoacute e em sua companhia e ainda pode-

se comecirc-la depois de assada porque tem sabor agradaacutevel ao paladar e agrave

memoacuteria A rosquinha que Inecircs faz com a neta eacute a mesma que ela aprendeu a

fazer com a sua matildee e eacute a mesma que ensinou agraves suas filhas A transmissatildeo do

saber-fazer e dos gestuais de enrolar as rosquinhas e pincelar as gemas satildeo

registros simboacutelicos que ficam na memoacuteria Neste sentido como pondera Leacutevi-

Strauss (2003 p 15) ldquoGestos aparentemente insignificantes transmitidos de

geraccedilatildeo em geraccedilatildeo e protegidos por sua insignificacircncia mesma satildeo

testemunhos geralmente melhores do que jazidas arqueoloacutegicas ou

monumentos figuradosrdquo

O papel de Inecircs nesses momentos eacute pois o da ldquoGuardiatilderdquo da tradiccedilatildeo

(GIDDENS 2012) assunto jaacute discutido no capiacutetulo teoacuterico Em vaacuterios momentos

da entrevista os agricultores reportavam agrave figura dos avoacutes e dos pais ldquoA minha

166

matildee fazia assimrdquo ldquo Quando eu era crianccedila eu gostava de ficar acompanhando

a minha avoacute na cozinha na hortaeu aprendi muito com elardquo

Mesmo que a origem dos ingredientes mudasse por exemplo utilizando

ovo de granja no lugar do ovo caipira e manteiga industrializada o sentido

simboacutelico da receita seria o mesmo Para a neta isso natildeo faria diferenccedila

tampouco para a avoacute transmitir seu saber como pondera Giard (2012)

A aquisiccedilatildeo dos ingredientes a preparaccedilatildeo a cocccedilatildeo e as regras de compatibilidade podem muito bem mudar de uma geraccedilatildeo agrave outra Mas o trabalho cotidiano das cozinhas continua sendo uma maneira de unir mateacuteria e memoacuteria vida e ternura instante presente e passado que jaacute se foi invenccedilatildeo e necessidade imaginaccedilatildeo e tradiccedilatildeo ndash gostos cheiros cores sabores formas consistecircncias atos gestos movimentos coisas e pessoas calores sabores especiarias e condimentos (GIARD 2012 p 296)

Outra questatildeo tambeacutem discutida no item 36 do capiacutetulo anterior trata do

papel historicamente e culturalmente atribuiacutedo agrave mulher no que se refere agrave

alimentaccedilatildeo e agrave cozinha A heranccedila culinaacuteria nas famiacutelias eacute claramente feminina

A matildee ensina a filha eou a neta Antocircnio 78 anos jaacute citado anteriormente

agricultor que tambeacutem foi padeiro eacute o uacutenico exemplo de envolvimento masculino

na atividade ligada agrave culinaacuteria uma exceccedilatildeo

Um assunto jaacute mencionado no capiacutetulo anterior trata da naturalizaccedilatildeo do

gostar de cozinhar Culturalmente tende-se a imputar agraves mulheres o prazer da

culinaacuteria como se o normal fosse que todas gostassem de cozinhar e de assumir

a responsabilidade de alimentar o outro Essa naturalizaccedilatildeo ocorre segundo

Arnaiz (1996) primeiramente em funccedilatildeo da funccedilatildeo bioloacutegica da amamentaccedilatildeo

Um aspecto bioloacutegico que se ampliou para a funccedilatildeo domeacutestica como se fosse

natural Natildeo eacute Algumas mulheres podem gostar muito de cozinhar outras

podem gostar mais ou menos o que parece ser o caso de Inecircs ndash quando diz

ldquotem dia que enjoardquo e pode haver aquelas mulheres que natildeo gostam Durante a

entrevista apoacutes um longo tempo de conversa eu lhes perguntava ndash Vocecirc gosta

de cozinhar Algumas sorriam timidamente ao responder que natildeo gostavam

muito o que me pareceu um certo constrangimento em negar uma condiccedilatildeo

atribuiacuteda como sendo natural ou normal como se eu esperasse uma

confirmaccedilatildeo Como resultado dessas respostas apenas onze mulheres

disseram realmente gostar da atividade e sentir prazer com as funccedilotildees

alimentares que assumem O restante natildeo gosta muito da atividade mas

167

nenhuma delas disse detestar a atividade culinaacuteria As falas reproduziam o

sentido de fazer ldquoporque eacute precisordquo ldquoEu pra falar a verdade natildeo gosto muito

natildeo eu fico na cozinha porque natildeo tem outro recurso mas natildeo gosto muito de

cozinha natildeo eu preferiria ficar soacute costurandordquo (Nanaacute 62 anos moradora de

Xopotoacute em Presidente Bernardes)

Eu gosto Eu natildeo faccedilo por obrigaccedilatildeo natildeo eu gosto aprendi a cozinhar com minha matildee aprendi ajudando Faccedilo broa todo dia Vocecirc viu neacute hoje mesmo eu tocirc fazendo doce de figo e de ameixa vou ali colho e faccedilo faccedilo doce de cidra doce de manga doce de goiaba doce de banana que a gente colhe aqui tambeacutem (Marieta 73 anos moradora de Boa Vista em Piranga MG 2015)

Assim gostar gostar eu natildeo gosto natildeo preferia natildeo ter que cozinhar todo dia porque cansa mas tambeacutem ficar parado sem ter o que fazer eacute ruim pelo menos enquanto eu estou fazendo as coisas eu distraio (Antonina 74 anos moradora de Bananeiras em Presidente Bernardes MG 2015)

As mulheres que dizem gostar de cozinhar principalmente fazer

quitandas e doces satildeo aquelas que mais relataram o prazer de ver a casa cheia

de filhos e netos nas feacuterias feriados e aos domingos Satildeo tambeacutem as mulheres

mais velhas aposentadas Os casais de aposentados relataram certa solidatildeo de

vida nos siacutetios principalmente os que natildeo tecircm filhos por perto o que torna o fato

de receber a famiacutelia em casa uma forma de romper temporariamente com a

solidatildeo Para essas mulheres casa cheia eacute sinal de consumo de muita comida

principalmente porque a cozinha eacute sempre o lugar preferido da casa nessas

ocasiotildees como afirmaram

Dentre as atividades culinaacuterias preferidas lidar com a elaboraccedilatildeo das

quitandas se destaca preferem fazer bolos broas e rosquinhas (a favorita entre

todas as outras) do que preparar a comida do almoccedilo e do jantar

O patildeo francecircs alimento comum nos lanches ou rdquomerendasrdquo na aacuterea

urbana natildeo eacute comumente consumido e natildeo faz parte dos haacutebitos alimentares

das famiacutelias pesquisadas Eacute um item agraves vezes adquirido nas idas agrave cidade

quando costumam comprar rosca doce ou outro patildeo doce Algumas mulheres

gostam de fazer de vez em quando a ldquorosca da rainhardquo Eacute o uacutenico patildeo que foi

citado como elaboraccedilatildeo em algumas poucas casas Antonio informou durante

nossa conversa que ele natildeo conseguia vender patildeo na aacuterea rural porque as

mulheres tinham o haacutebito de fazer broa diariamente Soacute conseguia vender patildees

franceses para moradores da cidade

168

57 Receitas oralidade e registros em cadernos

Esse tema na pesquisa teve como objetivo verificar se as receitas satildeo

transmitidas por oralidade ou por registros escritos O caderno de receitas natildeo eacute

comum para todas as mulheres sobretudo entre as mulheres mais velhas acima

de 50 anos Entre elas satildeo poucas as que possuem receitas escritas

predominando a oralidade na transmissatildeo e o registro na memoacuteria das receitas

que fazem com mais frequecircncia do arroz doce ao doce de figo natildeo se recorre

agraves receitas escritas para elabora-los

Eliana por exemplo natildeo possui cadernos de receitas Tudo o que

aprendeu foi repassado oralmente ao observar e ajudar a matildee e a avoacute

Minha matildee natildeo sabia escrever e nem ler entatildeo natildeo tinha caderno ela aprendeu vendo a matildee dela fazer eu aprendi do mesmo jeito e as minhas filhas tambeacutem aprenderam a cozinhar comigo assim me vendo fazer elas devem ter caderno de receita eu nem sei mas devem de ter sim elas estudaram satildeo inteligentes (Eliana 69 anos moradora de Itapeva em Presidente Bernardes MG 2015)

A filha que mora aqui em casa natildeo gosta de cozinha natildeo mas a outra filha casada gosta Eu aprendi a cozinhar com minha matildee desde novinha mas eu natildeo faccedilo nada de receita natildeo minha matildee nunca teve caderno de receita minha filha casada aprendeu comigo ela me ajudava mas ela tem caderno de receita ela gosta de experimentar umas coisas diferentes para os filhos (Nanaacute 62 anos moradora de Xopotoacute em Presidente Bernardes MG 2015)

Nanaacute aponta em sua fala que das duas filhas uma que eacute casada e tem

filhos gosta de cozinhar e de experimentar novidades e ela associa as ldquocoisas

diferentesrdquo das quais a filha gosta como sendo comidas modernas e por isso

devem estar registradas em um caderno de receita pois o que eacute tradicional fica

registrado na mente eacute memorizado Sua outra filha a mais nova com 26 anos

que eacute solteira e estuda na faculdade natildeo gosta de culinaacuteria No depoimento de

Eliana haacute uma associaccedilatildeo do caderno de receitas com inteligecircncia e a falta dele

com o analfabetismo A sua matildee natildeo sabia ler ela mesmo lecirc pouco e justifica

isso como motivo pelo qual ela natildeo tem um caderno mas destaca que as filhas

por terem estudado devem possuir um

Giard (2012) relata depoimentos de mulheres que pesquisou na Europa

sobre cadernos de receitas tradicionais da famiacutelia que possuem semelhanccedila ao

depoimento de Eliana Uma das mulheres do trabalho de Giard respondeu que

169

as avoacutes eram tatildeo pobres que mal tinham uma cozinha e caderno de receitas natildeo

tiveram tambeacutem

Se a oralidade eacute ainda a forma mais presente de transmissatildeo dos

saberes nas famiacutelias pesquisadas fica a reflexatildeo de como isso poderaacute vir a

ocorrer no futuro com a tendecircncia de saiacuteda dos jovens das aacutereas rurais O maior

comprometimento neste sentido seria em relaccedilatildeo aos modos de fazer

tradicionais nas famiacutelias A oralidade estaacute muito ligada agraves mulheres mais velhas

acima de 50 anos As mulheres mais novas falando aqui da faixa etaacuteria

aproximada de 30 a 45 anos apesar de terem aprendido por oralidade com as

matildees natildeo tecircm aplicado a transmissatildeo das suas praacuteticas culinaacuterias agraves filhas

mesmo porque segundo mencionaram natildeo observam muito interesse ldquodas

filhasrdquo (falaram em relaccedilatildeo agraves filhas e natildeo filhos) na atividade culinaacuteria

Considerando que receitas culinaacuterias atualmente satildeo facilmente

encontradas em banca de revista na internet e no verso de embalagens

industrializadas registrar receitas na memoacuteria ou possuir um caderno de receitas

personalizado pode natildeo fazer muito sentido para as geraccedilotildees mais jovens

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 16 ndash Caderno de receitas que pertenceu agrave matildee de Anita moradora da Comunidade Manja em Piranga

A Figura 16 mostra um ldquocadernordquo que pertenceu a matildee de Anita (71

anos moradora da Comunidade Manja em Piranga) jaacute falecida Trata-se de um

caderno de contas usado tambeacutem para registrar as receitas Na receita haacute uma

170

referecircncia a um ldquopacote de creme infantilrdquo Pesquisei sobre isso e verifiquei que

produtos da Marca Nestleacute jaacute eram vendidos no Brasil na deacutecada de 1920 e na

faacutebrica na cidade de Araras produtos ldquoLactogenordquo (tipo de leite em poacute infantil)

farinha laacutectea e leite condensado Tambeacutem jaacute se vendia na forma embalada a

farinha de trigo poacute Royal e a Maisena A duacutevida que fica eacute se eram produtos que

chegavam facilmente no interior de MG na eacutepoca Haacute que se observar tambeacutem

que o caderno de contas utilizado para anotaccedilotildees estava datado o que natildeo se

sabe eacute se a receita anotada tambeacutem pertence ao mesmo periacuteodo ou se foi

aproveitado como cadernos para anotaccedilotildees de receitas e o tal ldquobolo de Mirardquo

pode ter sido registrado em data posterior Sobre anotaccedilotildees de receitas em

diversos tipos de materiais reporto a Abrahatildeo (2007) que aponta para registros

de receitas culinaacuterias que encontrou anotadas em diversos tipos de lugares e

natildeo raro em conjunto com lista de compras informaccedilotildees sobre plantio etc

A Figura 17 mostra um caderno feito com capricho que pertence a Lucia

(61 anos moradora de Manja Piranga) Ela possui trecircs cadernos de receitas

Um deles pertenceu a sua matildee e os outros dois ela mesma fez com a ajuda das

filhas Quando queria guardar uma receita pedia a uma das filhas para copiar

no caderno outras vezes ela mesmo registrava e recortava figuras de revistas

que encontrasse para ilustrar Na ocasiatildeo da pesquisa ela mencionou que natildeo

tem mais paciecircncia para registrar as receitas mas como gosta de cozinhar

costuma fazer uma ou outra receita poreacutem a maioria dos pratos que gosta de

fazer jaacute estaacute registrada na memoacuteria

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 17 ndash Caderno de receitas de Lucia da Comunidade Manja em Piranga

171

Algumas mulheres demonstraram certo constrangimento em mostrar os

cadernos Diziam que estavam ldquomanchadosrdquo ldquosujosrdquo ldquorasgadosrdquo ldquobagunccediladosrdquo

ldquomal escritosrdquo mas outras se sentiram agrave vontade e mostravam as receitas que

mais gostavam Apenas um caderno estava mais organizado o restante possuiacutea

folhas soltas anotaccedilotildees diversas e desordenadas inclusive endereccedilos de

pessoas contas lembretes e listas de compra As anotaccedilotildees eventuais nesses

cadernos ocorrem porque eles estatildeo visiacuteveis em locais de faacutecil acesso na

cozinha e na falta de outro papel para anotaccedilotildees raacutepidas ele assume esta

funccedilatildeo Pela mesma razatildeo muitos possuem manchas de gordura e respingos

de ingredientes que estavam sendo usados durante a elaboraccedilatildeo da receita Satildeo

detalhes que tambeacutem ldquofalamrdquo da cozinha e dos haacutebitos alimentares das famiacutelias

Eu tenho caderno de receita soacute que taacute tudo rasgado elas satildeo todas testadas ou foi por minha matildee ou minhas avoacutes ou minhas tias primas nada eacute copiado de televisatildeo ou de revista As folhas estatildeo quase todas soltas mas hoje quase tudo que faccedilo eu jaacute sei de cabeccedila (Claudia 66 anos moradora de Limeira em Porto Firme MG 2015)

Tenho uma agenda que uso como caderno de receita eacute uma agenda que desde 1977 quando eu casei que eu anotava tudo inclusive coisa de costura e tem ateacute receita tambeacutem (Mariacutelia 62 anos moradora de Mestre Campos em Piranga MG 2015)

Fonte Luiacutes Pereira pesquisa de campo 2015

Figura 18 ndash Mariacutelia da Comunidade de Mestre Campos em Piranga mostrando seus livros e cadernos de receitas

172

Folheando o caderno de Marieta (73 anos moradora de Boa Vista em

Piranga) me deparei com uma receita de brevidade Comentei que aprecio muito

esse bolo mas que seguindo a receita de minha matildee registrada em seu caderno

a minha nunca fica igual agrave que ela fazia Marieta resolveu entatildeo me ensinar

uma receita faacutecil que prometi testar

ldquoVou te ensinar uma receita faacutecil e muito gostosa A receita chama assim ldquo5 10 15rdquo e eacute assim Vocecirc potildee numa vasilha 5 (cinco) ovos inteiros 10 (dez) colheres de accediluacutecar bate bem e ai coloca as 15 (quinze) colheres de maisena e bate mais ainda Coloca numa forma redonda untada e potildee no fornordquo (Marieta 73 anos moradora de Boa Vista Piranga MG 2015)

Em relaccedilatildeo agraves receitas e agrave cozinha Marieta e Zefa de Presidente

Bernardes foram as mulheres mais empolgadas Contaram detalhes de algumas

quitandas que fazem e de outras que eram feitas por suas matildees e avoacutes Elas

fazem parte das poucas mulheres que entrevistei que confirmaram um grande

prazer em cozinhar

58 Os equipamentos da cozinha rural do fogatildeo a lenha agrave panela eleacutetrica de arroz

Foi em torno do fogatildeo a lenha que muitas das entrevistas aconteceram

enquanto as mulheres preparavam o almoccedilo O fogatildeo a lenha eacute o equipamento

que eu elegeria como o mais representativo na realidade das famiacutelias presente

em todas as cozinhas que visitei durante a pesquisa de campo dos mais

tradicionais feitos de argila aos mais modernos revestidos por azulejo

Instrumento transformador do ldquocru em cozidordquo e da ldquonatureza em culturardquo

propiciador de socializaccedilatildeo e de comensalidade nos dias de inverno por manter

a cozinha aquecida as pessoas gostam de ficar em torno dele sendo assim um

instrumento propiciador de sociabilidades Aleacutem desses aspectos eacute tambeacutem

usado para aquecer a aacutegua do chuveiro via serpentina

Aquela copa ali com aquela mesa eu falo que eacute pra enfeite porque quando meus filhos vem pra caacute com os filhos deles eles juntam tudo eacute aqui na cozinha Senta nesse banco ai nas cadeiras trazem mais cadeira e ficam aqui tem um filho meu que gosta de fritar torresmo ai jaacute viu neacute (Antonina 74 anos moradora de Bananeiras Presidente Bernardes MG 2015)

Eu fico ateacute meio brava agraves vezes e jaacute falo logo - Se ficar em volta de mim no fogatildeo a comida natildeo vai sair natildeo pode esparrodar todo

173

mundo pra laacute (Anita 71 anos moradora de Manja Piranga MG 2015)

Os fogotildees revestidos por azulejos representam um aspecto recente

Segundo os interlocutores uma famiacutelia reformou e revestiu o seu fogatildeo o vizinho

viu aprovou e tambeacutem reformou o seu e em pouco tempo vaacuterios fogotildees na

regiatildeo seguiram a mesma tendecircncia Para eles o revestimento em azulejo

manteacutem o fogatildeo mais limpo por fora porque eacute de faacutecil limpeza Em 11 casas

nos diferentes municiacutepios o fogatildeo estava revestido com esse material No

restante o revestimento era de argila e tinta avermelhada na tonalidade de tijolo

ou amarelado Todos possuem formato semelhante com forno anexo usado

para assar a maior parte das quitandas alguns possuem compartimento para

armazenar lenha e outros natildeo A respeito dos dois modelos de revestimento

apesar de o azulejado dar ao fogatildeo uma conotaccedilatildeo ldquomodernardquo pelo tipo de

revestimento isso natildeo altera em nada a tecnologia do fogatildeo A modernidade

conferida pelo revestimento do azulejo eacute de ordem mais esteacutetica do que

funcional

As Figuras 19 e 20 mostram os fogotildees a lenha comuns e de uso

prioritaacuterio nas casas O primeiro fogatildeo (Figura 19) pertencente agrave Mariacutelia (62 anos

moradora de Mestre Campos Piranga MG) eacute feito em alvenaria revestido por

cimento queimado no estilo tradicional e pintado de amarelo e com barras de

contorno na cor vermelha Sobre ele panelas feitas de materiais diversos como

alumiacutenio pedra barro e ferro Colher de pau e de accedilo inoxidaacutevel O fogatildeo estaacute

com o almoccedilo do dia pronto para ser servido (feijatildeo arroz angu couve carne

de boi moiacuteda com cebolinha de folha) Para evitar sujeiras e proteger o fogatildeo

uma taacutebua de madeira eacute usada como suporte para as panelas e uma lata de tinta

foi reaproveitada para forrar o local do fogo

174

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 19 ndash Fogatildeo a lenha no siacutetio de Mariacutelia

O segundo fogatildeo (Figura 20) pertencente agrave famiacutelia de Nanaacute e Custoacutedio

(61 e 72 anos respectivamente moradores de Xopotoacute em Presidente

Bernardes) eacute revestido por azulejo no estilo mais moderno Como eacute de mais

faacutecil higienizaccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria a proteccedilatildeo pela taacutebua de madeira e pela

placa de lata que haacute no fogatildeo anterior Sobre este fogatildeo estatildeo apenas panelas

de alumiacutenio com o almoccedilo a ser servido (feijatildeo angu batata doce frita couve e

peixe frito (Carpa-capim pescado no rio que passa nos fundos da casa)

Tambeacutem foi servido arroz mas neste caso feito em panela eleacutetrica um item

moderno e do qual falarei mais adiante Outro elemento da modernidade que se

observa na foto satildeo os dois potes de margarina em uma cozinha de caraacuteter

tradicional mas onde elementos da modernidade tambeacutem se fazem presentes

Nesta casa a panela eleacutetrica de fazer arroz fica sobre a pia e um moedor de cafeacute

preso afixado na parede ao lado da mesma pia O peixe e a batata doce por

exemplo foram fritos em oacuteleo de soja e a verdura e o feijatildeo refogados em gordura

de porco Nesta cozinha observei muitos dos elementos da mescla cultural

relativos agraves praacuteticas alimentares

175

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 20 - Fogatildeo a lenha no siacutetio de Nanaacute e Custoacutedio

Um detalhe que observei tambeacutem em todas as cozinhas eacute o cuidado com

a higiene e organizaccedilatildeo das cozinhas Na Figura 20 a pia possui uma cortina

estampada feita pela proacutepria Nanaacute que eacute tambeacutem costureira Coincidentemente

ou natildeo as cores das garrafas teacutermicas combinam com a cor da cortina Na Figura

19 tambeacutem os detalhes chamam a atenccedilatildeo Haacute nessas cozinhas uma noccedilatildeo de

esteacutetica e cuidado com a decoraccedilatildeo que indicam o quanto a cozinha eacute parte

importante da casa e merece destaque pelas famiacutelias em sua organizaccedilatildeo

A Figura 21 eacute outro exemplo Mostra a cozinha pertencente a Eliana e

Saturnino (69 e 75 anos respectivamente moradores de Itapeva Presidente

Bernardes) onde as cadeiras verdes combinam com a cor da porta do forno e

ficam em local estrateacutegico proacuteximo ao calor do fogo Em geral todas as cozinhas

das casas em que estive tem caracteriacutesticas como essas umas mais tradicionais

do que outras mais bonitas esteticamente do que outras mas todas muito

organizadas e limpas

176

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 21 ndash Cozinha com fogatildeo a lenha (azulejado) em siacutetio de Eliana e Saturnino

O fogo eacute destacado por Leacutevi-Strauss (1968) Wrangham (2010)

Montanari (2008) e outros como sendo fundamental para a transformaccedilatildeo do

alimento em comida e no processo da transformaccedilatildeo da natureza em cultura Se

em tempos remotos cozinhavam-se as caccedilas e outros alimentos a ceacuteu aberto

com o passar do tempo o fogo passou a ser inserido no ambiente domeacutestico e a

fazer parte do ambiente fiacutesico das casas Lemos (1996) aponta que durante

muito tempo tanto em Portugal quanto no Brasil as moradias eram chamadas

de fogos ou fogotildees tamanha a importacircncia deste equipamento

Wilson (2014 p 126) aponta que o fogo foi aos poucos sendo apagado

no mundo desenvolvido uma condiccedilatildeo necessaacuteria inclusive para que ele se

incorporasse agraves estruturas das casas Assim surgiram na Inglaterra os ldquofogotildees

fechadosrdquo que funcionavam agrave lenha e que serviam tambeacutem para aquecer a agua

ldquoUm fogatildeo nunca servia apenas para cozinhar tambeacutem era essencial para

fornecer aacutegua quente a toda a famiacutelia esquentar ferros de passar e aquecer as

matildeosrdquo Com o evento da Revoluccedilatildeo Industrial surgiram os fogotildees agrave base de

ferro fundido que funcionavam a carvatildeo Mas a autora explica que seu uso era

comum nas cidades pois nas aacutereas rurais permaneceu o uso do fogatildeo agrave lenha

por muitos anos O avanccedilo tecnoloacutegico logo propiciou o surgimento do fogatildeo a

gaacutes na deacutecada de 1880 considerado pela autora como um equipamento que

177

gerou ldquoum progresso real na cozinhardquo A sua aceitaccedilatildeo foi raacutepida em funccedilatildeo de

sua facilidade e praticidade e como mencionado pela autora em 1939 na

Inglaterra trecircs quartos das famiacutelias cozinhavam no fogatildeo a gaacutes

No que se refere ao grupo pesquisado mesmo em virtude de sua

praticidade o fogatildeo a gaacutes natildeo substituiu o fogatildeo agrave lenha Esse siacutembolo de

modernidade natildeo foi forte o suficiente para romper com a tradiccedilatildeo do fogatildeo agrave

lenha O fogatildeo a gaacutes eacute pouquiacutessimo utilizado ndash apenas para preparar o cafeacute da

manhatilde enquanto acende-se o fogatildeo a lenha ou para fazer ldquocoisa menorrdquo como

aquecer uma aacutegua ou o leite agrave tarde

No caso das famiacutelias em que as mulheres trabalham fora do siacutetio o fogatildeo

a gaacutes eacute mais usado para elaboraccedilatildeo do almoccedilo do que o fogatildeo a lenha A razatildeo

eacute a facilidade para os maridos e os filhos que aquecem o almoccedilo que elas deixam

pronto ou adiantado mas o fogatildeo a lenha permanece usado para aquecer a aacutegua

aquecer a aacutegua do chuveiro pela serpentina como citado por Ivone

Usamos mais o fogatildeo a gaacutes no dia a dia porque eu trabalho na escola do arraial de manhatilde e quando eu chego costumo ir ajudar meu marido ai ateacute acender o fogo demora muito pra aquecer entatildeo o fogatildeo a gaacutes eacute mais praacutetico para noacutesa gente liga o fogatildeo a lenha mesmo mais pra esquentar a aacutegua do chuveiro porque a gente tem serpentina mas a comida mesmo eacute no gaacutes Mas agrave tarde eacute mais faacutecil esquentar a comida no fogatildeo a lenha ainda mais agora que o frio vai chegando porque ele esquenta a casa (Ivone 38 anos moradora de Posses em Porto Firme MG 2015)

Nos que se refere ao uso dos fogotildees eacute tambeacutem possiacutevel perceber a

mescla cultural o moderno e o tradicional convivendo sem que isso gere

mudanccedilas radical nos costumes

As localizaccedilotildees das cozinhas nas casas que visitei satildeo nos fundos da

casa voltadas para o quintal semelhantemente ao que eacute apontado por Lemos

(1976) e Abrahatildeo (2007) sobre a disposiccedilatildeo do fogatildeo e da cozinha das casas

coloniais brasileiras Os fogotildees a lenha assim como o fogatildeo a gaacutes ficam na

ldquocozinha limpardquo expressatildeo usada por Algranti (1997) que eacute interna agrave casa Em

algumas casas havia tambeacutem a ldquocozinha sujardquo que possui mais um fogatildeo a

lenha e ou a gaacutes para torrar pequenas quantidades de cafeacute ligar o acendedor

de ldquolimparrdquo o porco apoacutes o abate fazer frituras de toucinho torresmo etc Natildeo se

trata de uma outra cozinha de alvenaria fechada mas sim de uma pequena

coberta no quintal

178

Outro fogatildeo que fica externo agrave casa eacute o fogatildeo de Cupim jaacute citado (Figura

21) Os fogotildees de cupim tambeacutem satildeo usados para fazer as comidas mais

gordurosas como descreve Doca (55 anos moradora de Boa Vista Piranga)

ldquoQuando a gente mata capado a gente frita as carnes os toucinhos no fogatildeo

de cupim laacute forardquo Os cupins satildeo retirados dos pastos e transportados por

carroccedila ateacute o quintal Neles satildeo feitos um buraco na lateral e rente ao chatildeo onde

eacute colocada a lenha e outro buraco em cima onde coloca-se a panela

Como jaacute mencionado o forno de barro apesar de existente nas casas

quase natildeo eacute utilizado pelas famiacutelias atualmente por motivos jaacute expostos Em uma

das casas o forno estava sendo usado para guardar objetos em desuso

Mas quando meus filhos vecircm ai sim eu acendo o forno grande laacute fora Eles sempre vecircm no natal A casa fica cheia ai daacute gosto usar o forno eles pedem pra fazer o que eles gostam ai a gente faz neacute (Zefa 67anos moradora de Mato Dentro em Presidente Bernardes MG 2015)

A Figura 22 pertence ao siacutetio de Selma e Lourival (68 e 76 anos

respetivamente) moradores da comunidade Tatu em Piranga Ao lado do forno

em alvenaria haacute uma espeacutecie de churrasqueira coberta com uma chapa de ferro

e uma churrasqueira menor de ferro fundido Esse espaccedilo segundo Selma eacute

utilizado apenas quando a casa estaacute cheia com a presenccedila dos filhos que gostam

e fazer churrascos quando estatildeo reunidos Nessas ocasiotildees ela tambeacutem utiliza

o forno para assar maior quantidade de quitandas

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 22 ndash Forno de barro e churrasqueira no siacutetio de Selma e Lourival

179

As famiacutelias possuem alguns equipamentos eleacutetricos nas cozinhas forno

de micro-ondas forno eleacutetrico panela eleacutetrica de fazer arroz e freezer mas nem

todos faziam parte da realidade de todas as famiacutelias Jaacute o liquidificador a

batedeira de bolo o espremedor de frutas e a geladeira existentes em todas as

casas O forno de micro-ondas o freezer e a batedeira de bolo satildeo usados

esporadicamente como jaacute visto no assunto sobre as quitandas com exceccedilatildeo do

freezer de Marcelina que estoca os salgados que produz para vender Natildeo

gostam de usar a batedeira porque ldquodaacute trabalho para lavar e depois guardarrdquo

A gente usa o micro-ondas para esquentar uma comida um leite agrave noite agraves vezes para descongelar uma carne comprar carne no accedilougue taacute muito caro assim eu mato um garrote vem um moccedilo do accedilougue da cidade e mata para noacutes ele conhece as partes desossa e ai congela as partes separadaspotildee nome das carnes em todos os pacotes separados e fica num freezer que a gente tem soacute pra isso (Joatildeo 81 anos morador de Aacutegua Limpa Porto Firme MG 2015)

Considerei interessante o desprendimento com o qual Joatildeo com seus

81 anos falava sobre o uso do micro-ondas Sabe utilizar o equipamento e

apesar de natildeo usar com frequecircncia natildeo demonstrou resistecircncia em utiliza-lo

quando necessaacuterio mas natildeo foi sempre assim O equipamento foi presente dado

por um dos filhos que moram fora da regiatildeo e durante muito tempo o casal

atribuiacutea utilidade a ele ateacute os filhos mostrarem alguns resultados de

descongelamento e aquecimento como o que a famiacutelia mais utiliza explicitado

na sua fala Wilson (2014) discute sobre a resistecircncia que muitos equipamentos

de uso corriqueiro na contemporaneidade ndash dentre eles o micro-ondas ndash tiveram

quando do seu surgimento tendo sido recebido sob protestos de que os meacutetodos

antigos eram melhores e mais seguros

Em quatros das casas que visitei havia a panela eleacutetrica de fazer arroz

Foram presentes de filhos ou mesmo adquiridos pelas mulheres inicialmente

pela curiosidade associada ao preccedilo relativamente baixo Este equipamento

surgiu no Japatildeo na deacutecada de 1960 mudando completamente a rotina de

produzir o tipo de arroz nas cozinhas asiaacuteticas Wilson (2014) destaca que esse

tipo de panela eacute equipamento mais importante nas casas japonesas do que a

televisatildeo Nas famiacutelias que pesquisei e que possui a panela eleacutetrica ela nem de

longe eacute mais importante do que outros equipamentos tradicionais como o fogatildeo

mas estaacute ganhando espaccedilo de convivecircncia na cozinha sem maiores conflitos

180

Em uma das casas onde almocei tive a oportunidade de conhecer seu

funcionamento e experimentar o arroz produzido As mulheres elogiaram o

equipamento afirmando que ldquoO arroz fica mais soltinho eacute muito melhor fazer

arroz nela natildeo daacute trabalho nenhumrdquo (Nanaacute moradora de Xopotoacute em Presidente

Bernardes)

A presenccedila e uso desses equipamentos satildeo tambeacutem exemplos da

coexistecircncia entre elementos modernos e tradicionais nas famiacutelias Enquanto se

faz o restante da comida no fogatildeo a lenha a panela eleacutetrica de arroz fica em

funcionamento sobre a pia Giard (2012) ao tratar da introduccedilatildeo dos

equipamentos eleacutetricos na cozinha destaca que o uso de um aparelho eleacutetrico

envolve a relaccedilatildeo instrumental que se estabelece entre utilizador e objeto

utilizado ldquoA cozinheira apenas alimenta esse objeto teacutecnico com ingredientes

que devem ser transformados depois liga o aparelho apertando um botatildeo

eleacutetrico e recolhe a mateacuteria transformada sem controlar as etapas intermediaacuterias

da operaccedilatildeordquo (GIARD 2012 p 284) Para esta autora apesar da praticidade

desses equipamentos eleacutetricos eles propiciaram rompimentos na transmissatildeo

de algumas habilidades culinaacuterias mas ainda assim considera perfeitamente

possiacutevel a junccedilatildeo da modernidade dos equipamentos eleacutetricos com os utensiacutelios

tradicionais usufruindo das comodidades oferecidas pelos primeiros e mantendo

relaccedilatildeo igualmente necessaacuteria e importante com os objetos tradicionais Mas

defende que satildeo formas de convivecircncia que natildeo devem ser impostas cada

grupo ou pessoa deve fazer sua escolha de acordo com suas manifestaccedilotildees

culturais

Finalizando a pesquisa de campo destaco que ela trouxe informaccedilotildees

ricas sobre o modo de vida a sociabilidade e a cultura das famiacutelias pesquisadas

no que se refere agraves praacuteticas alimentares e a comensalidade A pesquisa mostrou

que as famiacutelias estatildeo inseridas em uma cultura que eacute dinacircmica mas que

preserva e valoriza a cultural tradicional Percebi durante a investigaccedilatildeo muitas

conexotildees e correlaccedilotildees com a pesquisa teoacuterica me conduzindo o tempo a fazer

reflexotildees analiacuteticas pensando na interface entre a teoria e a praacutetica Sobre as

percepccedilotildees finais relacionadas ao campo teccedilo consideraccedilotildees no item a seguir

181

CONCLUSOtildeES

Neste trabalho apontei caracteriacutesticas e peculiaridades das praacuteticas

alimentares das famiacutelias rurais que entrevistei O tema da alimentaccedilatildeo natildeo se

conclui pelo contraacuterio ele eacute dinacircmico Chamo de conclusatildeo aqui o fechamento

analiacutetico com outras discussotildees e reflexotildees sobre esta pesquisa

Haacute uma discussatildeo na antropologia e sociologia da alimentaccedilatildeo sobre a

tendecircncia a homogeneizaccedilatildeo alimentar na sociedade ocidental seguindo os

rumos da sociedade moderna e globalizada como tratado por Bauman (2001)

Esta premissa foi um dos pontos que me fez refletir inicialmente o problema de

pesquisa ao questionar se nela natildeo estava impliacutecita uma desconsideraccedilatildeo agraves

diversidades culturais Nesse sentido pensei a questatildeo no contexto rural ndash

especialmente no contexto rural da Zona da Mata mineira por ser nele onde

mais tive a oportunidade de conviver socialmente e academicamente ateacute hoje

Assim conhecer e analisar o sistema alimentar de famiacutelias rurais seus

haacutebitos praacuteticas e a comensalidade foi fundamental para ponderar e tecer

consideraccedilotildees conclusivas a respeito dessa questatildeo Este trabalho permitiu

compreender que tal premissa natildeo se aplica agrave realidade sociocultural das

famiacutelias pesquisadas No contexto cultural em que vivem natildeo se verificou a

adoccedilatildeo das praacuteticas alimentares homogeneizantes das quais trata Fischler (1979

e 1998) homogeneidade considerada como um resultado natural na dinacircmica

da sociedade contemporacircnea em funccedilatildeo das constantes inovaccedilotildees na induacutestria

de alimentos tornando potencialmente inevitaacutevel a praacutetica e o consumo

alimentar cada vez mais padronizados no ocidente Embora as famiacutelias natildeo

estejam imunes agraves modernidades alimentares da induacutestria demonstraram

capacidade e interesse em selecionar o que desse contexto deve ser adotado e

o que deve ser rejeitado por elas

A pesquisa mostrou a existecircncia de uma homogeneizaccedilatildeo alimentar na

realidade cultural das famiacutelias pesquisadas poreacutem uma homogeneizaccedilatildeo local

e pontual que natildeo eacute semelhante a homogeneizaccedilatildeo alimentar tratada pelo autor

acima Ao contraacuterio nas famiacutelias que pesquisei essa homogeneidade alimentar

estaacute inteiramente ligada agrave tradiccedilatildeo e agrave produccedilatildeo local de alimentos Ela eacute

inclusive compatiacutevel com o processo sociohistoacuterico de ocupaccedilatildeo da regiatildeo e

diretamente determinada por ele Coincidindo com o que pondera Flandrin e

182

Montanari (1998) sobre a necessidade de relativizar a discussatildeo sobre a

homogeneizaccedilatildeo cultural e considerar as particularidades sociais e culturais dos

grupos

Todas as famiacutelias pesquisadas abrangendo os trecircs municiacutepios tecircm

haacutebitos e praacuteticas alimentares semelhantes independente da faixa etaacuteria dos

casais e filhos que formam o grupo familiar A semelhanccedila tambeacutem se aplica aos

produtos cultivados nos siacutetios que representam quase que a totalidade da dieta

baacutesica das famiacutelias Assemelham-se tambeacutem os alimentos adquiridos do

mercado

As mudanccedilas observadas nas praacuteticas alimentares tais como a adoccedilatildeo

de novas tecnologias ndash entre elas a substituiccedilatildeo do moinho drsquoaacutegua pelo moinho

eleacutetrico e a opccedilatildeo de comprar alguns alimentos antes produzidos por eles como

o arroz e o accediluacutecar ndash natildeo implica um abandono total da tradiccedilatildeo As famiacutelias estatildeo

convivendo ou se adaptando aos processos de mudanccedilas no mundo

contemporacircneo sem transformar significativamente a proacutepria cultura O uso do

moinho eleacutetrico em lugar do moinho drsquoaacutegua natildeo tem colocado em risco o

consumo do fubaacute na elaboraccedilatildeo de comidas tradicionais como o angu e a broa

Esse comportamento se assemelha agravequele entendimento apresentado por

autores como Giddens (2012) Doacuteria (2014) e Cacircndido (1982) que acreditam

que a convivecircncia possiacutevel e mais provaacutevel de ocorrer na contemporaneidade

se daacute por meio da mescla entre fatores de persistecircncia e os de mudanccedilas que

se complementam mas sem extinguir as construccedilotildees simboacutelicas tradicionais

Eacute importante ressaltar que a incorporaccedilatildeo das opccedilotildees de praacuteticas

alimentares modernas tambeacutem natildeo eacute acriacutetica As famiacutelias sabem que a

substituiccedilatildeo de uma pratica por outra implica em riscos e em perdas e ganhos

como no caso da gordura de porco Mostraram-se conscientes quanto agrave questatildeo

relativa agrave sauacutede no consumo desse alimento mas ele continua sendo

prioritariamente utilizado na preparaccedilatildeo de comidas tradicionais O que

prevalece neste caso eacute a escolha pelo sabor do alimento e pelo significado

simboacutelico e tradicional atrelado a ele Tal como reforccedilado pelos interlocutores a

comida feita com gordura de porco eacute mais saborosa e eacute a que daacute ldquosustanccedilardquo

Ainda que algumas pessoas tenham demonstrado estar mais preocupadas com

a sauacutede do que com o sabor e preferissem utilizar somente o oacuteleo vegetal natildeo

eacute essa opccedilatildeo que prevalece no montante das famiacutelias porque as mudanccedilas satildeo

183

ou natildeo incorporadas nas praacuteticas alimentares levando em consideraccedilatildeo

tambeacutem a cultura familiar

Pode-se afirmar tambeacutem que a adoccedilatildeo pelas tecnologias e praacuteticas

alimentares modernas natildeo tem sido radical Um exemplo disso eacute a manutenccedilatildeo

prioritaacuteria do uso do fogatildeo a lenha O fogatildeo a gaacutes assume um lugar importante

no preparo do almoccedilo nas famiacutelias onde as mulheres trabalham fora do siacutetio o

que aponta para um dos ajustes necessaacuterios que as famiacutelias tecircm precisado fazer

para se adaptar agraves novas realidades vividas Ainda assim o fogatildeo a lenha

continua sendo utilizado para fazer o jantar e para aquecer a aacutegua do chuveiro

evitando-se com isso o consumo de energia eleacutetrica Natildeo houve tambeacutem

nessas famiacutelias a substituiccedilatildeo de alimentos in natura por industrializados

congelados visando a praticidade na preparaccedilatildeo do almoccedilo Eacute importante

ressaltar que nessas famiacutelias ocorre uma alteraccedilatildeo no papel masculino relativo

a culinaacuteria jaacute que os maridos e os filhos passam a aquecer e a preparar alguns

itens de sua alimentaccedilatildeo Se antes essa era uma responsabilidade

exclusivamente feminina as mudanccedilas no papel masculino sinalizam ainda que

timidamente novas negociaccedilotildees de gecircnero nessas famiacutelias sinalizando

alteraccedilotildees em um espaccedilo que historicamente e culturalmente eacute de domiacutenio

feminino Eacute uma heranccedila que ainda vem resistindo e passando de avoacutes para

matildees e netas e de matildee para filhas

A articulaccedilatildeo entre o tradicional e o moderno na cultura alimentar das

famiacutelias mostrou estar ocorrendo sem impasses ou conflitos significativos

Mesmo que a compra de um alimento in natura proveniente da CEASA vendido

pelos caminhotildees gere receio da ingestatildeo de agrotoacutexicos essa aquisiccedilatildeo ocorre

ainda que eventualmente e por necessidade especiacutefica

A tradiccedilatildeo do consumo e elaboraccedilatildeo das quitandas permanece em todas

as famiacutelias Ela representa aleacutem de uma ldquomerendardquo importante para as famiacutelias

no dia a dia uma importante continuidade tradicional Elaboram-se as mesmas

quitandas haacute geraccedilotildees e ao mesmo tempo ocorrem ligeiras substituiccedilotildees como

o biscoito de polvilho frito pelo assado e adquirido no mercado local O patildeo

francecircs que eacute tatildeo consumido nas aacutereas urbanas natildeo faz parte do gosto

alimentar das famiacutelias e eacute de consumo muito raro

Na manutenccedilatildeo dos haacutebitos alimentares tradicionais estaacute presente a

influecircncia dos guardiatildees da tradiccedilatildeo na reproduccedilatildeo do gosto no processo de

184

significaccedilatildeo e ressignificaccedilatildeo da comida atrelada agraves praacuteticas aos saberes e aos

haacutebitos tanto no cotidiano quanto nas comidas de dias festivos A constacircncia

das expressotildees ldquoaprendemos a comer assimrdquo ldquoaprendi a cozinhar vendo minha

matildee fazerrdquo ldquona casa de meus pais fazia assimrdquo denotam a valorizaccedilatildeo dos

aprendizados e o interesse na perpetuaccedilatildeo dos haacutebitos

No que se refere agrave comensalidade no grupo familiar a pesquisa mostrou

que ela estaacute passando por modificaccedilotildees importantes em algumas famiacutelias

Naquelas em que as mulheres trabalham nas escolas a comensalidade ocorre

na escola em companhia de outras colegas e alunos nos horaacuterios de almoccedilo No

restante do grupo a comensalidade se daacute entre aqueles que estatildeo em casa jaacute

que nessas famiacutelias natildeo foi citado casos de pessoas que almoccedilam na atividade

local com o uso de marmita A comensalidade no horaacuterio de jantar tem sofrido

modificaccedilotildees nos uacuteltimos anos em todas as famiacutelias mesmo naquelas com

pessoas mais velhas Ocorre com frequecircncia entre eles servir o prato e se

sentarem na sala para assistir televisatildeo enquanto jantam Houve entatildeo um

deslocamento da mesa da cozinha para o sofaacute da sala Se em tempos passados

o fogo era um fator socializador e propiciador da comensalidade que ocorria

em torno da fogueira da lareira e do fogatildeo a lenha como apontado por

Wrangham (2010) e Montanari (2008) na modernidade a televisatildeo pode tambeacutem

assumir essa funccedilatildeo tanto no meio urbano quanto no meio rural pelo menos no

que se refere agraves famiacutelias que entrevistei

Alimentos industrializados satildeo consumidos em todas as famiacutelias

embora natildeo em grande quantidade e diversidade proporcionalmente ao que se

encontra disponiacutevel nos mercados e satildeo itens importantes nos cardaacutepios As

famiacutelias adquirem alimentos que sempre fizeram parte dos haacutebitos alimentares

e que em tempos passados jaacute foram produzidos nos siacutetios No entanto compram

tambeacutem alguns alimentos que nunca foram produzidos localmente mas que

passaram a ser adotados o que aponta para a dinacircmica da cultura

O significado da comida para as famiacutelias tem importante ligaccedilatildeo com a

tradiccedilatildeo e representa uma identificaccedilatildeo significativa com as geraccedilotildees passadas

Marca ainda a ligaccedilatildeo com a terra ao serem consumidos prioritariamente o que

se produz no local As comidas tradicionais e elaboradas de modo simples satildeo

as que mais agradam ao paladar das famiacutelias e apesar de ser um cardaacutepio de

certa forma monoacutetono natildeo se torna indesejado e natildeo foi apontado pelas famiacutelias

185

algum desejo ou necessidade por experimentar comidas diferentes das que

estatildeo habituados A prioridade do grupo pesquisados pela alimentaccedilatildeo baseada

em produtos cultivados localmente e em praacuteticas mais tradicionais coincide com

o que proposto pelo ldquoGuia Alimentar para a Populaccedilatildeo Brasileirardquo (2015)

publicado pelo Ministeacuterio da Sauacutede contendo diretrizes de uma alimentaccedilatildeo

saudaacutevel e considerando como importante tambeacutem o aspecto cultural

As famiacutelias estatildeo conscientes de que as transformaccedilotildees constantes que

ocorrem na sociedade atual tecircm o poder de interferir em suas praacuteticas e haacutebitos

alimentares Consideram que vai se tornando cada vez mais difiacutecil manter seus

haacutebitos alimentares por fatores de caraacuteter mais externos do que internos e que

interferem na sua dinacircmica de reproduccedilatildeo social e econocircmica

Inseridas no processo que envolve tanto o desejo de manter sua

autonomia produtiva e cultura alimentar quanto agrave necessidade de ceder a

algumas mudanccedilas essas famiacutelias estatildeo aprendendo a se adaptar com as

experiecircncias do cotidiano natildeo se fecham em seus nuacutecleos culturais e nem se

posicionam avessos agraves mudanccedilas demonstram uma atitude resignada poreacutem

criacutetica acatando os itens da modernidade alimentar que lhes agrada e lhes satildeo

importantes e rejeitando o que natildeo lhes interessa respeitando prioritariamente

a cultura local no sentido tratado por Helman (1994) no processo de escolha

alimentar Haacute nessa percepccedilatildeo um sentido de resistecircncia identitaacuteria alimentar

semelhante agrave que Poulain (2013) discute como sendo uma das caracteriacutesticas

das culturas alimentares locais

Por fim concluo que na ocasiatildeo da pesquisa a comida possuiacutea a

mesma centralidade cultural para as famiacutelias que pesquisei que aquela da eacutepoca

de seus antepassados Apesar de estarem inseridas na dinacircmica

contemporacircnea de mudanccedilas a vida cotidiana ainda segue um ritmo lento que

de certa forma difere do ritmo das aacutereas urbanas o que permite ainda este status

central da comida em sua cultura

186

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iii

AGRADECIMENTOS

A Deus por tudo Por me sentir capaz de superar os momentos de

tristeza e fragilidade e vivenciar sem culpa os momentos de alegria e de

bonanccedila

Ao meu orientador Joseacute Ambroacutesio Ferreira Neto pela orientaccedilatildeo apoio

e confianccedila Por assumir minha orientaccedilatildeo em 2014 e me ajudar nesta travessia

Pela oacutetima orientaccedilatildeo pelas criacuteticas e elogios

A Rita de Caacutessia Pereira Farias pela coorientaccedilatildeo pelas importantes

contribuiccedilotildees ao trabalho pelo incentivo e as conversas que tivemos

Aos professores membros da banca examinadora Eliana Gomes de

Souza Douglas Mansur da Silva Ricardo Ferreira Ribeiro e ainda Joseacute

Ambroacutesio Ferreira Neto e Rita de Caacutessia Pereira Farias pela participaccedilatildeo pelas

criacuteticas e sugestotildees

Aos teacutecnicos da Emater dos municiacutepios pesquisados Rita Maria

Brumano Oliveira Geraldo Antocircnio da Silva Eduardo Muniz e ao assistente de

escritoacuterio Luiz Antocircnio Faria por todo apoio necessaacuterio agrave realizaccedilatildeo da pesquisa

de campo pela companhia em muitas das comunidades visitadas

Agraves famiacutelias que entrevistei e que me receberam tatildeo bem Agradeccedilo pela

compreensatildeo a respeito da pesquisa e pelas longas horas dedicadas ao diaacutelogo

pelas deliciosas refeiccedilotildees que fiz em companhia delas Meu aprendizado com

essa convivecircncia foi imenso

Agradeccedilo ao meu pai e minha matildee ndash ldquoouro de Minardquo E agradeccedilo pelo

carinho de sempre a toda minha famiacutelia que estaacute o tempo todo presente na

travessia que faccedilo pela vida ainda que muitas vezes agrave distacircncia Aos meus

irmatildeos Cristina e Joseacute Mauro sempre preocupados com a irmatilde mais nova Ao

meu irmatildeo Gumercindo pelo apoio nos momentos difiacuteceis e pelos conselhos

acadecircmicos durante o doutorado Agrave minha cunhada Luciana pelo socorro em

momentos de fragilidade com a sauacutede apoacutes noitadas sem dormir

Ao Felipe amor que chegou no meio da trajetoacuteria do doutorado

companheiro que soacute tem me trazido alegria amor e apoio incondicional e muita

muacutesica

iv

A Luana minha enteada querida pelas revisotildees dos abstracts para

artigos e por ter compreendido facilmente minha ausecircncia em seu casamento

no Rio de Janeiro em funccedilatildeo do trabalho

Agrave Universidade Federal de Viccedilosa pela oportunidade de realizar o

doutorado e aos professores do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Extensatildeo

Rural pelas trocas de experiecircncias e conhecimentos Aos funcionaacuterios do

Departamento de Economia Rural sobretudo Romildo e Carminha pela atenccedilatildeo

e simpatia

Agrave Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute instituiccedilatildeo onde atuo haacute

12 anos por ter permitido meu afastamento para fazer o doutorado

Agrave CAPES pelos dois anos de bolsa REUNI (2012 e 2013)

Agraves colegas de doutorado pelas conversas pelas alegrias e tristezas que

compartilhamos em alguns momentos e pelas boas energias que partilhaacutevamos

na conduccedilatildeo do trabalho Agradeccedilo tambeacutem os estudantes do mestrado com

quem fiz amizade ao longo de todo o periacuteodo A Fernanda Machado por me

socorrer elaborando os dois mapas que precisei

v

SUMAacuteRIO

LISTA DE TABELAS vii

LISTA DE QUADROS viii

LISTA DE FIGURAS ix

LISTA DE SIGLAS xi

RESUMO xii

ABSTRACT xiv

INTRODUCcedilAtildeO 1

1 A REGIAtildeO DE ESTUDO 5

11 Um breve histoacuterico de ocupaccedilatildeo da regiatildeo estudada 6

12 Informaccedilotildees atuais sobre a populaccedilatildeo rural e as principais atividades agriacutecolas dos municiacutepios pesquisados 10

13 Atividades produtivas 13

2 A COMIDA EM MINAS GERAIS DA ESCASSEZ Agrave FARTURA 18

21 Contextualizando o lugar da comida no Brasil Colonial nos primoacuterdios 18

22 Fase da mineraccedilatildeo em Minas Gerais escassez de alimentos 24

23 Fase da ruralizaccedilatildeo em Minas Gerais fartura de alimentos 29

3 ALIMENTACcedilAtildeO E CULTURA PERMANEcircNCIAS E TRANSFORMACcedilOtildeES 36

31 A alimentaccedilatildeo como categoria de estudo multidisciplinar contribui-ccedilotildees da antropologia da sociologia e da histoacuteria 36

32 Sistema alimentar 46

321 Alimentos aceitos e rejeitados 49

3211 Haacutebitos alimentares orientados por costumes e tradiccedilotildees 52

33 Alimento comida e cultura 55

331 A importacircncia social e cultural do uso do fogo e sua relaccedilatildeo com a comensalidade 59

3311 O local do fogo e da praacutetica da comensalidade na arquitetura domeacutestica 63

34 Praacuteticas alimentares na contemporaneidade entre o tradicional e o moderno 68

35 Modernidade e tradiccedilatildeo no contexto alimentar rural contemporacircneo 78

36 O papel feminino nas praacuteticas alimentares na famiacutelia 86

4 ASPECTOS METODOLOacuteGICOS DA PESQUISA E A CHEGADA AO CAMPO 94

41 Teacutecnica de pesquisa 95

vi

42 Os sujeitos da pesquisa 95

43 A conduccedilatildeo da pesquisa o caminho percorrido 96

44 A entrevista semiestruturada 98

45 A imersatildeo em campo a chegada e a travessia 98

46 Descobrindo a cultura local dos entrevistados 101

461 Perfil das famiacutelias 101

462 A produccedilatildeo agriacutecola local 107

463 Atividades cotidianas de trabalho nos siacutetios 108

5 CULTURA E PRAacuteTICAS ALIMENTARES NO SISTEMA FAMILIAR RURAL RELACcedilOtildeES COM A COMIDA PERMANEcircNCIAS E MUDANCcedilAS 114

51 Comida ldquoforterdquo e comida ldquofraca contradiccedilotildees mudanccedilas e permanecircn-cias 114

511 Outras comidas ldquofortesrdquo 125

52 Consideraccedilotildees sobre a importacircncia do milho e do fubaacute 129

53 Comida de todo dia comida de festa e as relaccedilotildees de comensalidade 137

531 Comida de todo dia o trivial 137

532 Comida de domingo de dias festivos e comensalidade 143

533 Os doces 151

54 A comensalidade para aleacutem das festas e datas especiais 154

55 Mescla cultural praacuteticas de consumo alimentar de ontem e de hoje 156

56 As quitandas para a merenda e para servir agraves visitas 160

57 Receitas oralidade e registros em cadernos 168

58 Os equipamentos da cozinha rural do fogatildeo a lenha agrave panela eleacutetrica de arroz 172

CONCLUSOtildeES 181

REFEREcircNCIAS 186

vii

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 ndash Aacuterea e populaccedilatildeo da microrregiatildeo de Viccedilosa (2015) 11

Tabela 2 ndash Percentual da populaccedilatildeo urbana e rural da microrregiatildeo de Viccedilosa nas deacutecadas de 1980 a 2010 (2015) 11

Tabela 3 ndash Populaccedilatildeo rural por diferentes faixas etaacuterias 12

Tabela 4 ndash Percentual da populaccedilatildeo rural por diferentes faixas etaacuterias () 13

Tabela 5 ndash Comparativo entre perfil etaacuterio do IBGE (2010) e da pesquisa de campo 2015 () 106

Tabela 6 ndash Comparativo da composiccedilatildeo de gecircnero do IBGE e da pesquisa de campo 2015 106

viii

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 ndash Municiacutepios comunidades e nuacutemero de famiacutelias 2015 96

Quadro 2 ndash Fonte de renda das famiacutelias pesquisadas 2015 108

ix

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 ndash Microrregiotildees da Zona da Mata de Minas Gerais 5

Figura 2 ndash Microrregiatildeo de Viccedilosa Minas Gerais 6

Figura 3 ndash Santuaacuterio de Bom Jesus de Matozinhos em Bom Jesus do Bacalhau 9

Figura 4 ndash Milho colhido no siacutetio de Anita e Gilberto na comunidade de Manja em Piranga 15

Figura 5 ndash Carro de boi transportando espigas de milho da roccedila para o paiol na estrada da comunidade de Manja em Piranga 16

Figura 6 ndash Engenho de produccedilatildeo de rapadura no siacutetio de Lola e Marcos na comunidade Xopotoacute Presidente Bernardes 16

Figura 7 ndash Moinho drsquoaacutegua no siacutetio de Manoel e Donana na Comunidade Limeira Porto Firme 130

Figura 8 ndash Moinho eleacutetrico no siacutetio de Nanaacute e Custoacutedio na Comunidade Xopotoacute em Piranga 131

Figura 9 ndash Cebolas e alhos armazenados no paiol do siacutetio de Maria e Laeacutercio na comunidade Itapeva em Presidente Bernardes 139

Figura 10 ndash Horta no siacutetio de Eliana e Saturnino em Itapeva Presidente Bernardes MG 140

Figura 11 ndash Fogatildeo de cupim no quintal do siacutetio de Eliana e Saturnino em Itapeva Presidente Bernardes 146

Figura 12 ndash Processo de fritura do ldquomilhopatilderdquo 149

Figura 13 ndash Doce de ameixa feito por Marieta na comunidade Boa Vista em Piranga MG 154

Figura 14 ndash Broa do tipo Cobu ou ldquopau a piquerdquo 161

Figura 15 ndash Broa de fubaacute feita por Eliana em Itapeva Presidente Bernardes 162

Figura 16 ndash Caderno de receitas que pertenceu agrave matildee de Anita moradora da Comunidade Manja em Piranga 169

Figura 17 ndash Caderno de receitas de Lucia da Comunidade Manja em Piranga 170

Figura 18 ndash Mariacutelia da Comunidade de Mestre Campos em Piranga mostrando seus livros e cadernos de receitas 171

x

Figura 19 ndash Fogatildeo a lenha no siacutetio de Mariacutelia 174

Figura 20 - Fogatildeo a lenha no siacutetio de Nanaacute e Custoacutedio 175

Figura 21 ndash Cozinha com fogatildeo a lenha (azulejado) em siacutetio de Eliana e Saturnino 176

Figura 22 ndash Forno de barro e churrasqueira no siacutetio de Selma e Lourival 178

xi

LISTA DE SIGLAS

CAPES ndash Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior

CEP ndash Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa com Seres Humanos

ECA ndash Estatuto da Crianccedila e do Adolescente

EMATER-MG ndash Empresa de Assistecircncia Teacutecnica e Extensatildeo Rural do Estado de

Minas Gerais

FAOONU ndash Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas para Agricultura e Alimentaccedilatildeo

FBSSAN ndash Foacuterum Brasileiro de Soberania e Seguranccedila Alimentar e Tradicional

IARC ndash International Agency for Research on Cancer

IBGE ndash Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica

IPHAN ndash Instituto do Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional

ODELA ndash Observatorio de la Alimentacioacuten

OMS ndash Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede

PAA ndash Programa de Aquisiccedilatildeo de Alimentos

UFV ndash Universidade Federal de Viccedilosa

USP ndash Universidade de Satildeo Paulo

xii

RESUMO

LIMA Romilda de Souza DSc Universidade Federal de Viccedilosa novembro de 2015 Praacuteticas alimentares e sociabilidades em famiacutelias rurais da Zona da Mata mineira mudanccedilas e permanecircncias Orientador Joseacute Ambroacutesio Ferreira Neto Coorientadora Rita de Caacutessia Pereira Farias

Este trabalho tem como objetivo analisar e compreender os significados da

comida e as relaccedilotildees de comensalidade atendo-se agraves mudanccedilas e

permanecircncias referentes agraves praacuteticas alimentares de famiacutelias rurais dos

municiacutepios mineiros de Piranga Porto Firme e Presidente Bernardes A

metodologia escolhida foi qualitativa utilizando-se da entrevista

semiestruturada observaccedilatildeo registros fotograacuteficos e o caderno de campo As

anaacutelises da pesquisa empiacuterica foram construiacutedas agrave luz das abordagens teoacutericas

da antropologia e sociologia da alimentaccedilatildeo e da histoacuteria da alimentaccedilatildeo Apesar

da tendecircncia apontada por alguns autores contemporacircneos de uma

homogeneizaccedilatildeo alimentar na sociedade ocidental fruto do processo de

modernizaccedilatildeo e globalizaccedilatildeo que teria o poder de influenciar e transformar as

praacuteticas alimentares esta natildeo foi a realidade observada nas famiacutelias rurais

pesquisadas A pesquisa apontou para a necessidade de considerar a

diversidade cultural e o contexto sociohistoacuterico ao estudar as questotildees relativas

a alimentaccedilatildeo dos grupos Nas famiacutelias estudadas as praacuteticas alimentares

possuem forte viacutenculo com a tradiccedilatildeo e agrave produccedilatildeo local de alimentos Isso natildeo

significa que elas estatildeo imunes agraves interferecircncias e agraves mudanccedilas

contemporacircneas Neste sentido as mudanccedilas observadas nas praacuteticas

alimentares tais como a adoccedilatildeo de novas tecnologias tecircm ocorrido de forma

ainda tiacutemida e natildeo implica um abandono da tradiccedilatildeo As famiacutelias estatildeo

convivendo ou se adaptando aos processos de mudanccedilas no mundo

contemporacircneo sem negar suas raiacutezes histoacutericas A incorporaccedilatildeo das praacuteticas

alimentares modernas tambeacutem natildeo eacute acriacutetica As famiacutelias sabem que a

substituiccedilatildeo implica em riscos perdas e ganhos No caso da gordura de porco

por exemplo mostraram-se conscientes quanto agrave questatildeo relativa agrave sauacutede no

consumo desse alimento que continua sendo prioritariamente utilizado na

preparaccedilatildeo de comidas tradicionais O que prevalece neste caso eacute a escolha

xiii

pelo sabor do alimento e pelo significado simboacutelico e tradicional atrelado a ele

Inseridas no processo que envolve tanto o desejo de manter sua autonomia

produtiva e cultura alimentar quanto agrave necessidade de ceder a algumas

mudanccedilas essas famiacutelias estatildeo aprendendo a se adaptar agraves dinacircmicas da

modernidade aderindo agraves novidades alimentares que lhes agradam e lhes satildeo

importantes e rejeitando o que natildeo lhes eacute interessante

xiv

ABSTRACT

LIMA Romilda de Souza DSc Universidade Federal de Viccedilosa November 2015 Eating habits and sociabilities in rural families of Minas Geraisrsquo Zona da Mata changings and remainings Adviser Joseacute Ambroacutesio Ferreira Neto Co-adviser Rita de Caacutessia Pereira Farias

This work aims to analyze and understand the meaning of food and commensality

relations limited to the changes and remains related to the eating habits of rural

families in the municipalities of Piranga Porto Firme and Presidente Bernardes

The chosen methodology was qualitative using semi-structured interviews and

observation The instruments used were the recorded interviews photographic

register and field notebook The empirical research analysis was built under the

light of theoretical approaches of anthropology and sociology of the alimentation

and history of the alimentation Despite the tendency pointed out by some

contemporary authors of a food homogenization in Western society as a result

of the modernization and globalization process that would have the power to

influence and transform the eating habits this was not the reality observed in the

surveyed rural families The research indicated the need to consider the cultural

diversity and the socio-historical context in order to study issues related to eating

habits of the groups In the studied families the issues related to eating habits

have a strong bond with the tradition and local food production That doesnrsquot

mean they are immune to interference and to contemporary changes In this

sense the observed changes in dietary practices such as the adoption of new

technologies have occurred still timidly and donrsquot imply a total abandonment of

tradition Families are living or adapting themselves to the changing processes in

the contemporary world without however transforming significantly their own

culture Itrsquos important to highlight that the incorporation of modern eating habits

options is not uncritical too The families know that the replacement of a habit by

another entails risks losses and gains as in the case of pork fat They proved to

be conscious about the matter on health in consumption of that food but it

remains primarily used in the preparation of traditional foods What prevails in this

case it is the choice by the flavor of the food and by the symbolic and traditional

meaning attached to it Inserted in the process involving both the desire to

xv

maintain its productive autonomy and eating culture and the need to give in to

some changes these families are learning to adapt to the everyday experiences

they arenrsquot closed in their cultural cores and even take posiacutetion averse to change

they demonstrate a resigned but critical attitude by submitting to the items of food

modernity they please and consider important as well as rejecting what is not

interesting to them

1

INTRODUCcedilAtildeO

ldquoDepois do idioma a comida eacute o mais importante elo entre o homem e a culturardquo

(Raul Lody 1997)

A alimentaccedilatildeo elemento baacutesico de sobrevivecircncia humana eacute tema

carregado de complexidade Se a razatildeo primeira do ato alimentar eacute a

necessidade fisioloacutegica de nutrir-se as demais satildeo carregadas de justificativas

culturais sociais e econocircmicas que por sua vez determinam as escolhas

alimentares

Aleacutem de ser um comportamento automaacutetico a sociologia a antropologia

e a histoacuteria da alimentaccedilatildeo tecircm mostrado que comer eacute um comportamento que

se liga de forma iacutentima com o comedor1 Em sentido semelhante o entendimento

da comida como categoria analiacutetica nessas trecircs aacutereas de estudo mostra que

pela comida eacute possiacutevel perceber as transformaccedilotildees do mundo social no decorrer

dos tempos Essa relaccedilatildeo se estabelece na escolha e ingestatildeo do alimento pois

conforme pondera Lody (2008 p 12) ldquonenhum alimento que entra em nossas

bocas eacute neutrordquo

Dessa forma este trabalho se fundamenta na compreensatildeo cultural e

social da comida vista como categoria de pensamento simboacutelico Trata-se

daquele sentido em que por meio das regras socialmente estabelecidas no ato

de comer criam-se viacutenculos com quem se come com o que se produz e com as

demais dinacircmicas que envolvem as praacuteticas alimentares O sentido dado por

Cacircndido (1982 p 30) elucida esse intuito

Qualquer que seja a posiccedilatildeo do alimento eacute sempre acentuada a sua importacircncia como fulcro de sociabilidade ndash natildeo apenas do que se organiza em torno dele mas daquelas em que ele aparece como expressatildeo tangiacutevel dos atos e das intenccedilotildees (CAcircNDIDO1982 p 30)

A escolha do tema da pesquisa se deu a partir de um processo que foi

sendo delineado e construiacutedo aos poucos considerando inicialmente o interesse

1 Expressatildeo francesa que na traduccedilatildeo das obras de Poulain (2013) e Poulain e Proenccedila (2003) para o

portuguecircs significa ldquocomedorescomedorrdquo Esta expressatildeo apareceraacute em citaccedilotildees do autor ao longo deste trabalho Representa para a Sociologia da Alimentaccedilatildeo atual o homem que come razatildeo da utilizaccedilatildeo da palavra ldquocomedorrdquo em portuguecircs A utilizaccedilatildeo desse termo segundo os autores surgiu a partir da publicaccedilatildeo de autoria de Aron (1976) ldquoLe mangeur du 19eacutemerdquo (POULAIN PROENCcedilA 2003 p 367)

2

pessoal e profissional pelo assunto2 mas tambeacutem estimulado por questotildees

instigantes proporcionadas por algumas disciplinas cursadas durante o

programa de doutorado Assim para se pensar o problema foram realizadas

leituras de pesquisas e de conteuacutedo teoacuterico das trecircs disciplinas apontadas acima

no que se refere agrave alimentaccedilatildeo O investimento teoacuterico realizado para conduzir

a pesquisa partiu da compreensatildeo de que a reflexatildeo teoacuterica e a pesquisa

empiacuterica se complementam em um percurso de matildeo dupla naquele sentido

apontado por Trajano (1990) Para este autor a priorizaccedilatildeo da teoria em

detrimento da pesquisa de campo ou vice-versa compromete o trabalho em sua

riqueza e profundidade

Atraveacutes da relaccedilatildeo entre pesquisa de campo e anaacutelise teoacuterica o conhecimento antropoloacutegico ganha impulso e avanccedila pois a pesquisa fornece o combustiacutevel que a teoria necessita para adentrar por novos campos e caminhos Por sua vez a teorizaccedilatildeo abre trilhas frescas e inexploradas para o trabalho de pesquisardquo (TRAJANO 1990 p 2)

A pesquisa de campo envolveu famiacutelias rurais de trecircs municiacutepios da

microrregiatildeo de Viccedilosa Piranga Presidente Bernardes e Porto Firme A escolha

desses municiacutepios se deu por eles formarem uma regiatildeo com maior populaccedilatildeo

rural da microrregiatildeo de Viccedilosa e pela sua interessante histoacuteria de ocupaccedilatildeo jaacute

que se trata de uma regiatildeo importante na busca do ouro pelos bandeirantes que

passaram pela zona da Mata questatildeo que seraacute detalhada em um dos capiacutetulos

deste trabalho

Analisar e buscar compreender como as famiacutelias estatildeo lidando com as

transformaccedilotildees alimentares que ocorrem na contemporaneidade foi o eixo

norteador da pesquisa A experiecircncia dessas famiacutelias neste contexto ldquofalardquo de

um grupo que busca responder e se adaptar agraves mudanccedilas sinalizando que o

rural contemporacircneo natildeo estaacute alheio e distante do que ocorre na sociedade mais

ampla questatildeo muito bem sinalizada nos estudos de Maria de Nazareth

Wanderley (2000 e 2009) Maria Joseacute Carneiro (1998) e Joseacute Graziano da Silva

(1997) Mas tambeacutem ldquofalardquo de um grupo que respeita sua tradiccedilatildeo e seus haacutebitos

alimentares suas necessidades de natildeo ceder a todas as mudanccedilas decorrentes

da contemporaneidade

2 Discussotildees de interesse dos grupos de pesquisa em que participo na Universidade Estadual do Oeste do

Paranaacute instituiccedilatildeo onde atuo haacute 12 anos

3

Segundo Wanderley (2009) um dos desafios enfrentados pelos

pesquisadores na contemporaneidade consiste em desvendar os processos

pelos quais se articulam as dinacircmicas internas e externas do mundo rural em

sua diversidade

Neste sentido esta pesquisa tem como objetivo analisar e compreender

o significado da comida e as relaccedilotildees de comensalidade atendo-se agraves

mudanccedilas e permanecircncias referentes agraves praacuteticas alimentares das famiacutelias Mais

especificamente analisar a articulaccedilatildeo entre o tradicional e o moderno o

processo de escolha alimentar e os princiacutepios que a determinam tais como

haacutebitos tradiccedilatildeo praticidade custo a influecircncia dos guardiatildees da tradiccedilatildeo na

reproduccedilatildeo do gosto no processo de significaccedilatildeo e ressignificaccedilatildeo da comida

atrelada agraves praacuteticas aos saberes e aos haacutebitos tanto no cotidiano quanto nos

rituais

Com esta pesquisa pretendo contribuir com as discussotildees sobre o

sistema alimentar contemporacircneo e a necessidade de nessa discussatildeo

relativizar os argumentos levando-se em consideraccedilatildeo a diversidade cultural

especialmente a rural

Esta tese estaacute organizada em cinco capiacutetulos aleacutem da introduccedilatildeo e

conclusatildeo O capiacutetulo 1 apresenta um breve histoacuterico de ocupaccedilatildeo da regiatildeo

estudada e as principais atividades rurais a partir de dados do IBGE (2010) O

capiacutetulo 2 trata de duas fases histoacutericas importantes de Minas Gerais e que

determinaram o sistema alimentar na regiatildeo de exploraccedilatildeo de ouro ateacute meados

do seacuteculo XX as fases da mineraccedilatildeo e a fase da ruralizaccedilatildeo As situaccedilotildees

alimentares ocorridas nesses periacuteodos foram marcantes na formaccedilatildeo cultural

alimentar da regiatildeo que pesquisei O capiacutetulo 3 apresenta a discussatildeo teoacuterica

das aacutereas da antropologia da sociologia e da histoacuteria da alimentaccedilatildeo apontando

o lugar da alimentaccedilatildeo nas principais anaacutelises dessas disciplinas a discussatildeo

existente em torno do sistema alimentar a anaacutelise das diferenccedilas atribuiacutedas

entre alimento e comida em uma abordagem cultural e simboacutelica as

possibilidades de permanecircncia ou extinccedilatildeo dos sistemas tradicionais no contexto

alimentar contemporacircneo a discussatildeo sobre o tradicional e o moderno no

contexto das dinacircmicas alimentares no meio rural e por fim uma breve

discussatildeo sobre o papel feminino nas praacuteticas alimentares na famiacutelia O capiacutetulo

4 apresenta as opccedilotildees e o direcionamento metodoloacutegicos da pesquisa de

4

empiacuterica a imersatildeo em campo e os resultados e algumas das caracteriacutesticas

relativas ao perfil das famiacutelias entrevistadas O capiacutetulo 5 trata da pesquisa

empiacuterica ou seja sobre as praacuteticas alimentares das famiacutelias rurais objeto de

interesse principal desta pesquisa Atraveacutes das entrevistas semiestruturadas o

cotidiano das famiacutelias no que diz respeito a sua cultura alimentar foi relatado e

discutido agrave luz dos objetivos propostos para a pesquisa e das abordagens

teoacutericas utilizadas Concluindo teccedilo outras discussotildees nas conclusotildees sobre a

pesquisa

5

1 A REGIAtildeO DE ESTUDO

As aacutereas rurais pesquisadas estatildeo situadas nos municiacutepios de Piranga

Porto Firme e Presidente Bernardes que pertencem agrave microrregiatildeo de Viccedilosa

localizados na Zona da Mata de Minas Gerais

A Figura 1 apresenta as microrregiotildees que compotildeem a Zona da Mata e

a Figura 2 os municiacutepios que fazem parte da microrregiatildeo de Viccedilosa

Fonte IBGE (2013)

Figura 1 ndash Microrregiotildees da Zona da Mata de Minas Gerais

6

Fonte IBGE (2013)

Figura 2 ndash Microrregiatildeo de Viccedilosa Minas Gerais

11 Um breve histoacuterico de ocupaccedilatildeo da regiatildeo estudada

Segundo Venacircncio (2007) descobertas arqueoloacutegicas recentes

apontam que na ocasiatildeo do descobrimento do Brasil pelos portugueses a regiatildeo

de Minas Gerais era habitada por diferentes grupos eacutetnicos Essas pesquisas

conseguiram estabelecer uma data de povoamento com registros entre 11 mil e

12 mil anos atraacutes O autor destaca que natildeo se pode esclarecer totalmente quais

eram todos esses grupos eacutetnicos mas no que se refere aos seacuteculos XVI e XVII

pelo material arqueoloacutegico encontrado acredita-se que muitos grupos indiacutegenas

entraram em Minas Gerais vindos de aacutereas litoracircneas provavelmente fugindo

da escravidatildeo e da dominaccedilatildeo dos portugueses Ainda segundo o autor na

regiatildeo de estudo que compreende a bacia do Rio Doce e a Zona da Mata mineira

os registros apontam que aqui habitavam primeiramente os botocudos e os

puri-coroados e que mais tarde chegaram os iacutendios goitacaacute fugidos do avanccedilo

7

da colonizaccedilatildeo portuguesa no norte da capitania fluminense hoje conhecida

como Campos dos Goitacazes

Registros feitos por Joatildeo Mawe3 viajante inglecircs que esteve em Minas

Gerais entre 1809 e 1810 detalham o conflito existente tambeacutem entre os

portugueses e os botocudos que rejeitavam ceder aos objetivos de

ldquodomesticaccedilatildeordquo dos colonizadores interessados na aacuterea que jaacute havia sido

identificada como muito rica em ouro Na regiatildeo de Piranga visando garantir a

exploraccedilatildeo do ouro informa Mawe (1922) ldquoexiste uma tropa pouco numerosa

de soldados para fazer patrulhas ao longo das fronteiras reconhecimentos nos

bosques ir procurar os selvagens por toda a parte onde lhes informam que

podem encontra-losrdquo (MAWE 1922 p 60)

A ocupaccedilatildeo da regiatildeo pelos portugueses se deu a partir dos caminhos

que se abriram para a exploraccedilatildeo de ouro no local que teve iniacutecio com os

bandeirantes paulistas Resende (2007) Zemella (1951) e Teixeira (2002)

apontam que esta regiatildeo comeccedilou a ser desbravada a partir de 1693 por uma

expediccedilatildeo bandeirante que saiu de Garganta do Embauacute (regiatildeo da Serra da

Mantiqueira e divisa entre Minas Gerais e Satildeo Paulo) conduzida por Antocircnio

Rodrigues Arzatildeo Essa bandeira pretendia chegar ateacute a regiatildeo denominada

Casa da Casca que se localizava entre Viccedilosa e Abre Campo em busca de

ouro O percurso incluiu o entatildeo arraial de Guarapiranga (atual Piranga) e foi no

rio Piranga na localidade onde hoje eacute a cidade de Itaverava o primeiro lugar

onde se encontrou ouro desde o iniacutecio do referido trajeto

Os nuacutecleos urbanos primeiramente como arraiais ou vilas iam se

formando em torno das Minas e locais dos rios que pareciam mais propiacutecios a

obtenccedilatildeo de grandes quantidades de ouro conforme aponta Torres (2011 p

69)

Os bandeirantes subindo o rio instalaram-se nos vales () Sempre usaram de dois tipos de pontos de referecircncia naturais durante suas interminaacuteveis excursotildees pelas florestas Primeiro os rios cujos cursos subiam ou desciam conforme era o caso ou entatildeo os grandes picos azuis marcos lanccedilados pela natureza para indicar onde estava o ouro

Naquela eacutepoca os atuais municiacutepios de Presidente Bernardes e Porto

Firme natildeo existiam como tal e faziam parte de Guarapiranga (atual Piranga)

3 Ver Mawe (1922)

8

Com a descoberta de ouro no rio Piranga a regiatildeo passou a ser de interesse

para a mineraccedilatildeo e iniciou por consequecircncia a chegada de muitos adventiacutecios

Segundo Resende (2007) e Furtado (2000) a exploraccedilatildeo de ouro em Minas

Gerais historicamente serviu de movimentaccedilatildeo geograacutefica de grande nuacutemero

de pessoas interessadas em enriquecer em Minas Gerais

() Nesse contexto marcado por um tracircnsito volumoso e desordenado de pessoas e de mercadorias tem iniacutecio de forma precoce e espetacular a ocupaccedilatildeo das terras de mineraccedilatildeo em que a uma ldquosede insaciaacutevel do ourordquo corresponde com enorme rapidez a formaccedilatildeo de grandes fortunas e uma desordem perigosa regulada a balas de chumbo (RESENDE 2007 p 29)

Assim a regiatildeo que abrange os municiacutepios da pesquisa passou a se

inserir na dinacircmica econocircmica e social da mineraccedilatildeo Ainda segundo Resende

(2007) os territoacuterios mineiros comeccedilaram a ser ocupados primeiramente onde

havia sido encontrado ouro aos quais eram denominados como o ldquocaminho do

ourordquo Nesse trajeto era possiacutevel encontrar alguma infraestrutura de apoio como

por exemplo vendas estalagens e capelas Eacute no entorno dessas localizaccedilotildees

fiacutesicas estruturais que surgem mais tarde as pequenas vilas os arraiais e ateacute

nuacutecleos urbanos mais importantes no estado de Minas Gerais

Segundo Barbosa (1995) em 1708 o arraial de Guarapiranga sofreu as

consequecircncias da Guerra dos Emboabas conflito entre bandeirantes paulistas

e portugueses em disputa pelo controle das minas e por pouco natildeo foi destruiacutedo

durante os embates

As batalhas foram mais concentradas no lugar onde estaacute o Santuaacuterio do

Senhor Bom Jesus do Matozinhos na comunidade do ldquoBacalhaurdquo em Piranga

Neste local possui uma placa e uma escultura simboacutelica lembrando o ocorrido

Neste santuaacuterio ocorre anualmente a festa religiosa do Jubileu do Bom Jesus e

os fieacuteis (romeiros) permanecem no local por dois a trecircs dias de festejos

9

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 3 ndash Santuaacuterio de Bom Jesus de Matozinhos em Bom Jesus do Bacalhau

Com o decliacutenio da mineraccedilatildeo entre os anos de 1753 a 1756 a regiatildeo

de Guarapiranga foi intensamente povoada quando ldquoinuacutemeras sesmarias foram

concedidas nas quais se mencionavam grandes roccedilas de milho casas de

vivenda paiol senzala engenhos bananais e outras aacutervoresrdquo (BARBOSA 1995

p 254) Ocorria nesse periacuteodo o processo de fortalecimento da agricultura

seguindo um percurso que se deu em toda a regiatildeo de mineraccedilatildeo de Minas

Gerais como seraacute visto no capiacutetulo 2 sobre a fase da ruralizaccedilatildeo em Minas

Em final do seacuteculo XVIII e iniacutecio do seacuteculo XIX a regiatildeo de Guarapiranga

possuiacutea a maior populaccedilatildeo de toda a Zona da Mata mineira com forte dinamismo

econocircmico Segundo Carrara (2007) Guarapiranga abastecia a entatildeo Vila Rica

e regiatildeo com aguardente e alguns produtos agriacutecolas baacutesicos os quais o autor

natildeo detalha quais eram Mas segundo o autor natildeo houve um corte que marcou

o fim da mineraccedilatildeo e iniacutecio da fase agriacutecola na regiatildeo pois durante muitos anos

foi marcante a presenccedila concomitante das minas dos currais e das lavouras

Enquanto a agricultura se fortalecia alguns poucos aventureiros insistiam na

busca de algum sinal de ouro restante nos rios

Segundo Lemos (2012) na fase de fortalecimento da agricultura

sobretudo na primeira metade do seacuteculo XIX houve intenso fluxo migratoacuterio que

fomentou a economia agriacutecola na regiatildeo principalmente voltada para a produccedilatildeo

de aguardente rapadura e melado Segundo Godoy (2012) os engenhos se

10

concentravam sobretudo na regiatildeo do distrito de Santo Antocircnio do Calambau

hoje Presidente Bernardes que na eacutepoca era distrito de Guarapiranga (Piranga)

A prodccedilatildeo da cana de accediluacutecar perdeu forccedila ao longo do tempo e na

ocasiatildeo da pesquisa natildeo era mais atividade central na regiatildeo embora existam

alambiques e algumas marcas de aguardente conhecidas no cenaacuterio nacional

como a ldquoVelha Aroreirardquo produzida em Porto Firme e a ldquoVale do Pirangardquo

produzida em Piranga Mas o que se produz ainda de aguardente eacute de caraacuteter

quase que apenas artesanal e pequena produccedilatildeo Em presidente Bernardes

todos os anos acontece o ldquoFestival da Cachaccedilardquo guardando ainda relaccedilotildees com

a tradiccedilatildeo deste produto

Os dados do IBGE de 1980 a 2010 apontam que os municiacutepios que

compunham como distritos a antiga Guarapiranga (Piranga Presidente

Bernardes e Porto Firme) apresentam queda em sua populaccedilatildeo rural como seraacute

visto a seguir

Tambeacutem segundo informaccedilotildees do IBGE (2010) Presidente Bernardes

e Porto Firme foram emancipados de Piranga em 1953 quando Calambau

passou a se chamar Presidente Bernardes e Porto Seguro passou a se chamar

Porto Firme Ambos os municiacutepios continuam pertencendo juridicamente agrave

Comarca de Piranga

12 Informaccedilotildees atuais sobre a populaccedilatildeo rural e as principais atividades agriacutecolas dos municiacutepios pesquisados

Segundo o IBGE (2010) a microrregiatildeo de Viccedilosa possui aacuterea total de

4826137 kmsup2 Eacute composta por vinte municiacutepios com aacutereas que variam entre

65881 kmsup2 (Piranga) e 8304 kmsup2 (Cajuri) Porto Firme e Presidente Bernardes

possuem aacutereas de 28478 kmsup2 e 2368 kmsup2 respectivamente conforme

apresentado na Tabela 1

Em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo observa-se que em 50 dos municiacutepios da

microrregiatildeo a populaccedilatildeo rural ultrapassa a urbana conforme a Tabela 1 Os

trecircs municiacutepios desta pesquisa encontram-se entre aqueles que possuem

populaccedilatildeo rural maior que a urbana sendo que entre todos os municiacutepios

Presidente Bernardes e Piranga satildeo os que possuem o maior percentual de

populaccedilatildeo rural em relaccedilatildeo a urbana conforme apontado na Tabela 2

11

Tabela 1 ndash Aacuterea e populaccedilatildeo da microrregiatildeo de Viccedilosa (2015)

Municiacutepio Aacuterea (kmsup2) Densidade

demograacutefica Populaccedilatildeo

total Populaccedilatildeo

rural Populaccedilatildeo

urbana

Piranga 65881 2616 17232 11274 5958 Pres Bernardes 2368 2338 5537 3895 1642 Porto Firme 28478 3658 10417 5586 4831 Araponga 30379 2683 8152 5111 3041 Rio Espera 2386 2544 6070 3667 2403 Canaatilde 1749 2646 4628 2769 1859 Alto Rio Doce 51805 2347 12159 7089 5070 Lamim 1186 2911 3452 1941 1511 Cipotacircnea 15348 4266 6547 3533 3014 Braacutes Pires 22335 2076 4637 2414 2223 Cajuri 8304 4874 4047 1951 2096 Amparo do Serra 14591 3463 5053 2411 2642 Ervaacutelia 35749 5020 17946 8476 9470 Paula Cacircndido 26832 3455 9271 4335 4936 Satildeo Miguel do Anta 15211 4444 6790 3014 3746 Senhora de Oliveira 17075 3328 5683 2427 3256 Pedra do Anta 16345 2059 3365 1173 2192 Teixeiras 16674 6871 11355 3732 7623 Coimbra 10688 6600 7054 1898 5156 Viccedilosa 29942 2412 72220 4915 67305

Fonte IBGE - Censo Demograacutefico de 2010

Tabela 2 ndash Percentual da populaccedilatildeo urbana e rural da microrregiatildeo de Viccedilosa nas deacutecadas de 1980 a 2010 (2015)

Populaccedilatildeo ()

Municiacutepio 1980 1991 2000 2010

Urbana Rural Urbana Rural Urbana Rural Urbana Rural

Piranga 197 803 237 763 299 701 346 654 Pres Bernardes 121 879 154 846 233 767 297 703 Porto Firme 23 77 293 707 411 589 463 537 Araponga 166 834 208 792 32 68 373 627 Rio Espera 264 736 268 732 322 678 396 604 Canaatilde 174 826 207 793 297 703 401 599 Alto Rio Doce 222 778 28 72 354 646 417 583 Lamim 226 774 287 713 38 62 438 562 Cipotacircnea 197 803 26 74 381 619 46 54 Braacutes Pires 153 847 24 76 353 647 48 52 Cajuri 387 613 46 54 546 454 518 482 Amparo Serra 246 754 35 65 458 542 522 478 Ervaacutelia 263 737 323 673 444 556 528 472 Paula Cacircndido 286 714 362 638 43 57 532 468 Satildeo Miguel Anta 389 611 44 56 501 499 554 446 Senhora Oliveira 363 637 451 549 482 518 572 428 Pedra do Anta 232 768 373 627 53 47 651 349 Teixeiras 445 555 533 467 623 377 671 329 Coimbra 456 544 54 46 539 466 73 30 Viccedilosa 806 194 90 10 921 79 931 69

Fonte IBGE - Censos Demograacuteficos de 1980 1991 2000 e 2010

12

A reduccedilatildeo da populaccedilatildeo rural eacute observada em todos os 20 municiacutepios

conforme mostra a Tabela 2 que apresenta informaccedilatildeo demograacutefica da

microrregiatildeo de Viccedilosa nas uacuteltimas trecircs deacutecadas segundo IBGE (2010) Esta

microrregiatildeo encontra-se proporcionalmente dividida em 50 de municiacutepios com

populaccedilatildeo urbana maior do que a rural e 50 em situaccedilatildeo inversa

Nos trecircs municiacutepios desta pesquisa a populaccedilatildeo rural vem diminuindo

ao longo das uacuteltimas deacutecadas Em Piranga Presidente Bernardes e Porto Firme

a populaccedilatildeo rural correspondia a 803 879 e 77 em 1980

respectivamente caindo para 655 703 e 537 respectivamente em 2010

Apesar disso Presidente Bernardes permanece sendo o municiacutepio com maior

populaccedilatildeo residente no campo na microrregiatildeo de Viccedilosa ao longo desse

periacuteodo seguido por Piranga que aparece como o segundo maior municiacutepio com

populaccedilatildeo rural no Censo de 2010 Alguns estudos apontam para a reduccedilatildeo da

populaccedilatildeo rural em outras partes do paiacutes e do mundo como Alves e Marra

(2009) Nunes (2007) ONU (2014) Camarano e Beltratildeo (2000) e Camarano e

Abramovay (1998)

As Tabelas 3 e 4 apontam que a populaccedilatildeo que compreende a faixa

etaacuteria de 30 a 50 anos eacute a maior na aacuterea rural nos trecircs municiacutepios e a populaccedilatildeo

idosa4 apresenta o menor nuacutemero de pessoas residentes no campo

Tabela 3 ndash Populaccedilatildeo rural por diferentes faixas etaacuterias

Municiacutepio Populaccedilatildeo

rural 1 - 14 anos 15 - 29 anos 30 - 59 anos

Acima de 60 anos

Piranga 11274 2748 3203 3751 1308 Pres Bernardes 3895 845 856 1421 610 Porto Firme 5586 1338 1378 2322 780 Total 20755 4931 5437 7494 2698

Fonte IBGE ndash Censo Demograacutefico 2010

Os dados da Tabela 4 mostram que o maior percentual de populaccedilatildeo

idosa se encontra em Presidente Bernardes mas natildeo se destaca em relaccedilatildeo

aos demais municiacutepios Neste municiacutepio tambeacutem estaacute o menor percentual da

4 Puacuteblico considerado acima de 60 anos de idade de acordo com Organizaccedilatildeo Mundial de Sauacutede

13

populaccedilatildeo jovem5 O maior percentual de populaccedilatildeo adulta (30-59 anos)

encontra-se em Porto Firme A maior diferenccedila entre o percentual de populaccedilatildeo

jovem e adulta encontra-se em Porto Firme e a menor em Piranga O percentual

da populaccedilatildeo adulta eacute superior agrave populaccedilatildeo idosa nos trecircs municiacutepios mas se

destaca em Porto Firme As informaccedilotildees das tabelas seratildeo retomadas no item

46 deste trabalho

Tabela 4 ndash Percentual da populaccedilatildeo rural por diferentes faixas etaacuterias ()

Municiacutepio Populaccedilatildeo

rural 1 - 14 anos 15 - 29 anos 30 - 59 anos

Acima de 60 anos

Piranga 11274 243 284 333 116

Pres Bernardes 3895 217 220 364 155

Porto Firme 5586 239 246 415 140

Fonte IBGE ndash Censo Demograacutefico 2010

13 Atividades produtivas

Nos municiacutepios onde foi realizado o trabalho de campo predominam

pequenas e meacutedias propriedades e produccedilatildeo em pequena escala basicamente

para consumo com venda do excedente Os tipos de produccedilatildeo natildeo sofrem

variaccedilotildees importantes entre os trecircs municiacutepios seja em tipo de produccedilatildeo seja

em quantidade produzida

Presidente Bernardes Dados do Relatoacuterio final do Plano Municipal de

Saneamento Baacutesico de Presidente Bernardes (2015) e da Emater local apontam

como principais atividades agropecuaacuterias do municiacutepio a cafeicultura a extraccedilatildeo

de carvatildeo vegetal em pequena escala e a pecuaacuteria leiteira de pequeno porte

Haacute ainda a fabricaccedilatildeo agroindustrial em pequenos alambiques de aguardente e

uma empresa de fabricaccedilatildeo de queijo Aleacutem desses os dados do IBGE (2006)

apontam tambeacutem a produccedilatildeo de milho feijatildeo cana de accediluacutecar suinocultura e

avicultura

5 Faixa etaacuteria entre 15 a 29 anos de idade definida no Estatuto da Crianccedila e do Adolescente (ECA) e

Estatuto da Juventude no Brasil como a que corresponde agrave categoria de juventude

14

Porto Firme Dados do Relatoacuterio final do Plano Municipal de

Saneamento Baacutesico de Porto Firme (2015) e da Emater local apontam como

principais atividades agropecuaacuterias do municiacutepio Pecuaacuteria leiteira cafeicultura

extraccedilatildeo de carvatildeo vegetal e lavoura de feijatildeo No municiacutepio tambeacutem haacute

produccedilatildeo de aguardente artesanal por pequenos alambiques Aleacutem desses os

dados do IBGE (2006) apontam a produccedilatildeo de milho feijatildeo cana de accediluacutecar

suinocultura e avicultura

Piranga Dados do Relatoacuterio Anual da Emater Local (2014) e do IBGE

(2006) apontam como principais atividades agropecuaacuterias do municiacutepio

extraccedilatildeo de carvatildeo vegetal cafeicultura pecuaacuteria leiteira milho e feijatildeo cana de

accediluacutecar suinocultura e avicultura

Segundo as famiacutelias entrevistadas envolvidas na atividade de extraccedilatildeo

de carvatildeo vegetal esta atividade vem substituindo aos poucos a cafeicultura

nos uacuteltimos anos em funccedilatildeo do seu retorno financeiro mais favoraacutevel aos

agricultores aliado ao fato desta atividade lhes ser menos trabalhosa

A regiatildeo rural dos municiacutepios onde foi feita a pesquisa manteacutem muito de

suas caracteriacutesticas tradicionais em vaacuterios aspectos da alimentaccedilatildeo como seraacute

visto neste trabalho Mas tambeacutem na forma de produccedilatildeo transporte e

armazenamento dos produtos A Figura 4 mostra algumas dessas peculiaridades

observadas Segundo Martins (2008 p 26) a inserccedilatildeo das fotografias ldquoeacute um

recurso que amplia e enriquece a variedade de informaccedilotildees de que o

pesquisador pode dispor para reconstruir e interpretar determinada realidade

socialrdquo

A Figura 4 mostra a produccedilatildeo de um casal de aposentados que mora

sozinho Eles executam poucos serviccedilos no siacutetio Um de seus filhos mora na

cidade de Piranga e os outros em outras cidades mais distantes O casal paga

por serviccedilos de plantio e colheita do milho e do feijatildeo A quantidade de milho eacute

muito pequena apenas para uso local A Figura 4a mostra parte do milho no

paiol e a Figura 4b mostra parte do milho jaacute debulhado secando ao sol no quintal

para depois ser processado no moinho eleacutetrico para a produccedilatildeo de fubaacute

15

(a) (b)

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 4 ndash Milho colhido no siacutetio de Anita e Gilberto na comunidade de Manja em Piranga

Muitas estradas das comunidades mais distantes ainda contam com

muitas porteiras que ficam fechadas Eacute o caminho por onde se transita o veiacuteculo

automotor mas ela atende principalmente agrave loacutegica rural tradicional Quem

precisa transitar deve descer do veiacuteculo abrir as porteiras e fechaacute-las ao

atravessar A Figura 5 por exemplo registrada na estrada da comunidade de

Manja em Piranga mostra uma forma tradicional de transportar as espigas de

milho do roccedilado para o paiol mas ainda muito usada na regiatildeo Havia trecircs

pessoas fazendo esse transporte uma pessoa em cima da carroccedila e outros dois

candiando os bois e abrindo e fechando as porteiras

A Figura 6 mostra um engenho de cana que estava sem uso no ano de

2015 pela baixa produccedilatildeo de cana neste ano no siacutetio de Lola e Marcos em

Presidente Bernardes Nele se produz rapadura e melado que eacute vendida para o

comeacutercio de Presidente Bernardes e tambeacutem para os vizinhos das proximidades

16

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 5 ndash Carro de boi transportando espigas de milho da roccedila para o paiol na estrada da comunidade de Manja em Piranga

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 6 ndash Engenho de produccedilatildeo de rapadura no siacutetio de Lola e Marcos na comunidade Xopotoacute Presidente Bernardes

As caracteriacutesticas rurais dos trecircs municiacutepios satildeo muito semelhantes

tanto no que se refere agrave forma de produccedilatildeo agriacutecola quanto na cultura e no perfil

populacional cuja populaccedilatildeo rural supera a urbana Sendo uma regiatildeo cuja

formaccedilatildeo ocorreu a partir da mineraccedilatildeo muitas de suas caracteriacutesticas ainda

estatildeo ligadas a esse processo histoacuterico Outras peculiaridades sobre o perfil das

17

famiacutelias seratildeo apresentadas no capiacutetulo 4 No sistema alimentar o que se

praticava produzia e o que era consumido na fase da mineraccedilatildeo teve influecircncia

na manutenccedilatildeo de muitas das praacuteticas existentes atualmente na regiatildeo onde foi

feita a pesquisa Sobre o que representou a alimentaccedilatildeo na fase da mineraccedilatildeo

e da ruralizaccedilatildeo no periacuteodo de formaccedilatildeo dessa regiatildeo eacute o que seraacute tratado no

proacuteximo capiacutetulo

18

2 A COMIDA EM MINAS GERAIS DA ESCASSEZ Agrave FARTURA

Arruda (1990) destaca em Minas Gerais duas fases muito importantes

para a sua formaccedilatildeo histoacuterica e cultural a primeira eacute a do ciclo da mineraccedilatildeo

que teve iniacutecio no final do seacuteculo XVII e segue ateacute o final do seacuteculo XVIII Neste

periacuteodo a vida urbana emerge com uma intensa movimentaccedilatildeo a segunda fase

eacute a chamada ldquoruralizaccedilatildeordquo que se inicia ao final do seacuteculo XVIII justamente com

o decliacutenio da mineraccedilatildeo seguindo ateacute o iniacutecio do seacuteculo XX Segundo a autora

na segunda fase as aacutereas rurais (as fazendas) passam a ter maior valorizaccedilatildeo

se tornando o ldquomicrocosmo do universo material social e culturalrdquo (ARRUDA

1990 p 135) Aleacutem das duas principais fases a autora destaca uma terceira fase

em Minas que se configura a partir dos meados do seacuteculo XX com a

industrializaccedilatildeo

Para a autora as duas primeiras fases representam formas de

sociabilidade muito peculiares que se expressam nas praacuteticas alimentares

desses periacuteodos e que tiveram influecircncia direta na formaccedilatildeo dos haacutebitos

alimentares em Minas Gerais haacutebitos que se perpetuaram ateacute o periacuteodo

contemporacircneo sendo relevantes para este trabalho Essas informaccedilotildees

ajudaratildeo a analisar se as praacuteticas alimentares comuns a estas fases em Minas

continuam presentes sendo praticadas pelas famiacutelias rurais pesquisadas neste

trabalho

Antes de discutir especificamente as questotildees alimentares relativas agraves

duas fases eacute importante realizar uma sucinta passagem pelo contexto alimentar

no Brasil colonial

21 Contextualizando o lugar da comida no Brasil Colonial nos primoacuterdios

Segundo Panegassi (2013) o colonizador europeu estabeleceu uma

relaccedilatildeo etnocecircntrica com o territoacuterio natural americano e isso se deu tambeacutem e

principalmente em relaccedilatildeo agrave alimentaccedilatildeo No seacuteculo XVI ele natildeo encontrava em

territoacuterios da colocircnia os alimentos que estava habituado a consumir em Portugal

vivenciando assim uma realidade na qual o autor denomina de ldquoescassez

culturalrdquo de alimentos (p 14) O autor cita o exemplo da carta de Joatildeo de Mello

Cacircmara a Dom Joatildeo III por volta de 1530 quando este rei estabeleceu que a

19

colonizaccedilatildeo seria baseada na expansatildeo da ocupaccedilatildeo das terras atraveacutes das

capitanias hereditaacuterias Mello Cacircmara informa a Dom Joatildeo III que traria para a

colocircnia homens de Portugal para cultivarem alimentos mais comuns aos

portugueses evitando mudanccedilas draacutesticas de seus haacutebitos alimentares pois

considerava os alimentos originaacuterios da Colocircnia inferiores para o consumo dos

portugueses

No entanto por mais que os colonizadores portugueses tenham tido

dificuldade em se habituar ao consumo de alimentos aqui disponiacuteveis foi preciso

se render a eles como tambeacutem aponta Freyre (1964)

A adaptaccedilatildeo foi o caminho obrigatoacuterio como destaca Panegassi (2013

p 70)

No acircmbito de uma situaccedilatildeo na qual um grande nuacutemero de pessoas eacute inserido em um novo ambiente cultural ainda que os receacutem-chegados procurem preservar seus padrotildees culturais de origem a necessidade de sobreviver impotildee inuacutemeros ajustes principalmente nos primeiros anos de presenccedila na nova aacuterea

Nesse sentido Holanda (1995) afirma que o interesse pela aventura

pela obtenccedilatildeo de tiacutetulos de posiccedilatildeo social e de prosperidade econocircmica servia

como estiacutemulo para o ldquosacrifiacuteciordquo da adaptaccedilatildeo Os portugueses tentaram

portanto recriar aqui condiccedilotildees de sobrevivecircncia e de adaptaccedilatildeo com poucas

exigecircncias ldquoOnde lhes faltasse o patildeo de trigo aprendiam a comer o da terra

() soacute consumiam farinha de mandioca fresca feita no dia Habituaram-se

tambeacutem a dormir em redes agrave maneira dos iacutendios e a beber e a mastigar fumordquo

(HOLANDA 1995 p 47)

De acordo com Panegassi (2013) os padres jesuiacutetas preferiam comer o

patildeo de mandioca e as bebidas existentes na colocircnia do que os que vinham de

Portugal em navios pois a viagem era longa e os alimentos armazenados

inadequadamente Era comum que os produtos como os patildees chegassem

estragados ao destino ou seja sem condiccedilotildees de serem ingeridos Assim Mello

(1975 apud PANEGASSI 2013 p 104) conclui que

A mudanccedila que se processaraacute nos haacutebitos dieteacuteticos do portuguecircs colonizador do Brasil ou do portuguecircs colonizador de outras aacutereas tropicais eacute menos o resultado de uma capacidade especial de amoldaccedilatildeo do que da impossibilidade de obter um suprimento regular e abundante de trigo e outros viacuteveres de origem europeia

20

Dessa maneira num contexto de convivecircncia cultural e de costumes foi

se estabelecendo ao longo do processo de colonizaccedilatildeo brasileira a conformaccedilatildeo

inicial dos haacutebitos alimentares baseados na miscigenaccedilatildeo cultural alimentar

recebendo posteriormente a influecircncia africana com a chegada dos escravos

conforme seraacute tratado mais agrave frente Os alimentos autoacutectones inicialmente foram

os mais consumidos sobretudo a mandioca por substituir o trigo para a

elaboraccedilatildeo de patildees e bolos No entanto na regiatildeo de mineraccedilatildeo em Minas

Gerais ndash aacuterea de pesquisa deste trabalho ndash o milho e natildeo a mandioca foi

preponderante na alimentaccedilatildeo Como seraacute mostrado mais agrave frente o milho teve

papel fundamental natildeo apenas para alimentaccedilatildeo animal mas tambeacutem para

alimentar os escravos que trabalhavam nas lavras que o ingeriam segundo

Cacircmara Cascudo (2004) na forma de papa angu e canjica Segundo o mesmo

autor foram as mulheres portuguesas que criaram a receita da broa e do pudim

de milho que se tornaram e permanecem pratos tiacutepicos em Minas Gerais

Segundo Torres (2011 p100)

O mineiro nunca usou patildeo da ldquofarinha de paurdquo (mandioca) o patildeo da terra dos primeiros seacuteculos da colonizaccedilatildeo Sempre preferiu o angu os soacutelidos bolos de fubaacute e o cobu enrolado em folha de bananeira Para misturar o feijatildeo usou sempre a farinha de milho (o milho seco socado no monjolo e depois torrado) o angu a farinha de moinho As classes pobres usavam a ldquocanjiquinhardquo subproduto de despolpaccedilatildeo do milho com muito ecircxito para substituir o arroz

A carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei em 1500 aponta algumas

peculiaridades sobre a primeira percepccedilatildeo sobre alimentaccedilatildeo Os portugueses

ofereceram aos iacutendios ldquopatildeo (de trigo) peixe cozido (com condimentos)

confeitos mel massa de ovos figos passados e vinho de uvas mas os iacutendios

natildeo quiseram comer quase nadardquo (BORGES 2014 p 204) Segundo Cacircmara

Cascudo (2004) as novidades para os iacutendios era o patildeo de trigo massa de ovos

os condimentos incluindo o sal o accediluacutecar e finalmente o vinho feito de uvas

apesar de jaacute produzirem bebidas fermentadas a partir do milho da mandioca e

de frutas

A rejeiccedilatildeo dos iacutendios sinaliza que natildeo foi apenas da parte dos

portugueses que houve inicial rejeiccedilatildeo aos novos alimentos e haacutebitos

alimentares como registrado na carta de Mello Cacircmara a Dom Joatildeo III citado

anteriormente Os iacutendios tambeacutem expressaram seu interesse em manter seus

proacuteprios haacutebitos alimentares desconsiderando os alimentos vindos de Portugal

21

Segundo Cacircmara Cascudo (2004) animais como boi vaca porco

galinha cabra e ovelha foram introduzidos pelos portugueses bem como os

cultivos de arroz feijatildeo e verduras pela implantaccedilatildeo de hortas Registros do

padre jesuiacuteta Fernatildeo Cardim que chegou em 1584 descreve a existecircncia de

ldquoalface aboacutebora couve pepino nabos mostarda hortelatilde coentros endros

funchos ervilhas gergelim cebolas alhos e outros legumes que do Reino se

trouxeram que se datildeo bem na terrardquo (CARDIM 1939 p 94)

A partir do que eacute apresentado por Cacircmara Cascudo (2004) e Freyre

(1964) eacute possiacutevel verificar ainda os haacutebitos alimentares dos escravos africanos

que foram trazidos para a colocircnia em meados do seacuteculo XVI primeiramente

inseridos no trabalho dos engenhos de cana e algodatildeo e posteriormente na

mineraccedilatildeo e fazendas de gado

Segundo Cacircmara Cascudo (2004) quase todos escravos eram

obrigados a se alimentar da dieta que lhes era fornecida assim a possibilidade

de escolha do que comer era praticamente nula Eram melhor alimentados

apenas durante a viagem de navio ateacute chegar em terras brasileiras pois

precisariam estar em boas condiccedilotildees para serem revendidos

A refeiccedilatildeo consiste durante a viagem em feijatildeo farinha de milho e de mandioca agraves vezes tambeacutem peixe salgado Sua bebida eacute aacutegua e de quando em quando tambeacutem um pouco de aguardente Sendo levados do Brasil esses gecircneros teriam deterioraccedilatildeo raacutepida e natural (MARTIUS 21 apud CAcircMARA CASCUDO 2004 p 200)

Uma vez instalados nas aacutereas a que foram destinados na colocircnia a

alimentaccedilatildeo do europeu natildeo mudava significativamente Poreacutem em Minas

Gerais era comum a destinaccedilatildeo de pequenas parcelas de terra para que

escravos cultivassem vegetais de sua preferecircncia proacuteximo agraves senzalas

provendo uma alimentaccedilatildeo melhor pelo menos mais diversificada (CAcircMARA

CASCUDO 2004 GUIMARAtildeES REIS 2007) Citando relatos de Gabriel Soares

de Souza que esteve na Bahia de 1570 a 1587 e de Joatildeo Mauricio Rugendas

que passou pelo Brasil de 1821 a 1835 Cacircmara Cascudo (2004) relata que

nesses roccedilados os escravos podiam trabalhar em dias santos e em dias de festa

na casa-grande Era dado aos escravos pequenas parcelas de terra onde eles

podiam cultivar alimentos de seu interesse de consumo

Dessa forma as roccedilas de subsistecircncia aleacutem de contribuiacuterem para reduzir os custos de manutenccedilatildeo da matildeo de obra ao complementarem

22

a alimentaccedilatildeo fornecida pelos senhores criavam um espaccedilo proacuteprio para os escravos contribuindo assim para a prevenccedilatildeo de fugas e revoltas (GUIMARAtildeES REIS 2007 p 330)

A possibilidade de cultivar algumas roccedilas de alimentos preferidos na

cultura africana segundo Cacircmara Cascudo e Gilberto Freyre explica a inserccedilatildeo

de muitas plantas africanas que de alguma maneira os escravos conseguiram

transportaacute-las para o Brasil durante sua viagem Isso tambeacutem permitiu a

inserccedilatildeo de algumas peculiaridades das praacuteticas alimentares africanas na

formaccedilatildeo da comida brasileira atraveacutes das cozinheiras e tambeacutem embora mais

raramente dos cozinheiros que atuavam nas casas-grandes Segundo Freyre

(1964) pode-se atribuir a eles a introduccedilatildeo dos seguintes ingredientes

alimentos e modos de fazer na culinaacuteria brasileira

Azeite-de-dendecirc pimenta malagueta quiabo maior uso da banana variedade de formas de preparar a galinha e o peixerdquo (p 634) Dentro da extrema especializaccedilatildeo de escravos no serviccedilo domeacutestico das casas-grandes reservaram-se sempre dois agraves vezes trecircs indiviacuteduos aos trabalhos de cozinha (FREYRE 1964 p 634)

Freyre (1964) aponta que as influecircncias se deram primeiramente e mais

fortemente nos estados do Nordeste (Bahia Pernambuco e Maranhatildeo) em

funccedilatildeo dos trabalhos nos engenhos da regiatildeo Na Bahia foi muito marcante a

inserccedilatildeo das vendas dos quitutes doces e salgados em tabuleiros ou gamelas

pelas ruas sobretudo pelas mulheres alforriadas mas tambeacutem havia aquelas

que vendiam para reverter a renda agrave sua lsquosinhaacutersquo6 ldquoQuindim cocada sequilhos

mocotoacutes vatapaacutes mingaus pamonhas canjicas acaccedilaacutes abaraacutes arroz-de-coco

feijatildeo-de-coco angus patildeo-de-loacute de arroz patildeo-de-loacute de milho rebuccedilados7rdquo (p

636) Este autor afirma que os dois pratos de origem africana que mais fizeram

sucesso na mesa da casa-grande foram o vatapaacute e o caruru

Com a chegada da Corte Portuguesa em 1808 segundo Cacircmara

Cascudo (2004) Holanda (1995) e Ribeiro (2014) algumas alteraccedilotildees

importantes comeccedilaram a ocorrer no plano alimentar dos mais ricos com a

vinda inclusive de cozinheiros particulares com seus livros de receitas Criaram-

se modismos que tiveram influecircncia principalmente no Rio de Janeiro Um deles

6 No capiacutetulo 3 deste trabalho faccedilo uma discussatildeo mais detalhada sobre o papel das mulheres iacutendias

africanas e portuguesas na formaccedilatildeo da culinaacuteria brasileira 7 Como os portugueses se referem ao doce ldquobalardquo

23

foi a ampliaccedilatildeo do consumo de produtos importados da Europa e o estilo francecircs

de comer

Importava-se conservas doces frutos processados salsichas presuntos manteiga queijo chaacute e temperos () Desde entatildeo os haacutebitos agrave mesa se europeizaram os ideais alimentares e de paladar se tornaram cada vez mais semelhantes aos franceses berccedilo da gastronomia como a conhecida hoje (RIBEIRO 2014 p 50-51)

Freyre (1964) descreve informaccedilotildees dos livros de receitas dos

cozinheiros que vieram de Portugal e que passaram a inserir as novas praacuteticas

alimentares importadas para os mais abastados como a substituiccedilatildeo da gordura

pela manteiga francesa nas frituras diversas o reduzido uso da feijoada e dos

guisados do uso da pimenta e de outros condimentos picantes O proacuteprio trigo

antes uma raridade passou a chegar com maior facilidade e iniciando-se a

produccedilatildeo do patildeo de trigo tatildeo caracteriacutestico em Portugal e que passou a ser

muito consumido tambeacutem no Brasil

Em vez do aluaacute da garapa de tamarindo do caldo de cana ndash o chaacute agrave inglesa em vez de farinha do piratildeo ou do quibebe ndash a batata chamada inglesa Juntando-se a tudo isso o requinte do gelo Manteiga francesa batata inglesa chaacute tambeacutem agrave inglesa gelo ndash tudo isso agiu no sentido da desafricanizaccedilatildeo da mesa brasileira que ateacute os primeiros anos de independecircncia estivera sob maior influecircncia da Aacutefrica e dos frutos indiacutegenas (FREYRE 1964 p 642)

As influecircncias de outras culturas continuaram a se expandir a partir de

metade do seacuteculo XIX com a chegada de novos imigrantes ndash principalmente

italianos alematildees espanhoacuteis japoneses e siacuterio-libaneses ndash novos elementos da

culinaacuteria tiacutepica desses grupos eacutetnicos foram se incorporando a jaacute miscigenada

comida brasileira Na contemporaneidade a influecircncia alimentar mais relevante

de uma cultura externa eacute a norte-americana Poreacutem no seacuteculo XX o hibridismo

alimentar natildeo mais ocorre necessariamente pela intensidade da imigraccedilatildeo mas

sobretudo pela influecircncia da globalizaccedilatildeo Ao facilitar a divulgaccedilatildeo o transporte

e a aquisiccedilatildeo de alimentos de outros paiacuteses esse processo propiciou a

introduccedilatildeo constante de novas praacuteticas e haacutebitos alimentares

Apoacutes a breve introduccedilatildeo sobre os haacutebitos alimentares formados no Brasil

colonial passo a tratar especificamente da regiatildeo de Minas Gerais onde se deu

a fase mineradora regiatildeo na qual estatildeo inseridos os municiacutepios pesquisados

24

22 Fase da mineraccedilatildeo em Minas Gerais escassez de alimentos

O ciclo da mineraccedilatildeo foi muito importante para a economia da colocircnia

portuguesa e iniciou-se apoacutes a quase estagnaccedilatildeo do ciclo do accediluacutecar no final do

seacuteculo XVII Teve seu apogeu em Minas Gerais no seacuteculo XVIII e nesta fase

por determinaccedilatildeo da Coroa Portuguesa toda a matildeo de obra deveria estar

voltada basicamente agrave extraccedilatildeo de ouro e diamante Paula (2007) menciona que

a mineraccedilatildeo foi uma atividade central e decisiva na peculiaridade histoacuterica da

regiatildeo onde ela ocorreu Segundo o autor algumas caracteriacutesticas dessa

atividade foram a rapidez e amplitude com que a regiatildeo foi ocupada O intenso

fluxo imigratoacuterio gerado pela quantidade de ouro e seu preccedilo transformou-a na

Capitania mais populosa do periacuteodo colonial ao imperial Por sua importacircncia

econocircmica e dinamismo da atividade Minas Gerais teve o maior nuacutemero de

escravos da Ameacuterica Portuguesa

O fato de ser ele mesmo o ouro dinheiro em sua forma mais universal teraacute decisivo impacto sob o grau de dinamismo e mercantilizaccedilatildeo da economia mineira A riqueza decorrente da atividade induziraacute o Estado portuguecircs a efetivamente implantar a maacutequina estatal da colocircnia agrave qual seraacute durante muito tempo apenas fisco poliacutecia e justiccedila Satildeo essas dimensotildees que vatildeo determinar o desenvolvimento em Minas Gerais de uma estrutura urbana de uma certa vida poliacutetica e cultural em nada triviais no contexto colonial (PAULA 2007 p 279)

Assim a atividade mineradora fez surgir em Minas Gerais primeiramente

uma sociedade urbana baseada na extraccedilatildeo de ouro e diamantes com a

formaccedilatildeo de pequenos povoados e arraiais Segundo Zemella (1951) ldquoos

arraiais mineiros cresceram tatildeo vertiginosamente que em poucos anos muitos

deles atingiram a dignidade de vila Surgiram primeiramente Mariana Vila Rica

Caeteacute Sabaraacute Vila do Priacutencipe Arraial do Tijuco e outrosrdquo (ZEMELLA 1951 p

46) Nesses ldquooutrosrdquo citados pela autora estaacute incluiacuteda a vila de Guarapiranga

(atuais municiacutepios de Piranga Porto Firme e Presidente Bernardes) como jaacute foi

mencionado

Em funccedilatildeo disso analisa Cacircmara Cascudo (2004) com um contingente

elevado de pessoas que chegavam tanto do litoral da Colocircnia como tambeacutem de

Portugal em busca das riquezas minerais a escassez de alimento foi um fator

marcante nesse periacuteodo jaacute que se plantava muito pouco e boa parte da comida

25

era trazida por tropeiros8 a preccedilos elevados Aleacutem disso demorava a chegar

devido agraves dificuldades das tropas em avanccedilar pelas matas e estradas de difiacutecil

acesso

O excesso de ouro mal enfrentava o exageradiacutessimo preccedilo dos gecircneros alimentiacutecios transportados de longe porque natildeo havia vontade e tempo para plantar cereais Garimpeiros e faiscadores9 tinham que comprar qualquer elemento para compor a menor refeiccedilatildeo Toda a escravaria estava ocupada no desmonte das terras e lavagem do ouro (CAcircMARA CASCUDO 2004 p 208)

Segundo Frieiro (1982) e Paula (2007) as crises de abastecimento foram

graviacutessimas e causaram muitas mortes por fome aleacutem da acelerada alta de

preccedilos dos alimentos Magalhatildees (1978) aponta duas grandes crises de fome a

de 1697-1698 e a de 1700-1701 Essas crises propiciaram uma dispersatildeo

populacional do centro da regiatildeo mineradora ldquoOs primeiros habitantes natildeo

pensavam em perder tempo nas canseiras do amanho e plantio da terra A falta

de caminhos agravava sobremaneira o problema do abastecimentordquo (FRIEIRO

1982 p 56)

Segundo o autor tinha-se assim uma alimentaccedilatildeo de baixo valor

proteico Para minimizar isso comia-se o ldquobicho da taquarardquo assado ou torrado

Alimento que jaacute era consumido pelos indiacutegenas

O que comia o faisqueiro na sua lavra Comia do pouco que se plantava nas roccedilas Milho feijatildeo farinha de mandioca e alguma fruta da terra eram o cotidiano sustento dos mineradores O escravo negro pau para toda obra armava o tripeacute de varas fincado no chatildeo e pendurava nele o caldeiratildeo de ferro em que cozinhava o feijatildeo com toucinho servido em pratos de estanho Estendia-se a farinha ao sol numa toalha e ao lado natildeo faltava o ancorote de aacutegua ou aguardente Galinha ovos e doces quando os havia muito raros eram tudo por preccedilo da hora da morte (FRIEIRO 1982 p 57)

A partir disso pela necessidade de manter a atividade e portanto de

manter alimentados os homens para o trabalho o rei ordena a importaccedilatildeo de

carne de boi para Minas vinda de Satildeo Paulo Curitiba sertotildees da Bahia e

Pernambuco Essas regiotildees natildeo possuiacuteam grande plantel mas passaram a

ampliar a produccedilatildeo para atender agrave demanda mineira A carne chegava cara e

8 Uma importante e movimentada rota de comercializaccedilatildeo para abastecer a regiatildeo de suprimentos gerais e

comida surge da exploraccedilatildeo de ouro e diamante Detalhes dessa rota comercial por ser visto em Zemella (1951)

9 Muito comuns na mineraccedilatildeo os faiscadores eram homens livres e pobres havendo mesmo escravos entre eles que entregavam quantia fixa de ouro ao senhor e guardavam o eventual excedente (VAINFAS 2001 p 398)

26

tambeacutem tinha seu preccedilo elevado nas regiotildees de origem jaacute que se priorizava a

exportaccedilatildeo para Minas Apesar da escassez de comida representar um aspecto

negativo para Minas Gerais ela contribuiu para a expansatildeo do mercado de

outras regiotildees do paiacutes que investiram no abastecimento de alimentos da aacuterea de

mineraccedilatildeo conforme aponta Furtado (2000)10

Segundo Zemella (1951) apesar do empenho de Satildeo Paulo e das outras

regiotildees em fazer chegar a carne ateacute as Minas Gerais havia irregularidades no

fornecimento Em funccedilatildeo disso usava-se muito da carne de caccedila e de todo o

tipo de alimento que se poderia obter nas matas aleacutem do pouco que colhiam nas

pequenas roccedilas para subsistecircncia insuficiente para atender a demanda de todos

os trabalhadores que viviam na regiatildeo dedicada agrave mineraccedilatildeo

A situaccedilatildeo de inseguranccedila alimentar grave que se instalava e a grande

dificuldade na obtenccedilatildeo da carne bovina ldquoestimulou o governo metropolitano agrave

formaccedilatildeo de uma zona pecuarista em torno das minas distribuindo sesmarias

em profusatildeo sempre sob a condiccedilatildeo de os agraciados instalarem curraisrdquo

(ZEMELLA 1951 p 192) O objetivo era tambeacutem que com o tempo a produccedilatildeo

de gado se tornasse suficiente para natildeo mais haver comeacutercio com a Bahia

visando fechar os canais por onde escoava o contrabando de ouro

A outra accedilatildeo do governo da qual trata a autora foi instituir a criaccedilatildeo de

suiacutenos onde houvesse espaccedilo para tal Assim passou a ser frequente entre os

mineiros a implantaccedilatildeo de chiqueiros rudimentares no quintal das casas mesmo

nas casas urbanas Surge a partir dessa situaccedilatildeo a preferecircncia pela carne suiacutena

na dieta do mineiro da regiatildeo de mineraccedilatildeo11 carne que estaacute presente na maior

parte das receitas consideradas mineiras ainda nos dias atuais

Outra medida por parte da Coroa para garantir a subsistecircncia interna e

certa autonomia ao longo desse periacuteodo de mineraccedilatildeo foi a criaccedilatildeo da ldquoOrdem

10 A pecuaacuteria que encontrara no Sul um habitat excepcionalmente favoraacutevel para desenvolver-se - e que

natildeo obstante sua baixiacutessima rentabilidade subsistia graccedilas agraves exportaccedilotildees de couro ndash passaraacute por uma verdadeira revoluccedilatildeo com o advento da economia mineira O gado do Nordeste cujo mercado definhava com a decadecircncia da economia accedilucareira tende a deslocar-se em busca do florescente mercado da regiatildeo mineira Outra caracteriacutestica de profundas consequecircncias para as regiotildees vizinhas radicava em seu sistema de transporte A tropa de mulas constitui autecircntica infraestrutura de todo o sistema A quase inexistecircncia de abastecimento local de alimentos a grande distacircncia por terra que deveriam percorrer todas as mercadorias importadas a necessidade de vencer grandes caminhadas em regiatildeo montanhosa para alcanccedilar os locais de trabalho tudo contribuiacutea para que o sistema de transporte desempenhasse um papel baacutesico no funcionamento da economia Criou-se assim um grande mercado para animais de carga (FURTADO 2000 p 81)

11 Nas regiotildees do norte de Minas Gerais outros tipos de carne satildeo mais comuns por exemplo a carne de sol em que se usa mais frequentemente a carne de boi

27

Reacutegia de 27 de fevereiro de 1777rdquo que tornou obrigatoacuterio o cultivo nas aacutereas

rurais em quantidade suficiente para abastecimento de mandioca feijatildeo e milho

considerados alimentos baacutesicos naquela eacutepoca

O milho que na regiatildeo das Minas Gerais passou a ser mais importante

para consumo humano12 do que a mandioca tinha como derivados pipoca

curau pamonha farinha cuscuz biscoitos bolos cerveja de milho verde

aguardente canjica ldquoque os ricos comiam por gosto e os pobres por

necessidaderdquo (FRIEIRO 1982 p 57) Isso porque estes derivados eram

consumidos apenas pelos proprietaacuterios das terras e outros poucos abastados

Segundo Saint-Hilaire (1938) e Frieiro (1982) aos escravos soacute era dado o angu

que durante muito tempo foi a base de sua dieta Saint-Hilaire (1938) que

aprovou o paladar da alimentaccedilatildeo agrave base do milho descreve detalhes do fubaacute e

a importacircncia do angu para a alimentaccedilatildeo dos escravos

Para fazer servir o milho agrave alimentaccedilatildeo ordinaacuteria dos homens eacute ele preparado de duas maneiras diferentes Sua farinha simplesmente moiacuteda e separada do farelo com o auxiacutelio de uma peneira de bambu toma o nome de fubaacute Eacute fazendo cozer o fubaacute na aacutegua sem acrescentar sal que se faz essa espeacutecie de polenta grosseira que se chama como jaacute o disse anguacute e constitui o principal alimento dos escravos (SAINT-HILAIRE 1938 p 206)

O viajante Pohl (1951 apud FRIEIRO 1982) relata o que testemunhou

da alimentaccedilatildeo dos escravos ldquoalimentavam-se os negros ao almoccedilo e agrave ceia

com farinha de milho misturada com aacutegua quente o angu propriamente dito no

qual punham um naco de toucinho e ao jantar davam-lhes feijatildeordquo (POHL 1951

apud FRIEIRO 1982 p 75) O objetivo era alimentar o escravo somente daquilo

que o mantivesse em boas condiccedilotildees de sauacutede e com forccedila suficiente para fazer

render o trabalho na lavra

O angu era desde essa eacutepoca feito sem adiccedilatildeo de sal o que perdura ateacute

os dias de hoje A principal razatildeo para isso naquela eacutepoca era a dificuldade em

obter o sal em Minas Gerais e consequentemente o seu alto preccedilo Assim esse

produto era usado com parcimocircnia para alimentaccedilatildeo animal e alguns alimentos

12 Para fins de alimentaccedilatildeo animal o milho tambeacutem era mais importante do que a mandioca pois dele se

alimentavam os bovinos os suiacutenos os equinos e os galinaacuteceos conforme aponta Meneses (2007) Assim era necessaacuteria uma aacuterea muito grande destinada ao cultivo deste cereal Segundo este autor a praacutetica de produccedilatildeo consorciada de milho e feijatildeo era comum e atendiam a uma ldquoordem bioloacutegica cultural e econocircmica e ainda ecoloacutegica - condiccedilotildees de clima solo e relevordquo (p 344) Com o passar do tempo o milho caiu na preferecircncia dos habitantes das Minas e se tornou mais importante para fins de alimentaccedilatildeo humana tambeacutem

28

que precisariam dele para conservaccedilatildeo como toucinhos e feijatildeo por exemplo

Conforme Frieiro (1982) em funccedilatildeo dessa situaccedilatildeo poder-se-ia talvez atribuir

o angu sem sal como invenccedilatildeo mineira embora isso natildeo possa ser comprovado

jaacute que em outras regiotildees como Satildeo Paulo e Bahia o angu eacute temperado A

obtenccedilatildeo de sal foi um problema geral no paiacutes durante todo o seacuteculo XVIII

segundo o autor

Zemella (1951) em seu importante trabalho sobre o abastecimento de

capitania das Minas Gerais no seacuteculo XVIII destaca essa situaccedilatildeo

O suprimento de sal especialmente para as cidades vicentinas sempre foi difiacutecil e penoso Na Vila de Satildeo Paulo o mau fornecimento do preciso condimento causou ateacute revoltas Se na Vila de Satildeo Paulo que estava relativamente proacutexima do porto de importaccedilatildeo de sal havia tremendas dificuldades para a sua obtenccedilatildeo que seria entatildeo das Gerais As minas no seu desespero conseguiram uma regiatildeo interna os sertotildees marginais do Satildeo Francisco que lhe fornecesse tal mercadoria se bem que em pequenas quantidades O sal chegava agraves cidades mineiras subindo o rio Satildeo Francisco em barcaccedilas (ZEMELLA 1951 p 193)

A autora aponta que o sal assim como a carne os cereais o accediluacutecar e o

toucinho eram produtos vitais de consumo para os mineiros Sendo que a carne

e o sal eram aleacutem de necessaacuterios imprescindiacuteveis e vinham de longas

distacircncias Segundo Carrara (2013) o sal que chegava agraves Minas Gerais vinha

de Sobradinho Pilatildeo Arcado Casa Nova e Remanso na Bahia A autora inclui

na lista ainda dois produtos que eram considerados de grande importacircncia para

os mineiros a pinga e o tabaco A pinga ou cachaccedila era muitas vezes usada

para ajudar a remediar a fome

Como citado por Zemella (1951) e Frieiro (1982) a Ordem Reacutegia

estimulou pequenos cultivos para subsistecircncia e a venda dos excedentes

reduzindo o risco de uma nova crise de fome Com o tempo foi-se regulando o

abastecimento embora a preccedilos ainda estivessem muito elevados para a grande

maioria da populaccedilatildeo da regiatildeo mineradora Segundo Boxer (1969 apud Arruda

1999 p 139) ldquoAs pessoas que tinham uma fazenda ou roccedila nas quais

plantavam legumes criavam aves porcos etc para elas e seus escravos

vendendo o excesso para o consumo na cidade com bons lucrosrdquo

Arruda (1999) menciona que as pessoas mais ricas e que possuiacuteam um

grande nuacutemero de escravos foram as primeiras a iniciarem o cultivo de suas

29

terras para alimentar seus familiares os escravos e a aproveitar a demanda por

alimentos para obter algum lucro com a venda do excedente

Analisando o lugar da comida no processo de formaccedilatildeo do territoacuterio das

Minas Gerais na fase da mineraccedilatildeo verificamos que ela teve uma funccedilatildeo muito

mais fisioloacutegica ou seja a de matar a fome e sustentar a pesada lida diaacuteria que

era o trabalho na lavra Conforme os registros de Mawe (1922) Saint-Hilaire

(1938) e Cardim (1939) verifica-se que os habitantes da regiatildeo de Minas Gerais

faziam suas refeiccedilotildees com muita rapidez e com pouca conversa

Outra observaccedilatildeo importante eacute mencionada por Abdala (2007) que

aponta a existecircncia de uma combinaccedilatildeo de gecircneros adquiridos no comeacutercio com

a produccedilatildeo de alimentos do quintal isso ainda na fase da mineraccedilatildeo ndash no

periacuteodo apoacutes as crises de fome e organizaccedilatildeo do abastecimento interno Como

os preccedilos dos produtos importados eram muito elevados os produtos da terra

foram os principais alimentos consumidos Assim segundo a autora surge uma

cozinha com caracteriacutesticas peculiares que se adaptou agrave situaccedilatildeo vivenciada

pelos habitantes cujo controle poliacutetico e econocircmico era excessivo diante da

realidade em que atender agraves necessidades imediatas de sobrevivecircncia era o

principal objetivo ldquoAgrave exceccedilatildeo das compotas e doccedilarias de maneira geral

inspiradas nos haacutebitos lusitanos os pratos servidos no dia-a-dia caracterizavam-

se pela rusticidade dos produtos da terrardquo (ABDALA 2007 p 73) Nesse periacuteodo

tambeacutem foi muito importante dominar as teacutecnicas de conservaccedilatildeo dos alimentos

o que acarretou na adoccedilatildeo de haacutebitos alimentares muito caracteriacutesticos como a

conservaccedilatildeo da carne do porco na gordura retirada do proacuteprio animal

23 Fase da ruralizaccedilatildeo em Minas Gerais fartura de alimentos

A fase da ruralizaccedilatildeo em Minas Gerais eacute considerada aquela que

paulatinamente vai surgindo um novo dinamismo econocircmico e reprodutivo para

aleacutem da mineraccedilatildeo Segundo Arruda (1999) Igleacutesias (1970) Carrara (2007)

Guimaratildees e Reis (2007) Meneses (2007) Barbosa (1995) e Frieiro (1982) natildeo

ocorreu um corte radical uma linha divisoacuteria onde tenha se encerrado o ciclo da

mineraccedilatildeo e surgido o ciclo da ruralizaccedilatildeo A demarcaccedilatildeo de uma periodizaccedilatildeo

eacute feita pelos autores mais por razotildees metodoloacutegicas para discorrer sobre o ritmo

histoacuterico econocircmico e cultural daquele periacuteodo na regiatildeo

30

Iglesias (1970) utiliza os termos ldquoopulecircncia e decadecircnciardquo da mineraccedilatildeo

e sugere os periacuteodos da seguinte maneira Os anos de 1693 a 1770 a fase

considerada do surgimento ao auge da opulecircncia mineraccedilatildeo e 1770 a 1883 o

que abrangeria a sua decadecircncia Tal decliacutenio orientou consequentemente para

a atividade a agriacutecola Arruda (1999) aponta a Carta (ou Ordem) Reacutegia jaacute citada

no item anterior como o marco de reconhecimento da Coroa do decliacutenio da

mineraccedilatildeo e da necessidade de estimular a produccedilatildeo agriacutecola na regiatildeo Em

suas palavras

A Carta Reacutegia de 1777 consagra ao novo princiacutepio o postulado que reconhece a importacircncia da agropecuaacuteria no conjunto das atividades econocircmicas nas aacutereas de mineraccedilatildeo () A mudanccedila de atitude por parte das autoridades governamentais do Reino corresponde na realidade agrave avassaladora crise da produccedilatildeo auriacutefera depois dos anos sessenta Impunham-se novos caminhos agrave economia de Minas capazes de dar sustentaccedilatildeo aos significativos contingentes populacionais que laacute haviam se estabelecido na primeira deacutecada do seacuteculo XVIII (ARRUDA 1999 p 140)

Nesta fase o problema de abastecimento jaacute natildeo era mais tatildeo grave mas

os preccedilos dos alimentos continuavam altos Era tempo de maior fartura de

alimentos em relaccedilatildeo agrave fase de mineraccedilatildeo mas ainda assim com muitos

obstaacuteculos Zemella (1951) defende que em funccedilatildeo da situaccedilatildeo dada a regiatildeo

de Minas Gerais foi orientando pouco a pouco seus caminhos no sentido da

autossuficiecircncia e as atividades dos habitantes se desviando para a lavoura

pecuaacuteria e a manufatura ldquoNa proacutepria regiatildeo onde se localizavam as lavras13 ou

minas multiplicaram-se as plantaccedilotildees As minas agonizantes passaram a

apoiar-se na lavoura que se expandindo procurava gulosamente as manchas

de terra feacutertil que havia nas imediaccedilotildees das lavrasrdquo (ZEMELLA 1951 p 239)

Mas esse processo natildeo significou um rompimento abrupto da mineraccedilatildeo Assim

o trabalho na lavra permanecia embora em muito menor importacircncia do que

antes ndash nas fases poacutes-colheita ndash quando se utilizava a matildeo-de-obra dos escravos

que pudessem ser retirados temporariamente da lavoura

Guimaratildees e Reis (2007) apontam que os setores da manufatura

pecuaacuteria e lavoura permitiram que a economia de Minas Gerais continuasse a

13 ldquoEm 1702 foi criado a Intendecircncia das Minas oacutergatildeo encarregado de aplicar a legislaccedilatildeo sobre a

mineraccedilatildeo na colocircnia Cabia ainda ao oacutergatildeo dividir o local a ser explorado em Datas lotes de terra entregues ao descobridor das minas As aacutereas maiores que as Datas eram chamadas de Lavras lotes de terras em que a exploraccedilatildeo do ouro soacute seria possiacutevel com teacutecnicas de exploraccedilatildeo mais eficaz e com um grande nuacutemero de escravosrdquo (MUTTER 2012 p31)

31

se desenvolver e a Capitania continuasse a manter seu ritmo de crescimento

populacional durante a segunda metade do seacuteculo XVIII incluiacuteda a populaccedilatildeo

escrava

Com a crise da mineraccedilatildeo a mudanccedila nos rumos da economia mineira provocou transformaccedilotildees quantitativas e qualitativas na agricultura com o fortalecimento da produccedilatildeo interna e com o desenvolvimento de uma elite residente autocircnoma ante o mercado externo (GUIMARAtildeRES REIS 2007 p 332)

Na concepccedilatildeo de Arruda (1999) aleacutem de a agricultura ocorrer nas

regiotildees das lavras como afirmado por Zemella (1951) as sesmarias que foram

concedidas levaram muitos a estabelecerem suas fazendas no interior rural A

autora aponta que nesta fase jaacute ao final do seacuteculo XVIII Minas reduziu muito o

consumo de produtos importados basicamente de Satildeo Paulo Rio de Janeiro e

Bahia passando a comercializar principalmente para o Rio de Janeiro muito do

que passou a produzir embora a produccedilatildeo fosse principalmente para

abastecimento interno como tambeacutem apontado por Graccedila Filho (2007) e por

Guimaratildees e Reis (2007) Exportava-se ldquoqueijo fumo accediluacutecar aguardente e

cana e ainda mas em menor volume couros e solas marmelada e mandioca

algodatildeo pouco cafeacute gado vacum porcos cavalos e galinhasrdquo (DULCI 2007 p

348)

Este autor menciona ainda que as importaccedilotildees que continuaram pelo

seacuteculo XIX foram de produtos como sal tecidos vinho peixe salgado vinagre

e azeite doce

As compras no entanto eram muito menores do que as vendas O poder aquisitivo dos mineiros era baixo portanto jaacute que eles natildeo tinham condiccedilotildees de consumir muitos produtos importados havia espaccedilo para fabricaccedilatildeo local de bens indispensaacuteveis agrave vida diaacuteria (DULCI 2007 p 348)

Para Freyre (2008 p 67) o decliacutenio da mineraccedilatildeo ldquotransformou quase

toda a Proviacutencia de inquietamente mineira a pacatamente agriacutecolardquo Para este

autor a fase da ruralizaccedilatildeo foi melhor para Minas nos aspectos econocircmicos e

sociais Segundo Graccedila Filho (2007) Guimaratildees e Reis (2007) e Arruda (1999)

a fase da ruralizaccedilatildeo em Minas foi um processo relativamente lento que ocorreu

progressivamente e essa realidade natildeo mudou mundo durante quase todo o

seacuteculo XIX

32

Poreacutem a partir de segunda metade desse seacuteculo o setor cafeeiro e o

fabril tornaram essa realidade produtiva e econocircmica mais diversificada

sobretudo na Zona da Mata assim como a pecuaacuteria leiteira na regiatildeo mais ao

Sul do estado

A produccedilatildeo cafeeira na Zona da Mata conforme Pires (2013 p 331)

ldquodesenvolveu uma tiacutepica economia voltada para a produccedilatildeo e exportaccedilatildeo de cafeacute

que a partir de meados do seacuteculo XIX vai se tornando o espaccedilo econocircmico mais

rico do estado ateacute pelo menos o final da deacutecada de 1920rdquo

Tambeacutem foi na Zona da Mata que Dulci (2007) aponta ter surgido no final

do seacuteculo XIX e iniacutecio do XX agroinduacutestrias da cana e do leite que chegaram a

liderar o mercado nacional no iniacutecio do seacuteculo XX Antes disso os engenhos

existentes nas aacutereas rurais em Minas eram rudimentares O autor menciona que

no municiacutepio de Ponte Nova foram instaladas trecircs usinas de cana de accediluacutecar com

a importaccedilatildeo de equipamentos modernos para a produccedilatildeo em escala industrial

Com as usinas chegaram os trens da empresa Leopoldina o que foi muito

importante para o desenvolvimento regional

Em relaccedilatildeo agrave agroinduacutestria do leite em Minas no mesmo periacuteodo o autor

sinaliza que ela se deu de maneira constante acompanhando a evoluccedilatildeo da

pecuaacuteria regional A primeira agroinduacutestria de produtos laacutecteos do estado

estabeleceu-se onde hoje estaacute o municiacutepio de Santos Dumont

Satildeo muitas as teses e discussotildees baseadas em documentos e arquivos

sobre a Minas Colonial e sobre as dinacircmicas produtivas e o controle poliacutetico-

econocircmico nas duas fases a mineraccedilatildeo e a ruralizaccedilatildeo Poreacutem para os

objetivos deste trabalho como jaacute sinalizado no iniacutecio deste capiacutetulo importa

saber se o decliacutenio da mineraccedilatildeo e consequente ampliaccedilatildeo da produccedilatildeo

agropecuaacuteria (considerada assim a fase da ruralizaccedilatildeo) gerou mudanccedilas nos

haacutebitos alimentares da populaccedilatildeo mineira do entorno da regiatildeo mineradora

Conhecer os haacutebitos alimentares da populaccedilatildeo o que era cultivado e que

animais eram criados nesses dois periacuteodos eacute importante para correlacionar com

as informaccedilotildees obtidas na pesquisa de campo

Nesse sentido os autores que orientam a esse respeito satildeo Frieiro

(1982) Magalhatildees (2004) Arruda (1990) Abdala (2007) Vasconcellos (1968) e

Torres (2011)

33

Temos a impressatildeo (e Gilberto Freyre e Caio Prado Juacutenior pensam igualmente assim) que o mineiro tanto na Colocircnia nos tempos de mineraccedilatildeo no Impeacuterio passada a seacuterie de crises dos primeiros tempos de mineraccedilatildeo alimentava-se bem e melhor do que a maioria dos brasileiros ao menos quanto ao peso e valor nutritivo O mineiro exige ldquosustacircnciardquo quer comida substancial e pouco liga para refinamentos complicados (TORRES 2011 p 101)

A observaccedilatildeo de Torres (2011) corrobora a de Frieiro (1982) que

sinaliza para uma alimentaccedilatildeo mais farta na fase da ruralizaccedilatildeo e segundo

Arruda (1999) a produccedilatildeo diversificada nas fazendas era uma caracteriacutestica

deste periacuteodo Os excedentes de carne suiacutena toucinho carne seca farinha de

milho farinha de mandioca rapadura aguardente oacuteleo fumo cafeacute queijos

algodatildeo em fios e tecidos ruacutesticos eram vendidos nas cidades mais proacuteximas

O que os autores citados apontam eacute que houve fartura de produtos

alimentiacutecios sem diversificaccedilatildeo entre o que se comia na fase da mineraccedilatildeo para

a fase da ruralizaccedilatildeo exceto para os mais ricos que podiam investir na

importaccedilatildeo de vinhos azeites do reino e bacalhau Magalhatildees (2004) aponta a

abundacircncia na produccedilatildeo de legumes frutas hortaliccedilas tubeacuterculos e gratildeos

produzidos nos siacutetios e fazendas proacuteximos a Vila Rica e Mariana Ateacute mesmo

nos pequenos quintais das cidades existiam hortas Muitos dos alimentos eram

itens comuns no cotidiano alimentar da populaccedilatildeo como o feijatildeo a farinha e

milho e a couve

Quanto agrave produccedilatildeo de alimentos regionaislocais notam-se principalmente legumes hortaliccedilas frutas e gratildeos produzidos por pequenos sitiantes residentes nos termos das vilas Em Vila Rica por exemplo produziam-se os seguintes gecircneros laranjas bananas quiabos couves batata-doce caraacute mandioca ovos patildees leite azeite de mamona farinha de mandioca e de milho cevada arroz feijatildeo miuacutedo e fradinho (CHAVES 1995 apud MAGALHAtildeES 2004 p 71)

Em relaccedilatildeo agrave proteiacutena animal Magalhatildees (2004) e Frieiro (1982)

apontam que os suiacutenos e as galinhas caipiras continuaram sendo a principal

fonte de consumo Do suiacuteno aleacutem da carne continuou-se a usar o toucinho a

banha focinho orelhas mocotoacutes e fressuras que tambeacutem satildeo fonte de gordura

Diferentemente da carne cujo consumo era restrito aos abastados o toucinho e

a banha eram usados por todas as classes sociais para acompanhar as

hortaliccedilas e o feijatildeo

34

O angu e o feijatildeo continuaram presentes na mesa de todos sobretudo

na do pobre14 Segundo os autores nas famiacutelias mais ricas tinha-se como

costume servir refeiccedilotildees muito fartas para as visitas mesmo que essa natildeo fosse

a realidade cotidiana inclusive com variedades de doces numa tentativa de

apagar as privaccedilotildees alimentares vivenciadas anteriormente

Saint-Hilaire em uma de suas passagens por Minas Gerais no seacuteculo

XIX relata suas percepccedilotildees sobre a comida nas aacutereas rurais

Galinha e porco satildeo as carnes que se servem mais comumente em casa dos fazendeiros da proviacutencia das Minas O feijatildeo preto forma prato indispensaacutevel na mesa do rico e esse legume constitui quase que a uacutenica iguaria do pobre Se a esse grosseiro manjar este uacuteltimo acrescenta mais alguma coisa eacute arroz ou couve ou outras ervas picadas (hellip) Como natildeo se conhece o fabrico da manteiga substitui-se-lhe a gordura que escorre do toucinho que se frita Cada conviva salpica com farinha o feijatildeo ou outros alimentos aos quais se adiciona salsa e faz-se assim uma espeacutecie de pasta (hellip) Um dos pratos favoritos dos mineiros eacute galinha cozida com quiabo mas os quiabos natildeo se comem com prazer senatildeo acompanhados de anguacute espeacutecie de polenta sem sabor Em parte alguma talvez se consuma tanto doce como na proviacutencia das Minas fazem-se doces de uma multidatildeo de coisas diferentes (hellip) Eacute muito raro encontrar vinho em casa de fazendeiros a aacutegua eacute a sua bebida ordinaacuteria (SAINT-HILAIRE 1938 p 186-187)

Na percepccedilatildeo de Magalhatildees (2004) natildeo houve alteraccedilotildees importantes

na comida mineira ao longo dos anos na regiatildeo onde se iniciou a mineraccedilatildeo

Feijatildeo farinha de milho fubaacute e arroz continuaram a ser alimentos baacutesicos

Sobre as quitandas Frieiro (1982 p 166) e Abdala (2007 p 99) citam

o consumo comum dos biscoitos de polvilho assados ou fritos broas pamonhas

brevidades roscas sequilhos bolos broinhas de fubaacute de amendoim e matildees-

bentas As quitandas eram fundamentais nas aacutereas rurais Em funccedilatildeo da

distacircncia das cidades era preciso estar prevenido para a chegada de alguma

visita e para atender agrave famiacutelia diariamente O patildeo de queijo atualmente a

quitanda quase ldquosiacutembolordquo de Minas Gerais foi introduzida apenas em iniacutecio do

seacuteculo XX Natildeo haacute uma data precisa de seu surgimento mas como os autores

apontam o queijo passou a ser produzido para aproveitar as sobras do leite

Segundo Abdala (2007) os viajantes europeus que estiveram em Minas no

seacuteculo XIX relataram a raridade de queijo e manteiga nos menus locais Para a

14 Segundo Omegna (1961 apud FRIEIRO 1982) a parcela mais pobre e livre de Minas Gerais nunca

rejeitou o angu e nem a farinha de milho preferindo-o agrave mandioca Mas o mesmo natildeo se observava em outras regiotildees do Paiacutes justamente por ser comida prioritaacuteria para os escravos e assim optavam pela farinha de mandioca Essa era uma maneira de natildeo se igualar aos escravos

35

autora a introduccedilatildeo do queijo no biscoito de polvilho dando origem ao patildeo de

queijo surgiu justamente no periacuteodo de fartura alimentar quando se utilizava o

excedente para criar diversos pratos Na regiatildeo que pesquisei o patildeo de queijo

natildeo eacute uma quitanda tradicional e raramente eacute consumida

O que se percebe ao final deste capitulo eacute que a alimentaccedilatildeo baacutesica foi

a mesma em Minas desde o periacuteodo da mineraccedilatildeo A ruralizaccedilatildeo ampliou a

produccedilatildeo de alimentos para abastecimento interno e venda do excedente houve

o incremento de algumas produccedilotildees como cafeacute leite accediluacutecar e seus derivados

mas isso natildeo representou novidade em termos de consumo Percebe-se que os

haacutebitos alimentares permaneceram ao longo dos seacuteculos XVIII XIX e pelo

menos ateacute o iniacutecio do XX Os alimentos destacados como os baacutesicos pelos

autores citados aqui satildeo aqueles que atualmente ainda satildeo encontrados nas

receitas consideradas como mais tradicionais da cozinha mineira embora muitas

e dessas receitas sugiram algumas substituiccedilotildees como oacuteleo vegetal no lugar da

banha accediluacutecar cristal no lugar da rapadura ou do melado fermento quiacutemico no

lugar do bicarbonato de soacutedio etc

No capiacutetulo 5 seraacute possiacutevel observar se esses alimentos presentes na

regiatildeo de mineraccedilatildeo em Minas Gerais satildeo ainda adotados pelas famiacutelias rurais

entrevistadas e se existem relaccedilotildees da comida consumida na ocasiatildeo da

pesquisa com a comida do passado

36

3 ALIMENTACcedilAtildeO E CULTURA PERMANEcircNCIAS E TRANSFORMACcedilOtildeES

ldquoComer natildeo envolve apenas a natureza e a cultura Situa-se entre a natureza e a cultura Participa de ambas Tem muito a ver com a primeira e tambeacutem com a segundardquo

(Paolo Rossi 2014)

Apresento neste capiacutetulo a base conceitual e argumentativa da pesquisa

e os principais autores envolvidos com as abordagens contidas neste trabalho

O item 31 tem por objetivo apontar o lugar da alimentaccedilatildeo nas principais

anaacutelises das ciecircncias sociais e da histoacuteria Basicamente trecircs disciplinas

compotildeem as discussotildees presentes neste estudo e se complementam durante o

percurso a Antropologia a Sociologia e a Histoacuteria O item 32 traz a discussatildeo

existente em torno de sistema alimentar e suas relaccedilotildees com as praacuteticas

alimentares O item 33 analisa as diferenccedilas atribuiacutedas entre alimento e comida

na abordagem cultural e simboacutelica das praacuteticas alimentares inserindo a

importacircncia social e cultural do fogo no ato alimentar as dinacircmicas de

comensalidade as praacuteticas alimentares adotadas na contemporaneidade em

suas conexotildees com o tradicional e o moderno O item 34 discute as

possibilidades de permanecircncia ou extinccedilatildeo das praacuteticas tradicionais no contexto

alimentar contemporacircneo O item 35 discute o tradicional e o moderno no

contexto das dinacircmicas alimentares no meio rural e o item 36 trata do papel

feminino nas praacuteticas alimentares na famiacutelia

31 A alimentaccedilatildeo como categoria de estudo multidisciplinar contribui-ccedilotildees da antropologia da sociologia e da histoacuteria

Em importante artigo sobre as balizas historiograacuteficas da alimentaccedilatildeo

Meneses e Carneiro (1997) destacam os enfoques das diversas aacutereas neste

campo que satildeo bioloacutegico econocircmico social cultural e filosoacutefico Importa-nos

sobretudo aquelas referecircncias das ciecircncias sociais e da histoacuteria Para aqueles

autores a antropologia eacute a que mais daacute atenccedilatildeo a este tema e eacute a responsaacutevel

pela maior quantidade de informaccedilotildees a respeito Citam como principais

contribuiccedilotildees iniciais as obras de Claude Leacutevi-Strauss Marshall Sahlins Mary

Douglas entre outros

37

Os antropoacutelogos desde o seacuteculo XIX se empenharam em desenvolver uma etnografia sistemaacutetica dos haacutebitos alimentares e em buscar interpretaacute-los culturalmente A primeira fase da antropologia caracterizou-se por um comparativismo das diferentes tradiccedilotildees culturais A anaacutelise dos tabus onde se destacam os alimentares foi desde os primoacuterdios da Antropologia Cultural um terreno feacutertil para especulaccedilotildees sobre o significado simboacutelico da alimentaccedilatildeo (MENESES CARNEIRO 1997 p 19)

O socioacutelogo e antropoacutelogo brasileiro Gilberto Freyre jaacute em 1926 em seu

ldquoManifesto Regionalistardquo discute ainda que de forma pouco aprofundada sobre

a funccedilatildeo do accediluacutecar no Brasil Mas foi com sua obra publicada em 1939 em que

trata especificamente de uma sociologia do doce ao recolher receitas que eram

guardadas a sete chaves pelas mulheres e que eram repassadas de matildees para

filhas que o autor pode considerado como o precursor do mais importante

trabalho sobre o accediluacutecar Assunto que retoma mais tarde em ldquoCasa-Grande e

Senzalardquo publicado em 1964

O papel das ciecircncias sociais principalmente a contribuiccedilatildeo da

antropologia para os estudos da alimentaccedilatildeo eacute detalhadamente tratado por

Garciacutea (2009) Este autor aponta que apesar de o tema da alimentaccedilatildeo ter sido

importante para os antropoacutelogos desde os primoacuterdios ndash que registraram em seus

cadernos de campo os modos de comer de elaborar a comida e ainda os

principais alimentos consumidos pelos grupos estudados ndash o ano de 1968 eacute

considerado como sendo o iniacutecio aproximado dos estudos voltados mais

especificamente para a antropologia da alimentaccedilatildeo ou seja quando a

abordagem da comida como cultura passa a ser analisada de forma mais

institucionalizada pela antropologia ldquoCuando se fijen de manera clara las dos

maacutes potentes aproximaciones a la Antropologiacutea de la Alimentacioacuten el

estructuralismo y el materialismordquo (p 26) Sua observaccedilatildeo coincide com o

afirmado por Meneses e Carneiro (1997 p 20) de que ldquosomente nas deacutecadas

de 1960 e 1970 na voga do estruturalismo eacute que os estudos antropoloacutegicos

sobre alimentaccedilatildeo deslancham e se define um padratildeo de anaacutelise culturalrdquo

Garciacutea (2009) justifica ainda a fixaccedilatildeo da data de 1968 por este ser o ano da

primeira publicaccedilatildeo do terceiro volume da seacuterie ldquoMitoloacutegicasrdquo de Claude Leacutevi-

Strauss As Origens dos Modos agrave Mesa

Nesta obra Leacutevi-Strauss republicou o artigo ldquoO triacircngulo culinaacuteriordquo onde

apresenta seu entendimento sobre o fato alimentar e defende que a cozinha de

38

uma sociedade eacute uma linguagem inconsciente de sua estrutura Voltaremos a

este artigo mais agrave frente Em ldquoAs origens dos modos agrave mesardquo (Mitoloacutegicas 3)

assim como em ldquoDo mel agraves cinzas (Mitoloacutegicas 2)rdquo Leacutevi-Strauss analisa o que

chama de ldquoentornos e contornosrdquo da alimentaccedilatildeo A diferenccedila eacute que em

ldquoMitoloacutegicas 3rdquo ele analisa como os modos agrave mesa o uso de receitas e os modos

de preparaccedilatildeo em diferentes povos estatildeo conectados ao lado cultural e como

esses aspectos complementam o lado bioloacutegico que eacute o processo de ingestatildeo e

digestatildeo alimentar

Na deacutecada de 1970 Claude Fischler socioacutelogo e antropoacutelogo francecircs

passa a dar ecircnfase em seus estudos ao tema da alimentaccedilatildeo e desenvolve

importante trabalho sobre o accediluacutecar e seus aspectos de efeito simboacutelico e

bioloacutegico Como jaacute visto Gilberto Freyre (1939) trabalhou esta temaacutetica e sua

influecircncia no Brasil Depois de Claude Fischler Sidney Mintz de mesma

formaccedilatildeo acadecircmica tambeacutem publicou trabalhos sobre o accediluacutecar em 1986

analisando sobretudo as relaccedilotildees de poder existentes nesse tipo de produccedilatildeo

na regiatildeo caribenha Neste contexto seu trabalho inseriu o tema da alimentaccedilatildeo

na economia poliacutetica global Mas Sidney Mintz analisou tambeacutem o poder de

atraccedilatildeo de consumo do accediluacutecar e seu uso na culinaacuteria Sobre esse tema publicou

ldquoSweetness and Power The place of sugar in modern Historyrdquo e em Portuguecircs

foi publicado em 2003 o livro ldquoO Poder amargo do accediluacutecar produtores

escravizados consumidores proletarizadosrdquo

Voltando a Claude Fischler ainda na deacutecada de 1970 organizou a

coletacircnea La nourriture ndash Pour une anthropologie bioculturelle de lrsquoalimentation

Mas eacute na deacutecada de 1990 que publica seu mais importante trabalho

Lrsquohomnivore onde discute as transformaccedilotildees ocorridas nas sociedades

ocidentais modernas no campo da alimentaccedilatildeo e seus efeitos na vida das

pessoas

Tambeacutem entre as deacutecadas de 1970 e 1990 quem se destaca neste

campo eacute o antropoacutelogo americano Marvin Harris Seus estudos no campo da

alimentaccedilatildeo enfatizam sobretudo os enigmas culturais buscando explicar as

reaccedilotildees a alguns mitos e tabus alimentares Assim suas publicaccedilotildees mais

importantes foram ldquoVacas Porcos Guerras e Bruxas Os enigmas da Culturardquo

(1978) Bueno para comer enigmas de alimentacioacuten y cultura (1985) ldquoCanibais

e Reisrdquo (1990) Sobre o tema dos tabus alimentares outras importantes

39

contribuiccedilotildees satildeo as dos antropoacutelogos Mary Douglas sobretudo com a obra

ldquoPureza e Perigordquo publicada pela primeira vez em 1966 e Marshal Sallins com

a obra ldquoCultura e Razatildeo Praacuteticardquo publicada originalmente em 1976 Mary

Douglas e Marshal Sallins tecircm uma anaacutelise para os tabus alimentares que difere

da de Marvin Harris que opta pelo determinismo ecoloacutegico para justificar a razatildeo

de alguns grupos como os judeus em natildeo comer alguns alimentos como carne

de porco por exemplo No livro ldquoVacas Porcos Guerras e Bruxas ndash o enigma

da culturardquo ele defende que a Biacuteblia e o Alcoratildeo condenaram o consumo do

porco natildeo por razotildees espirituais de pecado ou impureza mas ldquoporque a sua

criaccedilatildeo constituiacutea uma ameaccedila agrave integridade dos ecossistemas culturais e

naturais baacutesicos do Oriente Meacutediordquo (HARRIS 1978 p 39) Aleacutem disso Harris

aponta que por ter uma alimentaccedilatildeo parecida com a dos humanos ou seja

viverem soltos nos bosques e se alimentarem de castanhas frutas tubeacuterculos e

cereais os porcos representavam uma disputa por comida Jaacute Mary Douglas e

Sallins defendem que a razatildeo para o natildeo consumo de porco se daacute por razotildees

simboacutelicas e religiosas Mary Douglas em ldquoPureza e Perigordquo recorre ao livro

biacuteblico de Leviacuteticos no Velho Testamento para justificar sua percepccedilatildeo Neste

livro haacute uma recomendaccedilatildeo expliacutecita aos judeus sobre os animais que podem

e que natildeo podem ser comidos divididos entre animais limpos e animais imundos

Assim eram considerados limpos e liberados para comer dentre os

quadruacutepedes os que tem unhas fendidas e divididas em dois e que rumina O

porco por natildeo ruminar eacute considerado imundo e proibido Aleacutem disso nada mais

eacute falado a respeito do porco no livro de Leviacutetico Assim a autora defende que os

judeus cumprem o mandamento apenas por razatildeo religiosa e nada tem a ver

com a questatildeo utilitaacuteria ou da disputa pela comida como alegado por Marvin

Harris Sallins em ldquoCultura e Razatildeo Praacuteticardquo compartilha de forma semelhante

a ideia de Mary Douglas ao tratar sobre os haacutebitos alimentares relativos agrave carne

dos americanos do Norte o que seraacute detalhado mais agrave frente

Outro autor importante no campo da alimentaccedilatildeo eacute o socioacutelogo inglecircs

Stephen Mennell Segundo Meneses e Carneiro (1997) na deacutecada de 1980

Mennell buscou investigar os usos sociais da domesticaccedilatildeo da natureza pela

cultura antes mesmo de Claude Leacutevi-Strauss analisando como se datildeo os

modos que lsquocivilizam o apetitersquo e publicou ldquoAll Manners of Food Eating and Taste

in England and France from the Middle Ages to the Presentrdquo (1996) Foi Mennell

40

ainda quem desenvolveu primeiramente estudos sobre as ldquocozinhas identitaacuteriasrdquo

sobre a valorizaccedilatildeo da cozinha nacional da Inglaterra e os ldquoestilos nacionais de

comerrdquo

Contreras e Gracia (2011 p 29) sugerem como objeto para a

antropologia da alimentaccedilatildeo ldquoo conjunto de representaccedilotildees crenccedilas

conhecimentos e praacuteticas herdadas eou aprendidas que estatildeo associadas agrave

alimentaccedilatildeo e satildeo compartilhadas pelos indiviacuteduos de uma dada cultura ou de

um grupo social determinadordquo

No acircmbito da sociologia segundo Meneses e Carneiro (1997) as

questotildees de gecircnero na divisatildeo social do trabalho domeacutestico e ainda gecircnero e

comida foram os que mais atraiacuteram as pesquisas iniciais Sobre este tema

Mabel Garcia Arnaiacutez (1996) antropoacuteloga espanhola a quem recorremos em

vaacuterios momentos neste trabalho destaca em seu estudo sobre os paradoxos da

alimentaccedilatildeo contemporacircnea as importantes contribuiccedilotildees de Mennell (1996) de

Murcott (1983) Pynson (1987) e Kaplan (1980)

Meneses e Carneiro (1997 p 24) mencionam que o tema da

comensalidade tambeacutem foi evidenciado a partir da deacutecada de 1970 ldquoOs estudos

nesta aacuterea se orientaram para a refeiccedilatildeo como instituiccedilatildeo social sua natureza e

funcionamento seus iacutecones ndash como a mesardquo Mais recentemente abrange

fortemente os estudos sobre os efeitos da tecnologia alimentar que propiciou o

haacutebito de comer fora de casa e o surgimento dos Fast food Em sua obra estes

autores citam os trabalhos de Stephen Mennel (1996) Anne Murcott (1983)

Harvey Levenstein (1988) Claude Fischler (1988)

Ao falar em comensalidade natildeo podemos deixar de citar a contribuiccedilatildeo

dada por Norbert Elias (2011) sobre as transformaccedilotildees nas normas de

comportamento social incluindo os modos agrave mesa na sociedade europeia a

partir do final da Idade Meacutedia Nesta obra cuja primeira publicaccedilatildeo ocorreu em

1939 o autor nos leva a descobrir como foram reproduzidas socialmente

algumas regras de boas maneiras de conviacutevio na sociedade e que tambeacutem se

refletem na comensalidade como por exemplo natildeo comer com as matildeos natildeo

colocar os peacutes sobre a mesa como usar os talheres a mesa natildeo falar de boca

cheia entre outras regras O que pode parecer superficialmente uma descriccedilatildeo

fuacutetil sobre coacutedigos de etiqueta social eacute na verdade uma anaacutelise interessante do

quanto aquilo que parece ser natural atualmente nada tem de natural pois satildeo

41

regras que foram sendo aprendidas agrave medida que o homem foi avanccedilando nos

estaacutegios de civilizaccedilatildeo ocidental O autor nos mostra o quanto foi delicado e difiacutecil

para o homem da cultura ocidental se tornar civilizado ao longo do processo

histoacuterico pois o civilizar-se envolvia a mudanccedila ldquoobrigatoacuteriardquo de comportamento

Em seu livro O Processo Civilizador ele se refere agrave sociedade europeia mas

principalmente agrave Franccedila e agrave Alemanha

No vieacutes da sociologia e da antropologia ocorre uma mudanccedila de

interesse no campo dos estudos sobre alimentaccedilatildeo que se observa a partir da

deacutecada de 1990 segundo Meneses e Carneiro (1997 p 20) deslocando-se o

interesse dos tabus para enfocar as ldquopraacuteticas culturais nos processos de

aculturaccedilatildeo e na identidade culturalrdquo

Eacute importante destacar a observaccedilatildeo feita por Contreras e Gracia (2011)

de que tem sido cada vez maior o nuacutemero de autores contemporacircneos que natildeo

fazem distinccedilatildeo nos enfoques disciplinares entre a antropologia e a sociologia

da alimentaccedilatildeo

Ainda natildeo estaacute bem definida a sucessatildeo de paradigmas dentro da antropologia e da sociologia da alimentaccedilatildeo pois a cada uma das correntes foram vinculados trabalhos sobre diferentes aspectos alimentares sem que necessariamente se tenha produzido um questionamento ou uma invalidaccedilatildeo decisiva das aproximaccedilotildees perguntas ou respostas anteriores Poreacutem dentro desse acircmbito de estudo encontramo-nos em uma fase de tentativas e erros ainda que jaacute se comece a definir um nuacutecleo teoacuterico soacutelido que conte com um miacutenimo de generalizaccedilotildees e de hipoacuteteses que podem ser organizadas em um programa teoacuterico comum cujo nuacutecleo consiste em defender a ideia de lsquosistema alimentarrsquo sem desconsiderar contudo a diversidade de definiccedilotildees e atribuiccedilotildees que tal sistema tem recebido (CONTRERAS GRACIA 2011 p 30)

Garciacutea (2009) defende que para a antropologia da alimentaccedilatildeo o

interesse estaacute em encontrar a loacutegica do significado social e cultural da comida

revelando como ela pode classificar accedilotildees pessoas espaccedilos e tempos e

correlacionar essas classificaccedilotildees e seus significados Jaacute na sociologia da

alimentaccedilatildeo o foco estaacute no espaccedilo social da comida as transformaccedilotildees

contemporacircneas e a evoluccedilotildees da comensalidade

Outros autores contemporacircneos utilizados como referecircncia nesta

pesquisa nos campos tanto da antropologia quanto da sociologia da

alimentaccedilatildeo satildeo Jean Pierre Poulain que eacute socioacutelogo e antropoacutelogo francecircs

Esse autor conduz estudos e pesquisas sobre comida cultura e sauacutede nas

42

universidades de Toulouse (Franccedila) e Taylor (Malaacutesia) Autor de ldquoSociologias da

Alimentaccedilatildeordquo e ldquoDictionnaire des cultures alimentairesrdquo entre outros Mabel

Gracia Arnaiz eacute antropoacuteloga e pesquisadora da universidade de Rovira e Virgili

na Espanha e membro da Comissatildeo Internacional da Antropologia da

Alimentaccedilatildeo Sua linha de investigaccedilatildeo cientiacutefica envolve estudos socioculturais

da alimentaccedilatildeo sauacutede e gecircnero Autora das obras ldquoAlimentacioacuten salud y cultura

encuentros interdisciplinaresrdquo ldquoParadojas de la alimentacioacuten contemporacircneardquo e

mais recentemente em 2015 publicou ldquoComemos lo que somos Reflexiones

sobre cuerpo geacutenero y saludrdquo Tambeacutem antropoacutelogo e pesquisador na Espanha

Jesuacutes Contreras eacute diretor do ldquoObservatorio de la Alimentacioacuten - ODELA)rdquo autor

de ldquoSubsistencia ritual y poder en los Andesrdquo e ldquoAlimentacioacuten y cultura

necesidades gustos y costumbresrdquo Richard Wranglam eacute um pesquisador inglecircs

que atua na aacuterea de antropologia fiacutesica e primatologia Sua importante

contribuiccedilatildeo para os estudos da alimentaccedilatildeo eacute o livro ldquoPegando Fogordquo em que

aponta a importacircncia do fogo para a transformaccedilatildeo da comida de natureza em

cultura e para a promoccedilatildeo da sociabilidade humana Igor de Garine eacute um

antropoacutelogo francecircs que pesquisa sobre comida e tradiccedilatildeo comida e identidade

comida e industrializaccedilatildeo Autor de ldquoLes Changements des habitudes et des

politiques alimentaires en Afrique Aspects des sciences humaines naturellesrdquo e

Social Aspects of Obesity (Culture and Ecology of Food and Nutrition Por fim

Michael Pollan que eacute americano e apesar de sua importante contribuiccedilatildeo

contemporacircnea sobre comida e cultura o que o tem feito despontar na miacutedia

sobre o assunto sua formaccedilatildeo acadecircmica eacute o jornalismo Autor de ldquoO Dilema do

Oniacutevorordquo e ldquoCozinhar uma histoacuteria natural da transformaccedilatildeordquo e outros

As referecircncias de artigos de publicaccedilatildeo internacional dos referidos

autores e outros que utilizei nesta pesquisa fazem parte do banco de dados do

ldquoObservatoire Cniel des Habitudes Alimentaires15rdquo e do ldquoObservatorio de la

Alimentacioacuten (ODELA)rdquo16

Dentre os brasileiros na aacuterea da alimentaccedilatildeo e cultura abordados nesta

pesquisa aleacutem dos claacutessicos trabalhos de Gilberto Freyre e Cacircmara Cascudo

jaacute citados estatildeo os seguintes autores Renata Menasche cujas pesquisas satildeo

mais centradas na alimentaccedilatildeo e consumo no meio rural e patrimocircnio alimentar

15 Site de acesso httpwwwlemangeur-ochacomconnexion 16 Site de acesso httpwwwodelaorglang=es

43

focadas na regiatildeo sul do Brasil Desta autora encontrei avaliando o periacuteodo 2005

a 2015 26 artigos em perioacutedicos envolvendo os temas relacionados acima (como

autora e coautora) 07 deles estatildeo inscritos no portal de perioacutedicos da CAPES

e tambeacutem eacute importante citar dois livros organizados pela autora ldquoA Agricultura

Familiar agrave Mesa saberes e praacuteticas da alimentaccedilatildeordquo publicado em 2007 e

ldquoDimensotildees socioculturais da alimentaccedilatildeordquo publicado em 2012 Maria Eunice

Maciel tambeacutem pesquisa o sul do Brasil em um vieacutes mais geral da comida e

cultura menos voltado ao rural do que a pesquisadora anterior Desta autora

encontrei 08 artigos em perioacutedicos quase todos eles voltados agrave estudos no sul

do Brasil 02 deles inscritos no portal de perioacutedicos da CAPES Ellen Woortmann

pesquisadora de Brasiacutelia cujas pesquisas em alimentaccedilatildeo concentram-se

sobretudo em memoacuteria e patrimocircnio alimentar e aspectos de gecircnero e

alimentaccedilatildeo Seu artigo mais recente na aacuterea de antropologia da comida

publicado em perioacutedico eacute ldquoA comida como linguagemrdquo Carlos Alberto Doacuteria

antropoacutelogo por meio da publicaccedilatildeo de dois recentes livros ldquoFormaccedilatildeo da

Culinaacuteria Brasileirardquo e ldquoe-Boca Livrerdquo Raul Lody tambeacutem antropoacutelogo Sua

publicaccedilatildeo recente mais importante para o campo da alimentaccedilatildeo eacute ldquoBrasil Bom

de Bocardquo Seus estudos tecircm sido mais concentrados na discussatildeo de patrimocircnio

e regionalismo alimentar Jaacute o antropoacutelogo Roberto DaMatta embora natildeo

pesquise especificamente sobre antropologia e comida possui importantes

trabalhos claacutessicos sobre essa temaacutetica e os quais utilizei nesta pesquisa Outras

importantes contribuiccedilotildees brasileiras satildeo as de Mocircnica Abdala Eduardo Frieiro

e Socircnia Maria de Magalhatildees com trabalhos sobre alimentaccedilatildeo com foco em

Minas Gerais de abordagens principalmente histoacutericas No periacuteodo de 2000 a

2015 encontrei 08 artigos de autoria e coautoria de Mocircnica Abdala sobre o tema

da comida e cultura

A leitura de alguns trabalhos dos autores destacados acima foi

fundamental para minha compreensatildeo quanto agrave necessidade de relativizar o

tema da alimentaccedilatildeo conhecer as experiecircncias conduzidas por eles e

correlaciona-las com a discussatildeo pretendida na minha pesquisa As anaacutelises

conduzidas pelos autores convidam agrave reflexatildeo sobre os significados da comida

e do comer na sociedade contemporacircnea Foi possiacutevel perceber que existem

lacunas nas discussotildees sobre a antropologia e sociologia da alimentaccedilatildeo no

Brasil sobretudo no que se refere aos estudos voltados para as populaccedilotildees

44

rurais Como o Brasil eacute constituiacutedo culturalmente de vaacuterios rurais variadas

tambeacutem satildeo as relaccedilotildees simboacutelicas com a comida e merecem ampliaccedilatildeo nos

estudos para que seja possiacutevel alcanccedilar toda a sua complexidade

Eacute importante destacar que as pesquisas nas aacutereas da sociologia e da

antropologia da alimentaccedilatildeo no Brasil ainda satildeo muito recentes apesar das

tradicionais obras jaacute citadas de Gilberto Freyre e Cacircmara Cascudo Em

levantamento feito no banco de teses da CAPES e da base do curriacuteculo lattes

dos docentes citados acima foi possiacutevel verificar que a maioria dos trabalhos no

tema da antropologia e sociologia da alimentaccedilatildeo estatildeo vinculados a programas

de poacutes-graduaccedilatildeo na aacuterea de Antropologia Social As teses e dissertaccedilotildees

concluiacutedas pertencentes aos programas nos quais alguns dos pesquisadores

citados acima atuam totalizam 11 dissertaccedilotildees de mestrado e 04 teses de

doutorado iniciadas a partir de 2007 e concluiacutedas ateacute 2013

Em relaccedilatildeo agraves pesquisas mais recentes no Brasil em levantamento feito

no banco de perioacutedicos da Capes ndash ao utilizar termos de busca sobre o tema de

interesse desta pesquisa ndash encontrei as seguintes informaccedilotildees a respeito de

publicaccedilotildees no periacuteodo de 2005 a 2015 Sobre ldquoalimentaccedilatildeo e culturardquo 07

artigos Sobre ldquocomida e culturardquo 02 artigos Sobre ldquoalimentaccedilatildeo e meio ruralrdquo

08 artigos sendo que 06 deles se referem ao ldquoPrograma de Aquisiccedilatildeo de

Alimentos (PAA)rdquo que natildeo eacute objeto de interesse da minha pesquisa Sobre

ldquoalimentaccedilatildeo e consumordquo 12 artigos sendo que a maior parte estaacute relacionada

aos aspectos nutricionais e fisioloacutegicos e natildeo de abordagem antropoloacutegica ou

socioloacutegica

Para as anaacutelises referentes ao campo da alimentaccedilatildeo e mundo rural

brasileiro destacando a cultura modos de vida e a influecircncia dos sistemas

alimentares contemporacircneos no contexto das novas ruralidades os autores que

trazem importantes contribuiccedilotildees a este trabalho satildeo Maria de Nazareth Baudel

Wanderley Joseacute Graziano da Silva Alfio Brandenburg Antocircnio Cacircndido Carlos

Rodrigues Brandatildeo Joseacute de Souza Martins Seacutergio Schneider e Maria Joseacute

Carneiro

Neste capiacutetulo a aacuterea da histoacuteria desempenha papel menos central do

que a antropologia e a sociologia Interessa-nos dessa disciplina sobretudo os

registros que auxiliem a pensar a perspectiva cultural da alimentaccedilatildeo ponto

central deste trabalho

45

Dentre os autores em quem buscamos as contribuiccedilotildees nesse sentido

estatildeo Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari Nas uacuteltimas trecircs deacutecadas eles

tecircm trazido importantes contribuiccedilotildees para a compreensatildeo da histoacuteria da

alimentaccedilatildeo sobretudo a histoacuteria da alimentaccedilatildeo na Europa A obra mais

importante que resultou da junccedilatildeo dos dois trata de um volumoso livro de 885

paacuteginas organizado por eles que reuniu vaacuterios pesquisadores da aacuterea com

enfoques diferentes sobre a alimentaccedilatildeo na histoacuteria O livro ldquoA Histoacuteria da

Alimentaccedilatildeordquo que foi publicado em 1996 possui um recorte temporal dividido em

sete partes 1 Preacute-histoacuteria e primeiras civilizaccedilotildees 2 O mundo claacutessico 3 Da

antiguidade tardia agrave alta idade meacutedia 4 Os ocidentais e os outros 5 Plena e

baixa idade meacutedia 6 Da cristandade ocidental agrave Europa dos Estados 7 A eacutepoca

contemporacircnea Para a presente pesquisa interessa sobretudo a seacutetima e

uacuteltima parte que trata da alimentaccedilatildeo contemporacircnea e nela dois capiacutetulos o

que discute ldquoas transformaccedilotildees do consumo alimentarrdquo e ldquoa emergecircncia das

cozinhas regionaisrdquo Nesta obra estatildeo presentes artigos de historiadores mas

tambeacutem de antropoacutelogos e socioacutelogos da alimentaccedilatildeo

Tambeacutem pesquisei e fiz uso de registros importantes da histoacuteria da

alimentaccedilatildeo presentes na coleccedilatildeo organizada por Philippe Ariegraves e Georges

Duby ldquoHistoacuteria da Vida Privadardquo bem como da coleccedilatildeo organizada por Fernando

A Novais Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Tais coleccedilotildees foram organizadas

por diversos autores de acordo com os volumes Utilizei trabalhos histoacutericos

dessa coleccedilatildeo nas discussotildees sobre o fogo comensalidade e sociabilidades que

ocorrem no espaccedilo da cozinha

Inclui-se ainda as anaacutelises do espanhol L Jacinto Garciacutea e seu livro

ldquoUna Historia Comestible homiacutenidos cocina cultura y ecologiardquo e ainda Brillat-

Savarin em ldquoA Fisiologia do Gostordquo Recorri com frequecircncia nesta pesquisa a

Luce Giard historiadora francesa Sua importante contribuiccedilatildeo para os estudos

da alimentaccedilatildeo estaacute no v 2 da obra de Michel De Certeau ldquoA Invenccedilatildeo do

Cotidiano II ndash Morar cozinharrdquo

Daniel Roche historiador social e cultural tambeacutem francecircs escreveu

sobre a cultura material francesa do seacuteculo XVIII Sua contribuiccedilatildeo para a histoacuteria

da alimentaccedilatildeo encontra-se no livro ldquoHistoacuteria das Coisas Banaisrdquo publicado

originalmente em 1997 em que trata do nascimento do consumo nos seacuteculos

XVII ao XIX Ao descrever aspectos cotidianos modos de vida comportamentos

46

e o funcionamento das sociedades da eacutepoca que passava por transformaccedilotildees

o autor mostra a famiacutelia como a unidade fundamental de produccedilatildeo e consumo

tanto na aacuterea rural quanto na urbana e isso se refletiu nas praacuteticas e haacutebitos

alimentares Um capiacutetulo do livro eacute dedicado agrave alimentaccedilatildeo como cultura e como

necessidade fisioloacutegica em uma eacutepoca em que obter a alimentaccedilatildeo era a

principal preocupaccedilatildeo das famiacutelias

Na histoacuteria da alimentaccedilatildeo brasileira as referecircncias mais importantes

que percorremos se referem aos trabalhos do historiador e tambeacutem folclorista

Luiacutes da Cacircmara Cascudo Suas obras nesta linha satildeo Histoacuteria da Alimentaccedilatildeo

no Brasil e Antologia da Alimentaccedilatildeo no Brasil Recorremos tambeacutem agrave vasta

contribuiccedilatildeo dada por Gilberto Freyre em ldquoCasa Grande e Senzalardquo e ldquoSobrados

e Mucambosrdquo que assim como Cacircmara Cascudo continuam sendo referecircncia

no campo da histoacuteria da alimentaccedilatildeo no Brasil Importante destacar que os dois

autores natildeo eram formados em curso de histoacuteria jaacute que segundo Silva e Ferreira

(2011) os primeiros cursos superiores de Histoacuteria no Brasil datam da deacutecada

de 1930 na USP no qual Gilberto Freyre lecionava a disciplina de antropologia

Assim os trabalhos de ambos mais do que apenas registros histoacutericos

perpassam fortemente pelas anaacutelises de cunho socioantropoloacutegico

No contexto analiacutetico desta pesquisa em que importa compreender as

mudanccedilas e ou permanecircncias nos haacutebitos alimentares das famiacutelias rurais o

uso do termo ldquosistema alimentarrdquo eacute recorrente Assim importa compreender o

seu significado atribuiacutedo por especialistas na aacuterea de alimentaccedilatildeo e cultura

Passaremos a essa discussatildeo no proacuteximo toacutepico deste capiacutetulo

32 Sistema alimentar17

Poulain (2001) define sistema alimentar como sendo

Lrsquoensemble de regravegles qui reacutesulte de lrsquoorganisation sociale des conceptions relatives au plaisir alimentaire et agrave la santeacute Les modegraveles alimentaires varient drsquoun espace culturel agrave lrsquoautre et au sein drsquoune

17 Nas disciplinas voltadas aos estudos de cunho fisioloacutegico e nutricional da alimentaccedilatildeo o termo adotado

eacute ldquopadratildeo alimentarrdquo Na sociologia e na antropologia da alimentaccedilatildeo utiliza-se principalmente a expressatildeo ldquosistema alimentarrdquo sobretudo na Europa como eacute o caso de Poulain (2001 2003 2013) Contreras e Gracia (2011) Montanari (2008) e Mennell (1996) Jaacute Fischler (1995) que tambeacutem eacute europeu utiliza a expressatildeo ldquosistema culinaacuteriordquo e mais raramente ldquocozinhardquo (cozinha moderna cozinha tradicional cozinha contemporacircnea) poreacutem com o mesmo sentido que o usado pelos outros autores Sistema alimentar eacute tambeacutem utilizado pelos americanos como Harris (2011) Sahlins (2003) Mintz e Dubois (2002)

47

mecircme socieacuteteacute eacutevoluent avec le temps Cette variabiliteacute est rendue possible par le fait que les contraintes biologiques de la meacutecanique physiologique et de lrsquoexploitation des ressources de la nature pegravesent sur les mangeurs18 humains de faccedilon relativement lacircche (POULAIN 2001 p 24)

Para este autor os sistemas alimentares satildeo formados por um conjunto

de conhecimentos tecnoloacutegicos herdados e repassados de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo

que incluem o saber-fazer o gosto as regras e as etiquetas etc Esses

conhecimentos facilitam no processo de escolha dos recursos presentes num

espaccedilo natural e sua transformaccedilatildeo em alimentos para consumo na forma de

pratos atrativos a uma determinada cultura Poulain afirma que esses

conhecimentos se definem concomitantemente como sistemas de coacutedigos

simboacutelicos que retratam os valores de um grupo humano participando da

construccedilatildeo de identidades culturais Na concepccedilatildeo de Poulain (2013) nesse

sistema o alimento estaacute em movimento desde o seu universo de produccedilatildeo

agriacutecola ateacute a chegada ao consumidor sofrendo algumas transformaccedilotildees ao

longo do percurso O sistema alimentar envolve fatores que vatildeo desde os

econocircmicos ateacute os do ambiente domeacutestico quando se adquire alimentos pela

compra ou ainda por meio de cultivo proacuteprio ou criaccedilatildeo de animais ou da pesca

Em um sentido semelhante ao atribuiacutedo por Poulain (2013 e 2014)

Fischler (1979 e 1995) define como sistema culinaacuterio um conjunto de

ingredientes e teacutecnicas que satildeo empregadas na elaboraccedilatildeo de uma refeiccedilatildeo as

combinaccedilotildees e correlaccedilotildees entre os alimentos utilizados e ainda as regras que

envolvem sua escolha preparaccedilatildeo e consumo Atrelados agraves teacutecnicas e aos

ingredientes e consequentemente agraves normas que regem o processo da escolha

ao consumo dos alimentos estatildeo crenccedilas valores siacutembolos representaccedilotildees e

os haacutebitos que satildeo indicadores de cultura de uma sociedade Ou seja normas

essas que estatildeo atreladas ao valor simboacutelico envolvidos no sistema alimentar e

natildeo somente o valor de uso no sentido utilitarista que neste caso seria

secundaacuterio conforme discutido por Sahlins (2003) Afinal como afirma o proacuteprio

Sahlins haacute uma ldquorazatildeo cultural em nossos haacutebitos alimentaresrdquo

Pelas definiccedilotildees dos autores acima percebe-se que as questotildees que

envolvem a alimentaccedilatildeo ou culinaacuteria satildeo estabelecidas pelas caracteriacutesticas e

regras mais ou menos comuns adotadas por grupos de pessoas e pela

18 Termo jaacute explicado na introduccedilatildeo

48

sociedade a qual pertencem Conforme Bourdieu (2007) o gosto que iraacute formar

o haacutebito eacute construiacutedo no convivio familiar e escolar Natildeo por acaso em relaccedilatildeo

agrave comida quase sempre as preferecircncias entre os membros de uma mesma

familia satildeo semelhantes Eacute o gosto tambeacutem que classifica e distingue uma

pessoa de outra um grupo de outro Na formaccedilatildeo do gosto alimentar estatildeo

presentes diferentes aspectos socioculturais que iratildeo inteferir nas escolhas

Embora possa ocorrer o sistema alimentar de um grupo natildeo

necessariamente seraacute adotado por um outro pois ele estaacute ligado agraves questotildees

culturais que em funccedilatildeo de diversos fatores pode gerar uma rejeiccedilatildeo a

determinadas praacuteticas alimentares Um exemplo disso eacute a atribuiccedilatildeo dada a um

determinado alimento ou prato como sendo ldquoexoacuteticordquo poreacutem exoacutetico aos olhos

de quem natildeo estaacute habituado a consumi-lo

Para Helman (1994) eacute a cultura local que assume maior peso no

processo de decisotildees alimentares Eacute ela que primeiramente define as regras

alimentares cabendo-lhe assim determinar

Quem prepara e quem serve o alimento para quem quais indiviacuteduos ou grupos comem reunidos onde e em que ocasiotildees a ingestatildeo do alimento acontece a ordem em que os pratos satildeo servidos dentro de uma refeiccedilatildeo e a maneira como os indiviacuteduos comem Todos esses estaacutegios de ingestatildeo dos alimentos satildeo padronizados rigorosamente pela cultura e constituem uma parte do modo de viver consagrado por aquela comunidade (HELMAN 1994 p 48-49)

Harris (2011) ao tratar da questatildeo lembra que por ser oniacutevora a

espeacutecie humana possui capacidade de ingerir alimentos tanto de origem animal

quanto vegetal Poreacutem por razotildees de adaptabilidade fisioloacutegica alguns

alimentos satildeo descartados do cardaacutepio Jaacute outros mesmo sendo biologicamente

possiacuteveis de ingestatildeo podem ser desprezados por algumas sociedades e

apreciados por outras O autor afirma que as razotildees de apreciaccedilatildeo e rejeiccedilatildeo de

um alimento vatildeo aleacutem da razatildeo fisioloacutegica da digestatildeo Tanto Harris (2011)

quanto Leacutevi-Strauss (1983) apontam que os alimentos rejeitados por razotildees

culturais ou sociais se tornam aceitos para consumo em caso de natildeo haver mais

nada a comer ou seja em caso de fome extrema

Em sentido semelhante Garciacutea (2013) esclarece que homens e animais

tendem a ser conservadores em mateacuteria de gosto embora isso natildeo represente

uma resistecircncia absoluta a experimentaccedilotildees Para o autor a razatildeo dos animais

se daacute por instinto bioloacutegico e a do homem por questotildees culturais Como a

49

formaccedilatildeo do gosto eacute de ordem cultural tambeacutem segundo Bourdieu (2007) isso

faz sentido uma vez que o gosto alimentar apreendido no nuacutecleo familiar

estabelece tambeacutem o haacutebito de cada indiviacuteduo Um haacutebito por ser condicionado

pela cultura eacute mais difiacutecil de ser mudado mas natildeo impossiacutevel pois haacute situaccedilotildees

em que o gosto e consequentemente o haacutebito alimentar podem sofrer

mudanccedilas Essa questatildeo seraacute relativizada mais agrave frente neste trabalho

Neste sentido Garcia (2013) a esclarece que os comportamentos

culturais se formam atraveacutes dos costumes e aprendizados Em geral os seres

humanos preferem o conhecido ao novo ou exoacutetico sobretudo em se tratando

de comida Isso pode estar tanto relacionado ao tipo de alimento como agrave forma

de seu cultivo colheita preparo e armazenamento Um mesmo alimento pode

assumir diferentes sabores e aspectos dependendo da forma como eacute preparado

O peixe tanto pode ser cru na preferecircncia de algumas culturas como pode ser

frito assado ou ensopado e com adiccedilatildeo de temperos e condimentos na

preferecircncia de outras

321 Alimentos aceitos e rejeitados

Esses aspectos dos padrotildees culturais alimentares satildeo tambeacutem tratados

por Sahlins (2003) ao chamar a atenccedilatildeo para o fato de que mesmo o

determinismo cultural de uma sociedade natildeo pode deixar de considerar a

sobrevivecircncia e portanto a continuaccedilatildeo da espeacutecie como por exemplo fazer a

distinccedilatildeo entre alimentos comestiacuteveis e natildeo comestiacuteveis Mas o autor destaca

que haacute uma junccedilatildeo e por isso tambeacutem um conflito entre o aspecto utilitarista

(objetivo) e simboacutelico (subjetivo) na produccedilatildeo e no consumo de produtos Em um

dos capiacutetulos o autor trata do sistema alimentar dos americanos do Norte de

suas preferecircncias alimentares e dos tabus em relaccedilatildeo ao consumo de animais

domeacutesticos Destaca que o aspecto simboacutelico predomina sobre o de ordem

praacutetica Segundo o autor a relaccedilatildeo produtiva estabelecida pela sociedade

americana estaacute pautada no aspecto do que eacute considerado por eles como

comestiacutevel e natildeo comestiacutevel que envolve tanto a exploraccedilatildeo do meio ambiente

quanto as formas de lidar com a terra Neste caso baseado numa relaccedilatildeo em

que ldquoa carne eacute elemento central e os carboidratos e legumes satildeo apoios

perifeacutericos na dietardquo (p 171)

50

A carne como siacutembolo de ldquoforccedilardquo evoca o polo masculino de um coacutedigo social da comida o qual deve originar-se na identificaccedilatildeo indo-europeia do boi ou da riqueza crescente com a virilidade A indispensabilidade da carne como ldquoforccedilardquo e do fileacute como a siacutenteses das carnes viris permanece condiccedilatildeo baacutesica da dieta americana (SAHLINS 2003 p 171)

Segundo o autor o que determina para os americanos qual carne eacute ou

natildeo comestiacutevel eacute a relaccedilatildeo das espeacutecies com a sociedade humana Animais de

estimaccedilatildeo recebem afagos e carinho tem nome proacuteprio diferente da situaccedilatildeo

dos animais para abate Mas essa natildeo eacute uma particularidade dos americanos do

Norte Tambeacutem eacute condiccedilatildeo para outras culturas ainda que os motivos sejam

religiosos como por exemplo na Iacutendia onde o consumo da carne de bovinos eacute

evitado por razotildees religiosas do hinduiacutesmo Os judeus e muccedilulmanos tambeacutem

por motivos religiosos rejeitam a carne de porco que eacute amplamente consumida

na maior parte do ocidente Por outro lado no ocidente eacute praticamente

impensaacutevel a possibilidade de se tomar uma sopa a base de carne de cachorro

alimento relativamente comum ao paladar dos chineses e dos vietnamitas por

exemplo Isso ocorre no ocidente porque catildees satildeo animais de estimaccedilatildeo e

estabelecem relaccedilotildees muito afetivas com os seres humanos vistos como um

membro da famiacutelia conforme aponta Sahlins (2003)

Da mesma forma a carne de cavalo agrada a alguns grupos de regiotildees

francesas belgas e italianas O Brasil natildeo tem por haacutebito consumir a carne de

cavalo apesar de ser um dos maiores exportadores Em meacutedia 15 mil toneladas

por ano19 Segundo Sahlins (2003) durante a crise inflacionaacuteria meteoacuterica nos

Estados Unidos no ano de 1973 foi sugerido pelos governantes que a populaccedilatildeo

adotasse o haacutebito de consumir alimentos mais baratos poreacutem tatildeo nutritivos

quanto a carne de boi (viacutesceras rins coraccedilatildeo) Isso soou como uma afronta para

a populaccedilatildeo A rejeiccedilatildeo pelas viacutesceras se deu por razatildeo socioeconocircmica Para

boa parte da populaccedilatildeo americana comer partes menos nobres do boi seria se

aproximar socialmente de classes mais pobres ldquoA razatildeo para essa repulsa

parece pertencer agrave loacutegica semelhante que recebeu com desagrado algumas

tentativas de substituir a carne bovina por carne de cavalo durante o mesmo

periacuteodordquo (p 172) Em funccedilatildeo disso foi realizado um ato como protesto dos

ldquoapreciadores dos cavalos como animais de estimaccedilatildeordquo

19 httpgrandschefsblogspotcombr201007carne-de-cavalo-o-brasil-e-um-doshtml

51

Tambeacutem eacute exoacutetico para o ocidente o haacutebito da populaccedilatildeo chinesa em

consumir escorpiotildees ratos e uma variedade de insetos Esses alimentos foram

inseridos no cardaacutepio chinecircs em periacuteodo de crise alimentar com o objetivo de

abastecer um paiacutes extremamente populoso Atualmente continuam sendo

consumidos no entanto muito mais como atrativo agrave curiosidade de turistas do

que por necessidade de consumo

Os indiacutegenas da Ameacuterica do Sul possuem o haacutebito de comer alguns

alimentos que os natildeo iacutendios consideram exoacuteticos como por exemplo formigas

larvas de abelhas cupins lagartas besouros etc Em algumas cidades do norte

do Brasil eacute possiacutevel encontrar nas feiras misturas como farofas agrave base de formiga

sauacuteva Eacute interessante ressaltar que um alimento exoacutetico perde essa classificaccedilatildeo

a partir do momento em que passa a agradar ao paladar e a ser consumido sem

aversatildeo a ele Deixando assim de ser exoacutetico para se transformar em familiar

parafraseando DaMatta (1978) Assim o conceito de exoacutetico varia de uma

cultura a outra mas tambeacutem de uma pessoa a outra em uma mesma sociedade

Houve um tempo no Brasil em que comer formiga sauacuteva frita ou tostada

natildeo fazia parte apenas da dieta indiacutegena Relatos de viagem apontam serem

elas importante complemento num periacuteodo de escassez alimentar nas viagens

dos bandeirantes desbravando as Minas Gerais Frieiro (1982) cita documento

da viagem do Conde de Assumar Dom Pedro a Vila Rica em 1717 passando

por Satildeo Paulo quando lhe foi oferecido a ele e agrave sua comitiva formigas sauacutevas

(icaacute) torradas20

Dependendo do contexto o exoacutetico pode ser um emblema de classe e

aqui novamente se insere a argumentaccedilatildeo do gosto como diferenciaccedilatildeo ou

distinccedilatildeo de classes como discutido por Bourdieu (2007) Por exemplo o exoacutetico

considerado ldquochiquerdquo ou ldquogourmetrdquo quando se trata de atribuir status de

consumo e portanto desejado como por exemplo o caviar ou o foie gras Ao

serem aceitos por um perfil de consumidores que aceitam pagar o elevado preccedilo

desses dois produtos eles perderam o status de exoacutetico rejeitaacutevel e passou a

20 Dom Pedro e sua comitiva mais duma vez nos ermos em que pousavam quase passaram fome em

razatildeo do pouco ou quase nada que lhes ofereciam para comer Em Santos e Satildeo Paulo pequenas vilas de algumas centenas de casas o passadio natildeo foi de todo mau Comia-se comumente o que as roccedilas produziam isto eacute milho mandioca feijatildeo e algumas frutas da terra que era o habitual sustento dos paulistas natildeo se comendo carne senatildeo em alguns dias do ano Penetrando no interior com alguns dias de jornada soacute encontraram para cear no rancho dum paulista meio macaco e umas poucas formigas O Conde agradeceu a oferta e comeu (FRIEIRO 1982 p 62)

52

ser visto como um exoacutetico aceitaacutevel assim como jaacute ocorre em boa parte do paiacutes

em relaccedilatildeo agraves comidas japonesas italianas indianas etc que se popularizaram

e jaacute natildeo satildeo mais estranhas ao paladar de boa parte da populaccedilatildeo das aacutereas

urbanas No entanto o exoacutetico popular raramente eacute desejado como a carne de

rato por exemplo consumida pelos chineses mas que no Brasil permanece

sendo rejeitada

Nessa discussatildeo estaacute presente a necessidade de relativizaccedilatildeo da

questatildeo do gosto e do haacutebito alimentar jaacute que apesar de tenderem a ser

tradicionais eacute possiacutevel muda-los ou incorporar novas percepccedilotildees por meio de

significados simboacutelicos (status curiosidade pelo novo para se inserir num

determinado grupo de interesse)

Garciacutea (2009) assim como Harris (2011) estabelece que a correlaccedilatildeo

entre alimentaccedilatildeo e cultura ocorre devido ao fator fisioloacutegico da atividade de

comer estar condicionado culturalmente e isso envolve desde as maneiras de

obtenccedilatildeo dos alimentos ateacute os modos de consumi-los Assim para Garcia

(2009) a escolha dos alimentos se daacute por fatores primeiramente de ordem

cultural e social e em segundo lugar pelas suas qualidades nutricionais e pelo

aspecto econocircmico Nesse sentido o alimento escolhido precisa ser ldquobom para

comerrdquo fazendo uso da expressatildeo utilizada por Harris (2011) ldquoLos alimentos

preferidos (buenos para comer) son aquellos que presentan uma relacioacuten de

costes y benefiacutecios praacutecticos maacutes favorables que los alimentos que se evitan

(malos para comer)rdquo (HARRIS 2011 p 17)

3211 Haacutebitos alimentares orientados por costumes e tradiccedilotildees

Retomando a discussatildeo de Harris (2011) o autor explica que os

costumes culturais e as tradiccedilotildees alimentares de cada sociedade eacute que orientam

os haacutebitos alimentares e essa diversidade deve ser respeitada e valorizada por

aqueles que estudam o tema da alimentaccedilatildeo ldquoComo antropoacutelogo tambieacuten

suscribo el relativismo cultural em mateacuteria de gustos culinarios no se debe

ridiculizar ni condenar los haacutebitos alimentarios por el mero hecho de ser

diferentesrdquo (HARRIS 2011 p 15)

Essa defesa tambeacutem foi feita por Mary Douglas e Ravindra Khare em

1979 quando escreveram uma apresentaccedilatildeo sobre a antropologia da

53

alimentaccedilatildeo no importante perioacutedico ldquoSocial Science Informationrdquo Nesse artigo

as autoras informaram sobre a criaccedilatildeo da ldquocomisioacuten internacional sobre la

antropologia de la alimentacioacutenrdquo A criaccedilatildeo da comissatildeo ocorreu em funccedilatildeo da

necessidade de se discutir as poliacuteticas e estrateacutegias que estavam sendo

desenvolvidas e implementadas nas situaccedilotildees de fome aguda eou crocircnica em

algumas naccedilotildees naquela eacutepoca Pontuaram neste artigo aspectos importantes

que devem ser observados na implantaccedilatildeo de poliacuteticas alimentares para

solucionar a fome Estes aspectos dizem respeito agrave necessidade de se planejar

a soluccedilatildeo de problemas que acometem paiacuteses em situaccedilatildeo de fome que satildeo as

questotildees que envolvem poliacutetica sanitaacuteria e higiene conhecimento de teacutecnicas de

armazenamento e distribuiccedilatildeo mas chamaram a atenccedilatildeo de forma enfaacutetica para

o respeito aos aspectos culturais ldquoHa de basarse em el anaacutelisis de la sociedade

La conviccioacuten de fondo es que los patrones locales de seleccioacuten de alimentos no

pueden ser impuestos sino que dependen de la vida domeacutestica de las ideias

locales sobre processos fisioloacutegicos de divisioacuten de trabajo de horaacuteriordquo

(DOUGLAS KHARE 1979 apud GARCIacuteA 2009 p 30)

Essa argumentaccedilatildeo deixa claro o entendimento diferenciado das autoras

sobre a necessidade da interaccedilatildeo dos antropoacutelogos da alimentaccedilatildeo com

profissionais de outras aacutereas nutricionistas ecologistas economistas

agrocircnomos poliacuteticos e outros atuantes em poliacuteticas sobre o combate agrave fome

para que a cultura alimentar seja respeitada nas intervenccedilotildees sociais Questatildeo

tambeacutem defendida por Valente (2003) ao criticar a limitaccedilatildeo que existe nos

trabalhos isolados em cada especialidade e ao defender a interdisciplinaridade

na elaboraccedilatildeo de projetos porque feitos de forma isolada cada profissional

tende a ver o problema da fome com suas proacuteprias lentes desprezando outras

possibilidades

O profissional da sauacutede ldquoenxergardquo desnutriccedilatildeo e doenccedila e propotildee vacinaccedilatildeo saneamento aleitamento materno etc O agrocircnomo ldquodiagnosticardquo falta de alimentos e propotildee maior produccedilatildeo de alimentos ajuda alimentar etc O educador vecirc ldquoignoracircncia e haacutebitos alimentares inadequadosrdquo e propotildee educaccedilatildeo alimentar Os economistas claacutessicos ldquoidentificamrdquo maacute distribuiccedilatildeo de alimentos e propotildeem uma melhor poliacutetica fiscal geraccedilatildeo de emprego e renda etc Os planejadores diagnosticam ldquofalta de coordenaccedilatildeordquo e propotildeem a criaccedilatildeo de conselhos de alimentaccedilatildeo e nutriccedilatildeo e capacitaccedilatildeo (VALENTE 2003 p 52)

Recentemente a FAOONU (2013) apresentou um projeto em que

propotildee a introduccedilatildeo de insetos como alimentos no combate agrave fome Como

54

justificativa informou que aproximadamente dois bilhotildees de pessoas no mundo

jaacute se alimentam de insetos como besouros lagartas abelhas vespas formigas

gafanhotos grilos cupins libeacutelulas e moscas Agrave praacutetica de se comer insetos da-

se o nome de entomofagia segundo a FAOONU (2013) As justificativas da FAO

estatildeo relacionadas a aspectos de sauacutede pois satildeo altamente nutritivos e ricos em

proteina podendo substituir facilmente em termos nutricionais as carnes de

porco de boi de frango e tambeacutem de peixe aspectos ambientais pois sua

produccedilatildeo gera baixo impacto ao meio ambiente e aspectos relacionados a

fatores econocircmicos e sociais Segundo este oacutergatildeo a criaccedilatildeo de insetos pode vir

a se tornar uma opccedilatildeo de investimento com pouco capital e pode ser importante

fonte de renda e de consumo para camadas mais pobres e populaccedilatildeo sem

acesso agrave propriedade da terra aleacutem de ser uma atividade que natildeo necessita de

tecnologia sofisticada

Sobre isso eacute importante de tecer algumas observaccedilotildees criacuteticas ao

considerar que tal projeto representa um desafio ao propor a inserccedilatildeo de insetos

na dieta em nivel global o que significa tornaacute-la atrativa tambeacutem naquelas

culturas onde satildeo atualmente rejeitadas Todos esses aspectos conduzem a

uma reflexatildeo sobre outro tipo de escolha alimentar que estaacute relacionada agrave

questatildeo de ordem social e econocircmica Ou seja estaacute em pauta se as pessoas

que sofrem de fome aguda ou crocircnica satildeo obrigadas a se adaptar ao exoacutetico se

assim lhes for oferecido em funccedilatildeo de uma poliacutetica puacuteblica ou se isso lhes seria

oferecido como escolha passiacutevel de adoccedilatildeo ou de rejeiccedilatildeo

Tal reflexatildeo remete agraves observaccedilotildees sobre direito agrave liberdade na forma

como eacute tratada por Sen (2000 p 23) ldquoa privaccedilatildeo de liberdade econocircmica pode

gerar a privaccedilatildeo de liberdade social assim como a privaccedilatildeo de liberdade social

da mesma forma pode gerar a liberdade econocircmicardquo O que implica em perda

de acesso e do direito de escolhas inclusive alimentares Portanto acredita-se

que caso esse tipo de alimentaccedilatildeo seja imposta o projeto vai no sentido

contraacuterio ao proposto pela comissatildeo de antropologia da alimentaccedilatildeo citado

acima por Douglas e Khare (1979 apud GARCIacuteA 2009) A imposiccedilatildeo de um

determinado alimento ou o convencimento em adota-lo pode tambeacutem ocorrer

de forma velada utilizando-se campanhas com os grupos locais e ou atraveacutes

da miacutedia como ocorre em relaccedilatildeo a vaacuterios alimentos que passam a ser

55

consumidos sobretudo pelas crianccedilas agrave partir de campanhas publictaacuterias

muitas vezes utilizando-se argumentos apelativos

Certamente essa proposta recente poderaacute ter o debate ampliado nos

proacuteximos anos O que nos interessa aqui eacute sobretudo chamar a atenccedilatildeo para a

inserccedilatildeo de novas praacuteticas alimentares na contemporaneidade Praacuteticas essas

que se mesclam num processo de ampliaccedilatildeo do multiculturalismo alimentar

O proacuteximo item trata da discussatildeo sobre a percepccedilatildeo do alimento como

caracteriacutestica cultural e ainda sobre os reflexos do sistema alimentar

contemporacircneo na vida dos comedores

33 Alimento comida e cultura

Aleacutem de ser uma atitude bioloacutegica a alimentaccedilatildeo assume tambeacutem um

comportamento cultural Discussatildeo jaacute iniciada nos itens anteriores

Bioloacutegica por uma questatildeo de sobrevivecircncia sendo um fator

insubstituiacutevel para a manutenccedilatildeo da vida e condiccedilatildeo sine qua non para todos os

seres humanos Relaciona-se diretamente agrave vitalidade do indiviacuteduo agrave

necessidade fisioloacutegica de ingerir nutrientes capazes de manter o corpo em

funcionamento sendo sob esse aspecto um comportamento relativo agrave natureza

humana O que ingerir e as quantidades a serem ingeridas para suprir as

necessidades variam de uma pessoa para outra de acordo com fatores como

idade altura peso tipo de atividade quadro cliacutenico entre outros

Corresponder a uma atitude natural e de caraacuteter instintivo natildeo torna

necessariamente o ato de alimentar-se como algo consciente sob o aspecto

nutricional porque nem todos os indiviacuteduos conhecem a composiccedilatildeo dos

alimentos e aqueles que conhecem nem sempre pensam a respeito disso ao

realizar as refeiccedilotildees cotidianas aspecto que foi tratado por Harris (2011) e

Garciacutea (2009)

O termo ldquoalimentordquo surgiu segundo Poulain (2013) por volta do ano

1120 mas o seu significado atual somente foi utilizado a partir do seacuteculo XVI

quando passou a substituir a expressatildeo ldquocarnerdquo e esta uacuteltima passou a se referir

apenas agrave carne tal qual a conhecemos ou seja a dos animais comestiacuteveis O

autor explica que anteriormente a expressatildeo ldquocarnerdquo era utilizada para se referir

a tudo o que era bom para manter a vida fossem alimentos caacuterneos ou natildeo

56

Para este autor um alimento deve possuir essas quatro qualidades nutricionais

organoleacutepticas higiecircnicas e simboacutelicas Sobre as simboacutelicas o autor destaca

Para ser um alimento aleacutem das trecircs primeiras caracteriacutesticas de qualidade um produto natural deve poder ser o objeto de projeccedilotildees de significados por parte do comedor Ele deve poder tornar-se significativo inscrever-se numa rede de comunicaccedilotildees numa constelaccedilatildeo imaginaacuteria numa visatildeo de mundo (POULAIN 2013 p 240)

De Garine (1987 p 4) ao resgatar o pensamento de Margaret Mead

destaca que as escolhas alimentares dos seres humanos estatildeo relacionadas agraves

possibilidades de alimentos disponibilizados pelo meio e ao potencial teacutecnico que

possuem

La supervivencia de un grupo humano exige por supuesto que su reacutegimen alimenticio satisfaga las necessidades nutritivas No obstante el nivel de satisfaccioacuten de estas necessidades cuya definicioacuten sigue siendo controvertida variacutea cualitativa y cuantitativamente de una sociedad a otra Tambieacuten cambia en el interior de cada una seguacuten la categoriacutea de edad el sexo el niacutevel econoacutemico y otros criterios (DE GARINE 1987 p 4)

De acordo com Contreras e Gracia (2011) e Woortmann (2007) as

escolhas alimentares que satildeo as formadoras dos haacutebitos se constituem em uma

parte da totalidade cultural Para Contreras e Gracia (2011) pode-se afirmar que

ldquosomos o que comemosrdquo21 tanto no aspecto fisioloacutegico como tambeacutem no

espiritual ao ldquoincorporarrdquo psicossocialmente os elementos culturais daquilo que

ingerimos que pode ser desde elementos ligados agrave espiritualidade como

tambeacutem agrave memoacuteria afetiva Pela mesma razatildeo defendem que ldquocomemos o que

somosrdquo

Comemos aquilo que nos faz bem ingerimos alimentos que satildeo atrativos para os nossos sentidos e nos proporcionam prazer enchemos a cesta de compras de produtos que estatildeo no mercado e na feira e nos satildeo permitidos por nosso orccedilamento servimos ou nos satildeo servidas refeiccedilotildees de acordo com nossas caracteriacutesticas se somos homens ou mulheres crianccedilas ou adultos pobres ou ricos E escolhemos ou recusamos alimentos com base em nossas experiecircncias diaacuterias e em nossas ideias dieteacuteticas religiosas ou filosoacuteficas (CONTRERAS GRACIA 2011 p 16)

21 Conhecido aforismo proferido pelo filoacutesofo alematildeo Ludwig Feuerbach na obra ldquoO misteacuterio do sacrifiacutecio

ou o homem eacute o que ele comerdquo (1862) Tambeacutem Brillat-Savarin escreveu em seu tratado sobre lsquoA Fisiologia do Gostorsquo ldquoDize-me o que comes e te direi quem eacutesrdquo (SAVARIN-BRILLAT 1995 p 15) Os dois aforismos satildeo muito utilizados por aqueles que escrevem sobre alimentaccedilatildeo

57

Em uma percepccedilatildeo semelhante Woortmann (2007) em estudos sobre

dimensotildees sociais da comida entre os camponeses defende a lsquocomidarsquo para

este grupo como sendo uma ldquocategoria cultural nucleante que se articula a

lsquotrabalhorsquo e a lsquoterrarsquo e que as escolhas alimentares que incluem alimentos

proibidos permitidos e os preferidos estatildeo ligadas agraves dimensotildees de gecircnero de

memoacuteria de famiacutelia de identidade de religiatildeo etc

DaMatta (2001 p 56) defende que ldquoo jeito de comer define natildeo soacute aquilo

que eacute ingerido como tambeacutem aquele que ingererdquo Pode-se afirmar portanto que

comer eacute mais do que apenas um ato de sobrevivecircncia eacute tambeacutem um

comportamento simboacutelico e cultural

A diferenccedila entre o alimento como fator bioloacutegico e o alimento como

cultura eacute discutida principalmente por Montanari (2008) Delormier et al (2009)

DaMatta (2001 e 1987) Maciel (2001) Ishige (1987) Silva Mello (1956) Crotty

(1993) De Garine (1987) Cacircmara Cascudo (2004) e Woortmann (1985)

Crotty (1993 apud DELORMIER et al 2009) defende que a praacutetica

alimentar abrange duas acepccedilotildees Aquela posterior agrave ingestatildeo do alimento e que

estaacute relacionada ao universo da biologia (fisiologia e bioquiacutemica) e aquela

anterior agrave ingestatildeo Este uacuteltimo estaacute relacionado agraves questotildees culturais e sociais

ou seja agrave natureza social do comer Segundo a autora no campo da disciplina

da nutriccedilatildeo da-se pouco valor a este uacuteltimo aspecto ateacute mesmo devido aos seus

objetivos teacutecnico-cientiacuteficos Concordando com a percepccedilatildeo de Crotty (1993)

Delormier et al (2009) defendem que natildeo considerar os aspectos sociais e

culturais no campo de interesse representa de certa forma uma limitaccedilatildeo a

qualquer disciplina Estes autores tambeacutem analisam que o processo de escolha

alimentar na maior parte das vezes natildeo se daacute primeiramente pela opccedilatildeo

nutricional mas sim pelas influecircncias do conviacutevio social cotidiano que podem

estar presentes nas relaccedilotildees familiares mas tambeacutem no local de trabalho na

escola e em outros locais de convivecircncia que permitem trocas e ajudam a moldar

as escolhas alimentares dos indiviacuteduos

A atribuiccedilatildeo de status simboacutelico dado ao alimento e ao ato de comer eacute

definida segundo alguns autores pela diferenccedila semacircntica entre ldquocomidardquo e

ldquoalimentordquo DaMatta (1987) ao estudar a comida brasileira defende que toda

substacircncia nutritiva eacute um alimento mas nem todo alimento eacute comida Alimento

aponta o autor eacute universal e geral eacute o que o indiviacuteduo ingere para se manter

58

vivo jaacute a comida ajuda a situar uma identidade e definir um grupo uma classe

uma pessoa ldquoTemos o alimento e temos a comida Comida natildeo eacute apenas uma

substacircncia alimentar mas eacute tambeacutem um modo um estilo e um jeito de alimentar-

serdquo (DAMATTA 2001 p 56) Em uma aproximaccedilatildeo a DaMatta (1987)

Woortmann (1985) aponta ldquocomidardquo como sendo o oposto de mantimento

embora derive dele Pois comida eacute a transformaccedilatildeo do mantimento atraveacutes da

culinaacuteria

Neste sentido comer proporciona uma relaccedilatildeo de intimidade com o ser

humano pois haacute ainda o investimento psicossocial no processo de escolha dos

alimentos O proacuteprio processo de ingerir demonstra a intimidade existente entre

a comida e o corpo considerando que trata daquilo que segundo Mintz (2001

p 31) ldquoeacute colocado para dentro do corpordquo O autor defende que ldquonenhum outro

comportamento natildeo automaacutetico se liga de modo tatildeo iacutentimo agrave nossa

sobrevivecircnciardquo Corroborando esse pensamento Cacircmara Cascudo (2004 p

348) defende que eacute ldquoinuacutetil pensar que o alimento contenha apenas es elementos

indispensaacuteveis agrave nutriccedilatildeo Conteacutem substacircncias imponderaacuteveis e decisivas para

o espiacuterito alegria disposiccedilatildeo criadora bom humorrdquo

Maciel (2001) tambeacutem compartilha da ideia de diferenciaccedilatildeo entre

ldquocomidardquo e ldquoalimentordquo ao reconhecer a junccedilatildeo entre natureza e cultura quando

se trata de alimentaccedilatildeo humana pois poucas horas apoacutes o nascimento

instintivamente a crianccedila chora em busca pelo leite materno Poreacutem a

amamentaccedilatildeo em humanos eacute um ato tambeacutem cultural considerando que o

receacutem-nascido ao ser amamentado experimenta a sensaccedilatildeo de aconchego

favorecendo o viacutenculo entre matildee e filho e ainda o prazer de comer A crianccedila

gosta do sabor do leite e natildeo o rejeita O leite eacute assim alimento e comida ndash

natureza e cultura22

Comida eacute assim o alimento transformado pelas representaccedilotildees sociais

e culturais Eacute o que sugere tambeacutem Montanari (2008) Para este autor

diferentemente das outras espeacutecies animais o homem aproveita os alimentos

que encontra na natureza mas isso natildeo o impede de querer tambeacutem criar a

proacutepria comida usando esses alimentos baacutesicos encontrados mas

transformando-os pelo uso do fogo e uso das praacuteticas tecnoloacutegicas que se

22 Silva Mello (1956) Sandre-Pereira (2012) Mead (1969) e Bosi Machado (2005) satildeo outros autores que

discutem mais profundamente a questatildeo sobre amamentaccedilatildeo e cultura

59

desenvolvem nas cozinhas ldquoOs valores de base do sistema alimentar se definem

como resultado e representaccedilatildeo de processos culturais que preveem a

domesticaccedilatildeo a transformaccedilatildeo e a reinterpretaccedilatildeo da naturezardquo (p 15) O

consumo dos alimentos tambeacutem eacute tratado como cultura pelo autor uma vez que

o homem escolhe o que comer baseado em criteacuterios de ordem econocircmica

nutricional preferecircncias mas tambeacutem em simbologias atribuiacutedas ao alimento

portanto comida Por essas razotildees ldquoa comida se apresenta como elemento

decisivo da identidade humana e um dos mais eficazes instrumentos para

comunica-lardquo (p 16) A natureza produz os alimentos mas a cultura faz surgir

coacutedigos importantes como por exemplo as diferentes opccedilotildees de cardaacutepios as

receitas os haacutebitos que por sua vez se relacionam ao paladar ao prazer

relacionado agraves propriedades organoleacutepticas dos alimentos e sobretudo ao

prazer da degustaccedilatildeo

331 A importacircncia social e cultural do uso do fogo e sua relaccedilatildeo com a comensalidade

O valor cultural do alimento se fortalece a partir da descoberta do fogo e

do iniacutecio do processo de cozimento dos alimentos Os pesquisadores das

Ciecircncias Sociais que primeiramente deram ecircnfase ao papel fundamental do fogo

na transformaccedilatildeo do alimento atribuindo-lhe assim uma funccedilatildeo cultural para

aleacutem da bioloacutegica foram Claude Leacutevi-Strauss Jean Anthelme Brillat-Savarin

Richard Wrangham e Massimo Montanari

Segundo Montanari (2008) para os seres humanos a comida eacute cultura

e natildeo apenas pura natureza devido agrave adoccedilatildeo ndash como parte essencial de suas

teacutecnicas ndash dos modos de produccedilatildeo de preparaccedilatildeo e de consumo de alimentos

bem como o conhecimento sobre plantas proacuteprias para consumo Para o autor

o uso do fogo eacute fundamental na transformaccedilatildeo do alimento bruto em produto

cultural em comida Referente agrave esta percepccedilatildeo Leacutevi Strauss discute em ldquoO Cru

e o Cozidordquo como o uso do fogo permitiu de certa forma o homem passar do

estado da natureza ndash ao se referir a ingestatildeo do alimento de caccedila ou coleta na

forma crua ndash para o estado da cultura a partir da transformaccedilatildeo do alimento em

cozido Numa analogia da linguagem verbal dos grupos em seu artigo

denominado ldquoO Triacircngulo Culinaacuteriordquo o autor propotildee explicar a relaccedilatildeo natureza

60

ndash cultura com a linguagem da comida conferindo status de linguagem universal

agrave comida ldquoassim como natildeo existe sociedade sem linguagem natildeo existe

nenhuma que de um modo ou de outro natildeo cozinhe pelo menos alguns de seus

alimentosrdquo (LEacuteVI-STRAUSS 1968 p 25) O Triacircngulo culinaacuterio proposto pelo

antropoacutelogo se forma pelo cru pelo cozido (assado e fervido) e pelo apodrecido

Estaacute claro que em relaccedilatildeo agrave cozinha o cru constitui o polo natildeo marcado e que os dois outros o satildeo acentuadamente mas em direccedilotildees opostas com efeito o cozido eacute uma transformaccedilatildeo cultural do cru enquanto que o apodrecido eacute uma transformaccedilatildeo cultural dele Subjacente ao triacircngulo primordial haacute portanto uma dupla oposiccedilatildeo entre elaboradonatildeo elaborado de um lado e entre culturanatureza de outro Sem duacutevida alguma estas noccedilotildees constituem formas vazias nada nos ensinam sobre a cozinha de tal ou tal sociedade particular uma vez que apenas a observaccedilatildeo pode nos dizer o que cada um entende por ldquocrurdquo ldquocozidordquo e ldquoapodrecidordquo e uma vez que pode se supor que natildeo seraacute a mesma coisa para todas (LEacuteVI-STRAUSS 1968 p 25)

Em uma escala de relevacircncia cultural o cru estaacute na base mais simples

da escala na sequecircncia viria o assado ocupando segunda posiccedilatildeo pois

necessita apenas do fogo Os mais elaborados satildeo assim fervidos ou

ensopados que por necessitar de maior envolvimento humano e de uma vasilha

com aacutegua estando num patamar de elaboraccedilatildeo mais complexo e portanto

numa escala de maior relevacircncia cultural

Apoacutes Leacutevi-Strauss que analisou a mitologia dos povos ameriacutendios e seu

ldquomundordquo culinaacuterio buscando traduzir entre outras questotildees os mitos sobre a

origem do fogo a partir da representaccedilatildeo desse grupo surgiram outros estudos

destacando a importacircncia do fogo na praacutetica de cozinhar Um desses estudos

recentes eacute do antropoacutelogo Wrangham (2010) que tambeacutem defende a descoberta

do fogo e o cozimento como sendo definidores da humanidade e responsaacutevel

por diferenciar os humanos dos macacos originando o gecircnero Homo

Semelhante afirmaccedilatildeo eacute feita por Garciacutea (2013)

La conquista del fuego supuso (de manera metafoacuterica) la separacioacuten definitiva del mundo de los seres vivos en dos grupos de un lado quedaron los hombres de otro los demaacutes animales El fuego nos transformoacute em humanos La domesticacioacuten del fuego supuso en definitiva un impulso decisivo en la historia humana un impulso fecundador que permitioacute que se produjeran nuevos avances que a su vez abrieron la viacutea a otros progresos generando una reaccioacuten en cadena que ha desembocado en el complejo y tecnificado mundo actual (GARCIacuteA 2013 p 167)

61

Cozinhar aumentou o valor da comida Assim o uso do fogo alterou

fisicamente o corpo humano reduzindo o aparelho digestivo e aumentando o

tamanho do ceacuterebro mas tambeacutem alterando o uso do tempo e a vida social O

impacto recaiu ainda sobre as relaccedilotildees com a natureza que conforme

(WRANGHAM 2010 p 7) ldquotransformou-nos em consumidores de energia

externa e assim criou um organismo com uma nova relaccedilatildeo com a natureza

dependente de combustiacutevelrdquo

O valor cultural do fogo na transformaccedilatildeo do alimento eacute tatildeo claro que

conforme aponta Leach (1970 apud WRANGHAM 2010 p 15) ldquoAs pessoas

natildeo precisam cozer sua comida elas o fazem por razotildees simboacutelicas para

mostrar que satildeo homens e natildeo animaisrdquo Afinal somos os uacutenicos animais

capazes de cozinhar o proacuteprio alimento

Por outro lado natildeo se pode afirmar que ingerir alimento cru natildeo possua

caracteriacutestica cultural pois como argumenta Giard (2012 p 232) ldquoMesmo cru e

colhido diretamente da aacutervore o fruto jaacute eacute um alimento culturalizado antes de

qualquer preparaccedilatildeo e pelo simples fato de ser tido como comestiacutevel rdquo Para a

autora a noccedilatildeo de alimento comestiacutevel iraacute variar de um grupo a outro ou seja

eacute definido pela cultura questotildees que vimos anteriormente neste capiacutetulo

Haacute outro fator muito importante a se destacar o qual se pode atribuir agrave

descoberta do fogo que eacute o fato de ter propiciado agraves pessoas e aos grupos

juntarem-se em torno dele para se aquecer mas tambeacutem para preparar a

comida distribui-la e ingeri-la Facilitou-se assim o estabelecimento de relaccedilotildees

de comensalidade23 que com o tempo foram se tornando encontros cotidianos e

transformando-se em uma atividade socializadora Conforme argumenta Fladrin

e Montanari (1998) independentemente da forma e das diferenccedilas nas normas

de comportamento existentes em cada sociedade o fato eacute que ldquoa comensalidade

eacute percebida como um elemento lsquofundadorrsquo da civilizaccedilatildeo humana em seu

processo de criaccedilatildeordquo (FLANDRIN MONTANARI 1998 p 109) e para Carneiro

(2003) a comensalidade se constitui em ldquoum complexo sistema simboacutelico de

23 Etimologicamente comensalidade deriva do latim ldquocomensalerdquo Accedilatildeo de comer junto na mesma mesa

Com ldquojuntordquo e Mensa ldquomesardquo Implica em partilhar do mesmo momento e local das refeiccedilotildees Para Poulain (2013) a comensalidade estabelece e reforccedila a sociabilidade ldquoEacute pela cozinha e pelas maneiras a mesa que se produzem as aprendizagens sociais mais fundamentais e que uma sociedade transmite e permite a interiorizaccedilatildeo de seus valores A alimentaccedilatildeo eacute uma das formas de se tecer e se manter os viacutenculos sociaisrdquo (POULAIN 2013 p 182)

62

significados sociais sexuais poliacuteticos religiosos eacuteticos esteacuteticos etc

(CARNEIRO 2003 p 2)

Ao redor do fogo eacute possiacutevel se aquecer preparar os alimentos e a

comida mas tambeacutem estabelecer o diaacutelogo Segundo Garciacutea (2013) nos

primoacuterdios da humanidade os encontros diaacuterios dos grupos se davam em torno

do fogo para trocar experiecircncias do dia e traccedilar estrateacutegias de caccedila por exemplo

Para Wrangham (2010) o advento do fogo mudou a maneira de nossos

ancestrais se relacionarem Passava-se mais tempo junto se aquecendo e

alimentando-se em grupo No volume I da primeira obra dirigida por Philippe

Ariegraves e Georges Duby (1990) Histoacuteria da Vida Privada a importacircncia do fogo eacute

destacada logo no iniacutecio do capiacutetulo de autoria de Yvon Theacutebert que trata da

vida privada e da arquitetura domeacutestica na Aacutefrica Romana Nas habitaccedilotildees natildeo

havia chamineacute nem fogotildees e sim lareiras ldquocuja fumaccedila saiacutea por um buraco no

teto e constituiacutea paradoxalmente um dos celebrados prazeres da rude existecircncia

rural quando a neve cobria os camposrdquo (THEacuteBERT 1990 p 303)

Segundo Flandrin e Montanari (1998) o uso do fogo permitiu ao homem

alimentar-se em conjunto inicialmente ao seu redor em aacutereas externas e com o

passar dos anos com a criaccedilatildeo do espaccedilo social alimentar nos ambientes

domeacutesticos (a cozinha e a sala de jantar) e na sequecircncia com a criaccedilatildeo de

espaccedilos externos agraves residecircncias (os restaurantes lanchonetes etc) Assim a

comida que eacute o alimento transformado pela cultura passa a possuir tambeacutem a

funccedilatildeo agregadora para os seres humanos A essa funccedilatildeo denomina-se de

comensalidade que tem como significado a capacidade de estabelecer relaccedilotildees

de sociabilidade importantes pois implica em reunir as pessoas em torno da

mesa Ou seja enquanto come o grupo tem tambeacutem a oportunidade de dialogar

e trocar experiecircncias do cotidiano

Para Fischler (2011) a comensalidade eacute uma das caracteriacutesticas mais

significantes no que se refere agrave sociabilidade humana relacionando-se natildeo

apenas agrave ingestatildeo de alimentos mas tambeacutem aos modos do comer envolvendo

haacutebitos culturais atos simboacutelicos organizaccedilatildeo social aleacutem do compartilhamento

de experiecircncias e valores Nesse sentido Woortmann (1985) esclarece que na

cultura brasileira a refeiccedilatildeo eacute considerada um ato social e que portanto deve

ser feita em grupo para ser percebida efetivamente como uma refeiccedilatildeo Tambeacutem

em nossa cultura segundo o autor criamos significados diferentes para essa

63

accedilatildeo como comer cotidianamente e comer em eventos especiais comer em

casa e comer fora de casa

O caraacuteter simboacutelico-ritual do comer se expressa claramente no haacutebito de convidar pessoas para jantar em nossa casa no ldquojantar forardquo em determinadas ocasiotildees ou no ldquoalmoccedilo de domingordquo Nessas e em outras ocasiotildees anaacutelogas haacute mais em jogo que necessidades nutricionais Natildeo convidamos pessoas para jantar em nossa casa para alimentaacute-las enquanto corpos bioloacutegicos mas para alimentar e reproduzir relaccedilotildees sociais isto eacute para reproduzir o corpo social o que supotildee que sejamos em troca convidados a comer na casa do nosso convidado O que estaacute em jogo eacute o princiacutepio da reciprocidade e da comensalidade A presenccedila da comida eacute contudo central reconstruindo-se necessidades bioloacutegicas em necessidades sociais (WOORTMANN 1985 p 3)

Em semelhante percepccedilatildeo Algranti (1997) aponta que haacute registros de

que desde o periacuteodo colonial no Brasil a reuniatildeo familiar durante as refeiccedilotildees

pelo menos uma vez ao dia se tornou um costume que se perpetuou nas famiacutelias

rurais bem como nas urbanas Tambeacutem Franco (2001) discorre sobre a

comensalidade no meio rural como sendo uma importante maneira de promover

a solidariedade e reforccedilar laccedilos entre os membros de um grupo de afinidade

Neste sentido ldquoo comerrdquo eacute um ato tanto social quanto poliacutetico e envolve

costumes diaacutelogos usos sabores odores e ateacute mesmo as etiquetas que

correspondem agraves maneiras de comer que satildeo aprendidas no proacuteprio processo

de comensalidade que se daacute nos grupos E segundo Giard (2012) momentos

de comensalidade demarcam relaccedilotildees sociais e afetivas entre os membros de

uma famiacutelia e tambeacutem influencia fortemente o desenvolvimento do gosto

alimentar24 A percepccedilatildeo da autora corrobora a discussatildeo de Bourdieu (2007)

sobre a formaccedilatildeo do gosto e da preferecircncia alimentar

3311 O local do fogo e da praacutetica da comensalidade na arquitetura domeacutestica

Na sociedade ocidental o local do fogo em uma habitaccedilatildeo eacute

principalmente a cozinha que primeiramente era anexa agrave casa e o equipamento

que o representa eacute o fogatildeo A cozinha segundo Flandrin (1990) surge em

24 Eacute preciso ressaltar que nem todas as culturas apreciam comer em conjunto Poreacutem natildeo se pode

considerar como regra os preceitos da comensalidade Como nos mostra Geertz (2008 p 190) sobre a cultura balinesa onde comer eacute considerado uma atividade que gera repulsa ldquo() mas ateacute comer eacute visto como uma atividade desagradaacutevel quase obscena que deve ser feita apressadamente e em particular devido agrave sua associaccedilatildeo com a animalidaderdquo

64

funccedilatildeo das transformaccedilotildees nos costumes sociais ao longo do tempo Assim o

prazer no comer e beber junto foi se modificando Isso ocorre

concomitantemente agraves mudanccedilas nas sociedades Ao longo dos anos e dos

seacuteculos a vida privada passou a ser preferida em lugar da vida puacuteblica

sobretudo nos aspectos de convivecircncia de desfrutar da intimidade e aconchego

familiar Avanccedilos tecnoloacutegicos e encontros com outras culturas favoreceram a

vida e a criaccedilatildeo de espaccedilos internos agrave casa destinados agrave comensalidade por

exemplo A cozinha que antes era compartilhada com vaacuterias pessoas ao redor

do paacutetio passa a ser parte interna de cada habitaccedilatildeo O espaccedilo privado estaacute

associado agrave intimidade e ao refuacutegio em contraste a um espaccedilo puacuteblico do qual o

cotidiano domeacutestico das famiacutelias vai se afastando aos poucos As refeiccedilotildees que

eram feitas ao ar livre ou em locais de faacutecil acesso passam a ser feitas em casas

de alvenaria que possuem portas da rua que ficam fechadas impedindo o

acesso a qualquer pessoa que chegar exceto sob o convite dos donos da casa

Mesmo que inicialmente a cozinha tenha se mantido distante dos outros

cocircmodos ocupava um lugar de destaque nas caracteriacutesticas habitacionais das

mais simples agraves mais requintadas desde o periacuteodo Colonial no Brasil conforme

aponta Lemos (1996) em seu estudo sobre as casas urbanas e rurais brasileiras

ldquoEm Portugal ateacute haacute pouco tempo e no Brasil Colonial sempre se chamou a

moradia de lsquofogorsquo ou lsquofogatildeorsquo Qualquer recenseamento dizia que determinada

cidade possuiacutea tantos habitantes em tantos lsquofogosrsquordquo (LEMOS 1996 p 11)

Segundo Lemos (1976) e Abrahatildeo (2007) as cozinhas do periacuteodo de

colonizaccedilatildeo no Brasil estavam sempre voltadas para o exterior da casa em seus

fundos ficando assim distantes dos cocircmodos de dormir mantendo-os livres do

cheiro de fumaccedila e de gordura Por natildeo haver aacutegua encanada na eacutepoca a

cozinha se localizava muitas vezes na aacuterea externa da habitaccedilatildeo Poreacutem

segundo Algranti (1997) jaacute a partir do seacuteculo XVIII estabeleceu-se dois tipos de

cozinhas a ldquocozinha sujardquo onde se preparavam carnes doces e frituras ou seja

destinava-se agraves atividades mais pesadas e portanto permanecia fora da casa e

a ldquocozinha limpardquo que se acopla agrave residecircncia e onde se prepara o cafeacute os bolos

as saladas etc

Segundo Abdala (2007) o espaccedilo da cozinha nas casas do periacuteodo

colonial em Minas Gerais e que perdurou pelo seacuteculo XIX era amplo bem

ventilado e o fogatildeo a lenha feito de barro ou de pedra sabatildeo ocupava local de

65

destaque Era ainda um espaccedilo iacutentimo natildeo sendo permitida a entrada de

estranhos25

A sala de jantar segundo Cacircmara Cascudo (2004) surgiu no final do

seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX Antes disso qualquer cocircmodo da habitaccedilatildeo servia a

esta finalidade mesmo nos imensos castelos onde o conforto era pequeno

apesar dos grandes espaccedilos Saint-Hilaire em seu registro da passagem por

Minas Gerais assim descreve a sala de jantar das casas que visitou

Nas casas dos pobres assim como nas dos ricos existe sempre uma peccedila denominada sala que daacute para o exterior Eacute ali que se recebem os estranhos e se fazem as refeiccedilotildees sentado em bancos de madeira em torno de uma mesa comprida A gente abastada tem o cuidado de reservar na frente de sua casa uma galeria ou varanda formada pelo teto que se prolonga aleacutem das paredes e eacute sustentado por colunas de madeira (SAINT-HILAIRE 1938 p 186)

Ambos os cocircmodos se constituiacuteram ao longo da histoacuteria nos espaccedilos

principais destinados agrave comensalidade E era tambeacutem um espaccedilo assim como

a cozinha em que as mulheres precisavam provar seus dotes como donas de

casa a sua capacidade de receber visitas atividades que faziam parte dos

saberes transmitidos das matildees para as filhas de forma que por mais simples

que fossem as salas de jantar refletiam a personalidade da dona da dona da

casa segundo Abrahatildeo (2010)

As modificaccedilotildees nos tamanhos e estrutura desses espaccedilos domeacutesticos

nos tempos atuais sinalizam que os arranjos destinados a esta atividade estatildeo

sendo redefinidos socialmente mas natildeo desapareceram No sul do Brasil ainda

eacute comum nos dias de hoje os fogotildees a lenha mesmo nas residecircncias urbanas

do interior Diferentemente da regiatildeo sudeste destacando-se Minas Gerais em

que o fogatildeo a lenha eacute em sua maioria feito de alvenaria nos estados do Sul

eles satildeo feitos industrialmente em ferro esmaltado Nos dias frios eacute em torno dele

que a famiacutelia e os amigos se reuacutenem para cozinhar e degustar o pinhatildeo por

exemplo acompanhado de vinho e muita conversa Em Minas o fogatildeo a lenha

estaacute presente em quase todas as habitaccedilotildees rurais e eacute um equipamento que

permanece no imaginaacuterio das pessoas ao pensar em interior e cozinha rural

25 Durante trabalho de pesquisa para mestrado realizado em 1998-1999 na zona rural de Minas Gerais

tive uma experiecircncia interessante em relaccedilatildeo a cozinha e a intimidade das famiacutelias pesquisadas No iniacutecio das vistas as conversas se davam sempre na sala ou na aacuterea externa da casa agrave medida que ia me tornando uma pessoa mais frequente em funccedilatildeo de novas visitas passei a ser recebida na cozinha Isso ocorreu em quase todas as habitaccedilotildees em que estive naquela fase

66

Martins (1998) em pesquisa realizada na regiatildeo amazocircnica expotildee os

detalhes de uma casa da sua cozinha e suas funccedilotildees de sociabilidade Sua

descriccedilatildeo deixa clara tambeacutem a relaccedilatildeo da cozinha como espaccedilo de pessoas da

intimidade do grupo

Nos povoados da fronteira onde haacute algum recurso a porta sempre aberta continua no corredor comprido que leva agrave cozinha Ela eacute o lugar de conversaccedilatildeo dos natildeo estranhos daqueles com quem os moradores da casa tecircm familiaridade e natildeo necessariamente parentesco Lugar dos que podem ir entrando bastando gritar o costumeiro ldquoOacute de casardquo Natildeo satildeo estranhos mas tambeacutem natildeo satildeo parentes Na entrada fica a saleta para receber os propriamente estranhos limite de seu acesso ao interior da casa (MARTINS 1998 p 695)

Nos falam sobre isso tambeacutem Luiacutes da Cacircmara Cascudo e Gilberto

Freyre em suas obras jaacute citadas anteriormente Freyre (2006) ao tratar sobre

as caracteriacutesticas das casas do periacuteodo dos engenhos de cana explica que

havia diferenccedilas entre as cozinhas existentes nas casas grandes de siacutetios

sobrados assobradadas de subuacuterbio com aquela da casa de engenho Nestas

uacuteltimas informa o autor a cozinha foi mais importante Essas diferenccedilas se

refletiam inclusive no tamanho da mesa destinada agraves refeiccedilotildees e que abrigavam

quem chegasse para almoccedilar

Viajantes e mascates aleacutem dos compadres que nunca faltavam dos papa-pirotildees os parentes pobres do administrador do feitor do capelatildeo dos vaqueiros das visitas de passar o dia famiacutelias inteiras que vinham de outros engenhos em carro de boi Eram mesas de jacarandaacute agraves vezes de seis oito metros de comprimento como as que ainda conhecemos na casa-grande ndash vasto sobrado rural do engenho Noruega26 (FREYRE 2006 p 143)

O autor esclarece que as mesas grandes ndash geralmente de cinco por dois

metros (5x2) ndash para receber famiacutelias enormes eram comuns nas casas grandes

de siacutetios e nos sobrados mas o que ocorria eacute que nas cidades e subuacuterbios o

modo de vida era mais retraiacutedo e sem muita movimentaccedilatildeo diferentemente do

que ocorria nas casas de engenho jaacute que aiacute ldquose recebia o viajante a qualquer

momento com bacia de prata toalha de linho um lugar agrave mesa uma rede ou

uma cama para dormirrdquo (FREYRE 2006 p 144)

Marcel Mauss (2003) em seu Ensaio sobre a Daacutediva cita a ldquoTaacutevola

Redondardquo das crocircnicas de Artur mesa cujo formato circular tinha o objetivo

26 Este engenho foi retrato na forma de gravura aquarelada 1933 por Ciacutecero Dias Esta aquarela compotildee

o livro Casa-Grande amp Senzala de Gilberto Freyre (1ordm Tomo 1964) como documento anexo ao livro e disposto em dobradura

67

simboacutelico de ajudar forma a seus cavaleiros a viver em harmonia pois viviam em

disputas e alimentando inveja entre si A ideia era que ao se sentarem ao seu

redor se reconhecessem como iguais jaacute que nela natildeo havia local de destaque

ou de superioridade

Poreacutem nem sempre o moacutevel ldquomesardquo era ou eacute utilizado Comer assentado

no chatildeo faz parte da cultura indiacutegena e tambeacutem oriental Os iacutendios sentam-se

diretamente no solo nu ou em esteiras e os orientais sobre tapetes nos informa

Cacircmara Cascudo (2004 p 794) Segundo o mesmo autor no Brasil colonial os

pobres tambeacutem comiam dessa maneira o que fez surgir o termo ldquocomida de

esteirardquo Os menos pobres comiam em mesa de madeira ldquoA histoacuteria da

alimentaccedilatildeo na esteira decorre precisamente da heranccedila cabocla do escravo

negro dos mesticcedilos humildesrdquo Mesmo entre os ricos no seacuteculo XIX a mesa

existia mas era improvisada feita em taacutebuas aplainadas na maioria das vezes

Apesar de ser um objeto frequente usado como apoio para os pratos os copos

bebidas e os vasilhames com as comidas durante as refeiccedilotildees nas discussotildees

antropoloacutegicas e socioloacutegicas importa principalmente o seu sentido figurado da

mesa relativo ao ldquocomer juntordquo independentemente de ser assentado ao chatildeo

no sofaacute ou em torno de uma mesa de madeira ou de ferro

Neste sentido importa-nos a conotaccedilatildeo entendimento da

comensalidade no processo socializador e agregador como aquele usado por

Poulain (2013) de que a comensalidade envolve comer acompanhando que eacute

tambeacutem semelhante ao sentido atribuiacutedo por Sobal e Nelson (2003) Fischler

(2011) acrescenta um atributo de espaccedilo a este sentido e diz que literalmente

significa ldquocomer na mesma mesardquo A mesa neste caso podendo ser ateacute mesmo

um ciacuterculo no meio de uma floresta ou o momento e local onde ocorrem as

refeiccedilotildees dos operaacuterios da construccedilatildeo civil com suas marmitas nas matildeos ou

ainda uma toalha posta para um pic nic ou em uma roda que se forma em um

evento social Toda a discussatildeo em torno da relaccedilatildeo mesa e comensalidade

aponta que natildeo ser obrigatoacuterio a existecircncia de um local fiacutesico e de um moacutevel

chamado de mesa para que a comensalidade e sociabilidade alimentar ocorra

basta que haja disponibilidade entre as pessoas e uma certa familiaridade na

convivecircncia Isso tanto vale para o meio rural quanto para o meio urbano No

meio rural ateacute mesmo o local de trabalho no meio de um roccedilado distante da

68

casa onde come-se de marmita eacute um local de relaccedilotildees de diaacutelogo e de comer

tendo uma companhia

Os momentos festivos satildeo outras possibilidades de tambeacutem haver

sociabilidade e de ocorrer a comensalidade Nestes momentos come-se natildeo

necessariamente por fome mas pelo prazer do conviacutevio ainda que temporaacuterio

conforme Fladrin e Montanari (1998)

O homem civilizado come natildeo somente (e menos) por fome para satisfazer uma necessidade elementar do corpo mas tambeacutem (e sobretudo) para transformar essa ocasiatildeo em um momento de sociabilidade em um ato carregado de forte conteuacutedo social e de grande poder de comunicaccedilatildeo (FLADRIN MONTANARI 1998 p 108)

Muitas vezes a sociabilidade inicia-se na proacutepria organizaccedilatildeo dos

festejos Nas aacutereas rurais eacute mais comum que as festas comunitaacuterias ou as da

esfera familiar sejam organizadas pelos moradores locais com ajuda da

vizinhanccedila o que propicia maior sociabilidade para aleacutem dos momentos de

comensalidade que ocorrem durante o evento Na cidade pela maior facilidade

de contratar por serviccedilos de organizaccedilatildeo de festas haacute um menor envolvimento

das pessoas que participaratildeo das festas no processo de sua organizaccedilatildeo

Poreacutem como a cultura eacute dinacircmica sofrendo o efeito dos modos de vida

modernos as relaccedilotildees de sociabilidade e tambeacutem de comensalidade ndash antes

mais tradicionais e com maior constacircncia de momentos em grupo ndash tecircm sido

alteradas conforme aponta alguns autores no toacutepico a seguir

34 Praacuteticas alimentares na contemporaneidade entre o tradicional e o moderno

Apesar de as mudanccedilas no consumo alimentar terem ocorrido de forma

tiacutemida antes do seacuteculo XIX eacute a partir da metade dele que autores como Fischler

(1998) Montanari (1998) Teuteberg e Flandrin (1998) Peacutehaut (1998) Capatti

(1998) Levenstein (1998) Cacircmara Cascudo (2004) Pollan (2014) Rossi (2014)

e Contreras e Gracia (2011) consideram como o iniacutecio de mudanccedilas mais

substanciais nas praacuteticas alimentares principalmente na Europa periacuteodo

marcado por profundas transformaccedilotildees nesse continente dentre elas a

expansatildeo da industrializaccedilatildeo que altera os modos de vida das famiacutelias o

aumento da populaccedilatildeo os avanccedilos na produccedilatildeo agriacutecola que gera em pouco

69

tempo o desenvolvimento da induacutestria alimentar Esses efeitos se ampliam

destacadamente nos seacuteculos XX e XXI Muitas dessas mudanccedilas ocorrem

paulatinamente com a introduccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos de outra cultura

como jaacute visto

Autores como Poulain (2013) Montanari (2008) Lody (2008) Pollan

(2014) Woortmann (2007 e 2013) De Garine (1987) Flandrin e Montanari

(1998) e Maciel (2001) discutem como alguns dos aspectos do modo de vida

moderno ndash tempo escasso para executar as vaacuterias atividades facilidade de

acesso agrave informaccedilatildeo estiacutemulo ao consumismo economia de tempo gerado pelo

uso de produtos alimentiacutecios industrializados dentre outros - influenciam as

praacuteticas alimentares e suas interfaces fazendo surgir diversas maneiras de se

alimentar na contemporaneidade

Maneiras essas que podem interferir nos haacutebitos alimentares nos

horaacuterios e locais das refeiccedilotildees no consumo de alimentos e nas praacuteticas

alimentares Por exemplo receitas de famiacutelia que antes estavam nos cadernos

e eram repassados por geraccedilotildees atualmente satildeo encontradas no verso das

embalagens de alimentos na internet em revistas e em programas de televisatildeo

Os horaacuterios de alimentaccedilatildeo nem sempre coincidem entre os membros da famiacutelia

tampouco o espaccedilo domeacutestico eacute mais o uacutenico a ser usado para tal finalidade A

vida contemporacircnea propotildee adaptaccedilotildees agraves novidades que satildeo apresentadas

constantemente Nesse contexto as mudanccedilas atingem tambeacutem as famiacutelias

rurais que encontram formas de se adaptar criando alternativas para lidar com

o novo

Em funccedilatildeo dessas questotildees alguns desses autores analisam

criticamente a tendecircncia atual de homogeneizaccedilatildeo das praacuteticas alimentares

sendo este talvez um caminho sem volta Essa homogeneizaccedilatildeo igualaria os

comedores contemporacircneos ocidentais que sob a influecircncia da globalizaccedilatildeo

passariam rapidamente a ter haacutebitos e gostos alimentares muito semelhantes

Estas consideraccedilotildees estatildeo presentes nas anaacutelises de Arnaiz (2005) que a partir

do estudo sobre a alimentaccedilatildeo dos espanhoacuteis e com base nas argumentaccedilotildees

de autores como Warde (1997) e Germov e Williams (1999) apresenta quatro

tendecircncias para o sistema alimentar moderno

O fenocircmeno da homogeneizaccedilatildeo do consumo em uma sociedade massificada a persistecircncia de um consumo diferencial e socialmente

70

desigual o incremento da oferta personalizada (poacutes-fordista nos termos dos autores) avaliada pela criaccedilatildeo de novos estilos de vida comuns e finalmente o incremento de uma individualizaccedilatildeo alimentar causada pela crescente ansiedade do comensal contemporacircneo ARNAIZ 2005 p 148)

Fischler (1979) se refere a essa tendecircncia alimentar nas sociedades

contemporacircneas como sendo lsquohiper-homogecircnearsquo Em funccedilatildeo disso citando o

estudo realizado por Mennell et al (1992) Fischler (2011) chama a atenccedilatildeo para

o fato de que as praacuteticas alimentares contemporacircneas colocam em risco a

comensalidade enquanto poder de sociabilidade de agregaccedilatildeo considerando

que o mundo moderno tem facilitado a individualizaccedilatildeo inclusive no que se

refere agrave alimentaccedilatildeo Exemplo disso eacute o nuacutemero crescente de pessoas que

mesmo no ambiente domeacutestico servem o seu prato e se assentam na frente da

televisatildeo ou do computador Situaccedilotildees que sinalizam que outras dinacircmicas tecircm

surgido no campo da comensalidade no mundo contemporacircneo Para esses

autores eacute fato o surgimento de um padratildeo alimentar Essa percepccedilatildeo parece

natildeo levar em consideraccedilatildeo a variaccedilatildeo de culturas realidades locais e modos

alimentares diferenciados entre os diversos povos mesmo no contexto

ocidental

Arnaiz (2005) Fischler (1979 e 2011) e Pollan (2014) afirmam que na

sociedade ocidental globalizada e industrializada o tempo aleacutem de escasso eacute

usado prioritariamente em prol da produtividade e do desenvolvimento

capitalista Nesse contexto o que sobra deste tempo eacute dividido entre as tantas

outras tarefas sociais como aquelas desenvolvidas no espaccedilo domeacutestico em

famiacutelia ou entre amigos Pollan (2014) aponta que o haacutebito de cozinhar em casa

vem diminuindo Arnaiz (2005) cita que outro motivo que contribui para isso estaacute

relacionado agraves facilidades geradas pelo processo agroalimentar ou seja vaacuterias

atividades de preparo de alimentos que antes ocupavam muito tempo da

cozinheira atualmente satildeo feitas pelas induacutestrias de alimentos

Poreacutem eacute arriscado afirmar uma tendecircncia agrave homogeneizaccedilatildeo alimentar

pois a cultura eacute dinacircmica e os indiviacuteduos tendem a buscar formas de adaptaccedilatildeo

aos modelos propostos e nessa adaptaccedilatildeo podem buscar praacuteticas alimentares

que mesclem novidade e tradiccedilatildeo Haacute que se levar em consideraccedilatildeo a

diversidade cultural dos grupos mesmo no contexto ocidental Se por um lado

busca-se acompanhar os avanccedilos haacute tambeacutem interesse em preservar

71

caracteriacutesticas culturais consideradas importantes dentre elas aquelas

relacionadas a algumas praacuteticas alimentares Portanto por mais que o peso da

homogeneizaccedilatildeo exista haacute tambeacutem o peso dos elementos da tradiccedilatildeo que

exerce importante influecircncia nas decisotildees e nas escolhas pessoais

Percebe-se na discussatildeo dos autores abordados neste toacutepico a

ocorrecircncia de trecircs vertentes ou movimentos Um primeiro apontado por Anaiz

(2005) Fischler (1979) e Pollan (2014) de que a sociedade tende a adotar um

padratildeo alimentar homogecircneo baseado no consumo prioritaacuterio de alimentos

industrializados de acordo com um estilo de vida moderno e atrelado agraves

novidades Um segundo movimento defendido por De Garine (1987) de que haacute

uma divisatildeo perceptiacutevel na sociedade ocidental formada por um lado por

consumidores prioritariamente tradicionais no seu estilo de exercer as praacuteticas

alimentares e de outro lado por consumidores com tendecircncias agraves praacuteticas

modernas Por fim um terceiro movimento encontrado em Doacuteria (2014) Giard

(2012) Garciacutea Canclini (2013) entre outros que defendem a coexistecircncia da

tradiccedilatildeo com a modernidade no que se refere tambeacutem agraves praacuteticas alimentares

conforme discussatildeo que seraacute apresentada mais agrave frente

Pollan (2014) apesar de acreditar que o ritmo de vida moderno estimule

modos de se alimentar mais homogecircneos com o comedor recorrendo

prioritariamente aos aspectos de praticidade por outro lado pondera algumas

questotildees que satildeo relativas Defende por exemplo que a despeito das mudanccedilas

em curso na sociedade ocidental contemporacircnea a magia e o prazer que

envolvem a atividade culinaacuteria ainda permanecem Mesmo que para um grande

nuacutemero de pessoas isso possa corresponder a uma atividade esporaacutedica em

eventos especiais ou nos finais de semana Por outro lado ainda que a

constacircncia do conviacutevio cotidiano nos momentos das refeiccedilotildees se reduza isso

natildeo implica na perda da qualidade desses momentos Mas o autor concorda

com Fischler (2011) que a diminuiccedilatildeo desta atividade implica em consequecircncias

como transformaccedilotildees no campo da comensalidade com seus significados e

simbolismos Com isso o estilo de vida acelerado e o tempo escasso para

realizar todas as demandas sociais afastam as pessoas do encontro familiar

cotidiano no compartilhamento da comida da manutenccedilatildeo de um horaacuterio fixo

para as refeiccedilotildees e tambeacutem da produccedilatildeo do proacuteprio alimento

72

Em relaccedilatildeo agrave essas questotildees Flandrin e Montanari (1998) consideram a

crenccedila absoluta na homogeneidade dos comportamentos alimentares

exagerada Apesar das mudanccedilas em curso os autores afirmam natildeo ser

evidente pelo menos ainda o desaparecimento das composiccedilotildees e elementos

tradicionais no campo da alimentaccedilatildeo Sinalizam que sobretudo na Europa a

funccedilatildeo social da comida ainda eacute importante Apontam as reuniotildees entre amigos

que ocorrem nos diferentes paiacuteses do planeta ou a reuniatildeo familiar em alguns

dias na semana e que natildeo ordinariamente no cotidiano ainda assim satildeo

momentos de sociabilidade e comensalidade e defendem a necessidade de

relativizaccedilatildeo sobre o assunto

A ldquonormalizaccedilatildeordquo dos comportamentos alimentares ainda natildeo se tornou irreversiacutevel se os modelos de consumo tendem a se assemelhar cada vez mais sua homogeneidade permanece bastante relativa e mais aparente do que real jaacute que os elementos que tem em comum satildeo de fato interpretados segundo a cultura de cada povo e paiacutes inserindo-se em estruturas ainda fortemente marcadas pelas particularidades locais que por sua vez foram-se formando na sequecircncia de um processo histoacuterico longo e articulado (FLADRIN MONTANARI (1998 p 867)

As possibilidades de as praacuteticas alimentares contemporacircneas serem

responsaacuteveis por manter ou de extinguir as tradiccedilotildees alimentares satildeo discutidas

por alguns autores como Berman (2000) Giddens (1991) Bauman (2007)

Garciacutea Canclini (2013) e Giard (2012) O mundo contemporacircneo estaacute

relacionado ao modo de vida moderno e em constante transformaccedilatildeo tendendo

ao dinamismo mesmo que aspectos do tradicional permaneccedilam ainda que com

pesos diferentes de acordo com cada cultura No mundo moderno nada

permanece fixamente e eacute neste contexto que os contrastes entre o moderno e o

tradicional ficam mais aflorados conforme defende Berman (2000)

Ser moderno eacute encontrar-se em um ambiente que promete aventura poder alegria crescimento autotransformaccedilatildeo e transformaccedilatildeo das coisas em redor ndash mas ao mesmo tempo ameaccedila destruir tudo o que temos tudo o que sabemos tudo o que somos (BERMAN 2000 p 15)

Nesse contexto de transformaccedilotildees e dinamismo da substituiccedilatildeo do

antigo pelo novo e da valorizaccedilatildeo do moderno aspectos expostos pelo autor

um dos fatores mais marcantes no campo das praacuteticas alimentares

contemporacircneas eacute a industrializaccedilatildeo dos alimentos e suas consequecircncias para

os comedores com suas benesses e problemas Este sistema apresenta um

73

novo jeito de vivenciar as praacuteticas alimentares no mundo contemporacircneo

sugerindo a ideia de praticidade e economia de tempo A induacutestria de alimentos

pode ser considerada um dos mais importantes promotores de mudanccedilas nos

haacutebitos alimentares das sociedades industriais Mudanccedilas essas que trazem

consequecircncias importantes como as que satildeo discutidas a seguir por Arnaiz

(2015) Pollan (2014) Silva Mello (1956) Cacircmara Cascudo (2004) e De Garine

(1987)

Para Arnaiz (2005) em relaccedilatildeo ao acesso aos alimentos a induacutestria

possui aspectos que podem ser considerados positivos e negativos Dentre os

positivos ela destaca o custo relativamente baixo de obtenccedilatildeo dos bens

alimentares pelos consumidores dos paiacuteses ocidentais industrializados e

tambeacutem a algumas parcelas populacionais dos paiacuteses em processo de

industrializaccedilatildeo Outro fator segundo a autora eacute que a tecnologia de produccedilatildeo

e organizaccedilatildeo da induacutestria de alimentos beneficiou os consumidores que

passaram a contar com maior diversidade de alimentos

A diversificaccedilatildeo alimentar eacute supostamente mais saudaacutevel em termos nutricionais uma vez que permite obter a adequaccedilatildeo de certos nutrientes e evita por exemplo doenccedilas como a pelagra que durante o seacuteculo XIX disseminou-se nas populaccedilotildees mais pobres que tinham o milho como base de sua alimentaccedilatildeo ou ainda doenccedilas como o cretinismo e o boacutecio ateacute recentemente (ARNAIZ 2005 p 148-149)

Para a autora algumas situaccedilotildees negativas se contrastam com as

positivas Cita por exemplo que apesar do acesso aos produtos em termos de

disponibilidade e a um preccedilo relativamente baixo a manutenccedilatildeo da

desigualdade social limita o acesso a muitos desses alimentos Outros fatores

destacados pela autora incluem ainda ldquoa diferenciaccedilatildeo conforme a bagagem

sociocultural que condiciona certos estilos alimentares de grupos de indiviacuteduos

e a persistecircncia das heterogeneidades intra e interterritorial e socialmente

verticalrdquo (ARNAIZ 2005 p 149)

Outro aspecto positivo mas natildeo citado pela autora diz respeito agraves

praticidades e facilidades geradas pela industrializaccedilatildeo dos alimentos Este tipo

de alimento jaacute preacute-processado contribuiu para reduzir o peso do trabalho

domeacutestico que historicamente e tradicionalmente era atribuiacutedo exclusivamente

agraves mulheres Poreacutem o lado positivo da comida industrializada como facilitadora

do dia-a-dia natildeo neutraliza outros fatores negativos tanto do aspecto

74

sociocultural como no aspecto da sauacutede humana conforme apontado por Pollan

(2014) Silva Mello (1956) e Cacircmara Cascudo (2004)

Pollan (2014) destaca o peso da comida industrializada para a sauacutede e

bem-estar humanos ao argumentar que as grandes empresas alimentiacutecias

processam alimentos o que para o autor eacute diferente de produzi-los Ele alerta

para o excesso de sal accediluacutecar e gordura nos produtos processados

industrialmente aleacutem dos produtos quiacutemicos que permitem maior durabilidade

aos alimentos nas prateleiras dos supermercados

Em um sentido semelhante Silva Mello (1956) defende a manutenccedilatildeo

de aspectos importantes da tradiccedilatildeo alimentar tanto para a sauacutede como para a

cultura ao criticar o excesso de modificaccedilotildees provocadas pela induacutestria

alimentar como por exemplo a transformaccedilatildeo do accediluacutecar natural escuro e grosso

em branco refinado e as vitaminas em caacutepsulas como discorre em seu livro

lsquoAlimentaccedilatildeo Instinto Culturarsquo ldquoNatildeo eacute com vitaminas que se mata a fome A

culinaacuteria jaacute que a alimentaccedilatildeo eacute a condiccedilatildeo vital do homem se impotildee como

obrigaccedilatildeo cultural () A chamada poliacutetica cultural comeccedila pela comidardquo (SILVA

MELLO 1956 p 622)

Focando o prejuiacutezo agrave sauacutede dos jovens no Brasil Cacircmara Cascudo

(2004) faz ressalvas agrave praacutetica alimentar moderna que eacute adotada por esse grupo

Para o autor os jovens tecircm maior atraccedilatildeo pelas refeiccedilotildees raacutepidas e substituiccedilatildeo

por lanches Possuem escassez de tempo para participar dos momentos sociais

familiares destinados agrave alimentaccedilatildeo pois sempre tecircm atividades e

compromissos caracteriacutesticos dessa fase da vida Na era dos lanches raacutepidos

eles acabam ldquoperdendo a personalidade do paladar sua fisionomia exigecircncias

predileccedilotildees simpatias Habituam-se agrave comida vulgar e venal raacutepida atendendo

aos reclamos imediatos do estocircmagordquo (p 350) Afirma ainda

Natildeo eacute o alimento em si na potecircncia intriacutenseca de sua substacircncia a fonte isolada da forccedila vital Satildeo os elementos psicoloacutegicos decorrentes da refeiccedilatildeo Cada vez menos refeiccedilatildeo e cada vez mais comidas faacuteceis encontraacuteveis vendidas nos botequins elegantes ou nas cantinas universitaacuterias (CAcircMARA CASCUDO 2004 p 348)

Muitas informaccedilotildees tecircm sido veiculadas nos uacuteltimos anos sobre a

relaccedilatildeo sauacutede-alimentaccedilatildeo referindo-se sobretudo aos alimentos

industrializados No Brasil o ldquoGuia Alimentar para a Populaccedilatildeo Brasileirardquo

publicado em 2006 com uma caracteriacutestica prioritariamente quantitativa foi

75

atualizado em 2014 trazendo um perfil mais qualitativo do que o primeiro e

discute sobre os perigos agrave sauacutede de uma alimentaccedilatildeo baseada em uma dieta de

produtos muito processados ou seja industrializados ao mesmo tempo em que

oferece sugestotildees mais saudaacuteveis para melhorar a qualidade de vida alimentar

da populaccedilatildeo evitando-se frituras e alimentos com grande quantidade de

aditivos quiacutemicos O Guia Alimentar sugere aos comedores uma priorizaccedilatildeo

pelos alimentos in natura e uma maior aproximaccedilatildeo com uma cultura alimentar

mais voltada agraves praacuteticas tradicionais

De Garine (1987) natildeo acredita que o consumo de alimentos

industrializados eacute adotado de maneira generalizada pelas pessoas seja de

forma individualizada seja por grupo familiares Para o autor se por um lado eacute

verdadeiro que a globalizaccedilatildeo tem propiciado uma homogeneizaccedilatildeo dos haacutebitos

alimentares por outro observa-se tambeacutem a permanecircncia da tradiccedilatildeo alimentar

com seus modelos locais de alimentaccedilatildeo A manutenccedilatildeo da tradiccedilatildeo alimentar

estaacute ligada agrave identificaccedilatildeo com as raiacutezes culturais que satildeo passadas por

geraccedilotildees e se esforccedilam por manter alguns rituais e simbologias dessa tradiccedilatildeo

alimentar e portanto natildeo cedendo prontamente ou totalmente aos apelos da

induacutestria pela adoccedilatildeo completa dos alimentos processados Assim para esse

autor natildeo eacute correto generalizar o poder da industrializaccedilatildeo de alimentos pois a

cultura local e a tradiccedilatildeo oferecem um peso que pode tambeacutem influenciar nas

escolhas alimentiacutecias Neste sentido o autor defende inclusive que os paiacuteses

em desenvolvimento se livrem de boa parte do peso das importaccedilotildees valorizando

os alimentos autoacutectones Na percepccedilatildeo deste autor existem dois tipos de

comedores Aqueles que tentam manter uma relaccedilatildeo tradicional e aqueles que

buscam pelo moderno

Possivelmente Gilberto Freyre concordaria com essa conclusatildeo de De

Garine pois era defensor da tradiccedilatildeo culinaacuteria como forma importante de

manutenccedilatildeo e continuidade de uma identidade regional e nacional Em texto

escrito em 1924 e publicado em ldquoTempo de Aprendizrdquo (1979) defende que ldquoo

paladar eacute talvez o uacuteltimo reduto do espiacuterito nacional quando ele se

desnacionaliza estaacute desnacionalizado tudo o maisrdquo (p 367) O autor tratou

sobretudo da cozinha e da comida nordestina de Pernambuco Em seu

ldquoManifesto Regionalistardquo (1996) ndash lido para a plenaacuteria durante o 1ordm Congresso

Brasileiro de Regionalismo ocorrido em Recife em 1926 ndash o maior destaque

76

sobre a importacircncia de se manter a tradiccedilatildeo foi dado agrave parte culinaacuteria Nele

Freyre propotildee uma retomada agrave valorizaccedilatildeo da cozinha regional seus modos de

fazer e de suas praacuteticas Apoacutes discorrer longamente e detalhadamente sobre

as caracteriacutesticas da culinaacuteria pernambucana ele conclui

Feitos estes reparos estou inteiramente dentro de um dos assuntos que me pareceu dever ser versado por algueacutem neste congresso os valores culinaacuterios do Nordeste A significaccedilatildeo social e cultural desses valores A importacircncia deles quer dos quitutes finos quer dos populares A necessidade de serem todos defendidos pela gente do Nordeste contra a crescente descaracterizaccedilatildeo da cozinha regional (FREYRE 1996 p 59)

No entanto esta natildeo eacute a percepccedilatildeo para outros autores que defendem

a existecircncia de um terceiro movimento mais coerente e menos radical que

privilegia a comunicaccedilatildeo entre tradiccedilatildeo e modernidade alimentar Afirmam isso

baseando-se nas raacutepidas transformaccedilotildees que ocorrem no campo da

alimentaccedilatildeo Observam que os espaccedilos para os contornos tradicionais da

produccedilatildeo da comida e dos modos de comer vatildeo sendo diluiacutedos poreacutem natildeo se

extinguem embora ao analisar a tradiccedilatildeo na oacutetica de um mundo em constante

mudanccedila surge sempre a duacutevida sobre a sua capacidade de permanecer

Assim Doacuteria (2014) Giddens (2012) Garciacutea Canclini (2013) Cacircndido (1982)

Cacircmara Cascudo (2004) e Giard (2012) defendem que a modernidade

pressupotildee e impotildee mudanccedilas de formato mas natildeo necessariamente isso

significa o rompimento absoluto com os moldes tradicionais Para estes o

caminho mais interessante eacute o de uma complementaridade pela convivecircncia dos

ldquofatores de persistecircncia ou permanecircncia que contribuem para a continuidade

dos modos tradicionais de vida (praacuteticas e saberes alimentares) com os de

transformaccedilatildeo que representam a incorporaccedilatildeo aos padrotildees modernosrdquo

(CAcircNDIDO 1982 p 200)

Doacuteria (2014) estimula um novo caminho para a culinaacuteria a junccedilatildeo da

tradiccedilatildeo com a inovaccedilatildeo pois a inovaccedilatildeo natildeo existe sem a tradiccedilatildeo natildeo se

chega a uma culinaacuteria dita como ldquonovardquo sem conhecer profundamente os

segredos da tradiccedilatildeo Assim pressupotildee-se a necessidade de um terceiro

caminho uma mescla culinaacuteria possiacutevel na qual o tradicional incorpore

elementos modernos e vice-versa

Sobre o potencial de as tradiccedilotildees alimentares resistirem ocupando

outros espaccedilos ou seja unindo-se ao moderno Poulain (2013 p 35) acena

77

esperanccedilosamente que ldquoa histoacuteria da alimentaccedilatildeo mostrou que cada vez que

identidades satildeo postas em perigo a cozinha e as maneiras agrave mesa satildeo os

lugares privilegiados de resistecircnciardquo

Em sentido semelhante ao exposto acima por Jean Pierre Poulain

Cacircmara Cascudo (2004) defende o peso da tradiccedilatildeo ldquoEspero mostrar a

antiguidade de certas predileccedilotildees alimentares que os seacuteculos fizeram haacutebitos

explicaacuteveis como uma norma de uso e um respeito de heranccedila dos mantimentos

da tradiccedilatildeordquo (p 14) No entanto diferentemente de Gilberto Freyre que defendia

uma tradiccedilatildeo culinaacuteria irretocaacutevel Luiacutes da Cacircmara Cascudo apesar de defensor

das tradiccedilotildees alimentares parecia compreender de forma menos resistente do

que Freyre que a inserccedilatildeo de atributos modernos no campo alimentar se

ampliaria para o bem e sobretudo para o mal segundo as observaccedilotildees

negativas do autor a respeito Mas ele entendia a necessidade de que isso

passasse a ser administrado ao inveacutes de puramente combatido

No povo haacute dois elementos autocircmatos e harmocircnicos coexistentes no assunto alimentar O primeiro estaacutetico basilar tiacutepico indeformaacutevel O segundo renovaacutevel dinacircmico plaacutestico Dos primeiros alguns podem desaparecer ou constituir uso minoritaacuterio Dos segundos outros descem agrave estratificaccedilatildeo tornando-se tradicionais superpondo-se imediatamente agrave camada profunda dos velhos usos participando do antigo patrimocircnio preferencial Essa mecacircnica regulariza a permanecircncia do cardaacutepio familiar Todos os grupos humanos tecircm uma fisionomia alimentar (CAcircMARA CASCUDO 2004 p 373)

Para Garciacutea Canclini (2013) a busca por aspectos tradicionais na

contemporaneidade sinaliza uma necessidade de distanciamento dos indiviacuteduos

com o excesso de modernidade e a inseguranccedila vivida no mundo

contemporacircneo No que se refere a alimentaccedilatildeo as inseguranccedilas ou

desconfianccedilas natildeo satildeo poucas Isso talvez explique a busca que tem ocorrido

pela comida de nossos antepassados

Natildeo obstante o tradicionalismo aparece muitas vezes como recurso para suportar as contradiccedilotildees contemporacircneas Nessa eacutepoca em que duvidamos dos benefiacutecios da modernidade multiplicam-se as tentaccedilotildees de retornar a algum passado que imaginamos mais toleraacutevel Frente agrave impotecircncia para enfrentar as desordens sociais o empobrecimento econocircmico e os desafios tecnoloacutegicos frente agrave dificuldade para entendecirc-los a evocaccedilatildeo de tempos remotos se reinstala na vida contemporacircnea arcaiacutesmos que a modernidade havia substituiacutedo (GARCIacuteA CANCLINI 2013 p 166)

78

Outro exemplo para que a tradiccedilatildeo mantenha sua importacircncia social e

de formaccedilatildeo da sociedade brasileira pode ser demonstrado atraveacutes das Leis de

Incentivo agrave cultura e ao patrimocircnio cultural valorizando tanto a culinaacuteria tiacutepica

quanto o turismo rural com foco na tradiccedilatildeo local No campo alimentar a forma

artesanal de fazer o queijo mineiro e o oficio das baianas do acarajeacute satildeo

exemplos de alimentos que estatildeo entre os patrimocircnios imateriais do paiacutes

catalogados pelo IPHAN (Instituto do Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional)

Outros saberes envolvendo a comida e a cultura encontram-se na lista de

espera Eacute o caso da produccedilatildeo de doces tradicionais pelotenses do modo de

fazer tradicional da cajuiacutena do Piauiacute e o saber fazer do queijo artesanal serrano

de Santa Catarina e Rio Grande do Sul Em niacutevel mundial muitas cozinhas

internacionais jaacute satildeo consideradas Patrimocircnio Imaterial da Humanidade pela

Unesco como eacute o caso das cozinhas Mexicana Francesa e Mediterracircnea

(Greacutecia Itaacutelia Espanha e Marrocos)

Pelo objetivo deste trabalho eacute fundamental dar continuidade agrave discussatildeo

no presente item analisando os reflexos dos haacutebitos alimentares

contemporacircneos sobre as dinacircmicas especificamente rurais buscando

compreender como o rural na atualidade se comporta diante das praacuteticas

alimentares tradicionais e modernas

35 Modernidade e tradiccedilatildeo no contexto alimentar rural contemporacircneo

Ao longo de sua histoacuteria pode-se dizer que o Brasil eacute um paiacutes de muitos

rurais por sua dimensatildeo geograacutefica por suas regiotildees de clima diferenciados e

formaccedilatildeo cultural diversa como exposto por Del Priore e Venacircncio (2006) o

Brasil eacute formado por

Grupos sociais em suas interconexotildees territoriais grupos que satildeo filhos de uma histoacuteria ou seja de um conjunto de costumes comuns ligados agrave religiatildeo ritos mitos praacuteticas econocircmicas crenccedilas teacutecnicas e usos do corpo relacionados com as culturas agriacutecolas ou com a criaccedilatildeo de animais (DEL PRIORE VENAcircNCIO 2006 p 14)

Esses muitos rurais implicam tambeacutem em haacutebitos e praacuteticas alimentares

peculiares Alimentos e praacuteticas que satildeo valorizados em uma determinada

cultura rural pode ser desinteressante para outra Outras tantas caracteriacutesticas

poreacutem podem se assemelhar No entanto eacute cada vez mais tecircnue a linha que

79

separa o rural do urbano e o dinamismo parece ser constante atualmente na

maior parte desses rurais Isso tem gerado a necessidade de reorganizaccedilatildeo do

trabalho e da vida cotidiana das famiacutelias como demonstram as anaacutelises

desenvolvidas por Graziano da Silva (1997) Wanderley (2000 e 2010) e Carneiro

(2005)

Definir o que eacute cultura rural hoje eacute um desafio Segundo Camarano e

Abramovay (1998 p 46) natildeo existe um criteacuterio universal que seja vaacutelido para

definir as fronteiras entre o rural e o urbano e que essa definiccedilatildeo varia de paiacutes a

paiacutes Assim ldquono Brasil eacute considerado como situaccedilatildeo rural os domiciacutelios e a

populaccedilatildeo recenseada que abrange toda a aacuterea fora do considerado urbano

inclusive os aglomerados rurais de extensatildeo urbana os povoados e os nuacutecleosrdquo

Mas esse criteacuterio natildeo explica por si soacute a cultura rural contemporacircnea incluindo

as suas praacuteticas alimentares

Carneiro (2005 p 8) considera outros aspectos para aleacutem da definiccedilatildeo

de limites geograacuteficos entre as duas categorias Segundo a autora durante muito

tempo a oposiccedilatildeo entre o rural e o urbano prevaleceu para a sociologia rural

como abordagem teoacuterico-conceitual em que o rural era determinado pela

ldquocentralidade na atividade agriacutecola isolamento geograacutefico e cultural fraca

mobilidade etcrdquo e tambeacutem o espaccedilo de manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo da tradiccedilatildeo e

dos costumes Mais correto seria dizer por concordarmos com a percepccedilatildeo da

autora de que nos tempos atuais natildeo cabe mais classificar categorias como

rural ou urbano partindo apenas de justificativas de limites geograacuteficos que uma

determinada populaccedilatildeo ocupa mas sim pelas relaccedilotildees sociais que se datildeo no

interior desses espaccedilos Reportando ao trabalho de Marc Mormont Carneiro

(2005) apresenta a distinccedilatildeo entre o rural como categoria analiacutetica e como

categoria operacional destacando que a dificuldade em pensar o rural estaacute no

uso do termo que eacute feito tanto por pesquisadores e na academia quanto por

agecircncias que elaboram estatiacutesticas e ainda utilizada no senso comum

Nos termos de Mormont as propriedades do rural satildeo possibilidades simboacutelicas mas tambeacutem possibilidades praacuteticas Elas orientam as praacuteticas sociais sobre um determinado espaccedilo de acordo com os significados simboacutelicos que lhes satildeo atribuiacutedos sendo portanto inuacutetil procurar em uma realidade fiacutesica econocircmica ou ecoloacutegica os fundamentos de uma ruralidade Tambeacutem seria inuacutetil procurar nesta realidade apenas um imaginaacuterio que faria do rural uma pura construccedilatildeo mental (CARNEIRO 2005 p 9)

80

Nos interessa compreender nessa discussatildeo teoacuterica o que prevalece no

rural contemporacircneo brasileiro uma continuidade atrelada aos modos

tradicionais dos modos de vida e a reproduccedilatildeo social destacando aquelas

questotildees relacionadas agraves praacuteticas alimentares Ou por outro lado se a

aproximaccedilatildeo com o urbano tem transformado o rural a ponto de se estar

perdendo algumas peculiaridades e tradiccedilotildees que historicamente foram

construiacutedas Para instrumentalizar essa anaacutelise torna-se necessaacuteria uma

reflexatildeo sobre a dinacircmica no mundo rural

351 A dinacircmica do rural entre a tradicional e o moderno

Segundo Carneiro (1998 e 2005) compreender o dinamismo que ocorre

no campo eacute importante no sentido de natildeo congelar o conceito de rural como uma

categoria imutaacutevel onde seus habitantes sejam incapazes ldquode absorver e de

acompanhar a dinacircmica da sociedade em que se insere e de se adaptar agraves novas

estruturas sem contudo abrir matildeo de valores visatildeo de mundo e formas de

organizaccedilatildeo social definidas em contextos soacutecio-histoacutericos especiacuteficosrdquo

(CARNEIRO 1998 p 1) A autora tambeacutem argumenta sobre a possibilidade e a

ocorrecircncia de uma nova ruralidade aquela que eacute capaz de fazer conviver com

os reflexos do moderno sobre o tradicional sem que isso signifique um

rompimento com a tradiccedilatildeo descaracterizando o rural Tampouco cabe falar em

uma volta ao passado mas sim do surgimento de uma ruralidade que resgate

determinadas praacuteticas do passado cujo conhecimento pertence aos mais

velhos

Desvendar os distintos significados socialmente atribuiacutedos a espaccedilos e manifestaccedilotildees culturais tidos como rurais sinaliza uma perspectiva de que o mundo rural natildeo estaria sucumbindo agraves pressotildees do universo urbano nem representaria uma ruptura com o urbano Esse processo entendido superficialmente por alguns como de ldquourbanizaccedilatildeordquo do campo produziria novas sociabilidades e novas identidades sociais que dificilmente caberiam em uma uacutenica classificaccedilatildeo mas que continuam a ser representadas socialmente como rurais (CARNEIRO 2005 p 9)

O que os estudos dos autores citados aqui tecircm apontado eacute que as

oposiccedilotildees entre rural e urbano natildeo devem mais ser usadas para pensar a

ruralidade atual brasileira Para Brandemburg (2010) o mundo rural se insere no

processo de modernizaccedilatildeo e ateacute busca por ele mas sem deixar de lado

81

totalmente o modo tradicional de vida Essa coexistecircncia significa a necessidade

de seguir resolvendo os conflitos que surgem a partir dessa dinacircmica O autor

defende que existam rurais em tempos diferentes no Brasil mas que ldquopersistem

ora na sua forma tiacutepica ora sobrepostos ora expressos na forma de um rural

novo reconstruiacutedo ou reflexivordquo (BRANDEMBURG 2010 p 423) O autor cita

Wanderley (1996) quando discorre que este rural reconstruiacutedo eacute aquele em que

o moderno natildeo substitui ou extingue o tradicional mas lhe permite passar por

ressignificaccedilotildees e que se reorganiza socialmente em um grupo ou comunidade

local

Algumas mudanccedilas que vem ocorrendo no meio rural podem alterar os

modos de vida e interferir nas escolhas alimentares das famiacutelias rurais A

facilidade de acesso ao comeacutercio da cidade mais proacutexima ou agrave existecircncia do

comeacutercio na proacutepria comunidade pode gerar interesse em consumir alguns

alimentos que natildeo faziam parte da dieta em tempos passados como os produtos

processados Alguns siacutembolos do estilo de vida moderno chegam mais

facilmente agraves famiacutelias rurais como o uso dos eletrodomeacutesticos que equipam a

cozinha facilitando o trabalho e a reproduccedilatildeo das praacuteticas alimentares como

por exemplo o fogatildeo a gaacutes e a geladeira

Referimos muito no presente trabalho agrave dicotomia ldquopraacuteticas alimentares

contemporacircneasrdquo e como contraponto a existecircncia de uma praacutetica voltada ao

tradicional Assim o tradicional e o novo (ou moderno) surgem como aspectos

importantes agraves vezes conflitantes agraves vezes em interaccedilatildeo Refletir sobre o

mundo moderno pensar sobre modernidade eacute pensar tambeacutem em passado em

tradiccedilatildeo Poreacutem natildeo se pode afirmar que o moderno implica na morte da

tradiccedilatildeo isso foi apontado por Doacuteria (2014) Montanari (2008) e Giard (2012)

Ao analisar-se um tema em que se evidenciem traccedilos de oposiccedilatildeo e ou

de relaccedilatildeo entre o tradicional e o moderno percebe-se que haacute uma tendecircncia

no senso comum em acreditar que a modernidade eacute capaz de extinguir a

tradiccedilatildeo Poreacutem estudiosos do assunto como Giddens (2012) Bartolomeacute (2006)

e Garciacutea Canclini (2013) tecircm mostrado que o caminho mais interessante e que

estaacute em evoluccedilatildeo eacute uma ligaccedilatildeo entre os dois polos da questatildeo

Para Giddens (1991) o tradicional eacute quase sempre atrelado ao passado

idealizado mas que por sua vez se torna dinacircmico com o processo de

82

modernizaccedilatildeo e de novas interpretaccedilotildees dadas pelas geraccedilotildees que recebem os

conhecimentos e experiecircncias vividas por seus antepassados

Nas culturas tradicionais o passado eacute honrado e os siacutembolos valorizados porque contecircm e perpetuam a experiecircncia de geraccedilotildees A tradiccedilatildeo eacute um modo de integrar a monitoraccedilatildeo da accedilatildeo com a organizaccedilatildeo tempo-espacial da comunidade A tradiccedilatildeo natildeo eacute inteiramente estaacutetica porque ela tem que ser reinventada a cada nova geraccedilatildeo conforme esta assume sua heranccedila cultural dos precedentes (GIDDENS 1991 p 31)

Em semelhante linha de pensamento Bartolomeacute (2006) entende a

tradiccedilatildeo como um importante veiacuteculo para se recriar identidades Em seu

continuo processo de construccedilatildeo e reconstruccedilatildeo as identidades mesclam

aspectos do passado com os elementos do presente no mundo contemporacircneo

aleacutem de enfrentar as mudanccedilas necessaacuterias para construir novas relaccedilotildees entre

o tradicional e o moderno ldquoEm um de seus niacuteveis implica uma busca no passado

para instituir uma nova relaccedilatildeo com a realidade contemporacircneardquo (BARTLOMEacute

2006 p 58)

Giddens (2012) e Simsom (2003) nos falam sobre o papel da tradiccedilatildeo e

da transmissatildeo dos saberes de uma geraccedilatildeo a outra feita com a presenccedila dos

ldquoguardiatildeesrdquo Para Giddens (2012) tradiccedilatildeo e memoacuteria andam juntas A tradiccedilatildeo

possui ldquoguardiatildeesrdquo e combina o conteuacutedo moral com o emocional O autor

entende a memoacuteria como um processo ativo e natildeo apenas como lembranccedila

Processo ativo porque as memoacuterias satildeo continuamente reproduzidas por esses

guardiatildees que lhes conferem um modo de continuidade das experiecircncias A

presenccedila desses guardiatildees se torna ainda mais importante no mundo

contemporacircneo para que as experiecircncias passadas seus erros e acertos natildeo se

percam da sociedade

Se nas culturas orais as pessoas mais velhas satildeo o repositoacuterio (e tambeacutem frequentemente os guardiatildees) das tradiccedilotildees natildeo eacute apenas porque as absorveram em um ponto mais distante no tempo que as outras pessoas mas porque tecircm tempo disponiacutevel para identificar os detalhes dessas tradiccedilotildees na interaccedilatildeo com os outros da sua idade e ensinaacute-las aos jovens Por isso podemos dizer que a memoacuteria eacute um meio organizador da memoacuteria coletiva (GIDDENS 2012 p 100-101)

Eacute possiacutevel considerar que muitas tradiccedilotildees tecircm sua origem no rural O

rural do passado com caracteriacutesticas muito tradicionais na produccedilatildeo e na

cultura eacute descrito e analisado por Cacircndido (1982) e Brandatildeo (1981) Antocircnio

Cacircndido mostra um dos rurais brasileiros com suas peculiaridades no que se

83

refere a alimentaccedilatildeo e a cultura Em ldquoParceiros do Rio Bonito estudo sobre o

caipira paulista e a transformaccedilatildeo dos seus meios de vidardquo o autor apresenta

suas anaacutelises antropoloacutegicas e socioloacutegicas do modo de vida caipira

Neste estudo o autor mostra detalhadamente os modos de vida do

grupo pesquisado seus meios de subsistecircncia a forma tradicional de conduccedilatildeo

dos trabalhos agriacutecolas a composiccedilatildeo de sua alimentaccedilatildeo e seus recursos para

obtecirc-la a cultura caipira as formas de solidariedade o cotidiano do trabalho rural

do momento de acordar sair para o trabalho ao momento de retornar ao siacutetio

No aspecto da comensalidade nos chama a atenccedilatildeo as observaccedilotildees do

autor para a praacutetica alimentar do agricultor estudado por ele que no dia a dia

levava o seu almoccedilo em marmita depositada no embornal para ser consumido

no local de trabalho Os momentos das refeiccedilotildees em famiacutelia na cozinha ficavam

restrito aos domingos

O uso da marmita eacute tambeacutem a realidade de muitas outras aacutereas rurais e

tambeacutem urbanas no Brasil em tempos passados em periacuteodo de grande

movimentaccedilatildeo no campo onde o trabalho era realizado muito distante da

habitaccedilatildeo Atualmente isso permanece e nas aacutereas urbanas tambeacutem eacute uma

praacutetica muita utilizada pelos trabalhadores Mas a comensalidade pode se dar

no local do trabalho havendo outras pessoas na mesma atividade Como jaacute visto

anteriormente para ocorrer a comensalidade natildeo eacute necessaacuterio que o espaccedilo

fiacutesico seja a habitaccedilatildeo

Em relaccedilatildeo ao tipo de comida Cacircndido (1982) descreve uma

alimentaccedilatildeo simples baseada no arroz feijatildeo milho aboacutebora e a mandioca

frutas como jabuticaba e verduras como a couve eram as mais comuns Do mato

se coletava o palmito e se caccedilava a carne Esse tipo de alimentaccedilatildeo natildeo difere

do que Cacircmara Cascudo (2004) descreve como sendo os elementos baacutesicos da

alimentaccedilatildeo presentes na cozinha rural brasileira sendo comum tambeacutem o

cultivo de verduras legumes e frutas para consumo proacuteprio da famiacutelia bem como

a produccedilatildeo de animais sobretudo a galinha e o porco A banha do porco era

usada no lugar do oacuteleo de cereais os animais eram alimentados com milho e

outros produtos plantados e colhidos no quintal

O mesmo tipo de dieta foi descrito por Brandatildeo (1981) em sua pesquisa

com lavradores na regiatildeo de Goiacircnia na deacutecada de 1970 Ao autor destaca que

a dieta das famiacutelias rurais tambeacutem consistia basicamente de arroz feijatildeo milho

84

e mandioca os produtos da horta do quintal (legumes e verduras) frutas

tubeacuterculos carne de porco de aves de caccedila e de peixes Com exceccedilatildeo da caccedila

e do peixe todos os outros itens eram produzidos por elas no entorno da

moradia

O rural tratado por Cacircndido (1982) e por Brandatildeo (1981) produz mais do

que alimentos produz um modo de vida que eacute rico em significados e simbologias

que orienta a reproduccedilatildeo social das famiacutelias rurais

Entre lavradores cuja atividade econocircmica estaacute quase toda dentro dos limites da produccedilatildeo diaacuteria e sazonal de comida para a famiacutelia o alimento e tudo o que envolve o acesso a ele aparecem como agentes reguladores entre o homem e o seu mundo Praticamente todo o seu trabalho eacute dirigido a obter alimentos para uma dieta cujos ingredientes produzem conservam ou comprometem as suas condiccedilotildees pessoais de presenccedila em esferas sociais de relaccedilotildees entre produtores de alimentos (BRANDAtildeO 1981 p 148)

No rural contemporacircneo natildeo se pode mais afirmar que a tradiccedilatildeo eacute

determinante nem que se manteacutem encerrada fechada num mundo agrave parte

conforme jaacute apontado por Brandemburg (2010) e Wanderley (1996) embora

muitos costumes ritos praacuteticas alimentares e de reproduccedilatildeo social e econocircmica

se mantenham Isso se aplica tambeacutem agraves praacuteticas alimentares cabendo agraves

famiacutelias rurais fazerem suas escolhas Escolhas essas que natildeo satildeo tatildeo simples

considerando um universo de possibilidades e a proacutepria dificuldade de opccedilatildeo do

ser humano diante do mundo moderno

Nesse universo de possibilidades de escolhas alimentares os

consumidores contemporacircneos buscam escolher aquilo que mais lhes

apetecem de acordo com razotildees de ordem cultural simboacutelica econocircmica social

etc

La variabilidad de las elecciones alimentarias humanas procede sin duda en gran medida de la variabilidad de los sistemas culturales si no consumimos todo lo que es bioloacutegicamente comestiblese debe a que todo lo que es bioloacutegicamente comible no es culturalmente comestible (FISCHLER 1995 p 33)

Segundo o autor as muitas opccedilotildees no processo de escolha geram

anguacutestias alimentares que eacute uma caracteriacutestica do comensal moderno

Inclusive porque ele tem consciecircncia de uma seacuterie de riscos no campo

alimentar sobretudo os riscos que o alimento pode causar agrave sua sauacutede

85

As discussotildees sobre ruralidade no Brasil natildeo satildeo conclusivas no sentido

de afirmar que o peso da tradiccedilatildeo alimentar se impotildee Especificamente sobre

haacutebitos alimentares das populaccedilotildees rurais no Brasil contemporacircneo haacute

necessidade de ampliar o leque de abrangecircncia e regiotildees de estudo No

levantamento que fiz para a presente pesquisa verifiquei que os estudos sobre

alimentaccedilatildeo no meio rural tecircm sido de caraacuteter regional a maior parte na regiatildeo

Sul do Paiacutes Outra informaccedilatildeo que verifiquei eacute uma variedade de estudos sobre

alimentaccedilatildeo elaborados com consumidores na aacuterea urbana Assim o que

existem de estudos sobre praacuteticas alimentares no meio rural satildeo apontamentos

importantes e relevantes poreacutem ainda incipientes para que que sejam capazes

de definir uma realidade sobre praacuteticas alimentares para todo o rural brasileiro

Se por um lado haacute autores que apontam para uma tendecircncia a uma

homogeneizaccedilatildeo alimentar nas sociedades ocidentais e por outro aqueles que

reforccedilam a importacircncia da tradiccedilatildeo e em sua capacidade de se sobrepor haacute uma

terceira posiccedilatildeo sobre a questatildeo Satildeo autores que percebem a possibilidade do

meio termo ou de uma convivecircncia entre os aspectos da contemporaneidade e

da tradiccedilatildeo no que se refere agrave alimentaccedilatildeo Doacuteria (2014) aponta que o tradicional

e o novo datildeo sinais de que sua interaccedilatildeo eacute fundamental Natildeo se inventam novas

comidas elas estatildeo sendo revisitadas e a induacutestria tem investido nisso

Aleacutem de Doacuteria (2014) Poulain (2013) e Lody (2008) partilham da opiniatildeo

de que mesmo que a cada dia modernas possibilidades alimentares ndash cujo foco

seja a ampliaccedilatildeo do consumo de alimentos processados e ultraprocessados ndash

ampliem seus espaccedilos na sociedade natildeo conseguimos abandonar

completamente os viacutenculos com os haacutebitos alimentares herdados dos pais e

avoacutes Haacute sempre aquele doce especial que a avoacute fazia aquele bolo que soacute se

comia na casa dos pais aquele jeito de comer que aprendemos na infacircncia e

por isso sentimos falta mesmo que adotemos um estilo de vida que nos afaste

cada vez mais do espaccedilo social alimentar domeacutestico Os indiviacuteduos se sentem

emocionalmente ligados aos haacutebitos alimentares de sua infacircncia em geral

marcados pela cultura tradicional

Assim apesar de estarem inseridas em uma cultura que lhes eacute peculiar

as famiacutelias rurais natildeo estatildeo imunes agraves influecircncias dos demais tipos culturais e

tambeacutem natildeo satildeo estaacuteticas como defende Carneiro (1998) Elas acompanham o

ritmo das mudanccedilas em sua realidade nas quais estatildeo incluiacutedas tambeacutem as

86

praacuteticas alimentares Como bem define Elias (1994 p 145) ldquoa relaccedilatildeo entre

sociedade e indiviacuteduo eacute tudo menos imoacutevel Modifica-se com o desenvolvimento

da humanidaderdquo No sentido dado por Norbert Elias para a noccedilatildeo de habitus

social empregado agraves sociedades modernas ocidentais haacute uma tendecircncia para

a diminuiccedilatildeo das diferenccedilas regionais entre as pessoas agrave medida que o

desenvolvimento cria maiores possibilidades de integraccedilatildeo entre as regiotildees O

que natildeo implica obrigatoriamente em substituiccedilatildeo de todas as praacuteticas

tradicionais e adoccedilatildeo a outras

36 O papel feminino nas praacuteticas alimentares na famiacutelia

No processo de decisatildeo alimentar envolvendo o cardaacutepio cotidiano das

principais refeiccedilotildees e as aquisiccedilotildees a serem feitas no mercado eacute a mulher que

na maioria das vezes exerce o poder de decisatildeo embora tome as decisotildees

baseadas no gosto e nos haacutebitos familiares Isso eacute apontado em Arnaiz (1996)

Mennell et al (1992) Carrasco (1992) Freyre (1964 2006) Cacircmara Cascudo

(2004) e Giard (2012) Segundo Doacuteria (2012) mesmo apoacutes a revoluccedilatildeo industrial

e a inserccedilatildeo da mulher no mercado de trabalho a funccedilatildeo alimentar continuou

sendo atribuiacuteda como sendo da mulher

Arnaiacutez (1996) destaca que um dos fatores que contribuiacuteram para que a

relaccedilatildeo mulher ndash alimentaccedilatildeo ocorresse eacute a sua ligaccedilatildeo bioloacutegica com a

maternidade Historicamente a sociedade atribuiu ao papel feminino a

transmissatildeo natural dos trabalhos domeacutesticos e por consequecircncia os cuidados

com os membros da famiacutelia Dentre as atribuiccedilotildees femininas estaacute a de alimentar

seus filhos Citando Carrasco (1992) a autora destaca que a funccedilatildeo de satisfazer

as necessidades atraveacutes da alimentaccedilatildeo eacute primeiramente fisioloacutegica mas

possui tambeacutem outras ldquoSin embargo esta tarea comporta ademaacutes la

reproduccioacuten y satisfaccioacuten de otras relaciones sociales tales como identidade

reciprocidade comensalidade y comunicacioacuten que se expresan em cada uno de

los contenidos de las atividades que incorporardquo (CARRASCO 1992 apud

ARNAIZ 1996 p 31)

Segundo Arnaiz (1996) o papel atribuiacutedo socialmente agrave mulher como

responsaacutevel pela tarefa alimentar para aleacutem de fisioloacutegica encontra principal

argumento no final do seacuteculo XIX quando tanto na famiacutelia burguesa quanto na

87

trabalhadora a funccedilatildeo era basicamente reprodutiva Diferentemente do espaccedilo

externo ao lar no qual repousava o objetivo de produccedilatildeo de mercadorias Assim

havia uma clara e explicita divisatildeo sexual do trabalho Ao homem (pai) cabendo

o papel de provedor e agrave mulher (matildee) o papel de reproduccedilatildeo tanto bioloacutegica

quanto social e a responsabilidade pela alimentaccedilatildeo e por outras necessidades

domeacutesticas dos membros da famiacutelia

Woortmann (1985) trata da divisatildeo tambeacutem dos espaccedilos fiacutesicos da

constituiccedilatildeo tradicional da famiacutelia Nessa percepccedilatildeo a famiacutelia supotildee a divisatildeo

do trabalho entre homens e mulheres e cria o espaccedilo do homem provedor como

aquele externo ao lar onde se constitui a relaccedilatildeo racional dos negoacutecios e da

ldquofriezardquo O espaccedilo da mulher como sendo o da casa o espaccedilo das relaccedilotildees

afetivas e portanto acolhedor encontrando dentre as atividades domeacutesticas a

responsabilidade pela elaboraccedilatildeo da comida como a mais caracteriacutestica

expressatildeo dessa afetividade Assim para o autor

O gecircnero eacute tambeacutem construiacutedo no plano das representaccedilotildees atraveacutes da percepccedilatildeo da comida A comida ldquofalardquo da famiacutelia de homens e de mulheres tanto para o antropoacutelogo que realiza a leitura consciente dos haacutebitos de comer como para os proacuteprios membros do grupo familiar ndash e atraveacutes deste ndash que realizam uma praacutetica inconsciente de um habitus alimentar (WOORTMANN 1985 p 2)

Ao atribuir diferenccedila de significado entre ldquocomidardquo e ldquomantimento o

autor mostra que essa diferenciaccedilatildeo tambeacutem possui conotaccedilatildeo de gecircnero pois

aleacutem de existir o antes e o depois da accedilatildeo culinaacuteria existe tambeacutem a conotaccedilatildeo

que envolve a mediaccedilatildeo masculina e a feminina O autor chama a atenccedilatildeo para

o que observou em seu estudo realizado com camponeses no Nordeste em que

mantimento era considerado um produto do roccedilado portanto de domiacutenio

masculino Mas esse mantimento se converteria em comida ao ser ldquoqueimado27rdquo

na cozinha que eacute compreendido como o espaccedilo feminino

O mantimento (natureza) eacute produto do roccedilado (cultura quando eacute oposto ao mato) pelo trabalho do homem Quando eacute queimado isto eacute quando de ldquocrurdquo passa a ldquocozidordquo processo que se realiza a casa domiacutenio da cultura mas no espaccedilo desta que corresponde agrave mulher (natureza) torna-se comida (cultura) Entatildeo o homem-cultura produz o mantimento-natureza e a mulher-natureza produz a comida-cultura (WOORTMANN 1985 p 9)

27 Expressatildeo muito utilizada pelos camponeses da regiatildeo nordeste segundo o autor

88

Cacircmara Cascudo (2004) discute a identidade social feminina na histoacuteria

da alimentaccedilatildeo no Brasil O papel das mulheres indiacutegenas africanas e

portuguesas que produziram uma importante miscigenaccedilatildeo do paladar que tanto

caracteriza a cozinha brasileira Mulheres que foram responsaacuteveis tambeacutem ao

longo da histoacuteria pela transmissatildeo dos segredos e da diversidade culinaacuteria que

dominaram

A culinaacuteria brasileira tem suas raiacutezes nos saberes que foram repassados

por geraccedilotildees de mulheres desses trecircs grupos eacutetnicos e na junccedilatildeo dos seus

saberes De cada grupo eacutetnico que formou a populaccedilatildeo brasileira detalhes foram

herdados e levados agrave mesa familiar ao longo da histoacuteria Muito do que estaacute

presente em nossas praacuteticas alimentares cotidianas e em festejos especiais eacute

reflexo de transmissatildeo cultural e histoacuterica

Sobre a influecircncia e importacircncia da mulher indiacutegena para a alimentaccedilatildeo

Freyre (1964 p 132) a descreve como sendo natildeo apenas ldquoa base fiacutesica da famiacutelia

brasileira mas valioso elemento de cultura material e alimentar na formaccedilatildeo

brasileirardquo Vaacuterios alimentos usados ateacute os dias atuais remeacutedios caseiros

formatos de utensiacutelios de cozinha etc satildeo heranccedilas das mulheres indiacutegenas

Da cunhatilde eacute que nos veio o melhor da cultura indiacutegena O asseio pessoal A higiene do corpo O milho O caju O mingau As comidas preparadas agrave base de mandioca e que se tornaram a base do regime alimentar do colonizador O brasileiro de hoje amante do banho e sempre de pente e espelhinho no bolso o cabelo brilhante de loccedilatildeo ou de oacuteleo de coco reflete a influecircncia de tatildeo remotas avoacutes (FREYRE 1964 p 132)

Segundo o autor a culinaacuteria brasileira natildeo seria a mesma sem os

quitutes de origem indiacutegena Ele destaca como a mescla dos conhecimentos da

mulher indiacutegena e da mulher portuguesa que se deu nas cozinhas das casas

grandes foi importante para tornarem esses quitutes com sabor ldquoabrasileiradordquo

O autor ainda ressalta a contribuiccedilatildeo da cultura africana por meio das mulheres

africanas para a culinaacuteria brasileira Originam dessa cultura a introduccedilatildeo de

azeite de dendecirc pimenta malagueta quiabo farofa quibebe vatapaacute mungunzaacute

caruru milho assado acarajeacute pipoca cuscuz de peixe novas variedades de

preparo de peixes e da galinha alguns doces broas e patildees de milho Segundo

o autor muitas mulheres alforriadas tiravam seu sustento com os tabuleiros de

doces vendiam cocadas quindins matildees bentas etc Algranti (2007) menciona

que antes de se tornarem populares e vendidos em tabuleiros os doces eram

89

considerados iguarias e apenas servidos em ocasiotildees especiais e eram por isso

demarcadores de distinccedilatildeo social

Assim como a junccedilatildeo dos saberes das mulheres indiacutegenas africanas e

portuguesas produziu comidas mais saborosas A troca de conhecimentos

propiciou novas adaptaccedilotildees aos pratos sobretudo aos doces A heranccedila

portuguesa no que se refere aos doces eacute muito forte segundo Freyre (2007)

mas era preciso a matildeo de obra e a intuiccedilatildeo das mulheres negras para dar o

toque certo nos pontos

Com sabores temperos supersticcedilotildees e haacutebitos das trecircs raccedilas que nos formaram a convivecircncia espontacircnea entre o cristal daquele accediluacutecar o sabor selvagem da fruta tropical e aquele que era o alimento baacutesico dos nossos iacutendios ndash a mandioca Juntando pilatildeo urupema saudade peneira de taquara raspador de coco esperanccedila colher de pau panela de barro mais a fartura de porcelana do oriente e bules e vasos de prata Eram doces preparados em tachos de cobre pesado heranccedila portuguesa largos quase trecircs palmos grandes duas alccedilas ardendo sobre velhos fogotildees a lenha Jovens negras tiravam os tachos pesados do fogo sem pedir ajuda As mais velhas usavam experiecircncia e sabedoria trazidas de terras distantes com olhares atentos para natildeo deixar o doce passar do ponto E sempre com aquela mesma forma de fazer ndash tranquila bem devagar sem pressa quase dolente (FREYRE 2007 p 13-14)

Bruit et al (2007) citam doces como as marmeladas goiabadas

rapaduras doces de frutas em calda acompanhados muitas vezes de queijo

como aqueles mais servidos nos jantares festivos que ocorriam nas casas-

grandes no interior de Satildeo Paulo e Minas Gerais Tanto as referecircncias de

Cacircmara Cascudo (2004) como as de Freyre (1964 2003 e 2007) revelam as

praacuteticas alimentares que ocorriam no Brasil colonial sobretudo nas casas-

grandes e dos sobrados que foram caracteriacutesticas primeiramente das regiotildees

dos engenhos de cana

Abdala (2007) afirma o controle da cozinha pelas mulheres no Brasil

colonial Referindo-se principalmente agraves escravas que viviam quase reclusas na

cozinha e por isso se tornaram personagem central na atividade da culinaacuteria

Segundo a autora essa era a realidade em Minas Gerais mas tambeacutem em

outras partes do paiacutes As escravas e as mulheres pobres executavam o serviccedilo

cotidiano Agraves senhoras ricas cabia dar as ordens e administrar os trabalhos

relativos agrave produccedilatildeo da comida Somente em algumas ocasiotildees elas se

dedicavam agrave elaboraccedilatildeo de algum prato ldquoEm casa no decorrer dos dias nas

festas intimas durante visitas como tambeacutem na rua no comeacutercio ambulante ou

90

das vendas cabia agrave mulher toda a funccedilatildeo relacionada agrave comidardquo (ABDALA

2007 p 80) Essa condiccedilatildeo tambeacutem eacute apontada por Vasconcellos (1968) que

apresenta a mulher deste periacuteodo em Minas Gerais como a dona absoluta dos

seus domiacutenios no interior das casas que compreendia tambeacutem a cozinha local

onde o homem raramente acessava

O domiacutenio feminino dos grupos eacutetnicos indiacutegenas africanos e portuguecircs

eacute perceptiacutevel na alimentaccedilatildeo brasileira ainda nos dias de hoje muito embora

com a chegada dos imigrantes europeus e tambeacutem de outras regiotildees a partir

da metade do seacuteculo XIX mulheres de outras culturas trouxeram importantes

contribuiccedilotildees para a culinaacuteria brasileira Destacando as italianas e as alematildes

cuja influecircncia se iniciou no Sul do Brasil mas tambeacutem na cidade de Satildeo Paulo

No interior do estado do Espirito Santo e na regiatildeo serrana do Rio de Janeiro as

culturas italianas e alematildes tambeacutem tiveram papel importante na formaccedilatildeo das

praacuteticas alimentares locais

Segundo Claval (2001) os saberes culinaacuterios foram repassados

matrilinearmente ao longo da histoacuteria e foram feitos principalmente por oralidade

pelas mulheres que podem ser chamadas de as ldquoguardiatildesrdquo termo usado por

Giddens (2012) e Simson (2003) Muitas mulheres mais velhas que natildeo tiveram

a oportunidade de estudar e sabiam apenas assinar o proacuteprio nome guardavam

na memoacuteria as receitas de suas matildees e avoacutes Pode-se dizer que a transmissatildeo

pela oralidade parece contribuir mais para aproximar as geraccedilotildees pela relaccedilatildeo

de proximidade necessaacuteria entre as mulheres Independente da forma se

escritas ou orais o importante eacute a compreensatildeo de que receitas repassadas

pelas geraccedilotildees carregam tambeacutem uma histoacuteria rica em significados e

experiecircncias vividas pelas mulheres das geraccedilotildees Afinal como dito por Doacuteria

(2006 p 103) ldquoreceitas como meros lsquomodos de fazerrsquo satildeo inuacuteteisrdquo

Tambeacutem Giard (2012) atribui agraves mulheres ndash as guardiatildes da tradiccedilatildeo ndash a

influecircncia na preferecircncia por determinados pratos Somos ldquovisitadosrdquo pelos

sabores e cheiros que a memoacuteria muitas vezes insiste em trazer agrave tona as

comidas de tempos de infacircncia e juventude que nos reporta a ocasiotildees

especiacuteficas da vida Em pesquisa etnograacutefica realizada com mulheres dedicadas

a culinaacuteria a autora concluiu que

A aquisiccedilatildeo dos ingredientes a preparaccedilatildeo e as regras de compatibilidade podem muito bem mudar de uma geraccedilatildeo agrave outra mas

91

o trabalho cotidiano das cozinhas continua sendo uma maneira de unir mateacuteria e memoacuteria vida e ternura instante presente e passado que jaacute se foi invenccedilatildeo e necessidade imaginaccedilatildeo e tradiccedilatildeo ndash gostos cheiros sabores formas consistecircncias atos gestos coisas e pessoas especiarias e condimentos (GIARD 2012 p 296)

Apesar do papel central da oralidade o caderno de receita eacute um

instrumento importante para se reportar aos haacutebitos alimentares de tempos

passados Talvez o primeiro registro de uma receita seja a que aponta Sitwell

(2012) Trata-se de um registro de 1700 aC na antiga Mesopotacircmia de uma

receita de ensopado de legumes e carne que foi esculpido em taacutebuas de argila

em fixada a um tuacutemulo Segundo Claval (2001) os registros de receitas em

cadernos tiveram iniacutecio em meados do seacuteculo XIX Haacute quem o tenha herdado

de pessoas da famiacutelia e mesmo que natildeo o utilize no dia-a-dia o manteacutem como

heranccedila afetiva

Abrahatildeo (2007) aponta que natildeo apenas receitas eram registradas em

muitos desses cadernos mas tambeacutem outras anotaccedilotildees necessaacuterias naquele

momento Ele menciona que as receitas culinaacuterias que foram arquivadas em

cadernos traziam ricas informaccedilotildees inclusive sobre outros aspectos

alimentares das eacutepocas como preccedilos ofertas e carecircncias temporaacuterias de

produtos

Atualmente e desde o surgimento da sociedade industrial as atividades

das mulheres passam por transformaccedilotildees com a saiacuteda para o mercado de

trabalho externamente ao lar a dupla jornada de trabalho as mudanccedilas sociais

poliacuteticas e econocircmicas que interferiram na dinacircmica da sociedade e

consequentemente na divisatildeo sexual do trabalho Isso propiciou a aproximaccedilatildeo

masculina da cozinha numa possiacutevel divisatildeo do trabalho domeacutestico espaccedilo

antes ocupado exclusivamente por mulheres Mas ainda assim segundo Doacuteria

(2012) a mulher eacute a principal responsaacutevel pela alimentaccedilatildeo da famiacutelia ldquoNatildeo haacute

duacutevidas de que ainda hoje a cozinha feminina eacute um dos pilares do poder da

mulher em que ela segue administrando a tradiccedilatildeo alimentar (DOacuteRIA 2012 p

255)

Segundo Giard (2012) ldquodentro de uma cultura uma mudanccedila das

condiccedilotildees materiais ou da organizaccedilatildeo poliacutetica eacute o que basta para modificar a

maneira de conceber e de repartir este tipo de tarefas cotidianas podendo

tambeacutem alterar a hierarquia dos diferentes trabalhosrdquo (GIARD 2012 p 211)

92

Para esta autora natildeo haacute nada de essecircncia feminina no fato de as mulheres de

ontem e as de hoje ainda serem as que mais se envolvem nas questotildees relativas

agrave alimentaccedilatildeo A questatildeo eacute puramente histoacuterica social e cultural

Diante das mudanccedilas e da permanecircncia feminina como principal

responsaacutevel pela alimentaccedilatildeo familiar as novas tecnologias disponibilizadas aos

espaccedilos da cozinha o acesso e a variedade de alimentos industrializados

facilitam a conduccedilatildeo desse papel pelas mulheres que desejam manter a

responsabilidade pela alimentaccedilatildeo da famiacutelia mas cujo tempo eacute escasso para

se dedicarem a todas as atividades que executam Por mais que possa haver

algum conflito em usaacute-los nos termos citados por Fischler (1995) haacute poreacutem o

aspecto da comodidade e economia de tempo que atuam como fatores

estimuladores ao seu uso

A dupla jornada de trabalho feminino natildeo ocorre apenas nas aacutereas

urbanas mas tambeacutem nas rurais seja para aquelas que possuem atividade

remunerada fora da propriedade em que moram seja para as que trabalham

apenas na propriedade As atividades das mulheres agricultoras envolvem o

ambiente interno e externo da casa e ainda o seu entorno e para muitas as

atividades tambeacutem do roccedilado conforme Panzutti (2006)

Na vida cotidiana a mulher se ocupa de cozinhar e servir a comida lavar a roupa cuidar dos animais prover a lenha costurar as roupas lavar a louccedila aleacutem de trabalhar na roccedila sempre acompanhada da prole que eacute de seu cuidado Eventualmente eacute auxiliada nessas tarefas por uma filha (PANZUTTI 2006 p 62)

Segundo a autora no meio rural a oposiccedilatildeo entre a casa e o

roccedilado apesar de socialmente ser dividida e hierarquizada mostrando os

domiacutenios dos homens e os das mulheres natildeo as livra de exercer muitas

atividades no espaccedilo considerado masculino Por outro lado a cozinha eacute um

espaccedilo bem definido como sendo o da mulher matildee de famiacutelia

Alguns estudos feitos no Sul do Brasil como o de Zanetti e Menasche

(2007) De Grandi (2003) Paulilo et al (2003) e Heredia (1984) relatam a

experiecircncia de mulheres atuando nas atividades agriacutecolas como o cuidado com

pequenos cultivos pomar pequenos animais mas tambeacutem mantendo a

responsabilidade pelas praacuteticas alimentares na preparaccedilatildeo e organizaccedilatildeo da

alimentaccedilatildeo da famiacutelia

93

Na apresentaccedilatildeo dos dados empiacutericos discuto as situaccedilotildees vivenciadas

pelas famiacutelias e o papel desempenhado pelas mulheres na alimentaccedilatildeo dos

membros da famiacutelia Tanto daquelas que trabalham apenas no siacutetio como

daquelas que exercem atividade remunerada fora dos siacutetios As mulheres

relataram sobre a dinacircmica exercida por elas no que se refere agraves praacuteticas

alimentares e cultura rural Na pesquisa de campo foram apontados pelos

entrevistados elementos aqui discutidos como a transmissatildeo de saberes

culinaacuterios e a relaccedilatildeo entre modos tradicionais e modos contemporacircneos das

praacuteticas culinaacuterias

94

4 ASPECTOS METODOLOacuteGICOS DA PESQUISA E A CHEGADA AO CAMPO

Neste capiacutetulo satildeo apresentados os aspectos metodoloacutegicos que

orientaram a pesquisa de campo bem como os resultados obtidos O trabalho

de campo foi conduzido utilizando-se um delineamento qualitativo agrave luz da

abordagem etnograacutefica no sentido dado por Peirano (1995) dando atenccedilatildeo

especial ao diaacutelogo com o outro Quivy e Campenhoudt (1992) defendem que o

trabalho de investigaccedilatildeo em Ciecircncias Sociais proporciona uma melhor anaacutelise

dos eventos qualitativos bem como uma compreensatildeo mais detalhada e sutil das

dinacircmicas de funcionamento do grupo estudado

Jaacute os direcionamentos de Poulain e Proenccedila (2003) tratam da pesquisa

voltada ao estudo das praacuteticas alimentares num contexto socioantropoloacutegico

Esses autores sugerem atenccedilatildeo conjunta por parte do pesquisador aos

comportamentos dos informantes naquilo que chamam de ldquopraacuteticas observadasrdquo

e ldquopraacuteticas reconstruiacutedasrdquo Para os autores aquilo que o pesquisador observa

durante a entrevista age em conjunto com os relatos dos entrevistados

auxiliando a interpretaccedilatildeo dos dados

As praacuteticas observadas dizem respeito ao que eacute testemunhado pelo

pesquisador satildeo detalhes muitas vezes relevantes mas que nem sempre satildeo

fornecidos pelos interlocutores por razotildees diversas Para facilitar posteriormente

o acesso agraves informaccedilotildees obtidas por meio da observaccedilatildeo o uso de alguns

instrumentos de apoio eacute importante o caderno de campo a cacircmera fotograacutefica

e o gravador As praacuteticas reconstruiacutedas dizem respeito ao trabalho de

rememorizaccedilatildeo Interessa investigar e comparar vivecircncias passadas com as

atuais no caso da alimentaccedilatildeo praacuteticas que foram adotadas alimentos que

fizeram parte da dieta traccedilos de comensalidade comemoraccedilotildees festivas onde

a comida esteja presente o que permanece e o que foi abandonado

Entre outras questotildees busquei verificar junto agraves famiacutelias a influecircncia da

heranccedila culinaacuteria envolvendo a cultura imaterial (eventos relacionados agrave comida

que satildeo tradicionais na famiacutelia) a representaccedilatildeo das praacuteticas alimentares no

tempo passado e presente e o papel dos guardiatildees da tradiccedilatildeo da culinaacuteria

familiar a relaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo bem como com os modos de alimentaccedilatildeo

moderna

95

41 Teacutecnica de pesquisa

A entrevista semiestruturada foi a teacutecnica de pesquisa utilizada para

obtenccedilatildeo de informaccedilotildees das praacuteticas reconstruiacutedas e observadas (POULAIN

PROENCcedilA 2003) justificam como sendo a forma mais confiaacutevel quando dirigida

pelo proacuteprio pesquisador e ainda por permitir aprofundamento das questotildees As

entrevistas podem ser reformuladas ao longo da sua ocorrecircncia com o objetivo

de redirecionar a discussatildeo para o assunto poreacutem sem se prender totalmente agrave

pergunta inicial ldquoAs digressotildees satildeo importantes porque permitem perceber as

representaccedilotildees e os quadros de referecircncia mais ou menos conscientes nos

quais se manifestam as loacutegicas dos atoresrdquo (p 373)

A entrevista permite ao pesquisador uma variedade de interpretaccedilotildees A

atenccedilatildeo do pesquisador e seu feeling tambeacutem satildeo muito importantes pois eacute

preciso estar atento para fazer tanto abordagens objetivas e palpaacuteveis como

simboacutelicas Neste uacuteltimo caso estar atento ao que natildeo aparece claramente na

mensagem e fica impliacutecito na fala

42 Os sujeitos da pesquisa

A definiccedilatildeo dos sujeitos da pesquisa foi realizada a partir de dados

fornecidos pela Emater relativos a cada municiacutepio selecionado Poreacutem como o

trabalho de campo eacute dinacircmico novos informantes surgiram durante esta fase

pois ao entrevistar uma famiacutelia sugiram durante as conversas nomes de outras

pessoas da proacutepria comunidade que pelos objetivos da pesquisa foi

interessante entrevistar Assim as informaccedilotildees da Emater representaram a

porta de entrada mas natildeo uma limitaccedilatildeo para a seleccedilatildeo dos entrevistados

O uacutenico preacute-requisito para a pesquisa era que os interlocutores

morassem na aacuterea rural dos trecircs municiacutepios delimitados O objetivo era conhecer

as praacuteticas que ocorriam no conjunto familiar e natildeo necessariamente as praacuteticas

individuais

Foram realizadas 40 entrevistas abrangendo 17 comunidades rurais

sendo 05 em Piranga 07 em Porto Firme e 05 em Presidente Bernardes cujos

nomes constam no Quadro 1 bem como o nuacutemero de famiacutelias entrevistadas 14

em Piranga 12 em Porto Firme e 14 em Presidente Bernardes O nuacutemero de

96

famiacutelias entrevistadas por comunidade eacute aquele que consta entre os parecircnteses

no referido quadro

Quadro 1 ndash Municiacutepios comunidades e nuacutemero de famiacutelias 2015

Municiacutepios Comunidades

Piranga Boa Vista (2) Manja (3) Mestre Campos (4) Bom Jesus do Bacalhau (2) Tatu (3)

Porto Firme Aacutegua Limpa (2) Bom Retiro (1) Vinte Alqueires (1) Limeira (2) Posses (2) Jacuba28 (2) Satildeo Domingos (2)

Presidente Bernardes Itapeva (3) Mato Dentro (3) Ribeiratildeo (3) Xopotoacute (3) Bananeiras (2)

Fonte Pesquisa de campo 2015

43 A conduccedilatildeo da pesquisa o caminho percorrido

A pesquisa de campo teve como objetivo analisar agrave luz da teoria

sistematizada o significado da comida e as relaccedilotildees de comensalidade atendo-

se agraves mudanccedilas e permanecircncias referentes agraves praacuteticas alimentares das famiacutelias

Mais especificamente analisar a articulaccedilatildeo entre o tradicional e o moderno o

processo de escolha alimentar e os princiacutepios que a determinam como haacutebitos

tradiccedilatildeo praticidade custo etc a influecircncia dos guardiatildees da tradiccedilatildeo na

reproduccedilatildeo do gosto no processo de significaccedilatildeo e ressignificaccedilatildeo da comida

atrelada agraves praacuteticas aos saberes e aos haacutebitos tanto no cotidiano quanto nos

rituais

A pesquisa de investigaccedilatildeo teoacutericobibliograacutefica me conduziu a pensar

as categorias analiacuteticas e as variaacuteveis para a conduccedilatildeo do processo empiacuterico

Assim a alimentaccedilatildeo em seu sentido cultural e simboacutelico como o que foi

discutido nos campos teoacutericos da antropologia e da sociologia da alimentaccedilatildeo

28 Perguntei aos entrevistados desse local se eles sabiam porque a comunidade se chamava Jacuba mas

natildeo souberam responder Os nomes das comunidades estatildeo quase todas relacionadas ao nome de primeira fazenda implantada na localidade Perguntei isso porque ldquojacubardquo eacute um termo indiacutegena usado para se referir a um tipo de comida parecida com o piratildeo agrave base de aacutegua e farinha de mandioca e rapadura muito consumida pelos tropeiros no periacuteodo da mineraccedilatildeo em Minas Antocircnio Cacircndido tambeacutem se refere a ela na descriccedilatildeo dos caipiras paulistas

97

no capiacutetulo anterior eacute eleita como categoria analiacutetica central A partir dela foram

definidas outras quatro subcategorias de suporte 1 As praacuteticas alimentares 2

A comensalidade 3 O espaccedilo social da alimentaccedilatildeo 4 A cultura Como

atributos importantes para a anaacutelise dessas categorias delineei as variaacuteveis

norteadoras da pesquisa empiacuterica e que me ajudaram a observar a descrever

a analisar e a interpretar os dados

Sobre a cultura o interesse foi traccedilar uma caracterizaccedilatildeo ou um ldquoretratordquo

das famiacutelias quanto agrave origem (rural ou urbana) o tempo em que moram na regiatildeo

pesquisada se a terra eacute herdada ou adquirida a faixa etaacuteria aproximada se satildeo

idosos ou jovens a produccedilatildeo de alimentos e as atividades realizadas no

cotidiano

Nas praacuteticas alimentares o interesse foi o de conhecer as informaccedilotildees

relativas aos alimentos mais consumidos no cotidiano e nos eventos especiais

o que eacute produzido no local e o que eacute comprado o horaacuterio das refeiccedilotildees a relaccedilatildeo

com a atividade (por prazer ou por obrigaccedilatildeo) a comida tradicional (o papel dos

guardiatildees da cultura alimentar os cadernos de receita o aprendizado por

oralidade) a comida de antigamente e a comida de hoje a comida para visita e

a comida para os de casa os aspectos levados em consideraccedilatildeo na escolha dos

alimentos (tradiccedilatildeo praticidade custo e atraccedilatildeo pelo moderno)

Para analisar a comensalidade foi preciso identificar se ela estaacute

presente nos haacutebitos familiares no cotidiano e em datas especiais os locais onde

ela ocorre (cozinha copa aacuterea externa da casa sala de visita) e o tempo

aproximado de duraccedilatildeo das refeiccedilotildees

O espaccedilo social da alimentaccedilatildeo se refere ao local de preparo e de

consumo das refeiccedilotildees Importa saber a este respeito quem prepara as

refeiccedilotildees e quais satildeo os equipamentos existentes neste espaccedilo por exemplo a

presenccedila do fogatildeo a lenha e a gaacutes e a constacircncia de seus usos ou seja qual

deles eacute mais utilizado Tambeacutem a existecircncia e usos de equipamentos eleacutetricos

como geladeira freezer forno eleacutetrico forno de micro-ondas batedeira de bolo

etc Neste sentido analisar se nesse espaccedilo social ocorre a relaccedilatildeo entre

tradiccedilatildeo e modernidade na posse e uso dos equipamentos ou o predomiacutenio de

uma dessas caracteriacutesticas Buscou-se ainda analisar se permanecem os

costumes alimentares quanto aos locais destinados agrave comensalidade ou este

espaccedilo social estaacute passando por transformaccedilotildees

98

44 A entrevista semiestruturada

As entrevistas foram gravadas com a permissatildeo dos interlocutores da

pesquisa Apenas uma famiacutelia na comunidade de Ribeiratildeo em Presidente

Bernardes natildeo se sentiu agrave vontade com o gravador e realizei as anotaccedilotildees em

caderno de campo Os nomes dos entrevistados citados no decorrer deste

capiacutetulo satildeo pseudocircnimos que substituiacuteram os verdadeiros para preservar a

identificaccedilatildeo dos participantes conforme exigecircncia constante no Parecer

Consubstanciado do Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa com Seres Humanos (CEP)

da Universidade Federal de Viccedilosa

O estilo da narrativa para apresentaccedilatildeo dos resultados da pesquisa

segue o direcionamento proposto na perspectiva etnograacutefica discutida por

Peirano (1995 e 2008) Marcus e Cushman (1998) e Uriarte (2012) Para Marcus

e Cushman (1998 p 175-176) a narrativa etnograacutefica do seacuteculo XX tem se

baseado no que chamam de realismo etnograacutefico sendo ldquoun modo de escritura

que busca representar la realidade de todo un mundo o de uma forma de vidardquo

Outras caracteriacutesticas da narrativa etnograacutefica realista segundo os autores satildeo

Una cuidadosa atencioacuten hacia nos detalles y demonstraciones redundantes de

que el escritor compartioacute y experimentoacute ese mundordquo

Para Peirano (2008 p 6) ldquoo trabalho de campo se faz pelo diaacutelogo vivo

e depois a escrita etnograacutefica pretende comunicar ao leitor (e convencecirc-lo) de

sua experiecircncia e sua interpretaccedilatildeordquo

45 A imersatildeo em campo a chegada e a travessia

Se a accedilatildeo de comer eacute algo tatildeo iacutentimo ao ser humano conforme reflete

Mintz (2001) analisar os haacutebitos e as praacuteticas alimentares de pessoas e grupos

se torna uma atividade de grande responsabilidade Trabalhar os dados de forma

analiacutetica e criacutetica agrave luz das abordagens teoacutericas e portanto longe do julgamento

do senso comum eacute o papel do pesquisador Foi com essa percepccedilatildeo que

enveredei no campo pensando a pesquisa empiacuterica como descobertas a serem

feitas pelo caminho naquele sentido absorvido quando li Grande Sertatildeo

Veredas de Guimaratildees Rosa pela primeira vez

99

O real natildeo estaacute na saiacuteda nem na chegada ele se dispotildee para a gente eacute no meio da travessia () Assaz o senhor sabe a gente quer passar um rio a nado e passa mas vai dar na outra banda eacute num ponto muito mais em baixo bem diverso do que em primeiro se pensou (ROSA 2001 p 51 e 80)

Fazer pesquisa de campo eacute algo semelhante Faz-se um planejamento

mas durante o percurso eacute preciso lidar por um lado com os ldquoimponderaacuteveis da

pesquisardquo29 e por outro com a expectativa das descobertas a serem feitas na

travessia A praacutetica empiacuterica eacute tambeacutem trabalho analiacutetico e reflexivo mas eacute

sobretudo ndash concordando com a ideia de Peirano (1995 p 57) ndash ldquotrabalho

artesanal microscoacutepico detalhista e que traduz como poucas outras o

reconhecimento do aspecto temporal das explicaccedilotildeesrdquo Ela argumenta ainda que

a conduccedilatildeo de uma pesquisa de campo ldquodepende entre outras coisas da

biografia do pesquisador das opccedilotildees teoacutericas do contexto sociohistoacuterico e das

imprevisiacuteveis situaccedilotildees que se configuram no dia-a-dia no proacuteprio local de

pesquisa entre pesquisador e pesquisadosrdquo (p 22)

Para esta pesquisa as questotildees em torno dos haacutebitos praacuteticas

alimentares e sociabilidades das famiacutelias rurais foram importantes para a

investigaccedilatildeo cientiacutefica pretendida Assim foi necessaacuteria a compreensatildeo por

parte dos interlocutores sobre a importacircncia de sua participaccedilatildeo Coube a eles

apoacutes o entendimento da pesquisa abrir a sua intimidade alimentar cotidiana Fui

convidada pelos entrevistados ndash mulheres na maior parte ndash a ldquoadentrar e puxar

assentordquo na cozinha Tambeacutem me convidaram para conhecer o quintal colher

verdura na horta e inclusive a participar das refeiccedilotildees em todas as casas

visitadas fosse almoccedilo fosse ldquomerendardquo ou mesmo apanhar frutas diretamente

do peacute durante conversas ocorridas no pomar

Assim percorri regiotildees rurais de Piranga Porto Firme e Presidente

Bernardes entre os meses de fevereiro a junho de 2015 fazendo descobertas

aprendendo apreendendo dialogando analisando questionando e refletindo

sobre os sentidos da comida e do comer no espaccedilo rural contemporacircneo das

famiacutelias pesquisadas

29 Termo que foi utilizado primeiramente por Bronislaw Malinowski (1976) ao falar sobre os ldquoimponderaacuteveis

da vida realrdquo para se referir a rotina do trabalho diaacuterio do nativo os detalhes de seus cuidados corporais o modo como prepara a comida e come as simpatias ou aversotildees e etc Utilizo o termo semelhante para pensar os eventos inesperados da pesquisa empirica

100

Naquelas famiacutelias em que fui apresentada diretamente pelos teacutecnicos da

Emater e a quem acompanhei em algumas de suas visitas agraves comunidades

atendidas no mecircs de janeiro de 2015 e mesmo naquelas onde minha preacutevia

apresentaccedilatildeo foi feita via telefone a chegada para a pesquisa foi mais simples

Entretanto naquelas em que houve indicaccedilatildeo por parte dos proacuteprios

entrevistados o processo foi mais lento mas natildeo difiacutecil ou impeditivo Apenas

levei mais tempo para organizar a visita Em um dia ia ao local me apresentava

explicava sobre a pesquisa que havia sido realizada com seus conhecidos na

mesma comunidade respondia agraves perguntas e curiosidades e por fim

agendava um retorno Considero como mais provaacutevel eacute que tenham aceitado

participar da pesquisa em funccedilatildeo de eu ter citado o mesmo trabalho feito com

pessoas conhecidas Natildeo sei dizer se foram buscar confirmaccedilatildeo sobre isso A

teacutecnica da Emater de Piranga que estava se aposentando se propocircs a percorrer

comigo algumas comunidades em alguns dias da segunda quinzena de janeiro

de 2015 me mostrando os caminhos e apresentando a algumas pessoas

Em geral as pessoas foram atenciosas Algumas se mostraram mais

interessadas do que outras e por isso o envolvimento foi maior Poreacutem todas

deram contribuiccedilotildees muito importantes Houve dois casos em que precisei

retornar em outro dia Em um dos casos porque houve falecimento de um

parente na manhatilde do dia da entrevista e natildeo tiveram como me avisar antes Na

outra situaccedilatildeo o casal de aposentados precisou ir agrave cidade resolver problemas

pessoais e pediu para marcarmos um outro dia Foi necessaacuterio tambeacutem o

adiamento da pesquisa em dias de chuva devido agraves condiccedilotildees ruins das

estradas

Optei por dividir o horaacuterio das entrevistas em manhatilde e tarde para

conviver com dois momentos do cotidiano das famiacutelias respeitando os horaacuterios

delas Assim consegui realizar 15 entrevistas na parte da manhatilde e as outras 25

na parte da tarde O horaacuterio de chegada pela manhatilde era entre 800 e 830

tambeacutem em acordo com as famiacutelias Na parte da tarde o horaacuterio era entre 1330

e 1400 Almocei porque era convidada nas casas onde iniciava o trabalho na

parte da manhatilde o que me permitia acompanhar o processo de elaboraccedilatildeo do

almoccedilo as conversas no geral aconteciam na cozinha mas parte delas ocorria

tambeacutem nas hortas e nos quintais

101

A partir do proacuteximo item passo a apresentar os dados obtidos em campo

baseados em informaccedilotildees fornecidas pelos interlocutores da pesquisa e tambeacutem

nas observaccedilotildees que fiz Os itens e subitens estatildeo relacionados agraves variaacuteveis

elencadas no projeto de pesquisa que compuseram o roteiro de entrevista

No item 46 apresento dados de caraacuteter descritivo-analiacutetico sobre a

cultura e os modos de vida do grupo pesquisado as atividades cotidianas de

trabalho as impressotildees empiacutericas e sua relativizaccedilatildeo agrave luz dos dados do IBGE

(2010) sobre uma regiatildeo que aos olhos dos entrevistados parece estar

envelhecendo Apresento e discuto tambeacutem outras percepccedilotildees culturais do

cotidiano Em todo o item algumas reflexotildees sobre as praacuteticas alimentares satildeo

sinalizadas ou apontadas No entanto as discussotildees mais especiacuteficas sobre as

praacuteticas alimentares satildeo feitas no capiacutetulo 5

46 Descobrindo a cultura local dos entrevistados

461 Perfil das famiacutelias

Na regiatildeo pesquisada predomina a agricultura de base familiar que eacute

aquela em que a propriedade a gestatildeo e o trabalho estatildeo ligados agrave famiacutelia no

sentido dado por Gasson e Errington (2003 p 20) O marido a esposa e tambeacutem

os filhos adolescentes quando chegam da escola satildeo os que trabalham na

propriedade Entre os casais idosos as atividades de produccedilatildeo satildeo muito

reduzidas por dificuldades fiacutesicas em executar alguns trabalhos Em alguns siacutetios

haacute filhos casados ou solteiros se responsabilizando pelas atividades dos pais

As aacutereas rurais dos trecircs municiacutepios se assemelham tanto ao que se

relaciona agraves atividades agriacutecolas quanto agrave cultura e haacutebitos cotidianos inclusive

os alimentares A maior parte das famiacutelias (899) mora em pequenos siacutetios que

se formaram por divisatildeo de heranccedila de propriedades maiores O restante

adquiriu por meio de compra Em todos os casos de heranccedila ela proveacutem dos

pais do marido Essas informaccedilotildees obtidas em campo coincidem com o que eacute

apresentado por Maria Joseacute Carneiro (2001 e 1998b) Abramovay et al (1998)

Woortmann (1995) Spanevello e Lago (2010) Paulilo (2003) Mendonccedila et al

(2013) e Moura (1978) ao discutirem o processo sucessoacuterio do meio rural

Apontam que historicamente a heranccedila eacute dada ao filho de sexo masculino que

102

assume a continuaccedilatildeo das atividades ldquoenquanto as mulheres se tornam

agricultoras por casamentordquo (Paulilo 2003 p 188) Situaccedilatildeo semelhante foi

verificada na minha pesquisa As mulheres disseram natildeo ter herdado terra dos

pais agricultores sendo possuidoras de terra a partir do momento em que se

casaram e passaram a partilhar a terra herdada pelo marido

Outros estudos como os de Woortmann (1995) Carneiro (1998b) e

Camarano e Abramovay (1998) tecircm sinalizado uma mudanccedila nos uacuteltimos anos

Uma das razotildees estaacute associada agraves transformaccedilotildees de perspectivas da juventude

rural em relaccedilatildeo ao campo Segundo os autores muitos jovens natildeo demonstram

mais tanto interesse em permanecer no campo e assumir a incumbecircncia total

pela manutenccedilatildeo da terra que pertenceu aos pais Em minha pesquisa natildeo tive

como objetivo discutir a questatildeo sucessoacuteria mas as famiacutelias cujos filhos

moravam nos siacutetios dos pais (666) eram sobretudo aquelas compostas por

casal de idosos e aposentados Nestes casos os filhos natildeo moravam

necessariamente na mesma casa Quando se tratava de filhos casados eles

moravam em casas separadas

A origem rural eacute predominante no grupo pesquisado sendo a realidade

de 95 das famiacutelias entrevistadas As famiacutelias satildeo pequenas sendo 36 pessoas

o tamanho meacutedio incluindo aquelas de casais aposentados e natildeo aposentados

que tecircm os filhos morando em casa Predominam aquelas compostas por

aposentados que moram sozinhos existindo no entanto algumas cujos filhos

solteiros moram com os pais Em alguns dos casos um dos filhos casados mora

no siacutetio mas em casa separada dos pais

As famiacutelias compostas por casais de aposentados correspondem a 24

delas (60) Desse total 11 famiacutelias estatildeo em Presidente Bernardes 08 em

Piranga e 05 em Porto Firme O municiacutepio de Presidente Bernardes representa

aquele com maior percentual de aposentados 80 Em Piranga eles

representam 6875 e em Porto Firme 50

As outras 16 famiacutelias satildeo compostas por casais cuja faixa etaacuteria varia de

30 a 50 anos Nestas famiacutelias os filhos a partir dos 16 anos tecircm saiacutedo para

estudar em outras cidades proacuteximas como Viccedilosa Ouro Preto ou Ouro Branco

onde possam cursar o niacutevel superior Essa foi a realidade encontrada em sete

delas Isso tem ocorrido por interesse tambeacutem dos pais que desejam vecirc-los

formados em um curso superior

103

Em relaccedilatildeo agrave escolaridade a maior parte (646) das pessoas com

idade acima de 60 anos tinham o ensino fundamental incompleto 187

concluiacuteram o ensino fundamental 104 disseram ter sido semialfabetizado ou

seja sabem assinar o nome e ler e escrever muito pouco30 e 63 possuem o

ensino meacutedio completo Entre o puacuteblico na faixa etaacuteria de 30 a 50 anos

predomina o ensino meacutedio completo (532) 373 natildeo completou o ensino

meacutedio e 95 possuem apenas o ensino fundamental completo As mulheres

representam o maior percentual dentre o puacuteblico que concluiu o ensino meacutedio

Os filhos que moram na casa dos pais com idade inferior a 30 anos estatildeo

estudando a maior parte deles crianccedilas e adolescentes

Embora o tema desse subitem natildeo seja objetivo analiacutetico deste trabalho

considerei interessante inserir uma breve discussatildeo em funccedilatildeo de que durante

as entrevistas muitos depoimentos destacaram a saiacuteda dos jovens e a

permanecircncia dos casais de aposentados das regiotildees em que vivem A busca

pela continuidade dos estudos tem determinado a saiacuteda dos jovens Sem

disponibilidade de ensino superior nos municiacutepios em que moram os filhos tecircm

saiacutedo para outras regiotildees proacuteximas e contam com o estimulo dos pais para isso

Os pais alegam que natildeo tiveram oportunidade de fazer um curso superior ou

mesmo teacutecnico e que desejam isso para os filhos porque percebem que a

realidade de trabalho no campo atualmente estaacute mais difiacutecil do que em tempos

atraacutes Relataram que seus pais conseguiram criar famiacutelias grandes com maior

facilidade do que hoje obtendo renda da agricultura Realidade que segundo os

entrevistados estaacute cada vez mais distante na contemporaneidade

Para Zefa moradora de Mato Dentro Presidente Bernardes uma das

explicaccedilotildees para o baixo nuacutemero de pessoas mais novas morando na aacuterea rural

da regiatildeo decorre da divisatildeo das propriedades chegando ao ponto de natildeo ter

mais como dividi-las entre os herdeiros e explica ldquoEsse siacutetio aqui jaacute foi dividido

quando meu sogro deixou aqui para noacutes Se a gente fosse dividir para nossos

nove filhos natildeo ir dar nada entatildeo os filhos foram pra cidade achar um jeito

melhor porque na roccedila eacute tudo mais difiacutecil mesmordquo

Muitos pais ao falarem dos seus filhos jovens destacam que eles se

sentem atraiacutedos por bens e tecnologias que natildeo estatildeo disponiacuteveis no campo o

30 Percebi o constrangimento de alguns quando eu lhes explicava sobre a necessidade de assinatura dos

entrevistados ao ldquoTermo de Consentimento Livre e Esclarecidordquo do Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa

104

mais citado foi o acesso agrave internet O filho de Lola e Marcos que tem 10 anos de

idade possui um celular que soacute utiliza quando vai agrave cidade Consegue acessar

a rede por laacute com o uso da senha que um amigo disponibilizou Os filhos de

Carmem quando visitam os pais reclamam de natildeo ter como acessar a internet

no siacutetio Por outro lado os depoimentos apontaram que os filhos que moram fora

dos siacutetios natildeo tem a mesma reclamaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave comida ao contraacuterio

sentem o desejo de comer a comida tradicional que consumiam quando

moravam no local

Quando os filhos vecircm eles querem comer comida daqui eles falam que eacute ldquocomida de matildeerdquo estatildeo enjoados do que comem na cidade eles falam isso porque eacute com essa comida daqui que foram acostumados comida deles laacute na cidade tem muito tempero artificial igual esse tal de sazon (Doca moradora de Boa Vista Piranga MG 2015)

Haacute no comportamento dos filhos jovens das famiacutelias que entrevistei um

conflito de ordem cultural Desejam manter identidades culturais locais sentem

necessidade da comida da matildee da comida tradicional e de sempre que possiacutevel

visitar os pais como eacute o caso das filhas de Nilsa e Jonas de Satildeo Domingos

Porto Firme que estudam em Viccedilosa Quase todos os finais de semana visitam

os pais Por outro lado sentem falta do acesso a tecnologias e outras opccedilotildees

oferecidas a eles na cidade

Mas o outro lado tambeacutem existe Haacute o exemplo dos filhos que optam por

permanecer junto dos pais por mais tempo embora eu tenha encontrado apenas

dois casos nas famiacutelias entrevistadas Um exemplo eacute o da filha mais nova de

Nanaacute e Custoacutedio moradores de Xopotoacute em Presidente Bernardes Ela continua

morando com os pais trabalha na cidade de Presidente Bernardes e o uso de

uma moto permite que vaacute almoccedilar em casa Ela tambeacutem estuda cursa Letras na

modalidade agrave distacircncia Como natildeo possui internet em casa se dedica ao curso

nos finais de semana na casa da irmatilde casada que mora em um siacutetio localizado

muito proacuteximo agrave cidade e tem acesso agrave internet Seu objetivo depois que se

formar eacute permanecer na regiatildeo como professora na escola estadual do

municiacutepio Seu irmatildeo de 27 anos tambeacutem permanece no siacutetio Apoacutes concluir o

ensino meacutedio optou por trabalhar na agricultura junto com o pai e eacute ele quem

assumia essas atividades na ocasiatildeo da pesquisa

105

Martins (2012) discute que uma das grandes dificuldades da

modernidade para o ldquohomem comumrdquo eacute conseguir superar as irracionalidades e

as contradiccedilotildees impostas por ela que geram conflitos de ordem cultural ldquode

permanente proposiccedilatildeo da necessidade de optar entre isto e aquilo entre o novo

e fugaz de um lado e o costumeiro e tradicional de outrordquo (p 20)

A literatura sobre juventude rural como os trabalhos de Carneiro e

Castro (2007) Brumer (2007) Abramovay et al (1998) Durston (1994) entre

outros tem apontado os desafios para esse grupo etaacuterio em encontrar formas

de permanecer no campo desenvolvendo atividades de trabalho que lhes sejam

atrativas no mundo contemporacircneo Dentre os motivos que estimulam a saiacuteda e

a busca de trabalho em atividades fora da aacuterea rural estatildeo as dificuldades tanto

para conduzir quanto para obter retorno financeiramente favoraacutevel da atividade

rural e a pequena disponibilidade de terra familiar para empreender uma

atividade proacutepria e constituir famiacutelia

Como visto a literatura aponta para uma tendecircncia ao envelhecimento

e masculinizaccedilatildeo do campo Esta foi a minha percepccedilatildeo empiacuterica tambeacutem

Apesar disso eacute preciso considerar que a entrevista abrangendo 40 famiacutelias nos

trecircs municiacutepios natildeo permite classificar essa situaccedilatildeo como generalizada pois a

realidade que encontrei em relaccedilatildeo agrave faixa etaacuteria na regiatildeo pesquisada natildeo

coincide com a realidade apontada pelo IBGE (2010) em termos percentuais

como seraacute mostrado a seguir Isso poreacutem natildeo interfere nos objetivos da

pesquisa pois se trata de uma abordagem qualitativa

No grupo de 40 famiacutelias que pesquisei a populaccedilatildeo idosa eacute

predominante Encontrei um puacuteblico constituiacutedo por 24 famiacutelias cujos casais

tinham acima de 60 anos e 16 famiacutelias cujos casais tinham entre 30-50 anos

Como natildeo havia pessoas viuacutevas a proporccedilatildeo de homens e mulheres era a

mesma 50

No montante das 40 famiacutelias 20 delas possuem filhos morando na casa

dos pais Dentre eles 10 satildeo crianccedilas 08 satildeo jovens e 02 satildeo adultos Nenhum

filho casado mora com os pais Dentre os vinte filhos 08 satildeo mulheres e 12 satildeo

homens Assim o universo de pessoas que constituiacuteam as famiacutelias entrevistadas

foi de 100 pessoas o que representa apenas 048 do total da populaccedilatildeo rural

total da pesquisa do IBGE (2010) mostrado na Tabela 4

106

Assim o perfil etaacuterio do grupo pesquisado se constitui de 48 de

populaccedilatildeo idosa 34 de populaccedilatildeo adulta 8 de populaccedilatildeo jovem e 10 de

populaccedilatildeo infantil

Exceto para o perfil adulto os demais perfis etaacuterios no grupo que

pesquisei apresentam dissonacircncia em relaccedilatildeo ao perfil etaacuterio rural do IBGE

(2010) mostrado nas Tabelas 3 e 4 Pelo IBGE o perfil etaacuterio da regiatildeo se

constitui de 13 de populaccedilatildeo idosa 36 de populaccedilatildeo adulta 26 de

populaccedilatildeo jovem e 23 7 de populaccedilatildeo infantil (Tabela 5)

Tabela 5 ndash Comparativo entre perfil etaacuterio do IBGE (2010) e da pesquisa de campo 2015 ()

Fonte Populaccedilatildeo

rural 1-14 anos

() 15-29

anos () 30-59

anos ()

Acima de 60 anos

()

IBGE (2010) 20755 237 26 36 13 Pesquisa de campo (2015) 100 10 08 34 48

Fonte IBGE (2010) e Pesquisa de campo (2015)

A composiccedilatildeo de gecircnero das famiacutelias pesquisadas se aproxima muito

ao perfil dos dados do IBGE (2010) sendo o puacuteblico masculino um pouco maior

do que o puacuteblico feminino em ambos os casos (Tabela 6)

Tabela 6 ndash Comparativo da composiccedilatildeo de gecircnero do IBGE e da pesquisa de campo 2015

Fonte Populaccedilatildeo

rural Mulheres () Homens ()

IBGE (2010) 20755 481 517 Pesquisa de campo (2015) 100 48 52

Fonte IBGE (2010) e Pesquisa de campo (2015)

107

Em funccedilatildeo dos dados acima eacute possiacutevel afirmar a ocorrecircncia de um

processo de envelhecimento no grupo pesquisado natildeo sendo possiacutevel afirmar

semelhante situaccedilatildeo para toda a regiatildeo rural dos municiacutepios

462 A produccedilatildeo agriacutecola local

A produccedilatildeo agriacutecola eacute pequena mesmo naqueles siacutetios cuja produccedilatildeo

tambeacutem se destina agrave comercializaccedilatildeo A pequena produccedilatildeo de milho objetiva a

produccedilatildeo de fubaacute que possui importacircncia fundamental para a alimentaccedilatildeo das

famiacutelias e dos animais O fubaacute obtido do milho possibilita suprir as famiacutelias com

o produto que eacute utilizado na preparaccedilatildeo do angu alimento consumido

diariamente no almoccedilo e no jantar e na elaboraccedilatildeo da broa uma das principais

quitandas que eacute elaborada diariamente para abastecer a famiacutelia com a

ldquomerendardquo do cotidiano e para ter o que oferecer agraves visitas que chegarem de

surpresa

A cana tambeacutem atende agraves necessidades alimentares animais Apenas

em um siacutetio ela eacute usada para fabricaccedilatildeo de cachaccedila e em outros dois na

fabricaccedilatildeo de rapadura e melado

As principais atividades geradoras de renda das famiacutelias pesquisadas

satildeo leite carvatildeo cafeacute feijatildeo e cachaccedila As famiacutelias que produzem para

comercializaccedilatildeo praticam de duas a trecircs atividades ao mesmo tempo leite e

carvatildeo cafeacute e feijatildeo consorciados e carvatildeo leite e cafeacute Apenas uma famiacutelia

produz cachaccedila para comercializaccedilatildeo e tem nessa atividade uma importante

fonte geradora de renda Nos demais siacutetios cuja produccedilatildeo se destina apenas ao

autoconsumo a produccedilatildeo se baseia em milho feijatildeo leguminosas hortaliccedilas

frutas frangos e porcos caipiras

No Quadro 2 eacute apresentada a origem da renda das famiacutelias Entre

aquelas em que a aposentadoria eacute a uacutenica fonte de renda a produccedilatildeo agriacutecola

se destina apenas para o autoconsumo Naquelas em que a aposentadoria e a

atividade agriacutecola estatildeo presentes a produccedilatildeo eacute administrada por um filho seja

casado ou solteiro mas a maior parte eacute casada e mora proacuteximo aos pais Eacute

importante ressaltar que satildeo sempre os filhos homens que exercem tal funccedilatildeo

Para os pais a presenccedila dos filhos por perto assumindo os trabalhos eacute fator

positivo pois leva-os a se sentir mais tranquilos

108

Quadro 2 ndash Fonte de renda das famiacutelias pesquisadas 2015

Fonte Nordm de famiacutelias

Apenas aposentadoria 14 350

Aposentadoria e atividade agropecuaacuteria no siacutetio 10 250

Atividade agropecuaacuteria no siacutetio e outra 09 225

Atividade agropecuaacuteria 07 175

Total de famiacutelias 40 1000

Fonte Pesquisa de campo 2015

Nas famiacutelias em que a renda eacute obtida da atividade agriacutecola e de outra

fonte a maior parte desta uacuteltima eacute gerada pelo trabalho das mulheres (889)

envolvidas nas seguintes atividades serventes e merendeiras nas escolas rurais

(Marina Ivone e Juliana)31 servente na escola da cidade (Solange) diarista em

casas proacuteximas (Arminda) Haacute tambeacutem aquelas mulheres que utilizam atividades

em casa como eacute o caso de Nilsa Marcelina e Ivone que produzem quitandas e

salgados para vender no entorno ou na cidade proacutexima e Nanaacute que trabalha

como costureira32 Na outra situaccedilatildeo trata-se de uma famiacutelia que possui um

pequeno comeacutercio na comunidade fora do siacutetio onde vive

463 Atividades cotidianas de trabalho nos siacutetios

A maior parte de meus interlocutores foi composta por mulheres e

mesmo quando os homens estavam presentes elas eram as mais ativas no

diaacutelogo Assim muitas das informaccedilotildees sobre o trabalho do cotidiano estatildeo

atreladas agrave realidade vivenciada por elas

Naquelas famiacutelias cuja renda eacute apenas a atividade agropecuaacuteria o

trabalho envolve tambeacutem a mulher e os filhos que estejam morando com os pais

As mulheres se envolvem em todas as atividades seja na lavoura de feijatildeo na

colheita de cafeacute na limpeza do suiacuteno abatido como eacute o caso de Lola (41 anos

31 Marina Ivone Marcelina e Nilsa satildeo moradoras de Porto Firme Arminda e Juliana de Piranga Nanaacute e

Solange de Presidente Bernardes 32 Em duas famiacutelias haacute filhas solteiras (uma em cada famiacutelia) que trabalham fora do siacutetio mas informaram

que suas rendas natildeo contribuem necessariamente para complementar a dos pais

109

moradora de Xopotoacute em Presidente Bernardes) ou na atividade leiteira e do

carvatildeo como eacute o caso de Neiva (39 anos moradora de Posses em Porto Firme)

que fez questatildeo de mostrar a suas unhas ainda manchadas do trabalho na

carvoaria no dia anterior

Mesmo as mulheres que trabalham fora dos siacutetios satildeo unacircnimes em

afirmar que continuam sendo agricultoras jaacute que continuam a exercer a funccedilatildeo

de cuidados da casa ndash incluindo aqueles referentes agrave alimentaccedilatildeo ndash assim como

as atividades agriacutecolas no quintal principalmente nos cuidados com a horta

ldquoSou diarista mas sou agricultora tambeacutemeu cuido da horta da casa mas

quando precisa de fazer algum trabalho na roccedila eu vou mas natildeo vou muitordquo

informou Arminda moradora de Mestre Campos em Piranga

Ivone (38 anos Posses ndash Porto Firme) se envolve muito com todas as

atividades do siacutetio As manhatildes satildeo passadas na escola da comunidade onde eacute

cantineira mas ao chegar em casa no iniacutecio da tarde se junta ao marido para o

trabalho na atividade leiteira na colheita na lavoura e tambeacutem na atividade da

carvoaria Costuma ainda receber encomendas de quitandas vindas da cidade

de Porto Firme e de acordo com o tempo disponiacutevel atende aos pedidos

Observei pelos depoimentos que o trabalho com a horta natildeo eacute visto

como uma atividade agriacutecola Ela eacute percebida como extensatildeo do quintal e da

cozinha e portanto estaacute atrelada aos elementos da casa Trabalhar na roccedila

para eles significa o serviccedilo de capina de roccedilar o milho o feijatildeo colher cafeacute

etc Nos siacutetios em que estive as hortas em sua maioria tambeacutem eram muito

proacuteximas agrave cozinha

As atividades de trabalho cotidiano das mulheres satildeo muito

diversificadas como jaacute visto Envolvem os cuidados da casa do quintal da horta

a alimentaccedilatildeo da famiacutelia atividade leiteira de roccedilado e carvoaria e em alguns

casos trabalho externo ou natildeo ao siacutetio que lhes garantem renda proacutepria

Marcelina (34 anos Satildeo Domingos ndash Porto Firme) diz ter encontrado na

culinaacuteria remunerada motivos para a famiacutelia desistir de se mudar para a cidade

Haacute pouco mais de um ano sua famiacutelia esteve prestes a se mudar para Viccedilosa

em busca de trabalho assalariado O principal motivo eacute que Marcelina natildeo estava

satisfeita com suas atividades no campo As considerava exaustiva mas eram

necessaacuterias para aumentar a renda do casal que era obtida principalmente da

atividade leiteira mas que por ser dividida entre outras duas famiacutelias de irmatildeos

110

do marido ndash que tambeacutem moram na propriedade que pertenceu aos pais ndash

originava uma renda insuficiente para manter sua famiacutelia Uma iniciativa poreacutem

trouxe oportunidade de o casal repensar a saiacuteda do campo A irmatilde de Marcelina

que reside em Viccedilosa produz salgados que satildeo vendidos em bares da periferia

da cidade Marcelina por insistecircncia da irmatilde aprendeu as teacutecnicas de produccedilatildeo

de salgados e passou a produzi-los e vende-los para bares da zona rural de

Porto Firme e Guaraciaba Na ocasiatildeo da pesquisa um ano depois de iniciar

esse trabalho ela conseguiu comprar um freezer novo com a renda dos

salgados o que lhe permitiu aumentar a produccedilatildeo Os salgados satildeo vendidos

na forma congelada e a entrega eacute feita pelo marido de moto Ela compartilhou

essa experiecircncia como sendo muito satisfatoacuteria em sua vida e da famiacutelia Afirmou

que esse foi o principal motivo de eles terem permanecido no campo

Agora o trabalho eacute muito melhor natildeo preciso trabalhar debaixo do sol ardendo natildeo tenho mais dor nas costas trabalho em casa perto dos meninos posso dar o almoccedilo para eles e ver quando eles chegam da escola antes meu marido eacute que tinha que esquentar o almoccedilo e dar para eles (Marcelina moradora de Satildeo DomingosPorto Firme MG 2015)

A experiecircncia de Marcelina sinaliza uma situaccedilatildeo nova na regiatildeo

pesquisada que eacute a produccedilatildeo de alimentos congelados diretamente para

abastecer bares e vendas no meio rural Estaacute presente nesta realidade a

inserccedilatildeo de elementos modernos o trabalho desenvolvido por Marcelina que eacute

uma novidade tambeacutem para ela pois precisou aprender a preparar esse tipo de

alimento a partir de meacutetodos baacutesicos de congelamento de alimentos e a utilizar

o freezer Outro aspecto de modernizaccedilatildeo se refere ao uso da moto como veiacuteculo

para fazer a entrega dos produtos que por sua vez eacute realizada pelo marido

agricultor ao final do dia apoacutes finalizar os trabalhos do siacutetio Por outro lado a

proacutepria famiacutelia pouco consome os produtos congelados feitos por Marcelina por

natildeo fazer parte do haacutebito alimentar da famiacutelia que permanece com preferecircncia

pela comida tradicional ldquoEles natildeo pedem os salgadosnatildeo ligamagraves vezes eu

ateacute faccedilo uns pra gente experimentar e ver como ficourdquo pondera Marcelina

Percebi que essa famiacutelia estaacute buscando se adaptar agraves novas estruturas e

dinacircmicas da sociedade no sentido discutido por Carneiro (1998) incorporando

elementos modernos importantes para sua reproduccedilatildeo sem contudo

abandonar o meio rural e abrir matildeo de suas praacuteticas alimentares tradicionais

111

Chama a atenccedilatildeo tambeacutem nessa experiecircncia o fato de haver consumo no meio

rural para os salgados congelados pelo menos pelos frequentadores dos bares

ou ldquovendasrdquo onde Marcelina fornece seus produtos Isso aponta que se os

congelados natildeo fazem parte do consumo domeacutestico das famiacutelias haacute um espaccedilo

para seu consumo nos bares (ldquovendasrdquo) da regiatildeo

Vemos na situaccedilatildeo exposta aqui um modo de vida tradicional agregando

fragmentos do moderno sem contudo converter-se a ele como discutido por

Martins (2012) percepccedilatildeo semelhante a apresentada por Carneiro (1998)

Os estudos sobre perspectivas e possibilidades para se pensar os rumos

de um novo rural brasileiro ou um rural reinventado vecircm sendo desenvolvidos

por autores como Wanderley (2000 e 2010) e Carneiro (1998 2005 e 2012) em

seus grupos de pesquisa Uma das discussotildees diz respeito agraves novas estrateacutegias

e possibilidades no campo que natildeo sejam necessariamente agriacutecolas como eacute o

caso do turismo do artesanato da agroinduacutestria etc

O cotidiano das mulheres que trabalham fora do siacutetio envolve mais de

uma jornada de atividades que se inicia antes das 600 da manhatilde e segue ateacute agrave

noite apoacutes o jantar ser servido e a louccedila ser lavada No capiacutetulo anterior introduzi

a discussatildeo sobre a dupla jornada de trabalho das mulheres tambeacutem no meio

rural apresentando as pesquisas de Panzutti (2006) com agricultoras no interior

de Satildeo Paulo e de Zanetti assim como as pesquisas de Menasche (2007) com

agricultoras do Sul Ainda sobre essa temaacutetica no sul do paiacutes haacute os trabalhos de

pesquisa de Paulilo et al (2003) e de De Grandi (2003) Analisando os casos

das mulheres da regiatildeo que pesquisei as caracteriacutesticas satildeo muitos

semelhantes agraves descritas pelas pesquisadoras ao estudarem outras regiotildees

O trabalho domeacutestico da mulher eacute considerado infinitamente elaacutestico uma vez que ela transita por ambos os espaccedilos o da produccedilatildeo e o da reproduccedilatildeo o que demonstra que haacute uma flexibilizaccedilatildeo das atividades consideradas produtivas o que natildeo acontece com as atividades reprodutivas e domeacutesticas (DE GRANDI 2003 p 40)

Em outra pesquisa neste caso em uma regiatildeo accedilucareira do Nordeste

do Brasil Heredia et al (1984) discutem a divisatildeo de gecircnero existente na

execuccedilatildeo do trabalho da produccedilatildeo rural Apontam o roccedilado como o lugar do

homem e como o espaccedilo de trabalho da mulher a casa envolvendo a sua

organizaccedilatildeo e a elaboraccedilatildeo da comida para a famiacutelia Mas tambeacutem indicam que

apesar da divisatildeo existem etapas do roccedilado onde a mulher atua como na

112

semeadura e limpeza ao redor das mudas No entanto o contraacuterio natildeo ocorre

como apontam Heredia et al (1984) e Woortmann (1985) Em suas pesquisas

natildeo foi registrado participaccedilatildeo masculina nos trabalhos voltados agrave organizaccedilatildeo

da casa e da elaboraccedilatildeo das refeiccedilotildees destinadas agrave famiacutelia Tampouco em

minha pesquisa identifiquei essa situaccedilatildeo pois satildeo atividades exercidas

basicamente pelas mulheres

Poreacutem encontrei na minha pesquisa uma sinalizaccedilatildeo de que mudanccedilas

ainda que tiacutemidas estatildeo ocorrendo na regiatildeo analisada e isso implica

diretamente nas praacuteticas alimentares Em depoimentos de duas famiacutelias as

mulheres e os maridos que estavam presentes durante a conversa falaram da

participaccedilatildeo destes na preparaccedilatildeo do almoccedilo O primeiro caso eacute o de Marcelina

e Luiz Durante um tempo quando Marcelina trabalhava como diarista Luiz (39

anos Satildeo Domingos ndash Porto Firme) que tem seu trabalho principal na atividade

leiteira assumiu a funccedilatildeo de alimentar os filhos Marcelina deixava o almoccedilo

adiantado quase pronto mas cabia a ele concluir algumas coisas aquecer a

comida e servi-la aos filhos O outro caso eacute o de Marina e Rui Marina sai de

casa cedo com as filhas para a escola onde trabalha como cozinheira Ela deixa

jaacute pronto o arroz e a carne restando ao marido e ao filho jovem temperar o feijatildeo

e refogar a verdura

Esses exemplos apontam para a necessidade de adaptaccedilatildeo agrave realidade

das mulheres rurais que buscam espaccedilos de trabalho remunerado fora dos siacutetios

onde moram e que contam com o apoio dos maridos pelo menos nas

experiecircncias que conheci em campo Os conflitos que permeiam esses ajustes

familiares se por ventura existirem natildeo foram declarados pelos interlocutores

Ao contraacuterio tanto mulheres quanto homens ao falarem sobre o assunto

expressaram naturalidade diante da situaccedilatildeo Eacute importante considerar que a

renda proveniente do trabalho feminino eacute usada para cobrir despesas familiares

e agraves vezes ateacute para cobrir pequenos custos de produccedilatildeo agriacutecola como relata

Solange (30 anos Itapeva - Presidente Bernardes) que trabalha como servente

em uma escola ldquoEu ganho um salaacuterio miacutenimo mas com esse dinheiro eu compro

coisas para a casa para mim e para minha menina ah eacute uma preocupaccedilatildeo a

menos jaacute aconteceu de ter que comprar adubo e pagar veterinaacuterio que veio ver

as vacasrdquo

113

As famiacutelias formadas por aposentados que representam a maioria nesta

pesquisa tecircm uma realidade cotidiana de trabalho que eacute menos ativa Executam

menos atividades no siacutetio embora natildeo deixem de trabalhar Ao falarem de seu

cotidiano os homens disseram que quase natildeo executam mais atividades

agriacutecolas como capina e roccedilado Fazem uma ou outra atividade como cuidar do

paiol do galinheiro da horta preparar a comida para dar aos porcos Fazem isso

ldquopara natildeo ficar parado de tudordquo conforme justificou Neacutelio (morador de Satildeo

Domingos em Porto Firme) Os homens afirmaram se sentirem desconfortaacuteveis

quando natildeo realizam algum trabalho no dia apenas evitam serviccedilos que exijam

grande esforccedilo fiacutesico

No caso das mulheres mais velhas elas continuam se responsabilizando

pela elaboraccedilatildeo das refeiccedilotildees e de todas as outras atividades domeacutesticas aleacutem

do cuidado com a horta e o quintal o que faz com que seu dia seja mais

dinacircmico Aleacutem do preparo das refeiccedilotildees elaboram tambeacutem cotidianamente

quitandas como broas e rosquinhas o que seraacute visto no proacuteximo capiacutetulo

114

5 CULTURA E PRAacuteTICAS ALIMENTARES NO SISTEMA FAMILIAR RURAL RELACcedilOtildeES COM A COMIDA PERMANEcircNCIAS E MUDANCcedilAS

ldquoA arte da cozinha eacute a mais brasileira de nossas artes A mais expressiva do nosso caraacuteter e a mais impregnada do nosso passadordquo

(Gilberto Freyre 1968)

Os toacutepicos de discussatildeo deste capiacutetulo estatildeo subdivididos nos seguintes

temas A discussatildeo sobre a comida considerada como ldquoforterdquo e a classificaccedilatildeo

da comida como cultura e como fator de necessidade fisioloacutegica as mudanccedilas

em curso na nos haacutebitos alimentares o papel ocupado pelo milho e seus

derivados na culinaacuteria cotidiana das famiacutelias a comida do cotidiano a comida

dos dias de festa e as relaccedilotildees de comensalidade nesses contextos os

alimentos comprados e os alimentos cultivados nos siacutetios as permanecircncias de

consumo e as mudanccedilas com a inserccedilatildeo de novos alimentos a mescla cultural

alimentar do tradicional com o moderno as manifestaccedilotildees de perpetuaccedilatildeo

tradicional na elaboraccedilatildeo das quitandas e as suas funccedilotildees no passado e no

presente nas praacuteticas alimentares do grupo pesquisado e por fim a oralidade

no saber fazer e na transmissatildeo das receitas

51 Comida ldquoforterdquo e comida ldquofraca contradiccedilotildees mudanccedilas e permanecircn-cias

Percebi nos depoimentos dos interlocutores a existecircncia de

categorizaccedilatildeo da comida entre ldquoforterdquo e ldquofracardquo Comida forte eacute aquela que

ldquosustentardquo sendo capaz de permitir um intervalo maior entre as refeiccedilotildees e ao

mesmo tempo executar as atividades mais pesadas sem sentir ldquofraquezardquo fiacutesica

Para eles isso tem a ver com a loacutegica de trabalho ou seja o objetivo eacute natildeo

precisar interromper as atividades com frequecircncia para se alimentar Os horaacuterios

apontados para as refeiccedilotildees satildeo cafeacute da manhatilde entre 530 e 600 merenda33

entre 830 e 900 almoccedilo entre 1100 e 1130 merenda da tarde entre 1430 e

1500 e jantar entre 630 e 1900 Em algumas famiacutelias foi citada a ldquomerenda da

noiterdquo que eacute feita pouco antes de dormir

33 ldquoMerendardquo eacute o termo que todos usam para se referir ao que se come nos intervalos entre o cafeacute da

manhatilde e o almoccedilo e entre o almoccedilo e o jantar e agrave noite antes de dormir

115

As informaccedilotildees relativas aos horaacuterios satildeo semelhantes para todas as

famiacutelias inclusive os aposentados disseram manter o ritual de acordar cedo

ainda que suas atividades de trabalho natildeo sejam mais intensas como no

passado

A percepccedilatildeo sobre ldquocomida forterdquo das famiacutelias se assemelha agravequela

discutida por Brandatildeo (1981) em sua pesquisa com agricultores em Goiacircnia O

autor aponta que para o grupo que pesquisou a relaccedilatildeo fortefraco que

atribuiacuteam agrave comida estava diretamente ligada agrave capacidade desse alimento em

garantir ao agricultor maior tempo de trabalho sem sentir fome

Homem forte eacute o homem sadio e resistente para o trabalho A comida forte eacute a que ldquotem sustanccedilardquo cujos efeitos satildeo reconhecidos de dois modos a) na sua capacidade de manter o trabalhador ldquoalimentadordquo por mais tempo sem vontade de comer de novo b) no seu poder de produzir e de conservar mais energia para a atividade braccedilal Eacute neste sentido que a ldquocomida forterdquo equivale ao ldquoalimentordquo categoria de que se exclui a ldquocomida fracardquo (BRANDAcircO 1981 p 109-110)

Para meus interlocutores comida forte eacute principalmente aquela feita com

gordura suiacutena Essa observaccedilatildeo eacute feita em contraposiccedilatildeo ao oacuteleo vegetal que eacute

um produto considerado ldquofracordquo e portanto natildeo oferece a ldquosustanccedila34rdquo desejada

por eles

Para quem trabalha na roccedila a comida feita com oacuteleo natildeo daacute muita sustanccedila A pessoa fica com fome fica meio fraco logo depois A gordura de porco segura mais (Maria 66 anos moradora do Coacuterrego de Itapeva Presidente Bernardes MG 2015)

Aqui se fizer a comida com oacuteleo a barriga comeccedila a roncar rapidinho o oacuteleo eacute fraco natildeo sustenta a gordura de porco eacute forte no serviccedilo que a gente mexe assim que eacute pesado tem de comer comida que sustenta (Carlos 49 anos morador de Posses Porto Firme MG 2015)

Sahlins (2003) ao discutir sobre a categoria de ldquoforccedilardquo atribuiacuteda a

comida relata que algumas culturas destacando a norte americana tem na

carne essa representaccedilatildeo fazendo dela um alimento baacutesico em sua dieta Pela

mesma razatildeo eacute grande consumidora de bacon No puacuteblico da pesquisa a

representaccedilatildeo da gordura e da carne tem uma aproximaccedilatildeo ao que eacute discutido

pelo autor por se tratar de alimento de origem animal como responsaacutevel pela

ldquoforccedilardquo Poreacutem a relaccedilatildeo de forccedila para consumo de carne e de bacon na cultura

34 O termo eacute a forma popular dada a ldquosubstacircnciardquo A capacidade de um alimento dar forccedila energia e

sustentar a fome

116

norte americana estaacute atrelada agrave fator socioeconocircmico como siacutembolo de riqueza

Para o grupo pesquisado a forccedila estaacute atrelada agrave capacidade que a gordura de

porco tem de ampliar o tempo de saciedade mas tambeacutem pelo paladar que

confere agrave comida Neste uacuteltimo aspecto ou seja o da preferecircncia pelo sabor da

gordura se comparada ao oacuteleo Essa preferecircncia eacute tambeacutem justificada pela razatildeo

praacutetica do uso da gordura que eacute o de ser um alimento mais forte e o que melhor

daacute sustentaccedilatildeo

Zaluar (1979) observou a importacircncia da classificaccedilatildeo da comida em

estudo com comunidade de baixa renda na aacuterea urbana Descreve que o grupo

classifica alimentos que consideram como ldquocomidasrdquo porque conferem

saciedade (carne gordura de porco arroz feijatildeo e macarratildeo) e alimentos que

apenas ldquoenganam a fomerdquo (saladas frutas verduras peixe etc) servindo para

o grupo apenas como complemento Nesta classificaccedilatildeo haacute uma diferenccedila do

conceito de comida que se difere de alimento atribuiacuteda por DaMatta (1987)

Tanto no caso do grupo pesquisado por Zaluar na aacuterea urbana quanto no grupo

que pesquisei em aacuterea rural a razatildeo praacutetica para classificar alimentos como

forte estaacute associada agrave necessidade de garantir condiccedilotildees fisioloacutegicas no tempo

dedicado ao trabalho pesado

No grupo que pesquisei visando facilitar o consumo da gordura mais da

metade das famiacutelias cria suiacutenos para essa finalidade Engordam um animal de

cada vez Em apenas uma dessas famiacutelias cria-se um nuacutemero maior para

comercializaccedilatildeo do animal

Haacute um ditado que diz que ldquodo porco soacute natildeo se aproveita o gritordquo pois eacute

possiacutevel usar tambeacutem o intestino para envolver as massas de linguiccedilas e

chouriccedilos o peacute o rabo a orelha e o focinho para feijoada a pele para fazer

torresmo Natildeo eacute difiacutecil entender porque a criaccedilatildeo dos suiacutenos caipiras demonstrou

ser tatildeo importante no grupo pesquisado A alimentaccedilatildeo dos porcos pode ser

produzida nos proacuteprios siacutetios como o fubaacute a cana de accediluacutecar a silagem de

mandioca e ateacute aboacuteboras e batatas doces cozidas misturadas ao fubaacute Nos siacutetios

que visitei o mais usado era o fubaacute

Segundo os agricultores que ldquoengordam o capadordquo35 o animal eacute abatido

sempre que a gordura acaba mas mata-se tambeacutem em veacutespera de festas como

35 Termo que escutei com frequecircncia durante a pesquisa Trata-se do porco castrado destinado agrave engorda

117

natal e ano novo e ainda em casamentos e demais festividades que acontecem

na aacuterea rural Em 2012 na festa de bodas de ouro dos sogros de Lola moradores

da comunidade de Xopotoacute em Presidente Bernardes parte da criaccedilatildeo existente

no siacutetio foi abatida Segundo Lola ldquomatamos dois capados de 17 arrobas e mais

de 15 galinhas caipirasa carne de boi noacutes compramosah e muita linguiccedila

tambeacutemrdquo Da mesma forma Eliana (69 anos moradora de Itapeva em

Presidente Bernardes) compartilhou que para a sua festa de bodas de ouro com

Saturnino ocorrida em junho de 2014 no quintal da casa a famiacutelia matou dois

suiacutenos e aproximadamente 10 frangos caipiras

No cotidiano das famiacutelias engordar um porco no quintal tem a funccedilatildeo

tanto de obter a gordura (banha) como a carne que na maioria das casas eacute

conservada na gordura O que mais ocorre eacute a carne acabar primeiro do que a

gordura Se em tempos passados usar a gordura para conservar as carnes era

uma necessidade jaacute que natildeo havia geladeira atualmente esse haacutebito permanece

por razotildees culturais e tambeacutem pelo sabor diferenciado prevalecendo assim seu

consumo como apontado no depoimento de Laeacutercio 68 anos

Mesmo tendo geladeira a gente ainda conserva a carne na gordura de porco tempera a carne hoje amanhatilde a gente cozinha e frita um pouco quando ela estaacute coradinha a gente potildee na gordura e ela pode ficar ateacute 3 4 meses na gordura natildeo estraga natildeo Uma parte a gente ateacute potildee na geladeira e congela mas natildeo eacute gostoso igual natildeo Muda muito com o frango eacute a mesma coisa Se a gente arruma ele para comer logo depois que mata o sabor eacute um se congela quando vai comer depois eacute outro gosto Natildeo fica bom (Laeacutercio morador de Itapeva em Presidente Bernardes MG 2015)

Tambeacutem na aacuterea urbana o consumo da gordura de porco tem suas

ramificaccedilotildees Natildeo raro eacute possiacutevel verificar em lojas especializadas em produtos

artesanais em Minas Gerais principalmente em lanchonetes de beira de estrada

e pequenos armazeacutens a venda do chamado ldquoporco na latardquo

O sabor conferido agrave comida foi constantemente relacionado com a

gordura suiacutena Os interlocutores deixaram transparecer em suas falas que a

apreciaccedilatildeo do sabor da comida refogada na gordura tem suas raiacutezes no gosto

herdado de geraccedilotildees passadas Cresceram comendo dessa forma Todos

afirmaram preferir o sabor da comida preparada na gordura agrave que eacute feita no oacuteleo

principalmente a verdura o feijatildeo e o arroz como declara Afonso (79 anos

morador de Ribeiratildeo em Presidente Bernardes) ldquoPara mim a verdura tem que

ser feita na gorduraa couve na gordura tem outro saborrdquo e Gilberto (75 anos

118

morador de Manja em Piranga) ldquoA comida feita na gordura de porco eacute mais

saborosa a gente jaacute acostumou com o sabor a couve feita no oacuteleo fica lisa na

gordura ela fica suculentardquo

A gordura eacute usada principalmente para refogar36 hortaliccedilas legumes e

feijatildeo Todos as famiacutelias apreciam a couve refogada na gorduraldquoDeus o livre

de comer uma verdura feita com oacuteleo natildeo fica gostoso do mesmo jeitordquo

Verdura eacute o termo utilizado pelos interlocutores para todos os produtos derivados

da horta inclusive os legumes Encontramos em Frieiro (1982) a explicaccedilatildeo

sobre essa heranccedila cultural

Eacute de recente data o uso de gorduras vegetais alimentiacutecias Antes natildeo era assim a gordura geralmente usada era a de toucinho a banha de porco Os dois alimentos de maior importacircncia para a gente mineira sempre foram o feijatildeo e o toucinho Feijatildeo eacute que escora a casa diz um ditado popular Sim e o toucinho daacute substacircncia ao feijatildeo podia agregar-se Sem a banha que o tempera seria comestiacutevel ldquoo feijatildeo nosso de cada diardquo A comida tradicional dos mineiros nada em banha de porco Dos assados e frituras de todos os guisados e ensopados das sopas dos molhos e farofas pinga a gordura em que satildeo preparados (FRIEIRO 1982 p 156)

Garcia (2013) discute a relaccedilatildeo de comportamentos culturais associados

agrave alimentaccedilatildeo afirmando que a heranccedila do gosto por certo tipo de comida e pela

forma de preparaccedilatildeo eacute responsaacutevel na maioria das vezes pela resistecircncia em

adotar praacuteticas novas e experimentar comidas diferentes e aceitar novos sabores

e texturas ao paladar tradicional Uma das razotildees para a couve permanecer

como verdura predileta do cotidiano natildeo eacute apenas por ser a hortaliccedila mais

resistente da horta mas principalmente pela sua preparaccedilatildeo combinada com a

gordura de porco Essa forma de preparaccedilatildeo compreende aquele ldquosistema

culinaacuteriordquo tratado por Poulain (2013 e 2014) e Fischler (1979 e 1995) que

envolvem regras determinantes (crenccedilas valores siacutembolos representaccedilotildees e

haacutebitos) na escolha preparo e consumo de alguns alimentos O que Sahlins

(2003) chama de ldquorazotildees culturaisrdquo que envolvem o haacutebito alimentar Essa

discussatildeo de sistema culinaacuterio se aplica tambeacutem a outras praacuteticas tradicionais

que fazem parte do grupo pesquisado como a tradiccedilatildeo de fazer as proacuteprias

quitandas mais consumidas

36 Refogar segundo Cacircmara Cascudo (2004 p 522) significa ldquoferver na gordurardquo

119

A estrateacutegia de quem natildeo tem essa criaccedilatildeo no siacutetio eacute comprar a gordura

produzida pelos vizinhos ou mesmo no accedilougue da cidade Eacute comum ocorrer o

abate em parceria familiar ou com a participaccedilatildeo de vizinhos proacuteximos com a

distribuiccedilatildeo entre eles das partes do animal mesmo porque para o abate satildeo

necessaacuterias pelo menos trecircs pessoas segundo a explicaccedilatildeo de Lola O sistema

de partilha no abate de suiacutenos eacute tradicional em muitas aacutereas rurais brasileiras e

uma heranccedila dos portugueses Moura (2013) em seu interessante livro sobre a

tradiccedilatildeo dos embutidos e da produccedilatildeo de suiacuteno caipira na regiatildeo de Traacutes-os-

Montes e Auto Douro em Portugal mostra que os procedimentos de criaccedilatildeo

matanccedila e distribuiccedilatildeo das carnes se assemelham muito agraves que ocorrem no meio

rural brasileiro Tambeacutem Cacircndido (1982) relata em sua pesquisa como se dava

o processo relativo agrave distribuiccedilatildeo da carne suiacutena e de caccedila entre os caipiras

paulistas

Segundo os velhos desde sempre eacute haacutebito ndash quase se diria ndash instituiccedilatildeo a oferta daqueles tipos de carne aos vizinhos imediatos que moram agrave vista ou constituem uma unidade vicinal Quando se mata um porco ou uma caccedila envia-se um pedaccedilo a cada vizinho () Do ponto de vista alimentar essa praacutetica funciona como uma forma de regularizaccedilatildeo do abastecimento caacuterneo jaacute que cada um mata um porco de tempos em tempos (CAcircNDIDO 1982 p 163-164)

Compreendo que este contexto de sociabilidade entre vizinhos eou

familiares que envolve tambeacutem doar ou receber uma parte do animal se

assemelha agrave relaccedilatildeo ldquodaacutediva-trocardquo discutida por Mauss (2003) como forma de

manter a sociabilidade os laccedilos e a dependecircncia reciacuteproca entre os grupos No

caso de vizinhos que ajudam na atividade quando aquele que recebeu vier a

matar o seu animal a reciprocidade ocorreraacute ou seja ele doaraacute ao outro vizinho

parte do animal O que tambeacutem se aproxima do que Cacircndido (1982) discute

sobre a informalidade e obrigaccedilatildeo moral que compotildee as relaccedilotildees de mutiratildeo no

meio rural

Mas haacute nesse sistema algo mais do que simplesmente uma troca de

favor como no entendimento de Mauss (2003) de que a daacutediva natildeo eacute meramente

uma retribuiccedilatildeo formal ou proveniente de um contrato verbal Ela se constitui em

uma relaccedilatildeo que envolve respeito e um tipo de acordo que eacute simboacutelico tanto

assim que a parte da carne a ser doada eacute escolhida pelo doador sem nenhum

acordo anterior

120

Apesar do sabor da gordura de porco ser preferido ao oacuteleo em todas as

famiacutelias em algumas esse consumo tem sido reduzido como nas famiacutelias de

Zefa e Armando e de Maria e Laeacutercio Nos dois casos haacute restriccedilotildees alimentares

para os filhos que satildeo transplantados renais37 Em funccedilatildeo disso os pais jaacute

aposentados optaram pela reduccedilatildeo do consumo de gordura de porco e outros

alimentos gordurosos Disseram que por um tempo tentaram acompanhar

totalmente a dieta dos filhos mas natildeo conseguiram sucesso por sentirem falta

tanto da gordura quanto da carne suiacutena Assim a comida tem sido preparada de

forma separada Como esse preparo separado eacute mais trabalhoso Zefa 67 anos

e o marido 75 anos continuam no esforccedilo de adaptaccedilatildeo ao consumo do oacuteleo

demonstrando solidariedade ao filho 42 anos cuja abstinecircncia alimentar tem

sido difiacutecil

Os outros dois casos de restriccedilatildeo agrave gordura de porco satildeo de mulheres

que demonstraram preocupaccedilatildeo com a sauacutede embora natildeo tenham apontado

nenhum problema especifico Relacionam o consumo da gordura como

prejudicial e em funccedilatildeo disso tambeacutem tecircm tentado reduzir o seu consumo Nilsa

(42 anos moradora de Satildeo Domingos em Porto Firme) justificou ldquoTodo mundo

fala que gordura de porco faz mal para a sauacutederdquo Na sua famiacutelia tem havido

resistecircncia por parte do marido que natildeo abre matildeo da carne de porco e da verdura

refogada na gordura Embora ela admita preferir o sabor da comida com a

gordura de porco acredita que para ter uma qualidade de vida melhor devem

abrir matildeo de seu consumo O marido discorda da esposa natildeo abrindo matildeo do

consumo da gordura e nem da carne de porco A diminuiccedilatildeo tem ocorrido com

dificuldade e tem gerado algum tipo de conflito sobre as escolhas alimentares

deste casal que mora sozinho pois os filhos estudam em outras cidades

O depoimento acima de Nilsa estaacute relacionado agraves divulgaccedilotildees sobre

sauacutede em programas de televisatildeo matinais que ela informou assistir de vez em

quando enquanto cuida dos afazeres da casa Informaccedilotildees sobre pesquisas de

alimentos e sobre sauacutede tecircm sido divulgadas frequentemente pelos meios de

comunicaccedilatildeo O risco de tais informaccedilotildees eacute confundir as pessoas quando natildeo

se faz uma reflexatildeo sobre o assunto Para o consumidor leigo o resultado de

37 Interessante a coincidecircncia de haver dois adultos jovens do sexo masculino com problemas renais e que

passaram por transplante Ambas famiacutelias pertencem agrave mesma comunidade mas natildeo haacute grau de parentesco entre eles

121

uma pesquisa divulgada em meios de comunicaccedilatildeo pode dar uma ideia

distorcida sobre o consumo de um alimento No caso de Nilsa ela demonstrou

considerar que o consumo de gordura de porco prejudica a sauacutede de sua famiacutelia

baseado no que ldquoescuta dizerrdquo Ainda assim houve um momento da conversa

em que ela ponderou criticamente ldquoAgora eu natildeo sei porque faz malnossos

pais e avoacutes a vida inteira comeram comida com gordura e natildeo sei de nenhum

deles que ficou doente por causa dissordquo

Em relaccedilatildeo agrave carne vermelha e a gordura principalmente o bacon e

outras carnes processadas a Organizaccedilatildeo Mundial de Sauacutede (OMS) acaba de

publicar o relatoacuterio do International Agency for Research on Cancer (IARC)38

sobre a associaccedilatildeo do consumo desses alimentos ao cacircncer de intestino O

resultado da pesquisa foi amplamente divulgado por jornais de televisatildeo e na

internet Eacute constante a divulgaccedilatildeo de novas pesquisas de alimentos associados

agrave sauacutede repassar esta informaccedilatildeo eacute funccedilatildeo da OMS como pondera Contreras

(2015) No entanto vaacuterios alimentos jaacute foram apontados como vilotildees da sauacutede

e tempos depois a partir de novas pesquisas deixaram de ser Em funccedilatildeo disso

Fischler (2015) denomina essa situaccedilatildeo como uma espeacutecie de cacofonia sobre

o tema da comida jaacute que o conhecimento cientiacutefico eacute dinacircmico e passiacutevel de

sofrer alteraccedilotildees e cita o exemplo do cafeacute que foi classificado como canceriacutegeno

para depois ser considerado como siacutembolo de longevidade

Profissionais de sauacutede e socioacutelogos da alimentaccedilatildeo tecircm se manifestado

publicamente a respeito da divulgaccedilatildeo recente sobre a carne vermelha Alertam

para o risco que uma leitura apressada sobre o assunto possa gerar ao comedor

fazendo com que abandone por completo o consumo de carne e com isso

apresente problemas de outra natureza por carecircncia de proteiacutenas por exemplo

Destacam a necessidade de relativizar e discutir mais sobre o quanto se come

de um determinado alimento O que natildeo se deve eacute ldquodemonizar alimentosrdquo

pondera Rivera (2015) para natildeo gerar pacircnico desnecessaacuterio nos consumidores

ldquoEs necesaria una estrategia de comunicacioacuten que explique bien las

conclusiones de un informe sin caer en el dramardquo esclarece o antropoacutelogo Xavier

Medina (2015) Para a antropoacuteloga Vilagrave (2015) falar dos riscos agrave sauacutede causado

por alimentos que fazem parte da cultura alimentar de boa parte da populaccedilatildeo

38 Disponiacutevel em httpwwwiarcfrenmedia-centrepr2015pdfspr240_Spdf Acesso em 28 out 2015

122

mundial eacute assunto que merece muito cuidado Assim defende que o mais

interessante seria divulgar que as pessoas sem quadro de doenccedilas podem

comer de tudo mas sempre com moderaccedilatildeo

Outra famiacutelia entrevistada a de Carmem (48 anos moradora de Jacuba

em Porto Firme) tem optado por reduzir o consumo de vaacuterios alimentos aos

quais sempre esteve habituada em funccedilatildeo da dieta de emagrecimento por

recomendaccedilatildeo profissional Assim abriu matildeo da carne e da gordura de porco

de alimentos que contenham gluacuteten do leite de vaca e seus derivados Como no

caso anterior seu marido tambeacutem natildeo adotou a mesma dieta A diferenccedila eacute que

ela prepara separadamente a comida do casal39 No dia a dia Carmem tem uma

atividade de trabalho pesada cuida da casa da horta prepara todas as

refeiccedilotildees tira leite lava o curral varre o quintal em torno da casa ndash atividade que

estava fazendo quando cheguei em sua casa pela manhatilde Ela reclama que sente

fome mas ainda assim estaacute resistindo e seguindo a restriccedilatildeo alimentar

Eu agora soacute posso tomar leite de soja com biscoito de polvilho de manhatilde cedo ai eu tomo isso mas eu tenho que tirar leite muito cedo quando eu acabo eu jaacute estou morrendo de fome aquilo natildeo sustenta ai eu vou comer a mesma coisa de novo Natildeo eu faccedilo um mingau de fubaacute natildeo fica gostoso como como o com leite de vaca mas ajuda a esperar o almoccedilo (Carmem 48 anos moradora de Jacuba em Porto Firme MG 2015)

Nossa conversa continuou na cozinha onde a observei preparando as

comidas separadas Almoccedilamos agraves 1130 Comi a mesma comida feita para o

marido arroz feijatildeo couve carne de porco cozida e meio frita angu e moranga

Carmem comeu moranga com feijatildeo que cozinhou separadamente sem

gordura e sem oacuteleo temperados com sal e alho ovo frito e couve refogada no

oacuteleo de soja

Carmem demonstrou ansiedade em relaccedilatildeo ao que comer ao longo do

dia sendo que parte dessa preocupaccedilatildeo estaacute presente em seu depoimento

acima A outra ansiedade foi demonstrada pela dificuldade em obter resultados

satisfatoacuterios em relaccedilatildeo agrave perda de peso Ela precisa fazer a dieta mas ao

mesmo tempo precisa se sentir ldquoforterdquo para realizar os trabalhos no siacutetio A

situaccedilatildeo vivenciada por ela estaacute relacionada agrave discussatildeo feita por Arnaiz (2005) e

Fischler (1995 e 2015) sobre a ansiedade do comedor contemporacircneo Para os

39 Seus filhos tambeacutem estudam e moram em outras cidades

123

autores eacute cada vez mais difiacutecil saber o que se estaacute comendo e eacute tambeacutem mais

complexo fazer escolhas alimentares No processo de escolha o alimento

precisa ser de boa aparecircncia e qualidade ter baixas calorias natildeo fazer mal agrave

sauacutede natildeo ser caro Aleacutem disso o autor menciona a necessidade de

identificaccedilatildeo do alimento se identificar com a opccedilatildeo moral do comedor por

exemplo seu cultivo natildeo deve ser prejudicial ao meio ambiente natildeo deve utilizar

matildeo de obra escrava etc Tudo isso gera ansiedade na escolha do que comer

Dessa forma Fischler (1995 e 2015) defende que uma nova patologia estaacute

surgindo para aquelas pessoas obcecadas por dieta a ortorexia nervosa que

tem como uma de suas caracteriacutesticas o fato de uma pessoa passar mais de trecircs

horas diaacuterias preocupada com o que vai comer40

Haacute ainda o caso da famiacutelia de Joatildeo e Marli (81 e 72 anos

respectivamente aposentados moradores de Aacutegua Lima em Porto Firme) Em

seu siacutetio a atividade leiteira gera renda para o casal mas sobretudo para o filho

que administra a atividade e mora na cidade A famiacutelia optou por abandonar a

criaccedilatildeo extensiva de suiacutenos porque escutava falar ldquoque a gordura faz mal ao

coraccedilatildeordquo Em funccedilatildeo disso o consumo foi reduzido acreditando natildeo compensar

manter a criaccedilatildeo Aleacutem disso segundo Joatildeo antes havia muitos filhos em casa

para alimentar assim ldquoengordar o porcordquo era mais barato do que comprar a

carne e a gordura Embora tenham reduzido o uso da gordura de porco natildeo a

retiraram da dieta por completo Compram no accedilougue e ela continua sendo

usada dois dias na semana aproximadamente Como criam gado costuma-se

matar um animal e assim o consumo de carne de boi natildeo eacute raro nesta famiacutelia

como o eacute nas outras O depoimento de Joatildeo a seguir chama a atenccedilatildeo para o

fubaacute assunto que seraacute discutido no toacutepico especiacutefico mais agrave frente nesse

trabalho e essa parte de seu depoimento seraacute retomado na discussatildeo A

dificuldade de acessar o uacutenico moinho drsquoaacutegua existente na regiatildeo tambeacutem foi um

motivo que levou a famiacutelia a desistir da criaccedilatildeo dos suiacutenos

Eu engordava porco mas os meacutedicos estatildeo proibindo a gente de comer gordura ai nem engordo mais porco natildeoquando daacute vontade a gente compra um toucinho a carne compra sempre Tambeacutem natildeo compensa engordar natildeo porque o moinho de fazer fubaacute pra porco eacute longe daqui e esses fubaacutes moiacutedos nessas maquinas de hoje (eleacutetrica) nem os porcos gostam muito sabe a gente ateacute que tem um moinho

40 Mais informaccedilotildees sobre esse assunto ver Martins et al (2011)

124

bem pequeno aqui mas eacute soacute pra moer o milho para gente fazer angu e broa (Joatildeo morador de Aacutegua Limpa em Porto Firme MG 2015)

As situaccedilotildees das cinco famiacutelias citadas acima sinalizam o quanto mudar

o haacutebito alimentar e abrir matildeo do costume e do gosto aprendido eacute uma tarefa

difiacutecil mesmo que o apelo para isso seja a sauacutede principalmente quando o

alimento em questatildeo estaacute relacionado a uma atividade produtiva que tambeacutem

possui um apego tradicional como eacute o caso do porco caipira Para Bourdieu

(2007) formaccedilatildeo do gosto e a construccedilatildeo do haacutebito alimentar que eacute algo

aprendido na convivecircncia social sendo a famiacutelia o principal grupo de

aprendizado De Garine (1987) discute que em funccedilatildeo do haacutebito alimentar estar

ligado aos costumes herdados de geraccedilotildees passadas a mudanccedila de uma

alimentaccedilatildeo mais tradicional para uma industrializada natildeo ocorre facilmente

tampouco se daacute de maneira raacutepida Eacute um processo lento e que encontra

resistecircncia do comedor o quanto for possiacutevel

O oacuteleo vegetal eacute um desses exemplos de resistecircncia mas que aos

poucos se insere nas praacuteticas alimentares das famiacutelias Seu uso estaacute presente

em quase todas as casas pesquisadas exceto na famiacutelia de Eliana e Saturnino

que natildeo se adaptaram ao seu consumo para o preparo de nenhum alimento que

consomem no dia a dia No restante das famiacutelias o oacuteleo tem sido usado com

parcimocircnia principalmente para algumas frituras conforme os relatos a seguir

ldquoPorque o oacuteleo deixa a batata mais bonita e mais sequinha o peixe tambeacutem fica

melhor mais crocanterdquo (Margarida 74 anos moradora de Xopotoacute em Presidente

Bernardes) ldquoo arroz fica mais soltordquo (Luisa 57 anos moradora de Bom Retiro

em Porto Firme) ldquonatildeo uso mais gordura para fritar batata doce natildeo soacute oacuteleo

ateacute para lavar a panela eacute mais faacutecilrdquo (Juliana 48 anos moradora de Tatu em

Piranga)

Apesar da preferecircncia pela gordura suiacutena o oacuteleo vegetal tem dividido

espaccedilo com a gordura de porco no sistema culinaacuterio das famiacutelias Nestes casos

eacute um exemplo da possibilidade de introduccedilatildeo de um produto industrializado na

alimentaccedilatildeo sem que tenha sido necessaacuterio abrir matildeo radicalmente de um

produto tradicional excetuados os casos onde haacute restriccedilatildeo alimentar como jaacute

citado

O apego ao sabor e agrave crenccedila na capacidade de sustentaccedilatildeo alimentar

gerada pelo uso da gordura de porco faz com que seu consumo permaneccedila

125

como prioritaacuterio nas famiacutelias Poreacutem novos haacutebitos podem ser aprendidos

conforme argumenta Nevot (2011) Para este autor as mudanccedilas de haacutebitos

alimentares na sociedade atual satildeo permanentes Quanto mais novidades

alimentares emergem com novas tecnologias de produccedilatildeo novas informaccedilotildees

sobre os alimentos satildeo fornecidas ampliando a possibilidade de mudanccedilas de

haacutebitos Surge a necessidade de se aprender cada vez mais a escolher o que

comer Se por um lado herdamos haacutebitos alimentares as circunstacircncias nos

fazem adquirir outros novos

Por outro lado o excesso de novidades alimentares faz com que alguns

alimentos tradicionais sejam colocados em questatildeo gerando a anguacutestia

alimentar do comedor contemporacircneo apontada por Fischler (1995 2011 e

2015) No caso da gordura de porco de um lado estaacute um alimento habitual que

eacute heranccedila cultural tradicional e repassado oralmente por avoacutes e pais um

alimento considerado importante ldquoforterdquo de paladar agradaacutevel e que natildeo era

visto como prejudicial agrave sauacutede dos seus antepassados De outro lado existe a

preocupaccedilatildeo gerada nos tempos atuais que indica o mesmo alimento como

maleacutefico agrave sauacutede e portanto a ser evitado e substituiacutedo por um produto de fonte

vegetal e industrializado o oacuteleo

No grupo pesquisado a questatildeo relacionada agrave origem do oacuteleo vegetal

natildeo surgiu como preocupaccedilatildeo Nenhum interlocutor tocou no assunto da

transgenia associado a esse produto por exemplo Apenas destacaram como

pouco saudaacutevel o consumo da gordura do porco Por outro lado a opccedilatildeo da

maioria das famiacutelias em continuar a consumir a gordura de porco sinaliza uma

influecircncia mais acentuada dos fatores culturais em relaccedilatildeo aos fatores

nutricionais e cientiacuteficos na escolha dos alimentos questatildeo discutida por Garcia

(2009) e Mintz (2001)

511 Outras comidas ldquofortesrdquo

No capiacutetulo 2 utilizei Frieiro (1982) e Zemella (1951) para destacar a

importacircncia histoacuterica da criaccedilatildeo dos suiacutenos no quintal das casas com objetivo

de mitigar o problema da fome surgida durante a fase da mineraccedilatildeo em Minas

Gerais Surgiu daiacute o haacutebito de consumir a carne a gordura e o uso de outras

partes do animal adicionadas ao feijatildeo que se constituiacutea em alimento de grande

126

valor energeacutetico e proteico muito usado em funccedilatildeo disso como alimento dos

escravos Dessa mistura surgiu o que hoje conhecemos como feijoada O feijatildeo

foi tatildeo importante quanto o milho a mandioca a couve a gordura o toucinho e

o arroz para a manutenccedilatildeo das atividades mineradoras

No cotidiano alimentar das famiacutelias pesquisas eacute haacutebito cozinhar o feijatildeo

com toucinho que eacute tambeacutem considerado como alimento ldquoforterdquo O feijatildeo eacute item

diaacuterio nas refeiccedilotildees e seu consumo e cultivo tem laccedilos de heranccedila cultural e

histoacuterica assim como o suiacuteno caipira Apenas trecircs famiacutelias natildeo cultivam o feijatildeo

Uma parte do que eacute produzido eacute comercializada por seis famiacutelias nas demais

em 31 delas a produccedilatildeo destina-se apenas ao autoconsumo Durante a

pesquisa de campo algumas famiacutelias estavam comeccedilando a fase da colheita e

pude observar algumas pessoas no trabalho homens no geral Eacute um trabalho

difiacutecil pois eacute feita no modo tradicional arrancados agrave matildeo O trabalho das

mulheres se daacute principalmente na hora de bater e limpar o produto que seraacute

armazenado no paiol

Para aleacutem da gordura da carne suiacutena e do feijatildeo outros alimentos satildeo

considerados como sendo ldquofortesrdquo para manter o organismo bem nutrido para o

trabalho e satildeo consumidos com muita frequecircncia Satildeo eles o arroz a batata

doce a mandioca o angu e as farinhas de milho e de mandioca

O arroz consumido diariamente natildeo eacute mais produzido pelas famiacutelias

pela dificuldade que seu cultivo tem representado nos uacuteltimos anos segundo os

depoimentos de alguns dos interlocutores

Noacutes colhiacuteamos muito arroz natildeo precisava comprar mas jaacute tem uns cinco anos que a gente parou de mexer com arroz porque fica muito caro produzir do que comprar e tem os passarinhos que atacam a plantaccedilatildeo de arroz um passarinho preto que a gente chama de chupin A gente natildeo pode fazer nada contra eles porque eacute proibido mas quando chega a hora da colheita natildeo tem mais quase nada nos cachinhos de arroz (Lucio 46 anos morador de Bom Jesus do Bacalhau em Piranga MG 2015)

Ateacute uns anos atraacutes a gente plantava arroz socava no pilatildeo soacute para o consumo da famiacuteliamas comeccedilou a dar problema na uacuteltima vez que plantamos quando chegou a eacutepoca de cachear veio o sol muito forte ai natildeo saiu o cachoai resolvemos acabar com a plantaccedilatildeo (Onofre 67 anos morador de Mestre Campos em Piranga MG 2015)

Os entrevistados mencionaram uma diferenccedila no sabor e no aspecto do

arroz industrializado em comparaccedilatildeo ao que cultivavam como mostra o

depoimento de Mafalda (57 anos moradora de Ribeiratildeo em Presidente

127

Bernardes) a seguir Destacaram que o aspecto do tradicional que eles

cultivavam era mais grosseiro e amarelado e que o sabor era diferente aleacutem de

ser mais macio e poroso o que fazia com que o tempero impregnasse melhor

Por outro lado disseram que o industrializado leva menos tempo para ser cozido

Apesar de preferirem o arroz tradicional adquirir arroz no mercado atualmente

eacute mais interessante do que cultivaacute-lo levando-se em consideraccedilatildeo o custo-

benefiacutecio Mais uma vez aparecem aqui aspectos que pesam na escolha

alimentar semelhante ao que acontece com a escolha do oacuteleo vegetal e da

gordura de porco Mafalda expotildee em seu depoimento os aspectos que

considera positivos do arroz atual industrializado (ficar soltinho com a cor clara)

e os negativos (menos saboroso demora para absorver o tempero natildeo daacute a

ldquoligardquo considerada necessaacuteria na elaboraccedilatildeo do arroz doce)

Tem bastante diferenccedila O arroz que a gente colhia ele nunca ficava clarinho sempre tinhas uns gratildeos amarelos no meio poreacutem ele era um arroz mais gostoso Ele era mais macio e pegava mais o tempero Ele era melhor tambeacutem para fazer arroz doce porque ele dava mais liga Esses comprados natildeo daacute liga entatildeo o arroz de hoje natildeo eacute igual ao que a gente fazia antes Mas ele tambeacutem natildeo ficava soltinho na panela como o arroz que a gente refoga hoje Antigamente para ele ficar soltinho a gente tinha que espremer um limatildeo Hoje ficou mais faacutecil pra gente fazer (Mafalda moradora de Ribeiratildeo em Presidente Bernardes MG 2015)

Os demais alimentos considerados ldquofortesrdquo como a mandioca a batata

doce e o milho satildeo produzidos nos siacutetios e satildeo consumidos quase que

cotidianamente seja no cafeacute da manhatilde no almoccedilo e no jantar

A batata doce eacute quase sempre frita ou assada na brasa do fogatildeo a lenha

Usa-se consumi-la pela manhatilde acompanhada de cafeacute41 O mesmo ocorre em

relaccedilatildeo agrave mandioca Mas para consumo no almoccedilo e jantar o mais comum eacute

servi-la cozida ou ensopada com carne

O polvilho derivado da mandioca tambeacutem natildeo eacute mais produzido pelas

famiacutelias em todas elas esse produto agora eacute comprado O polvilho eacute usado

principalmente para fazer brevidade um tipo de bolo que eacute elaborado

esporadicamente Observei que em todas as casas haacute o consumo do biscoito de

polvilho assado poreacutem eacute tambeacutem comprado no mercado Agraves vezes se faz o

biscoito de polvilho frito mas as mulheres alegam que por espirrar muito durante

41 O cafeacute eacute feito em aacutegua adoccedilada e passado no coador de pano Natildeo vi o uso de coadores de papel em

nenhuma das casas

128

a fritura e ser bom para comer apenas por algumas horas apoacutes o preparo ele

natildeo eacute mais habitual como no passado Foi um tempo segundo as mulheres em

que sempre havia muita gente para comer e os produtos industrializados eram

parcos e caros no mercado Aleacutem disso o acesso aos mercados era mais difiacutecil

tornando necessaacuterio produzir praticamente tudo o que era destinado a

alimentaccedilatildeo das famiacutelias Os depoimentos a seguir de Anita (71 anos moradora

de Manja em Piranga) e de Lena (70 anos moradora de Ribeiratildeo em Presidente

Bernardes) tambeacutem sinalizam assim como ocorreu com o arroz que em razatildeo

da praticidade alguns modos tradicionais satildeo substituiacutedas ou passam a ser

retomados apenas em momentos especiacuteficos como naqueles que envolvem

reuniatildeo familiar e um grupo maior de pessoas nas casas Lena menciona o fato

da reduccedilatildeo do tamanho das famiacutelias quando comparadas com as famiacutelias dos

antepassados Outros entrevistados fizeram a observaccedilatildeo de que ldquoantes havia

muita gente na roccedilardquo ldquoantigamente as famiacutelias eram maioresrdquo A reduccedilatildeo do

nuacutemero de pessoas nas famiacutelias ndash na minha pesquisa o tamanho meacutedio eacute 36

pessoas por famiacutelia ndash interfere nas praacuteticas alimentares seja haacute menos pessoas

para se alimentar no dia a dia seja pelo fato de natildeo haver quem ajude na cozinha

e na elaboraccedilatildeo das quitandas Motivos que geram um certo tipo de desacircnimo

em investir em pratos mais trabalhosos que eram feitos e socializados nos

grupos familiares de antigamente

ldquoNa casa da minha matildee fazia muito polvilho Naquela eacutepoca todo mundo fazia muita brevidade agora ficou tatildeo faacutecil comprar o polvilho mas daacute muito trabalho fazer o biscoito frito e o assado natildeo eacute caro no mercado quase todo mundo prefere comprarrdquo (Anita moradora de Manja Piranga MG 2015)

ldquoEu fazia muito biscoito de polvilho frito quando os meninos eram pequenos eles gostavam Mas hoje eu quase natildeo faccedilo maissoacute se eles quando estatildeo aqui me pedem ai eu faccedilo Soacute para noacutes dois a gente compra esse do mercado mesmordquo (Lena moradora de Ribeiratildeo em Presidente Bernardes MG 2015)

Aleacutem do polvilho obtido da mandioca o milho e os seus derivados fazem

parte da cultura alimentar mineira como foi mostrado no capiacutetulo 2 a partir dos

apontamentos de Frieiro (1982) Zemella (1951) Meneses (2007) Arruda

(1999) Cacircmara Cascudo (2004) e Abdala (2007) O milho nesse periacuteodo foi

considerado mais importante do que a mandioca em funccedilatildeo de ser muito usado

tambeacutem para alimentaccedilatildeo animal conforme Meneses (2007) Com o passar dos

anos o milho assumiu lugar mais destacado do que a mandioca na culinaacuteria

129

mineira conforme Frieiro (1982) e Abdala (2007) A regiatildeo da pesquisa como jaacute

visto no referido capiacutetulo eacute uma das primeiras a serem ocupadas por ocasiatildeo da

mineraccedilatildeo em Minas Gerais Isso pode ter influenciado a permanecircncia da

tradiccedilatildeo do consumo do fubaacute que como mostrarei a seguir tem presenccedila

marcante na dieta das famiacutelias

52 Consideraccedilotildees sobre a importacircncia do milho e do fubaacute

Oraccedilatildeo ao Milho (Cora Coralina)

Fui o angu pesado e constante do escravo na exaustatildeo do eito Sou a broa grosseira e modesta do pequeno sitiante Sou a farinha econocircmica do proprietaacuterio sou a polenta do imigrante e a amiga dos que comeccedilam a vida em terra estranha Alimento de porcos e do triste mu de carga o que me planta natildeo levanta comeacutercio nem avantaja dinheiro Sou apenas a fartura generosa e despreocupada dos paioacuteis Sou o cocho abastecido donde rumina o gado Sou o canto festivo dos galos na gloacuteria do dia que amanhece Sou o cacarejo alegre das poedeiras agrave volta dos ninhos Sou a pobreza vegetal agradecida a voacutes Senhor que me fizestes necessaacuterio e humilde Sou o milho

Com exceccedilatildeo das famiacutelias de Antocircnio e Marieta e de Marilia todas as

outras cultivam o milho A produccedilatildeo eacute pequena e destinada agrave alimentaccedilatildeo

animal mas tambeacutem agrave elaboraccedilatildeo de fubaacute produzido em todos os siacutetios onde a

planta eacute cultivada Apenas uma famiacutelia possui moinho movido agrave aacutegua o restante

utiliza moinho eleacutetrico Na ocasiatildeo da pesquisa o moinho drsquoaacutegua era uma

raridade na aacuterea rural pesquisada segundo informaccedilatildeo dos entrevistados Tive

a oportunidade de ver um moinho muito antigo em funcionamento no siacutetio de

Manoel e Donana (72 e 54 anos respectivamente moradores de Limeira em

Porto Firme) (Figura 7) Este moinho tem sua estrutura feita em madeira e jaacute

apresentava sinais de sua idade com algumas peccedilas presas com arame O

trabalho eacute perfeito poreacutem lento Pertenceu aos pais de Manoel foi muito utilizado

no passado e permanece em uso para autoconsumo familiar O moinho se

localiza na margem da estrada por onde passa o coacuterrego A porta de acesso fica

130

constantemente entreaberta mas nunca houve roubo de fubaacute ou depredaccedilatildeo do

local

(a) (b)

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 7 ndash Moinho drsquoaacutegua no siacutetio de Manoel e Donana na Comunidade Limeira Porto Firme

A Figura 8 mostra o moinho eleacutetrico adotado atualmente pelas famiacutelias

O moinho da figura pertence agrave famiacutelia de Nanaacute e Custoacutedio na comunidade

Xopotoacute em Piranga Muito diferente do anterior executa o trabalho com maior

rapidez do que o de moinho drsquoaacutegua poreacutem com qualidade inferior como

apontado pelos entrevistados Neste tipo de moinho natildeo pode observar o

moinho sendo feito jaacute que ele segue direto para o pequeno silo acoplado agrave

maacutequina

Apesar da preferecircncia pelo fubaacute feito no moinho drsquoaacutegua meus

interlocutores afirmaram ter sido necessaacuteria a adaptaccedilatildeo ao moinho eleacutetrico que

se tornou mais usual principalmente em funccedilatildeo da reduccedilatildeo de aacutegua disponiacutevel

nos uacuteltimos anos Mencionaram ainda outro fator que consideram importante

para a reduccedilatildeo da utilizaccedilatildeo do moinho drsquoaacutegua Segundo eles as pessoas mais

velhas se importavam mais em manter os moinhos drsquoaacutegua por ser considerada

uma praacutetica tradicional mas quando os moinhos eleacutetricos surgiram o apelo agrave

praticidade falou mais alto e o moinho drsquoaacutegua foi perdendo espaccedilo nos siacutetios

administrados pelas geraccedilotildees mais novas

131

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 8 ndash Moinho eleacutetrico no siacutetio de Nanaacute e Custoacutedio na Comunidade Xopotoacute em Piranga

Antigamente muita gente tinha moinho drsquoaacutegua aqui mesmo tinham uns 3 ou 4 numa distacircncia de 5 Km por aquifoi acabando os velhos foram morrendo e os mais novos natildeo quiseram saber de mexer com isso natildeo (Alonso 82 anos morador de Xopotoacute em Presidente Bernardes MG 2015)

Os moinhos tocados a aacutegua ficam quase sempre mais longe da casa perto de onde corre uma aacutegua neacute O eleacutetrico pode ficar em qualquer lugar debaixo de uma coberta ou perto do paiol daacute menos trabalho e de primeiro tinha muita gente na roccedila natildeo tinha problema ter muito serviccedilo mas hoje dessa gente nova natildeo tem quase ningueacutem mais aqui (Francisco 64 anos morador de Satildeo Domingos em Porto Firme MG 2015)

A reduccedilatildeo no uso desses moinhos comeccedilou a ocorrer haacute

aproximadamente 15 anos quando ainda era possiacutevel encontrar mais facilmente

o ldquofubaacute de moinho drsquoagua para comprar Se por um lado a adoccedilatildeo do moinho

eleacutetrico facilitou o trabalho por outro o fubaacute produzido por ele sofreu alteraccedilatildeo

na textura e sabor Joatildeo (81 anos morador de Aacutegua Limpa em Porto Firme)

pondera que o fubaacute originado do moinho eleacutetrico ldquonatildeo agrada nem aos animaisrdquo

Segundo os depoimentos o fubaacute de moinho drsquoaacutegua era fino e mais

uacutemido A diferenccedila para o produto do moinho eleacutetrico eacute que ele produz um fubaacute

mais grosso e ressecado Essas caracteriacutesticas alteraram o sabor e a textura de

dois alimentos muito importantes na culinaacuteria da regiatildeo pesquisada a broa e o

132

angu Segundo as mulheres ldquoa broa de antes tinha mais ligardquo Assim para

melhorar sua textura a broa que era elaborada de puro fubaacute passou a ter a

adiccedilatildeo de uma parte de farinha de trigo

As discussotildees em torno das mudanccedilas ocasionadas no fubaacute foram

longas e contaram com participaccedilatildeo interessada de muitos homens que

culturalmente natildeo costumam a discutir assuntos culinaacuterios Talvez isso se

explique pelo fato de os produtos derivados do fubaacute serem tatildeo importantes na

alimentaccedilatildeo cotidiana de todas as famiacutelias e por ser utilizado uma maacutequina para

produzi-lo objeto considerado culturalmente como de domiacutenio masculino Em

funccedilatildeo da importacircncia desses alimentos considero interessante adicionar um

nuacutemero maior de depoimentos mesmo ciente de que em um vieacutes etnograacutefico

deve-se tomar cuidado com o excesso de depoimentos em que estejam

evidenciadas ideias semelhantes conforme observaccedilatildeo feita por Peirano (1995)

() pena que hoje quase natildeo acha mais fubaacute de moinho drsquoaacutegua o fubaacute era fininho e dava uma broa maciahoje as maacutequinas quase que torram o fubaacute A broa fica mais ou menos neacute Eu faccedilo uma broinha com rapadura que ficava muito deliciosa mesmo era quando feita com o fubaacute fino (Neuzeli 63 anos moradora de Vinte Alqueires em Porto Firme MG 2015)

A broa feita com fubaacute do moinho eleacutetrico fica muito solta o sabor da comida mudou muito taacute tudo muito mudado em tudo na roccedila (Vanilda 55 anos moradora de Mestre Campos em Piranga MG 2015)

Por ser raridade o fubaacute produzido no moinho drsquoaacutegua tem ganhado

valorizaccedilatildeo no mercado Encontrado agrave venda apenas nos mercados de produtos

artesanais o seu preccedilo eacute superior ao fubaacute industrializado Poucos produtores

colocam o produto agrave venda pois como a produccedilatildeo eacute pequena ela objetiva

atender agraves necessidades das famiacutelias como o caso de Manoel e Donana Ter

um moinho drsquoaacutegua na propriedade no periacuteodo colonial significava haver ali um

grande uso do fubaacute para diferentes funccedilotildees no local Era considerado na eacutepoca

um equipamento sofisticado segundo Andrade (2014) Atualmente ele eacute visto

como ultrapassado de trabalho lento e atividade trabalhosa perdendo seu

espaccedilo para a tecnologia oferecida pelo moinho eleacutetrico A relaccedilatildeo tradicional e

moderno referente aos moinhos reportam agraves diferentes geraccedilotildees no grupo

pesquisado Em vaacuterios depoimentos foi constante a associaccedilatildeo dos moinhos

drsquoaacutegua como objetos de desinteresse das geraccedilotildees mais novas Assim o

produto gerado pelo moinho tradicional apesar de ser preferido em termos de

133

sabor e textura natildeo eacute um argumento forte o suficiente para que seu uso se

mantenha sob os cuidados dos mais jovens

Ao tratar sobre as substituiccedilotildees dos equipamentos modernos pelos

tradicionais no preparo dos alimentos Giard (2012) discute que a mudanccedila natildeo

se daacute apenas pela substituiccedilatildeo do aparelho ou utensiacutelio mas tambeacutem da relaccedilatildeo

instrumental entre o utilizador o objeto utilizado O moinho dacuteaacutegua eacute mais

trabalhoso de ser utilizado porque se localizava distante das casas como o

exemplo daquele da famiacutelia que visitei Eacute preciso controlar o tempo e fazecirc-lo

parar de funcionar manualmente diferente do moinho eleacutetrico que desliga

sozinho Aleacutem disso a sua produccedilatildeo eacute lenta produz-se muito menos fubaacute no

moinho drsquoaacutegua do que no moinho eleacutetrico no mesmo espaccedilo de tempo Na

contemporaneidade em uma sociedade liacutequido-moderna adaptar-se agraves novas

tecnologias eacute uma forma de natildeo perder tempo como reflete Bauman (2009)

Para Giard (2012) algumas mudanccedilas nas praacuteticas alimentares satildeo inevitaacuteveis

e para usufruir as vantagens de uma cultura material eacute preciso estar pronto para

lidar com seus inconvenientes Em alguns casos a convivecircncia entre uma

praacutetica tradicional e uma moderna eacute possiacutevel mas nem sempre No caso do fubaacute

do moinho tradicional e do eleacutetrico por exemplo natildeo haacute alternativa Eacute preciso

fazer a escolha No caso do fubaacute produzido nos dois tipos de moinhos a

lembranccedila do produto tradicional ainda estaacute na memoacuteria inclusive a do paladar

como mostra a fala de Jonas

Fubaacute de moinho drsquoaacutegua eacute coisa rara demaisquando eu falo chego a sentir o gosto do bolo feito de fubaacute de antigamente e angu o angu de fubaacute de moinho drsquoaacutegua era alaranjado assim meio avermelhado hoje ele fica branco (Jonas 53 anos morador da comunidade Satildeo Domingos em Porto Firme MG 2015)

Sobre a ligaccedilatildeo entre memoacuteria e tradiccedilatildeo Giddens (2012) citando

Halbwachs (1992 p 100) diz que ldquoo passado desmorona mas soacute desvanece

na aparecircncia pois continua a existir no inconscienterdquo As observaccedilotildees sobre o

passado em que existia o moinho drsquoaacutegua foram carregadas de memoacuterias

lembranccedilas de sabores e por que natildeo de idealizaccedilatildeo Um passado que para

meus interlocutores se opotildee ao presente em vaacuterios aspectos dentre eles o

alimentar o artesanal versus o industrial ou seja ou moinho drsquoaacutegua versus o

moinho eleacutetrico Identificar e destacar a comida e os modos de fazer do passado

como no depoimento anterior de Jonas eacute um exemplo dos momentos em que

134

somos visitados pelos cheiros e sabores do passado discutido por Giard (2012)

sobre a memoacuteria afetiva e do quanto o presente e o passado se entrelaccedilam no

imaginaacuterio das pessoas quando se trata de falar sobre comida Para Moulin

(1975 apud GIARD 2012) o tipo de comida preferida de uma pessoa eacute sempre

o mesmo ou muito semelhante agravequele dos pais

Em suma noacutes comemos o que nossa matildee nos ensinou a comer Gostamos daquilo que ela gostava do doce ou do salgado da geleia de manhatilde ou dos cereais do chaacute ou do cafeacute de tal forma que eacute mais loacutegico acreditar que comemos nossas lembranccedilas as mais seguras temperadas de ternuras e de ritos que marcaram nossa primeira infacircncia (MOULIN apud GIARD 2012 p 251)

Depoimentos semelhantes agravequele dado por Vanilda sobre as mudanccedilas

relacionadas agrave comida ldquoo sabor da comida mudou muito estaacute tudo muito

mudado em tudo na roccedilardquo me conduziam a perguntar O que mudou na comida

As respostas dos interlocutores foram no sentido de apontar aqueles alimentos

que eram comuns para eles no passado na infacircncia e juventude e que jaacute natildeo

satildeo mais facilmente encontrados Aleacutem da gordura animal que jaacute foi discutida o

fubaacute tambeacutem permanece no cotidiano Mesmo natildeo sendo mais aquele preferido

produzido no moinho drsquoaacutegua ainda continua presente em vaacuterias elaboraccedilotildees de

quitandas principalmente na broa e no angu alimento que eacute consumido

diariamente pelas famiacutelias

O angu mineiro possui uma mistura simples fubaacute e aacutegua No capiacutetulo 2

mostrei que esse alimento natildeo usava sal pois era um produto raro na regiatildeo

mineradora e portanto caro

Outra maneira de consumir o angu aleacutem daquela servida em almoccedilo e

jantar foi apontada pelas famiacutelias como sendo muito apreciada pelos mais

velhos Eacute o angu adicionado ao leite e sal formando um mingau grosso

geralmente se comia assim na merenda usando a sobra do angu

Antigamente a merenda mais comumisso quando eu ainda era solteira era leite com angu no leite quente ou frio agraves vezes quando me daacute saudade de comer ai eu faccedilo quando a gente era crianccedila tinha sempre (Mercecircs 41 anos moradora de Bom Jesus do Bacalhau em Piranga MG 2015)

O curau doce agrave base de milho foi citado como uma iguaria feita em dias

festivos como no Natal O mingau salgado que tambeacutem eacute a base de fubaacute eacute muito

consumido principalmente em dias frios Trata-se do ldquomingau de couverdquo ou

135

ldquobambaacute de couverdquo Este prato eacute assim como a canjiquinha de milho um dos

caldos preferidos

A canjiquinha e o mingau de couve a gente faz muito aquimas quando estaacute muito calor natildeo neacute Porque eacute para comer bem quentinho que eacute gostoso eu tambeacutem faccedilo quando a comida do almoccedilo eacute pouca para o jantar ai a gente costuma jantar uma sopa coloca muita couve e cebolinha vocecirc natildeo conhece essas comidas natildeo neacute42 (Selma 68 anos moradora de Tatu em Piranga MG 2015)

Outro derivado do milho que jaacute foi muito consumido mas que raramente

eacute elaborado hoje eacute o cuscuz doce agrave base de fubaacute accediluacutecar aacutegua e queijo43 Esse

tipo de cuscuz segundo ele pode ser comido puro com cafeacute ou com leite Um

doce que segundo os interlocutores pode ser comido com colher por ter a

consistecircncia de uma farofa grossa Apesar de ser doce ele possui queijo na

mistura e que tambeacutem era preferencialmente consumido nas merendas

Geralmente eacute feito em uma panela proacutepria o cuscuzeiro mas as mulheres

disseram que nem todos tinham o cuscuzeiro por isso se fazia em uma panela

dentro de outra com aacutegua semelhante agrave teacutecnica do banho maria O cuscuz

salgado natildeo foi citado e quando perguntei sobre ele disseram natildeo ser conhecido

na regiatildeo

Antocircnio 78 anos que aleacutem de agricultor teve uma pequena padaria em

Piranga haacute deacutecadas atraacutes foi dentre os homens entrevistados o que se

mostrou mais interessado em culinaacuteria e relatou algumas de suas experiecircncias

como padeiro e sobre as quitandas patildees e bolos que fazia Contou

detalhadamente como era o cuscuz que fazia Ao compartilhar sua experiecircncia

e reviver as lembranccedilas de eacutepocas passadas Antonio demonstrou emoccedilatildeo pois

esse era um alimento que sentia prazer em fazer e em degustar Ele guarda as

receitas de tudo que fazia na memoacuteria revelando a importacircncia que a padaria

teve em sua vida

O cuscuz natildeo eacute mais elaborado pelas famiacutelias como antes porque eacute

possiacutevel encontrar outros alimentos que os substituem e porque alguns

alimentos permaneceram como haacutebitos cotidianos como os bolos broas que

42 Eu tambeacutem era constantemente ldquoentrevistadardquo por eles Respondi que conheccedilo os dois pratos e que

gosto muito de ambos 43 O queijo usado em muitos ingredientes e consumidos no dia a dia eacute produzido por todas as 34 famiacutelias

(85) que tem atividade leiteira nos siacutetios mas a produccedilatildeo do queijo eacute basicamente para autoconsumo Jaacute a manteiga eacute um produto menos comum de ser fabricado atualmente pelo trabalho de sua produccedilatildeo Mas eacute um alimento que permanece como haacutebito alimentar Compra-se a industrializada ou de vizinhos que porventura fabriquem

136

satildeo feitas em casa e caso contraacuterio satildeo facilmente encontradas no mercado

Segundo Giard (2012) uma explicaccedilatildeo para o abandono de algumas praacuteticas

passadas na culinaacuteria estaacute nas mudanccedilas das provisotildees e ofertas no mercado

Nesse caso ldquopermanece apenas a lembranccedila interiorizada dos sabores antigosrdquo

(p 274) como eacute o caso das recordaccedilotildees de Antonio sobre o cuscuz que fazia

com frequecircncia no passado e que tinha muita aceitaccedilatildeo de seus clientes da

padaria

Uma coisa que eu jaacute fiz muito e que vocecirc natildeo deve nem nunca ter ouvido falar Cuscuz torrado Veja bem natildeo eacute cuscuz cozido no vapor natildeo eacute assado O cuscuz torrado eu fazia assim Socava no pilatildeo 1 quilo e meio de fubaacute 34 de rapadura uma pitada de sal socava ateacute que desmanchava e ficava um beiju sabe Ai levava na focircrma peneirava quando enchia apertava bem cortava e punha no forno brando para torraroh Mas ficava uma coisa fora do comum Jaacute vendi demais isso aqui por essas bandas depois que eu parei de fazer nunca mais eu vi Ele esfarinhava na hora de comervocecirc conhece paccediloca A consistecircncia era parecida com a paccediloca de amendoim (Antonio 78 anos morador de Boa Vista em Piranga MG 2015)

Segundo Cacircmara Cascudo (2004) o cuscuz eacute originaacuterio dos Mouros na

Aacutefrica (Egito a Marrocos) e se escreve originalmente ldquokuz-kuzrdquo Agrave base de arroz

farinha de trigo ou sorgo passou a ser feito de milho com o avanccedilo do cultivo da

plantam do a partir do seacuteculo XVI Mas tanto os africanos quanto os portugueses

jaacute conheciam o cuscuz quando chegaram ao Brasil se em Portugal era

considerado prato aristocraacutetico em final do seacuteculo XVII ldquoNo Brasil pela

humildade do fabrico era manutenccedilatildeo de famiacutelias pobres julgava-se lsquocomida de

negrosrsquo trazida pelos escravosrdquo (p 190)

A pesquisa mostrou que o fubaacute assume posiccedilatildeo de destaque no

cotidiano alimentar das famiacutelias Aleacutem de alimento considerado ldquoforterdquo guarda

tambeacutem um significativo papel cultural as recordaccedilotildees de alimentos que eram

elaborados antes e que natildeo se fazem mais os modos de moer o fubaacute de antes

e de agora interagem com os lugares de emoccedilatildeo relacionados agrave comida Ao

lembrar de como um alimento ou uma praacutetica ocorria acontece tambeacutem o

resgate daqueles que o faziam ou seja dos ldquoguardiatildees da tradiccedilatildeordquo dos quais

nos falam Giddens (2012) e Simsom (2003) A razatildeo alegada para explicar o

porquecirc de alguns alimentos do passado que faziam parte da merenda terem

deixado de ser consumidos como o angu com leite e o cuscuz foi que na

contemporaneidade existem muitas opccedilotildees de merenda que a opccedilatildeo passa a

137

ser pela praticidade neste caso Satildeo alimentos a serem feitos quando se sente

vontade de comecirc-los No cotidiano eacute a broa que assumiu o lugar das outras

merendas agrave base de milho justamente pela rapidez de sua elaboraccedilatildeo

53 Comida de todo dia comida de festa e as relaccedilotildees de comensalidade

531 Comida de todo dia o trivial

Aqui na roccedila falando a verdade o que a gente come mesmo eacute angu arroz feijatildeo e uma verdura (Afonso 79 anos morador de Ribeiratildeo em Presidente Bernardes MG 2015)

A comida de todo dia eacute angu ateacute mesmo para alimentar os animais (cachorro gato galinha) couve arroz feijatildeo e uma carne quase sempre de porco (Ana Luisa 45 anos moradora de Bom Jesus do Bacalhau em Piranga MG 2015)

Destaco o iniacutecio do item com dois depoimentos porque eles sintetizam o

que eacute a comida cotidiana das famiacutelias pesquisadas inclusive naquelas famiacutelias

que possuem crianccedilas adolescente e jovens embora eu tenha conversado com

apenas cinco jovens que se encontravam no siacutetio na ocasiatildeo da entrevista

Segundo os meus interlocutores os pais cultivam nos filhos os seus haacutebitos

alimentares ao manter o mesmo tipo de alimentaccedilatildeo para adultos e crianccedilas

Assim pelo menos em casa dos pais a comida natildeo varia em funccedilatildeo de outras

preferecircncias alimentares e segundo as informaccedilotildees natildeo ocorre disparidades

nesse sentido

Em todas as famiacutelias quatro alimentos estatildeo presentes no almoccedilo de

todos os dias da semana angu arroz feijatildeo ovo ou carne e verdura refogada

em gordura de porco Mesmo havendo variaccedilatildeo para a verdura como serralha

almeiratildeo e mostarda a couve eacute a mais consumida na contemporaneidade assim

era tambeacutem no periacuteodo da mineraccedilatildeo e da ruralizaccedilatildeo

Todas as famiacutelias tecircm hortas nos quintais algumas bem cuidadas e com

grande variedade de plantas outras fragilizadas e com poucos cultivos A

estiagem do periacuteodo foi a grande responsaacutevel pelas ldquohortas fracasrdquo mas em

todas elas havia couve Em uma horta por exemplo havia apenas couve

cebolinha salsa quiabo e jiloacute As hortaliccedilas e ldquocheiro verderdquo mais presentes eram

a couve a serralha a mostarda o almeiratildeo a alface a cebolinha de folha a

138

salsa o manjericatildeo e a hortelatilde Uma hortaliccedila comum na culinaacuteria mineira a

taioba estava presente em poucas hortas Segundo as mulheres por ser

periacuteodo de estiagem a produccedilatildeo dessa hortaliccedila estava prejudicada pois

necessita de muita umidade

Frieiro (1982) Magalhatildees (2004) e Arruda (1990) tratam da importacircncia

que o cultivo da horta teve para a regiatildeo mineradora em Minas Gerais numa fase

de escassez de alimentos Ela era cultivada nos quintais de todas as casas para

garantir o acesso nas refeiccedilotildees agraves fontes de legumes frutas hortaliccedilas e

tubeacuterculos Passado a fase da escassez alimentar na regiatildeo mineradora de

Minas as hortas permaneceram sendo cultivadas Atualmente cultivar a horta

natildeo se daacute mais por carecircncia alimentar jaacute que o acesso agrave compra no mercado eacute

possiacutevel e a baixo custo Mas eacute importante para os entrevistados ter o prazer de

colher a hortaliccedila fresca pouco antes de preparar a refeiccedilatildeo As razotildees satildeo

sobretudo culturais e simboacutelicas para manter a tradiccedilatildeo como no caso das

famiacutelias que pesquisei Ter uma horta ldquobonitardquo eacute motivo de orgulho Maria (66

anos moradora de Itapeva Presidente Bernardes) enquanto mostrava e falava

com tristeza de sua horta que estava sofrendo com a estiagem comentou

ldquominha horta estaacute mirrada feiaparecendo ateacute horta de gente preguiccedilosardquo

Outro motivo para a importacircncia da horta para as famiacutelias pesquisadas eacute a

certeza da qualidade do alimento que cultiva As famiacutelias demonstraram

preocupaccedilatildeo com o uso de agrotoacutexico e natildeo sentem seguranccedila na aquisiccedilatildeo de

alimentos in natura que agraves vezes precisam adquirir no mercado

Os demais vegetais cultivados pelas famiacutelias pesquisadas satildeo aboacutebora

moranga batata doce mandioca inhame chuchu jiloacute quiabo berinjela e tomate

do mato Esses vegetais satildeo produzidos em todas as hortas e muito consumidos

nas refeiccedilotildees diaacuterias A exceccedilatildeo eacute para o tomate que natildeo eacute habito de consumo

local Esporadicamente consomem o tomate que chamam de ldquotomate do matordquo

que nascem naturalmente sem precisar cultivar O principal motivo para natildeo

cultivarem e natildeo consumirem o tomate eacute a necessidade de utilizar muito

inseticida Evitam o maacuteximo o uso de agrotoacutexico nos produtos cultivados no siacutetio

mas natildeo conseguem deixar de usaacute-lo no milho para substituir o roccedilado manual

com a enxada e tambeacutem no feijatildeo armazenado Eacute interessante que esse receio

natildeo os impede de consumir a massa de tomate na macarronada dos domingos

139

Vegetais como cenoura beterraba batata baroa berinjela couve-flor

broacutecolis repolho cebola de cabeccedila e alho satildeo produzidos por poucas famiacutelias

Mas a cebola e o alho jaacute foram cultivados com frequecircncia na regiatildeo No siacutetio de

Maria e Laeacutercio em Itapeva Presidente Bernardes as hortaliccedilas estavam muito

fragilizadas e havia pouquiacutessimas plantas basicamente couve quiabo e

cebolinha mas ela mostrou orgulhosa sua colheita de cebola de cabeccedila e alho

que estava no paiol (Figura 9) dois produtos que natildeo satildeo cultivados por todas

as famiacutelias embora muito consumidas A cebola de cabeccedila por exemplo era

um produto comprado no comeacutercio da comunidade pela maioria das famiacutelias

Isso aponta para a importacircncia que tem para essa famiacutelia a produccedilatildeo de

alimentos que consomem no dia a dia Percebi na conversa com Maria e Laeacutercio

a valorizaccedilatildeo dada agrave produccedilatildeo para autoconsumo Em funccedilatildeo disso o lamento

pela ausecircncia de chuvas foi muito presente durante o diaacutelogo

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 9 ndash Cebolas e alhos armazenados no paiol do siacutetio de Maria e Laeacutercio na comunidade Itapeva em Presidente Bernardes

A pesquisa ocorreu em periacuteodo de colheita do amendoim cultivadas por

quase todas as famiacutelias basicamente para autoconsumo embora uma delas

tenha produzido o suficiente para comercializar Tive a oportunidade de em uma

delas acompanhar parte da colheita e ateacute experimentar arrancar a planta do

chatildeo Algumas mulheres disseram que iriam aproveitar para fazer peacute-de-

moleque A rapadura teria que ser comprada no mercado da cidade jaacute que natildeo

140

eacute mais produzida no siacutetio e em toda a regiatildeo eacute um produto pouco encontrado

Das famiacutelias que entrevistei apenas trecircs produziam rapadura e melado No

periacuteodo de campo a cana estava sendo toda utilizada para alimentaccedilatildeo do gado

A horta de Eliana e Saturnino (69 e 75 anos respectivamente) tambeacutem

de Itapeva Presidente Bernardes (Figura 10) eacute bem diversificada e bem cuidada

Eliana que gosta de cultivar plantas medicinais me mostrou uma delas e

perguntou ldquoVocecirc conhece o remeacutedio ldquoVickrdquo Olhe ele aqui eu tenho plantado

cheire uma folha muita gente aqui de perto vem buscar para tratar a gripe

chiado no peito sempre tratei a gripe dos meus filhos com elardquo Mariacutelia (62

anos moradora de Mestre Campos Piranga) tambeacutem possui uma horta muito

rica e com grande variedade de plantas medicinais Tanto ela quanto Eliana se

mostraram detentoras do conhecimento tradicional dos cultivos e das funccedilotildees

terapecircuticas das ervas medicinais e disseram ter aprendido com as matildees e avoacutes

Apesar de eu eleger as hortas das famiacutelias de Eliana e de Mariacutelia como as

melhores encontrar hortas bem cuidadas e diversificadas foi comum durante a

pesquisa Haacute uma preocupaccedilatildeo especial das mulheres em mantecirc-las produtivas

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 10 ndash Horta no siacutetio de Eliana e Saturnino em Itapeva Presidente Bernardes MG

Os vegetais produzidos nos siacutetios das famiacutelias satildeo aqueles consumidos

nas refeiccedilotildees diaacuterias No dia a dia raramente algum produto vegetal eacute comprado

no mercado exceto quando se deseja algum legume ldquodiferenterdquo como dizem O

periacuteodo de estiagem tambeacutem interfere nisso devido ao fato de que algumas

141

plantas satildeo menos resistentes agrave seca prolongada Durante o periacuteodo da

pesquisa isso ocorria em relaccedilatildeo a alface que natildeo eacute uma hortaliccedila consumida

com frequecircncia pois a preferecircncia eacute pelas verduras que podem ser refogadas

A batata inglesa tambeacutem eacute um produto muito raro na dieta dessas famiacutelias

passa-se meses sem consumi-la a preferecircncia eacute pela batata doce bem como o

inhame e a mandioca

Percebi que a alimentaccedilatildeo cotidiana das famiacutelias eacute muito semelhante

agravequela da fase da mineraccedilatildeo e ruralizaccedilatildeo descritas pelos autores que utilizei no

capiacutetulo como Frieiro (1982) Magalhatildees (2004) Arruda (1990) e Torres (2011)

A tradiccedilatildeo se perpetuou na regiatildeo sem grandes modificaccedilotildees Os mesmos

cultivos nas hortas as mesmas praacuteticas alimentares satildeo mantidas embora

novidades sejam inseridas como a panela eleacutetrica de fazer arroz que seraacute

discutida mais agrave frente

Outra hortaliccedila muito comum na culinaacuteria mineira o ora-pro-noacutebis ou

lobrobrocirc estava presente em quase todas as hortas embora seu consumo natildeo

seja cotidiano como as demais jaacute citadas Embora natildeo seja uma hortaliccedila muito

apreciada encontrei uma crianccedila que prefere o ora-pro-noacutebis agrave couve Ao

perguntar agrave Marcelina e Luiz moradores de Satildeo Domingos em Porto Firme

sobre as verduras que cultivavam e quais eram as mais consumidas

imediatamente o filho Faacutebio de 9 anos acrescentou ldquolobrobocirc taiobardquo

Perguntei-lhe entatildeo se gostava de verduras e ele confirmou Segundo a matildee

ldquoele adora todas as verduras lobrobrocirc ele come as folhas ateacute cruas e taioba e

folha de batata doce ele tambeacutem adora pede para eu fazer com angu e carne

de frangordquo Lola de Presidente Bernardes compartilhou situaccedilatildeo semelhante

sobre seu filho Andreacute de 10 anos O filho aprecia suco de couve (mais que os

refrigerantes) ldquoEles satildeo assim porque natildeo foram acostumados com isso

sempre ensinei que essas coisas fazem mal pra genterdquo

Conhecer o gosto destas duas crianccedilas por verduras e saber que esse

gosto estaacute atrelado aos haacutebitos alimentares dos pais nos conduz mais uma vez

agrave discussatildeo sobre heranccedila dos haacutebitos e gosto alimentar jaacute discutido no capiacutetulo

anterior Na casa dos pais de Faacutebio e tambeacutem em sua escola rural a presenccedila

de verduras de todos os tipos de acordo com a sazonalidade eacute comum Desde

muito novos os filhos deste casal foram introduzidos nos haacutebitos alimentares dos

pais Natildeo haacute o haacutebito familiar de consumir refrigerante que soacute eacute comprado para

142

a casa em dias de festa As bebidas do dia a dia da famiacutelia satildeo aacutegua e suco de

fruta da estaccedilatildeo Insisti em saber se era uma preocupaccedilatildeo com a sauacutede e a

resposta foi que a sauacutede vem como consequecircncia Para eles a prioridade eacute

consumir alimentos que produzem no local e evitar gastos com alimentaccedilatildeo no

mercado Aleacutem disso eacute a comida que estatildeo acostumados

Natildeo tive a oportunidade de conversar com outras crianccedilas durante a

entrevista mas tive depoimentos dos pais a respeito dos haacutebitos alimentares dos

filhos quando eram crianccedilas e que ainda sendo adolescentes manteacutem haacutebitos

alimentares muito parecidos com os dos pais Haacute o caso por exemplo dos filhos

de Antonina (74 anos moradora de Bananeiras em Presidente Bernardes

Antonina) que moram em Satildeo Paulo e que mesmo sendo adultos quando

visitam os pais nas feacuterias pedem para a matildee fazer ldquoa comida que eles estavam

acostumados a comer quando eram pequenosrdquo Esta fala coincide com a

compreensatildeo de Bourdieu (2007) sobre a formaccedilatildeo de haacutebitos alimentares que

sofrem grande influecircncia da convivecircncia dos grupos o que gera gostos muito

semelhantes entre os membros O haacutebito alimentar eacute construiacutedo nesse contexto

e podem ser diferentes de uma cultura para outra

Fui convidada a participar da mesa de refeiccedilotildees ldquode todo diardquo em 15

casas onde fui convidada a almoccedilar com a famiacutelia O horaacuterio de almoccedilo variou

de 1100 a 1130 e essa variaccedilatildeo tem a ver com o horaacuterio em que acordam e

iniciam as atividades que jaacute natildeo eacute mais tatildeo riacutegido como jaacute foi no passado Como

parte das conversas aconteciam geralmente nas cozinhas enquanto o almoccedilo

era preparado pude acompanhar todo o processo Me ofereci para ajudar em

alguma coisa na atividade da cozinha mas a uacutenica ajuda permitida foi

acompanhaacute-las ateacute a horta para ldquoapanharrdquo verdura

Em todos os almoccedilos que participei estavam presentes no cardaacutepio o

ldquotrivial mineirordquo denominaccedilatildeo atribuiacuteda por Eduardo Frieiro para ldquofeijatildeo angu e

couverdquo O autor apoacutes as pesquisas sobre a alimentaccedilatildeo em Minas Gerais da

fase mineradora ateacute meados da deacutecada de 1950 sugeriu alguns dos alimentos

que considerava possiacutevel serem caracterizados como tiacutepicos de Minas Gerais

A sugestatildeo se deu em funccedilatildeo da peculiaridade de seus preparos satildeo eles o

tutu de feijatildeo com torresmo ou linguiccedila o lombo de porco assado a couve

cortada fina e refogada e o angu sem sal

143

Aleacutem do feijatildeo do angu e da couve havia todos os dias tambeacutem o arroz

nas refeiccedilotildees que participei Assim eu elegeria como a comida tiacutepica do almoccedilo

do conjunto das famiacutelias desta pesquisa a seguinte composiccedilatildeo arroz feijatildeo

batido no liquidificador angu couve refogada e carne (de frango ou porco) O

feijatildeo batido eacute comum em Minas e no interior de Satildeo Paulo mas quase

desconhecido nos outros estados Eacute comum associar a Minas Gerais o feijatildeo

tropeiro e ao tutu mas nas famiacutelias que pesquisei a forma de servi-lo eacute

predominantemente batido temperado com gordura de porco e alho Antes de

haver o liquidificador o feijatildeo era amassado agrave matildeo com o uso de um ldquosocadorrdquo

depois adicionava-se aacutegua o resultado era um feijatildeo de caldo grosso e

diferentemente do tutu e do tropeiro natildeo lhe eacute adicionado farinha o que o torna

mais diferente do tutu e mais leve jaacute que a farinha lhe confere a categoria de

comida com ldquosustanccedilardquo Embora a carne de porco tenha sido a mais presente

a de frango tambeacutem foi marcante A carne de boi eu comi em apenas duas casas

na forma moiacuteda e cozida O frango sempre frito ou ensopado algumas vezes era

acompanhado de quiabo O peixe foi servido em uma casa pescado no rio que

passa na propriedade A disponibilidade da carne natildeo era farta mas suficiente

para tecirc-la no prato sem esbanjamento e proporcionar satisfaccedilatildeo Mas os outros

alimentos eram preparados em grande quantidade

Foi recorrente ser servida mais de uma fonte de carboidrato nas

refeiccedilotildees por exemplo arroz angu e ou moranga e ou mandioca e ou batata

doce e ou farinha e ou macarratildeo O carboidrato eacute responsaacutevel pelo suprimento

de energia do organismo Para as famiacutelias esses alimentos satildeo importantes para

dar ldquosustanccedilardquo e tambeacutem satildeo responsaacuteveis por compor um almoccedilo ldquoforterdquo assim

como sinalizaram em relaccedilatildeo agrave gordura de porco Esse aprendizado eacute por

transmissatildeo cultural a mesma loacutegica para o consumo da gordura de porco

532 Comida de domingo de dias festivos e comensalidade

A comida de domingo varia pouco O arroz e o feijatildeo satildeo consumidos

tambeacutem nesse dia Agraves vezes o feijatildeo batido eacute substituiacutedo pelo tutu com cebola

e pelo feijatildeo tropeiro A macarronada com frango ou com carne de panela

tambeacutem eacute um prato presente com frequecircncia aos domingos Todas as famiacutelias

que tecircm os filhos morando proacuteximos inclusive em Viccedilosa afirmaram que aos

144

domingos o almoccedilo eacute dia de reuniatildeo em famiacutelia os filhos e netos chegam para

o almoccedilo e laacute passam o dia Quando os sogros dos filhos moram perto eacute feita

uma divisatildeo almoccedilo em uma casa cafeacute da tarde ou jantar em outra As filhas e

ou noras ajudam no preparo do almoccedilo e de lavar a louccedila Os casais

aposentados que ficam muito sozinhos durante a semana consideram esses

momentos fundamentais porque ldquoo dia fica mais alegrerdquo

() eu fico soacute por conta de cozinhar para eles a mesa essas duas ai ficam sempre cheias de coisas em cima eacute biscoito eacute bolo eacute doce eu gosto de ver os filhos e os netos tranccedilando por ai eles gostam de ficar na cozinha na mesa natildeo cabe todo mundo ai eles colocam umas cadeiras e ficam aqui tambeacutem eles gostam de pegar ovos no galinheiro e bater gemada acostumei eles a comer gemada desde pequenos e eles soacute comem gemada aqui por causa do ovo daqui (Eliana 69 anos moradora de Itapeva em Presidente Bernardes MG 2015)

Nos dias de domingo a casa fica cheia minhas filhas costumam trazer um prato feito por elas e junta com o que eu faccedilo aqui eacute muita fartura eacute muito bom todo mundo conversa ri pena que no fim do dia vai todo mundo embora (Laurinda 77 anos moradora de Tatu em Piranga MG 2015)

A ldquofarturardquo da comida destacada por Laurinda nas ocasiotildees de encontro

familiar eacute um grande valor atribuiacutedo pelas famiacutelias rurais Fartura de alimentos

significa uma boa produtividade de alimentos na roccedila mas significa tambeacutem

seguranccedila Ter ldquoo de comerrdquo todos os dias garantido na mesa eacute um atributo que

lhes eacute importante nas suas condiccedilotildees de famiacutelias agricultoras

O espaccedilo de comensalidade nessas ocasiotildees eacute basicamente a cozinha

lugar preferido da famiacutelia quando estaacute reunida Lody (2008) defende que muitos

haacutebitos alimentares soacute se desenvolvem na medida em que a casa e sua cozinha

tornaram-se capazes de permitir a reuniatildeo da famiacutelia e amigos Talvez por isso

as cozinhas das casas que visitei fossem amplas mesmo que outros cocircmodos

da casa como a sala fossem pequenos Em todas as cozinhas havia um

cocircmodo acoplado pequeno e que funcionava como despensa A presenccedila de

mais de uma mesa foi comum mesa na cozinha com pelo menos seis cadeiras

e bancos de madeira recostados a uma das paredes a outra mesa ficava em

uma copa ou em uma aacuterea externa geralmente de meia parede tambeacutem

proacutexima agrave cozinha onde foi ficava instalado o forno de barro quando existia em

algumas casas ele costumava estar proacuteximo ao paiol embaixo de uma coberta

Assim esses satildeo os espaccedilos onde ocorre a comensalidade nas famiacutelias

145

sobretudo em ocasiotildees especiais como nos almoccedilos de domingo e nos

momentos de convivecircncia familiar nos finais de ano

A comensalidade no grupo entrevistado ocorre tambeacutem nos eventos

maiores Nesse caso pode-se formar uma rede de cooperaccedilatildeo de trabalho para

fazer os festejos acontecerem Duas mulheres contaram com riqueza de

detalhes sobre as festas de bodas de ouro que ocorreram no quintal das casas

Coincidentemente trata-se de duas famiacutelias de Presidente Bernardes A festa

dos sogros de Lola e Marcos ocorreu no siacutetio dos sogros na comunidade de

Xopotoacute em 2011 A festa de Eliana e Saturnino ocorreu tambeacutem no siacutetio na

comunidade de Itapeva em 2014 Jaacute citei essas duas festas anteriormente ao

falar dos animais que foram abatidos para o almoccedilo Em ambas algumas

caracteriacutesticas satildeo comuns uma delas eacute que a festa aconteceu no quintal o que

segundo Eliana ldquoeacute costume na regiatildeo aqui eacute muito pouca gente que aluga

salatildeo pra fazer festa e mesmo casamento acontece tudo aqui na roccedila mesmordquo

Os vizinhos dos siacutetios proacuteximos foram convidados Filhos e outros parentes que

moram fora tambeacutem estiveram presentes Nas duas festas a comida servida foi

a ldquocomida de roccedilardquo e como jaacute dito antes suiacutenos e frangos criados no local foram

abatidos O prato principal foi a carne o restante foi acompanhamento porque

como destacou Lola ldquoem dias de festa tem que ter muita carne que eacute do que o

povo gostardquo

Eliana contou que as mulheres da vizinhanccedila ajudaram com a

organizaccedilatildeo e tambeacutem a fazer ldquoa comida de veacutespera descascando batata

cozinhando mandioca matando e depenando os frangos para o dia da festa

os meus filhos contrataram umas cozinheirasrdquo

Foi realizada uma missa no paacutetio na frente da sua casa No quintal foram

colocados dois grandes ldquofogotildees de cupimrdquo e seu funcionamento seraacute detalhado

mais agrave frente Nestes fogotildees foram feitos os seguintes pratos macarratildeo com

pato tutu arroz frango frito farinha torrada mandioca frita e batata doce Natildeo

foi servida salada De bebida foram servidos refrigerante e cerveja A sobremesa

servida foi o ldquobolo de festa bem granderdquo que os filhos encomendaram da cidade

Foi muito boa a festa a missa a ajuda das mulheres aqui eacute assim todo mundo ajuda uns aos outros quando precisa Teve muacutesica e danccedila as pessoas podiam danccedilar se quisessem (Eliana Itapeva Piranga MG 2015)

146

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 11 ndash Fogatildeo de cupim no quintal do siacutetio de Eliana e Saturnino em Itapeva

Presidente Bernardes

Para a festa de bodas de ouro dos sogros de Lola estiveram presentes

em torno de 200 pessoas entre familiares e vizinhos de siacutetios proacuteximos Pelas

informaccedilotildees de Lola a festa teve maior investimento em produccedilatildeo Foi colocado

um telatildeo no quintal onde se mostrou a retrospectiva do casal desde o

casamento com montagens de fotos Soltaram muitos foguetes e teve muacutesica

de forroacute com espaccedilo para as pessoas danccedilarem no quintal Os filhos que moram

em cidades vizinhas e em Satildeo Paulo foram os responsaacuteveis pela organizaccedilatildeo

do evento e ao contraacuterio da festa do primeiro casal esta natildeo contou muito com

a participaccedilatildeo cooperativa dos vizinhos Todo o trabalho de veacutespera da cozinha

foi feito pela famiacutelia filhas filhos noras e genros do casal Foram contratadas

matildeo de obra para cozinhar no dia e servir a comida O cardaacutepio desta festa

consistiu de churrasco de carne bovina e suiacutena (a carne suiacutena de produccedilatildeo

local) linguiccedila frango frito arroz salpicatildeo farofa de milho vinagrete e uma

mesa de frutas Assim como na primeira festa nesta tambeacutem natildeo teve um prato

147

de saladas ou verduras refogadas apesar de elas estarem presentes nas

comidas de todo dia

Reportamos a Woortmann (1985) quando ele trata dos convites para

refeiccedilotildees em casa com o objetivo de reestabelecer sociabilidades e que nestas

ocasiotildees o aspecto fisioloacutegico ou nutritivo da alimentaccedilatildeo eacute pouco relevante

Mais importante eacute o papel social que ela exerce para agradar aos olhos ao olfato

e por fim ao paladar Eacute importante que as pessoas ao irem embora da festa

faccedilam elogios agrave comida e por isso ela precisa tambeacutem ser farta Como foi visto

no capiacutetulo 2 a carne em Minas nos primoacuterdios da mineraccedilatildeo era uma raridade

nas refeiccedilotildees e por isso passou a assumir um status simboacutelico importante na

refeiccedilatildeo a partir da fase da ruralizaccedilatildeo Fazer uma festa sem servir muita carne

seria motivo de criacutetica e natildeo de elogios Ao contraacuterio o excesso de carne eacute tanto

valorizado quanto classifica um ldquoalmoccedilo na roccedilardquo como farto e bom

Brandatildeo (1982) em sua pesquisa com agricultores do interior de Goiaacutes

trata da comida de festa na roccedila Para o seu grupo pesquisado o sabor e a

fartura da comida oferecida tambeacutem foi declarado como sendo o principal para

o sucesso de uma festa

O valor da comida ldquoboardquo ldquocom gostordquo estaacute em seu modo de preparo ruacutestico e na fartura o tempero forte ldquomuita banha de porco muito toucinho pimenta agrave vontaderdquo sobre uma comida tambeacutem forte e abundante ldquomuita carne de capado muito arroz e feijatildeo mandioca agrave vontaderdquo (BRANDAtildeO 1982 p 136)

Tambeacutem Falci (1995) relata sobre as festas de casamento na roccedila

regiatildeo do Piauiacute no final do seacuteculo XIX onde muita quantidade de comida era

servida mesmo sendo simples a festa de casamento precisava ser farta e era

tambeacutem importante que se convidasse toda a vizinhanccedila rural

Para a festa havia toda a organizaccedilatildeo pois natildeo se dispunha de armazenamento Os porcos tinham jaacute sido postos a sevar nos chiqueiros e estavam no ponto (de uns 8 a 10 kg cada um) assim como os outros animais Ateacute os parentes ajudavam no abastecimento da festa engordavam leitoas ou perus para a festa da sobrinha ou afilhada e no dia faziam-se assados em muitas casas amigas ou de parentes dos noivos (FALCI 1995 p 260)

Nessas ocasiotildees mais do que em dias normais a comida se apresenta

como um coacutedigo que expressa niacuteveis de relacionamento e de interaccedilatildeo social

como no sentido atribuiacutedo por Douglas (1972) Em festas ou manifestaccedilotildees

culturais tradicionais o alimento assume uma categoria de ldquocomidas-coacutedigordquo que

148

se apresenta com a funccedilatildeo binaacuteria de alimentaccedilatildeo e socializaccedilatildeo sendo

carregada de mensagens simboacutelicas

If food is treated as a code the message it encodes will be found in the pattern of social relations being expressed The message is about different degrees of hierarchy inclusion and exclusion boundaries and transactions across the boundaries Like sex the taking of food has a social component as well as a biological one Food categories therefore encode social events (DOUGLAS 1972 p 61)

Em um saacutebado pela manhatilde em que passei no siacutetio de Ana Luisa e Lucas

(45 e 52 anos respectivamente) na comunidade de Bom Jesus do Bacalhau para

agendar entrevista para a semana seguinte havia uma movimentaccedilatildeo de

pessoas Logo descobri que eram parentes que vieram de Ouro Preto e de Belo

Horizonte para passar o final de semana e como uma das sobrinhas estava

fazendo 15 anos de idade naquele dia a famiacutelia resolveu organizar

improvisadamente uma comemoraccedilatildeo no siacutetio Muitos balotildees coloridos estavam

sendo pendurados no teto e nos pilares da varanda Logo que entrei no corredor

externo que daacute acesso agrave cozinha avistei um bolo de aniversaacuterio sendo montado

O bolo jaacute estava com trecircs camadas e recheado de doce de leite e ameixa

faltando ainda a cobertura que seria com creme de coco Para a execuccedilatildeo do

bolo foram utilizados leite longa vida doce de leite e coco ralado ambos

industrializados O bolo estava sendo feito pelas irmatildes de Ana Luiacutesa enquanto

ela e o marido se dividiam na cozinha preparando ldquotira-gostosrdquo e a carne para o

almoccedilo Em um tacho de ferro sobre a trempe do fogatildeo a lenha Ana Luisa fritava

pedaccedilos de carne de porco e outra panela estava sendo frito o ldquomilhopatilderdquo (Figura

12) produzido por Ana Luisa Esse salgado eacute feito de uma mistura agrave base de

fubaacute caldo de galinha e polvilho azedo Segundo Lucas cujo avocirc foi tropeiro o

ldquomilhopatilderdquo artesanal eacute tradiccedilatildeo em sua famiacutelia e foi com a sogra que Ana Luisa

diz ter aprendido a fazer ldquoTodo mundo gosta a gente vende muito dele laacute no

mercadordquo

149

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 12 ndash Processo de fritura do ldquomilhopatilderdquo

A mesa da cozinha estava posta com rosquinha de sal amoniacuteaco queijo

bolo de milho e cafeacute Fui convidada a tomar ldquoum cafezinho e comer alguma coisardquo

e tambeacutem a experimentar o milhopatilde frito Em um dia tumultuado para a famiacutelia

minha visita se encerrou logo

Pude perceber alguns aspectos relacionados agraves praacuteticas alimentares

que satildeo tratados nesta pesquisa a sociabilidade demonstrada no trabalho

conjunto de organizaccedilatildeo da festa a utilizaccedilatildeo de produtos industrializados na

elaboraccedilatildeo do bolo a produccedilatildeo do ldquomilhopatilde alimento de receita tradicional da

famiacutelia a carne e o torresmo de porco caipira criado no siacutetio Nessas praacuteticas

alimentares desenvolvidas na cozinha dessa famiacutelia estiveram presentes agrave

praticidade em utilizar os produtos industrializados mas tambeacutem a manutenccedilatildeo

de praacuteticas tradicionais sinalizando nessa mescla fatores de permanecircncia e de

mudanccedila no sentido tratado por Poulain (2013) Giard (2012) Cacircmara Cascudo

(2004) e Doacuteria (2014)

A comensalidade tambeacutem ocorre envolvendo formas natildeo tradicionais agrave

cultura local Eacute o caso que ocorre na famiacutelia de Antocircnio e Marieta (78 e 73 anos

respectivamente) Antonio o ex-padeiro jaacute citado aqui que para agradar os netos

ndash crianccedilas e adolescentes que moram em aacuterea urbana ndash quando passam feacuterias

em seu siacutetio promove o que os netos chamam de a noite da ldquoPizzada do vovocircrdquo

Neste evento ele eacute o responsaacutevel por produzir pizzas no forno de barro do siacutetio

Disse jaacute ter virado uma tradiccedilatildeo familiar dos uacuteltimos anos Ele prepara as massas

e convoca os netos para ajudar a rechear as pizzas Esses satildeo momentos de

150

comensalidade familiar muito interessantes aleacutem de comerem juntos produzem

a comida em conjunto Geraccedilotildees diferentes partilhando os saberes e prazeres

da comida e da convivecircncia

A produccedilatildeo das pizzas chamou a atenccedilatildeo por natildeo ser um alimento que

faz parte da cultura da regiatildeo pesquisada Nenhum entrevistado aleacutem de

Antocircnio falou sobre esse alimento Tampouco ela eacute citada por Frieiro (1982) ou

Cacircmara Cascudo (2004) como alimentos consumidos em Minas Colonial A

pizza tem sua origem atribuiacuteda agrave Itaacutelia e passou a ser consumida no Brasil

justamente com a chegada desses imigrantes ao Paiacutes Segundo Antonio e

Marieta as pizzas comeccedilaram a ser produzidas por ele no forno de barro nos

encontros de feacuterias dos filhos e netos no siacutetio Uma de suas filhas mora no Rio

Grande do Sul e eacute casada com um descendente de italiano Com um nuacutemero

grande de familiares em casa nessas ocasiotildees e para agradar aos netos

Antocircnio que domina a atividade de panificaccedilatildeo optou em aprender a fazer as

pizzas Um exemplo de hibridismo cultural alimentar em funccedilatildeo de haacutebitos

diferentes de membros da famiacutelia O avocirc valorizando o habito alimentar dos

netos e praticando ao mesmo tempo a atividade de produzir massas que

considera como muito prazerosa Outro aspecto interessante eacute que se trata de

um alimento associado ao mercado fast food nos centros urbanos mas no caso

especificamente dessa famiacutelia o seu consumo tem uma loacutegica que se associa

ao ritmo do slow food

Juntar a famiacutelia para fazer a ldquopizzada do vovocircrdquo eacute uma forma de Antonio

resgatar esse tempo vivido onde era produzida grande quantidade de quitandas

aleacutem de patildees e eacute para os netos um importante momento de aprendizado com o

avocirc como aquele que agrega a famiacutelia usando da comida e assim assumindo

seu papel de guardiatildeo da cultura Nos dias atuais segundo o casal o forno de

barro raramente eacute utilizado soacute mesmo em dias de festa nos finais de ano Nos

depoimentos de Antonio estaacute presente a memoacuteria afetiva ligada agraves praacuteticas

culinaacuterias que lhe foram muito presentes no passado mas que se distancia do

seu cotidiano na contemporaneidade Natildeo por acaso a chegada dos netos eacute

sempre um evento ansiosamente esperado pelo casal

151

533 Os doces

Em relaccedilatildeo agraves frutas as mais comuns nos pomares e quintais eram a

laranja bahia e serra drsquoaacutegua a poncatilde a mexerica o limatildeo galego ou limatildeo

capeta o limatildeo taiti a goiaba a banana a jabuticaba o figo a cidra a pitanga

a acerola a amora a manga e o abacate As frutas satildeo consumidas de acordo

com a sazonalidade e algumas mesmo estando presentes natildeo satildeo

preferenciais como eacute o caso do mamatildeo exceto para fazer doce de mamatildeo

verde Os sucos mais consumidos satildeo de laranja acerola limatildeo e manga

Os doces mais produzidos a partir de frutas locais satildeo os de goiaba

banana e figo Em uma das famiacutelias tive a oportunidade de provar dois doces

receacutem elaborados por Marieta moradora de Boa Vista Piranga doce de ameixa

em calda e doce de figo

Cacircmara Cascudo (2004) relata que o doce representava grande

importacircncia social no periacuteodo Colonial brasileiro heranccedila de Portugal Quando

se queria presentear algueacutem ou homenagear uma bandeja de doce era sempre

uma excelente escolha Era considerado uma boa qualidade feminina saber

fazer o doce de receita de famiacutelia e esse ensinamento era repassado agraves jovens

pelas matildees Tambeacutem Algranti (2007) destaca que nesse periacuteodo os doces natildeo

faziam parte do trivial mas de eventos festivos e por isso consideradas iguarias

Mesmo que com o tempo eles tenham ganhado espaccedilos mais populares e

vendidos em tabuleiros nas ruas

Essa relaccedilatildeo com os momentos especiais descrito pela autora parece

persistir na regiatildeo pesquisada Dentre as famiacutelias que entrevistei a elaboraccedilatildeo

de doces natildeo eacute uma atividade culinaacuteria cotidiana seu consumo e fabricaccedilatildeo

estatildeo associados aos dias de domingo e agraves datas festivas sobretudo agraves festas

de final de ano Natal e Ano Novo

Laurinda 77 anos moradora de Tatu em Piranga relatou que fazia

doces para agradar a todos os filhos quando havia festas de aniversaacuterio em casa

quando eles ainda eram crianccedilas e adolescentes ldquoPara aquele que preferia

rocambole eu fazia rocambole para aquele que preferia pudim eu fazia pudim

agradava a todos os filhos eu gostavardquo

Zefa 67 anos moradora de Mato Dentro em Presidente Bernardes

tambeacutem disse gostar das eacutepocas de elaborar doces Para as festas de final de

152

ano ela comeccedila a fazer um mecircs antes do Natal Os doces tradicionais da sua

famiacutelia satildeo o rocambole de doce de leite e o doce de figo Ela descreveu o

processo de elaboraccedilatildeo

O doce de leite eu comeccedilo a fazer ele agraves 0800 e soacute vou tirar ele do fogo agraves 14 horas ponho num tacho grande ele vai fervendo aos pouquinhos ateacute secar e ficar cremoso mas tem que ser com leite de roccedila leite gordo e leva pouco accediluacutecar Para 8 litros e leite soacute duas xiacutecaras de accediluacutecar O doce de figo antigamente quando natildeo tinha geladeira a gente tinha que ficar fervendo ele para ele natildeo azedar enquanto tivesse doce tinha que fazer isso Hoje natildeo a gente faz o doce e guarda na geladeira e fica verdinho e pode ficar muito tempo guardado (Zefa 67 anos moradora da Comunidade Mato Dentro Presidente Bernardes MG 2015)

O depoimento de Zefa deixa transparecer a dedicaccedilatildeo de tempo ao

preparo do doce e a tenccedilatildeo cuidadosa agraves etapas para natildeo passar do ponto Natildeo

se podia ter pressa Por isso a elaboraccedilatildeo dos doces eram atividades

esporaacutedicas para eventos especiais principalmente para as festas de final de

ano consideradas eventos familiares de grande importacircncia para essas famiacutelias

Percebi durante a pesquisa que essa percepccedilatildeo permanece entre as mulheres

ao falarem da elaboraccedilatildeo dos doces Haacute nos gestuais descritos por Zefa uma

relaccedilatildeo semelhante ao que eacute tratado por Giard (2012) ao relacionar ao trabalho

das cozinheiras de tempos passados em que a paciecircncia para conduzir as

praacuteticas culinaacuterias era a tocircnica

Outrora a cozinheira se servia de um instrumento simples de tipo primaacuterio cujas funccedilotildees tambeacutem eram simples era ela que dirigia o desenrolar da operaccedilatildeo vigiava a sucessatildeo dos momentos da sequecircncia de accedilatildeo e podia representar mentalmente o processo Nessa forma de cozinhar havia uma habilidade de artesatildeo empenhado em aperfeiccediloar seu meacutetodo ou variar suas produccedilotildees (p 284)

Outros dois pontos no depoimento de Zefa merecem destaque O

primeiro quando ela fala de um tempo em que a geladeira natildeo existia Havia a

necessidade de ferver constantemente o doce para natildeo estragar Aqui presente

a relaccedilatildeo com a modernidade Atualmente com o acesso agrave geladeira esse

trabalho foi reduzido Nesse sentido eacute preciso considerar o quanto a tecnologia

industrial facilitou a fabricaccedilatildeo de alimentos sem que necessariamente tenha

alterado a obtenccedilatildeo de um produto de igual qualidade e sabor Zefa continua

fazendo o doce de figo assim como as outras mulheres mas utilizando uma

tecnologia de conservaccedilatildeo moderna e muito importante

153

O segundo ponto diz respeito ao uso do tacho Todas as mulheres que

entrevistei tinham um tacho de cobre que foi herdado de matildee da avoacute ou que foi

comprado por elas Fazer doces em tacho de cobre faz parte da tradiccedilatildeo da

culinaacuteria em vaacuterios lugares do Brasil Poreacutem haacute atualmente uma discussatildeo sobre

o seu uso Em Minas Gerais a Vigilacircncia Sanitaacuteria Estadual proibiu o seu uso

para fabricaccedilatildeo de doces em funccedilatildeo dos resiacuteduos toacutexicos que podem ser

liberados exceto se forem revestidos por banho de ouro prata niacutequel ou

estanho material que natildeo estatildeo presentes nos tachos mais comuns na zona

rural o mais comum e mais barato eacute o revestimento em estanho Surgiu em

funccedilatildeo disso movimentos que defendem a manutenccedilatildeo do uso do tacho de

cobre e que eacute possiacutevel conscientizar as pessoas sobre o uso e higienizaccedilatildeo

correta do tacho sem extinguir seu uso Zefa por exemplo limpa o seu tacho

com sal e limatildeo para retirar todo o azinhavre44 Aleacutem do tacho de cobre haacute o caso

da colher de pau cuja proibiccedilatildeo fez surgir o ldquoManifesto Colher de Paurdquo de autoria

do antropoacutelogo da alimentaccedilatildeo Raul Lody e apoiado pelo FBSSAN (Foacuterum

Brasileiro de Soberania e Seguranccedila Alimentar e Tradicional) O objetivo do

Manifesto eacute cobrar dos oacutergatildeos fiscalizadores um canal de discussatildeo com a

sociedade civil no sentido de encontrar soluccedilotildees menos radicais como a

extinccedilatildeo de usos tradicionais na fabricaccedilatildeo de doces e outros produtos

culinaacuterios45

Joana 39 anos moradora de Jacuba em Porto Firme contou sobre a

festa de casamento de uma parente que aconteceu na roccedila e em que todos os

doces servidos foram feitos pelas mulheres da famiacutelia e outras amigas do casal

Ela proacutepria ajudou na elaboraccedilatildeo Fizeram goiabada figo doce de leite

cajuzinho brigadeiro doce de aboacutebora com coco e outros

A Figura 13 mostra o doce de ameixa que Marieta estava preparando

Trata-se da ameixa vermelha (tambeacutem conhecida como ameixa japonesa) Natildeo

eacute uma fruta muito comum na regiatildeo da pesquisa mas Marieta possui uma aacutervore

que todos os anos daacute muito fruto e ela aproveita para fazer o doce que eacute muito

saboroso

44 Nome que se daacute a oxidaccedilatildeo do cobre a camada esverdeada que resulta desse processo 45 Para ver mais sobre o Manifesto e acessaacute-lo na iacutentegra ver o site da FBSSAN (httpwwwfbssanorgbr

indexphpoption=com_contentampview=articleampid=419manifesto-colher-de-pauampcatid=79ampItemid=672ampl ang=pt-br)

154

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 13 ndash Doce de ameixa feito por Marieta na comunidade Boa Vista em Piranga MG

54 A comensalidade para aleacutem das festas e datas especiais

A comensalidade ocorre de forma diferenciada nas famiacutelias

pesquisadas Em todas elas a maior frequecircncia eacute no jantar indicando o

fechamento de um dia de trabalho mesmo que ela se decirc na sala com o prato

na matildeo e assistindo agrave programaccedilatildeo da TV costume citado pela maioria das

famiacutelias Nesses momentos a conversa gira em torno dos assuntos divulgados

no programa (em geral o telejornal)

Se natildeo se daacute nesse ambiente ela ocorre na cozinha e em ambos os

casos natildeo eacute um momento demorado Mas a comensalidade ocorre sempre no

cafeacute da manhatilde jaacute que quase todos se levantam na mesma hora e tomam o cafeacute

juntos O cafeacute da manhatilde tambeacutem ldquotoma-se ligeirordquo muitas vezes de peacute que ldquoeacute

para natildeo dar preguiccedilardquo observou Carlos (morador de Posses em Porto Firme)

No horaacuterio de almoccedilo dos dias de semana as refeiccedilotildees satildeo feitas em tempo

curto e o assunto costuma ser basicamente em torno de trabalho pelo menos

foi o presenciei nas casas onde almocei A possibilidade de a famiacutelia estar

reunida para o almoccedilo iraacute depender da disponibilidade de tempo e das atividades

de quem estaacute agrave frente do trabalho no local Nas famiacutelias onde as mulheres

trabalham fora do siacutetio elas raramente estatildeo presentes para essa refeiccedilatildeo

quase sempre soacute aos finais de semana As crianccedilas chegam entre 1200 e 1230

155

horas e eacute comum almoccedilarem na escola Neste caso a comensalidade das

crianccedilas e das mulheres ocorre com outro grupo que natildeo o familiar Natildeo haacute uma

restriccedilatildeo para que a comensalidade se decirc apenas no grupo familiar O proacuteprio

conceito definido por Poulain (2013) destaca isso bem como a discussatildeo de

Fladrin e Montanari (1998) sobre o assunto

Em uma das casas visitadas em Presidente Bernardes almoccedilamos na

mesa da cozinha apenas eu e a Nanaacute (dona da casa) O filho que estava

trabalhando na lavoura de cafeacute saiu de moto pouco antes do almoccedilo para buscar

uma ferramenta de trabalho no siacutetio da irmatilde o marido foi almoccedilar em outro

cocircmodo escutando o raacutedio e a filha que trabalha na cidade e almoccedila em casa

serviu o seu prato e foi almoccedilar na frente da televisatildeo na sala Perguntei a Nanaacute

se eles natildeo costumavam almoccedilar juntos na cozinha ela apenas sorriu e disse

ldquoEacute assim mesmo tem dia que eles preferem ir para laacuterdquo Apesar de sua resposta

fiquei na duacutevida se o motivo de isso ter ocorrido foi minha presenccedila afinal

tratava-se de uma pessoa desconhecida O marido Custoacutedio participou da

conversa todo o tempo ateacute o almoccedilo ser servido Me mostrou a lavoura de cafeacute

e a local onde passaraacute o mineroduto cortando seu siacutetio46 e me explicou o

funcionamento do moinho eleacutetrico A filha chegou pouco antes do almoccedilo e

pudemos conversar um pouco quando ela falou do curso que faz na modalidade

agrave distacircncia e de seus planos para o futuro Em todas as outras famiacutelias almocei

em companhia dos que estavam em casa e natildeo percebi constrangimento

semelhante embora tenha observado uma certa timidez inicial principalmente

por parte dos homens e talvez por isso os diaacutelogos eram curtos Em quase

todas as casas escutei expressotildees que tinham conotaccedilatildeo semelhante ldquoVocecirc

natildeo repara natildeoa comida eacute simplesrdquo Entendi isso como uma reaccedilatildeo normal a

uma visita que eacute de fora do seu nuacutecleo iacutentimo Os homens se levantavam e se

ausentavam da cozinha assim que terminaram a refeiccedilatildeo e as mulheres lavavam

a louccedila

Se hoje eacute mais faacutecil para as pessoas interromperem o trabalho e

almoccedilarem em casa em tempos passados a situaccedilatildeo era diferente Quando o

trabalho era mais intenso as atividades eram quase ininterruptas e as refeiccedilotildees

46 Boa parte do siacutetio de Nanaacute e Custoacutedio seraacute desapropriado em funccedilatildeo da passagem do Mineroduto Isso

tem gerado efeitos em suas vidas desde que o processo se iniciou O processo se arrasta haacute anos e eles natildeo sabem muito bem o que vai acontecer Continuam plantando e vendendo o cafeacute que comercializam e outras pequenas lavouras como milho e cana enquanto aguardam o desenrolar da situaccedilatildeo

156

aconteciam distante da casa com o uso de marmitas como explica Neuzeli

moradora de Vinte Alqueires em Porto Firme

O almoccedilo quando o povo trabalhava na roccedila diretoos trabalhadores comiam de marmita Eu arrumava uma marmita caprichadinha para meu marido e meus filhos Mas na casa de meus pais natildeo levava marmita natildeo levava era uns panelotildees grandes de comida em um punha feijatildeo em outro punha a sopa de mandioca ou de inhame com uns pedaccedilos de carne e tinha que encaixar aqui no ombrocomo uma canga e necessitava de duas e trecircs pessoas para levar E laacute na roccedila juntava todo mundo pra comer junto cada um servia o seu coiteacute47 (Neuzeli 63 anos moradora de Vinte Alqueires Porto Firme MG 2015)

Mais um exemplo de como a comensalidade ocorria nas aacutereas rurais

por mais raacutepidas que fossem as refeiccedilotildees Este exemplo assim como aquele em

que as refeiccedilotildees ocorrem na sala assistindo televisatildeo falam de momentos de

comensalidade onde a presenccedila do objeto ldquomesardquo natildeo eacute necessaacuterio precisa-se

eacute que os momentos das refeiccedilotildees sejam partilhados por mais de uma pessoa

55 Mescla cultural praacuteticas de consumo alimentar de ontem e de hoje

Tem sido comum nos uacuteltimos anos na regiatildeo pesquisada a circulaccedilatildeo

de veiacuteculos que comercializam frutas hortaliccedilas e legumes Os alimentos satildeo

vendidos aos moradores locais mas tambeacutem para os pequenos comeacutercios

rurais Por razotildees diversas alguns agricultores estatildeo optando em comprar

determinados produtos in natura ao inveacutes de cultivaacute-los O principal motivo citado

foi a estiagem dos uacuteltimos anos aliado ao custo-benefiacutecio (praticidade ndash preccedilo)

Satildeo vendidos produtos tais como batata inglesa inhame batata doce moranga

banana alface laranja tomate maccedilatilde pera abacaxi e outros Segundo os

interlocutores os produtos satildeo do CEASA

Aqui em Presidente tem caminhatildeo que vem vender fruta e verdura pro povo das roccedilas Aqui em casa noacutes compramos agraves vezes mas eacute maccedilatilde que aqui natildeo daacute mamatildeo tambeacutem porque aqui natildeo daacute mamatildeo bom mais mas eacute soacute mas eu vejo gente aqui comprando inhame mandioca do caminhatildeo ah isso eu natildeo concordo natildeo (Germana 58 anos moradora de Mato Dentro em Presidente Bernardes MG 2015)

Tem muita gente na roccedila hoje que taacute eacute comprando mesmoeles acham difiacutecil criar um frangopreferem compraraqui o frango eacute criado soltono quintaldaacute uns frangos bons gordinhosalguns falam assim gente daqui mesmo que fica mais caro plantar do que

47 Cuia feita a partir do fruto da aacutervore Coiteacute que depois de colhido maduro cortado ao meio e retirado as

sementes eacute utilizado como utensiacutelio na cozinha e em outras atividades

157

comprar ai eu falo para eles que agraves vezes fica mesmo soacute que plantar a gente gasta devagar e se for para comprar a gente tem que tirar tudo de uma vez soacute para pagar aquele montatildeo aleacutem disso tem a sauacutede a gente compra tudo hoje com remeacutedio esses frangos ai de granja eu sei porque meu cunhado tem uma granja aquilo ali o pintinho chega com 45 dias ele jaacute eacute frango pra abate e isso natildeo eacute com comida soacute que consegue natildeodeve ter algum remeacutedio ali (Maacuterio 44 anos morador de Posses em Porto Firme MG 2015)

Os interlocutores na pesquisa disseram que compram tais alimentos

muito raramente soacute mesmo em situaccedilotildees muito especiacuteficas como estiagem

longa um exemplo eacute o da alface que no ano de 2015 quando foi realizado o

trabalho de campo teve produccedilatildeo muito ruim assim como algumas outras

hortaliccedilas Segundo as informaccedilotildees que deram essa forma de aquisiccedilatildeo eacute

relevante entre essas famiacutelias Os aposentados que natildeo possuem filhos para

ajuda-los na produccedilatildeo ponderaram que natildeo acham ruim o caminhatildeo levar esses

produtos ateacute eles porque muitas vezes a produccedilatildeo de alguns alimentos eacute muito

pequena e quando acaba eles precisam mesmo comprar e se o caminhatildeo vai

ateacute os siacutetios isso facilita natildeo se trata todavia de um costume mas de uma

ocorrecircncia esporaacutedica

O depoimento anterior de Mario demonstra uma preocupaccedilatildeo que foi

manifestada por outros entrevistados tambeacutem Haacute nas famiacutelias uma grande

preocupaccedilatildeo com agrotoacutexicos ateacute por isso evitam cultivar tomate como jaacute

mencionado anteriormente Pelo fato de os alimentos serem provenientes do

CEASA a desconfianccedila em relaccedilatildeo a eles eacute fator de resistecircncia no consumo

acreditam que os alimentos possuem ldquomuito venenordquo Assim esses alimentos

representam para eles o oposto dos alimentos que produzem nos proacuteprios siacutetios

considerados como mais saudaacuteveis do que os comprados Novamente pode-se

associar essa preocupaccedilatildeo agrave ldquoangustia alimentarrdquo tratada por Fischler (1995 e

2011)

Esse tipo de comercializaccedilatildeo tambeacutem foi identificado por Sacco dos

Anjos et al (2010) em sua pesquisa na regiatildeo rural de Pelotas no Rio Grande

do Sul Os consumidores de laacute tinham como justificativa a especializaccedilatildeo em

uma determinada atividade produtiva como fruticultura e aviaacuterio A falta de

tempo para produzir para autoconsumo e o alto custo da produccedilatildeo os fez

priorizar a aquisiccedilatildeo dos alimentos que consumiam no dia a dia

158

Apesar de os alimentos cultivados no siacutetio predominarem na alimentaccedilatildeo

das famiacutelias os alimentos industrializados tambeacutem satildeo consumidos Pude ver

alguns desses produtos expostos em moacuteveis da cozinha Outros foram

informados pelos entrevistados A lista dos industrializados consta de manteiga

margarina oacuteleo de soja sal arroz biscoito de polvilho biscoito de maisena

biscoito de aacutegua e sal farinha de trigo farinha de milho farinha de mandioca

leite longa vida leite de soja accediluacutecar macarratildeo massa de tomate polvilho leite

condensado e poacute de cafeacute (naquelas famiacutelias que natildeo o produz ou quando o

produto local acaba) Natildeo houve registro de compra de refrigerantes (usado

apenas em ocasiotildees festivas) alimentos congelados (massas patildees de queijo e

carnes etc) embutidos (salsichas presunto mortadela) Nem todos os produtos

listados satildeo consumidos por todas as famiacutelias trata-se de uma lista de produtos

consumidos pelo montante das famiacutelias

Duas das famiacutelias de Piranga a de Ana Luisa e Lucas e a de Juliana e

Jacinto satildeo proprietaacuterias de um pequeno comeacutercio rural nas comunidades de

Bacalhau e Tatu respectivamente Em ambos eacute comercializado parte do que

produzem nos siacutetios Os alimentos mais vendidos satildeo oacuteleo vegetal arroz (que

passou a ser vendido haacute cerca de 15 anos quando se reduziu drasticamente o

cultivo nas regiotildees) farinha de trigo biscoito de polvilho do tipo ldquopapa-ovordquo

macarratildeo massa de tomate ovos (de granja) nos periacuteodos mais frios do ano

porque a produccedilatildeo de ovos de galinhas caipiras diminui e finalmente a laranja

(da CEASA) a partir dos meses de novembro quando a produccedilatildeo nos pomares

diminui

A escolha de consumo referente aos alimentos industrializados pelas

famiacutelias se daacute pela praticidade aliada a preccedilo pela necessidade de consumo ou

por terem se tornado inviaacuteveis a sua produccedilatildeo nos siacutetios Eacute o caso do arroz do

polvilho do accediluacutecar da rapadura do biscoito de polvilho assado e da manteiga

Sobre as opccedilotildees atuais de consumo e as mudanccedilas nos modos de vida os

depoimentos abaixo apresentam importantes reflexotildees

O ritmo na roccedila taacute muito corrido parece que o pessoal natildeo tem muito prazo mais de ficar cuidando das coisas igual antigamente acho que o pessoal tambeacutem era mais pobre precisava trabalhar mais na roccedila pra produzir e arrumar renda hoje consegue comprar mais coisa Antes soacute compravam sal agora eacute mais faacutecil comprar de tudo antes todo mundo plantava arroz e colhia agrave vontade e ainda sobrava para vender (Joel 71 anos morador de Limeira em Porto Firme MG 2015)

159

A gente compra muita coisa que natildeo compensa mais produzir e nem gente suficiente para produzir aqui na roccedila Tem coisa que natildeo daacute pra produzir aqui igual macarratildeo e rapadura natildeo daacute mais pra fazer nem arroz porque natildeo compensa cafeacute a gente ainda planta um pouquinho e feijatildeo mas soacute daacute para o gasto mesmo (Joseacute 47 anos morador de Mato Dentro Presidente Bernardes MG 2015)

Outro item comprado por todos eacute o accediluacutecar cristal que veio a substituir a

rapadura o accediluacutecar mascavo e o melado que antigamente eram produzidos

Mesmo nas famiacutelias que ainda possuem um pequeno engenho o accediluacutecar cristal

tambeacutem eacute consumido por exemplo para adoccedilar o suco de frutas fazer bolo

broa e outras quitandas Segundo os meus interlocutores o uso do accediluacutecar cristal

industrializado eacute recente datando de cerca de 30 anos

Meus pais tinham um engenho de cana e faziam rapadura e melado hoje a gente planta cana soacute para dar agraves vacasos que que tinham engenho e que continuam a plantar cana usam soacute para produzir cachaccedila ou alimentar as vacas (Lucas 52 anos morador de Bom Jesus do Bacalhau em Piranga MG 2015)

A gente fazia muito melado accediluacutecar mascavo rapadura meus filhos cresceram comendo inhame com melado era muito gostoso e um alimento forte (Luisa 57 anos moradora de Bom Retiro em Porto Firme MG 2015)

Marilia 65 anos moradora de Mestre Campos em Piranga explica

como a sua avoacute fazia o que denominava de ldquoaccediluacutecar brancordquo mas que nada tem

a ver com o accediluacutecar cristal industrializado Recebia esse nome porque era mais

claro do que o accediluacutecar mascavo constituiacutea tambeacutem em um modo ruacutestico de

fabricar o accediluacutecar no siacutetio conforme sua descriccedilatildeo

Ela batia o caldo para rapadura mas sem chegar no ponto de rapadura ai colocava essa massa numa mesa de madeira com beiral por cima da massa ainda quente ela colocava argila escura e deixava no dia seguinte a massa ficava toda quebradiccedila e bem mais clara do que a mascavo Tirava os torrotildees de argila que ficavam bem sequinhos e duro e ficava soacute o accediluacutecar (Marilia 65 anos moradora de Mestre Campos em Piranga MG 2015)

Sobre o que chamei de mescla alimentar no subtiacutetulo ou seja o

consumo concomitante de produtos tradicionais e produzidos pelas proacuteprias

famiacutelias e aqueles adquiridos no mercado ou no caminhatildeo o que a pesquisa

apontou eacute que apesar de as famiacutelias considerarem que o sabor do fubaacute e do

accediluacutecar ficou ruim comparando-se ao que conheceram anos atraacutes as famiacutelias se

mostraram adaptadas ao consumo das formas atuais desses produtos O arroz

permanece nas refeiccedilotildees de todos os dias mesmo sendo industrialmente

160

produzido De forma semelhante o fubaacute do moinho eleacutetrico continua sendo

usado para a fabricaccedilatildeo da broa e do angu a serem consumidos cotidianamente

O accediluacutecar cristal eacute usado com frequecircncia para adoccedilar bolos sucos cafeacutes e

doces Natildeo observei no grupo pesquisado resistecircncia aos produtos

industrializados que consomem Apenas o consumo do oacuteleo vegetal sofreu um

pouco de rejeiccedilatildeo embora tenha sido bem aceito para preparo de frituras exceto

para o casal Eliana e Saturnino que continua resistindo em consumi-lo

O arroz natildeo perdeu a importacircncia que tinha por ser industrializado nem

o fubaacute perdeu seu lugar nas refeiccedilotildees e nas quitandas de todos os dias por deixar

de ser produzido no moinho drsquoaacutegua tampouco a manteiga deixou de ser

consumida por ser industrializada e a margarina eacute usada na elaboraccedilatildeo de bolo

e quitandas embora natildeo seja usada para passar no patildeo O que percebi foi uma

certa resignaccedilatildeo dos meus interlocutores diante de uma realidade alimentar em

transformaccedilatildeo uma vez que as mudanccedilas em curso natildeo ocasionaram draacutesticas

adaptaccedilotildees alimentares Na medida do possiacutevel continuam a comer o que

sempre comeram e a preparar os alimentos da forma que sempre fizeram seus

pais Isso sinaliza que a cultura eacute dinacircmica e estaacute em constante transformaccedilatildeo

Em funccedilatildeo de eventos diversos novos elementos vatildeo surgindo outros vatildeo

sendo incorporados Alguns permanecem na memoacuteria e nas histoacuterias das

famiacutelias assim como outros caem no esquecimento

56 As quitandas para a merenda e para servir agraves visitas

O termo quitanda segundo Silva (2014) e Dourado (2006) origina da

palavra Kitanda da liacutengua quimbundo falada em Angola No Brasil em Minas

Gerais principalmente assumiu a significaccedilatildeo tambeacutem para comidas feitas nos

intervalos das refeiccedilotildees e agrave noite antes de dormir

Nas famiacutelias pesquisadas as quitandas satildeo elaboradas com frequecircncia

Sempre que estatildeo proacuteximas de acabar eacute o momento de fazer outra fornada mas

os dias de saacutebado especialmente satildeo os dias de abastecer a casa para receber

as visitas no domingo que geralmente satildeo a proacutepria famiacutelia os filhos os netos

e mesmo os irmatildeos Nos demais dias da semana a quitanda natildeo pode faltar

pois supre a necessidade diaacuteria pelas merendas A principal quitanda eacute a

ldquorosquinha de sal amoniacuteacordquo que tive a oportunidade de experimentar Algumas

161

mulheres tambeacutem a produzem sob encomenda geralmente para moradores das

cidades proacuteximas As outras quitandas comuns satildeo a broa e o bolo de milho O

cobu de milho (Figura 14) que eacute uma broa enrolada e assada em folha de

bananeira jaacute foi muito comum nas famiacutelias mas por ser de elaboraccedilatildeo mais

trabalhosa foi deixando se ser produzido e hoje o eacute muito raramente Agraves vezes

nos finais de ano quando as casas ficam cheias com a chegada dos filhos e

outros parentes algumas quitandas tradicionais satildeo resgatadas pelas famiacutelias

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 14 ndash Broa do tipo Cobu ou ldquopau a piquerdquo

A broa de fubaacute da Figura 15 havia receacutem-saiacutedo do forno e fui a primeira

a experimentar ainda em temperatura morna Comer bolo quente possui um

prazer especial e muitas pessoas tem essa preferecircncia Natildeo eacute pelo sabor mas

sim pelo fato de saber que se trata de bolo fresco que acaba de sair do forno

com o seu perfume ainda espalhado pelo ambiente A broa feita por Eliana (69

anos moradora de Itapeva Presidente Bernardes) me fez sentir essa sensaccedilatildeo

e neste momento minha memoacuteria afetiva eacute que me levou de volta agrave infacircncia no

siacutetio de meus avoacutes e me trouxe o cheiro que exalava de sua cozinha pela manhatilde

Neste momento da pesquisa senti fortemente a atuaccedilatildeo do tal ldquoimponderaacutevel da

pesquisardquo ao ser recebida com essa delicadeza tatildeo presente nas mulheres

162

rurais com quem tive o prazer de conviver durante a pesquisa Sensaccedilatildeo

semelhante tive ao chegar para a entrevista no siacutetio de Marilia (65 anos

moradora de Mestre Campos em Piranga) e encontrar uma mesa posta com

bolo queijo suco e cafeacute As conversas foram longas com essas e outras

mulheres Experimentei durante a pesquisa o poder da comensalidade

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 15 ndash Broa de fubaacute feita por Eliana em Itapeva Presidente Bernardes

Menos comuns de serem feitos satildeo o bolo agrave base apenas de farinha de

trigo e a ldquorosca da rainhardquo que eacute um tipo de patildeo e que utiliza a farinha de trigo e

fermento bioloacutegico que satildeo opccedilotildees agrave broa de milho Como quitandas

caracteriacutesticas da regiatildeo pesquisada eu elegeria as duas que satildeo consumidas

em todas as casas em que estive broa de fubaacute e rosquinha de sal amoniacuteaco

Mesmo naquelas casas em que natildeo se faz a rosquinha ela eacute consumida porque

eacute comprada nas proximidades

A elaboraccedilatildeo de quitandas sempre foi fundamental na zona rural desde

os tempos dos avoacutes Tanto em tempos atraacutes quanto na contemporaneidade ela

eacute a principal ldquomerendardquo nas famiacutelias Nos tempos antigos os motivos para ter a

despensa abastecida com quitandas eram o difiacutecil acesso agraves cidades e a

necessidade de economizar com essa alimentaccedilatildeo Mas pelos depoimentos das

mulheres com quem conversei e ainda segundo Frieiro (1982) as razotildees satildeo

tambeacutem culturais e simboacutelicas No periacuteodo colonial em Minas quitanda era algo

163

que se fazia em todas as casas nos fornos de barro Era uma caracteriacutestica de

virtude que se atribuiacutea agrave mulher Para ser considerada prendada a mulher

precisava ser boa quitandeira assim cada uma devia dominar bem uma receita

de quitanda que fosse sempre elogiada por quem a degustasse Freyre (2007)

tambeacutem reforccedila a valorizaccedilatildeo dada agrave mulher que dominasse muito bem a

elaboraccedilatildeo de uma receita Essas receitas soacute se passavam oralmente e a

pessoas muito iacutentimas geralmente para agraves filhas e netas

Nas famiacutelias pesquisadas essa tradiccedilatildeo perpetuou com poucas

modificaccedilotildees ao longo do tempo As receitas elaboradas satildeo as mesmas que as

matildees tias e avoacutes faziam Atualmente os siacutetios das famiacutelias pesquisadas natildeo

distam mais do que 20 quilocircmetros das cidades mais proacuteximas mas ainda assim

as idas agrave cidade exceto para quem laacute trabalha ou estuda natildeo eacute constante O

normal eacute o deslocamento com o objetivo de fazer compras receber

aposentadoria eou resolver outros assuntos e ir agrave missa uma vez ao mecircs

Assim semelhantemente aos que ocorria nos tempos passados dos

antepassados ldquoeacute preciso ter a quitanda pronta para o caso de chegar uma visita

e ter o que servir com um cafeacuterdquo

As quitandas a gente faz em casa Broa eu faccedilo todos os dias Broa de fubaacute agraves vezes bolo de farinha o biscoito eacute comprado mas eu faccedilo rosquinha Aqui na roccedila a gente tem que estar prevenida porque se chegar algueacutem a gente natildeo tem tempo de fazer e nem tem onde achar as coisas perto A venda natildeo tem muita coisachega uma visita raacutepidanatildeo daacute nem tempo pra fazer as coisas entatildeo tem que ter uma broa pronta um bolinho uma rosquinha (Lucia 61 anos moradora de Manja em Piranga MG 2015)

Na fala acima Lucia se refere a biscoito e rosquinha Biscoito para eles

eacute o que se compra como o de polvilho assado ndash que tambeacutem eacute consumido com

muita frequecircncia - o de maisena e o de aacutegua e sal para eles pode-se servir os

biscoitos comprados para as visitas mas eacute preciso ter tambeacutem uma quitanda

feita em casa neste caso a broa ou a rosquinha A expressatildeo ldquobolinhordquo natildeo se

refere a bolinho de alguma coisa como ldquobolinho de chuvardquo mas ao bolo no

diminutivo modo comum de se expressar em Minas Gerais

Em tempos passados a elaboraccedilatildeo das quitandas era tambeacutem um

momento de socializaccedilatildeo havia mais mulheres envolvidas no trabalho

geralmente matildees e filhas como citaram minhas interlocutoras As rosquinhas e

broinhas de rapadura o cobu e outras quitandas eram armazenadas em grandes

164

latas bem vedadas para natildeo perder a textura e o sabor De maneira semelhante

se dava o armazenamento na ocasiatildeo da pesquisa Poreacutem o espaccedilo de

socializaccedilatildeo no preparo natildeo eacute como outrora mas um trabalho feito de forma

praticamente individualizada Em algumas ocasiotildees como em periacuteodos de feacuterias

das filhas pode ocorrer de haver uma filha que ajude mas natildeo eacute a regra Poreacutem

trata-se de uma atividade de execuccedilatildeo totalmente feminina

No dia da entrevista com Zefa (67 anos moradora de Mato Dentro

Presidente Bernardes) natildeo havia quitanda sendo preparada no forno a lenha

mas sim um tabuleiro grande de amendoim em casca colhido no quintal que

estava sendo torrado para a elaboraccedilatildeo do lsquocajuzinhorsquo doce que seria servido

na festinha de aniversaacuterio de um ano do neto que mora na cidade de Presidente

Bernardes Ela e suas filhas que moram na cidade iriam organizar juntas essa

festinha familiar

As quitandas satildeo assadas atualmente nos fornos do fogatildeo a lenha jaacute

que os fornos de barro soacute compensam ser acesos para assar grandes

quantidades Assim a broa por ser mais simples eacute assada durante o preparo

do almoccedilo jaacute as rosquinhas satildeo assadas na parte da tarde quando as mulheres

estatildeo mais livres dos outros trabalhos por necessitarem de maior tempo na

elaboraccedilatildeo e muita atenccedilatildeo ao tempo de forno A massa da broa ou do bolo eacute

batida agrave matildeo apesar de a batedeira estar presente em todas as cozinhas e que

satildeo quase sempre presente de filhos ldquoEu bato bolo eacute na matildeo mesmo soacute uso

batedeira quando um faccedilo o ldquobolo drsquoaacuteguardquo que precisa de clara em neverdquo

(Neiva 41 anos moradora de Posses em Porto Firme) No caso de Mariacutelia (62

anos moradora de Mestre Campos Piranga) a batedeira que possui pertenceu

agrave sogra e fica guardada no soacutetatildeo da casa muito raramente utilizada A

praticidade atribuiacuteda agraves batedeiras natildeo convenceu as mulheres que entrevistei

Na realidade elas consideram mais trabalhoso lavar as paacutes da batedeira do que

bater a massa do bolo e da broa na matildeo O uso para as claras em neve

compensa pela rapidez do processo usando o equipamento eleacutetrico Ou seja a

batedeira eacute usada apenas quando se quer um bolo menos ruacutestico O meacutetodo

tradicional prevalece neste caso

Eu tenho dois fornos de barro grande no quintalfazia quitanda umas duas vezes na semana a famiacutelia era grande sete filhos hoje acaboueu faccedilo as coisas eacute no forninho do fogatildeo a lenha mesmo eu

165

jaacute vou fazendo o almoccedilo e assando a quitanda do dia (Uacutersula 78 anos moradora de Bananeiras em Presidente Bernardes MG 2015)

Eu gosto de fazer quitanda tem dia que a gente enjoa mas eu gosto de fazer sim faccedilo broa bolo rosquinha minha neta me ajuda a enrolar as rosquinhas eacute assim que as filhas e netas aprendem a cozinhar comigo tambeacutem era assim (Inecircs 72 anos moradora de Ribeiratildeo em Porto Firme MG 2015)

Para as mulheres a elaboraccedilatildeo das quitandas e doces eacute o que mais

mexe com a memoacuteria afetiva relacionada a alimentos por remeter agrave infacircncia agraves

quitandas feitas pela matildee tias e avoacutes Giard (2012) Lody (2008) e Cacircmara

Cascudo (2004) mencionam como as lembranccedilas e viacutenculos com as comidas

ajudam a manter os haacutebitos vida afora Mesmo que algumas mudanccedilas nos

modos de vida tenham ocorrido permanece o desejo de manter as quitandas do

passado

O relato acima de Inecircs sobre a participaccedilatildeo da neta ajudando a enrolar

as rosquinhas de sal amoniacuteaco que sinaliza o desejo de perpetuar uma receita

tradicional da famiacutelia bem como o de ensinar a neta eacute tambeacutem uma lembranccedila

de si mesma quando ajudava a matildee e da forma como o repasse dessa tradiccedilatildeo

se deu em sua vida Dessa maneira o aprendizado ocorre de maneira luacutedica

Gosta-se da rosquinha feita pela matildee ou avoacute tambeacutem porque era divertido ajudaacute-

las a enrolar e a pincelar com a gema Para uma crianccedila a massa da rosquinha

eacute quase como brincar com as massinhas coloridas na escola e neste caso

ldquobrinca-serdquo com a massinha feita pela avoacute e em sua companhia e ainda pode-

se comecirc-la depois de assada porque tem sabor agradaacutevel ao paladar e agrave

memoacuteria A rosquinha que Inecircs faz com a neta eacute a mesma que ela aprendeu a

fazer com a sua matildee e eacute a mesma que ensinou agraves suas filhas A transmissatildeo do

saber-fazer e dos gestuais de enrolar as rosquinhas e pincelar as gemas satildeo

registros simboacutelicos que ficam na memoacuteria Neste sentido como pondera Leacutevi-

Strauss (2003 p 15) ldquoGestos aparentemente insignificantes transmitidos de

geraccedilatildeo em geraccedilatildeo e protegidos por sua insignificacircncia mesma satildeo

testemunhos geralmente melhores do que jazidas arqueoloacutegicas ou

monumentos figuradosrdquo

O papel de Inecircs nesses momentos eacute pois o da ldquoGuardiatilderdquo da tradiccedilatildeo

(GIDDENS 2012) assunto jaacute discutido no capiacutetulo teoacuterico Em vaacuterios momentos

da entrevista os agricultores reportavam agrave figura dos avoacutes e dos pais ldquoA minha

166

matildee fazia assimrdquo ldquo Quando eu era crianccedila eu gostava de ficar acompanhando

a minha avoacute na cozinha na hortaeu aprendi muito com elardquo

Mesmo que a origem dos ingredientes mudasse por exemplo utilizando

ovo de granja no lugar do ovo caipira e manteiga industrializada o sentido

simboacutelico da receita seria o mesmo Para a neta isso natildeo faria diferenccedila

tampouco para a avoacute transmitir seu saber como pondera Giard (2012)

A aquisiccedilatildeo dos ingredientes a preparaccedilatildeo a cocccedilatildeo e as regras de compatibilidade podem muito bem mudar de uma geraccedilatildeo agrave outra Mas o trabalho cotidiano das cozinhas continua sendo uma maneira de unir mateacuteria e memoacuteria vida e ternura instante presente e passado que jaacute se foi invenccedilatildeo e necessidade imaginaccedilatildeo e tradiccedilatildeo ndash gostos cheiros cores sabores formas consistecircncias atos gestos movimentos coisas e pessoas calores sabores especiarias e condimentos (GIARD 2012 p 296)

Outra questatildeo tambeacutem discutida no item 36 do capiacutetulo anterior trata do

papel historicamente e culturalmente atribuiacutedo agrave mulher no que se refere agrave

alimentaccedilatildeo e agrave cozinha A heranccedila culinaacuteria nas famiacutelias eacute claramente feminina

A matildee ensina a filha eou a neta Antocircnio 78 anos jaacute citado anteriormente

agricultor que tambeacutem foi padeiro eacute o uacutenico exemplo de envolvimento masculino

na atividade ligada agrave culinaacuteria uma exceccedilatildeo

Um assunto jaacute mencionado no capiacutetulo anterior trata da naturalizaccedilatildeo do

gostar de cozinhar Culturalmente tende-se a imputar agraves mulheres o prazer da

culinaacuteria como se o normal fosse que todas gostassem de cozinhar e de assumir

a responsabilidade de alimentar o outro Essa naturalizaccedilatildeo ocorre segundo

Arnaiz (1996) primeiramente em funccedilatildeo da funccedilatildeo bioloacutegica da amamentaccedilatildeo

Um aspecto bioloacutegico que se ampliou para a funccedilatildeo domeacutestica como se fosse

natural Natildeo eacute Algumas mulheres podem gostar muito de cozinhar outras

podem gostar mais ou menos o que parece ser o caso de Inecircs ndash quando diz

ldquotem dia que enjoardquo e pode haver aquelas mulheres que natildeo gostam Durante a

entrevista apoacutes um longo tempo de conversa eu lhes perguntava ndash Vocecirc gosta

de cozinhar Algumas sorriam timidamente ao responder que natildeo gostavam

muito o que me pareceu um certo constrangimento em negar uma condiccedilatildeo

atribuiacuteda como sendo natural ou normal como se eu esperasse uma

confirmaccedilatildeo Como resultado dessas respostas apenas onze mulheres

disseram realmente gostar da atividade e sentir prazer com as funccedilotildees

alimentares que assumem O restante natildeo gosta muito da atividade mas

167

nenhuma delas disse detestar a atividade culinaacuteria As falas reproduziam o

sentido de fazer ldquoporque eacute precisordquo ldquoEu pra falar a verdade natildeo gosto muito

natildeo eu fico na cozinha porque natildeo tem outro recurso mas natildeo gosto muito de

cozinha natildeo eu preferiria ficar soacute costurandordquo (Nanaacute 62 anos moradora de

Xopotoacute em Presidente Bernardes)

Eu gosto Eu natildeo faccedilo por obrigaccedilatildeo natildeo eu gosto aprendi a cozinhar com minha matildee aprendi ajudando Faccedilo broa todo dia Vocecirc viu neacute hoje mesmo eu tocirc fazendo doce de figo e de ameixa vou ali colho e faccedilo faccedilo doce de cidra doce de manga doce de goiaba doce de banana que a gente colhe aqui tambeacutem (Marieta 73 anos moradora de Boa Vista em Piranga MG 2015)

Assim gostar gostar eu natildeo gosto natildeo preferia natildeo ter que cozinhar todo dia porque cansa mas tambeacutem ficar parado sem ter o que fazer eacute ruim pelo menos enquanto eu estou fazendo as coisas eu distraio (Antonina 74 anos moradora de Bananeiras em Presidente Bernardes MG 2015)

As mulheres que dizem gostar de cozinhar principalmente fazer

quitandas e doces satildeo aquelas que mais relataram o prazer de ver a casa cheia

de filhos e netos nas feacuterias feriados e aos domingos Satildeo tambeacutem as mulheres

mais velhas aposentadas Os casais de aposentados relataram certa solidatildeo de

vida nos siacutetios principalmente os que natildeo tecircm filhos por perto o que torna o fato

de receber a famiacutelia em casa uma forma de romper temporariamente com a

solidatildeo Para essas mulheres casa cheia eacute sinal de consumo de muita comida

principalmente porque a cozinha eacute sempre o lugar preferido da casa nessas

ocasiotildees como afirmaram

Dentre as atividades culinaacuterias preferidas lidar com a elaboraccedilatildeo das

quitandas se destaca preferem fazer bolos broas e rosquinhas (a favorita entre

todas as outras) do que preparar a comida do almoccedilo e do jantar

O patildeo francecircs alimento comum nos lanches ou rdquomerendasrdquo na aacuterea

urbana natildeo eacute comumente consumido e natildeo faz parte dos haacutebitos alimentares

das famiacutelias pesquisadas Eacute um item agraves vezes adquirido nas idas agrave cidade

quando costumam comprar rosca doce ou outro patildeo doce Algumas mulheres

gostam de fazer de vez em quando a ldquorosca da rainhardquo Eacute o uacutenico patildeo que foi

citado como elaboraccedilatildeo em algumas poucas casas Antonio informou durante

nossa conversa que ele natildeo conseguia vender patildeo na aacuterea rural porque as

mulheres tinham o haacutebito de fazer broa diariamente Soacute conseguia vender patildees

franceses para moradores da cidade

168

57 Receitas oralidade e registros em cadernos

Esse tema na pesquisa teve como objetivo verificar se as receitas satildeo

transmitidas por oralidade ou por registros escritos O caderno de receitas natildeo eacute

comum para todas as mulheres sobretudo entre as mulheres mais velhas acima

de 50 anos Entre elas satildeo poucas as que possuem receitas escritas

predominando a oralidade na transmissatildeo e o registro na memoacuteria das receitas

que fazem com mais frequecircncia do arroz doce ao doce de figo natildeo se recorre

agraves receitas escritas para elabora-los

Eliana por exemplo natildeo possui cadernos de receitas Tudo o que

aprendeu foi repassado oralmente ao observar e ajudar a matildee e a avoacute

Minha matildee natildeo sabia escrever e nem ler entatildeo natildeo tinha caderno ela aprendeu vendo a matildee dela fazer eu aprendi do mesmo jeito e as minhas filhas tambeacutem aprenderam a cozinhar comigo assim me vendo fazer elas devem ter caderno de receita eu nem sei mas devem de ter sim elas estudaram satildeo inteligentes (Eliana 69 anos moradora de Itapeva em Presidente Bernardes MG 2015)

A filha que mora aqui em casa natildeo gosta de cozinha natildeo mas a outra filha casada gosta Eu aprendi a cozinhar com minha matildee desde novinha mas eu natildeo faccedilo nada de receita natildeo minha matildee nunca teve caderno de receita minha filha casada aprendeu comigo ela me ajudava mas ela tem caderno de receita ela gosta de experimentar umas coisas diferentes para os filhos (Nanaacute 62 anos moradora de Xopotoacute em Presidente Bernardes MG 2015)

Nanaacute aponta em sua fala que das duas filhas uma que eacute casada e tem

filhos gosta de cozinhar e de experimentar novidades e ela associa as ldquocoisas

diferentesrdquo das quais a filha gosta como sendo comidas modernas e por isso

devem estar registradas em um caderno de receita pois o que eacute tradicional fica

registrado na mente eacute memorizado Sua outra filha a mais nova com 26 anos

que eacute solteira e estuda na faculdade natildeo gosta de culinaacuteria No depoimento de

Eliana haacute uma associaccedilatildeo do caderno de receitas com inteligecircncia e a falta dele

com o analfabetismo A sua matildee natildeo sabia ler ela mesmo lecirc pouco e justifica

isso como motivo pelo qual ela natildeo tem um caderno mas destaca que as filhas

por terem estudado devem possuir um

Giard (2012) relata depoimentos de mulheres que pesquisou na Europa

sobre cadernos de receitas tradicionais da famiacutelia que possuem semelhanccedila ao

depoimento de Eliana Uma das mulheres do trabalho de Giard respondeu que

169

as avoacutes eram tatildeo pobres que mal tinham uma cozinha e caderno de receitas natildeo

tiveram tambeacutem

Se a oralidade eacute ainda a forma mais presente de transmissatildeo dos

saberes nas famiacutelias pesquisadas fica a reflexatildeo de como isso poderaacute vir a

ocorrer no futuro com a tendecircncia de saiacuteda dos jovens das aacutereas rurais O maior

comprometimento neste sentido seria em relaccedilatildeo aos modos de fazer

tradicionais nas famiacutelias A oralidade estaacute muito ligada agraves mulheres mais velhas

acima de 50 anos As mulheres mais novas falando aqui da faixa etaacuteria

aproximada de 30 a 45 anos apesar de terem aprendido por oralidade com as

matildees natildeo tecircm aplicado a transmissatildeo das suas praacuteticas culinaacuterias agraves filhas

mesmo porque segundo mencionaram natildeo observam muito interesse ldquodas

filhasrdquo (falaram em relaccedilatildeo agraves filhas e natildeo filhos) na atividade culinaacuteria

Considerando que receitas culinaacuterias atualmente satildeo facilmente

encontradas em banca de revista na internet e no verso de embalagens

industrializadas registrar receitas na memoacuteria ou possuir um caderno de receitas

personalizado pode natildeo fazer muito sentido para as geraccedilotildees mais jovens

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 16 ndash Caderno de receitas que pertenceu agrave matildee de Anita moradora da Comunidade Manja em Piranga

A Figura 16 mostra um ldquocadernordquo que pertenceu a matildee de Anita (71

anos moradora da Comunidade Manja em Piranga) jaacute falecida Trata-se de um

caderno de contas usado tambeacutem para registrar as receitas Na receita haacute uma

170

referecircncia a um ldquopacote de creme infantilrdquo Pesquisei sobre isso e verifiquei que

produtos da Marca Nestleacute jaacute eram vendidos no Brasil na deacutecada de 1920 e na

faacutebrica na cidade de Araras produtos ldquoLactogenordquo (tipo de leite em poacute infantil)

farinha laacutectea e leite condensado Tambeacutem jaacute se vendia na forma embalada a

farinha de trigo poacute Royal e a Maisena A duacutevida que fica eacute se eram produtos que

chegavam facilmente no interior de MG na eacutepoca Haacute que se observar tambeacutem

que o caderno de contas utilizado para anotaccedilotildees estava datado o que natildeo se

sabe eacute se a receita anotada tambeacutem pertence ao mesmo periacuteodo ou se foi

aproveitado como cadernos para anotaccedilotildees de receitas e o tal ldquobolo de Mirardquo

pode ter sido registrado em data posterior Sobre anotaccedilotildees de receitas em

diversos tipos de materiais reporto a Abrahatildeo (2007) que aponta para registros

de receitas culinaacuterias que encontrou anotadas em diversos tipos de lugares e

natildeo raro em conjunto com lista de compras informaccedilotildees sobre plantio etc

A Figura 17 mostra um caderno feito com capricho que pertence a Lucia

(61 anos moradora de Manja Piranga) Ela possui trecircs cadernos de receitas

Um deles pertenceu a sua matildee e os outros dois ela mesma fez com a ajuda das

filhas Quando queria guardar uma receita pedia a uma das filhas para copiar

no caderno outras vezes ela mesmo registrava e recortava figuras de revistas

que encontrasse para ilustrar Na ocasiatildeo da pesquisa ela mencionou que natildeo

tem mais paciecircncia para registrar as receitas mas como gosta de cozinhar

costuma fazer uma ou outra receita poreacutem a maioria dos pratos que gosta de

fazer jaacute estaacute registrada na memoacuteria

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 17 ndash Caderno de receitas de Lucia da Comunidade Manja em Piranga

171

Algumas mulheres demonstraram certo constrangimento em mostrar os

cadernos Diziam que estavam ldquomanchadosrdquo ldquosujosrdquo ldquorasgadosrdquo ldquobagunccediladosrdquo

ldquomal escritosrdquo mas outras se sentiram agrave vontade e mostravam as receitas que

mais gostavam Apenas um caderno estava mais organizado o restante possuiacutea

folhas soltas anotaccedilotildees diversas e desordenadas inclusive endereccedilos de

pessoas contas lembretes e listas de compra As anotaccedilotildees eventuais nesses

cadernos ocorrem porque eles estatildeo visiacuteveis em locais de faacutecil acesso na

cozinha e na falta de outro papel para anotaccedilotildees raacutepidas ele assume esta

funccedilatildeo Pela mesma razatildeo muitos possuem manchas de gordura e respingos

de ingredientes que estavam sendo usados durante a elaboraccedilatildeo da receita Satildeo

detalhes que tambeacutem ldquofalamrdquo da cozinha e dos haacutebitos alimentares das famiacutelias

Eu tenho caderno de receita soacute que taacute tudo rasgado elas satildeo todas testadas ou foi por minha matildee ou minhas avoacutes ou minhas tias primas nada eacute copiado de televisatildeo ou de revista As folhas estatildeo quase todas soltas mas hoje quase tudo que faccedilo eu jaacute sei de cabeccedila (Claudia 66 anos moradora de Limeira em Porto Firme MG 2015)

Tenho uma agenda que uso como caderno de receita eacute uma agenda que desde 1977 quando eu casei que eu anotava tudo inclusive coisa de costura e tem ateacute receita tambeacutem (Mariacutelia 62 anos moradora de Mestre Campos em Piranga MG 2015)

Fonte Luiacutes Pereira pesquisa de campo 2015

Figura 18 ndash Mariacutelia da Comunidade de Mestre Campos em Piranga mostrando seus livros e cadernos de receitas

172

Folheando o caderno de Marieta (73 anos moradora de Boa Vista em

Piranga) me deparei com uma receita de brevidade Comentei que aprecio muito

esse bolo mas que seguindo a receita de minha matildee registrada em seu caderno

a minha nunca fica igual agrave que ela fazia Marieta resolveu entatildeo me ensinar

uma receita faacutecil que prometi testar

ldquoVou te ensinar uma receita faacutecil e muito gostosa A receita chama assim ldquo5 10 15rdquo e eacute assim Vocecirc potildee numa vasilha 5 (cinco) ovos inteiros 10 (dez) colheres de accediluacutecar bate bem e ai coloca as 15 (quinze) colheres de maisena e bate mais ainda Coloca numa forma redonda untada e potildee no fornordquo (Marieta 73 anos moradora de Boa Vista Piranga MG 2015)

Em relaccedilatildeo agraves receitas e agrave cozinha Marieta e Zefa de Presidente

Bernardes foram as mulheres mais empolgadas Contaram detalhes de algumas

quitandas que fazem e de outras que eram feitas por suas matildees e avoacutes Elas

fazem parte das poucas mulheres que entrevistei que confirmaram um grande

prazer em cozinhar

58 Os equipamentos da cozinha rural do fogatildeo a lenha agrave panela eleacutetrica de arroz

Foi em torno do fogatildeo a lenha que muitas das entrevistas aconteceram

enquanto as mulheres preparavam o almoccedilo O fogatildeo a lenha eacute o equipamento

que eu elegeria como o mais representativo na realidade das famiacutelias presente

em todas as cozinhas que visitei durante a pesquisa de campo dos mais

tradicionais feitos de argila aos mais modernos revestidos por azulejo

Instrumento transformador do ldquocru em cozidordquo e da ldquonatureza em culturardquo

propiciador de socializaccedilatildeo e de comensalidade nos dias de inverno por manter

a cozinha aquecida as pessoas gostam de ficar em torno dele sendo assim um

instrumento propiciador de sociabilidades Aleacutem desses aspectos eacute tambeacutem

usado para aquecer a aacutegua do chuveiro via serpentina

Aquela copa ali com aquela mesa eu falo que eacute pra enfeite porque quando meus filhos vem pra caacute com os filhos deles eles juntam tudo eacute aqui na cozinha Senta nesse banco ai nas cadeiras trazem mais cadeira e ficam aqui tem um filho meu que gosta de fritar torresmo ai jaacute viu neacute (Antonina 74 anos moradora de Bananeiras Presidente Bernardes MG 2015)

Eu fico ateacute meio brava agraves vezes e jaacute falo logo - Se ficar em volta de mim no fogatildeo a comida natildeo vai sair natildeo pode esparrodar todo

173

mundo pra laacute (Anita 71 anos moradora de Manja Piranga MG 2015)

Os fogotildees revestidos por azulejos representam um aspecto recente

Segundo os interlocutores uma famiacutelia reformou e revestiu o seu fogatildeo o vizinho

viu aprovou e tambeacutem reformou o seu e em pouco tempo vaacuterios fogotildees na

regiatildeo seguiram a mesma tendecircncia Para eles o revestimento em azulejo

manteacutem o fogatildeo mais limpo por fora porque eacute de faacutecil limpeza Em 11 casas

nos diferentes municiacutepios o fogatildeo estava revestido com esse material No

restante o revestimento era de argila e tinta avermelhada na tonalidade de tijolo

ou amarelado Todos possuem formato semelhante com forno anexo usado

para assar a maior parte das quitandas alguns possuem compartimento para

armazenar lenha e outros natildeo A respeito dos dois modelos de revestimento

apesar de o azulejado dar ao fogatildeo uma conotaccedilatildeo ldquomodernardquo pelo tipo de

revestimento isso natildeo altera em nada a tecnologia do fogatildeo A modernidade

conferida pelo revestimento do azulejo eacute de ordem mais esteacutetica do que

funcional

As Figuras 19 e 20 mostram os fogotildees a lenha comuns e de uso

prioritaacuterio nas casas O primeiro fogatildeo (Figura 19) pertencente agrave Mariacutelia (62 anos

moradora de Mestre Campos Piranga MG) eacute feito em alvenaria revestido por

cimento queimado no estilo tradicional e pintado de amarelo e com barras de

contorno na cor vermelha Sobre ele panelas feitas de materiais diversos como

alumiacutenio pedra barro e ferro Colher de pau e de accedilo inoxidaacutevel O fogatildeo estaacute

com o almoccedilo do dia pronto para ser servido (feijatildeo arroz angu couve carne

de boi moiacuteda com cebolinha de folha) Para evitar sujeiras e proteger o fogatildeo

uma taacutebua de madeira eacute usada como suporte para as panelas e uma lata de tinta

foi reaproveitada para forrar o local do fogo

174

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 19 ndash Fogatildeo a lenha no siacutetio de Mariacutelia

O segundo fogatildeo (Figura 20) pertencente agrave famiacutelia de Nanaacute e Custoacutedio

(61 e 72 anos respectivamente moradores de Xopotoacute em Presidente

Bernardes) eacute revestido por azulejo no estilo mais moderno Como eacute de mais

faacutecil higienizaccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria a proteccedilatildeo pela taacutebua de madeira e pela

placa de lata que haacute no fogatildeo anterior Sobre este fogatildeo estatildeo apenas panelas

de alumiacutenio com o almoccedilo a ser servido (feijatildeo angu batata doce frita couve e

peixe frito (Carpa-capim pescado no rio que passa nos fundos da casa)

Tambeacutem foi servido arroz mas neste caso feito em panela eleacutetrica um item

moderno e do qual falarei mais adiante Outro elemento da modernidade que se

observa na foto satildeo os dois potes de margarina em uma cozinha de caraacuteter

tradicional mas onde elementos da modernidade tambeacutem se fazem presentes

Nesta casa a panela eleacutetrica de fazer arroz fica sobre a pia e um moedor de cafeacute

preso afixado na parede ao lado da mesma pia O peixe e a batata doce por

exemplo foram fritos em oacuteleo de soja e a verdura e o feijatildeo refogados em gordura

de porco Nesta cozinha observei muitos dos elementos da mescla cultural

relativos agraves praacuteticas alimentares

175

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 20 - Fogatildeo a lenha no siacutetio de Nanaacute e Custoacutedio

Um detalhe que observei tambeacutem em todas as cozinhas eacute o cuidado com

a higiene e organizaccedilatildeo das cozinhas Na Figura 20 a pia possui uma cortina

estampada feita pela proacutepria Nanaacute que eacute tambeacutem costureira Coincidentemente

ou natildeo as cores das garrafas teacutermicas combinam com a cor da cortina Na Figura

19 tambeacutem os detalhes chamam a atenccedilatildeo Haacute nessas cozinhas uma noccedilatildeo de

esteacutetica e cuidado com a decoraccedilatildeo que indicam o quanto a cozinha eacute parte

importante da casa e merece destaque pelas famiacutelias em sua organizaccedilatildeo

A Figura 21 eacute outro exemplo Mostra a cozinha pertencente a Eliana e

Saturnino (69 e 75 anos respectivamente moradores de Itapeva Presidente

Bernardes) onde as cadeiras verdes combinam com a cor da porta do forno e

ficam em local estrateacutegico proacuteximo ao calor do fogo Em geral todas as cozinhas

das casas em que estive tem caracteriacutesticas como essas umas mais tradicionais

do que outras mais bonitas esteticamente do que outras mas todas muito

organizadas e limpas

176

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 21 ndash Cozinha com fogatildeo a lenha (azulejado) em siacutetio de Eliana e Saturnino

O fogo eacute destacado por Leacutevi-Strauss (1968) Wrangham (2010)

Montanari (2008) e outros como sendo fundamental para a transformaccedilatildeo do

alimento em comida e no processo da transformaccedilatildeo da natureza em cultura Se

em tempos remotos cozinhavam-se as caccedilas e outros alimentos a ceacuteu aberto

com o passar do tempo o fogo passou a ser inserido no ambiente domeacutestico e a

fazer parte do ambiente fiacutesico das casas Lemos (1996) aponta que durante

muito tempo tanto em Portugal quanto no Brasil as moradias eram chamadas

de fogos ou fogotildees tamanha a importacircncia deste equipamento

Wilson (2014 p 126) aponta que o fogo foi aos poucos sendo apagado

no mundo desenvolvido uma condiccedilatildeo necessaacuteria inclusive para que ele se

incorporasse agraves estruturas das casas Assim surgiram na Inglaterra os ldquofogotildees

fechadosrdquo que funcionavam agrave lenha e que serviam tambeacutem para aquecer a agua

ldquoUm fogatildeo nunca servia apenas para cozinhar tambeacutem era essencial para

fornecer aacutegua quente a toda a famiacutelia esquentar ferros de passar e aquecer as

matildeosrdquo Com o evento da Revoluccedilatildeo Industrial surgiram os fogotildees agrave base de

ferro fundido que funcionavam a carvatildeo Mas a autora explica que seu uso era

comum nas cidades pois nas aacutereas rurais permaneceu o uso do fogatildeo agrave lenha

por muitos anos O avanccedilo tecnoloacutegico logo propiciou o surgimento do fogatildeo a

gaacutes na deacutecada de 1880 considerado pela autora como um equipamento que

177

gerou ldquoum progresso real na cozinhardquo A sua aceitaccedilatildeo foi raacutepida em funccedilatildeo de

sua facilidade e praticidade e como mencionado pela autora em 1939 na

Inglaterra trecircs quartos das famiacutelias cozinhavam no fogatildeo a gaacutes

No que se refere ao grupo pesquisado mesmo em virtude de sua

praticidade o fogatildeo a gaacutes natildeo substituiu o fogatildeo agrave lenha Esse siacutembolo de

modernidade natildeo foi forte o suficiente para romper com a tradiccedilatildeo do fogatildeo agrave

lenha O fogatildeo a gaacutes eacute pouquiacutessimo utilizado ndash apenas para preparar o cafeacute da

manhatilde enquanto acende-se o fogatildeo a lenha ou para fazer ldquocoisa menorrdquo como

aquecer uma aacutegua ou o leite agrave tarde

No caso das famiacutelias em que as mulheres trabalham fora do siacutetio o fogatildeo

a gaacutes eacute mais usado para elaboraccedilatildeo do almoccedilo do que o fogatildeo a lenha A razatildeo

eacute a facilidade para os maridos e os filhos que aquecem o almoccedilo que elas deixam

pronto ou adiantado mas o fogatildeo a lenha permanece usado para aquecer a aacutegua

aquecer a aacutegua do chuveiro pela serpentina como citado por Ivone

Usamos mais o fogatildeo a gaacutes no dia a dia porque eu trabalho na escola do arraial de manhatilde e quando eu chego costumo ir ajudar meu marido ai ateacute acender o fogo demora muito pra aquecer entatildeo o fogatildeo a gaacutes eacute mais praacutetico para noacutesa gente liga o fogatildeo a lenha mesmo mais pra esquentar a aacutegua do chuveiro porque a gente tem serpentina mas a comida mesmo eacute no gaacutes Mas agrave tarde eacute mais faacutecil esquentar a comida no fogatildeo a lenha ainda mais agora que o frio vai chegando porque ele esquenta a casa (Ivone 38 anos moradora de Posses em Porto Firme MG 2015)

Nos que se refere ao uso dos fogotildees eacute tambeacutem possiacutevel perceber a

mescla cultural o moderno e o tradicional convivendo sem que isso gere

mudanccedilas radical nos costumes

As localizaccedilotildees das cozinhas nas casas que visitei satildeo nos fundos da

casa voltadas para o quintal semelhantemente ao que eacute apontado por Lemos

(1976) e Abrahatildeo (2007) sobre a disposiccedilatildeo do fogatildeo e da cozinha das casas

coloniais brasileiras Os fogotildees a lenha assim como o fogatildeo a gaacutes ficam na

ldquocozinha limpardquo expressatildeo usada por Algranti (1997) que eacute interna agrave casa Em

algumas casas havia tambeacutem a ldquocozinha sujardquo que possui mais um fogatildeo a

lenha e ou a gaacutes para torrar pequenas quantidades de cafeacute ligar o acendedor

de ldquolimparrdquo o porco apoacutes o abate fazer frituras de toucinho torresmo etc Natildeo se

trata de uma outra cozinha de alvenaria fechada mas sim de uma pequena

coberta no quintal

178

Outro fogatildeo que fica externo agrave casa eacute o fogatildeo de Cupim jaacute citado (Figura

21) Os fogotildees de cupim tambeacutem satildeo usados para fazer as comidas mais

gordurosas como descreve Doca (55 anos moradora de Boa Vista Piranga)

ldquoQuando a gente mata capado a gente frita as carnes os toucinhos no fogatildeo

de cupim laacute forardquo Os cupins satildeo retirados dos pastos e transportados por

carroccedila ateacute o quintal Neles satildeo feitos um buraco na lateral e rente ao chatildeo onde

eacute colocada a lenha e outro buraco em cima onde coloca-se a panela

Como jaacute mencionado o forno de barro apesar de existente nas casas

quase natildeo eacute utilizado pelas famiacutelias atualmente por motivos jaacute expostos Em uma

das casas o forno estava sendo usado para guardar objetos em desuso

Mas quando meus filhos vecircm ai sim eu acendo o forno grande laacute fora Eles sempre vecircm no natal A casa fica cheia ai daacute gosto usar o forno eles pedem pra fazer o que eles gostam ai a gente faz neacute (Zefa 67anos moradora de Mato Dentro em Presidente Bernardes MG 2015)

A Figura 22 pertence ao siacutetio de Selma e Lourival (68 e 76 anos

respetivamente) moradores da comunidade Tatu em Piranga Ao lado do forno

em alvenaria haacute uma espeacutecie de churrasqueira coberta com uma chapa de ferro

e uma churrasqueira menor de ferro fundido Esse espaccedilo segundo Selma eacute

utilizado apenas quando a casa estaacute cheia com a presenccedila dos filhos que gostam

e fazer churrascos quando estatildeo reunidos Nessas ocasiotildees ela tambeacutem utiliza

o forno para assar maior quantidade de quitandas

Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015

Figura 22 ndash Forno de barro e churrasqueira no siacutetio de Selma e Lourival

179

As famiacutelias possuem alguns equipamentos eleacutetricos nas cozinhas forno

de micro-ondas forno eleacutetrico panela eleacutetrica de fazer arroz e freezer mas nem

todos faziam parte da realidade de todas as famiacutelias Jaacute o liquidificador a

batedeira de bolo o espremedor de frutas e a geladeira existentes em todas as

casas O forno de micro-ondas o freezer e a batedeira de bolo satildeo usados

esporadicamente como jaacute visto no assunto sobre as quitandas com exceccedilatildeo do

freezer de Marcelina que estoca os salgados que produz para vender Natildeo

gostam de usar a batedeira porque ldquodaacute trabalho para lavar e depois guardarrdquo

A gente usa o micro-ondas para esquentar uma comida um leite agrave noite agraves vezes para descongelar uma carne comprar carne no accedilougue taacute muito caro assim eu mato um garrote vem um moccedilo do accedilougue da cidade e mata para noacutes ele conhece as partes desossa e ai congela as partes separadaspotildee nome das carnes em todos os pacotes separados e fica num freezer que a gente tem soacute pra isso (Joatildeo 81 anos morador de Aacutegua Limpa Porto Firme MG 2015)

Considerei interessante o desprendimento com o qual Joatildeo com seus

81 anos falava sobre o uso do micro-ondas Sabe utilizar o equipamento e

apesar de natildeo usar com frequecircncia natildeo demonstrou resistecircncia em utiliza-lo

quando necessaacuterio mas natildeo foi sempre assim O equipamento foi presente dado

por um dos filhos que moram fora da regiatildeo e durante muito tempo o casal

atribuiacutea utilidade a ele ateacute os filhos mostrarem alguns resultados de

descongelamento e aquecimento como o que a famiacutelia mais utiliza explicitado

na sua fala Wilson (2014) discute sobre a resistecircncia que muitos equipamentos

de uso corriqueiro na contemporaneidade ndash dentre eles o micro-ondas ndash tiveram

quando do seu surgimento tendo sido recebido sob protestos de que os meacutetodos

antigos eram melhores e mais seguros

Em quatros das casas que visitei havia a panela eleacutetrica de fazer arroz

Foram presentes de filhos ou mesmo adquiridos pelas mulheres inicialmente

pela curiosidade associada ao preccedilo relativamente baixo Este equipamento

surgiu no Japatildeo na deacutecada de 1960 mudando completamente a rotina de

produzir o tipo de arroz nas cozinhas asiaacuteticas Wilson (2014) destaca que esse

tipo de panela eacute equipamento mais importante nas casas japonesas do que a

televisatildeo Nas famiacutelias que pesquisei e que possui a panela eleacutetrica ela nem de

longe eacute mais importante do que outros equipamentos tradicionais como o fogatildeo

mas estaacute ganhando espaccedilo de convivecircncia na cozinha sem maiores conflitos

180

Em uma das casas onde almocei tive a oportunidade de conhecer seu

funcionamento e experimentar o arroz produzido As mulheres elogiaram o

equipamento afirmando que ldquoO arroz fica mais soltinho eacute muito melhor fazer

arroz nela natildeo daacute trabalho nenhumrdquo (Nanaacute moradora de Xopotoacute em Presidente

Bernardes)

A presenccedila e uso desses equipamentos satildeo tambeacutem exemplos da

coexistecircncia entre elementos modernos e tradicionais nas famiacutelias Enquanto se

faz o restante da comida no fogatildeo a lenha a panela eleacutetrica de arroz fica em

funcionamento sobre a pia Giard (2012) ao tratar da introduccedilatildeo dos

equipamentos eleacutetricos na cozinha destaca que o uso de um aparelho eleacutetrico

envolve a relaccedilatildeo instrumental que se estabelece entre utilizador e objeto

utilizado ldquoA cozinheira apenas alimenta esse objeto teacutecnico com ingredientes

que devem ser transformados depois liga o aparelho apertando um botatildeo

eleacutetrico e recolhe a mateacuteria transformada sem controlar as etapas intermediaacuterias

da operaccedilatildeordquo (GIARD 2012 p 284) Para esta autora apesar da praticidade

desses equipamentos eleacutetricos eles propiciaram rompimentos na transmissatildeo

de algumas habilidades culinaacuterias mas ainda assim considera perfeitamente

possiacutevel a junccedilatildeo da modernidade dos equipamentos eleacutetricos com os utensiacutelios

tradicionais usufruindo das comodidades oferecidas pelos primeiros e mantendo

relaccedilatildeo igualmente necessaacuteria e importante com os objetos tradicionais Mas

defende que satildeo formas de convivecircncia que natildeo devem ser impostas cada

grupo ou pessoa deve fazer sua escolha de acordo com suas manifestaccedilotildees

culturais

Finalizando a pesquisa de campo destaco que ela trouxe informaccedilotildees

ricas sobre o modo de vida a sociabilidade e a cultura das famiacutelias pesquisadas

no que se refere agraves praacuteticas alimentares e a comensalidade A pesquisa mostrou

que as famiacutelias estatildeo inseridas em uma cultura que eacute dinacircmica mas que

preserva e valoriza a cultural tradicional Percebi durante a investigaccedilatildeo muitas

conexotildees e correlaccedilotildees com a pesquisa teoacuterica me conduzindo o tempo a fazer

reflexotildees analiacuteticas pensando na interface entre a teoria e a praacutetica Sobre as

percepccedilotildees finais relacionadas ao campo teccedilo consideraccedilotildees no item a seguir

181

CONCLUSOtildeES

Neste trabalho apontei caracteriacutesticas e peculiaridades das praacuteticas

alimentares das famiacutelias rurais que entrevistei O tema da alimentaccedilatildeo natildeo se

conclui pelo contraacuterio ele eacute dinacircmico Chamo de conclusatildeo aqui o fechamento

analiacutetico com outras discussotildees e reflexotildees sobre esta pesquisa

Haacute uma discussatildeo na antropologia e sociologia da alimentaccedilatildeo sobre a

tendecircncia a homogeneizaccedilatildeo alimentar na sociedade ocidental seguindo os

rumos da sociedade moderna e globalizada como tratado por Bauman (2001)

Esta premissa foi um dos pontos que me fez refletir inicialmente o problema de

pesquisa ao questionar se nela natildeo estava impliacutecita uma desconsideraccedilatildeo agraves

diversidades culturais Nesse sentido pensei a questatildeo no contexto rural ndash

especialmente no contexto rural da Zona da Mata mineira por ser nele onde

mais tive a oportunidade de conviver socialmente e academicamente ateacute hoje

Assim conhecer e analisar o sistema alimentar de famiacutelias rurais seus

haacutebitos praacuteticas e a comensalidade foi fundamental para ponderar e tecer

consideraccedilotildees conclusivas a respeito dessa questatildeo Este trabalho permitiu

compreender que tal premissa natildeo se aplica agrave realidade sociocultural das

famiacutelias pesquisadas No contexto cultural em que vivem natildeo se verificou a

adoccedilatildeo das praacuteticas alimentares homogeneizantes das quais trata Fischler (1979

e 1998) homogeneidade considerada como um resultado natural na dinacircmica

da sociedade contemporacircnea em funccedilatildeo das constantes inovaccedilotildees na induacutestria

de alimentos tornando potencialmente inevitaacutevel a praacutetica e o consumo

alimentar cada vez mais padronizados no ocidente Embora as famiacutelias natildeo

estejam imunes agraves modernidades alimentares da induacutestria demonstraram

capacidade e interesse em selecionar o que desse contexto deve ser adotado e

o que deve ser rejeitado por elas

A pesquisa mostrou a existecircncia de uma homogeneizaccedilatildeo alimentar na

realidade cultural das famiacutelias pesquisadas poreacutem uma homogeneizaccedilatildeo local

e pontual que natildeo eacute semelhante a homogeneizaccedilatildeo alimentar tratada pelo autor

acima Ao contraacuterio nas famiacutelias que pesquisei essa homogeneidade alimentar

estaacute inteiramente ligada agrave tradiccedilatildeo e agrave produccedilatildeo local de alimentos Ela eacute

inclusive compatiacutevel com o processo sociohistoacuterico de ocupaccedilatildeo da regiatildeo e

diretamente determinada por ele Coincidindo com o que pondera Flandrin e

182

Montanari (1998) sobre a necessidade de relativizar a discussatildeo sobre a

homogeneizaccedilatildeo cultural e considerar as particularidades sociais e culturais dos

grupos

Todas as famiacutelias pesquisadas abrangendo os trecircs municiacutepios tecircm

haacutebitos e praacuteticas alimentares semelhantes independente da faixa etaacuteria dos

casais e filhos que formam o grupo familiar A semelhanccedila tambeacutem se aplica aos

produtos cultivados nos siacutetios que representam quase que a totalidade da dieta

baacutesica das famiacutelias Assemelham-se tambeacutem os alimentos adquiridos do

mercado

As mudanccedilas observadas nas praacuteticas alimentares tais como a adoccedilatildeo

de novas tecnologias ndash entre elas a substituiccedilatildeo do moinho drsquoaacutegua pelo moinho

eleacutetrico e a opccedilatildeo de comprar alguns alimentos antes produzidos por eles como

o arroz e o accediluacutecar ndash natildeo implica um abandono total da tradiccedilatildeo As famiacutelias estatildeo

convivendo ou se adaptando aos processos de mudanccedilas no mundo

contemporacircneo sem transformar significativamente a proacutepria cultura O uso do

moinho eleacutetrico em lugar do moinho drsquoaacutegua natildeo tem colocado em risco o

consumo do fubaacute na elaboraccedilatildeo de comidas tradicionais como o angu e a broa

Esse comportamento se assemelha agravequele entendimento apresentado por

autores como Giddens (2012) Doacuteria (2014) e Cacircndido (1982) que acreditam

que a convivecircncia possiacutevel e mais provaacutevel de ocorrer na contemporaneidade

se daacute por meio da mescla entre fatores de persistecircncia e os de mudanccedilas que

se complementam mas sem extinguir as construccedilotildees simboacutelicas tradicionais

Eacute importante ressaltar que a incorporaccedilatildeo das opccedilotildees de praacuteticas

alimentares modernas tambeacutem natildeo eacute acriacutetica As famiacutelias sabem que a

substituiccedilatildeo de uma pratica por outra implica em riscos e em perdas e ganhos

como no caso da gordura de porco Mostraram-se conscientes quanto agrave questatildeo

relativa agrave sauacutede no consumo desse alimento mas ele continua sendo

prioritariamente utilizado na preparaccedilatildeo de comidas tradicionais O que

prevalece neste caso eacute a escolha pelo sabor do alimento e pelo significado

simboacutelico e tradicional atrelado a ele Tal como reforccedilado pelos interlocutores a

comida feita com gordura de porco eacute mais saborosa e eacute a que daacute ldquosustanccedilardquo

Ainda que algumas pessoas tenham demonstrado estar mais preocupadas com

a sauacutede do que com o sabor e preferissem utilizar somente o oacuteleo vegetal natildeo

eacute essa opccedilatildeo que prevalece no montante das famiacutelias porque as mudanccedilas satildeo

183

ou natildeo incorporadas nas praacuteticas alimentares levando em consideraccedilatildeo

tambeacutem a cultura familiar

Pode-se afirmar tambeacutem que a adoccedilatildeo pelas tecnologias e praacuteticas

alimentares modernas natildeo tem sido radical Um exemplo disso eacute a manutenccedilatildeo

prioritaacuteria do uso do fogatildeo a lenha O fogatildeo a gaacutes assume um lugar importante

no preparo do almoccedilo nas famiacutelias onde as mulheres trabalham fora do siacutetio o

que aponta para um dos ajustes necessaacuterios que as famiacutelias tecircm precisado fazer

para se adaptar agraves novas realidades vividas Ainda assim o fogatildeo a lenha

continua sendo utilizado para fazer o jantar e para aquecer a aacutegua do chuveiro

evitando-se com isso o consumo de energia eleacutetrica Natildeo houve tambeacutem

nessas famiacutelias a substituiccedilatildeo de alimentos in natura por industrializados

congelados visando a praticidade na preparaccedilatildeo do almoccedilo Eacute importante

ressaltar que nessas famiacutelias ocorre uma alteraccedilatildeo no papel masculino relativo

a culinaacuteria jaacute que os maridos e os filhos passam a aquecer e a preparar alguns

itens de sua alimentaccedilatildeo Se antes essa era uma responsabilidade

exclusivamente feminina as mudanccedilas no papel masculino sinalizam ainda que

timidamente novas negociaccedilotildees de gecircnero nessas famiacutelias sinalizando

alteraccedilotildees em um espaccedilo que historicamente e culturalmente eacute de domiacutenio

feminino Eacute uma heranccedila que ainda vem resistindo e passando de avoacutes para

matildees e netas e de matildee para filhas

A articulaccedilatildeo entre o tradicional e o moderno na cultura alimentar das

famiacutelias mostrou estar ocorrendo sem impasses ou conflitos significativos

Mesmo que a compra de um alimento in natura proveniente da CEASA vendido

pelos caminhotildees gere receio da ingestatildeo de agrotoacutexicos essa aquisiccedilatildeo ocorre

ainda que eventualmente e por necessidade especiacutefica

A tradiccedilatildeo do consumo e elaboraccedilatildeo das quitandas permanece em todas

as famiacutelias Ela representa aleacutem de uma ldquomerendardquo importante para as famiacutelias

no dia a dia uma importante continuidade tradicional Elaboram-se as mesmas

quitandas haacute geraccedilotildees e ao mesmo tempo ocorrem ligeiras substituiccedilotildees como

o biscoito de polvilho frito pelo assado e adquirido no mercado local O patildeo

francecircs que eacute tatildeo consumido nas aacutereas urbanas natildeo faz parte do gosto

alimentar das famiacutelias e eacute de consumo muito raro

Na manutenccedilatildeo dos haacutebitos alimentares tradicionais estaacute presente a

influecircncia dos guardiatildees da tradiccedilatildeo na reproduccedilatildeo do gosto no processo de

184

significaccedilatildeo e ressignificaccedilatildeo da comida atrelada agraves praacuteticas aos saberes e aos

haacutebitos tanto no cotidiano quanto nas comidas de dias festivos A constacircncia

das expressotildees ldquoaprendemos a comer assimrdquo ldquoaprendi a cozinhar vendo minha

matildee fazerrdquo ldquona casa de meus pais fazia assimrdquo denotam a valorizaccedilatildeo dos

aprendizados e o interesse na perpetuaccedilatildeo dos haacutebitos

No que se refere agrave comensalidade no grupo familiar a pesquisa mostrou

que ela estaacute passando por modificaccedilotildees importantes em algumas famiacutelias

Naquelas em que as mulheres trabalham nas escolas a comensalidade ocorre

na escola em companhia de outras colegas e alunos nos horaacuterios de almoccedilo No

restante do grupo a comensalidade se daacute entre aqueles que estatildeo em casa jaacute

que nessas famiacutelias natildeo foi citado casos de pessoas que almoccedilam na atividade

local com o uso de marmita A comensalidade no horaacuterio de jantar tem sofrido

modificaccedilotildees nos uacuteltimos anos em todas as famiacutelias mesmo naquelas com

pessoas mais velhas Ocorre com frequecircncia entre eles servir o prato e se

sentarem na sala para assistir televisatildeo enquanto jantam Houve entatildeo um

deslocamento da mesa da cozinha para o sofaacute da sala Se em tempos passados

o fogo era um fator socializador e propiciador da comensalidade que ocorria

em torno da fogueira da lareira e do fogatildeo a lenha como apontado por

Wrangham (2010) e Montanari (2008) na modernidade a televisatildeo pode tambeacutem

assumir essa funccedilatildeo tanto no meio urbano quanto no meio rural pelo menos no

que se refere agraves famiacutelias que entrevistei

Alimentos industrializados satildeo consumidos em todas as famiacutelias

embora natildeo em grande quantidade e diversidade proporcionalmente ao que se

encontra disponiacutevel nos mercados e satildeo itens importantes nos cardaacutepios As

famiacutelias adquirem alimentos que sempre fizeram parte dos haacutebitos alimentares

e que em tempos passados jaacute foram produzidos nos siacutetios No entanto compram

tambeacutem alguns alimentos que nunca foram produzidos localmente mas que

passaram a ser adotados o que aponta para a dinacircmica da cultura

O significado da comida para as famiacutelias tem importante ligaccedilatildeo com a

tradiccedilatildeo e representa uma identificaccedilatildeo significativa com as geraccedilotildees passadas

Marca ainda a ligaccedilatildeo com a terra ao serem consumidos prioritariamente o que

se produz no local As comidas tradicionais e elaboradas de modo simples satildeo

as que mais agradam ao paladar das famiacutelias e apesar de ser um cardaacutepio de

certa forma monoacutetono natildeo se torna indesejado e natildeo foi apontado pelas famiacutelias

185

algum desejo ou necessidade por experimentar comidas diferentes das que

estatildeo habituados A prioridade do grupo pesquisados pela alimentaccedilatildeo baseada

em produtos cultivados localmente e em praacuteticas mais tradicionais coincide com

o que proposto pelo ldquoGuia Alimentar para a Populaccedilatildeo Brasileirardquo (2015)

publicado pelo Ministeacuterio da Sauacutede contendo diretrizes de uma alimentaccedilatildeo

saudaacutevel e considerando como importante tambeacutem o aspecto cultural

As famiacutelias estatildeo conscientes de que as transformaccedilotildees constantes que

ocorrem na sociedade atual tecircm o poder de interferir em suas praacuteticas e haacutebitos

alimentares Consideram que vai se tornando cada vez mais difiacutecil manter seus

haacutebitos alimentares por fatores de caraacuteter mais externos do que internos e que

interferem na sua dinacircmica de reproduccedilatildeo social e econocircmica

Inseridas no processo que envolve tanto o desejo de manter sua

autonomia produtiva e cultura alimentar quanto agrave necessidade de ceder a

algumas mudanccedilas essas famiacutelias estatildeo aprendendo a se adaptar com as

experiecircncias do cotidiano natildeo se fecham em seus nuacutecleos culturais e nem se

posicionam avessos agraves mudanccedilas demonstram uma atitude resignada poreacutem

criacutetica acatando os itens da modernidade alimentar que lhes agrada e lhes satildeo

importantes e rejeitando o que natildeo lhes interessa respeitando prioritariamente

a cultura local no sentido tratado por Helman (1994) no processo de escolha

alimentar Haacute nessa percepccedilatildeo um sentido de resistecircncia identitaacuteria alimentar

semelhante agrave que Poulain (2013) discute como sendo uma das caracteriacutesticas

das culturas alimentares locais

Por fim concluo que na ocasiatildeo da pesquisa a comida possuiacutea a

mesma centralidade cultural para as famiacutelias que pesquisei que aquela da eacutepoca

de seus antepassados Apesar de estarem inseridas na dinacircmica

contemporacircnea de mudanccedilas a vida cotidiana ainda segue um ritmo lento que

de certa forma difere do ritmo das aacutereas urbanas o que permite ainda este status

central da comida em sua cultura

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