prÁticas alimentares e sociabilidades em famÍlias … · 2016. 4. 20. · 5.5. mescla cultural:...
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ROMILDA DE SOUZA LIMA
PRAacuteTICAS ALIMENTARES E SOCIABILIDADES EM FAMIacuteLIAS RURAIS DA ZONA DA MATA MINEIRA MUDANCcedilAS E PERMANEcircNCIAS
Tese apresentada agrave Universidade Federal de Viccedilosa como parte das exigecircncias do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Extensatildeo Rural para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doctor Scientiae
VICcedilOSA MINAS GERAIS ndash BRASIL
2015
ROMILDA DE SOUZA LIMA
PRAacuteTICAS ALIMENTARES E SOCIABILIDADES EM FAMIacuteLIAS RURAIS DA ZONA DA MATA MINEIRA MUDANCcedilAS E PERMANEcircNCIAS
Tese apresentada agrave Universidade Federal de Viccedilosa como parte das exigecircncias do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Extensatildeo Rural para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doctor Scientiae
APROVADA 25 de novembro de 2015
ii
Aos meus pais que me ensinaram a fazer escolhas na vida baseadas no amor
e a me dedicar com responsabilidade a tudo que faccedilo Ao meu pai que sempre
se despede dos filhos e netos dizendo ldquovai em paz seja felizrdquo Agrave minha matildee
que adoeceu e faleceu no meio do processo do doutorado e que apesar de
seu estado de sauacutede esteve sempre atenta e preocupada com meu trabalho
Ela que gostava de experimentar pratos novos mas elaborava a comida
tradicional como ningueacutem me ensinou que a cozinha eacute um lugar onde coisas
boas acontecem para quem estaacute disposto a vivenciar sua ldquoalquimiardquo
iii
AGRADECIMENTOS
A Deus por tudo Por me sentir capaz de superar os momentos de
tristeza e fragilidade e vivenciar sem culpa os momentos de alegria e de
bonanccedila
Ao meu orientador Joseacute Ambroacutesio Ferreira Neto pela orientaccedilatildeo apoio
e confianccedila Por assumir minha orientaccedilatildeo em 2014 e me ajudar nesta travessia
Pela oacutetima orientaccedilatildeo pelas criacuteticas e elogios
A Rita de Caacutessia Pereira Farias pela coorientaccedilatildeo pelas importantes
contribuiccedilotildees ao trabalho pelo incentivo e as conversas que tivemos
Aos professores membros da banca examinadora Eliana Gomes de
Souza Douglas Mansur da Silva Ricardo Ferreira Ribeiro e ainda Joseacute
Ambroacutesio Ferreira Neto e Rita de Caacutessia Pereira Farias pela participaccedilatildeo pelas
criacuteticas e sugestotildees
Aos teacutecnicos da Emater dos municiacutepios pesquisados Rita Maria
Brumano Oliveira Geraldo Antocircnio da Silva Eduardo Muniz e ao assistente de
escritoacuterio Luiz Antocircnio Faria por todo apoio necessaacuterio agrave realizaccedilatildeo da pesquisa
de campo pela companhia em muitas das comunidades visitadas
Agraves famiacutelias que entrevistei e que me receberam tatildeo bem Agradeccedilo pela
compreensatildeo a respeito da pesquisa e pelas longas horas dedicadas ao diaacutelogo
pelas deliciosas refeiccedilotildees que fiz em companhia delas Meu aprendizado com
essa convivecircncia foi imenso
Agradeccedilo ao meu pai e minha matildee ndash ldquoouro de Minardquo E agradeccedilo pelo
carinho de sempre a toda minha famiacutelia que estaacute o tempo todo presente na
travessia que faccedilo pela vida ainda que muitas vezes agrave distacircncia Aos meus
irmatildeos Cristina e Joseacute Mauro sempre preocupados com a irmatilde mais nova Ao
meu irmatildeo Gumercindo pelo apoio nos momentos difiacuteceis e pelos conselhos
acadecircmicos durante o doutorado Agrave minha cunhada Luciana pelo socorro em
momentos de fragilidade com a sauacutede apoacutes noitadas sem dormir
Ao Felipe amor que chegou no meio da trajetoacuteria do doutorado
companheiro que soacute tem me trazido alegria amor e apoio incondicional e muita
muacutesica
iv
A Luana minha enteada querida pelas revisotildees dos abstracts para
artigos e por ter compreendido facilmente minha ausecircncia em seu casamento
no Rio de Janeiro em funccedilatildeo do trabalho
Agrave Universidade Federal de Viccedilosa pela oportunidade de realizar o
doutorado e aos professores do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Extensatildeo
Rural pelas trocas de experiecircncias e conhecimentos Aos funcionaacuterios do
Departamento de Economia Rural sobretudo Romildo e Carminha pela atenccedilatildeo
e simpatia
Agrave Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute instituiccedilatildeo onde atuo haacute
12 anos por ter permitido meu afastamento para fazer o doutorado
Agrave CAPES pelos dois anos de bolsa REUNI (2012 e 2013)
Agraves colegas de doutorado pelas conversas pelas alegrias e tristezas que
compartilhamos em alguns momentos e pelas boas energias que partilhaacutevamos
na conduccedilatildeo do trabalho Agradeccedilo tambeacutem os estudantes do mestrado com
quem fiz amizade ao longo de todo o periacuteodo A Fernanda Machado por me
socorrer elaborando os dois mapas que precisei
v
SUMAacuteRIO
LISTA DE TABELAS vii
LISTA DE QUADROS viii
LISTA DE FIGURAS ix
LISTA DE SIGLAS xi
RESUMO xii
ABSTRACT xiv
INTRODUCcedilAtildeO 1
1 A REGIAtildeO DE ESTUDO 5
11 Um breve histoacuterico de ocupaccedilatildeo da regiatildeo estudada 6
12 Informaccedilotildees atuais sobre a populaccedilatildeo rural e as principais atividades agriacutecolas dos municiacutepios pesquisados 10
13 Atividades produtivas 13
2 A COMIDA EM MINAS GERAIS DA ESCASSEZ Agrave FARTURA 18
21 Contextualizando o lugar da comida no Brasil Colonial nos primoacuterdios 18
22 Fase da mineraccedilatildeo em Minas Gerais escassez de alimentos 24
23 Fase da ruralizaccedilatildeo em Minas Gerais fartura de alimentos 29
3 ALIMENTACcedilAtildeO E CULTURA PERMANEcircNCIAS E TRANSFORMACcedilOtildeES 36
31 A alimentaccedilatildeo como categoria de estudo multidisciplinar contribui-ccedilotildees da antropologia da sociologia e da histoacuteria 36
32 Sistema alimentar 46
321 Alimentos aceitos e rejeitados 49
3211 Haacutebitos alimentares orientados por costumes e tradiccedilotildees 52
33 Alimento comida e cultura 55
331 A importacircncia social e cultural do uso do fogo e sua relaccedilatildeo com a comensalidade 59
3311 O local do fogo e da praacutetica da comensalidade na arquitetura domeacutestica 63
34 Praacuteticas alimentares na contemporaneidade entre o tradicional e o moderno 68
35 Modernidade e tradiccedilatildeo no contexto alimentar rural contemporacircneo 78
36 O papel feminino nas praacuteticas alimentares na famiacutelia 86
4 ASPECTOS METODOLOacuteGICOS DA PESQUISA E A CHEGADA AO CAMPO 94
41 Teacutecnica de pesquisa 95
vi
42 Os sujeitos da pesquisa 95
43 A conduccedilatildeo da pesquisa o caminho percorrido 96
44 A entrevista semiestruturada 98
45 A imersatildeo em campo a chegada e a travessia 98
46 Descobrindo a cultura local dos entrevistados 101
461 Perfil das famiacutelias 101
462 A produccedilatildeo agriacutecola local 107
463 Atividades cotidianas de trabalho nos siacutetios 108
5 CULTURA E PRAacuteTICAS ALIMENTARES NO SISTEMA FAMILIAR RURAL RELACcedilOtildeES COM A COMIDA PERMANEcircNCIAS E MUDANCcedilAS 114
51 Comida ldquoforterdquo e comida ldquofraca contradiccedilotildees mudanccedilas e permanecircn-cias 114
511 Outras comidas ldquofortesrdquo 125
52 Consideraccedilotildees sobre a importacircncia do milho e do fubaacute 129
53 Comida de todo dia comida de festa e as relaccedilotildees de comensalidade 137
531 Comida de todo dia o trivial 137
532 Comida de domingo de dias festivos e comensalidade 143
533 Os doces 151
54 A comensalidade para aleacutem das festas e datas especiais 154
55 Mescla cultural praacuteticas de consumo alimentar de ontem e de hoje 156
56 As quitandas para a merenda e para servir agraves visitas 160
57 Receitas oralidade e registros em cadernos 168
58 Os equipamentos da cozinha rural do fogatildeo a lenha agrave panela eleacutetrica de arroz 172
CONCLUSOtildeES 181
REFEREcircNCIAS 186
vii
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 ndash Aacuterea e populaccedilatildeo da microrregiatildeo de Viccedilosa (2015) 11
Tabela 2 ndash Percentual da populaccedilatildeo urbana e rural da microrregiatildeo de Viccedilosa nas deacutecadas de 1980 a 2010 (2015) 11
Tabela 3 ndash Populaccedilatildeo rural por diferentes faixas etaacuterias 12
Tabela 4 ndash Percentual da populaccedilatildeo rural por diferentes faixas etaacuterias () 13
Tabela 5 ndash Comparativo entre perfil etaacuterio do IBGE (2010) e da pesquisa de campo 2015 () 106
Tabela 6 ndash Comparativo da composiccedilatildeo de gecircnero do IBGE e da pesquisa de campo 2015 106
viii
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 ndash Municiacutepios comunidades e nuacutemero de famiacutelias 2015 96
Quadro 2 ndash Fonte de renda das famiacutelias pesquisadas 2015 108
ix
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 ndash Microrregiotildees da Zona da Mata de Minas Gerais 5
Figura 2 ndash Microrregiatildeo de Viccedilosa Minas Gerais 6
Figura 3 ndash Santuaacuterio de Bom Jesus de Matozinhos em Bom Jesus do Bacalhau 9
Figura 4 ndash Milho colhido no siacutetio de Anita e Gilberto na comunidade de Manja em Piranga 15
Figura 5 ndash Carro de boi transportando espigas de milho da roccedila para o paiol na estrada da comunidade de Manja em Piranga 16
Figura 6 ndash Engenho de produccedilatildeo de rapadura no siacutetio de Lola e Marcos na comunidade Xopotoacute Presidente Bernardes 16
Figura 7 ndash Moinho drsquoaacutegua no siacutetio de Manoel e Donana na Comunidade Limeira Porto Firme 130
Figura 8 ndash Moinho eleacutetrico no siacutetio de Nanaacute e Custoacutedio na Comunidade Xopotoacute em Piranga 131
Figura 9 ndash Cebolas e alhos armazenados no paiol do siacutetio de Maria e Laeacutercio na comunidade Itapeva em Presidente Bernardes 139
Figura 10 ndash Horta no siacutetio de Eliana e Saturnino em Itapeva Presidente Bernardes MG 140
Figura 11 ndash Fogatildeo de cupim no quintal do siacutetio de Eliana e Saturnino em Itapeva Presidente Bernardes 146
Figura 12 ndash Processo de fritura do ldquomilhopatilderdquo 149
Figura 13 ndash Doce de ameixa feito por Marieta na comunidade Boa Vista em Piranga MG 154
Figura 14 ndash Broa do tipo Cobu ou ldquopau a piquerdquo 161
Figura 15 ndash Broa de fubaacute feita por Eliana em Itapeva Presidente Bernardes 162
Figura 16 ndash Caderno de receitas que pertenceu agrave matildee de Anita moradora da Comunidade Manja em Piranga 169
Figura 17 ndash Caderno de receitas de Lucia da Comunidade Manja em Piranga 170
Figura 18 ndash Mariacutelia da Comunidade de Mestre Campos em Piranga mostrando seus livros e cadernos de receitas 171
x
Figura 19 ndash Fogatildeo a lenha no siacutetio de Mariacutelia 174
Figura 20 - Fogatildeo a lenha no siacutetio de Nanaacute e Custoacutedio 175
Figura 21 ndash Cozinha com fogatildeo a lenha (azulejado) em siacutetio de Eliana e Saturnino 176
Figura 22 ndash Forno de barro e churrasqueira no siacutetio de Selma e Lourival 178
xi
LISTA DE SIGLAS
CAPES ndash Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior
CEP ndash Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa com Seres Humanos
ECA ndash Estatuto da Crianccedila e do Adolescente
EMATER-MG ndash Empresa de Assistecircncia Teacutecnica e Extensatildeo Rural do Estado de
Minas Gerais
FAOONU ndash Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas para Agricultura e Alimentaccedilatildeo
FBSSAN ndash Foacuterum Brasileiro de Soberania e Seguranccedila Alimentar e Tradicional
IARC ndash International Agency for Research on Cancer
IBGE ndash Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica
IPHAN ndash Instituto do Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional
ODELA ndash Observatorio de la Alimentacioacuten
OMS ndash Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede
PAA ndash Programa de Aquisiccedilatildeo de Alimentos
UFV ndash Universidade Federal de Viccedilosa
USP ndash Universidade de Satildeo Paulo
xii
RESUMO
LIMA Romilda de Souza DSc Universidade Federal de Viccedilosa novembro de 2015 Praacuteticas alimentares e sociabilidades em famiacutelias rurais da Zona da Mata mineira mudanccedilas e permanecircncias Orientador Joseacute Ambroacutesio Ferreira Neto Coorientadora Rita de Caacutessia Pereira Farias
Este trabalho tem como objetivo analisar e compreender os significados da
comida e as relaccedilotildees de comensalidade atendo-se agraves mudanccedilas e
permanecircncias referentes agraves praacuteticas alimentares de famiacutelias rurais dos
municiacutepios mineiros de Piranga Porto Firme e Presidente Bernardes A
metodologia escolhida foi qualitativa utilizando-se da entrevista
semiestruturada observaccedilatildeo registros fotograacuteficos e o caderno de campo As
anaacutelises da pesquisa empiacuterica foram construiacutedas agrave luz das abordagens teoacutericas
da antropologia e sociologia da alimentaccedilatildeo e da histoacuteria da alimentaccedilatildeo Apesar
da tendecircncia apontada por alguns autores contemporacircneos de uma
homogeneizaccedilatildeo alimentar na sociedade ocidental fruto do processo de
modernizaccedilatildeo e globalizaccedilatildeo que teria o poder de influenciar e transformar as
praacuteticas alimentares esta natildeo foi a realidade observada nas famiacutelias rurais
pesquisadas A pesquisa apontou para a necessidade de considerar a
diversidade cultural e o contexto sociohistoacuterico ao estudar as questotildees relativas
a alimentaccedilatildeo dos grupos Nas famiacutelias estudadas as praacuteticas alimentares
possuem forte viacutenculo com a tradiccedilatildeo e agrave produccedilatildeo local de alimentos Isso natildeo
significa que elas estatildeo imunes agraves interferecircncias e agraves mudanccedilas
contemporacircneas Neste sentido as mudanccedilas observadas nas praacuteticas
alimentares tais como a adoccedilatildeo de novas tecnologias tecircm ocorrido de forma
ainda tiacutemida e natildeo implica um abandono da tradiccedilatildeo As famiacutelias estatildeo
convivendo ou se adaptando aos processos de mudanccedilas no mundo
contemporacircneo sem negar suas raiacutezes histoacutericas A incorporaccedilatildeo das praacuteticas
alimentares modernas tambeacutem natildeo eacute acriacutetica As famiacutelias sabem que a
substituiccedilatildeo implica em riscos perdas e ganhos No caso da gordura de porco
por exemplo mostraram-se conscientes quanto agrave questatildeo relativa agrave sauacutede no
consumo desse alimento que continua sendo prioritariamente utilizado na
preparaccedilatildeo de comidas tradicionais O que prevalece neste caso eacute a escolha
xiii
pelo sabor do alimento e pelo significado simboacutelico e tradicional atrelado a ele
Inseridas no processo que envolve tanto o desejo de manter sua autonomia
produtiva e cultura alimentar quanto agrave necessidade de ceder a algumas
mudanccedilas essas famiacutelias estatildeo aprendendo a se adaptar agraves dinacircmicas da
modernidade aderindo agraves novidades alimentares que lhes agradam e lhes satildeo
importantes e rejeitando o que natildeo lhes eacute interessante
xiv
ABSTRACT
LIMA Romilda de Souza DSc Universidade Federal de Viccedilosa November 2015 Eating habits and sociabilities in rural families of Minas Geraisrsquo Zona da Mata changings and remainings Adviser Joseacute Ambroacutesio Ferreira Neto Co-adviser Rita de Caacutessia Pereira Farias
This work aims to analyze and understand the meaning of food and commensality
relations limited to the changes and remains related to the eating habits of rural
families in the municipalities of Piranga Porto Firme and Presidente Bernardes
The chosen methodology was qualitative using semi-structured interviews and
observation The instruments used were the recorded interviews photographic
register and field notebook The empirical research analysis was built under the
light of theoretical approaches of anthropology and sociology of the alimentation
and history of the alimentation Despite the tendency pointed out by some
contemporary authors of a food homogenization in Western society as a result
of the modernization and globalization process that would have the power to
influence and transform the eating habits this was not the reality observed in the
surveyed rural families The research indicated the need to consider the cultural
diversity and the socio-historical context in order to study issues related to eating
habits of the groups In the studied families the issues related to eating habits
have a strong bond with the tradition and local food production That doesnrsquot
mean they are immune to interference and to contemporary changes In this
sense the observed changes in dietary practices such as the adoption of new
technologies have occurred still timidly and donrsquot imply a total abandonment of
tradition Families are living or adapting themselves to the changing processes in
the contemporary world without however transforming significantly their own
culture Itrsquos important to highlight that the incorporation of modern eating habits
options is not uncritical too The families know that the replacement of a habit by
another entails risks losses and gains as in the case of pork fat They proved to
be conscious about the matter on health in consumption of that food but it
remains primarily used in the preparation of traditional foods What prevails in this
case it is the choice by the flavor of the food and by the symbolic and traditional
meaning attached to it Inserted in the process involving both the desire to
xv
maintain its productive autonomy and eating culture and the need to give in to
some changes these families are learning to adapt to the everyday experiences
they arenrsquot closed in their cultural cores and even take posiacutetion averse to change
they demonstrate a resigned but critical attitude by submitting to the items of food
modernity they please and consider important as well as rejecting what is not
interesting to them
1
INTRODUCcedilAtildeO
ldquoDepois do idioma a comida eacute o mais importante elo entre o homem e a culturardquo
(Raul Lody 1997)
A alimentaccedilatildeo elemento baacutesico de sobrevivecircncia humana eacute tema
carregado de complexidade Se a razatildeo primeira do ato alimentar eacute a
necessidade fisioloacutegica de nutrir-se as demais satildeo carregadas de justificativas
culturais sociais e econocircmicas que por sua vez determinam as escolhas
alimentares
Aleacutem de ser um comportamento automaacutetico a sociologia a antropologia
e a histoacuteria da alimentaccedilatildeo tecircm mostrado que comer eacute um comportamento que
se liga de forma iacutentima com o comedor1 Em sentido semelhante o entendimento
da comida como categoria analiacutetica nessas trecircs aacutereas de estudo mostra que
pela comida eacute possiacutevel perceber as transformaccedilotildees do mundo social no decorrer
dos tempos Essa relaccedilatildeo se estabelece na escolha e ingestatildeo do alimento pois
conforme pondera Lody (2008 p 12) ldquonenhum alimento que entra em nossas
bocas eacute neutrordquo
Dessa forma este trabalho se fundamenta na compreensatildeo cultural e
social da comida vista como categoria de pensamento simboacutelico Trata-se
daquele sentido em que por meio das regras socialmente estabelecidas no ato
de comer criam-se viacutenculos com quem se come com o que se produz e com as
demais dinacircmicas que envolvem as praacuteticas alimentares O sentido dado por
Cacircndido (1982 p 30) elucida esse intuito
Qualquer que seja a posiccedilatildeo do alimento eacute sempre acentuada a sua importacircncia como fulcro de sociabilidade ndash natildeo apenas do que se organiza em torno dele mas daquelas em que ele aparece como expressatildeo tangiacutevel dos atos e das intenccedilotildees (CAcircNDIDO1982 p 30)
A escolha do tema da pesquisa se deu a partir de um processo que foi
sendo delineado e construiacutedo aos poucos considerando inicialmente o interesse
1 Expressatildeo francesa que na traduccedilatildeo das obras de Poulain (2013) e Poulain e Proenccedila (2003) para o
portuguecircs significa ldquocomedorescomedorrdquo Esta expressatildeo apareceraacute em citaccedilotildees do autor ao longo deste trabalho Representa para a Sociologia da Alimentaccedilatildeo atual o homem que come razatildeo da utilizaccedilatildeo da palavra ldquocomedorrdquo em portuguecircs A utilizaccedilatildeo desse termo segundo os autores surgiu a partir da publicaccedilatildeo de autoria de Aron (1976) ldquoLe mangeur du 19eacutemerdquo (POULAIN PROENCcedilA 2003 p 367)
2
pessoal e profissional pelo assunto2 mas tambeacutem estimulado por questotildees
instigantes proporcionadas por algumas disciplinas cursadas durante o
programa de doutorado Assim para se pensar o problema foram realizadas
leituras de pesquisas e de conteuacutedo teoacuterico das trecircs disciplinas apontadas acima
no que se refere agrave alimentaccedilatildeo O investimento teoacuterico realizado para conduzir
a pesquisa partiu da compreensatildeo de que a reflexatildeo teoacuterica e a pesquisa
empiacuterica se complementam em um percurso de matildeo dupla naquele sentido
apontado por Trajano (1990) Para este autor a priorizaccedilatildeo da teoria em
detrimento da pesquisa de campo ou vice-versa compromete o trabalho em sua
riqueza e profundidade
Atraveacutes da relaccedilatildeo entre pesquisa de campo e anaacutelise teoacuterica o conhecimento antropoloacutegico ganha impulso e avanccedila pois a pesquisa fornece o combustiacutevel que a teoria necessita para adentrar por novos campos e caminhos Por sua vez a teorizaccedilatildeo abre trilhas frescas e inexploradas para o trabalho de pesquisardquo (TRAJANO 1990 p 2)
A pesquisa de campo envolveu famiacutelias rurais de trecircs municiacutepios da
microrregiatildeo de Viccedilosa Piranga Presidente Bernardes e Porto Firme A escolha
desses municiacutepios se deu por eles formarem uma regiatildeo com maior populaccedilatildeo
rural da microrregiatildeo de Viccedilosa e pela sua interessante histoacuteria de ocupaccedilatildeo jaacute
que se trata de uma regiatildeo importante na busca do ouro pelos bandeirantes que
passaram pela zona da Mata questatildeo que seraacute detalhada em um dos capiacutetulos
deste trabalho
Analisar e buscar compreender como as famiacutelias estatildeo lidando com as
transformaccedilotildees alimentares que ocorrem na contemporaneidade foi o eixo
norteador da pesquisa A experiecircncia dessas famiacutelias neste contexto ldquofalardquo de
um grupo que busca responder e se adaptar agraves mudanccedilas sinalizando que o
rural contemporacircneo natildeo estaacute alheio e distante do que ocorre na sociedade mais
ampla questatildeo muito bem sinalizada nos estudos de Maria de Nazareth
Wanderley (2000 e 2009) Maria Joseacute Carneiro (1998) e Joseacute Graziano da Silva
(1997) Mas tambeacutem ldquofalardquo de um grupo que respeita sua tradiccedilatildeo e seus haacutebitos
alimentares suas necessidades de natildeo ceder a todas as mudanccedilas decorrentes
da contemporaneidade
2 Discussotildees de interesse dos grupos de pesquisa em que participo na Universidade Estadual do Oeste do
Paranaacute instituiccedilatildeo onde atuo haacute 12 anos
3
Segundo Wanderley (2009) um dos desafios enfrentados pelos
pesquisadores na contemporaneidade consiste em desvendar os processos
pelos quais se articulam as dinacircmicas internas e externas do mundo rural em
sua diversidade
Neste sentido esta pesquisa tem como objetivo analisar e compreender
o significado da comida e as relaccedilotildees de comensalidade atendo-se agraves
mudanccedilas e permanecircncias referentes agraves praacuteticas alimentares das famiacutelias Mais
especificamente analisar a articulaccedilatildeo entre o tradicional e o moderno o
processo de escolha alimentar e os princiacutepios que a determinam tais como
haacutebitos tradiccedilatildeo praticidade custo a influecircncia dos guardiatildees da tradiccedilatildeo na
reproduccedilatildeo do gosto no processo de significaccedilatildeo e ressignificaccedilatildeo da comida
atrelada agraves praacuteticas aos saberes e aos haacutebitos tanto no cotidiano quanto nos
rituais
Com esta pesquisa pretendo contribuir com as discussotildees sobre o
sistema alimentar contemporacircneo e a necessidade de nessa discussatildeo
relativizar os argumentos levando-se em consideraccedilatildeo a diversidade cultural
especialmente a rural
Esta tese estaacute organizada em cinco capiacutetulos aleacutem da introduccedilatildeo e
conclusatildeo O capiacutetulo 1 apresenta um breve histoacuterico de ocupaccedilatildeo da regiatildeo
estudada e as principais atividades rurais a partir de dados do IBGE (2010) O
capiacutetulo 2 trata de duas fases histoacutericas importantes de Minas Gerais e que
determinaram o sistema alimentar na regiatildeo de exploraccedilatildeo de ouro ateacute meados
do seacuteculo XX as fases da mineraccedilatildeo e a fase da ruralizaccedilatildeo As situaccedilotildees
alimentares ocorridas nesses periacuteodos foram marcantes na formaccedilatildeo cultural
alimentar da regiatildeo que pesquisei O capiacutetulo 3 apresenta a discussatildeo teoacuterica
das aacutereas da antropologia da sociologia e da histoacuteria da alimentaccedilatildeo apontando
o lugar da alimentaccedilatildeo nas principais anaacutelises dessas disciplinas a discussatildeo
existente em torno do sistema alimentar a anaacutelise das diferenccedilas atribuiacutedas
entre alimento e comida em uma abordagem cultural e simboacutelica as
possibilidades de permanecircncia ou extinccedilatildeo dos sistemas tradicionais no contexto
alimentar contemporacircneo a discussatildeo sobre o tradicional e o moderno no
contexto das dinacircmicas alimentares no meio rural e por fim uma breve
discussatildeo sobre o papel feminino nas praacuteticas alimentares na famiacutelia O capiacutetulo
4 apresenta as opccedilotildees e o direcionamento metodoloacutegicos da pesquisa de
4
empiacuterica a imersatildeo em campo e os resultados e algumas das caracteriacutesticas
relativas ao perfil das famiacutelias entrevistadas O capiacutetulo 5 trata da pesquisa
empiacuterica ou seja sobre as praacuteticas alimentares das famiacutelias rurais objeto de
interesse principal desta pesquisa Atraveacutes das entrevistas semiestruturadas o
cotidiano das famiacutelias no que diz respeito a sua cultura alimentar foi relatado e
discutido agrave luz dos objetivos propostos para a pesquisa e das abordagens
teoacutericas utilizadas Concluindo teccedilo outras discussotildees nas conclusotildees sobre a
pesquisa
5
1 A REGIAtildeO DE ESTUDO
As aacutereas rurais pesquisadas estatildeo situadas nos municiacutepios de Piranga
Porto Firme e Presidente Bernardes que pertencem agrave microrregiatildeo de Viccedilosa
localizados na Zona da Mata de Minas Gerais
A Figura 1 apresenta as microrregiotildees que compotildeem a Zona da Mata e
a Figura 2 os municiacutepios que fazem parte da microrregiatildeo de Viccedilosa
Fonte IBGE (2013)
Figura 1 ndash Microrregiotildees da Zona da Mata de Minas Gerais
6
Fonte IBGE (2013)
Figura 2 ndash Microrregiatildeo de Viccedilosa Minas Gerais
11 Um breve histoacuterico de ocupaccedilatildeo da regiatildeo estudada
Segundo Venacircncio (2007) descobertas arqueoloacutegicas recentes
apontam que na ocasiatildeo do descobrimento do Brasil pelos portugueses a regiatildeo
de Minas Gerais era habitada por diferentes grupos eacutetnicos Essas pesquisas
conseguiram estabelecer uma data de povoamento com registros entre 11 mil e
12 mil anos atraacutes O autor destaca que natildeo se pode esclarecer totalmente quais
eram todos esses grupos eacutetnicos mas no que se refere aos seacuteculos XVI e XVII
pelo material arqueoloacutegico encontrado acredita-se que muitos grupos indiacutegenas
entraram em Minas Gerais vindos de aacutereas litoracircneas provavelmente fugindo
da escravidatildeo e da dominaccedilatildeo dos portugueses Ainda segundo o autor na
regiatildeo de estudo que compreende a bacia do Rio Doce e a Zona da Mata mineira
os registros apontam que aqui habitavam primeiramente os botocudos e os
puri-coroados e que mais tarde chegaram os iacutendios goitacaacute fugidos do avanccedilo
7
da colonizaccedilatildeo portuguesa no norte da capitania fluminense hoje conhecida
como Campos dos Goitacazes
Registros feitos por Joatildeo Mawe3 viajante inglecircs que esteve em Minas
Gerais entre 1809 e 1810 detalham o conflito existente tambeacutem entre os
portugueses e os botocudos que rejeitavam ceder aos objetivos de
ldquodomesticaccedilatildeordquo dos colonizadores interessados na aacuterea que jaacute havia sido
identificada como muito rica em ouro Na regiatildeo de Piranga visando garantir a
exploraccedilatildeo do ouro informa Mawe (1922) ldquoexiste uma tropa pouco numerosa
de soldados para fazer patrulhas ao longo das fronteiras reconhecimentos nos
bosques ir procurar os selvagens por toda a parte onde lhes informam que
podem encontra-losrdquo (MAWE 1922 p 60)
A ocupaccedilatildeo da regiatildeo pelos portugueses se deu a partir dos caminhos
que se abriram para a exploraccedilatildeo de ouro no local que teve iniacutecio com os
bandeirantes paulistas Resende (2007) Zemella (1951) e Teixeira (2002)
apontam que esta regiatildeo comeccedilou a ser desbravada a partir de 1693 por uma
expediccedilatildeo bandeirante que saiu de Garganta do Embauacute (regiatildeo da Serra da
Mantiqueira e divisa entre Minas Gerais e Satildeo Paulo) conduzida por Antocircnio
Rodrigues Arzatildeo Essa bandeira pretendia chegar ateacute a regiatildeo denominada
Casa da Casca que se localizava entre Viccedilosa e Abre Campo em busca de
ouro O percurso incluiu o entatildeo arraial de Guarapiranga (atual Piranga) e foi no
rio Piranga na localidade onde hoje eacute a cidade de Itaverava o primeiro lugar
onde se encontrou ouro desde o iniacutecio do referido trajeto
Os nuacutecleos urbanos primeiramente como arraiais ou vilas iam se
formando em torno das Minas e locais dos rios que pareciam mais propiacutecios a
obtenccedilatildeo de grandes quantidades de ouro conforme aponta Torres (2011 p
69)
Os bandeirantes subindo o rio instalaram-se nos vales () Sempre usaram de dois tipos de pontos de referecircncia naturais durante suas interminaacuteveis excursotildees pelas florestas Primeiro os rios cujos cursos subiam ou desciam conforme era o caso ou entatildeo os grandes picos azuis marcos lanccedilados pela natureza para indicar onde estava o ouro
Naquela eacutepoca os atuais municiacutepios de Presidente Bernardes e Porto
Firme natildeo existiam como tal e faziam parte de Guarapiranga (atual Piranga)
3 Ver Mawe (1922)
8
Com a descoberta de ouro no rio Piranga a regiatildeo passou a ser de interesse
para a mineraccedilatildeo e iniciou por consequecircncia a chegada de muitos adventiacutecios
Segundo Resende (2007) e Furtado (2000) a exploraccedilatildeo de ouro em Minas
Gerais historicamente serviu de movimentaccedilatildeo geograacutefica de grande nuacutemero
de pessoas interessadas em enriquecer em Minas Gerais
() Nesse contexto marcado por um tracircnsito volumoso e desordenado de pessoas e de mercadorias tem iniacutecio de forma precoce e espetacular a ocupaccedilatildeo das terras de mineraccedilatildeo em que a uma ldquosede insaciaacutevel do ourordquo corresponde com enorme rapidez a formaccedilatildeo de grandes fortunas e uma desordem perigosa regulada a balas de chumbo (RESENDE 2007 p 29)
Assim a regiatildeo que abrange os municiacutepios da pesquisa passou a se
inserir na dinacircmica econocircmica e social da mineraccedilatildeo Ainda segundo Resende
(2007) os territoacuterios mineiros comeccedilaram a ser ocupados primeiramente onde
havia sido encontrado ouro aos quais eram denominados como o ldquocaminho do
ourordquo Nesse trajeto era possiacutevel encontrar alguma infraestrutura de apoio como
por exemplo vendas estalagens e capelas Eacute no entorno dessas localizaccedilotildees
fiacutesicas estruturais que surgem mais tarde as pequenas vilas os arraiais e ateacute
nuacutecleos urbanos mais importantes no estado de Minas Gerais
Segundo Barbosa (1995) em 1708 o arraial de Guarapiranga sofreu as
consequecircncias da Guerra dos Emboabas conflito entre bandeirantes paulistas
e portugueses em disputa pelo controle das minas e por pouco natildeo foi destruiacutedo
durante os embates
As batalhas foram mais concentradas no lugar onde estaacute o Santuaacuterio do
Senhor Bom Jesus do Matozinhos na comunidade do ldquoBacalhaurdquo em Piranga
Neste local possui uma placa e uma escultura simboacutelica lembrando o ocorrido
Neste santuaacuterio ocorre anualmente a festa religiosa do Jubileu do Bom Jesus e
os fieacuteis (romeiros) permanecem no local por dois a trecircs dias de festejos
9
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 3 ndash Santuaacuterio de Bom Jesus de Matozinhos em Bom Jesus do Bacalhau
Com o decliacutenio da mineraccedilatildeo entre os anos de 1753 a 1756 a regiatildeo
de Guarapiranga foi intensamente povoada quando ldquoinuacutemeras sesmarias foram
concedidas nas quais se mencionavam grandes roccedilas de milho casas de
vivenda paiol senzala engenhos bananais e outras aacutervoresrdquo (BARBOSA 1995
p 254) Ocorria nesse periacuteodo o processo de fortalecimento da agricultura
seguindo um percurso que se deu em toda a regiatildeo de mineraccedilatildeo de Minas
Gerais como seraacute visto no capiacutetulo 2 sobre a fase da ruralizaccedilatildeo em Minas
Em final do seacuteculo XVIII e iniacutecio do seacuteculo XIX a regiatildeo de Guarapiranga
possuiacutea a maior populaccedilatildeo de toda a Zona da Mata mineira com forte dinamismo
econocircmico Segundo Carrara (2007) Guarapiranga abastecia a entatildeo Vila Rica
e regiatildeo com aguardente e alguns produtos agriacutecolas baacutesicos os quais o autor
natildeo detalha quais eram Mas segundo o autor natildeo houve um corte que marcou
o fim da mineraccedilatildeo e iniacutecio da fase agriacutecola na regiatildeo pois durante muitos anos
foi marcante a presenccedila concomitante das minas dos currais e das lavouras
Enquanto a agricultura se fortalecia alguns poucos aventureiros insistiam na
busca de algum sinal de ouro restante nos rios
Segundo Lemos (2012) na fase de fortalecimento da agricultura
sobretudo na primeira metade do seacuteculo XIX houve intenso fluxo migratoacuterio que
fomentou a economia agriacutecola na regiatildeo principalmente voltada para a produccedilatildeo
de aguardente rapadura e melado Segundo Godoy (2012) os engenhos se
10
concentravam sobretudo na regiatildeo do distrito de Santo Antocircnio do Calambau
hoje Presidente Bernardes que na eacutepoca era distrito de Guarapiranga (Piranga)
A prodccedilatildeo da cana de accediluacutecar perdeu forccedila ao longo do tempo e na
ocasiatildeo da pesquisa natildeo era mais atividade central na regiatildeo embora existam
alambiques e algumas marcas de aguardente conhecidas no cenaacuterio nacional
como a ldquoVelha Aroreirardquo produzida em Porto Firme e a ldquoVale do Pirangardquo
produzida em Piranga Mas o que se produz ainda de aguardente eacute de caraacuteter
quase que apenas artesanal e pequena produccedilatildeo Em presidente Bernardes
todos os anos acontece o ldquoFestival da Cachaccedilardquo guardando ainda relaccedilotildees com
a tradiccedilatildeo deste produto
Os dados do IBGE de 1980 a 2010 apontam que os municiacutepios que
compunham como distritos a antiga Guarapiranga (Piranga Presidente
Bernardes e Porto Firme) apresentam queda em sua populaccedilatildeo rural como seraacute
visto a seguir
Tambeacutem segundo informaccedilotildees do IBGE (2010) Presidente Bernardes
e Porto Firme foram emancipados de Piranga em 1953 quando Calambau
passou a se chamar Presidente Bernardes e Porto Seguro passou a se chamar
Porto Firme Ambos os municiacutepios continuam pertencendo juridicamente agrave
Comarca de Piranga
12 Informaccedilotildees atuais sobre a populaccedilatildeo rural e as principais atividades agriacutecolas dos municiacutepios pesquisados
Segundo o IBGE (2010) a microrregiatildeo de Viccedilosa possui aacuterea total de
4826137 kmsup2 Eacute composta por vinte municiacutepios com aacutereas que variam entre
65881 kmsup2 (Piranga) e 8304 kmsup2 (Cajuri) Porto Firme e Presidente Bernardes
possuem aacutereas de 28478 kmsup2 e 2368 kmsup2 respectivamente conforme
apresentado na Tabela 1
Em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo observa-se que em 50 dos municiacutepios da
microrregiatildeo a populaccedilatildeo rural ultrapassa a urbana conforme a Tabela 1 Os
trecircs municiacutepios desta pesquisa encontram-se entre aqueles que possuem
populaccedilatildeo rural maior que a urbana sendo que entre todos os municiacutepios
Presidente Bernardes e Piranga satildeo os que possuem o maior percentual de
populaccedilatildeo rural em relaccedilatildeo a urbana conforme apontado na Tabela 2
11
Tabela 1 ndash Aacuterea e populaccedilatildeo da microrregiatildeo de Viccedilosa (2015)
Municiacutepio Aacuterea (kmsup2) Densidade
demograacutefica Populaccedilatildeo
total Populaccedilatildeo
rural Populaccedilatildeo
urbana
Piranga 65881 2616 17232 11274 5958 Pres Bernardes 2368 2338 5537 3895 1642 Porto Firme 28478 3658 10417 5586 4831 Araponga 30379 2683 8152 5111 3041 Rio Espera 2386 2544 6070 3667 2403 Canaatilde 1749 2646 4628 2769 1859 Alto Rio Doce 51805 2347 12159 7089 5070 Lamim 1186 2911 3452 1941 1511 Cipotacircnea 15348 4266 6547 3533 3014 Braacutes Pires 22335 2076 4637 2414 2223 Cajuri 8304 4874 4047 1951 2096 Amparo do Serra 14591 3463 5053 2411 2642 Ervaacutelia 35749 5020 17946 8476 9470 Paula Cacircndido 26832 3455 9271 4335 4936 Satildeo Miguel do Anta 15211 4444 6790 3014 3746 Senhora de Oliveira 17075 3328 5683 2427 3256 Pedra do Anta 16345 2059 3365 1173 2192 Teixeiras 16674 6871 11355 3732 7623 Coimbra 10688 6600 7054 1898 5156 Viccedilosa 29942 2412 72220 4915 67305
Fonte IBGE - Censo Demograacutefico de 2010
Tabela 2 ndash Percentual da populaccedilatildeo urbana e rural da microrregiatildeo de Viccedilosa nas deacutecadas de 1980 a 2010 (2015)
Populaccedilatildeo ()
Municiacutepio 1980 1991 2000 2010
Urbana Rural Urbana Rural Urbana Rural Urbana Rural
Piranga 197 803 237 763 299 701 346 654 Pres Bernardes 121 879 154 846 233 767 297 703 Porto Firme 23 77 293 707 411 589 463 537 Araponga 166 834 208 792 32 68 373 627 Rio Espera 264 736 268 732 322 678 396 604 Canaatilde 174 826 207 793 297 703 401 599 Alto Rio Doce 222 778 28 72 354 646 417 583 Lamim 226 774 287 713 38 62 438 562 Cipotacircnea 197 803 26 74 381 619 46 54 Braacutes Pires 153 847 24 76 353 647 48 52 Cajuri 387 613 46 54 546 454 518 482 Amparo Serra 246 754 35 65 458 542 522 478 Ervaacutelia 263 737 323 673 444 556 528 472 Paula Cacircndido 286 714 362 638 43 57 532 468 Satildeo Miguel Anta 389 611 44 56 501 499 554 446 Senhora Oliveira 363 637 451 549 482 518 572 428 Pedra do Anta 232 768 373 627 53 47 651 349 Teixeiras 445 555 533 467 623 377 671 329 Coimbra 456 544 54 46 539 466 73 30 Viccedilosa 806 194 90 10 921 79 931 69
Fonte IBGE - Censos Demograacuteficos de 1980 1991 2000 e 2010
12
A reduccedilatildeo da populaccedilatildeo rural eacute observada em todos os 20 municiacutepios
conforme mostra a Tabela 2 que apresenta informaccedilatildeo demograacutefica da
microrregiatildeo de Viccedilosa nas uacuteltimas trecircs deacutecadas segundo IBGE (2010) Esta
microrregiatildeo encontra-se proporcionalmente dividida em 50 de municiacutepios com
populaccedilatildeo urbana maior do que a rural e 50 em situaccedilatildeo inversa
Nos trecircs municiacutepios desta pesquisa a populaccedilatildeo rural vem diminuindo
ao longo das uacuteltimas deacutecadas Em Piranga Presidente Bernardes e Porto Firme
a populaccedilatildeo rural correspondia a 803 879 e 77 em 1980
respectivamente caindo para 655 703 e 537 respectivamente em 2010
Apesar disso Presidente Bernardes permanece sendo o municiacutepio com maior
populaccedilatildeo residente no campo na microrregiatildeo de Viccedilosa ao longo desse
periacuteodo seguido por Piranga que aparece como o segundo maior municiacutepio com
populaccedilatildeo rural no Censo de 2010 Alguns estudos apontam para a reduccedilatildeo da
populaccedilatildeo rural em outras partes do paiacutes e do mundo como Alves e Marra
(2009) Nunes (2007) ONU (2014) Camarano e Beltratildeo (2000) e Camarano e
Abramovay (1998)
As Tabelas 3 e 4 apontam que a populaccedilatildeo que compreende a faixa
etaacuteria de 30 a 50 anos eacute a maior na aacuterea rural nos trecircs municiacutepios e a populaccedilatildeo
idosa4 apresenta o menor nuacutemero de pessoas residentes no campo
Tabela 3 ndash Populaccedilatildeo rural por diferentes faixas etaacuterias
Municiacutepio Populaccedilatildeo
rural 1 - 14 anos 15 - 29 anos 30 - 59 anos
Acima de 60 anos
Piranga 11274 2748 3203 3751 1308 Pres Bernardes 3895 845 856 1421 610 Porto Firme 5586 1338 1378 2322 780 Total 20755 4931 5437 7494 2698
Fonte IBGE ndash Censo Demograacutefico 2010
Os dados da Tabela 4 mostram que o maior percentual de populaccedilatildeo
idosa se encontra em Presidente Bernardes mas natildeo se destaca em relaccedilatildeo
aos demais municiacutepios Neste municiacutepio tambeacutem estaacute o menor percentual da
4 Puacuteblico considerado acima de 60 anos de idade de acordo com Organizaccedilatildeo Mundial de Sauacutede
13
populaccedilatildeo jovem5 O maior percentual de populaccedilatildeo adulta (30-59 anos)
encontra-se em Porto Firme A maior diferenccedila entre o percentual de populaccedilatildeo
jovem e adulta encontra-se em Porto Firme e a menor em Piranga O percentual
da populaccedilatildeo adulta eacute superior agrave populaccedilatildeo idosa nos trecircs municiacutepios mas se
destaca em Porto Firme As informaccedilotildees das tabelas seratildeo retomadas no item
46 deste trabalho
Tabela 4 ndash Percentual da populaccedilatildeo rural por diferentes faixas etaacuterias ()
Municiacutepio Populaccedilatildeo
rural 1 - 14 anos 15 - 29 anos 30 - 59 anos
Acima de 60 anos
Piranga 11274 243 284 333 116
Pres Bernardes 3895 217 220 364 155
Porto Firme 5586 239 246 415 140
Fonte IBGE ndash Censo Demograacutefico 2010
13 Atividades produtivas
Nos municiacutepios onde foi realizado o trabalho de campo predominam
pequenas e meacutedias propriedades e produccedilatildeo em pequena escala basicamente
para consumo com venda do excedente Os tipos de produccedilatildeo natildeo sofrem
variaccedilotildees importantes entre os trecircs municiacutepios seja em tipo de produccedilatildeo seja
em quantidade produzida
Presidente Bernardes Dados do Relatoacuterio final do Plano Municipal de
Saneamento Baacutesico de Presidente Bernardes (2015) e da Emater local apontam
como principais atividades agropecuaacuterias do municiacutepio a cafeicultura a extraccedilatildeo
de carvatildeo vegetal em pequena escala e a pecuaacuteria leiteira de pequeno porte
Haacute ainda a fabricaccedilatildeo agroindustrial em pequenos alambiques de aguardente e
uma empresa de fabricaccedilatildeo de queijo Aleacutem desses os dados do IBGE (2006)
apontam tambeacutem a produccedilatildeo de milho feijatildeo cana de accediluacutecar suinocultura e
avicultura
5 Faixa etaacuteria entre 15 a 29 anos de idade definida no Estatuto da Crianccedila e do Adolescente (ECA) e
Estatuto da Juventude no Brasil como a que corresponde agrave categoria de juventude
14
Porto Firme Dados do Relatoacuterio final do Plano Municipal de
Saneamento Baacutesico de Porto Firme (2015) e da Emater local apontam como
principais atividades agropecuaacuterias do municiacutepio Pecuaacuteria leiteira cafeicultura
extraccedilatildeo de carvatildeo vegetal e lavoura de feijatildeo No municiacutepio tambeacutem haacute
produccedilatildeo de aguardente artesanal por pequenos alambiques Aleacutem desses os
dados do IBGE (2006) apontam a produccedilatildeo de milho feijatildeo cana de accediluacutecar
suinocultura e avicultura
Piranga Dados do Relatoacuterio Anual da Emater Local (2014) e do IBGE
(2006) apontam como principais atividades agropecuaacuterias do municiacutepio
extraccedilatildeo de carvatildeo vegetal cafeicultura pecuaacuteria leiteira milho e feijatildeo cana de
accediluacutecar suinocultura e avicultura
Segundo as famiacutelias entrevistadas envolvidas na atividade de extraccedilatildeo
de carvatildeo vegetal esta atividade vem substituindo aos poucos a cafeicultura
nos uacuteltimos anos em funccedilatildeo do seu retorno financeiro mais favoraacutevel aos
agricultores aliado ao fato desta atividade lhes ser menos trabalhosa
A regiatildeo rural dos municiacutepios onde foi feita a pesquisa manteacutem muito de
suas caracteriacutesticas tradicionais em vaacuterios aspectos da alimentaccedilatildeo como seraacute
visto neste trabalho Mas tambeacutem na forma de produccedilatildeo transporte e
armazenamento dos produtos A Figura 4 mostra algumas dessas peculiaridades
observadas Segundo Martins (2008 p 26) a inserccedilatildeo das fotografias ldquoeacute um
recurso que amplia e enriquece a variedade de informaccedilotildees de que o
pesquisador pode dispor para reconstruir e interpretar determinada realidade
socialrdquo
A Figura 4 mostra a produccedilatildeo de um casal de aposentados que mora
sozinho Eles executam poucos serviccedilos no siacutetio Um de seus filhos mora na
cidade de Piranga e os outros em outras cidades mais distantes O casal paga
por serviccedilos de plantio e colheita do milho e do feijatildeo A quantidade de milho eacute
muito pequena apenas para uso local A Figura 4a mostra parte do milho no
paiol e a Figura 4b mostra parte do milho jaacute debulhado secando ao sol no quintal
para depois ser processado no moinho eleacutetrico para a produccedilatildeo de fubaacute
15
(a) (b)
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 4 ndash Milho colhido no siacutetio de Anita e Gilberto na comunidade de Manja em Piranga
Muitas estradas das comunidades mais distantes ainda contam com
muitas porteiras que ficam fechadas Eacute o caminho por onde se transita o veiacuteculo
automotor mas ela atende principalmente agrave loacutegica rural tradicional Quem
precisa transitar deve descer do veiacuteculo abrir as porteiras e fechaacute-las ao
atravessar A Figura 5 por exemplo registrada na estrada da comunidade de
Manja em Piranga mostra uma forma tradicional de transportar as espigas de
milho do roccedilado para o paiol mas ainda muito usada na regiatildeo Havia trecircs
pessoas fazendo esse transporte uma pessoa em cima da carroccedila e outros dois
candiando os bois e abrindo e fechando as porteiras
A Figura 6 mostra um engenho de cana que estava sem uso no ano de
2015 pela baixa produccedilatildeo de cana neste ano no siacutetio de Lola e Marcos em
Presidente Bernardes Nele se produz rapadura e melado que eacute vendida para o
comeacutercio de Presidente Bernardes e tambeacutem para os vizinhos das proximidades
16
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 5 ndash Carro de boi transportando espigas de milho da roccedila para o paiol na estrada da comunidade de Manja em Piranga
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 6 ndash Engenho de produccedilatildeo de rapadura no siacutetio de Lola e Marcos na comunidade Xopotoacute Presidente Bernardes
As caracteriacutesticas rurais dos trecircs municiacutepios satildeo muito semelhantes
tanto no que se refere agrave forma de produccedilatildeo agriacutecola quanto na cultura e no perfil
populacional cuja populaccedilatildeo rural supera a urbana Sendo uma regiatildeo cuja
formaccedilatildeo ocorreu a partir da mineraccedilatildeo muitas de suas caracteriacutesticas ainda
estatildeo ligadas a esse processo histoacuterico Outras peculiaridades sobre o perfil das
17
famiacutelias seratildeo apresentadas no capiacutetulo 4 No sistema alimentar o que se
praticava produzia e o que era consumido na fase da mineraccedilatildeo teve influecircncia
na manutenccedilatildeo de muitas das praacuteticas existentes atualmente na regiatildeo onde foi
feita a pesquisa Sobre o que representou a alimentaccedilatildeo na fase da mineraccedilatildeo
e da ruralizaccedilatildeo no periacuteodo de formaccedilatildeo dessa regiatildeo eacute o que seraacute tratado no
proacuteximo capiacutetulo
18
2 A COMIDA EM MINAS GERAIS DA ESCASSEZ Agrave FARTURA
Arruda (1990) destaca em Minas Gerais duas fases muito importantes
para a sua formaccedilatildeo histoacuterica e cultural a primeira eacute a do ciclo da mineraccedilatildeo
que teve iniacutecio no final do seacuteculo XVII e segue ateacute o final do seacuteculo XVIII Neste
periacuteodo a vida urbana emerge com uma intensa movimentaccedilatildeo a segunda fase
eacute a chamada ldquoruralizaccedilatildeordquo que se inicia ao final do seacuteculo XVIII justamente com
o decliacutenio da mineraccedilatildeo seguindo ateacute o iniacutecio do seacuteculo XX Segundo a autora
na segunda fase as aacutereas rurais (as fazendas) passam a ter maior valorizaccedilatildeo
se tornando o ldquomicrocosmo do universo material social e culturalrdquo (ARRUDA
1990 p 135) Aleacutem das duas principais fases a autora destaca uma terceira fase
em Minas que se configura a partir dos meados do seacuteculo XX com a
industrializaccedilatildeo
Para a autora as duas primeiras fases representam formas de
sociabilidade muito peculiares que se expressam nas praacuteticas alimentares
desses periacuteodos e que tiveram influecircncia direta na formaccedilatildeo dos haacutebitos
alimentares em Minas Gerais haacutebitos que se perpetuaram ateacute o periacuteodo
contemporacircneo sendo relevantes para este trabalho Essas informaccedilotildees
ajudaratildeo a analisar se as praacuteticas alimentares comuns a estas fases em Minas
continuam presentes sendo praticadas pelas famiacutelias rurais pesquisadas neste
trabalho
Antes de discutir especificamente as questotildees alimentares relativas agraves
duas fases eacute importante realizar uma sucinta passagem pelo contexto alimentar
no Brasil colonial
21 Contextualizando o lugar da comida no Brasil Colonial nos primoacuterdios
Segundo Panegassi (2013) o colonizador europeu estabeleceu uma
relaccedilatildeo etnocecircntrica com o territoacuterio natural americano e isso se deu tambeacutem e
principalmente em relaccedilatildeo agrave alimentaccedilatildeo No seacuteculo XVI ele natildeo encontrava em
territoacuterios da colocircnia os alimentos que estava habituado a consumir em Portugal
vivenciando assim uma realidade na qual o autor denomina de ldquoescassez
culturalrdquo de alimentos (p 14) O autor cita o exemplo da carta de Joatildeo de Mello
Cacircmara a Dom Joatildeo III por volta de 1530 quando este rei estabeleceu que a
19
colonizaccedilatildeo seria baseada na expansatildeo da ocupaccedilatildeo das terras atraveacutes das
capitanias hereditaacuterias Mello Cacircmara informa a Dom Joatildeo III que traria para a
colocircnia homens de Portugal para cultivarem alimentos mais comuns aos
portugueses evitando mudanccedilas draacutesticas de seus haacutebitos alimentares pois
considerava os alimentos originaacuterios da Colocircnia inferiores para o consumo dos
portugueses
No entanto por mais que os colonizadores portugueses tenham tido
dificuldade em se habituar ao consumo de alimentos aqui disponiacuteveis foi preciso
se render a eles como tambeacutem aponta Freyre (1964)
A adaptaccedilatildeo foi o caminho obrigatoacuterio como destaca Panegassi (2013
p 70)
No acircmbito de uma situaccedilatildeo na qual um grande nuacutemero de pessoas eacute inserido em um novo ambiente cultural ainda que os receacutem-chegados procurem preservar seus padrotildees culturais de origem a necessidade de sobreviver impotildee inuacutemeros ajustes principalmente nos primeiros anos de presenccedila na nova aacuterea
Nesse sentido Holanda (1995) afirma que o interesse pela aventura
pela obtenccedilatildeo de tiacutetulos de posiccedilatildeo social e de prosperidade econocircmica servia
como estiacutemulo para o ldquosacrifiacuteciordquo da adaptaccedilatildeo Os portugueses tentaram
portanto recriar aqui condiccedilotildees de sobrevivecircncia e de adaptaccedilatildeo com poucas
exigecircncias ldquoOnde lhes faltasse o patildeo de trigo aprendiam a comer o da terra
() soacute consumiam farinha de mandioca fresca feita no dia Habituaram-se
tambeacutem a dormir em redes agrave maneira dos iacutendios e a beber e a mastigar fumordquo
(HOLANDA 1995 p 47)
De acordo com Panegassi (2013) os padres jesuiacutetas preferiam comer o
patildeo de mandioca e as bebidas existentes na colocircnia do que os que vinham de
Portugal em navios pois a viagem era longa e os alimentos armazenados
inadequadamente Era comum que os produtos como os patildees chegassem
estragados ao destino ou seja sem condiccedilotildees de serem ingeridos Assim Mello
(1975 apud PANEGASSI 2013 p 104) conclui que
A mudanccedila que se processaraacute nos haacutebitos dieteacuteticos do portuguecircs colonizador do Brasil ou do portuguecircs colonizador de outras aacutereas tropicais eacute menos o resultado de uma capacidade especial de amoldaccedilatildeo do que da impossibilidade de obter um suprimento regular e abundante de trigo e outros viacuteveres de origem europeia
20
Dessa maneira num contexto de convivecircncia cultural e de costumes foi
se estabelecendo ao longo do processo de colonizaccedilatildeo brasileira a conformaccedilatildeo
inicial dos haacutebitos alimentares baseados na miscigenaccedilatildeo cultural alimentar
recebendo posteriormente a influecircncia africana com a chegada dos escravos
conforme seraacute tratado mais agrave frente Os alimentos autoacutectones inicialmente foram
os mais consumidos sobretudo a mandioca por substituir o trigo para a
elaboraccedilatildeo de patildees e bolos No entanto na regiatildeo de mineraccedilatildeo em Minas
Gerais ndash aacuterea de pesquisa deste trabalho ndash o milho e natildeo a mandioca foi
preponderante na alimentaccedilatildeo Como seraacute mostrado mais agrave frente o milho teve
papel fundamental natildeo apenas para alimentaccedilatildeo animal mas tambeacutem para
alimentar os escravos que trabalhavam nas lavras que o ingeriam segundo
Cacircmara Cascudo (2004) na forma de papa angu e canjica Segundo o mesmo
autor foram as mulheres portuguesas que criaram a receita da broa e do pudim
de milho que se tornaram e permanecem pratos tiacutepicos em Minas Gerais
Segundo Torres (2011 p100)
O mineiro nunca usou patildeo da ldquofarinha de paurdquo (mandioca) o patildeo da terra dos primeiros seacuteculos da colonizaccedilatildeo Sempre preferiu o angu os soacutelidos bolos de fubaacute e o cobu enrolado em folha de bananeira Para misturar o feijatildeo usou sempre a farinha de milho (o milho seco socado no monjolo e depois torrado) o angu a farinha de moinho As classes pobres usavam a ldquocanjiquinhardquo subproduto de despolpaccedilatildeo do milho com muito ecircxito para substituir o arroz
A carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei em 1500 aponta algumas
peculiaridades sobre a primeira percepccedilatildeo sobre alimentaccedilatildeo Os portugueses
ofereceram aos iacutendios ldquopatildeo (de trigo) peixe cozido (com condimentos)
confeitos mel massa de ovos figos passados e vinho de uvas mas os iacutendios
natildeo quiseram comer quase nadardquo (BORGES 2014 p 204) Segundo Cacircmara
Cascudo (2004) as novidades para os iacutendios era o patildeo de trigo massa de ovos
os condimentos incluindo o sal o accediluacutecar e finalmente o vinho feito de uvas
apesar de jaacute produzirem bebidas fermentadas a partir do milho da mandioca e
de frutas
A rejeiccedilatildeo dos iacutendios sinaliza que natildeo foi apenas da parte dos
portugueses que houve inicial rejeiccedilatildeo aos novos alimentos e haacutebitos
alimentares como registrado na carta de Mello Cacircmara a Dom Joatildeo III citado
anteriormente Os iacutendios tambeacutem expressaram seu interesse em manter seus
proacuteprios haacutebitos alimentares desconsiderando os alimentos vindos de Portugal
21
Segundo Cacircmara Cascudo (2004) animais como boi vaca porco
galinha cabra e ovelha foram introduzidos pelos portugueses bem como os
cultivos de arroz feijatildeo e verduras pela implantaccedilatildeo de hortas Registros do
padre jesuiacuteta Fernatildeo Cardim que chegou em 1584 descreve a existecircncia de
ldquoalface aboacutebora couve pepino nabos mostarda hortelatilde coentros endros
funchos ervilhas gergelim cebolas alhos e outros legumes que do Reino se
trouxeram que se datildeo bem na terrardquo (CARDIM 1939 p 94)
A partir do que eacute apresentado por Cacircmara Cascudo (2004) e Freyre
(1964) eacute possiacutevel verificar ainda os haacutebitos alimentares dos escravos africanos
que foram trazidos para a colocircnia em meados do seacuteculo XVI primeiramente
inseridos no trabalho dos engenhos de cana e algodatildeo e posteriormente na
mineraccedilatildeo e fazendas de gado
Segundo Cacircmara Cascudo (2004) quase todos escravos eram
obrigados a se alimentar da dieta que lhes era fornecida assim a possibilidade
de escolha do que comer era praticamente nula Eram melhor alimentados
apenas durante a viagem de navio ateacute chegar em terras brasileiras pois
precisariam estar em boas condiccedilotildees para serem revendidos
A refeiccedilatildeo consiste durante a viagem em feijatildeo farinha de milho e de mandioca agraves vezes tambeacutem peixe salgado Sua bebida eacute aacutegua e de quando em quando tambeacutem um pouco de aguardente Sendo levados do Brasil esses gecircneros teriam deterioraccedilatildeo raacutepida e natural (MARTIUS 21 apud CAcircMARA CASCUDO 2004 p 200)
Uma vez instalados nas aacutereas a que foram destinados na colocircnia a
alimentaccedilatildeo do europeu natildeo mudava significativamente Poreacutem em Minas
Gerais era comum a destinaccedilatildeo de pequenas parcelas de terra para que
escravos cultivassem vegetais de sua preferecircncia proacuteximo agraves senzalas
provendo uma alimentaccedilatildeo melhor pelo menos mais diversificada (CAcircMARA
CASCUDO 2004 GUIMARAtildeES REIS 2007) Citando relatos de Gabriel Soares
de Souza que esteve na Bahia de 1570 a 1587 e de Joatildeo Mauricio Rugendas
que passou pelo Brasil de 1821 a 1835 Cacircmara Cascudo (2004) relata que
nesses roccedilados os escravos podiam trabalhar em dias santos e em dias de festa
na casa-grande Era dado aos escravos pequenas parcelas de terra onde eles
podiam cultivar alimentos de seu interesse de consumo
Dessa forma as roccedilas de subsistecircncia aleacutem de contribuiacuterem para reduzir os custos de manutenccedilatildeo da matildeo de obra ao complementarem
22
a alimentaccedilatildeo fornecida pelos senhores criavam um espaccedilo proacuteprio para os escravos contribuindo assim para a prevenccedilatildeo de fugas e revoltas (GUIMARAtildeES REIS 2007 p 330)
A possibilidade de cultivar algumas roccedilas de alimentos preferidos na
cultura africana segundo Cacircmara Cascudo e Gilberto Freyre explica a inserccedilatildeo
de muitas plantas africanas que de alguma maneira os escravos conseguiram
transportaacute-las para o Brasil durante sua viagem Isso tambeacutem permitiu a
inserccedilatildeo de algumas peculiaridades das praacuteticas alimentares africanas na
formaccedilatildeo da comida brasileira atraveacutes das cozinheiras e tambeacutem embora mais
raramente dos cozinheiros que atuavam nas casas-grandes Segundo Freyre
(1964) pode-se atribuir a eles a introduccedilatildeo dos seguintes ingredientes
alimentos e modos de fazer na culinaacuteria brasileira
Azeite-de-dendecirc pimenta malagueta quiabo maior uso da banana variedade de formas de preparar a galinha e o peixerdquo (p 634) Dentro da extrema especializaccedilatildeo de escravos no serviccedilo domeacutestico das casas-grandes reservaram-se sempre dois agraves vezes trecircs indiviacuteduos aos trabalhos de cozinha (FREYRE 1964 p 634)
Freyre (1964) aponta que as influecircncias se deram primeiramente e mais
fortemente nos estados do Nordeste (Bahia Pernambuco e Maranhatildeo) em
funccedilatildeo dos trabalhos nos engenhos da regiatildeo Na Bahia foi muito marcante a
inserccedilatildeo das vendas dos quitutes doces e salgados em tabuleiros ou gamelas
pelas ruas sobretudo pelas mulheres alforriadas mas tambeacutem havia aquelas
que vendiam para reverter a renda agrave sua lsquosinhaacutersquo6 ldquoQuindim cocada sequilhos
mocotoacutes vatapaacutes mingaus pamonhas canjicas acaccedilaacutes abaraacutes arroz-de-coco
feijatildeo-de-coco angus patildeo-de-loacute de arroz patildeo-de-loacute de milho rebuccedilados7rdquo (p
636) Este autor afirma que os dois pratos de origem africana que mais fizeram
sucesso na mesa da casa-grande foram o vatapaacute e o caruru
Com a chegada da Corte Portuguesa em 1808 segundo Cacircmara
Cascudo (2004) Holanda (1995) e Ribeiro (2014) algumas alteraccedilotildees
importantes comeccedilaram a ocorrer no plano alimentar dos mais ricos com a
vinda inclusive de cozinheiros particulares com seus livros de receitas Criaram-
se modismos que tiveram influecircncia principalmente no Rio de Janeiro Um deles
6 No capiacutetulo 3 deste trabalho faccedilo uma discussatildeo mais detalhada sobre o papel das mulheres iacutendias
africanas e portuguesas na formaccedilatildeo da culinaacuteria brasileira 7 Como os portugueses se referem ao doce ldquobalardquo
23
foi a ampliaccedilatildeo do consumo de produtos importados da Europa e o estilo francecircs
de comer
Importava-se conservas doces frutos processados salsichas presuntos manteiga queijo chaacute e temperos () Desde entatildeo os haacutebitos agrave mesa se europeizaram os ideais alimentares e de paladar se tornaram cada vez mais semelhantes aos franceses berccedilo da gastronomia como a conhecida hoje (RIBEIRO 2014 p 50-51)
Freyre (1964) descreve informaccedilotildees dos livros de receitas dos
cozinheiros que vieram de Portugal e que passaram a inserir as novas praacuteticas
alimentares importadas para os mais abastados como a substituiccedilatildeo da gordura
pela manteiga francesa nas frituras diversas o reduzido uso da feijoada e dos
guisados do uso da pimenta e de outros condimentos picantes O proacuteprio trigo
antes uma raridade passou a chegar com maior facilidade e iniciando-se a
produccedilatildeo do patildeo de trigo tatildeo caracteriacutestico em Portugal e que passou a ser
muito consumido tambeacutem no Brasil
Em vez do aluaacute da garapa de tamarindo do caldo de cana ndash o chaacute agrave inglesa em vez de farinha do piratildeo ou do quibebe ndash a batata chamada inglesa Juntando-se a tudo isso o requinte do gelo Manteiga francesa batata inglesa chaacute tambeacutem agrave inglesa gelo ndash tudo isso agiu no sentido da desafricanizaccedilatildeo da mesa brasileira que ateacute os primeiros anos de independecircncia estivera sob maior influecircncia da Aacutefrica e dos frutos indiacutegenas (FREYRE 1964 p 642)
As influecircncias de outras culturas continuaram a se expandir a partir de
metade do seacuteculo XIX com a chegada de novos imigrantes ndash principalmente
italianos alematildees espanhoacuteis japoneses e siacuterio-libaneses ndash novos elementos da
culinaacuteria tiacutepica desses grupos eacutetnicos foram se incorporando a jaacute miscigenada
comida brasileira Na contemporaneidade a influecircncia alimentar mais relevante
de uma cultura externa eacute a norte-americana Poreacutem no seacuteculo XX o hibridismo
alimentar natildeo mais ocorre necessariamente pela intensidade da imigraccedilatildeo mas
sobretudo pela influecircncia da globalizaccedilatildeo Ao facilitar a divulgaccedilatildeo o transporte
e a aquisiccedilatildeo de alimentos de outros paiacuteses esse processo propiciou a
introduccedilatildeo constante de novas praacuteticas e haacutebitos alimentares
Apoacutes a breve introduccedilatildeo sobre os haacutebitos alimentares formados no Brasil
colonial passo a tratar especificamente da regiatildeo de Minas Gerais onde se deu
a fase mineradora regiatildeo na qual estatildeo inseridos os municiacutepios pesquisados
24
22 Fase da mineraccedilatildeo em Minas Gerais escassez de alimentos
O ciclo da mineraccedilatildeo foi muito importante para a economia da colocircnia
portuguesa e iniciou-se apoacutes a quase estagnaccedilatildeo do ciclo do accediluacutecar no final do
seacuteculo XVII Teve seu apogeu em Minas Gerais no seacuteculo XVIII e nesta fase
por determinaccedilatildeo da Coroa Portuguesa toda a matildeo de obra deveria estar
voltada basicamente agrave extraccedilatildeo de ouro e diamante Paula (2007) menciona que
a mineraccedilatildeo foi uma atividade central e decisiva na peculiaridade histoacuterica da
regiatildeo onde ela ocorreu Segundo o autor algumas caracteriacutesticas dessa
atividade foram a rapidez e amplitude com que a regiatildeo foi ocupada O intenso
fluxo imigratoacuterio gerado pela quantidade de ouro e seu preccedilo transformou-a na
Capitania mais populosa do periacuteodo colonial ao imperial Por sua importacircncia
econocircmica e dinamismo da atividade Minas Gerais teve o maior nuacutemero de
escravos da Ameacuterica Portuguesa
O fato de ser ele mesmo o ouro dinheiro em sua forma mais universal teraacute decisivo impacto sob o grau de dinamismo e mercantilizaccedilatildeo da economia mineira A riqueza decorrente da atividade induziraacute o Estado portuguecircs a efetivamente implantar a maacutequina estatal da colocircnia agrave qual seraacute durante muito tempo apenas fisco poliacutecia e justiccedila Satildeo essas dimensotildees que vatildeo determinar o desenvolvimento em Minas Gerais de uma estrutura urbana de uma certa vida poliacutetica e cultural em nada triviais no contexto colonial (PAULA 2007 p 279)
Assim a atividade mineradora fez surgir em Minas Gerais primeiramente
uma sociedade urbana baseada na extraccedilatildeo de ouro e diamantes com a
formaccedilatildeo de pequenos povoados e arraiais Segundo Zemella (1951) ldquoos
arraiais mineiros cresceram tatildeo vertiginosamente que em poucos anos muitos
deles atingiram a dignidade de vila Surgiram primeiramente Mariana Vila Rica
Caeteacute Sabaraacute Vila do Priacutencipe Arraial do Tijuco e outrosrdquo (ZEMELLA 1951 p
46) Nesses ldquooutrosrdquo citados pela autora estaacute incluiacuteda a vila de Guarapiranga
(atuais municiacutepios de Piranga Porto Firme e Presidente Bernardes) como jaacute foi
mencionado
Em funccedilatildeo disso analisa Cacircmara Cascudo (2004) com um contingente
elevado de pessoas que chegavam tanto do litoral da Colocircnia como tambeacutem de
Portugal em busca das riquezas minerais a escassez de alimento foi um fator
marcante nesse periacuteodo jaacute que se plantava muito pouco e boa parte da comida
25
era trazida por tropeiros8 a preccedilos elevados Aleacutem disso demorava a chegar
devido agraves dificuldades das tropas em avanccedilar pelas matas e estradas de difiacutecil
acesso
O excesso de ouro mal enfrentava o exageradiacutessimo preccedilo dos gecircneros alimentiacutecios transportados de longe porque natildeo havia vontade e tempo para plantar cereais Garimpeiros e faiscadores9 tinham que comprar qualquer elemento para compor a menor refeiccedilatildeo Toda a escravaria estava ocupada no desmonte das terras e lavagem do ouro (CAcircMARA CASCUDO 2004 p 208)
Segundo Frieiro (1982) e Paula (2007) as crises de abastecimento foram
graviacutessimas e causaram muitas mortes por fome aleacutem da acelerada alta de
preccedilos dos alimentos Magalhatildees (1978) aponta duas grandes crises de fome a
de 1697-1698 e a de 1700-1701 Essas crises propiciaram uma dispersatildeo
populacional do centro da regiatildeo mineradora ldquoOs primeiros habitantes natildeo
pensavam em perder tempo nas canseiras do amanho e plantio da terra A falta
de caminhos agravava sobremaneira o problema do abastecimentordquo (FRIEIRO
1982 p 56)
Segundo o autor tinha-se assim uma alimentaccedilatildeo de baixo valor
proteico Para minimizar isso comia-se o ldquobicho da taquarardquo assado ou torrado
Alimento que jaacute era consumido pelos indiacutegenas
O que comia o faisqueiro na sua lavra Comia do pouco que se plantava nas roccedilas Milho feijatildeo farinha de mandioca e alguma fruta da terra eram o cotidiano sustento dos mineradores O escravo negro pau para toda obra armava o tripeacute de varas fincado no chatildeo e pendurava nele o caldeiratildeo de ferro em que cozinhava o feijatildeo com toucinho servido em pratos de estanho Estendia-se a farinha ao sol numa toalha e ao lado natildeo faltava o ancorote de aacutegua ou aguardente Galinha ovos e doces quando os havia muito raros eram tudo por preccedilo da hora da morte (FRIEIRO 1982 p 57)
A partir disso pela necessidade de manter a atividade e portanto de
manter alimentados os homens para o trabalho o rei ordena a importaccedilatildeo de
carne de boi para Minas vinda de Satildeo Paulo Curitiba sertotildees da Bahia e
Pernambuco Essas regiotildees natildeo possuiacuteam grande plantel mas passaram a
ampliar a produccedilatildeo para atender agrave demanda mineira A carne chegava cara e
8 Uma importante e movimentada rota de comercializaccedilatildeo para abastecer a regiatildeo de suprimentos gerais e
comida surge da exploraccedilatildeo de ouro e diamante Detalhes dessa rota comercial por ser visto em Zemella (1951)
9 Muito comuns na mineraccedilatildeo os faiscadores eram homens livres e pobres havendo mesmo escravos entre eles que entregavam quantia fixa de ouro ao senhor e guardavam o eventual excedente (VAINFAS 2001 p 398)
26
tambeacutem tinha seu preccedilo elevado nas regiotildees de origem jaacute que se priorizava a
exportaccedilatildeo para Minas Apesar da escassez de comida representar um aspecto
negativo para Minas Gerais ela contribuiu para a expansatildeo do mercado de
outras regiotildees do paiacutes que investiram no abastecimento de alimentos da aacuterea de
mineraccedilatildeo conforme aponta Furtado (2000)10
Segundo Zemella (1951) apesar do empenho de Satildeo Paulo e das outras
regiotildees em fazer chegar a carne ateacute as Minas Gerais havia irregularidades no
fornecimento Em funccedilatildeo disso usava-se muito da carne de caccedila e de todo o
tipo de alimento que se poderia obter nas matas aleacutem do pouco que colhiam nas
pequenas roccedilas para subsistecircncia insuficiente para atender a demanda de todos
os trabalhadores que viviam na regiatildeo dedicada agrave mineraccedilatildeo
A situaccedilatildeo de inseguranccedila alimentar grave que se instalava e a grande
dificuldade na obtenccedilatildeo da carne bovina ldquoestimulou o governo metropolitano agrave
formaccedilatildeo de uma zona pecuarista em torno das minas distribuindo sesmarias
em profusatildeo sempre sob a condiccedilatildeo de os agraciados instalarem curraisrdquo
(ZEMELLA 1951 p 192) O objetivo era tambeacutem que com o tempo a produccedilatildeo
de gado se tornasse suficiente para natildeo mais haver comeacutercio com a Bahia
visando fechar os canais por onde escoava o contrabando de ouro
A outra accedilatildeo do governo da qual trata a autora foi instituir a criaccedilatildeo de
suiacutenos onde houvesse espaccedilo para tal Assim passou a ser frequente entre os
mineiros a implantaccedilatildeo de chiqueiros rudimentares no quintal das casas mesmo
nas casas urbanas Surge a partir dessa situaccedilatildeo a preferecircncia pela carne suiacutena
na dieta do mineiro da regiatildeo de mineraccedilatildeo11 carne que estaacute presente na maior
parte das receitas consideradas mineiras ainda nos dias atuais
Outra medida por parte da Coroa para garantir a subsistecircncia interna e
certa autonomia ao longo desse periacuteodo de mineraccedilatildeo foi a criaccedilatildeo da ldquoOrdem
10 A pecuaacuteria que encontrara no Sul um habitat excepcionalmente favoraacutevel para desenvolver-se - e que
natildeo obstante sua baixiacutessima rentabilidade subsistia graccedilas agraves exportaccedilotildees de couro ndash passaraacute por uma verdadeira revoluccedilatildeo com o advento da economia mineira O gado do Nordeste cujo mercado definhava com a decadecircncia da economia accedilucareira tende a deslocar-se em busca do florescente mercado da regiatildeo mineira Outra caracteriacutestica de profundas consequecircncias para as regiotildees vizinhas radicava em seu sistema de transporte A tropa de mulas constitui autecircntica infraestrutura de todo o sistema A quase inexistecircncia de abastecimento local de alimentos a grande distacircncia por terra que deveriam percorrer todas as mercadorias importadas a necessidade de vencer grandes caminhadas em regiatildeo montanhosa para alcanccedilar os locais de trabalho tudo contribuiacutea para que o sistema de transporte desempenhasse um papel baacutesico no funcionamento da economia Criou-se assim um grande mercado para animais de carga (FURTADO 2000 p 81)
11 Nas regiotildees do norte de Minas Gerais outros tipos de carne satildeo mais comuns por exemplo a carne de sol em que se usa mais frequentemente a carne de boi
27
Reacutegia de 27 de fevereiro de 1777rdquo que tornou obrigatoacuterio o cultivo nas aacutereas
rurais em quantidade suficiente para abastecimento de mandioca feijatildeo e milho
considerados alimentos baacutesicos naquela eacutepoca
O milho que na regiatildeo das Minas Gerais passou a ser mais importante
para consumo humano12 do que a mandioca tinha como derivados pipoca
curau pamonha farinha cuscuz biscoitos bolos cerveja de milho verde
aguardente canjica ldquoque os ricos comiam por gosto e os pobres por
necessidaderdquo (FRIEIRO 1982 p 57) Isso porque estes derivados eram
consumidos apenas pelos proprietaacuterios das terras e outros poucos abastados
Segundo Saint-Hilaire (1938) e Frieiro (1982) aos escravos soacute era dado o angu
que durante muito tempo foi a base de sua dieta Saint-Hilaire (1938) que
aprovou o paladar da alimentaccedilatildeo agrave base do milho descreve detalhes do fubaacute e
a importacircncia do angu para a alimentaccedilatildeo dos escravos
Para fazer servir o milho agrave alimentaccedilatildeo ordinaacuteria dos homens eacute ele preparado de duas maneiras diferentes Sua farinha simplesmente moiacuteda e separada do farelo com o auxiacutelio de uma peneira de bambu toma o nome de fubaacute Eacute fazendo cozer o fubaacute na aacutegua sem acrescentar sal que se faz essa espeacutecie de polenta grosseira que se chama como jaacute o disse anguacute e constitui o principal alimento dos escravos (SAINT-HILAIRE 1938 p 206)
O viajante Pohl (1951 apud FRIEIRO 1982) relata o que testemunhou
da alimentaccedilatildeo dos escravos ldquoalimentavam-se os negros ao almoccedilo e agrave ceia
com farinha de milho misturada com aacutegua quente o angu propriamente dito no
qual punham um naco de toucinho e ao jantar davam-lhes feijatildeordquo (POHL 1951
apud FRIEIRO 1982 p 75) O objetivo era alimentar o escravo somente daquilo
que o mantivesse em boas condiccedilotildees de sauacutede e com forccedila suficiente para fazer
render o trabalho na lavra
O angu era desde essa eacutepoca feito sem adiccedilatildeo de sal o que perdura ateacute
os dias de hoje A principal razatildeo para isso naquela eacutepoca era a dificuldade em
obter o sal em Minas Gerais e consequentemente o seu alto preccedilo Assim esse
produto era usado com parcimocircnia para alimentaccedilatildeo animal e alguns alimentos
12 Para fins de alimentaccedilatildeo animal o milho tambeacutem era mais importante do que a mandioca pois dele se
alimentavam os bovinos os suiacutenos os equinos e os galinaacuteceos conforme aponta Meneses (2007) Assim era necessaacuteria uma aacuterea muito grande destinada ao cultivo deste cereal Segundo este autor a praacutetica de produccedilatildeo consorciada de milho e feijatildeo era comum e atendiam a uma ldquoordem bioloacutegica cultural e econocircmica e ainda ecoloacutegica - condiccedilotildees de clima solo e relevordquo (p 344) Com o passar do tempo o milho caiu na preferecircncia dos habitantes das Minas e se tornou mais importante para fins de alimentaccedilatildeo humana tambeacutem
28
que precisariam dele para conservaccedilatildeo como toucinhos e feijatildeo por exemplo
Conforme Frieiro (1982) em funccedilatildeo dessa situaccedilatildeo poder-se-ia talvez atribuir
o angu sem sal como invenccedilatildeo mineira embora isso natildeo possa ser comprovado
jaacute que em outras regiotildees como Satildeo Paulo e Bahia o angu eacute temperado A
obtenccedilatildeo de sal foi um problema geral no paiacutes durante todo o seacuteculo XVIII
segundo o autor
Zemella (1951) em seu importante trabalho sobre o abastecimento de
capitania das Minas Gerais no seacuteculo XVIII destaca essa situaccedilatildeo
O suprimento de sal especialmente para as cidades vicentinas sempre foi difiacutecil e penoso Na Vila de Satildeo Paulo o mau fornecimento do preciso condimento causou ateacute revoltas Se na Vila de Satildeo Paulo que estava relativamente proacutexima do porto de importaccedilatildeo de sal havia tremendas dificuldades para a sua obtenccedilatildeo que seria entatildeo das Gerais As minas no seu desespero conseguiram uma regiatildeo interna os sertotildees marginais do Satildeo Francisco que lhe fornecesse tal mercadoria se bem que em pequenas quantidades O sal chegava agraves cidades mineiras subindo o rio Satildeo Francisco em barcaccedilas (ZEMELLA 1951 p 193)
A autora aponta que o sal assim como a carne os cereais o accediluacutecar e o
toucinho eram produtos vitais de consumo para os mineiros Sendo que a carne
e o sal eram aleacutem de necessaacuterios imprescindiacuteveis e vinham de longas
distacircncias Segundo Carrara (2013) o sal que chegava agraves Minas Gerais vinha
de Sobradinho Pilatildeo Arcado Casa Nova e Remanso na Bahia A autora inclui
na lista ainda dois produtos que eram considerados de grande importacircncia para
os mineiros a pinga e o tabaco A pinga ou cachaccedila era muitas vezes usada
para ajudar a remediar a fome
Como citado por Zemella (1951) e Frieiro (1982) a Ordem Reacutegia
estimulou pequenos cultivos para subsistecircncia e a venda dos excedentes
reduzindo o risco de uma nova crise de fome Com o tempo foi-se regulando o
abastecimento embora a preccedilos ainda estivessem muito elevados para a grande
maioria da populaccedilatildeo da regiatildeo mineradora Segundo Boxer (1969 apud Arruda
1999 p 139) ldquoAs pessoas que tinham uma fazenda ou roccedila nas quais
plantavam legumes criavam aves porcos etc para elas e seus escravos
vendendo o excesso para o consumo na cidade com bons lucrosrdquo
Arruda (1999) menciona que as pessoas mais ricas e que possuiacuteam um
grande nuacutemero de escravos foram as primeiras a iniciarem o cultivo de suas
29
terras para alimentar seus familiares os escravos e a aproveitar a demanda por
alimentos para obter algum lucro com a venda do excedente
Analisando o lugar da comida no processo de formaccedilatildeo do territoacuterio das
Minas Gerais na fase da mineraccedilatildeo verificamos que ela teve uma funccedilatildeo muito
mais fisioloacutegica ou seja a de matar a fome e sustentar a pesada lida diaacuteria que
era o trabalho na lavra Conforme os registros de Mawe (1922) Saint-Hilaire
(1938) e Cardim (1939) verifica-se que os habitantes da regiatildeo de Minas Gerais
faziam suas refeiccedilotildees com muita rapidez e com pouca conversa
Outra observaccedilatildeo importante eacute mencionada por Abdala (2007) que
aponta a existecircncia de uma combinaccedilatildeo de gecircneros adquiridos no comeacutercio com
a produccedilatildeo de alimentos do quintal isso ainda na fase da mineraccedilatildeo ndash no
periacuteodo apoacutes as crises de fome e organizaccedilatildeo do abastecimento interno Como
os preccedilos dos produtos importados eram muito elevados os produtos da terra
foram os principais alimentos consumidos Assim segundo a autora surge uma
cozinha com caracteriacutesticas peculiares que se adaptou agrave situaccedilatildeo vivenciada
pelos habitantes cujo controle poliacutetico e econocircmico era excessivo diante da
realidade em que atender agraves necessidades imediatas de sobrevivecircncia era o
principal objetivo ldquoAgrave exceccedilatildeo das compotas e doccedilarias de maneira geral
inspiradas nos haacutebitos lusitanos os pratos servidos no dia-a-dia caracterizavam-
se pela rusticidade dos produtos da terrardquo (ABDALA 2007 p 73) Nesse periacuteodo
tambeacutem foi muito importante dominar as teacutecnicas de conservaccedilatildeo dos alimentos
o que acarretou na adoccedilatildeo de haacutebitos alimentares muito caracteriacutesticos como a
conservaccedilatildeo da carne do porco na gordura retirada do proacuteprio animal
23 Fase da ruralizaccedilatildeo em Minas Gerais fartura de alimentos
A fase da ruralizaccedilatildeo em Minas Gerais eacute considerada aquela que
paulatinamente vai surgindo um novo dinamismo econocircmico e reprodutivo para
aleacutem da mineraccedilatildeo Segundo Arruda (1999) Igleacutesias (1970) Carrara (2007)
Guimaratildees e Reis (2007) Meneses (2007) Barbosa (1995) e Frieiro (1982) natildeo
ocorreu um corte radical uma linha divisoacuteria onde tenha se encerrado o ciclo da
mineraccedilatildeo e surgido o ciclo da ruralizaccedilatildeo A demarcaccedilatildeo de uma periodizaccedilatildeo
eacute feita pelos autores mais por razotildees metodoloacutegicas para discorrer sobre o ritmo
histoacuterico econocircmico e cultural daquele periacuteodo na regiatildeo
30
Iglesias (1970) utiliza os termos ldquoopulecircncia e decadecircnciardquo da mineraccedilatildeo
e sugere os periacuteodos da seguinte maneira Os anos de 1693 a 1770 a fase
considerada do surgimento ao auge da opulecircncia mineraccedilatildeo e 1770 a 1883 o
que abrangeria a sua decadecircncia Tal decliacutenio orientou consequentemente para
a atividade a agriacutecola Arruda (1999) aponta a Carta (ou Ordem) Reacutegia jaacute citada
no item anterior como o marco de reconhecimento da Coroa do decliacutenio da
mineraccedilatildeo e da necessidade de estimular a produccedilatildeo agriacutecola na regiatildeo Em
suas palavras
A Carta Reacutegia de 1777 consagra ao novo princiacutepio o postulado que reconhece a importacircncia da agropecuaacuteria no conjunto das atividades econocircmicas nas aacutereas de mineraccedilatildeo () A mudanccedila de atitude por parte das autoridades governamentais do Reino corresponde na realidade agrave avassaladora crise da produccedilatildeo auriacutefera depois dos anos sessenta Impunham-se novos caminhos agrave economia de Minas capazes de dar sustentaccedilatildeo aos significativos contingentes populacionais que laacute haviam se estabelecido na primeira deacutecada do seacuteculo XVIII (ARRUDA 1999 p 140)
Nesta fase o problema de abastecimento jaacute natildeo era mais tatildeo grave mas
os preccedilos dos alimentos continuavam altos Era tempo de maior fartura de
alimentos em relaccedilatildeo agrave fase de mineraccedilatildeo mas ainda assim com muitos
obstaacuteculos Zemella (1951) defende que em funccedilatildeo da situaccedilatildeo dada a regiatildeo
de Minas Gerais foi orientando pouco a pouco seus caminhos no sentido da
autossuficiecircncia e as atividades dos habitantes se desviando para a lavoura
pecuaacuteria e a manufatura ldquoNa proacutepria regiatildeo onde se localizavam as lavras13 ou
minas multiplicaram-se as plantaccedilotildees As minas agonizantes passaram a
apoiar-se na lavoura que se expandindo procurava gulosamente as manchas
de terra feacutertil que havia nas imediaccedilotildees das lavrasrdquo (ZEMELLA 1951 p 239)
Mas esse processo natildeo significou um rompimento abrupto da mineraccedilatildeo Assim
o trabalho na lavra permanecia embora em muito menor importacircncia do que
antes ndash nas fases poacutes-colheita ndash quando se utilizava a matildeo-de-obra dos escravos
que pudessem ser retirados temporariamente da lavoura
Guimaratildees e Reis (2007) apontam que os setores da manufatura
pecuaacuteria e lavoura permitiram que a economia de Minas Gerais continuasse a
13 ldquoEm 1702 foi criado a Intendecircncia das Minas oacutergatildeo encarregado de aplicar a legislaccedilatildeo sobre a
mineraccedilatildeo na colocircnia Cabia ainda ao oacutergatildeo dividir o local a ser explorado em Datas lotes de terra entregues ao descobridor das minas As aacutereas maiores que as Datas eram chamadas de Lavras lotes de terras em que a exploraccedilatildeo do ouro soacute seria possiacutevel com teacutecnicas de exploraccedilatildeo mais eficaz e com um grande nuacutemero de escravosrdquo (MUTTER 2012 p31)
31
se desenvolver e a Capitania continuasse a manter seu ritmo de crescimento
populacional durante a segunda metade do seacuteculo XVIII incluiacuteda a populaccedilatildeo
escrava
Com a crise da mineraccedilatildeo a mudanccedila nos rumos da economia mineira provocou transformaccedilotildees quantitativas e qualitativas na agricultura com o fortalecimento da produccedilatildeo interna e com o desenvolvimento de uma elite residente autocircnoma ante o mercado externo (GUIMARAtildeRES REIS 2007 p 332)
Na concepccedilatildeo de Arruda (1999) aleacutem de a agricultura ocorrer nas
regiotildees das lavras como afirmado por Zemella (1951) as sesmarias que foram
concedidas levaram muitos a estabelecerem suas fazendas no interior rural A
autora aponta que nesta fase jaacute ao final do seacuteculo XVIII Minas reduziu muito o
consumo de produtos importados basicamente de Satildeo Paulo Rio de Janeiro e
Bahia passando a comercializar principalmente para o Rio de Janeiro muito do
que passou a produzir embora a produccedilatildeo fosse principalmente para
abastecimento interno como tambeacutem apontado por Graccedila Filho (2007) e por
Guimaratildees e Reis (2007) Exportava-se ldquoqueijo fumo accediluacutecar aguardente e
cana e ainda mas em menor volume couros e solas marmelada e mandioca
algodatildeo pouco cafeacute gado vacum porcos cavalos e galinhasrdquo (DULCI 2007 p
348)
Este autor menciona ainda que as importaccedilotildees que continuaram pelo
seacuteculo XIX foram de produtos como sal tecidos vinho peixe salgado vinagre
e azeite doce
As compras no entanto eram muito menores do que as vendas O poder aquisitivo dos mineiros era baixo portanto jaacute que eles natildeo tinham condiccedilotildees de consumir muitos produtos importados havia espaccedilo para fabricaccedilatildeo local de bens indispensaacuteveis agrave vida diaacuteria (DULCI 2007 p 348)
Para Freyre (2008 p 67) o decliacutenio da mineraccedilatildeo ldquotransformou quase
toda a Proviacutencia de inquietamente mineira a pacatamente agriacutecolardquo Para este
autor a fase da ruralizaccedilatildeo foi melhor para Minas nos aspectos econocircmicos e
sociais Segundo Graccedila Filho (2007) Guimaratildees e Reis (2007) e Arruda (1999)
a fase da ruralizaccedilatildeo em Minas foi um processo relativamente lento que ocorreu
progressivamente e essa realidade natildeo mudou mundo durante quase todo o
seacuteculo XIX
32
Poreacutem a partir de segunda metade desse seacuteculo o setor cafeeiro e o
fabril tornaram essa realidade produtiva e econocircmica mais diversificada
sobretudo na Zona da Mata assim como a pecuaacuteria leiteira na regiatildeo mais ao
Sul do estado
A produccedilatildeo cafeeira na Zona da Mata conforme Pires (2013 p 331)
ldquodesenvolveu uma tiacutepica economia voltada para a produccedilatildeo e exportaccedilatildeo de cafeacute
que a partir de meados do seacuteculo XIX vai se tornando o espaccedilo econocircmico mais
rico do estado ateacute pelo menos o final da deacutecada de 1920rdquo
Tambeacutem foi na Zona da Mata que Dulci (2007) aponta ter surgido no final
do seacuteculo XIX e iniacutecio do XX agroinduacutestrias da cana e do leite que chegaram a
liderar o mercado nacional no iniacutecio do seacuteculo XX Antes disso os engenhos
existentes nas aacutereas rurais em Minas eram rudimentares O autor menciona que
no municiacutepio de Ponte Nova foram instaladas trecircs usinas de cana de accediluacutecar com
a importaccedilatildeo de equipamentos modernos para a produccedilatildeo em escala industrial
Com as usinas chegaram os trens da empresa Leopoldina o que foi muito
importante para o desenvolvimento regional
Em relaccedilatildeo agrave agroinduacutestria do leite em Minas no mesmo periacuteodo o autor
sinaliza que ela se deu de maneira constante acompanhando a evoluccedilatildeo da
pecuaacuteria regional A primeira agroinduacutestria de produtos laacutecteos do estado
estabeleceu-se onde hoje estaacute o municiacutepio de Santos Dumont
Satildeo muitas as teses e discussotildees baseadas em documentos e arquivos
sobre a Minas Colonial e sobre as dinacircmicas produtivas e o controle poliacutetico-
econocircmico nas duas fases a mineraccedilatildeo e a ruralizaccedilatildeo Poreacutem para os
objetivos deste trabalho como jaacute sinalizado no iniacutecio deste capiacutetulo importa
saber se o decliacutenio da mineraccedilatildeo e consequente ampliaccedilatildeo da produccedilatildeo
agropecuaacuteria (considerada assim a fase da ruralizaccedilatildeo) gerou mudanccedilas nos
haacutebitos alimentares da populaccedilatildeo mineira do entorno da regiatildeo mineradora
Conhecer os haacutebitos alimentares da populaccedilatildeo o que era cultivado e que
animais eram criados nesses dois periacuteodos eacute importante para correlacionar com
as informaccedilotildees obtidas na pesquisa de campo
Nesse sentido os autores que orientam a esse respeito satildeo Frieiro
(1982) Magalhatildees (2004) Arruda (1990) Abdala (2007) Vasconcellos (1968) e
Torres (2011)
33
Temos a impressatildeo (e Gilberto Freyre e Caio Prado Juacutenior pensam igualmente assim) que o mineiro tanto na Colocircnia nos tempos de mineraccedilatildeo no Impeacuterio passada a seacuterie de crises dos primeiros tempos de mineraccedilatildeo alimentava-se bem e melhor do que a maioria dos brasileiros ao menos quanto ao peso e valor nutritivo O mineiro exige ldquosustacircnciardquo quer comida substancial e pouco liga para refinamentos complicados (TORRES 2011 p 101)
A observaccedilatildeo de Torres (2011) corrobora a de Frieiro (1982) que
sinaliza para uma alimentaccedilatildeo mais farta na fase da ruralizaccedilatildeo e segundo
Arruda (1999) a produccedilatildeo diversificada nas fazendas era uma caracteriacutestica
deste periacuteodo Os excedentes de carne suiacutena toucinho carne seca farinha de
milho farinha de mandioca rapadura aguardente oacuteleo fumo cafeacute queijos
algodatildeo em fios e tecidos ruacutesticos eram vendidos nas cidades mais proacuteximas
O que os autores citados apontam eacute que houve fartura de produtos
alimentiacutecios sem diversificaccedilatildeo entre o que se comia na fase da mineraccedilatildeo para
a fase da ruralizaccedilatildeo exceto para os mais ricos que podiam investir na
importaccedilatildeo de vinhos azeites do reino e bacalhau Magalhatildees (2004) aponta a
abundacircncia na produccedilatildeo de legumes frutas hortaliccedilas tubeacuterculos e gratildeos
produzidos nos siacutetios e fazendas proacuteximos a Vila Rica e Mariana Ateacute mesmo
nos pequenos quintais das cidades existiam hortas Muitos dos alimentos eram
itens comuns no cotidiano alimentar da populaccedilatildeo como o feijatildeo a farinha e
milho e a couve
Quanto agrave produccedilatildeo de alimentos regionaislocais notam-se principalmente legumes hortaliccedilas frutas e gratildeos produzidos por pequenos sitiantes residentes nos termos das vilas Em Vila Rica por exemplo produziam-se os seguintes gecircneros laranjas bananas quiabos couves batata-doce caraacute mandioca ovos patildees leite azeite de mamona farinha de mandioca e de milho cevada arroz feijatildeo miuacutedo e fradinho (CHAVES 1995 apud MAGALHAtildeES 2004 p 71)
Em relaccedilatildeo agrave proteiacutena animal Magalhatildees (2004) e Frieiro (1982)
apontam que os suiacutenos e as galinhas caipiras continuaram sendo a principal
fonte de consumo Do suiacuteno aleacutem da carne continuou-se a usar o toucinho a
banha focinho orelhas mocotoacutes e fressuras que tambeacutem satildeo fonte de gordura
Diferentemente da carne cujo consumo era restrito aos abastados o toucinho e
a banha eram usados por todas as classes sociais para acompanhar as
hortaliccedilas e o feijatildeo
34
O angu e o feijatildeo continuaram presentes na mesa de todos sobretudo
na do pobre14 Segundo os autores nas famiacutelias mais ricas tinha-se como
costume servir refeiccedilotildees muito fartas para as visitas mesmo que essa natildeo fosse
a realidade cotidiana inclusive com variedades de doces numa tentativa de
apagar as privaccedilotildees alimentares vivenciadas anteriormente
Saint-Hilaire em uma de suas passagens por Minas Gerais no seacuteculo
XIX relata suas percepccedilotildees sobre a comida nas aacutereas rurais
Galinha e porco satildeo as carnes que se servem mais comumente em casa dos fazendeiros da proviacutencia das Minas O feijatildeo preto forma prato indispensaacutevel na mesa do rico e esse legume constitui quase que a uacutenica iguaria do pobre Se a esse grosseiro manjar este uacuteltimo acrescenta mais alguma coisa eacute arroz ou couve ou outras ervas picadas (hellip) Como natildeo se conhece o fabrico da manteiga substitui-se-lhe a gordura que escorre do toucinho que se frita Cada conviva salpica com farinha o feijatildeo ou outros alimentos aos quais se adiciona salsa e faz-se assim uma espeacutecie de pasta (hellip) Um dos pratos favoritos dos mineiros eacute galinha cozida com quiabo mas os quiabos natildeo se comem com prazer senatildeo acompanhados de anguacute espeacutecie de polenta sem sabor Em parte alguma talvez se consuma tanto doce como na proviacutencia das Minas fazem-se doces de uma multidatildeo de coisas diferentes (hellip) Eacute muito raro encontrar vinho em casa de fazendeiros a aacutegua eacute a sua bebida ordinaacuteria (SAINT-HILAIRE 1938 p 186-187)
Na percepccedilatildeo de Magalhatildees (2004) natildeo houve alteraccedilotildees importantes
na comida mineira ao longo dos anos na regiatildeo onde se iniciou a mineraccedilatildeo
Feijatildeo farinha de milho fubaacute e arroz continuaram a ser alimentos baacutesicos
Sobre as quitandas Frieiro (1982 p 166) e Abdala (2007 p 99) citam
o consumo comum dos biscoitos de polvilho assados ou fritos broas pamonhas
brevidades roscas sequilhos bolos broinhas de fubaacute de amendoim e matildees-
bentas As quitandas eram fundamentais nas aacutereas rurais Em funccedilatildeo da
distacircncia das cidades era preciso estar prevenido para a chegada de alguma
visita e para atender agrave famiacutelia diariamente O patildeo de queijo atualmente a
quitanda quase ldquosiacutembolordquo de Minas Gerais foi introduzida apenas em iniacutecio do
seacuteculo XX Natildeo haacute uma data precisa de seu surgimento mas como os autores
apontam o queijo passou a ser produzido para aproveitar as sobras do leite
Segundo Abdala (2007) os viajantes europeus que estiveram em Minas no
seacuteculo XIX relataram a raridade de queijo e manteiga nos menus locais Para a
14 Segundo Omegna (1961 apud FRIEIRO 1982) a parcela mais pobre e livre de Minas Gerais nunca
rejeitou o angu e nem a farinha de milho preferindo-o agrave mandioca Mas o mesmo natildeo se observava em outras regiotildees do Paiacutes justamente por ser comida prioritaacuteria para os escravos e assim optavam pela farinha de mandioca Essa era uma maneira de natildeo se igualar aos escravos
35
autora a introduccedilatildeo do queijo no biscoito de polvilho dando origem ao patildeo de
queijo surgiu justamente no periacuteodo de fartura alimentar quando se utilizava o
excedente para criar diversos pratos Na regiatildeo que pesquisei o patildeo de queijo
natildeo eacute uma quitanda tradicional e raramente eacute consumida
O que se percebe ao final deste capitulo eacute que a alimentaccedilatildeo baacutesica foi
a mesma em Minas desde o periacuteodo da mineraccedilatildeo A ruralizaccedilatildeo ampliou a
produccedilatildeo de alimentos para abastecimento interno e venda do excedente houve
o incremento de algumas produccedilotildees como cafeacute leite accediluacutecar e seus derivados
mas isso natildeo representou novidade em termos de consumo Percebe-se que os
haacutebitos alimentares permaneceram ao longo dos seacuteculos XVIII XIX e pelo
menos ateacute o iniacutecio do XX Os alimentos destacados como os baacutesicos pelos
autores citados aqui satildeo aqueles que atualmente ainda satildeo encontrados nas
receitas consideradas como mais tradicionais da cozinha mineira embora muitas
e dessas receitas sugiram algumas substituiccedilotildees como oacuteleo vegetal no lugar da
banha accediluacutecar cristal no lugar da rapadura ou do melado fermento quiacutemico no
lugar do bicarbonato de soacutedio etc
No capiacutetulo 5 seraacute possiacutevel observar se esses alimentos presentes na
regiatildeo de mineraccedilatildeo em Minas Gerais satildeo ainda adotados pelas famiacutelias rurais
entrevistadas e se existem relaccedilotildees da comida consumida na ocasiatildeo da
pesquisa com a comida do passado
36
3 ALIMENTACcedilAtildeO E CULTURA PERMANEcircNCIAS E TRANSFORMACcedilOtildeES
ldquoComer natildeo envolve apenas a natureza e a cultura Situa-se entre a natureza e a cultura Participa de ambas Tem muito a ver com a primeira e tambeacutem com a segundardquo
(Paolo Rossi 2014)
Apresento neste capiacutetulo a base conceitual e argumentativa da pesquisa
e os principais autores envolvidos com as abordagens contidas neste trabalho
O item 31 tem por objetivo apontar o lugar da alimentaccedilatildeo nas principais
anaacutelises das ciecircncias sociais e da histoacuteria Basicamente trecircs disciplinas
compotildeem as discussotildees presentes neste estudo e se complementam durante o
percurso a Antropologia a Sociologia e a Histoacuteria O item 32 traz a discussatildeo
existente em torno de sistema alimentar e suas relaccedilotildees com as praacuteticas
alimentares O item 33 analisa as diferenccedilas atribuiacutedas entre alimento e comida
na abordagem cultural e simboacutelica das praacuteticas alimentares inserindo a
importacircncia social e cultural do fogo no ato alimentar as dinacircmicas de
comensalidade as praacuteticas alimentares adotadas na contemporaneidade em
suas conexotildees com o tradicional e o moderno O item 34 discute as
possibilidades de permanecircncia ou extinccedilatildeo das praacuteticas tradicionais no contexto
alimentar contemporacircneo O item 35 discute o tradicional e o moderno no
contexto das dinacircmicas alimentares no meio rural e o item 36 trata do papel
feminino nas praacuteticas alimentares na famiacutelia
31 A alimentaccedilatildeo como categoria de estudo multidisciplinar contribui-ccedilotildees da antropologia da sociologia e da histoacuteria
Em importante artigo sobre as balizas historiograacuteficas da alimentaccedilatildeo
Meneses e Carneiro (1997) destacam os enfoques das diversas aacutereas neste
campo que satildeo bioloacutegico econocircmico social cultural e filosoacutefico Importa-nos
sobretudo aquelas referecircncias das ciecircncias sociais e da histoacuteria Para aqueles
autores a antropologia eacute a que mais daacute atenccedilatildeo a este tema e eacute a responsaacutevel
pela maior quantidade de informaccedilotildees a respeito Citam como principais
contribuiccedilotildees iniciais as obras de Claude Leacutevi-Strauss Marshall Sahlins Mary
Douglas entre outros
37
Os antropoacutelogos desde o seacuteculo XIX se empenharam em desenvolver uma etnografia sistemaacutetica dos haacutebitos alimentares e em buscar interpretaacute-los culturalmente A primeira fase da antropologia caracterizou-se por um comparativismo das diferentes tradiccedilotildees culturais A anaacutelise dos tabus onde se destacam os alimentares foi desde os primoacuterdios da Antropologia Cultural um terreno feacutertil para especulaccedilotildees sobre o significado simboacutelico da alimentaccedilatildeo (MENESES CARNEIRO 1997 p 19)
O socioacutelogo e antropoacutelogo brasileiro Gilberto Freyre jaacute em 1926 em seu
ldquoManifesto Regionalistardquo discute ainda que de forma pouco aprofundada sobre
a funccedilatildeo do accediluacutecar no Brasil Mas foi com sua obra publicada em 1939 em que
trata especificamente de uma sociologia do doce ao recolher receitas que eram
guardadas a sete chaves pelas mulheres e que eram repassadas de matildees para
filhas que o autor pode considerado como o precursor do mais importante
trabalho sobre o accediluacutecar Assunto que retoma mais tarde em ldquoCasa-Grande e
Senzalardquo publicado em 1964
O papel das ciecircncias sociais principalmente a contribuiccedilatildeo da
antropologia para os estudos da alimentaccedilatildeo eacute detalhadamente tratado por
Garciacutea (2009) Este autor aponta que apesar de o tema da alimentaccedilatildeo ter sido
importante para os antropoacutelogos desde os primoacuterdios ndash que registraram em seus
cadernos de campo os modos de comer de elaborar a comida e ainda os
principais alimentos consumidos pelos grupos estudados ndash o ano de 1968 eacute
considerado como sendo o iniacutecio aproximado dos estudos voltados mais
especificamente para a antropologia da alimentaccedilatildeo ou seja quando a
abordagem da comida como cultura passa a ser analisada de forma mais
institucionalizada pela antropologia ldquoCuando se fijen de manera clara las dos
maacutes potentes aproximaciones a la Antropologiacutea de la Alimentacioacuten el
estructuralismo y el materialismordquo (p 26) Sua observaccedilatildeo coincide com o
afirmado por Meneses e Carneiro (1997 p 20) de que ldquosomente nas deacutecadas
de 1960 e 1970 na voga do estruturalismo eacute que os estudos antropoloacutegicos
sobre alimentaccedilatildeo deslancham e se define um padratildeo de anaacutelise culturalrdquo
Garciacutea (2009) justifica ainda a fixaccedilatildeo da data de 1968 por este ser o ano da
primeira publicaccedilatildeo do terceiro volume da seacuterie ldquoMitoloacutegicasrdquo de Claude Leacutevi-
Strauss As Origens dos Modos agrave Mesa
Nesta obra Leacutevi-Strauss republicou o artigo ldquoO triacircngulo culinaacuteriordquo onde
apresenta seu entendimento sobre o fato alimentar e defende que a cozinha de
38
uma sociedade eacute uma linguagem inconsciente de sua estrutura Voltaremos a
este artigo mais agrave frente Em ldquoAs origens dos modos agrave mesardquo (Mitoloacutegicas 3)
assim como em ldquoDo mel agraves cinzas (Mitoloacutegicas 2)rdquo Leacutevi-Strauss analisa o que
chama de ldquoentornos e contornosrdquo da alimentaccedilatildeo A diferenccedila eacute que em
ldquoMitoloacutegicas 3rdquo ele analisa como os modos agrave mesa o uso de receitas e os modos
de preparaccedilatildeo em diferentes povos estatildeo conectados ao lado cultural e como
esses aspectos complementam o lado bioloacutegico que eacute o processo de ingestatildeo e
digestatildeo alimentar
Na deacutecada de 1970 Claude Fischler socioacutelogo e antropoacutelogo francecircs
passa a dar ecircnfase em seus estudos ao tema da alimentaccedilatildeo e desenvolve
importante trabalho sobre o accediluacutecar e seus aspectos de efeito simboacutelico e
bioloacutegico Como jaacute visto Gilberto Freyre (1939) trabalhou esta temaacutetica e sua
influecircncia no Brasil Depois de Claude Fischler Sidney Mintz de mesma
formaccedilatildeo acadecircmica tambeacutem publicou trabalhos sobre o accediluacutecar em 1986
analisando sobretudo as relaccedilotildees de poder existentes nesse tipo de produccedilatildeo
na regiatildeo caribenha Neste contexto seu trabalho inseriu o tema da alimentaccedilatildeo
na economia poliacutetica global Mas Sidney Mintz analisou tambeacutem o poder de
atraccedilatildeo de consumo do accediluacutecar e seu uso na culinaacuteria Sobre esse tema publicou
ldquoSweetness and Power The place of sugar in modern Historyrdquo e em Portuguecircs
foi publicado em 2003 o livro ldquoO Poder amargo do accediluacutecar produtores
escravizados consumidores proletarizadosrdquo
Voltando a Claude Fischler ainda na deacutecada de 1970 organizou a
coletacircnea La nourriture ndash Pour une anthropologie bioculturelle de lrsquoalimentation
Mas eacute na deacutecada de 1990 que publica seu mais importante trabalho
Lrsquohomnivore onde discute as transformaccedilotildees ocorridas nas sociedades
ocidentais modernas no campo da alimentaccedilatildeo e seus efeitos na vida das
pessoas
Tambeacutem entre as deacutecadas de 1970 e 1990 quem se destaca neste
campo eacute o antropoacutelogo americano Marvin Harris Seus estudos no campo da
alimentaccedilatildeo enfatizam sobretudo os enigmas culturais buscando explicar as
reaccedilotildees a alguns mitos e tabus alimentares Assim suas publicaccedilotildees mais
importantes foram ldquoVacas Porcos Guerras e Bruxas Os enigmas da Culturardquo
(1978) Bueno para comer enigmas de alimentacioacuten y cultura (1985) ldquoCanibais
e Reisrdquo (1990) Sobre o tema dos tabus alimentares outras importantes
39
contribuiccedilotildees satildeo as dos antropoacutelogos Mary Douglas sobretudo com a obra
ldquoPureza e Perigordquo publicada pela primeira vez em 1966 e Marshal Sallins com
a obra ldquoCultura e Razatildeo Praacuteticardquo publicada originalmente em 1976 Mary
Douglas e Marshal Sallins tecircm uma anaacutelise para os tabus alimentares que difere
da de Marvin Harris que opta pelo determinismo ecoloacutegico para justificar a razatildeo
de alguns grupos como os judeus em natildeo comer alguns alimentos como carne
de porco por exemplo No livro ldquoVacas Porcos Guerras e Bruxas ndash o enigma
da culturardquo ele defende que a Biacuteblia e o Alcoratildeo condenaram o consumo do
porco natildeo por razotildees espirituais de pecado ou impureza mas ldquoporque a sua
criaccedilatildeo constituiacutea uma ameaccedila agrave integridade dos ecossistemas culturais e
naturais baacutesicos do Oriente Meacutediordquo (HARRIS 1978 p 39) Aleacutem disso Harris
aponta que por ter uma alimentaccedilatildeo parecida com a dos humanos ou seja
viverem soltos nos bosques e se alimentarem de castanhas frutas tubeacuterculos e
cereais os porcos representavam uma disputa por comida Jaacute Mary Douglas e
Sallins defendem que a razatildeo para o natildeo consumo de porco se daacute por razotildees
simboacutelicas e religiosas Mary Douglas em ldquoPureza e Perigordquo recorre ao livro
biacuteblico de Leviacuteticos no Velho Testamento para justificar sua percepccedilatildeo Neste
livro haacute uma recomendaccedilatildeo expliacutecita aos judeus sobre os animais que podem
e que natildeo podem ser comidos divididos entre animais limpos e animais imundos
Assim eram considerados limpos e liberados para comer dentre os
quadruacutepedes os que tem unhas fendidas e divididas em dois e que rumina O
porco por natildeo ruminar eacute considerado imundo e proibido Aleacutem disso nada mais
eacute falado a respeito do porco no livro de Leviacutetico Assim a autora defende que os
judeus cumprem o mandamento apenas por razatildeo religiosa e nada tem a ver
com a questatildeo utilitaacuteria ou da disputa pela comida como alegado por Marvin
Harris Sallins em ldquoCultura e Razatildeo Praacuteticardquo compartilha de forma semelhante
a ideia de Mary Douglas ao tratar sobre os haacutebitos alimentares relativos agrave carne
dos americanos do Norte o que seraacute detalhado mais agrave frente
Outro autor importante no campo da alimentaccedilatildeo eacute o socioacutelogo inglecircs
Stephen Mennell Segundo Meneses e Carneiro (1997) na deacutecada de 1980
Mennell buscou investigar os usos sociais da domesticaccedilatildeo da natureza pela
cultura antes mesmo de Claude Leacutevi-Strauss analisando como se datildeo os
modos que lsquocivilizam o apetitersquo e publicou ldquoAll Manners of Food Eating and Taste
in England and France from the Middle Ages to the Presentrdquo (1996) Foi Mennell
40
ainda quem desenvolveu primeiramente estudos sobre as ldquocozinhas identitaacuteriasrdquo
sobre a valorizaccedilatildeo da cozinha nacional da Inglaterra e os ldquoestilos nacionais de
comerrdquo
Contreras e Gracia (2011 p 29) sugerem como objeto para a
antropologia da alimentaccedilatildeo ldquoo conjunto de representaccedilotildees crenccedilas
conhecimentos e praacuteticas herdadas eou aprendidas que estatildeo associadas agrave
alimentaccedilatildeo e satildeo compartilhadas pelos indiviacuteduos de uma dada cultura ou de
um grupo social determinadordquo
No acircmbito da sociologia segundo Meneses e Carneiro (1997) as
questotildees de gecircnero na divisatildeo social do trabalho domeacutestico e ainda gecircnero e
comida foram os que mais atraiacuteram as pesquisas iniciais Sobre este tema
Mabel Garcia Arnaiacutez (1996) antropoacuteloga espanhola a quem recorremos em
vaacuterios momentos neste trabalho destaca em seu estudo sobre os paradoxos da
alimentaccedilatildeo contemporacircnea as importantes contribuiccedilotildees de Mennell (1996) de
Murcott (1983) Pynson (1987) e Kaplan (1980)
Meneses e Carneiro (1997 p 24) mencionam que o tema da
comensalidade tambeacutem foi evidenciado a partir da deacutecada de 1970 ldquoOs estudos
nesta aacuterea se orientaram para a refeiccedilatildeo como instituiccedilatildeo social sua natureza e
funcionamento seus iacutecones ndash como a mesardquo Mais recentemente abrange
fortemente os estudos sobre os efeitos da tecnologia alimentar que propiciou o
haacutebito de comer fora de casa e o surgimento dos Fast food Em sua obra estes
autores citam os trabalhos de Stephen Mennel (1996) Anne Murcott (1983)
Harvey Levenstein (1988) Claude Fischler (1988)
Ao falar em comensalidade natildeo podemos deixar de citar a contribuiccedilatildeo
dada por Norbert Elias (2011) sobre as transformaccedilotildees nas normas de
comportamento social incluindo os modos agrave mesa na sociedade europeia a
partir do final da Idade Meacutedia Nesta obra cuja primeira publicaccedilatildeo ocorreu em
1939 o autor nos leva a descobrir como foram reproduzidas socialmente
algumas regras de boas maneiras de conviacutevio na sociedade e que tambeacutem se
refletem na comensalidade como por exemplo natildeo comer com as matildeos natildeo
colocar os peacutes sobre a mesa como usar os talheres a mesa natildeo falar de boca
cheia entre outras regras O que pode parecer superficialmente uma descriccedilatildeo
fuacutetil sobre coacutedigos de etiqueta social eacute na verdade uma anaacutelise interessante do
quanto aquilo que parece ser natural atualmente nada tem de natural pois satildeo
41
regras que foram sendo aprendidas agrave medida que o homem foi avanccedilando nos
estaacutegios de civilizaccedilatildeo ocidental O autor nos mostra o quanto foi delicado e difiacutecil
para o homem da cultura ocidental se tornar civilizado ao longo do processo
histoacuterico pois o civilizar-se envolvia a mudanccedila ldquoobrigatoacuteriardquo de comportamento
Em seu livro O Processo Civilizador ele se refere agrave sociedade europeia mas
principalmente agrave Franccedila e agrave Alemanha
No vieacutes da sociologia e da antropologia ocorre uma mudanccedila de
interesse no campo dos estudos sobre alimentaccedilatildeo que se observa a partir da
deacutecada de 1990 segundo Meneses e Carneiro (1997 p 20) deslocando-se o
interesse dos tabus para enfocar as ldquopraacuteticas culturais nos processos de
aculturaccedilatildeo e na identidade culturalrdquo
Eacute importante destacar a observaccedilatildeo feita por Contreras e Gracia (2011)
de que tem sido cada vez maior o nuacutemero de autores contemporacircneos que natildeo
fazem distinccedilatildeo nos enfoques disciplinares entre a antropologia e a sociologia
da alimentaccedilatildeo
Ainda natildeo estaacute bem definida a sucessatildeo de paradigmas dentro da antropologia e da sociologia da alimentaccedilatildeo pois a cada uma das correntes foram vinculados trabalhos sobre diferentes aspectos alimentares sem que necessariamente se tenha produzido um questionamento ou uma invalidaccedilatildeo decisiva das aproximaccedilotildees perguntas ou respostas anteriores Poreacutem dentro desse acircmbito de estudo encontramo-nos em uma fase de tentativas e erros ainda que jaacute se comece a definir um nuacutecleo teoacuterico soacutelido que conte com um miacutenimo de generalizaccedilotildees e de hipoacuteteses que podem ser organizadas em um programa teoacuterico comum cujo nuacutecleo consiste em defender a ideia de lsquosistema alimentarrsquo sem desconsiderar contudo a diversidade de definiccedilotildees e atribuiccedilotildees que tal sistema tem recebido (CONTRERAS GRACIA 2011 p 30)
Garciacutea (2009) defende que para a antropologia da alimentaccedilatildeo o
interesse estaacute em encontrar a loacutegica do significado social e cultural da comida
revelando como ela pode classificar accedilotildees pessoas espaccedilos e tempos e
correlacionar essas classificaccedilotildees e seus significados Jaacute na sociologia da
alimentaccedilatildeo o foco estaacute no espaccedilo social da comida as transformaccedilotildees
contemporacircneas e a evoluccedilotildees da comensalidade
Outros autores contemporacircneos utilizados como referecircncia nesta
pesquisa nos campos tanto da antropologia quanto da sociologia da
alimentaccedilatildeo satildeo Jean Pierre Poulain que eacute socioacutelogo e antropoacutelogo francecircs
Esse autor conduz estudos e pesquisas sobre comida cultura e sauacutede nas
42
universidades de Toulouse (Franccedila) e Taylor (Malaacutesia) Autor de ldquoSociologias da
Alimentaccedilatildeordquo e ldquoDictionnaire des cultures alimentairesrdquo entre outros Mabel
Gracia Arnaiz eacute antropoacuteloga e pesquisadora da universidade de Rovira e Virgili
na Espanha e membro da Comissatildeo Internacional da Antropologia da
Alimentaccedilatildeo Sua linha de investigaccedilatildeo cientiacutefica envolve estudos socioculturais
da alimentaccedilatildeo sauacutede e gecircnero Autora das obras ldquoAlimentacioacuten salud y cultura
encuentros interdisciplinaresrdquo ldquoParadojas de la alimentacioacuten contemporacircneardquo e
mais recentemente em 2015 publicou ldquoComemos lo que somos Reflexiones
sobre cuerpo geacutenero y saludrdquo Tambeacutem antropoacutelogo e pesquisador na Espanha
Jesuacutes Contreras eacute diretor do ldquoObservatorio de la Alimentacioacuten - ODELA)rdquo autor
de ldquoSubsistencia ritual y poder en los Andesrdquo e ldquoAlimentacioacuten y cultura
necesidades gustos y costumbresrdquo Richard Wranglam eacute um pesquisador inglecircs
que atua na aacuterea de antropologia fiacutesica e primatologia Sua importante
contribuiccedilatildeo para os estudos da alimentaccedilatildeo eacute o livro ldquoPegando Fogordquo em que
aponta a importacircncia do fogo para a transformaccedilatildeo da comida de natureza em
cultura e para a promoccedilatildeo da sociabilidade humana Igor de Garine eacute um
antropoacutelogo francecircs que pesquisa sobre comida e tradiccedilatildeo comida e identidade
comida e industrializaccedilatildeo Autor de ldquoLes Changements des habitudes et des
politiques alimentaires en Afrique Aspects des sciences humaines naturellesrdquo e
Social Aspects of Obesity (Culture and Ecology of Food and Nutrition Por fim
Michael Pollan que eacute americano e apesar de sua importante contribuiccedilatildeo
contemporacircnea sobre comida e cultura o que o tem feito despontar na miacutedia
sobre o assunto sua formaccedilatildeo acadecircmica eacute o jornalismo Autor de ldquoO Dilema do
Oniacutevorordquo e ldquoCozinhar uma histoacuteria natural da transformaccedilatildeordquo e outros
As referecircncias de artigos de publicaccedilatildeo internacional dos referidos
autores e outros que utilizei nesta pesquisa fazem parte do banco de dados do
ldquoObservatoire Cniel des Habitudes Alimentaires15rdquo e do ldquoObservatorio de la
Alimentacioacuten (ODELA)rdquo16
Dentre os brasileiros na aacuterea da alimentaccedilatildeo e cultura abordados nesta
pesquisa aleacutem dos claacutessicos trabalhos de Gilberto Freyre e Cacircmara Cascudo
jaacute citados estatildeo os seguintes autores Renata Menasche cujas pesquisas satildeo
mais centradas na alimentaccedilatildeo e consumo no meio rural e patrimocircnio alimentar
15 Site de acesso httpwwwlemangeur-ochacomconnexion 16 Site de acesso httpwwwodelaorglang=es
43
focadas na regiatildeo sul do Brasil Desta autora encontrei avaliando o periacuteodo 2005
a 2015 26 artigos em perioacutedicos envolvendo os temas relacionados acima (como
autora e coautora) 07 deles estatildeo inscritos no portal de perioacutedicos da CAPES
e tambeacutem eacute importante citar dois livros organizados pela autora ldquoA Agricultura
Familiar agrave Mesa saberes e praacuteticas da alimentaccedilatildeordquo publicado em 2007 e
ldquoDimensotildees socioculturais da alimentaccedilatildeordquo publicado em 2012 Maria Eunice
Maciel tambeacutem pesquisa o sul do Brasil em um vieacutes mais geral da comida e
cultura menos voltado ao rural do que a pesquisadora anterior Desta autora
encontrei 08 artigos em perioacutedicos quase todos eles voltados agrave estudos no sul
do Brasil 02 deles inscritos no portal de perioacutedicos da CAPES Ellen Woortmann
pesquisadora de Brasiacutelia cujas pesquisas em alimentaccedilatildeo concentram-se
sobretudo em memoacuteria e patrimocircnio alimentar e aspectos de gecircnero e
alimentaccedilatildeo Seu artigo mais recente na aacuterea de antropologia da comida
publicado em perioacutedico eacute ldquoA comida como linguagemrdquo Carlos Alberto Doacuteria
antropoacutelogo por meio da publicaccedilatildeo de dois recentes livros ldquoFormaccedilatildeo da
Culinaacuteria Brasileirardquo e ldquoe-Boca Livrerdquo Raul Lody tambeacutem antropoacutelogo Sua
publicaccedilatildeo recente mais importante para o campo da alimentaccedilatildeo eacute ldquoBrasil Bom
de Bocardquo Seus estudos tecircm sido mais concentrados na discussatildeo de patrimocircnio
e regionalismo alimentar Jaacute o antropoacutelogo Roberto DaMatta embora natildeo
pesquise especificamente sobre antropologia e comida possui importantes
trabalhos claacutessicos sobre essa temaacutetica e os quais utilizei nesta pesquisa Outras
importantes contribuiccedilotildees brasileiras satildeo as de Mocircnica Abdala Eduardo Frieiro
e Socircnia Maria de Magalhatildees com trabalhos sobre alimentaccedilatildeo com foco em
Minas Gerais de abordagens principalmente histoacutericas No periacuteodo de 2000 a
2015 encontrei 08 artigos de autoria e coautoria de Mocircnica Abdala sobre o tema
da comida e cultura
A leitura de alguns trabalhos dos autores destacados acima foi
fundamental para minha compreensatildeo quanto agrave necessidade de relativizar o
tema da alimentaccedilatildeo conhecer as experiecircncias conduzidas por eles e
correlaciona-las com a discussatildeo pretendida na minha pesquisa As anaacutelises
conduzidas pelos autores convidam agrave reflexatildeo sobre os significados da comida
e do comer na sociedade contemporacircnea Foi possiacutevel perceber que existem
lacunas nas discussotildees sobre a antropologia e sociologia da alimentaccedilatildeo no
Brasil sobretudo no que se refere aos estudos voltados para as populaccedilotildees
44
rurais Como o Brasil eacute constituiacutedo culturalmente de vaacuterios rurais variadas
tambeacutem satildeo as relaccedilotildees simboacutelicas com a comida e merecem ampliaccedilatildeo nos
estudos para que seja possiacutevel alcanccedilar toda a sua complexidade
Eacute importante destacar que as pesquisas nas aacutereas da sociologia e da
antropologia da alimentaccedilatildeo no Brasil ainda satildeo muito recentes apesar das
tradicionais obras jaacute citadas de Gilberto Freyre e Cacircmara Cascudo Em
levantamento feito no banco de teses da CAPES e da base do curriacuteculo lattes
dos docentes citados acima foi possiacutevel verificar que a maioria dos trabalhos no
tema da antropologia e sociologia da alimentaccedilatildeo estatildeo vinculados a programas
de poacutes-graduaccedilatildeo na aacuterea de Antropologia Social As teses e dissertaccedilotildees
concluiacutedas pertencentes aos programas nos quais alguns dos pesquisadores
citados acima atuam totalizam 11 dissertaccedilotildees de mestrado e 04 teses de
doutorado iniciadas a partir de 2007 e concluiacutedas ateacute 2013
Em relaccedilatildeo agraves pesquisas mais recentes no Brasil em levantamento feito
no banco de perioacutedicos da Capes ndash ao utilizar termos de busca sobre o tema de
interesse desta pesquisa ndash encontrei as seguintes informaccedilotildees a respeito de
publicaccedilotildees no periacuteodo de 2005 a 2015 Sobre ldquoalimentaccedilatildeo e culturardquo 07
artigos Sobre ldquocomida e culturardquo 02 artigos Sobre ldquoalimentaccedilatildeo e meio ruralrdquo
08 artigos sendo que 06 deles se referem ao ldquoPrograma de Aquisiccedilatildeo de
Alimentos (PAA)rdquo que natildeo eacute objeto de interesse da minha pesquisa Sobre
ldquoalimentaccedilatildeo e consumordquo 12 artigos sendo que a maior parte estaacute relacionada
aos aspectos nutricionais e fisioloacutegicos e natildeo de abordagem antropoloacutegica ou
socioloacutegica
Para as anaacutelises referentes ao campo da alimentaccedilatildeo e mundo rural
brasileiro destacando a cultura modos de vida e a influecircncia dos sistemas
alimentares contemporacircneos no contexto das novas ruralidades os autores que
trazem importantes contribuiccedilotildees a este trabalho satildeo Maria de Nazareth Baudel
Wanderley Joseacute Graziano da Silva Alfio Brandenburg Antocircnio Cacircndido Carlos
Rodrigues Brandatildeo Joseacute de Souza Martins Seacutergio Schneider e Maria Joseacute
Carneiro
Neste capiacutetulo a aacuterea da histoacuteria desempenha papel menos central do
que a antropologia e a sociologia Interessa-nos dessa disciplina sobretudo os
registros que auxiliem a pensar a perspectiva cultural da alimentaccedilatildeo ponto
central deste trabalho
45
Dentre os autores em quem buscamos as contribuiccedilotildees nesse sentido
estatildeo Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari Nas uacuteltimas trecircs deacutecadas eles
tecircm trazido importantes contribuiccedilotildees para a compreensatildeo da histoacuteria da
alimentaccedilatildeo sobretudo a histoacuteria da alimentaccedilatildeo na Europa A obra mais
importante que resultou da junccedilatildeo dos dois trata de um volumoso livro de 885
paacuteginas organizado por eles que reuniu vaacuterios pesquisadores da aacuterea com
enfoques diferentes sobre a alimentaccedilatildeo na histoacuteria O livro ldquoA Histoacuteria da
Alimentaccedilatildeordquo que foi publicado em 1996 possui um recorte temporal dividido em
sete partes 1 Preacute-histoacuteria e primeiras civilizaccedilotildees 2 O mundo claacutessico 3 Da
antiguidade tardia agrave alta idade meacutedia 4 Os ocidentais e os outros 5 Plena e
baixa idade meacutedia 6 Da cristandade ocidental agrave Europa dos Estados 7 A eacutepoca
contemporacircnea Para a presente pesquisa interessa sobretudo a seacutetima e
uacuteltima parte que trata da alimentaccedilatildeo contemporacircnea e nela dois capiacutetulos o
que discute ldquoas transformaccedilotildees do consumo alimentarrdquo e ldquoa emergecircncia das
cozinhas regionaisrdquo Nesta obra estatildeo presentes artigos de historiadores mas
tambeacutem de antropoacutelogos e socioacutelogos da alimentaccedilatildeo
Tambeacutem pesquisei e fiz uso de registros importantes da histoacuteria da
alimentaccedilatildeo presentes na coleccedilatildeo organizada por Philippe Ariegraves e Georges
Duby ldquoHistoacuteria da Vida Privadardquo bem como da coleccedilatildeo organizada por Fernando
A Novais Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Tais coleccedilotildees foram organizadas
por diversos autores de acordo com os volumes Utilizei trabalhos histoacutericos
dessa coleccedilatildeo nas discussotildees sobre o fogo comensalidade e sociabilidades que
ocorrem no espaccedilo da cozinha
Inclui-se ainda as anaacutelises do espanhol L Jacinto Garciacutea e seu livro
ldquoUna Historia Comestible homiacutenidos cocina cultura y ecologiardquo e ainda Brillat-
Savarin em ldquoA Fisiologia do Gostordquo Recorri com frequecircncia nesta pesquisa a
Luce Giard historiadora francesa Sua importante contribuiccedilatildeo para os estudos
da alimentaccedilatildeo estaacute no v 2 da obra de Michel De Certeau ldquoA Invenccedilatildeo do
Cotidiano II ndash Morar cozinharrdquo
Daniel Roche historiador social e cultural tambeacutem francecircs escreveu
sobre a cultura material francesa do seacuteculo XVIII Sua contribuiccedilatildeo para a histoacuteria
da alimentaccedilatildeo encontra-se no livro ldquoHistoacuteria das Coisas Banaisrdquo publicado
originalmente em 1997 em que trata do nascimento do consumo nos seacuteculos
XVII ao XIX Ao descrever aspectos cotidianos modos de vida comportamentos
46
e o funcionamento das sociedades da eacutepoca que passava por transformaccedilotildees
o autor mostra a famiacutelia como a unidade fundamental de produccedilatildeo e consumo
tanto na aacuterea rural quanto na urbana e isso se refletiu nas praacuteticas e haacutebitos
alimentares Um capiacutetulo do livro eacute dedicado agrave alimentaccedilatildeo como cultura e como
necessidade fisioloacutegica em uma eacutepoca em que obter a alimentaccedilatildeo era a
principal preocupaccedilatildeo das famiacutelias
Na histoacuteria da alimentaccedilatildeo brasileira as referecircncias mais importantes
que percorremos se referem aos trabalhos do historiador e tambeacutem folclorista
Luiacutes da Cacircmara Cascudo Suas obras nesta linha satildeo Histoacuteria da Alimentaccedilatildeo
no Brasil e Antologia da Alimentaccedilatildeo no Brasil Recorremos tambeacutem agrave vasta
contribuiccedilatildeo dada por Gilberto Freyre em ldquoCasa Grande e Senzalardquo e ldquoSobrados
e Mucambosrdquo que assim como Cacircmara Cascudo continuam sendo referecircncia
no campo da histoacuteria da alimentaccedilatildeo no Brasil Importante destacar que os dois
autores natildeo eram formados em curso de histoacuteria jaacute que segundo Silva e Ferreira
(2011) os primeiros cursos superiores de Histoacuteria no Brasil datam da deacutecada
de 1930 na USP no qual Gilberto Freyre lecionava a disciplina de antropologia
Assim os trabalhos de ambos mais do que apenas registros histoacutericos
perpassam fortemente pelas anaacutelises de cunho socioantropoloacutegico
No contexto analiacutetico desta pesquisa em que importa compreender as
mudanccedilas e ou permanecircncias nos haacutebitos alimentares das famiacutelias rurais o
uso do termo ldquosistema alimentarrdquo eacute recorrente Assim importa compreender o
seu significado atribuiacutedo por especialistas na aacuterea de alimentaccedilatildeo e cultura
Passaremos a essa discussatildeo no proacuteximo toacutepico deste capiacutetulo
32 Sistema alimentar17
Poulain (2001) define sistema alimentar como sendo
Lrsquoensemble de regravegles qui reacutesulte de lrsquoorganisation sociale des conceptions relatives au plaisir alimentaire et agrave la santeacute Les modegraveles alimentaires varient drsquoun espace culturel agrave lrsquoautre et au sein drsquoune
17 Nas disciplinas voltadas aos estudos de cunho fisioloacutegico e nutricional da alimentaccedilatildeo o termo adotado
eacute ldquopadratildeo alimentarrdquo Na sociologia e na antropologia da alimentaccedilatildeo utiliza-se principalmente a expressatildeo ldquosistema alimentarrdquo sobretudo na Europa como eacute o caso de Poulain (2001 2003 2013) Contreras e Gracia (2011) Montanari (2008) e Mennell (1996) Jaacute Fischler (1995) que tambeacutem eacute europeu utiliza a expressatildeo ldquosistema culinaacuteriordquo e mais raramente ldquocozinhardquo (cozinha moderna cozinha tradicional cozinha contemporacircnea) poreacutem com o mesmo sentido que o usado pelos outros autores Sistema alimentar eacute tambeacutem utilizado pelos americanos como Harris (2011) Sahlins (2003) Mintz e Dubois (2002)
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mecircme socieacuteteacute eacutevoluent avec le temps Cette variabiliteacute est rendue possible par le fait que les contraintes biologiques de la meacutecanique physiologique et de lrsquoexploitation des ressources de la nature pegravesent sur les mangeurs18 humains de faccedilon relativement lacircche (POULAIN 2001 p 24)
Para este autor os sistemas alimentares satildeo formados por um conjunto
de conhecimentos tecnoloacutegicos herdados e repassados de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo
que incluem o saber-fazer o gosto as regras e as etiquetas etc Esses
conhecimentos facilitam no processo de escolha dos recursos presentes num
espaccedilo natural e sua transformaccedilatildeo em alimentos para consumo na forma de
pratos atrativos a uma determinada cultura Poulain afirma que esses
conhecimentos se definem concomitantemente como sistemas de coacutedigos
simboacutelicos que retratam os valores de um grupo humano participando da
construccedilatildeo de identidades culturais Na concepccedilatildeo de Poulain (2013) nesse
sistema o alimento estaacute em movimento desde o seu universo de produccedilatildeo
agriacutecola ateacute a chegada ao consumidor sofrendo algumas transformaccedilotildees ao
longo do percurso O sistema alimentar envolve fatores que vatildeo desde os
econocircmicos ateacute os do ambiente domeacutestico quando se adquire alimentos pela
compra ou ainda por meio de cultivo proacuteprio ou criaccedilatildeo de animais ou da pesca
Em um sentido semelhante ao atribuiacutedo por Poulain (2013 e 2014)
Fischler (1979 e 1995) define como sistema culinaacuterio um conjunto de
ingredientes e teacutecnicas que satildeo empregadas na elaboraccedilatildeo de uma refeiccedilatildeo as
combinaccedilotildees e correlaccedilotildees entre os alimentos utilizados e ainda as regras que
envolvem sua escolha preparaccedilatildeo e consumo Atrelados agraves teacutecnicas e aos
ingredientes e consequentemente agraves normas que regem o processo da escolha
ao consumo dos alimentos estatildeo crenccedilas valores siacutembolos representaccedilotildees e
os haacutebitos que satildeo indicadores de cultura de uma sociedade Ou seja normas
essas que estatildeo atreladas ao valor simboacutelico envolvidos no sistema alimentar e
natildeo somente o valor de uso no sentido utilitarista que neste caso seria
secundaacuterio conforme discutido por Sahlins (2003) Afinal como afirma o proacuteprio
Sahlins haacute uma ldquorazatildeo cultural em nossos haacutebitos alimentaresrdquo
Pelas definiccedilotildees dos autores acima percebe-se que as questotildees que
envolvem a alimentaccedilatildeo ou culinaacuteria satildeo estabelecidas pelas caracteriacutesticas e
regras mais ou menos comuns adotadas por grupos de pessoas e pela
18 Termo jaacute explicado na introduccedilatildeo
48
sociedade a qual pertencem Conforme Bourdieu (2007) o gosto que iraacute formar
o haacutebito eacute construiacutedo no convivio familiar e escolar Natildeo por acaso em relaccedilatildeo
agrave comida quase sempre as preferecircncias entre os membros de uma mesma
familia satildeo semelhantes Eacute o gosto tambeacutem que classifica e distingue uma
pessoa de outra um grupo de outro Na formaccedilatildeo do gosto alimentar estatildeo
presentes diferentes aspectos socioculturais que iratildeo inteferir nas escolhas
Embora possa ocorrer o sistema alimentar de um grupo natildeo
necessariamente seraacute adotado por um outro pois ele estaacute ligado agraves questotildees
culturais que em funccedilatildeo de diversos fatores pode gerar uma rejeiccedilatildeo a
determinadas praacuteticas alimentares Um exemplo disso eacute a atribuiccedilatildeo dada a um
determinado alimento ou prato como sendo ldquoexoacuteticordquo poreacutem exoacutetico aos olhos
de quem natildeo estaacute habituado a consumi-lo
Para Helman (1994) eacute a cultura local que assume maior peso no
processo de decisotildees alimentares Eacute ela que primeiramente define as regras
alimentares cabendo-lhe assim determinar
Quem prepara e quem serve o alimento para quem quais indiviacuteduos ou grupos comem reunidos onde e em que ocasiotildees a ingestatildeo do alimento acontece a ordem em que os pratos satildeo servidos dentro de uma refeiccedilatildeo e a maneira como os indiviacuteduos comem Todos esses estaacutegios de ingestatildeo dos alimentos satildeo padronizados rigorosamente pela cultura e constituem uma parte do modo de viver consagrado por aquela comunidade (HELMAN 1994 p 48-49)
Harris (2011) ao tratar da questatildeo lembra que por ser oniacutevora a
espeacutecie humana possui capacidade de ingerir alimentos tanto de origem animal
quanto vegetal Poreacutem por razotildees de adaptabilidade fisioloacutegica alguns
alimentos satildeo descartados do cardaacutepio Jaacute outros mesmo sendo biologicamente
possiacuteveis de ingestatildeo podem ser desprezados por algumas sociedades e
apreciados por outras O autor afirma que as razotildees de apreciaccedilatildeo e rejeiccedilatildeo de
um alimento vatildeo aleacutem da razatildeo fisioloacutegica da digestatildeo Tanto Harris (2011)
quanto Leacutevi-Strauss (1983) apontam que os alimentos rejeitados por razotildees
culturais ou sociais se tornam aceitos para consumo em caso de natildeo haver mais
nada a comer ou seja em caso de fome extrema
Em sentido semelhante Garciacutea (2013) esclarece que homens e animais
tendem a ser conservadores em mateacuteria de gosto embora isso natildeo represente
uma resistecircncia absoluta a experimentaccedilotildees Para o autor a razatildeo dos animais
se daacute por instinto bioloacutegico e a do homem por questotildees culturais Como a
49
formaccedilatildeo do gosto eacute de ordem cultural tambeacutem segundo Bourdieu (2007) isso
faz sentido uma vez que o gosto alimentar apreendido no nuacutecleo familiar
estabelece tambeacutem o haacutebito de cada indiviacuteduo Um haacutebito por ser condicionado
pela cultura eacute mais difiacutecil de ser mudado mas natildeo impossiacutevel pois haacute situaccedilotildees
em que o gosto e consequentemente o haacutebito alimentar podem sofrer
mudanccedilas Essa questatildeo seraacute relativizada mais agrave frente neste trabalho
Neste sentido Garcia (2013) a esclarece que os comportamentos
culturais se formam atraveacutes dos costumes e aprendizados Em geral os seres
humanos preferem o conhecido ao novo ou exoacutetico sobretudo em se tratando
de comida Isso pode estar tanto relacionado ao tipo de alimento como agrave forma
de seu cultivo colheita preparo e armazenamento Um mesmo alimento pode
assumir diferentes sabores e aspectos dependendo da forma como eacute preparado
O peixe tanto pode ser cru na preferecircncia de algumas culturas como pode ser
frito assado ou ensopado e com adiccedilatildeo de temperos e condimentos na
preferecircncia de outras
321 Alimentos aceitos e rejeitados
Esses aspectos dos padrotildees culturais alimentares satildeo tambeacutem tratados
por Sahlins (2003) ao chamar a atenccedilatildeo para o fato de que mesmo o
determinismo cultural de uma sociedade natildeo pode deixar de considerar a
sobrevivecircncia e portanto a continuaccedilatildeo da espeacutecie como por exemplo fazer a
distinccedilatildeo entre alimentos comestiacuteveis e natildeo comestiacuteveis Mas o autor destaca
que haacute uma junccedilatildeo e por isso tambeacutem um conflito entre o aspecto utilitarista
(objetivo) e simboacutelico (subjetivo) na produccedilatildeo e no consumo de produtos Em um
dos capiacutetulos o autor trata do sistema alimentar dos americanos do Norte de
suas preferecircncias alimentares e dos tabus em relaccedilatildeo ao consumo de animais
domeacutesticos Destaca que o aspecto simboacutelico predomina sobre o de ordem
praacutetica Segundo o autor a relaccedilatildeo produtiva estabelecida pela sociedade
americana estaacute pautada no aspecto do que eacute considerado por eles como
comestiacutevel e natildeo comestiacutevel que envolve tanto a exploraccedilatildeo do meio ambiente
quanto as formas de lidar com a terra Neste caso baseado numa relaccedilatildeo em
que ldquoa carne eacute elemento central e os carboidratos e legumes satildeo apoios
perifeacutericos na dietardquo (p 171)
50
A carne como siacutembolo de ldquoforccedilardquo evoca o polo masculino de um coacutedigo social da comida o qual deve originar-se na identificaccedilatildeo indo-europeia do boi ou da riqueza crescente com a virilidade A indispensabilidade da carne como ldquoforccedilardquo e do fileacute como a siacutenteses das carnes viris permanece condiccedilatildeo baacutesica da dieta americana (SAHLINS 2003 p 171)
Segundo o autor o que determina para os americanos qual carne eacute ou
natildeo comestiacutevel eacute a relaccedilatildeo das espeacutecies com a sociedade humana Animais de
estimaccedilatildeo recebem afagos e carinho tem nome proacuteprio diferente da situaccedilatildeo
dos animais para abate Mas essa natildeo eacute uma particularidade dos americanos do
Norte Tambeacutem eacute condiccedilatildeo para outras culturas ainda que os motivos sejam
religiosos como por exemplo na Iacutendia onde o consumo da carne de bovinos eacute
evitado por razotildees religiosas do hinduiacutesmo Os judeus e muccedilulmanos tambeacutem
por motivos religiosos rejeitam a carne de porco que eacute amplamente consumida
na maior parte do ocidente Por outro lado no ocidente eacute praticamente
impensaacutevel a possibilidade de se tomar uma sopa a base de carne de cachorro
alimento relativamente comum ao paladar dos chineses e dos vietnamitas por
exemplo Isso ocorre no ocidente porque catildees satildeo animais de estimaccedilatildeo e
estabelecem relaccedilotildees muito afetivas com os seres humanos vistos como um
membro da famiacutelia conforme aponta Sahlins (2003)
Da mesma forma a carne de cavalo agrada a alguns grupos de regiotildees
francesas belgas e italianas O Brasil natildeo tem por haacutebito consumir a carne de
cavalo apesar de ser um dos maiores exportadores Em meacutedia 15 mil toneladas
por ano19 Segundo Sahlins (2003) durante a crise inflacionaacuteria meteoacuterica nos
Estados Unidos no ano de 1973 foi sugerido pelos governantes que a populaccedilatildeo
adotasse o haacutebito de consumir alimentos mais baratos poreacutem tatildeo nutritivos
quanto a carne de boi (viacutesceras rins coraccedilatildeo) Isso soou como uma afronta para
a populaccedilatildeo A rejeiccedilatildeo pelas viacutesceras se deu por razatildeo socioeconocircmica Para
boa parte da populaccedilatildeo americana comer partes menos nobres do boi seria se
aproximar socialmente de classes mais pobres ldquoA razatildeo para essa repulsa
parece pertencer agrave loacutegica semelhante que recebeu com desagrado algumas
tentativas de substituir a carne bovina por carne de cavalo durante o mesmo
periacuteodordquo (p 172) Em funccedilatildeo disso foi realizado um ato como protesto dos
ldquoapreciadores dos cavalos como animais de estimaccedilatildeordquo
19 httpgrandschefsblogspotcombr201007carne-de-cavalo-o-brasil-e-um-doshtml
51
Tambeacutem eacute exoacutetico para o ocidente o haacutebito da populaccedilatildeo chinesa em
consumir escorpiotildees ratos e uma variedade de insetos Esses alimentos foram
inseridos no cardaacutepio chinecircs em periacuteodo de crise alimentar com o objetivo de
abastecer um paiacutes extremamente populoso Atualmente continuam sendo
consumidos no entanto muito mais como atrativo agrave curiosidade de turistas do
que por necessidade de consumo
Os indiacutegenas da Ameacuterica do Sul possuem o haacutebito de comer alguns
alimentos que os natildeo iacutendios consideram exoacuteticos como por exemplo formigas
larvas de abelhas cupins lagartas besouros etc Em algumas cidades do norte
do Brasil eacute possiacutevel encontrar nas feiras misturas como farofas agrave base de formiga
sauacuteva Eacute interessante ressaltar que um alimento exoacutetico perde essa classificaccedilatildeo
a partir do momento em que passa a agradar ao paladar e a ser consumido sem
aversatildeo a ele Deixando assim de ser exoacutetico para se transformar em familiar
parafraseando DaMatta (1978) Assim o conceito de exoacutetico varia de uma
cultura a outra mas tambeacutem de uma pessoa a outra em uma mesma sociedade
Houve um tempo no Brasil em que comer formiga sauacuteva frita ou tostada
natildeo fazia parte apenas da dieta indiacutegena Relatos de viagem apontam serem
elas importante complemento num periacuteodo de escassez alimentar nas viagens
dos bandeirantes desbravando as Minas Gerais Frieiro (1982) cita documento
da viagem do Conde de Assumar Dom Pedro a Vila Rica em 1717 passando
por Satildeo Paulo quando lhe foi oferecido a ele e agrave sua comitiva formigas sauacutevas
(icaacute) torradas20
Dependendo do contexto o exoacutetico pode ser um emblema de classe e
aqui novamente se insere a argumentaccedilatildeo do gosto como diferenciaccedilatildeo ou
distinccedilatildeo de classes como discutido por Bourdieu (2007) Por exemplo o exoacutetico
considerado ldquochiquerdquo ou ldquogourmetrdquo quando se trata de atribuir status de
consumo e portanto desejado como por exemplo o caviar ou o foie gras Ao
serem aceitos por um perfil de consumidores que aceitam pagar o elevado preccedilo
desses dois produtos eles perderam o status de exoacutetico rejeitaacutevel e passou a
20 Dom Pedro e sua comitiva mais duma vez nos ermos em que pousavam quase passaram fome em
razatildeo do pouco ou quase nada que lhes ofereciam para comer Em Santos e Satildeo Paulo pequenas vilas de algumas centenas de casas o passadio natildeo foi de todo mau Comia-se comumente o que as roccedilas produziam isto eacute milho mandioca feijatildeo e algumas frutas da terra que era o habitual sustento dos paulistas natildeo se comendo carne senatildeo em alguns dias do ano Penetrando no interior com alguns dias de jornada soacute encontraram para cear no rancho dum paulista meio macaco e umas poucas formigas O Conde agradeceu a oferta e comeu (FRIEIRO 1982 p 62)
52
ser visto como um exoacutetico aceitaacutevel assim como jaacute ocorre em boa parte do paiacutes
em relaccedilatildeo agraves comidas japonesas italianas indianas etc que se popularizaram
e jaacute natildeo satildeo mais estranhas ao paladar de boa parte da populaccedilatildeo das aacutereas
urbanas No entanto o exoacutetico popular raramente eacute desejado como a carne de
rato por exemplo consumida pelos chineses mas que no Brasil permanece
sendo rejeitada
Nessa discussatildeo estaacute presente a necessidade de relativizaccedilatildeo da
questatildeo do gosto e do haacutebito alimentar jaacute que apesar de tenderem a ser
tradicionais eacute possiacutevel muda-los ou incorporar novas percepccedilotildees por meio de
significados simboacutelicos (status curiosidade pelo novo para se inserir num
determinado grupo de interesse)
Garciacutea (2009) assim como Harris (2011) estabelece que a correlaccedilatildeo
entre alimentaccedilatildeo e cultura ocorre devido ao fator fisioloacutegico da atividade de
comer estar condicionado culturalmente e isso envolve desde as maneiras de
obtenccedilatildeo dos alimentos ateacute os modos de consumi-los Assim para Garcia
(2009) a escolha dos alimentos se daacute por fatores primeiramente de ordem
cultural e social e em segundo lugar pelas suas qualidades nutricionais e pelo
aspecto econocircmico Nesse sentido o alimento escolhido precisa ser ldquobom para
comerrdquo fazendo uso da expressatildeo utilizada por Harris (2011) ldquoLos alimentos
preferidos (buenos para comer) son aquellos que presentan uma relacioacuten de
costes y benefiacutecios praacutecticos maacutes favorables que los alimentos que se evitan
(malos para comer)rdquo (HARRIS 2011 p 17)
3211 Haacutebitos alimentares orientados por costumes e tradiccedilotildees
Retomando a discussatildeo de Harris (2011) o autor explica que os
costumes culturais e as tradiccedilotildees alimentares de cada sociedade eacute que orientam
os haacutebitos alimentares e essa diversidade deve ser respeitada e valorizada por
aqueles que estudam o tema da alimentaccedilatildeo ldquoComo antropoacutelogo tambieacuten
suscribo el relativismo cultural em mateacuteria de gustos culinarios no se debe
ridiculizar ni condenar los haacutebitos alimentarios por el mero hecho de ser
diferentesrdquo (HARRIS 2011 p 15)
Essa defesa tambeacutem foi feita por Mary Douglas e Ravindra Khare em
1979 quando escreveram uma apresentaccedilatildeo sobre a antropologia da
53
alimentaccedilatildeo no importante perioacutedico ldquoSocial Science Informationrdquo Nesse artigo
as autoras informaram sobre a criaccedilatildeo da ldquocomisioacuten internacional sobre la
antropologia de la alimentacioacutenrdquo A criaccedilatildeo da comissatildeo ocorreu em funccedilatildeo da
necessidade de se discutir as poliacuteticas e estrateacutegias que estavam sendo
desenvolvidas e implementadas nas situaccedilotildees de fome aguda eou crocircnica em
algumas naccedilotildees naquela eacutepoca Pontuaram neste artigo aspectos importantes
que devem ser observados na implantaccedilatildeo de poliacuteticas alimentares para
solucionar a fome Estes aspectos dizem respeito agrave necessidade de se planejar
a soluccedilatildeo de problemas que acometem paiacuteses em situaccedilatildeo de fome que satildeo as
questotildees que envolvem poliacutetica sanitaacuteria e higiene conhecimento de teacutecnicas de
armazenamento e distribuiccedilatildeo mas chamaram a atenccedilatildeo de forma enfaacutetica para
o respeito aos aspectos culturais ldquoHa de basarse em el anaacutelisis de la sociedade
La conviccioacuten de fondo es que los patrones locales de seleccioacuten de alimentos no
pueden ser impuestos sino que dependen de la vida domeacutestica de las ideias
locales sobre processos fisioloacutegicos de divisioacuten de trabajo de horaacuteriordquo
(DOUGLAS KHARE 1979 apud GARCIacuteA 2009 p 30)
Essa argumentaccedilatildeo deixa claro o entendimento diferenciado das autoras
sobre a necessidade da interaccedilatildeo dos antropoacutelogos da alimentaccedilatildeo com
profissionais de outras aacutereas nutricionistas ecologistas economistas
agrocircnomos poliacuteticos e outros atuantes em poliacuteticas sobre o combate agrave fome
para que a cultura alimentar seja respeitada nas intervenccedilotildees sociais Questatildeo
tambeacutem defendida por Valente (2003) ao criticar a limitaccedilatildeo que existe nos
trabalhos isolados em cada especialidade e ao defender a interdisciplinaridade
na elaboraccedilatildeo de projetos porque feitos de forma isolada cada profissional
tende a ver o problema da fome com suas proacuteprias lentes desprezando outras
possibilidades
O profissional da sauacutede ldquoenxergardquo desnutriccedilatildeo e doenccedila e propotildee vacinaccedilatildeo saneamento aleitamento materno etc O agrocircnomo ldquodiagnosticardquo falta de alimentos e propotildee maior produccedilatildeo de alimentos ajuda alimentar etc O educador vecirc ldquoignoracircncia e haacutebitos alimentares inadequadosrdquo e propotildee educaccedilatildeo alimentar Os economistas claacutessicos ldquoidentificamrdquo maacute distribuiccedilatildeo de alimentos e propotildeem uma melhor poliacutetica fiscal geraccedilatildeo de emprego e renda etc Os planejadores diagnosticam ldquofalta de coordenaccedilatildeordquo e propotildeem a criaccedilatildeo de conselhos de alimentaccedilatildeo e nutriccedilatildeo e capacitaccedilatildeo (VALENTE 2003 p 52)
Recentemente a FAOONU (2013) apresentou um projeto em que
propotildee a introduccedilatildeo de insetos como alimentos no combate agrave fome Como
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justificativa informou que aproximadamente dois bilhotildees de pessoas no mundo
jaacute se alimentam de insetos como besouros lagartas abelhas vespas formigas
gafanhotos grilos cupins libeacutelulas e moscas Agrave praacutetica de se comer insetos da-
se o nome de entomofagia segundo a FAOONU (2013) As justificativas da FAO
estatildeo relacionadas a aspectos de sauacutede pois satildeo altamente nutritivos e ricos em
proteina podendo substituir facilmente em termos nutricionais as carnes de
porco de boi de frango e tambeacutem de peixe aspectos ambientais pois sua
produccedilatildeo gera baixo impacto ao meio ambiente e aspectos relacionados a
fatores econocircmicos e sociais Segundo este oacutergatildeo a criaccedilatildeo de insetos pode vir
a se tornar uma opccedilatildeo de investimento com pouco capital e pode ser importante
fonte de renda e de consumo para camadas mais pobres e populaccedilatildeo sem
acesso agrave propriedade da terra aleacutem de ser uma atividade que natildeo necessita de
tecnologia sofisticada
Sobre isso eacute importante de tecer algumas observaccedilotildees criacuteticas ao
considerar que tal projeto representa um desafio ao propor a inserccedilatildeo de insetos
na dieta em nivel global o que significa tornaacute-la atrativa tambeacutem naquelas
culturas onde satildeo atualmente rejeitadas Todos esses aspectos conduzem a
uma reflexatildeo sobre outro tipo de escolha alimentar que estaacute relacionada agrave
questatildeo de ordem social e econocircmica Ou seja estaacute em pauta se as pessoas
que sofrem de fome aguda ou crocircnica satildeo obrigadas a se adaptar ao exoacutetico se
assim lhes for oferecido em funccedilatildeo de uma poliacutetica puacuteblica ou se isso lhes seria
oferecido como escolha passiacutevel de adoccedilatildeo ou de rejeiccedilatildeo
Tal reflexatildeo remete agraves observaccedilotildees sobre direito agrave liberdade na forma
como eacute tratada por Sen (2000 p 23) ldquoa privaccedilatildeo de liberdade econocircmica pode
gerar a privaccedilatildeo de liberdade social assim como a privaccedilatildeo de liberdade social
da mesma forma pode gerar a liberdade econocircmicardquo O que implica em perda
de acesso e do direito de escolhas inclusive alimentares Portanto acredita-se
que caso esse tipo de alimentaccedilatildeo seja imposta o projeto vai no sentido
contraacuterio ao proposto pela comissatildeo de antropologia da alimentaccedilatildeo citado
acima por Douglas e Khare (1979 apud GARCIacuteA 2009) A imposiccedilatildeo de um
determinado alimento ou o convencimento em adota-lo pode tambeacutem ocorrer
de forma velada utilizando-se campanhas com os grupos locais e ou atraveacutes
da miacutedia como ocorre em relaccedilatildeo a vaacuterios alimentos que passam a ser
55
consumidos sobretudo pelas crianccedilas agrave partir de campanhas publictaacuterias
muitas vezes utilizando-se argumentos apelativos
Certamente essa proposta recente poderaacute ter o debate ampliado nos
proacuteximos anos O que nos interessa aqui eacute sobretudo chamar a atenccedilatildeo para a
inserccedilatildeo de novas praacuteticas alimentares na contemporaneidade Praacuteticas essas
que se mesclam num processo de ampliaccedilatildeo do multiculturalismo alimentar
O proacuteximo item trata da discussatildeo sobre a percepccedilatildeo do alimento como
caracteriacutestica cultural e ainda sobre os reflexos do sistema alimentar
contemporacircneo na vida dos comedores
33 Alimento comida e cultura
Aleacutem de ser uma atitude bioloacutegica a alimentaccedilatildeo assume tambeacutem um
comportamento cultural Discussatildeo jaacute iniciada nos itens anteriores
Bioloacutegica por uma questatildeo de sobrevivecircncia sendo um fator
insubstituiacutevel para a manutenccedilatildeo da vida e condiccedilatildeo sine qua non para todos os
seres humanos Relaciona-se diretamente agrave vitalidade do indiviacuteduo agrave
necessidade fisioloacutegica de ingerir nutrientes capazes de manter o corpo em
funcionamento sendo sob esse aspecto um comportamento relativo agrave natureza
humana O que ingerir e as quantidades a serem ingeridas para suprir as
necessidades variam de uma pessoa para outra de acordo com fatores como
idade altura peso tipo de atividade quadro cliacutenico entre outros
Corresponder a uma atitude natural e de caraacuteter instintivo natildeo torna
necessariamente o ato de alimentar-se como algo consciente sob o aspecto
nutricional porque nem todos os indiviacuteduos conhecem a composiccedilatildeo dos
alimentos e aqueles que conhecem nem sempre pensam a respeito disso ao
realizar as refeiccedilotildees cotidianas aspecto que foi tratado por Harris (2011) e
Garciacutea (2009)
O termo ldquoalimentordquo surgiu segundo Poulain (2013) por volta do ano
1120 mas o seu significado atual somente foi utilizado a partir do seacuteculo XVI
quando passou a substituir a expressatildeo ldquocarnerdquo e esta uacuteltima passou a se referir
apenas agrave carne tal qual a conhecemos ou seja a dos animais comestiacuteveis O
autor explica que anteriormente a expressatildeo ldquocarnerdquo era utilizada para se referir
a tudo o que era bom para manter a vida fossem alimentos caacuterneos ou natildeo
56
Para este autor um alimento deve possuir essas quatro qualidades nutricionais
organoleacutepticas higiecircnicas e simboacutelicas Sobre as simboacutelicas o autor destaca
Para ser um alimento aleacutem das trecircs primeiras caracteriacutesticas de qualidade um produto natural deve poder ser o objeto de projeccedilotildees de significados por parte do comedor Ele deve poder tornar-se significativo inscrever-se numa rede de comunicaccedilotildees numa constelaccedilatildeo imaginaacuteria numa visatildeo de mundo (POULAIN 2013 p 240)
De Garine (1987 p 4) ao resgatar o pensamento de Margaret Mead
destaca que as escolhas alimentares dos seres humanos estatildeo relacionadas agraves
possibilidades de alimentos disponibilizados pelo meio e ao potencial teacutecnico que
possuem
La supervivencia de un grupo humano exige por supuesto que su reacutegimen alimenticio satisfaga las necessidades nutritivas No obstante el nivel de satisfaccioacuten de estas necessidades cuya definicioacuten sigue siendo controvertida variacutea cualitativa y cuantitativamente de una sociedad a otra Tambieacuten cambia en el interior de cada una seguacuten la categoriacutea de edad el sexo el niacutevel econoacutemico y otros criterios (DE GARINE 1987 p 4)
De acordo com Contreras e Gracia (2011) e Woortmann (2007) as
escolhas alimentares que satildeo as formadoras dos haacutebitos se constituem em uma
parte da totalidade cultural Para Contreras e Gracia (2011) pode-se afirmar que
ldquosomos o que comemosrdquo21 tanto no aspecto fisioloacutegico como tambeacutem no
espiritual ao ldquoincorporarrdquo psicossocialmente os elementos culturais daquilo que
ingerimos que pode ser desde elementos ligados agrave espiritualidade como
tambeacutem agrave memoacuteria afetiva Pela mesma razatildeo defendem que ldquocomemos o que
somosrdquo
Comemos aquilo que nos faz bem ingerimos alimentos que satildeo atrativos para os nossos sentidos e nos proporcionam prazer enchemos a cesta de compras de produtos que estatildeo no mercado e na feira e nos satildeo permitidos por nosso orccedilamento servimos ou nos satildeo servidas refeiccedilotildees de acordo com nossas caracteriacutesticas se somos homens ou mulheres crianccedilas ou adultos pobres ou ricos E escolhemos ou recusamos alimentos com base em nossas experiecircncias diaacuterias e em nossas ideias dieteacuteticas religiosas ou filosoacuteficas (CONTRERAS GRACIA 2011 p 16)
21 Conhecido aforismo proferido pelo filoacutesofo alematildeo Ludwig Feuerbach na obra ldquoO misteacuterio do sacrifiacutecio
ou o homem eacute o que ele comerdquo (1862) Tambeacutem Brillat-Savarin escreveu em seu tratado sobre lsquoA Fisiologia do Gostorsquo ldquoDize-me o que comes e te direi quem eacutesrdquo (SAVARIN-BRILLAT 1995 p 15) Os dois aforismos satildeo muito utilizados por aqueles que escrevem sobre alimentaccedilatildeo
57
Em uma percepccedilatildeo semelhante Woortmann (2007) em estudos sobre
dimensotildees sociais da comida entre os camponeses defende a lsquocomidarsquo para
este grupo como sendo uma ldquocategoria cultural nucleante que se articula a
lsquotrabalhorsquo e a lsquoterrarsquo e que as escolhas alimentares que incluem alimentos
proibidos permitidos e os preferidos estatildeo ligadas agraves dimensotildees de gecircnero de
memoacuteria de famiacutelia de identidade de religiatildeo etc
DaMatta (2001 p 56) defende que ldquoo jeito de comer define natildeo soacute aquilo
que eacute ingerido como tambeacutem aquele que ingererdquo Pode-se afirmar portanto que
comer eacute mais do que apenas um ato de sobrevivecircncia eacute tambeacutem um
comportamento simboacutelico e cultural
A diferenccedila entre o alimento como fator bioloacutegico e o alimento como
cultura eacute discutida principalmente por Montanari (2008) Delormier et al (2009)
DaMatta (2001 e 1987) Maciel (2001) Ishige (1987) Silva Mello (1956) Crotty
(1993) De Garine (1987) Cacircmara Cascudo (2004) e Woortmann (1985)
Crotty (1993 apud DELORMIER et al 2009) defende que a praacutetica
alimentar abrange duas acepccedilotildees Aquela posterior agrave ingestatildeo do alimento e que
estaacute relacionada ao universo da biologia (fisiologia e bioquiacutemica) e aquela
anterior agrave ingestatildeo Este uacuteltimo estaacute relacionado agraves questotildees culturais e sociais
ou seja agrave natureza social do comer Segundo a autora no campo da disciplina
da nutriccedilatildeo da-se pouco valor a este uacuteltimo aspecto ateacute mesmo devido aos seus
objetivos teacutecnico-cientiacuteficos Concordando com a percepccedilatildeo de Crotty (1993)
Delormier et al (2009) defendem que natildeo considerar os aspectos sociais e
culturais no campo de interesse representa de certa forma uma limitaccedilatildeo a
qualquer disciplina Estes autores tambeacutem analisam que o processo de escolha
alimentar na maior parte das vezes natildeo se daacute primeiramente pela opccedilatildeo
nutricional mas sim pelas influecircncias do conviacutevio social cotidiano que podem
estar presentes nas relaccedilotildees familiares mas tambeacutem no local de trabalho na
escola e em outros locais de convivecircncia que permitem trocas e ajudam a moldar
as escolhas alimentares dos indiviacuteduos
A atribuiccedilatildeo de status simboacutelico dado ao alimento e ao ato de comer eacute
definida segundo alguns autores pela diferenccedila semacircntica entre ldquocomidardquo e
ldquoalimentordquo DaMatta (1987) ao estudar a comida brasileira defende que toda
substacircncia nutritiva eacute um alimento mas nem todo alimento eacute comida Alimento
aponta o autor eacute universal e geral eacute o que o indiviacuteduo ingere para se manter
58
vivo jaacute a comida ajuda a situar uma identidade e definir um grupo uma classe
uma pessoa ldquoTemos o alimento e temos a comida Comida natildeo eacute apenas uma
substacircncia alimentar mas eacute tambeacutem um modo um estilo e um jeito de alimentar-
serdquo (DAMATTA 2001 p 56) Em uma aproximaccedilatildeo a DaMatta (1987)
Woortmann (1985) aponta ldquocomidardquo como sendo o oposto de mantimento
embora derive dele Pois comida eacute a transformaccedilatildeo do mantimento atraveacutes da
culinaacuteria
Neste sentido comer proporciona uma relaccedilatildeo de intimidade com o ser
humano pois haacute ainda o investimento psicossocial no processo de escolha dos
alimentos O proacuteprio processo de ingerir demonstra a intimidade existente entre
a comida e o corpo considerando que trata daquilo que segundo Mintz (2001
p 31) ldquoeacute colocado para dentro do corpordquo O autor defende que ldquonenhum outro
comportamento natildeo automaacutetico se liga de modo tatildeo iacutentimo agrave nossa
sobrevivecircnciardquo Corroborando esse pensamento Cacircmara Cascudo (2004 p
348) defende que eacute ldquoinuacutetil pensar que o alimento contenha apenas es elementos
indispensaacuteveis agrave nutriccedilatildeo Conteacutem substacircncias imponderaacuteveis e decisivas para
o espiacuterito alegria disposiccedilatildeo criadora bom humorrdquo
Maciel (2001) tambeacutem compartilha da ideia de diferenciaccedilatildeo entre
ldquocomidardquo e ldquoalimentordquo ao reconhecer a junccedilatildeo entre natureza e cultura quando
se trata de alimentaccedilatildeo humana pois poucas horas apoacutes o nascimento
instintivamente a crianccedila chora em busca pelo leite materno Poreacutem a
amamentaccedilatildeo em humanos eacute um ato tambeacutem cultural considerando que o
receacutem-nascido ao ser amamentado experimenta a sensaccedilatildeo de aconchego
favorecendo o viacutenculo entre matildee e filho e ainda o prazer de comer A crianccedila
gosta do sabor do leite e natildeo o rejeita O leite eacute assim alimento e comida ndash
natureza e cultura22
Comida eacute assim o alimento transformado pelas representaccedilotildees sociais
e culturais Eacute o que sugere tambeacutem Montanari (2008) Para este autor
diferentemente das outras espeacutecies animais o homem aproveita os alimentos
que encontra na natureza mas isso natildeo o impede de querer tambeacutem criar a
proacutepria comida usando esses alimentos baacutesicos encontrados mas
transformando-os pelo uso do fogo e uso das praacuteticas tecnoloacutegicas que se
22 Silva Mello (1956) Sandre-Pereira (2012) Mead (1969) e Bosi Machado (2005) satildeo outros autores que
discutem mais profundamente a questatildeo sobre amamentaccedilatildeo e cultura
59
desenvolvem nas cozinhas ldquoOs valores de base do sistema alimentar se definem
como resultado e representaccedilatildeo de processos culturais que preveem a
domesticaccedilatildeo a transformaccedilatildeo e a reinterpretaccedilatildeo da naturezardquo (p 15) O
consumo dos alimentos tambeacutem eacute tratado como cultura pelo autor uma vez que
o homem escolhe o que comer baseado em criteacuterios de ordem econocircmica
nutricional preferecircncias mas tambeacutem em simbologias atribuiacutedas ao alimento
portanto comida Por essas razotildees ldquoa comida se apresenta como elemento
decisivo da identidade humana e um dos mais eficazes instrumentos para
comunica-lardquo (p 16) A natureza produz os alimentos mas a cultura faz surgir
coacutedigos importantes como por exemplo as diferentes opccedilotildees de cardaacutepios as
receitas os haacutebitos que por sua vez se relacionam ao paladar ao prazer
relacionado agraves propriedades organoleacutepticas dos alimentos e sobretudo ao
prazer da degustaccedilatildeo
331 A importacircncia social e cultural do uso do fogo e sua relaccedilatildeo com a comensalidade
O valor cultural do alimento se fortalece a partir da descoberta do fogo e
do iniacutecio do processo de cozimento dos alimentos Os pesquisadores das
Ciecircncias Sociais que primeiramente deram ecircnfase ao papel fundamental do fogo
na transformaccedilatildeo do alimento atribuindo-lhe assim uma funccedilatildeo cultural para
aleacutem da bioloacutegica foram Claude Leacutevi-Strauss Jean Anthelme Brillat-Savarin
Richard Wrangham e Massimo Montanari
Segundo Montanari (2008) para os seres humanos a comida eacute cultura
e natildeo apenas pura natureza devido agrave adoccedilatildeo ndash como parte essencial de suas
teacutecnicas ndash dos modos de produccedilatildeo de preparaccedilatildeo e de consumo de alimentos
bem como o conhecimento sobre plantas proacuteprias para consumo Para o autor
o uso do fogo eacute fundamental na transformaccedilatildeo do alimento bruto em produto
cultural em comida Referente agrave esta percepccedilatildeo Leacutevi Strauss discute em ldquoO Cru
e o Cozidordquo como o uso do fogo permitiu de certa forma o homem passar do
estado da natureza ndash ao se referir a ingestatildeo do alimento de caccedila ou coleta na
forma crua ndash para o estado da cultura a partir da transformaccedilatildeo do alimento em
cozido Numa analogia da linguagem verbal dos grupos em seu artigo
denominado ldquoO Triacircngulo Culinaacuteriordquo o autor propotildee explicar a relaccedilatildeo natureza
60
ndash cultura com a linguagem da comida conferindo status de linguagem universal
agrave comida ldquoassim como natildeo existe sociedade sem linguagem natildeo existe
nenhuma que de um modo ou de outro natildeo cozinhe pelo menos alguns de seus
alimentosrdquo (LEacuteVI-STRAUSS 1968 p 25) O Triacircngulo culinaacuterio proposto pelo
antropoacutelogo se forma pelo cru pelo cozido (assado e fervido) e pelo apodrecido
Estaacute claro que em relaccedilatildeo agrave cozinha o cru constitui o polo natildeo marcado e que os dois outros o satildeo acentuadamente mas em direccedilotildees opostas com efeito o cozido eacute uma transformaccedilatildeo cultural do cru enquanto que o apodrecido eacute uma transformaccedilatildeo cultural dele Subjacente ao triacircngulo primordial haacute portanto uma dupla oposiccedilatildeo entre elaboradonatildeo elaborado de um lado e entre culturanatureza de outro Sem duacutevida alguma estas noccedilotildees constituem formas vazias nada nos ensinam sobre a cozinha de tal ou tal sociedade particular uma vez que apenas a observaccedilatildeo pode nos dizer o que cada um entende por ldquocrurdquo ldquocozidordquo e ldquoapodrecidordquo e uma vez que pode se supor que natildeo seraacute a mesma coisa para todas (LEacuteVI-STRAUSS 1968 p 25)
Em uma escala de relevacircncia cultural o cru estaacute na base mais simples
da escala na sequecircncia viria o assado ocupando segunda posiccedilatildeo pois
necessita apenas do fogo Os mais elaborados satildeo assim fervidos ou
ensopados que por necessitar de maior envolvimento humano e de uma vasilha
com aacutegua estando num patamar de elaboraccedilatildeo mais complexo e portanto
numa escala de maior relevacircncia cultural
Apoacutes Leacutevi-Strauss que analisou a mitologia dos povos ameriacutendios e seu
ldquomundordquo culinaacuterio buscando traduzir entre outras questotildees os mitos sobre a
origem do fogo a partir da representaccedilatildeo desse grupo surgiram outros estudos
destacando a importacircncia do fogo na praacutetica de cozinhar Um desses estudos
recentes eacute do antropoacutelogo Wrangham (2010) que tambeacutem defende a descoberta
do fogo e o cozimento como sendo definidores da humanidade e responsaacutevel
por diferenciar os humanos dos macacos originando o gecircnero Homo
Semelhante afirmaccedilatildeo eacute feita por Garciacutea (2013)
La conquista del fuego supuso (de manera metafoacuterica) la separacioacuten definitiva del mundo de los seres vivos en dos grupos de un lado quedaron los hombres de otro los demaacutes animales El fuego nos transformoacute em humanos La domesticacioacuten del fuego supuso en definitiva un impulso decisivo en la historia humana un impulso fecundador que permitioacute que se produjeran nuevos avances que a su vez abrieron la viacutea a otros progresos generando una reaccioacuten en cadena que ha desembocado en el complejo y tecnificado mundo actual (GARCIacuteA 2013 p 167)
61
Cozinhar aumentou o valor da comida Assim o uso do fogo alterou
fisicamente o corpo humano reduzindo o aparelho digestivo e aumentando o
tamanho do ceacuterebro mas tambeacutem alterando o uso do tempo e a vida social O
impacto recaiu ainda sobre as relaccedilotildees com a natureza que conforme
(WRANGHAM 2010 p 7) ldquotransformou-nos em consumidores de energia
externa e assim criou um organismo com uma nova relaccedilatildeo com a natureza
dependente de combustiacutevelrdquo
O valor cultural do fogo na transformaccedilatildeo do alimento eacute tatildeo claro que
conforme aponta Leach (1970 apud WRANGHAM 2010 p 15) ldquoAs pessoas
natildeo precisam cozer sua comida elas o fazem por razotildees simboacutelicas para
mostrar que satildeo homens e natildeo animaisrdquo Afinal somos os uacutenicos animais
capazes de cozinhar o proacuteprio alimento
Por outro lado natildeo se pode afirmar que ingerir alimento cru natildeo possua
caracteriacutestica cultural pois como argumenta Giard (2012 p 232) ldquoMesmo cru e
colhido diretamente da aacutervore o fruto jaacute eacute um alimento culturalizado antes de
qualquer preparaccedilatildeo e pelo simples fato de ser tido como comestiacutevel rdquo Para a
autora a noccedilatildeo de alimento comestiacutevel iraacute variar de um grupo a outro ou seja
eacute definido pela cultura questotildees que vimos anteriormente neste capiacutetulo
Haacute outro fator muito importante a se destacar o qual se pode atribuir agrave
descoberta do fogo que eacute o fato de ter propiciado agraves pessoas e aos grupos
juntarem-se em torno dele para se aquecer mas tambeacutem para preparar a
comida distribui-la e ingeri-la Facilitou-se assim o estabelecimento de relaccedilotildees
de comensalidade23 que com o tempo foram se tornando encontros cotidianos e
transformando-se em uma atividade socializadora Conforme argumenta Fladrin
e Montanari (1998) independentemente da forma e das diferenccedilas nas normas
de comportamento existentes em cada sociedade o fato eacute que ldquoa comensalidade
eacute percebida como um elemento lsquofundadorrsquo da civilizaccedilatildeo humana em seu
processo de criaccedilatildeordquo (FLANDRIN MONTANARI 1998 p 109) e para Carneiro
(2003) a comensalidade se constitui em ldquoum complexo sistema simboacutelico de
23 Etimologicamente comensalidade deriva do latim ldquocomensalerdquo Accedilatildeo de comer junto na mesma mesa
Com ldquojuntordquo e Mensa ldquomesardquo Implica em partilhar do mesmo momento e local das refeiccedilotildees Para Poulain (2013) a comensalidade estabelece e reforccedila a sociabilidade ldquoEacute pela cozinha e pelas maneiras a mesa que se produzem as aprendizagens sociais mais fundamentais e que uma sociedade transmite e permite a interiorizaccedilatildeo de seus valores A alimentaccedilatildeo eacute uma das formas de se tecer e se manter os viacutenculos sociaisrdquo (POULAIN 2013 p 182)
62
significados sociais sexuais poliacuteticos religiosos eacuteticos esteacuteticos etc
(CARNEIRO 2003 p 2)
Ao redor do fogo eacute possiacutevel se aquecer preparar os alimentos e a
comida mas tambeacutem estabelecer o diaacutelogo Segundo Garciacutea (2013) nos
primoacuterdios da humanidade os encontros diaacuterios dos grupos se davam em torno
do fogo para trocar experiecircncias do dia e traccedilar estrateacutegias de caccedila por exemplo
Para Wrangham (2010) o advento do fogo mudou a maneira de nossos
ancestrais se relacionarem Passava-se mais tempo junto se aquecendo e
alimentando-se em grupo No volume I da primeira obra dirigida por Philippe
Ariegraves e Georges Duby (1990) Histoacuteria da Vida Privada a importacircncia do fogo eacute
destacada logo no iniacutecio do capiacutetulo de autoria de Yvon Theacutebert que trata da
vida privada e da arquitetura domeacutestica na Aacutefrica Romana Nas habitaccedilotildees natildeo
havia chamineacute nem fogotildees e sim lareiras ldquocuja fumaccedila saiacutea por um buraco no
teto e constituiacutea paradoxalmente um dos celebrados prazeres da rude existecircncia
rural quando a neve cobria os camposrdquo (THEacuteBERT 1990 p 303)
Segundo Flandrin e Montanari (1998) o uso do fogo permitiu ao homem
alimentar-se em conjunto inicialmente ao seu redor em aacutereas externas e com o
passar dos anos com a criaccedilatildeo do espaccedilo social alimentar nos ambientes
domeacutesticos (a cozinha e a sala de jantar) e na sequecircncia com a criaccedilatildeo de
espaccedilos externos agraves residecircncias (os restaurantes lanchonetes etc) Assim a
comida que eacute o alimento transformado pela cultura passa a possuir tambeacutem a
funccedilatildeo agregadora para os seres humanos A essa funccedilatildeo denomina-se de
comensalidade que tem como significado a capacidade de estabelecer relaccedilotildees
de sociabilidade importantes pois implica em reunir as pessoas em torno da
mesa Ou seja enquanto come o grupo tem tambeacutem a oportunidade de dialogar
e trocar experiecircncias do cotidiano
Para Fischler (2011) a comensalidade eacute uma das caracteriacutesticas mais
significantes no que se refere agrave sociabilidade humana relacionando-se natildeo
apenas agrave ingestatildeo de alimentos mas tambeacutem aos modos do comer envolvendo
haacutebitos culturais atos simboacutelicos organizaccedilatildeo social aleacutem do compartilhamento
de experiecircncias e valores Nesse sentido Woortmann (1985) esclarece que na
cultura brasileira a refeiccedilatildeo eacute considerada um ato social e que portanto deve
ser feita em grupo para ser percebida efetivamente como uma refeiccedilatildeo Tambeacutem
em nossa cultura segundo o autor criamos significados diferentes para essa
63
accedilatildeo como comer cotidianamente e comer em eventos especiais comer em
casa e comer fora de casa
O caraacuteter simboacutelico-ritual do comer se expressa claramente no haacutebito de convidar pessoas para jantar em nossa casa no ldquojantar forardquo em determinadas ocasiotildees ou no ldquoalmoccedilo de domingordquo Nessas e em outras ocasiotildees anaacutelogas haacute mais em jogo que necessidades nutricionais Natildeo convidamos pessoas para jantar em nossa casa para alimentaacute-las enquanto corpos bioloacutegicos mas para alimentar e reproduzir relaccedilotildees sociais isto eacute para reproduzir o corpo social o que supotildee que sejamos em troca convidados a comer na casa do nosso convidado O que estaacute em jogo eacute o princiacutepio da reciprocidade e da comensalidade A presenccedila da comida eacute contudo central reconstruindo-se necessidades bioloacutegicas em necessidades sociais (WOORTMANN 1985 p 3)
Em semelhante percepccedilatildeo Algranti (1997) aponta que haacute registros de
que desde o periacuteodo colonial no Brasil a reuniatildeo familiar durante as refeiccedilotildees
pelo menos uma vez ao dia se tornou um costume que se perpetuou nas famiacutelias
rurais bem como nas urbanas Tambeacutem Franco (2001) discorre sobre a
comensalidade no meio rural como sendo uma importante maneira de promover
a solidariedade e reforccedilar laccedilos entre os membros de um grupo de afinidade
Neste sentido ldquoo comerrdquo eacute um ato tanto social quanto poliacutetico e envolve
costumes diaacutelogos usos sabores odores e ateacute mesmo as etiquetas que
correspondem agraves maneiras de comer que satildeo aprendidas no proacuteprio processo
de comensalidade que se daacute nos grupos E segundo Giard (2012) momentos
de comensalidade demarcam relaccedilotildees sociais e afetivas entre os membros de
uma famiacutelia e tambeacutem influencia fortemente o desenvolvimento do gosto
alimentar24 A percepccedilatildeo da autora corrobora a discussatildeo de Bourdieu (2007)
sobre a formaccedilatildeo do gosto e da preferecircncia alimentar
3311 O local do fogo e da praacutetica da comensalidade na arquitetura domeacutestica
Na sociedade ocidental o local do fogo em uma habitaccedilatildeo eacute
principalmente a cozinha que primeiramente era anexa agrave casa e o equipamento
que o representa eacute o fogatildeo A cozinha segundo Flandrin (1990) surge em
24 Eacute preciso ressaltar que nem todas as culturas apreciam comer em conjunto Poreacutem natildeo se pode
considerar como regra os preceitos da comensalidade Como nos mostra Geertz (2008 p 190) sobre a cultura balinesa onde comer eacute considerado uma atividade que gera repulsa ldquo() mas ateacute comer eacute visto como uma atividade desagradaacutevel quase obscena que deve ser feita apressadamente e em particular devido agrave sua associaccedilatildeo com a animalidaderdquo
64
funccedilatildeo das transformaccedilotildees nos costumes sociais ao longo do tempo Assim o
prazer no comer e beber junto foi se modificando Isso ocorre
concomitantemente agraves mudanccedilas nas sociedades Ao longo dos anos e dos
seacuteculos a vida privada passou a ser preferida em lugar da vida puacuteblica
sobretudo nos aspectos de convivecircncia de desfrutar da intimidade e aconchego
familiar Avanccedilos tecnoloacutegicos e encontros com outras culturas favoreceram a
vida e a criaccedilatildeo de espaccedilos internos agrave casa destinados agrave comensalidade por
exemplo A cozinha que antes era compartilhada com vaacuterias pessoas ao redor
do paacutetio passa a ser parte interna de cada habitaccedilatildeo O espaccedilo privado estaacute
associado agrave intimidade e ao refuacutegio em contraste a um espaccedilo puacuteblico do qual o
cotidiano domeacutestico das famiacutelias vai se afastando aos poucos As refeiccedilotildees que
eram feitas ao ar livre ou em locais de faacutecil acesso passam a ser feitas em casas
de alvenaria que possuem portas da rua que ficam fechadas impedindo o
acesso a qualquer pessoa que chegar exceto sob o convite dos donos da casa
Mesmo que inicialmente a cozinha tenha se mantido distante dos outros
cocircmodos ocupava um lugar de destaque nas caracteriacutesticas habitacionais das
mais simples agraves mais requintadas desde o periacuteodo Colonial no Brasil conforme
aponta Lemos (1996) em seu estudo sobre as casas urbanas e rurais brasileiras
ldquoEm Portugal ateacute haacute pouco tempo e no Brasil Colonial sempre se chamou a
moradia de lsquofogorsquo ou lsquofogatildeorsquo Qualquer recenseamento dizia que determinada
cidade possuiacutea tantos habitantes em tantos lsquofogosrsquordquo (LEMOS 1996 p 11)
Segundo Lemos (1976) e Abrahatildeo (2007) as cozinhas do periacuteodo de
colonizaccedilatildeo no Brasil estavam sempre voltadas para o exterior da casa em seus
fundos ficando assim distantes dos cocircmodos de dormir mantendo-os livres do
cheiro de fumaccedila e de gordura Por natildeo haver aacutegua encanada na eacutepoca a
cozinha se localizava muitas vezes na aacuterea externa da habitaccedilatildeo Poreacutem
segundo Algranti (1997) jaacute a partir do seacuteculo XVIII estabeleceu-se dois tipos de
cozinhas a ldquocozinha sujardquo onde se preparavam carnes doces e frituras ou seja
destinava-se agraves atividades mais pesadas e portanto permanecia fora da casa e
a ldquocozinha limpardquo que se acopla agrave residecircncia e onde se prepara o cafeacute os bolos
as saladas etc
Segundo Abdala (2007) o espaccedilo da cozinha nas casas do periacuteodo
colonial em Minas Gerais e que perdurou pelo seacuteculo XIX era amplo bem
ventilado e o fogatildeo a lenha feito de barro ou de pedra sabatildeo ocupava local de
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destaque Era ainda um espaccedilo iacutentimo natildeo sendo permitida a entrada de
estranhos25
A sala de jantar segundo Cacircmara Cascudo (2004) surgiu no final do
seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX Antes disso qualquer cocircmodo da habitaccedilatildeo servia a
esta finalidade mesmo nos imensos castelos onde o conforto era pequeno
apesar dos grandes espaccedilos Saint-Hilaire em seu registro da passagem por
Minas Gerais assim descreve a sala de jantar das casas que visitou
Nas casas dos pobres assim como nas dos ricos existe sempre uma peccedila denominada sala que daacute para o exterior Eacute ali que se recebem os estranhos e se fazem as refeiccedilotildees sentado em bancos de madeira em torno de uma mesa comprida A gente abastada tem o cuidado de reservar na frente de sua casa uma galeria ou varanda formada pelo teto que se prolonga aleacutem das paredes e eacute sustentado por colunas de madeira (SAINT-HILAIRE 1938 p 186)
Ambos os cocircmodos se constituiacuteram ao longo da histoacuteria nos espaccedilos
principais destinados agrave comensalidade E era tambeacutem um espaccedilo assim como
a cozinha em que as mulheres precisavam provar seus dotes como donas de
casa a sua capacidade de receber visitas atividades que faziam parte dos
saberes transmitidos das matildees para as filhas de forma que por mais simples
que fossem as salas de jantar refletiam a personalidade da dona da dona da
casa segundo Abrahatildeo (2010)
As modificaccedilotildees nos tamanhos e estrutura desses espaccedilos domeacutesticos
nos tempos atuais sinalizam que os arranjos destinados a esta atividade estatildeo
sendo redefinidos socialmente mas natildeo desapareceram No sul do Brasil ainda
eacute comum nos dias de hoje os fogotildees a lenha mesmo nas residecircncias urbanas
do interior Diferentemente da regiatildeo sudeste destacando-se Minas Gerais em
que o fogatildeo a lenha eacute em sua maioria feito de alvenaria nos estados do Sul
eles satildeo feitos industrialmente em ferro esmaltado Nos dias frios eacute em torno dele
que a famiacutelia e os amigos se reuacutenem para cozinhar e degustar o pinhatildeo por
exemplo acompanhado de vinho e muita conversa Em Minas o fogatildeo a lenha
estaacute presente em quase todas as habitaccedilotildees rurais e eacute um equipamento que
permanece no imaginaacuterio das pessoas ao pensar em interior e cozinha rural
25 Durante trabalho de pesquisa para mestrado realizado em 1998-1999 na zona rural de Minas Gerais
tive uma experiecircncia interessante em relaccedilatildeo a cozinha e a intimidade das famiacutelias pesquisadas No iniacutecio das vistas as conversas se davam sempre na sala ou na aacuterea externa da casa agrave medida que ia me tornando uma pessoa mais frequente em funccedilatildeo de novas visitas passei a ser recebida na cozinha Isso ocorreu em quase todas as habitaccedilotildees em que estive naquela fase
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Martins (1998) em pesquisa realizada na regiatildeo amazocircnica expotildee os
detalhes de uma casa da sua cozinha e suas funccedilotildees de sociabilidade Sua
descriccedilatildeo deixa clara tambeacutem a relaccedilatildeo da cozinha como espaccedilo de pessoas da
intimidade do grupo
Nos povoados da fronteira onde haacute algum recurso a porta sempre aberta continua no corredor comprido que leva agrave cozinha Ela eacute o lugar de conversaccedilatildeo dos natildeo estranhos daqueles com quem os moradores da casa tecircm familiaridade e natildeo necessariamente parentesco Lugar dos que podem ir entrando bastando gritar o costumeiro ldquoOacute de casardquo Natildeo satildeo estranhos mas tambeacutem natildeo satildeo parentes Na entrada fica a saleta para receber os propriamente estranhos limite de seu acesso ao interior da casa (MARTINS 1998 p 695)
Nos falam sobre isso tambeacutem Luiacutes da Cacircmara Cascudo e Gilberto
Freyre em suas obras jaacute citadas anteriormente Freyre (2006) ao tratar sobre
as caracteriacutesticas das casas do periacuteodo dos engenhos de cana explica que
havia diferenccedilas entre as cozinhas existentes nas casas grandes de siacutetios
sobrados assobradadas de subuacuterbio com aquela da casa de engenho Nestas
uacuteltimas informa o autor a cozinha foi mais importante Essas diferenccedilas se
refletiam inclusive no tamanho da mesa destinada agraves refeiccedilotildees e que abrigavam
quem chegasse para almoccedilar
Viajantes e mascates aleacutem dos compadres que nunca faltavam dos papa-pirotildees os parentes pobres do administrador do feitor do capelatildeo dos vaqueiros das visitas de passar o dia famiacutelias inteiras que vinham de outros engenhos em carro de boi Eram mesas de jacarandaacute agraves vezes de seis oito metros de comprimento como as que ainda conhecemos na casa-grande ndash vasto sobrado rural do engenho Noruega26 (FREYRE 2006 p 143)
O autor esclarece que as mesas grandes ndash geralmente de cinco por dois
metros (5x2) ndash para receber famiacutelias enormes eram comuns nas casas grandes
de siacutetios e nos sobrados mas o que ocorria eacute que nas cidades e subuacuterbios o
modo de vida era mais retraiacutedo e sem muita movimentaccedilatildeo diferentemente do
que ocorria nas casas de engenho jaacute que aiacute ldquose recebia o viajante a qualquer
momento com bacia de prata toalha de linho um lugar agrave mesa uma rede ou
uma cama para dormirrdquo (FREYRE 2006 p 144)
Marcel Mauss (2003) em seu Ensaio sobre a Daacutediva cita a ldquoTaacutevola
Redondardquo das crocircnicas de Artur mesa cujo formato circular tinha o objetivo
26 Este engenho foi retrato na forma de gravura aquarelada 1933 por Ciacutecero Dias Esta aquarela compotildee
o livro Casa-Grande amp Senzala de Gilberto Freyre (1ordm Tomo 1964) como documento anexo ao livro e disposto em dobradura
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simboacutelico de ajudar forma a seus cavaleiros a viver em harmonia pois viviam em
disputas e alimentando inveja entre si A ideia era que ao se sentarem ao seu
redor se reconhecessem como iguais jaacute que nela natildeo havia local de destaque
ou de superioridade
Poreacutem nem sempre o moacutevel ldquomesardquo era ou eacute utilizado Comer assentado
no chatildeo faz parte da cultura indiacutegena e tambeacutem oriental Os iacutendios sentam-se
diretamente no solo nu ou em esteiras e os orientais sobre tapetes nos informa
Cacircmara Cascudo (2004 p 794) Segundo o mesmo autor no Brasil colonial os
pobres tambeacutem comiam dessa maneira o que fez surgir o termo ldquocomida de
esteirardquo Os menos pobres comiam em mesa de madeira ldquoA histoacuteria da
alimentaccedilatildeo na esteira decorre precisamente da heranccedila cabocla do escravo
negro dos mesticcedilos humildesrdquo Mesmo entre os ricos no seacuteculo XIX a mesa
existia mas era improvisada feita em taacutebuas aplainadas na maioria das vezes
Apesar de ser um objeto frequente usado como apoio para os pratos os copos
bebidas e os vasilhames com as comidas durante as refeiccedilotildees nas discussotildees
antropoloacutegicas e socioloacutegicas importa principalmente o seu sentido figurado da
mesa relativo ao ldquocomer juntordquo independentemente de ser assentado ao chatildeo
no sofaacute ou em torno de uma mesa de madeira ou de ferro
Neste sentido importa-nos a conotaccedilatildeo entendimento da
comensalidade no processo socializador e agregador como aquele usado por
Poulain (2013) de que a comensalidade envolve comer acompanhando que eacute
tambeacutem semelhante ao sentido atribuiacutedo por Sobal e Nelson (2003) Fischler
(2011) acrescenta um atributo de espaccedilo a este sentido e diz que literalmente
significa ldquocomer na mesma mesardquo A mesa neste caso podendo ser ateacute mesmo
um ciacuterculo no meio de uma floresta ou o momento e local onde ocorrem as
refeiccedilotildees dos operaacuterios da construccedilatildeo civil com suas marmitas nas matildeos ou
ainda uma toalha posta para um pic nic ou em uma roda que se forma em um
evento social Toda a discussatildeo em torno da relaccedilatildeo mesa e comensalidade
aponta que natildeo ser obrigatoacuterio a existecircncia de um local fiacutesico e de um moacutevel
chamado de mesa para que a comensalidade e sociabilidade alimentar ocorra
basta que haja disponibilidade entre as pessoas e uma certa familiaridade na
convivecircncia Isso tanto vale para o meio rural quanto para o meio urbano No
meio rural ateacute mesmo o local de trabalho no meio de um roccedilado distante da
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casa onde come-se de marmita eacute um local de relaccedilotildees de diaacutelogo e de comer
tendo uma companhia
Os momentos festivos satildeo outras possibilidades de tambeacutem haver
sociabilidade e de ocorrer a comensalidade Nestes momentos come-se natildeo
necessariamente por fome mas pelo prazer do conviacutevio ainda que temporaacuterio
conforme Fladrin e Montanari (1998)
O homem civilizado come natildeo somente (e menos) por fome para satisfazer uma necessidade elementar do corpo mas tambeacutem (e sobretudo) para transformar essa ocasiatildeo em um momento de sociabilidade em um ato carregado de forte conteuacutedo social e de grande poder de comunicaccedilatildeo (FLADRIN MONTANARI 1998 p 108)
Muitas vezes a sociabilidade inicia-se na proacutepria organizaccedilatildeo dos
festejos Nas aacutereas rurais eacute mais comum que as festas comunitaacuterias ou as da
esfera familiar sejam organizadas pelos moradores locais com ajuda da
vizinhanccedila o que propicia maior sociabilidade para aleacutem dos momentos de
comensalidade que ocorrem durante o evento Na cidade pela maior facilidade
de contratar por serviccedilos de organizaccedilatildeo de festas haacute um menor envolvimento
das pessoas que participaratildeo das festas no processo de sua organizaccedilatildeo
Poreacutem como a cultura eacute dinacircmica sofrendo o efeito dos modos de vida
modernos as relaccedilotildees de sociabilidade e tambeacutem de comensalidade ndash antes
mais tradicionais e com maior constacircncia de momentos em grupo ndash tecircm sido
alteradas conforme aponta alguns autores no toacutepico a seguir
34 Praacuteticas alimentares na contemporaneidade entre o tradicional e o moderno
Apesar de as mudanccedilas no consumo alimentar terem ocorrido de forma
tiacutemida antes do seacuteculo XIX eacute a partir da metade dele que autores como Fischler
(1998) Montanari (1998) Teuteberg e Flandrin (1998) Peacutehaut (1998) Capatti
(1998) Levenstein (1998) Cacircmara Cascudo (2004) Pollan (2014) Rossi (2014)
e Contreras e Gracia (2011) consideram como o iniacutecio de mudanccedilas mais
substanciais nas praacuteticas alimentares principalmente na Europa periacuteodo
marcado por profundas transformaccedilotildees nesse continente dentre elas a
expansatildeo da industrializaccedilatildeo que altera os modos de vida das famiacutelias o
aumento da populaccedilatildeo os avanccedilos na produccedilatildeo agriacutecola que gera em pouco
69
tempo o desenvolvimento da induacutestria alimentar Esses efeitos se ampliam
destacadamente nos seacuteculos XX e XXI Muitas dessas mudanccedilas ocorrem
paulatinamente com a introduccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos de outra cultura
como jaacute visto
Autores como Poulain (2013) Montanari (2008) Lody (2008) Pollan
(2014) Woortmann (2007 e 2013) De Garine (1987) Flandrin e Montanari
(1998) e Maciel (2001) discutem como alguns dos aspectos do modo de vida
moderno ndash tempo escasso para executar as vaacuterias atividades facilidade de
acesso agrave informaccedilatildeo estiacutemulo ao consumismo economia de tempo gerado pelo
uso de produtos alimentiacutecios industrializados dentre outros - influenciam as
praacuteticas alimentares e suas interfaces fazendo surgir diversas maneiras de se
alimentar na contemporaneidade
Maneiras essas que podem interferir nos haacutebitos alimentares nos
horaacuterios e locais das refeiccedilotildees no consumo de alimentos e nas praacuteticas
alimentares Por exemplo receitas de famiacutelia que antes estavam nos cadernos
e eram repassados por geraccedilotildees atualmente satildeo encontradas no verso das
embalagens de alimentos na internet em revistas e em programas de televisatildeo
Os horaacuterios de alimentaccedilatildeo nem sempre coincidem entre os membros da famiacutelia
tampouco o espaccedilo domeacutestico eacute mais o uacutenico a ser usado para tal finalidade A
vida contemporacircnea propotildee adaptaccedilotildees agraves novidades que satildeo apresentadas
constantemente Nesse contexto as mudanccedilas atingem tambeacutem as famiacutelias
rurais que encontram formas de se adaptar criando alternativas para lidar com
o novo
Em funccedilatildeo dessas questotildees alguns desses autores analisam
criticamente a tendecircncia atual de homogeneizaccedilatildeo das praacuteticas alimentares
sendo este talvez um caminho sem volta Essa homogeneizaccedilatildeo igualaria os
comedores contemporacircneos ocidentais que sob a influecircncia da globalizaccedilatildeo
passariam rapidamente a ter haacutebitos e gostos alimentares muito semelhantes
Estas consideraccedilotildees estatildeo presentes nas anaacutelises de Arnaiz (2005) que a partir
do estudo sobre a alimentaccedilatildeo dos espanhoacuteis e com base nas argumentaccedilotildees
de autores como Warde (1997) e Germov e Williams (1999) apresenta quatro
tendecircncias para o sistema alimentar moderno
O fenocircmeno da homogeneizaccedilatildeo do consumo em uma sociedade massificada a persistecircncia de um consumo diferencial e socialmente
70
desigual o incremento da oferta personalizada (poacutes-fordista nos termos dos autores) avaliada pela criaccedilatildeo de novos estilos de vida comuns e finalmente o incremento de uma individualizaccedilatildeo alimentar causada pela crescente ansiedade do comensal contemporacircneo ARNAIZ 2005 p 148)
Fischler (1979) se refere a essa tendecircncia alimentar nas sociedades
contemporacircneas como sendo lsquohiper-homogecircnearsquo Em funccedilatildeo disso citando o
estudo realizado por Mennell et al (1992) Fischler (2011) chama a atenccedilatildeo para
o fato de que as praacuteticas alimentares contemporacircneas colocam em risco a
comensalidade enquanto poder de sociabilidade de agregaccedilatildeo considerando
que o mundo moderno tem facilitado a individualizaccedilatildeo inclusive no que se
refere agrave alimentaccedilatildeo Exemplo disso eacute o nuacutemero crescente de pessoas que
mesmo no ambiente domeacutestico servem o seu prato e se assentam na frente da
televisatildeo ou do computador Situaccedilotildees que sinalizam que outras dinacircmicas tecircm
surgido no campo da comensalidade no mundo contemporacircneo Para esses
autores eacute fato o surgimento de um padratildeo alimentar Essa percepccedilatildeo parece
natildeo levar em consideraccedilatildeo a variaccedilatildeo de culturas realidades locais e modos
alimentares diferenciados entre os diversos povos mesmo no contexto
ocidental
Arnaiz (2005) Fischler (1979 e 2011) e Pollan (2014) afirmam que na
sociedade ocidental globalizada e industrializada o tempo aleacutem de escasso eacute
usado prioritariamente em prol da produtividade e do desenvolvimento
capitalista Nesse contexto o que sobra deste tempo eacute dividido entre as tantas
outras tarefas sociais como aquelas desenvolvidas no espaccedilo domeacutestico em
famiacutelia ou entre amigos Pollan (2014) aponta que o haacutebito de cozinhar em casa
vem diminuindo Arnaiz (2005) cita que outro motivo que contribui para isso estaacute
relacionado agraves facilidades geradas pelo processo agroalimentar ou seja vaacuterias
atividades de preparo de alimentos que antes ocupavam muito tempo da
cozinheira atualmente satildeo feitas pelas induacutestrias de alimentos
Poreacutem eacute arriscado afirmar uma tendecircncia agrave homogeneizaccedilatildeo alimentar
pois a cultura eacute dinacircmica e os indiviacuteduos tendem a buscar formas de adaptaccedilatildeo
aos modelos propostos e nessa adaptaccedilatildeo podem buscar praacuteticas alimentares
que mesclem novidade e tradiccedilatildeo Haacute que se levar em consideraccedilatildeo a
diversidade cultural dos grupos mesmo no contexto ocidental Se por um lado
busca-se acompanhar os avanccedilos haacute tambeacutem interesse em preservar
71
caracteriacutesticas culturais consideradas importantes dentre elas aquelas
relacionadas a algumas praacuteticas alimentares Portanto por mais que o peso da
homogeneizaccedilatildeo exista haacute tambeacutem o peso dos elementos da tradiccedilatildeo que
exerce importante influecircncia nas decisotildees e nas escolhas pessoais
Percebe-se na discussatildeo dos autores abordados neste toacutepico a
ocorrecircncia de trecircs vertentes ou movimentos Um primeiro apontado por Anaiz
(2005) Fischler (1979) e Pollan (2014) de que a sociedade tende a adotar um
padratildeo alimentar homogecircneo baseado no consumo prioritaacuterio de alimentos
industrializados de acordo com um estilo de vida moderno e atrelado agraves
novidades Um segundo movimento defendido por De Garine (1987) de que haacute
uma divisatildeo perceptiacutevel na sociedade ocidental formada por um lado por
consumidores prioritariamente tradicionais no seu estilo de exercer as praacuteticas
alimentares e de outro lado por consumidores com tendecircncias agraves praacuteticas
modernas Por fim um terceiro movimento encontrado em Doacuteria (2014) Giard
(2012) Garciacutea Canclini (2013) entre outros que defendem a coexistecircncia da
tradiccedilatildeo com a modernidade no que se refere tambeacutem agraves praacuteticas alimentares
conforme discussatildeo que seraacute apresentada mais agrave frente
Pollan (2014) apesar de acreditar que o ritmo de vida moderno estimule
modos de se alimentar mais homogecircneos com o comedor recorrendo
prioritariamente aos aspectos de praticidade por outro lado pondera algumas
questotildees que satildeo relativas Defende por exemplo que a despeito das mudanccedilas
em curso na sociedade ocidental contemporacircnea a magia e o prazer que
envolvem a atividade culinaacuteria ainda permanecem Mesmo que para um grande
nuacutemero de pessoas isso possa corresponder a uma atividade esporaacutedica em
eventos especiais ou nos finais de semana Por outro lado ainda que a
constacircncia do conviacutevio cotidiano nos momentos das refeiccedilotildees se reduza isso
natildeo implica na perda da qualidade desses momentos Mas o autor concorda
com Fischler (2011) que a diminuiccedilatildeo desta atividade implica em consequecircncias
como transformaccedilotildees no campo da comensalidade com seus significados e
simbolismos Com isso o estilo de vida acelerado e o tempo escasso para
realizar todas as demandas sociais afastam as pessoas do encontro familiar
cotidiano no compartilhamento da comida da manutenccedilatildeo de um horaacuterio fixo
para as refeiccedilotildees e tambeacutem da produccedilatildeo do proacuteprio alimento
72
Em relaccedilatildeo agrave essas questotildees Flandrin e Montanari (1998) consideram a
crenccedila absoluta na homogeneidade dos comportamentos alimentares
exagerada Apesar das mudanccedilas em curso os autores afirmam natildeo ser
evidente pelo menos ainda o desaparecimento das composiccedilotildees e elementos
tradicionais no campo da alimentaccedilatildeo Sinalizam que sobretudo na Europa a
funccedilatildeo social da comida ainda eacute importante Apontam as reuniotildees entre amigos
que ocorrem nos diferentes paiacuteses do planeta ou a reuniatildeo familiar em alguns
dias na semana e que natildeo ordinariamente no cotidiano ainda assim satildeo
momentos de sociabilidade e comensalidade e defendem a necessidade de
relativizaccedilatildeo sobre o assunto
A ldquonormalizaccedilatildeordquo dos comportamentos alimentares ainda natildeo se tornou irreversiacutevel se os modelos de consumo tendem a se assemelhar cada vez mais sua homogeneidade permanece bastante relativa e mais aparente do que real jaacute que os elementos que tem em comum satildeo de fato interpretados segundo a cultura de cada povo e paiacutes inserindo-se em estruturas ainda fortemente marcadas pelas particularidades locais que por sua vez foram-se formando na sequecircncia de um processo histoacuterico longo e articulado (FLADRIN MONTANARI (1998 p 867)
As possibilidades de as praacuteticas alimentares contemporacircneas serem
responsaacuteveis por manter ou de extinguir as tradiccedilotildees alimentares satildeo discutidas
por alguns autores como Berman (2000) Giddens (1991) Bauman (2007)
Garciacutea Canclini (2013) e Giard (2012) O mundo contemporacircneo estaacute
relacionado ao modo de vida moderno e em constante transformaccedilatildeo tendendo
ao dinamismo mesmo que aspectos do tradicional permaneccedilam ainda que com
pesos diferentes de acordo com cada cultura No mundo moderno nada
permanece fixamente e eacute neste contexto que os contrastes entre o moderno e o
tradicional ficam mais aflorados conforme defende Berman (2000)
Ser moderno eacute encontrar-se em um ambiente que promete aventura poder alegria crescimento autotransformaccedilatildeo e transformaccedilatildeo das coisas em redor ndash mas ao mesmo tempo ameaccedila destruir tudo o que temos tudo o que sabemos tudo o que somos (BERMAN 2000 p 15)
Nesse contexto de transformaccedilotildees e dinamismo da substituiccedilatildeo do
antigo pelo novo e da valorizaccedilatildeo do moderno aspectos expostos pelo autor
um dos fatores mais marcantes no campo das praacuteticas alimentares
contemporacircneas eacute a industrializaccedilatildeo dos alimentos e suas consequecircncias para
os comedores com suas benesses e problemas Este sistema apresenta um
73
novo jeito de vivenciar as praacuteticas alimentares no mundo contemporacircneo
sugerindo a ideia de praticidade e economia de tempo A induacutestria de alimentos
pode ser considerada um dos mais importantes promotores de mudanccedilas nos
haacutebitos alimentares das sociedades industriais Mudanccedilas essas que trazem
consequecircncias importantes como as que satildeo discutidas a seguir por Arnaiz
(2015) Pollan (2014) Silva Mello (1956) Cacircmara Cascudo (2004) e De Garine
(1987)
Para Arnaiz (2005) em relaccedilatildeo ao acesso aos alimentos a induacutestria
possui aspectos que podem ser considerados positivos e negativos Dentre os
positivos ela destaca o custo relativamente baixo de obtenccedilatildeo dos bens
alimentares pelos consumidores dos paiacuteses ocidentais industrializados e
tambeacutem a algumas parcelas populacionais dos paiacuteses em processo de
industrializaccedilatildeo Outro fator segundo a autora eacute que a tecnologia de produccedilatildeo
e organizaccedilatildeo da induacutestria de alimentos beneficiou os consumidores que
passaram a contar com maior diversidade de alimentos
A diversificaccedilatildeo alimentar eacute supostamente mais saudaacutevel em termos nutricionais uma vez que permite obter a adequaccedilatildeo de certos nutrientes e evita por exemplo doenccedilas como a pelagra que durante o seacuteculo XIX disseminou-se nas populaccedilotildees mais pobres que tinham o milho como base de sua alimentaccedilatildeo ou ainda doenccedilas como o cretinismo e o boacutecio ateacute recentemente (ARNAIZ 2005 p 148-149)
Para a autora algumas situaccedilotildees negativas se contrastam com as
positivas Cita por exemplo que apesar do acesso aos produtos em termos de
disponibilidade e a um preccedilo relativamente baixo a manutenccedilatildeo da
desigualdade social limita o acesso a muitos desses alimentos Outros fatores
destacados pela autora incluem ainda ldquoa diferenciaccedilatildeo conforme a bagagem
sociocultural que condiciona certos estilos alimentares de grupos de indiviacuteduos
e a persistecircncia das heterogeneidades intra e interterritorial e socialmente
verticalrdquo (ARNAIZ 2005 p 149)
Outro aspecto positivo mas natildeo citado pela autora diz respeito agraves
praticidades e facilidades geradas pela industrializaccedilatildeo dos alimentos Este tipo
de alimento jaacute preacute-processado contribuiu para reduzir o peso do trabalho
domeacutestico que historicamente e tradicionalmente era atribuiacutedo exclusivamente
agraves mulheres Poreacutem o lado positivo da comida industrializada como facilitadora
do dia-a-dia natildeo neutraliza outros fatores negativos tanto do aspecto
74
sociocultural como no aspecto da sauacutede humana conforme apontado por Pollan
(2014) Silva Mello (1956) e Cacircmara Cascudo (2004)
Pollan (2014) destaca o peso da comida industrializada para a sauacutede e
bem-estar humanos ao argumentar que as grandes empresas alimentiacutecias
processam alimentos o que para o autor eacute diferente de produzi-los Ele alerta
para o excesso de sal accediluacutecar e gordura nos produtos processados
industrialmente aleacutem dos produtos quiacutemicos que permitem maior durabilidade
aos alimentos nas prateleiras dos supermercados
Em um sentido semelhante Silva Mello (1956) defende a manutenccedilatildeo
de aspectos importantes da tradiccedilatildeo alimentar tanto para a sauacutede como para a
cultura ao criticar o excesso de modificaccedilotildees provocadas pela induacutestria
alimentar como por exemplo a transformaccedilatildeo do accediluacutecar natural escuro e grosso
em branco refinado e as vitaminas em caacutepsulas como discorre em seu livro
lsquoAlimentaccedilatildeo Instinto Culturarsquo ldquoNatildeo eacute com vitaminas que se mata a fome A
culinaacuteria jaacute que a alimentaccedilatildeo eacute a condiccedilatildeo vital do homem se impotildee como
obrigaccedilatildeo cultural () A chamada poliacutetica cultural comeccedila pela comidardquo (SILVA
MELLO 1956 p 622)
Focando o prejuiacutezo agrave sauacutede dos jovens no Brasil Cacircmara Cascudo
(2004) faz ressalvas agrave praacutetica alimentar moderna que eacute adotada por esse grupo
Para o autor os jovens tecircm maior atraccedilatildeo pelas refeiccedilotildees raacutepidas e substituiccedilatildeo
por lanches Possuem escassez de tempo para participar dos momentos sociais
familiares destinados agrave alimentaccedilatildeo pois sempre tecircm atividades e
compromissos caracteriacutesticos dessa fase da vida Na era dos lanches raacutepidos
eles acabam ldquoperdendo a personalidade do paladar sua fisionomia exigecircncias
predileccedilotildees simpatias Habituam-se agrave comida vulgar e venal raacutepida atendendo
aos reclamos imediatos do estocircmagordquo (p 350) Afirma ainda
Natildeo eacute o alimento em si na potecircncia intriacutenseca de sua substacircncia a fonte isolada da forccedila vital Satildeo os elementos psicoloacutegicos decorrentes da refeiccedilatildeo Cada vez menos refeiccedilatildeo e cada vez mais comidas faacuteceis encontraacuteveis vendidas nos botequins elegantes ou nas cantinas universitaacuterias (CAcircMARA CASCUDO 2004 p 348)
Muitas informaccedilotildees tecircm sido veiculadas nos uacuteltimos anos sobre a
relaccedilatildeo sauacutede-alimentaccedilatildeo referindo-se sobretudo aos alimentos
industrializados No Brasil o ldquoGuia Alimentar para a Populaccedilatildeo Brasileirardquo
publicado em 2006 com uma caracteriacutestica prioritariamente quantitativa foi
75
atualizado em 2014 trazendo um perfil mais qualitativo do que o primeiro e
discute sobre os perigos agrave sauacutede de uma alimentaccedilatildeo baseada em uma dieta de
produtos muito processados ou seja industrializados ao mesmo tempo em que
oferece sugestotildees mais saudaacuteveis para melhorar a qualidade de vida alimentar
da populaccedilatildeo evitando-se frituras e alimentos com grande quantidade de
aditivos quiacutemicos O Guia Alimentar sugere aos comedores uma priorizaccedilatildeo
pelos alimentos in natura e uma maior aproximaccedilatildeo com uma cultura alimentar
mais voltada agraves praacuteticas tradicionais
De Garine (1987) natildeo acredita que o consumo de alimentos
industrializados eacute adotado de maneira generalizada pelas pessoas seja de
forma individualizada seja por grupo familiares Para o autor se por um lado eacute
verdadeiro que a globalizaccedilatildeo tem propiciado uma homogeneizaccedilatildeo dos haacutebitos
alimentares por outro observa-se tambeacutem a permanecircncia da tradiccedilatildeo alimentar
com seus modelos locais de alimentaccedilatildeo A manutenccedilatildeo da tradiccedilatildeo alimentar
estaacute ligada agrave identificaccedilatildeo com as raiacutezes culturais que satildeo passadas por
geraccedilotildees e se esforccedilam por manter alguns rituais e simbologias dessa tradiccedilatildeo
alimentar e portanto natildeo cedendo prontamente ou totalmente aos apelos da
induacutestria pela adoccedilatildeo completa dos alimentos processados Assim para esse
autor natildeo eacute correto generalizar o poder da industrializaccedilatildeo de alimentos pois a
cultura local e a tradiccedilatildeo oferecem um peso que pode tambeacutem influenciar nas
escolhas alimentiacutecias Neste sentido o autor defende inclusive que os paiacuteses
em desenvolvimento se livrem de boa parte do peso das importaccedilotildees valorizando
os alimentos autoacutectones Na percepccedilatildeo deste autor existem dois tipos de
comedores Aqueles que tentam manter uma relaccedilatildeo tradicional e aqueles que
buscam pelo moderno
Possivelmente Gilberto Freyre concordaria com essa conclusatildeo de De
Garine pois era defensor da tradiccedilatildeo culinaacuteria como forma importante de
manutenccedilatildeo e continuidade de uma identidade regional e nacional Em texto
escrito em 1924 e publicado em ldquoTempo de Aprendizrdquo (1979) defende que ldquoo
paladar eacute talvez o uacuteltimo reduto do espiacuterito nacional quando ele se
desnacionaliza estaacute desnacionalizado tudo o maisrdquo (p 367) O autor tratou
sobretudo da cozinha e da comida nordestina de Pernambuco Em seu
ldquoManifesto Regionalistardquo (1996) ndash lido para a plenaacuteria durante o 1ordm Congresso
Brasileiro de Regionalismo ocorrido em Recife em 1926 ndash o maior destaque
76
sobre a importacircncia de se manter a tradiccedilatildeo foi dado agrave parte culinaacuteria Nele
Freyre propotildee uma retomada agrave valorizaccedilatildeo da cozinha regional seus modos de
fazer e de suas praacuteticas Apoacutes discorrer longamente e detalhadamente sobre
as caracteriacutesticas da culinaacuteria pernambucana ele conclui
Feitos estes reparos estou inteiramente dentro de um dos assuntos que me pareceu dever ser versado por algueacutem neste congresso os valores culinaacuterios do Nordeste A significaccedilatildeo social e cultural desses valores A importacircncia deles quer dos quitutes finos quer dos populares A necessidade de serem todos defendidos pela gente do Nordeste contra a crescente descaracterizaccedilatildeo da cozinha regional (FREYRE 1996 p 59)
No entanto esta natildeo eacute a percepccedilatildeo para outros autores que defendem
a existecircncia de um terceiro movimento mais coerente e menos radical que
privilegia a comunicaccedilatildeo entre tradiccedilatildeo e modernidade alimentar Afirmam isso
baseando-se nas raacutepidas transformaccedilotildees que ocorrem no campo da
alimentaccedilatildeo Observam que os espaccedilos para os contornos tradicionais da
produccedilatildeo da comida e dos modos de comer vatildeo sendo diluiacutedos poreacutem natildeo se
extinguem embora ao analisar a tradiccedilatildeo na oacutetica de um mundo em constante
mudanccedila surge sempre a duacutevida sobre a sua capacidade de permanecer
Assim Doacuteria (2014) Giddens (2012) Garciacutea Canclini (2013) Cacircndido (1982)
Cacircmara Cascudo (2004) e Giard (2012) defendem que a modernidade
pressupotildee e impotildee mudanccedilas de formato mas natildeo necessariamente isso
significa o rompimento absoluto com os moldes tradicionais Para estes o
caminho mais interessante eacute o de uma complementaridade pela convivecircncia dos
ldquofatores de persistecircncia ou permanecircncia que contribuem para a continuidade
dos modos tradicionais de vida (praacuteticas e saberes alimentares) com os de
transformaccedilatildeo que representam a incorporaccedilatildeo aos padrotildees modernosrdquo
(CAcircNDIDO 1982 p 200)
Doacuteria (2014) estimula um novo caminho para a culinaacuteria a junccedilatildeo da
tradiccedilatildeo com a inovaccedilatildeo pois a inovaccedilatildeo natildeo existe sem a tradiccedilatildeo natildeo se
chega a uma culinaacuteria dita como ldquonovardquo sem conhecer profundamente os
segredos da tradiccedilatildeo Assim pressupotildee-se a necessidade de um terceiro
caminho uma mescla culinaacuteria possiacutevel na qual o tradicional incorpore
elementos modernos e vice-versa
Sobre o potencial de as tradiccedilotildees alimentares resistirem ocupando
outros espaccedilos ou seja unindo-se ao moderno Poulain (2013 p 35) acena
77
esperanccedilosamente que ldquoa histoacuteria da alimentaccedilatildeo mostrou que cada vez que
identidades satildeo postas em perigo a cozinha e as maneiras agrave mesa satildeo os
lugares privilegiados de resistecircnciardquo
Em sentido semelhante ao exposto acima por Jean Pierre Poulain
Cacircmara Cascudo (2004) defende o peso da tradiccedilatildeo ldquoEspero mostrar a
antiguidade de certas predileccedilotildees alimentares que os seacuteculos fizeram haacutebitos
explicaacuteveis como uma norma de uso e um respeito de heranccedila dos mantimentos
da tradiccedilatildeordquo (p 14) No entanto diferentemente de Gilberto Freyre que defendia
uma tradiccedilatildeo culinaacuteria irretocaacutevel Luiacutes da Cacircmara Cascudo apesar de defensor
das tradiccedilotildees alimentares parecia compreender de forma menos resistente do
que Freyre que a inserccedilatildeo de atributos modernos no campo alimentar se
ampliaria para o bem e sobretudo para o mal segundo as observaccedilotildees
negativas do autor a respeito Mas ele entendia a necessidade de que isso
passasse a ser administrado ao inveacutes de puramente combatido
No povo haacute dois elementos autocircmatos e harmocircnicos coexistentes no assunto alimentar O primeiro estaacutetico basilar tiacutepico indeformaacutevel O segundo renovaacutevel dinacircmico plaacutestico Dos primeiros alguns podem desaparecer ou constituir uso minoritaacuterio Dos segundos outros descem agrave estratificaccedilatildeo tornando-se tradicionais superpondo-se imediatamente agrave camada profunda dos velhos usos participando do antigo patrimocircnio preferencial Essa mecacircnica regulariza a permanecircncia do cardaacutepio familiar Todos os grupos humanos tecircm uma fisionomia alimentar (CAcircMARA CASCUDO 2004 p 373)
Para Garciacutea Canclini (2013) a busca por aspectos tradicionais na
contemporaneidade sinaliza uma necessidade de distanciamento dos indiviacuteduos
com o excesso de modernidade e a inseguranccedila vivida no mundo
contemporacircneo No que se refere a alimentaccedilatildeo as inseguranccedilas ou
desconfianccedilas natildeo satildeo poucas Isso talvez explique a busca que tem ocorrido
pela comida de nossos antepassados
Natildeo obstante o tradicionalismo aparece muitas vezes como recurso para suportar as contradiccedilotildees contemporacircneas Nessa eacutepoca em que duvidamos dos benefiacutecios da modernidade multiplicam-se as tentaccedilotildees de retornar a algum passado que imaginamos mais toleraacutevel Frente agrave impotecircncia para enfrentar as desordens sociais o empobrecimento econocircmico e os desafios tecnoloacutegicos frente agrave dificuldade para entendecirc-los a evocaccedilatildeo de tempos remotos se reinstala na vida contemporacircnea arcaiacutesmos que a modernidade havia substituiacutedo (GARCIacuteA CANCLINI 2013 p 166)
78
Outro exemplo para que a tradiccedilatildeo mantenha sua importacircncia social e
de formaccedilatildeo da sociedade brasileira pode ser demonstrado atraveacutes das Leis de
Incentivo agrave cultura e ao patrimocircnio cultural valorizando tanto a culinaacuteria tiacutepica
quanto o turismo rural com foco na tradiccedilatildeo local No campo alimentar a forma
artesanal de fazer o queijo mineiro e o oficio das baianas do acarajeacute satildeo
exemplos de alimentos que estatildeo entre os patrimocircnios imateriais do paiacutes
catalogados pelo IPHAN (Instituto do Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional)
Outros saberes envolvendo a comida e a cultura encontram-se na lista de
espera Eacute o caso da produccedilatildeo de doces tradicionais pelotenses do modo de
fazer tradicional da cajuiacutena do Piauiacute e o saber fazer do queijo artesanal serrano
de Santa Catarina e Rio Grande do Sul Em niacutevel mundial muitas cozinhas
internacionais jaacute satildeo consideradas Patrimocircnio Imaterial da Humanidade pela
Unesco como eacute o caso das cozinhas Mexicana Francesa e Mediterracircnea
(Greacutecia Itaacutelia Espanha e Marrocos)
Pelo objetivo deste trabalho eacute fundamental dar continuidade agrave discussatildeo
no presente item analisando os reflexos dos haacutebitos alimentares
contemporacircneos sobre as dinacircmicas especificamente rurais buscando
compreender como o rural na atualidade se comporta diante das praacuteticas
alimentares tradicionais e modernas
35 Modernidade e tradiccedilatildeo no contexto alimentar rural contemporacircneo
Ao longo de sua histoacuteria pode-se dizer que o Brasil eacute um paiacutes de muitos
rurais por sua dimensatildeo geograacutefica por suas regiotildees de clima diferenciados e
formaccedilatildeo cultural diversa como exposto por Del Priore e Venacircncio (2006) o
Brasil eacute formado por
Grupos sociais em suas interconexotildees territoriais grupos que satildeo filhos de uma histoacuteria ou seja de um conjunto de costumes comuns ligados agrave religiatildeo ritos mitos praacuteticas econocircmicas crenccedilas teacutecnicas e usos do corpo relacionados com as culturas agriacutecolas ou com a criaccedilatildeo de animais (DEL PRIORE VENAcircNCIO 2006 p 14)
Esses muitos rurais implicam tambeacutem em haacutebitos e praacuteticas alimentares
peculiares Alimentos e praacuteticas que satildeo valorizados em uma determinada
cultura rural pode ser desinteressante para outra Outras tantas caracteriacutesticas
poreacutem podem se assemelhar No entanto eacute cada vez mais tecircnue a linha que
79
separa o rural do urbano e o dinamismo parece ser constante atualmente na
maior parte desses rurais Isso tem gerado a necessidade de reorganizaccedilatildeo do
trabalho e da vida cotidiana das famiacutelias como demonstram as anaacutelises
desenvolvidas por Graziano da Silva (1997) Wanderley (2000 e 2010) e Carneiro
(2005)
Definir o que eacute cultura rural hoje eacute um desafio Segundo Camarano e
Abramovay (1998 p 46) natildeo existe um criteacuterio universal que seja vaacutelido para
definir as fronteiras entre o rural e o urbano e que essa definiccedilatildeo varia de paiacutes a
paiacutes Assim ldquono Brasil eacute considerado como situaccedilatildeo rural os domiciacutelios e a
populaccedilatildeo recenseada que abrange toda a aacuterea fora do considerado urbano
inclusive os aglomerados rurais de extensatildeo urbana os povoados e os nuacutecleosrdquo
Mas esse criteacuterio natildeo explica por si soacute a cultura rural contemporacircnea incluindo
as suas praacuteticas alimentares
Carneiro (2005 p 8) considera outros aspectos para aleacutem da definiccedilatildeo
de limites geograacuteficos entre as duas categorias Segundo a autora durante muito
tempo a oposiccedilatildeo entre o rural e o urbano prevaleceu para a sociologia rural
como abordagem teoacuterico-conceitual em que o rural era determinado pela
ldquocentralidade na atividade agriacutecola isolamento geograacutefico e cultural fraca
mobilidade etcrdquo e tambeacutem o espaccedilo de manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo da tradiccedilatildeo e
dos costumes Mais correto seria dizer por concordarmos com a percepccedilatildeo da
autora de que nos tempos atuais natildeo cabe mais classificar categorias como
rural ou urbano partindo apenas de justificativas de limites geograacuteficos que uma
determinada populaccedilatildeo ocupa mas sim pelas relaccedilotildees sociais que se datildeo no
interior desses espaccedilos Reportando ao trabalho de Marc Mormont Carneiro
(2005) apresenta a distinccedilatildeo entre o rural como categoria analiacutetica e como
categoria operacional destacando que a dificuldade em pensar o rural estaacute no
uso do termo que eacute feito tanto por pesquisadores e na academia quanto por
agecircncias que elaboram estatiacutesticas e ainda utilizada no senso comum
Nos termos de Mormont as propriedades do rural satildeo possibilidades simboacutelicas mas tambeacutem possibilidades praacuteticas Elas orientam as praacuteticas sociais sobre um determinado espaccedilo de acordo com os significados simboacutelicos que lhes satildeo atribuiacutedos sendo portanto inuacutetil procurar em uma realidade fiacutesica econocircmica ou ecoloacutegica os fundamentos de uma ruralidade Tambeacutem seria inuacutetil procurar nesta realidade apenas um imaginaacuterio que faria do rural uma pura construccedilatildeo mental (CARNEIRO 2005 p 9)
80
Nos interessa compreender nessa discussatildeo teoacuterica o que prevalece no
rural contemporacircneo brasileiro uma continuidade atrelada aos modos
tradicionais dos modos de vida e a reproduccedilatildeo social destacando aquelas
questotildees relacionadas agraves praacuteticas alimentares Ou por outro lado se a
aproximaccedilatildeo com o urbano tem transformado o rural a ponto de se estar
perdendo algumas peculiaridades e tradiccedilotildees que historicamente foram
construiacutedas Para instrumentalizar essa anaacutelise torna-se necessaacuteria uma
reflexatildeo sobre a dinacircmica no mundo rural
351 A dinacircmica do rural entre a tradicional e o moderno
Segundo Carneiro (1998 e 2005) compreender o dinamismo que ocorre
no campo eacute importante no sentido de natildeo congelar o conceito de rural como uma
categoria imutaacutevel onde seus habitantes sejam incapazes ldquode absorver e de
acompanhar a dinacircmica da sociedade em que se insere e de se adaptar agraves novas
estruturas sem contudo abrir matildeo de valores visatildeo de mundo e formas de
organizaccedilatildeo social definidas em contextos soacutecio-histoacutericos especiacuteficosrdquo
(CARNEIRO 1998 p 1) A autora tambeacutem argumenta sobre a possibilidade e a
ocorrecircncia de uma nova ruralidade aquela que eacute capaz de fazer conviver com
os reflexos do moderno sobre o tradicional sem que isso signifique um
rompimento com a tradiccedilatildeo descaracterizando o rural Tampouco cabe falar em
uma volta ao passado mas sim do surgimento de uma ruralidade que resgate
determinadas praacuteticas do passado cujo conhecimento pertence aos mais
velhos
Desvendar os distintos significados socialmente atribuiacutedos a espaccedilos e manifestaccedilotildees culturais tidos como rurais sinaliza uma perspectiva de que o mundo rural natildeo estaria sucumbindo agraves pressotildees do universo urbano nem representaria uma ruptura com o urbano Esse processo entendido superficialmente por alguns como de ldquourbanizaccedilatildeordquo do campo produziria novas sociabilidades e novas identidades sociais que dificilmente caberiam em uma uacutenica classificaccedilatildeo mas que continuam a ser representadas socialmente como rurais (CARNEIRO 2005 p 9)
O que os estudos dos autores citados aqui tecircm apontado eacute que as
oposiccedilotildees entre rural e urbano natildeo devem mais ser usadas para pensar a
ruralidade atual brasileira Para Brandemburg (2010) o mundo rural se insere no
processo de modernizaccedilatildeo e ateacute busca por ele mas sem deixar de lado
81
totalmente o modo tradicional de vida Essa coexistecircncia significa a necessidade
de seguir resolvendo os conflitos que surgem a partir dessa dinacircmica O autor
defende que existam rurais em tempos diferentes no Brasil mas que ldquopersistem
ora na sua forma tiacutepica ora sobrepostos ora expressos na forma de um rural
novo reconstruiacutedo ou reflexivordquo (BRANDEMBURG 2010 p 423) O autor cita
Wanderley (1996) quando discorre que este rural reconstruiacutedo eacute aquele em que
o moderno natildeo substitui ou extingue o tradicional mas lhe permite passar por
ressignificaccedilotildees e que se reorganiza socialmente em um grupo ou comunidade
local
Algumas mudanccedilas que vem ocorrendo no meio rural podem alterar os
modos de vida e interferir nas escolhas alimentares das famiacutelias rurais A
facilidade de acesso ao comeacutercio da cidade mais proacutexima ou agrave existecircncia do
comeacutercio na proacutepria comunidade pode gerar interesse em consumir alguns
alimentos que natildeo faziam parte da dieta em tempos passados como os produtos
processados Alguns siacutembolos do estilo de vida moderno chegam mais
facilmente agraves famiacutelias rurais como o uso dos eletrodomeacutesticos que equipam a
cozinha facilitando o trabalho e a reproduccedilatildeo das praacuteticas alimentares como
por exemplo o fogatildeo a gaacutes e a geladeira
Referimos muito no presente trabalho agrave dicotomia ldquopraacuteticas alimentares
contemporacircneasrdquo e como contraponto a existecircncia de uma praacutetica voltada ao
tradicional Assim o tradicional e o novo (ou moderno) surgem como aspectos
importantes agraves vezes conflitantes agraves vezes em interaccedilatildeo Refletir sobre o
mundo moderno pensar sobre modernidade eacute pensar tambeacutem em passado em
tradiccedilatildeo Poreacutem natildeo se pode afirmar que o moderno implica na morte da
tradiccedilatildeo isso foi apontado por Doacuteria (2014) Montanari (2008) e Giard (2012)
Ao analisar-se um tema em que se evidenciem traccedilos de oposiccedilatildeo e ou
de relaccedilatildeo entre o tradicional e o moderno percebe-se que haacute uma tendecircncia
no senso comum em acreditar que a modernidade eacute capaz de extinguir a
tradiccedilatildeo Poreacutem estudiosos do assunto como Giddens (2012) Bartolomeacute (2006)
e Garciacutea Canclini (2013) tecircm mostrado que o caminho mais interessante e que
estaacute em evoluccedilatildeo eacute uma ligaccedilatildeo entre os dois polos da questatildeo
Para Giddens (1991) o tradicional eacute quase sempre atrelado ao passado
idealizado mas que por sua vez se torna dinacircmico com o processo de
82
modernizaccedilatildeo e de novas interpretaccedilotildees dadas pelas geraccedilotildees que recebem os
conhecimentos e experiecircncias vividas por seus antepassados
Nas culturas tradicionais o passado eacute honrado e os siacutembolos valorizados porque contecircm e perpetuam a experiecircncia de geraccedilotildees A tradiccedilatildeo eacute um modo de integrar a monitoraccedilatildeo da accedilatildeo com a organizaccedilatildeo tempo-espacial da comunidade A tradiccedilatildeo natildeo eacute inteiramente estaacutetica porque ela tem que ser reinventada a cada nova geraccedilatildeo conforme esta assume sua heranccedila cultural dos precedentes (GIDDENS 1991 p 31)
Em semelhante linha de pensamento Bartolomeacute (2006) entende a
tradiccedilatildeo como um importante veiacuteculo para se recriar identidades Em seu
continuo processo de construccedilatildeo e reconstruccedilatildeo as identidades mesclam
aspectos do passado com os elementos do presente no mundo contemporacircneo
aleacutem de enfrentar as mudanccedilas necessaacuterias para construir novas relaccedilotildees entre
o tradicional e o moderno ldquoEm um de seus niacuteveis implica uma busca no passado
para instituir uma nova relaccedilatildeo com a realidade contemporacircneardquo (BARTLOMEacute
2006 p 58)
Giddens (2012) e Simsom (2003) nos falam sobre o papel da tradiccedilatildeo e
da transmissatildeo dos saberes de uma geraccedilatildeo a outra feita com a presenccedila dos
ldquoguardiatildeesrdquo Para Giddens (2012) tradiccedilatildeo e memoacuteria andam juntas A tradiccedilatildeo
possui ldquoguardiatildeesrdquo e combina o conteuacutedo moral com o emocional O autor
entende a memoacuteria como um processo ativo e natildeo apenas como lembranccedila
Processo ativo porque as memoacuterias satildeo continuamente reproduzidas por esses
guardiatildees que lhes conferem um modo de continuidade das experiecircncias A
presenccedila desses guardiatildees se torna ainda mais importante no mundo
contemporacircneo para que as experiecircncias passadas seus erros e acertos natildeo se
percam da sociedade
Se nas culturas orais as pessoas mais velhas satildeo o repositoacuterio (e tambeacutem frequentemente os guardiatildees) das tradiccedilotildees natildeo eacute apenas porque as absorveram em um ponto mais distante no tempo que as outras pessoas mas porque tecircm tempo disponiacutevel para identificar os detalhes dessas tradiccedilotildees na interaccedilatildeo com os outros da sua idade e ensinaacute-las aos jovens Por isso podemos dizer que a memoacuteria eacute um meio organizador da memoacuteria coletiva (GIDDENS 2012 p 100-101)
Eacute possiacutevel considerar que muitas tradiccedilotildees tecircm sua origem no rural O
rural do passado com caracteriacutesticas muito tradicionais na produccedilatildeo e na
cultura eacute descrito e analisado por Cacircndido (1982) e Brandatildeo (1981) Antocircnio
Cacircndido mostra um dos rurais brasileiros com suas peculiaridades no que se
83
refere a alimentaccedilatildeo e a cultura Em ldquoParceiros do Rio Bonito estudo sobre o
caipira paulista e a transformaccedilatildeo dos seus meios de vidardquo o autor apresenta
suas anaacutelises antropoloacutegicas e socioloacutegicas do modo de vida caipira
Neste estudo o autor mostra detalhadamente os modos de vida do
grupo pesquisado seus meios de subsistecircncia a forma tradicional de conduccedilatildeo
dos trabalhos agriacutecolas a composiccedilatildeo de sua alimentaccedilatildeo e seus recursos para
obtecirc-la a cultura caipira as formas de solidariedade o cotidiano do trabalho rural
do momento de acordar sair para o trabalho ao momento de retornar ao siacutetio
No aspecto da comensalidade nos chama a atenccedilatildeo as observaccedilotildees do
autor para a praacutetica alimentar do agricultor estudado por ele que no dia a dia
levava o seu almoccedilo em marmita depositada no embornal para ser consumido
no local de trabalho Os momentos das refeiccedilotildees em famiacutelia na cozinha ficavam
restrito aos domingos
O uso da marmita eacute tambeacutem a realidade de muitas outras aacutereas rurais e
tambeacutem urbanas no Brasil em tempos passados em periacuteodo de grande
movimentaccedilatildeo no campo onde o trabalho era realizado muito distante da
habitaccedilatildeo Atualmente isso permanece e nas aacutereas urbanas tambeacutem eacute uma
praacutetica muita utilizada pelos trabalhadores Mas a comensalidade pode se dar
no local do trabalho havendo outras pessoas na mesma atividade Como jaacute visto
anteriormente para ocorrer a comensalidade natildeo eacute necessaacuterio que o espaccedilo
fiacutesico seja a habitaccedilatildeo
Em relaccedilatildeo ao tipo de comida Cacircndido (1982) descreve uma
alimentaccedilatildeo simples baseada no arroz feijatildeo milho aboacutebora e a mandioca
frutas como jabuticaba e verduras como a couve eram as mais comuns Do mato
se coletava o palmito e se caccedilava a carne Esse tipo de alimentaccedilatildeo natildeo difere
do que Cacircmara Cascudo (2004) descreve como sendo os elementos baacutesicos da
alimentaccedilatildeo presentes na cozinha rural brasileira sendo comum tambeacutem o
cultivo de verduras legumes e frutas para consumo proacuteprio da famiacutelia bem como
a produccedilatildeo de animais sobretudo a galinha e o porco A banha do porco era
usada no lugar do oacuteleo de cereais os animais eram alimentados com milho e
outros produtos plantados e colhidos no quintal
O mesmo tipo de dieta foi descrito por Brandatildeo (1981) em sua pesquisa
com lavradores na regiatildeo de Goiacircnia na deacutecada de 1970 Ao autor destaca que
a dieta das famiacutelias rurais tambeacutem consistia basicamente de arroz feijatildeo milho
84
e mandioca os produtos da horta do quintal (legumes e verduras) frutas
tubeacuterculos carne de porco de aves de caccedila e de peixes Com exceccedilatildeo da caccedila
e do peixe todos os outros itens eram produzidos por elas no entorno da
moradia
O rural tratado por Cacircndido (1982) e por Brandatildeo (1981) produz mais do
que alimentos produz um modo de vida que eacute rico em significados e simbologias
que orienta a reproduccedilatildeo social das famiacutelias rurais
Entre lavradores cuja atividade econocircmica estaacute quase toda dentro dos limites da produccedilatildeo diaacuteria e sazonal de comida para a famiacutelia o alimento e tudo o que envolve o acesso a ele aparecem como agentes reguladores entre o homem e o seu mundo Praticamente todo o seu trabalho eacute dirigido a obter alimentos para uma dieta cujos ingredientes produzem conservam ou comprometem as suas condiccedilotildees pessoais de presenccedila em esferas sociais de relaccedilotildees entre produtores de alimentos (BRANDAtildeO 1981 p 148)
No rural contemporacircneo natildeo se pode mais afirmar que a tradiccedilatildeo eacute
determinante nem que se manteacutem encerrada fechada num mundo agrave parte
conforme jaacute apontado por Brandemburg (2010) e Wanderley (1996) embora
muitos costumes ritos praacuteticas alimentares e de reproduccedilatildeo social e econocircmica
se mantenham Isso se aplica tambeacutem agraves praacuteticas alimentares cabendo agraves
famiacutelias rurais fazerem suas escolhas Escolhas essas que natildeo satildeo tatildeo simples
considerando um universo de possibilidades e a proacutepria dificuldade de opccedilatildeo do
ser humano diante do mundo moderno
Nesse universo de possibilidades de escolhas alimentares os
consumidores contemporacircneos buscam escolher aquilo que mais lhes
apetecem de acordo com razotildees de ordem cultural simboacutelica econocircmica social
etc
La variabilidad de las elecciones alimentarias humanas procede sin duda en gran medida de la variabilidad de los sistemas culturales si no consumimos todo lo que es bioloacutegicamente comestiblese debe a que todo lo que es bioloacutegicamente comible no es culturalmente comestible (FISCHLER 1995 p 33)
Segundo o autor as muitas opccedilotildees no processo de escolha geram
anguacutestias alimentares que eacute uma caracteriacutestica do comensal moderno
Inclusive porque ele tem consciecircncia de uma seacuterie de riscos no campo
alimentar sobretudo os riscos que o alimento pode causar agrave sua sauacutede
85
As discussotildees sobre ruralidade no Brasil natildeo satildeo conclusivas no sentido
de afirmar que o peso da tradiccedilatildeo alimentar se impotildee Especificamente sobre
haacutebitos alimentares das populaccedilotildees rurais no Brasil contemporacircneo haacute
necessidade de ampliar o leque de abrangecircncia e regiotildees de estudo No
levantamento que fiz para a presente pesquisa verifiquei que os estudos sobre
alimentaccedilatildeo no meio rural tecircm sido de caraacuteter regional a maior parte na regiatildeo
Sul do Paiacutes Outra informaccedilatildeo que verifiquei eacute uma variedade de estudos sobre
alimentaccedilatildeo elaborados com consumidores na aacuterea urbana Assim o que
existem de estudos sobre praacuteticas alimentares no meio rural satildeo apontamentos
importantes e relevantes poreacutem ainda incipientes para que que sejam capazes
de definir uma realidade sobre praacuteticas alimentares para todo o rural brasileiro
Se por um lado haacute autores que apontam para uma tendecircncia a uma
homogeneizaccedilatildeo alimentar nas sociedades ocidentais e por outro aqueles que
reforccedilam a importacircncia da tradiccedilatildeo e em sua capacidade de se sobrepor haacute uma
terceira posiccedilatildeo sobre a questatildeo Satildeo autores que percebem a possibilidade do
meio termo ou de uma convivecircncia entre os aspectos da contemporaneidade e
da tradiccedilatildeo no que se refere agrave alimentaccedilatildeo Doacuteria (2014) aponta que o tradicional
e o novo datildeo sinais de que sua interaccedilatildeo eacute fundamental Natildeo se inventam novas
comidas elas estatildeo sendo revisitadas e a induacutestria tem investido nisso
Aleacutem de Doacuteria (2014) Poulain (2013) e Lody (2008) partilham da opiniatildeo
de que mesmo que a cada dia modernas possibilidades alimentares ndash cujo foco
seja a ampliaccedilatildeo do consumo de alimentos processados e ultraprocessados ndash
ampliem seus espaccedilos na sociedade natildeo conseguimos abandonar
completamente os viacutenculos com os haacutebitos alimentares herdados dos pais e
avoacutes Haacute sempre aquele doce especial que a avoacute fazia aquele bolo que soacute se
comia na casa dos pais aquele jeito de comer que aprendemos na infacircncia e
por isso sentimos falta mesmo que adotemos um estilo de vida que nos afaste
cada vez mais do espaccedilo social alimentar domeacutestico Os indiviacuteduos se sentem
emocionalmente ligados aos haacutebitos alimentares de sua infacircncia em geral
marcados pela cultura tradicional
Assim apesar de estarem inseridas em uma cultura que lhes eacute peculiar
as famiacutelias rurais natildeo estatildeo imunes agraves influecircncias dos demais tipos culturais e
tambeacutem natildeo satildeo estaacuteticas como defende Carneiro (1998) Elas acompanham o
ritmo das mudanccedilas em sua realidade nas quais estatildeo incluiacutedas tambeacutem as
86
praacuteticas alimentares Como bem define Elias (1994 p 145) ldquoa relaccedilatildeo entre
sociedade e indiviacuteduo eacute tudo menos imoacutevel Modifica-se com o desenvolvimento
da humanidaderdquo No sentido dado por Norbert Elias para a noccedilatildeo de habitus
social empregado agraves sociedades modernas ocidentais haacute uma tendecircncia para
a diminuiccedilatildeo das diferenccedilas regionais entre as pessoas agrave medida que o
desenvolvimento cria maiores possibilidades de integraccedilatildeo entre as regiotildees O
que natildeo implica obrigatoriamente em substituiccedilatildeo de todas as praacuteticas
tradicionais e adoccedilatildeo a outras
36 O papel feminino nas praacuteticas alimentares na famiacutelia
No processo de decisatildeo alimentar envolvendo o cardaacutepio cotidiano das
principais refeiccedilotildees e as aquisiccedilotildees a serem feitas no mercado eacute a mulher que
na maioria das vezes exerce o poder de decisatildeo embora tome as decisotildees
baseadas no gosto e nos haacutebitos familiares Isso eacute apontado em Arnaiz (1996)
Mennell et al (1992) Carrasco (1992) Freyre (1964 2006) Cacircmara Cascudo
(2004) e Giard (2012) Segundo Doacuteria (2012) mesmo apoacutes a revoluccedilatildeo industrial
e a inserccedilatildeo da mulher no mercado de trabalho a funccedilatildeo alimentar continuou
sendo atribuiacuteda como sendo da mulher
Arnaiacutez (1996) destaca que um dos fatores que contribuiacuteram para que a
relaccedilatildeo mulher ndash alimentaccedilatildeo ocorresse eacute a sua ligaccedilatildeo bioloacutegica com a
maternidade Historicamente a sociedade atribuiu ao papel feminino a
transmissatildeo natural dos trabalhos domeacutesticos e por consequecircncia os cuidados
com os membros da famiacutelia Dentre as atribuiccedilotildees femininas estaacute a de alimentar
seus filhos Citando Carrasco (1992) a autora destaca que a funccedilatildeo de satisfazer
as necessidades atraveacutes da alimentaccedilatildeo eacute primeiramente fisioloacutegica mas
possui tambeacutem outras ldquoSin embargo esta tarea comporta ademaacutes la
reproduccioacuten y satisfaccioacuten de otras relaciones sociales tales como identidade
reciprocidade comensalidade y comunicacioacuten que se expresan em cada uno de
los contenidos de las atividades que incorporardquo (CARRASCO 1992 apud
ARNAIZ 1996 p 31)
Segundo Arnaiz (1996) o papel atribuiacutedo socialmente agrave mulher como
responsaacutevel pela tarefa alimentar para aleacutem de fisioloacutegica encontra principal
argumento no final do seacuteculo XIX quando tanto na famiacutelia burguesa quanto na
87
trabalhadora a funccedilatildeo era basicamente reprodutiva Diferentemente do espaccedilo
externo ao lar no qual repousava o objetivo de produccedilatildeo de mercadorias Assim
havia uma clara e explicita divisatildeo sexual do trabalho Ao homem (pai) cabendo
o papel de provedor e agrave mulher (matildee) o papel de reproduccedilatildeo tanto bioloacutegica
quanto social e a responsabilidade pela alimentaccedilatildeo e por outras necessidades
domeacutesticas dos membros da famiacutelia
Woortmann (1985) trata da divisatildeo tambeacutem dos espaccedilos fiacutesicos da
constituiccedilatildeo tradicional da famiacutelia Nessa percepccedilatildeo a famiacutelia supotildee a divisatildeo
do trabalho entre homens e mulheres e cria o espaccedilo do homem provedor como
aquele externo ao lar onde se constitui a relaccedilatildeo racional dos negoacutecios e da
ldquofriezardquo O espaccedilo da mulher como sendo o da casa o espaccedilo das relaccedilotildees
afetivas e portanto acolhedor encontrando dentre as atividades domeacutesticas a
responsabilidade pela elaboraccedilatildeo da comida como a mais caracteriacutestica
expressatildeo dessa afetividade Assim para o autor
O gecircnero eacute tambeacutem construiacutedo no plano das representaccedilotildees atraveacutes da percepccedilatildeo da comida A comida ldquofalardquo da famiacutelia de homens e de mulheres tanto para o antropoacutelogo que realiza a leitura consciente dos haacutebitos de comer como para os proacuteprios membros do grupo familiar ndash e atraveacutes deste ndash que realizam uma praacutetica inconsciente de um habitus alimentar (WOORTMANN 1985 p 2)
Ao atribuir diferenccedila de significado entre ldquocomidardquo e ldquomantimento o
autor mostra que essa diferenciaccedilatildeo tambeacutem possui conotaccedilatildeo de gecircnero pois
aleacutem de existir o antes e o depois da accedilatildeo culinaacuteria existe tambeacutem a conotaccedilatildeo
que envolve a mediaccedilatildeo masculina e a feminina O autor chama a atenccedilatildeo para
o que observou em seu estudo realizado com camponeses no Nordeste em que
mantimento era considerado um produto do roccedilado portanto de domiacutenio
masculino Mas esse mantimento se converteria em comida ao ser ldquoqueimado27rdquo
na cozinha que eacute compreendido como o espaccedilo feminino
O mantimento (natureza) eacute produto do roccedilado (cultura quando eacute oposto ao mato) pelo trabalho do homem Quando eacute queimado isto eacute quando de ldquocrurdquo passa a ldquocozidordquo processo que se realiza a casa domiacutenio da cultura mas no espaccedilo desta que corresponde agrave mulher (natureza) torna-se comida (cultura) Entatildeo o homem-cultura produz o mantimento-natureza e a mulher-natureza produz a comida-cultura (WOORTMANN 1985 p 9)
27 Expressatildeo muito utilizada pelos camponeses da regiatildeo nordeste segundo o autor
88
Cacircmara Cascudo (2004) discute a identidade social feminina na histoacuteria
da alimentaccedilatildeo no Brasil O papel das mulheres indiacutegenas africanas e
portuguesas que produziram uma importante miscigenaccedilatildeo do paladar que tanto
caracteriza a cozinha brasileira Mulheres que foram responsaacuteveis tambeacutem ao
longo da histoacuteria pela transmissatildeo dos segredos e da diversidade culinaacuteria que
dominaram
A culinaacuteria brasileira tem suas raiacutezes nos saberes que foram repassados
por geraccedilotildees de mulheres desses trecircs grupos eacutetnicos e na junccedilatildeo dos seus
saberes De cada grupo eacutetnico que formou a populaccedilatildeo brasileira detalhes foram
herdados e levados agrave mesa familiar ao longo da histoacuteria Muito do que estaacute
presente em nossas praacuteticas alimentares cotidianas e em festejos especiais eacute
reflexo de transmissatildeo cultural e histoacuterica
Sobre a influecircncia e importacircncia da mulher indiacutegena para a alimentaccedilatildeo
Freyre (1964 p 132) a descreve como sendo natildeo apenas ldquoa base fiacutesica da famiacutelia
brasileira mas valioso elemento de cultura material e alimentar na formaccedilatildeo
brasileirardquo Vaacuterios alimentos usados ateacute os dias atuais remeacutedios caseiros
formatos de utensiacutelios de cozinha etc satildeo heranccedilas das mulheres indiacutegenas
Da cunhatilde eacute que nos veio o melhor da cultura indiacutegena O asseio pessoal A higiene do corpo O milho O caju O mingau As comidas preparadas agrave base de mandioca e que se tornaram a base do regime alimentar do colonizador O brasileiro de hoje amante do banho e sempre de pente e espelhinho no bolso o cabelo brilhante de loccedilatildeo ou de oacuteleo de coco reflete a influecircncia de tatildeo remotas avoacutes (FREYRE 1964 p 132)
Segundo o autor a culinaacuteria brasileira natildeo seria a mesma sem os
quitutes de origem indiacutegena Ele destaca como a mescla dos conhecimentos da
mulher indiacutegena e da mulher portuguesa que se deu nas cozinhas das casas
grandes foi importante para tornarem esses quitutes com sabor ldquoabrasileiradordquo
O autor ainda ressalta a contribuiccedilatildeo da cultura africana por meio das mulheres
africanas para a culinaacuteria brasileira Originam dessa cultura a introduccedilatildeo de
azeite de dendecirc pimenta malagueta quiabo farofa quibebe vatapaacute mungunzaacute
caruru milho assado acarajeacute pipoca cuscuz de peixe novas variedades de
preparo de peixes e da galinha alguns doces broas e patildees de milho Segundo
o autor muitas mulheres alforriadas tiravam seu sustento com os tabuleiros de
doces vendiam cocadas quindins matildees bentas etc Algranti (2007) menciona
que antes de se tornarem populares e vendidos em tabuleiros os doces eram
89
considerados iguarias e apenas servidos em ocasiotildees especiais e eram por isso
demarcadores de distinccedilatildeo social
Assim como a junccedilatildeo dos saberes das mulheres indiacutegenas africanas e
portuguesas produziu comidas mais saborosas A troca de conhecimentos
propiciou novas adaptaccedilotildees aos pratos sobretudo aos doces A heranccedila
portuguesa no que se refere aos doces eacute muito forte segundo Freyre (2007)
mas era preciso a matildeo de obra e a intuiccedilatildeo das mulheres negras para dar o
toque certo nos pontos
Com sabores temperos supersticcedilotildees e haacutebitos das trecircs raccedilas que nos formaram a convivecircncia espontacircnea entre o cristal daquele accediluacutecar o sabor selvagem da fruta tropical e aquele que era o alimento baacutesico dos nossos iacutendios ndash a mandioca Juntando pilatildeo urupema saudade peneira de taquara raspador de coco esperanccedila colher de pau panela de barro mais a fartura de porcelana do oriente e bules e vasos de prata Eram doces preparados em tachos de cobre pesado heranccedila portuguesa largos quase trecircs palmos grandes duas alccedilas ardendo sobre velhos fogotildees a lenha Jovens negras tiravam os tachos pesados do fogo sem pedir ajuda As mais velhas usavam experiecircncia e sabedoria trazidas de terras distantes com olhares atentos para natildeo deixar o doce passar do ponto E sempre com aquela mesma forma de fazer ndash tranquila bem devagar sem pressa quase dolente (FREYRE 2007 p 13-14)
Bruit et al (2007) citam doces como as marmeladas goiabadas
rapaduras doces de frutas em calda acompanhados muitas vezes de queijo
como aqueles mais servidos nos jantares festivos que ocorriam nas casas-
grandes no interior de Satildeo Paulo e Minas Gerais Tanto as referecircncias de
Cacircmara Cascudo (2004) como as de Freyre (1964 2003 e 2007) revelam as
praacuteticas alimentares que ocorriam no Brasil colonial sobretudo nas casas-
grandes e dos sobrados que foram caracteriacutesticas primeiramente das regiotildees
dos engenhos de cana
Abdala (2007) afirma o controle da cozinha pelas mulheres no Brasil
colonial Referindo-se principalmente agraves escravas que viviam quase reclusas na
cozinha e por isso se tornaram personagem central na atividade da culinaacuteria
Segundo a autora essa era a realidade em Minas Gerais mas tambeacutem em
outras partes do paiacutes As escravas e as mulheres pobres executavam o serviccedilo
cotidiano Agraves senhoras ricas cabia dar as ordens e administrar os trabalhos
relativos agrave produccedilatildeo da comida Somente em algumas ocasiotildees elas se
dedicavam agrave elaboraccedilatildeo de algum prato ldquoEm casa no decorrer dos dias nas
festas intimas durante visitas como tambeacutem na rua no comeacutercio ambulante ou
90
das vendas cabia agrave mulher toda a funccedilatildeo relacionada agrave comidardquo (ABDALA
2007 p 80) Essa condiccedilatildeo tambeacutem eacute apontada por Vasconcellos (1968) que
apresenta a mulher deste periacuteodo em Minas Gerais como a dona absoluta dos
seus domiacutenios no interior das casas que compreendia tambeacutem a cozinha local
onde o homem raramente acessava
O domiacutenio feminino dos grupos eacutetnicos indiacutegenas africanos e portuguecircs
eacute perceptiacutevel na alimentaccedilatildeo brasileira ainda nos dias de hoje muito embora
com a chegada dos imigrantes europeus e tambeacutem de outras regiotildees a partir
da metade do seacuteculo XIX mulheres de outras culturas trouxeram importantes
contribuiccedilotildees para a culinaacuteria brasileira Destacando as italianas e as alematildes
cuja influecircncia se iniciou no Sul do Brasil mas tambeacutem na cidade de Satildeo Paulo
No interior do estado do Espirito Santo e na regiatildeo serrana do Rio de Janeiro as
culturas italianas e alematildes tambeacutem tiveram papel importante na formaccedilatildeo das
praacuteticas alimentares locais
Segundo Claval (2001) os saberes culinaacuterios foram repassados
matrilinearmente ao longo da histoacuteria e foram feitos principalmente por oralidade
pelas mulheres que podem ser chamadas de as ldquoguardiatildesrdquo termo usado por
Giddens (2012) e Simson (2003) Muitas mulheres mais velhas que natildeo tiveram
a oportunidade de estudar e sabiam apenas assinar o proacuteprio nome guardavam
na memoacuteria as receitas de suas matildees e avoacutes Pode-se dizer que a transmissatildeo
pela oralidade parece contribuir mais para aproximar as geraccedilotildees pela relaccedilatildeo
de proximidade necessaacuteria entre as mulheres Independente da forma se
escritas ou orais o importante eacute a compreensatildeo de que receitas repassadas
pelas geraccedilotildees carregam tambeacutem uma histoacuteria rica em significados e
experiecircncias vividas pelas mulheres das geraccedilotildees Afinal como dito por Doacuteria
(2006 p 103) ldquoreceitas como meros lsquomodos de fazerrsquo satildeo inuacuteteisrdquo
Tambeacutem Giard (2012) atribui agraves mulheres ndash as guardiatildes da tradiccedilatildeo ndash a
influecircncia na preferecircncia por determinados pratos Somos ldquovisitadosrdquo pelos
sabores e cheiros que a memoacuteria muitas vezes insiste em trazer agrave tona as
comidas de tempos de infacircncia e juventude que nos reporta a ocasiotildees
especiacuteficas da vida Em pesquisa etnograacutefica realizada com mulheres dedicadas
a culinaacuteria a autora concluiu que
A aquisiccedilatildeo dos ingredientes a preparaccedilatildeo e as regras de compatibilidade podem muito bem mudar de uma geraccedilatildeo agrave outra mas
91
o trabalho cotidiano das cozinhas continua sendo uma maneira de unir mateacuteria e memoacuteria vida e ternura instante presente e passado que jaacute se foi invenccedilatildeo e necessidade imaginaccedilatildeo e tradiccedilatildeo ndash gostos cheiros sabores formas consistecircncias atos gestos coisas e pessoas especiarias e condimentos (GIARD 2012 p 296)
Apesar do papel central da oralidade o caderno de receita eacute um
instrumento importante para se reportar aos haacutebitos alimentares de tempos
passados Talvez o primeiro registro de uma receita seja a que aponta Sitwell
(2012) Trata-se de um registro de 1700 aC na antiga Mesopotacircmia de uma
receita de ensopado de legumes e carne que foi esculpido em taacutebuas de argila
em fixada a um tuacutemulo Segundo Claval (2001) os registros de receitas em
cadernos tiveram iniacutecio em meados do seacuteculo XIX Haacute quem o tenha herdado
de pessoas da famiacutelia e mesmo que natildeo o utilize no dia-a-dia o manteacutem como
heranccedila afetiva
Abrahatildeo (2007) aponta que natildeo apenas receitas eram registradas em
muitos desses cadernos mas tambeacutem outras anotaccedilotildees necessaacuterias naquele
momento Ele menciona que as receitas culinaacuterias que foram arquivadas em
cadernos traziam ricas informaccedilotildees inclusive sobre outros aspectos
alimentares das eacutepocas como preccedilos ofertas e carecircncias temporaacuterias de
produtos
Atualmente e desde o surgimento da sociedade industrial as atividades
das mulheres passam por transformaccedilotildees com a saiacuteda para o mercado de
trabalho externamente ao lar a dupla jornada de trabalho as mudanccedilas sociais
poliacuteticas e econocircmicas que interferiram na dinacircmica da sociedade e
consequentemente na divisatildeo sexual do trabalho Isso propiciou a aproximaccedilatildeo
masculina da cozinha numa possiacutevel divisatildeo do trabalho domeacutestico espaccedilo
antes ocupado exclusivamente por mulheres Mas ainda assim segundo Doacuteria
(2012) a mulher eacute a principal responsaacutevel pela alimentaccedilatildeo da famiacutelia ldquoNatildeo haacute
duacutevidas de que ainda hoje a cozinha feminina eacute um dos pilares do poder da
mulher em que ela segue administrando a tradiccedilatildeo alimentar (DOacuteRIA 2012 p
255)
Segundo Giard (2012) ldquodentro de uma cultura uma mudanccedila das
condiccedilotildees materiais ou da organizaccedilatildeo poliacutetica eacute o que basta para modificar a
maneira de conceber e de repartir este tipo de tarefas cotidianas podendo
tambeacutem alterar a hierarquia dos diferentes trabalhosrdquo (GIARD 2012 p 211)
92
Para esta autora natildeo haacute nada de essecircncia feminina no fato de as mulheres de
ontem e as de hoje ainda serem as que mais se envolvem nas questotildees relativas
agrave alimentaccedilatildeo A questatildeo eacute puramente histoacuterica social e cultural
Diante das mudanccedilas e da permanecircncia feminina como principal
responsaacutevel pela alimentaccedilatildeo familiar as novas tecnologias disponibilizadas aos
espaccedilos da cozinha o acesso e a variedade de alimentos industrializados
facilitam a conduccedilatildeo desse papel pelas mulheres que desejam manter a
responsabilidade pela alimentaccedilatildeo da famiacutelia mas cujo tempo eacute escasso para
se dedicarem a todas as atividades que executam Por mais que possa haver
algum conflito em usaacute-los nos termos citados por Fischler (1995) haacute poreacutem o
aspecto da comodidade e economia de tempo que atuam como fatores
estimuladores ao seu uso
A dupla jornada de trabalho feminino natildeo ocorre apenas nas aacutereas
urbanas mas tambeacutem nas rurais seja para aquelas que possuem atividade
remunerada fora da propriedade em que moram seja para as que trabalham
apenas na propriedade As atividades das mulheres agricultoras envolvem o
ambiente interno e externo da casa e ainda o seu entorno e para muitas as
atividades tambeacutem do roccedilado conforme Panzutti (2006)
Na vida cotidiana a mulher se ocupa de cozinhar e servir a comida lavar a roupa cuidar dos animais prover a lenha costurar as roupas lavar a louccedila aleacutem de trabalhar na roccedila sempre acompanhada da prole que eacute de seu cuidado Eventualmente eacute auxiliada nessas tarefas por uma filha (PANZUTTI 2006 p 62)
Segundo a autora no meio rural a oposiccedilatildeo entre a casa e o
roccedilado apesar de socialmente ser dividida e hierarquizada mostrando os
domiacutenios dos homens e os das mulheres natildeo as livra de exercer muitas
atividades no espaccedilo considerado masculino Por outro lado a cozinha eacute um
espaccedilo bem definido como sendo o da mulher matildee de famiacutelia
Alguns estudos feitos no Sul do Brasil como o de Zanetti e Menasche
(2007) De Grandi (2003) Paulilo et al (2003) e Heredia (1984) relatam a
experiecircncia de mulheres atuando nas atividades agriacutecolas como o cuidado com
pequenos cultivos pomar pequenos animais mas tambeacutem mantendo a
responsabilidade pelas praacuteticas alimentares na preparaccedilatildeo e organizaccedilatildeo da
alimentaccedilatildeo da famiacutelia
93
Na apresentaccedilatildeo dos dados empiacutericos discuto as situaccedilotildees vivenciadas
pelas famiacutelias e o papel desempenhado pelas mulheres na alimentaccedilatildeo dos
membros da famiacutelia Tanto daquelas que trabalham apenas no siacutetio como
daquelas que exercem atividade remunerada fora dos siacutetios As mulheres
relataram sobre a dinacircmica exercida por elas no que se refere agraves praacuteticas
alimentares e cultura rural Na pesquisa de campo foram apontados pelos
entrevistados elementos aqui discutidos como a transmissatildeo de saberes
culinaacuterios e a relaccedilatildeo entre modos tradicionais e modos contemporacircneos das
praacuteticas culinaacuterias
94
4 ASPECTOS METODOLOacuteGICOS DA PESQUISA E A CHEGADA AO CAMPO
Neste capiacutetulo satildeo apresentados os aspectos metodoloacutegicos que
orientaram a pesquisa de campo bem como os resultados obtidos O trabalho
de campo foi conduzido utilizando-se um delineamento qualitativo agrave luz da
abordagem etnograacutefica no sentido dado por Peirano (1995) dando atenccedilatildeo
especial ao diaacutelogo com o outro Quivy e Campenhoudt (1992) defendem que o
trabalho de investigaccedilatildeo em Ciecircncias Sociais proporciona uma melhor anaacutelise
dos eventos qualitativos bem como uma compreensatildeo mais detalhada e sutil das
dinacircmicas de funcionamento do grupo estudado
Jaacute os direcionamentos de Poulain e Proenccedila (2003) tratam da pesquisa
voltada ao estudo das praacuteticas alimentares num contexto socioantropoloacutegico
Esses autores sugerem atenccedilatildeo conjunta por parte do pesquisador aos
comportamentos dos informantes naquilo que chamam de ldquopraacuteticas observadasrdquo
e ldquopraacuteticas reconstruiacutedasrdquo Para os autores aquilo que o pesquisador observa
durante a entrevista age em conjunto com os relatos dos entrevistados
auxiliando a interpretaccedilatildeo dos dados
As praacuteticas observadas dizem respeito ao que eacute testemunhado pelo
pesquisador satildeo detalhes muitas vezes relevantes mas que nem sempre satildeo
fornecidos pelos interlocutores por razotildees diversas Para facilitar posteriormente
o acesso agraves informaccedilotildees obtidas por meio da observaccedilatildeo o uso de alguns
instrumentos de apoio eacute importante o caderno de campo a cacircmera fotograacutefica
e o gravador As praacuteticas reconstruiacutedas dizem respeito ao trabalho de
rememorizaccedilatildeo Interessa investigar e comparar vivecircncias passadas com as
atuais no caso da alimentaccedilatildeo praacuteticas que foram adotadas alimentos que
fizeram parte da dieta traccedilos de comensalidade comemoraccedilotildees festivas onde
a comida esteja presente o que permanece e o que foi abandonado
Entre outras questotildees busquei verificar junto agraves famiacutelias a influecircncia da
heranccedila culinaacuteria envolvendo a cultura imaterial (eventos relacionados agrave comida
que satildeo tradicionais na famiacutelia) a representaccedilatildeo das praacuteticas alimentares no
tempo passado e presente e o papel dos guardiatildees da tradiccedilatildeo da culinaacuteria
familiar a relaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo bem como com os modos de alimentaccedilatildeo
moderna
95
41 Teacutecnica de pesquisa
A entrevista semiestruturada foi a teacutecnica de pesquisa utilizada para
obtenccedilatildeo de informaccedilotildees das praacuteticas reconstruiacutedas e observadas (POULAIN
PROENCcedilA 2003) justificam como sendo a forma mais confiaacutevel quando dirigida
pelo proacuteprio pesquisador e ainda por permitir aprofundamento das questotildees As
entrevistas podem ser reformuladas ao longo da sua ocorrecircncia com o objetivo
de redirecionar a discussatildeo para o assunto poreacutem sem se prender totalmente agrave
pergunta inicial ldquoAs digressotildees satildeo importantes porque permitem perceber as
representaccedilotildees e os quadros de referecircncia mais ou menos conscientes nos
quais se manifestam as loacutegicas dos atoresrdquo (p 373)
A entrevista permite ao pesquisador uma variedade de interpretaccedilotildees A
atenccedilatildeo do pesquisador e seu feeling tambeacutem satildeo muito importantes pois eacute
preciso estar atento para fazer tanto abordagens objetivas e palpaacuteveis como
simboacutelicas Neste uacuteltimo caso estar atento ao que natildeo aparece claramente na
mensagem e fica impliacutecito na fala
42 Os sujeitos da pesquisa
A definiccedilatildeo dos sujeitos da pesquisa foi realizada a partir de dados
fornecidos pela Emater relativos a cada municiacutepio selecionado Poreacutem como o
trabalho de campo eacute dinacircmico novos informantes surgiram durante esta fase
pois ao entrevistar uma famiacutelia sugiram durante as conversas nomes de outras
pessoas da proacutepria comunidade que pelos objetivos da pesquisa foi
interessante entrevistar Assim as informaccedilotildees da Emater representaram a
porta de entrada mas natildeo uma limitaccedilatildeo para a seleccedilatildeo dos entrevistados
O uacutenico preacute-requisito para a pesquisa era que os interlocutores
morassem na aacuterea rural dos trecircs municiacutepios delimitados O objetivo era conhecer
as praacuteticas que ocorriam no conjunto familiar e natildeo necessariamente as praacuteticas
individuais
Foram realizadas 40 entrevistas abrangendo 17 comunidades rurais
sendo 05 em Piranga 07 em Porto Firme e 05 em Presidente Bernardes cujos
nomes constam no Quadro 1 bem como o nuacutemero de famiacutelias entrevistadas 14
em Piranga 12 em Porto Firme e 14 em Presidente Bernardes O nuacutemero de
96
famiacutelias entrevistadas por comunidade eacute aquele que consta entre os parecircnteses
no referido quadro
Quadro 1 ndash Municiacutepios comunidades e nuacutemero de famiacutelias 2015
Municiacutepios Comunidades
Piranga Boa Vista (2) Manja (3) Mestre Campos (4) Bom Jesus do Bacalhau (2) Tatu (3)
Porto Firme Aacutegua Limpa (2) Bom Retiro (1) Vinte Alqueires (1) Limeira (2) Posses (2) Jacuba28 (2) Satildeo Domingos (2)
Presidente Bernardes Itapeva (3) Mato Dentro (3) Ribeiratildeo (3) Xopotoacute (3) Bananeiras (2)
Fonte Pesquisa de campo 2015
43 A conduccedilatildeo da pesquisa o caminho percorrido
A pesquisa de campo teve como objetivo analisar agrave luz da teoria
sistematizada o significado da comida e as relaccedilotildees de comensalidade atendo-
se agraves mudanccedilas e permanecircncias referentes agraves praacuteticas alimentares das famiacutelias
Mais especificamente analisar a articulaccedilatildeo entre o tradicional e o moderno o
processo de escolha alimentar e os princiacutepios que a determinam como haacutebitos
tradiccedilatildeo praticidade custo etc a influecircncia dos guardiatildees da tradiccedilatildeo na
reproduccedilatildeo do gosto no processo de significaccedilatildeo e ressignificaccedilatildeo da comida
atrelada agraves praacuteticas aos saberes e aos haacutebitos tanto no cotidiano quanto nos
rituais
A pesquisa de investigaccedilatildeo teoacutericobibliograacutefica me conduziu a pensar
as categorias analiacuteticas e as variaacuteveis para a conduccedilatildeo do processo empiacuterico
Assim a alimentaccedilatildeo em seu sentido cultural e simboacutelico como o que foi
discutido nos campos teoacutericos da antropologia e da sociologia da alimentaccedilatildeo
28 Perguntei aos entrevistados desse local se eles sabiam porque a comunidade se chamava Jacuba mas
natildeo souberam responder Os nomes das comunidades estatildeo quase todas relacionadas ao nome de primeira fazenda implantada na localidade Perguntei isso porque ldquojacubardquo eacute um termo indiacutegena usado para se referir a um tipo de comida parecida com o piratildeo agrave base de aacutegua e farinha de mandioca e rapadura muito consumida pelos tropeiros no periacuteodo da mineraccedilatildeo em Minas Antocircnio Cacircndido tambeacutem se refere a ela na descriccedilatildeo dos caipiras paulistas
97
no capiacutetulo anterior eacute eleita como categoria analiacutetica central A partir dela foram
definidas outras quatro subcategorias de suporte 1 As praacuteticas alimentares 2
A comensalidade 3 O espaccedilo social da alimentaccedilatildeo 4 A cultura Como
atributos importantes para a anaacutelise dessas categorias delineei as variaacuteveis
norteadoras da pesquisa empiacuterica e que me ajudaram a observar a descrever
a analisar e a interpretar os dados
Sobre a cultura o interesse foi traccedilar uma caracterizaccedilatildeo ou um ldquoretratordquo
das famiacutelias quanto agrave origem (rural ou urbana) o tempo em que moram na regiatildeo
pesquisada se a terra eacute herdada ou adquirida a faixa etaacuteria aproximada se satildeo
idosos ou jovens a produccedilatildeo de alimentos e as atividades realizadas no
cotidiano
Nas praacuteticas alimentares o interesse foi o de conhecer as informaccedilotildees
relativas aos alimentos mais consumidos no cotidiano e nos eventos especiais
o que eacute produzido no local e o que eacute comprado o horaacuterio das refeiccedilotildees a relaccedilatildeo
com a atividade (por prazer ou por obrigaccedilatildeo) a comida tradicional (o papel dos
guardiatildees da cultura alimentar os cadernos de receita o aprendizado por
oralidade) a comida de antigamente e a comida de hoje a comida para visita e
a comida para os de casa os aspectos levados em consideraccedilatildeo na escolha dos
alimentos (tradiccedilatildeo praticidade custo e atraccedilatildeo pelo moderno)
Para analisar a comensalidade foi preciso identificar se ela estaacute
presente nos haacutebitos familiares no cotidiano e em datas especiais os locais onde
ela ocorre (cozinha copa aacuterea externa da casa sala de visita) e o tempo
aproximado de duraccedilatildeo das refeiccedilotildees
O espaccedilo social da alimentaccedilatildeo se refere ao local de preparo e de
consumo das refeiccedilotildees Importa saber a este respeito quem prepara as
refeiccedilotildees e quais satildeo os equipamentos existentes neste espaccedilo por exemplo a
presenccedila do fogatildeo a lenha e a gaacutes e a constacircncia de seus usos ou seja qual
deles eacute mais utilizado Tambeacutem a existecircncia e usos de equipamentos eleacutetricos
como geladeira freezer forno eleacutetrico forno de micro-ondas batedeira de bolo
etc Neste sentido analisar se nesse espaccedilo social ocorre a relaccedilatildeo entre
tradiccedilatildeo e modernidade na posse e uso dos equipamentos ou o predomiacutenio de
uma dessas caracteriacutesticas Buscou-se ainda analisar se permanecem os
costumes alimentares quanto aos locais destinados agrave comensalidade ou este
espaccedilo social estaacute passando por transformaccedilotildees
98
44 A entrevista semiestruturada
As entrevistas foram gravadas com a permissatildeo dos interlocutores da
pesquisa Apenas uma famiacutelia na comunidade de Ribeiratildeo em Presidente
Bernardes natildeo se sentiu agrave vontade com o gravador e realizei as anotaccedilotildees em
caderno de campo Os nomes dos entrevistados citados no decorrer deste
capiacutetulo satildeo pseudocircnimos que substituiacuteram os verdadeiros para preservar a
identificaccedilatildeo dos participantes conforme exigecircncia constante no Parecer
Consubstanciado do Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa com Seres Humanos (CEP)
da Universidade Federal de Viccedilosa
O estilo da narrativa para apresentaccedilatildeo dos resultados da pesquisa
segue o direcionamento proposto na perspectiva etnograacutefica discutida por
Peirano (1995 e 2008) Marcus e Cushman (1998) e Uriarte (2012) Para Marcus
e Cushman (1998 p 175-176) a narrativa etnograacutefica do seacuteculo XX tem se
baseado no que chamam de realismo etnograacutefico sendo ldquoun modo de escritura
que busca representar la realidade de todo un mundo o de uma forma de vidardquo
Outras caracteriacutesticas da narrativa etnograacutefica realista segundo os autores satildeo
Una cuidadosa atencioacuten hacia nos detalles y demonstraciones redundantes de
que el escritor compartioacute y experimentoacute ese mundordquo
Para Peirano (2008 p 6) ldquoo trabalho de campo se faz pelo diaacutelogo vivo
e depois a escrita etnograacutefica pretende comunicar ao leitor (e convencecirc-lo) de
sua experiecircncia e sua interpretaccedilatildeordquo
45 A imersatildeo em campo a chegada e a travessia
Se a accedilatildeo de comer eacute algo tatildeo iacutentimo ao ser humano conforme reflete
Mintz (2001) analisar os haacutebitos e as praacuteticas alimentares de pessoas e grupos
se torna uma atividade de grande responsabilidade Trabalhar os dados de forma
analiacutetica e criacutetica agrave luz das abordagens teoacutericas e portanto longe do julgamento
do senso comum eacute o papel do pesquisador Foi com essa percepccedilatildeo que
enveredei no campo pensando a pesquisa empiacuterica como descobertas a serem
feitas pelo caminho naquele sentido absorvido quando li Grande Sertatildeo
Veredas de Guimaratildees Rosa pela primeira vez
99
O real natildeo estaacute na saiacuteda nem na chegada ele se dispotildee para a gente eacute no meio da travessia () Assaz o senhor sabe a gente quer passar um rio a nado e passa mas vai dar na outra banda eacute num ponto muito mais em baixo bem diverso do que em primeiro se pensou (ROSA 2001 p 51 e 80)
Fazer pesquisa de campo eacute algo semelhante Faz-se um planejamento
mas durante o percurso eacute preciso lidar por um lado com os ldquoimponderaacuteveis da
pesquisardquo29 e por outro com a expectativa das descobertas a serem feitas na
travessia A praacutetica empiacuterica eacute tambeacutem trabalho analiacutetico e reflexivo mas eacute
sobretudo ndash concordando com a ideia de Peirano (1995 p 57) ndash ldquotrabalho
artesanal microscoacutepico detalhista e que traduz como poucas outras o
reconhecimento do aspecto temporal das explicaccedilotildeesrdquo Ela argumenta ainda que
a conduccedilatildeo de uma pesquisa de campo ldquodepende entre outras coisas da
biografia do pesquisador das opccedilotildees teoacutericas do contexto sociohistoacuterico e das
imprevisiacuteveis situaccedilotildees que se configuram no dia-a-dia no proacuteprio local de
pesquisa entre pesquisador e pesquisadosrdquo (p 22)
Para esta pesquisa as questotildees em torno dos haacutebitos praacuteticas
alimentares e sociabilidades das famiacutelias rurais foram importantes para a
investigaccedilatildeo cientiacutefica pretendida Assim foi necessaacuteria a compreensatildeo por
parte dos interlocutores sobre a importacircncia de sua participaccedilatildeo Coube a eles
apoacutes o entendimento da pesquisa abrir a sua intimidade alimentar cotidiana Fui
convidada pelos entrevistados ndash mulheres na maior parte ndash a ldquoadentrar e puxar
assentordquo na cozinha Tambeacutem me convidaram para conhecer o quintal colher
verdura na horta e inclusive a participar das refeiccedilotildees em todas as casas
visitadas fosse almoccedilo fosse ldquomerendardquo ou mesmo apanhar frutas diretamente
do peacute durante conversas ocorridas no pomar
Assim percorri regiotildees rurais de Piranga Porto Firme e Presidente
Bernardes entre os meses de fevereiro a junho de 2015 fazendo descobertas
aprendendo apreendendo dialogando analisando questionando e refletindo
sobre os sentidos da comida e do comer no espaccedilo rural contemporacircneo das
famiacutelias pesquisadas
29 Termo que foi utilizado primeiramente por Bronislaw Malinowski (1976) ao falar sobre os ldquoimponderaacuteveis
da vida realrdquo para se referir a rotina do trabalho diaacuterio do nativo os detalhes de seus cuidados corporais o modo como prepara a comida e come as simpatias ou aversotildees e etc Utilizo o termo semelhante para pensar os eventos inesperados da pesquisa empirica
100
Naquelas famiacutelias em que fui apresentada diretamente pelos teacutecnicos da
Emater e a quem acompanhei em algumas de suas visitas agraves comunidades
atendidas no mecircs de janeiro de 2015 e mesmo naquelas onde minha preacutevia
apresentaccedilatildeo foi feita via telefone a chegada para a pesquisa foi mais simples
Entretanto naquelas em que houve indicaccedilatildeo por parte dos proacuteprios
entrevistados o processo foi mais lento mas natildeo difiacutecil ou impeditivo Apenas
levei mais tempo para organizar a visita Em um dia ia ao local me apresentava
explicava sobre a pesquisa que havia sido realizada com seus conhecidos na
mesma comunidade respondia agraves perguntas e curiosidades e por fim
agendava um retorno Considero como mais provaacutevel eacute que tenham aceitado
participar da pesquisa em funccedilatildeo de eu ter citado o mesmo trabalho feito com
pessoas conhecidas Natildeo sei dizer se foram buscar confirmaccedilatildeo sobre isso A
teacutecnica da Emater de Piranga que estava se aposentando se propocircs a percorrer
comigo algumas comunidades em alguns dias da segunda quinzena de janeiro
de 2015 me mostrando os caminhos e apresentando a algumas pessoas
Em geral as pessoas foram atenciosas Algumas se mostraram mais
interessadas do que outras e por isso o envolvimento foi maior Poreacutem todas
deram contribuiccedilotildees muito importantes Houve dois casos em que precisei
retornar em outro dia Em um dos casos porque houve falecimento de um
parente na manhatilde do dia da entrevista e natildeo tiveram como me avisar antes Na
outra situaccedilatildeo o casal de aposentados precisou ir agrave cidade resolver problemas
pessoais e pediu para marcarmos um outro dia Foi necessaacuterio tambeacutem o
adiamento da pesquisa em dias de chuva devido agraves condiccedilotildees ruins das
estradas
Optei por dividir o horaacuterio das entrevistas em manhatilde e tarde para
conviver com dois momentos do cotidiano das famiacutelias respeitando os horaacuterios
delas Assim consegui realizar 15 entrevistas na parte da manhatilde e as outras 25
na parte da tarde O horaacuterio de chegada pela manhatilde era entre 800 e 830
tambeacutem em acordo com as famiacutelias Na parte da tarde o horaacuterio era entre 1330
e 1400 Almocei porque era convidada nas casas onde iniciava o trabalho na
parte da manhatilde o que me permitia acompanhar o processo de elaboraccedilatildeo do
almoccedilo as conversas no geral aconteciam na cozinha mas parte delas ocorria
tambeacutem nas hortas e nos quintais
101
A partir do proacuteximo item passo a apresentar os dados obtidos em campo
baseados em informaccedilotildees fornecidas pelos interlocutores da pesquisa e tambeacutem
nas observaccedilotildees que fiz Os itens e subitens estatildeo relacionados agraves variaacuteveis
elencadas no projeto de pesquisa que compuseram o roteiro de entrevista
No item 46 apresento dados de caraacuteter descritivo-analiacutetico sobre a
cultura e os modos de vida do grupo pesquisado as atividades cotidianas de
trabalho as impressotildees empiacutericas e sua relativizaccedilatildeo agrave luz dos dados do IBGE
(2010) sobre uma regiatildeo que aos olhos dos entrevistados parece estar
envelhecendo Apresento e discuto tambeacutem outras percepccedilotildees culturais do
cotidiano Em todo o item algumas reflexotildees sobre as praacuteticas alimentares satildeo
sinalizadas ou apontadas No entanto as discussotildees mais especiacuteficas sobre as
praacuteticas alimentares satildeo feitas no capiacutetulo 5
46 Descobrindo a cultura local dos entrevistados
461 Perfil das famiacutelias
Na regiatildeo pesquisada predomina a agricultura de base familiar que eacute
aquela em que a propriedade a gestatildeo e o trabalho estatildeo ligados agrave famiacutelia no
sentido dado por Gasson e Errington (2003 p 20) O marido a esposa e tambeacutem
os filhos adolescentes quando chegam da escola satildeo os que trabalham na
propriedade Entre os casais idosos as atividades de produccedilatildeo satildeo muito
reduzidas por dificuldades fiacutesicas em executar alguns trabalhos Em alguns siacutetios
haacute filhos casados ou solteiros se responsabilizando pelas atividades dos pais
As aacutereas rurais dos trecircs municiacutepios se assemelham tanto ao que se
relaciona agraves atividades agriacutecolas quanto agrave cultura e haacutebitos cotidianos inclusive
os alimentares A maior parte das famiacutelias (899) mora em pequenos siacutetios que
se formaram por divisatildeo de heranccedila de propriedades maiores O restante
adquiriu por meio de compra Em todos os casos de heranccedila ela proveacutem dos
pais do marido Essas informaccedilotildees obtidas em campo coincidem com o que eacute
apresentado por Maria Joseacute Carneiro (2001 e 1998b) Abramovay et al (1998)
Woortmann (1995) Spanevello e Lago (2010) Paulilo (2003) Mendonccedila et al
(2013) e Moura (1978) ao discutirem o processo sucessoacuterio do meio rural
Apontam que historicamente a heranccedila eacute dada ao filho de sexo masculino que
102
assume a continuaccedilatildeo das atividades ldquoenquanto as mulheres se tornam
agricultoras por casamentordquo (Paulilo 2003 p 188) Situaccedilatildeo semelhante foi
verificada na minha pesquisa As mulheres disseram natildeo ter herdado terra dos
pais agricultores sendo possuidoras de terra a partir do momento em que se
casaram e passaram a partilhar a terra herdada pelo marido
Outros estudos como os de Woortmann (1995) Carneiro (1998b) e
Camarano e Abramovay (1998) tecircm sinalizado uma mudanccedila nos uacuteltimos anos
Uma das razotildees estaacute associada agraves transformaccedilotildees de perspectivas da juventude
rural em relaccedilatildeo ao campo Segundo os autores muitos jovens natildeo demonstram
mais tanto interesse em permanecer no campo e assumir a incumbecircncia total
pela manutenccedilatildeo da terra que pertenceu aos pais Em minha pesquisa natildeo tive
como objetivo discutir a questatildeo sucessoacuteria mas as famiacutelias cujos filhos
moravam nos siacutetios dos pais (666) eram sobretudo aquelas compostas por
casal de idosos e aposentados Nestes casos os filhos natildeo moravam
necessariamente na mesma casa Quando se tratava de filhos casados eles
moravam em casas separadas
A origem rural eacute predominante no grupo pesquisado sendo a realidade
de 95 das famiacutelias entrevistadas As famiacutelias satildeo pequenas sendo 36 pessoas
o tamanho meacutedio incluindo aquelas de casais aposentados e natildeo aposentados
que tecircm os filhos morando em casa Predominam aquelas compostas por
aposentados que moram sozinhos existindo no entanto algumas cujos filhos
solteiros moram com os pais Em alguns dos casos um dos filhos casados mora
no siacutetio mas em casa separada dos pais
As famiacutelias compostas por casais de aposentados correspondem a 24
delas (60) Desse total 11 famiacutelias estatildeo em Presidente Bernardes 08 em
Piranga e 05 em Porto Firme O municiacutepio de Presidente Bernardes representa
aquele com maior percentual de aposentados 80 Em Piranga eles
representam 6875 e em Porto Firme 50
As outras 16 famiacutelias satildeo compostas por casais cuja faixa etaacuteria varia de
30 a 50 anos Nestas famiacutelias os filhos a partir dos 16 anos tecircm saiacutedo para
estudar em outras cidades proacuteximas como Viccedilosa Ouro Preto ou Ouro Branco
onde possam cursar o niacutevel superior Essa foi a realidade encontrada em sete
delas Isso tem ocorrido por interesse tambeacutem dos pais que desejam vecirc-los
formados em um curso superior
103
Em relaccedilatildeo agrave escolaridade a maior parte (646) das pessoas com
idade acima de 60 anos tinham o ensino fundamental incompleto 187
concluiacuteram o ensino fundamental 104 disseram ter sido semialfabetizado ou
seja sabem assinar o nome e ler e escrever muito pouco30 e 63 possuem o
ensino meacutedio completo Entre o puacuteblico na faixa etaacuteria de 30 a 50 anos
predomina o ensino meacutedio completo (532) 373 natildeo completou o ensino
meacutedio e 95 possuem apenas o ensino fundamental completo As mulheres
representam o maior percentual dentre o puacuteblico que concluiu o ensino meacutedio
Os filhos que moram na casa dos pais com idade inferior a 30 anos estatildeo
estudando a maior parte deles crianccedilas e adolescentes
Embora o tema desse subitem natildeo seja objetivo analiacutetico deste trabalho
considerei interessante inserir uma breve discussatildeo em funccedilatildeo de que durante
as entrevistas muitos depoimentos destacaram a saiacuteda dos jovens e a
permanecircncia dos casais de aposentados das regiotildees em que vivem A busca
pela continuidade dos estudos tem determinado a saiacuteda dos jovens Sem
disponibilidade de ensino superior nos municiacutepios em que moram os filhos tecircm
saiacutedo para outras regiotildees proacuteximas e contam com o estimulo dos pais para isso
Os pais alegam que natildeo tiveram oportunidade de fazer um curso superior ou
mesmo teacutecnico e que desejam isso para os filhos porque percebem que a
realidade de trabalho no campo atualmente estaacute mais difiacutecil do que em tempos
atraacutes Relataram que seus pais conseguiram criar famiacutelias grandes com maior
facilidade do que hoje obtendo renda da agricultura Realidade que segundo os
entrevistados estaacute cada vez mais distante na contemporaneidade
Para Zefa moradora de Mato Dentro Presidente Bernardes uma das
explicaccedilotildees para o baixo nuacutemero de pessoas mais novas morando na aacuterea rural
da regiatildeo decorre da divisatildeo das propriedades chegando ao ponto de natildeo ter
mais como dividi-las entre os herdeiros e explica ldquoEsse siacutetio aqui jaacute foi dividido
quando meu sogro deixou aqui para noacutes Se a gente fosse dividir para nossos
nove filhos natildeo ir dar nada entatildeo os filhos foram pra cidade achar um jeito
melhor porque na roccedila eacute tudo mais difiacutecil mesmordquo
Muitos pais ao falarem dos seus filhos jovens destacam que eles se
sentem atraiacutedos por bens e tecnologias que natildeo estatildeo disponiacuteveis no campo o
30 Percebi o constrangimento de alguns quando eu lhes explicava sobre a necessidade de assinatura dos
entrevistados ao ldquoTermo de Consentimento Livre e Esclarecidordquo do Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa
104
mais citado foi o acesso agrave internet O filho de Lola e Marcos que tem 10 anos de
idade possui um celular que soacute utiliza quando vai agrave cidade Consegue acessar
a rede por laacute com o uso da senha que um amigo disponibilizou Os filhos de
Carmem quando visitam os pais reclamam de natildeo ter como acessar a internet
no siacutetio Por outro lado os depoimentos apontaram que os filhos que moram fora
dos siacutetios natildeo tem a mesma reclamaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave comida ao contraacuterio
sentem o desejo de comer a comida tradicional que consumiam quando
moravam no local
Quando os filhos vecircm eles querem comer comida daqui eles falam que eacute ldquocomida de matildeerdquo estatildeo enjoados do que comem na cidade eles falam isso porque eacute com essa comida daqui que foram acostumados comida deles laacute na cidade tem muito tempero artificial igual esse tal de sazon (Doca moradora de Boa Vista Piranga MG 2015)
Haacute no comportamento dos filhos jovens das famiacutelias que entrevistei um
conflito de ordem cultural Desejam manter identidades culturais locais sentem
necessidade da comida da matildee da comida tradicional e de sempre que possiacutevel
visitar os pais como eacute o caso das filhas de Nilsa e Jonas de Satildeo Domingos
Porto Firme que estudam em Viccedilosa Quase todos os finais de semana visitam
os pais Por outro lado sentem falta do acesso a tecnologias e outras opccedilotildees
oferecidas a eles na cidade
Mas o outro lado tambeacutem existe Haacute o exemplo dos filhos que optam por
permanecer junto dos pais por mais tempo embora eu tenha encontrado apenas
dois casos nas famiacutelias entrevistadas Um exemplo eacute o da filha mais nova de
Nanaacute e Custoacutedio moradores de Xopotoacute em Presidente Bernardes Ela continua
morando com os pais trabalha na cidade de Presidente Bernardes e o uso de
uma moto permite que vaacute almoccedilar em casa Ela tambeacutem estuda cursa Letras na
modalidade agrave distacircncia Como natildeo possui internet em casa se dedica ao curso
nos finais de semana na casa da irmatilde casada que mora em um siacutetio localizado
muito proacuteximo agrave cidade e tem acesso agrave internet Seu objetivo depois que se
formar eacute permanecer na regiatildeo como professora na escola estadual do
municiacutepio Seu irmatildeo de 27 anos tambeacutem permanece no siacutetio Apoacutes concluir o
ensino meacutedio optou por trabalhar na agricultura junto com o pai e eacute ele quem
assumia essas atividades na ocasiatildeo da pesquisa
105
Martins (2012) discute que uma das grandes dificuldades da
modernidade para o ldquohomem comumrdquo eacute conseguir superar as irracionalidades e
as contradiccedilotildees impostas por ela que geram conflitos de ordem cultural ldquode
permanente proposiccedilatildeo da necessidade de optar entre isto e aquilo entre o novo
e fugaz de um lado e o costumeiro e tradicional de outrordquo (p 20)
A literatura sobre juventude rural como os trabalhos de Carneiro e
Castro (2007) Brumer (2007) Abramovay et al (1998) Durston (1994) entre
outros tem apontado os desafios para esse grupo etaacuterio em encontrar formas
de permanecer no campo desenvolvendo atividades de trabalho que lhes sejam
atrativas no mundo contemporacircneo Dentre os motivos que estimulam a saiacuteda e
a busca de trabalho em atividades fora da aacuterea rural estatildeo as dificuldades tanto
para conduzir quanto para obter retorno financeiramente favoraacutevel da atividade
rural e a pequena disponibilidade de terra familiar para empreender uma
atividade proacutepria e constituir famiacutelia
Como visto a literatura aponta para uma tendecircncia ao envelhecimento
e masculinizaccedilatildeo do campo Esta foi a minha percepccedilatildeo empiacuterica tambeacutem
Apesar disso eacute preciso considerar que a entrevista abrangendo 40 famiacutelias nos
trecircs municiacutepios natildeo permite classificar essa situaccedilatildeo como generalizada pois a
realidade que encontrei em relaccedilatildeo agrave faixa etaacuteria na regiatildeo pesquisada natildeo
coincide com a realidade apontada pelo IBGE (2010) em termos percentuais
como seraacute mostrado a seguir Isso poreacutem natildeo interfere nos objetivos da
pesquisa pois se trata de uma abordagem qualitativa
No grupo de 40 famiacutelias que pesquisei a populaccedilatildeo idosa eacute
predominante Encontrei um puacuteblico constituiacutedo por 24 famiacutelias cujos casais
tinham acima de 60 anos e 16 famiacutelias cujos casais tinham entre 30-50 anos
Como natildeo havia pessoas viuacutevas a proporccedilatildeo de homens e mulheres era a
mesma 50
No montante das 40 famiacutelias 20 delas possuem filhos morando na casa
dos pais Dentre eles 10 satildeo crianccedilas 08 satildeo jovens e 02 satildeo adultos Nenhum
filho casado mora com os pais Dentre os vinte filhos 08 satildeo mulheres e 12 satildeo
homens Assim o universo de pessoas que constituiacuteam as famiacutelias entrevistadas
foi de 100 pessoas o que representa apenas 048 do total da populaccedilatildeo rural
total da pesquisa do IBGE (2010) mostrado na Tabela 4
106
Assim o perfil etaacuterio do grupo pesquisado se constitui de 48 de
populaccedilatildeo idosa 34 de populaccedilatildeo adulta 8 de populaccedilatildeo jovem e 10 de
populaccedilatildeo infantil
Exceto para o perfil adulto os demais perfis etaacuterios no grupo que
pesquisei apresentam dissonacircncia em relaccedilatildeo ao perfil etaacuterio rural do IBGE
(2010) mostrado nas Tabelas 3 e 4 Pelo IBGE o perfil etaacuterio da regiatildeo se
constitui de 13 de populaccedilatildeo idosa 36 de populaccedilatildeo adulta 26 de
populaccedilatildeo jovem e 23 7 de populaccedilatildeo infantil (Tabela 5)
Tabela 5 ndash Comparativo entre perfil etaacuterio do IBGE (2010) e da pesquisa de campo 2015 ()
Fonte Populaccedilatildeo
rural 1-14 anos
() 15-29
anos () 30-59
anos ()
Acima de 60 anos
()
IBGE (2010) 20755 237 26 36 13 Pesquisa de campo (2015) 100 10 08 34 48
Fonte IBGE (2010) e Pesquisa de campo (2015)
A composiccedilatildeo de gecircnero das famiacutelias pesquisadas se aproxima muito
ao perfil dos dados do IBGE (2010) sendo o puacuteblico masculino um pouco maior
do que o puacuteblico feminino em ambos os casos (Tabela 6)
Tabela 6 ndash Comparativo da composiccedilatildeo de gecircnero do IBGE e da pesquisa de campo 2015
Fonte Populaccedilatildeo
rural Mulheres () Homens ()
IBGE (2010) 20755 481 517 Pesquisa de campo (2015) 100 48 52
Fonte IBGE (2010) e Pesquisa de campo (2015)
107
Em funccedilatildeo dos dados acima eacute possiacutevel afirmar a ocorrecircncia de um
processo de envelhecimento no grupo pesquisado natildeo sendo possiacutevel afirmar
semelhante situaccedilatildeo para toda a regiatildeo rural dos municiacutepios
462 A produccedilatildeo agriacutecola local
A produccedilatildeo agriacutecola eacute pequena mesmo naqueles siacutetios cuja produccedilatildeo
tambeacutem se destina agrave comercializaccedilatildeo A pequena produccedilatildeo de milho objetiva a
produccedilatildeo de fubaacute que possui importacircncia fundamental para a alimentaccedilatildeo das
famiacutelias e dos animais O fubaacute obtido do milho possibilita suprir as famiacutelias com
o produto que eacute utilizado na preparaccedilatildeo do angu alimento consumido
diariamente no almoccedilo e no jantar e na elaboraccedilatildeo da broa uma das principais
quitandas que eacute elaborada diariamente para abastecer a famiacutelia com a
ldquomerendardquo do cotidiano e para ter o que oferecer agraves visitas que chegarem de
surpresa
A cana tambeacutem atende agraves necessidades alimentares animais Apenas
em um siacutetio ela eacute usada para fabricaccedilatildeo de cachaccedila e em outros dois na
fabricaccedilatildeo de rapadura e melado
As principais atividades geradoras de renda das famiacutelias pesquisadas
satildeo leite carvatildeo cafeacute feijatildeo e cachaccedila As famiacutelias que produzem para
comercializaccedilatildeo praticam de duas a trecircs atividades ao mesmo tempo leite e
carvatildeo cafeacute e feijatildeo consorciados e carvatildeo leite e cafeacute Apenas uma famiacutelia
produz cachaccedila para comercializaccedilatildeo e tem nessa atividade uma importante
fonte geradora de renda Nos demais siacutetios cuja produccedilatildeo se destina apenas ao
autoconsumo a produccedilatildeo se baseia em milho feijatildeo leguminosas hortaliccedilas
frutas frangos e porcos caipiras
No Quadro 2 eacute apresentada a origem da renda das famiacutelias Entre
aquelas em que a aposentadoria eacute a uacutenica fonte de renda a produccedilatildeo agriacutecola
se destina apenas para o autoconsumo Naquelas em que a aposentadoria e a
atividade agriacutecola estatildeo presentes a produccedilatildeo eacute administrada por um filho seja
casado ou solteiro mas a maior parte eacute casada e mora proacuteximo aos pais Eacute
importante ressaltar que satildeo sempre os filhos homens que exercem tal funccedilatildeo
Para os pais a presenccedila dos filhos por perto assumindo os trabalhos eacute fator
positivo pois leva-os a se sentir mais tranquilos
108
Quadro 2 ndash Fonte de renda das famiacutelias pesquisadas 2015
Fonte Nordm de famiacutelias
Apenas aposentadoria 14 350
Aposentadoria e atividade agropecuaacuteria no siacutetio 10 250
Atividade agropecuaacuteria no siacutetio e outra 09 225
Atividade agropecuaacuteria 07 175
Total de famiacutelias 40 1000
Fonte Pesquisa de campo 2015
Nas famiacutelias em que a renda eacute obtida da atividade agriacutecola e de outra
fonte a maior parte desta uacuteltima eacute gerada pelo trabalho das mulheres (889)
envolvidas nas seguintes atividades serventes e merendeiras nas escolas rurais
(Marina Ivone e Juliana)31 servente na escola da cidade (Solange) diarista em
casas proacuteximas (Arminda) Haacute tambeacutem aquelas mulheres que utilizam atividades
em casa como eacute o caso de Nilsa Marcelina e Ivone que produzem quitandas e
salgados para vender no entorno ou na cidade proacutexima e Nanaacute que trabalha
como costureira32 Na outra situaccedilatildeo trata-se de uma famiacutelia que possui um
pequeno comeacutercio na comunidade fora do siacutetio onde vive
463 Atividades cotidianas de trabalho nos siacutetios
A maior parte de meus interlocutores foi composta por mulheres e
mesmo quando os homens estavam presentes elas eram as mais ativas no
diaacutelogo Assim muitas das informaccedilotildees sobre o trabalho do cotidiano estatildeo
atreladas agrave realidade vivenciada por elas
Naquelas famiacutelias cuja renda eacute apenas a atividade agropecuaacuteria o
trabalho envolve tambeacutem a mulher e os filhos que estejam morando com os pais
As mulheres se envolvem em todas as atividades seja na lavoura de feijatildeo na
colheita de cafeacute na limpeza do suiacuteno abatido como eacute o caso de Lola (41 anos
31 Marina Ivone Marcelina e Nilsa satildeo moradoras de Porto Firme Arminda e Juliana de Piranga Nanaacute e
Solange de Presidente Bernardes 32 Em duas famiacutelias haacute filhas solteiras (uma em cada famiacutelia) que trabalham fora do siacutetio mas informaram
que suas rendas natildeo contribuem necessariamente para complementar a dos pais
109
moradora de Xopotoacute em Presidente Bernardes) ou na atividade leiteira e do
carvatildeo como eacute o caso de Neiva (39 anos moradora de Posses em Porto Firme)
que fez questatildeo de mostrar a suas unhas ainda manchadas do trabalho na
carvoaria no dia anterior
Mesmo as mulheres que trabalham fora dos siacutetios satildeo unacircnimes em
afirmar que continuam sendo agricultoras jaacute que continuam a exercer a funccedilatildeo
de cuidados da casa ndash incluindo aqueles referentes agrave alimentaccedilatildeo ndash assim como
as atividades agriacutecolas no quintal principalmente nos cuidados com a horta
ldquoSou diarista mas sou agricultora tambeacutemeu cuido da horta da casa mas
quando precisa de fazer algum trabalho na roccedila eu vou mas natildeo vou muitordquo
informou Arminda moradora de Mestre Campos em Piranga
Ivone (38 anos Posses ndash Porto Firme) se envolve muito com todas as
atividades do siacutetio As manhatildes satildeo passadas na escola da comunidade onde eacute
cantineira mas ao chegar em casa no iniacutecio da tarde se junta ao marido para o
trabalho na atividade leiteira na colheita na lavoura e tambeacutem na atividade da
carvoaria Costuma ainda receber encomendas de quitandas vindas da cidade
de Porto Firme e de acordo com o tempo disponiacutevel atende aos pedidos
Observei pelos depoimentos que o trabalho com a horta natildeo eacute visto
como uma atividade agriacutecola Ela eacute percebida como extensatildeo do quintal e da
cozinha e portanto estaacute atrelada aos elementos da casa Trabalhar na roccedila
para eles significa o serviccedilo de capina de roccedilar o milho o feijatildeo colher cafeacute
etc Nos siacutetios em que estive as hortas em sua maioria tambeacutem eram muito
proacuteximas agrave cozinha
As atividades de trabalho cotidiano das mulheres satildeo muito
diversificadas como jaacute visto Envolvem os cuidados da casa do quintal da horta
a alimentaccedilatildeo da famiacutelia atividade leiteira de roccedilado e carvoaria e em alguns
casos trabalho externo ou natildeo ao siacutetio que lhes garantem renda proacutepria
Marcelina (34 anos Satildeo Domingos ndash Porto Firme) diz ter encontrado na
culinaacuteria remunerada motivos para a famiacutelia desistir de se mudar para a cidade
Haacute pouco mais de um ano sua famiacutelia esteve prestes a se mudar para Viccedilosa
em busca de trabalho assalariado O principal motivo eacute que Marcelina natildeo estava
satisfeita com suas atividades no campo As considerava exaustiva mas eram
necessaacuterias para aumentar a renda do casal que era obtida principalmente da
atividade leiteira mas que por ser dividida entre outras duas famiacutelias de irmatildeos
110
do marido ndash que tambeacutem moram na propriedade que pertenceu aos pais ndash
originava uma renda insuficiente para manter sua famiacutelia Uma iniciativa poreacutem
trouxe oportunidade de o casal repensar a saiacuteda do campo A irmatilde de Marcelina
que reside em Viccedilosa produz salgados que satildeo vendidos em bares da periferia
da cidade Marcelina por insistecircncia da irmatilde aprendeu as teacutecnicas de produccedilatildeo
de salgados e passou a produzi-los e vende-los para bares da zona rural de
Porto Firme e Guaraciaba Na ocasiatildeo da pesquisa um ano depois de iniciar
esse trabalho ela conseguiu comprar um freezer novo com a renda dos
salgados o que lhe permitiu aumentar a produccedilatildeo Os salgados satildeo vendidos
na forma congelada e a entrega eacute feita pelo marido de moto Ela compartilhou
essa experiecircncia como sendo muito satisfatoacuteria em sua vida e da famiacutelia Afirmou
que esse foi o principal motivo de eles terem permanecido no campo
Agora o trabalho eacute muito melhor natildeo preciso trabalhar debaixo do sol ardendo natildeo tenho mais dor nas costas trabalho em casa perto dos meninos posso dar o almoccedilo para eles e ver quando eles chegam da escola antes meu marido eacute que tinha que esquentar o almoccedilo e dar para eles (Marcelina moradora de Satildeo DomingosPorto Firme MG 2015)
A experiecircncia de Marcelina sinaliza uma situaccedilatildeo nova na regiatildeo
pesquisada que eacute a produccedilatildeo de alimentos congelados diretamente para
abastecer bares e vendas no meio rural Estaacute presente nesta realidade a
inserccedilatildeo de elementos modernos o trabalho desenvolvido por Marcelina que eacute
uma novidade tambeacutem para ela pois precisou aprender a preparar esse tipo de
alimento a partir de meacutetodos baacutesicos de congelamento de alimentos e a utilizar
o freezer Outro aspecto de modernizaccedilatildeo se refere ao uso da moto como veiacuteculo
para fazer a entrega dos produtos que por sua vez eacute realizada pelo marido
agricultor ao final do dia apoacutes finalizar os trabalhos do siacutetio Por outro lado a
proacutepria famiacutelia pouco consome os produtos congelados feitos por Marcelina por
natildeo fazer parte do haacutebito alimentar da famiacutelia que permanece com preferecircncia
pela comida tradicional ldquoEles natildeo pedem os salgadosnatildeo ligamagraves vezes eu
ateacute faccedilo uns pra gente experimentar e ver como ficourdquo pondera Marcelina
Percebi que essa famiacutelia estaacute buscando se adaptar agraves novas estruturas e
dinacircmicas da sociedade no sentido discutido por Carneiro (1998) incorporando
elementos modernos importantes para sua reproduccedilatildeo sem contudo
abandonar o meio rural e abrir matildeo de suas praacuteticas alimentares tradicionais
111
Chama a atenccedilatildeo tambeacutem nessa experiecircncia o fato de haver consumo no meio
rural para os salgados congelados pelo menos pelos frequentadores dos bares
ou ldquovendasrdquo onde Marcelina fornece seus produtos Isso aponta que se os
congelados natildeo fazem parte do consumo domeacutestico das famiacutelias haacute um espaccedilo
para seu consumo nos bares (ldquovendasrdquo) da regiatildeo
Vemos na situaccedilatildeo exposta aqui um modo de vida tradicional agregando
fragmentos do moderno sem contudo converter-se a ele como discutido por
Martins (2012) percepccedilatildeo semelhante a apresentada por Carneiro (1998)
Os estudos sobre perspectivas e possibilidades para se pensar os rumos
de um novo rural brasileiro ou um rural reinventado vecircm sendo desenvolvidos
por autores como Wanderley (2000 e 2010) e Carneiro (1998 2005 e 2012) em
seus grupos de pesquisa Uma das discussotildees diz respeito agraves novas estrateacutegias
e possibilidades no campo que natildeo sejam necessariamente agriacutecolas como eacute o
caso do turismo do artesanato da agroinduacutestria etc
O cotidiano das mulheres que trabalham fora do siacutetio envolve mais de
uma jornada de atividades que se inicia antes das 600 da manhatilde e segue ateacute agrave
noite apoacutes o jantar ser servido e a louccedila ser lavada No capiacutetulo anterior introduzi
a discussatildeo sobre a dupla jornada de trabalho das mulheres tambeacutem no meio
rural apresentando as pesquisas de Panzutti (2006) com agricultoras no interior
de Satildeo Paulo e de Zanetti assim como as pesquisas de Menasche (2007) com
agricultoras do Sul Ainda sobre essa temaacutetica no sul do paiacutes haacute os trabalhos de
pesquisa de Paulilo et al (2003) e de De Grandi (2003) Analisando os casos
das mulheres da regiatildeo que pesquisei as caracteriacutesticas satildeo muitos
semelhantes agraves descritas pelas pesquisadoras ao estudarem outras regiotildees
O trabalho domeacutestico da mulher eacute considerado infinitamente elaacutestico uma vez que ela transita por ambos os espaccedilos o da produccedilatildeo e o da reproduccedilatildeo o que demonstra que haacute uma flexibilizaccedilatildeo das atividades consideradas produtivas o que natildeo acontece com as atividades reprodutivas e domeacutesticas (DE GRANDI 2003 p 40)
Em outra pesquisa neste caso em uma regiatildeo accedilucareira do Nordeste
do Brasil Heredia et al (1984) discutem a divisatildeo de gecircnero existente na
execuccedilatildeo do trabalho da produccedilatildeo rural Apontam o roccedilado como o lugar do
homem e como o espaccedilo de trabalho da mulher a casa envolvendo a sua
organizaccedilatildeo e a elaboraccedilatildeo da comida para a famiacutelia Mas tambeacutem indicam que
apesar da divisatildeo existem etapas do roccedilado onde a mulher atua como na
112
semeadura e limpeza ao redor das mudas No entanto o contraacuterio natildeo ocorre
como apontam Heredia et al (1984) e Woortmann (1985) Em suas pesquisas
natildeo foi registrado participaccedilatildeo masculina nos trabalhos voltados agrave organizaccedilatildeo
da casa e da elaboraccedilatildeo das refeiccedilotildees destinadas agrave famiacutelia Tampouco em
minha pesquisa identifiquei essa situaccedilatildeo pois satildeo atividades exercidas
basicamente pelas mulheres
Poreacutem encontrei na minha pesquisa uma sinalizaccedilatildeo de que mudanccedilas
ainda que tiacutemidas estatildeo ocorrendo na regiatildeo analisada e isso implica
diretamente nas praacuteticas alimentares Em depoimentos de duas famiacutelias as
mulheres e os maridos que estavam presentes durante a conversa falaram da
participaccedilatildeo destes na preparaccedilatildeo do almoccedilo O primeiro caso eacute o de Marcelina
e Luiz Durante um tempo quando Marcelina trabalhava como diarista Luiz (39
anos Satildeo Domingos ndash Porto Firme) que tem seu trabalho principal na atividade
leiteira assumiu a funccedilatildeo de alimentar os filhos Marcelina deixava o almoccedilo
adiantado quase pronto mas cabia a ele concluir algumas coisas aquecer a
comida e servi-la aos filhos O outro caso eacute o de Marina e Rui Marina sai de
casa cedo com as filhas para a escola onde trabalha como cozinheira Ela deixa
jaacute pronto o arroz e a carne restando ao marido e ao filho jovem temperar o feijatildeo
e refogar a verdura
Esses exemplos apontam para a necessidade de adaptaccedilatildeo agrave realidade
das mulheres rurais que buscam espaccedilos de trabalho remunerado fora dos siacutetios
onde moram e que contam com o apoio dos maridos pelo menos nas
experiecircncias que conheci em campo Os conflitos que permeiam esses ajustes
familiares se por ventura existirem natildeo foram declarados pelos interlocutores
Ao contraacuterio tanto mulheres quanto homens ao falarem sobre o assunto
expressaram naturalidade diante da situaccedilatildeo Eacute importante considerar que a
renda proveniente do trabalho feminino eacute usada para cobrir despesas familiares
e agraves vezes ateacute para cobrir pequenos custos de produccedilatildeo agriacutecola como relata
Solange (30 anos Itapeva - Presidente Bernardes) que trabalha como servente
em uma escola ldquoEu ganho um salaacuterio miacutenimo mas com esse dinheiro eu compro
coisas para a casa para mim e para minha menina ah eacute uma preocupaccedilatildeo a
menos jaacute aconteceu de ter que comprar adubo e pagar veterinaacuterio que veio ver
as vacasrdquo
113
As famiacutelias formadas por aposentados que representam a maioria nesta
pesquisa tecircm uma realidade cotidiana de trabalho que eacute menos ativa Executam
menos atividades no siacutetio embora natildeo deixem de trabalhar Ao falarem de seu
cotidiano os homens disseram que quase natildeo executam mais atividades
agriacutecolas como capina e roccedilado Fazem uma ou outra atividade como cuidar do
paiol do galinheiro da horta preparar a comida para dar aos porcos Fazem isso
ldquopara natildeo ficar parado de tudordquo conforme justificou Neacutelio (morador de Satildeo
Domingos em Porto Firme) Os homens afirmaram se sentirem desconfortaacuteveis
quando natildeo realizam algum trabalho no dia apenas evitam serviccedilos que exijam
grande esforccedilo fiacutesico
No caso das mulheres mais velhas elas continuam se responsabilizando
pela elaboraccedilatildeo das refeiccedilotildees e de todas as outras atividades domeacutesticas aleacutem
do cuidado com a horta e o quintal o que faz com que seu dia seja mais
dinacircmico Aleacutem do preparo das refeiccedilotildees elaboram tambeacutem cotidianamente
quitandas como broas e rosquinhas o que seraacute visto no proacuteximo capiacutetulo
114
5 CULTURA E PRAacuteTICAS ALIMENTARES NO SISTEMA FAMILIAR RURAL RELACcedilOtildeES COM A COMIDA PERMANEcircNCIAS E MUDANCcedilAS
ldquoA arte da cozinha eacute a mais brasileira de nossas artes A mais expressiva do nosso caraacuteter e a mais impregnada do nosso passadordquo
(Gilberto Freyre 1968)
Os toacutepicos de discussatildeo deste capiacutetulo estatildeo subdivididos nos seguintes
temas A discussatildeo sobre a comida considerada como ldquoforterdquo e a classificaccedilatildeo
da comida como cultura e como fator de necessidade fisioloacutegica as mudanccedilas
em curso na nos haacutebitos alimentares o papel ocupado pelo milho e seus
derivados na culinaacuteria cotidiana das famiacutelias a comida do cotidiano a comida
dos dias de festa e as relaccedilotildees de comensalidade nesses contextos os
alimentos comprados e os alimentos cultivados nos siacutetios as permanecircncias de
consumo e as mudanccedilas com a inserccedilatildeo de novos alimentos a mescla cultural
alimentar do tradicional com o moderno as manifestaccedilotildees de perpetuaccedilatildeo
tradicional na elaboraccedilatildeo das quitandas e as suas funccedilotildees no passado e no
presente nas praacuteticas alimentares do grupo pesquisado e por fim a oralidade
no saber fazer e na transmissatildeo das receitas
51 Comida ldquoforterdquo e comida ldquofraca contradiccedilotildees mudanccedilas e permanecircn-cias
Percebi nos depoimentos dos interlocutores a existecircncia de
categorizaccedilatildeo da comida entre ldquoforterdquo e ldquofracardquo Comida forte eacute aquela que
ldquosustentardquo sendo capaz de permitir um intervalo maior entre as refeiccedilotildees e ao
mesmo tempo executar as atividades mais pesadas sem sentir ldquofraquezardquo fiacutesica
Para eles isso tem a ver com a loacutegica de trabalho ou seja o objetivo eacute natildeo
precisar interromper as atividades com frequecircncia para se alimentar Os horaacuterios
apontados para as refeiccedilotildees satildeo cafeacute da manhatilde entre 530 e 600 merenda33
entre 830 e 900 almoccedilo entre 1100 e 1130 merenda da tarde entre 1430 e
1500 e jantar entre 630 e 1900 Em algumas famiacutelias foi citada a ldquomerenda da
noiterdquo que eacute feita pouco antes de dormir
33 ldquoMerendardquo eacute o termo que todos usam para se referir ao que se come nos intervalos entre o cafeacute da
manhatilde e o almoccedilo e entre o almoccedilo e o jantar e agrave noite antes de dormir
115
As informaccedilotildees relativas aos horaacuterios satildeo semelhantes para todas as
famiacutelias inclusive os aposentados disseram manter o ritual de acordar cedo
ainda que suas atividades de trabalho natildeo sejam mais intensas como no
passado
A percepccedilatildeo sobre ldquocomida forterdquo das famiacutelias se assemelha agravequela
discutida por Brandatildeo (1981) em sua pesquisa com agricultores em Goiacircnia O
autor aponta que para o grupo que pesquisou a relaccedilatildeo fortefraco que
atribuiacuteam agrave comida estava diretamente ligada agrave capacidade desse alimento em
garantir ao agricultor maior tempo de trabalho sem sentir fome
Homem forte eacute o homem sadio e resistente para o trabalho A comida forte eacute a que ldquotem sustanccedilardquo cujos efeitos satildeo reconhecidos de dois modos a) na sua capacidade de manter o trabalhador ldquoalimentadordquo por mais tempo sem vontade de comer de novo b) no seu poder de produzir e de conservar mais energia para a atividade braccedilal Eacute neste sentido que a ldquocomida forterdquo equivale ao ldquoalimentordquo categoria de que se exclui a ldquocomida fracardquo (BRANDAcircO 1981 p 109-110)
Para meus interlocutores comida forte eacute principalmente aquela feita com
gordura suiacutena Essa observaccedilatildeo eacute feita em contraposiccedilatildeo ao oacuteleo vegetal que eacute
um produto considerado ldquofracordquo e portanto natildeo oferece a ldquosustanccedila34rdquo desejada
por eles
Para quem trabalha na roccedila a comida feita com oacuteleo natildeo daacute muita sustanccedila A pessoa fica com fome fica meio fraco logo depois A gordura de porco segura mais (Maria 66 anos moradora do Coacuterrego de Itapeva Presidente Bernardes MG 2015)
Aqui se fizer a comida com oacuteleo a barriga comeccedila a roncar rapidinho o oacuteleo eacute fraco natildeo sustenta a gordura de porco eacute forte no serviccedilo que a gente mexe assim que eacute pesado tem de comer comida que sustenta (Carlos 49 anos morador de Posses Porto Firme MG 2015)
Sahlins (2003) ao discutir sobre a categoria de ldquoforccedilardquo atribuiacuteda a
comida relata que algumas culturas destacando a norte americana tem na
carne essa representaccedilatildeo fazendo dela um alimento baacutesico em sua dieta Pela
mesma razatildeo eacute grande consumidora de bacon No puacuteblico da pesquisa a
representaccedilatildeo da gordura e da carne tem uma aproximaccedilatildeo ao que eacute discutido
pelo autor por se tratar de alimento de origem animal como responsaacutevel pela
ldquoforccedilardquo Poreacutem a relaccedilatildeo de forccedila para consumo de carne e de bacon na cultura
34 O termo eacute a forma popular dada a ldquosubstacircnciardquo A capacidade de um alimento dar forccedila energia e
sustentar a fome
116
norte americana estaacute atrelada agrave fator socioeconocircmico como siacutembolo de riqueza
Para o grupo pesquisado a forccedila estaacute atrelada agrave capacidade que a gordura de
porco tem de ampliar o tempo de saciedade mas tambeacutem pelo paladar que
confere agrave comida Neste uacuteltimo aspecto ou seja o da preferecircncia pelo sabor da
gordura se comparada ao oacuteleo Essa preferecircncia eacute tambeacutem justificada pela razatildeo
praacutetica do uso da gordura que eacute o de ser um alimento mais forte e o que melhor
daacute sustentaccedilatildeo
Zaluar (1979) observou a importacircncia da classificaccedilatildeo da comida em
estudo com comunidade de baixa renda na aacuterea urbana Descreve que o grupo
classifica alimentos que consideram como ldquocomidasrdquo porque conferem
saciedade (carne gordura de porco arroz feijatildeo e macarratildeo) e alimentos que
apenas ldquoenganam a fomerdquo (saladas frutas verduras peixe etc) servindo para
o grupo apenas como complemento Nesta classificaccedilatildeo haacute uma diferenccedila do
conceito de comida que se difere de alimento atribuiacuteda por DaMatta (1987)
Tanto no caso do grupo pesquisado por Zaluar na aacuterea urbana quanto no grupo
que pesquisei em aacuterea rural a razatildeo praacutetica para classificar alimentos como
forte estaacute associada agrave necessidade de garantir condiccedilotildees fisioloacutegicas no tempo
dedicado ao trabalho pesado
No grupo que pesquisei visando facilitar o consumo da gordura mais da
metade das famiacutelias cria suiacutenos para essa finalidade Engordam um animal de
cada vez Em apenas uma dessas famiacutelias cria-se um nuacutemero maior para
comercializaccedilatildeo do animal
Haacute um ditado que diz que ldquodo porco soacute natildeo se aproveita o gritordquo pois eacute
possiacutevel usar tambeacutem o intestino para envolver as massas de linguiccedilas e
chouriccedilos o peacute o rabo a orelha e o focinho para feijoada a pele para fazer
torresmo Natildeo eacute difiacutecil entender porque a criaccedilatildeo dos suiacutenos caipiras demonstrou
ser tatildeo importante no grupo pesquisado A alimentaccedilatildeo dos porcos pode ser
produzida nos proacuteprios siacutetios como o fubaacute a cana de accediluacutecar a silagem de
mandioca e ateacute aboacuteboras e batatas doces cozidas misturadas ao fubaacute Nos siacutetios
que visitei o mais usado era o fubaacute
Segundo os agricultores que ldquoengordam o capadordquo35 o animal eacute abatido
sempre que a gordura acaba mas mata-se tambeacutem em veacutespera de festas como
35 Termo que escutei com frequecircncia durante a pesquisa Trata-se do porco castrado destinado agrave engorda
117
natal e ano novo e ainda em casamentos e demais festividades que acontecem
na aacuterea rural Em 2012 na festa de bodas de ouro dos sogros de Lola moradores
da comunidade de Xopotoacute em Presidente Bernardes parte da criaccedilatildeo existente
no siacutetio foi abatida Segundo Lola ldquomatamos dois capados de 17 arrobas e mais
de 15 galinhas caipirasa carne de boi noacutes compramosah e muita linguiccedila
tambeacutemrdquo Da mesma forma Eliana (69 anos moradora de Itapeva em
Presidente Bernardes) compartilhou que para a sua festa de bodas de ouro com
Saturnino ocorrida em junho de 2014 no quintal da casa a famiacutelia matou dois
suiacutenos e aproximadamente 10 frangos caipiras
No cotidiano das famiacutelias engordar um porco no quintal tem a funccedilatildeo
tanto de obter a gordura (banha) como a carne que na maioria das casas eacute
conservada na gordura O que mais ocorre eacute a carne acabar primeiro do que a
gordura Se em tempos passados usar a gordura para conservar as carnes era
uma necessidade jaacute que natildeo havia geladeira atualmente esse haacutebito permanece
por razotildees culturais e tambeacutem pelo sabor diferenciado prevalecendo assim seu
consumo como apontado no depoimento de Laeacutercio 68 anos
Mesmo tendo geladeira a gente ainda conserva a carne na gordura de porco tempera a carne hoje amanhatilde a gente cozinha e frita um pouco quando ela estaacute coradinha a gente potildee na gordura e ela pode ficar ateacute 3 4 meses na gordura natildeo estraga natildeo Uma parte a gente ateacute potildee na geladeira e congela mas natildeo eacute gostoso igual natildeo Muda muito com o frango eacute a mesma coisa Se a gente arruma ele para comer logo depois que mata o sabor eacute um se congela quando vai comer depois eacute outro gosto Natildeo fica bom (Laeacutercio morador de Itapeva em Presidente Bernardes MG 2015)
Tambeacutem na aacuterea urbana o consumo da gordura de porco tem suas
ramificaccedilotildees Natildeo raro eacute possiacutevel verificar em lojas especializadas em produtos
artesanais em Minas Gerais principalmente em lanchonetes de beira de estrada
e pequenos armazeacutens a venda do chamado ldquoporco na latardquo
O sabor conferido agrave comida foi constantemente relacionado com a
gordura suiacutena Os interlocutores deixaram transparecer em suas falas que a
apreciaccedilatildeo do sabor da comida refogada na gordura tem suas raiacutezes no gosto
herdado de geraccedilotildees passadas Cresceram comendo dessa forma Todos
afirmaram preferir o sabor da comida preparada na gordura agrave que eacute feita no oacuteleo
principalmente a verdura o feijatildeo e o arroz como declara Afonso (79 anos
morador de Ribeiratildeo em Presidente Bernardes) ldquoPara mim a verdura tem que
ser feita na gorduraa couve na gordura tem outro saborrdquo e Gilberto (75 anos
118
morador de Manja em Piranga) ldquoA comida feita na gordura de porco eacute mais
saborosa a gente jaacute acostumou com o sabor a couve feita no oacuteleo fica lisa na
gordura ela fica suculentardquo
A gordura eacute usada principalmente para refogar36 hortaliccedilas legumes e
feijatildeo Todos as famiacutelias apreciam a couve refogada na gorduraldquoDeus o livre
de comer uma verdura feita com oacuteleo natildeo fica gostoso do mesmo jeitordquo
Verdura eacute o termo utilizado pelos interlocutores para todos os produtos derivados
da horta inclusive os legumes Encontramos em Frieiro (1982) a explicaccedilatildeo
sobre essa heranccedila cultural
Eacute de recente data o uso de gorduras vegetais alimentiacutecias Antes natildeo era assim a gordura geralmente usada era a de toucinho a banha de porco Os dois alimentos de maior importacircncia para a gente mineira sempre foram o feijatildeo e o toucinho Feijatildeo eacute que escora a casa diz um ditado popular Sim e o toucinho daacute substacircncia ao feijatildeo podia agregar-se Sem a banha que o tempera seria comestiacutevel ldquoo feijatildeo nosso de cada diardquo A comida tradicional dos mineiros nada em banha de porco Dos assados e frituras de todos os guisados e ensopados das sopas dos molhos e farofas pinga a gordura em que satildeo preparados (FRIEIRO 1982 p 156)
Garcia (2013) discute a relaccedilatildeo de comportamentos culturais associados
agrave alimentaccedilatildeo afirmando que a heranccedila do gosto por certo tipo de comida e pela
forma de preparaccedilatildeo eacute responsaacutevel na maioria das vezes pela resistecircncia em
adotar praacuteticas novas e experimentar comidas diferentes e aceitar novos sabores
e texturas ao paladar tradicional Uma das razotildees para a couve permanecer
como verdura predileta do cotidiano natildeo eacute apenas por ser a hortaliccedila mais
resistente da horta mas principalmente pela sua preparaccedilatildeo combinada com a
gordura de porco Essa forma de preparaccedilatildeo compreende aquele ldquosistema
culinaacuteriordquo tratado por Poulain (2013 e 2014) e Fischler (1979 e 1995) que
envolvem regras determinantes (crenccedilas valores siacutembolos representaccedilotildees e
haacutebitos) na escolha preparo e consumo de alguns alimentos O que Sahlins
(2003) chama de ldquorazotildees culturaisrdquo que envolvem o haacutebito alimentar Essa
discussatildeo de sistema culinaacuterio se aplica tambeacutem a outras praacuteticas tradicionais
que fazem parte do grupo pesquisado como a tradiccedilatildeo de fazer as proacuteprias
quitandas mais consumidas
36 Refogar segundo Cacircmara Cascudo (2004 p 522) significa ldquoferver na gordurardquo
119
A estrateacutegia de quem natildeo tem essa criaccedilatildeo no siacutetio eacute comprar a gordura
produzida pelos vizinhos ou mesmo no accedilougue da cidade Eacute comum ocorrer o
abate em parceria familiar ou com a participaccedilatildeo de vizinhos proacuteximos com a
distribuiccedilatildeo entre eles das partes do animal mesmo porque para o abate satildeo
necessaacuterias pelo menos trecircs pessoas segundo a explicaccedilatildeo de Lola O sistema
de partilha no abate de suiacutenos eacute tradicional em muitas aacutereas rurais brasileiras e
uma heranccedila dos portugueses Moura (2013) em seu interessante livro sobre a
tradiccedilatildeo dos embutidos e da produccedilatildeo de suiacuteno caipira na regiatildeo de Traacutes-os-
Montes e Auto Douro em Portugal mostra que os procedimentos de criaccedilatildeo
matanccedila e distribuiccedilatildeo das carnes se assemelham muito agraves que ocorrem no meio
rural brasileiro Tambeacutem Cacircndido (1982) relata em sua pesquisa como se dava
o processo relativo agrave distribuiccedilatildeo da carne suiacutena e de caccedila entre os caipiras
paulistas
Segundo os velhos desde sempre eacute haacutebito ndash quase se diria ndash instituiccedilatildeo a oferta daqueles tipos de carne aos vizinhos imediatos que moram agrave vista ou constituem uma unidade vicinal Quando se mata um porco ou uma caccedila envia-se um pedaccedilo a cada vizinho () Do ponto de vista alimentar essa praacutetica funciona como uma forma de regularizaccedilatildeo do abastecimento caacuterneo jaacute que cada um mata um porco de tempos em tempos (CAcircNDIDO 1982 p 163-164)
Compreendo que este contexto de sociabilidade entre vizinhos eou
familiares que envolve tambeacutem doar ou receber uma parte do animal se
assemelha agrave relaccedilatildeo ldquodaacutediva-trocardquo discutida por Mauss (2003) como forma de
manter a sociabilidade os laccedilos e a dependecircncia reciacuteproca entre os grupos No
caso de vizinhos que ajudam na atividade quando aquele que recebeu vier a
matar o seu animal a reciprocidade ocorreraacute ou seja ele doaraacute ao outro vizinho
parte do animal O que tambeacutem se aproxima do que Cacircndido (1982) discute
sobre a informalidade e obrigaccedilatildeo moral que compotildee as relaccedilotildees de mutiratildeo no
meio rural
Mas haacute nesse sistema algo mais do que simplesmente uma troca de
favor como no entendimento de Mauss (2003) de que a daacutediva natildeo eacute meramente
uma retribuiccedilatildeo formal ou proveniente de um contrato verbal Ela se constitui em
uma relaccedilatildeo que envolve respeito e um tipo de acordo que eacute simboacutelico tanto
assim que a parte da carne a ser doada eacute escolhida pelo doador sem nenhum
acordo anterior
120
Apesar do sabor da gordura de porco ser preferido ao oacuteleo em todas as
famiacutelias em algumas esse consumo tem sido reduzido como nas famiacutelias de
Zefa e Armando e de Maria e Laeacutercio Nos dois casos haacute restriccedilotildees alimentares
para os filhos que satildeo transplantados renais37 Em funccedilatildeo disso os pais jaacute
aposentados optaram pela reduccedilatildeo do consumo de gordura de porco e outros
alimentos gordurosos Disseram que por um tempo tentaram acompanhar
totalmente a dieta dos filhos mas natildeo conseguiram sucesso por sentirem falta
tanto da gordura quanto da carne suiacutena Assim a comida tem sido preparada de
forma separada Como esse preparo separado eacute mais trabalhoso Zefa 67 anos
e o marido 75 anos continuam no esforccedilo de adaptaccedilatildeo ao consumo do oacuteleo
demonstrando solidariedade ao filho 42 anos cuja abstinecircncia alimentar tem
sido difiacutecil
Os outros dois casos de restriccedilatildeo agrave gordura de porco satildeo de mulheres
que demonstraram preocupaccedilatildeo com a sauacutede embora natildeo tenham apontado
nenhum problema especifico Relacionam o consumo da gordura como
prejudicial e em funccedilatildeo disso tambeacutem tecircm tentado reduzir o seu consumo Nilsa
(42 anos moradora de Satildeo Domingos em Porto Firme) justificou ldquoTodo mundo
fala que gordura de porco faz mal para a sauacutederdquo Na sua famiacutelia tem havido
resistecircncia por parte do marido que natildeo abre matildeo da carne de porco e da verdura
refogada na gordura Embora ela admita preferir o sabor da comida com a
gordura de porco acredita que para ter uma qualidade de vida melhor devem
abrir matildeo de seu consumo O marido discorda da esposa natildeo abrindo matildeo do
consumo da gordura e nem da carne de porco A diminuiccedilatildeo tem ocorrido com
dificuldade e tem gerado algum tipo de conflito sobre as escolhas alimentares
deste casal que mora sozinho pois os filhos estudam em outras cidades
O depoimento acima de Nilsa estaacute relacionado agraves divulgaccedilotildees sobre
sauacutede em programas de televisatildeo matinais que ela informou assistir de vez em
quando enquanto cuida dos afazeres da casa Informaccedilotildees sobre pesquisas de
alimentos e sobre sauacutede tecircm sido divulgadas frequentemente pelos meios de
comunicaccedilatildeo O risco de tais informaccedilotildees eacute confundir as pessoas quando natildeo
se faz uma reflexatildeo sobre o assunto Para o consumidor leigo o resultado de
37 Interessante a coincidecircncia de haver dois adultos jovens do sexo masculino com problemas renais e que
passaram por transplante Ambas famiacutelias pertencem agrave mesma comunidade mas natildeo haacute grau de parentesco entre eles
121
uma pesquisa divulgada em meios de comunicaccedilatildeo pode dar uma ideia
distorcida sobre o consumo de um alimento No caso de Nilsa ela demonstrou
considerar que o consumo de gordura de porco prejudica a sauacutede de sua famiacutelia
baseado no que ldquoescuta dizerrdquo Ainda assim houve um momento da conversa
em que ela ponderou criticamente ldquoAgora eu natildeo sei porque faz malnossos
pais e avoacutes a vida inteira comeram comida com gordura e natildeo sei de nenhum
deles que ficou doente por causa dissordquo
Em relaccedilatildeo agrave carne vermelha e a gordura principalmente o bacon e
outras carnes processadas a Organizaccedilatildeo Mundial de Sauacutede (OMS) acaba de
publicar o relatoacuterio do International Agency for Research on Cancer (IARC)38
sobre a associaccedilatildeo do consumo desses alimentos ao cacircncer de intestino O
resultado da pesquisa foi amplamente divulgado por jornais de televisatildeo e na
internet Eacute constante a divulgaccedilatildeo de novas pesquisas de alimentos associados
agrave sauacutede repassar esta informaccedilatildeo eacute funccedilatildeo da OMS como pondera Contreras
(2015) No entanto vaacuterios alimentos jaacute foram apontados como vilotildees da sauacutede
e tempos depois a partir de novas pesquisas deixaram de ser Em funccedilatildeo disso
Fischler (2015) denomina essa situaccedilatildeo como uma espeacutecie de cacofonia sobre
o tema da comida jaacute que o conhecimento cientiacutefico eacute dinacircmico e passiacutevel de
sofrer alteraccedilotildees e cita o exemplo do cafeacute que foi classificado como canceriacutegeno
para depois ser considerado como siacutembolo de longevidade
Profissionais de sauacutede e socioacutelogos da alimentaccedilatildeo tecircm se manifestado
publicamente a respeito da divulgaccedilatildeo recente sobre a carne vermelha Alertam
para o risco que uma leitura apressada sobre o assunto possa gerar ao comedor
fazendo com que abandone por completo o consumo de carne e com isso
apresente problemas de outra natureza por carecircncia de proteiacutenas por exemplo
Destacam a necessidade de relativizar e discutir mais sobre o quanto se come
de um determinado alimento O que natildeo se deve eacute ldquodemonizar alimentosrdquo
pondera Rivera (2015) para natildeo gerar pacircnico desnecessaacuterio nos consumidores
ldquoEs necesaria una estrategia de comunicacioacuten que explique bien las
conclusiones de un informe sin caer en el dramardquo esclarece o antropoacutelogo Xavier
Medina (2015) Para a antropoacuteloga Vilagrave (2015) falar dos riscos agrave sauacutede causado
por alimentos que fazem parte da cultura alimentar de boa parte da populaccedilatildeo
38 Disponiacutevel em httpwwwiarcfrenmedia-centrepr2015pdfspr240_Spdf Acesso em 28 out 2015
122
mundial eacute assunto que merece muito cuidado Assim defende que o mais
interessante seria divulgar que as pessoas sem quadro de doenccedilas podem
comer de tudo mas sempre com moderaccedilatildeo
Outra famiacutelia entrevistada a de Carmem (48 anos moradora de Jacuba
em Porto Firme) tem optado por reduzir o consumo de vaacuterios alimentos aos
quais sempre esteve habituada em funccedilatildeo da dieta de emagrecimento por
recomendaccedilatildeo profissional Assim abriu matildeo da carne e da gordura de porco
de alimentos que contenham gluacuteten do leite de vaca e seus derivados Como no
caso anterior seu marido tambeacutem natildeo adotou a mesma dieta A diferenccedila eacute que
ela prepara separadamente a comida do casal39 No dia a dia Carmem tem uma
atividade de trabalho pesada cuida da casa da horta prepara todas as
refeiccedilotildees tira leite lava o curral varre o quintal em torno da casa ndash atividade que
estava fazendo quando cheguei em sua casa pela manhatilde Ela reclama que sente
fome mas ainda assim estaacute resistindo e seguindo a restriccedilatildeo alimentar
Eu agora soacute posso tomar leite de soja com biscoito de polvilho de manhatilde cedo ai eu tomo isso mas eu tenho que tirar leite muito cedo quando eu acabo eu jaacute estou morrendo de fome aquilo natildeo sustenta ai eu vou comer a mesma coisa de novo Natildeo eu faccedilo um mingau de fubaacute natildeo fica gostoso como como o com leite de vaca mas ajuda a esperar o almoccedilo (Carmem 48 anos moradora de Jacuba em Porto Firme MG 2015)
Nossa conversa continuou na cozinha onde a observei preparando as
comidas separadas Almoccedilamos agraves 1130 Comi a mesma comida feita para o
marido arroz feijatildeo couve carne de porco cozida e meio frita angu e moranga
Carmem comeu moranga com feijatildeo que cozinhou separadamente sem
gordura e sem oacuteleo temperados com sal e alho ovo frito e couve refogada no
oacuteleo de soja
Carmem demonstrou ansiedade em relaccedilatildeo ao que comer ao longo do
dia sendo que parte dessa preocupaccedilatildeo estaacute presente em seu depoimento
acima A outra ansiedade foi demonstrada pela dificuldade em obter resultados
satisfatoacuterios em relaccedilatildeo agrave perda de peso Ela precisa fazer a dieta mas ao
mesmo tempo precisa se sentir ldquoforterdquo para realizar os trabalhos no siacutetio A
situaccedilatildeo vivenciada por ela estaacute relacionada agrave discussatildeo feita por Arnaiz (2005) e
Fischler (1995 e 2015) sobre a ansiedade do comedor contemporacircneo Para os
39 Seus filhos tambeacutem estudam e moram em outras cidades
123
autores eacute cada vez mais difiacutecil saber o que se estaacute comendo e eacute tambeacutem mais
complexo fazer escolhas alimentares No processo de escolha o alimento
precisa ser de boa aparecircncia e qualidade ter baixas calorias natildeo fazer mal agrave
sauacutede natildeo ser caro Aleacutem disso o autor menciona a necessidade de
identificaccedilatildeo do alimento se identificar com a opccedilatildeo moral do comedor por
exemplo seu cultivo natildeo deve ser prejudicial ao meio ambiente natildeo deve utilizar
matildeo de obra escrava etc Tudo isso gera ansiedade na escolha do que comer
Dessa forma Fischler (1995 e 2015) defende que uma nova patologia estaacute
surgindo para aquelas pessoas obcecadas por dieta a ortorexia nervosa que
tem como uma de suas caracteriacutesticas o fato de uma pessoa passar mais de trecircs
horas diaacuterias preocupada com o que vai comer40
Haacute ainda o caso da famiacutelia de Joatildeo e Marli (81 e 72 anos
respectivamente aposentados moradores de Aacutegua Lima em Porto Firme) Em
seu siacutetio a atividade leiteira gera renda para o casal mas sobretudo para o filho
que administra a atividade e mora na cidade A famiacutelia optou por abandonar a
criaccedilatildeo extensiva de suiacutenos porque escutava falar ldquoque a gordura faz mal ao
coraccedilatildeordquo Em funccedilatildeo disso o consumo foi reduzido acreditando natildeo compensar
manter a criaccedilatildeo Aleacutem disso segundo Joatildeo antes havia muitos filhos em casa
para alimentar assim ldquoengordar o porcordquo era mais barato do que comprar a
carne e a gordura Embora tenham reduzido o uso da gordura de porco natildeo a
retiraram da dieta por completo Compram no accedilougue e ela continua sendo
usada dois dias na semana aproximadamente Como criam gado costuma-se
matar um animal e assim o consumo de carne de boi natildeo eacute raro nesta famiacutelia
como o eacute nas outras O depoimento de Joatildeo a seguir chama a atenccedilatildeo para o
fubaacute assunto que seraacute discutido no toacutepico especiacutefico mais agrave frente nesse
trabalho e essa parte de seu depoimento seraacute retomado na discussatildeo A
dificuldade de acessar o uacutenico moinho drsquoaacutegua existente na regiatildeo tambeacutem foi um
motivo que levou a famiacutelia a desistir da criaccedilatildeo dos suiacutenos
Eu engordava porco mas os meacutedicos estatildeo proibindo a gente de comer gordura ai nem engordo mais porco natildeoquando daacute vontade a gente compra um toucinho a carne compra sempre Tambeacutem natildeo compensa engordar natildeo porque o moinho de fazer fubaacute pra porco eacute longe daqui e esses fubaacutes moiacutedos nessas maquinas de hoje (eleacutetrica) nem os porcos gostam muito sabe a gente ateacute que tem um moinho
40 Mais informaccedilotildees sobre esse assunto ver Martins et al (2011)
124
bem pequeno aqui mas eacute soacute pra moer o milho para gente fazer angu e broa (Joatildeo morador de Aacutegua Limpa em Porto Firme MG 2015)
As situaccedilotildees das cinco famiacutelias citadas acima sinalizam o quanto mudar
o haacutebito alimentar e abrir matildeo do costume e do gosto aprendido eacute uma tarefa
difiacutecil mesmo que o apelo para isso seja a sauacutede principalmente quando o
alimento em questatildeo estaacute relacionado a uma atividade produtiva que tambeacutem
possui um apego tradicional como eacute o caso do porco caipira Para Bourdieu
(2007) formaccedilatildeo do gosto e a construccedilatildeo do haacutebito alimentar que eacute algo
aprendido na convivecircncia social sendo a famiacutelia o principal grupo de
aprendizado De Garine (1987) discute que em funccedilatildeo do haacutebito alimentar estar
ligado aos costumes herdados de geraccedilotildees passadas a mudanccedila de uma
alimentaccedilatildeo mais tradicional para uma industrializada natildeo ocorre facilmente
tampouco se daacute de maneira raacutepida Eacute um processo lento e que encontra
resistecircncia do comedor o quanto for possiacutevel
O oacuteleo vegetal eacute um desses exemplos de resistecircncia mas que aos
poucos se insere nas praacuteticas alimentares das famiacutelias Seu uso estaacute presente
em quase todas as casas pesquisadas exceto na famiacutelia de Eliana e Saturnino
que natildeo se adaptaram ao seu consumo para o preparo de nenhum alimento que
consomem no dia a dia No restante das famiacutelias o oacuteleo tem sido usado com
parcimocircnia principalmente para algumas frituras conforme os relatos a seguir
ldquoPorque o oacuteleo deixa a batata mais bonita e mais sequinha o peixe tambeacutem fica
melhor mais crocanterdquo (Margarida 74 anos moradora de Xopotoacute em Presidente
Bernardes) ldquoo arroz fica mais soltordquo (Luisa 57 anos moradora de Bom Retiro
em Porto Firme) ldquonatildeo uso mais gordura para fritar batata doce natildeo soacute oacuteleo
ateacute para lavar a panela eacute mais faacutecilrdquo (Juliana 48 anos moradora de Tatu em
Piranga)
Apesar da preferecircncia pela gordura suiacutena o oacuteleo vegetal tem dividido
espaccedilo com a gordura de porco no sistema culinaacuterio das famiacutelias Nestes casos
eacute um exemplo da possibilidade de introduccedilatildeo de um produto industrializado na
alimentaccedilatildeo sem que tenha sido necessaacuterio abrir matildeo radicalmente de um
produto tradicional excetuados os casos onde haacute restriccedilatildeo alimentar como jaacute
citado
O apego ao sabor e agrave crenccedila na capacidade de sustentaccedilatildeo alimentar
gerada pelo uso da gordura de porco faz com que seu consumo permaneccedila
125
como prioritaacuterio nas famiacutelias Poreacutem novos haacutebitos podem ser aprendidos
conforme argumenta Nevot (2011) Para este autor as mudanccedilas de haacutebitos
alimentares na sociedade atual satildeo permanentes Quanto mais novidades
alimentares emergem com novas tecnologias de produccedilatildeo novas informaccedilotildees
sobre os alimentos satildeo fornecidas ampliando a possibilidade de mudanccedilas de
haacutebitos Surge a necessidade de se aprender cada vez mais a escolher o que
comer Se por um lado herdamos haacutebitos alimentares as circunstacircncias nos
fazem adquirir outros novos
Por outro lado o excesso de novidades alimentares faz com que alguns
alimentos tradicionais sejam colocados em questatildeo gerando a anguacutestia
alimentar do comedor contemporacircneo apontada por Fischler (1995 2011 e
2015) No caso da gordura de porco de um lado estaacute um alimento habitual que
eacute heranccedila cultural tradicional e repassado oralmente por avoacutes e pais um
alimento considerado importante ldquoforterdquo de paladar agradaacutevel e que natildeo era
visto como prejudicial agrave sauacutede dos seus antepassados De outro lado existe a
preocupaccedilatildeo gerada nos tempos atuais que indica o mesmo alimento como
maleacutefico agrave sauacutede e portanto a ser evitado e substituiacutedo por um produto de fonte
vegetal e industrializado o oacuteleo
No grupo pesquisado a questatildeo relacionada agrave origem do oacuteleo vegetal
natildeo surgiu como preocupaccedilatildeo Nenhum interlocutor tocou no assunto da
transgenia associado a esse produto por exemplo Apenas destacaram como
pouco saudaacutevel o consumo da gordura do porco Por outro lado a opccedilatildeo da
maioria das famiacutelias em continuar a consumir a gordura de porco sinaliza uma
influecircncia mais acentuada dos fatores culturais em relaccedilatildeo aos fatores
nutricionais e cientiacuteficos na escolha dos alimentos questatildeo discutida por Garcia
(2009) e Mintz (2001)
511 Outras comidas ldquofortesrdquo
No capiacutetulo 2 utilizei Frieiro (1982) e Zemella (1951) para destacar a
importacircncia histoacuterica da criaccedilatildeo dos suiacutenos no quintal das casas com objetivo
de mitigar o problema da fome surgida durante a fase da mineraccedilatildeo em Minas
Gerais Surgiu daiacute o haacutebito de consumir a carne a gordura e o uso de outras
partes do animal adicionadas ao feijatildeo que se constituiacutea em alimento de grande
126
valor energeacutetico e proteico muito usado em funccedilatildeo disso como alimento dos
escravos Dessa mistura surgiu o que hoje conhecemos como feijoada O feijatildeo
foi tatildeo importante quanto o milho a mandioca a couve a gordura o toucinho e
o arroz para a manutenccedilatildeo das atividades mineradoras
No cotidiano alimentar das famiacutelias pesquisas eacute haacutebito cozinhar o feijatildeo
com toucinho que eacute tambeacutem considerado como alimento ldquoforterdquo O feijatildeo eacute item
diaacuterio nas refeiccedilotildees e seu consumo e cultivo tem laccedilos de heranccedila cultural e
histoacuterica assim como o suiacuteno caipira Apenas trecircs famiacutelias natildeo cultivam o feijatildeo
Uma parte do que eacute produzido eacute comercializada por seis famiacutelias nas demais
em 31 delas a produccedilatildeo destina-se apenas ao autoconsumo Durante a
pesquisa de campo algumas famiacutelias estavam comeccedilando a fase da colheita e
pude observar algumas pessoas no trabalho homens no geral Eacute um trabalho
difiacutecil pois eacute feita no modo tradicional arrancados agrave matildeo O trabalho das
mulheres se daacute principalmente na hora de bater e limpar o produto que seraacute
armazenado no paiol
Para aleacutem da gordura da carne suiacutena e do feijatildeo outros alimentos satildeo
considerados como sendo ldquofortesrdquo para manter o organismo bem nutrido para o
trabalho e satildeo consumidos com muita frequecircncia Satildeo eles o arroz a batata
doce a mandioca o angu e as farinhas de milho e de mandioca
O arroz consumido diariamente natildeo eacute mais produzido pelas famiacutelias
pela dificuldade que seu cultivo tem representado nos uacuteltimos anos segundo os
depoimentos de alguns dos interlocutores
Noacutes colhiacuteamos muito arroz natildeo precisava comprar mas jaacute tem uns cinco anos que a gente parou de mexer com arroz porque fica muito caro produzir do que comprar e tem os passarinhos que atacam a plantaccedilatildeo de arroz um passarinho preto que a gente chama de chupin A gente natildeo pode fazer nada contra eles porque eacute proibido mas quando chega a hora da colheita natildeo tem mais quase nada nos cachinhos de arroz (Lucio 46 anos morador de Bom Jesus do Bacalhau em Piranga MG 2015)
Ateacute uns anos atraacutes a gente plantava arroz socava no pilatildeo soacute para o consumo da famiacuteliamas comeccedilou a dar problema na uacuteltima vez que plantamos quando chegou a eacutepoca de cachear veio o sol muito forte ai natildeo saiu o cachoai resolvemos acabar com a plantaccedilatildeo (Onofre 67 anos morador de Mestre Campos em Piranga MG 2015)
Os entrevistados mencionaram uma diferenccedila no sabor e no aspecto do
arroz industrializado em comparaccedilatildeo ao que cultivavam como mostra o
depoimento de Mafalda (57 anos moradora de Ribeiratildeo em Presidente
127
Bernardes) a seguir Destacaram que o aspecto do tradicional que eles
cultivavam era mais grosseiro e amarelado e que o sabor era diferente aleacutem de
ser mais macio e poroso o que fazia com que o tempero impregnasse melhor
Por outro lado disseram que o industrializado leva menos tempo para ser cozido
Apesar de preferirem o arroz tradicional adquirir arroz no mercado atualmente
eacute mais interessante do que cultivaacute-lo levando-se em consideraccedilatildeo o custo-
benefiacutecio Mais uma vez aparecem aqui aspectos que pesam na escolha
alimentar semelhante ao que acontece com a escolha do oacuteleo vegetal e da
gordura de porco Mafalda expotildee em seu depoimento os aspectos que
considera positivos do arroz atual industrializado (ficar soltinho com a cor clara)
e os negativos (menos saboroso demora para absorver o tempero natildeo daacute a
ldquoligardquo considerada necessaacuteria na elaboraccedilatildeo do arroz doce)
Tem bastante diferenccedila O arroz que a gente colhia ele nunca ficava clarinho sempre tinhas uns gratildeos amarelos no meio poreacutem ele era um arroz mais gostoso Ele era mais macio e pegava mais o tempero Ele era melhor tambeacutem para fazer arroz doce porque ele dava mais liga Esses comprados natildeo daacute liga entatildeo o arroz de hoje natildeo eacute igual ao que a gente fazia antes Mas ele tambeacutem natildeo ficava soltinho na panela como o arroz que a gente refoga hoje Antigamente para ele ficar soltinho a gente tinha que espremer um limatildeo Hoje ficou mais faacutecil pra gente fazer (Mafalda moradora de Ribeiratildeo em Presidente Bernardes MG 2015)
Os demais alimentos considerados ldquofortesrdquo como a mandioca a batata
doce e o milho satildeo produzidos nos siacutetios e satildeo consumidos quase que
cotidianamente seja no cafeacute da manhatilde no almoccedilo e no jantar
A batata doce eacute quase sempre frita ou assada na brasa do fogatildeo a lenha
Usa-se consumi-la pela manhatilde acompanhada de cafeacute41 O mesmo ocorre em
relaccedilatildeo agrave mandioca Mas para consumo no almoccedilo e jantar o mais comum eacute
servi-la cozida ou ensopada com carne
O polvilho derivado da mandioca tambeacutem natildeo eacute mais produzido pelas
famiacutelias em todas elas esse produto agora eacute comprado O polvilho eacute usado
principalmente para fazer brevidade um tipo de bolo que eacute elaborado
esporadicamente Observei que em todas as casas haacute o consumo do biscoito de
polvilho assado poreacutem eacute tambeacutem comprado no mercado Agraves vezes se faz o
biscoito de polvilho frito mas as mulheres alegam que por espirrar muito durante
41 O cafeacute eacute feito em aacutegua adoccedilada e passado no coador de pano Natildeo vi o uso de coadores de papel em
nenhuma das casas
128
a fritura e ser bom para comer apenas por algumas horas apoacutes o preparo ele
natildeo eacute mais habitual como no passado Foi um tempo segundo as mulheres em
que sempre havia muita gente para comer e os produtos industrializados eram
parcos e caros no mercado Aleacutem disso o acesso aos mercados era mais difiacutecil
tornando necessaacuterio produzir praticamente tudo o que era destinado a
alimentaccedilatildeo das famiacutelias Os depoimentos a seguir de Anita (71 anos moradora
de Manja em Piranga) e de Lena (70 anos moradora de Ribeiratildeo em Presidente
Bernardes) tambeacutem sinalizam assim como ocorreu com o arroz que em razatildeo
da praticidade alguns modos tradicionais satildeo substituiacutedas ou passam a ser
retomados apenas em momentos especiacuteficos como naqueles que envolvem
reuniatildeo familiar e um grupo maior de pessoas nas casas Lena menciona o fato
da reduccedilatildeo do tamanho das famiacutelias quando comparadas com as famiacutelias dos
antepassados Outros entrevistados fizeram a observaccedilatildeo de que ldquoantes havia
muita gente na roccedilardquo ldquoantigamente as famiacutelias eram maioresrdquo A reduccedilatildeo do
nuacutemero de pessoas nas famiacutelias ndash na minha pesquisa o tamanho meacutedio eacute 36
pessoas por famiacutelia ndash interfere nas praacuteticas alimentares seja haacute menos pessoas
para se alimentar no dia a dia seja pelo fato de natildeo haver quem ajude na cozinha
e na elaboraccedilatildeo das quitandas Motivos que geram um certo tipo de desacircnimo
em investir em pratos mais trabalhosos que eram feitos e socializados nos
grupos familiares de antigamente
ldquoNa casa da minha matildee fazia muito polvilho Naquela eacutepoca todo mundo fazia muita brevidade agora ficou tatildeo faacutecil comprar o polvilho mas daacute muito trabalho fazer o biscoito frito e o assado natildeo eacute caro no mercado quase todo mundo prefere comprarrdquo (Anita moradora de Manja Piranga MG 2015)
ldquoEu fazia muito biscoito de polvilho frito quando os meninos eram pequenos eles gostavam Mas hoje eu quase natildeo faccedilo maissoacute se eles quando estatildeo aqui me pedem ai eu faccedilo Soacute para noacutes dois a gente compra esse do mercado mesmordquo (Lena moradora de Ribeiratildeo em Presidente Bernardes MG 2015)
Aleacutem do polvilho obtido da mandioca o milho e os seus derivados fazem
parte da cultura alimentar mineira como foi mostrado no capiacutetulo 2 a partir dos
apontamentos de Frieiro (1982) Zemella (1951) Meneses (2007) Arruda
(1999) Cacircmara Cascudo (2004) e Abdala (2007) O milho nesse periacuteodo foi
considerado mais importante do que a mandioca em funccedilatildeo de ser muito usado
tambeacutem para alimentaccedilatildeo animal conforme Meneses (2007) Com o passar dos
anos o milho assumiu lugar mais destacado do que a mandioca na culinaacuteria
129
mineira conforme Frieiro (1982) e Abdala (2007) A regiatildeo da pesquisa como jaacute
visto no referido capiacutetulo eacute uma das primeiras a serem ocupadas por ocasiatildeo da
mineraccedilatildeo em Minas Gerais Isso pode ter influenciado a permanecircncia da
tradiccedilatildeo do consumo do fubaacute que como mostrarei a seguir tem presenccedila
marcante na dieta das famiacutelias
52 Consideraccedilotildees sobre a importacircncia do milho e do fubaacute
Oraccedilatildeo ao Milho (Cora Coralina)
Fui o angu pesado e constante do escravo na exaustatildeo do eito Sou a broa grosseira e modesta do pequeno sitiante Sou a farinha econocircmica do proprietaacuterio sou a polenta do imigrante e a amiga dos que comeccedilam a vida em terra estranha Alimento de porcos e do triste mu de carga o que me planta natildeo levanta comeacutercio nem avantaja dinheiro Sou apenas a fartura generosa e despreocupada dos paioacuteis Sou o cocho abastecido donde rumina o gado Sou o canto festivo dos galos na gloacuteria do dia que amanhece Sou o cacarejo alegre das poedeiras agrave volta dos ninhos Sou a pobreza vegetal agradecida a voacutes Senhor que me fizestes necessaacuterio e humilde Sou o milho
Com exceccedilatildeo das famiacutelias de Antocircnio e Marieta e de Marilia todas as
outras cultivam o milho A produccedilatildeo eacute pequena e destinada agrave alimentaccedilatildeo
animal mas tambeacutem agrave elaboraccedilatildeo de fubaacute produzido em todos os siacutetios onde a
planta eacute cultivada Apenas uma famiacutelia possui moinho movido agrave aacutegua o restante
utiliza moinho eleacutetrico Na ocasiatildeo da pesquisa o moinho drsquoaacutegua era uma
raridade na aacuterea rural pesquisada segundo informaccedilatildeo dos entrevistados Tive
a oportunidade de ver um moinho muito antigo em funcionamento no siacutetio de
Manoel e Donana (72 e 54 anos respectivamente moradores de Limeira em
Porto Firme) (Figura 7) Este moinho tem sua estrutura feita em madeira e jaacute
apresentava sinais de sua idade com algumas peccedilas presas com arame O
trabalho eacute perfeito poreacutem lento Pertenceu aos pais de Manoel foi muito utilizado
no passado e permanece em uso para autoconsumo familiar O moinho se
localiza na margem da estrada por onde passa o coacuterrego A porta de acesso fica
130
constantemente entreaberta mas nunca houve roubo de fubaacute ou depredaccedilatildeo do
local
(a) (b)
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 7 ndash Moinho drsquoaacutegua no siacutetio de Manoel e Donana na Comunidade Limeira Porto Firme
A Figura 8 mostra o moinho eleacutetrico adotado atualmente pelas famiacutelias
O moinho da figura pertence agrave famiacutelia de Nanaacute e Custoacutedio na comunidade
Xopotoacute em Piranga Muito diferente do anterior executa o trabalho com maior
rapidez do que o de moinho drsquoaacutegua poreacutem com qualidade inferior como
apontado pelos entrevistados Neste tipo de moinho natildeo pode observar o
moinho sendo feito jaacute que ele segue direto para o pequeno silo acoplado agrave
maacutequina
Apesar da preferecircncia pelo fubaacute feito no moinho drsquoaacutegua meus
interlocutores afirmaram ter sido necessaacuteria a adaptaccedilatildeo ao moinho eleacutetrico que
se tornou mais usual principalmente em funccedilatildeo da reduccedilatildeo de aacutegua disponiacutevel
nos uacuteltimos anos Mencionaram ainda outro fator que consideram importante
para a reduccedilatildeo da utilizaccedilatildeo do moinho drsquoaacutegua Segundo eles as pessoas mais
velhas se importavam mais em manter os moinhos drsquoaacutegua por ser considerada
uma praacutetica tradicional mas quando os moinhos eleacutetricos surgiram o apelo agrave
praticidade falou mais alto e o moinho drsquoaacutegua foi perdendo espaccedilo nos siacutetios
administrados pelas geraccedilotildees mais novas
131
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 8 ndash Moinho eleacutetrico no siacutetio de Nanaacute e Custoacutedio na Comunidade Xopotoacute em Piranga
Antigamente muita gente tinha moinho drsquoaacutegua aqui mesmo tinham uns 3 ou 4 numa distacircncia de 5 Km por aquifoi acabando os velhos foram morrendo e os mais novos natildeo quiseram saber de mexer com isso natildeo (Alonso 82 anos morador de Xopotoacute em Presidente Bernardes MG 2015)
Os moinhos tocados a aacutegua ficam quase sempre mais longe da casa perto de onde corre uma aacutegua neacute O eleacutetrico pode ficar em qualquer lugar debaixo de uma coberta ou perto do paiol daacute menos trabalho e de primeiro tinha muita gente na roccedila natildeo tinha problema ter muito serviccedilo mas hoje dessa gente nova natildeo tem quase ningueacutem mais aqui (Francisco 64 anos morador de Satildeo Domingos em Porto Firme MG 2015)
A reduccedilatildeo no uso desses moinhos comeccedilou a ocorrer haacute
aproximadamente 15 anos quando ainda era possiacutevel encontrar mais facilmente
o ldquofubaacute de moinho drsquoagua para comprar Se por um lado a adoccedilatildeo do moinho
eleacutetrico facilitou o trabalho por outro o fubaacute produzido por ele sofreu alteraccedilatildeo
na textura e sabor Joatildeo (81 anos morador de Aacutegua Limpa em Porto Firme)
pondera que o fubaacute originado do moinho eleacutetrico ldquonatildeo agrada nem aos animaisrdquo
Segundo os depoimentos o fubaacute de moinho drsquoaacutegua era fino e mais
uacutemido A diferenccedila para o produto do moinho eleacutetrico eacute que ele produz um fubaacute
mais grosso e ressecado Essas caracteriacutesticas alteraram o sabor e a textura de
dois alimentos muito importantes na culinaacuteria da regiatildeo pesquisada a broa e o
132
angu Segundo as mulheres ldquoa broa de antes tinha mais ligardquo Assim para
melhorar sua textura a broa que era elaborada de puro fubaacute passou a ter a
adiccedilatildeo de uma parte de farinha de trigo
As discussotildees em torno das mudanccedilas ocasionadas no fubaacute foram
longas e contaram com participaccedilatildeo interessada de muitos homens que
culturalmente natildeo costumam a discutir assuntos culinaacuterios Talvez isso se
explique pelo fato de os produtos derivados do fubaacute serem tatildeo importantes na
alimentaccedilatildeo cotidiana de todas as famiacutelias e por ser utilizado uma maacutequina para
produzi-lo objeto considerado culturalmente como de domiacutenio masculino Em
funccedilatildeo da importacircncia desses alimentos considero interessante adicionar um
nuacutemero maior de depoimentos mesmo ciente de que em um vieacutes etnograacutefico
deve-se tomar cuidado com o excesso de depoimentos em que estejam
evidenciadas ideias semelhantes conforme observaccedilatildeo feita por Peirano (1995)
() pena que hoje quase natildeo acha mais fubaacute de moinho drsquoaacutegua o fubaacute era fininho e dava uma broa maciahoje as maacutequinas quase que torram o fubaacute A broa fica mais ou menos neacute Eu faccedilo uma broinha com rapadura que ficava muito deliciosa mesmo era quando feita com o fubaacute fino (Neuzeli 63 anos moradora de Vinte Alqueires em Porto Firme MG 2015)
A broa feita com fubaacute do moinho eleacutetrico fica muito solta o sabor da comida mudou muito taacute tudo muito mudado em tudo na roccedila (Vanilda 55 anos moradora de Mestre Campos em Piranga MG 2015)
Por ser raridade o fubaacute produzido no moinho drsquoaacutegua tem ganhado
valorizaccedilatildeo no mercado Encontrado agrave venda apenas nos mercados de produtos
artesanais o seu preccedilo eacute superior ao fubaacute industrializado Poucos produtores
colocam o produto agrave venda pois como a produccedilatildeo eacute pequena ela objetiva
atender agraves necessidades das famiacutelias como o caso de Manoel e Donana Ter
um moinho drsquoaacutegua na propriedade no periacuteodo colonial significava haver ali um
grande uso do fubaacute para diferentes funccedilotildees no local Era considerado na eacutepoca
um equipamento sofisticado segundo Andrade (2014) Atualmente ele eacute visto
como ultrapassado de trabalho lento e atividade trabalhosa perdendo seu
espaccedilo para a tecnologia oferecida pelo moinho eleacutetrico A relaccedilatildeo tradicional e
moderno referente aos moinhos reportam agraves diferentes geraccedilotildees no grupo
pesquisado Em vaacuterios depoimentos foi constante a associaccedilatildeo dos moinhos
drsquoaacutegua como objetos de desinteresse das geraccedilotildees mais novas Assim o
produto gerado pelo moinho tradicional apesar de ser preferido em termos de
133
sabor e textura natildeo eacute um argumento forte o suficiente para que seu uso se
mantenha sob os cuidados dos mais jovens
Ao tratar sobre as substituiccedilotildees dos equipamentos modernos pelos
tradicionais no preparo dos alimentos Giard (2012) discute que a mudanccedila natildeo
se daacute apenas pela substituiccedilatildeo do aparelho ou utensiacutelio mas tambeacutem da relaccedilatildeo
instrumental entre o utilizador o objeto utilizado O moinho dacuteaacutegua eacute mais
trabalhoso de ser utilizado porque se localizava distante das casas como o
exemplo daquele da famiacutelia que visitei Eacute preciso controlar o tempo e fazecirc-lo
parar de funcionar manualmente diferente do moinho eleacutetrico que desliga
sozinho Aleacutem disso a sua produccedilatildeo eacute lenta produz-se muito menos fubaacute no
moinho drsquoaacutegua do que no moinho eleacutetrico no mesmo espaccedilo de tempo Na
contemporaneidade em uma sociedade liacutequido-moderna adaptar-se agraves novas
tecnologias eacute uma forma de natildeo perder tempo como reflete Bauman (2009)
Para Giard (2012) algumas mudanccedilas nas praacuteticas alimentares satildeo inevitaacuteveis
e para usufruir as vantagens de uma cultura material eacute preciso estar pronto para
lidar com seus inconvenientes Em alguns casos a convivecircncia entre uma
praacutetica tradicional e uma moderna eacute possiacutevel mas nem sempre No caso do fubaacute
do moinho tradicional e do eleacutetrico por exemplo natildeo haacute alternativa Eacute preciso
fazer a escolha No caso do fubaacute produzido nos dois tipos de moinhos a
lembranccedila do produto tradicional ainda estaacute na memoacuteria inclusive a do paladar
como mostra a fala de Jonas
Fubaacute de moinho drsquoaacutegua eacute coisa rara demaisquando eu falo chego a sentir o gosto do bolo feito de fubaacute de antigamente e angu o angu de fubaacute de moinho drsquoaacutegua era alaranjado assim meio avermelhado hoje ele fica branco (Jonas 53 anos morador da comunidade Satildeo Domingos em Porto Firme MG 2015)
Sobre a ligaccedilatildeo entre memoacuteria e tradiccedilatildeo Giddens (2012) citando
Halbwachs (1992 p 100) diz que ldquoo passado desmorona mas soacute desvanece
na aparecircncia pois continua a existir no inconscienterdquo As observaccedilotildees sobre o
passado em que existia o moinho drsquoaacutegua foram carregadas de memoacuterias
lembranccedilas de sabores e por que natildeo de idealizaccedilatildeo Um passado que para
meus interlocutores se opotildee ao presente em vaacuterios aspectos dentre eles o
alimentar o artesanal versus o industrial ou seja ou moinho drsquoaacutegua versus o
moinho eleacutetrico Identificar e destacar a comida e os modos de fazer do passado
como no depoimento anterior de Jonas eacute um exemplo dos momentos em que
134
somos visitados pelos cheiros e sabores do passado discutido por Giard (2012)
sobre a memoacuteria afetiva e do quanto o presente e o passado se entrelaccedilam no
imaginaacuterio das pessoas quando se trata de falar sobre comida Para Moulin
(1975 apud GIARD 2012) o tipo de comida preferida de uma pessoa eacute sempre
o mesmo ou muito semelhante agravequele dos pais
Em suma noacutes comemos o que nossa matildee nos ensinou a comer Gostamos daquilo que ela gostava do doce ou do salgado da geleia de manhatilde ou dos cereais do chaacute ou do cafeacute de tal forma que eacute mais loacutegico acreditar que comemos nossas lembranccedilas as mais seguras temperadas de ternuras e de ritos que marcaram nossa primeira infacircncia (MOULIN apud GIARD 2012 p 251)
Depoimentos semelhantes agravequele dado por Vanilda sobre as mudanccedilas
relacionadas agrave comida ldquoo sabor da comida mudou muito estaacute tudo muito
mudado em tudo na roccedilardquo me conduziam a perguntar O que mudou na comida
As respostas dos interlocutores foram no sentido de apontar aqueles alimentos
que eram comuns para eles no passado na infacircncia e juventude e que jaacute natildeo
satildeo mais facilmente encontrados Aleacutem da gordura animal que jaacute foi discutida o
fubaacute tambeacutem permanece no cotidiano Mesmo natildeo sendo mais aquele preferido
produzido no moinho drsquoaacutegua ainda continua presente em vaacuterias elaboraccedilotildees de
quitandas principalmente na broa e no angu alimento que eacute consumido
diariamente pelas famiacutelias
O angu mineiro possui uma mistura simples fubaacute e aacutegua No capiacutetulo 2
mostrei que esse alimento natildeo usava sal pois era um produto raro na regiatildeo
mineradora e portanto caro
Outra maneira de consumir o angu aleacutem daquela servida em almoccedilo e
jantar foi apontada pelas famiacutelias como sendo muito apreciada pelos mais
velhos Eacute o angu adicionado ao leite e sal formando um mingau grosso
geralmente se comia assim na merenda usando a sobra do angu
Antigamente a merenda mais comumisso quando eu ainda era solteira era leite com angu no leite quente ou frio agraves vezes quando me daacute saudade de comer ai eu faccedilo quando a gente era crianccedila tinha sempre (Mercecircs 41 anos moradora de Bom Jesus do Bacalhau em Piranga MG 2015)
O curau doce agrave base de milho foi citado como uma iguaria feita em dias
festivos como no Natal O mingau salgado que tambeacutem eacute a base de fubaacute eacute muito
consumido principalmente em dias frios Trata-se do ldquomingau de couverdquo ou
135
ldquobambaacute de couverdquo Este prato eacute assim como a canjiquinha de milho um dos
caldos preferidos
A canjiquinha e o mingau de couve a gente faz muito aquimas quando estaacute muito calor natildeo neacute Porque eacute para comer bem quentinho que eacute gostoso eu tambeacutem faccedilo quando a comida do almoccedilo eacute pouca para o jantar ai a gente costuma jantar uma sopa coloca muita couve e cebolinha vocecirc natildeo conhece essas comidas natildeo neacute42 (Selma 68 anos moradora de Tatu em Piranga MG 2015)
Outro derivado do milho que jaacute foi muito consumido mas que raramente
eacute elaborado hoje eacute o cuscuz doce agrave base de fubaacute accediluacutecar aacutegua e queijo43 Esse
tipo de cuscuz segundo ele pode ser comido puro com cafeacute ou com leite Um
doce que segundo os interlocutores pode ser comido com colher por ter a
consistecircncia de uma farofa grossa Apesar de ser doce ele possui queijo na
mistura e que tambeacutem era preferencialmente consumido nas merendas
Geralmente eacute feito em uma panela proacutepria o cuscuzeiro mas as mulheres
disseram que nem todos tinham o cuscuzeiro por isso se fazia em uma panela
dentro de outra com aacutegua semelhante agrave teacutecnica do banho maria O cuscuz
salgado natildeo foi citado e quando perguntei sobre ele disseram natildeo ser conhecido
na regiatildeo
Antocircnio 78 anos que aleacutem de agricultor teve uma pequena padaria em
Piranga haacute deacutecadas atraacutes foi dentre os homens entrevistados o que se
mostrou mais interessado em culinaacuteria e relatou algumas de suas experiecircncias
como padeiro e sobre as quitandas patildees e bolos que fazia Contou
detalhadamente como era o cuscuz que fazia Ao compartilhar sua experiecircncia
e reviver as lembranccedilas de eacutepocas passadas Antonio demonstrou emoccedilatildeo pois
esse era um alimento que sentia prazer em fazer e em degustar Ele guarda as
receitas de tudo que fazia na memoacuteria revelando a importacircncia que a padaria
teve em sua vida
O cuscuz natildeo eacute mais elaborado pelas famiacutelias como antes porque eacute
possiacutevel encontrar outros alimentos que os substituem e porque alguns
alimentos permaneceram como haacutebitos cotidianos como os bolos broas que
42 Eu tambeacutem era constantemente ldquoentrevistadardquo por eles Respondi que conheccedilo os dois pratos e que
gosto muito de ambos 43 O queijo usado em muitos ingredientes e consumidos no dia a dia eacute produzido por todas as 34 famiacutelias
(85) que tem atividade leiteira nos siacutetios mas a produccedilatildeo do queijo eacute basicamente para autoconsumo Jaacute a manteiga eacute um produto menos comum de ser fabricado atualmente pelo trabalho de sua produccedilatildeo Mas eacute um alimento que permanece como haacutebito alimentar Compra-se a industrializada ou de vizinhos que porventura fabriquem
136
satildeo feitas em casa e caso contraacuterio satildeo facilmente encontradas no mercado
Segundo Giard (2012) uma explicaccedilatildeo para o abandono de algumas praacuteticas
passadas na culinaacuteria estaacute nas mudanccedilas das provisotildees e ofertas no mercado
Nesse caso ldquopermanece apenas a lembranccedila interiorizada dos sabores antigosrdquo
(p 274) como eacute o caso das recordaccedilotildees de Antonio sobre o cuscuz que fazia
com frequecircncia no passado e que tinha muita aceitaccedilatildeo de seus clientes da
padaria
Uma coisa que eu jaacute fiz muito e que vocecirc natildeo deve nem nunca ter ouvido falar Cuscuz torrado Veja bem natildeo eacute cuscuz cozido no vapor natildeo eacute assado O cuscuz torrado eu fazia assim Socava no pilatildeo 1 quilo e meio de fubaacute 34 de rapadura uma pitada de sal socava ateacute que desmanchava e ficava um beiju sabe Ai levava na focircrma peneirava quando enchia apertava bem cortava e punha no forno brando para torraroh Mas ficava uma coisa fora do comum Jaacute vendi demais isso aqui por essas bandas depois que eu parei de fazer nunca mais eu vi Ele esfarinhava na hora de comervocecirc conhece paccediloca A consistecircncia era parecida com a paccediloca de amendoim (Antonio 78 anos morador de Boa Vista em Piranga MG 2015)
Segundo Cacircmara Cascudo (2004) o cuscuz eacute originaacuterio dos Mouros na
Aacutefrica (Egito a Marrocos) e se escreve originalmente ldquokuz-kuzrdquo Agrave base de arroz
farinha de trigo ou sorgo passou a ser feito de milho com o avanccedilo do cultivo da
plantam do a partir do seacuteculo XVI Mas tanto os africanos quanto os portugueses
jaacute conheciam o cuscuz quando chegaram ao Brasil se em Portugal era
considerado prato aristocraacutetico em final do seacuteculo XVII ldquoNo Brasil pela
humildade do fabrico era manutenccedilatildeo de famiacutelias pobres julgava-se lsquocomida de
negrosrsquo trazida pelos escravosrdquo (p 190)
A pesquisa mostrou que o fubaacute assume posiccedilatildeo de destaque no
cotidiano alimentar das famiacutelias Aleacutem de alimento considerado ldquoforterdquo guarda
tambeacutem um significativo papel cultural as recordaccedilotildees de alimentos que eram
elaborados antes e que natildeo se fazem mais os modos de moer o fubaacute de antes
e de agora interagem com os lugares de emoccedilatildeo relacionados agrave comida Ao
lembrar de como um alimento ou uma praacutetica ocorria acontece tambeacutem o
resgate daqueles que o faziam ou seja dos ldquoguardiatildees da tradiccedilatildeordquo dos quais
nos falam Giddens (2012) e Simsom (2003) A razatildeo alegada para explicar o
porquecirc de alguns alimentos do passado que faziam parte da merenda terem
deixado de ser consumidos como o angu com leite e o cuscuz foi que na
contemporaneidade existem muitas opccedilotildees de merenda que a opccedilatildeo passa a
137
ser pela praticidade neste caso Satildeo alimentos a serem feitos quando se sente
vontade de comecirc-los No cotidiano eacute a broa que assumiu o lugar das outras
merendas agrave base de milho justamente pela rapidez de sua elaboraccedilatildeo
53 Comida de todo dia comida de festa e as relaccedilotildees de comensalidade
531 Comida de todo dia o trivial
Aqui na roccedila falando a verdade o que a gente come mesmo eacute angu arroz feijatildeo e uma verdura (Afonso 79 anos morador de Ribeiratildeo em Presidente Bernardes MG 2015)
A comida de todo dia eacute angu ateacute mesmo para alimentar os animais (cachorro gato galinha) couve arroz feijatildeo e uma carne quase sempre de porco (Ana Luisa 45 anos moradora de Bom Jesus do Bacalhau em Piranga MG 2015)
Destaco o iniacutecio do item com dois depoimentos porque eles sintetizam o
que eacute a comida cotidiana das famiacutelias pesquisadas inclusive naquelas famiacutelias
que possuem crianccedilas adolescente e jovens embora eu tenha conversado com
apenas cinco jovens que se encontravam no siacutetio na ocasiatildeo da entrevista
Segundo os meus interlocutores os pais cultivam nos filhos os seus haacutebitos
alimentares ao manter o mesmo tipo de alimentaccedilatildeo para adultos e crianccedilas
Assim pelo menos em casa dos pais a comida natildeo varia em funccedilatildeo de outras
preferecircncias alimentares e segundo as informaccedilotildees natildeo ocorre disparidades
nesse sentido
Em todas as famiacutelias quatro alimentos estatildeo presentes no almoccedilo de
todos os dias da semana angu arroz feijatildeo ovo ou carne e verdura refogada
em gordura de porco Mesmo havendo variaccedilatildeo para a verdura como serralha
almeiratildeo e mostarda a couve eacute a mais consumida na contemporaneidade assim
era tambeacutem no periacuteodo da mineraccedilatildeo e da ruralizaccedilatildeo
Todas as famiacutelias tecircm hortas nos quintais algumas bem cuidadas e com
grande variedade de plantas outras fragilizadas e com poucos cultivos A
estiagem do periacuteodo foi a grande responsaacutevel pelas ldquohortas fracasrdquo mas em
todas elas havia couve Em uma horta por exemplo havia apenas couve
cebolinha salsa quiabo e jiloacute As hortaliccedilas e ldquocheiro verderdquo mais presentes eram
a couve a serralha a mostarda o almeiratildeo a alface a cebolinha de folha a
138
salsa o manjericatildeo e a hortelatilde Uma hortaliccedila comum na culinaacuteria mineira a
taioba estava presente em poucas hortas Segundo as mulheres por ser
periacuteodo de estiagem a produccedilatildeo dessa hortaliccedila estava prejudicada pois
necessita de muita umidade
Frieiro (1982) Magalhatildees (2004) e Arruda (1990) tratam da importacircncia
que o cultivo da horta teve para a regiatildeo mineradora em Minas Gerais numa fase
de escassez de alimentos Ela era cultivada nos quintais de todas as casas para
garantir o acesso nas refeiccedilotildees agraves fontes de legumes frutas hortaliccedilas e
tubeacuterculos Passado a fase da escassez alimentar na regiatildeo mineradora de
Minas as hortas permaneceram sendo cultivadas Atualmente cultivar a horta
natildeo se daacute mais por carecircncia alimentar jaacute que o acesso agrave compra no mercado eacute
possiacutevel e a baixo custo Mas eacute importante para os entrevistados ter o prazer de
colher a hortaliccedila fresca pouco antes de preparar a refeiccedilatildeo As razotildees satildeo
sobretudo culturais e simboacutelicas para manter a tradiccedilatildeo como no caso das
famiacutelias que pesquisei Ter uma horta ldquobonitardquo eacute motivo de orgulho Maria (66
anos moradora de Itapeva Presidente Bernardes) enquanto mostrava e falava
com tristeza de sua horta que estava sofrendo com a estiagem comentou
ldquominha horta estaacute mirrada feiaparecendo ateacute horta de gente preguiccedilosardquo
Outro motivo para a importacircncia da horta para as famiacutelias pesquisadas eacute a
certeza da qualidade do alimento que cultiva As famiacutelias demonstraram
preocupaccedilatildeo com o uso de agrotoacutexico e natildeo sentem seguranccedila na aquisiccedilatildeo de
alimentos in natura que agraves vezes precisam adquirir no mercado
Os demais vegetais cultivados pelas famiacutelias pesquisadas satildeo aboacutebora
moranga batata doce mandioca inhame chuchu jiloacute quiabo berinjela e tomate
do mato Esses vegetais satildeo produzidos em todas as hortas e muito consumidos
nas refeiccedilotildees diaacuterias A exceccedilatildeo eacute para o tomate que natildeo eacute habito de consumo
local Esporadicamente consomem o tomate que chamam de ldquotomate do matordquo
que nascem naturalmente sem precisar cultivar O principal motivo para natildeo
cultivarem e natildeo consumirem o tomate eacute a necessidade de utilizar muito
inseticida Evitam o maacuteximo o uso de agrotoacutexico nos produtos cultivados no siacutetio
mas natildeo conseguem deixar de usaacute-lo no milho para substituir o roccedilado manual
com a enxada e tambeacutem no feijatildeo armazenado Eacute interessante que esse receio
natildeo os impede de consumir a massa de tomate na macarronada dos domingos
139
Vegetais como cenoura beterraba batata baroa berinjela couve-flor
broacutecolis repolho cebola de cabeccedila e alho satildeo produzidos por poucas famiacutelias
Mas a cebola e o alho jaacute foram cultivados com frequecircncia na regiatildeo No siacutetio de
Maria e Laeacutercio em Itapeva Presidente Bernardes as hortaliccedilas estavam muito
fragilizadas e havia pouquiacutessimas plantas basicamente couve quiabo e
cebolinha mas ela mostrou orgulhosa sua colheita de cebola de cabeccedila e alho
que estava no paiol (Figura 9) dois produtos que natildeo satildeo cultivados por todas
as famiacutelias embora muito consumidas A cebola de cabeccedila por exemplo era
um produto comprado no comeacutercio da comunidade pela maioria das famiacutelias
Isso aponta para a importacircncia que tem para essa famiacutelia a produccedilatildeo de
alimentos que consomem no dia a dia Percebi na conversa com Maria e Laeacutercio
a valorizaccedilatildeo dada agrave produccedilatildeo para autoconsumo Em funccedilatildeo disso o lamento
pela ausecircncia de chuvas foi muito presente durante o diaacutelogo
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 9 ndash Cebolas e alhos armazenados no paiol do siacutetio de Maria e Laeacutercio na comunidade Itapeva em Presidente Bernardes
A pesquisa ocorreu em periacuteodo de colheita do amendoim cultivadas por
quase todas as famiacutelias basicamente para autoconsumo embora uma delas
tenha produzido o suficiente para comercializar Tive a oportunidade de em uma
delas acompanhar parte da colheita e ateacute experimentar arrancar a planta do
chatildeo Algumas mulheres disseram que iriam aproveitar para fazer peacute-de-
moleque A rapadura teria que ser comprada no mercado da cidade jaacute que natildeo
140
eacute mais produzida no siacutetio e em toda a regiatildeo eacute um produto pouco encontrado
Das famiacutelias que entrevistei apenas trecircs produziam rapadura e melado No
periacuteodo de campo a cana estava sendo toda utilizada para alimentaccedilatildeo do gado
A horta de Eliana e Saturnino (69 e 75 anos respectivamente) tambeacutem
de Itapeva Presidente Bernardes (Figura 10) eacute bem diversificada e bem cuidada
Eliana que gosta de cultivar plantas medicinais me mostrou uma delas e
perguntou ldquoVocecirc conhece o remeacutedio ldquoVickrdquo Olhe ele aqui eu tenho plantado
cheire uma folha muita gente aqui de perto vem buscar para tratar a gripe
chiado no peito sempre tratei a gripe dos meus filhos com elardquo Mariacutelia (62
anos moradora de Mestre Campos Piranga) tambeacutem possui uma horta muito
rica e com grande variedade de plantas medicinais Tanto ela quanto Eliana se
mostraram detentoras do conhecimento tradicional dos cultivos e das funccedilotildees
terapecircuticas das ervas medicinais e disseram ter aprendido com as matildees e avoacutes
Apesar de eu eleger as hortas das famiacutelias de Eliana e de Mariacutelia como as
melhores encontrar hortas bem cuidadas e diversificadas foi comum durante a
pesquisa Haacute uma preocupaccedilatildeo especial das mulheres em mantecirc-las produtivas
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 10 ndash Horta no siacutetio de Eliana e Saturnino em Itapeva Presidente Bernardes MG
Os vegetais produzidos nos siacutetios das famiacutelias satildeo aqueles consumidos
nas refeiccedilotildees diaacuterias No dia a dia raramente algum produto vegetal eacute comprado
no mercado exceto quando se deseja algum legume ldquodiferenterdquo como dizem O
periacuteodo de estiagem tambeacutem interfere nisso devido ao fato de que algumas
141
plantas satildeo menos resistentes agrave seca prolongada Durante o periacuteodo da
pesquisa isso ocorria em relaccedilatildeo a alface que natildeo eacute uma hortaliccedila consumida
com frequecircncia pois a preferecircncia eacute pelas verduras que podem ser refogadas
A batata inglesa tambeacutem eacute um produto muito raro na dieta dessas famiacutelias
passa-se meses sem consumi-la a preferecircncia eacute pela batata doce bem como o
inhame e a mandioca
Percebi que a alimentaccedilatildeo cotidiana das famiacutelias eacute muito semelhante
agravequela da fase da mineraccedilatildeo e ruralizaccedilatildeo descritas pelos autores que utilizei no
capiacutetulo como Frieiro (1982) Magalhatildees (2004) Arruda (1990) e Torres (2011)
A tradiccedilatildeo se perpetuou na regiatildeo sem grandes modificaccedilotildees Os mesmos
cultivos nas hortas as mesmas praacuteticas alimentares satildeo mantidas embora
novidades sejam inseridas como a panela eleacutetrica de fazer arroz que seraacute
discutida mais agrave frente
Outra hortaliccedila muito comum na culinaacuteria mineira o ora-pro-noacutebis ou
lobrobrocirc estava presente em quase todas as hortas embora seu consumo natildeo
seja cotidiano como as demais jaacute citadas Embora natildeo seja uma hortaliccedila muito
apreciada encontrei uma crianccedila que prefere o ora-pro-noacutebis agrave couve Ao
perguntar agrave Marcelina e Luiz moradores de Satildeo Domingos em Porto Firme
sobre as verduras que cultivavam e quais eram as mais consumidas
imediatamente o filho Faacutebio de 9 anos acrescentou ldquolobrobocirc taiobardquo
Perguntei-lhe entatildeo se gostava de verduras e ele confirmou Segundo a matildee
ldquoele adora todas as verduras lobrobrocirc ele come as folhas ateacute cruas e taioba e
folha de batata doce ele tambeacutem adora pede para eu fazer com angu e carne
de frangordquo Lola de Presidente Bernardes compartilhou situaccedilatildeo semelhante
sobre seu filho Andreacute de 10 anos O filho aprecia suco de couve (mais que os
refrigerantes) ldquoEles satildeo assim porque natildeo foram acostumados com isso
sempre ensinei que essas coisas fazem mal pra genterdquo
Conhecer o gosto destas duas crianccedilas por verduras e saber que esse
gosto estaacute atrelado aos haacutebitos alimentares dos pais nos conduz mais uma vez
agrave discussatildeo sobre heranccedila dos haacutebitos e gosto alimentar jaacute discutido no capiacutetulo
anterior Na casa dos pais de Faacutebio e tambeacutem em sua escola rural a presenccedila
de verduras de todos os tipos de acordo com a sazonalidade eacute comum Desde
muito novos os filhos deste casal foram introduzidos nos haacutebitos alimentares dos
pais Natildeo haacute o haacutebito familiar de consumir refrigerante que soacute eacute comprado para
142
a casa em dias de festa As bebidas do dia a dia da famiacutelia satildeo aacutegua e suco de
fruta da estaccedilatildeo Insisti em saber se era uma preocupaccedilatildeo com a sauacutede e a
resposta foi que a sauacutede vem como consequecircncia Para eles a prioridade eacute
consumir alimentos que produzem no local e evitar gastos com alimentaccedilatildeo no
mercado Aleacutem disso eacute a comida que estatildeo acostumados
Natildeo tive a oportunidade de conversar com outras crianccedilas durante a
entrevista mas tive depoimentos dos pais a respeito dos haacutebitos alimentares dos
filhos quando eram crianccedilas e que ainda sendo adolescentes manteacutem haacutebitos
alimentares muito parecidos com os dos pais Haacute o caso por exemplo dos filhos
de Antonina (74 anos moradora de Bananeiras em Presidente Bernardes
Antonina) que moram em Satildeo Paulo e que mesmo sendo adultos quando
visitam os pais nas feacuterias pedem para a matildee fazer ldquoa comida que eles estavam
acostumados a comer quando eram pequenosrdquo Esta fala coincide com a
compreensatildeo de Bourdieu (2007) sobre a formaccedilatildeo de haacutebitos alimentares que
sofrem grande influecircncia da convivecircncia dos grupos o que gera gostos muito
semelhantes entre os membros O haacutebito alimentar eacute construiacutedo nesse contexto
e podem ser diferentes de uma cultura para outra
Fui convidada a participar da mesa de refeiccedilotildees ldquode todo diardquo em 15
casas onde fui convidada a almoccedilar com a famiacutelia O horaacuterio de almoccedilo variou
de 1100 a 1130 e essa variaccedilatildeo tem a ver com o horaacuterio em que acordam e
iniciam as atividades que jaacute natildeo eacute mais tatildeo riacutegido como jaacute foi no passado Como
parte das conversas aconteciam geralmente nas cozinhas enquanto o almoccedilo
era preparado pude acompanhar todo o processo Me ofereci para ajudar em
alguma coisa na atividade da cozinha mas a uacutenica ajuda permitida foi
acompanhaacute-las ateacute a horta para ldquoapanharrdquo verdura
Em todos os almoccedilos que participei estavam presentes no cardaacutepio o
ldquotrivial mineirordquo denominaccedilatildeo atribuiacuteda por Eduardo Frieiro para ldquofeijatildeo angu e
couverdquo O autor apoacutes as pesquisas sobre a alimentaccedilatildeo em Minas Gerais da
fase mineradora ateacute meados da deacutecada de 1950 sugeriu alguns dos alimentos
que considerava possiacutevel serem caracterizados como tiacutepicos de Minas Gerais
A sugestatildeo se deu em funccedilatildeo da peculiaridade de seus preparos satildeo eles o
tutu de feijatildeo com torresmo ou linguiccedila o lombo de porco assado a couve
cortada fina e refogada e o angu sem sal
143
Aleacutem do feijatildeo do angu e da couve havia todos os dias tambeacutem o arroz
nas refeiccedilotildees que participei Assim eu elegeria como a comida tiacutepica do almoccedilo
do conjunto das famiacutelias desta pesquisa a seguinte composiccedilatildeo arroz feijatildeo
batido no liquidificador angu couve refogada e carne (de frango ou porco) O
feijatildeo batido eacute comum em Minas e no interior de Satildeo Paulo mas quase
desconhecido nos outros estados Eacute comum associar a Minas Gerais o feijatildeo
tropeiro e ao tutu mas nas famiacutelias que pesquisei a forma de servi-lo eacute
predominantemente batido temperado com gordura de porco e alho Antes de
haver o liquidificador o feijatildeo era amassado agrave matildeo com o uso de um ldquosocadorrdquo
depois adicionava-se aacutegua o resultado era um feijatildeo de caldo grosso e
diferentemente do tutu e do tropeiro natildeo lhe eacute adicionado farinha o que o torna
mais diferente do tutu e mais leve jaacute que a farinha lhe confere a categoria de
comida com ldquosustanccedilardquo Embora a carne de porco tenha sido a mais presente
a de frango tambeacutem foi marcante A carne de boi eu comi em apenas duas casas
na forma moiacuteda e cozida O frango sempre frito ou ensopado algumas vezes era
acompanhado de quiabo O peixe foi servido em uma casa pescado no rio que
passa na propriedade A disponibilidade da carne natildeo era farta mas suficiente
para tecirc-la no prato sem esbanjamento e proporcionar satisfaccedilatildeo Mas os outros
alimentos eram preparados em grande quantidade
Foi recorrente ser servida mais de uma fonte de carboidrato nas
refeiccedilotildees por exemplo arroz angu e ou moranga e ou mandioca e ou batata
doce e ou farinha e ou macarratildeo O carboidrato eacute responsaacutevel pelo suprimento
de energia do organismo Para as famiacutelias esses alimentos satildeo importantes para
dar ldquosustanccedilardquo e tambeacutem satildeo responsaacuteveis por compor um almoccedilo ldquoforterdquo assim
como sinalizaram em relaccedilatildeo agrave gordura de porco Esse aprendizado eacute por
transmissatildeo cultural a mesma loacutegica para o consumo da gordura de porco
532 Comida de domingo de dias festivos e comensalidade
A comida de domingo varia pouco O arroz e o feijatildeo satildeo consumidos
tambeacutem nesse dia Agraves vezes o feijatildeo batido eacute substituiacutedo pelo tutu com cebola
e pelo feijatildeo tropeiro A macarronada com frango ou com carne de panela
tambeacutem eacute um prato presente com frequecircncia aos domingos Todas as famiacutelias
que tecircm os filhos morando proacuteximos inclusive em Viccedilosa afirmaram que aos
144
domingos o almoccedilo eacute dia de reuniatildeo em famiacutelia os filhos e netos chegam para
o almoccedilo e laacute passam o dia Quando os sogros dos filhos moram perto eacute feita
uma divisatildeo almoccedilo em uma casa cafeacute da tarde ou jantar em outra As filhas e
ou noras ajudam no preparo do almoccedilo e de lavar a louccedila Os casais
aposentados que ficam muito sozinhos durante a semana consideram esses
momentos fundamentais porque ldquoo dia fica mais alegrerdquo
() eu fico soacute por conta de cozinhar para eles a mesa essas duas ai ficam sempre cheias de coisas em cima eacute biscoito eacute bolo eacute doce eu gosto de ver os filhos e os netos tranccedilando por ai eles gostam de ficar na cozinha na mesa natildeo cabe todo mundo ai eles colocam umas cadeiras e ficam aqui tambeacutem eles gostam de pegar ovos no galinheiro e bater gemada acostumei eles a comer gemada desde pequenos e eles soacute comem gemada aqui por causa do ovo daqui (Eliana 69 anos moradora de Itapeva em Presidente Bernardes MG 2015)
Nos dias de domingo a casa fica cheia minhas filhas costumam trazer um prato feito por elas e junta com o que eu faccedilo aqui eacute muita fartura eacute muito bom todo mundo conversa ri pena que no fim do dia vai todo mundo embora (Laurinda 77 anos moradora de Tatu em Piranga MG 2015)
A ldquofarturardquo da comida destacada por Laurinda nas ocasiotildees de encontro
familiar eacute um grande valor atribuiacutedo pelas famiacutelias rurais Fartura de alimentos
significa uma boa produtividade de alimentos na roccedila mas significa tambeacutem
seguranccedila Ter ldquoo de comerrdquo todos os dias garantido na mesa eacute um atributo que
lhes eacute importante nas suas condiccedilotildees de famiacutelias agricultoras
O espaccedilo de comensalidade nessas ocasiotildees eacute basicamente a cozinha
lugar preferido da famiacutelia quando estaacute reunida Lody (2008) defende que muitos
haacutebitos alimentares soacute se desenvolvem na medida em que a casa e sua cozinha
tornaram-se capazes de permitir a reuniatildeo da famiacutelia e amigos Talvez por isso
as cozinhas das casas que visitei fossem amplas mesmo que outros cocircmodos
da casa como a sala fossem pequenos Em todas as cozinhas havia um
cocircmodo acoplado pequeno e que funcionava como despensa A presenccedila de
mais de uma mesa foi comum mesa na cozinha com pelo menos seis cadeiras
e bancos de madeira recostados a uma das paredes a outra mesa ficava em
uma copa ou em uma aacuterea externa geralmente de meia parede tambeacutem
proacutexima agrave cozinha onde foi ficava instalado o forno de barro quando existia em
algumas casas ele costumava estar proacuteximo ao paiol embaixo de uma coberta
Assim esses satildeo os espaccedilos onde ocorre a comensalidade nas famiacutelias
145
sobretudo em ocasiotildees especiais como nos almoccedilos de domingo e nos
momentos de convivecircncia familiar nos finais de ano
A comensalidade no grupo entrevistado ocorre tambeacutem nos eventos
maiores Nesse caso pode-se formar uma rede de cooperaccedilatildeo de trabalho para
fazer os festejos acontecerem Duas mulheres contaram com riqueza de
detalhes sobre as festas de bodas de ouro que ocorreram no quintal das casas
Coincidentemente trata-se de duas famiacutelias de Presidente Bernardes A festa
dos sogros de Lola e Marcos ocorreu no siacutetio dos sogros na comunidade de
Xopotoacute em 2011 A festa de Eliana e Saturnino ocorreu tambeacutem no siacutetio na
comunidade de Itapeva em 2014 Jaacute citei essas duas festas anteriormente ao
falar dos animais que foram abatidos para o almoccedilo Em ambas algumas
caracteriacutesticas satildeo comuns uma delas eacute que a festa aconteceu no quintal o que
segundo Eliana ldquoeacute costume na regiatildeo aqui eacute muito pouca gente que aluga
salatildeo pra fazer festa e mesmo casamento acontece tudo aqui na roccedila mesmordquo
Os vizinhos dos siacutetios proacuteximos foram convidados Filhos e outros parentes que
moram fora tambeacutem estiveram presentes Nas duas festas a comida servida foi
a ldquocomida de roccedilardquo e como jaacute dito antes suiacutenos e frangos criados no local foram
abatidos O prato principal foi a carne o restante foi acompanhamento porque
como destacou Lola ldquoem dias de festa tem que ter muita carne que eacute do que o
povo gostardquo
Eliana contou que as mulheres da vizinhanccedila ajudaram com a
organizaccedilatildeo e tambeacutem a fazer ldquoa comida de veacutespera descascando batata
cozinhando mandioca matando e depenando os frangos para o dia da festa
os meus filhos contrataram umas cozinheirasrdquo
Foi realizada uma missa no paacutetio na frente da sua casa No quintal foram
colocados dois grandes ldquofogotildees de cupimrdquo e seu funcionamento seraacute detalhado
mais agrave frente Nestes fogotildees foram feitos os seguintes pratos macarratildeo com
pato tutu arroz frango frito farinha torrada mandioca frita e batata doce Natildeo
foi servida salada De bebida foram servidos refrigerante e cerveja A sobremesa
servida foi o ldquobolo de festa bem granderdquo que os filhos encomendaram da cidade
Foi muito boa a festa a missa a ajuda das mulheres aqui eacute assim todo mundo ajuda uns aos outros quando precisa Teve muacutesica e danccedila as pessoas podiam danccedilar se quisessem (Eliana Itapeva Piranga MG 2015)
146
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 11 ndash Fogatildeo de cupim no quintal do siacutetio de Eliana e Saturnino em Itapeva
Presidente Bernardes
Para a festa de bodas de ouro dos sogros de Lola estiveram presentes
em torno de 200 pessoas entre familiares e vizinhos de siacutetios proacuteximos Pelas
informaccedilotildees de Lola a festa teve maior investimento em produccedilatildeo Foi colocado
um telatildeo no quintal onde se mostrou a retrospectiva do casal desde o
casamento com montagens de fotos Soltaram muitos foguetes e teve muacutesica
de forroacute com espaccedilo para as pessoas danccedilarem no quintal Os filhos que moram
em cidades vizinhas e em Satildeo Paulo foram os responsaacuteveis pela organizaccedilatildeo
do evento e ao contraacuterio da festa do primeiro casal esta natildeo contou muito com
a participaccedilatildeo cooperativa dos vizinhos Todo o trabalho de veacutespera da cozinha
foi feito pela famiacutelia filhas filhos noras e genros do casal Foram contratadas
matildeo de obra para cozinhar no dia e servir a comida O cardaacutepio desta festa
consistiu de churrasco de carne bovina e suiacutena (a carne suiacutena de produccedilatildeo
local) linguiccedila frango frito arroz salpicatildeo farofa de milho vinagrete e uma
mesa de frutas Assim como na primeira festa nesta tambeacutem natildeo teve um prato
147
de saladas ou verduras refogadas apesar de elas estarem presentes nas
comidas de todo dia
Reportamos a Woortmann (1985) quando ele trata dos convites para
refeiccedilotildees em casa com o objetivo de reestabelecer sociabilidades e que nestas
ocasiotildees o aspecto fisioloacutegico ou nutritivo da alimentaccedilatildeo eacute pouco relevante
Mais importante eacute o papel social que ela exerce para agradar aos olhos ao olfato
e por fim ao paladar Eacute importante que as pessoas ao irem embora da festa
faccedilam elogios agrave comida e por isso ela precisa tambeacutem ser farta Como foi visto
no capiacutetulo 2 a carne em Minas nos primoacuterdios da mineraccedilatildeo era uma raridade
nas refeiccedilotildees e por isso passou a assumir um status simboacutelico importante na
refeiccedilatildeo a partir da fase da ruralizaccedilatildeo Fazer uma festa sem servir muita carne
seria motivo de criacutetica e natildeo de elogios Ao contraacuterio o excesso de carne eacute tanto
valorizado quanto classifica um ldquoalmoccedilo na roccedilardquo como farto e bom
Brandatildeo (1982) em sua pesquisa com agricultores do interior de Goiaacutes
trata da comida de festa na roccedila Para o seu grupo pesquisado o sabor e a
fartura da comida oferecida tambeacutem foi declarado como sendo o principal para
o sucesso de uma festa
O valor da comida ldquoboardquo ldquocom gostordquo estaacute em seu modo de preparo ruacutestico e na fartura o tempero forte ldquomuita banha de porco muito toucinho pimenta agrave vontaderdquo sobre uma comida tambeacutem forte e abundante ldquomuita carne de capado muito arroz e feijatildeo mandioca agrave vontaderdquo (BRANDAtildeO 1982 p 136)
Tambeacutem Falci (1995) relata sobre as festas de casamento na roccedila
regiatildeo do Piauiacute no final do seacuteculo XIX onde muita quantidade de comida era
servida mesmo sendo simples a festa de casamento precisava ser farta e era
tambeacutem importante que se convidasse toda a vizinhanccedila rural
Para a festa havia toda a organizaccedilatildeo pois natildeo se dispunha de armazenamento Os porcos tinham jaacute sido postos a sevar nos chiqueiros e estavam no ponto (de uns 8 a 10 kg cada um) assim como os outros animais Ateacute os parentes ajudavam no abastecimento da festa engordavam leitoas ou perus para a festa da sobrinha ou afilhada e no dia faziam-se assados em muitas casas amigas ou de parentes dos noivos (FALCI 1995 p 260)
Nessas ocasiotildees mais do que em dias normais a comida se apresenta
como um coacutedigo que expressa niacuteveis de relacionamento e de interaccedilatildeo social
como no sentido atribuiacutedo por Douglas (1972) Em festas ou manifestaccedilotildees
culturais tradicionais o alimento assume uma categoria de ldquocomidas-coacutedigordquo que
148
se apresenta com a funccedilatildeo binaacuteria de alimentaccedilatildeo e socializaccedilatildeo sendo
carregada de mensagens simboacutelicas
If food is treated as a code the message it encodes will be found in the pattern of social relations being expressed The message is about different degrees of hierarchy inclusion and exclusion boundaries and transactions across the boundaries Like sex the taking of food has a social component as well as a biological one Food categories therefore encode social events (DOUGLAS 1972 p 61)
Em um saacutebado pela manhatilde em que passei no siacutetio de Ana Luisa e Lucas
(45 e 52 anos respectivamente) na comunidade de Bom Jesus do Bacalhau para
agendar entrevista para a semana seguinte havia uma movimentaccedilatildeo de
pessoas Logo descobri que eram parentes que vieram de Ouro Preto e de Belo
Horizonte para passar o final de semana e como uma das sobrinhas estava
fazendo 15 anos de idade naquele dia a famiacutelia resolveu organizar
improvisadamente uma comemoraccedilatildeo no siacutetio Muitos balotildees coloridos estavam
sendo pendurados no teto e nos pilares da varanda Logo que entrei no corredor
externo que daacute acesso agrave cozinha avistei um bolo de aniversaacuterio sendo montado
O bolo jaacute estava com trecircs camadas e recheado de doce de leite e ameixa
faltando ainda a cobertura que seria com creme de coco Para a execuccedilatildeo do
bolo foram utilizados leite longa vida doce de leite e coco ralado ambos
industrializados O bolo estava sendo feito pelas irmatildes de Ana Luiacutesa enquanto
ela e o marido se dividiam na cozinha preparando ldquotira-gostosrdquo e a carne para o
almoccedilo Em um tacho de ferro sobre a trempe do fogatildeo a lenha Ana Luisa fritava
pedaccedilos de carne de porco e outra panela estava sendo frito o ldquomilhopatilderdquo (Figura
12) produzido por Ana Luisa Esse salgado eacute feito de uma mistura agrave base de
fubaacute caldo de galinha e polvilho azedo Segundo Lucas cujo avocirc foi tropeiro o
ldquomilhopatilderdquo artesanal eacute tradiccedilatildeo em sua famiacutelia e foi com a sogra que Ana Luisa
diz ter aprendido a fazer ldquoTodo mundo gosta a gente vende muito dele laacute no
mercadordquo
149
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 12 ndash Processo de fritura do ldquomilhopatilderdquo
A mesa da cozinha estava posta com rosquinha de sal amoniacuteaco queijo
bolo de milho e cafeacute Fui convidada a tomar ldquoum cafezinho e comer alguma coisardquo
e tambeacutem a experimentar o milhopatilde frito Em um dia tumultuado para a famiacutelia
minha visita se encerrou logo
Pude perceber alguns aspectos relacionados agraves praacuteticas alimentares
que satildeo tratados nesta pesquisa a sociabilidade demonstrada no trabalho
conjunto de organizaccedilatildeo da festa a utilizaccedilatildeo de produtos industrializados na
elaboraccedilatildeo do bolo a produccedilatildeo do ldquomilhopatilde alimento de receita tradicional da
famiacutelia a carne e o torresmo de porco caipira criado no siacutetio Nessas praacuteticas
alimentares desenvolvidas na cozinha dessa famiacutelia estiveram presentes agrave
praticidade em utilizar os produtos industrializados mas tambeacutem a manutenccedilatildeo
de praacuteticas tradicionais sinalizando nessa mescla fatores de permanecircncia e de
mudanccedila no sentido tratado por Poulain (2013) Giard (2012) Cacircmara Cascudo
(2004) e Doacuteria (2014)
A comensalidade tambeacutem ocorre envolvendo formas natildeo tradicionais agrave
cultura local Eacute o caso que ocorre na famiacutelia de Antocircnio e Marieta (78 e 73 anos
respectivamente) Antonio o ex-padeiro jaacute citado aqui que para agradar os netos
ndash crianccedilas e adolescentes que moram em aacuterea urbana ndash quando passam feacuterias
em seu siacutetio promove o que os netos chamam de a noite da ldquoPizzada do vovocircrdquo
Neste evento ele eacute o responsaacutevel por produzir pizzas no forno de barro do siacutetio
Disse jaacute ter virado uma tradiccedilatildeo familiar dos uacuteltimos anos Ele prepara as massas
e convoca os netos para ajudar a rechear as pizzas Esses satildeo momentos de
150
comensalidade familiar muito interessantes aleacutem de comerem juntos produzem
a comida em conjunto Geraccedilotildees diferentes partilhando os saberes e prazeres
da comida e da convivecircncia
A produccedilatildeo das pizzas chamou a atenccedilatildeo por natildeo ser um alimento que
faz parte da cultura da regiatildeo pesquisada Nenhum entrevistado aleacutem de
Antocircnio falou sobre esse alimento Tampouco ela eacute citada por Frieiro (1982) ou
Cacircmara Cascudo (2004) como alimentos consumidos em Minas Colonial A
pizza tem sua origem atribuiacuteda agrave Itaacutelia e passou a ser consumida no Brasil
justamente com a chegada desses imigrantes ao Paiacutes Segundo Antonio e
Marieta as pizzas comeccedilaram a ser produzidas por ele no forno de barro nos
encontros de feacuterias dos filhos e netos no siacutetio Uma de suas filhas mora no Rio
Grande do Sul e eacute casada com um descendente de italiano Com um nuacutemero
grande de familiares em casa nessas ocasiotildees e para agradar aos netos
Antocircnio que domina a atividade de panificaccedilatildeo optou em aprender a fazer as
pizzas Um exemplo de hibridismo cultural alimentar em funccedilatildeo de haacutebitos
diferentes de membros da famiacutelia O avocirc valorizando o habito alimentar dos
netos e praticando ao mesmo tempo a atividade de produzir massas que
considera como muito prazerosa Outro aspecto interessante eacute que se trata de
um alimento associado ao mercado fast food nos centros urbanos mas no caso
especificamente dessa famiacutelia o seu consumo tem uma loacutegica que se associa
ao ritmo do slow food
Juntar a famiacutelia para fazer a ldquopizzada do vovocircrdquo eacute uma forma de Antonio
resgatar esse tempo vivido onde era produzida grande quantidade de quitandas
aleacutem de patildees e eacute para os netos um importante momento de aprendizado com o
avocirc como aquele que agrega a famiacutelia usando da comida e assim assumindo
seu papel de guardiatildeo da cultura Nos dias atuais segundo o casal o forno de
barro raramente eacute utilizado soacute mesmo em dias de festa nos finais de ano Nos
depoimentos de Antonio estaacute presente a memoacuteria afetiva ligada agraves praacuteticas
culinaacuterias que lhe foram muito presentes no passado mas que se distancia do
seu cotidiano na contemporaneidade Natildeo por acaso a chegada dos netos eacute
sempre um evento ansiosamente esperado pelo casal
151
533 Os doces
Em relaccedilatildeo agraves frutas as mais comuns nos pomares e quintais eram a
laranja bahia e serra drsquoaacutegua a poncatilde a mexerica o limatildeo galego ou limatildeo
capeta o limatildeo taiti a goiaba a banana a jabuticaba o figo a cidra a pitanga
a acerola a amora a manga e o abacate As frutas satildeo consumidas de acordo
com a sazonalidade e algumas mesmo estando presentes natildeo satildeo
preferenciais como eacute o caso do mamatildeo exceto para fazer doce de mamatildeo
verde Os sucos mais consumidos satildeo de laranja acerola limatildeo e manga
Os doces mais produzidos a partir de frutas locais satildeo os de goiaba
banana e figo Em uma das famiacutelias tive a oportunidade de provar dois doces
receacutem elaborados por Marieta moradora de Boa Vista Piranga doce de ameixa
em calda e doce de figo
Cacircmara Cascudo (2004) relata que o doce representava grande
importacircncia social no periacuteodo Colonial brasileiro heranccedila de Portugal Quando
se queria presentear algueacutem ou homenagear uma bandeja de doce era sempre
uma excelente escolha Era considerado uma boa qualidade feminina saber
fazer o doce de receita de famiacutelia e esse ensinamento era repassado agraves jovens
pelas matildees Tambeacutem Algranti (2007) destaca que nesse periacuteodo os doces natildeo
faziam parte do trivial mas de eventos festivos e por isso consideradas iguarias
Mesmo que com o tempo eles tenham ganhado espaccedilos mais populares e
vendidos em tabuleiros nas ruas
Essa relaccedilatildeo com os momentos especiais descrito pela autora parece
persistir na regiatildeo pesquisada Dentre as famiacutelias que entrevistei a elaboraccedilatildeo
de doces natildeo eacute uma atividade culinaacuteria cotidiana seu consumo e fabricaccedilatildeo
estatildeo associados aos dias de domingo e agraves datas festivas sobretudo agraves festas
de final de ano Natal e Ano Novo
Laurinda 77 anos moradora de Tatu em Piranga relatou que fazia
doces para agradar a todos os filhos quando havia festas de aniversaacuterio em casa
quando eles ainda eram crianccedilas e adolescentes ldquoPara aquele que preferia
rocambole eu fazia rocambole para aquele que preferia pudim eu fazia pudim
agradava a todos os filhos eu gostavardquo
Zefa 67 anos moradora de Mato Dentro em Presidente Bernardes
tambeacutem disse gostar das eacutepocas de elaborar doces Para as festas de final de
152
ano ela comeccedila a fazer um mecircs antes do Natal Os doces tradicionais da sua
famiacutelia satildeo o rocambole de doce de leite e o doce de figo Ela descreveu o
processo de elaboraccedilatildeo
O doce de leite eu comeccedilo a fazer ele agraves 0800 e soacute vou tirar ele do fogo agraves 14 horas ponho num tacho grande ele vai fervendo aos pouquinhos ateacute secar e ficar cremoso mas tem que ser com leite de roccedila leite gordo e leva pouco accediluacutecar Para 8 litros e leite soacute duas xiacutecaras de accediluacutecar O doce de figo antigamente quando natildeo tinha geladeira a gente tinha que ficar fervendo ele para ele natildeo azedar enquanto tivesse doce tinha que fazer isso Hoje natildeo a gente faz o doce e guarda na geladeira e fica verdinho e pode ficar muito tempo guardado (Zefa 67 anos moradora da Comunidade Mato Dentro Presidente Bernardes MG 2015)
O depoimento de Zefa deixa transparecer a dedicaccedilatildeo de tempo ao
preparo do doce e a tenccedilatildeo cuidadosa agraves etapas para natildeo passar do ponto Natildeo
se podia ter pressa Por isso a elaboraccedilatildeo dos doces eram atividades
esporaacutedicas para eventos especiais principalmente para as festas de final de
ano consideradas eventos familiares de grande importacircncia para essas famiacutelias
Percebi durante a pesquisa que essa percepccedilatildeo permanece entre as mulheres
ao falarem da elaboraccedilatildeo dos doces Haacute nos gestuais descritos por Zefa uma
relaccedilatildeo semelhante ao que eacute tratado por Giard (2012) ao relacionar ao trabalho
das cozinheiras de tempos passados em que a paciecircncia para conduzir as
praacuteticas culinaacuterias era a tocircnica
Outrora a cozinheira se servia de um instrumento simples de tipo primaacuterio cujas funccedilotildees tambeacutem eram simples era ela que dirigia o desenrolar da operaccedilatildeo vigiava a sucessatildeo dos momentos da sequecircncia de accedilatildeo e podia representar mentalmente o processo Nessa forma de cozinhar havia uma habilidade de artesatildeo empenhado em aperfeiccediloar seu meacutetodo ou variar suas produccedilotildees (p 284)
Outros dois pontos no depoimento de Zefa merecem destaque O
primeiro quando ela fala de um tempo em que a geladeira natildeo existia Havia a
necessidade de ferver constantemente o doce para natildeo estragar Aqui presente
a relaccedilatildeo com a modernidade Atualmente com o acesso agrave geladeira esse
trabalho foi reduzido Nesse sentido eacute preciso considerar o quanto a tecnologia
industrial facilitou a fabricaccedilatildeo de alimentos sem que necessariamente tenha
alterado a obtenccedilatildeo de um produto de igual qualidade e sabor Zefa continua
fazendo o doce de figo assim como as outras mulheres mas utilizando uma
tecnologia de conservaccedilatildeo moderna e muito importante
153
O segundo ponto diz respeito ao uso do tacho Todas as mulheres que
entrevistei tinham um tacho de cobre que foi herdado de matildee da avoacute ou que foi
comprado por elas Fazer doces em tacho de cobre faz parte da tradiccedilatildeo da
culinaacuteria em vaacuterios lugares do Brasil Poreacutem haacute atualmente uma discussatildeo sobre
o seu uso Em Minas Gerais a Vigilacircncia Sanitaacuteria Estadual proibiu o seu uso
para fabricaccedilatildeo de doces em funccedilatildeo dos resiacuteduos toacutexicos que podem ser
liberados exceto se forem revestidos por banho de ouro prata niacutequel ou
estanho material que natildeo estatildeo presentes nos tachos mais comuns na zona
rural o mais comum e mais barato eacute o revestimento em estanho Surgiu em
funccedilatildeo disso movimentos que defendem a manutenccedilatildeo do uso do tacho de
cobre e que eacute possiacutevel conscientizar as pessoas sobre o uso e higienizaccedilatildeo
correta do tacho sem extinguir seu uso Zefa por exemplo limpa o seu tacho
com sal e limatildeo para retirar todo o azinhavre44 Aleacutem do tacho de cobre haacute o caso
da colher de pau cuja proibiccedilatildeo fez surgir o ldquoManifesto Colher de Paurdquo de autoria
do antropoacutelogo da alimentaccedilatildeo Raul Lody e apoiado pelo FBSSAN (Foacuterum
Brasileiro de Soberania e Seguranccedila Alimentar e Tradicional) O objetivo do
Manifesto eacute cobrar dos oacutergatildeos fiscalizadores um canal de discussatildeo com a
sociedade civil no sentido de encontrar soluccedilotildees menos radicais como a
extinccedilatildeo de usos tradicionais na fabricaccedilatildeo de doces e outros produtos
culinaacuterios45
Joana 39 anos moradora de Jacuba em Porto Firme contou sobre a
festa de casamento de uma parente que aconteceu na roccedila e em que todos os
doces servidos foram feitos pelas mulheres da famiacutelia e outras amigas do casal
Ela proacutepria ajudou na elaboraccedilatildeo Fizeram goiabada figo doce de leite
cajuzinho brigadeiro doce de aboacutebora com coco e outros
A Figura 13 mostra o doce de ameixa que Marieta estava preparando
Trata-se da ameixa vermelha (tambeacutem conhecida como ameixa japonesa) Natildeo
eacute uma fruta muito comum na regiatildeo da pesquisa mas Marieta possui uma aacutervore
que todos os anos daacute muito fruto e ela aproveita para fazer o doce que eacute muito
saboroso
44 Nome que se daacute a oxidaccedilatildeo do cobre a camada esverdeada que resulta desse processo 45 Para ver mais sobre o Manifesto e acessaacute-lo na iacutentegra ver o site da FBSSAN (httpwwwfbssanorgbr
indexphpoption=com_contentampview=articleampid=419manifesto-colher-de-pauampcatid=79ampItemid=672ampl ang=pt-br)
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Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 13 ndash Doce de ameixa feito por Marieta na comunidade Boa Vista em Piranga MG
54 A comensalidade para aleacutem das festas e datas especiais
A comensalidade ocorre de forma diferenciada nas famiacutelias
pesquisadas Em todas elas a maior frequecircncia eacute no jantar indicando o
fechamento de um dia de trabalho mesmo que ela se decirc na sala com o prato
na matildeo e assistindo agrave programaccedilatildeo da TV costume citado pela maioria das
famiacutelias Nesses momentos a conversa gira em torno dos assuntos divulgados
no programa (em geral o telejornal)
Se natildeo se daacute nesse ambiente ela ocorre na cozinha e em ambos os
casos natildeo eacute um momento demorado Mas a comensalidade ocorre sempre no
cafeacute da manhatilde jaacute que quase todos se levantam na mesma hora e tomam o cafeacute
juntos O cafeacute da manhatilde tambeacutem ldquotoma-se ligeirordquo muitas vezes de peacute que ldquoeacute
para natildeo dar preguiccedilardquo observou Carlos (morador de Posses em Porto Firme)
No horaacuterio de almoccedilo dos dias de semana as refeiccedilotildees satildeo feitas em tempo
curto e o assunto costuma ser basicamente em torno de trabalho pelo menos
foi o presenciei nas casas onde almocei A possibilidade de a famiacutelia estar
reunida para o almoccedilo iraacute depender da disponibilidade de tempo e das atividades
de quem estaacute agrave frente do trabalho no local Nas famiacutelias onde as mulheres
trabalham fora do siacutetio elas raramente estatildeo presentes para essa refeiccedilatildeo
quase sempre soacute aos finais de semana As crianccedilas chegam entre 1200 e 1230
155
horas e eacute comum almoccedilarem na escola Neste caso a comensalidade das
crianccedilas e das mulheres ocorre com outro grupo que natildeo o familiar Natildeo haacute uma
restriccedilatildeo para que a comensalidade se decirc apenas no grupo familiar O proacuteprio
conceito definido por Poulain (2013) destaca isso bem como a discussatildeo de
Fladrin e Montanari (1998) sobre o assunto
Em uma das casas visitadas em Presidente Bernardes almoccedilamos na
mesa da cozinha apenas eu e a Nanaacute (dona da casa) O filho que estava
trabalhando na lavoura de cafeacute saiu de moto pouco antes do almoccedilo para buscar
uma ferramenta de trabalho no siacutetio da irmatilde o marido foi almoccedilar em outro
cocircmodo escutando o raacutedio e a filha que trabalha na cidade e almoccedila em casa
serviu o seu prato e foi almoccedilar na frente da televisatildeo na sala Perguntei a Nanaacute
se eles natildeo costumavam almoccedilar juntos na cozinha ela apenas sorriu e disse
ldquoEacute assim mesmo tem dia que eles preferem ir para laacuterdquo Apesar de sua resposta
fiquei na duacutevida se o motivo de isso ter ocorrido foi minha presenccedila afinal
tratava-se de uma pessoa desconhecida O marido Custoacutedio participou da
conversa todo o tempo ateacute o almoccedilo ser servido Me mostrou a lavoura de cafeacute
e a local onde passaraacute o mineroduto cortando seu siacutetio46 e me explicou o
funcionamento do moinho eleacutetrico A filha chegou pouco antes do almoccedilo e
pudemos conversar um pouco quando ela falou do curso que faz na modalidade
agrave distacircncia e de seus planos para o futuro Em todas as outras famiacutelias almocei
em companhia dos que estavam em casa e natildeo percebi constrangimento
semelhante embora tenha observado uma certa timidez inicial principalmente
por parte dos homens e talvez por isso os diaacutelogos eram curtos Em quase
todas as casas escutei expressotildees que tinham conotaccedilatildeo semelhante ldquoVocecirc
natildeo repara natildeoa comida eacute simplesrdquo Entendi isso como uma reaccedilatildeo normal a
uma visita que eacute de fora do seu nuacutecleo iacutentimo Os homens se levantavam e se
ausentavam da cozinha assim que terminaram a refeiccedilatildeo e as mulheres lavavam
a louccedila
Se hoje eacute mais faacutecil para as pessoas interromperem o trabalho e
almoccedilarem em casa em tempos passados a situaccedilatildeo era diferente Quando o
trabalho era mais intenso as atividades eram quase ininterruptas e as refeiccedilotildees
46 Boa parte do siacutetio de Nanaacute e Custoacutedio seraacute desapropriado em funccedilatildeo da passagem do Mineroduto Isso
tem gerado efeitos em suas vidas desde que o processo se iniciou O processo se arrasta haacute anos e eles natildeo sabem muito bem o que vai acontecer Continuam plantando e vendendo o cafeacute que comercializam e outras pequenas lavouras como milho e cana enquanto aguardam o desenrolar da situaccedilatildeo
156
aconteciam distante da casa com o uso de marmitas como explica Neuzeli
moradora de Vinte Alqueires em Porto Firme
O almoccedilo quando o povo trabalhava na roccedila diretoos trabalhadores comiam de marmita Eu arrumava uma marmita caprichadinha para meu marido e meus filhos Mas na casa de meus pais natildeo levava marmita natildeo levava era uns panelotildees grandes de comida em um punha feijatildeo em outro punha a sopa de mandioca ou de inhame com uns pedaccedilos de carne e tinha que encaixar aqui no ombrocomo uma canga e necessitava de duas e trecircs pessoas para levar E laacute na roccedila juntava todo mundo pra comer junto cada um servia o seu coiteacute47 (Neuzeli 63 anos moradora de Vinte Alqueires Porto Firme MG 2015)
Mais um exemplo de como a comensalidade ocorria nas aacutereas rurais
por mais raacutepidas que fossem as refeiccedilotildees Este exemplo assim como aquele em
que as refeiccedilotildees ocorrem na sala assistindo televisatildeo falam de momentos de
comensalidade onde a presenccedila do objeto ldquomesardquo natildeo eacute necessaacuterio precisa-se
eacute que os momentos das refeiccedilotildees sejam partilhados por mais de uma pessoa
55 Mescla cultural praacuteticas de consumo alimentar de ontem e de hoje
Tem sido comum nos uacuteltimos anos na regiatildeo pesquisada a circulaccedilatildeo
de veiacuteculos que comercializam frutas hortaliccedilas e legumes Os alimentos satildeo
vendidos aos moradores locais mas tambeacutem para os pequenos comeacutercios
rurais Por razotildees diversas alguns agricultores estatildeo optando em comprar
determinados produtos in natura ao inveacutes de cultivaacute-los O principal motivo citado
foi a estiagem dos uacuteltimos anos aliado ao custo-benefiacutecio (praticidade ndash preccedilo)
Satildeo vendidos produtos tais como batata inglesa inhame batata doce moranga
banana alface laranja tomate maccedilatilde pera abacaxi e outros Segundo os
interlocutores os produtos satildeo do CEASA
Aqui em Presidente tem caminhatildeo que vem vender fruta e verdura pro povo das roccedilas Aqui em casa noacutes compramos agraves vezes mas eacute maccedilatilde que aqui natildeo daacute mamatildeo tambeacutem porque aqui natildeo daacute mamatildeo bom mais mas eacute soacute mas eu vejo gente aqui comprando inhame mandioca do caminhatildeo ah isso eu natildeo concordo natildeo (Germana 58 anos moradora de Mato Dentro em Presidente Bernardes MG 2015)
Tem muita gente na roccedila hoje que taacute eacute comprando mesmoeles acham difiacutecil criar um frangopreferem compraraqui o frango eacute criado soltono quintaldaacute uns frangos bons gordinhosalguns falam assim gente daqui mesmo que fica mais caro plantar do que
47 Cuia feita a partir do fruto da aacutervore Coiteacute que depois de colhido maduro cortado ao meio e retirado as
sementes eacute utilizado como utensiacutelio na cozinha e em outras atividades
157
comprar ai eu falo para eles que agraves vezes fica mesmo soacute que plantar a gente gasta devagar e se for para comprar a gente tem que tirar tudo de uma vez soacute para pagar aquele montatildeo aleacutem disso tem a sauacutede a gente compra tudo hoje com remeacutedio esses frangos ai de granja eu sei porque meu cunhado tem uma granja aquilo ali o pintinho chega com 45 dias ele jaacute eacute frango pra abate e isso natildeo eacute com comida soacute que consegue natildeodeve ter algum remeacutedio ali (Maacuterio 44 anos morador de Posses em Porto Firme MG 2015)
Os interlocutores na pesquisa disseram que compram tais alimentos
muito raramente soacute mesmo em situaccedilotildees muito especiacuteficas como estiagem
longa um exemplo eacute o da alface que no ano de 2015 quando foi realizado o
trabalho de campo teve produccedilatildeo muito ruim assim como algumas outras
hortaliccedilas Segundo as informaccedilotildees que deram essa forma de aquisiccedilatildeo eacute
relevante entre essas famiacutelias Os aposentados que natildeo possuem filhos para
ajuda-los na produccedilatildeo ponderaram que natildeo acham ruim o caminhatildeo levar esses
produtos ateacute eles porque muitas vezes a produccedilatildeo de alguns alimentos eacute muito
pequena e quando acaba eles precisam mesmo comprar e se o caminhatildeo vai
ateacute os siacutetios isso facilita natildeo se trata todavia de um costume mas de uma
ocorrecircncia esporaacutedica
O depoimento anterior de Mario demonstra uma preocupaccedilatildeo que foi
manifestada por outros entrevistados tambeacutem Haacute nas famiacutelias uma grande
preocupaccedilatildeo com agrotoacutexicos ateacute por isso evitam cultivar tomate como jaacute
mencionado anteriormente Pelo fato de os alimentos serem provenientes do
CEASA a desconfianccedila em relaccedilatildeo a eles eacute fator de resistecircncia no consumo
acreditam que os alimentos possuem ldquomuito venenordquo Assim esses alimentos
representam para eles o oposto dos alimentos que produzem nos proacuteprios siacutetios
considerados como mais saudaacuteveis do que os comprados Novamente pode-se
associar essa preocupaccedilatildeo agrave ldquoangustia alimentarrdquo tratada por Fischler (1995 e
2011)
Esse tipo de comercializaccedilatildeo tambeacutem foi identificado por Sacco dos
Anjos et al (2010) em sua pesquisa na regiatildeo rural de Pelotas no Rio Grande
do Sul Os consumidores de laacute tinham como justificativa a especializaccedilatildeo em
uma determinada atividade produtiva como fruticultura e aviaacuterio A falta de
tempo para produzir para autoconsumo e o alto custo da produccedilatildeo os fez
priorizar a aquisiccedilatildeo dos alimentos que consumiam no dia a dia
158
Apesar de os alimentos cultivados no siacutetio predominarem na alimentaccedilatildeo
das famiacutelias os alimentos industrializados tambeacutem satildeo consumidos Pude ver
alguns desses produtos expostos em moacuteveis da cozinha Outros foram
informados pelos entrevistados A lista dos industrializados consta de manteiga
margarina oacuteleo de soja sal arroz biscoito de polvilho biscoito de maisena
biscoito de aacutegua e sal farinha de trigo farinha de milho farinha de mandioca
leite longa vida leite de soja accediluacutecar macarratildeo massa de tomate polvilho leite
condensado e poacute de cafeacute (naquelas famiacutelias que natildeo o produz ou quando o
produto local acaba) Natildeo houve registro de compra de refrigerantes (usado
apenas em ocasiotildees festivas) alimentos congelados (massas patildees de queijo e
carnes etc) embutidos (salsichas presunto mortadela) Nem todos os produtos
listados satildeo consumidos por todas as famiacutelias trata-se de uma lista de produtos
consumidos pelo montante das famiacutelias
Duas das famiacutelias de Piranga a de Ana Luisa e Lucas e a de Juliana e
Jacinto satildeo proprietaacuterias de um pequeno comeacutercio rural nas comunidades de
Bacalhau e Tatu respectivamente Em ambos eacute comercializado parte do que
produzem nos siacutetios Os alimentos mais vendidos satildeo oacuteleo vegetal arroz (que
passou a ser vendido haacute cerca de 15 anos quando se reduziu drasticamente o
cultivo nas regiotildees) farinha de trigo biscoito de polvilho do tipo ldquopapa-ovordquo
macarratildeo massa de tomate ovos (de granja) nos periacuteodos mais frios do ano
porque a produccedilatildeo de ovos de galinhas caipiras diminui e finalmente a laranja
(da CEASA) a partir dos meses de novembro quando a produccedilatildeo nos pomares
diminui
A escolha de consumo referente aos alimentos industrializados pelas
famiacutelias se daacute pela praticidade aliada a preccedilo pela necessidade de consumo ou
por terem se tornado inviaacuteveis a sua produccedilatildeo nos siacutetios Eacute o caso do arroz do
polvilho do accediluacutecar da rapadura do biscoito de polvilho assado e da manteiga
Sobre as opccedilotildees atuais de consumo e as mudanccedilas nos modos de vida os
depoimentos abaixo apresentam importantes reflexotildees
O ritmo na roccedila taacute muito corrido parece que o pessoal natildeo tem muito prazo mais de ficar cuidando das coisas igual antigamente acho que o pessoal tambeacutem era mais pobre precisava trabalhar mais na roccedila pra produzir e arrumar renda hoje consegue comprar mais coisa Antes soacute compravam sal agora eacute mais faacutecil comprar de tudo antes todo mundo plantava arroz e colhia agrave vontade e ainda sobrava para vender (Joel 71 anos morador de Limeira em Porto Firme MG 2015)
159
A gente compra muita coisa que natildeo compensa mais produzir e nem gente suficiente para produzir aqui na roccedila Tem coisa que natildeo daacute pra produzir aqui igual macarratildeo e rapadura natildeo daacute mais pra fazer nem arroz porque natildeo compensa cafeacute a gente ainda planta um pouquinho e feijatildeo mas soacute daacute para o gasto mesmo (Joseacute 47 anos morador de Mato Dentro Presidente Bernardes MG 2015)
Outro item comprado por todos eacute o accediluacutecar cristal que veio a substituir a
rapadura o accediluacutecar mascavo e o melado que antigamente eram produzidos
Mesmo nas famiacutelias que ainda possuem um pequeno engenho o accediluacutecar cristal
tambeacutem eacute consumido por exemplo para adoccedilar o suco de frutas fazer bolo
broa e outras quitandas Segundo os meus interlocutores o uso do accediluacutecar cristal
industrializado eacute recente datando de cerca de 30 anos
Meus pais tinham um engenho de cana e faziam rapadura e melado hoje a gente planta cana soacute para dar agraves vacasos que que tinham engenho e que continuam a plantar cana usam soacute para produzir cachaccedila ou alimentar as vacas (Lucas 52 anos morador de Bom Jesus do Bacalhau em Piranga MG 2015)
A gente fazia muito melado accediluacutecar mascavo rapadura meus filhos cresceram comendo inhame com melado era muito gostoso e um alimento forte (Luisa 57 anos moradora de Bom Retiro em Porto Firme MG 2015)
Marilia 65 anos moradora de Mestre Campos em Piranga explica
como a sua avoacute fazia o que denominava de ldquoaccediluacutecar brancordquo mas que nada tem
a ver com o accediluacutecar cristal industrializado Recebia esse nome porque era mais
claro do que o accediluacutecar mascavo constituiacutea tambeacutem em um modo ruacutestico de
fabricar o accediluacutecar no siacutetio conforme sua descriccedilatildeo
Ela batia o caldo para rapadura mas sem chegar no ponto de rapadura ai colocava essa massa numa mesa de madeira com beiral por cima da massa ainda quente ela colocava argila escura e deixava no dia seguinte a massa ficava toda quebradiccedila e bem mais clara do que a mascavo Tirava os torrotildees de argila que ficavam bem sequinhos e duro e ficava soacute o accediluacutecar (Marilia 65 anos moradora de Mestre Campos em Piranga MG 2015)
Sobre o que chamei de mescla alimentar no subtiacutetulo ou seja o
consumo concomitante de produtos tradicionais e produzidos pelas proacuteprias
famiacutelias e aqueles adquiridos no mercado ou no caminhatildeo o que a pesquisa
apontou eacute que apesar de as famiacutelias considerarem que o sabor do fubaacute e do
accediluacutecar ficou ruim comparando-se ao que conheceram anos atraacutes as famiacutelias se
mostraram adaptadas ao consumo das formas atuais desses produtos O arroz
permanece nas refeiccedilotildees de todos os dias mesmo sendo industrialmente
160
produzido De forma semelhante o fubaacute do moinho eleacutetrico continua sendo
usado para a fabricaccedilatildeo da broa e do angu a serem consumidos cotidianamente
O accediluacutecar cristal eacute usado com frequecircncia para adoccedilar bolos sucos cafeacutes e
doces Natildeo observei no grupo pesquisado resistecircncia aos produtos
industrializados que consomem Apenas o consumo do oacuteleo vegetal sofreu um
pouco de rejeiccedilatildeo embora tenha sido bem aceito para preparo de frituras exceto
para o casal Eliana e Saturnino que continua resistindo em consumi-lo
O arroz natildeo perdeu a importacircncia que tinha por ser industrializado nem
o fubaacute perdeu seu lugar nas refeiccedilotildees e nas quitandas de todos os dias por deixar
de ser produzido no moinho drsquoaacutegua tampouco a manteiga deixou de ser
consumida por ser industrializada e a margarina eacute usada na elaboraccedilatildeo de bolo
e quitandas embora natildeo seja usada para passar no patildeo O que percebi foi uma
certa resignaccedilatildeo dos meus interlocutores diante de uma realidade alimentar em
transformaccedilatildeo uma vez que as mudanccedilas em curso natildeo ocasionaram draacutesticas
adaptaccedilotildees alimentares Na medida do possiacutevel continuam a comer o que
sempre comeram e a preparar os alimentos da forma que sempre fizeram seus
pais Isso sinaliza que a cultura eacute dinacircmica e estaacute em constante transformaccedilatildeo
Em funccedilatildeo de eventos diversos novos elementos vatildeo surgindo outros vatildeo
sendo incorporados Alguns permanecem na memoacuteria e nas histoacuterias das
famiacutelias assim como outros caem no esquecimento
56 As quitandas para a merenda e para servir agraves visitas
O termo quitanda segundo Silva (2014) e Dourado (2006) origina da
palavra Kitanda da liacutengua quimbundo falada em Angola No Brasil em Minas
Gerais principalmente assumiu a significaccedilatildeo tambeacutem para comidas feitas nos
intervalos das refeiccedilotildees e agrave noite antes de dormir
Nas famiacutelias pesquisadas as quitandas satildeo elaboradas com frequecircncia
Sempre que estatildeo proacuteximas de acabar eacute o momento de fazer outra fornada mas
os dias de saacutebado especialmente satildeo os dias de abastecer a casa para receber
as visitas no domingo que geralmente satildeo a proacutepria famiacutelia os filhos os netos
e mesmo os irmatildeos Nos demais dias da semana a quitanda natildeo pode faltar
pois supre a necessidade diaacuteria pelas merendas A principal quitanda eacute a
ldquorosquinha de sal amoniacuteacordquo que tive a oportunidade de experimentar Algumas
161
mulheres tambeacutem a produzem sob encomenda geralmente para moradores das
cidades proacuteximas As outras quitandas comuns satildeo a broa e o bolo de milho O
cobu de milho (Figura 14) que eacute uma broa enrolada e assada em folha de
bananeira jaacute foi muito comum nas famiacutelias mas por ser de elaboraccedilatildeo mais
trabalhosa foi deixando se ser produzido e hoje o eacute muito raramente Agraves vezes
nos finais de ano quando as casas ficam cheias com a chegada dos filhos e
outros parentes algumas quitandas tradicionais satildeo resgatadas pelas famiacutelias
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 14 ndash Broa do tipo Cobu ou ldquopau a piquerdquo
A broa de fubaacute da Figura 15 havia receacutem-saiacutedo do forno e fui a primeira
a experimentar ainda em temperatura morna Comer bolo quente possui um
prazer especial e muitas pessoas tem essa preferecircncia Natildeo eacute pelo sabor mas
sim pelo fato de saber que se trata de bolo fresco que acaba de sair do forno
com o seu perfume ainda espalhado pelo ambiente A broa feita por Eliana (69
anos moradora de Itapeva Presidente Bernardes) me fez sentir essa sensaccedilatildeo
e neste momento minha memoacuteria afetiva eacute que me levou de volta agrave infacircncia no
siacutetio de meus avoacutes e me trouxe o cheiro que exalava de sua cozinha pela manhatilde
Neste momento da pesquisa senti fortemente a atuaccedilatildeo do tal ldquoimponderaacutevel da
pesquisardquo ao ser recebida com essa delicadeza tatildeo presente nas mulheres
162
rurais com quem tive o prazer de conviver durante a pesquisa Sensaccedilatildeo
semelhante tive ao chegar para a entrevista no siacutetio de Marilia (65 anos
moradora de Mestre Campos em Piranga) e encontrar uma mesa posta com
bolo queijo suco e cafeacute As conversas foram longas com essas e outras
mulheres Experimentei durante a pesquisa o poder da comensalidade
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 15 ndash Broa de fubaacute feita por Eliana em Itapeva Presidente Bernardes
Menos comuns de serem feitos satildeo o bolo agrave base apenas de farinha de
trigo e a ldquorosca da rainhardquo que eacute um tipo de patildeo e que utiliza a farinha de trigo e
fermento bioloacutegico que satildeo opccedilotildees agrave broa de milho Como quitandas
caracteriacutesticas da regiatildeo pesquisada eu elegeria as duas que satildeo consumidas
em todas as casas em que estive broa de fubaacute e rosquinha de sal amoniacuteaco
Mesmo naquelas casas em que natildeo se faz a rosquinha ela eacute consumida porque
eacute comprada nas proximidades
A elaboraccedilatildeo de quitandas sempre foi fundamental na zona rural desde
os tempos dos avoacutes Tanto em tempos atraacutes quanto na contemporaneidade ela
eacute a principal ldquomerendardquo nas famiacutelias Nos tempos antigos os motivos para ter a
despensa abastecida com quitandas eram o difiacutecil acesso agraves cidades e a
necessidade de economizar com essa alimentaccedilatildeo Mas pelos depoimentos das
mulheres com quem conversei e ainda segundo Frieiro (1982) as razotildees satildeo
tambeacutem culturais e simboacutelicas No periacuteodo colonial em Minas quitanda era algo
163
que se fazia em todas as casas nos fornos de barro Era uma caracteriacutestica de
virtude que se atribuiacutea agrave mulher Para ser considerada prendada a mulher
precisava ser boa quitandeira assim cada uma devia dominar bem uma receita
de quitanda que fosse sempre elogiada por quem a degustasse Freyre (2007)
tambeacutem reforccedila a valorizaccedilatildeo dada agrave mulher que dominasse muito bem a
elaboraccedilatildeo de uma receita Essas receitas soacute se passavam oralmente e a
pessoas muito iacutentimas geralmente para agraves filhas e netas
Nas famiacutelias pesquisadas essa tradiccedilatildeo perpetuou com poucas
modificaccedilotildees ao longo do tempo As receitas elaboradas satildeo as mesmas que as
matildees tias e avoacutes faziam Atualmente os siacutetios das famiacutelias pesquisadas natildeo
distam mais do que 20 quilocircmetros das cidades mais proacuteximas mas ainda assim
as idas agrave cidade exceto para quem laacute trabalha ou estuda natildeo eacute constante O
normal eacute o deslocamento com o objetivo de fazer compras receber
aposentadoria eou resolver outros assuntos e ir agrave missa uma vez ao mecircs
Assim semelhantemente aos que ocorria nos tempos passados dos
antepassados ldquoeacute preciso ter a quitanda pronta para o caso de chegar uma visita
e ter o que servir com um cafeacuterdquo
As quitandas a gente faz em casa Broa eu faccedilo todos os dias Broa de fubaacute agraves vezes bolo de farinha o biscoito eacute comprado mas eu faccedilo rosquinha Aqui na roccedila a gente tem que estar prevenida porque se chegar algueacutem a gente natildeo tem tempo de fazer e nem tem onde achar as coisas perto A venda natildeo tem muita coisachega uma visita raacutepidanatildeo daacute nem tempo pra fazer as coisas entatildeo tem que ter uma broa pronta um bolinho uma rosquinha (Lucia 61 anos moradora de Manja em Piranga MG 2015)
Na fala acima Lucia se refere a biscoito e rosquinha Biscoito para eles
eacute o que se compra como o de polvilho assado ndash que tambeacutem eacute consumido com
muita frequecircncia - o de maisena e o de aacutegua e sal para eles pode-se servir os
biscoitos comprados para as visitas mas eacute preciso ter tambeacutem uma quitanda
feita em casa neste caso a broa ou a rosquinha A expressatildeo ldquobolinhordquo natildeo se
refere a bolinho de alguma coisa como ldquobolinho de chuvardquo mas ao bolo no
diminutivo modo comum de se expressar em Minas Gerais
Em tempos passados a elaboraccedilatildeo das quitandas era tambeacutem um
momento de socializaccedilatildeo havia mais mulheres envolvidas no trabalho
geralmente matildees e filhas como citaram minhas interlocutoras As rosquinhas e
broinhas de rapadura o cobu e outras quitandas eram armazenadas em grandes
164
latas bem vedadas para natildeo perder a textura e o sabor De maneira semelhante
se dava o armazenamento na ocasiatildeo da pesquisa Poreacutem o espaccedilo de
socializaccedilatildeo no preparo natildeo eacute como outrora mas um trabalho feito de forma
praticamente individualizada Em algumas ocasiotildees como em periacuteodos de feacuterias
das filhas pode ocorrer de haver uma filha que ajude mas natildeo eacute a regra Poreacutem
trata-se de uma atividade de execuccedilatildeo totalmente feminina
No dia da entrevista com Zefa (67 anos moradora de Mato Dentro
Presidente Bernardes) natildeo havia quitanda sendo preparada no forno a lenha
mas sim um tabuleiro grande de amendoim em casca colhido no quintal que
estava sendo torrado para a elaboraccedilatildeo do lsquocajuzinhorsquo doce que seria servido
na festinha de aniversaacuterio de um ano do neto que mora na cidade de Presidente
Bernardes Ela e suas filhas que moram na cidade iriam organizar juntas essa
festinha familiar
As quitandas satildeo assadas atualmente nos fornos do fogatildeo a lenha jaacute
que os fornos de barro soacute compensam ser acesos para assar grandes
quantidades Assim a broa por ser mais simples eacute assada durante o preparo
do almoccedilo jaacute as rosquinhas satildeo assadas na parte da tarde quando as mulheres
estatildeo mais livres dos outros trabalhos por necessitarem de maior tempo na
elaboraccedilatildeo e muita atenccedilatildeo ao tempo de forno A massa da broa ou do bolo eacute
batida agrave matildeo apesar de a batedeira estar presente em todas as cozinhas e que
satildeo quase sempre presente de filhos ldquoEu bato bolo eacute na matildeo mesmo soacute uso
batedeira quando um faccedilo o ldquobolo drsquoaacuteguardquo que precisa de clara em neverdquo
(Neiva 41 anos moradora de Posses em Porto Firme) No caso de Mariacutelia (62
anos moradora de Mestre Campos Piranga) a batedeira que possui pertenceu
agrave sogra e fica guardada no soacutetatildeo da casa muito raramente utilizada A
praticidade atribuiacuteda agraves batedeiras natildeo convenceu as mulheres que entrevistei
Na realidade elas consideram mais trabalhoso lavar as paacutes da batedeira do que
bater a massa do bolo e da broa na matildeo O uso para as claras em neve
compensa pela rapidez do processo usando o equipamento eleacutetrico Ou seja a
batedeira eacute usada apenas quando se quer um bolo menos ruacutestico O meacutetodo
tradicional prevalece neste caso
Eu tenho dois fornos de barro grande no quintalfazia quitanda umas duas vezes na semana a famiacutelia era grande sete filhos hoje acaboueu faccedilo as coisas eacute no forninho do fogatildeo a lenha mesmo eu
165
jaacute vou fazendo o almoccedilo e assando a quitanda do dia (Uacutersula 78 anos moradora de Bananeiras em Presidente Bernardes MG 2015)
Eu gosto de fazer quitanda tem dia que a gente enjoa mas eu gosto de fazer sim faccedilo broa bolo rosquinha minha neta me ajuda a enrolar as rosquinhas eacute assim que as filhas e netas aprendem a cozinhar comigo tambeacutem era assim (Inecircs 72 anos moradora de Ribeiratildeo em Porto Firme MG 2015)
Para as mulheres a elaboraccedilatildeo das quitandas e doces eacute o que mais
mexe com a memoacuteria afetiva relacionada a alimentos por remeter agrave infacircncia agraves
quitandas feitas pela matildee tias e avoacutes Giard (2012) Lody (2008) e Cacircmara
Cascudo (2004) mencionam como as lembranccedilas e viacutenculos com as comidas
ajudam a manter os haacutebitos vida afora Mesmo que algumas mudanccedilas nos
modos de vida tenham ocorrido permanece o desejo de manter as quitandas do
passado
O relato acima de Inecircs sobre a participaccedilatildeo da neta ajudando a enrolar
as rosquinhas de sal amoniacuteaco que sinaliza o desejo de perpetuar uma receita
tradicional da famiacutelia bem como o de ensinar a neta eacute tambeacutem uma lembranccedila
de si mesma quando ajudava a matildee e da forma como o repasse dessa tradiccedilatildeo
se deu em sua vida Dessa maneira o aprendizado ocorre de maneira luacutedica
Gosta-se da rosquinha feita pela matildee ou avoacute tambeacutem porque era divertido ajudaacute-
las a enrolar e a pincelar com a gema Para uma crianccedila a massa da rosquinha
eacute quase como brincar com as massinhas coloridas na escola e neste caso
ldquobrinca-serdquo com a massinha feita pela avoacute e em sua companhia e ainda pode-
se comecirc-la depois de assada porque tem sabor agradaacutevel ao paladar e agrave
memoacuteria A rosquinha que Inecircs faz com a neta eacute a mesma que ela aprendeu a
fazer com a sua matildee e eacute a mesma que ensinou agraves suas filhas A transmissatildeo do
saber-fazer e dos gestuais de enrolar as rosquinhas e pincelar as gemas satildeo
registros simboacutelicos que ficam na memoacuteria Neste sentido como pondera Leacutevi-
Strauss (2003 p 15) ldquoGestos aparentemente insignificantes transmitidos de
geraccedilatildeo em geraccedilatildeo e protegidos por sua insignificacircncia mesma satildeo
testemunhos geralmente melhores do que jazidas arqueoloacutegicas ou
monumentos figuradosrdquo
O papel de Inecircs nesses momentos eacute pois o da ldquoGuardiatilderdquo da tradiccedilatildeo
(GIDDENS 2012) assunto jaacute discutido no capiacutetulo teoacuterico Em vaacuterios momentos
da entrevista os agricultores reportavam agrave figura dos avoacutes e dos pais ldquoA minha
166
matildee fazia assimrdquo ldquo Quando eu era crianccedila eu gostava de ficar acompanhando
a minha avoacute na cozinha na hortaeu aprendi muito com elardquo
Mesmo que a origem dos ingredientes mudasse por exemplo utilizando
ovo de granja no lugar do ovo caipira e manteiga industrializada o sentido
simboacutelico da receita seria o mesmo Para a neta isso natildeo faria diferenccedila
tampouco para a avoacute transmitir seu saber como pondera Giard (2012)
A aquisiccedilatildeo dos ingredientes a preparaccedilatildeo a cocccedilatildeo e as regras de compatibilidade podem muito bem mudar de uma geraccedilatildeo agrave outra Mas o trabalho cotidiano das cozinhas continua sendo uma maneira de unir mateacuteria e memoacuteria vida e ternura instante presente e passado que jaacute se foi invenccedilatildeo e necessidade imaginaccedilatildeo e tradiccedilatildeo ndash gostos cheiros cores sabores formas consistecircncias atos gestos movimentos coisas e pessoas calores sabores especiarias e condimentos (GIARD 2012 p 296)
Outra questatildeo tambeacutem discutida no item 36 do capiacutetulo anterior trata do
papel historicamente e culturalmente atribuiacutedo agrave mulher no que se refere agrave
alimentaccedilatildeo e agrave cozinha A heranccedila culinaacuteria nas famiacutelias eacute claramente feminina
A matildee ensina a filha eou a neta Antocircnio 78 anos jaacute citado anteriormente
agricultor que tambeacutem foi padeiro eacute o uacutenico exemplo de envolvimento masculino
na atividade ligada agrave culinaacuteria uma exceccedilatildeo
Um assunto jaacute mencionado no capiacutetulo anterior trata da naturalizaccedilatildeo do
gostar de cozinhar Culturalmente tende-se a imputar agraves mulheres o prazer da
culinaacuteria como se o normal fosse que todas gostassem de cozinhar e de assumir
a responsabilidade de alimentar o outro Essa naturalizaccedilatildeo ocorre segundo
Arnaiz (1996) primeiramente em funccedilatildeo da funccedilatildeo bioloacutegica da amamentaccedilatildeo
Um aspecto bioloacutegico que se ampliou para a funccedilatildeo domeacutestica como se fosse
natural Natildeo eacute Algumas mulheres podem gostar muito de cozinhar outras
podem gostar mais ou menos o que parece ser o caso de Inecircs ndash quando diz
ldquotem dia que enjoardquo e pode haver aquelas mulheres que natildeo gostam Durante a
entrevista apoacutes um longo tempo de conversa eu lhes perguntava ndash Vocecirc gosta
de cozinhar Algumas sorriam timidamente ao responder que natildeo gostavam
muito o que me pareceu um certo constrangimento em negar uma condiccedilatildeo
atribuiacuteda como sendo natural ou normal como se eu esperasse uma
confirmaccedilatildeo Como resultado dessas respostas apenas onze mulheres
disseram realmente gostar da atividade e sentir prazer com as funccedilotildees
alimentares que assumem O restante natildeo gosta muito da atividade mas
167
nenhuma delas disse detestar a atividade culinaacuteria As falas reproduziam o
sentido de fazer ldquoporque eacute precisordquo ldquoEu pra falar a verdade natildeo gosto muito
natildeo eu fico na cozinha porque natildeo tem outro recurso mas natildeo gosto muito de
cozinha natildeo eu preferiria ficar soacute costurandordquo (Nanaacute 62 anos moradora de
Xopotoacute em Presidente Bernardes)
Eu gosto Eu natildeo faccedilo por obrigaccedilatildeo natildeo eu gosto aprendi a cozinhar com minha matildee aprendi ajudando Faccedilo broa todo dia Vocecirc viu neacute hoje mesmo eu tocirc fazendo doce de figo e de ameixa vou ali colho e faccedilo faccedilo doce de cidra doce de manga doce de goiaba doce de banana que a gente colhe aqui tambeacutem (Marieta 73 anos moradora de Boa Vista em Piranga MG 2015)
Assim gostar gostar eu natildeo gosto natildeo preferia natildeo ter que cozinhar todo dia porque cansa mas tambeacutem ficar parado sem ter o que fazer eacute ruim pelo menos enquanto eu estou fazendo as coisas eu distraio (Antonina 74 anos moradora de Bananeiras em Presidente Bernardes MG 2015)
As mulheres que dizem gostar de cozinhar principalmente fazer
quitandas e doces satildeo aquelas que mais relataram o prazer de ver a casa cheia
de filhos e netos nas feacuterias feriados e aos domingos Satildeo tambeacutem as mulheres
mais velhas aposentadas Os casais de aposentados relataram certa solidatildeo de
vida nos siacutetios principalmente os que natildeo tecircm filhos por perto o que torna o fato
de receber a famiacutelia em casa uma forma de romper temporariamente com a
solidatildeo Para essas mulheres casa cheia eacute sinal de consumo de muita comida
principalmente porque a cozinha eacute sempre o lugar preferido da casa nessas
ocasiotildees como afirmaram
Dentre as atividades culinaacuterias preferidas lidar com a elaboraccedilatildeo das
quitandas se destaca preferem fazer bolos broas e rosquinhas (a favorita entre
todas as outras) do que preparar a comida do almoccedilo e do jantar
O patildeo francecircs alimento comum nos lanches ou rdquomerendasrdquo na aacuterea
urbana natildeo eacute comumente consumido e natildeo faz parte dos haacutebitos alimentares
das famiacutelias pesquisadas Eacute um item agraves vezes adquirido nas idas agrave cidade
quando costumam comprar rosca doce ou outro patildeo doce Algumas mulheres
gostam de fazer de vez em quando a ldquorosca da rainhardquo Eacute o uacutenico patildeo que foi
citado como elaboraccedilatildeo em algumas poucas casas Antonio informou durante
nossa conversa que ele natildeo conseguia vender patildeo na aacuterea rural porque as
mulheres tinham o haacutebito de fazer broa diariamente Soacute conseguia vender patildees
franceses para moradores da cidade
168
57 Receitas oralidade e registros em cadernos
Esse tema na pesquisa teve como objetivo verificar se as receitas satildeo
transmitidas por oralidade ou por registros escritos O caderno de receitas natildeo eacute
comum para todas as mulheres sobretudo entre as mulheres mais velhas acima
de 50 anos Entre elas satildeo poucas as que possuem receitas escritas
predominando a oralidade na transmissatildeo e o registro na memoacuteria das receitas
que fazem com mais frequecircncia do arroz doce ao doce de figo natildeo se recorre
agraves receitas escritas para elabora-los
Eliana por exemplo natildeo possui cadernos de receitas Tudo o que
aprendeu foi repassado oralmente ao observar e ajudar a matildee e a avoacute
Minha matildee natildeo sabia escrever e nem ler entatildeo natildeo tinha caderno ela aprendeu vendo a matildee dela fazer eu aprendi do mesmo jeito e as minhas filhas tambeacutem aprenderam a cozinhar comigo assim me vendo fazer elas devem ter caderno de receita eu nem sei mas devem de ter sim elas estudaram satildeo inteligentes (Eliana 69 anos moradora de Itapeva em Presidente Bernardes MG 2015)
A filha que mora aqui em casa natildeo gosta de cozinha natildeo mas a outra filha casada gosta Eu aprendi a cozinhar com minha matildee desde novinha mas eu natildeo faccedilo nada de receita natildeo minha matildee nunca teve caderno de receita minha filha casada aprendeu comigo ela me ajudava mas ela tem caderno de receita ela gosta de experimentar umas coisas diferentes para os filhos (Nanaacute 62 anos moradora de Xopotoacute em Presidente Bernardes MG 2015)
Nanaacute aponta em sua fala que das duas filhas uma que eacute casada e tem
filhos gosta de cozinhar e de experimentar novidades e ela associa as ldquocoisas
diferentesrdquo das quais a filha gosta como sendo comidas modernas e por isso
devem estar registradas em um caderno de receita pois o que eacute tradicional fica
registrado na mente eacute memorizado Sua outra filha a mais nova com 26 anos
que eacute solteira e estuda na faculdade natildeo gosta de culinaacuteria No depoimento de
Eliana haacute uma associaccedilatildeo do caderno de receitas com inteligecircncia e a falta dele
com o analfabetismo A sua matildee natildeo sabia ler ela mesmo lecirc pouco e justifica
isso como motivo pelo qual ela natildeo tem um caderno mas destaca que as filhas
por terem estudado devem possuir um
Giard (2012) relata depoimentos de mulheres que pesquisou na Europa
sobre cadernos de receitas tradicionais da famiacutelia que possuem semelhanccedila ao
depoimento de Eliana Uma das mulheres do trabalho de Giard respondeu que
169
as avoacutes eram tatildeo pobres que mal tinham uma cozinha e caderno de receitas natildeo
tiveram tambeacutem
Se a oralidade eacute ainda a forma mais presente de transmissatildeo dos
saberes nas famiacutelias pesquisadas fica a reflexatildeo de como isso poderaacute vir a
ocorrer no futuro com a tendecircncia de saiacuteda dos jovens das aacutereas rurais O maior
comprometimento neste sentido seria em relaccedilatildeo aos modos de fazer
tradicionais nas famiacutelias A oralidade estaacute muito ligada agraves mulheres mais velhas
acima de 50 anos As mulheres mais novas falando aqui da faixa etaacuteria
aproximada de 30 a 45 anos apesar de terem aprendido por oralidade com as
matildees natildeo tecircm aplicado a transmissatildeo das suas praacuteticas culinaacuterias agraves filhas
mesmo porque segundo mencionaram natildeo observam muito interesse ldquodas
filhasrdquo (falaram em relaccedilatildeo agraves filhas e natildeo filhos) na atividade culinaacuteria
Considerando que receitas culinaacuterias atualmente satildeo facilmente
encontradas em banca de revista na internet e no verso de embalagens
industrializadas registrar receitas na memoacuteria ou possuir um caderno de receitas
personalizado pode natildeo fazer muito sentido para as geraccedilotildees mais jovens
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 16 ndash Caderno de receitas que pertenceu agrave matildee de Anita moradora da Comunidade Manja em Piranga
A Figura 16 mostra um ldquocadernordquo que pertenceu a matildee de Anita (71
anos moradora da Comunidade Manja em Piranga) jaacute falecida Trata-se de um
caderno de contas usado tambeacutem para registrar as receitas Na receita haacute uma
170
referecircncia a um ldquopacote de creme infantilrdquo Pesquisei sobre isso e verifiquei que
produtos da Marca Nestleacute jaacute eram vendidos no Brasil na deacutecada de 1920 e na
faacutebrica na cidade de Araras produtos ldquoLactogenordquo (tipo de leite em poacute infantil)
farinha laacutectea e leite condensado Tambeacutem jaacute se vendia na forma embalada a
farinha de trigo poacute Royal e a Maisena A duacutevida que fica eacute se eram produtos que
chegavam facilmente no interior de MG na eacutepoca Haacute que se observar tambeacutem
que o caderno de contas utilizado para anotaccedilotildees estava datado o que natildeo se
sabe eacute se a receita anotada tambeacutem pertence ao mesmo periacuteodo ou se foi
aproveitado como cadernos para anotaccedilotildees de receitas e o tal ldquobolo de Mirardquo
pode ter sido registrado em data posterior Sobre anotaccedilotildees de receitas em
diversos tipos de materiais reporto a Abrahatildeo (2007) que aponta para registros
de receitas culinaacuterias que encontrou anotadas em diversos tipos de lugares e
natildeo raro em conjunto com lista de compras informaccedilotildees sobre plantio etc
A Figura 17 mostra um caderno feito com capricho que pertence a Lucia
(61 anos moradora de Manja Piranga) Ela possui trecircs cadernos de receitas
Um deles pertenceu a sua matildee e os outros dois ela mesma fez com a ajuda das
filhas Quando queria guardar uma receita pedia a uma das filhas para copiar
no caderno outras vezes ela mesmo registrava e recortava figuras de revistas
que encontrasse para ilustrar Na ocasiatildeo da pesquisa ela mencionou que natildeo
tem mais paciecircncia para registrar as receitas mas como gosta de cozinhar
costuma fazer uma ou outra receita poreacutem a maioria dos pratos que gosta de
fazer jaacute estaacute registrada na memoacuteria
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 17 ndash Caderno de receitas de Lucia da Comunidade Manja em Piranga
171
Algumas mulheres demonstraram certo constrangimento em mostrar os
cadernos Diziam que estavam ldquomanchadosrdquo ldquosujosrdquo ldquorasgadosrdquo ldquobagunccediladosrdquo
ldquomal escritosrdquo mas outras se sentiram agrave vontade e mostravam as receitas que
mais gostavam Apenas um caderno estava mais organizado o restante possuiacutea
folhas soltas anotaccedilotildees diversas e desordenadas inclusive endereccedilos de
pessoas contas lembretes e listas de compra As anotaccedilotildees eventuais nesses
cadernos ocorrem porque eles estatildeo visiacuteveis em locais de faacutecil acesso na
cozinha e na falta de outro papel para anotaccedilotildees raacutepidas ele assume esta
funccedilatildeo Pela mesma razatildeo muitos possuem manchas de gordura e respingos
de ingredientes que estavam sendo usados durante a elaboraccedilatildeo da receita Satildeo
detalhes que tambeacutem ldquofalamrdquo da cozinha e dos haacutebitos alimentares das famiacutelias
Eu tenho caderno de receita soacute que taacute tudo rasgado elas satildeo todas testadas ou foi por minha matildee ou minhas avoacutes ou minhas tias primas nada eacute copiado de televisatildeo ou de revista As folhas estatildeo quase todas soltas mas hoje quase tudo que faccedilo eu jaacute sei de cabeccedila (Claudia 66 anos moradora de Limeira em Porto Firme MG 2015)
Tenho uma agenda que uso como caderno de receita eacute uma agenda que desde 1977 quando eu casei que eu anotava tudo inclusive coisa de costura e tem ateacute receita tambeacutem (Mariacutelia 62 anos moradora de Mestre Campos em Piranga MG 2015)
Fonte Luiacutes Pereira pesquisa de campo 2015
Figura 18 ndash Mariacutelia da Comunidade de Mestre Campos em Piranga mostrando seus livros e cadernos de receitas
172
Folheando o caderno de Marieta (73 anos moradora de Boa Vista em
Piranga) me deparei com uma receita de brevidade Comentei que aprecio muito
esse bolo mas que seguindo a receita de minha matildee registrada em seu caderno
a minha nunca fica igual agrave que ela fazia Marieta resolveu entatildeo me ensinar
uma receita faacutecil que prometi testar
ldquoVou te ensinar uma receita faacutecil e muito gostosa A receita chama assim ldquo5 10 15rdquo e eacute assim Vocecirc potildee numa vasilha 5 (cinco) ovos inteiros 10 (dez) colheres de accediluacutecar bate bem e ai coloca as 15 (quinze) colheres de maisena e bate mais ainda Coloca numa forma redonda untada e potildee no fornordquo (Marieta 73 anos moradora de Boa Vista Piranga MG 2015)
Em relaccedilatildeo agraves receitas e agrave cozinha Marieta e Zefa de Presidente
Bernardes foram as mulheres mais empolgadas Contaram detalhes de algumas
quitandas que fazem e de outras que eram feitas por suas matildees e avoacutes Elas
fazem parte das poucas mulheres que entrevistei que confirmaram um grande
prazer em cozinhar
58 Os equipamentos da cozinha rural do fogatildeo a lenha agrave panela eleacutetrica de arroz
Foi em torno do fogatildeo a lenha que muitas das entrevistas aconteceram
enquanto as mulheres preparavam o almoccedilo O fogatildeo a lenha eacute o equipamento
que eu elegeria como o mais representativo na realidade das famiacutelias presente
em todas as cozinhas que visitei durante a pesquisa de campo dos mais
tradicionais feitos de argila aos mais modernos revestidos por azulejo
Instrumento transformador do ldquocru em cozidordquo e da ldquonatureza em culturardquo
propiciador de socializaccedilatildeo e de comensalidade nos dias de inverno por manter
a cozinha aquecida as pessoas gostam de ficar em torno dele sendo assim um
instrumento propiciador de sociabilidades Aleacutem desses aspectos eacute tambeacutem
usado para aquecer a aacutegua do chuveiro via serpentina
Aquela copa ali com aquela mesa eu falo que eacute pra enfeite porque quando meus filhos vem pra caacute com os filhos deles eles juntam tudo eacute aqui na cozinha Senta nesse banco ai nas cadeiras trazem mais cadeira e ficam aqui tem um filho meu que gosta de fritar torresmo ai jaacute viu neacute (Antonina 74 anos moradora de Bananeiras Presidente Bernardes MG 2015)
Eu fico ateacute meio brava agraves vezes e jaacute falo logo - Se ficar em volta de mim no fogatildeo a comida natildeo vai sair natildeo pode esparrodar todo
173
mundo pra laacute (Anita 71 anos moradora de Manja Piranga MG 2015)
Os fogotildees revestidos por azulejos representam um aspecto recente
Segundo os interlocutores uma famiacutelia reformou e revestiu o seu fogatildeo o vizinho
viu aprovou e tambeacutem reformou o seu e em pouco tempo vaacuterios fogotildees na
regiatildeo seguiram a mesma tendecircncia Para eles o revestimento em azulejo
manteacutem o fogatildeo mais limpo por fora porque eacute de faacutecil limpeza Em 11 casas
nos diferentes municiacutepios o fogatildeo estava revestido com esse material No
restante o revestimento era de argila e tinta avermelhada na tonalidade de tijolo
ou amarelado Todos possuem formato semelhante com forno anexo usado
para assar a maior parte das quitandas alguns possuem compartimento para
armazenar lenha e outros natildeo A respeito dos dois modelos de revestimento
apesar de o azulejado dar ao fogatildeo uma conotaccedilatildeo ldquomodernardquo pelo tipo de
revestimento isso natildeo altera em nada a tecnologia do fogatildeo A modernidade
conferida pelo revestimento do azulejo eacute de ordem mais esteacutetica do que
funcional
As Figuras 19 e 20 mostram os fogotildees a lenha comuns e de uso
prioritaacuterio nas casas O primeiro fogatildeo (Figura 19) pertencente agrave Mariacutelia (62 anos
moradora de Mestre Campos Piranga MG) eacute feito em alvenaria revestido por
cimento queimado no estilo tradicional e pintado de amarelo e com barras de
contorno na cor vermelha Sobre ele panelas feitas de materiais diversos como
alumiacutenio pedra barro e ferro Colher de pau e de accedilo inoxidaacutevel O fogatildeo estaacute
com o almoccedilo do dia pronto para ser servido (feijatildeo arroz angu couve carne
de boi moiacuteda com cebolinha de folha) Para evitar sujeiras e proteger o fogatildeo
uma taacutebua de madeira eacute usada como suporte para as panelas e uma lata de tinta
foi reaproveitada para forrar o local do fogo
174
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 19 ndash Fogatildeo a lenha no siacutetio de Mariacutelia
O segundo fogatildeo (Figura 20) pertencente agrave famiacutelia de Nanaacute e Custoacutedio
(61 e 72 anos respectivamente moradores de Xopotoacute em Presidente
Bernardes) eacute revestido por azulejo no estilo mais moderno Como eacute de mais
faacutecil higienizaccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria a proteccedilatildeo pela taacutebua de madeira e pela
placa de lata que haacute no fogatildeo anterior Sobre este fogatildeo estatildeo apenas panelas
de alumiacutenio com o almoccedilo a ser servido (feijatildeo angu batata doce frita couve e
peixe frito (Carpa-capim pescado no rio que passa nos fundos da casa)
Tambeacutem foi servido arroz mas neste caso feito em panela eleacutetrica um item
moderno e do qual falarei mais adiante Outro elemento da modernidade que se
observa na foto satildeo os dois potes de margarina em uma cozinha de caraacuteter
tradicional mas onde elementos da modernidade tambeacutem se fazem presentes
Nesta casa a panela eleacutetrica de fazer arroz fica sobre a pia e um moedor de cafeacute
preso afixado na parede ao lado da mesma pia O peixe e a batata doce por
exemplo foram fritos em oacuteleo de soja e a verdura e o feijatildeo refogados em gordura
de porco Nesta cozinha observei muitos dos elementos da mescla cultural
relativos agraves praacuteticas alimentares
175
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 20 - Fogatildeo a lenha no siacutetio de Nanaacute e Custoacutedio
Um detalhe que observei tambeacutem em todas as cozinhas eacute o cuidado com
a higiene e organizaccedilatildeo das cozinhas Na Figura 20 a pia possui uma cortina
estampada feita pela proacutepria Nanaacute que eacute tambeacutem costureira Coincidentemente
ou natildeo as cores das garrafas teacutermicas combinam com a cor da cortina Na Figura
19 tambeacutem os detalhes chamam a atenccedilatildeo Haacute nessas cozinhas uma noccedilatildeo de
esteacutetica e cuidado com a decoraccedilatildeo que indicam o quanto a cozinha eacute parte
importante da casa e merece destaque pelas famiacutelias em sua organizaccedilatildeo
A Figura 21 eacute outro exemplo Mostra a cozinha pertencente a Eliana e
Saturnino (69 e 75 anos respectivamente moradores de Itapeva Presidente
Bernardes) onde as cadeiras verdes combinam com a cor da porta do forno e
ficam em local estrateacutegico proacuteximo ao calor do fogo Em geral todas as cozinhas
das casas em que estive tem caracteriacutesticas como essas umas mais tradicionais
do que outras mais bonitas esteticamente do que outras mas todas muito
organizadas e limpas
176
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 21 ndash Cozinha com fogatildeo a lenha (azulejado) em siacutetio de Eliana e Saturnino
O fogo eacute destacado por Leacutevi-Strauss (1968) Wrangham (2010)
Montanari (2008) e outros como sendo fundamental para a transformaccedilatildeo do
alimento em comida e no processo da transformaccedilatildeo da natureza em cultura Se
em tempos remotos cozinhavam-se as caccedilas e outros alimentos a ceacuteu aberto
com o passar do tempo o fogo passou a ser inserido no ambiente domeacutestico e a
fazer parte do ambiente fiacutesico das casas Lemos (1996) aponta que durante
muito tempo tanto em Portugal quanto no Brasil as moradias eram chamadas
de fogos ou fogotildees tamanha a importacircncia deste equipamento
Wilson (2014 p 126) aponta que o fogo foi aos poucos sendo apagado
no mundo desenvolvido uma condiccedilatildeo necessaacuteria inclusive para que ele se
incorporasse agraves estruturas das casas Assim surgiram na Inglaterra os ldquofogotildees
fechadosrdquo que funcionavam agrave lenha e que serviam tambeacutem para aquecer a agua
ldquoUm fogatildeo nunca servia apenas para cozinhar tambeacutem era essencial para
fornecer aacutegua quente a toda a famiacutelia esquentar ferros de passar e aquecer as
matildeosrdquo Com o evento da Revoluccedilatildeo Industrial surgiram os fogotildees agrave base de
ferro fundido que funcionavam a carvatildeo Mas a autora explica que seu uso era
comum nas cidades pois nas aacutereas rurais permaneceu o uso do fogatildeo agrave lenha
por muitos anos O avanccedilo tecnoloacutegico logo propiciou o surgimento do fogatildeo a
gaacutes na deacutecada de 1880 considerado pela autora como um equipamento que
177
gerou ldquoum progresso real na cozinhardquo A sua aceitaccedilatildeo foi raacutepida em funccedilatildeo de
sua facilidade e praticidade e como mencionado pela autora em 1939 na
Inglaterra trecircs quartos das famiacutelias cozinhavam no fogatildeo a gaacutes
No que se refere ao grupo pesquisado mesmo em virtude de sua
praticidade o fogatildeo a gaacutes natildeo substituiu o fogatildeo agrave lenha Esse siacutembolo de
modernidade natildeo foi forte o suficiente para romper com a tradiccedilatildeo do fogatildeo agrave
lenha O fogatildeo a gaacutes eacute pouquiacutessimo utilizado ndash apenas para preparar o cafeacute da
manhatilde enquanto acende-se o fogatildeo a lenha ou para fazer ldquocoisa menorrdquo como
aquecer uma aacutegua ou o leite agrave tarde
No caso das famiacutelias em que as mulheres trabalham fora do siacutetio o fogatildeo
a gaacutes eacute mais usado para elaboraccedilatildeo do almoccedilo do que o fogatildeo a lenha A razatildeo
eacute a facilidade para os maridos e os filhos que aquecem o almoccedilo que elas deixam
pronto ou adiantado mas o fogatildeo a lenha permanece usado para aquecer a aacutegua
aquecer a aacutegua do chuveiro pela serpentina como citado por Ivone
Usamos mais o fogatildeo a gaacutes no dia a dia porque eu trabalho na escola do arraial de manhatilde e quando eu chego costumo ir ajudar meu marido ai ateacute acender o fogo demora muito pra aquecer entatildeo o fogatildeo a gaacutes eacute mais praacutetico para noacutesa gente liga o fogatildeo a lenha mesmo mais pra esquentar a aacutegua do chuveiro porque a gente tem serpentina mas a comida mesmo eacute no gaacutes Mas agrave tarde eacute mais faacutecil esquentar a comida no fogatildeo a lenha ainda mais agora que o frio vai chegando porque ele esquenta a casa (Ivone 38 anos moradora de Posses em Porto Firme MG 2015)
Nos que se refere ao uso dos fogotildees eacute tambeacutem possiacutevel perceber a
mescla cultural o moderno e o tradicional convivendo sem que isso gere
mudanccedilas radical nos costumes
As localizaccedilotildees das cozinhas nas casas que visitei satildeo nos fundos da
casa voltadas para o quintal semelhantemente ao que eacute apontado por Lemos
(1976) e Abrahatildeo (2007) sobre a disposiccedilatildeo do fogatildeo e da cozinha das casas
coloniais brasileiras Os fogotildees a lenha assim como o fogatildeo a gaacutes ficam na
ldquocozinha limpardquo expressatildeo usada por Algranti (1997) que eacute interna agrave casa Em
algumas casas havia tambeacutem a ldquocozinha sujardquo que possui mais um fogatildeo a
lenha e ou a gaacutes para torrar pequenas quantidades de cafeacute ligar o acendedor
de ldquolimparrdquo o porco apoacutes o abate fazer frituras de toucinho torresmo etc Natildeo se
trata de uma outra cozinha de alvenaria fechada mas sim de uma pequena
coberta no quintal
178
Outro fogatildeo que fica externo agrave casa eacute o fogatildeo de Cupim jaacute citado (Figura
21) Os fogotildees de cupim tambeacutem satildeo usados para fazer as comidas mais
gordurosas como descreve Doca (55 anos moradora de Boa Vista Piranga)
ldquoQuando a gente mata capado a gente frita as carnes os toucinhos no fogatildeo
de cupim laacute forardquo Os cupins satildeo retirados dos pastos e transportados por
carroccedila ateacute o quintal Neles satildeo feitos um buraco na lateral e rente ao chatildeo onde
eacute colocada a lenha e outro buraco em cima onde coloca-se a panela
Como jaacute mencionado o forno de barro apesar de existente nas casas
quase natildeo eacute utilizado pelas famiacutelias atualmente por motivos jaacute expostos Em uma
das casas o forno estava sendo usado para guardar objetos em desuso
Mas quando meus filhos vecircm ai sim eu acendo o forno grande laacute fora Eles sempre vecircm no natal A casa fica cheia ai daacute gosto usar o forno eles pedem pra fazer o que eles gostam ai a gente faz neacute (Zefa 67anos moradora de Mato Dentro em Presidente Bernardes MG 2015)
A Figura 22 pertence ao siacutetio de Selma e Lourival (68 e 76 anos
respetivamente) moradores da comunidade Tatu em Piranga Ao lado do forno
em alvenaria haacute uma espeacutecie de churrasqueira coberta com uma chapa de ferro
e uma churrasqueira menor de ferro fundido Esse espaccedilo segundo Selma eacute
utilizado apenas quando a casa estaacute cheia com a presenccedila dos filhos que gostam
e fazer churrascos quando estatildeo reunidos Nessas ocasiotildees ela tambeacutem utiliza
o forno para assar maior quantidade de quitandas
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 22 ndash Forno de barro e churrasqueira no siacutetio de Selma e Lourival
179
As famiacutelias possuem alguns equipamentos eleacutetricos nas cozinhas forno
de micro-ondas forno eleacutetrico panela eleacutetrica de fazer arroz e freezer mas nem
todos faziam parte da realidade de todas as famiacutelias Jaacute o liquidificador a
batedeira de bolo o espremedor de frutas e a geladeira existentes em todas as
casas O forno de micro-ondas o freezer e a batedeira de bolo satildeo usados
esporadicamente como jaacute visto no assunto sobre as quitandas com exceccedilatildeo do
freezer de Marcelina que estoca os salgados que produz para vender Natildeo
gostam de usar a batedeira porque ldquodaacute trabalho para lavar e depois guardarrdquo
A gente usa o micro-ondas para esquentar uma comida um leite agrave noite agraves vezes para descongelar uma carne comprar carne no accedilougue taacute muito caro assim eu mato um garrote vem um moccedilo do accedilougue da cidade e mata para noacutes ele conhece as partes desossa e ai congela as partes separadaspotildee nome das carnes em todos os pacotes separados e fica num freezer que a gente tem soacute pra isso (Joatildeo 81 anos morador de Aacutegua Limpa Porto Firme MG 2015)
Considerei interessante o desprendimento com o qual Joatildeo com seus
81 anos falava sobre o uso do micro-ondas Sabe utilizar o equipamento e
apesar de natildeo usar com frequecircncia natildeo demonstrou resistecircncia em utiliza-lo
quando necessaacuterio mas natildeo foi sempre assim O equipamento foi presente dado
por um dos filhos que moram fora da regiatildeo e durante muito tempo o casal
atribuiacutea utilidade a ele ateacute os filhos mostrarem alguns resultados de
descongelamento e aquecimento como o que a famiacutelia mais utiliza explicitado
na sua fala Wilson (2014) discute sobre a resistecircncia que muitos equipamentos
de uso corriqueiro na contemporaneidade ndash dentre eles o micro-ondas ndash tiveram
quando do seu surgimento tendo sido recebido sob protestos de que os meacutetodos
antigos eram melhores e mais seguros
Em quatros das casas que visitei havia a panela eleacutetrica de fazer arroz
Foram presentes de filhos ou mesmo adquiridos pelas mulheres inicialmente
pela curiosidade associada ao preccedilo relativamente baixo Este equipamento
surgiu no Japatildeo na deacutecada de 1960 mudando completamente a rotina de
produzir o tipo de arroz nas cozinhas asiaacuteticas Wilson (2014) destaca que esse
tipo de panela eacute equipamento mais importante nas casas japonesas do que a
televisatildeo Nas famiacutelias que pesquisei e que possui a panela eleacutetrica ela nem de
longe eacute mais importante do que outros equipamentos tradicionais como o fogatildeo
mas estaacute ganhando espaccedilo de convivecircncia na cozinha sem maiores conflitos
180
Em uma das casas onde almocei tive a oportunidade de conhecer seu
funcionamento e experimentar o arroz produzido As mulheres elogiaram o
equipamento afirmando que ldquoO arroz fica mais soltinho eacute muito melhor fazer
arroz nela natildeo daacute trabalho nenhumrdquo (Nanaacute moradora de Xopotoacute em Presidente
Bernardes)
A presenccedila e uso desses equipamentos satildeo tambeacutem exemplos da
coexistecircncia entre elementos modernos e tradicionais nas famiacutelias Enquanto se
faz o restante da comida no fogatildeo a lenha a panela eleacutetrica de arroz fica em
funcionamento sobre a pia Giard (2012) ao tratar da introduccedilatildeo dos
equipamentos eleacutetricos na cozinha destaca que o uso de um aparelho eleacutetrico
envolve a relaccedilatildeo instrumental que se estabelece entre utilizador e objeto
utilizado ldquoA cozinheira apenas alimenta esse objeto teacutecnico com ingredientes
que devem ser transformados depois liga o aparelho apertando um botatildeo
eleacutetrico e recolhe a mateacuteria transformada sem controlar as etapas intermediaacuterias
da operaccedilatildeordquo (GIARD 2012 p 284) Para esta autora apesar da praticidade
desses equipamentos eleacutetricos eles propiciaram rompimentos na transmissatildeo
de algumas habilidades culinaacuterias mas ainda assim considera perfeitamente
possiacutevel a junccedilatildeo da modernidade dos equipamentos eleacutetricos com os utensiacutelios
tradicionais usufruindo das comodidades oferecidas pelos primeiros e mantendo
relaccedilatildeo igualmente necessaacuteria e importante com os objetos tradicionais Mas
defende que satildeo formas de convivecircncia que natildeo devem ser impostas cada
grupo ou pessoa deve fazer sua escolha de acordo com suas manifestaccedilotildees
culturais
Finalizando a pesquisa de campo destaco que ela trouxe informaccedilotildees
ricas sobre o modo de vida a sociabilidade e a cultura das famiacutelias pesquisadas
no que se refere agraves praacuteticas alimentares e a comensalidade A pesquisa mostrou
que as famiacutelias estatildeo inseridas em uma cultura que eacute dinacircmica mas que
preserva e valoriza a cultural tradicional Percebi durante a investigaccedilatildeo muitas
conexotildees e correlaccedilotildees com a pesquisa teoacuterica me conduzindo o tempo a fazer
reflexotildees analiacuteticas pensando na interface entre a teoria e a praacutetica Sobre as
percepccedilotildees finais relacionadas ao campo teccedilo consideraccedilotildees no item a seguir
181
CONCLUSOtildeES
Neste trabalho apontei caracteriacutesticas e peculiaridades das praacuteticas
alimentares das famiacutelias rurais que entrevistei O tema da alimentaccedilatildeo natildeo se
conclui pelo contraacuterio ele eacute dinacircmico Chamo de conclusatildeo aqui o fechamento
analiacutetico com outras discussotildees e reflexotildees sobre esta pesquisa
Haacute uma discussatildeo na antropologia e sociologia da alimentaccedilatildeo sobre a
tendecircncia a homogeneizaccedilatildeo alimentar na sociedade ocidental seguindo os
rumos da sociedade moderna e globalizada como tratado por Bauman (2001)
Esta premissa foi um dos pontos que me fez refletir inicialmente o problema de
pesquisa ao questionar se nela natildeo estava impliacutecita uma desconsideraccedilatildeo agraves
diversidades culturais Nesse sentido pensei a questatildeo no contexto rural ndash
especialmente no contexto rural da Zona da Mata mineira por ser nele onde
mais tive a oportunidade de conviver socialmente e academicamente ateacute hoje
Assim conhecer e analisar o sistema alimentar de famiacutelias rurais seus
haacutebitos praacuteticas e a comensalidade foi fundamental para ponderar e tecer
consideraccedilotildees conclusivas a respeito dessa questatildeo Este trabalho permitiu
compreender que tal premissa natildeo se aplica agrave realidade sociocultural das
famiacutelias pesquisadas No contexto cultural em que vivem natildeo se verificou a
adoccedilatildeo das praacuteticas alimentares homogeneizantes das quais trata Fischler (1979
e 1998) homogeneidade considerada como um resultado natural na dinacircmica
da sociedade contemporacircnea em funccedilatildeo das constantes inovaccedilotildees na induacutestria
de alimentos tornando potencialmente inevitaacutevel a praacutetica e o consumo
alimentar cada vez mais padronizados no ocidente Embora as famiacutelias natildeo
estejam imunes agraves modernidades alimentares da induacutestria demonstraram
capacidade e interesse em selecionar o que desse contexto deve ser adotado e
o que deve ser rejeitado por elas
A pesquisa mostrou a existecircncia de uma homogeneizaccedilatildeo alimentar na
realidade cultural das famiacutelias pesquisadas poreacutem uma homogeneizaccedilatildeo local
e pontual que natildeo eacute semelhante a homogeneizaccedilatildeo alimentar tratada pelo autor
acima Ao contraacuterio nas famiacutelias que pesquisei essa homogeneidade alimentar
estaacute inteiramente ligada agrave tradiccedilatildeo e agrave produccedilatildeo local de alimentos Ela eacute
inclusive compatiacutevel com o processo sociohistoacuterico de ocupaccedilatildeo da regiatildeo e
diretamente determinada por ele Coincidindo com o que pondera Flandrin e
182
Montanari (1998) sobre a necessidade de relativizar a discussatildeo sobre a
homogeneizaccedilatildeo cultural e considerar as particularidades sociais e culturais dos
grupos
Todas as famiacutelias pesquisadas abrangendo os trecircs municiacutepios tecircm
haacutebitos e praacuteticas alimentares semelhantes independente da faixa etaacuteria dos
casais e filhos que formam o grupo familiar A semelhanccedila tambeacutem se aplica aos
produtos cultivados nos siacutetios que representam quase que a totalidade da dieta
baacutesica das famiacutelias Assemelham-se tambeacutem os alimentos adquiridos do
mercado
As mudanccedilas observadas nas praacuteticas alimentares tais como a adoccedilatildeo
de novas tecnologias ndash entre elas a substituiccedilatildeo do moinho drsquoaacutegua pelo moinho
eleacutetrico e a opccedilatildeo de comprar alguns alimentos antes produzidos por eles como
o arroz e o accediluacutecar ndash natildeo implica um abandono total da tradiccedilatildeo As famiacutelias estatildeo
convivendo ou se adaptando aos processos de mudanccedilas no mundo
contemporacircneo sem transformar significativamente a proacutepria cultura O uso do
moinho eleacutetrico em lugar do moinho drsquoaacutegua natildeo tem colocado em risco o
consumo do fubaacute na elaboraccedilatildeo de comidas tradicionais como o angu e a broa
Esse comportamento se assemelha agravequele entendimento apresentado por
autores como Giddens (2012) Doacuteria (2014) e Cacircndido (1982) que acreditam
que a convivecircncia possiacutevel e mais provaacutevel de ocorrer na contemporaneidade
se daacute por meio da mescla entre fatores de persistecircncia e os de mudanccedilas que
se complementam mas sem extinguir as construccedilotildees simboacutelicas tradicionais
Eacute importante ressaltar que a incorporaccedilatildeo das opccedilotildees de praacuteticas
alimentares modernas tambeacutem natildeo eacute acriacutetica As famiacutelias sabem que a
substituiccedilatildeo de uma pratica por outra implica em riscos e em perdas e ganhos
como no caso da gordura de porco Mostraram-se conscientes quanto agrave questatildeo
relativa agrave sauacutede no consumo desse alimento mas ele continua sendo
prioritariamente utilizado na preparaccedilatildeo de comidas tradicionais O que
prevalece neste caso eacute a escolha pelo sabor do alimento e pelo significado
simboacutelico e tradicional atrelado a ele Tal como reforccedilado pelos interlocutores a
comida feita com gordura de porco eacute mais saborosa e eacute a que daacute ldquosustanccedilardquo
Ainda que algumas pessoas tenham demonstrado estar mais preocupadas com
a sauacutede do que com o sabor e preferissem utilizar somente o oacuteleo vegetal natildeo
eacute essa opccedilatildeo que prevalece no montante das famiacutelias porque as mudanccedilas satildeo
183
ou natildeo incorporadas nas praacuteticas alimentares levando em consideraccedilatildeo
tambeacutem a cultura familiar
Pode-se afirmar tambeacutem que a adoccedilatildeo pelas tecnologias e praacuteticas
alimentares modernas natildeo tem sido radical Um exemplo disso eacute a manutenccedilatildeo
prioritaacuteria do uso do fogatildeo a lenha O fogatildeo a gaacutes assume um lugar importante
no preparo do almoccedilo nas famiacutelias onde as mulheres trabalham fora do siacutetio o
que aponta para um dos ajustes necessaacuterios que as famiacutelias tecircm precisado fazer
para se adaptar agraves novas realidades vividas Ainda assim o fogatildeo a lenha
continua sendo utilizado para fazer o jantar e para aquecer a aacutegua do chuveiro
evitando-se com isso o consumo de energia eleacutetrica Natildeo houve tambeacutem
nessas famiacutelias a substituiccedilatildeo de alimentos in natura por industrializados
congelados visando a praticidade na preparaccedilatildeo do almoccedilo Eacute importante
ressaltar que nessas famiacutelias ocorre uma alteraccedilatildeo no papel masculino relativo
a culinaacuteria jaacute que os maridos e os filhos passam a aquecer e a preparar alguns
itens de sua alimentaccedilatildeo Se antes essa era uma responsabilidade
exclusivamente feminina as mudanccedilas no papel masculino sinalizam ainda que
timidamente novas negociaccedilotildees de gecircnero nessas famiacutelias sinalizando
alteraccedilotildees em um espaccedilo que historicamente e culturalmente eacute de domiacutenio
feminino Eacute uma heranccedila que ainda vem resistindo e passando de avoacutes para
matildees e netas e de matildee para filhas
A articulaccedilatildeo entre o tradicional e o moderno na cultura alimentar das
famiacutelias mostrou estar ocorrendo sem impasses ou conflitos significativos
Mesmo que a compra de um alimento in natura proveniente da CEASA vendido
pelos caminhotildees gere receio da ingestatildeo de agrotoacutexicos essa aquisiccedilatildeo ocorre
ainda que eventualmente e por necessidade especiacutefica
A tradiccedilatildeo do consumo e elaboraccedilatildeo das quitandas permanece em todas
as famiacutelias Ela representa aleacutem de uma ldquomerendardquo importante para as famiacutelias
no dia a dia uma importante continuidade tradicional Elaboram-se as mesmas
quitandas haacute geraccedilotildees e ao mesmo tempo ocorrem ligeiras substituiccedilotildees como
o biscoito de polvilho frito pelo assado e adquirido no mercado local O patildeo
francecircs que eacute tatildeo consumido nas aacutereas urbanas natildeo faz parte do gosto
alimentar das famiacutelias e eacute de consumo muito raro
Na manutenccedilatildeo dos haacutebitos alimentares tradicionais estaacute presente a
influecircncia dos guardiatildees da tradiccedilatildeo na reproduccedilatildeo do gosto no processo de
184
significaccedilatildeo e ressignificaccedilatildeo da comida atrelada agraves praacuteticas aos saberes e aos
haacutebitos tanto no cotidiano quanto nas comidas de dias festivos A constacircncia
das expressotildees ldquoaprendemos a comer assimrdquo ldquoaprendi a cozinhar vendo minha
matildee fazerrdquo ldquona casa de meus pais fazia assimrdquo denotam a valorizaccedilatildeo dos
aprendizados e o interesse na perpetuaccedilatildeo dos haacutebitos
No que se refere agrave comensalidade no grupo familiar a pesquisa mostrou
que ela estaacute passando por modificaccedilotildees importantes em algumas famiacutelias
Naquelas em que as mulheres trabalham nas escolas a comensalidade ocorre
na escola em companhia de outras colegas e alunos nos horaacuterios de almoccedilo No
restante do grupo a comensalidade se daacute entre aqueles que estatildeo em casa jaacute
que nessas famiacutelias natildeo foi citado casos de pessoas que almoccedilam na atividade
local com o uso de marmita A comensalidade no horaacuterio de jantar tem sofrido
modificaccedilotildees nos uacuteltimos anos em todas as famiacutelias mesmo naquelas com
pessoas mais velhas Ocorre com frequecircncia entre eles servir o prato e se
sentarem na sala para assistir televisatildeo enquanto jantam Houve entatildeo um
deslocamento da mesa da cozinha para o sofaacute da sala Se em tempos passados
o fogo era um fator socializador e propiciador da comensalidade que ocorria
em torno da fogueira da lareira e do fogatildeo a lenha como apontado por
Wrangham (2010) e Montanari (2008) na modernidade a televisatildeo pode tambeacutem
assumir essa funccedilatildeo tanto no meio urbano quanto no meio rural pelo menos no
que se refere agraves famiacutelias que entrevistei
Alimentos industrializados satildeo consumidos em todas as famiacutelias
embora natildeo em grande quantidade e diversidade proporcionalmente ao que se
encontra disponiacutevel nos mercados e satildeo itens importantes nos cardaacutepios As
famiacutelias adquirem alimentos que sempre fizeram parte dos haacutebitos alimentares
e que em tempos passados jaacute foram produzidos nos siacutetios No entanto compram
tambeacutem alguns alimentos que nunca foram produzidos localmente mas que
passaram a ser adotados o que aponta para a dinacircmica da cultura
O significado da comida para as famiacutelias tem importante ligaccedilatildeo com a
tradiccedilatildeo e representa uma identificaccedilatildeo significativa com as geraccedilotildees passadas
Marca ainda a ligaccedilatildeo com a terra ao serem consumidos prioritariamente o que
se produz no local As comidas tradicionais e elaboradas de modo simples satildeo
as que mais agradam ao paladar das famiacutelias e apesar de ser um cardaacutepio de
certa forma monoacutetono natildeo se torna indesejado e natildeo foi apontado pelas famiacutelias
185
algum desejo ou necessidade por experimentar comidas diferentes das que
estatildeo habituados A prioridade do grupo pesquisados pela alimentaccedilatildeo baseada
em produtos cultivados localmente e em praacuteticas mais tradicionais coincide com
o que proposto pelo ldquoGuia Alimentar para a Populaccedilatildeo Brasileirardquo (2015)
publicado pelo Ministeacuterio da Sauacutede contendo diretrizes de uma alimentaccedilatildeo
saudaacutevel e considerando como importante tambeacutem o aspecto cultural
As famiacutelias estatildeo conscientes de que as transformaccedilotildees constantes que
ocorrem na sociedade atual tecircm o poder de interferir em suas praacuteticas e haacutebitos
alimentares Consideram que vai se tornando cada vez mais difiacutecil manter seus
haacutebitos alimentares por fatores de caraacuteter mais externos do que internos e que
interferem na sua dinacircmica de reproduccedilatildeo social e econocircmica
Inseridas no processo que envolve tanto o desejo de manter sua
autonomia produtiva e cultura alimentar quanto agrave necessidade de ceder a
algumas mudanccedilas essas famiacutelias estatildeo aprendendo a se adaptar com as
experiecircncias do cotidiano natildeo se fecham em seus nuacutecleos culturais e nem se
posicionam avessos agraves mudanccedilas demonstram uma atitude resignada poreacutem
criacutetica acatando os itens da modernidade alimentar que lhes agrada e lhes satildeo
importantes e rejeitando o que natildeo lhes interessa respeitando prioritariamente
a cultura local no sentido tratado por Helman (1994) no processo de escolha
alimentar Haacute nessa percepccedilatildeo um sentido de resistecircncia identitaacuteria alimentar
semelhante agrave que Poulain (2013) discute como sendo uma das caracteriacutesticas
das culturas alimentares locais
Por fim concluo que na ocasiatildeo da pesquisa a comida possuiacutea a
mesma centralidade cultural para as famiacutelias que pesquisei que aquela da eacutepoca
de seus antepassados Apesar de estarem inseridas na dinacircmica
contemporacircnea de mudanccedilas a vida cotidiana ainda segue um ritmo lento que
de certa forma difere do ritmo das aacutereas urbanas o que permite ainda este status
central da comida em sua cultura
186
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ROMILDA DE SOUZA LIMA
PRAacuteTICAS ALIMENTARES E SOCIABILIDADES EM FAMIacuteLIAS RURAIS DA ZONA DA MATA MINEIRA MUDANCcedilAS E PERMANEcircNCIAS
Tese apresentada agrave Universidade Federal de Viccedilosa como parte das exigecircncias do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Extensatildeo Rural para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doctor Scientiae
APROVADA 25 de novembro de 2015
ii
Aos meus pais que me ensinaram a fazer escolhas na vida baseadas no amor
e a me dedicar com responsabilidade a tudo que faccedilo Ao meu pai que sempre
se despede dos filhos e netos dizendo ldquovai em paz seja felizrdquo Agrave minha matildee
que adoeceu e faleceu no meio do processo do doutorado e que apesar de
seu estado de sauacutede esteve sempre atenta e preocupada com meu trabalho
Ela que gostava de experimentar pratos novos mas elaborava a comida
tradicional como ningueacutem me ensinou que a cozinha eacute um lugar onde coisas
boas acontecem para quem estaacute disposto a vivenciar sua ldquoalquimiardquo
iii
AGRADECIMENTOS
A Deus por tudo Por me sentir capaz de superar os momentos de
tristeza e fragilidade e vivenciar sem culpa os momentos de alegria e de
bonanccedila
Ao meu orientador Joseacute Ambroacutesio Ferreira Neto pela orientaccedilatildeo apoio
e confianccedila Por assumir minha orientaccedilatildeo em 2014 e me ajudar nesta travessia
Pela oacutetima orientaccedilatildeo pelas criacuteticas e elogios
A Rita de Caacutessia Pereira Farias pela coorientaccedilatildeo pelas importantes
contribuiccedilotildees ao trabalho pelo incentivo e as conversas que tivemos
Aos professores membros da banca examinadora Eliana Gomes de
Souza Douglas Mansur da Silva Ricardo Ferreira Ribeiro e ainda Joseacute
Ambroacutesio Ferreira Neto e Rita de Caacutessia Pereira Farias pela participaccedilatildeo pelas
criacuteticas e sugestotildees
Aos teacutecnicos da Emater dos municiacutepios pesquisados Rita Maria
Brumano Oliveira Geraldo Antocircnio da Silva Eduardo Muniz e ao assistente de
escritoacuterio Luiz Antocircnio Faria por todo apoio necessaacuterio agrave realizaccedilatildeo da pesquisa
de campo pela companhia em muitas das comunidades visitadas
Agraves famiacutelias que entrevistei e que me receberam tatildeo bem Agradeccedilo pela
compreensatildeo a respeito da pesquisa e pelas longas horas dedicadas ao diaacutelogo
pelas deliciosas refeiccedilotildees que fiz em companhia delas Meu aprendizado com
essa convivecircncia foi imenso
Agradeccedilo ao meu pai e minha matildee ndash ldquoouro de Minardquo E agradeccedilo pelo
carinho de sempre a toda minha famiacutelia que estaacute o tempo todo presente na
travessia que faccedilo pela vida ainda que muitas vezes agrave distacircncia Aos meus
irmatildeos Cristina e Joseacute Mauro sempre preocupados com a irmatilde mais nova Ao
meu irmatildeo Gumercindo pelo apoio nos momentos difiacuteceis e pelos conselhos
acadecircmicos durante o doutorado Agrave minha cunhada Luciana pelo socorro em
momentos de fragilidade com a sauacutede apoacutes noitadas sem dormir
Ao Felipe amor que chegou no meio da trajetoacuteria do doutorado
companheiro que soacute tem me trazido alegria amor e apoio incondicional e muita
muacutesica
iv
A Luana minha enteada querida pelas revisotildees dos abstracts para
artigos e por ter compreendido facilmente minha ausecircncia em seu casamento
no Rio de Janeiro em funccedilatildeo do trabalho
Agrave Universidade Federal de Viccedilosa pela oportunidade de realizar o
doutorado e aos professores do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Extensatildeo
Rural pelas trocas de experiecircncias e conhecimentos Aos funcionaacuterios do
Departamento de Economia Rural sobretudo Romildo e Carminha pela atenccedilatildeo
e simpatia
Agrave Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute instituiccedilatildeo onde atuo haacute
12 anos por ter permitido meu afastamento para fazer o doutorado
Agrave CAPES pelos dois anos de bolsa REUNI (2012 e 2013)
Agraves colegas de doutorado pelas conversas pelas alegrias e tristezas que
compartilhamos em alguns momentos e pelas boas energias que partilhaacutevamos
na conduccedilatildeo do trabalho Agradeccedilo tambeacutem os estudantes do mestrado com
quem fiz amizade ao longo de todo o periacuteodo A Fernanda Machado por me
socorrer elaborando os dois mapas que precisei
v
SUMAacuteRIO
LISTA DE TABELAS vii
LISTA DE QUADROS viii
LISTA DE FIGURAS ix
LISTA DE SIGLAS xi
RESUMO xii
ABSTRACT xiv
INTRODUCcedilAtildeO 1
1 A REGIAtildeO DE ESTUDO 5
11 Um breve histoacuterico de ocupaccedilatildeo da regiatildeo estudada 6
12 Informaccedilotildees atuais sobre a populaccedilatildeo rural e as principais atividades agriacutecolas dos municiacutepios pesquisados 10
13 Atividades produtivas 13
2 A COMIDA EM MINAS GERAIS DA ESCASSEZ Agrave FARTURA 18
21 Contextualizando o lugar da comida no Brasil Colonial nos primoacuterdios 18
22 Fase da mineraccedilatildeo em Minas Gerais escassez de alimentos 24
23 Fase da ruralizaccedilatildeo em Minas Gerais fartura de alimentos 29
3 ALIMENTACcedilAtildeO E CULTURA PERMANEcircNCIAS E TRANSFORMACcedilOtildeES 36
31 A alimentaccedilatildeo como categoria de estudo multidisciplinar contribui-ccedilotildees da antropologia da sociologia e da histoacuteria 36
32 Sistema alimentar 46
321 Alimentos aceitos e rejeitados 49
3211 Haacutebitos alimentares orientados por costumes e tradiccedilotildees 52
33 Alimento comida e cultura 55
331 A importacircncia social e cultural do uso do fogo e sua relaccedilatildeo com a comensalidade 59
3311 O local do fogo e da praacutetica da comensalidade na arquitetura domeacutestica 63
34 Praacuteticas alimentares na contemporaneidade entre o tradicional e o moderno 68
35 Modernidade e tradiccedilatildeo no contexto alimentar rural contemporacircneo 78
36 O papel feminino nas praacuteticas alimentares na famiacutelia 86
4 ASPECTOS METODOLOacuteGICOS DA PESQUISA E A CHEGADA AO CAMPO 94
41 Teacutecnica de pesquisa 95
vi
42 Os sujeitos da pesquisa 95
43 A conduccedilatildeo da pesquisa o caminho percorrido 96
44 A entrevista semiestruturada 98
45 A imersatildeo em campo a chegada e a travessia 98
46 Descobrindo a cultura local dos entrevistados 101
461 Perfil das famiacutelias 101
462 A produccedilatildeo agriacutecola local 107
463 Atividades cotidianas de trabalho nos siacutetios 108
5 CULTURA E PRAacuteTICAS ALIMENTARES NO SISTEMA FAMILIAR RURAL RELACcedilOtildeES COM A COMIDA PERMANEcircNCIAS E MUDANCcedilAS 114
51 Comida ldquoforterdquo e comida ldquofraca contradiccedilotildees mudanccedilas e permanecircn-cias 114
511 Outras comidas ldquofortesrdquo 125
52 Consideraccedilotildees sobre a importacircncia do milho e do fubaacute 129
53 Comida de todo dia comida de festa e as relaccedilotildees de comensalidade 137
531 Comida de todo dia o trivial 137
532 Comida de domingo de dias festivos e comensalidade 143
533 Os doces 151
54 A comensalidade para aleacutem das festas e datas especiais 154
55 Mescla cultural praacuteticas de consumo alimentar de ontem e de hoje 156
56 As quitandas para a merenda e para servir agraves visitas 160
57 Receitas oralidade e registros em cadernos 168
58 Os equipamentos da cozinha rural do fogatildeo a lenha agrave panela eleacutetrica de arroz 172
CONCLUSOtildeES 181
REFEREcircNCIAS 186
vii
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 ndash Aacuterea e populaccedilatildeo da microrregiatildeo de Viccedilosa (2015) 11
Tabela 2 ndash Percentual da populaccedilatildeo urbana e rural da microrregiatildeo de Viccedilosa nas deacutecadas de 1980 a 2010 (2015) 11
Tabela 3 ndash Populaccedilatildeo rural por diferentes faixas etaacuterias 12
Tabela 4 ndash Percentual da populaccedilatildeo rural por diferentes faixas etaacuterias () 13
Tabela 5 ndash Comparativo entre perfil etaacuterio do IBGE (2010) e da pesquisa de campo 2015 () 106
Tabela 6 ndash Comparativo da composiccedilatildeo de gecircnero do IBGE e da pesquisa de campo 2015 106
viii
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 ndash Municiacutepios comunidades e nuacutemero de famiacutelias 2015 96
Quadro 2 ndash Fonte de renda das famiacutelias pesquisadas 2015 108
ix
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 ndash Microrregiotildees da Zona da Mata de Minas Gerais 5
Figura 2 ndash Microrregiatildeo de Viccedilosa Minas Gerais 6
Figura 3 ndash Santuaacuterio de Bom Jesus de Matozinhos em Bom Jesus do Bacalhau 9
Figura 4 ndash Milho colhido no siacutetio de Anita e Gilberto na comunidade de Manja em Piranga 15
Figura 5 ndash Carro de boi transportando espigas de milho da roccedila para o paiol na estrada da comunidade de Manja em Piranga 16
Figura 6 ndash Engenho de produccedilatildeo de rapadura no siacutetio de Lola e Marcos na comunidade Xopotoacute Presidente Bernardes 16
Figura 7 ndash Moinho drsquoaacutegua no siacutetio de Manoel e Donana na Comunidade Limeira Porto Firme 130
Figura 8 ndash Moinho eleacutetrico no siacutetio de Nanaacute e Custoacutedio na Comunidade Xopotoacute em Piranga 131
Figura 9 ndash Cebolas e alhos armazenados no paiol do siacutetio de Maria e Laeacutercio na comunidade Itapeva em Presidente Bernardes 139
Figura 10 ndash Horta no siacutetio de Eliana e Saturnino em Itapeva Presidente Bernardes MG 140
Figura 11 ndash Fogatildeo de cupim no quintal do siacutetio de Eliana e Saturnino em Itapeva Presidente Bernardes 146
Figura 12 ndash Processo de fritura do ldquomilhopatilderdquo 149
Figura 13 ndash Doce de ameixa feito por Marieta na comunidade Boa Vista em Piranga MG 154
Figura 14 ndash Broa do tipo Cobu ou ldquopau a piquerdquo 161
Figura 15 ndash Broa de fubaacute feita por Eliana em Itapeva Presidente Bernardes 162
Figura 16 ndash Caderno de receitas que pertenceu agrave matildee de Anita moradora da Comunidade Manja em Piranga 169
Figura 17 ndash Caderno de receitas de Lucia da Comunidade Manja em Piranga 170
Figura 18 ndash Mariacutelia da Comunidade de Mestre Campos em Piranga mostrando seus livros e cadernos de receitas 171
x
Figura 19 ndash Fogatildeo a lenha no siacutetio de Mariacutelia 174
Figura 20 - Fogatildeo a lenha no siacutetio de Nanaacute e Custoacutedio 175
Figura 21 ndash Cozinha com fogatildeo a lenha (azulejado) em siacutetio de Eliana e Saturnino 176
Figura 22 ndash Forno de barro e churrasqueira no siacutetio de Selma e Lourival 178
xi
LISTA DE SIGLAS
CAPES ndash Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior
CEP ndash Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa com Seres Humanos
ECA ndash Estatuto da Crianccedila e do Adolescente
EMATER-MG ndash Empresa de Assistecircncia Teacutecnica e Extensatildeo Rural do Estado de
Minas Gerais
FAOONU ndash Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas para Agricultura e Alimentaccedilatildeo
FBSSAN ndash Foacuterum Brasileiro de Soberania e Seguranccedila Alimentar e Tradicional
IARC ndash International Agency for Research on Cancer
IBGE ndash Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica
IPHAN ndash Instituto do Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional
ODELA ndash Observatorio de la Alimentacioacuten
OMS ndash Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede
PAA ndash Programa de Aquisiccedilatildeo de Alimentos
UFV ndash Universidade Federal de Viccedilosa
USP ndash Universidade de Satildeo Paulo
xii
RESUMO
LIMA Romilda de Souza DSc Universidade Federal de Viccedilosa novembro de 2015 Praacuteticas alimentares e sociabilidades em famiacutelias rurais da Zona da Mata mineira mudanccedilas e permanecircncias Orientador Joseacute Ambroacutesio Ferreira Neto Coorientadora Rita de Caacutessia Pereira Farias
Este trabalho tem como objetivo analisar e compreender os significados da
comida e as relaccedilotildees de comensalidade atendo-se agraves mudanccedilas e
permanecircncias referentes agraves praacuteticas alimentares de famiacutelias rurais dos
municiacutepios mineiros de Piranga Porto Firme e Presidente Bernardes A
metodologia escolhida foi qualitativa utilizando-se da entrevista
semiestruturada observaccedilatildeo registros fotograacuteficos e o caderno de campo As
anaacutelises da pesquisa empiacuterica foram construiacutedas agrave luz das abordagens teoacutericas
da antropologia e sociologia da alimentaccedilatildeo e da histoacuteria da alimentaccedilatildeo Apesar
da tendecircncia apontada por alguns autores contemporacircneos de uma
homogeneizaccedilatildeo alimentar na sociedade ocidental fruto do processo de
modernizaccedilatildeo e globalizaccedilatildeo que teria o poder de influenciar e transformar as
praacuteticas alimentares esta natildeo foi a realidade observada nas famiacutelias rurais
pesquisadas A pesquisa apontou para a necessidade de considerar a
diversidade cultural e o contexto sociohistoacuterico ao estudar as questotildees relativas
a alimentaccedilatildeo dos grupos Nas famiacutelias estudadas as praacuteticas alimentares
possuem forte viacutenculo com a tradiccedilatildeo e agrave produccedilatildeo local de alimentos Isso natildeo
significa que elas estatildeo imunes agraves interferecircncias e agraves mudanccedilas
contemporacircneas Neste sentido as mudanccedilas observadas nas praacuteticas
alimentares tais como a adoccedilatildeo de novas tecnologias tecircm ocorrido de forma
ainda tiacutemida e natildeo implica um abandono da tradiccedilatildeo As famiacutelias estatildeo
convivendo ou se adaptando aos processos de mudanccedilas no mundo
contemporacircneo sem negar suas raiacutezes histoacutericas A incorporaccedilatildeo das praacuteticas
alimentares modernas tambeacutem natildeo eacute acriacutetica As famiacutelias sabem que a
substituiccedilatildeo implica em riscos perdas e ganhos No caso da gordura de porco
por exemplo mostraram-se conscientes quanto agrave questatildeo relativa agrave sauacutede no
consumo desse alimento que continua sendo prioritariamente utilizado na
preparaccedilatildeo de comidas tradicionais O que prevalece neste caso eacute a escolha
xiii
pelo sabor do alimento e pelo significado simboacutelico e tradicional atrelado a ele
Inseridas no processo que envolve tanto o desejo de manter sua autonomia
produtiva e cultura alimentar quanto agrave necessidade de ceder a algumas
mudanccedilas essas famiacutelias estatildeo aprendendo a se adaptar agraves dinacircmicas da
modernidade aderindo agraves novidades alimentares que lhes agradam e lhes satildeo
importantes e rejeitando o que natildeo lhes eacute interessante
xiv
ABSTRACT
LIMA Romilda de Souza DSc Universidade Federal de Viccedilosa November 2015 Eating habits and sociabilities in rural families of Minas Geraisrsquo Zona da Mata changings and remainings Adviser Joseacute Ambroacutesio Ferreira Neto Co-adviser Rita de Caacutessia Pereira Farias
This work aims to analyze and understand the meaning of food and commensality
relations limited to the changes and remains related to the eating habits of rural
families in the municipalities of Piranga Porto Firme and Presidente Bernardes
The chosen methodology was qualitative using semi-structured interviews and
observation The instruments used were the recorded interviews photographic
register and field notebook The empirical research analysis was built under the
light of theoretical approaches of anthropology and sociology of the alimentation
and history of the alimentation Despite the tendency pointed out by some
contemporary authors of a food homogenization in Western society as a result
of the modernization and globalization process that would have the power to
influence and transform the eating habits this was not the reality observed in the
surveyed rural families The research indicated the need to consider the cultural
diversity and the socio-historical context in order to study issues related to eating
habits of the groups In the studied families the issues related to eating habits
have a strong bond with the tradition and local food production That doesnrsquot
mean they are immune to interference and to contemporary changes In this
sense the observed changes in dietary practices such as the adoption of new
technologies have occurred still timidly and donrsquot imply a total abandonment of
tradition Families are living or adapting themselves to the changing processes in
the contemporary world without however transforming significantly their own
culture Itrsquos important to highlight that the incorporation of modern eating habits
options is not uncritical too The families know that the replacement of a habit by
another entails risks losses and gains as in the case of pork fat They proved to
be conscious about the matter on health in consumption of that food but it
remains primarily used in the preparation of traditional foods What prevails in this
case it is the choice by the flavor of the food and by the symbolic and traditional
meaning attached to it Inserted in the process involving both the desire to
xv
maintain its productive autonomy and eating culture and the need to give in to
some changes these families are learning to adapt to the everyday experiences
they arenrsquot closed in their cultural cores and even take posiacutetion averse to change
they demonstrate a resigned but critical attitude by submitting to the items of food
modernity they please and consider important as well as rejecting what is not
interesting to them
1
INTRODUCcedilAtildeO
ldquoDepois do idioma a comida eacute o mais importante elo entre o homem e a culturardquo
(Raul Lody 1997)
A alimentaccedilatildeo elemento baacutesico de sobrevivecircncia humana eacute tema
carregado de complexidade Se a razatildeo primeira do ato alimentar eacute a
necessidade fisioloacutegica de nutrir-se as demais satildeo carregadas de justificativas
culturais sociais e econocircmicas que por sua vez determinam as escolhas
alimentares
Aleacutem de ser um comportamento automaacutetico a sociologia a antropologia
e a histoacuteria da alimentaccedilatildeo tecircm mostrado que comer eacute um comportamento que
se liga de forma iacutentima com o comedor1 Em sentido semelhante o entendimento
da comida como categoria analiacutetica nessas trecircs aacutereas de estudo mostra que
pela comida eacute possiacutevel perceber as transformaccedilotildees do mundo social no decorrer
dos tempos Essa relaccedilatildeo se estabelece na escolha e ingestatildeo do alimento pois
conforme pondera Lody (2008 p 12) ldquonenhum alimento que entra em nossas
bocas eacute neutrordquo
Dessa forma este trabalho se fundamenta na compreensatildeo cultural e
social da comida vista como categoria de pensamento simboacutelico Trata-se
daquele sentido em que por meio das regras socialmente estabelecidas no ato
de comer criam-se viacutenculos com quem se come com o que se produz e com as
demais dinacircmicas que envolvem as praacuteticas alimentares O sentido dado por
Cacircndido (1982 p 30) elucida esse intuito
Qualquer que seja a posiccedilatildeo do alimento eacute sempre acentuada a sua importacircncia como fulcro de sociabilidade ndash natildeo apenas do que se organiza em torno dele mas daquelas em que ele aparece como expressatildeo tangiacutevel dos atos e das intenccedilotildees (CAcircNDIDO1982 p 30)
A escolha do tema da pesquisa se deu a partir de um processo que foi
sendo delineado e construiacutedo aos poucos considerando inicialmente o interesse
1 Expressatildeo francesa que na traduccedilatildeo das obras de Poulain (2013) e Poulain e Proenccedila (2003) para o
portuguecircs significa ldquocomedorescomedorrdquo Esta expressatildeo apareceraacute em citaccedilotildees do autor ao longo deste trabalho Representa para a Sociologia da Alimentaccedilatildeo atual o homem que come razatildeo da utilizaccedilatildeo da palavra ldquocomedorrdquo em portuguecircs A utilizaccedilatildeo desse termo segundo os autores surgiu a partir da publicaccedilatildeo de autoria de Aron (1976) ldquoLe mangeur du 19eacutemerdquo (POULAIN PROENCcedilA 2003 p 367)
2
pessoal e profissional pelo assunto2 mas tambeacutem estimulado por questotildees
instigantes proporcionadas por algumas disciplinas cursadas durante o
programa de doutorado Assim para se pensar o problema foram realizadas
leituras de pesquisas e de conteuacutedo teoacuterico das trecircs disciplinas apontadas acima
no que se refere agrave alimentaccedilatildeo O investimento teoacuterico realizado para conduzir
a pesquisa partiu da compreensatildeo de que a reflexatildeo teoacuterica e a pesquisa
empiacuterica se complementam em um percurso de matildeo dupla naquele sentido
apontado por Trajano (1990) Para este autor a priorizaccedilatildeo da teoria em
detrimento da pesquisa de campo ou vice-versa compromete o trabalho em sua
riqueza e profundidade
Atraveacutes da relaccedilatildeo entre pesquisa de campo e anaacutelise teoacuterica o conhecimento antropoloacutegico ganha impulso e avanccedila pois a pesquisa fornece o combustiacutevel que a teoria necessita para adentrar por novos campos e caminhos Por sua vez a teorizaccedilatildeo abre trilhas frescas e inexploradas para o trabalho de pesquisardquo (TRAJANO 1990 p 2)
A pesquisa de campo envolveu famiacutelias rurais de trecircs municiacutepios da
microrregiatildeo de Viccedilosa Piranga Presidente Bernardes e Porto Firme A escolha
desses municiacutepios se deu por eles formarem uma regiatildeo com maior populaccedilatildeo
rural da microrregiatildeo de Viccedilosa e pela sua interessante histoacuteria de ocupaccedilatildeo jaacute
que se trata de uma regiatildeo importante na busca do ouro pelos bandeirantes que
passaram pela zona da Mata questatildeo que seraacute detalhada em um dos capiacutetulos
deste trabalho
Analisar e buscar compreender como as famiacutelias estatildeo lidando com as
transformaccedilotildees alimentares que ocorrem na contemporaneidade foi o eixo
norteador da pesquisa A experiecircncia dessas famiacutelias neste contexto ldquofalardquo de
um grupo que busca responder e se adaptar agraves mudanccedilas sinalizando que o
rural contemporacircneo natildeo estaacute alheio e distante do que ocorre na sociedade mais
ampla questatildeo muito bem sinalizada nos estudos de Maria de Nazareth
Wanderley (2000 e 2009) Maria Joseacute Carneiro (1998) e Joseacute Graziano da Silva
(1997) Mas tambeacutem ldquofalardquo de um grupo que respeita sua tradiccedilatildeo e seus haacutebitos
alimentares suas necessidades de natildeo ceder a todas as mudanccedilas decorrentes
da contemporaneidade
2 Discussotildees de interesse dos grupos de pesquisa em que participo na Universidade Estadual do Oeste do
Paranaacute instituiccedilatildeo onde atuo haacute 12 anos
3
Segundo Wanderley (2009) um dos desafios enfrentados pelos
pesquisadores na contemporaneidade consiste em desvendar os processos
pelos quais se articulam as dinacircmicas internas e externas do mundo rural em
sua diversidade
Neste sentido esta pesquisa tem como objetivo analisar e compreender
o significado da comida e as relaccedilotildees de comensalidade atendo-se agraves
mudanccedilas e permanecircncias referentes agraves praacuteticas alimentares das famiacutelias Mais
especificamente analisar a articulaccedilatildeo entre o tradicional e o moderno o
processo de escolha alimentar e os princiacutepios que a determinam tais como
haacutebitos tradiccedilatildeo praticidade custo a influecircncia dos guardiatildees da tradiccedilatildeo na
reproduccedilatildeo do gosto no processo de significaccedilatildeo e ressignificaccedilatildeo da comida
atrelada agraves praacuteticas aos saberes e aos haacutebitos tanto no cotidiano quanto nos
rituais
Com esta pesquisa pretendo contribuir com as discussotildees sobre o
sistema alimentar contemporacircneo e a necessidade de nessa discussatildeo
relativizar os argumentos levando-se em consideraccedilatildeo a diversidade cultural
especialmente a rural
Esta tese estaacute organizada em cinco capiacutetulos aleacutem da introduccedilatildeo e
conclusatildeo O capiacutetulo 1 apresenta um breve histoacuterico de ocupaccedilatildeo da regiatildeo
estudada e as principais atividades rurais a partir de dados do IBGE (2010) O
capiacutetulo 2 trata de duas fases histoacutericas importantes de Minas Gerais e que
determinaram o sistema alimentar na regiatildeo de exploraccedilatildeo de ouro ateacute meados
do seacuteculo XX as fases da mineraccedilatildeo e a fase da ruralizaccedilatildeo As situaccedilotildees
alimentares ocorridas nesses periacuteodos foram marcantes na formaccedilatildeo cultural
alimentar da regiatildeo que pesquisei O capiacutetulo 3 apresenta a discussatildeo teoacuterica
das aacutereas da antropologia da sociologia e da histoacuteria da alimentaccedilatildeo apontando
o lugar da alimentaccedilatildeo nas principais anaacutelises dessas disciplinas a discussatildeo
existente em torno do sistema alimentar a anaacutelise das diferenccedilas atribuiacutedas
entre alimento e comida em uma abordagem cultural e simboacutelica as
possibilidades de permanecircncia ou extinccedilatildeo dos sistemas tradicionais no contexto
alimentar contemporacircneo a discussatildeo sobre o tradicional e o moderno no
contexto das dinacircmicas alimentares no meio rural e por fim uma breve
discussatildeo sobre o papel feminino nas praacuteticas alimentares na famiacutelia O capiacutetulo
4 apresenta as opccedilotildees e o direcionamento metodoloacutegicos da pesquisa de
4
empiacuterica a imersatildeo em campo e os resultados e algumas das caracteriacutesticas
relativas ao perfil das famiacutelias entrevistadas O capiacutetulo 5 trata da pesquisa
empiacuterica ou seja sobre as praacuteticas alimentares das famiacutelias rurais objeto de
interesse principal desta pesquisa Atraveacutes das entrevistas semiestruturadas o
cotidiano das famiacutelias no que diz respeito a sua cultura alimentar foi relatado e
discutido agrave luz dos objetivos propostos para a pesquisa e das abordagens
teoacutericas utilizadas Concluindo teccedilo outras discussotildees nas conclusotildees sobre a
pesquisa
5
1 A REGIAtildeO DE ESTUDO
As aacutereas rurais pesquisadas estatildeo situadas nos municiacutepios de Piranga
Porto Firme e Presidente Bernardes que pertencem agrave microrregiatildeo de Viccedilosa
localizados na Zona da Mata de Minas Gerais
A Figura 1 apresenta as microrregiotildees que compotildeem a Zona da Mata e
a Figura 2 os municiacutepios que fazem parte da microrregiatildeo de Viccedilosa
Fonte IBGE (2013)
Figura 1 ndash Microrregiotildees da Zona da Mata de Minas Gerais
6
Fonte IBGE (2013)
Figura 2 ndash Microrregiatildeo de Viccedilosa Minas Gerais
11 Um breve histoacuterico de ocupaccedilatildeo da regiatildeo estudada
Segundo Venacircncio (2007) descobertas arqueoloacutegicas recentes
apontam que na ocasiatildeo do descobrimento do Brasil pelos portugueses a regiatildeo
de Minas Gerais era habitada por diferentes grupos eacutetnicos Essas pesquisas
conseguiram estabelecer uma data de povoamento com registros entre 11 mil e
12 mil anos atraacutes O autor destaca que natildeo se pode esclarecer totalmente quais
eram todos esses grupos eacutetnicos mas no que se refere aos seacuteculos XVI e XVII
pelo material arqueoloacutegico encontrado acredita-se que muitos grupos indiacutegenas
entraram em Minas Gerais vindos de aacutereas litoracircneas provavelmente fugindo
da escravidatildeo e da dominaccedilatildeo dos portugueses Ainda segundo o autor na
regiatildeo de estudo que compreende a bacia do Rio Doce e a Zona da Mata mineira
os registros apontam que aqui habitavam primeiramente os botocudos e os
puri-coroados e que mais tarde chegaram os iacutendios goitacaacute fugidos do avanccedilo
7
da colonizaccedilatildeo portuguesa no norte da capitania fluminense hoje conhecida
como Campos dos Goitacazes
Registros feitos por Joatildeo Mawe3 viajante inglecircs que esteve em Minas
Gerais entre 1809 e 1810 detalham o conflito existente tambeacutem entre os
portugueses e os botocudos que rejeitavam ceder aos objetivos de
ldquodomesticaccedilatildeordquo dos colonizadores interessados na aacuterea que jaacute havia sido
identificada como muito rica em ouro Na regiatildeo de Piranga visando garantir a
exploraccedilatildeo do ouro informa Mawe (1922) ldquoexiste uma tropa pouco numerosa
de soldados para fazer patrulhas ao longo das fronteiras reconhecimentos nos
bosques ir procurar os selvagens por toda a parte onde lhes informam que
podem encontra-losrdquo (MAWE 1922 p 60)
A ocupaccedilatildeo da regiatildeo pelos portugueses se deu a partir dos caminhos
que se abriram para a exploraccedilatildeo de ouro no local que teve iniacutecio com os
bandeirantes paulistas Resende (2007) Zemella (1951) e Teixeira (2002)
apontam que esta regiatildeo comeccedilou a ser desbravada a partir de 1693 por uma
expediccedilatildeo bandeirante que saiu de Garganta do Embauacute (regiatildeo da Serra da
Mantiqueira e divisa entre Minas Gerais e Satildeo Paulo) conduzida por Antocircnio
Rodrigues Arzatildeo Essa bandeira pretendia chegar ateacute a regiatildeo denominada
Casa da Casca que se localizava entre Viccedilosa e Abre Campo em busca de
ouro O percurso incluiu o entatildeo arraial de Guarapiranga (atual Piranga) e foi no
rio Piranga na localidade onde hoje eacute a cidade de Itaverava o primeiro lugar
onde se encontrou ouro desde o iniacutecio do referido trajeto
Os nuacutecleos urbanos primeiramente como arraiais ou vilas iam se
formando em torno das Minas e locais dos rios que pareciam mais propiacutecios a
obtenccedilatildeo de grandes quantidades de ouro conforme aponta Torres (2011 p
69)
Os bandeirantes subindo o rio instalaram-se nos vales () Sempre usaram de dois tipos de pontos de referecircncia naturais durante suas interminaacuteveis excursotildees pelas florestas Primeiro os rios cujos cursos subiam ou desciam conforme era o caso ou entatildeo os grandes picos azuis marcos lanccedilados pela natureza para indicar onde estava o ouro
Naquela eacutepoca os atuais municiacutepios de Presidente Bernardes e Porto
Firme natildeo existiam como tal e faziam parte de Guarapiranga (atual Piranga)
3 Ver Mawe (1922)
8
Com a descoberta de ouro no rio Piranga a regiatildeo passou a ser de interesse
para a mineraccedilatildeo e iniciou por consequecircncia a chegada de muitos adventiacutecios
Segundo Resende (2007) e Furtado (2000) a exploraccedilatildeo de ouro em Minas
Gerais historicamente serviu de movimentaccedilatildeo geograacutefica de grande nuacutemero
de pessoas interessadas em enriquecer em Minas Gerais
() Nesse contexto marcado por um tracircnsito volumoso e desordenado de pessoas e de mercadorias tem iniacutecio de forma precoce e espetacular a ocupaccedilatildeo das terras de mineraccedilatildeo em que a uma ldquosede insaciaacutevel do ourordquo corresponde com enorme rapidez a formaccedilatildeo de grandes fortunas e uma desordem perigosa regulada a balas de chumbo (RESENDE 2007 p 29)
Assim a regiatildeo que abrange os municiacutepios da pesquisa passou a se
inserir na dinacircmica econocircmica e social da mineraccedilatildeo Ainda segundo Resende
(2007) os territoacuterios mineiros comeccedilaram a ser ocupados primeiramente onde
havia sido encontrado ouro aos quais eram denominados como o ldquocaminho do
ourordquo Nesse trajeto era possiacutevel encontrar alguma infraestrutura de apoio como
por exemplo vendas estalagens e capelas Eacute no entorno dessas localizaccedilotildees
fiacutesicas estruturais que surgem mais tarde as pequenas vilas os arraiais e ateacute
nuacutecleos urbanos mais importantes no estado de Minas Gerais
Segundo Barbosa (1995) em 1708 o arraial de Guarapiranga sofreu as
consequecircncias da Guerra dos Emboabas conflito entre bandeirantes paulistas
e portugueses em disputa pelo controle das minas e por pouco natildeo foi destruiacutedo
durante os embates
As batalhas foram mais concentradas no lugar onde estaacute o Santuaacuterio do
Senhor Bom Jesus do Matozinhos na comunidade do ldquoBacalhaurdquo em Piranga
Neste local possui uma placa e uma escultura simboacutelica lembrando o ocorrido
Neste santuaacuterio ocorre anualmente a festa religiosa do Jubileu do Bom Jesus e
os fieacuteis (romeiros) permanecem no local por dois a trecircs dias de festejos
9
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 3 ndash Santuaacuterio de Bom Jesus de Matozinhos em Bom Jesus do Bacalhau
Com o decliacutenio da mineraccedilatildeo entre os anos de 1753 a 1756 a regiatildeo
de Guarapiranga foi intensamente povoada quando ldquoinuacutemeras sesmarias foram
concedidas nas quais se mencionavam grandes roccedilas de milho casas de
vivenda paiol senzala engenhos bananais e outras aacutervoresrdquo (BARBOSA 1995
p 254) Ocorria nesse periacuteodo o processo de fortalecimento da agricultura
seguindo um percurso que se deu em toda a regiatildeo de mineraccedilatildeo de Minas
Gerais como seraacute visto no capiacutetulo 2 sobre a fase da ruralizaccedilatildeo em Minas
Em final do seacuteculo XVIII e iniacutecio do seacuteculo XIX a regiatildeo de Guarapiranga
possuiacutea a maior populaccedilatildeo de toda a Zona da Mata mineira com forte dinamismo
econocircmico Segundo Carrara (2007) Guarapiranga abastecia a entatildeo Vila Rica
e regiatildeo com aguardente e alguns produtos agriacutecolas baacutesicos os quais o autor
natildeo detalha quais eram Mas segundo o autor natildeo houve um corte que marcou
o fim da mineraccedilatildeo e iniacutecio da fase agriacutecola na regiatildeo pois durante muitos anos
foi marcante a presenccedila concomitante das minas dos currais e das lavouras
Enquanto a agricultura se fortalecia alguns poucos aventureiros insistiam na
busca de algum sinal de ouro restante nos rios
Segundo Lemos (2012) na fase de fortalecimento da agricultura
sobretudo na primeira metade do seacuteculo XIX houve intenso fluxo migratoacuterio que
fomentou a economia agriacutecola na regiatildeo principalmente voltada para a produccedilatildeo
de aguardente rapadura e melado Segundo Godoy (2012) os engenhos se
10
concentravam sobretudo na regiatildeo do distrito de Santo Antocircnio do Calambau
hoje Presidente Bernardes que na eacutepoca era distrito de Guarapiranga (Piranga)
A prodccedilatildeo da cana de accediluacutecar perdeu forccedila ao longo do tempo e na
ocasiatildeo da pesquisa natildeo era mais atividade central na regiatildeo embora existam
alambiques e algumas marcas de aguardente conhecidas no cenaacuterio nacional
como a ldquoVelha Aroreirardquo produzida em Porto Firme e a ldquoVale do Pirangardquo
produzida em Piranga Mas o que se produz ainda de aguardente eacute de caraacuteter
quase que apenas artesanal e pequena produccedilatildeo Em presidente Bernardes
todos os anos acontece o ldquoFestival da Cachaccedilardquo guardando ainda relaccedilotildees com
a tradiccedilatildeo deste produto
Os dados do IBGE de 1980 a 2010 apontam que os municiacutepios que
compunham como distritos a antiga Guarapiranga (Piranga Presidente
Bernardes e Porto Firme) apresentam queda em sua populaccedilatildeo rural como seraacute
visto a seguir
Tambeacutem segundo informaccedilotildees do IBGE (2010) Presidente Bernardes
e Porto Firme foram emancipados de Piranga em 1953 quando Calambau
passou a se chamar Presidente Bernardes e Porto Seguro passou a se chamar
Porto Firme Ambos os municiacutepios continuam pertencendo juridicamente agrave
Comarca de Piranga
12 Informaccedilotildees atuais sobre a populaccedilatildeo rural e as principais atividades agriacutecolas dos municiacutepios pesquisados
Segundo o IBGE (2010) a microrregiatildeo de Viccedilosa possui aacuterea total de
4826137 kmsup2 Eacute composta por vinte municiacutepios com aacutereas que variam entre
65881 kmsup2 (Piranga) e 8304 kmsup2 (Cajuri) Porto Firme e Presidente Bernardes
possuem aacutereas de 28478 kmsup2 e 2368 kmsup2 respectivamente conforme
apresentado na Tabela 1
Em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo observa-se que em 50 dos municiacutepios da
microrregiatildeo a populaccedilatildeo rural ultrapassa a urbana conforme a Tabela 1 Os
trecircs municiacutepios desta pesquisa encontram-se entre aqueles que possuem
populaccedilatildeo rural maior que a urbana sendo que entre todos os municiacutepios
Presidente Bernardes e Piranga satildeo os que possuem o maior percentual de
populaccedilatildeo rural em relaccedilatildeo a urbana conforme apontado na Tabela 2
11
Tabela 1 ndash Aacuterea e populaccedilatildeo da microrregiatildeo de Viccedilosa (2015)
Municiacutepio Aacuterea (kmsup2) Densidade
demograacutefica Populaccedilatildeo
total Populaccedilatildeo
rural Populaccedilatildeo
urbana
Piranga 65881 2616 17232 11274 5958 Pres Bernardes 2368 2338 5537 3895 1642 Porto Firme 28478 3658 10417 5586 4831 Araponga 30379 2683 8152 5111 3041 Rio Espera 2386 2544 6070 3667 2403 Canaatilde 1749 2646 4628 2769 1859 Alto Rio Doce 51805 2347 12159 7089 5070 Lamim 1186 2911 3452 1941 1511 Cipotacircnea 15348 4266 6547 3533 3014 Braacutes Pires 22335 2076 4637 2414 2223 Cajuri 8304 4874 4047 1951 2096 Amparo do Serra 14591 3463 5053 2411 2642 Ervaacutelia 35749 5020 17946 8476 9470 Paula Cacircndido 26832 3455 9271 4335 4936 Satildeo Miguel do Anta 15211 4444 6790 3014 3746 Senhora de Oliveira 17075 3328 5683 2427 3256 Pedra do Anta 16345 2059 3365 1173 2192 Teixeiras 16674 6871 11355 3732 7623 Coimbra 10688 6600 7054 1898 5156 Viccedilosa 29942 2412 72220 4915 67305
Fonte IBGE - Censo Demograacutefico de 2010
Tabela 2 ndash Percentual da populaccedilatildeo urbana e rural da microrregiatildeo de Viccedilosa nas deacutecadas de 1980 a 2010 (2015)
Populaccedilatildeo ()
Municiacutepio 1980 1991 2000 2010
Urbana Rural Urbana Rural Urbana Rural Urbana Rural
Piranga 197 803 237 763 299 701 346 654 Pres Bernardes 121 879 154 846 233 767 297 703 Porto Firme 23 77 293 707 411 589 463 537 Araponga 166 834 208 792 32 68 373 627 Rio Espera 264 736 268 732 322 678 396 604 Canaatilde 174 826 207 793 297 703 401 599 Alto Rio Doce 222 778 28 72 354 646 417 583 Lamim 226 774 287 713 38 62 438 562 Cipotacircnea 197 803 26 74 381 619 46 54 Braacutes Pires 153 847 24 76 353 647 48 52 Cajuri 387 613 46 54 546 454 518 482 Amparo Serra 246 754 35 65 458 542 522 478 Ervaacutelia 263 737 323 673 444 556 528 472 Paula Cacircndido 286 714 362 638 43 57 532 468 Satildeo Miguel Anta 389 611 44 56 501 499 554 446 Senhora Oliveira 363 637 451 549 482 518 572 428 Pedra do Anta 232 768 373 627 53 47 651 349 Teixeiras 445 555 533 467 623 377 671 329 Coimbra 456 544 54 46 539 466 73 30 Viccedilosa 806 194 90 10 921 79 931 69
Fonte IBGE - Censos Demograacuteficos de 1980 1991 2000 e 2010
12
A reduccedilatildeo da populaccedilatildeo rural eacute observada em todos os 20 municiacutepios
conforme mostra a Tabela 2 que apresenta informaccedilatildeo demograacutefica da
microrregiatildeo de Viccedilosa nas uacuteltimas trecircs deacutecadas segundo IBGE (2010) Esta
microrregiatildeo encontra-se proporcionalmente dividida em 50 de municiacutepios com
populaccedilatildeo urbana maior do que a rural e 50 em situaccedilatildeo inversa
Nos trecircs municiacutepios desta pesquisa a populaccedilatildeo rural vem diminuindo
ao longo das uacuteltimas deacutecadas Em Piranga Presidente Bernardes e Porto Firme
a populaccedilatildeo rural correspondia a 803 879 e 77 em 1980
respectivamente caindo para 655 703 e 537 respectivamente em 2010
Apesar disso Presidente Bernardes permanece sendo o municiacutepio com maior
populaccedilatildeo residente no campo na microrregiatildeo de Viccedilosa ao longo desse
periacuteodo seguido por Piranga que aparece como o segundo maior municiacutepio com
populaccedilatildeo rural no Censo de 2010 Alguns estudos apontam para a reduccedilatildeo da
populaccedilatildeo rural em outras partes do paiacutes e do mundo como Alves e Marra
(2009) Nunes (2007) ONU (2014) Camarano e Beltratildeo (2000) e Camarano e
Abramovay (1998)
As Tabelas 3 e 4 apontam que a populaccedilatildeo que compreende a faixa
etaacuteria de 30 a 50 anos eacute a maior na aacuterea rural nos trecircs municiacutepios e a populaccedilatildeo
idosa4 apresenta o menor nuacutemero de pessoas residentes no campo
Tabela 3 ndash Populaccedilatildeo rural por diferentes faixas etaacuterias
Municiacutepio Populaccedilatildeo
rural 1 - 14 anos 15 - 29 anos 30 - 59 anos
Acima de 60 anos
Piranga 11274 2748 3203 3751 1308 Pres Bernardes 3895 845 856 1421 610 Porto Firme 5586 1338 1378 2322 780 Total 20755 4931 5437 7494 2698
Fonte IBGE ndash Censo Demograacutefico 2010
Os dados da Tabela 4 mostram que o maior percentual de populaccedilatildeo
idosa se encontra em Presidente Bernardes mas natildeo se destaca em relaccedilatildeo
aos demais municiacutepios Neste municiacutepio tambeacutem estaacute o menor percentual da
4 Puacuteblico considerado acima de 60 anos de idade de acordo com Organizaccedilatildeo Mundial de Sauacutede
13
populaccedilatildeo jovem5 O maior percentual de populaccedilatildeo adulta (30-59 anos)
encontra-se em Porto Firme A maior diferenccedila entre o percentual de populaccedilatildeo
jovem e adulta encontra-se em Porto Firme e a menor em Piranga O percentual
da populaccedilatildeo adulta eacute superior agrave populaccedilatildeo idosa nos trecircs municiacutepios mas se
destaca em Porto Firme As informaccedilotildees das tabelas seratildeo retomadas no item
46 deste trabalho
Tabela 4 ndash Percentual da populaccedilatildeo rural por diferentes faixas etaacuterias ()
Municiacutepio Populaccedilatildeo
rural 1 - 14 anos 15 - 29 anos 30 - 59 anos
Acima de 60 anos
Piranga 11274 243 284 333 116
Pres Bernardes 3895 217 220 364 155
Porto Firme 5586 239 246 415 140
Fonte IBGE ndash Censo Demograacutefico 2010
13 Atividades produtivas
Nos municiacutepios onde foi realizado o trabalho de campo predominam
pequenas e meacutedias propriedades e produccedilatildeo em pequena escala basicamente
para consumo com venda do excedente Os tipos de produccedilatildeo natildeo sofrem
variaccedilotildees importantes entre os trecircs municiacutepios seja em tipo de produccedilatildeo seja
em quantidade produzida
Presidente Bernardes Dados do Relatoacuterio final do Plano Municipal de
Saneamento Baacutesico de Presidente Bernardes (2015) e da Emater local apontam
como principais atividades agropecuaacuterias do municiacutepio a cafeicultura a extraccedilatildeo
de carvatildeo vegetal em pequena escala e a pecuaacuteria leiteira de pequeno porte
Haacute ainda a fabricaccedilatildeo agroindustrial em pequenos alambiques de aguardente e
uma empresa de fabricaccedilatildeo de queijo Aleacutem desses os dados do IBGE (2006)
apontam tambeacutem a produccedilatildeo de milho feijatildeo cana de accediluacutecar suinocultura e
avicultura
5 Faixa etaacuteria entre 15 a 29 anos de idade definida no Estatuto da Crianccedila e do Adolescente (ECA) e
Estatuto da Juventude no Brasil como a que corresponde agrave categoria de juventude
14
Porto Firme Dados do Relatoacuterio final do Plano Municipal de
Saneamento Baacutesico de Porto Firme (2015) e da Emater local apontam como
principais atividades agropecuaacuterias do municiacutepio Pecuaacuteria leiteira cafeicultura
extraccedilatildeo de carvatildeo vegetal e lavoura de feijatildeo No municiacutepio tambeacutem haacute
produccedilatildeo de aguardente artesanal por pequenos alambiques Aleacutem desses os
dados do IBGE (2006) apontam a produccedilatildeo de milho feijatildeo cana de accediluacutecar
suinocultura e avicultura
Piranga Dados do Relatoacuterio Anual da Emater Local (2014) e do IBGE
(2006) apontam como principais atividades agropecuaacuterias do municiacutepio
extraccedilatildeo de carvatildeo vegetal cafeicultura pecuaacuteria leiteira milho e feijatildeo cana de
accediluacutecar suinocultura e avicultura
Segundo as famiacutelias entrevistadas envolvidas na atividade de extraccedilatildeo
de carvatildeo vegetal esta atividade vem substituindo aos poucos a cafeicultura
nos uacuteltimos anos em funccedilatildeo do seu retorno financeiro mais favoraacutevel aos
agricultores aliado ao fato desta atividade lhes ser menos trabalhosa
A regiatildeo rural dos municiacutepios onde foi feita a pesquisa manteacutem muito de
suas caracteriacutesticas tradicionais em vaacuterios aspectos da alimentaccedilatildeo como seraacute
visto neste trabalho Mas tambeacutem na forma de produccedilatildeo transporte e
armazenamento dos produtos A Figura 4 mostra algumas dessas peculiaridades
observadas Segundo Martins (2008 p 26) a inserccedilatildeo das fotografias ldquoeacute um
recurso que amplia e enriquece a variedade de informaccedilotildees de que o
pesquisador pode dispor para reconstruir e interpretar determinada realidade
socialrdquo
A Figura 4 mostra a produccedilatildeo de um casal de aposentados que mora
sozinho Eles executam poucos serviccedilos no siacutetio Um de seus filhos mora na
cidade de Piranga e os outros em outras cidades mais distantes O casal paga
por serviccedilos de plantio e colheita do milho e do feijatildeo A quantidade de milho eacute
muito pequena apenas para uso local A Figura 4a mostra parte do milho no
paiol e a Figura 4b mostra parte do milho jaacute debulhado secando ao sol no quintal
para depois ser processado no moinho eleacutetrico para a produccedilatildeo de fubaacute
15
(a) (b)
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 4 ndash Milho colhido no siacutetio de Anita e Gilberto na comunidade de Manja em Piranga
Muitas estradas das comunidades mais distantes ainda contam com
muitas porteiras que ficam fechadas Eacute o caminho por onde se transita o veiacuteculo
automotor mas ela atende principalmente agrave loacutegica rural tradicional Quem
precisa transitar deve descer do veiacuteculo abrir as porteiras e fechaacute-las ao
atravessar A Figura 5 por exemplo registrada na estrada da comunidade de
Manja em Piranga mostra uma forma tradicional de transportar as espigas de
milho do roccedilado para o paiol mas ainda muito usada na regiatildeo Havia trecircs
pessoas fazendo esse transporte uma pessoa em cima da carroccedila e outros dois
candiando os bois e abrindo e fechando as porteiras
A Figura 6 mostra um engenho de cana que estava sem uso no ano de
2015 pela baixa produccedilatildeo de cana neste ano no siacutetio de Lola e Marcos em
Presidente Bernardes Nele se produz rapadura e melado que eacute vendida para o
comeacutercio de Presidente Bernardes e tambeacutem para os vizinhos das proximidades
16
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 5 ndash Carro de boi transportando espigas de milho da roccedila para o paiol na estrada da comunidade de Manja em Piranga
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 6 ndash Engenho de produccedilatildeo de rapadura no siacutetio de Lola e Marcos na comunidade Xopotoacute Presidente Bernardes
As caracteriacutesticas rurais dos trecircs municiacutepios satildeo muito semelhantes
tanto no que se refere agrave forma de produccedilatildeo agriacutecola quanto na cultura e no perfil
populacional cuja populaccedilatildeo rural supera a urbana Sendo uma regiatildeo cuja
formaccedilatildeo ocorreu a partir da mineraccedilatildeo muitas de suas caracteriacutesticas ainda
estatildeo ligadas a esse processo histoacuterico Outras peculiaridades sobre o perfil das
17
famiacutelias seratildeo apresentadas no capiacutetulo 4 No sistema alimentar o que se
praticava produzia e o que era consumido na fase da mineraccedilatildeo teve influecircncia
na manutenccedilatildeo de muitas das praacuteticas existentes atualmente na regiatildeo onde foi
feita a pesquisa Sobre o que representou a alimentaccedilatildeo na fase da mineraccedilatildeo
e da ruralizaccedilatildeo no periacuteodo de formaccedilatildeo dessa regiatildeo eacute o que seraacute tratado no
proacuteximo capiacutetulo
18
2 A COMIDA EM MINAS GERAIS DA ESCASSEZ Agrave FARTURA
Arruda (1990) destaca em Minas Gerais duas fases muito importantes
para a sua formaccedilatildeo histoacuterica e cultural a primeira eacute a do ciclo da mineraccedilatildeo
que teve iniacutecio no final do seacuteculo XVII e segue ateacute o final do seacuteculo XVIII Neste
periacuteodo a vida urbana emerge com uma intensa movimentaccedilatildeo a segunda fase
eacute a chamada ldquoruralizaccedilatildeordquo que se inicia ao final do seacuteculo XVIII justamente com
o decliacutenio da mineraccedilatildeo seguindo ateacute o iniacutecio do seacuteculo XX Segundo a autora
na segunda fase as aacutereas rurais (as fazendas) passam a ter maior valorizaccedilatildeo
se tornando o ldquomicrocosmo do universo material social e culturalrdquo (ARRUDA
1990 p 135) Aleacutem das duas principais fases a autora destaca uma terceira fase
em Minas que se configura a partir dos meados do seacuteculo XX com a
industrializaccedilatildeo
Para a autora as duas primeiras fases representam formas de
sociabilidade muito peculiares que se expressam nas praacuteticas alimentares
desses periacuteodos e que tiveram influecircncia direta na formaccedilatildeo dos haacutebitos
alimentares em Minas Gerais haacutebitos que se perpetuaram ateacute o periacuteodo
contemporacircneo sendo relevantes para este trabalho Essas informaccedilotildees
ajudaratildeo a analisar se as praacuteticas alimentares comuns a estas fases em Minas
continuam presentes sendo praticadas pelas famiacutelias rurais pesquisadas neste
trabalho
Antes de discutir especificamente as questotildees alimentares relativas agraves
duas fases eacute importante realizar uma sucinta passagem pelo contexto alimentar
no Brasil colonial
21 Contextualizando o lugar da comida no Brasil Colonial nos primoacuterdios
Segundo Panegassi (2013) o colonizador europeu estabeleceu uma
relaccedilatildeo etnocecircntrica com o territoacuterio natural americano e isso se deu tambeacutem e
principalmente em relaccedilatildeo agrave alimentaccedilatildeo No seacuteculo XVI ele natildeo encontrava em
territoacuterios da colocircnia os alimentos que estava habituado a consumir em Portugal
vivenciando assim uma realidade na qual o autor denomina de ldquoescassez
culturalrdquo de alimentos (p 14) O autor cita o exemplo da carta de Joatildeo de Mello
Cacircmara a Dom Joatildeo III por volta de 1530 quando este rei estabeleceu que a
19
colonizaccedilatildeo seria baseada na expansatildeo da ocupaccedilatildeo das terras atraveacutes das
capitanias hereditaacuterias Mello Cacircmara informa a Dom Joatildeo III que traria para a
colocircnia homens de Portugal para cultivarem alimentos mais comuns aos
portugueses evitando mudanccedilas draacutesticas de seus haacutebitos alimentares pois
considerava os alimentos originaacuterios da Colocircnia inferiores para o consumo dos
portugueses
No entanto por mais que os colonizadores portugueses tenham tido
dificuldade em se habituar ao consumo de alimentos aqui disponiacuteveis foi preciso
se render a eles como tambeacutem aponta Freyre (1964)
A adaptaccedilatildeo foi o caminho obrigatoacuterio como destaca Panegassi (2013
p 70)
No acircmbito de uma situaccedilatildeo na qual um grande nuacutemero de pessoas eacute inserido em um novo ambiente cultural ainda que os receacutem-chegados procurem preservar seus padrotildees culturais de origem a necessidade de sobreviver impotildee inuacutemeros ajustes principalmente nos primeiros anos de presenccedila na nova aacuterea
Nesse sentido Holanda (1995) afirma que o interesse pela aventura
pela obtenccedilatildeo de tiacutetulos de posiccedilatildeo social e de prosperidade econocircmica servia
como estiacutemulo para o ldquosacrifiacuteciordquo da adaptaccedilatildeo Os portugueses tentaram
portanto recriar aqui condiccedilotildees de sobrevivecircncia e de adaptaccedilatildeo com poucas
exigecircncias ldquoOnde lhes faltasse o patildeo de trigo aprendiam a comer o da terra
() soacute consumiam farinha de mandioca fresca feita no dia Habituaram-se
tambeacutem a dormir em redes agrave maneira dos iacutendios e a beber e a mastigar fumordquo
(HOLANDA 1995 p 47)
De acordo com Panegassi (2013) os padres jesuiacutetas preferiam comer o
patildeo de mandioca e as bebidas existentes na colocircnia do que os que vinham de
Portugal em navios pois a viagem era longa e os alimentos armazenados
inadequadamente Era comum que os produtos como os patildees chegassem
estragados ao destino ou seja sem condiccedilotildees de serem ingeridos Assim Mello
(1975 apud PANEGASSI 2013 p 104) conclui que
A mudanccedila que se processaraacute nos haacutebitos dieteacuteticos do portuguecircs colonizador do Brasil ou do portuguecircs colonizador de outras aacutereas tropicais eacute menos o resultado de uma capacidade especial de amoldaccedilatildeo do que da impossibilidade de obter um suprimento regular e abundante de trigo e outros viacuteveres de origem europeia
20
Dessa maneira num contexto de convivecircncia cultural e de costumes foi
se estabelecendo ao longo do processo de colonizaccedilatildeo brasileira a conformaccedilatildeo
inicial dos haacutebitos alimentares baseados na miscigenaccedilatildeo cultural alimentar
recebendo posteriormente a influecircncia africana com a chegada dos escravos
conforme seraacute tratado mais agrave frente Os alimentos autoacutectones inicialmente foram
os mais consumidos sobretudo a mandioca por substituir o trigo para a
elaboraccedilatildeo de patildees e bolos No entanto na regiatildeo de mineraccedilatildeo em Minas
Gerais ndash aacuterea de pesquisa deste trabalho ndash o milho e natildeo a mandioca foi
preponderante na alimentaccedilatildeo Como seraacute mostrado mais agrave frente o milho teve
papel fundamental natildeo apenas para alimentaccedilatildeo animal mas tambeacutem para
alimentar os escravos que trabalhavam nas lavras que o ingeriam segundo
Cacircmara Cascudo (2004) na forma de papa angu e canjica Segundo o mesmo
autor foram as mulheres portuguesas que criaram a receita da broa e do pudim
de milho que se tornaram e permanecem pratos tiacutepicos em Minas Gerais
Segundo Torres (2011 p100)
O mineiro nunca usou patildeo da ldquofarinha de paurdquo (mandioca) o patildeo da terra dos primeiros seacuteculos da colonizaccedilatildeo Sempre preferiu o angu os soacutelidos bolos de fubaacute e o cobu enrolado em folha de bananeira Para misturar o feijatildeo usou sempre a farinha de milho (o milho seco socado no monjolo e depois torrado) o angu a farinha de moinho As classes pobres usavam a ldquocanjiquinhardquo subproduto de despolpaccedilatildeo do milho com muito ecircxito para substituir o arroz
A carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei em 1500 aponta algumas
peculiaridades sobre a primeira percepccedilatildeo sobre alimentaccedilatildeo Os portugueses
ofereceram aos iacutendios ldquopatildeo (de trigo) peixe cozido (com condimentos)
confeitos mel massa de ovos figos passados e vinho de uvas mas os iacutendios
natildeo quiseram comer quase nadardquo (BORGES 2014 p 204) Segundo Cacircmara
Cascudo (2004) as novidades para os iacutendios era o patildeo de trigo massa de ovos
os condimentos incluindo o sal o accediluacutecar e finalmente o vinho feito de uvas
apesar de jaacute produzirem bebidas fermentadas a partir do milho da mandioca e
de frutas
A rejeiccedilatildeo dos iacutendios sinaliza que natildeo foi apenas da parte dos
portugueses que houve inicial rejeiccedilatildeo aos novos alimentos e haacutebitos
alimentares como registrado na carta de Mello Cacircmara a Dom Joatildeo III citado
anteriormente Os iacutendios tambeacutem expressaram seu interesse em manter seus
proacuteprios haacutebitos alimentares desconsiderando os alimentos vindos de Portugal
21
Segundo Cacircmara Cascudo (2004) animais como boi vaca porco
galinha cabra e ovelha foram introduzidos pelos portugueses bem como os
cultivos de arroz feijatildeo e verduras pela implantaccedilatildeo de hortas Registros do
padre jesuiacuteta Fernatildeo Cardim que chegou em 1584 descreve a existecircncia de
ldquoalface aboacutebora couve pepino nabos mostarda hortelatilde coentros endros
funchos ervilhas gergelim cebolas alhos e outros legumes que do Reino se
trouxeram que se datildeo bem na terrardquo (CARDIM 1939 p 94)
A partir do que eacute apresentado por Cacircmara Cascudo (2004) e Freyre
(1964) eacute possiacutevel verificar ainda os haacutebitos alimentares dos escravos africanos
que foram trazidos para a colocircnia em meados do seacuteculo XVI primeiramente
inseridos no trabalho dos engenhos de cana e algodatildeo e posteriormente na
mineraccedilatildeo e fazendas de gado
Segundo Cacircmara Cascudo (2004) quase todos escravos eram
obrigados a se alimentar da dieta que lhes era fornecida assim a possibilidade
de escolha do que comer era praticamente nula Eram melhor alimentados
apenas durante a viagem de navio ateacute chegar em terras brasileiras pois
precisariam estar em boas condiccedilotildees para serem revendidos
A refeiccedilatildeo consiste durante a viagem em feijatildeo farinha de milho e de mandioca agraves vezes tambeacutem peixe salgado Sua bebida eacute aacutegua e de quando em quando tambeacutem um pouco de aguardente Sendo levados do Brasil esses gecircneros teriam deterioraccedilatildeo raacutepida e natural (MARTIUS 21 apud CAcircMARA CASCUDO 2004 p 200)
Uma vez instalados nas aacutereas a que foram destinados na colocircnia a
alimentaccedilatildeo do europeu natildeo mudava significativamente Poreacutem em Minas
Gerais era comum a destinaccedilatildeo de pequenas parcelas de terra para que
escravos cultivassem vegetais de sua preferecircncia proacuteximo agraves senzalas
provendo uma alimentaccedilatildeo melhor pelo menos mais diversificada (CAcircMARA
CASCUDO 2004 GUIMARAtildeES REIS 2007) Citando relatos de Gabriel Soares
de Souza que esteve na Bahia de 1570 a 1587 e de Joatildeo Mauricio Rugendas
que passou pelo Brasil de 1821 a 1835 Cacircmara Cascudo (2004) relata que
nesses roccedilados os escravos podiam trabalhar em dias santos e em dias de festa
na casa-grande Era dado aos escravos pequenas parcelas de terra onde eles
podiam cultivar alimentos de seu interesse de consumo
Dessa forma as roccedilas de subsistecircncia aleacutem de contribuiacuterem para reduzir os custos de manutenccedilatildeo da matildeo de obra ao complementarem
22
a alimentaccedilatildeo fornecida pelos senhores criavam um espaccedilo proacuteprio para os escravos contribuindo assim para a prevenccedilatildeo de fugas e revoltas (GUIMARAtildeES REIS 2007 p 330)
A possibilidade de cultivar algumas roccedilas de alimentos preferidos na
cultura africana segundo Cacircmara Cascudo e Gilberto Freyre explica a inserccedilatildeo
de muitas plantas africanas que de alguma maneira os escravos conseguiram
transportaacute-las para o Brasil durante sua viagem Isso tambeacutem permitiu a
inserccedilatildeo de algumas peculiaridades das praacuteticas alimentares africanas na
formaccedilatildeo da comida brasileira atraveacutes das cozinheiras e tambeacutem embora mais
raramente dos cozinheiros que atuavam nas casas-grandes Segundo Freyre
(1964) pode-se atribuir a eles a introduccedilatildeo dos seguintes ingredientes
alimentos e modos de fazer na culinaacuteria brasileira
Azeite-de-dendecirc pimenta malagueta quiabo maior uso da banana variedade de formas de preparar a galinha e o peixerdquo (p 634) Dentro da extrema especializaccedilatildeo de escravos no serviccedilo domeacutestico das casas-grandes reservaram-se sempre dois agraves vezes trecircs indiviacuteduos aos trabalhos de cozinha (FREYRE 1964 p 634)
Freyre (1964) aponta que as influecircncias se deram primeiramente e mais
fortemente nos estados do Nordeste (Bahia Pernambuco e Maranhatildeo) em
funccedilatildeo dos trabalhos nos engenhos da regiatildeo Na Bahia foi muito marcante a
inserccedilatildeo das vendas dos quitutes doces e salgados em tabuleiros ou gamelas
pelas ruas sobretudo pelas mulheres alforriadas mas tambeacutem havia aquelas
que vendiam para reverter a renda agrave sua lsquosinhaacutersquo6 ldquoQuindim cocada sequilhos
mocotoacutes vatapaacutes mingaus pamonhas canjicas acaccedilaacutes abaraacutes arroz-de-coco
feijatildeo-de-coco angus patildeo-de-loacute de arroz patildeo-de-loacute de milho rebuccedilados7rdquo (p
636) Este autor afirma que os dois pratos de origem africana que mais fizeram
sucesso na mesa da casa-grande foram o vatapaacute e o caruru
Com a chegada da Corte Portuguesa em 1808 segundo Cacircmara
Cascudo (2004) Holanda (1995) e Ribeiro (2014) algumas alteraccedilotildees
importantes comeccedilaram a ocorrer no plano alimentar dos mais ricos com a
vinda inclusive de cozinheiros particulares com seus livros de receitas Criaram-
se modismos que tiveram influecircncia principalmente no Rio de Janeiro Um deles
6 No capiacutetulo 3 deste trabalho faccedilo uma discussatildeo mais detalhada sobre o papel das mulheres iacutendias
africanas e portuguesas na formaccedilatildeo da culinaacuteria brasileira 7 Como os portugueses se referem ao doce ldquobalardquo
23
foi a ampliaccedilatildeo do consumo de produtos importados da Europa e o estilo francecircs
de comer
Importava-se conservas doces frutos processados salsichas presuntos manteiga queijo chaacute e temperos () Desde entatildeo os haacutebitos agrave mesa se europeizaram os ideais alimentares e de paladar se tornaram cada vez mais semelhantes aos franceses berccedilo da gastronomia como a conhecida hoje (RIBEIRO 2014 p 50-51)
Freyre (1964) descreve informaccedilotildees dos livros de receitas dos
cozinheiros que vieram de Portugal e que passaram a inserir as novas praacuteticas
alimentares importadas para os mais abastados como a substituiccedilatildeo da gordura
pela manteiga francesa nas frituras diversas o reduzido uso da feijoada e dos
guisados do uso da pimenta e de outros condimentos picantes O proacuteprio trigo
antes uma raridade passou a chegar com maior facilidade e iniciando-se a
produccedilatildeo do patildeo de trigo tatildeo caracteriacutestico em Portugal e que passou a ser
muito consumido tambeacutem no Brasil
Em vez do aluaacute da garapa de tamarindo do caldo de cana ndash o chaacute agrave inglesa em vez de farinha do piratildeo ou do quibebe ndash a batata chamada inglesa Juntando-se a tudo isso o requinte do gelo Manteiga francesa batata inglesa chaacute tambeacutem agrave inglesa gelo ndash tudo isso agiu no sentido da desafricanizaccedilatildeo da mesa brasileira que ateacute os primeiros anos de independecircncia estivera sob maior influecircncia da Aacutefrica e dos frutos indiacutegenas (FREYRE 1964 p 642)
As influecircncias de outras culturas continuaram a se expandir a partir de
metade do seacuteculo XIX com a chegada de novos imigrantes ndash principalmente
italianos alematildees espanhoacuteis japoneses e siacuterio-libaneses ndash novos elementos da
culinaacuteria tiacutepica desses grupos eacutetnicos foram se incorporando a jaacute miscigenada
comida brasileira Na contemporaneidade a influecircncia alimentar mais relevante
de uma cultura externa eacute a norte-americana Poreacutem no seacuteculo XX o hibridismo
alimentar natildeo mais ocorre necessariamente pela intensidade da imigraccedilatildeo mas
sobretudo pela influecircncia da globalizaccedilatildeo Ao facilitar a divulgaccedilatildeo o transporte
e a aquisiccedilatildeo de alimentos de outros paiacuteses esse processo propiciou a
introduccedilatildeo constante de novas praacuteticas e haacutebitos alimentares
Apoacutes a breve introduccedilatildeo sobre os haacutebitos alimentares formados no Brasil
colonial passo a tratar especificamente da regiatildeo de Minas Gerais onde se deu
a fase mineradora regiatildeo na qual estatildeo inseridos os municiacutepios pesquisados
24
22 Fase da mineraccedilatildeo em Minas Gerais escassez de alimentos
O ciclo da mineraccedilatildeo foi muito importante para a economia da colocircnia
portuguesa e iniciou-se apoacutes a quase estagnaccedilatildeo do ciclo do accediluacutecar no final do
seacuteculo XVII Teve seu apogeu em Minas Gerais no seacuteculo XVIII e nesta fase
por determinaccedilatildeo da Coroa Portuguesa toda a matildeo de obra deveria estar
voltada basicamente agrave extraccedilatildeo de ouro e diamante Paula (2007) menciona que
a mineraccedilatildeo foi uma atividade central e decisiva na peculiaridade histoacuterica da
regiatildeo onde ela ocorreu Segundo o autor algumas caracteriacutesticas dessa
atividade foram a rapidez e amplitude com que a regiatildeo foi ocupada O intenso
fluxo imigratoacuterio gerado pela quantidade de ouro e seu preccedilo transformou-a na
Capitania mais populosa do periacuteodo colonial ao imperial Por sua importacircncia
econocircmica e dinamismo da atividade Minas Gerais teve o maior nuacutemero de
escravos da Ameacuterica Portuguesa
O fato de ser ele mesmo o ouro dinheiro em sua forma mais universal teraacute decisivo impacto sob o grau de dinamismo e mercantilizaccedilatildeo da economia mineira A riqueza decorrente da atividade induziraacute o Estado portuguecircs a efetivamente implantar a maacutequina estatal da colocircnia agrave qual seraacute durante muito tempo apenas fisco poliacutecia e justiccedila Satildeo essas dimensotildees que vatildeo determinar o desenvolvimento em Minas Gerais de uma estrutura urbana de uma certa vida poliacutetica e cultural em nada triviais no contexto colonial (PAULA 2007 p 279)
Assim a atividade mineradora fez surgir em Minas Gerais primeiramente
uma sociedade urbana baseada na extraccedilatildeo de ouro e diamantes com a
formaccedilatildeo de pequenos povoados e arraiais Segundo Zemella (1951) ldquoos
arraiais mineiros cresceram tatildeo vertiginosamente que em poucos anos muitos
deles atingiram a dignidade de vila Surgiram primeiramente Mariana Vila Rica
Caeteacute Sabaraacute Vila do Priacutencipe Arraial do Tijuco e outrosrdquo (ZEMELLA 1951 p
46) Nesses ldquooutrosrdquo citados pela autora estaacute incluiacuteda a vila de Guarapiranga
(atuais municiacutepios de Piranga Porto Firme e Presidente Bernardes) como jaacute foi
mencionado
Em funccedilatildeo disso analisa Cacircmara Cascudo (2004) com um contingente
elevado de pessoas que chegavam tanto do litoral da Colocircnia como tambeacutem de
Portugal em busca das riquezas minerais a escassez de alimento foi um fator
marcante nesse periacuteodo jaacute que se plantava muito pouco e boa parte da comida
25
era trazida por tropeiros8 a preccedilos elevados Aleacutem disso demorava a chegar
devido agraves dificuldades das tropas em avanccedilar pelas matas e estradas de difiacutecil
acesso
O excesso de ouro mal enfrentava o exageradiacutessimo preccedilo dos gecircneros alimentiacutecios transportados de longe porque natildeo havia vontade e tempo para plantar cereais Garimpeiros e faiscadores9 tinham que comprar qualquer elemento para compor a menor refeiccedilatildeo Toda a escravaria estava ocupada no desmonte das terras e lavagem do ouro (CAcircMARA CASCUDO 2004 p 208)
Segundo Frieiro (1982) e Paula (2007) as crises de abastecimento foram
graviacutessimas e causaram muitas mortes por fome aleacutem da acelerada alta de
preccedilos dos alimentos Magalhatildees (1978) aponta duas grandes crises de fome a
de 1697-1698 e a de 1700-1701 Essas crises propiciaram uma dispersatildeo
populacional do centro da regiatildeo mineradora ldquoOs primeiros habitantes natildeo
pensavam em perder tempo nas canseiras do amanho e plantio da terra A falta
de caminhos agravava sobremaneira o problema do abastecimentordquo (FRIEIRO
1982 p 56)
Segundo o autor tinha-se assim uma alimentaccedilatildeo de baixo valor
proteico Para minimizar isso comia-se o ldquobicho da taquarardquo assado ou torrado
Alimento que jaacute era consumido pelos indiacutegenas
O que comia o faisqueiro na sua lavra Comia do pouco que se plantava nas roccedilas Milho feijatildeo farinha de mandioca e alguma fruta da terra eram o cotidiano sustento dos mineradores O escravo negro pau para toda obra armava o tripeacute de varas fincado no chatildeo e pendurava nele o caldeiratildeo de ferro em que cozinhava o feijatildeo com toucinho servido em pratos de estanho Estendia-se a farinha ao sol numa toalha e ao lado natildeo faltava o ancorote de aacutegua ou aguardente Galinha ovos e doces quando os havia muito raros eram tudo por preccedilo da hora da morte (FRIEIRO 1982 p 57)
A partir disso pela necessidade de manter a atividade e portanto de
manter alimentados os homens para o trabalho o rei ordena a importaccedilatildeo de
carne de boi para Minas vinda de Satildeo Paulo Curitiba sertotildees da Bahia e
Pernambuco Essas regiotildees natildeo possuiacuteam grande plantel mas passaram a
ampliar a produccedilatildeo para atender agrave demanda mineira A carne chegava cara e
8 Uma importante e movimentada rota de comercializaccedilatildeo para abastecer a regiatildeo de suprimentos gerais e
comida surge da exploraccedilatildeo de ouro e diamante Detalhes dessa rota comercial por ser visto em Zemella (1951)
9 Muito comuns na mineraccedilatildeo os faiscadores eram homens livres e pobres havendo mesmo escravos entre eles que entregavam quantia fixa de ouro ao senhor e guardavam o eventual excedente (VAINFAS 2001 p 398)
26
tambeacutem tinha seu preccedilo elevado nas regiotildees de origem jaacute que se priorizava a
exportaccedilatildeo para Minas Apesar da escassez de comida representar um aspecto
negativo para Minas Gerais ela contribuiu para a expansatildeo do mercado de
outras regiotildees do paiacutes que investiram no abastecimento de alimentos da aacuterea de
mineraccedilatildeo conforme aponta Furtado (2000)10
Segundo Zemella (1951) apesar do empenho de Satildeo Paulo e das outras
regiotildees em fazer chegar a carne ateacute as Minas Gerais havia irregularidades no
fornecimento Em funccedilatildeo disso usava-se muito da carne de caccedila e de todo o
tipo de alimento que se poderia obter nas matas aleacutem do pouco que colhiam nas
pequenas roccedilas para subsistecircncia insuficiente para atender a demanda de todos
os trabalhadores que viviam na regiatildeo dedicada agrave mineraccedilatildeo
A situaccedilatildeo de inseguranccedila alimentar grave que se instalava e a grande
dificuldade na obtenccedilatildeo da carne bovina ldquoestimulou o governo metropolitano agrave
formaccedilatildeo de uma zona pecuarista em torno das minas distribuindo sesmarias
em profusatildeo sempre sob a condiccedilatildeo de os agraciados instalarem curraisrdquo
(ZEMELLA 1951 p 192) O objetivo era tambeacutem que com o tempo a produccedilatildeo
de gado se tornasse suficiente para natildeo mais haver comeacutercio com a Bahia
visando fechar os canais por onde escoava o contrabando de ouro
A outra accedilatildeo do governo da qual trata a autora foi instituir a criaccedilatildeo de
suiacutenos onde houvesse espaccedilo para tal Assim passou a ser frequente entre os
mineiros a implantaccedilatildeo de chiqueiros rudimentares no quintal das casas mesmo
nas casas urbanas Surge a partir dessa situaccedilatildeo a preferecircncia pela carne suiacutena
na dieta do mineiro da regiatildeo de mineraccedilatildeo11 carne que estaacute presente na maior
parte das receitas consideradas mineiras ainda nos dias atuais
Outra medida por parte da Coroa para garantir a subsistecircncia interna e
certa autonomia ao longo desse periacuteodo de mineraccedilatildeo foi a criaccedilatildeo da ldquoOrdem
10 A pecuaacuteria que encontrara no Sul um habitat excepcionalmente favoraacutevel para desenvolver-se - e que
natildeo obstante sua baixiacutessima rentabilidade subsistia graccedilas agraves exportaccedilotildees de couro ndash passaraacute por uma verdadeira revoluccedilatildeo com o advento da economia mineira O gado do Nordeste cujo mercado definhava com a decadecircncia da economia accedilucareira tende a deslocar-se em busca do florescente mercado da regiatildeo mineira Outra caracteriacutestica de profundas consequecircncias para as regiotildees vizinhas radicava em seu sistema de transporte A tropa de mulas constitui autecircntica infraestrutura de todo o sistema A quase inexistecircncia de abastecimento local de alimentos a grande distacircncia por terra que deveriam percorrer todas as mercadorias importadas a necessidade de vencer grandes caminhadas em regiatildeo montanhosa para alcanccedilar os locais de trabalho tudo contribuiacutea para que o sistema de transporte desempenhasse um papel baacutesico no funcionamento da economia Criou-se assim um grande mercado para animais de carga (FURTADO 2000 p 81)
11 Nas regiotildees do norte de Minas Gerais outros tipos de carne satildeo mais comuns por exemplo a carne de sol em que se usa mais frequentemente a carne de boi
27
Reacutegia de 27 de fevereiro de 1777rdquo que tornou obrigatoacuterio o cultivo nas aacutereas
rurais em quantidade suficiente para abastecimento de mandioca feijatildeo e milho
considerados alimentos baacutesicos naquela eacutepoca
O milho que na regiatildeo das Minas Gerais passou a ser mais importante
para consumo humano12 do que a mandioca tinha como derivados pipoca
curau pamonha farinha cuscuz biscoitos bolos cerveja de milho verde
aguardente canjica ldquoque os ricos comiam por gosto e os pobres por
necessidaderdquo (FRIEIRO 1982 p 57) Isso porque estes derivados eram
consumidos apenas pelos proprietaacuterios das terras e outros poucos abastados
Segundo Saint-Hilaire (1938) e Frieiro (1982) aos escravos soacute era dado o angu
que durante muito tempo foi a base de sua dieta Saint-Hilaire (1938) que
aprovou o paladar da alimentaccedilatildeo agrave base do milho descreve detalhes do fubaacute e
a importacircncia do angu para a alimentaccedilatildeo dos escravos
Para fazer servir o milho agrave alimentaccedilatildeo ordinaacuteria dos homens eacute ele preparado de duas maneiras diferentes Sua farinha simplesmente moiacuteda e separada do farelo com o auxiacutelio de uma peneira de bambu toma o nome de fubaacute Eacute fazendo cozer o fubaacute na aacutegua sem acrescentar sal que se faz essa espeacutecie de polenta grosseira que se chama como jaacute o disse anguacute e constitui o principal alimento dos escravos (SAINT-HILAIRE 1938 p 206)
O viajante Pohl (1951 apud FRIEIRO 1982) relata o que testemunhou
da alimentaccedilatildeo dos escravos ldquoalimentavam-se os negros ao almoccedilo e agrave ceia
com farinha de milho misturada com aacutegua quente o angu propriamente dito no
qual punham um naco de toucinho e ao jantar davam-lhes feijatildeordquo (POHL 1951
apud FRIEIRO 1982 p 75) O objetivo era alimentar o escravo somente daquilo
que o mantivesse em boas condiccedilotildees de sauacutede e com forccedila suficiente para fazer
render o trabalho na lavra
O angu era desde essa eacutepoca feito sem adiccedilatildeo de sal o que perdura ateacute
os dias de hoje A principal razatildeo para isso naquela eacutepoca era a dificuldade em
obter o sal em Minas Gerais e consequentemente o seu alto preccedilo Assim esse
produto era usado com parcimocircnia para alimentaccedilatildeo animal e alguns alimentos
12 Para fins de alimentaccedilatildeo animal o milho tambeacutem era mais importante do que a mandioca pois dele se
alimentavam os bovinos os suiacutenos os equinos e os galinaacuteceos conforme aponta Meneses (2007) Assim era necessaacuteria uma aacuterea muito grande destinada ao cultivo deste cereal Segundo este autor a praacutetica de produccedilatildeo consorciada de milho e feijatildeo era comum e atendiam a uma ldquoordem bioloacutegica cultural e econocircmica e ainda ecoloacutegica - condiccedilotildees de clima solo e relevordquo (p 344) Com o passar do tempo o milho caiu na preferecircncia dos habitantes das Minas e se tornou mais importante para fins de alimentaccedilatildeo humana tambeacutem
28
que precisariam dele para conservaccedilatildeo como toucinhos e feijatildeo por exemplo
Conforme Frieiro (1982) em funccedilatildeo dessa situaccedilatildeo poder-se-ia talvez atribuir
o angu sem sal como invenccedilatildeo mineira embora isso natildeo possa ser comprovado
jaacute que em outras regiotildees como Satildeo Paulo e Bahia o angu eacute temperado A
obtenccedilatildeo de sal foi um problema geral no paiacutes durante todo o seacuteculo XVIII
segundo o autor
Zemella (1951) em seu importante trabalho sobre o abastecimento de
capitania das Minas Gerais no seacuteculo XVIII destaca essa situaccedilatildeo
O suprimento de sal especialmente para as cidades vicentinas sempre foi difiacutecil e penoso Na Vila de Satildeo Paulo o mau fornecimento do preciso condimento causou ateacute revoltas Se na Vila de Satildeo Paulo que estava relativamente proacutexima do porto de importaccedilatildeo de sal havia tremendas dificuldades para a sua obtenccedilatildeo que seria entatildeo das Gerais As minas no seu desespero conseguiram uma regiatildeo interna os sertotildees marginais do Satildeo Francisco que lhe fornecesse tal mercadoria se bem que em pequenas quantidades O sal chegava agraves cidades mineiras subindo o rio Satildeo Francisco em barcaccedilas (ZEMELLA 1951 p 193)
A autora aponta que o sal assim como a carne os cereais o accediluacutecar e o
toucinho eram produtos vitais de consumo para os mineiros Sendo que a carne
e o sal eram aleacutem de necessaacuterios imprescindiacuteveis e vinham de longas
distacircncias Segundo Carrara (2013) o sal que chegava agraves Minas Gerais vinha
de Sobradinho Pilatildeo Arcado Casa Nova e Remanso na Bahia A autora inclui
na lista ainda dois produtos que eram considerados de grande importacircncia para
os mineiros a pinga e o tabaco A pinga ou cachaccedila era muitas vezes usada
para ajudar a remediar a fome
Como citado por Zemella (1951) e Frieiro (1982) a Ordem Reacutegia
estimulou pequenos cultivos para subsistecircncia e a venda dos excedentes
reduzindo o risco de uma nova crise de fome Com o tempo foi-se regulando o
abastecimento embora a preccedilos ainda estivessem muito elevados para a grande
maioria da populaccedilatildeo da regiatildeo mineradora Segundo Boxer (1969 apud Arruda
1999 p 139) ldquoAs pessoas que tinham uma fazenda ou roccedila nas quais
plantavam legumes criavam aves porcos etc para elas e seus escravos
vendendo o excesso para o consumo na cidade com bons lucrosrdquo
Arruda (1999) menciona que as pessoas mais ricas e que possuiacuteam um
grande nuacutemero de escravos foram as primeiras a iniciarem o cultivo de suas
29
terras para alimentar seus familiares os escravos e a aproveitar a demanda por
alimentos para obter algum lucro com a venda do excedente
Analisando o lugar da comida no processo de formaccedilatildeo do territoacuterio das
Minas Gerais na fase da mineraccedilatildeo verificamos que ela teve uma funccedilatildeo muito
mais fisioloacutegica ou seja a de matar a fome e sustentar a pesada lida diaacuteria que
era o trabalho na lavra Conforme os registros de Mawe (1922) Saint-Hilaire
(1938) e Cardim (1939) verifica-se que os habitantes da regiatildeo de Minas Gerais
faziam suas refeiccedilotildees com muita rapidez e com pouca conversa
Outra observaccedilatildeo importante eacute mencionada por Abdala (2007) que
aponta a existecircncia de uma combinaccedilatildeo de gecircneros adquiridos no comeacutercio com
a produccedilatildeo de alimentos do quintal isso ainda na fase da mineraccedilatildeo ndash no
periacuteodo apoacutes as crises de fome e organizaccedilatildeo do abastecimento interno Como
os preccedilos dos produtos importados eram muito elevados os produtos da terra
foram os principais alimentos consumidos Assim segundo a autora surge uma
cozinha com caracteriacutesticas peculiares que se adaptou agrave situaccedilatildeo vivenciada
pelos habitantes cujo controle poliacutetico e econocircmico era excessivo diante da
realidade em que atender agraves necessidades imediatas de sobrevivecircncia era o
principal objetivo ldquoAgrave exceccedilatildeo das compotas e doccedilarias de maneira geral
inspiradas nos haacutebitos lusitanos os pratos servidos no dia-a-dia caracterizavam-
se pela rusticidade dos produtos da terrardquo (ABDALA 2007 p 73) Nesse periacuteodo
tambeacutem foi muito importante dominar as teacutecnicas de conservaccedilatildeo dos alimentos
o que acarretou na adoccedilatildeo de haacutebitos alimentares muito caracteriacutesticos como a
conservaccedilatildeo da carne do porco na gordura retirada do proacuteprio animal
23 Fase da ruralizaccedilatildeo em Minas Gerais fartura de alimentos
A fase da ruralizaccedilatildeo em Minas Gerais eacute considerada aquela que
paulatinamente vai surgindo um novo dinamismo econocircmico e reprodutivo para
aleacutem da mineraccedilatildeo Segundo Arruda (1999) Igleacutesias (1970) Carrara (2007)
Guimaratildees e Reis (2007) Meneses (2007) Barbosa (1995) e Frieiro (1982) natildeo
ocorreu um corte radical uma linha divisoacuteria onde tenha se encerrado o ciclo da
mineraccedilatildeo e surgido o ciclo da ruralizaccedilatildeo A demarcaccedilatildeo de uma periodizaccedilatildeo
eacute feita pelos autores mais por razotildees metodoloacutegicas para discorrer sobre o ritmo
histoacuterico econocircmico e cultural daquele periacuteodo na regiatildeo
30
Iglesias (1970) utiliza os termos ldquoopulecircncia e decadecircnciardquo da mineraccedilatildeo
e sugere os periacuteodos da seguinte maneira Os anos de 1693 a 1770 a fase
considerada do surgimento ao auge da opulecircncia mineraccedilatildeo e 1770 a 1883 o
que abrangeria a sua decadecircncia Tal decliacutenio orientou consequentemente para
a atividade a agriacutecola Arruda (1999) aponta a Carta (ou Ordem) Reacutegia jaacute citada
no item anterior como o marco de reconhecimento da Coroa do decliacutenio da
mineraccedilatildeo e da necessidade de estimular a produccedilatildeo agriacutecola na regiatildeo Em
suas palavras
A Carta Reacutegia de 1777 consagra ao novo princiacutepio o postulado que reconhece a importacircncia da agropecuaacuteria no conjunto das atividades econocircmicas nas aacutereas de mineraccedilatildeo () A mudanccedila de atitude por parte das autoridades governamentais do Reino corresponde na realidade agrave avassaladora crise da produccedilatildeo auriacutefera depois dos anos sessenta Impunham-se novos caminhos agrave economia de Minas capazes de dar sustentaccedilatildeo aos significativos contingentes populacionais que laacute haviam se estabelecido na primeira deacutecada do seacuteculo XVIII (ARRUDA 1999 p 140)
Nesta fase o problema de abastecimento jaacute natildeo era mais tatildeo grave mas
os preccedilos dos alimentos continuavam altos Era tempo de maior fartura de
alimentos em relaccedilatildeo agrave fase de mineraccedilatildeo mas ainda assim com muitos
obstaacuteculos Zemella (1951) defende que em funccedilatildeo da situaccedilatildeo dada a regiatildeo
de Minas Gerais foi orientando pouco a pouco seus caminhos no sentido da
autossuficiecircncia e as atividades dos habitantes se desviando para a lavoura
pecuaacuteria e a manufatura ldquoNa proacutepria regiatildeo onde se localizavam as lavras13 ou
minas multiplicaram-se as plantaccedilotildees As minas agonizantes passaram a
apoiar-se na lavoura que se expandindo procurava gulosamente as manchas
de terra feacutertil que havia nas imediaccedilotildees das lavrasrdquo (ZEMELLA 1951 p 239)
Mas esse processo natildeo significou um rompimento abrupto da mineraccedilatildeo Assim
o trabalho na lavra permanecia embora em muito menor importacircncia do que
antes ndash nas fases poacutes-colheita ndash quando se utilizava a matildeo-de-obra dos escravos
que pudessem ser retirados temporariamente da lavoura
Guimaratildees e Reis (2007) apontam que os setores da manufatura
pecuaacuteria e lavoura permitiram que a economia de Minas Gerais continuasse a
13 ldquoEm 1702 foi criado a Intendecircncia das Minas oacutergatildeo encarregado de aplicar a legislaccedilatildeo sobre a
mineraccedilatildeo na colocircnia Cabia ainda ao oacutergatildeo dividir o local a ser explorado em Datas lotes de terra entregues ao descobridor das minas As aacutereas maiores que as Datas eram chamadas de Lavras lotes de terras em que a exploraccedilatildeo do ouro soacute seria possiacutevel com teacutecnicas de exploraccedilatildeo mais eficaz e com um grande nuacutemero de escravosrdquo (MUTTER 2012 p31)
31
se desenvolver e a Capitania continuasse a manter seu ritmo de crescimento
populacional durante a segunda metade do seacuteculo XVIII incluiacuteda a populaccedilatildeo
escrava
Com a crise da mineraccedilatildeo a mudanccedila nos rumos da economia mineira provocou transformaccedilotildees quantitativas e qualitativas na agricultura com o fortalecimento da produccedilatildeo interna e com o desenvolvimento de uma elite residente autocircnoma ante o mercado externo (GUIMARAtildeRES REIS 2007 p 332)
Na concepccedilatildeo de Arruda (1999) aleacutem de a agricultura ocorrer nas
regiotildees das lavras como afirmado por Zemella (1951) as sesmarias que foram
concedidas levaram muitos a estabelecerem suas fazendas no interior rural A
autora aponta que nesta fase jaacute ao final do seacuteculo XVIII Minas reduziu muito o
consumo de produtos importados basicamente de Satildeo Paulo Rio de Janeiro e
Bahia passando a comercializar principalmente para o Rio de Janeiro muito do
que passou a produzir embora a produccedilatildeo fosse principalmente para
abastecimento interno como tambeacutem apontado por Graccedila Filho (2007) e por
Guimaratildees e Reis (2007) Exportava-se ldquoqueijo fumo accediluacutecar aguardente e
cana e ainda mas em menor volume couros e solas marmelada e mandioca
algodatildeo pouco cafeacute gado vacum porcos cavalos e galinhasrdquo (DULCI 2007 p
348)
Este autor menciona ainda que as importaccedilotildees que continuaram pelo
seacuteculo XIX foram de produtos como sal tecidos vinho peixe salgado vinagre
e azeite doce
As compras no entanto eram muito menores do que as vendas O poder aquisitivo dos mineiros era baixo portanto jaacute que eles natildeo tinham condiccedilotildees de consumir muitos produtos importados havia espaccedilo para fabricaccedilatildeo local de bens indispensaacuteveis agrave vida diaacuteria (DULCI 2007 p 348)
Para Freyre (2008 p 67) o decliacutenio da mineraccedilatildeo ldquotransformou quase
toda a Proviacutencia de inquietamente mineira a pacatamente agriacutecolardquo Para este
autor a fase da ruralizaccedilatildeo foi melhor para Minas nos aspectos econocircmicos e
sociais Segundo Graccedila Filho (2007) Guimaratildees e Reis (2007) e Arruda (1999)
a fase da ruralizaccedilatildeo em Minas foi um processo relativamente lento que ocorreu
progressivamente e essa realidade natildeo mudou mundo durante quase todo o
seacuteculo XIX
32
Poreacutem a partir de segunda metade desse seacuteculo o setor cafeeiro e o
fabril tornaram essa realidade produtiva e econocircmica mais diversificada
sobretudo na Zona da Mata assim como a pecuaacuteria leiteira na regiatildeo mais ao
Sul do estado
A produccedilatildeo cafeeira na Zona da Mata conforme Pires (2013 p 331)
ldquodesenvolveu uma tiacutepica economia voltada para a produccedilatildeo e exportaccedilatildeo de cafeacute
que a partir de meados do seacuteculo XIX vai se tornando o espaccedilo econocircmico mais
rico do estado ateacute pelo menos o final da deacutecada de 1920rdquo
Tambeacutem foi na Zona da Mata que Dulci (2007) aponta ter surgido no final
do seacuteculo XIX e iniacutecio do XX agroinduacutestrias da cana e do leite que chegaram a
liderar o mercado nacional no iniacutecio do seacuteculo XX Antes disso os engenhos
existentes nas aacutereas rurais em Minas eram rudimentares O autor menciona que
no municiacutepio de Ponte Nova foram instaladas trecircs usinas de cana de accediluacutecar com
a importaccedilatildeo de equipamentos modernos para a produccedilatildeo em escala industrial
Com as usinas chegaram os trens da empresa Leopoldina o que foi muito
importante para o desenvolvimento regional
Em relaccedilatildeo agrave agroinduacutestria do leite em Minas no mesmo periacuteodo o autor
sinaliza que ela se deu de maneira constante acompanhando a evoluccedilatildeo da
pecuaacuteria regional A primeira agroinduacutestria de produtos laacutecteos do estado
estabeleceu-se onde hoje estaacute o municiacutepio de Santos Dumont
Satildeo muitas as teses e discussotildees baseadas em documentos e arquivos
sobre a Minas Colonial e sobre as dinacircmicas produtivas e o controle poliacutetico-
econocircmico nas duas fases a mineraccedilatildeo e a ruralizaccedilatildeo Poreacutem para os
objetivos deste trabalho como jaacute sinalizado no iniacutecio deste capiacutetulo importa
saber se o decliacutenio da mineraccedilatildeo e consequente ampliaccedilatildeo da produccedilatildeo
agropecuaacuteria (considerada assim a fase da ruralizaccedilatildeo) gerou mudanccedilas nos
haacutebitos alimentares da populaccedilatildeo mineira do entorno da regiatildeo mineradora
Conhecer os haacutebitos alimentares da populaccedilatildeo o que era cultivado e que
animais eram criados nesses dois periacuteodos eacute importante para correlacionar com
as informaccedilotildees obtidas na pesquisa de campo
Nesse sentido os autores que orientam a esse respeito satildeo Frieiro
(1982) Magalhatildees (2004) Arruda (1990) Abdala (2007) Vasconcellos (1968) e
Torres (2011)
33
Temos a impressatildeo (e Gilberto Freyre e Caio Prado Juacutenior pensam igualmente assim) que o mineiro tanto na Colocircnia nos tempos de mineraccedilatildeo no Impeacuterio passada a seacuterie de crises dos primeiros tempos de mineraccedilatildeo alimentava-se bem e melhor do que a maioria dos brasileiros ao menos quanto ao peso e valor nutritivo O mineiro exige ldquosustacircnciardquo quer comida substancial e pouco liga para refinamentos complicados (TORRES 2011 p 101)
A observaccedilatildeo de Torres (2011) corrobora a de Frieiro (1982) que
sinaliza para uma alimentaccedilatildeo mais farta na fase da ruralizaccedilatildeo e segundo
Arruda (1999) a produccedilatildeo diversificada nas fazendas era uma caracteriacutestica
deste periacuteodo Os excedentes de carne suiacutena toucinho carne seca farinha de
milho farinha de mandioca rapadura aguardente oacuteleo fumo cafeacute queijos
algodatildeo em fios e tecidos ruacutesticos eram vendidos nas cidades mais proacuteximas
O que os autores citados apontam eacute que houve fartura de produtos
alimentiacutecios sem diversificaccedilatildeo entre o que se comia na fase da mineraccedilatildeo para
a fase da ruralizaccedilatildeo exceto para os mais ricos que podiam investir na
importaccedilatildeo de vinhos azeites do reino e bacalhau Magalhatildees (2004) aponta a
abundacircncia na produccedilatildeo de legumes frutas hortaliccedilas tubeacuterculos e gratildeos
produzidos nos siacutetios e fazendas proacuteximos a Vila Rica e Mariana Ateacute mesmo
nos pequenos quintais das cidades existiam hortas Muitos dos alimentos eram
itens comuns no cotidiano alimentar da populaccedilatildeo como o feijatildeo a farinha e
milho e a couve
Quanto agrave produccedilatildeo de alimentos regionaislocais notam-se principalmente legumes hortaliccedilas frutas e gratildeos produzidos por pequenos sitiantes residentes nos termos das vilas Em Vila Rica por exemplo produziam-se os seguintes gecircneros laranjas bananas quiabos couves batata-doce caraacute mandioca ovos patildees leite azeite de mamona farinha de mandioca e de milho cevada arroz feijatildeo miuacutedo e fradinho (CHAVES 1995 apud MAGALHAtildeES 2004 p 71)
Em relaccedilatildeo agrave proteiacutena animal Magalhatildees (2004) e Frieiro (1982)
apontam que os suiacutenos e as galinhas caipiras continuaram sendo a principal
fonte de consumo Do suiacuteno aleacutem da carne continuou-se a usar o toucinho a
banha focinho orelhas mocotoacutes e fressuras que tambeacutem satildeo fonte de gordura
Diferentemente da carne cujo consumo era restrito aos abastados o toucinho e
a banha eram usados por todas as classes sociais para acompanhar as
hortaliccedilas e o feijatildeo
34
O angu e o feijatildeo continuaram presentes na mesa de todos sobretudo
na do pobre14 Segundo os autores nas famiacutelias mais ricas tinha-se como
costume servir refeiccedilotildees muito fartas para as visitas mesmo que essa natildeo fosse
a realidade cotidiana inclusive com variedades de doces numa tentativa de
apagar as privaccedilotildees alimentares vivenciadas anteriormente
Saint-Hilaire em uma de suas passagens por Minas Gerais no seacuteculo
XIX relata suas percepccedilotildees sobre a comida nas aacutereas rurais
Galinha e porco satildeo as carnes que se servem mais comumente em casa dos fazendeiros da proviacutencia das Minas O feijatildeo preto forma prato indispensaacutevel na mesa do rico e esse legume constitui quase que a uacutenica iguaria do pobre Se a esse grosseiro manjar este uacuteltimo acrescenta mais alguma coisa eacute arroz ou couve ou outras ervas picadas (hellip) Como natildeo se conhece o fabrico da manteiga substitui-se-lhe a gordura que escorre do toucinho que se frita Cada conviva salpica com farinha o feijatildeo ou outros alimentos aos quais se adiciona salsa e faz-se assim uma espeacutecie de pasta (hellip) Um dos pratos favoritos dos mineiros eacute galinha cozida com quiabo mas os quiabos natildeo se comem com prazer senatildeo acompanhados de anguacute espeacutecie de polenta sem sabor Em parte alguma talvez se consuma tanto doce como na proviacutencia das Minas fazem-se doces de uma multidatildeo de coisas diferentes (hellip) Eacute muito raro encontrar vinho em casa de fazendeiros a aacutegua eacute a sua bebida ordinaacuteria (SAINT-HILAIRE 1938 p 186-187)
Na percepccedilatildeo de Magalhatildees (2004) natildeo houve alteraccedilotildees importantes
na comida mineira ao longo dos anos na regiatildeo onde se iniciou a mineraccedilatildeo
Feijatildeo farinha de milho fubaacute e arroz continuaram a ser alimentos baacutesicos
Sobre as quitandas Frieiro (1982 p 166) e Abdala (2007 p 99) citam
o consumo comum dos biscoitos de polvilho assados ou fritos broas pamonhas
brevidades roscas sequilhos bolos broinhas de fubaacute de amendoim e matildees-
bentas As quitandas eram fundamentais nas aacutereas rurais Em funccedilatildeo da
distacircncia das cidades era preciso estar prevenido para a chegada de alguma
visita e para atender agrave famiacutelia diariamente O patildeo de queijo atualmente a
quitanda quase ldquosiacutembolordquo de Minas Gerais foi introduzida apenas em iniacutecio do
seacuteculo XX Natildeo haacute uma data precisa de seu surgimento mas como os autores
apontam o queijo passou a ser produzido para aproveitar as sobras do leite
Segundo Abdala (2007) os viajantes europeus que estiveram em Minas no
seacuteculo XIX relataram a raridade de queijo e manteiga nos menus locais Para a
14 Segundo Omegna (1961 apud FRIEIRO 1982) a parcela mais pobre e livre de Minas Gerais nunca
rejeitou o angu e nem a farinha de milho preferindo-o agrave mandioca Mas o mesmo natildeo se observava em outras regiotildees do Paiacutes justamente por ser comida prioritaacuteria para os escravos e assim optavam pela farinha de mandioca Essa era uma maneira de natildeo se igualar aos escravos
35
autora a introduccedilatildeo do queijo no biscoito de polvilho dando origem ao patildeo de
queijo surgiu justamente no periacuteodo de fartura alimentar quando se utilizava o
excedente para criar diversos pratos Na regiatildeo que pesquisei o patildeo de queijo
natildeo eacute uma quitanda tradicional e raramente eacute consumida
O que se percebe ao final deste capitulo eacute que a alimentaccedilatildeo baacutesica foi
a mesma em Minas desde o periacuteodo da mineraccedilatildeo A ruralizaccedilatildeo ampliou a
produccedilatildeo de alimentos para abastecimento interno e venda do excedente houve
o incremento de algumas produccedilotildees como cafeacute leite accediluacutecar e seus derivados
mas isso natildeo representou novidade em termos de consumo Percebe-se que os
haacutebitos alimentares permaneceram ao longo dos seacuteculos XVIII XIX e pelo
menos ateacute o iniacutecio do XX Os alimentos destacados como os baacutesicos pelos
autores citados aqui satildeo aqueles que atualmente ainda satildeo encontrados nas
receitas consideradas como mais tradicionais da cozinha mineira embora muitas
e dessas receitas sugiram algumas substituiccedilotildees como oacuteleo vegetal no lugar da
banha accediluacutecar cristal no lugar da rapadura ou do melado fermento quiacutemico no
lugar do bicarbonato de soacutedio etc
No capiacutetulo 5 seraacute possiacutevel observar se esses alimentos presentes na
regiatildeo de mineraccedilatildeo em Minas Gerais satildeo ainda adotados pelas famiacutelias rurais
entrevistadas e se existem relaccedilotildees da comida consumida na ocasiatildeo da
pesquisa com a comida do passado
36
3 ALIMENTACcedilAtildeO E CULTURA PERMANEcircNCIAS E TRANSFORMACcedilOtildeES
ldquoComer natildeo envolve apenas a natureza e a cultura Situa-se entre a natureza e a cultura Participa de ambas Tem muito a ver com a primeira e tambeacutem com a segundardquo
(Paolo Rossi 2014)
Apresento neste capiacutetulo a base conceitual e argumentativa da pesquisa
e os principais autores envolvidos com as abordagens contidas neste trabalho
O item 31 tem por objetivo apontar o lugar da alimentaccedilatildeo nas principais
anaacutelises das ciecircncias sociais e da histoacuteria Basicamente trecircs disciplinas
compotildeem as discussotildees presentes neste estudo e se complementam durante o
percurso a Antropologia a Sociologia e a Histoacuteria O item 32 traz a discussatildeo
existente em torno de sistema alimentar e suas relaccedilotildees com as praacuteticas
alimentares O item 33 analisa as diferenccedilas atribuiacutedas entre alimento e comida
na abordagem cultural e simboacutelica das praacuteticas alimentares inserindo a
importacircncia social e cultural do fogo no ato alimentar as dinacircmicas de
comensalidade as praacuteticas alimentares adotadas na contemporaneidade em
suas conexotildees com o tradicional e o moderno O item 34 discute as
possibilidades de permanecircncia ou extinccedilatildeo das praacuteticas tradicionais no contexto
alimentar contemporacircneo O item 35 discute o tradicional e o moderno no
contexto das dinacircmicas alimentares no meio rural e o item 36 trata do papel
feminino nas praacuteticas alimentares na famiacutelia
31 A alimentaccedilatildeo como categoria de estudo multidisciplinar contribui-ccedilotildees da antropologia da sociologia e da histoacuteria
Em importante artigo sobre as balizas historiograacuteficas da alimentaccedilatildeo
Meneses e Carneiro (1997) destacam os enfoques das diversas aacutereas neste
campo que satildeo bioloacutegico econocircmico social cultural e filosoacutefico Importa-nos
sobretudo aquelas referecircncias das ciecircncias sociais e da histoacuteria Para aqueles
autores a antropologia eacute a que mais daacute atenccedilatildeo a este tema e eacute a responsaacutevel
pela maior quantidade de informaccedilotildees a respeito Citam como principais
contribuiccedilotildees iniciais as obras de Claude Leacutevi-Strauss Marshall Sahlins Mary
Douglas entre outros
37
Os antropoacutelogos desde o seacuteculo XIX se empenharam em desenvolver uma etnografia sistemaacutetica dos haacutebitos alimentares e em buscar interpretaacute-los culturalmente A primeira fase da antropologia caracterizou-se por um comparativismo das diferentes tradiccedilotildees culturais A anaacutelise dos tabus onde se destacam os alimentares foi desde os primoacuterdios da Antropologia Cultural um terreno feacutertil para especulaccedilotildees sobre o significado simboacutelico da alimentaccedilatildeo (MENESES CARNEIRO 1997 p 19)
O socioacutelogo e antropoacutelogo brasileiro Gilberto Freyre jaacute em 1926 em seu
ldquoManifesto Regionalistardquo discute ainda que de forma pouco aprofundada sobre
a funccedilatildeo do accediluacutecar no Brasil Mas foi com sua obra publicada em 1939 em que
trata especificamente de uma sociologia do doce ao recolher receitas que eram
guardadas a sete chaves pelas mulheres e que eram repassadas de matildees para
filhas que o autor pode considerado como o precursor do mais importante
trabalho sobre o accediluacutecar Assunto que retoma mais tarde em ldquoCasa-Grande e
Senzalardquo publicado em 1964
O papel das ciecircncias sociais principalmente a contribuiccedilatildeo da
antropologia para os estudos da alimentaccedilatildeo eacute detalhadamente tratado por
Garciacutea (2009) Este autor aponta que apesar de o tema da alimentaccedilatildeo ter sido
importante para os antropoacutelogos desde os primoacuterdios ndash que registraram em seus
cadernos de campo os modos de comer de elaborar a comida e ainda os
principais alimentos consumidos pelos grupos estudados ndash o ano de 1968 eacute
considerado como sendo o iniacutecio aproximado dos estudos voltados mais
especificamente para a antropologia da alimentaccedilatildeo ou seja quando a
abordagem da comida como cultura passa a ser analisada de forma mais
institucionalizada pela antropologia ldquoCuando se fijen de manera clara las dos
maacutes potentes aproximaciones a la Antropologiacutea de la Alimentacioacuten el
estructuralismo y el materialismordquo (p 26) Sua observaccedilatildeo coincide com o
afirmado por Meneses e Carneiro (1997 p 20) de que ldquosomente nas deacutecadas
de 1960 e 1970 na voga do estruturalismo eacute que os estudos antropoloacutegicos
sobre alimentaccedilatildeo deslancham e se define um padratildeo de anaacutelise culturalrdquo
Garciacutea (2009) justifica ainda a fixaccedilatildeo da data de 1968 por este ser o ano da
primeira publicaccedilatildeo do terceiro volume da seacuterie ldquoMitoloacutegicasrdquo de Claude Leacutevi-
Strauss As Origens dos Modos agrave Mesa
Nesta obra Leacutevi-Strauss republicou o artigo ldquoO triacircngulo culinaacuteriordquo onde
apresenta seu entendimento sobre o fato alimentar e defende que a cozinha de
38
uma sociedade eacute uma linguagem inconsciente de sua estrutura Voltaremos a
este artigo mais agrave frente Em ldquoAs origens dos modos agrave mesardquo (Mitoloacutegicas 3)
assim como em ldquoDo mel agraves cinzas (Mitoloacutegicas 2)rdquo Leacutevi-Strauss analisa o que
chama de ldquoentornos e contornosrdquo da alimentaccedilatildeo A diferenccedila eacute que em
ldquoMitoloacutegicas 3rdquo ele analisa como os modos agrave mesa o uso de receitas e os modos
de preparaccedilatildeo em diferentes povos estatildeo conectados ao lado cultural e como
esses aspectos complementam o lado bioloacutegico que eacute o processo de ingestatildeo e
digestatildeo alimentar
Na deacutecada de 1970 Claude Fischler socioacutelogo e antropoacutelogo francecircs
passa a dar ecircnfase em seus estudos ao tema da alimentaccedilatildeo e desenvolve
importante trabalho sobre o accediluacutecar e seus aspectos de efeito simboacutelico e
bioloacutegico Como jaacute visto Gilberto Freyre (1939) trabalhou esta temaacutetica e sua
influecircncia no Brasil Depois de Claude Fischler Sidney Mintz de mesma
formaccedilatildeo acadecircmica tambeacutem publicou trabalhos sobre o accediluacutecar em 1986
analisando sobretudo as relaccedilotildees de poder existentes nesse tipo de produccedilatildeo
na regiatildeo caribenha Neste contexto seu trabalho inseriu o tema da alimentaccedilatildeo
na economia poliacutetica global Mas Sidney Mintz analisou tambeacutem o poder de
atraccedilatildeo de consumo do accediluacutecar e seu uso na culinaacuteria Sobre esse tema publicou
ldquoSweetness and Power The place of sugar in modern Historyrdquo e em Portuguecircs
foi publicado em 2003 o livro ldquoO Poder amargo do accediluacutecar produtores
escravizados consumidores proletarizadosrdquo
Voltando a Claude Fischler ainda na deacutecada de 1970 organizou a
coletacircnea La nourriture ndash Pour une anthropologie bioculturelle de lrsquoalimentation
Mas eacute na deacutecada de 1990 que publica seu mais importante trabalho
Lrsquohomnivore onde discute as transformaccedilotildees ocorridas nas sociedades
ocidentais modernas no campo da alimentaccedilatildeo e seus efeitos na vida das
pessoas
Tambeacutem entre as deacutecadas de 1970 e 1990 quem se destaca neste
campo eacute o antropoacutelogo americano Marvin Harris Seus estudos no campo da
alimentaccedilatildeo enfatizam sobretudo os enigmas culturais buscando explicar as
reaccedilotildees a alguns mitos e tabus alimentares Assim suas publicaccedilotildees mais
importantes foram ldquoVacas Porcos Guerras e Bruxas Os enigmas da Culturardquo
(1978) Bueno para comer enigmas de alimentacioacuten y cultura (1985) ldquoCanibais
e Reisrdquo (1990) Sobre o tema dos tabus alimentares outras importantes
39
contribuiccedilotildees satildeo as dos antropoacutelogos Mary Douglas sobretudo com a obra
ldquoPureza e Perigordquo publicada pela primeira vez em 1966 e Marshal Sallins com
a obra ldquoCultura e Razatildeo Praacuteticardquo publicada originalmente em 1976 Mary
Douglas e Marshal Sallins tecircm uma anaacutelise para os tabus alimentares que difere
da de Marvin Harris que opta pelo determinismo ecoloacutegico para justificar a razatildeo
de alguns grupos como os judeus em natildeo comer alguns alimentos como carne
de porco por exemplo No livro ldquoVacas Porcos Guerras e Bruxas ndash o enigma
da culturardquo ele defende que a Biacuteblia e o Alcoratildeo condenaram o consumo do
porco natildeo por razotildees espirituais de pecado ou impureza mas ldquoporque a sua
criaccedilatildeo constituiacutea uma ameaccedila agrave integridade dos ecossistemas culturais e
naturais baacutesicos do Oriente Meacutediordquo (HARRIS 1978 p 39) Aleacutem disso Harris
aponta que por ter uma alimentaccedilatildeo parecida com a dos humanos ou seja
viverem soltos nos bosques e se alimentarem de castanhas frutas tubeacuterculos e
cereais os porcos representavam uma disputa por comida Jaacute Mary Douglas e
Sallins defendem que a razatildeo para o natildeo consumo de porco se daacute por razotildees
simboacutelicas e religiosas Mary Douglas em ldquoPureza e Perigordquo recorre ao livro
biacuteblico de Leviacuteticos no Velho Testamento para justificar sua percepccedilatildeo Neste
livro haacute uma recomendaccedilatildeo expliacutecita aos judeus sobre os animais que podem
e que natildeo podem ser comidos divididos entre animais limpos e animais imundos
Assim eram considerados limpos e liberados para comer dentre os
quadruacutepedes os que tem unhas fendidas e divididas em dois e que rumina O
porco por natildeo ruminar eacute considerado imundo e proibido Aleacutem disso nada mais
eacute falado a respeito do porco no livro de Leviacutetico Assim a autora defende que os
judeus cumprem o mandamento apenas por razatildeo religiosa e nada tem a ver
com a questatildeo utilitaacuteria ou da disputa pela comida como alegado por Marvin
Harris Sallins em ldquoCultura e Razatildeo Praacuteticardquo compartilha de forma semelhante
a ideia de Mary Douglas ao tratar sobre os haacutebitos alimentares relativos agrave carne
dos americanos do Norte o que seraacute detalhado mais agrave frente
Outro autor importante no campo da alimentaccedilatildeo eacute o socioacutelogo inglecircs
Stephen Mennell Segundo Meneses e Carneiro (1997) na deacutecada de 1980
Mennell buscou investigar os usos sociais da domesticaccedilatildeo da natureza pela
cultura antes mesmo de Claude Leacutevi-Strauss analisando como se datildeo os
modos que lsquocivilizam o apetitersquo e publicou ldquoAll Manners of Food Eating and Taste
in England and France from the Middle Ages to the Presentrdquo (1996) Foi Mennell
40
ainda quem desenvolveu primeiramente estudos sobre as ldquocozinhas identitaacuteriasrdquo
sobre a valorizaccedilatildeo da cozinha nacional da Inglaterra e os ldquoestilos nacionais de
comerrdquo
Contreras e Gracia (2011 p 29) sugerem como objeto para a
antropologia da alimentaccedilatildeo ldquoo conjunto de representaccedilotildees crenccedilas
conhecimentos e praacuteticas herdadas eou aprendidas que estatildeo associadas agrave
alimentaccedilatildeo e satildeo compartilhadas pelos indiviacuteduos de uma dada cultura ou de
um grupo social determinadordquo
No acircmbito da sociologia segundo Meneses e Carneiro (1997) as
questotildees de gecircnero na divisatildeo social do trabalho domeacutestico e ainda gecircnero e
comida foram os que mais atraiacuteram as pesquisas iniciais Sobre este tema
Mabel Garcia Arnaiacutez (1996) antropoacuteloga espanhola a quem recorremos em
vaacuterios momentos neste trabalho destaca em seu estudo sobre os paradoxos da
alimentaccedilatildeo contemporacircnea as importantes contribuiccedilotildees de Mennell (1996) de
Murcott (1983) Pynson (1987) e Kaplan (1980)
Meneses e Carneiro (1997 p 24) mencionam que o tema da
comensalidade tambeacutem foi evidenciado a partir da deacutecada de 1970 ldquoOs estudos
nesta aacuterea se orientaram para a refeiccedilatildeo como instituiccedilatildeo social sua natureza e
funcionamento seus iacutecones ndash como a mesardquo Mais recentemente abrange
fortemente os estudos sobre os efeitos da tecnologia alimentar que propiciou o
haacutebito de comer fora de casa e o surgimento dos Fast food Em sua obra estes
autores citam os trabalhos de Stephen Mennel (1996) Anne Murcott (1983)
Harvey Levenstein (1988) Claude Fischler (1988)
Ao falar em comensalidade natildeo podemos deixar de citar a contribuiccedilatildeo
dada por Norbert Elias (2011) sobre as transformaccedilotildees nas normas de
comportamento social incluindo os modos agrave mesa na sociedade europeia a
partir do final da Idade Meacutedia Nesta obra cuja primeira publicaccedilatildeo ocorreu em
1939 o autor nos leva a descobrir como foram reproduzidas socialmente
algumas regras de boas maneiras de conviacutevio na sociedade e que tambeacutem se
refletem na comensalidade como por exemplo natildeo comer com as matildeos natildeo
colocar os peacutes sobre a mesa como usar os talheres a mesa natildeo falar de boca
cheia entre outras regras O que pode parecer superficialmente uma descriccedilatildeo
fuacutetil sobre coacutedigos de etiqueta social eacute na verdade uma anaacutelise interessante do
quanto aquilo que parece ser natural atualmente nada tem de natural pois satildeo
41
regras que foram sendo aprendidas agrave medida que o homem foi avanccedilando nos
estaacutegios de civilizaccedilatildeo ocidental O autor nos mostra o quanto foi delicado e difiacutecil
para o homem da cultura ocidental se tornar civilizado ao longo do processo
histoacuterico pois o civilizar-se envolvia a mudanccedila ldquoobrigatoacuteriardquo de comportamento
Em seu livro O Processo Civilizador ele se refere agrave sociedade europeia mas
principalmente agrave Franccedila e agrave Alemanha
No vieacutes da sociologia e da antropologia ocorre uma mudanccedila de
interesse no campo dos estudos sobre alimentaccedilatildeo que se observa a partir da
deacutecada de 1990 segundo Meneses e Carneiro (1997 p 20) deslocando-se o
interesse dos tabus para enfocar as ldquopraacuteticas culturais nos processos de
aculturaccedilatildeo e na identidade culturalrdquo
Eacute importante destacar a observaccedilatildeo feita por Contreras e Gracia (2011)
de que tem sido cada vez maior o nuacutemero de autores contemporacircneos que natildeo
fazem distinccedilatildeo nos enfoques disciplinares entre a antropologia e a sociologia
da alimentaccedilatildeo
Ainda natildeo estaacute bem definida a sucessatildeo de paradigmas dentro da antropologia e da sociologia da alimentaccedilatildeo pois a cada uma das correntes foram vinculados trabalhos sobre diferentes aspectos alimentares sem que necessariamente se tenha produzido um questionamento ou uma invalidaccedilatildeo decisiva das aproximaccedilotildees perguntas ou respostas anteriores Poreacutem dentro desse acircmbito de estudo encontramo-nos em uma fase de tentativas e erros ainda que jaacute se comece a definir um nuacutecleo teoacuterico soacutelido que conte com um miacutenimo de generalizaccedilotildees e de hipoacuteteses que podem ser organizadas em um programa teoacuterico comum cujo nuacutecleo consiste em defender a ideia de lsquosistema alimentarrsquo sem desconsiderar contudo a diversidade de definiccedilotildees e atribuiccedilotildees que tal sistema tem recebido (CONTRERAS GRACIA 2011 p 30)
Garciacutea (2009) defende que para a antropologia da alimentaccedilatildeo o
interesse estaacute em encontrar a loacutegica do significado social e cultural da comida
revelando como ela pode classificar accedilotildees pessoas espaccedilos e tempos e
correlacionar essas classificaccedilotildees e seus significados Jaacute na sociologia da
alimentaccedilatildeo o foco estaacute no espaccedilo social da comida as transformaccedilotildees
contemporacircneas e a evoluccedilotildees da comensalidade
Outros autores contemporacircneos utilizados como referecircncia nesta
pesquisa nos campos tanto da antropologia quanto da sociologia da
alimentaccedilatildeo satildeo Jean Pierre Poulain que eacute socioacutelogo e antropoacutelogo francecircs
Esse autor conduz estudos e pesquisas sobre comida cultura e sauacutede nas
42
universidades de Toulouse (Franccedila) e Taylor (Malaacutesia) Autor de ldquoSociologias da
Alimentaccedilatildeordquo e ldquoDictionnaire des cultures alimentairesrdquo entre outros Mabel
Gracia Arnaiz eacute antropoacuteloga e pesquisadora da universidade de Rovira e Virgili
na Espanha e membro da Comissatildeo Internacional da Antropologia da
Alimentaccedilatildeo Sua linha de investigaccedilatildeo cientiacutefica envolve estudos socioculturais
da alimentaccedilatildeo sauacutede e gecircnero Autora das obras ldquoAlimentacioacuten salud y cultura
encuentros interdisciplinaresrdquo ldquoParadojas de la alimentacioacuten contemporacircneardquo e
mais recentemente em 2015 publicou ldquoComemos lo que somos Reflexiones
sobre cuerpo geacutenero y saludrdquo Tambeacutem antropoacutelogo e pesquisador na Espanha
Jesuacutes Contreras eacute diretor do ldquoObservatorio de la Alimentacioacuten - ODELA)rdquo autor
de ldquoSubsistencia ritual y poder en los Andesrdquo e ldquoAlimentacioacuten y cultura
necesidades gustos y costumbresrdquo Richard Wranglam eacute um pesquisador inglecircs
que atua na aacuterea de antropologia fiacutesica e primatologia Sua importante
contribuiccedilatildeo para os estudos da alimentaccedilatildeo eacute o livro ldquoPegando Fogordquo em que
aponta a importacircncia do fogo para a transformaccedilatildeo da comida de natureza em
cultura e para a promoccedilatildeo da sociabilidade humana Igor de Garine eacute um
antropoacutelogo francecircs que pesquisa sobre comida e tradiccedilatildeo comida e identidade
comida e industrializaccedilatildeo Autor de ldquoLes Changements des habitudes et des
politiques alimentaires en Afrique Aspects des sciences humaines naturellesrdquo e
Social Aspects of Obesity (Culture and Ecology of Food and Nutrition Por fim
Michael Pollan que eacute americano e apesar de sua importante contribuiccedilatildeo
contemporacircnea sobre comida e cultura o que o tem feito despontar na miacutedia
sobre o assunto sua formaccedilatildeo acadecircmica eacute o jornalismo Autor de ldquoO Dilema do
Oniacutevorordquo e ldquoCozinhar uma histoacuteria natural da transformaccedilatildeordquo e outros
As referecircncias de artigos de publicaccedilatildeo internacional dos referidos
autores e outros que utilizei nesta pesquisa fazem parte do banco de dados do
ldquoObservatoire Cniel des Habitudes Alimentaires15rdquo e do ldquoObservatorio de la
Alimentacioacuten (ODELA)rdquo16
Dentre os brasileiros na aacuterea da alimentaccedilatildeo e cultura abordados nesta
pesquisa aleacutem dos claacutessicos trabalhos de Gilberto Freyre e Cacircmara Cascudo
jaacute citados estatildeo os seguintes autores Renata Menasche cujas pesquisas satildeo
mais centradas na alimentaccedilatildeo e consumo no meio rural e patrimocircnio alimentar
15 Site de acesso httpwwwlemangeur-ochacomconnexion 16 Site de acesso httpwwwodelaorglang=es
43
focadas na regiatildeo sul do Brasil Desta autora encontrei avaliando o periacuteodo 2005
a 2015 26 artigos em perioacutedicos envolvendo os temas relacionados acima (como
autora e coautora) 07 deles estatildeo inscritos no portal de perioacutedicos da CAPES
e tambeacutem eacute importante citar dois livros organizados pela autora ldquoA Agricultura
Familiar agrave Mesa saberes e praacuteticas da alimentaccedilatildeordquo publicado em 2007 e
ldquoDimensotildees socioculturais da alimentaccedilatildeordquo publicado em 2012 Maria Eunice
Maciel tambeacutem pesquisa o sul do Brasil em um vieacutes mais geral da comida e
cultura menos voltado ao rural do que a pesquisadora anterior Desta autora
encontrei 08 artigos em perioacutedicos quase todos eles voltados agrave estudos no sul
do Brasil 02 deles inscritos no portal de perioacutedicos da CAPES Ellen Woortmann
pesquisadora de Brasiacutelia cujas pesquisas em alimentaccedilatildeo concentram-se
sobretudo em memoacuteria e patrimocircnio alimentar e aspectos de gecircnero e
alimentaccedilatildeo Seu artigo mais recente na aacuterea de antropologia da comida
publicado em perioacutedico eacute ldquoA comida como linguagemrdquo Carlos Alberto Doacuteria
antropoacutelogo por meio da publicaccedilatildeo de dois recentes livros ldquoFormaccedilatildeo da
Culinaacuteria Brasileirardquo e ldquoe-Boca Livrerdquo Raul Lody tambeacutem antropoacutelogo Sua
publicaccedilatildeo recente mais importante para o campo da alimentaccedilatildeo eacute ldquoBrasil Bom
de Bocardquo Seus estudos tecircm sido mais concentrados na discussatildeo de patrimocircnio
e regionalismo alimentar Jaacute o antropoacutelogo Roberto DaMatta embora natildeo
pesquise especificamente sobre antropologia e comida possui importantes
trabalhos claacutessicos sobre essa temaacutetica e os quais utilizei nesta pesquisa Outras
importantes contribuiccedilotildees brasileiras satildeo as de Mocircnica Abdala Eduardo Frieiro
e Socircnia Maria de Magalhatildees com trabalhos sobre alimentaccedilatildeo com foco em
Minas Gerais de abordagens principalmente histoacutericas No periacuteodo de 2000 a
2015 encontrei 08 artigos de autoria e coautoria de Mocircnica Abdala sobre o tema
da comida e cultura
A leitura de alguns trabalhos dos autores destacados acima foi
fundamental para minha compreensatildeo quanto agrave necessidade de relativizar o
tema da alimentaccedilatildeo conhecer as experiecircncias conduzidas por eles e
correlaciona-las com a discussatildeo pretendida na minha pesquisa As anaacutelises
conduzidas pelos autores convidam agrave reflexatildeo sobre os significados da comida
e do comer na sociedade contemporacircnea Foi possiacutevel perceber que existem
lacunas nas discussotildees sobre a antropologia e sociologia da alimentaccedilatildeo no
Brasil sobretudo no que se refere aos estudos voltados para as populaccedilotildees
44
rurais Como o Brasil eacute constituiacutedo culturalmente de vaacuterios rurais variadas
tambeacutem satildeo as relaccedilotildees simboacutelicas com a comida e merecem ampliaccedilatildeo nos
estudos para que seja possiacutevel alcanccedilar toda a sua complexidade
Eacute importante destacar que as pesquisas nas aacutereas da sociologia e da
antropologia da alimentaccedilatildeo no Brasil ainda satildeo muito recentes apesar das
tradicionais obras jaacute citadas de Gilberto Freyre e Cacircmara Cascudo Em
levantamento feito no banco de teses da CAPES e da base do curriacuteculo lattes
dos docentes citados acima foi possiacutevel verificar que a maioria dos trabalhos no
tema da antropologia e sociologia da alimentaccedilatildeo estatildeo vinculados a programas
de poacutes-graduaccedilatildeo na aacuterea de Antropologia Social As teses e dissertaccedilotildees
concluiacutedas pertencentes aos programas nos quais alguns dos pesquisadores
citados acima atuam totalizam 11 dissertaccedilotildees de mestrado e 04 teses de
doutorado iniciadas a partir de 2007 e concluiacutedas ateacute 2013
Em relaccedilatildeo agraves pesquisas mais recentes no Brasil em levantamento feito
no banco de perioacutedicos da Capes ndash ao utilizar termos de busca sobre o tema de
interesse desta pesquisa ndash encontrei as seguintes informaccedilotildees a respeito de
publicaccedilotildees no periacuteodo de 2005 a 2015 Sobre ldquoalimentaccedilatildeo e culturardquo 07
artigos Sobre ldquocomida e culturardquo 02 artigos Sobre ldquoalimentaccedilatildeo e meio ruralrdquo
08 artigos sendo que 06 deles se referem ao ldquoPrograma de Aquisiccedilatildeo de
Alimentos (PAA)rdquo que natildeo eacute objeto de interesse da minha pesquisa Sobre
ldquoalimentaccedilatildeo e consumordquo 12 artigos sendo que a maior parte estaacute relacionada
aos aspectos nutricionais e fisioloacutegicos e natildeo de abordagem antropoloacutegica ou
socioloacutegica
Para as anaacutelises referentes ao campo da alimentaccedilatildeo e mundo rural
brasileiro destacando a cultura modos de vida e a influecircncia dos sistemas
alimentares contemporacircneos no contexto das novas ruralidades os autores que
trazem importantes contribuiccedilotildees a este trabalho satildeo Maria de Nazareth Baudel
Wanderley Joseacute Graziano da Silva Alfio Brandenburg Antocircnio Cacircndido Carlos
Rodrigues Brandatildeo Joseacute de Souza Martins Seacutergio Schneider e Maria Joseacute
Carneiro
Neste capiacutetulo a aacuterea da histoacuteria desempenha papel menos central do
que a antropologia e a sociologia Interessa-nos dessa disciplina sobretudo os
registros que auxiliem a pensar a perspectiva cultural da alimentaccedilatildeo ponto
central deste trabalho
45
Dentre os autores em quem buscamos as contribuiccedilotildees nesse sentido
estatildeo Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari Nas uacuteltimas trecircs deacutecadas eles
tecircm trazido importantes contribuiccedilotildees para a compreensatildeo da histoacuteria da
alimentaccedilatildeo sobretudo a histoacuteria da alimentaccedilatildeo na Europa A obra mais
importante que resultou da junccedilatildeo dos dois trata de um volumoso livro de 885
paacuteginas organizado por eles que reuniu vaacuterios pesquisadores da aacuterea com
enfoques diferentes sobre a alimentaccedilatildeo na histoacuteria O livro ldquoA Histoacuteria da
Alimentaccedilatildeordquo que foi publicado em 1996 possui um recorte temporal dividido em
sete partes 1 Preacute-histoacuteria e primeiras civilizaccedilotildees 2 O mundo claacutessico 3 Da
antiguidade tardia agrave alta idade meacutedia 4 Os ocidentais e os outros 5 Plena e
baixa idade meacutedia 6 Da cristandade ocidental agrave Europa dos Estados 7 A eacutepoca
contemporacircnea Para a presente pesquisa interessa sobretudo a seacutetima e
uacuteltima parte que trata da alimentaccedilatildeo contemporacircnea e nela dois capiacutetulos o
que discute ldquoas transformaccedilotildees do consumo alimentarrdquo e ldquoa emergecircncia das
cozinhas regionaisrdquo Nesta obra estatildeo presentes artigos de historiadores mas
tambeacutem de antropoacutelogos e socioacutelogos da alimentaccedilatildeo
Tambeacutem pesquisei e fiz uso de registros importantes da histoacuteria da
alimentaccedilatildeo presentes na coleccedilatildeo organizada por Philippe Ariegraves e Georges
Duby ldquoHistoacuteria da Vida Privadardquo bem como da coleccedilatildeo organizada por Fernando
A Novais Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Tais coleccedilotildees foram organizadas
por diversos autores de acordo com os volumes Utilizei trabalhos histoacutericos
dessa coleccedilatildeo nas discussotildees sobre o fogo comensalidade e sociabilidades que
ocorrem no espaccedilo da cozinha
Inclui-se ainda as anaacutelises do espanhol L Jacinto Garciacutea e seu livro
ldquoUna Historia Comestible homiacutenidos cocina cultura y ecologiardquo e ainda Brillat-
Savarin em ldquoA Fisiologia do Gostordquo Recorri com frequecircncia nesta pesquisa a
Luce Giard historiadora francesa Sua importante contribuiccedilatildeo para os estudos
da alimentaccedilatildeo estaacute no v 2 da obra de Michel De Certeau ldquoA Invenccedilatildeo do
Cotidiano II ndash Morar cozinharrdquo
Daniel Roche historiador social e cultural tambeacutem francecircs escreveu
sobre a cultura material francesa do seacuteculo XVIII Sua contribuiccedilatildeo para a histoacuteria
da alimentaccedilatildeo encontra-se no livro ldquoHistoacuteria das Coisas Banaisrdquo publicado
originalmente em 1997 em que trata do nascimento do consumo nos seacuteculos
XVII ao XIX Ao descrever aspectos cotidianos modos de vida comportamentos
46
e o funcionamento das sociedades da eacutepoca que passava por transformaccedilotildees
o autor mostra a famiacutelia como a unidade fundamental de produccedilatildeo e consumo
tanto na aacuterea rural quanto na urbana e isso se refletiu nas praacuteticas e haacutebitos
alimentares Um capiacutetulo do livro eacute dedicado agrave alimentaccedilatildeo como cultura e como
necessidade fisioloacutegica em uma eacutepoca em que obter a alimentaccedilatildeo era a
principal preocupaccedilatildeo das famiacutelias
Na histoacuteria da alimentaccedilatildeo brasileira as referecircncias mais importantes
que percorremos se referem aos trabalhos do historiador e tambeacutem folclorista
Luiacutes da Cacircmara Cascudo Suas obras nesta linha satildeo Histoacuteria da Alimentaccedilatildeo
no Brasil e Antologia da Alimentaccedilatildeo no Brasil Recorremos tambeacutem agrave vasta
contribuiccedilatildeo dada por Gilberto Freyre em ldquoCasa Grande e Senzalardquo e ldquoSobrados
e Mucambosrdquo que assim como Cacircmara Cascudo continuam sendo referecircncia
no campo da histoacuteria da alimentaccedilatildeo no Brasil Importante destacar que os dois
autores natildeo eram formados em curso de histoacuteria jaacute que segundo Silva e Ferreira
(2011) os primeiros cursos superiores de Histoacuteria no Brasil datam da deacutecada
de 1930 na USP no qual Gilberto Freyre lecionava a disciplina de antropologia
Assim os trabalhos de ambos mais do que apenas registros histoacutericos
perpassam fortemente pelas anaacutelises de cunho socioantropoloacutegico
No contexto analiacutetico desta pesquisa em que importa compreender as
mudanccedilas e ou permanecircncias nos haacutebitos alimentares das famiacutelias rurais o
uso do termo ldquosistema alimentarrdquo eacute recorrente Assim importa compreender o
seu significado atribuiacutedo por especialistas na aacuterea de alimentaccedilatildeo e cultura
Passaremos a essa discussatildeo no proacuteximo toacutepico deste capiacutetulo
32 Sistema alimentar17
Poulain (2001) define sistema alimentar como sendo
Lrsquoensemble de regravegles qui reacutesulte de lrsquoorganisation sociale des conceptions relatives au plaisir alimentaire et agrave la santeacute Les modegraveles alimentaires varient drsquoun espace culturel agrave lrsquoautre et au sein drsquoune
17 Nas disciplinas voltadas aos estudos de cunho fisioloacutegico e nutricional da alimentaccedilatildeo o termo adotado
eacute ldquopadratildeo alimentarrdquo Na sociologia e na antropologia da alimentaccedilatildeo utiliza-se principalmente a expressatildeo ldquosistema alimentarrdquo sobretudo na Europa como eacute o caso de Poulain (2001 2003 2013) Contreras e Gracia (2011) Montanari (2008) e Mennell (1996) Jaacute Fischler (1995) que tambeacutem eacute europeu utiliza a expressatildeo ldquosistema culinaacuteriordquo e mais raramente ldquocozinhardquo (cozinha moderna cozinha tradicional cozinha contemporacircnea) poreacutem com o mesmo sentido que o usado pelos outros autores Sistema alimentar eacute tambeacutem utilizado pelos americanos como Harris (2011) Sahlins (2003) Mintz e Dubois (2002)
47
mecircme socieacuteteacute eacutevoluent avec le temps Cette variabiliteacute est rendue possible par le fait que les contraintes biologiques de la meacutecanique physiologique et de lrsquoexploitation des ressources de la nature pegravesent sur les mangeurs18 humains de faccedilon relativement lacircche (POULAIN 2001 p 24)
Para este autor os sistemas alimentares satildeo formados por um conjunto
de conhecimentos tecnoloacutegicos herdados e repassados de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo
que incluem o saber-fazer o gosto as regras e as etiquetas etc Esses
conhecimentos facilitam no processo de escolha dos recursos presentes num
espaccedilo natural e sua transformaccedilatildeo em alimentos para consumo na forma de
pratos atrativos a uma determinada cultura Poulain afirma que esses
conhecimentos se definem concomitantemente como sistemas de coacutedigos
simboacutelicos que retratam os valores de um grupo humano participando da
construccedilatildeo de identidades culturais Na concepccedilatildeo de Poulain (2013) nesse
sistema o alimento estaacute em movimento desde o seu universo de produccedilatildeo
agriacutecola ateacute a chegada ao consumidor sofrendo algumas transformaccedilotildees ao
longo do percurso O sistema alimentar envolve fatores que vatildeo desde os
econocircmicos ateacute os do ambiente domeacutestico quando se adquire alimentos pela
compra ou ainda por meio de cultivo proacuteprio ou criaccedilatildeo de animais ou da pesca
Em um sentido semelhante ao atribuiacutedo por Poulain (2013 e 2014)
Fischler (1979 e 1995) define como sistema culinaacuterio um conjunto de
ingredientes e teacutecnicas que satildeo empregadas na elaboraccedilatildeo de uma refeiccedilatildeo as
combinaccedilotildees e correlaccedilotildees entre os alimentos utilizados e ainda as regras que
envolvem sua escolha preparaccedilatildeo e consumo Atrelados agraves teacutecnicas e aos
ingredientes e consequentemente agraves normas que regem o processo da escolha
ao consumo dos alimentos estatildeo crenccedilas valores siacutembolos representaccedilotildees e
os haacutebitos que satildeo indicadores de cultura de uma sociedade Ou seja normas
essas que estatildeo atreladas ao valor simboacutelico envolvidos no sistema alimentar e
natildeo somente o valor de uso no sentido utilitarista que neste caso seria
secundaacuterio conforme discutido por Sahlins (2003) Afinal como afirma o proacuteprio
Sahlins haacute uma ldquorazatildeo cultural em nossos haacutebitos alimentaresrdquo
Pelas definiccedilotildees dos autores acima percebe-se que as questotildees que
envolvem a alimentaccedilatildeo ou culinaacuteria satildeo estabelecidas pelas caracteriacutesticas e
regras mais ou menos comuns adotadas por grupos de pessoas e pela
18 Termo jaacute explicado na introduccedilatildeo
48
sociedade a qual pertencem Conforme Bourdieu (2007) o gosto que iraacute formar
o haacutebito eacute construiacutedo no convivio familiar e escolar Natildeo por acaso em relaccedilatildeo
agrave comida quase sempre as preferecircncias entre os membros de uma mesma
familia satildeo semelhantes Eacute o gosto tambeacutem que classifica e distingue uma
pessoa de outra um grupo de outro Na formaccedilatildeo do gosto alimentar estatildeo
presentes diferentes aspectos socioculturais que iratildeo inteferir nas escolhas
Embora possa ocorrer o sistema alimentar de um grupo natildeo
necessariamente seraacute adotado por um outro pois ele estaacute ligado agraves questotildees
culturais que em funccedilatildeo de diversos fatores pode gerar uma rejeiccedilatildeo a
determinadas praacuteticas alimentares Um exemplo disso eacute a atribuiccedilatildeo dada a um
determinado alimento ou prato como sendo ldquoexoacuteticordquo poreacutem exoacutetico aos olhos
de quem natildeo estaacute habituado a consumi-lo
Para Helman (1994) eacute a cultura local que assume maior peso no
processo de decisotildees alimentares Eacute ela que primeiramente define as regras
alimentares cabendo-lhe assim determinar
Quem prepara e quem serve o alimento para quem quais indiviacuteduos ou grupos comem reunidos onde e em que ocasiotildees a ingestatildeo do alimento acontece a ordem em que os pratos satildeo servidos dentro de uma refeiccedilatildeo e a maneira como os indiviacuteduos comem Todos esses estaacutegios de ingestatildeo dos alimentos satildeo padronizados rigorosamente pela cultura e constituem uma parte do modo de viver consagrado por aquela comunidade (HELMAN 1994 p 48-49)
Harris (2011) ao tratar da questatildeo lembra que por ser oniacutevora a
espeacutecie humana possui capacidade de ingerir alimentos tanto de origem animal
quanto vegetal Poreacutem por razotildees de adaptabilidade fisioloacutegica alguns
alimentos satildeo descartados do cardaacutepio Jaacute outros mesmo sendo biologicamente
possiacuteveis de ingestatildeo podem ser desprezados por algumas sociedades e
apreciados por outras O autor afirma que as razotildees de apreciaccedilatildeo e rejeiccedilatildeo de
um alimento vatildeo aleacutem da razatildeo fisioloacutegica da digestatildeo Tanto Harris (2011)
quanto Leacutevi-Strauss (1983) apontam que os alimentos rejeitados por razotildees
culturais ou sociais se tornam aceitos para consumo em caso de natildeo haver mais
nada a comer ou seja em caso de fome extrema
Em sentido semelhante Garciacutea (2013) esclarece que homens e animais
tendem a ser conservadores em mateacuteria de gosto embora isso natildeo represente
uma resistecircncia absoluta a experimentaccedilotildees Para o autor a razatildeo dos animais
se daacute por instinto bioloacutegico e a do homem por questotildees culturais Como a
49
formaccedilatildeo do gosto eacute de ordem cultural tambeacutem segundo Bourdieu (2007) isso
faz sentido uma vez que o gosto alimentar apreendido no nuacutecleo familiar
estabelece tambeacutem o haacutebito de cada indiviacuteduo Um haacutebito por ser condicionado
pela cultura eacute mais difiacutecil de ser mudado mas natildeo impossiacutevel pois haacute situaccedilotildees
em que o gosto e consequentemente o haacutebito alimentar podem sofrer
mudanccedilas Essa questatildeo seraacute relativizada mais agrave frente neste trabalho
Neste sentido Garcia (2013) a esclarece que os comportamentos
culturais se formam atraveacutes dos costumes e aprendizados Em geral os seres
humanos preferem o conhecido ao novo ou exoacutetico sobretudo em se tratando
de comida Isso pode estar tanto relacionado ao tipo de alimento como agrave forma
de seu cultivo colheita preparo e armazenamento Um mesmo alimento pode
assumir diferentes sabores e aspectos dependendo da forma como eacute preparado
O peixe tanto pode ser cru na preferecircncia de algumas culturas como pode ser
frito assado ou ensopado e com adiccedilatildeo de temperos e condimentos na
preferecircncia de outras
321 Alimentos aceitos e rejeitados
Esses aspectos dos padrotildees culturais alimentares satildeo tambeacutem tratados
por Sahlins (2003) ao chamar a atenccedilatildeo para o fato de que mesmo o
determinismo cultural de uma sociedade natildeo pode deixar de considerar a
sobrevivecircncia e portanto a continuaccedilatildeo da espeacutecie como por exemplo fazer a
distinccedilatildeo entre alimentos comestiacuteveis e natildeo comestiacuteveis Mas o autor destaca
que haacute uma junccedilatildeo e por isso tambeacutem um conflito entre o aspecto utilitarista
(objetivo) e simboacutelico (subjetivo) na produccedilatildeo e no consumo de produtos Em um
dos capiacutetulos o autor trata do sistema alimentar dos americanos do Norte de
suas preferecircncias alimentares e dos tabus em relaccedilatildeo ao consumo de animais
domeacutesticos Destaca que o aspecto simboacutelico predomina sobre o de ordem
praacutetica Segundo o autor a relaccedilatildeo produtiva estabelecida pela sociedade
americana estaacute pautada no aspecto do que eacute considerado por eles como
comestiacutevel e natildeo comestiacutevel que envolve tanto a exploraccedilatildeo do meio ambiente
quanto as formas de lidar com a terra Neste caso baseado numa relaccedilatildeo em
que ldquoa carne eacute elemento central e os carboidratos e legumes satildeo apoios
perifeacutericos na dietardquo (p 171)
50
A carne como siacutembolo de ldquoforccedilardquo evoca o polo masculino de um coacutedigo social da comida o qual deve originar-se na identificaccedilatildeo indo-europeia do boi ou da riqueza crescente com a virilidade A indispensabilidade da carne como ldquoforccedilardquo e do fileacute como a siacutenteses das carnes viris permanece condiccedilatildeo baacutesica da dieta americana (SAHLINS 2003 p 171)
Segundo o autor o que determina para os americanos qual carne eacute ou
natildeo comestiacutevel eacute a relaccedilatildeo das espeacutecies com a sociedade humana Animais de
estimaccedilatildeo recebem afagos e carinho tem nome proacuteprio diferente da situaccedilatildeo
dos animais para abate Mas essa natildeo eacute uma particularidade dos americanos do
Norte Tambeacutem eacute condiccedilatildeo para outras culturas ainda que os motivos sejam
religiosos como por exemplo na Iacutendia onde o consumo da carne de bovinos eacute
evitado por razotildees religiosas do hinduiacutesmo Os judeus e muccedilulmanos tambeacutem
por motivos religiosos rejeitam a carne de porco que eacute amplamente consumida
na maior parte do ocidente Por outro lado no ocidente eacute praticamente
impensaacutevel a possibilidade de se tomar uma sopa a base de carne de cachorro
alimento relativamente comum ao paladar dos chineses e dos vietnamitas por
exemplo Isso ocorre no ocidente porque catildees satildeo animais de estimaccedilatildeo e
estabelecem relaccedilotildees muito afetivas com os seres humanos vistos como um
membro da famiacutelia conforme aponta Sahlins (2003)
Da mesma forma a carne de cavalo agrada a alguns grupos de regiotildees
francesas belgas e italianas O Brasil natildeo tem por haacutebito consumir a carne de
cavalo apesar de ser um dos maiores exportadores Em meacutedia 15 mil toneladas
por ano19 Segundo Sahlins (2003) durante a crise inflacionaacuteria meteoacuterica nos
Estados Unidos no ano de 1973 foi sugerido pelos governantes que a populaccedilatildeo
adotasse o haacutebito de consumir alimentos mais baratos poreacutem tatildeo nutritivos
quanto a carne de boi (viacutesceras rins coraccedilatildeo) Isso soou como uma afronta para
a populaccedilatildeo A rejeiccedilatildeo pelas viacutesceras se deu por razatildeo socioeconocircmica Para
boa parte da populaccedilatildeo americana comer partes menos nobres do boi seria se
aproximar socialmente de classes mais pobres ldquoA razatildeo para essa repulsa
parece pertencer agrave loacutegica semelhante que recebeu com desagrado algumas
tentativas de substituir a carne bovina por carne de cavalo durante o mesmo
periacuteodordquo (p 172) Em funccedilatildeo disso foi realizado um ato como protesto dos
ldquoapreciadores dos cavalos como animais de estimaccedilatildeordquo
19 httpgrandschefsblogspotcombr201007carne-de-cavalo-o-brasil-e-um-doshtml
51
Tambeacutem eacute exoacutetico para o ocidente o haacutebito da populaccedilatildeo chinesa em
consumir escorpiotildees ratos e uma variedade de insetos Esses alimentos foram
inseridos no cardaacutepio chinecircs em periacuteodo de crise alimentar com o objetivo de
abastecer um paiacutes extremamente populoso Atualmente continuam sendo
consumidos no entanto muito mais como atrativo agrave curiosidade de turistas do
que por necessidade de consumo
Os indiacutegenas da Ameacuterica do Sul possuem o haacutebito de comer alguns
alimentos que os natildeo iacutendios consideram exoacuteticos como por exemplo formigas
larvas de abelhas cupins lagartas besouros etc Em algumas cidades do norte
do Brasil eacute possiacutevel encontrar nas feiras misturas como farofas agrave base de formiga
sauacuteva Eacute interessante ressaltar que um alimento exoacutetico perde essa classificaccedilatildeo
a partir do momento em que passa a agradar ao paladar e a ser consumido sem
aversatildeo a ele Deixando assim de ser exoacutetico para se transformar em familiar
parafraseando DaMatta (1978) Assim o conceito de exoacutetico varia de uma
cultura a outra mas tambeacutem de uma pessoa a outra em uma mesma sociedade
Houve um tempo no Brasil em que comer formiga sauacuteva frita ou tostada
natildeo fazia parte apenas da dieta indiacutegena Relatos de viagem apontam serem
elas importante complemento num periacuteodo de escassez alimentar nas viagens
dos bandeirantes desbravando as Minas Gerais Frieiro (1982) cita documento
da viagem do Conde de Assumar Dom Pedro a Vila Rica em 1717 passando
por Satildeo Paulo quando lhe foi oferecido a ele e agrave sua comitiva formigas sauacutevas
(icaacute) torradas20
Dependendo do contexto o exoacutetico pode ser um emblema de classe e
aqui novamente se insere a argumentaccedilatildeo do gosto como diferenciaccedilatildeo ou
distinccedilatildeo de classes como discutido por Bourdieu (2007) Por exemplo o exoacutetico
considerado ldquochiquerdquo ou ldquogourmetrdquo quando se trata de atribuir status de
consumo e portanto desejado como por exemplo o caviar ou o foie gras Ao
serem aceitos por um perfil de consumidores que aceitam pagar o elevado preccedilo
desses dois produtos eles perderam o status de exoacutetico rejeitaacutevel e passou a
20 Dom Pedro e sua comitiva mais duma vez nos ermos em que pousavam quase passaram fome em
razatildeo do pouco ou quase nada que lhes ofereciam para comer Em Santos e Satildeo Paulo pequenas vilas de algumas centenas de casas o passadio natildeo foi de todo mau Comia-se comumente o que as roccedilas produziam isto eacute milho mandioca feijatildeo e algumas frutas da terra que era o habitual sustento dos paulistas natildeo se comendo carne senatildeo em alguns dias do ano Penetrando no interior com alguns dias de jornada soacute encontraram para cear no rancho dum paulista meio macaco e umas poucas formigas O Conde agradeceu a oferta e comeu (FRIEIRO 1982 p 62)
52
ser visto como um exoacutetico aceitaacutevel assim como jaacute ocorre em boa parte do paiacutes
em relaccedilatildeo agraves comidas japonesas italianas indianas etc que se popularizaram
e jaacute natildeo satildeo mais estranhas ao paladar de boa parte da populaccedilatildeo das aacutereas
urbanas No entanto o exoacutetico popular raramente eacute desejado como a carne de
rato por exemplo consumida pelos chineses mas que no Brasil permanece
sendo rejeitada
Nessa discussatildeo estaacute presente a necessidade de relativizaccedilatildeo da
questatildeo do gosto e do haacutebito alimentar jaacute que apesar de tenderem a ser
tradicionais eacute possiacutevel muda-los ou incorporar novas percepccedilotildees por meio de
significados simboacutelicos (status curiosidade pelo novo para se inserir num
determinado grupo de interesse)
Garciacutea (2009) assim como Harris (2011) estabelece que a correlaccedilatildeo
entre alimentaccedilatildeo e cultura ocorre devido ao fator fisioloacutegico da atividade de
comer estar condicionado culturalmente e isso envolve desde as maneiras de
obtenccedilatildeo dos alimentos ateacute os modos de consumi-los Assim para Garcia
(2009) a escolha dos alimentos se daacute por fatores primeiramente de ordem
cultural e social e em segundo lugar pelas suas qualidades nutricionais e pelo
aspecto econocircmico Nesse sentido o alimento escolhido precisa ser ldquobom para
comerrdquo fazendo uso da expressatildeo utilizada por Harris (2011) ldquoLos alimentos
preferidos (buenos para comer) son aquellos que presentan uma relacioacuten de
costes y benefiacutecios praacutecticos maacutes favorables que los alimentos que se evitan
(malos para comer)rdquo (HARRIS 2011 p 17)
3211 Haacutebitos alimentares orientados por costumes e tradiccedilotildees
Retomando a discussatildeo de Harris (2011) o autor explica que os
costumes culturais e as tradiccedilotildees alimentares de cada sociedade eacute que orientam
os haacutebitos alimentares e essa diversidade deve ser respeitada e valorizada por
aqueles que estudam o tema da alimentaccedilatildeo ldquoComo antropoacutelogo tambieacuten
suscribo el relativismo cultural em mateacuteria de gustos culinarios no se debe
ridiculizar ni condenar los haacutebitos alimentarios por el mero hecho de ser
diferentesrdquo (HARRIS 2011 p 15)
Essa defesa tambeacutem foi feita por Mary Douglas e Ravindra Khare em
1979 quando escreveram uma apresentaccedilatildeo sobre a antropologia da
53
alimentaccedilatildeo no importante perioacutedico ldquoSocial Science Informationrdquo Nesse artigo
as autoras informaram sobre a criaccedilatildeo da ldquocomisioacuten internacional sobre la
antropologia de la alimentacioacutenrdquo A criaccedilatildeo da comissatildeo ocorreu em funccedilatildeo da
necessidade de se discutir as poliacuteticas e estrateacutegias que estavam sendo
desenvolvidas e implementadas nas situaccedilotildees de fome aguda eou crocircnica em
algumas naccedilotildees naquela eacutepoca Pontuaram neste artigo aspectos importantes
que devem ser observados na implantaccedilatildeo de poliacuteticas alimentares para
solucionar a fome Estes aspectos dizem respeito agrave necessidade de se planejar
a soluccedilatildeo de problemas que acometem paiacuteses em situaccedilatildeo de fome que satildeo as
questotildees que envolvem poliacutetica sanitaacuteria e higiene conhecimento de teacutecnicas de
armazenamento e distribuiccedilatildeo mas chamaram a atenccedilatildeo de forma enfaacutetica para
o respeito aos aspectos culturais ldquoHa de basarse em el anaacutelisis de la sociedade
La conviccioacuten de fondo es que los patrones locales de seleccioacuten de alimentos no
pueden ser impuestos sino que dependen de la vida domeacutestica de las ideias
locales sobre processos fisioloacutegicos de divisioacuten de trabajo de horaacuteriordquo
(DOUGLAS KHARE 1979 apud GARCIacuteA 2009 p 30)
Essa argumentaccedilatildeo deixa claro o entendimento diferenciado das autoras
sobre a necessidade da interaccedilatildeo dos antropoacutelogos da alimentaccedilatildeo com
profissionais de outras aacutereas nutricionistas ecologistas economistas
agrocircnomos poliacuteticos e outros atuantes em poliacuteticas sobre o combate agrave fome
para que a cultura alimentar seja respeitada nas intervenccedilotildees sociais Questatildeo
tambeacutem defendida por Valente (2003) ao criticar a limitaccedilatildeo que existe nos
trabalhos isolados em cada especialidade e ao defender a interdisciplinaridade
na elaboraccedilatildeo de projetos porque feitos de forma isolada cada profissional
tende a ver o problema da fome com suas proacuteprias lentes desprezando outras
possibilidades
O profissional da sauacutede ldquoenxergardquo desnutriccedilatildeo e doenccedila e propotildee vacinaccedilatildeo saneamento aleitamento materno etc O agrocircnomo ldquodiagnosticardquo falta de alimentos e propotildee maior produccedilatildeo de alimentos ajuda alimentar etc O educador vecirc ldquoignoracircncia e haacutebitos alimentares inadequadosrdquo e propotildee educaccedilatildeo alimentar Os economistas claacutessicos ldquoidentificamrdquo maacute distribuiccedilatildeo de alimentos e propotildeem uma melhor poliacutetica fiscal geraccedilatildeo de emprego e renda etc Os planejadores diagnosticam ldquofalta de coordenaccedilatildeordquo e propotildeem a criaccedilatildeo de conselhos de alimentaccedilatildeo e nutriccedilatildeo e capacitaccedilatildeo (VALENTE 2003 p 52)
Recentemente a FAOONU (2013) apresentou um projeto em que
propotildee a introduccedilatildeo de insetos como alimentos no combate agrave fome Como
54
justificativa informou que aproximadamente dois bilhotildees de pessoas no mundo
jaacute se alimentam de insetos como besouros lagartas abelhas vespas formigas
gafanhotos grilos cupins libeacutelulas e moscas Agrave praacutetica de se comer insetos da-
se o nome de entomofagia segundo a FAOONU (2013) As justificativas da FAO
estatildeo relacionadas a aspectos de sauacutede pois satildeo altamente nutritivos e ricos em
proteina podendo substituir facilmente em termos nutricionais as carnes de
porco de boi de frango e tambeacutem de peixe aspectos ambientais pois sua
produccedilatildeo gera baixo impacto ao meio ambiente e aspectos relacionados a
fatores econocircmicos e sociais Segundo este oacutergatildeo a criaccedilatildeo de insetos pode vir
a se tornar uma opccedilatildeo de investimento com pouco capital e pode ser importante
fonte de renda e de consumo para camadas mais pobres e populaccedilatildeo sem
acesso agrave propriedade da terra aleacutem de ser uma atividade que natildeo necessita de
tecnologia sofisticada
Sobre isso eacute importante de tecer algumas observaccedilotildees criacuteticas ao
considerar que tal projeto representa um desafio ao propor a inserccedilatildeo de insetos
na dieta em nivel global o que significa tornaacute-la atrativa tambeacutem naquelas
culturas onde satildeo atualmente rejeitadas Todos esses aspectos conduzem a
uma reflexatildeo sobre outro tipo de escolha alimentar que estaacute relacionada agrave
questatildeo de ordem social e econocircmica Ou seja estaacute em pauta se as pessoas
que sofrem de fome aguda ou crocircnica satildeo obrigadas a se adaptar ao exoacutetico se
assim lhes for oferecido em funccedilatildeo de uma poliacutetica puacuteblica ou se isso lhes seria
oferecido como escolha passiacutevel de adoccedilatildeo ou de rejeiccedilatildeo
Tal reflexatildeo remete agraves observaccedilotildees sobre direito agrave liberdade na forma
como eacute tratada por Sen (2000 p 23) ldquoa privaccedilatildeo de liberdade econocircmica pode
gerar a privaccedilatildeo de liberdade social assim como a privaccedilatildeo de liberdade social
da mesma forma pode gerar a liberdade econocircmicardquo O que implica em perda
de acesso e do direito de escolhas inclusive alimentares Portanto acredita-se
que caso esse tipo de alimentaccedilatildeo seja imposta o projeto vai no sentido
contraacuterio ao proposto pela comissatildeo de antropologia da alimentaccedilatildeo citado
acima por Douglas e Khare (1979 apud GARCIacuteA 2009) A imposiccedilatildeo de um
determinado alimento ou o convencimento em adota-lo pode tambeacutem ocorrer
de forma velada utilizando-se campanhas com os grupos locais e ou atraveacutes
da miacutedia como ocorre em relaccedilatildeo a vaacuterios alimentos que passam a ser
55
consumidos sobretudo pelas crianccedilas agrave partir de campanhas publictaacuterias
muitas vezes utilizando-se argumentos apelativos
Certamente essa proposta recente poderaacute ter o debate ampliado nos
proacuteximos anos O que nos interessa aqui eacute sobretudo chamar a atenccedilatildeo para a
inserccedilatildeo de novas praacuteticas alimentares na contemporaneidade Praacuteticas essas
que se mesclam num processo de ampliaccedilatildeo do multiculturalismo alimentar
O proacuteximo item trata da discussatildeo sobre a percepccedilatildeo do alimento como
caracteriacutestica cultural e ainda sobre os reflexos do sistema alimentar
contemporacircneo na vida dos comedores
33 Alimento comida e cultura
Aleacutem de ser uma atitude bioloacutegica a alimentaccedilatildeo assume tambeacutem um
comportamento cultural Discussatildeo jaacute iniciada nos itens anteriores
Bioloacutegica por uma questatildeo de sobrevivecircncia sendo um fator
insubstituiacutevel para a manutenccedilatildeo da vida e condiccedilatildeo sine qua non para todos os
seres humanos Relaciona-se diretamente agrave vitalidade do indiviacuteduo agrave
necessidade fisioloacutegica de ingerir nutrientes capazes de manter o corpo em
funcionamento sendo sob esse aspecto um comportamento relativo agrave natureza
humana O que ingerir e as quantidades a serem ingeridas para suprir as
necessidades variam de uma pessoa para outra de acordo com fatores como
idade altura peso tipo de atividade quadro cliacutenico entre outros
Corresponder a uma atitude natural e de caraacuteter instintivo natildeo torna
necessariamente o ato de alimentar-se como algo consciente sob o aspecto
nutricional porque nem todos os indiviacuteduos conhecem a composiccedilatildeo dos
alimentos e aqueles que conhecem nem sempre pensam a respeito disso ao
realizar as refeiccedilotildees cotidianas aspecto que foi tratado por Harris (2011) e
Garciacutea (2009)
O termo ldquoalimentordquo surgiu segundo Poulain (2013) por volta do ano
1120 mas o seu significado atual somente foi utilizado a partir do seacuteculo XVI
quando passou a substituir a expressatildeo ldquocarnerdquo e esta uacuteltima passou a se referir
apenas agrave carne tal qual a conhecemos ou seja a dos animais comestiacuteveis O
autor explica que anteriormente a expressatildeo ldquocarnerdquo era utilizada para se referir
a tudo o que era bom para manter a vida fossem alimentos caacuterneos ou natildeo
56
Para este autor um alimento deve possuir essas quatro qualidades nutricionais
organoleacutepticas higiecircnicas e simboacutelicas Sobre as simboacutelicas o autor destaca
Para ser um alimento aleacutem das trecircs primeiras caracteriacutesticas de qualidade um produto natural deve poder ser o objeto de projeccedilotildees de significados por parte do comedor Ele deve poder tornar-se significativo inscrever-se numa rede de comunicaccedilotildees numa constelaccedilatildeo imaginaacuteria numa visatildeo de mundo (POULAIN 2013 p 240)
De Garine (1987 p 4) ao resgatar o pensamento de Margaret Mead
destaca que as escolhas alimentares dos seres humanos estatildeo relacionadas agraves
possibilidades de alimentos disponibilizados pelo meio e ao potencial teacutecnico que
possuem
La supervivencia de un grupo humano exige por supuesto que su reacutegimen alimenticio satisfaga las necessidades nutritivas No obstante el nivel de satisfaccioacuten de estas necessidades cuya definicioacuten sigue siendo controvertida variacutea cualitativa y cuantitativamente de una sociedad a otra Tambieacuten cambia en el interior de cada una seguacuten la categoriacutea de edad el sexo el niacutevel econoacutemico y otros criterios (DE GARINE 1987 p 4)
De acordo com Contreras e Gracia (2011) e Woortmann (2007) as
escolhas alimentares que satildeo as formadoras dos haacutebitos se constituem em uma
parte da totalidade cultural Para Contreras e Gracia (2011) pode-se afirmar que
ldquosomos o que comemosrdquo21 tanto no aspecto fisioloacutegico como tambeacutem no
espiritual ao ldquoincorporarrdquo psicossocialmente os elementos culturais daquilo que
ingerimos que pode ser desde elementos ligados agrave espiritualidade como
tambeacutem agrave memoacuteria afetiva Pela mesma razatildeo defendem que ldquocomemos o que
somosrdquo
Comemos aquilo que nos faz bem ingerimos alimentos que satildeo atrativos para os nossos sentidos e nos proporcionam prazer enchemos a cesta de compras de produtos que estatildeo no mercado e na feira e nos satildeo permitidos por nosso orccedilamento servimos ou nos satildeo servidas refeiccedilotildees de acordo com nossas caracteriacutesticas se somos homens ou mulheres crianccedilas ou adultos pobres ou ricos E escolhemos ou recusamos alimentos com base em nossas experiecircncias diaacuterias e em nossas ideias dieteacuteticas religiosas ou filosoacuteficas (CONTRERAS GRACIA 2011 p 16)
21 Conhecido aforismo proferido pelo filoacutesofo alematildeo Ludwig Feuerbach na obra ldquoO misteacuterio do sacrifiacutecio
ou o homem eacute o que ele comerdquo (1862) Tambeacutem Brillat-Savarin escreveu em seu tratado sobre lsquoA Fisiologia do Gostorsquo ldquoDize-me o que comes e te direi quem eacutesrdquo (SAVARIN-BRILLAT 1995 p 15) Os dois aforismos satildeo muito utilizados por aqueles que escrevem sobre alimentaccedilatildeo
57
Em uma percepccedilatildeo semelhante Woortmann (2007) em estudos sobre
dimensotildees sociais da comida entre os camponeses defende a lsquocomidarsquo para
este grupo como sendo uma ldquocategoria cultural nucleante que se articula a
lsquotrabalhorsquo e a lsquoterrarsquo e que as escolhas alimentares que incluem alimentos
proibidos permitidos e os preferidos estatildeo ligadas agraves dimensotildees de gecircnero de
memoacuteria de famiacutelia de identidade de religiatildeo etc
DaMatta (2001 p 56) defende que ldquoo jeito de comer define natildeo soacute aquilo
que eacute ingerido como tambeacutem aquele que ingererdquo Pode-se afirmar portanto que
comer eacute mais do que apenas um ato de sobrevivecircncia eacute tambeacutem um
comportamento simboacutelico e cultural
A diferenccedila entre o alimento como fator bioloacutegico e o alimento como
cultura eacute discutida principalmente por Montanari (2008) Delormier et al (2009)
DaMatta (2001 e 1987) Maciel (2001) Ishige (1987) Silva Mello (1956) Crotty
(1993) De Garine (1987) Cacircmara Cascudo (2004) e Woortmann (1985)
Crotty (1993 apud DELORMIER et al 2009) defende que a praacutetica
alimentar abrange duas acepccedilotildees Aquela posterior agrave ingestatildeo do alimento e que
estaacute relacionada ao universo da biologia (fisiologia e bioquiacutemica) e aquela
anterior agrave ingestatildeo Este uacuteltimo estaacute relacionado agraves questotildees culturais e sociais
ou seja agrave natureza social do comer Segundo a autora no campo da disciplina
da nutriccedilatildeo da-se pouco valor a este uacuteltimo aspecto ateacute mesmo devido aos seus
objetivos teacutecnico-cientiacuteficos Concordando com a percepccedilatildeo de Crotty (1993)
Delormier et al (2009) defendem que natildeo considerar os aspectos sociais e
culturais no campo de interesse representa de certa forma uma limitaccedilatildeo a
qualquer disciplina Estes autores tambeacutem analisam que o processo de escolha
alimentar na maior parte das vezes natildeo se daacute primeiramente pela opccedilatildeo
nutricional mas sim pelas influecircncias do conviacutevio social cotidiano que podem
estar presentes nas relaccedilotildees familiares mas tambeacutem no local de trabalho na
escola e em outros locais de convivecircncia que permitem trocas e ajudam a moldar
as escolhas alimentares dos indiviacuteduos
A atribuiccedilatildeo de status simboacutelico dado ao alimento e ao ato de comer eacute
definida segundo alguns autores pela diferenccedila semacircntica entre ldquocomidardquo e
ldquoalimentordquo DaMatta (1987) ao estudar a comida brasileira defende que toda
substacircncia nutritiva eacute um alimento mas nem todo alimento eacute comida Alimento
aponta o autor eacute universal e geral eacute o que o indiviacuteduo ingere para se manter
58
vivo jaacute a comida ajuda a situar uma identidade e definir um grupo uma classe
uma pessoa ldquoTemos o alimento e temos a comida Comida natildeo eacute apenas uma
substacircncia alimentar mas eacute tambeacutem um modo um estilo e um jeito de alimentar-
serdquo (DAMATTA 2001 p 56) Em uma aproximaccedilatildeo a DaMatta (1987)
Woortmann (1985) aponta ldquocomidardquo como sendo o oposto de mantimento
embora derive dele Pois comida eacute a transformaccedilatildeo do mantimento atraveacutes da
culinaacuteria
Neste sentido comer proporciona uma relaccedilatildeo de intimidade com o ser
humano pois haacute ainda o investimento psicossocial no processo de escolha dos
alimentos O proacuteprio processo de ingerir demonstra a intimidade existente entre
a comida e o corpo considerando que trata daquilo que segundo Mintz (2001
p 31) ldquoeacute colocado para dentro do corpordquo O autor defende que ldquonenhum outro
comportamento natildeo automaacutetico se liga de modo tatildeo iacutentimo agrave nossa
sobrevivecircnciardquo Corroborando esse pensamento Cacircmara Cascudo (2004 p
348) defende que eacute ldquoinuacutetil pensar que o alimento contenha apenas es elementos
indispensaacuteveis agrave nutriccedilatildeo Conteacutem substacircncias imponderaacuteveis e decisivas para
o espiacuterito alegria disposiccedilatildeo criadora bom humorrdquo
Maciel (2001) tambeacutem compartilha da ideia de diferenciaccedilatildeo entre
ldquocomidardquo e ldquoalimentordquo ao reconhecer a junccedilatildeo entre natureza e cultura quando
se trata de alimentaccedilatildeo humana pois poucas horas apoacutes o nascimento
instintivamente a crianccedila chora em busca pelo leite materno Poreacutem a
amamentaccedilatildeo em humanos eacute um ato tambeacutem cultural considerando que o
receacutem-nascido ao ser amamentado experimenta a sensaccedilatildeo de aconchego
favorecendo o viacutenculo entre matildee e filho e ainda o prazer de comer A crianccedila
gosta do sabor do leite e natildeo o rejeita O leite eacute assim alimento e comida ndash
natureza e cultura22
Comida eacute assim o alimento transformado pelas representaccedilotildees sociais
e culturais Eacute o que sugere tambeacutem Montanari (2008) Para este autor
diferentemente das outras espeacutecies animais o homem aproveita os alimentos
que encontra na natureza mas isso natildeo o impede de querer tambeacutem criar a
proacutepria comida usando esses alimentos baacutesicos encontrados mas
transformando-os pelo uso do fogo e uso das praacuteticas tecnoloacutegicas que se
22 Silva Mello (1956) Sandre-Pereira (2012) Mead (1969) e Bosi Machado (2005) satildeo outros autores que
discutem mais profundamente a questatildeo sobre amamentaccedilatildeo e cultura
59
desenvolvem nas cozinhas ldquoOs valores de base do sistema alimentar se definem
como resultado e representaccedilatildeo de processos culturais que preveem a
domesticaccedilatildeo a transformaccedilatildeo e a reinterpretaccedilatildeo da naturezardquo (p 15) O
consumo dos alimentos tambeacutem eacute tratado como cultura pelo autor uma vez que
o homem escolhe o que comer baseado em criteacuterios de ordem econocircmica
nutricional preferecircncias mas tambeacutem em simbologias atribuiacutedas ao alimento
portanto comida Por essas razotildees ldquoa comida se apresenta como elemento
decisivo da identidade humana e um dos mais eficazes instrumentos para
comunica-lardquo (p 16) A natureza produz os alimentos mas a cultura faz surgir
coacutedigos importantes como por exemplo as diferentes opccedilotildees de cardaacutepios as
receitas os haacutebitos que por sua vez se relacionam ao paladar ao prazer
relacionado agraves propriedades organoleacutepticas dos alimentos e sobretudo ao
prazer da degustaccedilatildeo
331 A importacircncia social e cultural do uso do fogo e sua relaccedilatildeo com a comensalidade
O valor cultural do alimento se fortalece a partir da descoberta do fogo e
do iniacutecio do processo de cozimento dos alimentos Os pesquisadores das
Ciecircncias Sociais que primeiramente deram ecircnfase ao papel fundamental do fogo
na transformaccedilatildeo do alimento atribuindo-lhe assim uma funccedilatildeo cultural para
aleacutem da bioloacutegica foram Claude Leacutevi-Strauss Jean Anthelme Brillat-Savarin
Richard Wrangham e Massimo Montanari
Segundo Montanari (2008) para os seres humanos a comida eacute cultura
e natildeo apenas pura natureza devido agrave adoccedilatildeo ndash como parte essencial de suas
teacutecnicas ndash dos modos de produccedilatildeo de preparaccedilatildeo e de consumo de alimentos
bem como o conhecimento sobre plantas proacuteprias para consumo Para o autor
o uso do fogo eacute fundamental na transformaccedilatildeo do alimento bruto em produto
cultural em comida Referente agrave esta percepccedilatildeo Leacutevi Strauss discute em ldquoO Cru
e o Cozidordquo como o uso do fogo permitiu de certa forma o homem passar do
estado da natureza ndash ao se referir a ingestatildeo do alimento de caccedila ou coleta na
forma crua ndash para o estado da cultura a partir da transformaccedilatildeo do alimento em
cozido Numa analogia da linguagem verbal dos grupos em seu artigo
denominado ldquoO Triacircngulo Culinaacuteriordquo o autor propotildee explicar a relaccedilatildeo natureza
60
ndash cultura com a linguagem da comida conferindo status de linguagem universal
agrave comida ldquoassim como natildeo existe sociedade sem linguagem natildeo existe
nenhuma que de um modo ou de outro natildeo cozinhe pelo menos alguns de seus
alimentosrdquo (LEacuteVI-STRAUSS 1968 p 25) O Triacircngulo culinaacuterio proposto pelo
antropoacutelogo se forma pelo cru pelo cozido (assado e fervido) e pelo apodrecido
Estaacute claro que em relaccedilatildeo agrave cozinha o cru constitui o polo natildeo marcado e que os dois outros o satildeo acentuadamente mas em direccedilotildees opostas com efeito o cozido eacute uma transformaccedilatildeo cultural do cru enquanto que o apodrecido eacute uma transformaccedilatildeo cultural dele Subjacente ao triacircngulo primordial haacute portanto uma dupla oposiccedilatildeo entre elaboradonatildeo elaborado de um lado e entre culturanatureza de outro Sem duacutevida alguma estas noccedilotildees constituem formas vazias nada nos ensinam sobre a cozinha de tal ou tal sociedade particular uma vez que apenas a observaccedilatildeo pode nos dizer o que cada um entende por ldquocrurdquo ldquocozidordquo e ldquoapodrecidordquo e uma vez que pode se supor que natildeo seraacute a mesma coisa para todas (LEacuteVI-STRAUSS 1968 p 25)
Em uma escala de relevacircncia cultural o cru estaacute na base mais simples
da escala na sequecircncia viria o assado ocupando segunda posiccedilatildeo pois
necessita apenas do fogo Os mais elaborados satildeo assim fervidos ou
ensopados que por necessitar de maior envolvimento humano e de uma vasilha
com aacutegua estando num patamar de elaboraccedilatildeo mais complexo e portanto
numa escala de maior relevacircncia cultural
Apoacutes Leacutevi-Strauss que analisou a mitologia dos povos ameriacutendios e seu
ldquomundordquo culinaacuterio buscando traduzir entre outras questotildees os mitos sobre a
origem do fogo a partir da representaccedilatildeo desse grupo surgiram outros estudos
destacando a importacircncia do fogo na praacutetica de cozinhar Um desses estudos
recentes eacute do antropoacutelogo Wrangham (2010) que tambeacutem defende a descoberta
do fogo e o cozimento como sendo definidores da humanidade e responsaacutevel
por diferenciar os humanos dos macacos originando o gecircnero Homo
Semelhante afirmaccedilatildeo eacute feita por Garciacutea (2013)
La conquista del fuego supuso (de manera metafoacuterica) la separacioacuten definitiva del mundo de los seres vivos en dos grupos de un lado quedaron los hombres de otro los demaacutes animales El fuego nos transformoacute em humanos La domesticacioacuten del fuego supuso en definitiva un impulso decisivo en la historia humana un impulso fecundador que permitioacute que se produjeran nuevos avances que a su vez abrieron la viacutea a otros progresos generando una reaccioacuten en cadena que ha desembocado en el complejo y tecnificado mundo actual (GARCIacuteA 2013 p 167)
61
Cozinhar aumentou o valor da comida Assim o uso do fogo alterou
fisicamente o corpo humano reduzindo o aparelho digestivo e aumentando o
tamanho do ceacuterebro mas tambeacutem alterando o uso do tempo e a vida social O
impacto recaiu ainda sobre as relaccedilotildees com a natureza que conforme
(WRANGHAM 2010 p 7) ldquotransformou-nos em consumidores de energia
externa e assim criou um organismo com uma nova relaccedilatildeo com a natureza
dependente de combustiacutevelrdquo
O valor cultural do fogo na transformaccedilatildeo do alimento eacute tatildeo claro que
conforme aponta Leach (1970 apud WRANGHAM 2010 p 15) ldquoAs pessoas
natildeo precisam cozer sua comida elas o fazem por razotildees simboacutelicas para
mostrar que satildeo homens e natildeo animaisrdquo Afinal somos os uacutenicos animais
capazes de cozinhar o proacuteprio alimento
Por outro lado natildeo se pode afirmar que ingerir alimento cru natildeo possua
caracteriacutestica cultural pois como argumenta Giard (2012 p 232) ldquoMesmo cru e
colhido diretamente da aacutervore o fruto jaacute eacute um alimento culturalizado antes de
qualquer preparaccedilatildeo e pelo simples fato de ser tido como comestiacutevel rdquo Para a
autora a noccedilatildeo de alimento comestiacutevel iraacute variar de um grupo a outro ou seja
eacute definido pela cultura questotildees que vimos anteriormente neste capiacutetulo
Haacute outro fator muito importante a se destacar o qual se pode atribuir agrave
descoberta do fogo que eacute o fato de ter propiciado agraves pessoas e aos grupos
juntarem-se em torno dele para se aquecer mas tambeacutem para preparar a
comida distribui-la e ingeri-la Facilitou-se assim o estabelecimento de relaccedilotildees
de comensalidade23 que com o tempo foram se tornando encontros cotidianos e
transformando-se em uma atividade socializadora Conforme argumenta Fladrin
e Montanari (1998) independentemente da forma e das diferenccedilas nas normas
de comportamento existentes em cada sociedade o fato eacute que ldquoa comensalidade
eacute percebida como um elemento lsquofundadorrsquo da civilizaccedilatildeo humana em seu
processo de criaccedilatildeordquo (FLANDRIN MONTANARI 1998 p 109) e para Carneiro
(2003) a comensalidade se constitui em ldquoum complexo sistema simboacutelico de
23 Etimologicamente comensalidade deriva do latim ldquocomensalerdquo Accedilatildeo de comer junto na mesma mesa
Com ldquojuntordquo e Mensa ldquomesardquo Implica em partilhar do mesmo momento e local das refeiccedilotildees Para Poulain (2013) a comensalidade estabelece e reforccedila a sociabilidade ldquoEacute pela cozinha e pelas maneiras a mesa que se produzem as aprendizagens sociais mais fundamentais e que uma sociedade transmite e permite a interiorizaccedilatildeo de seus valores A alimentaccedilatildeo eacute uma das formas de se tecer e se manter os viacutenculos sociaisrdquo (POULAIN 2013 p 182)
62
significados sociais sexuais poliacuteticos religiosos eacuteticos esteacuteticos etc
(CARNEIRO 2003 p 2)
Ao redor do fogo eacute possiacutevel se aquecer preparar os alimentos e a
comida mas tambeacutem estabelecer o diaacutelogo Segundo Garciacutea (2013) nos
primoacuterdios da humanidade os encontros diaacuterios dos grupos se davam em torno
do fogo para trocar experiecircncias do dia e traccedilar estrateacutegias de caccedila por exemplo
Para Wrangham (2010) o advento do fogo mudou a maneira de nossos
ancestrais se relacionarem Passava-se mais tempo junto se aquecendo e
alimentando-se em grupo No volume I da primeira obra dirigida por Philippe
Ariegraves e Georges Duby (1990) Histoacuteria da Vida Privada a importacircncia do fogo eacute
destacada logo no iniacutecio do capiacutetulo de autoria de Yvon Theacutebert que trata da
vida privada e da arquitetura domeacutestica na Aacutefrica Romana Nas habitaccedilotildees natildeo
havia chamineacute nem fogotildees e sim lareiras ldquocuja fumaccedila saiacutea por um buraco no
teto e constituiacutea paradoxalmente um dos celebrados prazeres da rude existecircncia
rural quando a neve cobria os camposrdquo (THEacuteBERT 1990 p 303)
Segundo Flandrin e Montanari (1998) o uso do fogo permitiu ao homem
alimentar-se em conjunto inicialmente ao seu redor em aacutereas externas e com o
passar dos anos com a criaccedilatildeo do espaccedilo social alimentar nos ambientes
domeacutesticos (a cozinha e a sala de jantar) e na sequecircncia com a criaccedilatildeo de
espaccedilos externos agraves residecircncias (os restaurantes lanchonetes etc) Assim a
comida que eacute o alimento transformado pela cultura passa a possuir tambeacutem a
funccedilatildeo agregadora para os seres humanos A essa funccedilatildeo denomina-se de
comensalidade que tem como significado a capacidade de estabelecer relaccedilotildees
de sociabilidade importantes pois implica em reunir as pessoas em torno da
mesa Ou seja enquanto come o grupo tem tambeacutem a oportunidade de dialogar
e trocar experiecircncias do cotidiano
Para Fischler (2011) a comensalidade eacute uma das caracteriacutesticas mais
significantes no que se refere agrave sociabilidade humana relacionando-se natildeo
apenas agrave ingestatildeo de alimentos mas tambeacutem aos modos do comer envolvendo
haacutebitos culturais atos simboacutelicos organizaccedilatildeo social aleacutem do compartilhamento
de experiecircncias e valores Nesse sentido Woortmann (1985) esclarece que na
cultura brasileira a refeiccedilatildeo eacute considerada um ato social e que portanto deve
ser feita em grupo para ser percebida efetivamente como uma refeiccedilatildeo Tambeacutem
em nossa cultura segundo o autor criamos significados diferentes para essa
63
accedilatildeo como comer cotidianamente e comer em eventos especiais comer em
casa e comer fora de casa
O caraacuteter simboacutelico-ritual do comer se expressa claramente no haacutebito de convidar pessoas para jantar em nossa casa no ldquojantar forardquo em determinadas ocasiotildees ou no ldquoalmoccedilo de domingordquo Nessas e em outras ocasiotildees anaacutelogas haacute mais em jogo que necessidades nutricionais Natildeo convidamos pessoas para jantar em nossa casa para alimentaacute-las enquanto corpos bioloacutegicos mas para alimentar e reproduzir relaccedilotildees sociais isto eacute para reproduzir o corpo social o que supotildee que sejamos em troca convidados a comer na casa do nosso convidado O que estaacute em jogo eacute o princiacutepio da reciprocidade e da comensalidade A presenccedila da comida eacute contudo central reconstruindo-se necessidades bioloacutegicas em necessidades sociais (WOORTMANN 1985 p 3)
Em semelhante percepccedilatildeo Algranti (1997) aponta que haacute registros de
que desde o periacuteodo colonial no Brasil a reuniatildeo familiar durante as refeiccedilotildees
pelo menos uma vez ao dia se tornou um costume que se perpetuou nas famiacutelias
rurais bem como nas urbanas Tambeacutem Franco (2001) discorre sobre a
comensalidade no meio rural como sendo uma importante maneira de promover
a solidariedade e reforccedilar laccedilos entre os membros de um grupo de afinidade
Neste sentido ldquoo comerrdquo eacute um ato tanto social quanto poliacutetico e envolve
costumes diaacutelogos usos sabores odores e ateacute mesmo as etiquetas que
correspondem agraves maneiras de comer que satildeo aprendidas no proacuteprio processo
de comensalidade que se daacute nos grupos E segundo Giard (2012) momentos
de comensalidade demarcam relaccedilotildees sociais e afetivas entre os membros de
uma famiacutelia e tambeacutem influencia fortemente o desenvolvimento do gosto
alimentar24 A percepccedilatildeo da autora corrobora a discussatildeo de Bourdieu (2007)
sobre a formaccedilatildeo do gosto e da preferecircncia alimentar
3311 O local do fogo e da praacutetica da comensalidade na arquitetura domeacutestica
Na sociedade ocidental o local do fogo em uma habitaccedilatildeo eacute
principalmente a cozinha que primeiramente era anexa agrave casa e o equipamento
que o representa eacute o fogatildeo A cozinha segundo Flandrin (1990) surge em
24 Eacute preciso ressaltar que nem todas as culturas apreciam comer em conjunto Poreacutem natildeo se pode
considerar como regra os preceitos da comensalidade Como nos mostra Geertz (2008 p 190) sobre a cultura balinesa onde comer eacute considerado uma atividade que gera repulsa ldquo() mas ateacute comer eacute visto como uma atividade desagradaacutevel quase obscena que deve ser feita apressadamente e em particular devido agrave sua associaccedilatildeo com a animalidaderdquo
64
funccedilatildeo das transformaccedilotildees nos costumes sociais ao longo do tempo Assim o
prazer no comer e beber junto foi se modificando Isso ocorre
concomitantemente agraves mudanccedilas nas sociedades Ao longo dos anos e dos
seacuteculos a vida privada passou a ser preferida em lugar da vida puacuteblica
sobretudo nos aspectos de convivecircncia de desfrutar da intimidade e aconchego
familiar Avanccedilos tecnoloacutegicos e encontros com outras culturas favoreceram a
vida e a criaccedilatildeo de espaccedilos internos agrave casa destinados agrave comensalidade por
exemplo A cozinha que antes era compartilhada com vaacuterias pessoas ao redor
do paacutetio passa a ser parte interna de cada habitaccedilatildeo O espaccedilo privado estaacute
associado agrave intimidade e ao refuacutegio em contraste a um espaccedilo puacuteblico do qual o
cotidiano domeacutestico das famiacutelias vai se afastando aos poucos As refeiccedilotildees que
eram feitas ao ar livre ou em locais de faacutecil acesso passam a ser feitas em casas
de alvenaria que possuem portas da rua que ficam fechadas impedindo o
acesso a qualquer pessoa que chegar exceto sob o convite dos donos da casa
Mesmo que inicialmente a cozinha tenha se mantido distante dos outros
cocircmodos ocupava um lugar de destaque nas caracteriacutesticas habitacionais das
mais simples agraves mais requintadas desde o periacuteodo Colonial no Brasil conforme
aponta Lemos (1996) em seu estudo sobre as casas urbanas e rurais brasileiras
ldquoEm Portugal ateacute haacute pouco tempo e no Brasil Colonial sempre se chamou a
moradia de lsquofogorsquo ou lsquofogatildeorsquo Qualquer recenseamento dizia que determinada
cidade possuiacutea tantos habitantes em tantos lsquofogosrsquordquo (LEMOS 1996 p 11)
Segundo Lemos (1976) e Abrahatildeo (2007) as cozinhas do periacuteodo de
colonizaccedilatildeo no Brasil estavam sempre voltadas para o exterior da casa em seus
fundos ficando assim distantes dos cocircmodos de dormir mantendo-os livres do
cheiro de fumaccedila e de gordura Por natildeo haver aacutegua encanada na eacutepoca a
cozinha se localizava muitas vezes na aacuterea externa da habitaccedilatildeo Poreacutem
segundo Algranti (1997) jaacute a partir do seacuteculo XVIII estabeleceu-se dois tipos de
cozinhas a ldquocozinha sujardquo onde se preparavam carnes doces e frituras ou seja
destinava-se agraves atividades mais pesadas e portanto permanecia fora da casa e
a ldquocozinha limpardquo que se acopla agrave residecircncia e onde se prepara o cafeacute os bolos
as saladas etc
Segundo Abdala (2007) o espaccedilo da cozinha nas casas do periacuteodo
colonial em Minas Gerais e que perdurou pelo seacuteculo XIX era amplo bem
ventilado e o fogatildeo a lenha feito de barro ou de pedra sabatildeo ocupava local de
65
destaque Era ainda um espaccedilo iacutentimo natildeo sendo permitida a entrada de
estranhos25
A sala de jantar segundo Cacircmara Cascudo (2004) surgiu no final do
seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX Antes disso qualquer cocircmodo da habitaccedilatildeo servia a
esta finalidade mesmo nos imensos castelos onde o conforto era pequeno
apesar dos grandes espaccedilos Saint-Hilaire em seu registro da passagem por
Minas Gerais assim descreve a sala de jantar das casas que visitou
Nas casas dos pobres assim como nas dos ricos existe sempre uma peccedila denominada sala que daacute para o exterior Eacute ali que se recebem os estranhos e se fazem as refeiccedilotildees sentado em bancos de madeira em torno de uma mesa comprida A gente abastada tem o cuidado de reservar na frente de sua casa uma galeria ou varanda formada pelo teto que se prolonga aleacutem das paredes e eacute sustentado por colunas de madeira (SAINT-HILAIRE 1938 p 186)
Ambos os cocircmodos se constituiacuteram ao longo da histoacuteria nos espaccedilos
principais destinados agrave comensalidade E era tambeacutem um espaccedilo assim como
a cozinha em que as mulheres precisavam provar seus dotes como donas de
casa a sua capacidade de receber visitas atividades que faziam parte dos
saberes transmitidos das matildees para as filhas de forma que por mais simples
que fossem as salas de jantar refletiam a personalidade da dona da dona da
casa segundo Abrahatildeo (2010)
As modificaccedilotildees nos tamanhos e estrutura desses espaccedilos domeacutesticos
nos tempos atuais sinalizam que os arranjos destinados a esta atividade estatildeo
sendo redefinidos socialmente mas natildeo desapareceram No sul do Brasil ainda
eacute comum nos dias de hoje os fogotildees a lenha mesmo nas residecircncias urbanas
do interior Diferentemente da regiatildeo sudeste destacando-se Minas Gerais em
que o fogatildeo a lenha eacute em sua maioria feito de alvenaria nos estados do Sul
eles satildeo feitos industrialmente em ferro esmaltado Nos dias frios eacute em torno dele
que a famiacutelia e os amigos se reuacutenem para cozinhar e degustar o pinhatildeo por
exemplo acompanhado de vinho e muita conversa Em Minas o fogatildeo a lenha
estaacute presente em quase todas as habitaccedilotildees rurais e eacute um equipamento que
permanece no imaginaacuterio das pessoas ao pensar em interior e cozinha rural
25 Durante trabalho de pesquisa para mestrado realizado em 1998-1999 na zona rural de Minas Gerais
tive uma experiecircncia interessante em relaccedilatildeo a cozinha e a intimidade das famiacutelias pesquisadas No iniacutecio das vistas as conversas se davam sempre na sala ou na aacuterea externa da casa agrave medida que ia me tornando uma pessoa mais frequente em funccedilatildeo de novas visitas passei a ser recebida na cozinha Isso ocorreu em quase todas as habitaccedilotildees em que estive naquela fase
66
Martins (1998) em pesquisa realizada na regiatildeo amazocircnica expotildee os
detalhes de uma casa da sua cozinha e suas funccedilotildees de sociabilidade Sua
descriccedilatildeo deixa clara tambeacutem a relaccedilatildeo da cozinha como espaccedilo de pessoas da
intimidade do grupo
Nos povoados da fronteira onde haacute algum recurso a porta sempre aberta continua no corredor comprido que leva agrave cozinha Ela eacute o lugar de conversaccedilatildeo dos natildeo estranhos daqueles com quem os moradores da casa tecircm familiaridade e natildeo necessariamente parentesco Lugar dos que podem ir entrando bastando gritar o costumeiro ldquoOacute de casardquo Natildeo satildeo estranhos mas tambeacutem natildeo satildeo parentes Na entrada fica a saleta para receber os propriamente estranhos limite de seu acesso ao interior da casa (MARTINS 1998 p 695)
Nos falam sobre isso tambeacutem Luiacutes da Cacircmara Cascudo e Gilberto
Freyre em suas obras jaacute citadas anteriormente Freyre (2006) ao tratar sobre
as caracteriacutesticas das casas do periacuteodo dos engenhos de cana explica que
havia diferenccedilas entre as cozinhas existentes nas casas grandes de siacutetios
sobrados assobradadas de subuacuterbio com aquela da casa de engenho Nestas
uacuteltimas informa o autor a cozinha foi mais importante Essas diferenccedilas se
refletiam inclusive no tamanho da mesa destinada agraves refeiccedilotildees e que abrigavam
quem chegasse para almoccedilar
Viajantes e mascates aleacutem dos compadres que nunca faltavam dos papa-pirotildees os parentes pobres do administrador do feitor do capelatildeo dos vaqueiros das visitas de passar o dia famiacutelias inteiras que vinham de outros engenhos em carro de boi Eram mesas de jacarandaacute agraves vezes de seis oito metros de comprimento como as que ainda conhecemos na casa-grande ndash vasto sobrado rural do engenho Noruega26 (FREYRE 2006 p 143)
O autor esclarece que as mesas grandes ndash geralmente de cinco por dois
metros (5x2) ndash para receber famiacutelias enormes eram comuns nas casas grandes
de siacutetios e nos sobrados mas o que ocorria eacute que nas cidades e subuacuterbios o
modo de vida era mais retraiacutedo e sem muita movimentaccedilatildeo diferentemente do
que ocorria nas casas de engenho jaacute que aiacute ldquose recebia o viajante a qualquer
momento com bacia de prata toalha de linho um lugar agrave mesa uma rede ou
uma cama para dormirrdquo (FREYRE 2006 p 144)
Marcel Mauss (2003) em seu Ensaio sobre a Daacutediva cita a ldquoTaacutevola
Redondardquo das crocircnicas de Artur mesa cujo formato circular tinha o objetivo
26 Este engenho foi retrato na forma de gravura aquarelada 1933 por Ciacutecero Dias Esta aquarela compotildee
o livro Casa-Grande amp Senzala de Gilberto Freyre (1ordm Tomo 1964) como documento anexo ao livro e disposto em dobradura
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simboacutelico de ajudar forma a seus cavaleiros a viver em harmonia pois viviam em
disputas e alimentando inveja entre si A ideia era que ao se sentarem ao seu
redor se reconhecessem como iguais jaacute que nela natildeo havia local de destaque
ou de superioridade
Poreacutem nem sempre o moacutevel ldquomesardquo era ou eacute utilizado Comer assentado
no chatildeo faz parte da cultura indiacutegena e tambeacutem oriental Os iacutendios sentam-se
diretamente no solo nu ou em esteiras e os orientais sobre tapetes nos informa
Cacircmara Cascudo (2004 p 794) Segundo o mesmo autor no Brasil colonial os
pobres tambeacutem comiam dessa maneira o que fez surgir o termo ldquocomida de
esteirardquo Os menos pobres comiam em mesa de madeira ldquoA histoacuteria da
alimentaccedilatildeo na esteira decorre precisamente da heranccedila cabocla do escravo
negro dos mesticcedilos humildesrdquo Mesmo entre os ricos no seacuteculo XIX a mesa
existia mas era improvisada feita em taacutebuas aplainadas na maioria das vezes
Apesar de ser um objeto frequente usado como apoio para os pratos os copos
bebidas e os vasilhames com as comidas durante as refeiccedilotildees nas discussotildees
antropoloacutegicas e socioloacutegicas importa principalmente o seu sentido figurado da
mesa relativo ao ldquocomer juntordquo independentemente de ser assentado ao chatildeo
no sofaacute ou em torno de uma mesa de madeira ou de ferro
Neste sentido importa-nos a conotaccedilatildeo entendimento da
comensalidade no processo socializador e agregador como aquele usado por
Poulain (2013) de que a comensalidade envolve comer acompanhando que eacute
tambeacutem semelhante ao sentido atribuiacutedo por Sobal e Nelson (2003) Fischler
(2011) acrescenta um atributo de espaccedilo a este sentido e diz que literalmente
significa ldquocomer na mesma mesardquo A mesa neste caso podendo ser ateacute mesmo
um ciacuterculo no meio de uma floresta ou o momento e local onde ocorrem as
refeiccedilotildees dos operaacuterios da construccedilatildeo civil com suas marmitas nas matildeos ou
ainda uma toalha posta para um pic nic ou em uma roda que se forma em um
evento social Toda a discussatildeo em torno da relaccedilatildeo mesa e comensalidade
aponta que natildeo ser obrigatoacuterio a existecircncia de um local fiacutesico e de um moacutevel
chamado de mesa para que a comensalidade e sociabilidade alimentar ocorra
basta que haja disponibilidade entre as pessoas e uma certa familiaridade na
convivecircncia Isso tanto vale para o meio rural quanto para o meio urbano No
meio rural ateacute mesmo o local de trabalho no meio de um roccedilado distante da
68
casa onde come-se de marmita eacute um local de relaccedilotildees de diaacutelogo e de comer
tendo uma companhia
Os momentos festivos satildeo outras possibilidades de tambeacutem haver
sociabilidade e de ocorrer a comensalidade Nestes momentos come-se natildeo
necessariamente por fome mas pelo prazer do conviacutevio ainda que temporaacuterio
conforme Fladrin e Montanari (1998)
O homem civilizado come natildeo somente (e menos) por fome para satisfazer uma necessidade elementar do corpo mas tambeacutem (e sobretudo) para transformar essa ocasiatildeo em um momento de sociabilidade em um ato carregado de forte conteuacutedo social e de grande poder de comunicaccedilatildeo (FLADRIN MONTANARI 1998 p 108)
Muitas vezes a sociabilidade inicia-se na proacutepria organizaccedilatildeo dos
festejos Nas aacutereas rurais eacute mais comum que as festas comunitaacuterias ou as da
esfera familiar sejam organizadas pelos moradores locais com ajuda da
vizinhanccedila o que propicia maior sociabilidade para aleacutem dos momentos de
comensalidade que ocorrem durante o evento Na cidade pela maior facilidade
de contratar por serviccedilos de organizaccedilatildeo de festas haacute um menor envolvimento
das pessoas que participaratildeo das festas no processo de sua organizaccedilatildeo
Poreacutem como a cultura eacute dinacircmica sofrendo o efeito dos modos de vida
modernos as relaccedilotildees de sociabilidade e tambeacutem de comensalidade ndash antes
mais tradicionais e com maior constacircncia de momentos em grupo ndash tecircm sido
alteradas conforme aponta alguns autores no toacutepico a seguir
34 Praacuteticas alimentares na contemporaneidade entre o tradicional e o moderno
Apesar de as mudanccedilas no consumo alimentar terem ocorrido de forma
tiacutemida antes do seacuteculo XIX eacute a partir da metade dele que autores como Fischler
(1998) Montanari (1998) Teuteberg e Flandrin (1998) Peacutehaut (1998) Capatti
(1998) Levenstein (1998) Cacircmara Cascudo (2004) Pollan (2014) Rossi (2014)
e Contreras e Gracia (2011) consideram como o iniacutecio de mudanccedilas mais
substanciais nas praacuteticas alimentares principalmente na Europa periacuteodo
marcado por profundas transformaccedilotildees nesse continente dentre elas a
expansatildeo da industrializaccedilatildeo que altera os modos de vida das famiacutelias o
aumento da populaccedilatildeo os avanccedilos na produccedilatildeo agriacutecola que gera em pouco
69
tempo o desenvolvimento da induacutestria alimentar Esses efeitos se ampliam
destacadamente nos seacuteculos XX e XXI Muitas dessas mudanccedilas ocorrem
paulatinamente com a introduccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos de outra cultura
como jaacute visto
Autores como Poulain (2013) Montanari (2008) Lody (2008) Pollan
(2014) Woortmann (2007 e 2013) De Garine (1987) Flandrin e Montanari
(1998) e Maciel (2001) discutem como alguns dos aspectos do modo de vida
moderno ndash tempo escasso para executar as vaacuterias atividades facilidade de
acesso agrave informaccedilatildeo estiacutemulo ao consumismo economia de tempo gerado pelo
uso de produtos alimentiacutecios industrializados dentre outros - influenciam as
praacuteticas alimentares e suas interfaces fazendo surgir diversas maneiras de se
alimentar na contemporaneidade
Maneiras essas que podem interferir nos haacutebitos alimentares nos
horaacuterios e locais das refeiccedilotildees no consumo de alimentos e nas praacuteticas
alimentares Por exemplo receitas de famiacutelia que antes estavam nos cadernos
e eram repassados por geraccedilotildees atualmente satildeo encontradas no verso das
embalagens de alimentos na internet em revistas e em programas de televisatildeo
Os horaacuterios de alimentaccedilatildeo nem sempre coincidem entre os membros da famiacutelia
tampouco o espaccedilo domeacutestico eacute mais o uacutenico a ser usado para tal finalidade A
vida contemporacircnea propotildee adaptaccedilotildees agraves novidades que satildeo apresentadas
constantemente Nesse contexto as mudanccedilas atingem tambeacutem as famiacutelias
rurais que encontram formas de se adaptar criando alternativas para lidar com
o novo
Em funccedilatildeo dessas questotildees alguns desses autores analisam
criticamente a tendecircncia atual de homogeneizaccedilatildeo das praacuteticas alimentares
sendo este talvez um caminho sem volta Essa homogeneizaccedilatildeo igualaria os
comedores contemporacircneos ocidentais que sob a influecircncia da globalizaccedilatildeo
passariam rapidamente a ter haacutebitos e gostos alimentares muito semelhantes
Estas consideraccedilotildees estatildeo presentes nas anaacutelises de Arnaiz (2005) que a partir
do estudo sobre a alimentaccedilatildeo dos espanhoacuteis e com base nas argumentaccedilotildees
de autores como Warde (1997) e Germov e Williams (1999) apresenta quatro
tendecircncias para o sistema alimentar moderno
O fenocircmeno da homogeneizaccedilatildeo do consumo em uma sociedade massificada a persistecircncia de um consumo diferencial e socialmente
70
desigual o incremento da oferta personalizada (poacutes-fordista nos termos dos autores) avaliada pela criaccedilatildeo de novos estilos de vida comuns e finalmente o incremento de uma individualizaccedilatildeo alimentar causada pela crescente ansiedade do comensal contemporacircneo ARNAIZ 2005 p 148)
Fischler (1979) se refere a essa tendecircncia alimentar nas sociedades
contemporacircneas como sendo lsquohiper-homogecircnearsquo Em funccedilatildeo disso citando o
estudo realizado por Mennell et al (1992) Fischler (2011) chama a atenccedilatildeo para
o fato de que as praacuteticas alimentares contemporacircneas colocam em risco a
comensalidade enquanto poder de sociabilidade de agregaccedilatildeo considerando
que o mundo moderno tem facilitado a individualizaccedilatildeo inclusive no que se
refere agrave alimentaccedilatildeo Exemplo disso eacute o nuacutemero crescente de pessoas que
mesmo no ambiente domeacutestico servem o seu prato e se assentam na frente da
televisatildeo ou do computador Situaccedilotildees que sinalizam que outras dinacircmicas tecircm
surgido no campo da comensalidade no mundo contemporacircneo Para esses
autores eacute fato o surgimento de um padratildeo alimentar Essa percepccedilatildeo parece
natildeo levar em consideraccedilatildeo a variaccedilatildeo de culturas realidades locais e modos
alimentares diferenciados entre os diversos povos mesmo no contexto
ocidental
Arnaiz (2005) Fischler (1979 e 2011) e Pollan (2014) afirmam que na
sociedade ocidental globalizada e industrializada o tempo aleacutem de escasso eacute
usado prioritariamente em prol da produtividade e do desenvolvimento
capitalista Nesse contexto o que sobra deste tempo eacute dividido entre as tantas
outras tarefas sociais como aquelas desenvolvidas no espaccedilo domeacutestico em
famiacutelia ou entre amigos Pollan (2014) aponta que o haacutebito de cozinhar em casa
vem diminuindo Arnaiz (2005) cita que outro motivo que contribui para isso estaacute
relacionado agraves facilidades geradas pelo processo agroalimentar ou seja vaacuterias
atividades de preparo de alimentos que antes ocupavam muito tempo da
cozinheira atualmente satildeo feitas pelas induacutestrias de alimentos
Poreacutem eacute arriscado afirmar uma tendecircncia agrave homogeneizaccedilatildeo alimentar
pois a cultura eacute dinacircmica e os indiviacuteduos tendem a buscar formas de adaptaccedilatildeo
aos modelos propostos e nessa adaptaccedilatildeo podem buscar praacuteticas alimentares
que mesclem novidade e tradiccedilatildeo Haacute que se levar em consideraccedilatildeo a
diversidade cultural dos grupos mesmo no contexto ocidental Se por um lado
busca-se acompanhar os avanccedilos haacute tambeacutem interesse em preservar
71
caracteriacutesticas culturais consideradas importantes dentre elas aquelas
relacionadas a algumas praacuteticas alimentares Portanto por mais que o peso da
homogeneizaccedilatildeo exista haacute tambeacutem o peso dos elementos da tradiccedilatildeo que
exerce importante influecircncia nas decisotildees e nas escolhas pessoais
Percebe-se na discussatildeo dos autores abordados neste toacutepico a
ocorrecircncia de trecircs vertentes ou movimentos Um primeiro apontado por Anaiz
(2005) Fischler (1979) e Pollan (2014) de que a sociedade tende a adotar um
padratildeo alimentar homogecircneo baseado no consumo prioritaacuterio de alimentos
industrializados de acordo com um estilo de vida moderno e atrelado agraves
novidades Um segundo movimento defendido por De Garine (1987) de que haacute
uma divisatildeo perceptiacutevel na sociedade ocidental formada por um lado por
consumidores prioritariamente tradicionais no seu estilo de exercer as praacuteticas
alimentares e de outro lado por consumidores com tendecircncias agraves praacuteticas
modernas Por fim um terceiro movimento encontrado em Doacuteria (2014) Giard
(2012) Garciacutea Canclini (2013) entre outros que defendem a coexistecircncia da
tradiccedilatildeo com a modernidade no que se refere tambeacutem agraves praacuteticas alimentares
conforme discussatildeo que seraacute apresentada mais agrave frente
Pollan (2014) apesar de acreditar que o ritmo de vida moderno estimule
modos de se alimentar mais homogecircneos com o comedor recorrendo
prioritariamente aos aspectos de praticidade por outro lado pondera algumas
questotildees que satildeo relativas Defende por exemplo que a despeito das mudanccedilas
em curso na sociedade ocidental contemporacircnea a magia e o prazer que
envolvem a atividade culinaacuteria ainda permanecem Mesmo que para um grande
nuacutemero de pessoas isso possa corresponder a uma atividade esporaacutedica em
eventos especiais ou nos finais de semana Por outro lado ainda que a
constacircncia do conviacutevio cotidiano nos momentos das refeiccedilotildees se reduza isso
natildeo implica na perda da qualidade desses momentos Mas o autor concorda
com Fischler (2011) que a diminuiccedilatildeo desta atividade implica em consequecircncias
como transformaccedilotildees no campo da comensalidade com seus significados e
simbolismos Com isso o estilo de vida acelerado e o tempo escasso para
realizar todas as demandas sociais afastam as pessoas do encontro familiar
cotidiano no compartilhamento da comida da manutenccedilatildeo de um horaacuterio fixo
para as refeiccedilotildees e tambeacutem da produccedilatildeo do proacuteprio alimento
72
Em relaccedilatildeo agrave essas questotildees Flandrin e Montanari (1998) consideram a
crenccedila absoluta na homogeneidade dos comportamentos alimentares
exagerada Apesar das mudanccedilas em curso os autores afirmam natildeo ser
evidente pelo menos ainda o desaparecimento das composiccedilotildees e elementos
tradicionais no campo da alimentaccedilatildeo Sinalizam que sobretudo na Europa a
funccedilatildeo social da comida ainda eacute importante Apontam as reuniotildees entre amigos
que ocorrem nos diferentes paiacuteses do planeta ou a reuniatildeo familiar em alguns
dias na semana e que natildeo ordinariamente no cotidiano ainda assim satildeo
momentos de sociabilidade e comensalidade e defendem a necessidade de
relativizaccedilatildeo sobre o assunto
A ldquonormalizaccedilatildeordquo dos comportamentos alimentares ainda natildeo se tornou irreversiacutevel se os modelos de consumo tendem a se assemelhar cada vez mais sua homogeneidade permanece bastante relativa e mais aparente do que real jaacute que os elementos que tem em comum satildeo de fato interpretados segundo a cultura de cada povo e paiacutes inserindo-se em estruturas ainda fortemente marcadas pelas particularidades locais que por sua vez foram-se formando na sequecircncia de um processo histoacuterico longo e articulado (FLADRIN MONTANARI (1998 p 867)
As possibilidades de as praacuteticas alimentares contemporacircneas serem
responsaacuteveis por manter ou de extinguir as tradiccedilotildees alimentares satildeo discutidas
por alguns autores como Berman (2000) Giddens (1991) Bauman (2007)
Garciacutea Canclini (2013) e Giard (2012) O mundo contemporacircneo estaacute
relacionado ao modo de vida moderno e em constante transformaccedilatildeo tendendo
ao dinamismo mesmo que aspectos do tradicional permaneccedilam ainda que com
pesos diferentes de acordo com cada cultura No mundo moderno nada
permanece fixamente e eacute neste contexto que os contrastes entre o moderno e o
tradicional ficam mais aflorados conforme defende Berman (2000)
Ser moderno eacute encontrar-se em um ambiente que promete aventura poder alegria crescimento autotransformaccedilatildeo e transformaccedilatildeo das coisas em redor ndash mas ao mesmo tempo ameaccedila destruir tudo o que temos tudo o que sabemos tudo o que somos (BERMAN 2000 p 15)
Nesse contexto de transformaccedilotildees e dinamismo da substituiccedilatildeo do
antigo pelo novo e da valorizaccedilatildeo do moderno aspectos expostos pelo autor
um dos fatores mais marcantes no campo das praacuteticas alimentares
contemporacircneas eacute a industrializaccedilatildeo dos alimentos e suas consequecircncias para
os comedores com suas benesses e problemas Este sistema apresenta um
73
novo jeito de vivenciar as praacuteticas alimentares no mundo contemporacircneo
sugerindo a ideia de praticidade e economia de tempo A induacutestria de alimentos
pode ser considerada um dos mais importantes promotores de mudanccedilas nos
haacutebitos alimentares das sociedades industriais Mudanccedilas essas que trazem
consequecircncias importantes como as que satildeo discutidas a seguir por Arnaiz
(2015) Pollan (2014) Silva Mello (1956) Cacircmara Cascudo (2004) e De Garine
(1987)
Para Arnaiz (2005) em relaccedilatildeo ao acesso aos alimentos a induacutestria
possui aspectos que podem ser considerados positivos e negativos Dentre os
positivos ela destaca o custo relativamente baixo de obtenccedilatildeo dos bens
alimentares pelos consumidores dos paiacuteses ocidentais industrializados e
tambeacutem a algumas parcelas populacionais dos paiacuteses em processo de
industrializaccedilatildeo Outro fator segundo a autora eacute que a tecnologia de produccedilatildeo
e organizaccedilatildeo da induacutestria de alimentos beneficiou os consumidores que
passaram a contar com maior diversidade de alimentos
A diversificaccedilatildeo alimentar eacute supostamente mais saudaacutevel em termos nutricionais uma vez que permite obter a adequaccedilatildeo de certos nutrientes e evita por exemplo doenccedilas como a pelagra que durante o seacuteculo XIX disseminou-se nas populaccedilotildees mais pobres que tinham o milho como base de sua alimentaccedilatildeo ou ainda doenccedilas como o cretinismo e o boacutecio ateacute recentemente (ARNAIZ 2005 p 148-149)
Para a autora algumas situaccedilotildees negativas se contrastam com as
positivas Cita por exemplo que apesar do acesso aos produtos em termos de
disponibilidade e a um preccedilo relativamente baixo a manutenccedilatildeo da
desigualdade social limita o acesso a muitos desses alimentos Outros fatores
destacados pela autora incluem ainda ldquoa diferenciaccedilatildeo conforme a bagagem
sociocultural que condiciona certos estilos alimentares de grupos de indiviacuteduos
e a persistecircncia das heterogeneidades intra e interterritorial e socialmente
verticalrdquo (ARNAIZ 2005 p 149)
Outro aspecto positivo mas natildeo citado pela autora diz respeito agraves
praticidades e facilidades geradas pela industrializaccedilatildeo dos alimentos Este tipo
de alimento jaacute preacute-processado contribuiu para reduzir o peso do trabalho
domeacutestico que historicamente e tradicionalmente era atribuiacutedo exclusivamente
agraves mulheres Poreacutem o lado positivo da comida industrializada como facilitadora
do dia-a-dia natildeo neutraliza outros fatores negativos tanto do aspecto
74
sociocultural como no aspecto da sauacutede humana conforme apontado por Pollan
(2014) Silva Mello (1956) e Cacircmara Cascudo (2004)
Pollan (2014) destaca o peso da comida industrializada para a sauacutede e
bem-estar humanos ao argumentar que as grandes empresas alimentiacutecias
processam alimentos o que para o autor eacute diferente de produzi-los Ele alerta
para o excesso de sal accediluacutecar e gordura nos produtos processados
industrialmente aleacutem dos produtos quiacutemicos que permitem maior durabilidade
aos alimentos nas prateleiras dos supermercados
Em um sentido semelhante Silva Mello (1956) defende a manutenccedilatildeo
de aspectos importantes da tradiccedilatildeo alimentar tanto para a sauacutede como para a
cultura ao criticar o excesso de modificaccedilotildees provocadas pela induacutestria
alimentar como por exemplo a transformaccedilatildeo do accediluacutecar natural escuro e grosso
em branco refinado e as vitaminas em caacutepsulas como discorre em seu livro
lsquoAlimentaccedilatildeo Instinto Culturarsquo ldquoNatildeo eacute com vitaminas que se mata a fome A
culinaacuteria jaacute que a alimentaccedilatildeo eacute a condiccedilatildeo vital do homem se impotildee como
obrigaccedilatildeo cultural () A chamada poliacutetica cultural comeccedila pela comidardquo (SILVA
MELLO 1956 p 622)
Focando o prejuiacutezo agrave sauacutede dos jovens no Brasil Cacircmara Cascudo
(2004) faz ressalvas agrave praacutetica alimentar moderna que eacute adotada por esse grupo
Para o autor os jovens tecircm maior atraccedilatildeo pelas refeiccedilotildees raacutepidas e substituiccedilatildeo
por lanches Possuem escassez de tempo para participar dos momentos sociais
familiares destinados agrave alimentaccedilatildeo pois sempre tecircm atividades e
compromissos caracteriacutesticos dessa fase da vida Na era dos lanches raacutepidos
eles acabam ldquoperdendo a personalidade do paladar sua fisionomia exigecircncias
predileccedilotildees simpatias Habituam-se agrave comida vulgar e venal raacutepida atendendo
aos reclamos imediatos do estocircmagordquo (p 350) Afirma ainda
Natildeo eacute o alimento em si na potecircncia intriacutenseca de sua substacircncia a fonte isolada da forccedila vital Satildeo os elementos psicoloacutegicos decorrentes da refeiccedilatildeo Cada vez menos refeiccedilatildeo e cada vez mais comidas faacuteceis encontraacuteveis vendidas nos botequins elegantes ou nas cantinas universitaacuterias (CAcircMARA CASCUDO 2004 p 348)
Muitas informaccedilotildees tecircm sido veiculadas nos uacuteltimos anos sobre a
relaccedilatildeo sauacutede-alimentaccedilatildeo referindo-se sobretudo aos alimentos
industrializados No Brasil o ldquoGuia Alimentar para a Populaccedilatildeo Brasileirardquo
publicado em 2006 com uma caracteriacutestica prioritariamente quantitativa foi
75
atualizado em 2014 trazendo um perfil mais qualitativo do que o primeiro e
discute sobre os perigos agrave sauacutede de uma alimentaccedilatildeo baseada em uma dieta de
produtos muito processados ou seja industrializados ao mesmo tempo em que
oferece sugestotildees mais saudaacuteveis para melhorar a qualidade de vida alimentar
da populaccedilatildeo evitando-se frituras e alimentos com grande quantidade de
aditivos quiacutemicos O Guia Alimentar sugere aos comedores uma priorizaccedilatildeo
pelos alimentos in natura e uma maior aproximaccedilatildeo com uma cultura alimentar
mais voltada agraves praacuteticas tradicionais
De Garine (1987) natildeo acredita que o consumo de alimentos
industrializados eacute adotado de maneira generalizada pelas pessoas seja de
forma individualizada seja por grupo familiares Para o autor se por um lado eacute
verdadeiro que a globalizaccedilatildeo tem propiciado uma homogeneizaccedilatildeo dos haacutebitos
alimentares por outro observa-se tambeacutem a permanecircncia da tradiccedilatildeo alimentar
com seus modelos locais de alimentaccedilatildeo A manutenccedilatildeo da tradiccedilatildeo alimentar
estaacute ligada agrave identificaccedilatildeo com as raiacutezes culturais que satildeo passadas por
geraccedilotildees e se esforccedilam por manter alguns rituais e simbologias dessa tradiccedilatildeo
alimentar e portanto natildeo cedendo prontamente ou totalmente aos apelos da
induacutestria pela adoccedilatildeo completa dos alimentos processados Assim para esse
autor natildeo eacute correto generalizar o poder da industrializaccedilatildeo de alimentos pois a
cultura local e a tradiccedilatildeo oferecem um peso que pode tambeacutem influenciar nas
escolhas alimentiacutecias Neste sentido o autor defende inclusive que os paiacuteses
em desenvolvimento se livrem de boa parte do peso das importaccedilotildees valorizando
os alimentos autoacutectones Na percepccedilatildeo deste autor existem dois tipos de
comedores Aqueles que tentam manter uma relaccedilatildeo tradicional e aqueles que
buscam pelo moderno
Possivelmente Gilberto Freyre concordaria com essa conclusatildeo de De
Garine pois era defensor da tradiccedilatildeo culinaacuteria como forma importante de
manutenccedilatildeo e continuidade de uma identidade regional e nacional Em texto
escrito em 1924 e publicado em ldquoTempo de Aprendizrdquo (1979) defende que ldquoo
paladar eacute talvez o uacuteltimo reduto do espiacuterito nacional quando ele se
desnacionaliza estaacute desnacionalizado tudo o maisrdquo (p 367) O autor tratou
sobretudo da cozinha e da comida nordestina de Pernambuco Em seu
ldquoManifesto Regionalistardquo (1996) ndash lido para a plenaacuteria durante o 1ordm Congresso
Brasileiro de Regionalismo ocorrido em Recife em 1926 ndash o maior destaque
76
sobre a importacircncia de se manter a tradiccedilatildeo foi dado agrave parte culinaacuteria Nele
Freyre propotildee uma retomada agrave valorizaccedilatildeo da cozinha regional seus modos de
fazer e de suas praacuteticas Apoacutes discorrer longamente e detalhadamente sobre
as caracteriacutesticas da culinaacuteria pernambucana ele conclui
Feitos estes reparos estou inteiramente dentro de um dos assuntos que me pareceu dever ser versado por algueacutem neste congresso os valores culinaacuterios do Nordeste A significaccedilatildeo social e cultural desses valores A importacircncia deles quer dos quitutes finos quer dos populares A necessidade de serem todos defendidos pela gente do Nordeste contra a crescente descaracterizaccedilatildeo da cozinha regional (FREYRE 1996 p 59)
No entanto esta natildeo eacute a percepccedilatildeo para outros autores que defendem
a existecircncia de um terceiro movimento mais coerente e menos radical que
privilegia a comunicaccedilatildeo entre tradiccedilatildeo e modernidade alimentar Afirmam isso
baseando-se nas raacutepidas transformaccedilotildees que ocorrem no campo da
alimentaccedilatildeo Observam que os espaccedilos para os contornos tradicionais da
produccedilatildeo da comida e dos modos de comer vatildeo sendo diluiacutedos poreacutem natildeo se
extinguem embora ao analisar a tradiccedilatildeo na oacutetica de um mundo em constante
mudanccedila surge sempre a duacutevida sobre a sua capacidade de permanecer
Assim Doacuteria (2014) Giddens (2012) Garciacutea Canclini (2013) Cacircndido (1982)
Cacircmara Cascudo (2004) e Giard (2012) defendem que a modernidade
pressupotildee e impotildee mudanccedilas de formato mas natildeo necessariamente isso
significa o rompimento absoluto com os moldes tradicionais Para estes o
caminho mais interessante eacute o de uma complementaridade pela convivecircncia dos
ldquofatores de persistecircncia ou permanecircncia que contribuem para a continuidade
dos modos tradicionais de vida (praacuteticas e saberes alimentares) com os de
transformaccedilatildeo que representam a incorporaccedilatildeo aos padrotildees modernosrdquo
(CAcircNDIDO 1982 p 200)
Doacuteria (2014) estimula um novo caminho para a culinaacuteria a junccedilatildeo da
tradiccedilatildeo com a inovaccedilatildeo pois a inovaccedilatildeo natildeo existe sem a tradiccedilatildeo natildeo se
chega a uma culinaacuteria dita como ldquonovardquo sem conhecer profundamente os
segredos da tradiccedilatildeo Assim pressupotildee-se a necessidade de um terceiro
caminho uma mescla culinaacuteria possiacutevel na qual o tradicional incorpore
elementos modernos e vice-versa
Sobre o potencial de as tradiccedilotildees alimentares resistirem ocupando
outros espaccedilos ou seja unindo-se ao moderno Poulain (2013 p 35) acena
77
esperanccedilosamente que ldquoa histoacuteria da alimentaccedilatildeo mostrou que cada vez que
identidades satildeo postas em perigo a cozinha e as maneiras agrave mesa satildeo os
lugares privilegiados de resistecircnciardquo
Em sentido semelhante ao exposto acima por Jean Pierre Poulain
Cacircmara Cascudo (2004) defende o peso da tradiccedilatildeo ldquoEspero mostrar a
antiguidade de certas predileccedilotildees alimentares que os seacuteculos fizeram haacutebitos
explicaacuteveis como uma norma de uso e um respeito de heranccedila dos mantimentos
da tradiccedilatildeordquo (p 14) No entanto diferentemente de Gilberto Freyre que defendia
uma tradiccedilatildeo culinaacuteria irretocaacutevel Luiacutes da Cacircmara Cascudo apesar de defensor
das tradiccedilotildees alimentares parecia compreender de forma menos resistente do
que Freyre que a inserccedilatildeo de atributos modernos no campo alimentar se
ampliaria para o bem e sobretudo para o mal segundo as observaccedilotildees
negativas do autor a respeito Mas ele entendia a necessidade de que isso
passasse a ser administrado ao inveacutes de puramente combatido
No povo haacute dois elementos autocircmatos e harmocircnicos coexistentes no assunto alimentar O primeiro estaacutetico basilar tiacutepico indeformaacutevel O segundo renovaacutevel dinacircmico plaacutestico Dos primeiros alguns podem desaparecer ou constituir uso minoritaacuterio Dos segundos outros descem agrave estratificaccedilatildeo tornando-se tradicionais superpondo-se imediatamente agrave camada profunda dos velhos usos participando do antigo patrimocircnio preferencial Essa mecacircnica regulariza a permanecircncia do cardaacutepio familiar Todos os grupos humanos tecircm uma fisionomia alimentar (CAcircMARA CASCUDO 2004 p 373)
Para Garciacutea Canclini (2013) a busca por aspectos tradicionais na
contemporaneidade sinaliza uma necessidade de distanciamento dos indiviacuteduos
com o excesso de modernidade e a inseguranccedila vivida no mundo
contemporacircneo No que se refere a alimentaccedilatildeo as inseguranccedilas ou
desconfianccedilas natildeo satildeo poucas Isso talvez explique a busca que tem ocorrido
pela comida de nossos antepassados
Natildeo obstante o tradicionalismo aparece muitas vezes como recurso para suportar as contradiccedilotildees contemporacircneas Nessa eacutepoca em que duvidamos dos benefiacutecios da modernidade multiplicam-se as tentaccedilotildees de retornar a algum passado que imaginamos mais toleraacutevel Frente agrave impotecircncia para enfrentar as desordens sociais o empobrecimento econocircmico e os desafios tecnoloacutegicos frente agrave dificuldade para entendecirc-los a evocaccedilatildeo de tempos remotos se reinstala na vida contemporacircnea arcaiacutesmos que a modernidade havia substituiacutedo (GARCIacuteA CANCLINI 2013 p 166)
78
Outro exemplo para que a tradiccedilatildeo mantenha sua importacircncia social e
de formaccedilatildeo da sociedade brasileira pode ser demonstrado atraveacutes das Leis de
Incentivo agrave cultura e ao patrimocircnio cultural valorizando tanto a culinaacuteria tiacutepica
quanto o turismo rural com foco na tradiccedilatildeo local No campo alimentar a forma
artesanal de fazer o queijo mineiro e o oficio das baianas do acarajeacute satildeo
exemplos de alimentos que estatildeo entre os patrimocircnios imateriais do paiacutes
catalogados pelo IPHAN (Instituto do Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional)
Outros saberes envolvendo a comida e a cultura encontram-se na lista de
espera Eacute o caso da produccedilatildeo de doces tradicionais pelotenses do modo de
fazer tradicional da cajuiacutena do Piauiacute e o saber fazer do queijo artesanal serrano
de Santa Catarina e Rio Grande do Sul Em niacutevel mundial muitas cozinhas
internacionais jaacute satildeo consideradas Patrimocircnio Imaterial da Humanidade pela
Unesco como eacute o caso das cozinhas Mexicana Francesa e Mediterracircnea
(Greacutecia Itaacutelia Espanha e Marrocos)
Pelo objetivo deste trabalho eacute fundamental dar continuidade agrave discussatildeo
no presente item analisando os reflexos dos haacutebitos alimentares
contemporacircneos sobre as dinacircmicas especificamente rurais buscando
compreender como o rural na atualidade se comporta diante das praacuteticas
alimentares tradicionais e modernas
35 Modernidade e tradiccedilatildeo no contexto alimentar rural contemporacircneo
Ao longo de sua histoacuteria pode-se dizer que o Brasil eacute um paiacutes de muitos
rurais por sua dimensatildeo geograacutefica por suas regiotildees de clima diferenciados e
formaccedilatildeo cultural diversa como exposto por Del Priore e Venacircncio (2006) o
Brasil eacute formado por
Grupos sociais em suas interconexotildees territoriais grupos que satildeo filhos de uma histoacuteria ou seja de um conjunto de costumes comuns ligados agrave religiatildeo ritos mitos praacuteticas econocircmicas crenccedilas teacutecnicas e usos do corpo relacionados com as culturas agriacutecolas ou com a criaccedilatildeo de animais (DEL PRIORE VENAcircNCIO 2006 p 14)
Esses muitos rurais implicam tambeacutem em haacutebitos e praacuteticas alimentares
peculiares Alimentos e praacuteticas que satildeo valorizados em uma determinada
cultura rural pode ser desinteressante para outra Outras tantas caracteriacutesticas
poreacutem podem se assemelhar No entanto eacute cada vez mais tecircnue a linha que
79
separa o rural do urbano e o dinamismo parece ser constante atualmente na
maior parte desses rurais Isso tem gerado a necessidade de reorganizaccedilatildeo do
trabalho e da vida cotidiana das famiacutelias como demonstram as anaacutelises
desenvolvidas por Graziano da Silva (1997) Wanderley (2000 e 2010) e Carneiro
(2005)
Definir o que eacute cultura rural hoje eacute um desafio Segundo Camarano e
Abramovay (1998 p 46) natildeo existe um criteacuterio universal que seja vaacutelido para
definir as fronteiras entre o rural e o urbano e que essa definiccedilatildeo varia de paiacutes a
paiacutes Assim ldquono Brasil eacute considerado como situaccedilatildeo rural os domiciacutelios e a
populaccedilatildeo recenseada que abrange toda a aacuterea fora do considerado urbano
inclusive os aglomerados rurais de extensatildeo urbana os povoados e os nuacutecleosrdquo
Mas esse criteacuterio natildeo explica por si soacute a cultura rural contemporacircnea incluindo
as suas praacuteticas alimentares
Carneiro (2005 p 8) considera outros aspectos para aleacutem da definiccedilatildeo
de limites geograacuteficos entre as duas categorias Segundo a autora durante muito
tempo a oposiccedilatildeo entre o rural e o urbano prevaleceu para a sociologia rural
como abordagem teoacuterico-conceitual em que o rural era determinado pela
ldquocentralidade na atividade agriacutecola isolamento geograacutefico e cultural fraca
mobilidade etcrdquo e tambeacutem o espaccedilo de manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo da tradiccedilatildeo e
dos costumes Mais correto seria dizer por concordarmos com a percepccedilatildeo da
autora de que nos tempos atuais natildeo cabe mais classificar categorias como
rural ou urbano partindo apenas de justificativas de limites geograacuteficos que uma
determinada populaccedilatildeo ocupa mas sim pelas relaccedilotildees sociais que se datildeo no
interior desses espaccedilos Reportando ao trabalho de Marc Mormont Carneiro
(2005) apresenta a distinccedilatildeo entre o rural como categoria analiacutetica e como
categoria operacional destacando que a dificuldade em pensar o rural estaacute no
uso do termo que eacute feito tanto por pesquisadores e na academia quanto por
agecircncias que elaboram estatiacutesticas e ainda utilizada no senso comum
Nos termos de Mormont as propriedades do rural satildeo possibilidades simboacutelicas mas tambeacutem possibilidades praacuteticas Elas orientam as praacuteticas sociais sobre um determinado espaccedilo de acordo com os significados simboacutelicos que lhes satildeo atribuiacutedos sendo portanto inuacutetil procurar em uma realidade fiacutesica econocircmica ou ecoloacutegica os fundamentos de uma ruralidade Tambeacutem seria inuacutetil procurar nesta realidade apenas um imaginaacuterio que faria do rural uma pura construccedilatildeo mental (CARNEIRO 2005 p 9)
80
Nos interessa compreender nessa discussatildeo teoacuterica o que prevalece no
rural contemporacircneo brasileiro uma continuidade atrelada aos modos
tradicionais dos modos de vida e a reproduccedilatildeo social destacando aquelas
questotildees relacionadas agraves praacuteticas alimentares Ou por outro lado se a
aproximaccedilatildeo com o urbano tem transformado o rural a ponto de se estar
perdendo algumas peculiaridades e tradiccedilotildees que historicamente foram
construiacutedas Para instrumentalizar essa anaacutelise torna-se necessaacuteria uma
reflexatildeo sobre a dinacircmica no mundo rural
351 A dinacircmica do rural entre a tradicional e o moderno
Segundo Carneiro (1998 e 2005) compreender o dinamismo que ocorre
no campo eacute importante no sentido de natildeo congelar o conceito de rural como uma
categoria imutaacutevel onde seus habitantes sejam incapazes ldquode absorver e de
acompanhar a dinacircmica da sociedade em que se insere e de se adaptar agraves novas
estruturas sem contudo abrir matildeo de valores visatildeo de mundo e formas de
organizaccedilatildeo social definidas em contextos soacutecio-histoacutericos especiacuteficosrdquo
(CARNEIRO 1998 p 1) A autora tambeacutem argumenta sobre a possibilidade e a
ocorrecircncia de uma nova ruralidade aquela que eacute capaz de fazer conviver com
os reflexos do moderno sobre o tradicional sem que isso signifique um
rompimento com a tradiccedilatildeo descaracterizando o rural Tampouco cabe falar em
uma volta ao passado mas sim do surgimento de uma ruralidade que resgate
determinadas praacuteticas do passado cujo conhecimento pertence aos mais
velhos
Desvendar os distintos significados socialmente atribuiacutedos a espaccedilos e manifestaccedilotildees culturais tidos como rurais sinaliza uma perspectiva de que o mundo rural natildeo estaria sucumbindo agraves pressotildees do universo urbano nem representaria uma ruptura com o urbano Esse processo entendido superficialmente por alguns como de ldquourbanizaccedilatildeordquo do campo produziria novas sociabilidades e novas identidades sociais que dificilmente caberiam em uma uacutenica classificaccedilatildeo mas que continuam a ser representadas socialmente como rurais (CARNEIRO 2005 p 9)
O que os estudos dos autores citados aqui tecircm apontado eacute que as
oposiccedilotildees entre rural e urbano natildeo devem mais ser usadas para pensar a
ruralidade atual brasileira Para Brandemburg (2010) o mundo rural se insere no
processo de modernizaccedilatildeo e ateacute busca por ele mas sem deixar de lado
81
totalmente o modo tradicional de vida Essa coexistecircncia significa a necessidade
de seguir resolvendo os conflitos que surgem a partir dessa dinacircmica O autor
defende que existam rurais em tempos diferentes no Brasil mas que ldquopersistem
ora na sua forma tiacutepica ora sobrepostos ora expressos na forma de um rural
novo reconstruiacutedo ou reflexivordquo (BRANDEMBURG 2010 p 423) O autor cita
Wanderley (1996) quando discorre que este rural reconstruiacutedo eacute aquele em que
o moderno natildeo substitui ou extingue o tradicional mas lhe permite passar por
ressignificaccedilotildees e que se reorganiza socialmente em um grupo ou comunidade
local
Algumas mudanccedilas que vem ocorrendo no meio rural podem alterar os
modos de vida e interferir nas escolhas alimentares das famiacutelias rurais A
facilidade de acesso ao comeacutercio da cidade mais proacutexima ou agrave existecircncia do
comeacutercio na proacutepria comunidade pode gerar interesse em consumir alguns
alimentos que natildeo faziam parte da dieta em tempos passados como os produtos
processados Alguns siacutembolos do estilo de vida moderno chegam mais
facilmente agraves famiacutelias rurais como o uso dos eletrodomeacutesticos que equipam a
cozinha facilitando o trabalho e a reproduccedilatildeo das praacuteticas alimentares como
por exemplo o fogatildeo a gaacutes e a geladeira
Referimos muito no presente trabalho agrave dicotomia ldquopraacuteticas alimentares
contemporacircneasrdquo e como contraponto a existecircncia de uma praacutetica voltada ao
tradicional Assim o tradicional e o novo (ou moderno) surgem como aspectos
importantes agraves vezes conflitantes agraves vezes em interaccedilatildeo Refletir sobre o
mundo moderno pensar sobre modernidade eacute pensar tambeacutem em passado em
tradiccedilatildeo Poreacutem natildeo se pode afirmar que o moderno implica na morte da
tradiccedilatildeo isso foi apontado por Doacuteria (2014) Montanari (2008) e Giard (2012)
Ao analisar-se um tema em que se evidenciem traccedilos de oposiccedilatildeo e ou
de relaccedilatildeo entre o tradicional e o moderno percebe-se que haacute uma tendecircncia
no senso comum em acreditar que a modernidade eacute capaz de extinguir a
tradiccedilatildeo Poreacutem estudiosos do assunto como Giddens (2012) Bartolomeacute (2006)
e Garciacutea Canclini (2013) tecircm mostrado que o caminho mais interessante e que
estaacute em evoluccedilatildeo eacute uma ligaccedilatildeo entre os dois polos da questatildeo
Para Giddens (1991) o tradicional eacute quase sempre atrelado ao passado
idealizado mas que por sua vez se torna dinacircmico com o processo de
82
modernizaccedilatildeo e de novas interpretaccedilotildees dadas pelas geraccedilotildees que recebem os
conhecimentos e experiecircncias vividas por seus antepassados
Nas culturas tradicionais o passado eacute honrado e os siacutembolos valorizados porque contecircm e perpetuam a experiecircncia de geraccedilotildees A tradiccedilatildeo eacute um modo de integrar a monitoraccedilatildeo da accedilatildeo com a organizaccedilatildeo tempo-espacial da comunidade A tradiccedilatildeo natildeo eacute inteiramente estaacutetica porque ela tem que ser reinventada a cada nova geraccedilatildeo conforme esta assume sua heranccedila cultural dos precedentes (GIDDENS 1991 p 31)
Em semelhante linha de pensamento Bartolomeacute (2006) entende a
tradiccedilatildeo como um importante veiacuteculo para se recriar identidades Em seu
continuo processo de construccedilatildeo e reconstruccedilatildeo as identidades mesclam
aspectos do passado com os elementos do presente no mundo contemporacircneo
aleacutem de enfrentar as mudanccedilas necessaacuterias para construir novas relaccedilotildees entre
o tradicional e o moderno ldquoEm um de seus niacuteveis implica uma busca no passado
para instituir uma nova relaccedilatildeo com a realidade contemporacircneardquo (BARTLOMEacute
2006 p 58)
Giddens (2012) e Simsom (2003) nos falam sobre o papel da tradiccedilatildeo e
da transmissatildeo dos saberes de uma geraccedilatildeo a outra feita com a presenccedila dos
ldquoguardiatildeesrdquo Para Giddens (2012) tradiccedilatildeo e memoacuteria andam juntas A tradiccedilatildeo
possui ldquoguardiatildeesrdquo e combina o conteuacutedo moral com o emocional O autor
entende a memoacuteria como um processo ativo e natildeo apenas como lembranccedila
Processo ativo porque as memoacuterias satildeo continuamente reproduzidas por esses
guardiatildees que lhes conferem um modo de continuidade das experiecircncias A
presenccedila desses guardiatildees se torna ainda mais importante no mundo
contemporacircneo para que as experiecircncias passadas seus erros e acertos natildeo se
percam da sociedade
Se nas culturas orais as pessoas mais velhas satildeo o repositoacuterio (e tambeacutem frequentemente os guardiatildees) das tradiccedilotildees natildeo eacute apenas porque as absorveram em um ponto mais distante no tempo que as outras pessoas mas porque tecircm tempo disponiacutevel para identificar os detalhes dessas tradiccedilotildees na interaccedilatildeo com os outros da sua idade e ensinaacute-las aos jovens Por isso podemos dizer que a memoacuteria eacute um meio organizador da memoacuteria coletiva (GIDDENS 2012 p 100-101)
Eacute possiacutevel considerar que muitas tradiccedilotildees tecircm sua origem no rural O
rural do passado com caracteriacutesticas muito tradicionais na produccedilatildeo e na
cultura eacute descrito e analisado por Cacircndido (1982) e Brandatildeo (1981) Antocircnio
Cacircndido mostra um dos rurais brasileiros com suas peculiaridades no que se
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refere a alimentaccedilatildeo e a cultura Em ldquoParceiros do Rio Bonito estudo sobre o
caipira paulista e a transformaccedilatildeo dos seus meios de vidardquo o autor apresenta
suas anaacutelises antropoloacutegicas e socioloacutegicas do modo de vida caipira
Neste estudo o autor mostra detalhadamente os modos de vida do
grupo pesquisado seus meios de subsistecircncia a forma tradicional de conduccedilatildeo
dos trabalhos agriacutecolas a composiccedilatildeo de sua alimentaccedilatildeo e seus recursos para
obtecirc-la a cultura caipira as formas de solidariedade o cotidiano do trabalho rural
do momento de acordar sair para o trabalho ao momento de retornar ao siacutetio
No aspecto da comensalidade nos chama a atenccedilatildeo as observaccedilotildees do
autor para a praacutetica alimentar do agricultor estudado por ele que no dia a dia
levava o seu almoccedilo em marmita depositada no embornal para ser consumido
no local de trabalho Os momentos das refeiccedilotildees em famiacutelia na cozinha ficavam
restrito aos domingos
O uso da marmita eacute tambeacutem a realidade de muitas outras aacutereas rurais e
tambeacutem urbanas no Brasil em tempos passados em periacuteodo de grande
movimentaccedilatildeo no campo onde o trabalho era realizado muito distante da
habitaccedilatildeo Atualmente isso permanece e nas aacutereas urbanas tambeacutem eacute uma
praacutetica muita utilizada pelos trabalhadores Mas a comensalidade pode se dar
no local do trabalho havendo outras pessoas na mesma atividade Como jaacute visto
anteriormente para ocorrer a comensalidade natildeo eacute necessaacuterio que o espaccedilo
fiacutesico seja a habitaccedilatildeo
Em relaccedilatildeo ao tipo de comida Cacircndido (1982) descreve uma
alimentaccedilatildeo simples baseada no arroz feijatildeo milho aboacutebora e a mandioca
frutas como jabuticaba e verduras como a couve eram as mais comuns Do mato
se coletava o palmito e se caccedilava a carne Esse tipo de alimentaccedilatildeo natildeo difere
do que Cacircmara Cascudo (2004) descreve como sendo os elementos baacutesicos da
alimentaccedilatildeo presentes na cozinha rural brasileira sendo comum tambeacutem o
cultivo de verduras legumes e frutas para consumo proacuteprio da famiacutelia bem como
a produccedilatildeo de animais sobretudo a galinha e o porco A banha do porco era
usada no lugar do oacuteleo de cereais os animais eram alimentados com milho e
outros produtos plantados e colhidos no quintal
O mesmo tipo de dieta foi descrito por Brandatildeo (1981) em sua pesquisa
com lavradores na regiatildeo de Goiacircnia na deacutecada de 1970 Ao autor destaca que
a dieta das famiacutelias rurais tambeacutem consistia basicamente de arroz feijatildeo milho
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e mandioca os produtos da horta do quintal (legumes e verduras) frutas
tubeacuterculos carne de porco de aves de caccedila e de peixes Com exceccedilatildeo da caccedila
e do peixe todos os outros itens eram produzidos por elas no entorno da
moradia
O rural tratado por Cacircndido (1982) e por Brandatildeo (1981) produz mais do
que alimentos produz um modo de vida que eacute rico em significados e simbologias
que orienta a reproduccedilatildeo social das famiacutelias rurais
Entre lavradores cuja atividade econocircmica estaacute quase toda dentro dos limites da produccedilatildeo diaacuteria e sazonal de comida para a famiacutelia o alimento e tudo o que envolve o acesso a ele aparecem como agentes reguladores entre o homem e o seu mundo Praticamente todo o seu trabalho eacute dirigido a obter alimentos para uma dieta cujos ingredientes produzem conservam ou comprometem as suas condiccedilotildees pessoais de presenccedila em esferas sociais de relaccedilotildees entre produtores de alimentos (BRANDAtildeO 1981 p 148)
No rural contemporacircneo natildeo se pode mais afirmar que a tradiccedilatildeo eacute
determinante nem que se manteacutem encerrada fechada num mundo agrave parte
conforme jaacute apontado por Brandemburg (2010) e Wanderley (1996) embora
muitos costumes ritos praacuteticas alimentares e de reproduccedilatildeo social e econocircmica
se mantenham Isso se aplica tambeacutem agraves praacuteticas alimentares cabendo agraves
famiacutelias rurais fazerem suas escolhas Escolhas essas que natildeo satildeo tatildeo simples
considerando um universo de possibilidades e a proacutepria dificuldade de opccedilatildeo do
ser humano diante do mundo moderno
Nesse universo de possibilidades de escolhas alimentares os
consumidores contemporacircneos buscam escolher aquilo que mais lhes
apetecem de acordo com razotildees de ordem cultural simboacutelica econocircmica social
etc
La variabilidad de las elecciones alimentarias humanas procede sin duda en gran medida de la variabilidad de los sistemas culturales si no consumimos todo lo que es bioloacutegicamente comestiblese debe a que todo lo que es bioloacutegicamente comible no es culturalmente comestible (FISCHLER 1995 p 33)
Segundo o autor as muitas opccedilotildees no processo de escolha geram
anguacutestias alimentares que eacute uma caracteriacutestica do comensal moderno
Inclusive porque ele tem consciecircncia de uma seacuterie de riscos no campo
alimentar sobretudo os riscos que o alimento pode causar agrave sua sauacutede
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As discussotildees sobre ruralidade no Brasil natildeo satildeo conclusivas no sentido
de afirmar que o peso da tradiccedilatildeo alimentar se impotildee Especificamente sobre
haacutebitos alimentares das populaccedilotildees rurais no Brasil contemporacircneo haacute
necessidade de ampliar o leque de abrangecircncia e regiotildees de estudo No
levantamento que fiz para a presente pesquisa verifiquei que os estudos sobre
alimentaccedilatildeo no meio rural tecircm sido de caraacuteter regional a maior parte na regiatildeo
Sul do Paiacutes Outra informaccedilatildeo que verifiquei eacute uma variedade de estudos sobre
alimentaccedilatildeo elaborados com consumidores na aacuterea urbana Assim o que
existem de estudos sobre praacuteticas alimentares no meio rural satildeo apontamentos
importantes e relevantes poreacutem ainda incipientes para que que sejam capazes
de definir uma realidade sobre praacuteticas alimentares para todo o rural brasileiro
Se por um lado haacute autores que apontam para uma tendecircncia a uma
homogeneizaccedilatildeo alimentar nas sociedades ocidentais e por outro aqueles que
reforccedilam a importacircncia da tradiccedilatildeo e em sua capacidade de se sobrepor haacute uma
terceira posiccedilatildeo sobre a questatildeo Satildeo autores que percebem a possibilidade do
meio termo ou de uma convivecircncia entre os aspectos da contemporaneidade e
da tradiccedilatildeo no que se refere agrave alimentaccedilatildeo Doacuteria (2014) aponta que o tradicional
e o novo datildeo sinais de que sua interaccedilatildeo eacute fundamental Natildeo se inventam novas
comidas elas estatildeo sendo revisitadas e a induacutestria tem investido nisso
Aleacutem de Doacuteria (2014) Poulain (2013) e Lody (2008) partilham da opiniatildeo
de que mesmo que a cada dia modernas possibilidades alimentares ndash cujo foco
seja a ampliaccedilatildeo do consumo de alimentos processados e ultraprocessados ndash
ampliem seus espaccedilos na sociedade natildeo conseguimos abandonar
completamente os viacutenculos com os haacutebitos alimentares herdados dos pais e
avoacutes Haacute sempre aquele doce especial que a avoacute fazia aquele bolo que soacute se
comia na casa dos pais aquele jeito de comer que aprendemos na infacircncia e
por isso sentimos falta mesmo que adotemos um estilo de vida que nos afaste
cada vez mais do espaccedilo social alimentar domeacutestico Os indiviacuteduos se sentem
emocionalmente ligados aos haacutebitos alimentares de sua infacircncia em geral
marcados pela cultura tradicional
Assim apesar de estarem inseridas em uma cultura que lhes eacute peculiar
as famiacutelias rurais natildeo estatildeo imunes agraves influecircncias dos demais tipos culturais e
tambeacutem natildeo satildeo estaacuteticas como defende Carneiro (1998) Elas acompanham o
ritmo das mudanccedilas em sua realidade nas quais estatildeo incluiacutedas tambeacutem as
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praacuteticas alimentares Como bem define Elias (1994 p 145) ldquoa relaccedilatildeo entre
sociedade e indiviacuteduo eacute tudo menos imoacutevel Modifica-se com o desenvolvimento
da humanidaderdquo No sentido dado por Norbert Elias para a noccedilatildeo de habitus
social empregado agraves sociedades modernas ocidentais haacute uma tendecircncia para
a diminuiccedilatildeo das diferenccedilas regionais entre as pessoas agrave medida que o
desenvolvimento cria maiores possibilidades de integraccedilatildeo entre as regiotildees O
que natildeo implica obrigatoriamente em substituiccedilatildeo de todas as praacuteticas
tradicionais e adoccedilatildeo a outras
36 O papel feminino nas praacuteticas alimentares na famiacutelia
No processo de decisatildeo alimentar envolvendo o cardaacutepio cotidiano das
principais refeiccedilotildees e as aquisiccedilotildees a serem feitas no mercado eacute a mulher que
na maioria das vezes exerce o poder de decisatildeo embora tome as decisotildees
baseadas no gosto e nos haacutebitos familiares Isso eacute apontado em Arnaiz (1996)
Mennell et al (1992) Carrasco (1992) Freyre (1964 2006) Cacircmara Cascudo
(2004) e Giard (2012) Segundo Doacuteria (2012) mesmo apoacutes a revoluccedilatildeo industrial
e a inserccedilatildeo da mulher no mercado de trabalho a funccedilatildeo alimentar continuou
sendo atribuiacuteda como sendo da mulher
Arnaiacutez (1996) destaca que um dos fatores que contribuiacuteram para que a
relaccedilatildeo mulher ndash alimentaccedilatildeo ocorresse eacute a sua ligaccedilatildeo bioloacutegica com a
maternidade Historicamente a sociedade atribuiu ao papel feminino a
transmissatildeo natural dos trabalhos domeacutesticos e por consequecircncia os cuidados
com os membros da famiacutelia Dentre as atribuiccedilotildees femininas estaacute a de alimentar
seus filhos Citando Carrasco (1992) a autora destaca que a funccedilatildeo de satisfazer
as necessidades atraveacutes da alimentaccedilatildeo eacute primeiramente fisioloacutegica mas
possui tambeacutem outras ldquoSin embargo esta tarea comporta ademaacutes la
reproduccioacuten y satisfaccioacuten de otras relaciones sociales tales como identidade
reciprocidade comensalidade y comunicacioacuten que se expresan em cada uno de
los contenidos de las atividades que incorporardquo (CARRASCO 1992 apud
ARNAIZ 1996 p 31)
Segundo Arnaiz (1996) o papel atribuiacutedo socialmente agrave mulher como
responsaacutevel pela tarefa alimentar para aleacutem de fisioloacutegica encontra principal
argumento no final do seacuteculo XIX quando tanto na famiacutelia burguesa quanto na
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trabalhadora a funccedilatildeo era basicamente reprodutiva Diferentemente do espaccedilo
externo ao lar no qual repousava o objetivo de produccedilatildeo de mercadorias Assim
havia uma clara e explicita divisatildeo sexual do trabalho Ao homem (pai) cabendo
o papel de provedor e agrave mulher (matildee) o papel de reproduccedilatildeo tanto bioloacutegica
quanto social e a responsabilidade pela alimentaccedilatildeo e por outras necessidades
domeacutesticas dos membros da famiacutelia
Woortmann (1985) trata da divisatildeo tambeacutem dos espaccedilos fiacutesicos da
constituiccedilatildeo tradicional da famiacutelia Nessa percepccedilatildeo a famiacutelia supotildee a divisatildeo
do trabalho entre homens e mulheres e cria o espaccedilo do homem provedor como
aquele externo ao lar onde se constitui a relaccedilatildeo racional dos negoacutecios e da
ldquofriezardquo O espaccedilo da mulher como sendo o da casa o espaccedilo das relaccedilotildees
afetivas e portanto acolhedor encontrando dentre as atividades domeacutesticas a
responsabilidade pela elaboraccedilatildeo da comida como a mais caracteriacutestica
expressatildeo dessa afetividade Assim para o autor
O gecircnero eacute tambeacutem construiacutedo no plano das representaccedilotildees atraveacutes da percepccedilatildeo da comida A comida ldquofalardquo da famiacutelia de homens e de mulheres tanto para o antropoacutelogo que realiza a leitura consciente dos haacutebitos de comer como para os proacuteprios membros do grupo familiar ndash e atraveacutes deste ndash que realizam uma praacutetica inconsciente de um habitus alimentar (WOORTMANN 1985 p 2)
Ao atribuir diferenccedila de significado entre ldquocomidardquo e ldquomantimento o
autor mostra que essa diferenciaccedilatildeo tambeacutem possui conotaccedilatildeo de gecircnero pois
aleacutem de existir o antes e o depois da accedilatildeo culinaacuteria existe tambeacutem a conotaccedilatildeo
que envolve a mediaccedilatildeo masculina e a feminina O autor chama a atenccedilatildeo para
o que observou em seu estudo realizado com camponeses no Nordeste em que
mantimento era considerado um produto do roccedilado portanto de domiacutenio
masculino Mas esse mantimento se converteria em comida ao ser ldquoqueimado27rdquo
na cozinha que eacute compreendido como o espaccedilo feminino
O mantimento (natureza) eacute produto do roccedilado (cultura quando eacute oposto ao mato) pelo trabalho do homem Quando eacute queimado isto eacute quando de ldquocrurdquo passa a ldquocozidordquo processo que se realiza a casa domiacutenio da cultura mas no espaccedilo desta que corresponde agrave mulher (natureza) torna-se comida (cultura) Entatildeo o homem-cultura produz o mantimento-natureza e a mulher-natureza produz a comida-cultura (WOORTMANN 1985 p 9)
27 Expressatildeo muito utilizada pelos camponeses da regiatildeo nordeste segundo o autor
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Cacircmara Cascudo (2004) discute a identidade social feminina na histoacuteria
da alimentaccedilatildeo no Brasil O papel das mulheres indiacutegenas africanas e
portuguesas que produziram uma importante miscigenaccedilatildeo do paladar que tanto
caracteriza a cozinha brasileira Mulheres que foram responsaacuteveis tambeacutem ao
longo da histoacuteria pela transmissatildeo dos segredos e da diversidade culinaacuteria que
dominaram
A culinaacuteria brasileira tem suas raiacutezes nos saberes que foram repassados
por geraccedilotildees de mulheres desses trecircs grupos eacutetnicos e na junccedilatildeo dos seus
saberes De cada grupo eacutetnico que formou a populaccedilatildeo brasileira detalhes foram
herdados e levados agrave mesa familiar ao longo da histoacuteria Muito do que estaacute
presente em nossas praacuteticas alimentares cotidianas e em festejos especiais eacute
reflexo de transmissatildeo cultural e histoacuterica
Sobre a influecircncia e importacircncia da mulher indiacutegena para a alimentaccedilatildeo
Freyre (1964 p 132) a descreve como sendo natildeo apenas ldquoa base fiacutesica da famiacutelia
brasileira mas valioso elemento de cultura material e alimentar na formaccedilatildeo
brasileirardquo Vaacuterios alimentos usados ateacute os dias atuais remeacutedios caseiros
formatos de utensiacutelios de cozinha etc satildeo heranccedilas das mulheres indiacutegenas
Da cunhatilde eacute que nos veio o melhor da cultura indiacutegena O asseio pessoal A higiene do corpo O milho O caju O mingau As comidas preparadas agrave base de mandioca e que se tornaram a base do regime alimentar do colonizador O brasileiro de hoje amante do banho e sempre de pente e espelhinho no bolso o cabelo brilhante de loccedilatildeo ou de oacuteleo de coco reflete a influecircncia de tatildeo remotas avoacutes (FREYRE 1964 p 132)
Segundo o autor a culinaacuteria brasileira natildeo seria a mesma sem os
quitutes de origem indiacutegena Ele destaca como a mescla dos conhecimentos da
mulher indiacutegena e da mulher portuguesa que se deu nas cozinhas das casas
grandes foi importante para tornarem esses quitutes com sabor ldquoabrasileiradordquo
O autor ainda ressalta a contribuiccedilatildeo da cultura africana por meio das mulheres
africanas para a culinaacuteria brasileira Originam dessa cultura a introduccedilatildeo de
azeite de dendecirc pimenta malagueta quiabo farofa quibebe vatapaacute mungunzaacute
caruru milho assado acarajeacute pipoca cuscuz de peixe novas variedades de
preparo de peixes e da galinha alguns doces broas e patildees de milho Segundo
o autor muitas mulheres alforriadas tiravam seu sustento com os tabuleiros de
doces vendiam cocadas quindins matildees bentas etc Algranti (2007) menciona
que antes de se tornarem populares e vendidos em tabuleiros os doces eram
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considerados iguarias e apenas servidos em ocasiotildees especiais e eram por isso
demarcadores de distinccedilatildeo social
Assim como a junccedilatildeo dos saberes das mulheres indiacutegenas africanas e
portuguesas produziu comidas mais saborosas A troca de conhecimentos
propiciou novas adaptaccedilotildees aos pratos sobretudo aos doces A heranccedila
portuguesa no que se refere aos doces eacute muito forte segundo Freyre (2007)
mas era preciso a matildeo de obra e a intuiccedilatildeo das mulheres negras para dar o
toque certo nos pontos
Com sabores temperos supersticcedilotildees e haacutebitos das trecircs raccedilas que nos formaram a convivecircncia espontacircnea entre o cristal daquele accediluacutecar o sabor selvagem da fruta tropical e aquele que era o alimento baacutesico dos nossos iacutendios ndash a mandioca Juntando pilatildeo urupema saudade peneira de taquara raspador de coco esperanccedila colher de pau panela de barro mais a fartura de porcelana do oriente e bules e vasos de prata Eram doces preparados em tachos de cobre pesado heranccedila portuguesa largos quase trecircs palmos grandes duas alccedilas ardendo sobre velhos fogotildees a lenha Jovens negras tiravam os tachos pesados do fogo sem pedir ajuda As mais velhas usavam experiecircncia e sabedoria trazidas de terras distantes com olhares atentos para natildeo deixar o doce passar do ponto E sempre com aquela mesma forma de fazer ndash tranquila bem devagar sem pressa quase dolente (FREYRE 2007 p 13-14)
Bruit et al (2007) citam doces como as marmeladas goiabadas
rapaduras doces de frutas em calda acompanhados muitas vezes de queijo
como aqueles mais servidos nos jantares festivos que ocorriam nas casas-
grandes no interior de Satildeo Paulo e Minas Gerais Tanto as referecircncias de
Cacircmara Cascudo (2004) como as de Freyre (1964 2003 e 2007) revelam as
praacuteticas alimentares que ocorriam no Brasil colonial sobretudo nas casas-
grandes e dos sobrados que foram caracteriacutesticas primeiramente das regiotildees
dos engenhos de cana
Abdala (2007) afirma o controle da cozinha pelas mulheres no Brasil
colonial Referindo-se principalmente agraves escravas que viviam quase reclusas na
cozinha e por isso se tornaram personagem central na atividade da culinaacuteria
Segundo a autora essa era a realidade em Minas Gerais mas tambeacutem em
outras partes do paiacutes As escravas e as mulheres pobres executavam o serviccedilo
cotidiano Agraves senhoras ricas cabia dar as ordens e administrar os trabalhos
relativos agrave produccedilatildeo da comida Somente em algumas ocasiotildees elas se
dedicavam agrave elaboraccedilatildeo de algum prato ldquoEm casa no decorrer dos dias nas
festas intimas durante visitas como tambeacutem na rua no comeacutercio ambulante ou
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das vendas cabia agrave mulher toda a funccedilatildeo relacionada agrave comidardquo (ABDALA
2007 p 80) Essa condiccedilatildeo tambeacutem eacute apontada por Vasconcellos (1968) que
apresenta a mulher deste periacuteodo em Minas Gerais como a dona absoluta dos
seus domiacutenios no interior das casas que compreendia tambeacutem a cozinha local
onde o homem raramente acessava
O domiacutenio feminino dos grupos eacutetnicos indiacutegenas africanos e portuguecircs
eacute perceptiacutevel na alimentaccedilatildeo brasileira ainda nos dias de hoje muito embora
com a chegada dos imigrantes europeus e tambeacutem de outras regiotildees a partir
da metade do seacuteculo XIX mulheres de outras culturas trouxeram importantes
contribuiccedilotildees para a culinaacuteria brasileira Destacando as italianas e as alematildes
cuja influecircncia se iniciou no Sul do Brasil mas tambeacutem na cidade de Satildeo Paulo
No interior do estado do Espirito Santo e na regiatildeo serrana do Rio de Janeiro as
culturas italianas e alematildes tambeacutem tiveram papel importante na formaccedilatildeo das
praacuteticas alimentares locais
Segundo Claval (2001) os saberes culinaacuterios foram repassados
matrilinearmente ao longo da histoacuteria e foram feitos principalmente por oralidade
pelas mulheres que podem ser chamadas de as ldquoguardiatildesrdquo termo usado por
Giddens (2012) e Simson (2003) Muitas mulheres mais velhas que natildeo tiveram
a oportunidade de estudar e sabiam apenas assinar o proacuteprio nome guardavam
na memoacuteria as receitas de suas matildees e avoacutes Pode-se dizer que a transmissatildeo
pela oralidade parece contribuir mais para aproximar as geraccedilotildees pela relaccedilatildeo
de proximidade necessaacuteria entre as mulheres Independente da forma se
escritas ou orais o importante eacute a compreensatildeo de que receitas repassadas
pelas geraccedilotildees carregam tambeacutem uma histoacuteria rica em significados e
experiecircncias vividas pelas mulheres das geraccedilotildees Afinal como dito por Doacuteria
(2006 p 103) ldquoreceitas como meros lsquomodos de fazerrsquo satildeo inuacuteteisrdquo
Tambeacutem Giard (2012) atribui agraves mulheres ndash as guardiatildes da tradiccedilatildeo ndash a
influecircncia na preferecircncia por determinados pratos Somos ldquovisitadosrdquo pelos
sabores e cheiros que a memoacuteria muitas vezes insiste em trazer agrave tona as
comidas de tempos de infacircncia e juventude que nos reporta a ocasiotildees
especiacuteficas da vida Em pesquisa etnograacutefica realizada com mulheres dedicadas
a culinaacuteria a autora concluiu que
A aquisiccedilatildeo dos ingredientes a preparaccedilatildeo e as regras de compatibilidade podem muito bem mudar de uma geraccedilatildeo agrave outra mas
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o trabalho cotidiano das cozinhas continua sendo uma maneira de unir mateacuteria e memoacuteria vida e ternura instante presente e passado que jaacute se foi invenccedilatildeo e necessidade imaginaccedilatildeo e tradiccedilatildeo ndash gostos cheiros sabores formas consistecircncias atos gestos coisas e pessoas especiarias e condimentos (GIARD 2012 p 296)
Apesar do papel central da oralidade o caderno de receita eacute um
instrumento importante para se reportar aos haacutebitos alimentares de tempos
passados Talvez o primeiro registro de uma receita seja a que aponta Sitwell
(2012) Trata-se de um registro de 1700 aC na antiga Mesopotacircmia de uma
receita de ensopado de legumes e carne que foi esculpido em taacutebuas de argila
em fixada a um tuacutemulo Segundo Claval (2001) os registros de receitas em
cadernos tiveram iniacutecio em meados do seacuteculo XIX Haacute quem o tenha herdado
de pessoas da famiacutelia e mesmo que natildeo o utilize no dia-a-dia o manteacutem como
heranccedila afetiva
Abrahatildeo (2007) aponta que natildeo apenas receitas eram registradas em
muitos desses cadernos mas tambeacutem outras anotaccedilotildees necessaacuterias naquele
momento Ele menciona que as receitas culinaacuterias que foram arquivadas em
cadernos traziam ricas informaccedilotildees inclusive sobre outros aspectos
alimentares das eacutepocas como preccedilos ofertas e carecircncias temporaacuterias de
produtos
Atualmente e desde o surgimento da sociedade industrial as atividades
das mulheres passam por transformaccedilotildees com a saiacuteda para o mercado de
trabalho externamente ao lar a dupla jornada de trabalho as mudanccedilas sociais
poliacuteticas e econocircmicas que interferiram na dinacircmica da sociedade e
consequentemente na divisatildeo sexual do trabalho Isso propiciou a aproximaccedilatildeo
masculina da cozinha numa possiacutevel divisatildeo do trabalho domeacutestico espaccedilo
antes ocupado exclusivamente por mulheres Mas ainda assim segundo Doacuteria
(2012) a mulher eacute a principal responsaacutevel pela alimentaccedilatildeo da famiacutelia ldquoNatildeo haacute
duacutevidas de que ainda hoje a cozinha feminina eacute um dos pilares do poder da
mulher em que ela segue administrando a tradiccedilatildeo alimentar (DOacuteRIA 2012 p
255)
Segundo Giard (2012) ldquodentro de uma cultura uma mudanccedila das
condiccedilotildees materiais ou da organizaccedilatildeo poliacutetica eacute o que basta para modificar a
maneira de conceber e de repartir este tipo de tarefas cotidianas podendo
tambeacutem alterar a hierarquia dos diferentes trabalhosrdquo (GIARD 2012 p 211)
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Para esta autora natildeo haacute nada de essecircncia feminina no fato de as mulheres de
ontem e as de hoje ainda serem as que mais se envolvem nas questotildees relativas
agrave alimentaccedilatildeo A questatildeo eacute puramente histoacuterica social e cultural
Diante das mudanccedilas e da permanecircncia feminina como principal
responsaacutevel pela alimentaccedilatildeo familiar as novas tecnologias disponibilizadas aos
espaccedilos da cozinha o acesso e a variedade de alimentos industrializados
facilitam a conduccedilatildeo desse papel pelas mulheres que desejam manter a
responsabilidade pela alimentaccedilatildeo da famiacutelia mas cujo tempo eacute escasso para
se dedicarem a todas as atividades que executam Por mais que possa haver
algum conflito em usaacute-los nos termos citados por Fischler (1995) haacute poreacutem o
aspecto da comodidade e economia de tempo que atuam como fatores
estimuladores ao seu uso
A dupla jornada de trabalho feminino natildeo ocorre apenas nas aacutereas
urbanas mas tambeacutem nas rurais seja para aquelas que possuem atividade
remunerada fora da propriedade em que moram seja para as que trabalham
apenas na propriedade As atividades das mulheres agricultoras envolvem o
ambiente interno e externo da casa e ainda o seu entorno e para muitas as
atividades tambeacutem do roccedilado conforme Panzutti (2006)
Na vida cotidiana a mulher se ocupa de cozinhar e servir a comida lavar a roupa cuidar dos animais prover a lenha costurar as roupas lavar a louccedila aleacutem de trabalhar na roccedila sempre acompanhada da prole que eacute de seu cuidado Eventualmente eacute auxiliada nessas tarefas por uma filha (PANZUTTI 2006 p 62)
Segundo a autora no meio rural a oposiccedilatildeo entre a casa e o
roccedilado apesar de socialmente ser dividida e hierarquizada mostrando os
domiacutenios dos homens e os das mulheres natildeo as livra de exercer muitas
atividades no espaccedilo considerado masculino Por outro lado a cozinha eacute um
espaccedilo bem definido como sendo o da mulher matildee de famiacutelia
Alguns estudos feitos no Sul do Brasil como o de Zanetti e Menasche
(2007) De Grandi (2003) Paulilo et al (2003) e Heredia (1984) relatam a
experiecircncia de mulheres atuando nas atividades agriacutecolas como o cuidado com
pequenos cultivos pomar pequenos animais mas tambeacutem mantendo a
responsabilidade pelas praacuteticas alimentares na preparaccedilatildeo e organizaccedilatildeo da
alimentaccedilatildeo da famiacutelia
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Na apresentaccedilatildeo dos dados empiacutericos discuto as situaccedilotildees vivenciadas
pelas famiacutelias e o papel desempenhado pelas mulheres na alimentaccedilatildeo dos
membros da famiacutelia Tanto daquelas que trabalham apenas no siacutetio como
daquelas que exercem atividade remunerada fora dos siacutetios As mulheres
relataram sobre a dinacircmica exercida por elas no que se refere agraves praacuteticas
alimentares e cultura rural Na pesquisa de campo foram apontados pelos
entrevistados elementos aqui discutidos como a transmissatildeo de saberes
culinaacuterios e a relaccedilatildeo entre modos tradicionais e modos contemporacircneos das
praacuteticas culinaacuterias
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4 ASPECTOS METODOLOacuteGICOS DA PESQUISA E A CHEGADA AO CAMPO
Neste capiacutetulo satildeo apresentados os aspectos metodoloacutegicos que
orientaram a pesquisa de campo bem como os resultados obtidos O trabalho
de campo foi conduzido utilizando-se um delineamento qualitativo agrave luz da
abordagem etnograacutefica no sentido dado por Peirano (1995) dando atenccedilatildeo
especial ao diaacutelogo com o outro Quivy e Campenhoudt (1992) defendem que o
trabalho de investigaccedilatildeo em Ciecircncias Sociais proporciona uma melhor anaacutelise
dos eventos qualitativos bem como uma compreensatildeo mais detalhada e sutil das
dinacircmicas de funcionamento do grupo estudado
Jaacute os direcionamentos de Poulain e Proenccedila (2003) tratam da pesquisa
voltada ao estudo das praacuteticas alimentares num contexto socioantropoloacutegico
Esses autores sugerem atenccedilatildeo conjunta por parte do pesquisador aos
comportamentos dos informantes naquilo que chamam de ldquopraacuteticas observadasrdquo
e ldquopraacuteticas reconstruiacutedasrdquo Para os autores aquilo que o pesquisador observa
durante a entrevista age em conjunto com os relatos dos entrevistados
auxiliando a interpretaccedilatildeo dos dados
As praacuteticas observadas dizem respeito ao que eacute testemunhado pelo
pesquisador satildeo detalhes muitas vezes relevantes mas que nem sempre satildeo
fornecidos pelos interlocutores por razotildees diversas Para facilitar posteriormente
o acesso agraves informaccedilotildees obtidas por meio da observaccedilatildeo o uso de alguns
instrumentos de apoio eacute importante o caderno de campo a cacircmera fotograacutefica
e o gravador As praacuteticas reconstruiacutedas dizem respeito ao trabalho de
rememorizaccedilatildeo Interessa investigar e comparar vivecircncias passadas com as
atuais no caso da alimentaccedilatildeo praacuteticas que foram adotadas alimentos que
fizeram parte da dieta traccedilos de comensalidade comemoraccedilotildees festivas onde
a comida esteja presente o que permanece e o que foi abandonado
Entre outras questotildees busquei verificar junto agraves famiacutelias a influecircncia da
heranccedila culinaacuteria envolvendo a cultura imaterial (eventos relacionados agrave comida
que satildeo tradicionais na famiacutelia) a representaccedilatildeo das praacuteticas alimentares no
tempo passado e presente e o papel dos guardiatildees da tradiccedilatildeo da culinaacuteria
familiar a relaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo bem como com os modos de alimentaccedilatildeo
moderna
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41 Teacutecnica de pesquisa
A entrevista semiestruturada foi a teacutecnica de pesquisa utilizada para
obtenccedilatildeo de informaccedilotildees das praacuteticas reconstruiacutedas e observadas (POULAIN
PROENCcedilA 2003) justificam como sendo a forma mais confiaacutevel quando dirigida
pelo proacuteprio pesquisador e ainda por permitir aprofundamento das questotildees As
entrevistas podem ser reformuladas ao longo da sua ocorrecircncia com o objetivo
de redirecionar a discussatildeo para o assunto poreacutem sem se prender totalmente agrave
pergunta inicial ldquoAs digressotildees satildeo importantes porque permitem perceber as
representaccedilotildees e os quadros de referecircncia mais ou menos conscientes nos
quais se manifestam as loacutegicas dos atoresrdquo (p 373)
A entrevista permite ao pesquisador uma variedade de interpretaccedilotildees A
atenccedilatildeo do pesquisador e seu feeling tambeacutem satildeo muito importantes pois eacute
preciso estar atento para fazer tanto abordagens objetivas e palpaacuteveis como
simboacutelicas Neste uacuteltimo caso estar atento ao que natildeo aparece claramente na
mensagem e fica impliacutecito na fala
42 Os sujeitos da pesquisa
A definiccedilatildeo dos sujeitos da pesquisa foi realizada a partir de dados
fornecidos pela Emater relativos a cada municiacutepio selecionado Poreacutem como o
trabalho de campo eacute dinacircmico novos informantes surgiram durante esta fase
pois ao entrevistar uma famiacutelia sugiram durante as conversas nomes de outras
pessoas da proacutepria comunidade que pelos objetivos da pesquisa foi
interessante entrevistar Assim as informaccedilotildees da Emater representaram a
porta de entrada mas natildeo uma limitaccedilatildeo para a seleccedilatildeo dos entrevistados
O uacutenico preacute-requisito para a pesquisa era que os interlocutores
morassem na aacuterea rural dos trecircs municiacutepios delimitados O objetivo era conhecer
as praacuteticas que ocorriam no conjunto familiar e natildeo necessariamente as praacuteticas
individuais
Foram realizadas 40 entrevistas abrangendo 17 comunidades rurais
sendo 05 em Piranga 07 em Porto Firme e 05 em Presidente Bernardes cujos
nomes constam no Quadro 1 bem como o nuacutemero de famiacutelias entrevistadas 14
em Piranga 12 em Porto Firme e 14 em Presidente Bernardes O nuacutemero de
96
famiacutelias entrevistadas por comunidade eacute aquele que consta entre os parecircnteses
no referido quadro
Quadro 1 ndash Municiacutepios comunidades e nuacutemero de famiacutelias 2015
Municiacutepios Comunidades
Piranga Boa Vista (2) Manja (3) Mestre Campos (4) Bom Jesus do Bacalhau (2) Tatu (3)
Porto Firme Aacutegua Limpa (2) Bom Retiro (1) Vinte Alqueires (1) Limeira (2) Posses (2) Jacuba28 (2) Satildeo Domingos (2)
Presidente Bernardes Itapeva (3) Mato Dentro (3) Ribeiratildeo (3) Xopotoacute (3) Bananeiras (2)
Fonte Pesquisa de campo 2015
43 A conduccedilatildeo da pesquisa o caminho percorrido
A pesquisa de campo teve como objetivo analisar agrave luz da teoria
sistematizada o significado da comida e as relaccedilotildees de comensalidade atendo-
se agraves mudanccedilas e permanecircncias referentes agraves praacuteticas alimentares das famiacutelias
Mais especificamente analisar a articulaccedilatildeo entre o tradicional e o moderno o
processo de escolha alimentar e os princiacutepios que a determinam como haacutebitos
tradiccedilatildeo praticidade custo etc a influecircncia dos guardiatildees da tradiccedilatildeo na
reproduccedilatildeo do gosto no processo de significaccedilatildeo e ressignificaccedilatildeo da comida
atrelada agraves praacuteticas aos saberes e aos haacutebitos tanto no cotidiano quanto nos
rituais
A pesquisa de investigaccedilatildeo teoacutericobibliograacutefica me conduziu a pensar
as categorias analiacuteticas e as variaacuteveis para a conduccedilatildeo do processo empiacuterico
Assim a alimentaccedilatildeo em seu sentido cultural e simboacutelico como o que foi
discutido nos campos teoacutericos da antropologia e da sociologia da alimentaccedilatildeo
28 Perguntei aos entrevistados desse local se eles sabiam porque a comunidade se chamava Jacuba mas
natildeo souberam responder Os nomes das comunidades estatildeo quase todas relacionadas ao nome de primeira fazenda implantada na localidade Perguntei isso porque ldquojacubardquo eacute um termo indiacutegena usado para se referir a um tipo de comida parecida com o piratildeo agrave base de aacutegua e farinha de mandioca e rapadura muito consumida pelos tropeiros no periacuteodo da mineraccedilatildeo em Minas Antocircnio Cacircndido tambeacutem se refere a ela na descriccedilatildeo dos caipiras paulistas
97
no capiacutetulo anterior eacute eleita como categoria analiacutetica central A partir dela foram
definidas outras quatro subcategorias de suporte 1 As praacuteticas alimentares 2
A comensalidade 3 O espaccedilo social da alimentaccedilatildeo 4 A cultura Como
atributos importantes para a anaacutelise dessas categorias delineei as variaacuteveis
norteadoras da pesquisa empiacuterica e que me ajudaram a observar a descrever
a analisar e a interpretar os dados
Sobre a cultura o interesse foi traccedilar uma caracterizaccedilatildeo ou um ldquoretratordquo
das famiacutelias quanto agrave origem (rural ou urbana) o tempo em que moram na regiatildeo
pesquisada se a terra eacute herdada ou adquirida a faixa etaacuteria aproximada se satildeo
idosos ou jovens a produccedilatildeo de alimentos e as atividades realizadas no
cotidiano
Nas praacuteticas alimentares o interesse foi o de conhecer as informaccedilotildees
relativas aos alimentos mais consumidos no cotidiano e nos eventos especiais
o que eacute produzido no local e o que eacute comprado o horaacuterio das refeiccedilotildees a relaccedilatildeo
com a atividade (por prazer ou por obrigaccedilatildeo) a comida tradicional (o papel dos
guardiatildees da cultura alimentar os cadernos de receita o aprendizado por
oralidade) a comida de antigamente e a comida de hoje a comida para visita e
a comida para os de casa os aspectos levados em consideraccedilatildeo na escolha dos
alimentos (tradiccedilatildeo praticidade custo e atraccedilatildeo pelo moderno)
Para analisar a comensalidade foi preciso identificar se ela estaacute
presente nos haacutebitos familiares no cotidiano e em datas especiais os locais onde
ela ocorre (cozinha copa aacuterea externa da casa sala de visita) e o tempo
aproximado de duraccedilatildeo das refeiccedilotildees
O espaccedilo social da alimentaccedilatildeo se refere ao local de preparo e de
consumo das refeiccedilotildees Importa saber a este respeito quem prepara as
refeiccedilotildees e quais satildeo os equipamentos existentes neste espaccedilo por exemplo a
presenccedila do fogatildeo a lenha e a gaacutes e a constacircncia de seus usos ou seja qual
deles eacute mais utilizado Tambeacutem a existecircncia e usos de equipamentos eleacutetricos
como geladeira freezer forno eleacutetrico forno de micro-ondas batedeira de bolo
etc Neste sentido analisar se nesse espaccedilo social ocorre a relaccedilatildeo entre
tradiccedilatildeo e modernidade na posse e uso dos equipamentos ou o predomiacutenio de
uma dessas caracteriacutesticas Buscou-se ainda analisar se permanecem os
costumes alimentares quanto aos locais destinados agrave comensalidade ou este
espaccedilo social estaacute passando por transformaccedilotildees
98
44 A entrevista semiestruturada
As entrevistas foram gravadas com a permissatildeo dos interlocutores da
pesquisa Apenas uma famiacutelia na comunidade de Ribeiratildeo em Presidente
Bernardes natildeo se sentiu agrave vontade com o gravador e realizei as anotaccedilotildees em
caderno de campo Os nomes dos entrevistados citados no decorrer deste
capiacutetulo satildeo pseudocircnimos que substituiacuteram os verdadeiros para preservar a
identificaccedilatildeo dos participantes conforme exigecircncia constante no Parecer
Consubstanciado do Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa com Seres Humanos (CEP)
da Universidade Federal de Viccedilosa
O estilo da narrativa para apresentaccedilatildeo dos resultados da pesquisa
segue o direcionamento proposto na perspectiva etnograacutefica discutida por
Peirano (1995 e 2008) Marcus e Cushman (1998) e Uriarte (2012) Para Marcus
e Cushman (1998 p 175-176) a narrativa etnograacutefica do seacuteculo XX tem se
baseado no que chamam de realismo etnograacutefico sendo ldquoun modo de escritura
que busca representar la realidade de todo un mundo o de uma forma de vidardquo
Outras caracteriacutesticas da narrativa etnograacutefica realista segundo os autores satildeo
Una cuidadosa atencioacuten hacia nos detalles y demonstraciones redundantes de
que el escritor compartioacute y experimentoacute ese mundordquo
Para Peirano (2008 p 6) ldquoo trabalho de campo se faz pelo diaacutelogo vivo
e depois a escrita etnograacutefica pretende comunicar ao leitor (e convencecirc-lo) de
sua experiecircncia e sua interpretaccedilatildeordquo
45 A imersatildeo em campo a chegada e a travessia
Se a accedilatildeo de comer eacute algo tatildeo iacutentimo ao ser humano conforme reflete
Mintz (2001) analisar os haacutebitos e as praacuteticas alimentares de pessoas e grupos
se torna uma atividade de grande responsabilidade Trabalhar os dados de forma
analiacutetica e criacutetica agrave luz das abordagens teoacutericas e portanto longe do julgamento
do senso comum eacute o papel do pesquisador Foi com essa percepccedilatildeo que
enveredei no campo pensando a pesquisa empiacuterica como descobertas a serem
feitas pelo caminho naquele sentido absorvido quando li Grande Sertatildeo
Veredas de Guimaratildees Rosa pela primeira vez
99
O real natildeo estaacute na saiacuteda nem na chegada ele se dispotildee para a gente eacute no meio da travessia () Assaz o senhor sabe a gente quer passar um rio a nado e passa mas vai dar na outra banda eacute num ponto muito mais em baixo bem diverso do que em primeiro se pensou (ROSA 2001 p 51 e 80)
Fazer pesquisa de campo eacute algo semelhante Faz-se um planejamento
mas durante o percurso eacute preciso lidar por um lado com os ldquoimponderaacuteveis da
pesquisardquo29 e por outro com a expectativa das descobertas a serem feitas na
travessia A praacutetica empiacuterica eacute tambeacutem trabalho analiacutetico e reflexivo mas eacute
sobretudo ndash concordando com a ideia de Peirano (1995 p 57) ndash ldquotrabalho
artesanal microscoacutepico detalhista e que traduz como poucas outras o
reconhecimento do aspecto temporal das explicaccedilotildeesrdquo Ela argumenta ainda que
a conduccedilatildeo de uma pesquisa de campo ldquodepende entre outras coisas da
biografia do pesquisador das opccedilotildees teoacutericas do contexto sociohistoacuterico e das
imprevisiacuteveis situaccedilotildees que se configuram no dia-a-dia no proacuteprio local de
pesquisa entre pesquisador e pesquisadosrdquo (p 22)
Para esta pesquisa as questotildees em torno dos haacutebitos praacuteticas
alimentares e sociabilidades das famiacutelias rurais foram importantes para a
investigaccedilatildeo cientiacutefica pretendida Assim foi necessaacuteria a compreensatildeo por
parte dos interlocutores sobre a importacircncia de sua participaccedilatildeo Coube a eles
apoacutes o entendimento da pesquisa abrir a sua intimidade alimentar cotidiana Fui
convidada pelos entrevistados ndash mulheres na maior parte ndash a ldquoadentrar e puxar
assentordquo na cozinha Tambeacutem me convidaram para conhecer o quintal colher
verdura na horta e inclusive a participar das refeiccedilotildees em todas as casas
visitadas fosse almoccedilo fosse ldquomerendardquo ou mesmo apanhar frutas diretamente
do peacute durante conversas ocorridas no pomar
Assim percorri regiotildees rurais de Piranga Porto Firme e Presidente
Bernardes entre os meses de fevereiro a junho de 2015 fazendo descobertas
aprendendo apreendendo dialogando analisando questionando e refletindo
sobre os sentidos da comida e do comer no espaccedilo rural contemporacircneo das
famiacutelias pesquisadas
29 Termo que foi utilizado primeiramente por Bronislaw Malinowski (1976) ao falar sobre os ldquoimponderaacuteveis
da vida realrdquo para se referir a rotina do trabalho diaacuterio do nativo os detalhes de seus cuidados corporais o modo como prepara a comida e come as simpatias ou aversotildees e etc Utilizo o termo semelhante para pensar os eventos inesperados da pesquisa empirica
100
Naquelas famiacutelias em que fui apresentada diretamente pelos teacutecnicos da
Emater e a quem acompanhei em algumas de suas visitas agraves comunidades
atendidas no mecircs de janeiro de 2015 e mesmo naquelas onde minha preacutevia
apresentaccedilatildeo foi feita via telefone a chegada para a pesquisa foi mais simples
Entretanto naquelas em que houve indicaccedilatildeo por parte dos proacuteprios
entrevistados o processo foi mais lento mas natildeo difiacutecil ou impeditivo Apenas
levei mais tempo para organizar a visita Em um dia ia ao local me apresentava
explicava sobre a pesquisa que havia sido realizada com seus conhecidos na
mesma comunidade respondia agraves perguntas e curiosidades e por fim
agendava um retorno Considero como mais provaacutevel eacute que tenham aceitado
participar da pesquisa em funccedilatildeo de eu ter citado o mesmo trabalho feito com
pessoas conhecidas Natildeo sei dizer se foram buscar confirmaccedilatildeo sobre isso A
teacutecnica da Emater de Piranga que estava se aposentando se propocircs a percorrer
comigo algumas comunidades em alguns dias da segunda quinzena de janeiro
de 2015 me mostrando os caminhos e apresentando a algumas pessoas
Em geral as pessoas foram atenciosas Algumas se mostraram mais
interessadas do que outras e por isso o envolvimento foi maior Poreacutem todas
deram contribuiccedilotildees muito importantes Houve dois casos em que precisei
retornar em outro dia Em um dos casos porque houve falecimento de um
parente na manhatilde do dia da entrevista e natildeo tiveram como me avisar antes Na
outra situaccedilatildeo o casal de aposentados precisou ir agrave cidade resolver problemas
pessoais e pediu para marcarmos um outro dia Foi necessaacuterio tambeacutem o
adiamento da pesquisa em dias de chuva devido agraves condiccedilotildees ruins das
estradas
Optei por dividir o horaacuterio das entrevistas em manhatilde e tarde para
conviver com dois momentos do cotidiano das famiacutelias respeitando os horaacuterios
delas Assim consegui realizar 15 entrevistas na parte da manhatilde e as outras 25
na parte da tarde O horaacuterio de chegada pela manhatilde era entre 800 e 830
tambeacutem em acordo com as famiacutelias Na parte da tarde o horaacuterio era entre 1330
e 1400 Almocei porque era convidada nas casas onde iniciava o trabalho na
parte da manhatilde o que me permitia acompanhar o processo de elaboraccedilatildeo do
almoccedilo as conversas no geral aconteciam na cozinha mas parte delas ocorria
tambeacutem nas hortas e nos quintais
101
A partir do proacuteximo item passo a apresentar os dados obtidos em campo
baseados em informaccedilotildees fornecidas pelos interlocutores da pesquisa e tambeacutem
nas observaccedilotildees que fiz Os itens e subitens estatildeo relacionados agraves variaacuteveis
elencadas no projeto de pesquisa que compuseram o roteiro de entrevista
No item 46 apresento dados de caraacuteter descritivo-analiacutetico sobre a
cultura e os modos de vida do grupo pesquisado as atividades cotidianas de
trabalho as impressotildees empiacutericas e sua relativizaccedilatildeo agrave luz dos dados do IBGE
(2010) sobre uma regiatildeo que aos olhos dos entrevistados parece estar
envelhecendo Apresento e discuto tambeacutem outras percepccedilotildees culturais do
cotidiano Em todo o item algumas reflexotildees sobre as praacuteticas alimentares satildeo
sinalizadas ou apontadas No entanto as discussotildees mais especiacuteficas sobre as
praacuteticas alimentares satildeo feitas no capiacutetulo 5
46 Descobrindo a cultura local dos entrevistados
461 Perfil das famiacutelias
Na regiatildeo pesquisada predomina a agricultura de base familiar que eacute
aquela em que a propriedade a gestatildeo e o trabalho estatildeo ligados agrave famiacutelia no
sentido dado por Gasson e Errington (2003 p 20) O marido a esposa e tambeacutem
os filhos adolescentes quando chegam da escola satildeo os que trabalham na
propriedade Entre os casais idosos as atividades de produccedilatildeo satildeo muito
reduzidas por dificuldades fiacutesicas em executar alguns trabalhos Em alguns siacutetios
haacute filhos casados ou solteiros se responsabilizando pelas atividades dos pais
As aacutereas rurais dos trecircs municiacutepios se assemelham tanto ao que se
relaciona agraves atividades agriacutecolas quanto agrave cultura e haacutebitos cotidianos inclusive
os alimentares A maior parte das famiacutelias (899) mora em pequenos siacutetios que
se formaram por divisatildeo de heranccedila de propriedades maiores O restante
adquiriu por meio de compra Em todos os casos de heranccedila ela proveacutem dos
pais do marido Essas informaccedilotildees obtidas em campo coincidem com o que eacute
apresentado por Maria Joseacute Carneiro (2001 e 1998b) Abramovay et al (1998)
Woortmann (1995) Spanevello e Lago (2010) Paulilo (2003) Mendonccedila et al
(2013) e Moura (1978) ao discutirem o processo sucessoacuterio do meio rural
Apontam que historicamente a heranccedila eacute dada ao filho de sexo masculino que
102
assume a continuaccedilatildeo das atividades ldquoenquanto as mulheres se tornam
agricultoras por casamentordquo (Paulilo 2003 p 188) Situaccedilatildeo semelhante foi
verificada na minha pesquisa As mulheres disseram natildeo ter herdado terra dos
pais agricultores sendo possuidoras de terra a partir do momento em que se
casaram e passaram a partilhar a terra herdada pelo marido
Outros estudos como os de Woortmann (1995) Carneiro (1998b) e
Camarano e Abramovay (1998) tecircm sinalizado uma mudanccedila nos uacuteltimos anos
Uma das razotildees estaacute associada agraves transformaccedilotildees de perspectivas da juventude
rural em relaccedilatildeo ao campo Segundo os autores muitos jovens natildeo demonstram
mais tanto interesse em permanecer no campo e assumir a incumbecircncia total
pela manutenccedilatildeo da terra que pertenceu aos pais Em minha pesquisa natildeo tive
como objetivo discutir a questatildeo sucessoacuteria mas as famiacutelias cujos filhos
moravam nos siacutetios dos pais (666) eram sobretudo aquelas compostas por
casal de idosos e aposentados Nestes casos os filhos natildeo moravam
necessariamente na mesma casa Quando se tratava de filhos casados eles
moravam em casas separadas
A origem rural eacute predominante no grupo pesquisado sendo a realidade
de 95 das famiacutelias entrevistadas As famiacutelias satildeo pequenas sendo 36 pessoas
o tamanho meacutedio incluindo aquelas de casais aposentados e natildeo aposentados
que tecircm os filhos morando em casa Predominam aquelas compostas por
aposentados que moram sozinhos existindo no entanto algumas cujos filhos
solteiros moram com os pais Em alguns dos casos um dos filhos casados mora
no siacutetio mas em casa separada dos pais
As famiacutelias compostas por casais de aposentados correspondem a 24
delas (60) Desse total 11 famiacutelias estatildeo em Presidente Bernardes 08 em
Piranga e 05 em Porto Firme O municiacutepio de Presidente Bernardes representa
aquele com maior percentual de aposentados 80 Em Piranga eles
representam 6875 e em Porto Firme 50
As outras 16 famiacutelias satildeo compostas por casais cuja faixa etaacuteria varia de
30 a 50 anos Nestas famiacutelias os filhos a partir dos 16 anos tecircm saiacutedo para
estudar em outras cidades proacuteximas como Viccedilosa Ouro Preto ou Ouro Branco
onde possam cursar o niacutevel superior Essa foi a realidade encontrada em sete
delas Isso tem ocorrido por interesse tambeacutem dos pais que desejam vecirc-los
formados em um curso superior
103
Em relaccedilatildeo agrave escolaridade a maior parte (646) das pessoas com
idade acima de 60 anos tinham o ensino fundamental incompleto 187
concluiacuteram o ensino fundamental 104 disseram ter sido semialfabetizado ou
seja sabem assinar o nome e ler e escrever muito pouco30 e 63 possuem o
ensino meacutedio completo Entre o puacuteblico na faixa etaacuteria de 30 a 50 anos
predomina o ensino meacutedio completo (532) 373 natildeo completou o ensino
meacutedio e 95 possuem apenas o ensino fundamental completo As mulheres
representam o maior percentual dentre o puacuteblico que concluiu o ensino meacutedio
Os filhos que moram na casa dos pais com idade inferior a 30 anos estatildeo
estudando a maior parte deles crianccedilas e adolescentes
Embora o tema desse subitem natildeo seja objetivo analiacutetico deste trabalho
considerei interessante inserir uma breve discussatildeo em funccedilatildeo de que durante
as entrevistas muitos depoimentos destacaram a saiacuteda dos jovens e a
permanecircncia dos casais de aposentados das regiotildees em que vivem A busca
pela continuidade dos estudos tem determinado a saiacuteda dos jovens Sem
disponibilidade de ensino superior nos municiacutepios em que moram os filhos tecircm
saiacutedo para outras regiotildees proacuteximas e contam com o estimulo dos pais para isso
Os pais alegam que natildeo tiveram oportunidade de fazer um curso superior ou
mesmo teacutecnico e que desejam isso para os filhos porque percebem que a
realidade de trabalho no campo atualmente estaacute mais difiacutecil do que em tempos
atraacutes Relataram que seus pais conseguiram criar famiacutelias grandes com maior
facilidade do que hoje obtendo renda da agricultura Realidade que segundo os
entrevistados estaacute cada vez mais distante na contemporaneidade
Para Zefa moradora de Mato Dentro Presidente Bernardes uma das
explicaccedilotildees para o baixo nuacutemero de pessoas mais novas morando na aacuterea rural
da regiatildeo decorre da divisatildeo das propriedades chegando ao ponto de natildeo ter
mais como dividi-las entre os herdeiros e explica ldquoEsse siacutetio aqui jaacute foi dividido
quando meu sogro deixou aqui para noacutes Se a gente fosse dividir para nossos
nove filhos natildeo ir dar nada entatildeo os filhos foram pra cidade achar um jeito
melhor porque na roccedila eacute tudo mais difiacutecil mesmordquo
Muitos pais ao falarem dos seus filhos jovens destacam que eles se
sentem atraiacutedos por bens e tecnologias que natildeo estatildeo disponiacuteveis no campo o
30 Percebi o constrangimento de alguns quando eu lhes explicava sobre a necessidade de assinatura dos
entrevistados ao ldquoTermo de Consentimento Livre e Esclarecidordquo do Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa
104
mais citado foi o acesso agrave internet O filho de Lola e Marcos que tem 10 anos de
idade possui um celular que soacute utiliza quando vai agrave cidade Consegue acessar
a rede por laacute com o uso da senha que um amigo disponibilizou Os filhos de
Carmem quando visitam os pais reclamam de natildeo ter como acessar a internet
no siacutetio Por outro lado os depoimentos apontaram que os filhos que moram fora
dos siacutetios natildeo tem a mesma reclamaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave comida ao contraacuterio
sentem o desejo de comer a comida tradicional que consumiam quando
moravam no local
Quando os filhos vecircm eles querem comer comida daqui eles falam que eacute ldquocomida de matildeerdquo estatildeo enjoados do que comem na cidade eles falam isso porque eacute com essa comida daqui que foram acostumados comida deles laacute na cidade tem muito tempero artificial igual esse tal de sazon (Doca moradora de Boa Vista Piranga MG 2015)
Haacute no comportamento dos filhos jovens das famiacutelias que entrevistei um
conflito de ordem cultural Desejam manter identidades culturais locais sentem
necessidade da comida da matildee da comida tradicional e de sempre que possiacutevel
visitar os pais como eacute o caso das filhas de Nilsa e Jonas de Satildeo Domingos
Porto Firme que estudam em Viccedilosa Quase todos os finais de semana visitam
os pais Por outro lado sentem falta do acesso a tecnologias e outras opccedilotildees
oferecidas a eles na cidade
Mas o outro lado tambeacutem existe Haacute o exemplo dos filhos que optam por
permanecer junto dos pais por mais tempo embora eu tenha encontrado apenas
dois casos nas famiacutelias entrevistadas Um exemplo eacute o da filha mais nova de
Nanaacute e Custoacutedio moradores de Xopotoacute em Presidente Bernardes Ela continua
morando com os pais trabalha na cidade de Presidente Bernardes e o uso de
uma moto permite que vaacute almoccedilar em casa Ela tambeacutem estuda cursa Letras na
modalidade agrave distacircncia Como natildeo possui internet em casa se dedica ao curso
nos finais de semana na casa da irmatilde casada que mora em um siacutetio localizado
muito proacuteximo agrave cidade e tem acesso agrave internet Seu objetivo depois que se
formar eacute permanecer na regiatildeo como professora na escola estadual do
municiacutepio Seu irmatildeo de 27 anos tambeacutem permanece no siacutetio Apoacutes concluir o
ensino meacutedio optou por trabalhar na agricultura junto com o pai e eacute ele quem
assumia essas atividades na ocasiatildeo da pesquisa
105
Martins (2012) discute que uma das grandes dificuldades da
modernidade para o ldquohomem comumrdquo eacute conseguir superar as irracionalidades e
as contradiccedilotildees impostas por ela que geram conflitos de ordem cultural ldquode
permanente proposiccedilatildeo da necessidade de optar entre isto e aquilo entre o novo
e fugaz de um lado e o costumeiro e tradicional de outrordquo (p 20)
A literatura sobre juventude rural como os trabalhos de Carneiro e
Castro (2007) Brumer (2007) Abramovay et al (1998) Durston (1994) entre
outros tem apontado os desafios para esse grupo etaacuterio em encontrar formas
de permanecer no campo desenvolvendo atividades de trabalho que lhes sejam
atrativas no mundo contemporacircneo Dentre os motivos que estimulam a saiacuteda e
a busca de trabalho em atividades fora da aacuterea rural estatildeo as dificuldades tanto
para conduzir quanto para obter retorno financeiramente favoraacutevel da atividade
rural e a pequena disponibilidade de terra familiar para empreender uma
atividade proacutepria e constituir famiacutelia
Como visto a literatura aponta para uma tendecircncia ao envelhecimento
e masculinizaccedilatildeo do campo Esta foi a minha percepccedilatildeo empiacuterica tambeacutem
Apesar disso eacute preciso considerar que a entrevista abrangendo 40 famiacutelias nos
trecircs municiacutepios natildeo permite classificar essa situaccedilatildeo como generalizada pois a
realidade que encontrei em relaccedilatildeo agrave faixa etaacuteria na regiatildeo pesquisada natildeo
coincide com a realidade apontada pelo IBGE (2010) em termos percentuais
como seraacute mostrado a seguir Isso poreacutem natildeo interfere nos objetivos da
pesquisa pois se trata de uma abordagem qualitativa
No grupo de 40 famiacutelias que pesquisei a populaccedilatildeo idosa eacute
predominante Encontrei um puacuteblico constituiacutedo por 24 famiacutelias cujos casais
tinham acima de 60 anos e 16 famiacutelias cujos casais tinham entre 30-50 anos
Como natildeo havia pessoas viuacutevas a proporccedilatildeo de homens e mulheres era a
mesma 50
No montante das 40 famiacutelias 20 delas possuem filhos morando na casa
dos pais Dentre eles 10 satildeo crianccedilas 08 satildeo jovens e 02 satildeo adultos Nenhum
filho casado mora com os pais Dentre os vinte filhos 08 satildeo mulheres e 12 satildeo
homens Assim o universo de pessoas que constituiacuteam as famiacutelias entrevistadas
foi de 100 pessoas o que representa apenas 048 do total da populaccedilatildeo rural
total da pesquisa do IBGE (2010) mostrado na Tabela 4
106
Assim o perfil etaacuterio do grupo pesquisado se constitui de 48 de
populaccedilatildeo idosa 34 de populaccedilatildeo adulta 8 de populaccedilatildeo jovem e 10 de
populaccedilatildeo infantil
Exceto para o perfil adulto os demais perfis etaacuterios no grupo que
pesquisei apresentam dissonacircncia em relaccedilatildeo ao perfil etaacuterio rural do IBGE
(2010) mostrado nas Tabelas 3 e 4 Pelo IBGE o perfil etaacuterio da regiatildeo se
constitui de 13 de populaccedilatildeo idosa 36 de populaccedilatildeo adulta 26 de
populaccedilatildeo jovem e 23 7 de populaccedilatildeo infantil (Tabela 5)
Tabela 5 ndash Comparativo entre perfil etaacuterio do IBGE (2010) e da pesquisa de campo 2015 ()
Fonte Populaccedilatildeo
rural 1-14 anos
() 15-29
anos () 30-59
anos ()
Acima de 60 anos
()
IBGE (2010) 20755 237 26 36 13 Pesquisa de campo (2015) 100 10 08 34 48
Fonte IBGE (2010) e Pesquisa de campo (2015)
A composiccedilatildeo de gecircnero das famiacutelias pesquisadas se aproxima muito
ao perfil dos dados do IBGE (2010) sendo o puacuteblico masculino um pouco maior
do que o puacuteblico feminino em ambos os casos (Tabela 6)
Tabela 6 ndash Comparativo da composiccedilatildeo de gecircnero do IBGE e da pesquisa de campo 2015
Fonte Populaccedilatildeo
rural Mulheres () Homens ()
IBGE (2010) 20755 481 517 Pesquisa de campo (2015) 100 48 52
Fonte IBGE (2010) e Pesquisa de campo (2015)
107
Em funccedilatildeo dos dados acima eacute possiacutevel afirmar a ocorrecircncia de um
processo de envelhecimento no grupo pesquisado natildeo sendo possiacutevel afirmar
semelhante situaccedilatildeo para toda a regiatildeo rural dos municiacutepios
462 A produccedilatildeo agriacutecola local
A produccedilatildeo agriacutecola eacute pequena mesmo naqueles siacutetios cuja produccedilatildeo
tambeacutem se destina agrave comercializaccedilatildeo A pequena produccedilatildeo de milho objetiva a
produccedilatildeo de fubaacute que possui importacircncia fundamental para a alimentaccedilatildeo das
famiacutelias e dos animais O fubaacute obtido do milho possibilita suprir as famiacutelias com
o produto que eacute utilizado na preparaccedilatildeo do angu alimento consumido
diariamente no almoccedilo e no jantar e na elaboraccedilatildeo da broa uma das principais
quitandas que eacute elaborada diariamente para abastecer a famiacutelia com a
ldquomerendardquo do cotidiano e para ter o que oferecer agraves visitas que chegarem de
surpresa
A cana tambeacutem atende agraves necessidades alimentares animais Apenas
em um siacutetio ela eacute usada para fabricaccedilatildeo de cachaccedila e em outros dois na
fabricaccedilatildeo de rapadura e melado
As principais atividades geradoras de renda das famiacutelias pesquisadas
satildeo leite carvatildeo cafeacute feijatildeo e cachaccedila As famiacutelias que produzem para
comercializaccedilatildeo praticam de duas a trecircs atividades ao mesmo tempo leite e
carvatildeo cafeacute e feijatildeo consorciados e carvatildeo leite e cafeacute Apenas uma famiacutelia
produz cachaccedila para comercializaccedilatildeo e tem nessa atividade uma importante
fonte geradora de renda Nos demais siacutetios cuja produccedilatildeo se destina apenas ao
autoconsumo a produccedilatildeo se baseia em milho feijatildeo leguminosas hortaliccedilas
frutas frangos e porcos caipiras
No Quadro 2 eacute apresentada a origem da renda das famiacutelias Entre
aquelas em que a aposentadoria eacute a uacutenica fonte de renda a produccedilatildeo agriacutecola
se destina apenas para o autoconsumo Naquelas em que a aposentadoria e a
atividade agriacutecola estatildeo presentes a produccedilatildeo eacute administrada por um filho seja
casado ou solteiro mas a maior parte eacute casada e mora proacuteximo aos pais Eacute
importante ressaltar que satildeo sempre os filhos homens que exercem tal funccedilatildeo
Para os pais a presenccedila dos filhos por perto assumindo os trabalhos eacute fator
positivo pois leva-os a se sentir mais tranquilos
108
Quadro 2 ndash Fonte de renda das famiacutelias pesquisadas 2015
Fonte Nordm de famiacutelias
Apenas aposentadoria 14 350
Aposentadoria e atividade agropecuaacuteria no siacutetio 10 250
Atividade agropecuaacuteria no siacutetio e outra 09 225
Atividade agropecuaacuteria 07 175
Total de famiacutelias 40 1000
Fonte Pesquisa de campo 2015
Nas famiacutelias em que a renda eacute obtida da atividade agriacutecola e de outra
fonte a maior parte desta uacuteltima eacute gerada pelo trabalho das mulheres (889)
envolvidas nas seguintes atividades serventes e merendeiras nas escolas rurais
(Marina Ivone e Juliana)31 servente na escola da cidade (Solange) diarista em
casas proacuteximas (Arminda) Haacute tambeacutem aquelas mulheres que utilizam atividades
em casa como eacute o caso de Nilsa Marcelina e Ivone que produzem quitandas e
salgados para vender no entorno ou na cidade proacutexima e Nanaacute que trabalha
como costureira32 Na outra situaccedilatildeo trata-se de uma famiacutelia que possui um
pequeno comeacutercio na comunidade fora do siacutetio onde vive
463 Atividades cotidianas de trabalho nos siacutetios
A maior parte de meus interlocutores foi composta por mulheres e
mesmo quando os homens estavam presentes elas eram as mais ativas no
diaacutelogo Assim muitas das informaccedilotildees sobre o trabalho do cotidiano estatildeo
atreladas agrave realidade vivenciada por elas
Naquelas famiacutelias cuja renda eacute apenas a atividade agropecuaacuteria o
trabalho envolve tambeacutem a mulher e os filhos que estejam morando com os pais
As mulheres se envolvem em todas as atividades seja na lavoura de feijatildeo na
colheita de cafeacute na limpeza do suiacuteno abatido como eacute o caso de Lola (41 anos
31 Marina Ivone Marcelina e Nilsa satildeo moradoras de Porto Firme Arminda e Juliana de Piranga Nanaacute e
Solange de Presidente Bernardes 32 Em duas famiacutelias haacute filhas solteiras (uma em cada famiacutelia) que trabalham fora do siacutetio mas informaram
que suas rendas natildeo contribuem necessariamente para complementar a dos pais
109
moradora de Xopotoacute em Presidente Bernardes) ou na atividade leiteira e do
carvatildeo como eacute o caso de Neiva (39 anos moradora de Posses em Porto Firme)
que fez questatildeo de mostrar a suas unhas ainda manchadas do trabalho na
carvoaria no dia anterior
Mesmo as mulheres que trabalham fora dos siacutetios satildeo unacircnimes em
afirmar que continuam sendo agricultoras jaacute que continuam a exercer a funccedilatildeo
de cuidados da casa ndash incluindo aqueles referentes agrave alimentaccedilatildeo ndash assim como
as atividades agriacutecolas no quintal principalmente nos cuidados com a horta
ldquoSou diarista mas sou agricultora tambeacutemeu cuido da horta da casa mas
quando precisa de fazer algum trabalho na roccedila eu vou mas natildeo vou muitordquo
informou Arminda moradora de Mestre Campos em Piranga
Ivone (38 anos Posses ndash Porto Firme) se envolve muito com todas as
atividades do siacutetio As manhatildes satildeo passadas na escola da comunidade onde eacute
cantineira mas ao chegar em casa no iniacutecio da tarde se junta ao marido para o
trabalho na atividade leiteira na colheita na lavoura e tambeacutem na atividade da
carvoaria Costuma ainda receber encomendas de quitandas vindas da cidade
de Porto Firme e de acordo com o tempo disponiacutevel atende aos pedidos
Observei pelos depoimentos que o trabalho com a horta natildeo eacute visto
como uma atividade agriacutecola Ela eacute percebida como extensatildeo do quintal e da
cozinha e portanto estaacute atrelada aos elementos da casa Trabalhar na roccedila
para eles significa o serviccedilo de capina de roccedilar o milho o feijatildeo colher cafeacute
etc Nos siacutetios em que estive as hortas em sua maioria tambeacutem eram muito
proacuteximas agrave cozinha
As atividades de trabalho cotidiano das mulheres satildeo muito
diversificadas como jaacute visto Envolvem os cuidados da casa do quintal da horta
a alimentaccedilatildeo da famiacutelia atividade leiteira de roccedilado e carvoaria e em alguns
casos trabalho externo ou natildeo ao siacutetio que lhes garantem renda proacutepria
Marcelina (34 anos Satildeo Domingos ndash Porto Firme) diz ter encontrado na
culinaacuteria remunerada motivos para a famiacutelia desistir de se mudar para a cidade
Haacute pouco mais de um ano sua famiacutelia esteve prestes a se mudar para Viccedilosa
em busca de trabalho assalariado O principal motivo eacute que Marcelina natildeo estava
satisfeita com suas atividades no campo As considerava exaustiva mas eram
necessaacuterias para aumentar a renda do casal que era obtida principalmente da
atividade leiteira mas que por ser dividida entre outras duas famiacutelias de irmatildeos
110
do marido ndash que tambeacutem moram na propriedade que pertenceu aos pais ndash
originava uma renda insuficiente para manter sua famiacutelia Uma iniciativa poreacutem
trouxe oportunidade de o casal repensar a saiacuteda do campo A irmatilde de Marcelina
que reside em Viccedilosa produz salgados que satildeo vendidos em bares da periferia
da cidade Marcelina por insistecircncia da irmatilde aprendeu as teacutecnicas de produccedilatildeo
de salgados e passou a produzi-los e vende-los para bares da zona rural de
Porto Firme e Guaraciaba Na ocasiatildeo da pesquisa um ano depois de iniciar
esse trabalho ela conseguiu comprar um freezer novo com a renda dos
salgados o que lhe permitiu aumentar a produccedilatildeo Os salgados satildeo vendidos
na forma congelada e a entrega eacute feita pelo marido de moto Ela compartilhou
essa experiecircncia como sendo muito satisfatoacuteria em sua vida e da famiacutelia Afirmou
que esse foi o principal motivo de eles terem permanecido no campo
Agora o trabalho eacute muito melhor natildeo preciso trabalhar debaixo do sol ardendo natildeo tenho mais dor nas costas trabalho em casa perto dos meninos posso dar o almoccedilo para eles e ver quando eles chegam da escola antes meu marido eacute que tinha que esquentar o almoccedilo e dar para eles (Marcelina moradora de Satildeo DomingosPorto Firme MG 2015)
A experiecircncia de Marcelina sinaliza uma situaccedilatildeo nova na regiatildeo
pesquisada que eacute a produccedilatildeo de alimentos congelados diretamente para
abastecer bares e vendas no meio rural Estaacute presente nesta realidade a
inserccedilatildeo de elementos modernos o trabalho desenvolvido por Marcelina que eacute
uma novidade tambeacutem para ela pois precisou aprender a preparar esse tipo de
alimento a partir de meacutetodos baacutesicos de congelamento de alimentos e a utilizar
o freezer Outro aspecto de modernizaccedilatildeo se refere ao uso da moto como veiacuteculo
para fazer a entrega dos produtos que por sua vez eacute realizada pelo marido
agricultor ao final do dia apoacutes finalizar os trabalhos do siacutetio Por outro lado a
proacutepria famiacutelia pouco consome os produtos congelados feitos por Marcelina por
natildeo fazer parte do haacutebito alimentar da famiacutelia que permanece com preferecircncia
pela comida tradicional ldquoEles natildeo pedem os salgadosnatildeo ligamagraves vezes eu
ateacute faccedilo uns pra gente experimentar e ver como ficourdquo pondera Marcelina
Percebi que essa famiacutelia estaacute buscando se adaptar agraves novas estruturas e
dinacircmicas da sociedade no sentido discutido por Carneiro (1998) incorporando
elementos modernos importantes para sua reproduccedilatildeo sem contudo
abandonar o meio rural e abrir matildeo de suas praacuteticas alimentares tradicionais
111
Chama a atenccedilatildeo tambeacutem nessa experiecircncia o fato de haver consumo no meio
rural para os salgados congelados pelo menos pelos frequentadores dos bares
ou ldquovendasrdquo onde Marcelina fornece seus produtos Isso aponta que se os
congelados natildeo fazem parte do consumo domeacutestico das famiacutelias haacute um espaccedilo
para seu consumo nos bares (ldquovendasrdquo) da regiatildeo
Vemos na situaccedilatildeo exposta aqui um modo de vida tradicional agregando
fragmentos do moderno sem contudo converter-se a ele como discutido por
Martins (2012) percepccedilatildeo semelhante a apresentada por Carneiro (1998)
Os estudos sobre perspectivas e possibilidades para se pensar os rumos
de um novo rural brasileiro ou um rural reinventado vecircm sendo desenvolvidos
por autores como Wanderley (2000 e 2010) e Carneiro (1998 2005 e 2012) em
seus grupos de pesquisa Uma das discussotildees diz respeito agraves novas estrateacutegias
e possibilidades no campo que natildeo sejam necessariamente agriacutecolas como eacute o
caso do turismo do artesanato da agroinduacutestria etc
O cotidiano das mulheres que trabalham fora do siacutetio envolve mais de
uma jornada de atividades que se inicia antes das 600 da manhatilde e segue ateacute agrave
noite apoacutes o jantar ser servido e a louccedila ser lavada No capiacutetulo anterior introduzi
a discussatildeo sobre a dupla jornada de trabalho das mulheres tambeacutem no meio
rural apresentando as pesquisas de Panzutti (2006) com agricultoras no interior
de Satildeo Paulo e de Zanetti assim como as pesquisas de Menasche (2007) com
agricultoras do Sul Ainda sobre essa temaacutetica no sul do paiacutes haacute os trabalhos de
pesquisa de Paulilo et al (2003) e de De Grandi (2003) Analisando os casos
das mulheres da regiatildeo que pesquisei as caracteriacutesticas satildeo muitos
semelhantes agraves descritas pelas pesquisadoras ao estudarem outras regiotildees
O trabalho domeacutestico da mulher eacute considerado infinitamente elaacutestico uma vez que ela transita por ambos os espaccedilos o da produccedilatildeo e o da reproduccedilatildeo o que demonstra que haacute uma flexibilizaccedilatildeo das atividades consideradas produtivas o que natildeo acontece com as atividades reprodutivas e domeacutesticas (DE GRANDI 2003 p 40)
Em outra pesquisa neste caso em uma regiatildeo accedilucareira do Nordeste
do Brasil Heredia et al (1984) discutem a divisatildeo de gecircnero existente na
execuccedilatildeo do trabalho da produccedilatildeo rural Apontam o roccedilado como o lugar do
homem e como o espaccedilo de trabalho da mulher a casa envolvendo a sua
organizaccedilatildeo e a elaboraccedilatildeo da comida para a famiacutelia Mas tambeacutem indicam que
apesar da divisatildeo existem etapas do roccedilado onde a mulher atua como na
112
semeadura e limpeza ao redor das mudas No entanto o contraacuterio natildeo ocorre
como apontam Heredia et al (1984) e Woortmann (1985) Em suas pesquisas
natildeo foi registrado participaccedilatildeo masculina nos trabalhos voltados agrave organizaccedilatildeo
da casa e da elaboraccedilatildeo das refeiccedilotildees destinadas agrave famiacutelia Tampouco em
minha pesquisa identifiquei essa situaccedilatildeo pois satildeo atividades exercidas
basicamente pelas mulheres
Poreacutem encontrei na minha pesquisa uma sinalizaccedilatildeo de que mudanccedilas
ainda que tiacutemidas estatildeo ocorrendo na regiatildeo analisada e isso implica
diretamente nas praacuteticas alimentares Em depoimentos de duas famiacutelias as
mulheres e os maridos que estavam presentes durante a conversa falaram da
participaccedilatildeo destes na preparaccedilatildeo do almoccedilo O primeiro caso eacute o de Marcelina
e Luiz Durante um tempo quando Marcelina trabalhava como diarista Luiz (39
anos Satildeo Domingos ndash Porto Firme) que tem seu trabalho principal na atividade
leiteira assumiu a funccedilatildeo de alimentar os filhos Marcelina deixava o almoccedilo
adiantado quase pronto mas cabia a ele concluir algumas coisas aquecer a
comida e servi-la aos filhos O outro caso eacute o de Marina e Rui Marina sai de
casa cedo com as filhas para a escola onde trabalha como cozinheira Ela deixa
jaacute pronto o arroz e a carne restando ao marido e ao filho jovem temperar o feijatildeo
e refogar a verdura
Esses exemplos apontam para a necessidade de adaptaccedilatildeo agrave realidade
das mulheres rurais que buscam espaccedilos de trabalho remunerado fora dos siacutetios
onde moram e que contam com o apoio dos maridos pelo menos nas
experiecircncias que conheci em campo Os conflitos que permeiam esses ajustes
familiares se por ventura existirem natildeo foram declarados pelos interlocutores
Ao contraacuterio tanto mulheres quanto homens ao falarem sobre o assunto
expressaram naturalidade diante da situaccedilatildeo Eacute importante considerar que a
renda proveniente do trabalho feminino eacute usada para cobrir despesas familiares
e agraves vezes ateacute para cobrir pequenos custos de produccedilatildeo agriacutecola como relata
Solange (30 anos Itapeva - Presidente Bernardes) que trabalha como servente
em uma escola ldquoEu ganho um salaacuterio miacutenimo mas com esse dinheiro eu compro
coisas para a casa para mim e para minha menina ah eacute uma preocupaccedilatildeo a
menos jaacute aconteceu de ter que comprar adubo e pagar veterinaacuterio que veio ver
as vacasrdquo
113
As famiacutelias formadas por aposentados que representam a maioria nesta
pesquisa tecircm uma realidade cotidiana de trabalho que eacute menos ativa Executam
menos atividades no siacutetio embora natildeo deixem de trabalhar Ao falarem de seu
cotidiano os homens disseram que quase natildeo executam mais atividades
agriacutecolas como capina e roccedilado Fazem uma ou outra atividade como cuidar do
paiol do galinheiro da horta preparar a comida para dar aos porcos Fazem isso
ldquopara natildeo ficar parado de tudordquo conforme justificou Neacutelio (morador de Satildeo
Domingos em Porto Firme) Os homens afirmaram se sentirem desconfortaacuteveis
quando natildeo realizam algum trabalho no dia apenas evitam serviccedilos que exijam
grande esforccedilo fiacutesico
No caso das mulheres mais velhas elas continuam se responsabilizando
pela elaboraccedilatildeo das refeiccedilotildees e de todas as outras atividades domeacutesticas aleacutem
do cuidado com a horta e o quintal o que faz com que seu dia seja mais
dinacircmico Aleacutem do preparo das refeiccedilotildees elaboram tambeacutem cotidianamente
quitandas como broas e rosquinhas o que seraacute visto no proacuteximo capiacutetulo
114
5 CULTURA E PRAacuteTICAS ALIMENTARES NO SISTEMA FAMILIAR RURAL RELACcedilOtildeES COM A COMIDA PERMANEcircNCIAS E MUDANCcedilAS
ldquoA arte da cozinha eacute a mais brasileira de nossas artes A mais expressiva do nosso caraacuteter e a mais impregnada do nosso passadordquo
(Gilberto Freyre 1968)
Os toacutepicos de discussatildeo deste capiacutetulo estatildeo subdivididos nos seguintes
temas A discussatildeo sobre a comida considerada como ldquoforterdquo e a classificaccedilatildeo
da comida como cultura e como fator de necessidade fisioloacutegica as mudanccedilas
em curso na nos haacutebitos alimentares o papel ocupado pelo milho e seus
derivados na culinaacuteria cotidiana das famiacutelias a comida do cotidiano a comida
dos dias de festa e as relaccedilotildees de comensalidade nesses contextos os
alimentos comprados e os alimentos cultivados nos siacutetios as permanecircncias de
consumo e as mudanccedilas com a inserccedilatildeo de novos alimentos a mescla cultural
alimentar do tradicional com o moderno as manifestaccedilotildees de perpetuaccedilatildeo
tradicional na elaboraccedilatildeo das quitandas e as suas funccedilotildees no passado e no
presente nas praacuteticas alimentares do grupo pesquisado e por fim a oralidade
no saber fazer e na transmissatildeo das receitas
51 Comida ldquoforterdquo e comida ldquofraca contradiccedilotildees mudanccedilas e permanecircn-cias
Percebi nos depoimentos dos interlocutores a existecircncia de
categorizaccedilatildeo da comida entre ldquoforterdquo e ldquofracardquo Comida forte eacute aquela que
ldquosustentardquo sendo capaz de permitir um intervalo maior entre as refeiccedilotildees e ao
mesmo tempo executar as atividades mais pesadas sem sentir ldquofraquezardquo fiacutesica
Para eles isso tem a ver com a loacutegica de trabalho ou seja o objetivo eacute natildeo
precisar interromper as atividades com frequecircncia para se alimentar Os horaacuterios
apontados para as refeiccedilotildees satildeo cafeacute da manhatilde entre 530 e 600 merenda33
entre 830 e 900 almoccedilo entre 1100 e 1130 merenda da tarde entre 1430 e
1500 e jantar entre 630 e 1900 Em algumas famiacutelias foi citada a ldquomerenda da
noiterdquo que eacute feita pouco antes de dormir
33 ldquoMerendardquo eacute o termo que todos usam para se referir ao que se come nos intervalos entre o cafeacute da
manhatilde e o almoccedilo e entre o almoccedilo e o jantar e agrave noite antes de dormir
115
As informaccedilotildees relativas aos horaacuterios satildeo semelhantes para todas as
famiacutelias inclusive os aposentados disseram manter o ritual de acordar cedo
ainda que suas atividades de trabalho natildeo sejam mais intensas como no
passado
A percepccedilatildeo sobre ldquocomida forterdquo das famiacutelias se assemelha agravequela
discutida por Brandatildeo (1981) em sua pesquisa com agricultores em Goiacircnia O
autor aponta que para o grupo que pesquisou a relaccedilatildeo fortefraco que
atribuiacuteam agrave comida estava diretamente ligada agrave capacidade desse alimento em
garantir ao agricultor maior tempo de trabalho sem sentir fome
Homem forte eacute o homem sadio e resistente para o trabalho A comida forte eacute a que ldquotem sustanccedilardquo cujos efeitos satildeo reconhecidos de dois modos a) na sua capacidade de manter o trabalhador ldquoalimentadordquo por mais tempo sem vontade de comer de novo b) no seu poder de produzir e de conservar mais energia para a atividade braccedilal Eacute neste sentido que a ldquocomida forterdquo equivale ao ldquoalimentordquo categoria de que se exclui a ldquocomida fracardquo (BRANDAcircO 1981 p 109-110)
Para meus interlocutores comida forte eacute principalmente aquela feita com
gordura suiacutena Essa observaccedilatildeo eacute feita em contraposiccedilatildeo ao oacuteleo vegetal que eacute
um produto considerado ldquofracordquo e portanto natildeo oferece a ldquosustanccedila34rdquo desejada
por eles
Para quem trabalha na roccedila a comida feita com oacuteleo natildeo daacute muita sustanccedila A pessoa fica com fome fica meio fraco logo depois A gordura de porco segura mais (Maria 66 anos moradora do Coacuterrego de Itapeva Presidente Bernardes MG 2015)
Aqui se fizer a comida com oacuteleo a barriga comeccedila a roncar rapidinho o oacuteleo eacute fraco natildeo sustenta a gordura de porco eacute forte no serviccedilo que a gente mexe assim que eacute pesado tem de comer comida que sustenta (Carlos 49 anos morador de Posses Porto Firme MG 2015)
Sahlins (2003) ao discutir sobre a categoria de ldquoforccedilardquo atribuiacuteda a
comida relata que algumas culturas destacando a norte americana tem na
carne essa representaccedilatildeo fazendo dela um alimento baacutesico em sua dieta Pela
mesma razatildeo eacute grande consumidora de bacon No puacuteblico da pesquisa a
representaccedilatildeo da gordura e da carne tem uma aproximaccedilatildeo ao que eacute discutido
pelo autor por se tratar de alimento de origem animal como responsaacutevel pela
ldquoforccedilardquo Poreacutem a relaccedilatildeo de forccedila para consumo de carne e de bacon na cultura
34 O termo eacute a forma popular dada a ldquosubstacircnciardquo A capacidade de um alimento dar forccedila energia e
sustentar a fome
116
norte americana estaacute atrelada agrave fator socioeconocircmico como siacutembolo de riqueza
Para o grupo pesquisado a forccedila estaacute atrelada agrave capacidade que a gordura de
porco tem de ampliar o tempo de saciedade mas tambeacutem pelo paladar que
confere agrave comida Neste uacuteltimo aspecto ou seja o da preferecircncia pelo sabor da
gordura se comparada ao oacuteleo Essa preferecircncia eacute tambeacutem justificada pela razatildeo
praacutetica do uso da gordura que eacute o de ser um alimento mais forte e o que melhor
daacute sustentaccedilatildeo
Zaluar (1979) observou a importacircncia da classificaccedilatildeo da comida em
estudo com comunidade de baixa renda na aacuterea urbana Descreve que o grupo
classifica alimentos que consideram como ldquocomidasrdquo porque conferem
saciedade (carne gordura de porco arroz feijatildeo e macarratildeo) e alimentos que
apenas ldquoenganam a fomerdquo (saladas frutas verduras peixe etc) servindo para
o grupo apenas como complemento Nesta classificaccedilatildeo haacute uma diferenccedila do
conceito de comida que se difere de alimento atribuiacuteda por DaMatta (1987)
Tanto no caso do grupo pesquisado por Zaluar na aacuterea urbana quanto no grupo
que pesquisei em aacuterea rural a razatildeo praacutetica para classificar alimentos como
forte estaacute associada agrave necessidade de garantir condiccedilotildees fisioloacutegicas no tempo
dedicado ao trabalho pesado
No grupo que pesquisei visando facilitar o consumo da gordura mais da
metade das famiacutelias cria suiacutenos para essa finalidade Engordam um animal de
cada vez Em apenas uma dessas famiacutelias cria-se um nuacutemero maior para
comercializaccedilatildeo do animal
Haacute um ditado que diz que ldquodo porco soacute natildeo se aproveita o gritordquo pois eacute
possiacutevel usar tambeacutem o intestino para envolver as massas de linguiccedilas e
chouriccedilos o peacute o rabo a orelha e o focinho para feijoada a pele para fazer
torresmo Natildeo eacute difiacutecil entender porque a criaccedilatildeo dos suiacutenos caipiras demonstrou
ser tatildeo importante no grupo pesquisado A alimentaccedilatildeo dos porcos pode ser
produzida nos proacuteprios siacutetios como o fubaacute a cana de accediluacutecar a silagem de
mandioca e ateacute aboacuteboras e batatas doces cozidas misturadas ao fubaacute Nos siacutetios
que visitei o mais usado era o fubaacute
Segundo os agricultores que ldquoengordam o capadordquo35 o animal eacute abatido
sempre que a gordura acaba mas mata-se tambeacutem em veacutespera de festas como
35 Termo que escutei com frequecircncia durante a pesquisa Trata-se do porco castrado destinado agrave engorda
117
natal e ano novo e ainda em casamentos e demais festividades que acontecem
na aacuterea rural Em 2012 na festa de bodas de ouro dos sogros de Lola moradores
da comunidade de Xopotoacute em Presidente Bernardes parte da criaccedilatildeo existente
no siacutetio foi abatida Segundo Lola ldquomatamos dois capados de 17 arrobas e mais
de 15 galinhas caipirasa carne de boi noacutes compramosah e muita linguiccedila
tambeacutemrdquo Da mesma forma Eliana (69 anos moradora de Itapeva em
Presidente Bernardes) compartilhou que para a sua festa de bodas de ouro com
Saturnino ocorrida em junho de 2014 no quintal da casa a famiacutelia matou dois
suiacutenos e aproximadamente 10 frangos caipiras
No cotidiano das famiacutelias engordar um porco no quintal tem a funccedilatildeo
tanto de obter a gordura (banha) como a carne que na maioria das casas eacute
conservada na gordura O que mais ocorre eacute a carne acabar primeiro do que a
gordura Se em tempos passados usar a gordura para conservar as carnes era
uma necessidade jaacute que natildeo havia geladeira atualmente esse haacutebito permanece
por razotildees culturais e tambeacutem pelo sabor diferenciado prevalecendo assim seu
consumo como apontado no depoimento de Laeacutercio 68 anos
Mesmo tendo geladeira a gente ainda conserva a carne na gordura de porco tempera a carne hoje amanhatilde a gente cozinha e frita um pouco quando ela estaacute coradinha a gente potildee na gordura e ela pode ficar ateacute 3 4 meses na gordura natildeo estraga natildeo Uma parte a gente ateacute potildee na geladeira e congela mas natildeo eacute gostoso igual natildeo Muda muito com o frango eacute a mesma coisa Se a gente arruma ele para comer logo depois que mata o sabor eacute um se congela quando vai comer depois eacute outro gosto Natildeo fica bom (Laeacutercio morador de Itapeva em Presidente Bernardes MG 2015)
Tambeacutem na aacuterea urbana o consumo da gordura de porco tem suas
ramificaccedilotildees Natildeo raro eacute possiacutevel verificar em lojas especializadas em produtos
artesanais em Minas Gerais principalmente em lanchonetes de beira de estrada
e pequenos armazeacutens a venda do chamado ldquoporco na latardquo
O sabor conferido agrave comida foi constantemente relacionado com a
gordura suiacutena Os interlocutores deixaram transparecer em suas falas que a
apreciaccedilatildeo do sabor da comida refogada na gordura tem suas raiacutezes no gosto
herdado de geraccedilotildees passadas Cresceram comendo dessa forma Todos
afirmaram preferir o sabor da comida preparada na gordura agrave que eacute feita no oacuteleo
principalmente a verdura o feijatildeo e o arroz como declara Afonso (79 anos
morador de Ribeiratildeo em Presidente Bernardes) ldquoPara mim a verdura tem que
ser feita na gorduraa couve na gordura tem outro saborrdquo e Gilberto (75 anos
118
morador de Manja em Piranga) ldquoA comida feita na gordura de porco eacute mais
saborosa a gente jaacute acostumou com o sabor a couve feita no oacuteleo fica lisa na
gordura ela fica suculentardquo
A gordura eacute usada principalmente para refogar36 hortaliccedilas legumes e
feijatildeo Todos as famiacutelias apreciam a couve refogada na gorduraldquoDeus o livre
de comer uma verdura feita com oacuteleo natildeo fica gostoso do mesmo jeitordquo
Verdura eacute o termo utilizado pelos interlocutores para todos os produtos derivados
da horta inclusive os legumes Encontramos em Frieiro (1982) a explicaccedilatildeo
sobre essa heranccedila cultural
Eacute de recente data o uso de gorduras vegetais alimentiacutecias Antes natildeo era assim a gordura geralmente usada era a de toucinho a banha de porco Os dois alimentos de maior importacircncia para a gente mineira sempre foram o feijatildeo e o toucinho Feijatildeo eacute que escora a casa diz um ditado popular Sim e o toucinho daacute substacircncia ao feijatildeo podia agregar-se Sem a banha que o tempera seria comestiacutevel ldquoo feijatildeo nosso de cada diardquo A comida tradicional dos mineiros nada em banha de porco Dos assados e frituras de todos os guisados e ensopados das sopas dos molhos e farofas pinga a gordura em que satildeo preparados (FRIEIRO 1982 p 156)
Garcia (2013) discute a relaccedilatildeo de comportamentos culturais associados
agrave alimentaccedilatildeo afirmando que a heranccedila do gosto por certo tipo de comida e pela
forma de preparaccedilatildeo eacute responsaacutevel na maioria das vezes pela resistecircncia em
adotar praacuteticas novas e experimentar comidas diferentes e aceitar novos sabores
e texturas ao paladar tradicional Uma das razotildees para a couve permanecer
como verdura predileta do cotidiano natildeo eacute apenas por ser a hortaliccedila mais
resistente da horta mas principalmente pela sua preparaccedilatildeo combinada com a
gordura de porco Essa forma de preparaccedilatildeo compreende aquele ldquosistema
culinaacuteriordquo tratado por Poulain (2013 e 2014) e Fischler (1979 e 1995) que
envolvem regras determinantes (crenccedilas valores siacutembolos representaccedilotildees e
haacutebitos) na escolha preparo e consumo de alguns alimentos O que Sahlins
(2003) chama de ldquorazotildees culturaisrdquo que envolvem o haacutebito alimentar Essa
discussatildeo de sistema culinaacuterio se aplica tambeacutem a outras praacuteticas tradicionais
que fazem parte do grupo pesquisado como a tradiccedilatildeo de fazer as proacuteprias
quitandas mais consumidas
36 Refogar segundo Cacircmara Cascudo (2004 p 522) significa ldquoferver na gordurardquo
119
A estrateacutegia de quem natildeo tem essa criaccedilatildeo no siacutetio eacute comprar a gordura
produzida pelos vizinhos ou mesmo no accedilougue da cidade Eacute comum ocorrer o
abate em parceria familiar ou com a participaccedilatildeo de vizinhos proacuteximos com a
distribuiccedilatildeo entre eles das partes do animal mesmo porque para o abate satildeo
necessaacuterias pelo menos trecircs pessoas segundo a explicaccedilatildeo de Lola O sistema
de partilha no abate de suiacutenos eacute tradicional em muitas aacutereas rurais brasileiras e
uma heranccedila dos portugueses Moura (2013) em seu interessante livro sobre a
tradiccedilatildeo dos embutidos e da produccedilatildeo de suiacuteno caipira na regiatildeo de Traacutes-os-
Montes e Auto Douro em Portugal mostra que os procedimentos de criaccedilatildeo
matanccedila e distribuiccedilatildeo das carnes se assemelham muito agraves que ocorrem no meio
rural brasileiro Tambeacutem Cacircndido (1982) relata em sua pesquisa como se dava
o processo relativo agrave distribuiccedilatildeo da carne suiacutena e de caccedila entre os caipiras
paulistas
Segundo os velhos desde sempre eacute haacutebito ndash quase se diria ndash instituiccedilatildeo a oferta daqueles tipos de carne aos vizinhos imediatos que moram agrave vista ou constituem uma unidade vicinal Quando se mata um porco ou uma caccedila envia-se um pedaccedilo a cada vizinho () Do ponto de vista alimentar essa praacutetica funciona como uma forma de regularizaccedilatildeo do abastecimento caacuterneo jaacute que cada um mata um porco de tempos em tempos (CAcircNDIDO 1982 p 163-164)
Compreendo que este contexto de sociabilidade entre vizinhos eou
familiares que envolve tambeacutem doar ou receber uma parte do animal se
assemelha agrave relaccedilatildeo ldquodaacutediva-trocardquo discutida por Mauss (2003) como forma de
manter a sociabilidade os laccedilos e a dependecircncia reciacuteproca entre os grupos No
caso de vizinhos que ajudam na atividade quando aquele que recebeu vier a
matar o seu animal a reciprocidade ocorreraacute ou seja ele doaraacute ao outro vizinho
parte do animal O que tambeacutem se aproxima do que Cacircndido (1982) discute
sobre a informalidade e obrigaccedilatildeo moral que compotildee as relaccedilotildees de mutiratildeo no
meio rural
Mas haacute nesse sistema algo mais do que simplesmente uma troca de
favor como no entendimento de Mauss (2003) de que a daacutediva natildeo eacute meramente
uma retribuiccedilatildeo formal ou proveniente de um contrato verbal Ela se constitui em
uma relaccedilatildeo que envolve respeito e um tipo de acordo que eacute simboacutelico tanto
assim que a parte da carne a ser doada eacute escolhida pelo doador sem nenhum
acordo anterior
120
Apesar do sabor da gordura de porco ser preferido ao oacuteleo em todas as
famiacutelias em algumas esse consumo tem sido reduzido como nas famiacutelias de
Zefa e Armando e de Maria e Laeacutercio Nos dois casos haacute restriccedilotildees alimentares
para os filhos que satildeo transplantados renais37 Em funccedilatildeo disso os pais jaacute
aposentados optaram pela reduccedilatildeo do consumo de gordura de porco e outros
alimentos gordurosos Disseram que por um tempo tentaram acompanhar
totalmente a dieta dos filhos mas natildeo conseguiram sucesso por sentirem falta
tanto da gordura quanto da carne suiacutena Assim a comida tem sido preparada de
forma separada Como esse preparo separado eacute mais trabalhoso Zefa 67 anos
e o marido 75 anos continuam no esforccedilo de adaptaccedilatildeo ao consumo do oacuteleo
demonstrando solidariedade ao filho 42 anos cuja abstinecircncia alimentar tem
sido difiacutecil
Os outros dois casos de restriccedilatildeo agrave gordura de porco satildeo de mulheres
que demonstraram preocupaccedilatildeo com a sauacutede embora natildeo tenham apontado
nenhum problema especifico Relacionam o consumo da gordura como
prejudicial e em funccedilatildeo disso tambeacutem tecircm tentado reduzir o seu consumo Nilsa
(42 anos moradora de Satildeo Domingos em Porto Firme) justificou ldquoTodo mundo
fala que gordura de porco faz mal para a sauacutederdquo Na sua famiacutelia tem havido
resistecircncia por parte do marido que natildeo abre matildeo da carne de porco e da verdura
refogada na gordura Embora ela admita preferir o sabor da comida com a
gordura de porco acredita que para ter uma qualidade de vida melhor devem
abrir matildeo de seu consumo O marido discorda da esposa natildeo abrindo matildeo do
consumo da gordura e nem da carne de porco A diminuiccedilatildeo tem ocorrido com
dificuldade e tem gerado algum tipo de conflito sobre as escolhas alimentares
deste casal que mora sozinho pois os filhos estudam em outras cidades
O depoimento acima de Nilsa estaacute relacionado agraves divulgaccedilotildees sobre
sauacutede em programas de televisatildeo matinais que ela informou assistir de vez em
quando enquanto cuida dos afazeres da casa Informaccedilotildees sobre pesquisas de
alimentos e sobre sauacutede tecircm sido divulgadas frequentemente pelos meios de
comunicaccedilatildeo O risco de tais informaccedilotildees eacute confundir as pessoas quando natildeo
se faz uma reflexatildeo sobre o assunto Para o consumidor leigo o resultado de
37 Interessante a coincidecircncia de haver dois adultos jovens do sexo masculino com problemas renais e que
passaram por transplante Ambas famiacutelias pertencem agrave mesma comunidade mas natildeo haacute grau de parentesco entre eles
121
uma pesquisa divulgada em meios de comunicaccedilatildeo pode dar uma ideia
distorcida sobre o consumo de um alimento No caso de Nilsa ela demonstrou
considerar que o consumo de gordura de porco prejudica a sauacutede de sua famiacutelia
baseado no que ldquoescuta dizerrdquo Ainda assim houve um momento da conversa
em que ela ponderou criticamente ldquoAgora eu natildeo sei porque faz malnossos
pais e avoacutes a vida inteira comeram comida com gordura e natildeo sei de nenhum
deles que ficou doente por causa dissordquo
Em relaccedilatildeo agrave carne vermelha e a gordura principalmente o bacon e
outras carnes processadas a Organizaccedilatildeo Mundial de Sauacutede (OMS) acaba de
publicar o relatoacuterio do International Agency for Research on Cancer (IARC)38
sobre a associaccedilatildeo do consumo desses alimentos ao cacircncer de intestino O
resultado da pesquisa foi amplamente divulgado por jornais de televisatildeo e na
internet Eacute constante a divulgaccedilatildeo de novas pesquisas de alimentos associados
agrave sauacutede repassar esta informaccedilatildeo eacute funccedilatildeo da OMS como pondera Contreras
(2015) No entanto vaacuterios alimentos jaacute foram apontados como vilotildees da sauacutede
e tempos depois a partir de novas pesquisas deixaram de ser Em funccedilatildeo disso
Fischler (2015) denomina essa situaccedilatildeo como uma espeacutecie de cacofonia sobre
o tema da comida jaacute que o conhecimento cientiacutefico eacute dinacircmico e passiacutevel de
sofrer alteraccedilotildees e cita o exemplo do cafeacute que foi classificado como canceriacutegeno
para depois ser considerado como siacutembolo de longevidade
Profissionais de sauacutede e socioacutelogos da alimentaccedilatildeo tecircm se manifestado
publicamente a respeito da divulgaccedilatildeo recente sobre a carne vermelha Alertam
para o risco que uma leitura apressada sobre o assunto possa gerar ao comedor
fazendo com que abandone por completo o consumo de carne e com isso
apresente problemas de outra natureza por carecircncia de proteiacutenas por exemplo
Destacam a necessidade de relativizar e discutir mais sobre o quanto se come
de um determinado alimento O que natildeo se deve eacute ldquodemonizar alimentosrdquo
pondera Rivera (2015) para natildeo gerar pacircnico desnecessaacuterio nos consumidores
ldquoEs necesaria una estrategia de comunicacioacuten que explique bien las
conclusiones de un informe sin caer en el dramardquo esclarece o antropoacutelogo Xavier
Medina (2015) Para a antropoacuteloga Vilagrave (2015) falar dos riscos agrave sauacutede causado
por alimentos que fazem parte da cultura alimentar de boa parte da populaccedilatildeo
38 Disponiacutevel em httpwwwiarcfrenmedia-centrepr2015pdfspr240_Spdf Acesso em 28 out 2015
122
mundial eacute assunto que merece muito cuidado Assim defende que o mais
interessante seria divulgar que as pessoas sem quadro de doenccedilas podem
comer de tudo mas sempre com moderaccedilatildeo
Outra famiacutelia entrevistada a de Carmem (48 anos moradora de Jacuba
em Porto Firme) tem optado por reduzir o consumo de vaacuterios alimentos aos
quais sempre esteve habituada em funccedilatildeo da dieta de emagrecimento por
recomendaccedilatildeo profissional Assim abriu matildeo da carne e da gordura de porco
de alimentos que contenham gluacuteten do leite de vaca e seus derivados Como no
caso anterior seu marido tambeacutem natildeo adotou a mesma dieta A diferenccedila eacute que
ela prepara separadamente a comida do casal39 No dia a dia Carmem tem uma
atividade de trabalho pesada cuida da casa da horta prepara todas as
refeiccedilotildees tira leite lava o curral varre o quintal em torno da casa ndash atividade que
estava fazendo quando cheguei em sua casa pela manhatilde Ela reclama que sente
fome mas ainda assim estaacute resistindo e seguindo a restriccedilatildeo alimentar
Eu agora soacute posso tomar leite de soja com biscoito de polvilho de manhatilde cedo ai eu tomo isso mas eu tenho que tirar leite muito cedo quando eu acabo eu jaacute estou morrendo de fome aquilo natildeo sustenta ai eu vou comer a mesma coisa de novo Natildeo eu faccedilo um mingau de fubaacute natildeo fica gostoso como como o com leite de vaca mas ajuda a esperar o almoccedilo (Carmem 48 anos moradora de Jacuba em Porto Firme MG 2015)
Nossa conversa continuou na cozinha onde a observei preparando as
comidas separadas Almoccedilamos agraves 1130 Comi a mesma comida feita para o
marido arroz feijatildeo couve carne de porco cozida e meio frita angu e moranga
Carmem comeu moranga com feijatildeo que cozinhou separadamente sem
gordura e sem oacuteleo temperados com sal e alho ovo frito e couve refogada no
oacuteleo de soja
Carmem demonstrou ansiedade em relaccedilatildeo ao que comer ao longo do
dia sendo que parte dessa preocupaccedilatildeo estaacute presente em seu depoimento
acima A outra ansiedade foi demonstrada pela dificuldade em obter resultados
satisfatoacuterios em relaccedilatildeo agrave perda de peso Ela precisa fazer a dieta mas ao
mesmo tempo precisa se sentir ldquoforterdquo para realizar os trabalhos no siacutetio A
situaccedilatildeo vivenciada por ela estaacute relacionada agrave discussatildeo feita por Arnaiz (2005) e
Fischler (1995 e 2015) sobre a ansiedade do comedor contemporacircneo Para os
39 Seus filhos tambeacutem estudam e moram em outras cidades
123
autores eacute cada vez mais difiacutecil saber o que se estaacute comendo e eacute tambeacutem mais
complexo fazer escolhas alimentares No processo de escolha o alimento
precisa ser de boa aparecircncia e qualidade ter baixas calorias natildeo fazer mal agrave
sauacutede natildeo ser caro Aleacutem disso o autor menciona a necessidade de
identificaccedilatildeo do alimento se identificar com a opccedilatildeo moral do comedor por
exemplo seu cultivo natildeo deve ser prejudicial ao meio ambiente natildeo deve utilizar
matildeo de obra escrava etc Tudo isso gera ansiedade na escolha do que comer
Dessa forma Fischler (1995 e 2015) defende que uma nova patologia estaacute
surgindo para aquelas pessoas obcecadas por dieta a ortorexia nervosa que
tem como uma de suas caracteriacutesticas o fato de uma pessoa passar mais de trecircs
horas diaacuterias preocupada com o que vai comer40
Haacute ainda o caso da famiacutelia de Joatildeo e Marli (81 e 72 anos
respectivamente aposentados moradores de Aacutegua Lima em Porto Firme) Em
seu siacutetio a atividade leiteira gera renda para o casal mas sobretudo para o filho
que administra a atividade e mora na cidade A famiacutelia optou por abandonar a
criaccedilatildeo extensiva de suiacutenos porque escutava falar ldquoque a gordura faz mal ao
coraccedilatildeordquo Em funccedilatildeo disso o consumo foi reduzido acreditando natildeo compensar
manter a criaccedilatildeo Aleacutem disso segundo Joatildeo antes havia muitos filhos em casa
para alimentar assim ldquoengordar o porcordquo era mais barato do que comprar a
carne e a gordura Embora tenham reduzido o uso da gordura de porco natildeo a
retiraram da dieta por completo Compram no accedilougue e ela continua sendo
usada dois dias na semana aproximadamente Como criam gado costuma-se
matar um animal e assim o consumo de carne de boi natildeo eacute raro nesta famiacutelia
como o eacute nas outras O depoimento de Joatildeo a seguir chama a atenccedilatildeo para o
fubaacute assunto que seraacute discutido no toacutepico especiacutefico mais agrave frente nesse
trabalho e essa parte de seu depoimento seraacute retomado na discussatildeo A
dificuldade de acessar o uacutenico moinho drsquoaacutegua existente na regiatildeo tambeacutem foi um
motivo que levou a famiacutelia a desistir da criaccedilatildeo dos suiacutenos
Eu engordava porco mas os meacutedicos estatildeo proibindo a gente de comer gordura ai nem engordo mais porco natildeoquando daacute vontade a gente compra um toucinho a carne compra sempre Tambeacutem natildeo compensa engordar natildeo porque o moinho de fazer fubaacute pra porco eacute longe daqui e esses fubaacutes moiacutedos nessas maquinas de hoje (eleacutetrica) nem os porcos gostam muito sabe a gente ateacute que tem um moinho
40 Mais informaccedilotildees sobre esse assunto ver Martins et al (2011)
124
bem pequeno aqui mas eacute soacute pra moer o milho para gente fazer angu e broa (Joatildeo morador de Aacutegua Limpa em Porto Firme MG 2015)
As situaccedilotildees das cinco famiacutelias citadas acima sinalizam o quanto mudar
o haacutebito alimentar e abrir matildeo do costume e do gosto aprendido eacute uma tarefa
difiacutecil mesmo que o apelo para isso seja a sauacutede principalmente quando o
alimento em questatildeo estaacute relacionado a uma atividade produtiva que tambeacutem
possui um apego tradicional como eacute o caso do porco caipira Para Bourdieu
(2007) formaccedilatildeo do gosto e a construccedilatildeo do haacutebito alimentar que eacute algo
aprendido na convivecircncia social sendo a famiacutelia o principal grupo de
aprendizado De Garine (1987) discute que em funccedilatildeo do haacutebito alimentar estar
ligado aos costumes herdados de geraccedilotildees passadas a mudanccedila de uma
alimentaccedilatildeo mais tradicional para uma industrializada natildeo ocorre facilmente
tampouco se daacute de maneira raacutepida Eacute um processo lento e que encontra
resistecircncia do comedor o quanto for possiacutevel
O oacuteleo vegetal eacute um desses exemplos de resistecircncia mas que aos
poucos se insere nas praacuteticas alimentares das famiacutelias Seu uso estaacute presente
em quase todas as casas pesquisadas exceto na famiacutelia de Eliana e Saturnino
que natildeo se adaptaram ao seu consumo para o preparo de nenhum alimento que
consomem no dia a dia No restante das famiacutelias o oacuteleo tem sido usado com
parcimocircnia principalmente para algumas frituras conforme os relatos a seguir
ldquoPorque o oacuteleo deixa a batata mais bonita e mais sequinha o peixe tambeacutem fica
melhor mais crocanterdquo (Margarida 74 anos moradora de Xopotoacute em Presidente
Bernardes) ldquoo arroz fica mais soltordquo (Luisa 57 anos moradora de Bom Retiro
em Porto Firme) ldquonatildeo uso mais gordura para fritar batata doce natildeo soacute oacuteleo
ateacute para lavar a panela eacute mais faacutecilrdquo (Juliana 48 anos moradora de Tatu em
Piranga)
Apesar da preferecircncia pela gordura suiacutena o oacuteleo vegetal tem dividido
espaccedilo com a gordura de porco no sistema culinaacuterio das famiacutelias Nestes casos
eacute um exemplo da possibilidade de introduccedilatildeo de um produto industrializado na
alimentaccedilatildeo sem que tenha sido necessaacuterio abrir matildeo radicalmente de um
produto tradicional excetuados os casos onde haacute restriccedilatildeo alimentar como jaacute
citado
O apego ao sabor e agrave crenccedila na capacidade de sustentaccedilatildeo alimentar
gerada pelo uso da gordura de porco faz com que seu consumo permaneccedila
125
como prioritaacuterio nas famiacutelias Poreacutem novos haacutebitos podem ser aprendidos
conforme argumenta Nevot (2011) Para este autor as mudanccedilas de haacutebitos
alimentares na sociedade atual satildeo permanentes Quanto mais novidades
alimentares emergem com novas tecnologias de produccedilatildeo novas informaccedilotildees
sobre os alimentos satildeo fornecidas ampliando a possibilidade de mudanccedilas de
haacutebitos Surge a necessidade de se aprender cada vez mais a escolher o que
comer Se por um lado herdamos haacutebitos alimentares as circunstacircncias nos
fazem adquirir outros novos
Por outro lado o excesso de novidades alimentares faz com que alguns
alimentos tradicionais sejam colocados em questatildeo gerando a anguacutestia
alimentar do comedor contemporacircneo apontada por Fischler (1995 2011 e
2015) No caso da gordura de porco de um lado estaacute um alimento habitual que
eacute heranccedila cultural tradicional e repassado oralmente por avoacutes e pais um
alimento considerado importante ldquoforterdquo de paladar agradaacutevel e que natildeo era
visto como prejudicial agrave sauacutede dos seus antepassados De outro lado existe a
preocupaccedilatildeo gerada nos tempos atuais que indica o mesmo alimento como
maleacutefico agrave sauacutede e portanto a ser evitado e substituiacutedo por um produto de fonte
vegetal e industrializado o oacuteleo
No grupo pesquisado a questatildeo relacionada agrave origem do oacuteleo vegetal
natildeo surgiu como preocupaccedilatildeo Nenhum interlocutor tocou no assunto da
transgenia associado a esse produto por exemplo Apenas destacaram como
pouco saudaacutevel o consumo da gordura do porco Por outro lado a opccedilatildeo da
maioria das famiacutelias em continuar a consumir a gordura de porco sinaliza uma
influecircncia mais acentuada dos fatores culturais em relaccedilatildeo aos fatores
nutricionais e cientiacuteficos na escolha dos alimentos questatildeo discutida por Garcia
(2009) e Mintz (2001)
511 Outras comidas ldquofortesrdquo
No capiacutetulo 2 utilizei Frieiro (1982) e Zemella (1951) para destacar a
importacircncia histoacuterica da criaccedilatildeo dos suiacutenos no quintal das casas com objetivo
de mitigar o problema da fome surgida durante a fase da mineraccedilatildeo em Minas
Gerais Surgiu daiacute o haacutebito de consumir a carne a gordura e o uso de outras
partes do animal adicionadas ao feijatildeo que se constituiacutea em alimento de grande
126
valor energeacutetico e proteico muito usado em funccedilatildeo disso como alimento dos
escravos Dessa mistura surgiu o que hoje conhecemos como feijoada O feijatildeo
foi tatildeo importante quanto o milho a mandioca a couve a gordura o toucinho e
o arroz para a manutenccedilatildeo das atividades mineradoras
No cotidiano alimentar das famiacutelias pesquisas eacute haacutebito cozinhar o feijatildeo
com toucinho que eacute tambeacutem considerado como alimento ldquoforterdquo O feijatildeo eacute item
diaacuterio nas refeiccedilotildees e seu consumo e cultivo tem laccedilos de heranccedila cultural e
histoacuterica assim como o suiacuteno caipira Apenas trecircs famiacutelias natildeo cultivam o feijatildeo
Uma parte do que eacute produzido eacute comercializada por seis famiacutelias nas demais
em 31 delas a produccedilatildeo destina-se apenas ao autoconsumo Durante a
pesquisa de campo algumas famiacutelias estavam comeccedilando a fase da colheita e
pude observar algumas pessoas no trabalho homens no geral Eacute um trabalho
difiacutecil pois eacute feita no modo tradicional arrancados agrave matildeo O trabalho das
mulheres se daacute principalmente na hora de bater e limpar o produto que seraacute
armazenado no paiol
Para aleacutem da gordura da carne suiacutena e do feijatildeo outros alimentos satildeo
considerados como sendo ldquofortesrdquo para manter o organismo bem nutrido para o
trabalho e satildeo consumidos com muita frequecircncia Satildeo eles o arroz a batata
doce a mandioca o angu e as farinhas de milho e de mandioca
O arroz consumido diariamente natildeo eacute mais produzido pelas famiacutelias
pela dificuldade que seu cultivo tem representado nos uacuteltimos anos segundo os
depoimentos de alguns dos interlocutores
Noacutes colhiacuteamos muito arroz natildeo precisava comprar mas jaacute tem uns cinco anos que a gente parou de mexer com arroz porque fica muito caro produzir do que comprar e tem os passarinhos que atacam a plantaccedilatildeo de arroz um passarinho preto que a gente chama de chupin A gente natildeo pode fazer nada contra eles porque eacute proibido mas quando chega a hora da colheita natildeo tem mais quase nada nos cachinhos de arroz (Lucio 46 anos morador de Bom Jesus do Bacalhau em Piranga MG 2015)
Ateacute uns anos atraacutes a gente plantava arroz socava no pilatildeo soacute para o consumo da famiacuteliamas comeccedilou a dar problema na uacuteltima vez que plantamos quando chegou a eacutepoca de cachear veio o sol muito forte ai natildeo saiu o cachoai resolvemos acabar com a plantaccedilatildeo (Onofre 67 anos morador de Mestre Campos em Piranga MG 2015)
Os entrevistados mencionaram uma diferenccedila no sabor e no aspecto do
arroz industrializado em comparaccedilatildeo ao que cultivavam como mostra o
depoimento de Mafalda (57 anos moradora de Ribeiratildeo em Presidente
127
Bernardes) a seguir Destacaram que o aspecto do tradicional que eles
cultivavam era mais grosseiro e amarelado e que o sabor era diferente aleacutem de
ser mais macio e poroso o que fazia com que o tempero impregnasse melhor
Por outro lado disseram que o industrializado leva menos tempo para ser cozido
Apesar de preferirem o arroz tradicional adquirir arroz no mercado atualmente
eacute mais interessante do que cultivaacute-lo levando-se em consideraccedilatildeo o custo-
benefiacutecio Mais uma vez aparecem aqui aspectos que pesam na escolha
alimentar semelhante ao que acontece com a escolha do oacuteleo vegetal e da
gordura de porco Mafalda expotildee em seu depoimento os aspectos que
considera positivos do arroz atual industrializado (ficar soltinho com a cor clara)
e os negativos (menos saboroso demora para absorver o tempero natildeo daacute a
ldquoligardquo considerada necessaacuteria na elaboraccedilatildeo do arroz doce)
Tem bastante diferenccedila O arroz que a gente colhia ele nunca ficava clarinho sempre tinhas uns gratildeos amarelos no meio poreacutem ele era um arroz mais gostoso Ele era mais macio e pegava mais o tempero Ele era melhor tambeacutem para fazer arroz doce porque ele dava mais liga Esses comprados natildeo daacute liga entatildeo o arroz de hoje natildeo eacute igual ao que a gente fazia antes Mas ele tambeacutem natildeo ficava soltinho na panela como o arroz que a gente refoga hoje Antigamente para ele ficar soltinho a gente tinha que espremer um limatildeo Hoje ficou mais faacutecil pra gente fazer (Mafalda moradora de Ribeiratildeo em Presidente Bernardes MG 2015)
Os demais alimentos considerados ldquofortesrdquo como a mandioca a batata
doce e o milho satildeo produzidos nos siacutetios e satildeo consumidos quase que
cotidianamente seja no cafeacute da manhatilde no almoccedilo e no jantar
A batata doce eacute quase sempre frita ou assada na brasa do fogatildeo a lenha
Usa-se consumi-la pela manhatilde acompanhada de cafeacute41 O mesmo ocorre em
relaccedilatildeo agrave mandioca Mas para consumo no almoccedilo e jantar o mais comum eacute
servi-la cozida ou ensopada com carne
O polvilho derivado da mandioca tambeacutem natildeo eacute mais produzido pelas
famiacutelias em todas elas esse produto agora eacute comprado O polvilho eacute usado
principalmente para fazer brevidade um tipo de bolo que eacute elaborado
esporadicamente Observei que em todas as casas haacute o consumo do biscoito de
polvilho assado poreacutem eacute tambeacutem comprado no mercado Agraves vezes se faz o
biscoito de polvilho frito mas as mulheres alegam que por espirrar muito durante
41 O cafeacute eacute feito em aacutegua adoccedilada e passado no coador de pano Natildeo vi o uso de coadores de papel em
nenhuma das casas
128
a fritura e ser bom para comer apenas por algumas horas apoacutes o preparo ele
natildeo eacute mais habitual como no passado Foi um tempo segundo as mulheres em
que sempre havia muita gente para comer e os produtos industrializados eram
parcos e caros no mercado Aleacutem disso o acesso aos mercados era mais difiacutecil
tornando necessaacuterio produzir praticamente tudo o que era destinado a
alimentaccedilatildeo das famiacutelias Os depoimentos a seguir de Anita (71 anos moradora
de Manja em Piranga) e de Lena (70 anos moradora de Ribeiratildeo em Presidente
Bernardes) tambeacutem sinalizam assim como ocorreu com o arroz que em razatildeo
da praticidade alguns modos tradicionais satildeo substituiacutedas ou passam a ser
retomados apenas em momentos especiacuteficos como naqueles que envolvem
reuniatildeo familiar e um grupo maior de pessoas nas casas Lena menciona o fato
da reduccedilatildeo do tamanho das famiacutelias quando comparadas com as famiacutelias dos
antepassados Outros entrevistados fizeram a observaccedilatildeo de que ldquoantes havia
muita gente na roccedilardquo ldquoantigamente as famiacutelias eram maioresrdquo A reduccedilatildeo do
nuacutemero de pessoas nas famiacutelias ndash na minha pesquisa o tamanho meacutedio eacute 36
pessoas por famiacutelia ndash interfere nas praacuteticas alimentares seja haacute menos pessoas
para se alimentar no dia a dia seja pelo fato de natildeo haver quem ajude na cozinha
e na elaboraccedilatildeo das quitandas Motivos que geram um certo tipo de desacircnimo
em investir em pratos mais trabalhosos que eram feitos e socializados nos
grupos familiares de antigamente
ldquoNa casa da minha matildee fazia muito polvilho Naquela eacutepoca todo mundo fazia muita brevidade agora ficou tatildeo faacutecil comprar o polvilho mas daacute muito trabalho fazer o biscoito frito e o assado natildeo eacute caro no mercado quase todo mundo prefere comprarrdquo (Anita moradora de Manja Piranga MG 2015)
ldquoEu fazia muito biscoito de polvilho frito quando os meninos eram pequenos eles gostavam Mas hoje eu quase natildeo faccedilo maissoacute se eles quando estatildeo aqui me pedem ai eu faccedilo Soacute para noacutes dois a gente compra esse do mercado mesmordquo (Lena moradora de Ribeiratildeo em Presidente Bernardes MG 2015)
Aleacutem do polvilho obtido da mandioca o milho e os seus derivados fazem
parte da cultura alimentar mineira como foi mostrado no capiacutetulo 2 a partir dos
apontamentos de Frieiro (1982) Zemella (1951) Meneses (2007) Arruda
(1999) Cacircmara Cascudo (2004) e Abdala (2007) O milho nesse periacuteodo foi
considerado mais importante do que a mandioca em funccedilatildeo de ser muito usado
tambeacutem para alimentaccedilatildeo animal conforme Meneses (2007) Com o passar dos
anos o milho assumiu lugar mais destacado do que a mandioca na culinaacuteria
129
mineira conforme Frieiro (1982) e Abdala (2007) A regiatildeo da pesquisa como jaacute
visto no referido capiacutetulo eacute uma das primeiras a serem ocupadas por ocasiatildeo da
mineraccedilatildeo em Minas Gerais Isso pode ter influenciado a permanecircncia da
tradiccedilatildeo do consumo do fubaacute que como mostrarei a seguir tem presenccedila
marcante na dieta das famiacutelias
52 Consideraccedilotildees sobre a importacircncia do milho e do fubaacute
Oraccedilatildeo ao Milho (Cora Coralina)
Fui o angu pesado e constante do escravo na exaustatildeo do eito Sou a broa grosseira e modesta do pequeno sitiante Sou a farinha econocircmica do proprietaacuterio sou a polenta do imigrante e a amiga dos que comeccedilam a vida em terra estranha Alimento de porcos e do triste mu de carga o que me planta natildeo levanta comeacutercio nem avantaja dinheiro Sou apenas a fartura generosa e despreocupada dos paioacuteis Sou o cocho abastecido donde rumina o gado Sou o canto festivo dos galos na gloacuteria do dia que amanhece Sou o cacarejo alegre das poedeiras agrave volta dos ninhos Sou a pobreza vegetal agradecida a voacutes Senhor que me fizestes necessaacuterio e humilde Sou o milho
Com exceccedilatildeo das famiacutelias de Antocircnio e Marieta e de Marilia todas as
outras cultivam o milho A produccedilatildeo eacute pequena e destinada agrave alimentaccedilatildeo
animal mas tambeacutem agrave elaboraccedilatildeo de fubaacute produzido em todos os siacutetios onde a
planta eacute cultivada Apenas uma famiacutelia possui moinho movido agrave aacutegua o restante
utiliza moinho eleacutetrico Na ocasiatildeo da pesquisa o moinho drsquoaacutegua era uma
raridade na aacuterea rural pesquisada segundo informaccedilatildeo dos entrevistados Tive
a oportunidade de ver um moinho muito antigo em funcionamento no siacutetio de
Manoel e Donana (72 e 54 anos respectivamente moradores de Limeira em
Porto Firme) (Figura 7) Este moinho tem sua estrutura feita em madeira e jaacute
apresentava sinais de sua idade com algumas peccedilas presas com arame O
trabalho eacute perfeito poreacutem lento Pertenceu aos pais de Manoel foi muito utilizado
no passado e permanece em uso para autoconsumo familiar O moinho se
localiza na margem da estrada por onde passa o coacuterrego A porta de acesso fica
130
constantemente entreaberta mas nunca houve roubo de fubaacute ou depredaccedilatildeo do
local
(a) (b)
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 7 ndash Moinho drsquoaacutegua no siacutetio de Manoel e Donana na Comunidade Limeira Porto Firme
A Figura 8 mostra o moinho eleacutetrico adotado atualmente pelas famiacutelias
O moinho da figura pertence agrave famiacutelia de Nanaacute e Custoacutedio na comunidade
Xopotoacute em Piranga Muito diferente do anterior executa o trabalho com maior
rapidez do que o de moinho drsquoaacutegua poreacutem com qualidade inferior como
apontado pelos entrevistados Neste tipo de moinho natildeo pode observar o
moinho sendo feito jaacute que ele segue direto para o pequeno silo acoplado agrave
maacutequina
Apesar da preferecircncia pelo fubaacute feito no moinho drsquoaacutegua meus
interlocutores afirmaram ter sido necessaacuteria a adaptaccedilatildeo ao moinho eleacutetrico que
se tornou mais usual principalmente em funccedilatildeo da reduccedilatildeo de aacutegua disponiacutevel
nos uacuteltimos anos Mencionaram ainda outro fator que consideram importante
para a reduccedilatildeo da utilizaccedilatildeo do moinho drsquoaacutegua Segundo eles as pessoas mais
velhas se importavam mais em manter os moinhos drsquoaacutegua por ser considerada
uma praacutetica tradicional mas quando os moinhos eleacutetricos surgiram o apelo agrave
praticidade falou mais alto e o moinho drsquoaacutegua foi perdendo espaccedilo nos siacutetios
administrados pelas geraccedilotildees mais novas
131
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 8 ndash Moinho eleacutetrico no siacutetio de Nanaacute e Custoacutedio na Comunidade Xopotoacute em Piranga
Antigamente muita gente tinha moinho drsquoaacutegua aqui mesmo tinham uns 3 ou 4 numa distacircncia de 5 Km por aquifoi acabando os velhos foram morrendo e os mais novos natildeo quiseram saber de mexer com isso natildeo (Alonso 82 anos morador de Xopotoacute em Presidente Bernardes MG 2015)
Os moinhos tocados a aacutegua ficam quase sempre mais longe da casa perto de onde corre uma aacutegua neacute O eleacutetrico pode ficar em qualquer lugar debaixo de uma coberta ou perto do paiol daacute menos trabalho e de primeiro tinha muita gente na roccedila natildeo tinha problema ter muito serviccedilo mas hoje dessa gente nova natildeo tem quase ningueacutem mais aqui (Francisco 64 anos morador de Satildeo Domingos em Porto Firme MG 2015)
A reduccedilatildeo no uso desses moinhos comeccedilou a ocorrer haacute
aproximadamente 15 anos quando ainda era possiacutevel encontrar mais facilmente
o ldquofubaacute de moinho drsquoagua para comprar Se por um lado a adoccedilatildeo do moinho
eleacutetrico facilitou o trabalho por outro o fubaacute produzido por ele sofreu alteraccedilatildeo
na textura e sabor Joatildeo (81 anos morador de Aacutegua Limpa em Porto Firme)
pondera que o fubaacute originado do moinho eleacutetrico ldquonatildeo agrada nem aos animaisrdquo
Segundo os depoimentos o fubaacute de moinho drsquoaacutegua era fino e mais
uacutemido A diferenccedila para o produto do moinho eleacutetrico eacute que ele produz um fubaacute
mais grosso e ressecado Essas caracteriacutesticas alteraram o sabor e a textura de
dois alimentos muito importantes na culinaacuteria da regiatildeo pesquisada a broa e o
132
angu Segundo as mulheres ldquoa broa de antes tinha mais ligardquo Assim para
melhorar sua textura a broa que era elaborada de puro fubaacute passou a ter a
adiccedilatildeo de uma parte de farinha de trigo
As discussotildees em torno das mudanccedilas ocasionadas no fubaacute foram
longas e contaram com participaccedilatildeo interessada de muitos homens que
culturalmente natildeo costumam a discutir assuntos culinaacuterios Talvez isso se
explique pelo fato de os produtos derivados do fubaacute serem tatildeo importantes na
alimentaccedilatildeo cotidiana de todas as famiacutelias e por ser utilizado uma maacutequina para
produzi-lo objeto considerado culturalmente como de domiacutenio masculino Em
funccedilatildeo da importacircncia desses alimentos considero interessante adicionar um
nuacutemero maior de depoimentos mesmo ciente de que em um vieacutes etnograacutefico
deve-se tomar cuidado com o excesso de depoimentos em que estejam
evidenciadas ideias semelhantes conforme observaccedilatildeo feita por Peirano (1995)
() pena que hoje quase natildeo acha mais fubaacute de moinho drsquoaacutegua o fubaacute era fininho e dava uma broa maciahoje as maacutequinas quase que torram o fubaacute A broa fica mais ou menos neacute Eu faccedilo uma broinha com rapadura que ficava muito deliciosa mesmo era quando feita com o fubaacute fino (Neuzeli 63 anos moradora de Vinte Alqueires em Porto Firme MG 2015)
A broa feita com fubaacute do moinho eleacutetrico fica muito solta o sabor da comida mudou muito taacute tudo muito mudado em tudo na roccedila (Vanilda 55 anos moradora de Mestre Campos em Piranga MG 2015)
Por ser raridade o fubaacute produzido no moinho drsquoaacutegua tem ganhado
valorizaccedilatildeo no mercado Encontrado agrave venda apenas nos mercados de produtos
artesanais o seu preccedilo eacute superior ao fubaacute industrializado Poucos produtores
colocam o produto agrave venda pois como a produccedilatildeo eacute pequena ela objetiva
atender agraves necessidades das famiacutelias como o caso de Manoel e Donana Ter
um moinho drsquoaacutegua na propriedade no periacuteodo colonial significava haver ali um
grande uso do fubaacute para diferentes funccedilotildees no local Era considerado na eacutepoca
um equipamento sofisticado segundo Andrade (2014) Atualmente ele eacute visto
como ultrapassado de trabalho lento e atividade trabalhosa perdendo seu
espaccedilo para a tecnologia oferecida pelo moinho eleacutetrico A relaccedilatildeo tradicional e
moderno referente aos moinhos reportam agraves diferentes geraccedilotildees no grupo
pesquisado Em vaacuterios depoimentos foi constante a associaccedilatildeo dos moinhos
drsquoaacutegua como objetos de desinteresse das geraccedilotildees mais novas Assim o
produto gerado pelo moinho tradicional apesar de ser preferido em termos de
133
sabor e textura natildeo eacute um argumento forte o suficiente para que seu uso se
mantenha sob os cuidados dos mais jovens
Ao tratar sobre as substituiccedilotildees dos equipamentos modernos pelos
tradicionais no preparo dos alimentos Giard (2012) discute que a mudanccedila natildeo
se daacute apenas pela substituiccedilatildeo do aparelho ou utensiacutelio mas tambeacutem da relaccedilatildeo
instrumental entre o utilizador o objeto utilizado O moinho dacuteaacutegua eacute mais
trabalhoso de ser utilizado porque se localizava distante das casas como o
exemplo daquele da famiacutelia que visitei Eacute preciso controlar o tempo e fazecirc-lo
parar de funcionar manualmente diferente do moinho eleacutetrico que desliga
sozinho Aleacutem disso a sua produccedilatildeo eacute lenta produz-se muito menos fubaacute no
moinho drsquoaacutegua do que no moinho eleacutetrico no mesmo espaccedilo de tempo Na
contemporaneidade em uma sociedade liacutequido-moderna adaptar-se agraves novas
tecnologias eacute uma forma de natildeo perder tempo como reflete Bauman (2009)
Para Giard (2012) algumas mudanccedilas nas praacuteticas alimentares satildeo inevitaacuteveis
e para usufruir as vantagens de uma cultura material eacute preciso estar pronto para
lidar com seus inconvenientes Em alguns casos a convivecircncia entre uma
praacutetica tradicional e uma moderna eacute possiacutevel mas nem sempre No caso do fubaacute
do moinho tradicional e do eleacutetrico por exemplo natildeo haacute alternativa Eacute preciso
fazer a escolha No caso do fubaacute produzido nos dois tipos de moinhos a
lembranccedila do produto tradicional ainda estaacute na memoacuteria inclusive a do paladar
como mostra a fala de Jonas
Fubaacute de moinho drsquoaacutegua eacute coisa rara demaisquando eu falo chego a sentir o gosto do bolo feito de fubaacute de antigamente e angu o angu de fubaacute de moinho drsquoaacutegua era alaranjado assim meio avermelhado hoje ele fica branco (Jonas 53 anos morador da comunidade Satildeo Domingos em Porto Firme MG 2015)
Sobre a ligaccedilatildeo entre memoacuteria e tradiccedilatildeo Giddens (2012) citando
Halbwachs (1992 p 100) diz que ldquoo passado desmorona mas soacute desvanece
na aparecircncia pois continua a existir no inconscienterdquo As observaccedilotildees sobre o
passado em que existia o moinho drsquoaacutegua foram carregadas de memoacuterias
lembranccedilas de sabores e por que natildeo de idealizaccedilatildeo Um passado que para
meus interlocutores se opotildee ao presente em vaacuterios aspectos dentre eles o
alimentar o artesanal versus o industrial ou seja ou moinho drsquoaacutegua versus o
moinho eleacutetrico Identificar e destacar a comida e os modos de fazer do passado
como no depoimento anterior de Jonas eacute um exemplo dos momentos em que
134
somos visitados pelos cheiros e sabores do passado discutido por Giard (2012)
sobre a memoacuteria afetiva e do quanto o presente e o passado se entrelaccedilam no
imaginaacuterio das pessoas quando se trata de falar sobre comida Para Moulin
(1975 apud GIARD 2012) o tipo de comida preferida de uma pessoa eacute sempre
o mesmo ou muito semelhante agravequele dos pais
Em suma noacutes comemos o que nossa matildee nos ensinou a comer Gostamos daquilo que ela gostava do doce ou do salgado da geleia de manhatilde ou dos cereais do chaacute ou do cafeacute de tal forma que eacute mais loacutegico acreditar que comemos nossas lembranccedilas as mais seguras temperadas de ternuras e de ritos que marcaram nossa primeira infacircncia (MOULIN apud GIARD 2012 p 251)
Depoimentos semelhantes agravequele dado por Vanilda sobre as mudanccedilas
relacionadas agrave comida ldquoo sabor da comida mudou muito estaacute tudo muito
mudado em tudo na roccedilardquo me conduziam a perguntar O que mudou na comida
As respostas dos interlocutores foram no sentido de apontar aqueles alimentos
que eram comuns para eles no passado na infacircncia e juventude e que jaacute natildeo
satildeo mais facilmente encontrados Aleacutem da gordura animal que jaacute foi discutida o
fubaacute tambeacutem permanece no cotidiano Mesmo natildeo sendo mais aquele preferido
produzido no moinho drsquoaacutegua ainda continua presente em vaacuterias elaboraccedilotildees de
quitandas principalmente na broa e no angu alimento que eacute consumido
diariamente pelas famiacutelias
O angu mineiro possui uma mistura simples fubaacute e aacutegua No capiacutetulo 2
mostrei que esse alimento natildeo usava sal pois era um produto raro na regiatildeo
mineradora e portanto caro
Outra maneira de consumir o angu aleacutem daquela servida em almoccedilo e
jantar foi apontada pelas famiacutelias como sendo muito apreciada pelos mais
velhos Eacute o angu adicionado ao leite e sal formando um mingau grosso
geralmente se comia assim na merenda usando a sobra do angu
Antigamente a merenda mais comumisso quando eu ainda era solteira era leite com angu no leite quente ou frio agraves vezes quando me daacute saudade de comer ai eu faccedilo quando a gente era crianccedila tinha sempre (Mercecircs 41 anos moradora de Bom Jesus do Bacalhau em Piranga MG 2015)
O curau doce agrave base de milho foi citado como uma iguaria feita em dias
festivos como no Natal O mingau salgado que tambeacutem eacute a base de fubaacute eacute muito
consumido principalmente em dias frios Trata-se do ldquomingau de couverdquo ou
135
ldquobambaacute de couverdquo Este prato eacute assim como a canjiquinha de milho um dos
caldos preferidos
A canjiquinha e o mingau de couve a gente faz muito aquimas quando estaacute muito calor natildeo neacute Porque eacute para comer bem quentinho que eacute gostoso eu tambeacutem faccedilo quando a comida do almoccedilo eacute pouca para o jantar ai a gente costuma jantar uma sopa coloca muita couve e cebolinha vocecirc natildeo conhece essas comidas natildeo neacute42 (Selma 68 anos moradora de Tatu em Piranga MG 2015)
Outro derivado do milho que jaacute foi muito consumido mas que raramente
eacute elaborado hoje eacute o cuscuz doce agrave base de fubaacute accediluacutecar aacutegua e queijo43 Esse
tipo de cuscuz segundo ele pode ser comido puro com cafeacute ou com leite Um
doce que segundo os interlocutores pode ser comido com colher por ter a
consistecircncia de uma farofa grossa Apesar de ser doce ele possui queijo na
mistura e que tambeacutem era preferencialmente consumido nas merendas
Geralmente eacute feito em uma panela proacutepria o cuscuzeiro mas as mulheres
disseram que nem todos tinham o cuscuzeiro por isso se fazia em uma panela
dentro de outra com aacutegua semelhante agrave teacutecnica do banho maria O cuscuz
salgado natildeo foi citado e quando perguntei sobre ele disseram natildeo ser conhecido
na regiatildeo
Antocircnio 78 anos que aleacutem de agricultor teve uma pequena padaria em
Piranga haacute deacutecadas atraacutes foi dentre os homens entrevistados o que se
mostrou mais interessado em culinaacuteria e relatou algumas de suas experiecircncias
como padeiro e sobre as quitandas patildees e bolos que fazia Contou
detalhadamente como era o cuscuz que fazia Ao compartilhar sua experiecircncia
e reviver as lembranccedilas de eacutepocas passadas Antonio demonstrou emoccedilatildeo pois
esse era um alimento que sentia prazer em fazer e em degustar Ele guarda as
receitas de tudo que fazia na memoacuteria revelando a importacircncia que a padaria
teve em sua vida
O cuscuz natildeo eacute mais elaborado pelas famiacutelias como antes porque eacute
possiacutevel encontrar outros alimentos que os substituem e porque alguns
alimentos permaneceram como haacutebitos cotidianos como os bolos broas que
42 Eu tambeacutem era constantemente ldquoentrevistadardquo por eles Respondi que conheccedilo os dois pratos e que
gosto muito de ambos 43 O queijo usado em muitos ingredientes e consumidos no dia a dia eacute produzido por todas as 34 famiacutelias
(85) que tem atividade leiteira nos siacutetios mas a produccedilatildeo do queijo eacute basicamente para autoconsumo Jaacute a manteiga eacute um produto menos comum de ser fabricado atualmente pelo trabalho de sua produccedilatildeo Mas eacute um alimento que permanece como haacutebito alimentar Compra-se a industrializada ou de vizinhos que porventura fabriquem
136
satildeo feitas em casa e caso contraacuterio satildeo facilmente encontradas no mercado
Segundo Giard (2012) uma explicaccedilatildeo para o abandono de algumas praacuteticas
passadas na culinaacuteria estaacute nas mudanccedilas das provisotildees e ofertas no mercado
Nesse caso ldquopermanece apenas a lembranccedila interiorizada dos sabores antigosrdquo
(p 274) como eacute o caso das recordaccedilotildees de Antonio sobre o cuscuz que fazia
com frequecircncia no passado e que tinha muita aceitaccedilatildeo de seus clientes da
padaria
Uma coisa que eu jaacute fiz muito e que vocecirc natildeo deve nem nunca ter ouvido falar Cuscuz torrado Veja bem natildeo eacute cuscuz cozido no vapor natildeo eacute assado O cuscuz torrado eu fazia assim Socava no pilatildeo 1 quilo e meio de fubaacute 34 de rapadura uma pitada de sal socava ateacute que desmanchava e ficava um beiju sabe Ai levava na focircrma peneirava quando enchia apertava bem cortava e punha no forno brando para torraroh Mas ficava uma coisa fora do comum Jaacute vendi demais isso aqui por essas bandas depois que eu parei de fazer nunca mais eu vi Ele esfarinhava na hora de comervocecirc conhece paccediloca A consistecircncia era parecida com a paccediloca de amendoim (Antonio 78 anos morador de Boa Vista em Piranga MG 2015)
Segundo Cacircmara Cascudo (2004) o cuscuz eacute originaacuterio dos Mouros na
Aacutefrica (Egito a Marrocos) e se escreve originalmente ldquokuz-kuzrdquo Agrave base de arroz
farinha de trigo ou sorgo passou a ser feito de milho com o avanccedilo do cultivo da
plantam do a partir do seacuteculo XVI Mas tanto os africanos quanto os portugueses
jaacute conheciam o cuscuz quando chegaram ao Brasil se em Portugal era
considerado prato aristocraacutetico em final do seacuteculo XVII ldquoNo Brasil pela
humildade do fabrico era manutenccedilatildeo de famiacutelias pobres julgava-se lsquocomida de
negrosrsquo trazida pelos escravosrdquo (p 190)
A pesquisa mostrou que o fubaacute assume posiccedilatildeo de destaque no
cotidiano alimentar das famiacutelias Aleacutem de alimento considerado ldquoforterdquo guarda
tambeacutem um significativo papel cultural as recordaccedilotildees de alimentos que eram
elaborados antes e que natildeo se fazem mais os modos de moer o fubaacute de antes
e de agora interagem com os lugares de emoccedilatildeo relacionados agrave comida Ao
lembrar de como um alimento ou uma praacutetica ocorria acontece tambeacutem o
resgate daqueles que o faziam ou seja dos ldquoguardiatildees da tradiccedilatildeordquo dos quais
nos falam Giddens (2012) e Simsom (2003) A razatildeo alegada para explicar o
porquecirc de alguns alimentos do passado que faziam parte da merenda terem
deixado de ser consumidos como o angu com leite e o cuscuz foi que na
contemporaneidade existem muitas opccedilotildees de merenda que a opccedilatildeo passa a
137
ser pela praticidade neste caso Satildeo alimentos a serem feitos quando se sente
vontade de comecirc-los No cotidiano eacute a broa que assumiu o lugar das outras
merendas agrave base de milho justamente pela rapidez de sua elaboraccedilatildeo
53 Comida de todo dia comida de festa e as relaccedilotildees de comensalidade
531 Comida de todo dia o trivial
Aqui na roccedila falando a verdade o que a gente come mesmo eacute angu arroz feijatildeo e uma verdura (Afonso 79 anos morador de Ribeiratildeo em Presidente Bernardes MG 2015)
A comida de todo dia eacute angu ateacute mesmo para alimentar os animais (cachorro gato galinha) couve arroz feijatildeo e uma carne quase sempre de porco (Ana Luisa 45 anos moradora de Bom Jesus do Bacalhau em Piranga MG 2015)
Destaco o iniacutecio do item com dois depoimentos porque eles sintetizam o
que eacute a comida cotidiana das famiacutelias pesquisadas inclusive naquelas famiacutelias
que possuem crianccedilas adolescente e jovens embora eu tenha conversado com
apenas cinco jovens que se encontravam no siacutetio na ocasiatildeo da entrevista
Segundo os meus interlocutores os pais cultivam nos filhos os seus haacutebitos
alimentares ao manter o mesmo tipo de alimentaccedilatildeo para adultos e crianccedilas
Assim pelo menos em casa dos pais a comida natildeo varia em funccedilatildeo de outras
preferecircncias alimentares e segundo as informaccedilotildees natildeo ocorre disparidades
nesse sentido
Em todas as famiacutelias quatro alimentos estatildeo presentes no almoccedilo de
todos os dias da semana angu arroz feijatildeo ovo ou carne e verdura refogada
em gordura de porco Mesmo havendo variaccedilatildeo para a verdura como serralha
almeiratildeo e mostarda a couve eacute a mais consumida na contemporaneidade assim
era tambeacutem no periacuteodo da mineraccedilatildeo e da ruralizaccedilatildeo
Todas as famiacutelias tecircm hortas nos quintais algumas bem cuidadas e com
grande variedade de plantas outras fragilizadas e com poucos cultivos A
estiagem do periacuteodo foi a grande responsaacutevel pelas ldquohortas fracasrdquo mas em
todas elas havia couve Em uma horta por exemplo havia apenas couve
cebolinha salsa quiabo e jiloacute As hortaliccedilas e ldquocheiro verderdquo mais presentes eram
a couve a serralha a mostarda o almeiratildeo a alface a cebolinha de folha a
138
salsa o manjericatildeo e a hortelatilde Uma hortaliccedila comum na culinaacuteria mineira a
taioba estava presente em poucas hortas Segundo as mulheres por ser
periacuteodo de estiagem a produccedilatildeo dessa hortaliccedila estava prejudicada pois
necessita de muita umidade
Frieiro (1982) Magalhatildees (2004) e Arruda (1990) tratam da importacircncia
que o cultivo da horta teve para a regiatildeo mineradora em Minas Gerais numa fase
de escassez de alimentos Ela era cultivada nos quintais de todas as casas para
garantir o acesso nas refeiccedilotildees agraves fontes de legumes frutas hortaliccedilas e
tubeacuterculos Passado a fase da escassez alimentar na regiatildeo mineradora de
Minas as hortas permaneceram sendo cultivadas Atualmente cultivar a horta
natildeo se daacute mais por carecircncia alimentar jaacute que o acesso agrave compra no mercado eacute
possiacutevel e a baixo custo Mas eacute importante para os entrevistados ter o prazer de
colher a hortaliccedila fresca pouco antes de preparar a refeiccedilatildeo As razotildees satildeo
sobretudo culturais e simboacutelicas para manter a tradiccedilatildeo como no caso das
famiacutelias que pesquisei Ter uma horta ldquobonitardquo eacute motivo de orgulho Maria (66
anos moradora de Itapeva Presidente Bernardes) enquanto mostrava e falava
com tristeza de sua horta que estava sofrendo com a estiagem comentou
ldquominha horta estaacute mirrada feiaparecendo ateacute horta de gente preguiccedilosardquo
Outro motivo para a importacircncia da horta para as famiacutelias pesquisadas eacute a
certeza da qualidade do alimento que cultiva As famiacutelias demonstraram
preocupaccedilatildeo com o uso de agrotoacutexico e natildeo sentem seguranccedila na aquisiccedilatildeo de
alimentos in natura que agraves vezes precisam adquirir no mercado
Os demais vegetais cultivados pelas famiacutelias pesquisadas satildeo aboacutebora
moranga batata doce mandioca inhame chuchu jiloacute quiabo berinjela e tomate
do mato Esses vegetais satildeo produzidos em todas as hortas e muito consumidos
nas refeiccedilotildees diaacuterias A exceccedilatildeo eacute para o tomate que natildeo eacute habito de consumo
local Esporadicamente consomem o tomate que chamam de ldquotomate do matordquo
que nascem naturalmente sem precisar cultivar O principal motivo para natildeo
cultivarem e natildeo consumirem o tomate eacute a necessidade de utilizar muito
inseticida Evitam o maacuteximo o uso de agrotoacutexico nos produtos cultivados no siacutetio
mas natildeo conseguem deixar de usaacute-lo no milho para substituir o roccedilado manual
com a enxada e tambeacutem no feijatildeo armazenado Eacute interessante que esse receio
natildeo os impede de consumir a massa de tomate na macarronada dos domingos
139
Vegetais como cenoura beterraba batata baroa berinjela couve-flor
broacutecolis repolho cebola de cabeccedila e alho satildeo produzidos por poucas famiacutelias
Mas a cebola e o alho jaacute foram cultivados com frequecircncia na regiatildeo No siacutetio de
Maria e Laeacutercio em Itapeva Presidente Bernardes as hortaliccedilas estavam muito
fragilizadas e havia pouquiacutessimas plantas basicamente couve quiabo e
cebolinha mas ela mostrou orgulhosa sua colheita de cebola de cabeccedila e alho
que estava no paiol (Figura 9) dois produtos que natildeo satildeo cultivados por todas
as famiacutelias embora muito consumidas A cebola de cabeccedila por exemplo era
um produto comprado no comeacutercio da comunidade pela maioria das famiacutelias
Isso aponta para a importacircncia que tem para essa famiacutelia a produccedilatildeo de
alimentos que consomem no dia a dia Percebi na conversa com Maria e Laeacutercio
a valorizaccedilatildeo dada agrave produccedilatildeo para autoconsumo Em funccedilatildeo disso o lamento
pela ausecircncia de chuvas foi muito presente durante o diaacutelogo
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 9 ndash Cebolas e alhos armazenados no paiol do siacutetio de Maria e Laeacutercio na comunidade Itapeva em Presidente Bernardes
A pesquisa ocorreu em periacuteodo de colheita do amendoim cultivadas por
quase todas as famiacutelias basicamente para autoconsumo embora uma delas
tenha produzido o suficiente para comercializar Tive a oportunidade de em uma
delas acompanhar parte da colheita e ateacute experimentar arrancar a planta do
chatildeo Algumas mulheres disseram que iriam aproveitar para fazer peacute-de-
moleque A rapadura teria que ser comprada no mercado da cidade jaacute que natildeo
140
eacute mais produzida no siacutetio e em toda a regiatildeo eacute um produto pouco encontrado
Das famiacutelias que entrevistei apenas trecircs produziam rapadura e melado No
periacuteodo de campo a cana estava sendo toda utilizada para alimentaccedilatildeo do gado
A horta de Eliana e Saturnino (69 e 75 anos respectivamente) tambeacutem
de Itapeva Presidente Bernardes (Figura 10) eacute bem diversificada e bem cuidada
Eliana que gosta de cultivar plantas medicinais me mostrou uma delas e
perguntou ldquoVocecirc conhece o remeacutedio ldquoVickrdquo Olhe ele aqui eu tenho plantado
cheire uma folha muita gente aqui de perto vem buscar para tratar a gripe
chiado no peito sempre tratei a gripe dos meus filhos com elardquo Mariacutelia (62
anos moradora de Mestre Campos Piranga) tambeacutem possui uma horta muito
rica e com grande variedade de plantas medicinais Tanto ela quanto Eliana se
mostraram detentoras do conhecimento tradicional dos cultivos e das funccedilotildees
terapecircuticas das ervas medicinais e disseram ter aprendido com as matildees e avoacutes
Apesar de eu eleger as hortas das famiacutelias de Eliana e de Mariacutelia como as
melhores encontrar hortas bem cuidadas e diversificadas foi comum durante a
pesquisa Haacute uma preocupaccedilatildeo especial das mulheres em mantecirc-las produtivas
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 10 ndash Horta no siacutetio de Eliana e Saturnino em Itapeva Presidente Bernardes MG
Os vegetais produzidos nos siacutetios das famiacutelias satildeo aqueles consumidos
nas refeiccedilotildees diaacuterias No dia a dia raramente algum produto vegetal eacute comprado
no mercado exceto quando se deseja algum legume ldquodiferenterdquo como dizem O
periacuteodo de estiagem tambeacutem interfere nisso devido ao fato de que algumas
141
plantas satildeo menos resistentes agrave seca prolongada Durante o periacuteodo da
pesquisa isso ocorria em relaccedilatildeo a alface que natildeo eacute uma hortaliccedila consumida
com frequecircncia pois a preferecircncia eacute pelas verduras que podem ser refogadas
A batata inglesa tambeacutem eacute um produto muito raro na dieta dessas famiacutelias
passa-se meses sem consumi-la a preferecircncia eacute pela batata doce bem como o
inhame e a mandioca
Percebi que a alimentaccedilatildeo cotidiana das famiacutelias eacute muito semelhante
agravequela da fase da mineraccedilatildeo e ruralizaccedilatildeo descritas pelos autores que utilizei no
capiacutetulo como Frieiro (1982) Magalhatildees (2004) Arruda (1990) e Torres (2011)
A tradiccedilatildeo se perpetuou na regiatildeo sem grandes modificaccedilotildees Os mesmos
cultivos nas hortas as mesmas praacuteticas alimentares satildeo mantidas embora
novidades sejam inseridas como a panela eleacutetrica de fazer arroz que seraacute
discutida mais agrave frente
Outra hortaliccedila muito comum na culinaacuteria mineira o ora-pro-noacutebis ou
lobrobrocirc estava presente em quase todas as hortas embora seu consumo natildeo
seja cotidiano como as demais jaacute citadas Embora natildeo seja uma hortaliccedila muito
apreciada encontrei uma crianccedila que prefere o ora-pro-noacutebis agrave couve Ao
perguntar agrave Marcelina e Luiz moradores de Satildeo Domingos em Porto Firme
sobre as verduras que cultivavam e quais eram as mais consumidas
imediatamente o filho Faacutebio de 9 anos acrescentou ldquolobrobocirc taiobardquo
Perguntei-lhe entatildeo se gostava de verduras e ele confirmou Segundo a matildee
ldquoele adora todas as verduras lobrobrocirc ele come as folhas ateacute cruas e taioba e
folha de batata doce ele tambeacutem adora pede para eu fazer com angu e carne
de frangordquo Lola de Presidente Bernardes compartilhou situaccedilatildeo semelhante
sobre seu filho Andreacute de 10 anos O filho aprecia suco de couve (mais que os
refrigerantes) ldquoEles satildeo assim porque natildeo foram acostumados com isso
sempre ensinei que essas coisas fazem mal pra genterdquo
Conhecer o gosto destas duas crianccedilas por verduras e saber que esse
gosto estaacute atrelado aos haacutebitos alimentares dos pais nos conduz mais uma vez
agrave discussatildeo sobre heranccedila dos haacutebitos e gosto alimentar jaacute discutido no capiacutetulo
anterior Na casa dos pais de Faacutebio e tambeacutem em sua escola rural a presenccedila
de verduras de todos os tipos de acordo com a sazonalidade eacute comum Desde
muito novos os filhos deste casal foram introduzidos nos haacutebitos alimentares dos
pais Natildeo haacute o haacutebito familiar de consumir refrigerante que soacute eacute comprado para
142
a casa em dias de festa As bebidas do dia a dia da famiacutelia satildeo aacutegua e suco de
fruta da estaccedilatildeo Insisti em saber se era uma preocupaccedilatildeo com a sauacutede e a
resposta foi que a sauacutede vem como consequecircncia Para eles a prioridade eacute
consumir alimentos que produzem no local e evitar gastos com alimentaccedilatildeo no
mercado Aleacutem disso eacute a comida que estatildeo acostumados
Natildeo tive a oportunidade de conversar com outras crianccedilas durante a
entrevista mas tive depoimentos dos pais a respeito dos haacutebitos alimentares dos
filhos quando eram crianccedilas e que ainda sendo adolescentes manteacutem haacutebitos
alimentares muito parecidos com os dos pais Haacute o caso por exemplo dos filhos
de Antonina (74 anos moradora de Bananeiras em Presidente Bernardes
Antonina) que moram em Satildeo Paulo e que mesmo sendo adultos quando
visitam os pais nas feacuterias pedem para a matildee fazer ldquoa comida que eles estavam
acostumados a comer quando eram pequenosrdquo Esta fala coincide com a
compreensatildeo de Bourdieu (2007) sobre a formaccedilatildeo de haacutebitos alimentares que
sofrem grande influecircncia da convivecircncia dos grupos o que gera gostos muito
semelhantes entre os membros O haacutebito alimentar eacute construiacutedo nesse contexto
e podem ser diferentes de uma cultura para outra
Fui convidada a participar da mesa de refeiccedilotildees ldquode todo diardquo em 15
casas onde fui convidada a almoccedilar com a famiacutelia O horaacuterio de almoccedilo variou
de 1100 a 1130 e essa variaccedilatildeo tem a ver com o horaacuterio em que acordam e
iniciam as atividades que jaacute natildeo eacute mais tatildeo riacutegido como jaacute foi no passado Como
parte das conversas aconteciam geralmente nas cozinhas enquanto o almoccedilo
era preparado pude acompanhar todo o processo Me ofereci para ajudar em
alguma coisa na atividade da cozinha mas a uacutenica ajuda permitida foi
acompanhaacute-las ateacute a horta para ldquoapanharrdquo verdura
Em todos os almoccedilos que participei estavam presentes no cardaacutepio o
ldquotrivial mineirordquo denominaccedilatildeo atribuiacuteda por Eduardo Frieiro para ldquofeijatildeo angu e
couverdquo O autor apoacutes as pesquisas sobre a alimentaccedilatildeo em Minas Gerais da
fase mineradora ateacute meados da deacutecada de 1950 sugeriu alguns dos alimentos
que considerava possiacutevel serem caracterizados como tiacutepicos de Minas Gerais
A sugestatildeo se deu em funccedilatildeo da peculiaridade de seus preparos satildeo eles o
tutu de feijatildeo com torresmo ou linguiccedila o lombo de porco assado a couve
cortada fina e refogada e o angu sem sal
143
Aleacutem do feijatildeo do angu e da couve havia todos os dias tambeacutem o arroz
nas refeiccedilotildees que participei Assim eu elegeria como a comida tiacutepica do almoccedilo
do conjunto das famiacutelias desta pesquisa a seguinte composiccedilatildeo arroz feijatildeo
batido no liquidificador angu couve refogada e carne (de frango ou porco) O
feijatildeo batido eacute comum em Minas e no interior de Satildeo Paulo mas quase
desconhecido nos outros estados Eacute comum associar a Minas Gerais o feijatildeo
tropeiro e ao tutu mas nas famiacutelias que pesquisei a forma de servi-lo eacute
predominantemente batido temperado com gordura de porco e alho Antes de
haver o liquidificador o feijatildeo era amassado agrave matildeo com o uso de um ldquosocadorrdquo
depois adicionava-se aacutegua o resultado era um feijatildeo de caldo grosso e
diferentemente do tutu e do tropeiro natildeo lhe eacute adicionado farinha o que o torna
mais diferente do tutu e mais leve jaacute que a farinha lhe confere a categoria de
comida com ldquosustanccedilardquo Embora a carne de porco tenha sido a mais presente
a de frango tambeacutem foi marcante A carne de boi eu comi em apenas duas casas
na forma moiacuteda e cozida O frango sempre frito ou ensopado algumas vezes era
acompanhado de quiabo O peixe foi servido em uma casa pescado no rio que
passa na propriedade A disponibilidade da carne natildeo era farta mas suficiente
para tecirc-la no prato sem esbanjamento e proporcionar satisfaccedilatildeo Mas os outros
alimentos eram preparados em grande quantidade
Foi recorrente ser servida mais de uma fonte de carboidrato nas
refeiccedilotildees por exemplo arroz angu e ou moranga e ou mandioca e ou batata
doce e ou farinha e ou macarratildeo O carboidrato eacute responsaacutevel pelo suprimento
de energia do organismo Para as famiacutelias esses alimentos satildeo importantes para
dar ldquosustanccedilardquo e tambeacutem satildeo responsaacuteveis por compor um almoccedilo ldquoforterdquo assim
como sinalizaram em relaccedilatildeo agrave gordura de porco Esse aprendizado eacute por
transmissatildeo cultural a mesma loacutegica para o consumo da gordura de porco
532 Comida de domingo de dias festivos e comensalidade
A comida de domingo varia pouco O arroz e o feijatildeo satildeo consumidos
tambeacutem nesse dia Agraves vezes o feijatildeo batido eacute substituiacutedo pelo tutu com cebola
e pelo feijatildeo tropeiro A macarronada com frango ou com carne de panela
tambeacutem eacute um prato presente com frequecircncia aos domingos Todas as famiacutelias
que tecircm os filhos morando proacuteximos inclusive em Viccedilosa afirmaram que aos
144
domingos o almoccedilo eacute dia de reuniatildeo em famiacutelia os filhos e netos chegam para
o almoccedilo e laacute passam o dia Quando os sogros dos filhos moram perto eacute feita
uma divisatildeo almoccedilo em uma casa cafeacute da tarde ou jantar em outra As filhas e
ou noras ajudam no preparo do almoccedilo e de lavar a louccedila Os casais
aposentados que ficam muito sozinhos durante a semana consideram esses
momentos fundamentais porque ldquoo dia fica mais alegrerdquo
() eu fico soacute por conta de cozinhar para eles a mesa essas duas ai ficam sempre cheias de coisas em cima eacute biscoito eacute bolo eacute doce eu gosto de ver os filhos e os netos tranccedilando por ai eles gostam de ficar na cozinha na mesa natildeo cabe todo mundo ai eles colocam umas cadeiras e ficam aqui tambeacutem eles gostam de pegar ovos no galinheiro e bater gemada acostumei eles a comer gemada desde pequenos e eles soacute comem gemada aqui por causa do ovo daqui (Eliana 69 anos moradora de Itapeva em Presidente Bernardes MG 2015)
Nos dias de domingo a casa fica cheia minhas filhas costumam trazer um prato feito por elas e junta com o que eu faccedilo aqui eacute muita fartura eacute muito bom todo mundo conversa ri pena que no fim do dia vai todo mundo embora (Laurinda 77 anos moradora de Tatu em Piranga MG 2015)
A ldquofarturardquo da comida destacada por Laurinda nas ocasiotildees de encontro
familiar eacute um grande valor atribuiacutedo pelas famiacutelias rurais Fartura de alimentos
significa uma boa produtividade de alimentos na roccedila mas significa tambeacutem
seguranccedila Ter ldquoo de comerrdquo todos os dias garantido na mesa eacute um atributo que
lhes eacute importante nas suas condiccedilotildees de famiacutelias agricultoras
O espaccedilo de comensalidade nessas ocasiotildees eacute basicamente a cozinha
lugar preferido da famiacutelia quando estaacute reunida Lody (2008) defende que muitos
haacutebitos alimentares soacute se desenvolvem na medida em que a casa e sua cozinha
tornaram-se capazes de permitir a reuniatildeo da famiacutelia e amigos Talvez por isso
as cozinhas das casas que visitei fossem amplas mesmo que outros cocircmodos
da casa como a sala fossem pequenos Em todas as cozinhas havia um
cocircmodo acoplado pequeno e que funcionava como despensa A presenccedila de
mais de uma mesa foi comum mesa na cozinha com pelo menos seis cadeiras
e bancos de madeira recostados a uma das paredes a outra mesa ficava em
uma copa ou em uma aacuterea externa geralmente de meia parede tambeacutem
proacutexima agrave cozinha onde foi ficava instalado o forno de barro quando existia em
algumas casas ele costumava estar proacuteximo ao paiol embaixo de uma coberta
Assim esses satildeo os espaccedilos onde ocorre a comensalidade nas famiacutelias
145
sobretudo em ocasiotildees especiais como nos almoccedilos de domingo e nos
momentos de convivecircncia familiar nos finais de ano
A comensalidade no grupo entrevistado ocorre tambeacutem nos eventos
maiores Nesse caso pode-se formar uma rede de cooperaccedilatildeo de trabalho para
fazer os festejos acontecerem Duas mulheres contaram com riqueza de
detalhes sobre as festas de bodas de ouro que ocorreram no quintal das casas
Coincidentemente trata-se de duas famiacutelias de Presidente Bernardes A festa
dos sogros de Lola e Marcos ocorreu no siacutetio dos sogros na comunidade de
Xopotoacute em 2011 A festa de Eliana e Saturnino ocorreu tambeacutem no siacutetio na
comunidade de Itapeva em 2014 Jaacute citei essas duas festas anteriormente ao
falar dos animais que foram abatidos para o almoccedilo Em ambas algumas
caracteriacutesticas satildeo comuns uma delas eacute que a festa aconteceu no quintal o que
segundo Eliana ldquoeacute costume na regiatildeo aqui eacute muito pouca gente que aluga
salatildeo pra fazer festa e mesmo casamento acontece tudo aqui na roccedila mesmordquo
Os vizinhos dos siacutetios proacuteximos foram convidados Filhos e outros parentes que
moram fora tambeacutem estiveram presentes Nas duas festas a comida servida foi
a ldquocomida de roccedilardquo e como jaacute dito antes suiacutenos e frangos criados no local foram
abatidos O prato principal foi a carne o restante foi acompanhamento porque
como destacou Lola ldquoem dias de festa tem que ter muita carne que eacute do que o
povo gostardquo
Eliana contou que as mulheres da vizinhanccedila ajudaram com a
organizaccedilatildeo e tambeacutem a fazer ldquoa comida de veacutespera descascando batata
cozinhando mandioca matando e depenando os frangos para o dia da festa
os meus filhos contrataram umas cozinheirasrdquo
Foi realizada uma missa no paacutetio na frente da sua casa No quintal foram
colocados dois grandes ldquofogotildees de cupimrdquo e seu funcionamento seraacute detalhado
mais agrave frente Nestes fogotildees foram feitos os seguintes pratos macarratildeo com
pato tutu arroz frango frito farinha torrada mandioca frita e batata doce Natildeo
foi servida salada De bebida foram servidos refrigerante e cerveja A sobremesa
servida foi o ldquobolo de festa bem granderdquo que os filhos encomendaram da cidade
Foi muito boa a festa a missa a ajuda das mulheres aqui eacute assim todo mundo ajuda uns aos outros quando precisa Teve muacutesica e danccedila as pessoas podiam danccedilar se quisessem (Eliana Itapeva Piranga MG 2015)
146
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 11 ndash Fogatildeo de cupim no quintal do siacutetio de Eliana e Saturnino em Itapeva
Presidente Bernardes
Para a festa de bodas de ouro dos sogros de Lola estiveram presentes
em torno de 200 pessoas entre familiares e vizinhos de siacutetios proacuteximos Pelas
informaccedilotildees de Lola a festa teve maior investimento em produccedilatildeo Foi colocado
um telatildeo no quintal onde se mostrou a retrospectiva do casal desde o
casamento com montagens de fotos Soltaram muitos foguetes e teve muacutesica
de forroacute com espaccedilo para as pessoas danccedilarem no quintal Os filhos que moram
em cidades vizinhas e em Satildeo Paulo foram os responsaacuteveis pela organizaccedilatildeo
do evento e ao contraacuterio da festa do primeiro casal esta natildeo contou muito com
a participaccedilatildeo cooperativa dos vizinhos Todo o trabalho de veacutespera da cozinha
foi feito pela famiacutelia filhas filhos noras e genros do casal Foram contratadas
matildeo de obra para cozinhar no dia e servir a comida O cardaacutepio desta festa
consistiu de churrasco de carne bovina e suiacutena (a carne suiacutena de produccedilatildeo
local) linguiccedila frango frito arroz salpicatildeo farofa de milho vinagrete e uma
mesa de frutas Assim como na primeira festa nesta tambeacutem natildeo teve um prato
147
de saladas ou verduras refogadas apesar de elas estarem presentes nas
comidas de todo dia
Reportamos a Woortmann (1985) quando ele trata dos convites para
refeiccedilotildees em casa com o objetivo de reestabelecer sociabilidades e que nestas
ocasiotildees o aspecto fisioloacutegico ou nutritivo da alimentaccedilatildeo eacute pouco relevante
Mais importante eacute o papel social que ela exerce para agradar aos olhos ao olfato
e por fim ao paladar Eacute importante que as pessoas ao irem embora da festa
faccedilam elogios agrave comida e por isso ela precisa tambeacutem ser farta Como foi visto
no capiacutetulo 2 a carne em Minas nos primoacuterdios da mineraccedilatildeo era uma raridade
nas refeiccedilotildees e por isso passou a assumir um status simboacutelico importante na
refeiccedilatildeo a partir da fase da ruralizaccedilatildeo Fazer uma festa sem servir muita carne
seria motivo de criacutetica e natildeo de elogios Ao contraacuterio o excesso de carne eacute tanto
valorizado quanto classifica um ldquoalmoccedilo na roccedilardquo como farto e bom
Brandatildeo (1982) em sua pesquisa com agricultores do interior de Goiaacutes
trata da comida de festa na roccedila Para o seu grupo pesquisado o sabor e a
fartura da comida oferecida tambeacutem foi declarado como sendo o principal para
o sucesso de uma festa
O valor da comida ldquoboardquo ldquocom gostordquo estaacute em seu modo de preparo ruacutestico e na fartura o tempero forte ldquomuita banha de porco muito toucinho pimenta agrave vontaderdquo sobre uma comida tambeacutem forte e abundante ldquomuita carne de capado muito arroz e feijatildeo mandioca agrave vontaderdquo (BRANDAtildeO 1982 p 136)
Tambeacutem Falci (1995) relata sobre as festas de casamento na roccedila
regiatildeo do Piauiacute no final do seacuteculo XIX onde muita quantidade de comida era
servida mesmo sendo simples a festa de casamento precisava ser farta e era
tambeacutem importante que se convidasse toda a vizinhanccedila rural
Para a festa havia toda a organizaccedilatildeo pois natildeo se dispunha de armazenamento Os porcos tinham jaacute sido postos a sevar nos chiqueiros e estavam no ponto (de uns 8 a 10 kg cada um) assim como os outros animais Ateacute os parentes ajudavam no abastecimento da festa engordavam leitoas ou perus para a festa da sobrinha ou afilhada e no dia faziam-se assados em muitas casas amigas ou de parentes dos noivos (FALCI 1995 p 260)
Nessas ocasiotildees mais do que em dias normais a comida se apresenta
como um coacutedigo que expressa niacuteveis de relacionamento e de interaccedilatildeo social
como no sentido atribuiacutedo por Douglas (1972) Em festas ou manifestaccedilotildees
culturais tradicionais o alimento assume uma categoria de ldquocomidas-coacutedigordquo que
148
se apresenta com a funccedilatildeo binaacuteria de alimentaccedilatildeo e socializaccedilatildeo sendo
carregada de mensagens simboacutelicas
If food is treated as a code the message it encodes will be found in the pattern of social relations being expressed The message is about different degrees of hierarchy inclusion and exclusion boundaries and transactions across the boundaries Like sex the taking of food has a social component as well as a biological one Food categories therefore encode social events (DOUGLAS 1972 p 61)
Em um saacutebado pela manhatilde em que passei no siacutetio de Ana Luisa e Lucas
(45 e 52 anos respectivamente) na comunidade de Bom Jesus do Bacalhau para
agendar entrevista para a semana seguinte havia uma movimentaccedilatildeo de
pessoas Logo descobri que eram parentes que vieram de Ouro Preto e de Belo
Horizonte para passar o final de semana e como uma das sobrinhas estava
fazendo 15 anos de idade naquele dia a famiacutelia resolveu organizar
improvisadamente uma comemoraccedilatildeo no siacutetio Muitos balotildees coloridos estavam
sendo pendurados no teto e nos pilares da varanda Logo que entrei no corredor
externo que daacute acesso agrave cozinha avistei um bolo de aniversaacuterio sendo montado
O bolo jaacute estava com trecircs camadas e recheado de doce de leite e ameixa
faltando ainda a cobertura que seria com creme de coco Para a execuccedilatildeo do
bolo foram utilizados leite longa vida doce de leite e coco ralado ambos
industrializados O bolo estava sendo feito pelas irmatildes de Ana Luiacutesa enquanto
ela e o marido se dividiam na cozinha preparando ldquotira-gostosrdquo e a carne para o
almoccedilo Em um tacho de ferro sobre a trempe do fogatildeo a lenha Ana Luisa fritava
pedaccedilos de carne de porco e outra panela estava sendo frito o ldquomilhopatilderdquo (Figura
12) produzido por Ana Luisa Esse salgado eacute feito de uma mistura agrave base de
fubaacute caldo de galinha e polvilho azedo Segundo Lucas cujo avocirc foi tropeiro o
ldquomilhopatilderdquo artesanal eacute tradiccedilatildeo em sua famiacutelia e foi com a sogra que Ana Luisa
diz ter aprendido a fazer ldquoTodo mundo gosta a gente vende muito dele laacute no
mercadordquo
149
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 12 ndash Processo de fritura do ldquomilhopatilderdquo
A mesa da cozinha estava posta com rosquinha de sal amoniacuteaco queijo
bolo de milho e cafeacute Fui convidada a tomar ldquoum cafezinho e comer alguma coisardquo
e tambeacutem a experimentar o milhopatilde frito Em um dia tumultuado para a famiacutelia
minha visita se encerrou logo
Pude perceber alguns aspectos relacionados agraves praacuteticas alimentares
que satildeo tratados nesta pesquisa a sociabilidade demonstrada no trabalho
conjunto de organizaccedilatildeo da festa a utilizaccedilatildeo de produtos industrializados na
elaboraccedilatildeo do bolo a produccedilatildeo do ldquomilhopatilde alimento de receita tradicional da
famiacutelia a carne e o torresmo de porco caipira criado no siacutetio Nessas praacuteticas
alimentares desenvolvidas na cozinha dessa famiacutelia estiveram presentes agrave
praticidade em utilizar os produtos industrializados mas tambeacutem a manutenccedilatildeo
de praacuteticas tradicionais sinalizando nessa mescla fatores de permanecircncia e de
mudanccedila no sentido tratado por Poulain (2013) Giard (2012) Cacircmara Cascudo
(2004) e Doacuteria (2014)
A comensalidade tambeacutem ocorre envolvendo formas natildeo tradicionais agrave
cultura local Eacute o caso que ocorre na famiacutelia de Antocircnio e Marieta (78 e 73 anos
respectivamente) Antonio o ex-padeiro jaacute citado aqui que para agradar os netos
ndash crianccedilas e adolescentes que moram em aacuterea urbana ndash quando passam feacuterias
em seu siacutetio promove o que os netos chamam de a noite da ldquoPizzada do vovocircrdquo
Neste evento ele eacute o responsaacutevel por produzir pizzas no forno de barro do siacutetio
Disse jaacute ter virado uma tradiccedilatildeo familiar dos uacuteltimos anos Ele prepara as massas
e convoca os netos para ajudar a rechear as pizzas Esses satildeo momentos de
150
comensalidade familiar muito interessantes aleacutem de comerem juntos produzem
a comida em conjunto Geraccedilotildees diferentes partilhando os saberes e prazeres
da comida e da convivecircncia
A produccedilatildeo das pizzas chamou a atenccedilatildeo por natildeo ser um alimento que
faz parte da cultura da regiatildeo pesquisada Nenhum entrevistado aleacutem de
Antocircnio falou sobre esse alimento Tampouco ela eacute citada por Frieiro (1982) ou
Cacircmara Cascudo (2004) como alimentos consumidos em Minas Colonial A
pizza tem sua origem atribuiacuteda agrave Itaacutelia e passou a ser consumida no Brasil
justamente com a chegada desses imigrantes ao Paiacutes Segundo Antonio e
Marieta as pizzas comeccedilaram a ser produzidas por ele no forno de barro nos
encontros de feacuterias dos filhos e netos no siacutetio Uma de suas filhas mora no Rio
Grande do Sul e eacute casada com um descendente de italiano Com um nuacutemero
grande de familiares em casa nessas ocasiotildees e para agradar aos netos
Antocircnio que domina a atividade de panificaccedilatildeo optou em aprender a fazer as
pizzas Um exemplo de hibridismo cultural alimentar em funccedilatildeo de haacutebitos
diferentes de membros da famiacutelia O avocirc valorizando o habito alimentar dos
netos e praticando ao mesmo tempo a atividade de produzir massas que
considera como muito prazerosa Outro aspecto interessante eacute que se trata de
um alimento associado ao mercado fast food nos centros urbanos mas no caso
especificamente dessa famiacutelia o seu consumo tem uma loacutegica que se associa
ao ritmo do slow food
Juntar a famiacutelia para fazer a ldquopizzada do vovocircrdquo eacute uma forma de Antonio
resgatar esse tempo vivido onde era produzida grande quantidade de quitandas
aleacutem de patildees e eacute para os netos um importante momento de aprendizado com o
avocirc como aquele que agrega a famiacutelia usando da comida e assim assumindo
seu papel de guardiatildeo da cultura Nos dias atuais segundo o casal o forno de
barro raramente eacute utilizado soacute mesmo em dias de festa nos finais de ano Nos
depoimentos de Antonio estaacute presente a memoacuteria afetiva ligada agraves praacuteticas
culinaacuterias que lhe foram muito presentes no passado mas que se distancia do
seu cotidiano na contemporaneidade Natildeo por acaso a chegada dos netos eacute
sempre um evento ansiosamente esperado pelo casal
151
533 Os doces
Em relaccedilatildeo agraves frutas as mais comuns nos pomares e quintais eram a
laranja bahia e serra drsquoaacutegua a poncatilde a mexerica o limatildeo galego ou limatildeo
capeta o limatildeo taiti a goiaba a banana a jabuticaba o figo a cidra a pitanga
a acerola a amora a manga e o abacate As frutas satildeo consumidas de acordo
com a sazonalidade e algumas mesmo estando presentes natildeo satildeo
preferenciais como eacute o caso do mamatildeo exceto para fazer doce de mamatildeo
verde Os sucos mais consumidos satildeo de laranja acerola limatildeo e manga
Os doces mais produzidos a partir de frutas locais satildeo os de goiaba
banana e figo Em uma das famiacutelias tive a oportunidade de provar dois doces
receacutem elaborados por Marieta moradora de Boa Vista Piranga doce de ameixa
em calda e doce de figo
Cacircmara Cascudo (2004) relata que o doce representava grande
importacircncia social no periacuteodo Colonial brasileiro heranccedila de Portugal Quando
se queria presentear algueacutem ou homenagear uma bandeja de doce era sempre
uma excelente escolha Era considerado uma boa qualidade feminina saber
fazer o doce de receita de famiacutelia e esse ensinamento era repassado agraves jovens
pelas matildees Tambeacutem Algranti (2007) destaca que nesse periacuteodo os doces natildeo
faziam parte do trivial mas de eventos festivos e por isso consideradas iguarias
Mesmo que com o tempo eles tenham ganhado espaccedilos mais populares e
vendidos em tabuleiros nas ruas
Essa relaccedilatildeo com os momentos especiais descrito pela autora parece
persistir na regiatildeo pesquisada Dentre as famiacutelias que entrevistei a elaboraccedilatildeo
de doces natildeo eacute uma atividade culinaacuteria cotidiana seu consumo e fabricaccedilatildeo
estatildeo associados aos dias de domingo e agraves datas festivas sobretudo agraves festas
de final de ano Natal e Ano Novo
Laurinda 77 anos moradora de Tatu em Piranga relatou que fazia
doces para agradar a todos os filhos quando havia festas de aniversaacuterio em casa
quando eles ainda eram crianccedilas e adolescentes ldquoPara aquele que preferia
rocambole eu fazia rocambole para aquele que preferia pudim eu fazia pudim
agradava a todos os filhos eu gostavardquo
Zefa 67 anos moradora de Mato Dentro em Presidente Bernardes
tambeacutem disse gostar das eacutepocas de elaborar doces Para as festas de final de
152
ano ela comeccedila a fazer um mecircs antes do Natal Os doces tradicionais da sua
famiacutelia satildeo o rocambole de doce de leite e o doce de figo Ela descreveu o
processo de elaboraccedilatildeo
O doce de leite eu comeccedilo a fazer ele agraves 0800 e soacute vou tirar ele do fogo agraves 14 horas ponho num tacho grande ele vai fervendo aos pouquinhos ateacute secar e ficar cremoso mas tem que ser com leite de roccedila leite gordo e leva pouco accediluacutecar Para 8 litros e leite soacute duas xiacutecaras de accediluacutecar O doce de figo antigamente quando natildeo tinha geladeira a gente tinha que ficar fervendo ele para ele natildeo azedar enquanto tivesse doce tinha que fazer isso Hoje natildeo a gente faz o doce e guarda na geladeira e fica verdinho e pode ficar muito tempo guardado (Zefa 67 anos moradora da Comunidade Mato Dentro Presidente Bernardes MG 2015)
O depoimento de Zefa deixa transparecer a dedicaccedilatildeo de tempo ao
preparo do doce e a tenccedilatildeo cuidadosa agraves etapas para natildeo passar do ponto Natildeo
se podia ter pressa Por isso a elaboraccedilatildeo dos doces eram atividades
esporaacutedicas para eventos especiais principalmente para as festas de final de
ano consideradas eventos familiares de grande importacircncia para essas famiacutelias
Percebi durante a pesquisa que essa percepccedilatildeo permanece entre as mulheres
ao falarem da elaboraccedilatildeo dos doces Haacute nos gestuais descritos por Zefa uma
relaccedilatildeo semelhante ao que eacute tratado por Giard (2012) ao relacionar ao trabalho
das cozinheiras de tempos passados em que a paciecircncia para conduzir as
praacuteticas culinaacuterias era a tocircnica
Outrora a cozinheira se servia de um instrumento simples de tipo primaacuterio cujas funccedilotildees tambeacutem eram simples era ela que dirigia o desenrolar da operaccedilatildeo vigiava a sucessatildeo dos momentos da sequecircncia de accedilatildeo e podia representar mentalmente o processo Nessa forma de cozinhar havia uma habilidade de artesatildeo empenhado em aperfeiccediloar seu meacutetodo ou variar suas produccedilotildees (p 284)
Outros dois pontos no depoimento de Zefa merecem destaque O
primeiro quando ela fala de um tempo em que a geladeira natildeo existia Havia a
necessidade de ferver constantemente o doce para natildeo estragar Aqui presente
a relaccedilatildeo com a modernidade Atualmente com o acesso agrave geladeira esse
trabalho foi reduzido Nesse sentido eacute preciso considerar o quanto a tecnologia
industrial facilitou a fabricaccedilatildeo de alimentos sem que necessariamente tenha
alterado a obtenccedilatildeo de um produto de igual qualidade e sabor Zefa continua
fazendo o doce de figo assim como as outras mulheres mas utilizando uma
tecnologia de conservaccedilatildeo moderna e muito importante
153
O segundo ponto diz respeito ao uso do tacho Todas as mulheres que
entrevistei tinham um tacho de cobre que foi herdado de matildee da avoacute ou que foi
comprado por elas Fazer doces em tacho de cobre faz parte da tradiccedilatildeo da
culinaacuteria em vaacuterios lugares do Brasil Poreacutem haacute atualmente uma discussatildeo sobre
o seu uso Em Minas Gerais a Vigilacircncia Sanitaacuteria Estadual proibiu o seu uso
para fabricaccedilatildeo de doces em funccedilatildeo dos resiacuteduos toacutexicos que podem ser
liberados exceto se forem revestidos por banho de ouro prata niacutequel ou
estanho material que natildeo estatildeo presentes nos tachos mais comuns na zona
rural o mais comum e mais barato eacute o revestimento em estanho Surgiu em
funccedilatildeo disso movimentos que defendem a manutenccedilatildeo do uso do tacho de
cobre e que eacute possiacutevel conscientizar as pessoas sobre o uso e higienizaccedilatildeo
correta do tacho sem extinguir seu uso Zefa por exemplo limpa o seu tacho
com sal e limatildeo para retirar todo o azinhavre44 Aleacutem do tacho de cobre haacute o caso
da colher de pau cuja proibiccedilatildeo fez surgir o ldquoManifesto Colher de Paurdquo de autoria
do antropoacutelogo da alimentaccedilatildeo Raul Lody e apoiado pelo FBSSAN (Foacuterum
Brasileiro de Soberania e Seguranccedila Alimentar e Tradicional) O objetivo do
Manifesto eacute cobrar dos oacutergatildeos fiscalizadores um canal de discussatildeo com a
sociedade civil no sentido de encontrar soluccedilotildees menos radicais como a
extinccedilatildeo de usos tradicionais na fabricaccedilatildeo de doces e outros produtos
culinaacuterios45
Joana 39 anos moradora de Jacuba em Porto Firme contou sobre a
festa de casamento de uma parente que aconteceu na roccedila e em que todos os
doces servidos foram feitos pelas mulheres da famiacutelia e outras amigas do casal
Ela proacutepria ajudou na elaboraccedilatildeo Fizeram goiabada figo doce de leite
cajuzinho brigadeiro doce de aboacutebora com coco e outros
A Figura 13 mostra o doce de ameixa que Marieta estava preparando
Trata-se da ameixa vermelha (tambeacutem conhecida como ameixa japonesa) Natildeo
eacute uma fruta muito comum na regiatildeo da pesquisa mas Marieta possui uma aacutervore
que todos os anos daacute muito fruto e ela aproveita para fazer o doce que eacute muito
saboroso
44 Nome que se daacute a oxidaccedilatildeo do cobre a camada esverdeada que resulta desse processo 45 Para ver mais sobre o Manifesto e acessaacute-lo na iacutentegra ver o site da FBSSAN (httpwwwfbssanorgbr
indexphpoption=com_contentampview=articleampid=419manifesto-colher-de-pauampcatid=79ampItemid=672ampl ang=pt-br)
154
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 13 ndash Doce de ameixa feito por Marieta na comunidade Boa Vista em Piranga MG
54 A comensalidade para aleacutem das festas e datas especiais
A comensalidade ocorre de forma diferenciada nas famiacutelias
pesquisadas Em todas elas a maior frequecircncia eacute no jantar indicando o
fechamento de um dia de trabalho mesmo que ela se decirc na sala com o prato
na matildeo e assistindo agrave programaccedilatildeo da TV costume citado pela maioria das
famiacutelias Nesses momentos a conversa gira em torno dos assuntos divulgados
no programa (em geral o telejornal)
Se natildeo se daacute nesse ambiente ela ocorre na cozinha e em ambos os
casos natildeo eacute um momento demorado Mas a comensalidade ocorre sempre no
cafeacute da manhatilde jaacute que quase todos se levantam na mesma hora e tomam o cafeacute
juntos O cafeacute da manhatilde tambeacutem ldquotoma-se ligeirordquo muitas vezes de peacute que ldquoeacute
para natildeo dar preguiccedilardquo observou Carlos (morador de Posses em Porto Firme)
No horaacuterio de almoccedilo dos dias de semana as refeiccedilotildees satildeo feitas em tempo
curto e o assunto costuma ser basicamente em torno de trabalho pelo menos
foi o presenciei nas casas onde almocei A possibilidade de a famiacutelia estar
reunida para o almoccedilo iraacute depender da disponibilidade de tempo e das atividades
de quem estaacute agrave frente do trabalho no local Nas famiacutelias onde as mulheres
trabalham fora do siacutetio elas raramente estatildeo presentes para essa refeiccedilatildeo
quase sempre soacute aos finais de semana As crianccedilas chegam entre 1200 e 1230
155
horas e eacute comum almoccedilarem na escola Neste caso a comensalidade das
crianccedilas e das mulheres ocorre com outro grupo que natildeo o familiar Natildeo haacute uma
restriccedilatildeo para que a comensalidade se decirc apenas no grupo familiar O proacuteprio
conceito definido por Poulain (2013) destaca isso bem como a discussatildeo de
Fladrin e Montanari (1998) sobre o assunto
Em uma das casas visitadas em Presidente Bernardes almoccedilamos na
mesa da cozinha apenas eu e a Nanaacute (dona da casa) O filho que estava
trabalhando na lavoura de cafeacute saiu de moto pouco antes do almoccedilo para buscar
uma ferramenta de trabalho no siacutetio da irmatilde o marido foi almoccedilar em outro
cocircmodo escutando o raacutedio e a filha que trabalha na cidade e almoccedila em casa
serviu o seu prato e foi almoccedilar na frente da televisatildeo na sala Perguntei a Nanaacute
se eles natildeo costumavam almoccedilar juntos na cozinha ela apenas sorriu e disse
ldquoEacute assim mesmo tem dia que eles preferem ir para laacuterdquo Apesar de sua resposta
fiquei na duacutevida se o motivo de isso ter ocorrido foi minha presenccedila afinal
tratava-se de uma pessoa desconhecida O marido Custoacutedio participou da
conversa todo o tempo ateacute o almoccedilo ser servido Me mostrou a lavoura de cafeacute
e a local onde passaraacute o mineroduto cortando seu siacutetio46 e me explicou o
funcionamento do moinho eleacutetrico A filha chegou pouco antes do almoccedilo e
pudemos conversar um pouco quando ela falou do curso que faz na modalidade
agrave distacircncia e de seus planos para o futuro Em todas as outras famiacutelias almocei
em companhia dos que estavam em casa e natildeo percebi constrangimento
semelhante embora tenha observado uma certa timidez inicial principalmente
por parte dos homens e talvez por isso os diaacutelogos eram curtos Em quase
todas as casas escutei expressotildees que tinham conotaccedilatildeo semelhante ldquoVocecirc
natildeo repara natildeoa comida eacute simplesrdquo Entendi isso como uma reaccedilatildeo normal a
uma visita que eacute de fora do seu nuacutecleo iacutentimo Os homens se levantavam e se
ausentavam da cozinha assim que terminaram a refeiccedilatildeo e as mulheres lavavam
a louccedila
Se hoje eacute mais faacutecil para as pessoas interromperem o trabalho e
almoccedilarem em casa em tempos passados a situaccedilatildeo era diferente Quando o
trabalho era mais intenso as atividades eram quase ininterruptas e as refeiccedilotildees
46 Boa parte do siacutetio de Nanaacute e Custoacutedio seraacute desapropriado em funccedilatildeo da passagem do Mineroduto Isso
tem gerado efeitos em suas vidas desde que o processo se iniciou O processo se arrasta haacute anos e eles natildeo sabem muito bem o que vai acontecer Continuam plantando e vendendo o cafeacute que comercializam e outras pequenas lavouras como milho e cana enquanto aguardam o desenrolar da situaccedilatildeo
156
aconteciam distante da casa com o uso de marmitas como explica Neuzeli
moradora de Vinte Alqueires em Porto Firme
O almoccedilo quando o povo trabalhava na roccedila diretoos trabalhadores comiam de marmita Eu arrumava uma marmita caprichadinha para meu marido e meus filhos Mas na casa de meus pais natildeo levava marmita natildeo levava era uns panelotildees grandes de comida em um punha feijatildeo em outro punha a sopa de mandioca ou de inhame com uns pedaccedilos de carne e tinha que encaixar aqui no ombrocomo uma canga e necessitava de duas e trecircs pessoas para levar E laacute na roccedila juntava todo mundo pra comer junto cada um servia o seu coiteacute47 (Neuzeli 63 anos moradora de Vinte Alqueires Porto Firme MG 2015)
Mais um exemplo de como a comensalidade ocorria nas aacutereas rurais
por mais raacutepidas que fossem as refeiccedilotildees Este exemplo assim como aquele em
que as refeiccedilotildees ocorrem na sala assistindo televisatildeo falam de momentos de
comensalidade onde a presenccedila do objeto ldquomesardquo natildeo eacute necessaacuterio precisa-se
eacute que os momentos das refeiccedilotildees sejam partilhados por mais de uma pessoa
55 Mescla cultural praacuteticas de consumo alimentar de ontem e de hoje
Tem sido comum nos uacuteltimos anos na regiatildeo pesquisada a circulaccedilatildeo
de veiacuteculos que comercializam frutas hortaliccedilas e legumes Os alimentos satildeo
vendidos aos moradores locais mas tambeacutem para os pequenos comeacutercios
rurais Por razotildees diversas alguns agricultores estatildeo optando em comprar
determinados produtos in natura ao inveacutes de cultivaacute-los O principal motivo citado
foi a estiagem dos uacuteltimos anos aliado ao custo-benefiacutecio (praticidade ndash preccedilo)
Satildeo vendidos produtos tais como batata inglesa inhame batata doce moranga
banana alface laranja tomate maccedilatilde pera abacaxi e outros Segundo os
interlocutores os produtos satildeo do CEASA
Aqui em Presidente tem caminhatildeo que vem vender fruta e verdura pro povo das roccedilas Aqui em casa noacutes compramos agraves vezes mas eacute maccedilatilde que aqui natildeo daacute mamatildeo tambeacutem porque aqui natildeo daacute mamatildeo bom mais mas eacute soacute mas eu vejo gente aqui comprando inhame mandioca do caminhatildeo ah isso eu natildeo concordo natildeo (Germana 58 anos moradora de Mato Dentro em Presidente Bernardes MG 2015)
Tem muita gente na roccedila hoje que taacute eacute comprando mesmoeles acham difiacutecil criar um frangopreferem compraraqui o frango eacute criado soltono quintaldaacute uns frangos bons gordinhosalguns falam assim gente daqui mesmo que fica mais caro plantar do que
47 Cuia feita a partir do fruto da aacutervore Coiteacute que depois de colhido maduro cortado ao meio e retirado as
sementes eacute utilizado como utensiacutelio na cozinha e em outras atividades
157
comprar ai eu falo para eles que agraves vezes fica mesmo soacute que plantar a gente gasta devagar e se for para comprar a gente tem que tirar tudo de uma vez soacute para pagar aquele montatildeo aleacutem disso tem a sauacutede a gente compra tudo hoje com remeacutedio esses frangos ai de granja eu sei porque meu cunhado tem uma granja aquilo ali o pintinho chega com 45 dias ele jaacute eacute frango pra abate e isso natildeo eacute com comida soacute que consegue natildeodeve ter algum remeacutedio ali (Maacuterio 44 anos morador de Posses em Porto Firme MG 2015)
Os interlocutores na pesquisa disseram que compram tais alimentos
muito raramente soacute mesmo em situaccedilotildees muito especiacuteficas como estiagem
longa um exemplo eacute o da alface que no ano de 2015 quando foi realizado o
trabalho de campo teve produccedilatildeo muito ruim assim como algumas outras
hortaliccedilas Segundo as informaccedilotildees que deram essa forma de aquisiccedilatildeo eacute
relevante entre essas famiacutelias Os aposentados que natildeo possuem filhos para
ajuda-los na produccedilatildeo ponderaram que natildeo acham ruim o caminhatildeo levar esses
produtos ateacute eles porque muitas vezes a produccedilatildeo de alguns alimentos eacute muito
pequena e quando acaba eles precisam mesmo comprar e se o caminhatildeo vai
ateacute os siacutetios isso facilita natildeo se trata todavia de um costume mas de uma
ocorrecircncia esporaacutedica
O depoimento anterior de Mario demonstra uma preocupaccedilatildeo que foi
manifestada por outros entrevistados tambeacutem Haacute nas famiacutelias uma grande
preocupaccedilatildeo com agrotoacutexicos ateacute por isso evitam cultivar tomate como jaacute
mencionado anteriormente Pelo fato de os alimentos serem provenientes do
CEASA a desconfianccedila em relaccedilatildeo a eles eacute fator de resistecircncia no consumo
acreditam que os alimentos possuem ldquomuito venenordquo Assim esses alimentos
representam para eles o oposto dos alimentos que produzem nos proacuteprios siacutetios
considerados como mais saudaacuteveis do que os comprados Novamente pode-se
associar essa preocupaccedilatildeo agrave ldquoangustia alimentarrdquo tratada por Fischler (1995 e
2011)
Esse tipo de comercializaccedilatildeo tambeacutem foi identificado por Sacco dos
Anjos et al (2010) em sua pesquisa na regiatildeo rural de Pelotas no Rio Grande
do Sul Os consumidores de laacute tinham como justificativa a especializaccedilatildeo em
uma determinada atividade produtiva como fruticultura e aviaacuterio A falta de
tempo para produzir para autoconsumo e o alto custo da produccedilatildeo os fez
priorizar a aquisiccedilatildeo dos alimentos que consumiam no dia a dia
158
Apesar de os alimentos cultivados no siacutetio predominarem na alimentaccedilatildeo
das famiacutelias os alimentos industrializados tambeacutem satildeo consumidos Pude ver
alguns desses produtos expostos em moacuteveis da cozinha Outros foram
informados pelos entrevistados A lista dos industrializados consta de manteiga
margarina oacuteleo de soja sal arroz biscoito de polvilho biscoito de maisena
biscoito de aacutegua e sal farinha de trigo farinha de milho farinha de mandioca
leite longa vida leite de soja accediluacutecar macarratildeo massa de tomate polvilho leite
condensado e poacute de cafeacute (naquelas famiacutelias que natildeo o produz ou quando o
produto local acaba) Natildeo houve registro de compra de refrigerantes (usado
apenas em ocasiotildees festivas) alimentos congelados (massas patildees de queijo e
carnes etc) embutidos (salsichas presunto mortadela) Nem todos os produtos
listados satildeo consumidos por todas as famiacutelias trata-se de uma lista de produtos
consumidos pelo montante das famiacutelias
Duas das famiacutelias de Piranga a de Ana Luisa e Lucas e a de Juliana e
Jacinto satildeo proprietaacuterias de um pequeno comeacutercio rural nas comunidades de
Bacalhau e Tatu respectivamente Em ambos eacute comercializado parte do que
produzem nos siacutetios Os alimentos mais vendidos satildeo oacuteleo vegetal arroz (que
passou a ser vendido haacute cerca de 15 anos quando se reduziu drasticamente o
cultivo nas regiotildees) farinha de trigo biscoito de polvilho do tipo ldquopapa-ovordquo
macarratildeo massa de tomate ovos (de granja) nos periacuteodos mais frios do ano
porque a produccedilatildeo de ovos de galinhas caipiras diminui e finalmente a laranja
(da CEASA) a partir dos meses de novembro quando a produccedilatildeo nos pomares
diminui
A escolha de consumo referente aos alimentos industrializados pelas
famiacutelias se daacute pela praticidade aliada a preccedilo pela necessidade de consumo ou
por terem se tornado inviaacuteveis a sua produccedilatildeo nos siacutetios Eacute o caso do arroz do
polvilho do accediluacutecar da rapadura do biscoito de polvilho assado e da manteiga
Sobre as opccedilotildees atuais de consumo e as mudanccedilas nos modos de vida os
depoimentos abaixo apresentam importantes reflexotildees
O ritmo na roccedila taacute muito corrido parece que o pessoal natildeo tem muito prazo mais de ficar cuidando das coisas igual antigamente acho que o pessoal tambeacutem era mais pobre precisava trabalhar mais na roccedila pra produzir e arrumar renda hoje consegue comprar mais coisa Antes soacute compravam sal agora eacute mais faacutecil comprar de tudo antes todo mundo plantava arroz e colhia agrave vontade e ainda sobrava para vender (Joel 71 anos morador de Limeira em Porto Firme MG 2015)
159
A gente compra muita coisa que natildeo compensa mais produzir e nem gente suficiente para produzir aqui na roccedila Tem coisa que natildeo daacute pra produzir aqui igual macarratildeo e rapadura natildeo daacute mais pra fazer nem arroz porque natildeo compensa cafeacute a gente ainda planta um pouquinho e feijatildeo mas soacute daacute para o gasto mesmo (Joseacute 47 anos morador de Mato Dentro Presidente Bernardes MG 2015)
Outro item comprado por todos eacute o accediluacutecar cristal que veio a substituir a
rapadura o accediluacutecar mascavo e o melado que antigamente eram produzidos
Mesmo nas famiacutelias que ainda possuem um pequeno engenho o accediluacutecar cristal
tambeacutem eacute consumido por exemplo para adoccedilar o suco de frutas fazer bolo
broa e outras quitandas Segundo os meus interlocutores o uso do accediluacutecar cristal
industrializado eacute recente datando de cerca de 30 anos
Meus pais tinham um engenho de cana e faziam rapadura e melado hoje a gente planta cana soacute para dar agraves vacasos que que tinham engenho e que continuam a plantar cana usam soacute para produzir cachaccedila ou alimentar as vacas (Lucas 52 anos morador de Bom Jesus do Bacalhau em Piranga MG 2015)
A gente fazia muito melado accediluacutecar mascavo rapadura meus filhos cresceram comendo inhame com melado era muito gostoso e um alimento forte (Luisa 57 anos moradora de Bom Retiro em Porto Firme MG 2015)
Marilia 65 anos moradora de Mestre Campos em Piranga explica
como a sua avoacute fazia o que denominava de ldquoaccediluacutecar brancordquo mas que nada tem
a ver com o accediluacutecar cristal industrializado Recebia esse nome porque era mais
claro do que o accediluacutecar mascavo constituiacutea tambeacutem em um modo ruacutestico de
fabricar o accediluacutecar no siacutetio conforme sua descriccedilatildeo
Ela batia o caldo para rapadura mas sem chegar no ponto de rapadura ai colocava essa massa numa mesa de madeira com beiral por cima da massa ainda quente ela colocava argila escura e deixava no dia seguinte a massa ficava toda quebradiccedila e bem mais clara do que a mascavo Tirava os torrotildees de argila que ficavam bem sequinhos e duro e ficava soacute o accediluacutecar (Marilia 65 anos moradora de Mestre Campos em Piranga MG 2015)
Sobre o que chamei de mescla alimentar no subtiacutetulo ou seja o
consumo concomitante de produtos tradicionais e produzidos pelas proacuteprias
famiacutelias e aqueles adquiridos no mercado ou no caminhatildeo o que a pesquisa
apontou eacute que apesar de as famiacutelias considerarem que o sabor do fubaacute e do
accediluacutecar ficou ruim comparando-se ao que conheceram anos atraacutes as famiacutelias se
mostraram adaptadas ao consumo das formas atuais desses produtos O arroz
permanece nas refeiccedilotildees de todos os dias mesmo sendo industrialmente
160
produzido De forma semelhante o fubaacute do moinho eleacutetrico continua sendo
usado para a fabricaccedilatildeo da broa e do angu a serem consumidos cotidianamente
O accediluacutecar cristal eacute usado com frequecircncia para adoccedilar bolos sucos cafeacutes e
doces Natildeo observei no grupo pesquisado resistecircncia aos produtos
industrializados que consomem Apenas o consumo do oacuteleo vegetal sofreu um
pouco de rejeiccedilatildeo embora tenha sido bem aceito para preparo de frituras exceto
para o casal Eliana e Saturnino que continua resistindo em consumi-lo
O arroz natildeo perdeu a importacircncia que tinha por ser industrializado nem
o fubaacute perdeu seu lugar nas refeiccedilotildees e nas quitandas de todos os dias por deixar
de ser produzido no moinho drsquoaacutegua tampouco a manteiga deixou de ser
consumida por ser industrializada e a margarina eacute usada na elaboraccedilatildeo de bolo
e quitandas embora natildeo seja usada para passar no patildeo O que percebi foi uma
certa resignaccedilatildeo dos meus interlocutores diante de uma realidade alimentar em
transformaccedilatildeo uma vez que as mudanccedilas em curso natildeo ocasionaram draacutesticas
adaptaccedilotildees alimentares Na medida do possiacutevel continuam a comer o que
sempre comeram e a preparar os alimentos da forma que sempre fizeram seus
pais Isso sinaliza que a cultura eacute dinacircmica e estaacute em constante transformaccedilatildeo
Em funccedilatildeo de eventos diversos novos elementos vatildeo surgindo outros vatildeo
sendo incorporados Alguns permanecem na memoacuteria e nas histoacuterias das
famiacutelias assim como outros caem no esquecimento
56 As quitandas para a merenda e para servir agraves visitas
O termo quitanda segundo Silva (2014) e Dourado (2006) origina da
palavra Kitanda da liacutengua quimbundo falada em Angola No Brasil em Minas
Gerais principalmente assumiu a significaccedilatildeo tambeacutem para comidas feitas nos
intervalos das refeiccedilotildees e agrave noite antes de dormir
Nas famiacutelias pesquisadas as quitandas satildeo elaboradas com frequecircncia
Sempre que estatildeo proacuteximas de acabar eacute o momento de fazer outra fornada mas
os dias de saacutebado especialmente satildeo os dias de abastecer a casa para receber
as visitas no domingo que geralmente satildeo a proacutepria famiacutelia os filhos os netos
e mesmo os irmatildeos Nos demais dias da semana a quitanda natildeo pode faltar
pois supre a necessidade diaacuteria pelas merendas A principal quitanda eacute a
ldquorosquinha de sal amoniacuteacordquo que tive a oportunidade de experimentar Algumas
161
mulheres tambeacutem a produzem sob encomenda geralmente para moradores das
cidades proacuteximas As outras quitandas comuns satildeo a broa e o bolo de milho O
cobu de milho (Figura 14) que eacute uma broa enrolada e assada em folha de
bananeira jaacute foi muito comum nas famiacutelias mas por ser de elaboraccedilatildeo mais
trabalhosa foi deixando se ser produzido e hoje o eacute muito raramente Agraves vezes
nos finais de ano quando as casas ficam cheias com a chegada dos filhos e
outros parentes algumas quitandas tradicionais satildeo resgatadas pelas famiacutelias
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 14 ndash Broa do tipo Cobu ou ldquopau a piquerdquo
A broa de fubaacute da Figura 15 havia receacutem-saiacutedo do forno e fui a primeira
a experimentar ainda em temperatura morna Comer bolo quente possui um
prazer especial e muitas pessoas tem essa preferecircncia Natildeo eacute pelo sabor mas
sim pelo fato de saber que se trata de bolo fresco que acaba de sair do forno
com o seu perfume ainda espalhado pelo ambiente A broa feita por Eliana (69
anos moradora de Itapeva Presidente Bernardes) me fez sentir essa sensaccedilatildeo
e neste momento minha memoacuteria afetiva eacute que me levou de volta agrave infacircncia no
siacutetio de meus avoacutes e me trouxe o cheiro que exalava de sua cozinha pela manhatilde
Neste momento da pesquisa senti fortemente a atuaccedilatildeo do tal ldquoimponderaacutevel da
pesquisardquo ao ser recebida com essa delicadeza tatildeo presente nas mulheres
162
rurais com quem tive o prazer de conviver durante a pesquisa Sensaccedilatildeo
semelhante tive ao chegar para a entrevista no siacutetio de Marilia (65 anos
moradora de Mestre Campos em Piranga) e encontrar uma mesa posta com
bolo queijo suco e cafeacute As conversas foram longas com essas e outras
mulheres Experimentei durante a pesquisa o poder da comensalidade
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 15 ndash Broa de fubaacute feita por Eliana em Itapeva Presidente Bernardes
Menos comuns de serem feitos satildeo o bolo agrave base apenas de farinha de
trigo e a ldquorosca da rainhardquo que eacute um tipo de patildeo e que utiliza a farinha de trigo e
fermento bioloacutegico que satildeo opccedilotildees agrave broa de milho Como quitandas
caracteriacutesticas da regiatildeo pesquisada eu elegeria as duas que satildeo consumidas
em todas as casas em que estive broa de fubaacute e rosquinha de sal amoniacuteaco
Mesmo naquelas casas em que natildeo se faz a rosquinha ela eacute consumida porque
eacute comprada nas proximidades
A elaboraccedilatildeo de quitandas sempre foi fundamental na zona rural desde
os tempos dos avoacutes Tanto em tempos atraacutes quanto na contemporaneidade ela
eacute a principal ldquomerendardquo nas famiacutelias Nos tempos antigos os motivos para ter a
despensa abastecida com quitandas eram o difiacutecil acesso agraves cidades e a
necessidade de economizar com essa alimentaccedilatildeo Mas pelos depoimentos das
mulheres com quem conversei e ainda segundo Frieiro (1982) as razotildees satildeo
tambeacutem culturais e simboacutelicas No periacuteodo colonial em Minas quitanda era algo
163
que se fazia em todas as casas nos fornos de barro Era uma caracteriacutestica de
virtude que se atribuiacutea agrave mulher Para ser considerada prendada a mulher
precisava ser boa quitandeira assim cada uma devia dominar bem uma receita
de quitanda que fosse sempre elogiada por quem a degustasse Freyre (2007)
tambeacutem reforccedila a valorizaccedilatildeo dada agrave mulher que dominasse muito bem a
elaboraccedilatildeo de uma receita Essas receitas soacute se passavam oralmente e a
pessoas muito iacutentimas geralmente para agraves filhas e netas
Nas famiacutelias pesquisadas essa tradiccedilatildeo perpetuou com poucas
modificaccedilotildees ao longo do tempo As receitas elaboradas satildeo as mesmas que as
matildees tias e avoacutes faziam Atualmente os siacutetios das famiacutelias pesquisadas natildeo
distam mais do que 20 quilocircmetros das cidades mais proacuteximas mas ainda assim
as idas agrave cidade exceto para quem laacute trabalha ou estuda natildeo eacute constante O
normal eacute o deslocamento com o objetivo de fazer compras receber
aposentadoria eou resolver outros assuntos e ir agrave missa uma vez ao mecircs
Assim semelhantemente aos que ocorria nos tempos passados dos
antepassados ldquoeacute preciso ter a quitanda pronta para o caso de chegar uma visita
e ter o que servir com um cafeacuterdquo
As quitandas a gente faz em casa Broa eu faccedilo todos os dias Broa de fubaacute agraves vezes bolo de farinha o biscoito eacute comprado mas eu faccedilo rosquinha Aqui na roccedila a gente tem que estar prevenida porque se chegar algueacutem a gente natildeo tem tempo de fazer e nem tem onde achar as coisas perto A venda natildeo tem muita coisachega uma visita raacutepidanatildeo daacute nem tempo pra fazer as coisas entatildeo tem que ter uma broa pronta um bolinho uma rosquinha (Lucia 61 anos moradora de Manja em Piranga MG 2015)
Na fala acima Lucia se refere a biscoito e rosquinha Biscoito para eles
eacute o que se compra como o de polvilho assado ndash que tambeacutem eacute consumido com
muita frequecircncia - o de maisena e o de aacutegua e sal para eles pode-se servir os
biscoitos comprados para as visitas mas eacute preciso ter tambeacutem uma quitanda
feita em casa neste caso a broa ou a rosquinha A expressatildeo ldquobolinhordquo natildeo se
refere a bolinho de alguma coisa como ldquobolinho de chuvardquo mas ao bolo no
diminutivo modo comum de se expressar em Minas Gerais
Em tempos passados a elaboraccedilatildeo das quitandas era tambeacutem um
momento de socializaccedilatildeo havia mais mulheres envolvidas no trabalho
geralmente matildees e filhas como citaram minhas interlocutoras As rosquinhas e
broinhas de rapadura o cobu e outras quitandas eram armazenadas em grandes
164
latas bem vedadas para natildeo perder a textura e o sabor De maneira semelhante
se dava o armazenamento na ocasiatildeo da pesquisa Poreacutem o espaccedilo de
socializaccedilatildeo no preparo natildeo eacute como outrora mas um trabalho feito de forma
praticamente individualizada Em algumas ocasiotildees como em periacuteodos de feacuterias
das filhas pode ocorrer de haver uma filha que ajude mas natildeo eacute a regra Poreacutem
trata-se de uma atividade de execuccedilatildeo totalmente feminina
No dia da entrevista com Zefa (67 anos moradora de Mato Dentro
Presidente Bernardes) natildeo havia quitanda sendo preparada no forno a lenha
mas sim um tabuleiro grande de amendoim em casca colhido no quintal que
estava sendo torrado para a elaboraccedilatildeo do lsquocajuzinhorsquo doce que seria servido
na festinha de aniversaacuterio de um ano do neto que mora na cidade de Presidente
Bernardes Ela e suas filhas que moram na cidade iriam organizar juntas essa
festinha familiar
As quitandas satildeo assadas atualmente nos fornos do fogatildeo a lenha jaacute
que os fornos de barro soacute compensam ser acesos para assar grandes
quantidades Assim a broa por ser mais simples eacute assada durante o preparo
do almoccedilo jaacute as rosquinhas satildeo assadas na parte da tarde quando as mulheres
estatildeo mais livres dos outros trabalhos por necessitarem de maior tempo na
elaboraccedilatildeo e muita atenccedilatildeo ao tempo de forno A massa da broa ou do bolo eacute
batida agrave matildeo apesar de a batedeira estar presente em todas as cozinhas e que
satildeo quase sempre presente de filhos ldquoEu bato bolo eacute na matildeo mesmo soacute uso
batedeira quando um faccedilo o ldquobolo drsquoaacuteguardquo que precisa de clara em neverdquo
(Neiva 41 anos moradora de Posses em Porto Firme) No caso de Mariacutelia (62
anos moradora de Mestre Campos Piranga) a batedeira que possui pertenceu
agrave sogra e fica guardada no soacutetatildeo da casa muito raramente utilizada A
praticidade atribuiacuteda agraves batedeiras natildeo convenceu as mulheres que entrevistei
Na realidade elas consideram mais trabalhoso lavar as paacutes da batedeira do que
bater a massa do bolo e da broa na matildeo O uso para as claras em neve
compensa pela rapidez do processo usando o equipamento eleacutetrico Ou seja a
batedeira eacute usada apenas quando se quer um bolo menos ruacutestico O meacutetodo
tradicional prevalece neste caso
Eu tenho dois fornos de barro grande no quintalfazia quitanda umas duas vezes na semana a famiacutelia era grande sete filhos hoje acaboueu faccedilo as coisas eacute no forninho do fogatildeo a lenha mesmo eu
165
jaacute vou fazendo o almoccedilo e assando a quitanda do dia (Uacutersula 78 anos moradora de Bananeiras em Presidente Bernardes MG 2015)
Eu gosto de fazer quitanda tem dia que a gente enjoa mas eu gosto de fazer sim faccedilo broa bolo rosquinha minha neta me ajuda a enrolar as rosquinhas eacute assim que as filhas e netas aprendem a cozinhar comigo tambeacutem era assim (Inecircs 72 anos moradora de Ribeiratildeo em Porto Firme MG 2015)
Para as mulheres a elaboraccedilatildeo das quitandas e doces eacute o que mais
mexe com a memoacuteria afetiva relacionada a alimentos por remeter agrave infacircncia agraves
quitandas feitas pela matildee tias e avoacutes Giard (2012) Lody (2008) e Cacircmara
Cascudo (2004) mencionam como as lembranccedilas e viacutenculos com as comidas
ajudam a manter os haacutebitos vida afora Mesmo que algumas mudanccedilas nos
modos de vida tenham ocorrido permanece o desejo de manter as quitandas do
passado
O relato acima de Inecircs sobre a participaccedilatildeo da neta ajudando a enrolar
as rosquinhas de sal amoniacuteaco que sinaliza o desejo de perpetuar uma receita
tradicional da famiacutelia bem como o de ensinar a neta eacute tambeacutem uma lembranccedila
de si mesma quando ajudava a matildee e da forma como o repasse dessa tradiccedilatildeo
se deu em sua vida Dessa maneira o aprendizado ocorre de maneira luacutedica
Gosta-se da rosquinha feita pela matildee ou avoacute tambeacutem porque era divertido ajudaacute-
las a enrolar e a pincelar com a gema Para uma crianccedila a massa da rosquinha
eacute quase como brincar com as massinhas coloridas na escola e neste caso
ldquobrinca-serdquo com a massinha feita pela avoacute e em sua companhia e ainda pode-
se comecirc-la depois de assada porque tem sabor agradaacutevel ao paladar e agrave
memoacuteria A rosquinha que Inecircs faz com a neta eacute a mesma que ela aprendeu a
fazer com a sua matildee e eacute a mesma que ensinou agraves suas filhas A transmissatildeo do
saber-fazer e dos gestuais de enrolar as rosquinhas e pincelar as gemas satildeo
registros simboacutelicos que ficam na memoacuteria Neste sentido como pondera Leacutevi-
Strauss (2003 p 15) ldquoGestos aparentemente insignificantes transmitidos de
geraccedilatildeo em geraccedilatildeo e protegidos por sua insignificacircncia mesma satildeo
testemunhos geralmente melhores do que jazidas arqueoloacutegicas ou
monumentos figuradosrdquo
O papel de Inecircs nesses momentos eacute pois o da ldquoGuardiatilderdquo da tradiccedilatildeo
(GIDDENS 2012) assunto jaacute discutido no capiacutetulo teoacuterico Em vaacuterios momentos
da entrevista os agricultores reportavam agrave figura dos avoacutes e dos pais ldquoA minha
166
matildee fazia assimrdquo ldquo Quando eu era crianccedila eu gostava de ficar acompanhando
a minha avoacute na cozinha na hortaeu aprendi muito com elardquo
Mesmo que a origem dos ingredientes mudasse por exemplo utilizando
ovo de granja no lugar do ovo caipira e manteiga industrializada o sentido
simboacutelico da receita seria o mesmo Para a neta isso natildeo faria diferenccedila
tampouco para a avoacute transmitir seu saber como pondera Giard (2012)
A aquisiccedilatildeo dos ingredientes a preparaccedilatildeo a cocccedilatildeo e as regras de compatibilidade podem muito bem mudar de uma geraccedilatildeo agrave outra Mas o trabalho cotidiano das cozinhas continua sendo uma maneira de unir mateacuteria e memoacuteria vida e ternura instante presente e passado que jaacute se foi invenccedilatildeo e necessidade imaginaccedilatildeo e tradiccedilatildeo ndash gostos cheiros cores sabores formas consistecircncias atos gestos movimentos coisas e pessoas calores sabores especiarias e condimentos (GIARD 2012 p 296)
Outra questatildeo tambeacutem discutida no item 36 do capiacutetulo anterior trata do
papel historicamente e culturalmente atribuiacutedo agrave mulher no que se refere agrave
alimentaccedilatildeo e agrave cozinha A heranccedila culinaacuteria nas famiacutelias eacute claramente feminina
A matildee ensina a filha eou a neta Antocircnio 78 anos jaacute citado anteriormente
agricultor que tambeacutem foi padeiro eacute o uacutenico exemplo de envolvimento masculino
na atividade ligada agrave culinaacuteria uma exceccedilatildeo
Um assunto jaacute mencionado no capiacutetulo anterior trata da naturalizaccedilatildeo do
gostar de cozinhar Culturalmente tende-se a imputar agraves mulheres o prazer da
culinaacuteria como se o normal fosse que todas gostassem de cozinhar e de assumir
a responsabilidade de alimentar o outro Essa naturalizaccedilatildeo ocorre segundo
Arnaiz (1996) primeiramente em funccedilatildeo da funccedilatildeo bioloacutegica da amamentaccedilatildeo
Um aspecto bioloacutegico que se ampliou para a funccedilatildeo domeacutestica como se fosse
natural Natildeo eacute Algumas mulheres podem gostar muito de cozinhar outras
podem gostar mais ou menos o que parece ser o caso de Inecircs ndash quando diz
ldquotem dia que enjoardquo e pode haver aquelas mulheres que natildeo gostam Durante a
entrevista apoacutes um longo tempo de conversa eu lhes perguntava ndash Vocecirc gosta
de cozinhar Algumas sorriam timidamente ao responder que natildeo gostavam
muito o que me pareceu um certo constrangimento em negar uma condiccedilatildeo
atribuiacuteda como sendo natural ou normal como se eu esperasse uma
confirmaccedilatildeo Como resultado dessas respostas apenas onze mulheres
disseram realmente gostar da atividade e sentir prazer com as funccedilotildees
alimentares que assumem O restante natildeo gosta muito da atividade mas
167
nenhuma delas disse detestar a atividade culinaacuteria As falas reproduziam o
sentido de fazer ldquoporque eacute precisordquo ldquoEu pra falar a verdade natildeo gosto muito
natildeo eu fico na cozinha porque natildeo tem outro recurso mas natildeo gosto muito de
cozinha natildeo eu preferiria ficar soacute costurandordquo (Nanaacute 62 anos moradora de
Xopotoacute em Presidente Bernardes)
Eu gosto Eu natildeo faccedilo por obrigaccedilatildeo natildeo eu gosto aprendi a cozinhar com minha matildee aprendi ajudando Faccedilo broa todo dia Vocecirc viu neacute hoje mesmo eu tocirc fazendo doce de figo e de ameixa vou ali colho e faccedilo faccedilo doce de cidra doce de manga doce de goiaba doce de banana que a gente colhe aqui tambeacutem (Marieta 73 anos moradora de Boa Vista em Piranga MG 2015)
Assim gostar gostar eu natildeo gosto natildeo preferia natildeo ter que cozinhar todo dia porque cansa mas tambeacutem ficar parado sem ter o que fazer eacute ruim pelo menos enquanto eu estou fazendo as coisas eu distraio (Antonina 74 anos moradora de Bananeiras em Presidente Bernardes MG 2015)
As mulheres que dizem gostar de cozinhar principalmente fazer
quitandas e doces satildeo aquelas que mais relataram o prazer de ver a casa cheia
de filhos e netos nas feacuterias feriados e aos domingos Satildeo tambeacutem as mulheres
mais velhas aposentadas Os casais de aposentados relataram certa solidatildeo de
vida nos siacutetios principalmente os que natildeo tecircm filhos por perto o que torna o fato
de receber a famiacutelia em casa uma forma de romper temporariamente com a
solidatildeo Para essas mulheres casa cheia eacute sinal de consumo de muita comida
principalmente porque a cozinha eacute sempre o lugar preferido da casa nessas
ocasiotildees como afirmaram
Dentre as atividades culinaacuterias preferidas lidar com a elaboraccedilatildeo das
quitandas se destaca preferem fazer bolos broas e rosquinhas (a favorita entre
todas as outras) do que preparar a comida do almoccedilo e do jantar
O patildeo francecircs alimento comum nos lanches ou rdquomerendasrdquo na aacuterea
urbana natildeo eacute comumente consumido e natildeo faz parte dos haacutebitos alimentares
das famiacutelias pesquisadas Eacute um item agraves vezes adquirido nas idas agrave cidade
quando costumam comprar rosca doce ou outro patildeo doce Algumas mulheres
gostam de fazer de vez em quando a ldquorosca da rainhardquo Eacute o uacutenico patildeo que foi
citado como elaboraccedilatildeo em algumas poucas casas Antonio informou durante
nossa conversa que ele natildeo conseguia vender patildeo na aacuterea rural porque as
mulheres tinham o haacutebito de fazer broa diariamente Soacute conseguia vender patildees
franceses para moradores da cidade
168
57 Receitas oralidade e registros em cadernos
Esse tema na pesquisa teve como objetivo verificar se as receitas satildeo
transmitidas por oralidade ou por registros escritos O caderno de receitas natildeo eacute
comum para todas as mulheres sobretudo entre as mulheres mais velhas acima
de 50 anos Entre elas satildeo poucas as que possuem receitas escritas
predominando a oralidade na transmissatildeo e o registro na memoacuteria das receitas
que fazem com mais frequecircncia do arroz doce ao doce de figo natildeo se recorre
agraves receitas escritas para elabora-los
Eliana por exemplo natildeo possui cadernos de receitas Tudo o que
aprendeu foi repassado oralmente ao observar e ajudar a matildee e a avoacute
Minha matildee natildeo sabia escrever e nem ler entatildeo natildeo tinha caderno ela aprendeu vendo a matildee dela fazer eu aprendi do mesmo jeito e as minhas filhas tambeacutem aprenderam a cozinhar comigo assim me vendo fazer elas devem ter caderno de receita eu nem sei mas devem de ter sim elas estudaram satildeo inteligentes (Eliana 69 anos moradora de Itapeva em Presidente Bernardes MG 2015)
A filha que mora aqui em casa natildeo gosta de cozinha natildeo mas a outra filha casada gosta Eu aprendi a cozinhar com minha matildee desde novinha mas eu natildeo faccedilo nada de receita natildeo minha matildee nunca teve caderno de receita minha filha casada aprendeu comigo ela me ajudava mas ela tem caderno de receita ela gosta de experimentar umas coisas diferentes para os filhos (Nanaacute 62 anos moradora de Xopotoacute em Presidente Bernardes MG 2015)
Nanaacute aponta em sua fala que das duas filhas uma que eacute casada e tem
filhos gosta de cozinhar e de experimentar novidades e ela associa as ldquocoisas
diferentesrdquo das quais a filha gosta como sendo comidas modernas e por isso
devem estar registradas em um caderno de receita pois o que eacute tradicional fica
registrado na mente eacute memorizado Sua outra filha a mais nova com 26 anos
que eacute solteira e estuda na faculdade natildeo gosta de culinaacuteria No depoimento de
Eliana haacute uma associaccedilatildeo do caderno de receitas com inteligecircncia e a falta dele
com o analfabetismo A sua matildee natildeo sabia ler ela mesmo lecirc pouco e justifica
isso como motivo pelo qual ela natildeo tem um caderno mas destaca que as filhas
por terem estudado devem possuir um
Giard (2012) relata depoimentos de mulheres que pesquisou na Europa
sobre cadernos de receitas tradicionais da famiacutelia que possuem semelhanccedila ao
depoimento de Eliana Uma das mulheres do trabalho de Giard respondeu que
169
as avoacutes eram tatildeo pobres que mal tinham uma cozinha e caderno de receitas natildeo
tiveram tambeacutem
Se a oralidade eacute ainda a forma mais presente de transmissatildeo dos
saberes nas famiacutelias pesquisadas fica a reflexatildeo de como isso poderaacute vir a
ocorrer no futuro com a tendecircncia de saiacuteda dos jovens das aacutereas rurais O maior
comprometimento neste sentido seria em relaccedilatildeo aos modos de fazer
tradicionais nas famiacutelias A oralidade estaacute muito ligada agraves mulheres mais velhas
acima de 50 anos As mulheres mais novas falando aqui da faixa etaacuteria
aproximada de 30 a 45 anos apesar de terem aprendido por oralidade com as
matildees natildeo tecircm aplicado a transmissatildeo das suas praacuteticas culinaacuterias agraves filhas
mesmo porque segundo mencionaram natildeo observam muito interesse ldquodas
filhasrdquo (falaram em relaccedilatildeo agraves filhas e natildeo filhos) na atividade culinaacuteria
Considerando que receitas culinaacuterias atualmente satildeo facilmente
encontradas em banca de revista na internet e no verso de embalagens
industrializadas registrar receitas na memoacuteria ou possuir um caderno de receitas
personalizado pode natildeo fazer muito sentido para as geraccedilotildees mais jovens
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 16 ndash Caderno de receitas que pertenceu agrave matildee de Anita moradora da Comunidade Manja em Piranga
A Figura 16 mostra um ldquocadernordquo que pertenceu a matildee de Anita (71
anos moradora da Comunidade Manja em Piranga) jaacute falecida Trata-se de um
caderno de contas usado tambeacutem para registrar as receitas Na receita haacute uma
170
referecircncia a um ldquopacote de creme infantilrdquo Pesquisei sobre isso e verifiquei que
produtos da Marca Nestleacute jaacute eram vendidos no Brasil na deacutecada de 1920 e na
faacutebrica na cidade de Araras produtos ldquoLactogenordquo (tipo de leite em poacute infantil)
farinha laacutectea e leite condensado Tambeacutem jaacute se vendia na forma embalada a
farinha de trigo poacute Royal e a Maisena A duacutevida que fica eacute se eram produtos que
chegavam facilmente no interior de MG na eacutepoca Haacute que se observar tambeacutem
que o caderno de contas utilizado para anotaccedilotildees estava datado o que natildeo se
sabe eacute se a receita anotada tambeacutem pertence ao mesmo periacuteodo ou se foi
aproveitado como cadernos para anotaccedilotildees de receitas e o tal ldquobolo de Mirardquo
pode ter sido registrado em data posterior Sobre anotaccedilotildees de receitas em
diversos tipos de materiais reporto a Abrahatildeo (2007) que aponta para registros
de receitas culinaacuterias que encontrou anotadas em diversos tipos de lugares e
natildeo raro em conjunto com lista de compras informaccedilotildees sobre plantio etc
A Figura 17 mostra um caderno feito com capricho que pertence a Lucia
(61 anos moradora de Manja Piranga) Ela possui trecircs cadernos de receitas
Um deles pertenceu a sua matildee e os outros dois ela mesma fez com a ajuda das
filhas Quando queria guardar uma receita pedia a uma das filhas para copiar
no caderno outras vezes ela mesmo registrava e recortava figuras de revistas
que encontrasse para ilustrar Na ocasiatildeo da pesquisa ela mencionou que natildeo
tem mais paciecircncia para registrar as receitas mas como gosta de cozinhar
costuma fazer uma ou outra receita poreacutem a maioria dos pratos que gosta de
fazer jaacute estaacute registrada na memoacuteria
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 17 ndash Caderno de receitas de Lucia da Comunidade Manja em Piranga
171
Algumas mulheres demonstraram certo constrangimento em mostrar os
cadernos Diziam que estavam ldquomanchadosrdquo ldquosujosrdquo ldquorasgadosrdquo ldquobagunccediladosrdquo
ldquomal escritosrdquo mas outras se sentiram agrave vontade e mostravam as receitas que
mais gostavam Apenas um caderno estava mais organizado o restante possuiacutea
folhas soltas anotaccedilotildees diversas e desordenadas inclusive endereccedilos de
pessoas contas lembretes e listas de compra As anotaccedilotildees eventuais nesses
cadernos ocorrem porque eles estatildeo visiacuteveis em locais de faacutecil acesso na
cozinha e na falta de outro papel para anotaccedilotildees raacutepidas ele assume esta
funccedilatildeo Pela mesma razatildeo muitos possuem manchas de gordura e respingos
de ingredientes que estavam sendo usados durante a elaboraccedilatildeo da receita Satildeo
detalhes que tambeacutem ldquofalamrdquo da cozinha e dos haacutebitos alimentares das famiacutelias
Eu tenho caderno de receita soacute que taacute tudo rasgado elas satildeo todas testadas ou foi por minha matildee ou minhas avoacutes ou minhas tias primas nada eacute copiado de televisatildeo ou de revista As folhas estatildeo quase todas soltas mas hoje quase tudo que faccedilo eu jaacute sei de cabeccedila (Claudia 66 anos moradora de Limeira em Porto Firme MG 2015)
Tenho uma agenda que uso como caderno de receita eacute uma agenda que desde 1977 quando eu casei que eu anotava tudo inclusive coisa de costura e tem ateacute receita tambeacutem (Mariacutelia 62 anos moradora de Mestre Campos em Piranga MG 2015)
Fonte Luiacutes Pereira pesquisa de campo 2015
Figura 18 ndash Mariacutelia da Comunidade de Mestre Campos em Piranga mostrando seus livros e cadernos de receitas
172
Folheando o caderno de Marieta (73 anos moradora de Boa Vista em
Piranga) me deparei com uma receita de brevidade Comentei que aprecio muito
esse bolo mas que seguindo a receita de minha matildee registrada em seu caderno
a minha nunca fica igual agrave que ela fazia Marieta resolveu entatildeo me ensinar
uma receita faacutecil que prometi testar
ldquoVou te ensinar uma receita faacutecil e muito gostosa A receita chama assim ldquo5 10 15rdquo e eacute assim Vocecirc potildee numa vasilha 5 (cinco) ovos inteiros 10 (dez) colheres de accediluacutecar bate bem e ai coloca as 15 (quinze) colheres de maisena e bate mais ainda Coloca numa forma redonda untada e potildee no fornordquo (Marieta 73 anos moradora de Boa Vista Piranga MG 2015)
Em relaccedilatildeo agraves receitas e agrave cozinha Marieta e Zefa de Presidente
Bernardes foram as mulheres mais empolgadas Contaram detalhes de algumas
quitandas que fazem e de outras que eram feitas por suas matildees e avoacutes Elas
fazem parte das poucas mulheres que entrevistei que confirmaram um grande
prazer em cozinhar
58 Os equipamentos da cozinha rural do fogatildeo a lenha agrave panela eleacutetrica de arroz
Foi em torno do fogatildeo a lenha que muitas das entrevistas aconteceram
enquanto as mulheres preparavam o almoccedilo O fogatildeo a lenha eacute o equipamento
que eu elegeria como o mais representativo na realidade das famiacutelias presente
em todas as cozinhas que visitei durante a pesquisa de campo dos mais
tradicionais feitos de argila aos mais modernos revestidos por azulejo
Instrumento transformador do ldquocru em cozidordquo e da ldquonatureza em culturardquo
propiciador de socializaccedilatildeo e de comensalidade nos dias de inverno por manter
a cozinha aquecida as pessoas gostam de ficar em torno dele sendo assim um
instrumento propiciador de sociabilidades Aleacutem desses aspectos eacute tambeacutem
usado para aquecer a aacutegua do chuveiro via serpentina
Aquela copa ali com aquela mesa eu falo que eacute pra enfeite porque quando meus filhos vem pra caacute com os filhos deles eles juntam tudo eacute aqui na cozinha Senta nesse banco ai nas cadeiras trazem mais cadeira e ficam aqui tem um filho meu que gosta de fritar torresmo ai jaacute viu neacute (Antonina 74 anos moradora de Bananeiras Presidente Bernardes MG 2015)
Eu fico ateacute meio brava agraves vezes e jaacute falo logo - Se ficar em volta de mim no fogatildeo a comida natildeo vai sair natildeo pode esparrodar todo
173
mundo pra laacute (Anita 71 anos moradora de Manja Piranga MG 2015)
Os fogotildees revestidos por azulejos representam um aspecto recente
Segundo os interlocutores uma famiacutelia reformou e revestiu o seu fogatildeo o vizinho
viu aprovou e tambeacutem reformou o seu e em pouco tempo vaacuterios fogotildees na
regiatildeo seguiram a mesma tendecircncia Para eles o revestimento em azulejo
manteacutem o fogatildeo mais limpo por fora porque eacute de faacutecil limpeza Em 11 casas
nos diferentes municiacutepios o fogatildeo estava revestido com esse material No
restante o revestimento era de argila e tinta avermelhada na tonalidade de tijolo
ou amarelado Todos possuem formato semelhante com forno anexo usado
para assar a maior parte das quitandas alguns possuem compartimento para
armazenar lenha e outros natildeo A respeito dos dois modelos de revestimento
apesar de o azulejado dar ao fogatildeo uma conotaccedilatildeo ldquomodernardquo pelo tipo de
revestimento isso natildeo altera em nada a tecnologia do fogatildeo A modernidade
conferida pelo revestimento do azulejo eacute de ordem mais esteacutetica do que
funcional
As Figuras 19 e 20 mostram os fogotildees a lenha comuns e de uso
prioritaacuterio nas casas O primeiro fogatildeo (Figura 19) pertencente agrave Mariacutelia (62 anos
moradora de Mestre Campos Piranga MG) eacute feito em alvenaria revestido por
cimento queimado no estilo tradicional e pintado de amarelo e com barras de
contorno na cor vermelha Sobre ele panelas feitas de materiais diversos como
alumiacutenio pedra barro e ferro Colher de pau e de accedilo inoxidaacutevel O fogatildeo estaacute
com o almoccedilo do dia pronto para ser servido (feijatildeo arroz angu couve carne
de boi moiacuteda com cebolinha de folha) Para evitar sujeiras e proteger o fogatildeo
uma taacutebua de madeira eacute usada como suporte para as panelas e uma lata de tinta
foi reaproveitada para forrar o local do fogo
174
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 19 ndash Fogatildeo a lenha no siacutetio de Mariacutelia
O segundo fogatildeo (Figura 20) pertencente agrave famiacutelia de Nanaacute e Custoacutedio
(61 e 72 anos respectivamente moradores de Xopotoacute em Presidente
Bernardes) eacute revestido por azulejo no estilo mais moderno Como eacute de mais
faacutecil higienizaccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria a proteccedilatildeo pela taacutebua de madeira e pela
placa de lata que haacute no fogatildeo anterior Sobre este fogatildeo estatildeo apenas panelas
de alumiacutenio com o almoccedilo a ser servido (feijatildeo angu batata doce frita couve e
peixe frito (Carpa-capim pescado no rio que passa nos fundos da casa)
Tambeacutem foi servido arroz mas neste caso feito em panela eleacutetrica um item
moderno e do qual falarei mais adiante Outro elemento da modernidade que se
observa na foto satildeo os dois potes de margarina em uma cozinha de caraacuteter
tradicional mas onde elementos da modernidade tambeacutem se fazem presentes
Nesta casa a panela eleacutetrica de fazer arroz fica sobre a pia e um moedor de cafeacute
preso afixado na parede ao lado da mesma pia O peixe e a batata doce por
exemplo foram fritos em oacuteleo de soja e a verdura e o feijatildeo refogados em gordura
de porco Nesta cozinha observei muitos dos elementos da mescla cultural
relativos agraves praacuteticas alimentares
175
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 20 - Fogatildeo a lenha no siacutetio de Nanaacute e Custoacutedio
Um detalhe que observei tambeacutem em todas as cozinhas eacute o cuidado com
a higiene e organizaccedilatildeo das cozinhas Na Figura 20 a pia possui uma cortina
estampada feita pela proacutepria Nanaacute que eacute tambeacutem costureira Coincidentemente
ou natildeo as cores das garrafas teacutermicas combinam com a cor da cortina Na Figura
19 tambeacutem os detalhes chamam a atenccedilatildeo Haacute nessas cozinhas uma noccedilatildeo de
esteacutetica e cuidado com a decoraccedilatildeo que indicam o quanto a cozinha eacute parte
importante da casa e merece destaque pelas famiacutelias em sua organizaccedilatildeo
A Figura 21 eacute outro exemplo Mostra a cozinha pertencente a Eliana e
Saturnino (69 e 75 anos respectivamente moradores de Itapeva Presidente
Bernardes) onde as cadeiras verdes combinam com a cor da porta do forno e
ficam em local estrateacutegico proacuteximo ao calor do fogo Em geral todas as cozinhas
das casas em que estive tem caracteriacutesticas como essas umas mais tradicionais
do que outras mais bonitas esteticamente do que outras mas todas muito
organizadas e limpas
176
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 21 ndash Cozinha com fogatildeo a lenha (azulejado) em siacutetio de Eliana e Saturnino
O fogo eacute destacado por Leacutevi-Strauss (1968) Wrangham (2010)
Montanari (2008) e outros como sendo fundamental para a transformaccedilatildeo do
alimento em comida e no processo da transformaccedilatildeo da natureza em cultura Se
em tempos remotos cozinhavam-se as caccedilas e outros alimentos a ceacuteu aberto
com o passar do tempo o fogo passou a ser inserido no ambiente domeacutestico e a
fazer parte do ambiente fiacutesico das casas Lemos (1996) aponta que durante
muito tempo tanto em Portugal quanto no Brasil as moradias eram chamadas
de fogos ou fogotildees tamanha a importacircncia deste equipamento
Wilson (2014 p 126) aponta que o fogo foi aos poucos sendo apagado
no mundo desenvolvido uma condiccedilatildeo necessaacuteria inclusive para que ele se
incorporasse agraves estruturas das casas Assim surgiram na Inglaterra os ldquofogotildees
fechadosrdquo que funcionavam agrave lenha e que serviam tambeacutem para aquecer a agua
ldquoUm fogatildeo nunca servia apenas para cozinhar tambeacutem era essencial para
fornecer aacutegua quente a toda a famiacutelia esquentar ferros de passar e aquecer as
matildeosrdquo Com o evento da Revoluccedilatildeo Industrial surgiram os fogotildees agrave base de
ferro fundido que funcionavam a carvatildeo Mas a autora explica que seu uso era
comum nas cidades pois nas aacutereas rurais permaneceu o uso do fogatildeo agrave lenha
por muitos anos O avanccedilo tecnoloacutegico logo propiciou o surgimento do fogatildeo a
gaacutes na deacutecada de 1880 considerado pela autora como um equipamento que
177
gerou ldquoum progresso real na cozinhardquo A sua aceitaccedilatildeo foi raacutepida em funccedilatildeo de
sua facilidade e praticidade e como mencionado pela autora em 1939 na
Inglaterra trecircs quartos das famiacutelias cozinhavam no fogatildeo a gaacutes
No que se refere ao grupo pesquisado mesmo em virtude de sua
praticidade o fogatildeo a gaacutes natildeo substituiu o fogatildeo agrave lenha Esse siacutembolo de
modernidade natildeo foi forte o suficiente para romper com a tradiccedilatildeo do fogatildeo agrave
lenha O fogatildeo a gaacutes eacute pouquiacutessimo utilizado ndash apenas para preparar o cafeacute da
manhatilde enquanto acende-se o fogatildeo a lenha ou para fazer ldquocoisa menorrdquo como
aquecer uma aacutegua ou o leite agrave tarde
No caso das famiacutelias em que as mulheres trabalham fora do siacutetio o fogatildeo
a gaacutes eacute mais usado para elaboraccedilatildeo do almoccedilo do que o fogatildeo a lenha A razatildeo
eacute a facilidade para os maridos e os filhos que aquecem o almoccedilo que elas deixam
pronto ou adiantado mas o fogatildeo a lenha permanece usado para aquecer a aacutegua
aquecer a aacutegua do chuveiro pela serpentina como citado por Ivone
Usamos mais o fogatildeo a gaacutes no dia a dia porque eu trabalho na escola do arraial de manhatilde e quando eu chego costumo ir ajudar meu marido ai ateacute acender o fogo demora muito pra aquecer entatildeo o fogatildeo a gaacutes eacute mais praacutetico para noacutesa gente liga o fogatildeo a lenha mesmo mais pra esquentar a aacutegua do chuveiro porque a gente tem serpentina mas a comida mesmo eacute no gaacutes Mas agrave tarde eacute mais faacutecil esquentar a comida no fogatildeo a lenha ainda mais agora que o frio vai chegando porque ele esquenta a casa (Ivone 38 anos moradora de Posses em Porto Firme MG 2015)
Nos que se refere ao uso dos fogotildees eacute tambeacutem possiacutevel perceber a
mescla cultural o moderno e o tradicional convivendo sem que isso gere
mudanccedilas radical nos costumes
As localizaccedilotildees das cozinhas nas casas que visitei satildeo nos fundos da
casa voltadas para o quintal semelhantemente ao que eacute apontado por Lemos
(1976) e Abrahatildeo (2007) sobre a disposiccedilatildeo do fogatildeo e da cozinha das casas
coloniais brasileiras Os fogotildees a lenha assim como o fogatildeo a gaacutes ficam na
ldquocozinha limpardquo expressatildeo usada por Algranti (1997) que eacute interna agrave casa Em
algumas casas havia tambeacutem a ldquocozinha sujardquo que possui mais um fogatildeo a
lenha e ou a gaacutes para torrar pequenas quantidades de cafeacute ligar o acendedor
de ldquolimparrdquo o porco apoacutes o abate fazer frituras de toucinho torresmo etc Natildeo se
trata de uma outra cozinha de alvenaria fechada mas sim de uma pequena
coberta no quintal
178
Outro fogatildeo que fica externo agrave casa eacute o fogatildeo de Cupim jaacute citado (Figura
21) Os fogotildees de cupim tambeacutem satildeo usados para fazer as comidas mais
gordurosas como descreve Doca (55 anos moradora de Boa Vista Piranga)
ldquoQuando a gente mata capado a gente frita as carnes os toucinhos no fogatildeo
de cupim laacute forardquo Os cupins satildeo retirados dos pastos e transportados por
carroccedila ateacute o quintal Neles satildeo feitos um buraco na lateral e rente ao chatildeo onde
eacute colocada a lenha e outro buraco em cima onde coloca-se a panela
Como jaacute mencionado o forno de barro apesar de existente nas casas
quase natildeo eacute utilizado pelas famiacutelias atualmente por motivos jaacute expostos Em uma
das casas o forno estava sendo usado para guardar objetos em desuso
Mas quando meus filhos vecircm ai sim eu acendo o forno grande laacute fora Eles sempre vecircm no natal A casa fica cheia ai daacute gosto usar o forno eles pedem pra fazer o que eles gostam ai a gente faz neacute (Zefa 67anos moradora de Mato Dentro em Presidente Bernardes MG 2015)
A Figura 22 pertence ao siacutetio de Selma e Lourival (68 e 76 anos
respetivamente) moradores da comunidade Tatu em Piranga Ao lado do forno
em alvenaria haacute uma espeacutecie de churrasqueira coberta com uma chapa de ferro
e uma churrasqueira menor de ferro fundido Esse espaccedilo segundo Selma eacute
utilizado apenas quando a casa estaacute cheia com a presenccedila dos filhos que gostam
e fazer churrascos quando estatildeo reunidos Nessas ocasiotildees ela tambeacutem utiliza
o forno para assar maior quantidade de quitandas
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 22 ndash Forno de barro e churrasqueira no siacutetio de Selma e Lourival
179
As famiacutelias possuem alguns equipamentos eleacutetricos nas cozinhas forno
de micro-ondas forno eleacutetrico panela eleacutetrica de fazer arroz e freezer mas nem
todos faziam parte da realidade de todas as famiacutelias Jaacute o liquidificador a
batedeira de bolo o espremedor de frutas e a geladeira existentes em todas as
casas O forno de micro-ondas o freezer e a batedeira de bolo satildeo usados
esporadicamente como jaacute visto no assunto sobre as quitandas com exceccedilatildeo do
freezer de Marcelina que estoca os salgados que produz para vender Natildeo
gostam de usar a batedeira porque ldquodaacute trabalho para lavar e depois guardarrdquo
A gente usa o micro-ondas para esquentar uma comida um leite agrave noite agraves vezes para descongelar uma carne comprar carne no accedilougue taacute muito caro assim eu mato um garrote vem um moccedilo do accedilougue da cidade e mata para noacutes ele conhece as partes desossa e ai congela as partes separadaspotildee nome das carnes em todos os pacotes separados e fica num freezer que a gente tem soacute pra isso (Joatildeo 81 anos morador de Aacutegua Limpa Porto Firme MG 2015)
Considerei interessante o desprendimento com o qual Joatildeo com seus
81 anos falava sobre o uso do micro-ondas Sabe utilizar o equipamento e
apesar de natildeo usar com frequecircncia natildeo demonstrou resistecircncia em utiliza-lo
quando necessaacuterio mas natildeo foi sempre assim O equipamento foi presente dado
por um dos filhos que moram fora da regiatildeo e durante muito tempo o casal
atribuiacutea utilidade a ele ateacute os filhos mostrarem alguns resultados de
descongelamento e aquecimento como o que a famiacutelia mais utiliza explicitado
na sua fala Wilson (2014) discute sobre a resistecircncia que muitos equipamentos
de uso corriqueiro na contemporaneidade ndash dentre eles o micro-ondas ndash tiveram
quando do seu surgimento tendo sido recebido sob protestos de que os meacutetodos
antigos eram melhores e mais seguros
Em quatros das casas que visitei havia a panela eleacutetrica de fazer arroz
Foram presentes de filhos ou mesmo adquiridos pelas mulheres inicialmente
pela curiosidade associada ao preccedilo relativamente baixo Este equipamento
surgiu no Japatildeo na deacutecada de 1960 mudando completamente a rotina de
produzir o tipo de arroz nas cozinhas asiaacuteticas Wilson (2014) destaca que esse
tipo de panela eacute equipamento mais importante nas casas japonesas do que a
televisatildeo Nas famiacutelias que pesquisei e que possui a panela eleacutetrica ela nem de
longe eacute mais importante do que outros equipamentos tradicionais como o fogatildeo
mas estaacute ganhando espaccedilo de convivecircncia na cozinha sem maiores conflitos
180
Em uma das casas onde almocei tive a oportunidade de conhecer seu
funcionamento e experimentar o arroz produzido As mulheres elogiaram o
equipamento afirmando que ldquoO arroz fica mais soltinho eacute muito melhor fazer
arroz nela natildeo daacute trabalho nenhumrdquo (Nanaacute moradora de Xopotoacute em Presidente
Bernardes)
A presenccedila e uso desses equipamentos satildeo tambeacutem exemplos da
coexistecircncia entre elementos modernos e tradicionais nas famiacutelias Enquanto se
faz o restante da comida no fogatildeo a lenha a panela eleacutetrica de arroz fica em
funcionamento sobre a pia Giard (2012) ao tratar da introduccedilatildeo dos
equipamentos eleacutetricos na cozinha destaca que o uso de um aparelho eleacutetrico
envolve a relaccedilatildeo instrumental que se estabelece entre utilizador e objeto
utilizado ldquoA cozinheira apenas alimenta esse objeto teacutecnico com ingredientes
que devem ser transformados depois liga o aparelho apertando um botatildeo
eleacutetrico e recolhe a mateacuteria transformada sem controlar as etapas intermediaacuterias
da operaccedilatildeordquo (GIARD 2012 p 284) Para esta autora apesar da praticidade
desses equipamentos eleacutetricos eles propiciaram rompimentos na transmissatildeo
de algumas habilidades culinaacuterias mas ainda assim considera perfeitamente
possiacutevel a junccedilatildeo da modernidade dos equipamentos eleacutetricos com os utensiacutelios
tradicionais usufruindo das comodidades oferecidas pelos primeiros e mantendo
relaccedilatildeo igualmente necessaacuteria e importante com os objetos tradicionais Mas
defende que satildeo formas de convivecircncia que natildeo devem ser impostas cada
grupo ou pessoa deve fazer sua escolha de acordo com suas manifestaccedilotildees
culturais
Finalizando a pesquisa de campo destaco que ela trouxe informaccedilotildees
ricas sobre o modo de vida a sociabilidade e a cultura das famiacutelias pesquisadas
no que se refere agraves praacuteticas alimentares e a comensalidade A pesquisa mostrou
que as famiacutelias estatildeo inseridas em uma cultura que eacute dinacircmica mas que
preserva e valoriza a cultural tradicional Percebi durante a investigaccedilatildeo muitas
conexotildees e correlaccedilotildees com a pesquisa teoacuterica me conduzindo o tempo a fazer
reflexotildees analiacuteticas pensando na interface entre a teoria e a praacutetica Sobre as
percepccedilotildees finais relacionadas ao campo teccedilo consideraccedilotildees no item a seguir
181
CONCLUSOtildeES
Neste trabalho apontei caracteriacutesticas e peculiaridades das praacuteticas
alimentares das famiacutelias rurais que entrevistei O tema da alimentaccedilatildeo natildeo se
conclui pelo contraacuterio ele eacute dinacircmico Chamo de conclusatildeo aqui o fechamento
analiacutetico com outras discussotildees e reflexotildees sobre esta pesquisa
Haacute uma discussatildeo na antropologia e sociologia da alimentaccedilatildeo sobre a
tendecircncia a homogeneizaccedilatildeo alimentar na sociedade ocidental seguindo os
rumos da sociedade moderna e globalizada como tratado por Bauman (2001)
Esta premissa foi um dos pontos que me fez refletir inicialmente o problema de
pesquisa ao questionar se nela natildeo estava impliacutecita uma desconsideraccedilatildeo agraves
diversidades culturais Nesse sentido pensei a questatildeo no contexto rural ndash
especialmente no contexto rural da Zona da Mata mineira por ser nele onde
mais tive a oportunidade de conviver socialmente e academicamente ateacute hoje
Assim conhecer e analisar o sistema alimentar de famiacutelias rurais seus
haacutebitos praacuteticas e a comensalidade foi fundamental para ponderar e tecer
consideraccedilotildees conclusivas a respeito dessa questatildeo Este trabalho permitiu
compreender que tal premissa natildeo se aplica agrave realidade sociocultural das
famiacutelias pesquisadas No contexto cultural em que vivem natildeo se verificou a
adoccedilatildeo das praacuteticas alimentares homogeneizantes das quais trata Fischler (1979
e 1998) homogeneidade considerada como um resultado natural na dinacircmica
da sociedade contemporacircnea em funccedilatildeo das constantes inovaccedilotildees na induacutestria
de alimentos tornando potencialmente inevitaacutevel a praacutetica e o consumo
alimentar cada vez mais padronizados no ocidente Embora as famiacutelias natildeo
estejam imunes agraves modernidades alimentares da induacutestria demonstraram
capacidade e interesse em selecionar o que desse contexto deve ser adotado e
o que deve ser rejeitado por elas
A pesquisa mostrou a existecircncia de uma homogeneizaccedilatildeo alimentar na
realidade cultural das famiacutelias pesquisadas poreacutem uma homogeneizaccedilatildeo local
e pontual que natildeo eacute semelhante a homogeneizaccedilatildeo alimentar tratada pelo autor
acima Ao contraacuterio nas famiacutelias que pesquisei essa homogeneidade alimentar
estaacute inteiramente ligada agrave tradiccedilatildeo e agrave produccedilatildeo local de alimentos Ela eacute
inclusive compatiacutevel com o processo sociohistoacuterico de ocupaccedilatildeo da regiatildeo e
diretamente determinada por ele Coincidindo com o que pondera Flandrin e
182
Montanari (1998) sobre a necessidade de relativizar a discussatildeo sobre a
homogeneizaccedilatildeo cultural e considerar as particularidades sociais e culturais dos
grupos
Todas as famiacutelias pesquisadas abrangendo os trecircs municiacutepios tecircm
haacutebitos e praacuteticas alimentares semelhantes independente da faixa etaacuteria dos
casais e filhos que formam o grupo familiar A semelhanccedila tambeacutem se aplica aos
produtos cultivados nos siacutetios que representam quase que a totalidade da dieta
baacutesica das famiacutelias Assemelham-se tambeacutem os alimentos adquiridos do
mercado
As mudanccedilas observadas nas praacuteticas alimentares tais como a adoccedilatildeo
de novas tecnologias ndash entre elas a substituiccedilatildeo do moinho drsquoaacutegua pelo moinho
eleacutetrico e a opccedilatildeo de comprar alguns alimentos antes produzidos por eles como
o arroz e o accediluacutecar ndash natildeo implica um abandono total da tradiccedilatildeo As famiacutelias estatildeo
convivendo ou se adaptando aos processos de mudanccedilas no mundo
contemporacircneo sem transformar significativamente a proacutepria cultura O uso do
moinho eleacutetrico em lugar do moinho drsquoaacutegua natildeo tem colocado em risco o
consumo do fubaacute na elaboraccedilatildeo de comidas tradicionais como o angu e a broa
Esse comportamento se assemelha agravequele entendimento apresentado por
autores como Giddens (2012) Doacuteria (2014) e Cacircndido (1982) que acreditam
que a convivecircncia possiacutevel e mais provaacutevel de ocorrer na contemporaneidade
se daacute por meio da mescla entre fatores de persistecircncia e os de mudanccedilas que
se complementam mas sem extinguir as construccedilotildees simboacutelicas tradicionais
Eacute importante ressaltar que a incorporaccedilatildeo das opccedilotildees de praacuteticas
alimentares modernas tambeacutem natildeo eacute acriacutetica As famiacutelias sabem que a
substituiccedilatildeo de uma pratica por outra implica em riscos e em perdas e ganhos
como no caso da gordura de porco Mostraram-se conscientes quanto agrave questatildeo
relativa agrave sauacutede no consumo desse alimento mas ele continua sendo
prioritariamente utilizado na preparaccedilatildeo de comidas tradicionais O que
prevalece neste caso eacute a escolha pelo sabor do alimento e pelo significado
simboacutelico e tradicional atrelado a ele Tal como reforccedilado pelos interlocutores a
comida feita com gordura de porco eacute mais saborosa e eacute a que daacute ldquosustanccedilardquo
Ainda que algumas pessoas tenham demonstrado estar mais preocupadas com
a sauacutede do que com o sabor e preferissem utilizar somente o oacuteleo vegetal natildeo
eacute essa opccedilatildeo que prevalece no montante das famiacutelias porque as mudanccedilas satildeo
183
ou natildeo incorporadas nas praacuteticas alimentares levando em consideraccedilatildeo
tambeacutem a cultura familiar
Pode-se afirmar tambeacutem que a adoccedilatildeo pelas tecnologias e praacuteticas
alimentares modernas natildeo tem sido radical Um exemplo disso eacute a manutenccedilatildeo
prioritaacuteria do uso do fogatildeo a lenha O fogatildeo a gaacutes assume um lugar importante
no preparo do almoccedilo nas famiacutelias onde as mulheres trabalham fora do siacutetio o
que aponta para um dos ajustes necessaacuterios que as famiacutelias tecircm precisado fazer
para se adaptar agraves novas realidades vividas Ainda assim o fogatildeo a lenha
continua sendo utilizado para fazer o jantar e para aquecer a aacutegua do chuveiro
evitando-se com isso o consumo de energia eleacutetrica Natildeo houve tambeacutem
nessas famiacutelias a substituiccedilatildeo de alimentos in natura por industrializados
congelados visando a praticidade na preparaccedilatildeo do almoccedilo Eacute importante
ressaltar que nessas famiacutelias ocorre uma alteraccedilatildeo no papel masculino relativo
a culinaacuteria jaacute que os maridos e os filhos passam a aquecer e a preparar alguns
itens de sua alimentaccedilatildeo Se antes essa era uma responsabilidade
exclusivamente feminina as mudanccedilas no papel masculino sinalizam ainda que
timidamente novas negociaccedilotildees de gecircnero nessas famiacutelias sinalizando
alteraccedilotildees em um espaccedilo que historicamente e culturalmente eacute de domiacutenio
feminino Eacute uma heranccedila que ainda vem resistindo e passando de avoacutes para
matildees e netas e de matildee para filhas
A articulaccedilatildeo entre o tradicional e o moderno na cultura alimentar das
famiacutelias mostrou estar ocorrendo sem impasses ou conflitos significativos
Mesmo que a compra de um alimento in natura proveniente da CEASA vendido
pelos caminhotildees gere receio da ingestatildeo de agrotoacutexicos essa aquisiccedilatildeo ocorre
ainda que eventualmente e por necessidade especiacutefica
A tradiccedilatildeo do consumo e elaboraccedilatildeo das quitandas permanece em todas
as famiacutelias Ela representa aleacutem de uma ldquomerendardquo importante para as famiacutelias
no dia a dia uma importante continuidade tradicional Elaboram-se as mesmas
quitandas haacute geraccedilotildees e ao mesmo tempo ocorrem ligeiras substituiccedilotildees como
o biscoito de polvilho frito pelo assado e adquirido no mercado local O patildeo
francecircs que eacute tatildeo consumido nas aacutereas urbanas natildeo faz parte do gosto
alimentar das famiacutelias e eacute de consumo muito raro
Na manutenccedilatildeo dos haacutebitos alimentares tradicionais estaacute presente a
influecircncia dos guardiatildees da tradiccedilatildeo na reproduccedilatildeo do gosto no processo de
184
significaccedilatildeo e ressignificaccedilatildeo da comida atrelada agraves praacuteticas aos saberes e aos
haacutebitos tanto no cotidiano quanto nas comidas de dias festivos A constacircncia
das expressotildees ldquoaprendemos a comer assimrdquo ldquoaprendi a cozinhar vendo minha
matildee fazerrdquo ldquona casa de meus pais fazia assimrdquo denotam a valorizaccedilatildeo dos
aprendizados e o interesse na perpetuaccedilatildeo dos haacutebitos
No que se refere agrave comensalidade no grupo familiar a pesquisa mostrou
que ela estaacute passando por modificaccedilotildees importantes em algumas famiacutelias
Naquelas em que as mulheres trabalham nas escolas a comensalidade ocorre
na escola em companhia de outras colegas e alunos nos horaacuterios de almoccedilo No
restante do grupo a comensalidade se daacute entre aqueles que estatildeo em casa jaacute
que nessas famiacutelias natildeo foi citado casos de pessoas que almoccedilam na atividade
local com o uso de marmita A comensalidade no horaacuterio de jantar tem sofrido
modificaccedilotildees nos uacuteltimos anos em todas as famiacutelias mesmo naquelas com
pessoas mais velhas Ocorre com frequecircncia entre eles servir o prato e se
sentarem na sala para assistir televisatildeo enquanto jantam Houve entatildeo um
deslocamento da mesa da cozinha para o sofaacute da sala Se em tempos passados
o fogo era um fator socializador e propiciador da comensalidade que ocorria
em torno da fogueira da lareira e do fogatildeo a lenha como apontado por
Wrangham (2010) e Montanari (2008) na modernidade a televisatildeo pode tambeacutem
assumir essa funccedilatildeo tanto no meio urbano quanto no meio rural pelo menos no
que se refere agraves famiacutelias que entrevistei
Alimentos industrializados satildeo consumidos em todas as famiacutelias
embora natildeo em grande quantidade e diversidade proporcionalmente ao que se
encontra disponiacutevel nos mercados e satildeo itens importantes nos cardaacutepios As
famiacutelias adquirem alimentos que sempre fizeram parte dos haacutebitos alimentares
e que em tempos passados jaacute foram produzidos nos siacutetios No entanto compram
tambeacutem alguns alimentos que nunca foram produzidos localmente mas que
passaram a ser adotados o que aponta para a dinacircmica da cultura
O significado da comida para as famiacutelias tem importante ligaccedilatildeo com a
tradiccedilatildeo e representa uma identificaccedilatildeo significativa com as geraccedilotildees passadas
Marca ainda a ligaccedilatildeo com a terra ao serem consumidos prioritariamente o que
se produz no local As comidas tradicionais e elaboradas de modo simples satildeo
as que mais agradam ao paladar das famiacutelias e apesar de ser um cardaacutepio de
certa forma monoacutetono natildeo se torna indesejado e natildeo foi apontado pelas famiacutelias
185
algum desejo ou necessidade por experimentar comidas diferentes das que
estatildeo habituados A prioridade do grupo pesquisados pela alimentaccedilatildeo baseada
em produtos cultivados localmente e em praacuteticas mais tradicionais coincide com
o que proposto pelo ldquoGuia Alimentar para a Populaccedilatildeo Brasileirardquo (2015)
publicado pelo Ministeacuterio da Sauacutede contendo diretrizes de uma alimentaccedilatildeo
saudaacutevel e considerando como importante tambeacutem o aspecto cultural
As famiacutelias estatildeo conscientes de que as transformaccedilotildees constantes que
ocorrem na sociedade atual tecircm o poder de interferir em suas praacuteticas e haacutebitos
alimentares Consideram que vai se tornando cada vez mais difiacutecil manter seus
haacutebitos alimentares por fatores de caraacuteter mais externos do que internos e que
interferem na sua dinacircmica de reproduccedilatildeo social e econocircmica
Inseridas no processo que envolve tanto o desejo de manter sua
autonomia produtiva e cultura alimentar quanto agrave necessidade de ceder a
algumas mudanccedilas essas famiacutelias estatildeo aprendendo a se adaptar com as
experiecircncias do cotidiano natildeo se fecham em seus nuacutecleos culturais e nem se
posicionam avessos agraves mudanccedilas demonstram uma atitude resignada poreacutem
criacutetica acatando os itens da modernidade alimentar que lhes agrada e lhes satildeo
importantes e rejeitando o que natildeo lhes interessa respeitando prioritariamente
a cultura local no sentido tratado por Helman (1994) no processo de escolha
alimentar Haacute nessa percepccedilatildeo um sentido de resistecircncia identitaacuteria alimentar
semelhante agrave que Poulain (2013) discute como sendo uma das caracteriacutesticas
das culturas alimentares locais
Por fim concluo que na ocasiatildeo da pesquisa a comida possuiacutea a
mesma centralidade cultural para as famiacutelias que pesquisei que aquela da eacutepoca
de seus antepassados Apesar de estarem inseridas na dinacircmica
contemporacircnea de mudanccedilas a vida cotidiana ainda segue um ritmo lento que
de certa forma difere do ritmo das aacutereas urbanas o que permite ainda este status
central da comida em sua cultura
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ii
Aos meus pais que me ensinaram a fazer escolhas na vida baseadas no amor
e a me dedicar com responsabilidade a tudo que faccedilo Ao meu pai que sempre
se despede dos filhos e netos dizendo ldquovai em paz seja felizrdquo Agrave minha matildee
que adoeceu e faleceu no meio do processo do doutorado e que apesar de
seu estado de sauacutede esteve sempre atenta e preocupada com meu trabalho
Ela que gostava de experimentar pratos novos mas elaborava a comida
tradicional como ningueacutem me ensinou que a cozinha eacute um lugar onde coisas
boas acontecem para quem estaacute disposto a vivenciar sua ldquoalquimiardquo
iii
AGRADECIMENTOS
A Deus por tudo Por me sentir capaz de superar os momentos de
tristeza e fragilidade e vivenciar sem culpa os momentos de alegria e de
bonanccedila
Ao meu orientador Joseacute Ambroacutesio Ferreira Neto pela orientaccedilatildeo apoio
e confianccedila Por assumir minha orientaccedilatildeo em 2014 e me ajudar nesta travessia
Pela oacutetima orientaccedilatildeo pelas criacuteticas e elogios
A Rita de Caacutessia Pereira Farias pela coorientaccedilatildeo pelas importantes
contribuiccedilotildees ao trabalho pelo incentivo e as conversas que tivemos
Aos professores membros da banca examinadora Eliana Gomes de
Souza Douglas Mansur da Silva Ricardo Ferreira Ribeiro e ainda Joseacute
Ambroacutesio Ferreira Neto e Rita de Caacutessia Pereira Farias pela participaccedilatildeo pelas
criacuteticas e sugestotildees
Aos teacutecnicos da Emater dos municiacutepios pesquisados Rita Maria
Brumano Oliveira Geraldo Antocircnio da Silva Eduardo Muniz e ao assistente de
escritoacuterio Luiz Antocircnio Faria por todo apoio necessaacuterio agrave realizaccedilatildeo da pesquisa
de campo pela companhia em muitas das comunidades visitadas
Agraves famiacutelias que entrevistei e que me receberam tatildeo bem Agradeccedilo pela
compreensatildeo a respeito da pesquisa e pelas longas horas dedicadas ao diaacutelogo
pelas deliciosas refeiccedilotildees que fiz em companhia delas Meu aprendizado com
essa convivecircncia foi imenso
Agradeccedilo ao meu pai e minha matildee ndash ldquoouro de Minardquo E agradeccedilo pelo
carinho de sempre a toda minha famiacutelia que estaacute o tempo todo presente na
travessia que faccedilo pela vida ainda que muitas vezes agrave distacircncia Aos meus
irmatildeos Cristina e Joseacute Mauro sempre preocupados com a irmatilde mais nova Ao
meu irmatildeo Gumercindo pelo apoio nos momentos difiacuteceis e pelos conselhos
acadecircmicos durante o doutorado Agrave minha cunhada Luciana pelo socorro em
momentos de fragilidade com a sauacutede apoacutes noitadas sem dormir
Ao Felipe amor que chegou no meio da trajetoacuteria do doutorado
companheiro que soacute tem me trazido alegria amor e apoio incondicional e muita
muacutesica
iv
A Luana minha enteada querida pelas revisotildees dos abstracts para
artigos e por ter compreendido facilmente minha ausecircncia em seu casamento
no Rio de Janeiro em funccedilatildeo do trabalho
Agrave Universidade Federal de Viccedilosa pela oportunidade de realizar o
doutorado e aos professores do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Extensatildeo
Rural pelas trocas de experiecircncias e conhecimentos Aos funcionaacuterios do
Departamento de Economia Rural sobretudo Romildo e Carminha pela atenccedilatildeo
e simpatia
Agrave Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute instituiccedilatildeo onde atuo haacute
12 anos por ter permitido meu afastamento para fazer o doutorado
Agrave CAPES pelos dois anos de bolsa REUNI (2012 e 2013)
Agraves colegas de doutorado pelas conversas pelas alegrias e tristezas que
compartilhamos em alguns momentos e pelas boas energias que partilhaacutevamos
na conduccedilatildeo do trabalho Agradeccedilo tambeacutem os estudantes do mestrado com
quem fiz amizade ao longo de todo o periacuteodo A Fernanda Machado por me
socorrer elaborando os dois mapas que precisei
v
SUMAacuteRIO
LISTA DE TABELAS vii
LISTA DE QUADROS viii
LISTA DE FIGURAS ix
LISTA DE SIGLAS xi
RESUMO xii
ABSTRACT xiv
INTRODUCcedilAtildeO 1
1 A REGIAtildeO DE ESTUDO 5
11 Um breve histoacuterico de ocupaccedilatildeo da regiatildeo estudada 6
12 Informaccedilotildees atuais sobre a populaccedilatildeo rural e as principais atividades agriacutecolas dos municiacutepios pesquisados 10
13 Atividades produtivas 13
2 A COMIDA EM MINAS GERAIS DA ESCASSEZ Agrave FARTURA 18
21 Contextualizando o lugar da comida no Brasil Colonial nos primoacuterdios 18
22 Fase da mineraccedilatildeo em Minas Gerais escassez de alimentos 24
23 Fase da ruralizaccedilatildeo em Minas Gerais fartura de alimentos 29
3 ALIMENTACcedilAtildeO E CULTURA PERMANEcircNCIAS E TRANSFORMACcedilOtildeES 36
31 A alimentaccedilatildeo como categoria de estudo multidisciplinar contribui-ccedilotildees da antropologia da sociologia e da histoacuteria 36
32 Sistema alimentar 46
321 Alimentos aceitos e rejeitados 49
3211 Haacutebitos alimentares orientados por costumes e tradiccedilotildees 52
33 Alimento comida e cultura 55
331 A importacircncia social e cultural do uso do fogo e sua relaccedilatildeo com a comensalidade 59
3311 O local do fogo e da praacutetica da comensalidade na arquitetura domeacutestica 63
34 Praacuteticas alimentares na contemporaneidade entre o tradicional e o moderno 68
35 Modernidade e tradiccedilatildeo no contexto alimentar rural contemporacircneo 78
36 O papel feminino nas praacuteticas alimentares na famiacutelia 86
4 ASPECTOS METODOLOacuteGICOS DA PESQUISA E A CHEGADA AO CAMPO 94
41 Teacutecnica de pesquisa 95
vi
42 Os sujeitos da pesquisa 95
43 A conduccedilatildeo da pesquisa o caminho percorrido 96
44 A entrevista semiestruturada 98
45 A imersatildeo em campo a chegada e a travessia 98
46 Descobrindo a cultura local dos entrevistados 101
461 Perfil das famiacutelias 101
462 A produccedilatildeo agriacutecola local 107
463 Atividades cotidianas de trabalho nos siacutetios 108
5 CULTURA E PRAacuteTICAS ALIMENTARES NO SISTEMA FAMILIAR RURAL RELACcedilOtildeES COM A COMIDA PERMANEcircNCIAS E MUDANCcedilAS 114
51 Comida ldquoforterdquo e comida ldquofraca contradiccedilotildees mudanccedilas e permanecircn-cias 114
511 Outras comidas ldquofortesrdquo 125
52 Consideraccedilotildees sobre a importacircncia do milho e do fubaacute 129
53 Comida de todo dia comida de festa e as relaccedilotildees de comensalidade 137
531 Comida de todo dia o trivial 137
532 Comida de domingo de dias festivos e comensalidade 143
533 Os doces 151
54 A comensalidade para aleacutem das festas e datas especiais 154
55 Mescla cultural praacuteticas de consumo alimentar de ontem e de hoje 156
56 As quitandas para a merenda e para servir agraves visitas 160
57 Receitas oralidade e registros em cadernos 168
58 Os equipamentos da cozinha rural do fogatildeo a lenha agrave panela eleacutetrica de arroz 172
CONCLUSOtildeES 181
REFEREcircNCIAS 186
vii
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 ndash Aacuterea e populaccedilatildeo da microrregiatildeo de Viccedilosa (2015) 11
Tabela 2 ndash Percentual da populaccedilatildeo urbana e rural da microrregiatildeo de Viccedilosa nas deacutecadas de 1980 a 2010 (2015) 11
Tabela 3 ndash Populaccedilatildeo rural por diferentes faixas etaacuterias 12
Tabela 4 ndash Percentual da populaccedilatildeo rural por diferentes faixas etaacuterias () 13
Tabela 5 ndash Comparativo entre perfil etaacuterio do IBGE (2010) e da pesquisa de campo 2015 () 106
Tabela 6 ndash Comparativo da composiccedilatildeo de gecircnero do IBGE e da pesquisa de campo 2015 106
viii
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 ndash Municiacutepios comunidades e nuacutemero de famiacutelias 2015 96
Quadro 2 ndash Fonte de renda das famiacutelias pesquisadas 2015 108
ix
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 ndash Microrregiotildees da Zona da Mata de Minas Gerais 5
Figura 2 ndash Microrregiatildeo de Viccedilosa Minas Gerais 6
Figura 3 ndash Santuaacuterio de Bom Jesus de Matozinhos em Bom Jesus do Bacalhau 9
Figura 4 ndash Milho colhido no siacutetio de Anita e Gilberto na comunidade de Manja em Piranga 15
Figura 5 ndash Carro de boi transportando espigas de milho da roccedila para o paiol na estrada da comunidade de Manja em Piranga 16
Figura 6 ndash Engenho de produccedilatildeo de rapadura no siacutetio de Lola e Marcos na comunidade Xopotoacute Presidente Bernardes 16
Figura 7 ndash Moinho drsquoaacutegua no siacutetio de Manoel e Donana na Comunidade Limeira Porto Firme 130
Figura 8 ndash Moinho eleacutetrico no siacutetio de Nanaacute e Custoacutedio na Comunidade Xopotoacute em Piranga 131
Figura 9 ndash Cebolas e alhos armazenados no paiol do siacutetio de Maria e Laeacutercio na comunidade Itapeva em Presidente Bernardes 139
Figura 10 ndash Horta no siacutetio de Eliana e Saturnino em Itapeva Presidente Bernardes MG 140
Figura 11 ndash Fogatildeo de cupim no quintal do siacutetio de Eliana e Saturnino em Itapeva Presidente Bernardes 146
Figura 12 ndash Processo de fritura do ldquomilhopatilderdquo 149
Figura 13 ndash Doce de ameixa feito por Marieta na comunidade Boa Vista em Piranga MG 154
Figura 14 ndash Broa do tipo Cobu ou ldquopau a piquerdquo 161
Figura 15 ndash Broa de fubaacute feita por Eliana em Itapeva Presidente Bernardes 162
Figura 16 ndash Caderno de receitas que pertenceu agrave matildee de Anita moradora da Comunidade Manja em Piranga 169
Figura 17 ndash Caderno de receitas de Lucia da Comunidade Manja em Piranga 170
Figura 18 ndash Mariacutelia da Comunidade de Mestre Campos em Piranga mostrando seus livros e cadernos de receitas 171
x
Figura 19 ndash Fogatildeo a lenha no siacutetio de Mariacutelia 174
Figura 20 - Fogatildeo a lenha no siacutetio de Nanaacute e Custoacutedio 175
Figura 21 ndash Cozinha com fogatildeo a lenha (azulejado) em siacutetio de Eliana e Saturnino 176
Figura 22 ndash Forno de barro e churrasqueira no siacutetio de Selma e Lourival 178
xi
LISTA DE SIGLAS
CAPES ndash Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior
CEP ndash Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa com Seres Humanos
ECA ndash Estatuto da Crianccedila e do Adolescente
EMATER-MG ndash Empresa de Assistecircncia Teacutecnica e Extensatildeo Rural do Estado de
Minas Gerais
FAOONU ndash Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas para Agricultura e Alimentaccedilatildeo
FBSSAN ndash Foacuterum Brasileiro de Soberania e Seguranccedila Alimentar e Tradicional
IARC ndash International Agency for Research on Cancer
IBGE ndash Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica
IPHAN ndash Instituto do Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional
ODELA ndash Observatorio de la Alimentacioacuten
OMS ndash Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede
PAA ndash Programa de Aquisiccedilatildeo de Alimentos
UFV ndash Universidade Federal de Viccedilosa
USP ndash Universidade de Satildeo Paulo
xii
RESUMO
LIMA Romilda de Souza DSc Universidade Federal de Viccedilosa novembro de 2015 Praacuteticas alimentares e sociabilidades em famiacutelias rurais da Zona da Mata mineira mudanccedilas e permanecircncias Orientador Joseacute Ambroacutesio Ferreira Neto Coorientadora Rita de Caacutessia Pereira Farias
Este trabalho tem como objetivo analisar e compreender os significados da
comida e as relaccedilotildees de comensalidade atendo-se agraves mudanccedilas e
permanecircncias referentes agraves praacuteticas alimentares de famiacutelias rurais dos
municiacutepios mineiros de Piranga Porto Firme e Presidente Bernardes A
metodologia escolhida foi qualitativa utilizando-se da entrevista
semiestruturada observaccedilatildeo registros fotograacuteficos e o caderno de campo As
anaacutelises da pesquisa empiacuterica foram construiacutedas agrave luz das abordagens teoacutericas
da antropologia e sociologia da alimentaccedilatildeo e da histoacuteria da alimentaccedilatildeo Apesar
da tendecircncia apontada por alguns autores contemporacircneos de uma
homogeneizaccedilatildeo alimentar na sociedade ocidental fruto do processo de
modernizaccedilatildeo e globalizaccedilatildeo que teria o poder de influenciar e transformar as
praacuteticas alimentares esta natildeo foi a realidade observada nas famiacutelias rurais
pesquisadas A pesquisa apontou para a necessidade de considerar a
diversidade cultural e o contexto sociohistoacuterico ao estudar as questotildees relativas
a alimentaccedilatildeo dos grupos Nas famiacutelias estudadas as praacuteticas alimentares
possuem forte viacutenculo com a tradiccedilatildeo e agrave produccedilatildeo local de alimentos Isso natildeo
significa que elas estatildeo imunes agraves interferecircncias e agraves mudanccedilas
contemporacircneas Neste sentido as mudanccedilas observadas nas praacuteticas
alimentares tais como a adoccedilatildeo de novas tecnologias tecircm ocorrido de forma
ainda tiacutemida e natildeo implica um abandono da tradiccedilatildeo As famiacutelias estatildeo
convivendo ou se adaptando aos processos de mudanccedilas no mundo
contemporacircneo sem negar suas raiacutezes histoacutericas A incorporaccedilatildeo das praacuteticas
alimentares modernas tambeacutem natildeo eacute acriacutetica As famiacutelias sabem que a
substituiccedilatildeo implica em riscos perdas e ganhos No caso da gordura de porco
por exemplo mostraram-se conscientes quanto agrave questatildeo relativa agrave sauacutede no
consumo desse alimento que continua sendo prioritariamente utilizado na
preparaccedilatildeo de comidas tradicionais O que prevalece neste caso eacute a escolha
xiii
pelo sabor do alimento e pelo significado simboacutelico e tradicional atrelado a ele
Inseridas no processo que envolve tanto o desejo de manter sua autonomia
produtiva e cultura alimentar quanto agrave necessidade de ceder a algumas
mudanccedilas essas famiacutelias estatildeo aprendendo a se adaptar agraves dinacircmicas da
modernidade aderindo agraves novidades alimentares que lhes agradam e lhes satildeo
importantes e rejeitando o que natildeo lhes eacute interessante
xiv
ABSTRACT
LIMA Romilda de Souza DSc Universidade Federal de Viccedilosa November 2015 Eating habits and sociabilities in rural families of Minas Geraisrsquo Zona da Mata changings and remainings Adviser Joseacute Ambroacutesio Ferreira Neto Co-adviser Rita de Caacutessia Pereira Farias
This work aims to analyze and understand the meaning of food and commensality
relations limited to the changes and remains related to the eating habits of rural
families in the municipalities of Piranga Porto Firme and Presidente Bernardes
The chosen methodology was qualitative using semi-structured interviews and
observation The instruments used were the recorded interviews photographic
register and field notebook The empirical research analysis was built under the
light of theoretical approaches of anthropology and sociology of the alimentation
and history of the alimentation Despite the tendency pointed out by some
contemporary authors of a food homogenization in Western society as a result
of the modernization and globalization process that would have the power to
influence and transform the eating habits this was not the reality observed in the
surveyed rural families The research indicated the need to consider the cultural
diversity and the socio-historical context in order to study issues related to eating
habits of the groups In the studied families the issues related to eating habits
have a strong bond with the tradition and local food production That doesnrsquot
mean they are immune to interference and to contemporary changes In this
sense the observed changes in dietary practices such as the adoption of new
technologies have occurred still timidly and donrsquot imply a total abandonment of
tradition Families are living or adapting themselves to the changing processes in
the contemporary world without however transforming significantly their own
culture Itrsquos important to highlight that the incorporation of modern eating habits
options is not uncritical too The families know that the replacement of a habit by
another entails risks losses and gains as in the case of pork fat They proved to
be conscious about the matter on health in consumption of that food but it
remains primarily used in the preparation of traditional foods What prevails in this
case it is the choice by the flavor of the food and by the symbolic and traditional
meaning attached to it Inserted in the process involving both the desire to
xv
maintain its productive autonomy and eating culture and the need to give in to
some changes these families are learning to adapt to the everyday experiences
they arenrsquot closed in their cultural cores and even take posiacutetion averse to change
they demonstrate a resigned but critical attitude by submitting to the items of food
modernity they please and consider important as well as rejecting what is not
interesting to them
1
INTRODUCcedilAtildeO
ldquoDepois do idioma a comida eacute o mais importante elo entre o homem e a culturardquo
(Raul Lody 1997)
A alimentaccedilatildeo elemento baacutesico de sobrevivecircncia humana eacute tema
carregado de complexidade Se a razatildeo primeira do ato alimentar eacute a
necessidade fisioloacutegica de nutrir-se as demais satildeo carregadas de justificativas
culturais sociais e econocircmicas que por sua vez determinam as escolhas
alimentares
Aleacutem de ser um comportamento automaacutetico a sociologia a antropologia
e a histoacuteria da alimentaccedilatildeo tecircm mostrado que comer eacute um comportamento que
se liga de forma iacutentima com o comedor1 Em sentido semelhante o entendimento
da comida como categoria analiacutetica nessas trecircs aacutereas de estudo mostra que
pela comida eacute possiacutevel perceber as transformaccedilotildees do mundo social no decorrer
dos tempos Essa relaccedilatildeo se estabelece na escolha e ingestatildeo do alimento pois
conforme pondera Lody (2008 p 12) ldquonenhum alimento que entra em nossas
bocas eacute neutrordquo
Dessa forma este trabalho se fundamenta na compreensatildeo cultural e
social da comida vista como categoria de pensamento simboacutelico Trata-se
daquele sentido em que por meio das regras socialmente estabelecidas no ato
de comer criam-se viacutenculos com quem se come com o que se produz e com as
demais dinacircmicas que envolvem as praacuteticas alimentares O sentido dado por
Cacircndido (1982 p 30) elucida esse intuito
Qualquer que seja a posiccedilatildeo do alimento eacute sempre acentuada a sua importacircncia como fulcro de sociabilidade ndash natildeo apenas do que se organiza em torno dele mas daquelas em que ele aparece como expressatildeo tangiacutevel dos atos e das intenccedilotildees (CAcircNDIDO1982 p 30)
A escolha do tema da pesquisa se deu a partir de um processo que foi
sendo delineado e construiacutedo aos poucos considerando inicialmente o interesse
1 Expressatildeo francesa que na traduccedilatildeo das obras de Poulain (2013) e Poulain e Proenccedila (2003) para o
portuguecircs significa ldquocomedorescomedorrdquo Esta expressatildeo apareceraacute em citaccedilotildees do autor ao longo deste trabalho Representa para a Sociologia da Alimentaccedilatildeo atual o homem que come razatildeo da utilizaccedilatildeo da palavra ldquocomedorrdquo em portuguecircs A utilizaccedilatildeo desse termo segundo os autores surgiu a partir da publicaccedilatildeo de autoria de Aron (1976) ldquoLe mangeur du 19eacutemerdquo (POULAIN PROENCcedilA 2003 p 367)
2
pessoal e profissional pelo assunto2 mas tambeacutem estimulado por questotildees
instigantes proporcionadas por algumas disciplinas cursadas durante o
programa de doutorado Assim para se pensar o problema foram realizadas
leituras de pesquisas e de conteuacutedo teoacuterico das trecircs disciplinas apontadas acima
no que se refere agrave alimentaccedilatildeo O investimento teoacuterico realizado para conduzir
a pesquisa partiu da compreensatildeo de que a reflexatildeo teoacuterica e a pesquisa
empiacuterica se complementam em um percurso de matildeo dupla naquele sentido
apontado por Trajano (1990) Para este autor a priorizaccedilatildeo da teoria em
detrimento da pesquisa de campo ou vice-versa compromete o trabalho em sua
riqueza e profundidade
Atraveacutes da relaccedilatildeo entre pesquisa de campo e anaacutelise teoacuterica o conhecimento antropoloacutegico ganha impulso e avanccedila pois a pesquisa fornece o combustiacutevel que a teoria necessita para adentrar por novos campos e caminhos Por sua vez a teorizaccedilatildeo abre trilhas frescas e inexploradas para o trabalho de pesquisardquo (TRAJANO 1990 p 2)
A pesquisa de campo envolveu famiacutelias rurais de trecircs municiacutepios da
microrregiatildeo de Viccedilosa Piranga Presidente Bernardes e Porto Firme A escolha
desses municiacutepios se deu por eles formarem uma regiatildeo com maior populaccedilatildeo
rural da microrregiatildeo de Viccedilosa e pela sua interessante histoacuteria de ocupaccedilatildeo jaacute
que se trata de uma regiatildeo importante na busca do ouro pelos bandeirantes que
passaram pela zona da Mata questatildeo que seraacute detalhada em um dos capiacutetulos
deste trabalho
Analisar e buscar compreender como as famiacutelias estatildeo lidando com as
transformaccedilotildees alimentares que ocorrem na contemporaneidade foi o eixo
norteador da pesquisa A experiecircncia dessas famiacutelias neste contexto ldquofalardquo de
um grupo que busca responder e se adaptar agraves mudanccedilas sinalizando que o
rural contemporacircneo natildeo estaacute alheio e distante do que ocorre na sociedade mais
ampla questatildeo muito bem sinalizada nos estudos de Maria de Nazareth
Wanderley (2000 e 2009) Maria Joseacute Carneiro (1998) e Joseacute Graziano da Silva
(1997) Mas tambeacutem ldquofalardquo de um grupo que respeita sua tradiccedilatildeo e seus haacutebitos
alimentares suas necessidades de natildeo ceder a todas as mudanccedilas decorrentes
da contemporaneidade
2 Discussotildees de interesse dos grupos de pesquisa em que participo na Universidade Estadual do Oeste do
Paranaacute instituiccedilatildeo onde atuo haacute 12 anos
3
Segundo Wanderley (2009) um dos desafios enfrentados pelos
pesquisadores na contemporaneidade consiste em desvendar os processos
pelos quais se articulam as dinacircmicas internas e externas do mundo rural em
sua diversidade
Neste sentido esta pesquisa tem como objetivo analisar e compreender
o significado da comida e as relaccedilotildees de comensalidade atendo-se agraves
mudanccedilas e permanecircncias referentes agraves praacuteticas alimentares das famiacutelias Mais
especificamente analisar a articulaccedilatildeo entre o tradicional e o moderno o
processo de escolha alimentar e os princiacutepios que a determinam tais como
haacutebitos tradiccedilatildeo praticidade custo a influecircncia dos guardiatildees da tradiccedilatildeo na
reproduccedilatildeo do gosto no processo de significaccedilatildeo e ressignificaccedilatildeo da comida
atrelada agraves praacuteticas aos saberes e aos haacutebitos tanto no cotidiano quanto nos
rituais
Com esta pesquisa pretendo contribuir com as discussotildees sobre o
sistema alimentar contemporacircneo e a necessidade de nessa discussatildeo
relativizar os argumentos levando-se em consideraccedilatildeo a diversidade cultural
especialmente a rural
Esta tese estaacute organizada em cinco capiacutetulos aleacutem da introduccedilatildeo e
conclusatildeo O capiacutetulo 1 apresenta um breve histoacuterico de ocupaccedilatildeo da regiatildeo
estudada e as principais atividades rurais a partir de dados do IBGE (2010) O
capiacutetulo 2 trata de duas fases histoacutericas importantes de Minas Gerais e que
determinaram o sistema alimentar na regiatildeo de exploraccedilatildeo de ouro ateacute meados
do seacuteculo XX as fases da mineraccedilatildeo e a fase da ruralizaccedilatildeo As situaccedilotildees
alimentares ocorridas nesses periacuteodos foram marcantes na formaccedilatildeo cultural
alimentar da regiatildeo que pesquisei O capiacutetulo 3 apresenta a discussatildeo teoacuterica
das aacutereas da antropologia da sociologia e da histoacuteria da alimentaccedilatildeo apontando
o lugar da alimentaccedilatildeo nas principais anaacutelises dessas disciplinas a discussatildeo
existente em torno do sistema alimentar a anaacutelise das diferenccedilas atribuiacutedas
entre alimento e comida em uma abordagem cultural e simboacutelica as
possibilidades de permanecircncia ou extinccedilatildeo dos sistemas tradicionais no contexto
alimentar contemporacircneo a discussatildeo sobre o tradicional e o moderno no
contexto das dinacircmicas alimentares no meio rural e por fim uma breve
discussatildeo sobre o papel feminino nas praacuteticas alimentares na famiacutelia O capiacutetulo
4 apresenta as opccedilotildees e o direcionamento metodoloacutegicos da pesquisa de
4
empiacuterica a imersatildeo em campo e os resultados e algumas das caracteriacutesticas
relativas ao perfil das famiacutelias entrevistadas O capiacutetulo 5 trata da pesquisa
empiacuterica ou seja sobre as praacuteticas alimentares das famiacutelias rurais objeto de
interesse principal desta pesquisa Atraveacutes das entrevistas semiestruturadas o
cotidiano das famiacutelias no que diz respeito a sua cultura alimentar foi relatado e
discutido agrave luz dos objetivos propostos para a pesquisa e das abordagens
teoacutericas utilizadas Concluindo teccedilo outras discussotildees nas conclusotildees sobre a
pesquisa
5
1 A REGIAtildeO DE ESTUDO
As aacutereas rurais pesquisadas estatildeo situadas nos municiacutepios de Piranga
Porto Firme e Presidente Bernardes que pertencem agrave microrregiatildeo de Viccedilosa
localizados na Zona da Mata de Minas Gerais
A Figura 1 apresenta as microrregiotildees que compotildeem a Zona da Mata e
a Figura 2 os municiacutepios que fazem parte da microrregiatildeo de Viccedilosa
Fonte IBGE (2013)
Figura 1 ndash Microrregiotildees da Zona da Mata de Minas Gerais
6
Fonte IBGE (2013)
Figura 2 ndash Microrregiatildeo de Viccedilosa Minas Gerais
11 Um breve histoacuterico de ocupaccedilatildeo da regiatildeo estudada
Segundo Venacircncio (2007) descobertas arqueoloacutegicas recentes
apontam que na ocasiatildeo do descobrimento do Brasil pelos portugueses a regiatildeo
de Minas Gerais era habitada por diferentes grupos eacutetnicos Essas pesquisas
conseguiram estabelecer uma data de povoamento com registros entre 11 mil e
12 mil anos atraacutes O autor destaca que natildeo se pode esclarecer totalmente quais
eram todos esses grupos eacutetnicos mas no que se refere aos seacuteculos XVI e XVII
pelo material arqueoloacutegico encontrado acredita-se que muitos grupos indiacutegenas
entraram em Minas Gerais vindos de aacutereas litoracircneas provavelmente fugindo
da escravidatildeo e da dominaccedilatildeo dos portugueses Ainda segundo o autor na
regiatildeo de estudo que compreende a bacia do Rio Doce e a Zona da Mata mineira
os registros apontam que aqui habitavam primeiramente os botocudos e os
puri-coroados e que mais tarde chegaram os iacutendios goitacaacute fugidos do avanccedilo
7
da colonizaccedilatildeo portuguesa no norte da capitania fluminense hoje conhecida
como Campos dos Goitacazes
Registros feitos por Joatildeo Mawe3 viajante inglecircs que esteve em Minas
Gerais entre 1809 e 1810 detalham o conflito existente tambeacutem entre os
portugueses e os botocudos que rejeitavam ceder aos objetivos de
ldquodomesticaccedilatildeordquo dos colonizadores interessados na aacuterea que jaacute havia sido
identificada como muito rica em ouro Na regiatildeo de Piranga visando garantir a
exploraccedilatildeo do ouro informa Mawe (1922) ldquoexiste uma tropa pouco numerosa
de soldados para fazer patrulhas ao longo das fronteiras reconhecimentos nos
bosques ir procurar os selvagens por toda a parte onde lhes informam que
podem encontra-losrdquo (MAWE 1922 p 60)
A ocupaccedilatildeo da regiatildeo pelos portugueses se deu a partir dos caminhos
que se abriram para a exploraccedilatildeo de ouro no local que teve iniacutecio com os
bandeirantes paulistas Resende (2007) Zemella (1951) e Teixeira (2002)
apontam que esta regiatildeo comeccedilou a ser desbravada a partir de 1693 por uma
expediccedilatildeo bandeirante que saiu de Garganta do Embauacute (regiatildeo da Serra da
Mantiqueira e divisa entre Minas Gerais e Satildeo Paulo) conduzida por Antocircnio
Rodrigues Arzatildeo Essa bandeira pretendia chegar ateacute a regiatildeo denominada
Casa da Casca que se localizava entre Viccedilosa e Abre Campo em busca de
ouro O percurso incluiu o entatildeo arraial de Guarapiranga (atual Piranga) e foi no
rio Piranga na localidade onde hoje eacute a cidade de Itaverava o primeiro lugar
onde se encontrou ouro desde o iniacutecio do referido trajeto
Os nuacutecleos urbanos primeiramente como arraiais ou vilas iam se
formando em torno das Minas e locais dos rios que pareciam mais propiacutecios a
obtenccedilatildeo de grandes quantidades de ouro conforme aponta Torres (2011 p
69)
Os bandeirantes subindo o rio instalaram-se nos vales () Sempre usaram de dois tipos de pontos de referecircncia naturais durante suas interminaacuteveis excursotildees pelas florestas Primeiro os rios cujos cursos subiam ou desciam conforme era o caso ou entatildeo os grandes picos azuis marcos lanccedilados pela natureza para indicar onde estava o ouro
Naquela eacutepoca os atuais municiacutepios de Presidente Bernardes e Porto
Firme natildeo existiam como tal e faziam parte de Guarapiranga (atual Piranga)
3 Ver Mawe (1922)
8
Com a descoberta de ouro no rio Piranga a regiatildeo passou a ser de interesse
para a mineraccedilatildeo e iniciou por consequecircncia a chegada de muitos adventiacutecios
Segundo Resende (2007) e Furtado (2000) a exploraccedilatildeo de ouro em Minas
Gerais historicamente serviu de movimentaccedilatildeo geograacutefica de grande nuacutemero
de pessoas interessadas em enriquecer em Minas Gerais
() Nesse contexto marcado por um tracircnsito volumoso e desordenado de pessoas e de mercadorias tem iniacutecio de forma precoce e espetacular a ocupaccedilatildeo das terras de mineraccedilatildeo em que a uma ldquosede insaciaacutevel do ourordquo corresponde com enorme rapidez a formaccedilatildeo de grandes fortunas e uma desordem perigosa regulada a balas de chumbo (RESENDE 2007 p 29)
Assim a regiatildeo que abrange os municiacutepios da pesquisa passou a se
inserir na dinacircmica econocircmica e social da mineraccedilatildeo Ainda segundo Resende
(2007) os territoacuterios mineiros comeccedilaram a ser ocupados primeiramente onde
havia sido encontrado ouro aos quais eram denominados como o ldquocaminho do
ourordquo Nesse trajeto era possiacutevel encontrar alguma infraestrutura de apoio como
por exemplo vendas estalagens e capelas Eacute no entorno dessas localizaccedilotildees
fiacutesicas estruturais que surgem mais tarde as pequenas vilas os arraiais e ateacute
nuacutecleos urbanos mais importantes no estado de Minas Gerais
Segundo Barbosa (1995) em 1708 o arraial de Guarapiranga sofreu as
consequecircncias da Guerra dos Emboabas conflito entre bandeirantes paulistas
e portugueses em disputa pelo controle das minas e por pouco natildeo foi destruiacutedo
durante os embates
As batalhas foram mais concentradas no lugar onde estaacute o Santuaacuterio do
Senhor Bom Jesus do Matozinhos na comunidade do ldquoBacalhaurdquo em Piranga
Neste local possui uma placa e uma escultura simboacutelica lembrando o ocorrido
Neste santuaacuterio ocorre anualmente a festa religiosa do Jubileu do Bom Jesus e
os fieacuteis (romeiros) permanecem no local por dois a trecircs dias de festejos
9
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 3 ndash Santuaacuterio de Bom Jesus de Matozinhos em Bom Jesus do Bacalhau
Com o decliacutenio da mineraccedilatildeo entre os anos de 1753 a 1756 a regiatildeo
de Guarapiranga foi intensamente povoada quando ldquoinuacutemeras sesmarias foram
concedidas nas quais se mencionavam grandes roccedilas de milho casas de
vivenda paiol senzala engenhos bananais e outras aacutervoresrdquo (BARBOSA 1995
p 254) Ocorria nesse periacuteodo o processo de fortalecimento da agricultura
seguindo um percurso que se deu em toda a regiatildeo de mineraccedilatildeo de Minas
Gerais como seraacute visto no capiacutetulo 2 sobre a fase da ruralizaccedilatildeo em Minas
Em final do seacuteculo XVIII e iniacutecio do seacuteculo XIX a regiatildeo de Guarapiranga
possuiacutea a maior populaccedilatildeo de toda a Zona da Mata mineira com forte dinamismo
econocircmico Segundo Carrara (2007) Guarapiranga abastecia a entatildeo Vila Rica
e regiatildeo com aguardente e alguns produtos agriacutecolas baacutesicos os quais o autor
natildeo detalha quais eram Mas segundo o autor natildeo houve um corte que marcou
o fim da mineraccedilatildeo e iniacutecio da fase agriacutecola na regiatildeo pois durante muitos anos
foi marcante a presenccedila concomitante das minas dos currais e das lavouras
Enquanto a agricultura se fortalecia alguns poucos aventureiros insistiam na
busca de algum sinal de ouro restante nos rios
Segundo Lemos (2012) na fase de fortalecimento da agricultura
sobretudo na primeira metade do seacuteculo XIX houve intenso fluxo migratoacuterio que
fomentou a economia agriacutecola na regiatildeo principalmente voltada para a produccedilatildeo
de aguardente rapadura e melado Segundo Godoy (2012) os engenhos se
10
concentravam sobretudo na regiatildeo do distrito de Santo Antocircnio do Calambau
hoje Presidente Bernardes que na eacutepoca era distrito de Guarapiranga (Piranga)
A prodccedilatildeo da cana de accediluacutecar perdeu forccedila ao longo do tempo e na
ocasiatildeo da pesquisa natildeo era mais atividade central na regiatildeo embora existam
alambiques e algumas marcas de aguardente conhecidas no cenaacuterio nacional
como a ldquoVelha Aroreirardquo produzida em Porto Firme e a ldquoVale do Pirangardquo
produzida em Piranga Mas o que se produz ainda de aguardente eacute de caraacuteter
quase que apenas artesanal e pequena produccedilatildeo Em presidente Bernardes
todos os anos acontece o ldquoFestival da Cachaccedilardquo guardando ainda relaccedilotildees com
a tradiccedilatildeo deste produto
Os dados do IBGE de 1980 a 2010 apontam que os municiacutepios que
compunham como distritos a antiga Guarapiranga (Piranga Presidente
Bernardes e Porto Firme) apresentam queda em sua populaccedilatildeo rural como seraacute
visto a seguir
Tambeacutem segundo informaccedilotildees do IBGE (2010) Presidente Bernardes
e Porto Firme foram emancipados de Piranga em 1953 quando Calambau
passou a se chamar Presidente Bernardes e Porto Seguro passou a se chamar
Porto Firme Ambos os municiacutepios continuam pertencendo juridicamente agrave
Comarca de Piranga
12 Informaccedilotildees atuais sobre a populaccedilatildeo rural e as principais atividades agriacutecolas dos municiacutepios pesquisados
Segundo o IBGE (2010) a microrregiatildeo de Viccedilosa possui aacuterea total de
4826137 kmsup2 Eacute composta por vinte municiacutepios com aacutereas que variam entre
65881 kmsup2 (Piranga) e 8304 kmsup2 (Cajuri) Porto Firme e Presidente Bernardes
possuem aacutereas de 28478 kmsup2 e 2368 kmsup2 respectivamente conforme
apresentado na Tabela 1
Em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo observa-se que em 50 dos municiacutepios da
microrregiatildeo a populaccedilatildeo rural ultrapassa a urbana conforme a Tabela 1 Os
trecircs municiacutepios desta pesquisa encontram-se entre aqueles que possuem
populaccedilatildeo rural maior que a urbana sendo que entre todos os municiacutepios
Presidente Bernardes e Piranga satildeo os que possuem o maior percentual de
populaccedilatildeo rural em relaccedilatildeo a urbana conforme apontado na Tabela 2
11
Tabela 1 ndash Aacuterea e populaccedilatildeo da microrregiatildeo de Viccedilosa (2015)
Municiacutepio Aacuterea (kmsup2) Densidade
demograacutefica Populaccedilatildeo
total Populaccedilatildeo
rural Populaccedilatildeo
urbana
Piranga 65881 2616 17232 11274 5958 Pres Bernardes 2368 2338 5537 3895 1642 Porto Firme 28478 3658 10417 5586 4831 Araponga 30379 2683 8152 5111 3041 Rio Espera 2386 2544 6070 3667 2403 Canaatilde 1749 2646 4628 2769 1859 Alto Rio Doce 51805 2347 12159 7089 5070 Lamim 1186 2911 3452 1941 1511 Cipotacircnea 15348 4266 6547 3533 3014 Braacutes Pires 22335 2076 4637 2414 2223 Cajuri 8304 4874 4047 1951 2096 Amparo do Serra 14591 3463 5053 2411 2642 Ervaacutelia 35749 5020 17946 8476 9470 Paula Cacircndido 26832 3455 9271 4335 4936 Satildeo Miguel do Anta 15211 4444 6790 3014 3746 Senhora de Oliveira 17075 3328 5683 2427 3256 Pedra do Anta 16345 2059 3365 1173 2192 Teixeiras 16674 6871 11355 3732 7623 Coimbra 10688 6600 7054 1898 5156 Viccedilosa 29942 2412 72220 4915 67305
Fonte IBGE - Censo Demograacutefico de 2010
Tabela 2 ndash Percentual da populaccedilatildeo urbana e rural da microrregiatildeo de Viccedilosa nas deacutecadas de 1980 a 2010 (2015)
Populaccedilatildeo ()
Municiacutepio 1980 1991 2000 2010
Urbana Rural Urbana Rural Urbana Rural Urbana Rural
Piranga 197 803 237 763 299 701 346 654 Pres Bernardes 121 879 154 846 233 767 297 703 Porto Firme 23 77 293 707 411 589 463 537 Araponga 166 834 208 792 32 68 373 627 Rio Espera 264 736 268 732 322 678 396 604 Canaatilde 174 826 207 793 297 703 401 599 Alto Rio Doce 222 778 28 72 354 646 417 583 Lamim 226 774 287 713 38 62 438 562 Cipotacircnea 197 803 26 74 381 619 46 54 Braacutes Pires 153 847 24 76 353 647 48 52 Cajuri 387 613 46 54 546 454 518 482 Amparo Serra 246 754 35 65 458 542 522 478 Ervaacutelia 263 737 323 673 444 556 528 472 Paula Cacircndido 286 714 362 638 43 57 532 468 Satildeo Miguel Anta 389 611 44 56 501 499 554 446 Senhora Oliveira 363 637 451 549 482 518 572 428 Pedra do Anta 232 768 373 627 53 47 651 349 Teixeiras 445 555 533 467 623 377 671 329 Coimbra 456 544 54 46 539 466 73 30 Viccedilosa 806 194 90 10 921 79 931 69
Fonte IBGE - Censos Demograacuteficos de 1980 1991 2000 e 2010
12
A reduccedilatildeo da populaccedilatildeo rural eacute observada em todos os 20 municiacutepios
conforme mostra a Tabela 2 que apresenta informaccedilatildeo demograacutefica da
microrregiatildeo de Viccedilosa nas uacuteltimas trecircs deacutecadas segundo IBGE (2010) Esta
microrregiatildeo encontra-se proporcionalmente dividida em 50 de municiacutepios com
populaccedilatildeo urbana maior do que a rural e 50 em situaccedilatildeo inversa
Nos trecircs municiacutepios desta pesquisa a populaccedilatildeo rural vem diminuindo
ao longo das uacuteltimas deacutecadas Em Piranga Presidente Bernardes e Porto Firme
a populaccedilatildeo rural correspondia a 803 879 e 77 em 1980
respectivamente caindo para 655 703 e 537 respectivamente em 2010
Apesar disso Presidente Bernardes permanece sendo o municiacutepio com maior
populaccedilatildeo residente no campo na microrregiatildeo de Viccedilosa ao longo desse
periacuteodo seguido por Piranga que aparece como o segundo maior municiacutepio com
populaccedilatildeo rural no Censo de 2010 Alguns estudos apontam para a reduccedilatildeo da
populaccedilatildeo rural em outras partes do paiacutes e do mundo como Alves e Marra
(2009) Nunes (2007) ONU (2014) Camarano e Beltratildeo (2000) e Camarano e
Abramovay (1998)
As Tabelas 3 e 4 apontam que a populaccedilatildeo que compreende a faixa
etaacuteria de 30 a 50 anos eacute a maior na aacuterea rural nos trecircs municiacutepios e a populaccedilatildeo
idosa4 apresenta o menor nuacutemero de pessoas residentes no campo
Tabela 3 ndash Populaccedilatildeo rural por diferentes faixas etaacuterias
Municiacutepio Populaccedilatildeo
rural 1 - 14 anos 15 - 29 anos 30 - 59 anos
Acima de 60 anos
Piranga 11274 2748 3203 3751 1308 Pres Bernardes 3895 845 856 1421 610 Porto Firme 5586 1338 1378 2322 780 Total 20755 4931 5437 7494 2698
Fonte IBGE ndash Censo Demograacutefico 2010
Os dados da Tabela 4 mostram que o maior percentual de populaccedilatildeo
idosa se encontra em Presidente Bernardes mas natildeo se destaca em relaccedilatildeo
aos demais municiacutepios Neste municiacutepio tambeacutem estaacute o menor percentual da
4 Puacuteblico considerado acima de 60 anos de idade de acordo com Organizaccedilatildeo Mundial de Sauacutede
13
populaccedilatildeo jovem5 O maior percentual de populaccedilatildeo adulta (30-59 anos)
encontra-se em Porto Firme A maior diferenccedila entre o percentual de populaccedilatildeo
jovem e adulta encontra-se em Porto Firme e a menor em Piranga O percentual
da populaccedilatildeo adulta eacute superior agrave populaccedilatildeo idosa nos trecircs municiacutepios mas se
destaca em Porto Firme As informaccedilotildees das tabelas seratildeo retomadas no item
46 deste trabalho
Tabela 4 ndash Percentual da populaccedilatildeo rural por diferentes faixas etaacuterias ()
Municiacutepio Populaccedilatildeo
rural 1 - 14 anos 15 - 29 anos 30 - 59 anos
Acima de 60 anos
Piranga 11274 243 284 333 116
Pres Bernardes 3895 217 220 364 155
Porto Firme 5586 239 246 415 140
Fonte IBGE ndash Censo Demograacutefico 2010
13 Atividades produtivas
Nos municiacutepios onde foi realizado o trabalho de campo predominam
pequenas e meacutedias propriedades e produccedilatildeo em pequena escala basicamente
para consumo com venda do excedente Os tipos de produccedilatildeo natildeo sofrem
variaccedilotildees importantes entre os trecircs municiacutepios seja em tipo de produccedilatildeo seja
em quantidade produzida
Presidente Bernardes Dados do Relatoacuterio final do Plano Municipal de
Saneamento Baacutesico de Presidente Bernardes (2015) e da Emater local apontam
como principais atividades agropecuaacuterias do municiacutepio a cafeicultura a extraccedilatildeo
de carvatildeo vegetal em pequena escala e a pecuaacuteria leiteira de pequeno porte
Haacute ainda a fabricaccedilatildeo agroindustrial em pequenos alambiques de aguardente e
uma empresa de fabricaccedilatildeo de queijo Aleacutem desses os dados do IBGE (2006)
apontam tambeacutem a produccedilatildeo de milho feijatildeo cana de accediluacutecar suinocultura e
avicultura
5 Faixa etaacuteria entre 15 a 29 anos de idade definida no Estatuto da Crianccedila e do Adolescente (ECA) e
Estatuto da Juventude no Brasil como a que corresponde agrave categoria de juventude
14
Porto Firme Dados do Relatoacuterio final do Plano Municipal de
Saneamento Baacutesico de Porto Firme (2015) e da Emater local apontam como
principais atividades agropecuaacuterias do municiacutepio Pecuaacuteria leiteira cafeicultura
extraccedilatildeo de carvatildeo vegetal e lavoura de feijatildeo No municiacutepio tambeacutem haacute
produccedilatildeo de aguardente artesanal por pequenos alambiques Aleacutem desses os
dados do IBGE (2006) apontam a produccedilatildeo de milho feijatildeo cana de accediluacutecar
suinocultura e avicultura
Piranga Dados do Relatoacuterio Anual da Emater Local (2014) e do IBGE
(2006) apontam como principais atividades agropecuaacuterias do municiacutepio
extraccedilatildeo de carvatildeo vegetal cafeicultura pecuaacuteria leiteira milho e feijatildeo cana de
accediluacutecar suinocultura e avicultura
Segundo as famiacutelias entrevistadas envolvidas na atividade de extraccedilatildeo
de carvatildeo vegetal esta atividade vem substituindo aos poucos a cafeicultura
nos uacuteltimos anos em funccedilatildeo do seu retorno financeiro mais favoraacutevel aos
agricultores aliado ao fato desta atividade lhes ser menos trabalhosa
A regiatildeo rural dos municiacutepios onde foi feita a pesquisa manteacutem muito de
suas caracteriacutesticas tradicionais em vaacuterios aspectos da alimentaccedilatildeo como seraacute
visto neste trabalho Mas tambeacutem na forma de produccedilatildeo transporte e
armazenamento dos produtos A Figura 4 mostra algumas dessas peculiaridades
observadas Segundo Martins (2008 p 26) a inserccedilatildeo das fotografias ldquoeacute um
recurso que amplia e enriquece a variedade de informaccedilotildees de que o
pesquisador pode dispor para reconstruir e interpretar determinada realidade
socialrdquo
A Figura 4 mostra a produccedilatildeo de um casal de aposentados que mora
sozinho Eles executam poucos serviccedilos no siacutetio Um de seus filhos mora na
cidade de Piranga e os outros em outras cidades mais distantes O casal paga
por serviccedilos de plantio e colheita do milho e do feijatildeo A quantidade de milho eacute
muito pequena apenas para uso local A Figura 4a mostra parte do milho no
paiol e a Figura 4b mostra parte do milho jaacute debulhado secando ao sol no quintal
para depois ser processado no moinho eleacutetrico para a produccedilatildeo de fubaacute
15
(a) (b)
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 4 ndash Milho colhido no siacutetio de Anita e Gilberto na comunidade de Manja em Piranga
Muitas estradas das comunidades mais distantes ainda contam com
muitas porteiras que ficam fechadas Eacute o caminho por onde se transita o veiacuteculo
automotor mas ela atende principalmente agrave loacutegica rural tradicional Quem
precisa transitar deve descer do veiacuteculo abrir as porteiras e fechaacute-las ao
atravessar A Figura 5 por exemplo registrada na estrada da comunidade de
Manja em Piranga mostra uma forma tradicional de transportar as espigas de
milho do roccedilado para o paiol mas ainda muito usada na regiatildeo Havia trecircs
pessoas fazendo esse transporte uma pessoa em cima da carroccedila e outros dois
candiando os bois e abrindo e fechando as porteiras
A Figura 6 mostra um engenho de cana que estava sem uso no ano de
2015 pela baixa produccedilatildeo de cana neste ano no siacutetio de Lola e Marcos em
Presidente Bernardes Nele se produz rapadura e melado que eacute vendida para o
comeacutercio de Presidente Bernardes e tambeacutem para os vizinhos das proximidades
16
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 5 ndash Carro de boi transportando espigas de milho da roccedila para o paiol na estrada da comunidade de Manja em Piranga
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 6 ndash Engenho de produccedilatildeo de rapadura no siacutetio de Lola e Marcos na comunidade Xopotoacute Presidente Bernardes
As caracteriacutesticas rurais dos trecircs municiacutepios satildeo muito semelhantes
tanto no que se refere agrave forma de produccedilatildeo agriacutecola quanto na cultura e no perfil
populacional cuja populaccedilatildeo rural supera a urbana Sendo uma regiatildeo cuja
formaccedilatildeo ocorreu a partir da mineraccedilatildeo muitas de suas caracteriacutesticas ainda
estatildeo ligadas a esse processo histoacuterico Outras peculiaridades sobre o perfil das
17
famiacutelias seratildeo apresentadas no capiacutetulo 4 No sistema alimentar o que se
praticava produzia e o que era consumido na fase da mineraccedilatildeo teve influecircncia
na manutenccedilatildeo de muitas das praacuteticas existentes atualmente na regiatildeo onde foi
feita a pesquisa Sobre o que representou a alimentaccedilatildeo na fase da mineraccedilatildeo
e da ruralizaccedilatildeo no periacuteodo de formaccedilatildeo dessa regiatildeo eacute o que seraacute tratado no
proacuteximo capiacutetulo
18
2 A COMIDA EM MINAS GERAIS DA ESCASSEZ Agrave FARTURA
Arruda (1990) destaca em Minas Gerais duas fases muito importantes
para a sua formaccedilatildeo histoacuterica e cultural a primeira eacute a do ciclo da mineraccedilatildeo
que teve iniacutecio no final do seacuteculo XVII e segue ateacute o final do seacuteculo XVIII Neste
periacuteodo a vida urbana emerge com uma intensa movimentaccedilatildeo a segunda fase
eacute a chamada ldquoruralizaccedilatildeordquo que se inicia ao final do seacuteculo XVIII justamente com
o decliacutenio da mineraccedilatildeo seguindo ateacute o iniacutecio do seacuteculo XX Segundo a autora
na segunda fase as aacutereas rurais (as fazendas) passam a ter maior valorizaccedilatildeo
se tornando o ldquomicrocosmo do universo material social e culturalrdquo (ARRUDA
1990 p 135) Aleacutem das duas principais fases a autora destaca uma terceira fase
em Minas que se configura a partir dos meados do seacuteculo XX com a
industrializaccedilatildeo
Para a autora as duas primeiras fases representam formas de
sociabilidade muito peculiares que se expressam nas praacuteticas alimentares
desses periacuteodos e que tiveram influecircncia direta na formaccedilatildeo dos haacutebitos
alimentares em Minas Gerais haacutebitos que se perpetuaram ateacute o periacuteodo
contemporacircneo sendo relevantes para este trabalho Essas informaccedilotildees
ajudaratildeo a analisar se as praacuteticas alimentares comuns a estas fases em Minas
continuam presentes sendo praticadas pelas famiacutelias rurais pesquisadas neste
trabalho
Antes de discutir especificamente as questotildees alimentares relativas agraves
duas fases eacute importante realizar uma sucinta passagem pelo contexto alimentar
no Brasil colonial
21 Contextualizando o lugar da comida no Brasil Colonial nos primoacuterdios
Segundo Panegassi (2013) o colonizador europeu estabeleceu uma
relaccedilatildeo etnocecircntrica com o territoacuterio natural americano e isso se deu tambeacutem e
principalmente em relaccedilatildeo agrave alimentaccedilatildeo No seacuteculo XVI ele natildeo encontrava em
territoacuterios da colocircnia os alimentos que estava habituado a consumir em Portugal
vivenciando assim uma realidade na qual o autor denomina de ldquoescassez
culturalrdquo de alimentos (p 14) O autor cita o exemplo da carta de Joatildeo de Mello
Cacircmara a Dom Joatildeo III por volta de 1530 quando este rei estabeleceu que a
19
colonizaccedilatildeo seria baseada na expansatildeo da ocupaccedilatildeo das terras atraveacutes das
capitanias hereditaacuterias Mello Cacircmara informa a Dom Joatildeo III que traria para a
colocircnia homens de Portugal para cultivarem alimentos mais comuns aos
portugueses evitando mudanccedilas draacutesticas de seus haacutebitos alimentares pois
considerava os alimentos originaacuterios da Colocircnia inferiores para o consumo dos
portugueses
No entanto por mais que os colonizadores portugueses tenham tido
dificuldade em se habituar ao consumo de alimentos aqui disponiacuteveis foi preciso
se render a eles como tambeacutem aponta Freyre (1964)
A adaptaccedilatildeo foi o caminho obrigatoacuterio como destaca Panegassi (2013
p 70)
No acircmbito de uma situaccedilatildeo na qual um grande nuacutemero de pessoas eacute inserido em um novo ambiente cultural ainda que os receacutem-chegados procurem preservar seus padrotildees culturais de origem a necessidade de sobreviver impotildee inuacutemeros ajustes principalmente nos primeiros anos de presenccedila na nova aacuterea
Nesse sentido Holanda (1995) afirma que o interesse pela aventura
pela obtenccedilatildeo de tiacutetulos de posiccedilatildeo social e de prosperidade econocircmica servia
como estiacutemulo para o ldquosacrifiacuteciordquo da adaptaccedilatildeo Os portugueses tentaram
portanto recriar aqui condiccedilotildees de sobrevivecircncia e de adaptaccedilatildeo com poucas
exigecircncias ldquoOnde lhes faltasse o patildeo de trigo aprendiam a comer o da terra
() soacute consumiam farinha de mandioca fresca feita no dia Habituaram-se
tambeacutem a dormir em redes agrave maneira dos iacutendios e a beber e a mastigar fumordquo
(HOLANDA 1995 p 47)
De acordo com Panegassi (2013) os padres jesuiacutetas preferiam comer o
patildeo de mandioca e as bebidas existentes na colocircnia do que os que vinham de
Portugal em navios pois a viagem era longa e os alimentos armazenados
inadequadamente Era comum que os produtos como os patildees chegassem
estragados ao destino ou seja sem condiccedilotildees de serem ingeridos Assim Mello
(1975 apud PANEGASSI 2013 p 104) conclui que
A mudanccedila que se processaraacute nos haacutebitos dieteacuteticos do portuguecircs colonizador do Brasil ou do portuguecircs colonizador de outras aacutereas tropicais eacute menos o resultado de uma capacidade especial de amoldaccedilatildeo do que da impossibilidade de obter um suprimento regular e abundante de trigo e outros viacuteveres de origem europeia
20
Dessa maneira num contexto de convivecircncia cultural e de costumes foi
se estabelecendo ao longo do processo de colonizaccedilatildeo brasileira a conformaccedilatildeo
inicial dos haacutebitos alimentares baseados na miscigenaccedilatildeo cultural alimentar
recebendo posteriormente a influecircncia africana com a chegada dos escravos
conforme seraacute tratado mais agrave frente Os alimentos autoacutectones inicialmente foram
os mais consumidos sobretudo a mandioca por substituir o trigo para a
elaboraccedilatildeo de patildees e bolos No entanto na regiatildeo de mineraccedilatildeo em Minas
Gerais ndash aacuterea de pesquisa deste trabalho ndash o milho e natildeo a mandioca foi
preponderante na alimentaccedilatildeo Como seraacute mostrado mais agrave frente o milho teve
papel fundamental natildeo apenas para alimentaccedilatildeo animal mas tambeacutem para
alimentar os escravos que trabalhavam nas lavras que o ingeriam segundo
Cacircmara Cascudo (2004) na forma de papa angu e canjica Segundo o mesmo
autor foram as mulheres portuguesas que criaram a receita da broa e do pudim
de milho que se tornaram e permanecem pratos tiacutepicos em Minas Gerais
Segundo Torres (2011 p100)
O mineiro nunca usou patildeo da ldquofarinha de paurdquo (mandioca) o patildeo da terra dos primeiros seacuteculos da colonizaccedilatildeo Sempre preferiu o angu os soacutelidos bolos de fubaacute e o cobu enrolado em folha de bananeira Para misturar o feijatildeo usou sempre a farinha de milho (o milho seco socado no monjolo e depois torrado) o angu a farinha de moinho As classes pobres usavam a ldquocanjiquinhardquo subproduto de despolpaccedilatildeo do milho com muito ecircxito para substituir o arroz
A carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei em 1500 aponta algumas
peculiaridades sobre a primeira percepccedilatildeo sobre alimentaccedilatildeo Os portugueses
ofereceram aos iacutendios ldquopatildeo (de trigo) peixe cozido (com condimentos)
confeitos mel massa de ovos figos passados e vinho de uvas mas os iacutendios
natildeo quiseram comer quase nadardquo (BORGES 2014 p 204) Segundo Cacircmara
Cascudo (2004) as novidades para os iacutendios era o patildeo de trigo massa de ovos
os condimentos incluindo o sal o accediluacutecar e finalmente o vinho feito de uvas
apesar de jaacute produzirem bebidas fermentadas a partir do milho da mandioca e
de frutas
A rejeiccedilatildeo dos iacutendios sinaliza que natildeo foi apenas da parte dos
portugueses que houve inicial rejeiccedilatildeo aos novos alimentos e haacutebitos
alimentares como registrado na carta de Mello Cacircmara a Dom Joatildeo III citado
anteriormente Os iacutendios tambeacutem expressaram seu interesse em manter seus
proacuteprios haacutebitos alimentares desconsiderando os alimentos vindos de Portugal
21
Segundo Cacircmara Cascudo (2004) animais como boi vaca porco
galinha cabra e ovelha foram introduzidos pelos portugueses bem como os
cultivos de arroz feijatildeo e verduras pela implantaccedilatildeo de hortas Registros do
padre jesuiacuteta Fernatildeo Cardim que chegou em 1584 descreve a existecircncia de
ldquoalface aboacutebora couve pepino nabos mostarda hortelatilde coentros endros
funchos ervilhas gergelim cebolas alhos e outros legumes que do Reino se
trouxeram que se datildeo bem na terrardquo (CARDIM 1939 p 94)
A partir do que eacute apresentado por Cacircmara Cascudo (2004) e Freyre
(1964) eacute possiacutevel verificar ainda os haacutebitos alimentares dos escravos africanos
que foram trazidos para a colocircnia em meados do seacuteculo XVI primeiramente
inseridos no trabalho dos engenhos de cana e algodatildeo e posteriormente na
mineraccedilatildeo e fazendas de gado
Segundo Cacircmara Cascudo (2004) quase todos escravos eram
obrigados a se alimentar da dieta que lhes era fornecida assim a possibilidade
de escolha do que comer era praticamente nula Eram melhor alimentados
apenas durante a viagem de navio ateacute chegar em terras brasileiras pois
precisariam estar em boas condiccedilotildees para serem revendidos
A refeiccedilatildeo consiste durante a viagem em feijatildeo farinha de milho e de mandioca agraves vezes tambeacutem peixe salgado Sua bebida eacute aacutegua e de quando em quando tambeacutem um pouco de aguardente Sendo levados do Brasil esses gecircneros teriam deterioraccedilatildeo raacutepida e natural (MARTIUS 21 apud CAcircMARA CASCUDO 2004 p 200)
Uma vez instalados nas aacutereas a que foram destinados na colocircnia a
alimentaccedilatildeo do europeu natildeo mudava significativamente Poreacutem em Minas
Gerais era comum a destinaccedilatildeo de pequenas parcelas de terra para que
escravos cultivassem vegetais de sua preferecircncia proacuteximo agraves senzalas
provendo uma alimentaccedilatildeo melhor pelo menos mais diversificada (CAcircMARA
CASCUDO 2004 GUIMARAtildeES REIS 2007) Citando relatos de Gabriel Soares
de Souza que esteve na Bahia de 1570 a 1587 e de Joatildeo Mauricio Rugendas
que passou pelo Brasil de 1821 a 1835 Cacircmara Cascudo (2004) relata que
nesses roccedilados os escravos podiam trabalhar em dias santos e em dias de festa
na casa-grande Era dado aos escravos pequenas parcelas de terra onde eles
podiam cultivar alimentos de seu interesse de consumo
Dessa forma as roccedilas de subsistecircncia aleacutem de contribuiacuterem para reduzir os custos de manutenccedilatildeo da matildeo de obra ao complementarem
22
a alimentaccedilatildeo fornecida pelos senhores criavam um espaccedilo proacuteprio para os escravos contribuindo assim para a prevenccedilatildeo de fugas e revoltas (GUIMARAtildeES REIS 2007 p 330)
A possibilidade de cultivar algumas roccedilas de alimentos preferidos na
cultura africana segundo Cacircmara Cascudo e Gilberto Freyre explica a inserccedilatildeo
de muitas plantas africanas que de alguma maneira os escravos conseguiram
transportaacute-las para o Brasil durante sua viagem Isso tambeacutem permitiu a
inserccedilatildeo de algumas peculiaridades das praacuteticas alimentares africanas na
formaccedilatildeo da comida brasileira atraveacutes das cozinheiras e tambeacutem embora mais
raramente dos cozinheiros que atuavam nas casas-grandes Segundo Freyre
(1964) pode-se atribuir a eles a introduccedilatildeo dos seguintes ingredientes
alimentos e modos de fazer na culinaacuteria brasileira
Azeite-de-dendecirc pimenta malagueta quiabo maior uso da banana variedade de formas de preparar a galinha e o peixerdquo (p 634) Dentro da extrema especializaccedilatildeo de escravos no serviccedilo domeacutestico das casas-grandes reservaram-se sempre dois agraves vezes trecircs indiviacuteduos aos trabalhos de cozinha (FREYRE 1964 p 634)
Freyre (1964) aponta que as influecircncias se deram primeiramente e mais
fortemente nos estados do Nordeste (Bahia Pernambuco e Maranhatildeo) em
funccedilatildeo dos trabalhos nos engenhos da regiatildeo Na Bahia foi muito marcante a
inserccedilatildeo das vendas dos quitutes doces e salgados em tabuleiros ou gamelas
pelas ruas sobretudo pelas mulheres alforriadas mas tambeacutem havia aquelas
que vendiam para reverter a renda agrave sua lsquosinhaacutersquo6 ldquoQuindim cocada sequilhos
mocotoacutes vatapaacutes mingaus pamonhas canjicas acaccedilaacutes abaraacutes arroz-de-coco
feijatildeo-de-coco angus patildeo-de-loacute de arroz patildeo-de-loacute de milho rebuccedilados7rdquo (p
636) Este autor afirma que os dois pratos de origem africana que mais fizeram
sucesso na mesa da casa-grande foram o vatapaacute e o caruru
Com a chegada da Corte Portuguesa em 1808 segundo Cacircmara
Cascudo (2004) Holanda (1995) e Ribeiro (2014) algumas alteraccedilotildees
importantes comeccedilaram a ocorrer no plano alimentar dos mais ricos com a
vinda inclusive de cozinheiros particulares com seus livros de receitas Criaram-
se modismos que tiveram influecircncia principalmente no Rio de Janeiro Um deles
6 No capiacutetulo 3 deste trabalho faccedilo uma discussatildeo mais detalhada sobre o papel das mulheres iacutendias
africanas e portuguesas na formaccedilatildeo da culinaacuteria brasileira 7 Como os portugueses se referem ao doce ldquobalardquo
23
foi a ampliaccedilatildeo do consumo de produtos importados da Europa e o estilo francecircs
de comer
Importava-se conservas doces frutos processados salsichas presuntos manteiga queijo chaacute e temperos () Desde entatildeo os haacutebitos agrave mesa se europeizaram os ideais alimentares e de paladar se tornaram cada vez mais semelhantes aos franceses berccedilo da gastronomia como a conhecida hoje (RIBEIRO 2014 p 50-51)
Freyre (1964) descreve informaccedilotildees dos livros de receitas dos
cozinheiros que vieram de Portugal e que passaram a inserir as novas praacuteticas
alimentares importadas para os mais abastados como a substituiccedilatildeo da gordura
pela manteiga francesa nas frituras diversas o reduzido uso da feijoada e dos
guisados do uso da pimenta e de outros condimentos picantes O proacuteprio trigo
antes uma raridade passou a chegar com maior facilidade e iniciando-se a
produccedilatildeo do patildeo de trigo tatildeo caracteriacutestico em Portugal e que passou a ser
muito consumido tambeacutem no Brasil
Em vez do aluaacute da garapa de tamarindo do caldo de cana ndash o chaacute agrave inglesa em vez de farinha do piratildeo ou do quibebe ndash a batata chamada inglesa Juntando-se a tudo isso o requinte do gelo Manteiga francesa batata inglesa chaacute tambeacutem agrave inglesa gelo ndash tudo isso agiu no sentido da desafricanizaccedilatildeo da mesa brasileira que ateacute os primeiros anos de independecircncia estivera sob maior influecircncia da Aacutefrica e dos frutos indiacutegenas (FREYRE 1964 p 642)
As influecircncias de outras culturas continuaram a se expandir a partir de
metade do seacuteculo XIX com a chegada de novos imigrantes ndash principalmente
italianos alematildees espanhoacuteis japoneses e siacuterio-libaneses ndash novos elementos da
culinaacuteria tiacutepica desses grupos eacutetnicos foram se incorporando a jaacute miscigenada
comida brasileira Na contemporaneidade a influecircncia alimentar mais relevante
de uma cultura externa eacute a norte-americana Poreacutem no seacuteculo XX o hibridismo
alimentar natildeo mais ocorre necessariamente pela intensidade da imigraccedilatildeo mas
sobretudo pela influecircncia da globalizaccedilatildeo Ao facilitar a divulgaccedilatildeo o transporte
e a aquisiccedilatildeo de alimentos de outros paiacuteses esse processo propiciou a
introduccedilatildeo constante de novas praacuteticas e haacutebitos alimentares
Apoacutes a breve introduccedilatildeo sobre os haacutebitos alimentares formados no Brasil
colonial passo a tratar especificamente da regiatildeo de Minas Gerais onde se deu
a fase mineradora regiatildeo na qual estatildeo inseridos os municiacutepios pesquisados
24
22 Fase da mineraccedilatildeo em Minas Gerais escassez de alimentos
O ciclo da mineraccedilatildeo foi muito importante para a economia da colocircnia
portuguesa e iniciou-se apoacutes a quase estagnaccedilatildeo do ciclo do accediluacutecar no final do
seacuteculo XVII Teve seu apogeu em Minas Gerais no seacuteculo XVIII e nesta fase
por determinaccedilatildeo da Coroa Portuguesa toda a matildeo de obra deveria estar
voltada basicamente agrave extraccedilatildeo de ouro e diamante Paula (2007) menciona que
a mineraccedilatildeo foi uma atividade central e decisiva na peculiaridade histoacuterica da
regiatildeo onde ela ocorreu Segundo o autor algumas caracteriacutesticas dessa
atividade foram a rapidez e amplitude com que a regiatildeo foi ocupada O intenso
fluxo imigratoacuterio gerado pela quantidade de ouro e seu preccedilo transformou-a na
Capitania mais populosa do periacuteodo colonial ao imperial Por sua importacircncia
econocircmica e dinamismo da atividade Minas Gerais teve o maior nuacutemero de
escravos da Ameacuterica Portuguesa
O fato de ser ele mesmo o ouro dinheiro em sua forma mais universal teraacute decisivo impacto sob o grau de dinamismo e mercantilizaccedilatildeo da economia mineira A riqueza decorrente da atividade induziraacute o Estado portuguecircs a efetivamente implantar a maacutequina estatal da colocircnia agrave qual seraacute durante muito tempo apenas fisco poliacutecia e justiccedila Satildeo essas dimensotildees que vatildeo determinar o desenvolvimento em Minas Gerais de uma estrutura urbana de uma certa vida poliacutetica e cultural em nada triviais no contexto colonial (PAULA 2007 p 279)
Assim a atividade mineradora fez surgir em Minas Gerais primeiramente
uma sociedade urbana baseada na extraccedilatildeo de ouro e diamantes com a
formaccedilatildeo de pequenos povoados e arraiais Segundo Zemella (1951) ldquoos
arraiais mineiros cresceram tatildeo vertiginosamente que em poucos anos muitos
deles atingiram a dignidade de vila Surgiram primeiramente Mariana Vila Rica
Caeteacute Sabaraacute Vila do Priacutencipe Arraial do Tijuco e outrosrdquo (ZEMELLA 1951 p
46) Nesses ldquooutrosrdquo citados pela autora estaacute incluiacuteda a vila de Guarapiranga
(atuais municiacutepios de Piranga Porto Firme e Presidente Bernardes) como jaacute foi
mencionado
Em funccedilatildeo disso analisa Cacircmara Cascudo (2004) com um contingente
elevado de pessoas que chegavam tanto do litoral da Colocircnia como tambeacutem de
Portugal em busca das riquezas minerais a escassez de alimento foi um fator
marcante nesse periacuteodo jaacute que se plantava muito pouco e boa parte da comida
25
era trazida por tropeiros8 a preccedilos elevados Aleacutem disso demorava a chegar
devido agraves dificuldades das tropas em avanccedilar pelas matas e estradas de difiacutecil
acesso
O excesso de ouro mal enfrentava o exageradiacutessimo preccedilo dos gecircneros alimentiacutecios transportados de longe porque natildeo havia vontade e tempo para plantar cereais Garimpeiros e faiscadores9 tinham que comprar qualquer elemento para compor a menor refeiccedilatildeo Toda a escravaria estava ocupada no desmonte das terras e lavagem do ouro (CAcircMARA CASCUDO 2004 p 208)
Segundo Frieiro (1982) e Paula (2007) as crises de abastecimento foram
graviacutessimas e causaram muitas mortes por fome aleacutem da acelerada alta de
preccedilos dos alimentos Magalhatildees (1978) aponta duas grandes crises de fome a
de 1697-1698 e a de 1700-1701 Essas crises propiciaram uma dispersatildeo
populacional do centro da regiatildeo mineradora ldquoOs primeiros habitantes natildeo
pensavam em perder tempo nas canseiras do amanho e plantio da terra A falta
de caminhos agravava sobremaneira o problema do abastecimentordquo (FRIEIRO
1982 p 56)
Segundo o autor tinha-se assim uma alimentaccedilatildeo de baixo valor
proteico Para minimizar isso comia-se o ldquobicho da taquarardquo assado ou torrado
Alimento que jaacute era consumido pelos indiacutegenas
O que comia o faisqueiro na sua lavra Comia do pouco que se plantava nas roccedilas Milho feijatildeo farinha de mandioca e alguma fruta da terra eram o cotidiano sustento dos mineradores O escravo negro pau para toda obra armava o tripeacute de varas fincado no chatildeo e pendurava nele o caldeiratildeo de ferro em que cozinhava o feijatildeo com toucinho servido em pratos de estanho Estendia-se a farinha ao sol numa toalha e ao lado natildeo faltava o ancorote de aacutegua ou aguardente Galinha ovos e doces quando os havia muito raros eram tudo por preccedilo da hora da morte (FRIEIRO 1982 p 57)
A partir disso pela necessidade de manter a atividade e portanto de
manter alimentados os homens para o trabalho o rei ordena a importaccedilatildeo de
carne de boi para Minas vinda de Satildeo Paulo Curitiba sertotildees da Bahia e
Pernambuco Essas regiotildees natildeo possuiacuteam grande plantel mas passaram a
ampliar a produccedilatildeo para atender agrave demanda mineira A carne chegava cara e
8 Uma importante e movimentada rota de comercializaccedilatildeo para abastecer a regiatildeo de suprimentos gerais e
comida surge da exploraccedilatildeo de ouro e diamante Detalhes dessa rota comercial por ser visto em Zemella (1951)
9 Muito comuns na mineraccedilatildeo os faiscadores eram homens livres e pobres havendo mesmo escravos entre eles que entregavam quantia fixa de ouro ao senhor e guardavam o eventual excedente (VAINFAS 2001 p 398)
26
tambeacutem tinha seu preccedilo elevado nas regiotildees de origem jaacute que se priorizava a
exportaccedilatildeo para Minas Apesar da escassez de comida representar um aspecto
negativo para Minas Gerais ela contribuiu para a expansatildeo do mercado de
outras regiotildees do paiacutes que investiram no abastecimento de alimentos da aacuterea de
mineraccedilatildeo conforme aponta Furtado (2000)10
Segundo Zemella (1951) apesar do empenho de Satildeo Paulo e das outras
regiotildees em fazer chegar a carne ateacute as Minas Gerais havia irregularidades no
fornecimento Em funccedilatildeo disso usava-se muito da carne de caccedila e de todo o
tipo de alimento que se poderia obter nas matas aleacutem do pouco que colhiam nas
pequenas roccedilas para subsistecircncia insuficiente para atender a demanda de todos
os trabalhadores que viviam na regiatildeo dedicada agrave mineraccedilatildeo
A situaccedilatildeo de inseguranccedila alimentar grave que se instalava e a grande
dificuldade na obtenccedilatildeo da carne bovina ldquoestimulou o governo metropolitano agrave
formaccedilatildeo de uma zona pecuarista em torno das minas distribuindo sesmarias
em profusatildeo sempre sob a condiccedilatildeo de os agraciados instalarem curraisrdquo
(ZEMELLA 1951 p 192) O objetivo era tambeacutem que com o tempo a produccedilatildeo
de gado se tornasse suficiente para natildeo mais haver comeacutercio com a Bahia
visando fechar os canais por onde escoava o contrabando de ouro
A outra accedilatildeo do governo da qual trata a autora foi instituir a criaccedilatildeo de
suiacutenos onde houvesse espaccedilo para tal Assim passou a ser frequente entre os
mineiros a implantaccedilatildeo de chiqueiros rudimentares no quintal das casas mesmo
nas casas urbanas Surge a partir dessa situaccedilatildeo a preferecircncia pela carne suiacutena
na dieta do mineiro da regiatildeo de mineraccedilatildeo11 carne que estaacute presente na maior
parte das receitas consideradas mineiras ainda nos dias atuais
Outra medida por parte da Coroa para garantir a subsistecircncia interna e
certa autonomia ao longo desse periacuteodo de mineraccedilatildeo foi a criaccedilatildeo da ldquoOrdem
10 A pecuaacuteria que encontrara no Sul um habitat excepcionalmente favoraacutevel para desenvolver-se - e que
natildeo obstante sua baixiacutessima rentabilidade subsistia graccedilas agraves exportaccedilotildees de couro ndash passaraacute por uma verdadeira revoluccedilatildeo com o advento da economia mineira O gado do Nordeste cujo mercado definhava com a decadecircncia da economia accedilucareira tende a deslocar-se em busca do florescente mercado da regiatildeo mineira Outra caracteriacutestica de profundas consequecircncias para as regiotildees vizinhas radicava em seu sistema de transporte A tropa de mulas constitui autecircntica infraestrutura de todo o sistema A quase inexistecircncia de abastecimento local de alimentos a grande distacircncia por terra que deveriam percorrer todas as mercadorias importadas a necessidade de vencer grandes caminhadas em regiatildeo montanhosa para alcanccedilar os locais de trabalho tudo contribuiacutea para que o sistema de transporte desempenhasse um papel baacutesico no funcionamento da economia Criou-se assim um grande mercado para animais de carga (FURTADO 2000 p 81)
11 Nas regiotildees do norte de Minas Gerais outros tipos de carne satildeo mais comuns por exemplo a carne de sol em que se usa mais frequentemente a carne de boi
27
Reacutegia de 27 de fevereiro de 1777rdquo que tornou obrigatoacuterio o cultivo nas aacutereas
rurais em quantidade suficiente para abastecimento de mandioca feijatildeo e milho
considerados alimentos baacutesicos naquela eacutepoca
O milho que na regiatildeo das Minas Gerais passou a ser mais importante
para consumo humano12 do que a mandioca tinha como derivados pipoca
curau pamonha farinha cuscuz biscoitos bolos cerveja de milho verde
aguardente canjica ldquoque os ricos comiam por gosto e os pobres por
necessidaderdquo (FRIEIRO 1982 p 57) Isso porque estes derivados eram
consumidos apenas pelos proprietaacuterios das terras e outros poucos abastados
Segundo Saint-Hilaire (1938) e Frieiro (1982) aos escravos soacute era dado o angu
que durante muito tempo foi a base de sua dieta Saint-Hilaire (1938) que
aprovou o paladar da alimentaccedilatildeo agrave base do milho descreve detalhes do fubaacute e
a importacircncia do angu para a alimentaccedilatildeo dos escravos
Para fazer servir o milho agrave alimentaccedilatildeo ordinaacuteria dos homens eacute ele preparado de duas maneiras diferentes Sua farinha simplesmente moiacuteda e separada do farelo com o auxiacutelio de uma peneira de bambu toma o nome de fubaacute Eacute fazendo cozer o fubaacute na aacutegua sem acrescentar sal que se faz essa espeacutecie de polenta grosseira que se chama como jaacute o disse anguacute e constitui o principal alimento dos escravos (SAINT-HILAIRE 1938 p 206)
O viajante Pohl (1951 apud FRIEIRO 1982) relata o que testemunhou
da alimentaccedilatildeo dos escravos ldquoalimentavam-se os negros ao almoccedilo e agrave ceia
com farinha de milho misturada com aacutegua quente o angu propriamente dito no
qual punham um naco de toucinho e ao jantar davam-lhes feijatildeordquo (POHL 1951
apud FRIEIRO 1982 p 75) O objetivo era alimentar o escravo somente daquilo
que o mantivesse em boas condiccedilotildees de sauacutede e com forccedila suficiente para fazer
render o trabalho na lavra
O angu era desde essa eacutepoca feito sem adiccedilatildeo de sal o que perdura ateacute
os dias de hoje A principal razatildeo para isso naquela eacutepoca era a dificuldade em
obter o sal em Minas Gerais e consequentemente o seu alto preccedilo Assim esse
produto era usado com parcimocircnia para alimentaccedilatildeo animal e alguns alimentos
12 Para fins de alimentaccedilatildeo animal o milho tambeacutem era mais importante do que a mandioca pois dele se
alimentavam os bovinos os suiacutenos os equinos e os galinaacuteceos conforme aponta Meneses (2007) Assim era necessaacuteria uma aacuterea muito grande destinada ao cultivo deste cereal Segundo este autor a praacutetica de produccedilatildeo consorciada de milho e feijatildeo era comum e atendiam a uma ldquoordem bioloacutegica cultural e econocircmica e ainda ecoloacutegica - condiccedilotildees de clima solo e relevordquo (p 344) Com o passar do tempo o milho caiu na preferecircncia dos habitantes das Minas e se tornou mais importante para fins de alimentaccedilatildeo humana tambeacutem
28
que precisariam dele para conservaccedilatildeo como toucinhos e feijatildeo por exemplo
Conforme Frieiro (1982) em funccedilatildeo dessa situaccedilatildeo poder-se-ia talvez atribuir
o angu sem sal como invenccedilatildeo mineira embora isso natildeo possa ser comprovado
jaacute que em outras regiotildees como Satildeo Paulo e Bahia o angu eacute temperado A
obtenccedilatildeo de sal foi um problema geral no paiacutes durante todo o seacuteculo XVIII
segundo o autor
Zemella (1951) em seu importante trabalho sobre o abastecimento de
capitania das Minas Gerais no seacuteculo XVIII destaca essa situaccedilatildeo
O suprimento de sal especialmente para as cidades vicentinas sempre foi difiacutecil e penoso Na Vila de Satildeo Paulo o mau fornecimento do preciso condimento causou ateacute revoltas Se na Vila de Satildeo Paulo que estava relativamente proacutexima do porto de importaccedilatildeo de sal havia tremendas dificuldades para a sua obtenccedilatildeo que seria entatildeo das Gerais As minas no seu desespero conseguiram uma regiatildeo interna os sertotildees marginais do Satildeo Francisco que lhe fornecesse tal mercadoria se bem que em pequenas quantidades O sal chegava agraves cidades mineiras subindo o rio Satildeo Francisco em barcaccedilas (ZEMELLA 1951 p 193)
A autora aponta que o sal assim como a carne os cereais o accediluacutecar e o
toucinho eram produtos vitais de consumo para os mineiros Sendo que a carne
e o sal eram aleacutem de necessaacuterios imprescindiacuteveis e vinham de longas
distacircncias Segundo Carrara (2013) o sal que chegava agraves Minas Gerais vinha
de Sobradinho Pilatildeo Arcado Casa Nova e Remanso na Bahia A autora inclui
na lista ainda dois produtos que eram considerados de grande importacircncia para
os mineiros a pinga e o tabaco A pinga ou cachaccedila era muitas vezes usada
para ajudar a remediar a fome
Como citado por Zemella (1951) e Frieiro (1982) a Ordem Reacutegia
estimulou pequenos cultivos para subsistecircncia e a venda dos excedentes
reduzindo o risco de uma nova crise de fome Com o tempo foi-se regulando o
abastecimento embora a preccedilos ainda estivessem muito elevados para a grande
maioria da populaccedilatildeo da regiatildeo mineradora Segundo Boxer (1969 apud Arruda
1999 p 139) ldquoAs pessoas que tinham uma fazenda ou roccedila nas quais
plantavam legumes criavam aves porcos etc para elas e seus escravos
vendendo o excesso para o consumo na cidade com bons lucrosrdquo
Arruda (1999) menciona que as pessoas mais ricas e que possuiacuteam um
grande nuacutemero de escravos foram as primeiras a iniciarem o cultivo de suas
29
terras para alimentar seus familiares os escravos e a aproveitar a demanda por
alimentos para obter algum lucro com a venda do excedente
Analisando o lugar da comida no processo de formaccedilatildeo do territoacuterio das
Minas Gerais na fase da mineraccedilatildeo verificamos que ela teve uma funccedilatildeo muito
mais fisioloacutegica ou seja a de matar a fome e sustentar a pesada lida diaacuteria que
era o trabalho na lavra Conforme os registros de Mawe (1922) Saint-Hilaire
(1938) e Cardim (1939) verifica-se que os habitantes da regiatildeo de Minas Gerais
faziam suas refeiccedilotildees com muita rapidez e com pouca conversa
Outra observaccedilatildeo importante eacute mencionada por Abdala (2007) que
aponta a existecircncia de uma combinaccedilatildeo de gecircneros adquiridos no comeacutercio com
a produccedilatildeo de alimentos do quintal isso ainda na fase da mineraccedilatildeo ndash no
periacuteodo apoacutes as crises de fome e organizaccedilatildeo do abastecimento interno Como
os preccedilos dos produtos importados eram muito elevados os produtos da terra
foram os principais alimentos consumidos Assim segundo a autora surge uma
cozinha com caracteriacutesticas peculiares que se adaptou agrave situaccedilatildeo vivenciada
pelos habitantes cujo controle poliacutetico e econocircmico era excessivo diante da
realidade em que atender agraves necessidades imediatas de sobrevivecircncia era o
principal objetivo ldquoAgrave exceccedilatildeo das compotas e doccedilarias de maneira geral
inspiradas nos haacutebitos lusitanos os pratos servidos no dia-a-dia caracterizavam-
se pela rusticidade dos produtos da terrardquo (ABDALA 2007 p 73) Nesse periacuteodo
tambeacutem foi muito importante dominar as teacutecnicas de conservaccedilatildeo dos alimentos
o que acarretou na adoccedilatildeo de haacutebitos alimentares muito caracteriacutesticos como a
conservaccedilatildeo da carne do porco na gordura retirada do proacuteprio animal
23 Fase da ruralizaccedilatildeo em Minas Gerais fartura de alimentos
A fase da ruralizaccedilatildeo em Minas Gerais eacute considerada aquela que
paulatinamente vai surgindo um novo dinamismo econocircmico e reprodutivo para
aleacutem da mineraccedilatildeo Segundo Arruda (1999) Igleacutesias (1970) Carrara (2007)
Guimaratildees e Reis (2007) Meneses (2007) Barbosa (1995) e Frieiro (1982) natildeo
ocorreu um corte radical uma linha divisoacuteria onde tenha se encerrado o ciclo da
mineraccedilatildeo e surgido o ciclo da ruralizaccedilatildeo A demarcaccedilatildeo de uma periodizaccedilatildeo
eacute feita pelos autores mais por razotildees metodoloacutegicas para discorrer sobre o ritmo
histoacuterico econocircmico e cultural daquele periacuteodo na regiatildeo
30
Iglesias (1970) utiliza os termos ldquoopulecircncia e decadecircnciardquo da mineraccedilatildeo
e sugere os periacuteodos da seguinte maneira Os anos de 1693 a 1770 a fase
considerada do surgimento ao auge da opulecircncia mineraccedilatildeo e 1770 a 1883 o
que abrangeria a sua decadecircncia Tal decliacutenio orientou consequentemente para
a atividade a agriacutecola Arruda (1999) aponta a Carta (ou Ordem) Reacutegia jaacute citada
no item anterior como o marco de reconhecimento da Coroa do decliacutenio da
mineraccedilatildeo e da necessidade de estimular a produccedilatildeo agriacutecola na regiatildeo Em
suas palavras
A Carta Reacutegia de 1777 consagra ao novo princiacutepio o postulado que reconhece a importacircncia da agropecuaacuteria no conjunto das atividades econocircmicas nas aacutereas de mineraccedilatildeo () A mudanccedila de atitude por parte das autoridades governamentais do Reino corresponde na realidade agrave avassaladora crise da produccedilatildeo auriacutefera depois dos anos sessenta Impunham-se novos caminhos agrave economia de Minas capazes de dar sustentaccedilatildeo aos significativos contingentes populacionais que laacute haviam se estabelecido na primeira deacutecada do seacuteculo XVIII (ARRUDA 1999 p 140)
Nesta fase o problema de abastecimento jaacute natildeo era mais tatildeo grave mas
os preccedilos dos alimentos continuavam altos Era tempo de maior fartura de
alimentos em relaccedilatildeo agrave fase de mineraccedilatildeo mas ainda assim com muitos
obstaacuteculos Zemella (1951) defende que em funccedilatildeo da situaccedilatildeo dada a regiatildeo
de Minas Gerais foi orientando pouco a pouco seus caminhos no sentido da
autossuficiecircncia e as atividades dos habitantes se desviando para a lavoura
pecuaacuteria e a manufatura ldquoNa proacutepria regiatildeo onde se localizavam as lavras13 ou
minas multiplicaram-se as plantaccedilotildees As minas agonizantes passaram a
apoiar-se na lavoura que se expandindo procurava gulosamente as manchas
de terra feacutertil que havia nas imediaccedilotildees das lavrasrdquo (ZEMELLA 1951 p 239)
Mas esse processo natildeo significou um rompimento abrupto da mineraccedilatildeo Assim
o trabalho na lavra permanecia embora em muito menor importacircncia do que
antes ndash nas fases poacutes-colheita ndash quando se utilizava a matildeo-de-obra dos escravos
que pudessem ser retirados temporariamente da lavoura
Guimaratildees e Reis (2007) apontam que os setores da manufatura
pecuaacuteria e lavoura permitiram que a economia de Minas Gerais continuasse a
13 ldquoEm 1702 foi criado a Intendecircncia das Minas oacutergatildeo encarregado de aplicar a legislaccedilatildeo sobre a
mineraccedilatildeo na colocircnia Cabia ainda ao oacutergatildeo dividir o local a ser explorado em Datas lotes de terra entregues ao descobridor das minas As aacutereas maiores que as Datas eram chamadas de Lavras lotes de terras em que a exploraccedilatildeo do ouro soacute seria possiacutevel com teacutecnicas de exploraccedilatildeo mais eficaz e com um grande nuacutemero de escravosrdquo (MUTTER 2012 p31)
31
se desenvolver e a Capitania continuasse a manter seu ritmo de crescimento
populacional durante a segunda metade do seacuteculo XVIII incluiacuteda a populaccedilatildeo
escrava
Com a crise da mineraccedilatildeo a mudanccedila nos rumos da economia mineira provocou transformaccedilotildees quantitativas e qualitativas na agricultura com o fortalecimento da produccedilatildeo interna e com o desenvolvimento de uma elite residente autocircnoma ante o mercado externo (GUIMARAtildeRES REIS 2007 p 332)
Na concepccedilatildeo de Arruda (1999) aleacutem de a agricultura ocorrer nas
regiotildees das lavras como afirmado por Zemella (1951) as sesmarias que foram
concedidas levaram muitos a estabelecerem suas fazendas no interior rural A
autora aponta que nesta fase jaacute ao final do seacuteculo XVIII Minas reduziu muito o
consumo de produtos importados basicamente de Satildeo Paulo Rio de Janeiro e
Bahia passando a comercializar principalmente para o Rio de Janeiro muito do
que passou a produzir embora a produccedilatildeo fosse principalmente para
abastecimento interno como tambeacutem apontado por Graccedila Filho (2007) e por
Guimaratildees e Reis (2007) Exportava-se ldquoqueijo fumo accediluacutecar aguardente e
cana e ainda mas em menor volume couros e solas marmelada e mandioca
algodatildeo pouco cafeacute gado vacum porcos cavalos e galinhasrdquo (DULCI 2007 p
348)
Este autor menciona ainda que as importaccedilotildees que continuaram pelo
seacuteculo XIX foram de produtos como sal tecidos vinho peixe salgado vinagre
e azeite doce
As compras no entanto eram muito menores do que as vendas O poder aquisitivo dos mineiros era baixo portanto jaacute que eles natildeo tinham condiccedilotildees de consumir muitos produtos importados havia espaccedilo para fabricaccedilatildeo local de bens indispensaacuteveis agrave vida diaacuteria (DULCI 2007 p 348)
Para Freyre (2008 p 67) o decliacutenio da mineraccedilatildeo ldquotransformou quase
toda a Proviacutencia de inquietamente mineira a pacatamente agriacutecolardquo Para este
autor a fase da ruralizaccedilatildeo foi melhor para Minas nos aspectos econocircmicos e
sociais Segundo Graccedila Filho (2007) Guimaratildees e Reis (2007) e Arruda (1999)
a fase da ruralizaccedilatildeo em Minas foi um processo relativamente lento que ocorreu
progressivamente e essa realidade natildeo mudou mundo durante quase todo o
seacuteculo XIX
32
Poreacutem a partir de segunda metade desse seacuteculo o setor cafeeiro e o
fabril tornaram essa realidade produtiva e econocircmica mais diversificada
sobretudo na Zona da Mata assim como a pecuaacuteria leiteira na regiatildeo mais ao
Sul do estado
A produccedilatildeo cafeeira na Zona da Mata conforme Pires (2013 p 331)
ldquodesenvolveu uma tiacutepica economia voltada para a produccedilatildeo e exportaccedilatildeo de cafeacute
que a partir de meados do seacuteculo XIX vai se tornando o espaccedilo econocircmico mais
rico do estado ateacute pelo menos o final da deacutecada de 1920rdquo
Tambeacutem foi na Zona da Mata que Dulci (2007) aponta ter surgido no final
do seacuteculo XIX e iniacutecio do XX agroinduacutestrias da cana e do leite que chegaram a
liderar o mercado nacional no iniacutecio do seacuteculo XX Antes disso os engenhos
existentes nas aacutereas rurais em Minas eram rudimentares O autor menciona que
no municiacutepio de Ponte Nova foram instaladas trecircs usinas de cana de accediluacutecar com
a importaccedilatildeo de equipamentos modernos para a produccedilatildeo em escala industrial
Com as usinas chegaram os trens da empresa Leopoldina o que foi muito
importante para o desenvolvimento regional
Em relaccedilatildeo agrave agroinduacutestria do leite em Minas no mesmo periacuteodo o autor
sinaliza que ela se deu de maneira constante acompanhando a evoluccedilatildeo da
pecuaacuteria regional A primeira agroinduacutestria de produtos laacutecteos do estado
estabeleceu-se onde hoje estaacute o municiacutepio de Santos Dumont
Satildeo muitas as teses e discussotildees baseadas em documentos e arquivos
sobre a Minas Colonial e sobre as dinacircmicas produtivas e o controle poliacutetico-
econocircmico nas duas fases a mineraccedilatildeo e a ruralizaccedilatildeo Poreacutem para os
objetivos deste trabalho como jaacute sinalizado no iniacutecio deste capiacutetulo importa
saber se o decliacutenio da mineraccedilatildeo e consequente ampliaccedilatildeo da produccedilatildeo
agropecuaacuteria (considerada assim a fase da ruralizaccedilatildeo) gerou mudanccedilas nos
haacutebitos alimentares da populaccedilatildeo mineira do entorno da regiatildeo mineradora
Conhecer os haacutebitos alimentares da populaccedilatildeo o que era cultivado e que
animais eram criados nesses dois periacuteodos eacute importante para correlacionar com
as informaccedilotildees obtidas na pesquisa de campo
Nesse sentido os autores que orientam a esse respeito satildeo Frieiro
(1982) Magalhatildees (2004) Arruda (1990) Abdala (2007) Vasconcellos (1968) e
Torres (2011)
33
Temos a impressatildeo (e Gilberto Freyre e Caio Prado Juacutenior pensam igualmente assim) que o mineiro tanto na Colocircnia nos tempos de mineraccedilatildeo no Impeacuterio passada a seacuterie de crises dos primeiros tempos de mineraccedilatildeo alimentava-se bem e melhor do que a maioria dos brasileiros ao menos quanto ao peso e valor nutritivo O mineiro exige ldquosustacircnciardquo quer comida substancial e pouco liga para refinamentos complicados (TORRES 2011 p 101)
A observaccedilatildeo de Torres (2011) corrobora a de Frieiro (1982) que
sinaliza para uma alimentaccedilatildeo mais farta na fase da ruralizaccedilatildeo e segundo
Arruda (1999) a produccedilatildeo diversificada nas fazendas era uma caracteriacutestica
deste periacuteodo Os excedentes de carne suiacutena toucinho carne seca farinha de
milho farinha de mandioca rapadura aguardente oacuteleo fumo cafeacute queijos
algodatildeo em fios e tecidos ruacutesticos eram vendidos nas cidades mais proacuteximas
O que os autores citados apontam eacute que houve fartura de produtos
alimentiacutecios sem diversificaccedilatildeo entre o que se comia na fase da mineraccedilatildeo para
a fase da ruralizaccedilatildeo exceto para os mais ricos que podiam investir na
importaccedilatildeo de vinhos azeites do reino e bacalhau Magalhatildees (2004) aponta a
abundacircncia na produccedilatildeo de legumes frutas hortaliccedilas tubeacuterculos e gratildeos
produzidos nos siacutetios e fazendas proacuteximos a Vila Rica e Mariana Ateacute mesmo
nos pequenos quintais das cidades existiam hortas Muitos dos alimentos eram
itens comuns no cotidiano alimentar da populaccedilatildeo como o feijatildeo a farinha e
milho e a couve
Quanto agrave produccedilatildeo de alimentos regionaislocais notam-se principalmente legumes hortaliccedilas frutas e gratildeos produzidos por pequenos sitiantes residentes nos termos das vilas Em Vila Rica por exemplo produziam-se os seguintes gecircneros laranjas bananas quiabos couves batata-doce caraacute mandioca ovos patildees leite azeite de mamona farinha de mandioca e de milho cevada arroz feijatildeo miuacutedo e fradinho (CHAVES 1995 apud MAGALHAtildeES 2004 p 71)
Em relaccedilatildeo agrave proteiacutena animal Magalhatildees (2004) e Frieiro (1982)
apontam que os suiacutenos e as galinhas caipiras continuaram sendo a principal
fonte de consumo Do suiacuteno aleacutem da carne continuou-se a usar o toucinho a
banha focinho orelhas mocotoacutes e fressuras que tambeacutem satildeo fonte de gordura
Diferentemente da carne cujo consumo era restrito aos abastados o toucinho e
a banha eram usados por todas as classes sociais para acompanhar as
hortaliccedilas e o feijatildeo
34
O angu e o feijatildeo continuaram presentes na mesa de todos sobretudo
na do pobre14 Segundo os autores nas famiacutelias mais ricas tinha-se como
costume servir refeiccedilotildees muito fartas para as visitas mesmo que essa natildeo fosse
a realidade cotidiana inclusive com variedades de doces numa tentativa de
apagar as privaccedilotildees alimentares vivenciadas anteriormente
Saint-Hilaire em uma de suas passagens por Minas Gerais no seacuteculo
XIX relata suas percepccedilotildees sobre a comida nas aacutereas rurais
Galinha e porco satildeo as carnes que se servem mais comumente em casa dos fazendeiros da proviacutencia das Minas O feijatildeo preto forma prato indispensaacutevel na mesa do rico e esse legume constitui quase que a uacutenica iguaria do pobre Se a esse grosseiro manjar este uacuteltimo acrescenta mais alguma coisa eacute arroz ou couve ou outras ervas picadas (hellip) Como natildeo se conhece o fabrico da manteiga substitui-se-lhe a gordura que escorre do toucinho que se frita Cada conviva salpica com farinha o feijatildeo ou outros alimentos aos quais se adiciona salsa e faz-se assim uma espeacutecie de pasta (hellip) Um dos pratos favoritos dos mineiros eacute galinha cozida com quiabo mas os quiabos natildeo se comem com prazer senatildeo acompanhados de anguacute espeacutecie de polenta sem sabor Em parte alguma talvez se consuma tanto doce como na proviacutencia das Minas fazem-se doces de uma multidatildeo de coisas diferentes (hellip) Eacute muito raro encontrar vinho em casa de fazendeiros a aacutegua eacute a sua bebida ordinaacuteria (SAINT-HILAIRE 1938 p 186-187)
Na percepccedilatildeo de Magalhatildees (2004) natildeo houve alteraccedilotildees importantes
na comida mineira ao longo dos anos na regiatildeo onde se iniciou a mineraccedilatildeo
Feijatildeo farinha de milho fubaacute e arroz continuaram a ser alimentos baacutesicos
Sobre as quitandas Frieiro (1982 p 166) e Abdala (2007 p 99) citam
o consumo comum dos biscoitos de polvilho assados ou fritos broas pamonhas
brevidades roscas sequilhos bolos broinhas de fubaacute de amendoim e matildees-
bentas As quitandas eram fundamentais nas aacutereas rurais Em funccedilatildeo da
distacircncia das cidades era preciso estar prevenido para a chegada de alguma
visita e para atender agrave famiacutelia diariamente O patildeo de queijo atualmente a
quitanda quase ldquosiacutembolordquo de Minas Gerais foi introduzida apenas em iniacutecio do
seacuteculo XX Natildeo haacute uma data precisa de seu surgimento mas como os autores
apontam o queijo passou a ser produzido para aproveitar as sobras do leite
Segundo Abdala (2007) os viajantes europeus que estiveram em Minas no
seacuteculo XIX relataram a raridade de queijo e manteiga nos menus locais Para a
14 Segundo Omegna (1961 apud FRIEIRO 1982) a parcela mais pobre e livre de Minas Gerais nunca
rejeitou o angu e nem a farinha de milho preferindo-o agrave mandioca Mas o mesmo natildeo se observava em outras regiotildees do Paiacutes justamente por ser comida prioritaacuteria para os escravos e assim optavam pela farinha de mandioca Essa era uma maneira de natildeo se igualar aos escravos
35
autora a introduccedilatildeo do queijo no biscoito de polvilho dando origem ao patildeo de
queijo surgiu justamente no periacuteodo de fartura alimentar quando se utilizava o
excedente para criar diversos pratos Na regiatildeo que pesquisei o patildeo de queijo
natildeo eacute uma quitanda tradicional e raramente eacute consumida
O que se percebe ao final deste capitulo eacute que a alimentaccedilatildeo baacutesica foi
a mesma em Minas desde o periacuteodo da mineraccedilatildeo A ruralizaccedilatildeo ampliou a
produccedilatildeo de alimentos para abastecimento interno e venda do excedente houve
o incremento de algumas produccedilotildees como cafeacute leite accediluacutecar e seus derivados
mas isso natildeo representou novidade em termos de consumo Percebe-se que os
haacutebitos alimentares permaneceram ao longo dos seacuteculos XVIII XIX e pelo
menos ateacute o iniacutecio do XX Os alimentos destacados como os baacutesicos pelos
autores citados aqui satildeo aqueles que atualmente ainda satildeo encontrados nas
receitas consideradas como mais tradicionais da cozinha mineira embora muitas
e dessas receitas sugiram algumas substituiccedilotildees como oacuteleo vegetal no lugar da
banha accediluacutecar cristal no lugar da rapadura ou do melado fermento quiacutemico no
lugar do bicarbonato de soacutedio etc
No capiacutetulo 5 seraacute possiacutevel observar se esses alimentos presentes na
regiatildeo de mineraccedilatildeo em Minas Gerais satildeo ainda adotados pelas famiacutelias rurais
entrevistadas e se existem relaccedilotildees da comida consumida na ocasiatildeo da
pesquisa com a comida do passado
36
3 ALIMENTACcedilAtildeO E CULTURA PERMANEcircNCIAS E TRANSFORMACcedilOtildeES
ldquoComer natildeo envolve apenas a natureza e a cultura Situa-se entre a natureza e a cultura Participa de ambas Tem muito a ver com a primeira e tambeacutem com a segundardquo
(Paolo Rossi 2014)
Apresento neste capiacutetulo a base conceitual e argumentativa da pesquisa
e os principais autores envolvidos com as abordagens contidas neste trabalho
O item 31 tem por objetivo apontar o lugar da alimentaccedilatildeo nas principais
anaacutelises das ciecircncias sociais e da histoacuteria Basicamente trecircs disciplinas
compotildeem as discussotildees presentes neste estudo e se complementam durante o
percurso a Antropologia a Sociologia e a Histoacuteria O item 32 traz a discussatildeo
existente em torno de sistema alimentar e suas relaccedilotildees com as praacuteticas
alimentares O item 33 analisa as diferenccedilas atribuiacutedas entre alimento e comida
na abordagem cultural e simboacutelica das praacuteticas alimentares inserindo a
importacircncia social e cultural do fogo no ato alimentar as dinacircmicas de
comensalidade as praacuteticas alimentares adotadas na contemporaneidade em
suas conexotildees com o tradicional e o moderno O item 34 discute as
possibilidades de permanecircncia ou extinccedilatildeo das praacuteticas tradicionais no contexto
alimentar contemporacircneo O item 35 discute o tradicional e o moderno no
contexto das dinacircmicas alimentares no meio rural e o item 36 trata do papel
feminino nas praacuteticas alimentares na famiacutelia
31 A alimentaccedilatildeo como categoria de estudo multidisciplinar contribui-ccedilotildees da antropologia da sociologia e da histoacuteria
Em importante artigo sobre as balizas historiograacuteficas da alimentaccedilatildeo
Meneses e Carneiro (1997) destacam os enfoques das diversas aacutereas neste
campo que satildeo bioloacutegico econocircmico social cultural e filosoacutefico Importa-nos
sobretudo aquelas referecircncias das ciecircncias sociais e da histoacuteria Para aqueles
autores a antropologia eacute a que mais daacute atenccedilatildeo a este tema e eacute a responsaacutevel
pela maior quantidade de informaccedilotildees a respeito Citam como principais
contribuiccedilotildees iniciais as obras de Claude Leacutevi-Strauss Marshall Sahlins Mary
Douglas entre outros
37
Os antropoacutelogos desde o seacuteculo XIX se empenharam em desenvolver uma etnografia sistemaacutetica dos haacutebitos alimentares e em buscar interpretaacute-los culturalmente A primeira fase da antropologia caracterizou-se por um comparativismo das diferentes tradiccedilotildees culturais A anaacutelise dos tabus onde se destacam os alimentares foi desde os primoacuterdios da Antropologia Cultural um terreno feacutertil para especulaccedilotildees sobre o significado simboacutelico da alimentaccedilatildeo (MENESES CARNEIRO 1997 p 19)
O socioacutelogo e antropoacutelogo brasileiro Gilberto Freyre jaacute em 1926 em seu
ldquoManifesto Regionalistardquo discute ainda que de forma pouco aprofundada sobre
a funccedilatildeo do accediluacutecar no Brasil Mas foi com sua obra publicada em 1939 em que
trata especificamente de uma sociologia do doce ao recolher receitas que eram
guardadas a sete chaves pelas mulheres e que eram repassadas de matildees para
filhas que o autor pode considerado como o precursor do mais importante
trabalho sobre o accediluacutecar Assunto que retoma mais tarde em ldquoCasa-Grande e
Senzalardquo publicado em 1964
O papel das ciecircncias sociais principalmente a contribuiccedilatildeo da
antropologia para os estudos da alimentaccedilatildeo eacute detalhadamente tratado por
Garciacutea (2009) Este autor aponta que apesar de o tema da alimentaccedilatildeo ter sido
importante para os antropoacutelogos desde os primoacuterdios ndash que registraram em seus
cadernos de campo os modos de comer de elaborar a comida e ainda os
principais alimentos consumidos pelos grupos estudados ndash o ano de 1968 eacute
considerado como sendo o iniacutecio aproximado dos estudos voltados mais
especificamente para a antropologia da alimentaccedilatildeo ou seja quando a
abordagem da comida como cultura passa a ser analisada de forma mais
institucionalizada pela antropologia ldquoCuando se fijen de manera clara las dos
maacutes potentes aproximaciones a la Antropologiacutea de la Alimentacioacuten el
estructuralismo y el materialismordquo (p 26) Sua observaccedilatildeo coincide com o
afirmado por Meneses e Carneiro (1997 p 20) de que ldquosomente nas deacutecadas
de 1960 e 1970 na voga do estruturalismo eacute que os estudos antropoloacutegicos
sobre alimentaccedilatildeo deslancham e se define um padratildeo de anaacutelise culturalrdquo
Garciacutea (2009) justifica ainda a fixaccedilatildeo da data de 1968 por este ser o ano da
primeira publicaccedilatildeo do terceiro volume da seacuterie ldquoMitoloacutegicasrdquo de Claude Leacutevi-
Strauss As Origens dos Modos agrave Mesa
Nesta obra Leacutevi-Strauss republicou o artigo ldquoO triacircngulo culinaacuteriordquo onde
apresenta seu entendimento sobre o fato alimentar e defende que a cozinha de
38
uma sociedade eacute uma linguagem inconsciente de sua estrutura Voltaremos a
este artigo mais agrave frente Em ldquoAs origens dos modos agrave mesardquo (Mitoloacutegicas 3)
assim como em ldquoDo mel agraves cinzas (Mitoloacutegicas 2)rdquo Leacutevi-Strauss analisa o que
chama de ldquoentornos e contornosrdquo da alimentaccedilatildeo A diferenccedila eacute que em
ldquoMitoloacutegicas 3rdquo ele analisa como os modos agrave mesa o uso de receitas e os modos
de preparaccedilatildeo em diferentes povos estatildeo conectados ao lado cultural e como
esses aspectos complementam o lado bioloacutegico que eacute o processo de ingestatildeo e
digestatildeo alimentar
Na deacutecada de 1970 Claude Fischler socioacutelogo e antropoacutelogo francecircs
passa a dar ecircnfase em seus estudos ao tema da alimentaccedilatildeo e desenvolve
importante trabalho sobre o accediluacutecar e seus aspectos de efeito simboacutelico e
bioloacutegico Como jaacute visto Gilberto Freyre (1939) trabalhou esta temaacutetica e sua
influecircncia no Brasil Depois de Claude Fischler Sidney Mintz de mesma
formaccedilatildeo acadecircmica tambeacutem publicou trabalhos sobre o accediluacutecar em 1986
analisando sobretudo as relaccedilotildees de poder existentes nesse tipo de produccedilatildeo
na regiatildeo caribenha Neste contexto seu trabalho inseriu o tema da alimentaccedilatildeo
na economia poliacutetica global Mas Sidney Mintz analisou tambeacutem o poder de
atraccedilatildeo de consumo do accediluacutecar e seu uso na culinaacuteria Sobre esse tema publicou
ldquoSweetness and Power The place of sugar in modern Historyrdquo e em Portuguecircs
foi publicado em 2003 o livro ldquoO Poder amargo do accediluacutecar produtores
escravizados consumidores proletarizadosrdquo
Voltando a Claude Fischler ainda na deacutecada de 1970 organizou a
coletacircnea La nourriture ndash Pour une anthropologie bioculturelle de lrsquoalimentation
Mas eacute na deacutecada de 1990 que publica seu mais importante trabalho
Lrsquohomnivore onde discute as transformaccedilotildees ocorridas nas sociedades
ocidentais modernas no campo da alimentaccedilatildeo e seus efeitos na vida das
pessoas
Tambeacutem entre as deacutecadas de 1970 e 1990 quem se destaca neste
campo eacute o antropoacutelogo americano Marvin Harris Seus estudos no campo da
alimentaccedilatildeo enfatizam sobretudo os enigmas culturais buscando explicar as
reaccedilotildees a alguns mitos e tabus alimentares Assim suas publicaccedilotildees mais
importantes foram ldquoVacas Porcos Guerras e Bruxas Os enigmas da Culturardquo
(1978) Bueno para comer enigmas de alimentacioacuten y cultura (1985) ldquoCanibais
e Reisrdquo (1990) Sobre o tema dos tabus alimentares outras importantes
39
contribuiccedilotildees satildeo as dos antropoacutelogos Mary Douglas sobretudo com a obra
ldquoPureza e Perigordquo publicada pela primeira vez em 1966 e Marshal Sallins com
a obra ldquoCultura e Razatildeo Praacuteticardquo publicada originalmente em 1976 Mary
Douglas e Marshal Sallins tecircm uma anaacutelise para os tabus alimentares que difere
da de Marvin Harris que opta pelo determinismo ecoloacutegico para justificar a razatildeo
de alguns grupos como os judeus em natildeo comer alguns alimentos como carne
de porco por exemplo No livro ldquoVacas Porcos Guerras e Bruxas ndash o enigma
da culturardquo ele defende que a Biacuteblia e o Alcoratildeo condenaram o consumo do
porco natildeo por razotildees espirituais de pecado ou impureza mas ldquoporque a sua
criaccedilatildeo constituiacutea uma ameaccedila agrave integridade dos ecossistemas culturais e
naturais baacutesicos do Oriente Meacutediordquo (HARRIS 1978 p 39) Aleacutem disso Harris
aponta que por ter uma alimentaccedilatildeo parecida com a dos humanos ou seja
viverem soltos nos bosques e se alimentarem de castanhas frutas tubeacuterculos e
cereais os porcos representavam uma disputa por comida Jaacute Mary Douglas e
Sallins defendem que a razatildeo para o natildeo consumo de porco se daacute por razotildees
simboacutelicas e religiosas Mary Douglas em ldquoPureza e Perigordquo recorre ao livro
biacuteblico de Leviacuteticos no Velho Testamento para justificar sua percepccedilatildeo Neste
livro haacute uma recomendaccedilatildeo expliacutecita aos judeus sobre os animais que podem
e que natildeo podem ser comidos divididos entre animais limpos e animais imundos
Assim eram considerados limpos e liberados para comer dentre os
quadruacutepedes os que tem unhas fendidas e divididas em dois e que rumina O
porco por natildeo ruminar eacute considerado imundo e proibido Aleacutem disso nada mais
eacute falado a respeito do porco no livro de Leviacutetico Assim a autora defende que os
judeus cumprem o mandamento apenas por razatildeo religiosa e nada tem a ver
com a questatildeo utilitaacuteria ou da disputa pela comida como alegado por Marvin
Harris Sallins em ldquoCultura e Razatildeo Praacuteticardquo compartilha de forma semelhante
a ideia de Mary Douglas ao tratar sobre os haacutebitos alimentares relativos agrave carne
dos americanos do Norte o que seraacute detalhado mais agrave frente
Outro autor importante no campo da alimentaccedilatildeo eacute o socioacutelogo inglecircs
Stephen Mennell Segundo Meneses e Carneiro (1997) na deacutecada de 1980
Mennell buscou investigar os usos sociais da domesticaccedilatildeo da natureza pela
cultura antes mesmo de Claude Leacutevi-Strauss analisando como se datildeo os
modos que lsquocivilizam o apetitersquo e publicou ldquoAll Manners of Food Eating and Taste
in England and France from the Middle Ages to the Presentrdquo (1996) Foi Mennell
40
ainda quem desenvolveu primeiramente estudos sobre as ldquocozinhas identitaacuteriasrdquo
sobre a valorizaccedilatildeo da cozinha nacional da Inglaterra e os ldquoestilos nacionais de
comerrdquo
Contreras e Gracia (2011 p 29) sugerem como objeto para a
antropologia da alimentaccedilatildeo ldquoo conjunto de representaccedilotildees crenccedilas
conhecimentos e praacuteticas herdadas eou aprendidas que estatildeo associadas agrave
alimentaccedilatildeo e satildeo compartilhadas pelos indiviacuteduos de uma dada cultura ou de
um grupo social determinadordquo
No acircmbito da sociologia segundo Meneses e Carneiro (1997) as
questotildees de gecircnero na divisatildeo social do trabalho domeacutestico e ainda gecircnero e
comida foram os que mais atraiacuteram as pesquisas iniciais Sobre este tema
Mabel Garcia Arnaiacutez (1996) antropoacuteloga espanhola a quem recorremos em
vaacuterios momentos neste trabalho destaca em seu estudo sobre os paradoxos da
alimentaccedilatildeo contemporacircnea as importantes contribuiccedilotildees de Mennell (1996) de
Murcott (1983) Pynson (1987) e Kaplan (1980)
Meneses e Carneiro (1997 p 24) mencionam que o tema da
comensalidade tambeacutem foi evidenciado a partir da deacutecada de 1970 ldquoOs estudos
nesta aacuterea se orientaram para a refeiccedilatildeo como instituiccedilatildeo social sua natureza e
funcionamento seus iacutecones ndash como a mesardquo Mais recentemente abrange
fortemente os estudos sobre os efeitos da tecnologia alimentar que propiciou o
haacutebito de comer fora de casa e o surgimento dos Fast food Em sua obra estes
autores citam os trabalhos de Stephen Mennel (1996) Anne Murcott (1983)
Harvey Levenstein (1988) Claude Fischler (1988)
Ao falar em comensalidade natildeo podemos deixar de citar a contribuiccedilatildeo
dada por Norbert Elias (2011) sobre as transformaccedilotildees nas normas de
comportamento social incluindo os modos agrave mesa na sociedade europeia a
partir do final da Idade Meacutedia Nesta obra cuja primeira publicaccedilatildeo ocorreu em
1939 o autor nos leva a descobrir como foram reproduzidas socialmente
algumas regras de boas maneiras de conviacutevio na sociedade e que tambeacutem se
refletem na comensalidade como por exemplo natildeo comer com as matildeos natildeo
colocar os peacutes sobre a mesa como usar os talheres a mesa natildeo falar de boca
cheia entre outras regras O que pode parecer superficialmente uma descriccedilatildeo
fuacutetil sobre coacutedigos de etiqueta social eacute na verdade uma anaacutelise interessante do
quanto aquilo que parece ser natural atualmente nada tem de natural pois satildeo
41
regras que foram sendo aprendidas agrave medida que o homem foi avanccedilando nos
estaacutegios de civilizaccedilatildeo ocidental O autor nos mostra o quanto foi delicado e difiacutecil
para o homem da cultura ocidental se tornar civilizado ao longo do processo
histoacuterico pois o civilizar-se envolvia a mudanccedila ldquoobrigatoacuteriardquo de comportamento
Em seu livro O Processo Civilizador ele se refere agrave sociedade europeia mas
principalmente agrave Franccedila e agrave Alemanha
No vieacutes da sociologia e da antropologia ocorre uma mudanccedila de
interesse no campo dos estudos sobre alimentaccedilatildeo que se observa a partir da
deacutecada de 1990 segundo Meneses e Carneiro (1997 p 20) deslocando-se o
interesse dos tabus para enfocar as ldquopraacuteticas culturais nos processos de
aculturaccedilatildeo e na identidade culturalrdquo
Eacute importante destacar a observaccedilatildeo feita por Contreras e Gracia (2011)
de que tem sido cada vez maior o nuacutemero de autores contemporacircneos que natildeo
fazem distinccedilatildeo nos enfoques disciplinares entre a antropologia e a sociologia
da alimentaccedilatildeo
Ainda natildeo estaacute bem definida a sucessatildeo de paradigmas dentro da antropologia e da sociologia da alimentaccedilatildeo pois a cada uma das correntes foram vinculados trabalhos sobre diferentes aspectos alimentares sem que necessariamente se tenha produzido um questionamento ou uma invalidaccedilatildeo decisiva das aproximaccedilotildees perguntas ou respostas anteriores Poreacutem dentro desse acircmbito de estudo encontramo-nos em uma fase de tentativas e erros ainda que jaacute se comece a definir um nuacutecleo teoacuterico soacutelido que conte com um miacutenimo de generalizaccedilotildees e de hipoacuteteses que podem ser organizadas em um programa teoacuterico comum cujo nuacutecleo consiste em defender a ideia de lsquosistema alimentarrsquo sem desconsiderar contudo a diversidade de definiccedilotildees e atribuiccedilotildees que tal sistema tem recebido (CONTRERAS GRACIA 2011 p 30)
Garciacutea (2009) defende que para a antropologia da alimentaccedilatildeo o
interesse estaacute em encontrar a loacutegica do significado social e cultural da comida
revelando como ela pode classificar accedilotildees pessoas espaccedilos e tempos e
correlacionar essas classificaccedilotildees e seus significados Jaacute na sociologia da
alimentaccedilatildeo o foco estaacute no espaccedilo social da comida as transformaccedilotildees
contemporacircneas e a evoluccedilotildees da comensalidade
Outros autores contemporacircneos utilizados como referecircncia nesta
pesquisa nos campos tanto da antropologia quanto da sociologia da
alimentaccedilatildeo satildeo Jean Pierre Poulain que eacute socioacutelogo e antropoacutelogo francecircs
Esse autor conduz estudos e pesquisas sobre comida cultura e sauacutede nas
42
universidades de Toulouse (Franccedila) e Taylor (Malaacutesia) Autor de ldquoSociologias da
Alimentaccedilatildeordquo e ldquoDictionnaire des cultures alimentairesrdquo entre outros Mabel
Gracia Arnaiz eacute antropoacuteloga e pesquisadora da universidade de Rovira e Virgili
na Espanha e membro da Comissatildeo Internacional da Antropologia da
Alimentaccedilatildeo Sua linha de investigaccedilatildeo cientiacutefica envolve estudos socioculturais
da alimentaccedilatildeo sauacutede e gecircnero Autora das obras ldquoAlimentacioacuten salud y cultura
encuentros interdisciplinaresrdquo ldquoParadojas de la alimentacioacuten contemporacircneardquo e
mais recentemente em 2015 publicou ldquoComemos lo que somos Reflexiones
sobre cuerpo geacutenero y saludrdquo Tambeacutem antropoacutelogo e pesquisador na Espanha
Jesuacutes Contreras eacute diretor do ldquoObservatorio de la Alimentacioacuten - ODELA)rdquo autor
de ldquoSubsistencia ritual y poder en los Andesrdquo e ldquoAlimentacioacuten y cultura
necesidades gustos y costumbresrdquo Richard Wranglam eacute um pesquisador inglecircs
que atua na aacuterea de antropologia fiacutesica e primatologia Sua importante
contribuiccedilatildeo para os estudos da alimentaccedilatildeo eacute o livro ldquoPegando Fogordquo em que
aponta a importacircncia do fogo para a transformaccedilatildeo da comida de natureza em
cultura e para a promoccedilatildeo da sociabilidade humana Igor de Garine eacute um
antropoacutelogo francecircs que pesquisa sobre comida e tradiccedilatildeo comida e identidade
comida e industrializaccedilatildeo Autor de ldquoLes Changements des habitudes et des
politiques alimentaires en Afrique Aspects des sciences humaines naturellesrdquo e
Social Aspects of Obesity (Culture and Ecology of Food and Nutrition Por fim
Michael Pollan que eacute americano e apesar de sua importante contribuiccedilatildeo
contemporacircnea sobre comida e cultura o que o tem feito despontar na miacutedia
sobre o assunto sua formaccedilatildeo acadecircmica eacute o jornalismo Autor de ldquoO Dilema do
Oniacutevorordquo e ldquoCozinhar uma histoacuteria natural da transformaccedilatildeordquo e outros
As referecircncias de artigos de publicaccedilatildeo internacional dos referidos
autores e outros que utilizei nesta pesquisa fazem parte do banco de dados do
ldquoObservatoire Cniel des Habitudes Alimentaires15rdquo e do ldquoObservatorio de la
Alimentacioacuten (ODELA)rdquo16
Dentre os brasileiros na aacuterea da alimentaccedilatildeo e cultura abordados nesta
pesquisa aleacutem dos claacutessicos trabalhos de Gilberto Freyre e Cacircmara Cascudo
jaacute citados estatildeo os seguintes autores Renata Menasche cujas pesquisas satildeo
mais centradas na alimentaccedilatildeo e consumo no meio rural e patrimocircnio alimentar
15 Site de acesso httpwwwlemangeur-ochacomconnexion 16 Site de acesso httpwwwodelaorglang=es
43
focadas na regiatildeo sul do Brasil Desta autora encontrei avaliando o periacuteodo 2005
a 2015 26 artigos em perioacutedicos envolvendo os temas relacionados acima (como
autora e coautora) 07 deles estatildeo inscritos no portal de perioacutedicos da CAPES
e tambeacutem eacute importante citar dois livros organizados pela autora ldquoA Agricultura
Familiar agrave Mesa saberes e praacuteticas da alimentaccedilatildeordquo publicado em 2007 e
ldquoDimensotildees socioculturais da alimentaccedilatildeordquo publicado em 2012 Maria Eunice
Maciel tambeacutem pesquisa o sul do Brasil em um vieacutes mais geral da comida e
cultura menos voltado ao rural do que a pesquisadora anterior Desta autora
encontrei 08 artigos em perioacutedicos quase todos eles voltados agrave estudos no sul
do Brasil 02 deles inscritos no portal de perioacutedicos da CAPES Ellen Woortmann
pesquisadora de Brasiacutelia cujas pesquisas em alimentaccedilatildeo concentram-se
sobretudo em memoacuteria e patrimocircnio alimentar e aspectos de gecircnero e
alimentaccedilatildeo Seu artigo mais recente na aacuterea de antropologia da comida
publicado em perioacutedico eacute ldquoA comida como linguagemrdquo Carlos Alberto Doacuteria
antropoacutelogo por meio da publicaccedilatildeo de dois recentes livros ldquoFormaccedilatildeo da
Culinaacuteria Brasileirardquo e ldquoe-Boca Livrerdquo Raul Lody tambeacutem antropoacutelogo Sua
publicaccedilatildeo recente mais importante para o campo da alimentaccedilatildeo eacute ldquoBrasil Bom
de Bocardquo Seus estudos tecircm sido mais concentrados na discussatildeo de patrimocircnio
e regionalismo alimentar Jaacute o antropoacutelogo Roberto DaMatta embora natildeo
pesquise especificamente sobre antropologia e comida possui importantes
trabalhos claacutessicos sobre essa temaacutetica e os quais utilizei nesta pesquisa Outras
importantes contribuiccedilotildees brasileiras satildeo as de Mocircnica Abdala Eduardo Frieiro
e Socircnia Maria de Magalhatildees com trabalhos sobre alimentaccedilatildeo com foco em
Minas Gerais de abordagens principalmente histoacutericas No periacuteodo de 2000 a
2015 encontrei 08 artigos de autoria e coautoria de Mocircnica Abdala sobre o tema
da comida e cultura
A leitura de alguns trabalhos dos autores destacados acima foi
fundamental para minha compreensatildeo quanto agrave necessidade de relativizar o
tema da alimentaccedilatildeo conhecer as experiecircncias conduzidas por eles e
correlaciona-las com a discussatildeo pretendida na minha pesquisa As anaacutelises
conduzidas pelos autores convidam agrave reflexatildeo sobre os significados da comida
e do comer na sociedade contemporacircnea Foi possiacutevel perceber que existem
lacunas nas discussotildees sobre a antropologia e sociologia da alimentaccedilatildeo no
Brasil sobretudo no que se refere aos estudos voltados para as populaccedilotildees
44
rurais Como o Brasil eacute constituiacutedo culturalmente de vaacuterios rurais variadas
tambeacutem satildeo as relaccedilotildees simboacutelicas com a comida e merecem ampliaccedilatildeo nos
estudos para que seja possiacutevel alcanccedilar toda a sua complexidade
Eacute importante destacar que as pesquisas nas aacutereas da sociologia e da
antropologia da alimentaccedilatildeo no Brasil ainda satildeo muito recentes apesar das
tradicionais obras jaacute citadas de Gilberto Freyre e Cacircmara Cascudo Em
levantamento feito no banco de teses da CAPES e da base do curriacuteculo lattes
dos docentes citados acima foi possiacutevel verificar que a maioria dos trabalhos no
tema da antropologia e sociologia da alimentaccedilatildeo estatildeo vinculados a programas
de poacutes-graduaccedilatildeo na aacuterea de Antropologia Social As teses e dissertaccedilotildees
concluiacutedas pertencentes aos programas nos quais alguns dos pesquisadores
citados acima atuam totalizam 11 dissertaccedilotildees de mestrado e 04 teses de
doutorado iniciadas a partir de 2007 e concluiacutedas ateacute 2013
Em relaccedilatildeo agraves pesquisas mais recentes no Brasil em levantamento feito
no banco de perioacutedicos da Capes ndash ao utilizar termos de busca sobre o tema de
interesse desta pesquisa ndash encontrei as seguintes informaccedilotildees a respeito de
publicaccedilotildees no periacuteodo de 2005 a 2015 Sobre ldquoalimentaccedilatildeo e culturardquo 07
artigos Sobre ldquocomida e culturardquo 02 artigos Sobre ldquoalimentaccedilatildeo e meio ruralrdquo
08 artigos sendo que 06 deles se referem ao ldquoPrograma de Aquisiccedilatildeo de
Alimentos (PAA)rdquo que natildeo eacute objeto de interesse da minha pesquisa Sobre
ldquoalimentaccedilatildeo e consumordquo 12 artigos sendo que a maior parte estaacute relacionada
aos aspectos nutricionais e fisioloacutegicos e natildeo de abordagem antropoloacutegica ou
socioloacutegica
Para as anaacutelises referentes ao campo da alimentaccedilatildeo e mundo rural
brasileiro destacando a cultura modos de vida e a influecircncia dos sistemas
alimentares contemporacircneos no contexto das novas ruralidades os autores que
trazem importantes contribuiccedilotildees a este trabalho satildeo Maria de Nazareth Baudel
Wanderley Joseacute Graziano da Silva Alfio Brandenburg Antocircnio Cacircndido Carlos
Rodrigues Brandatildeo Joseacute de Souza Martins Seacutergio Schneider e Maria Joseacute
Carneiro
Neste capiacutetulo a aacuterea da histoacuteria desempenha papel menos central do
que a antropologia e a sociologia Interessa-nos dessa disciplina sobretudo os
registros que auxiliem a pensar a perspectiva cultural da alimentaccedilatildeo ponto
central deste trabalho
45
Dentre os autores em quem buscamos as contribuiccedilotildees nesse sentido
estatildeo Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari Nas uacuteltimas trecircs deacutecadas eles
tecircm trazido importantes contribuiccedilotildees para a compreensatildeo da histoacuteria da
alimentaccedilatildeo sobretudo a histoacuteria da alimentaccedilatildeo na Europa A obra mais
importante que resultou da junccedilatildeo dos dois trata de um volumoso livro de 885
paacuteginas organizado por eles que reuniu vaacuterios pesquisadores da aacuterea com
enfoques diferentes sobre a alimentaccedilatildeo na histoacuteria O livro ldquoA Histoacuteria da
Alimentaccedilatildeordquo que foi publicado em 1996 possui um recorte temporal dividido em
sete partes 1 Preacute-histoacuteria e primeiras civilizaccedilotildees 2 O mundo claacutessico 3 Da
antiguidade tardia agrave alta idade meacutedia 4 Os ocidentais e os outros 5 Plena e
baixa idade meacutedia 6 Da cristandade ocidental agrave Europa dos Estados 7 A eacutepoca
contemporacircnea Para a presente pesquisa interessa sobretudo a seacutetima e
uacuteltima parte que trata da alimentaccedilatildeo contemporacircnea e nela dois capiacutetulos o
que discute ldquoas transformaccedilotildees do consumo alimentarrdquo e ldquoa emergecircncia das
cozinhas regionaisrdquo Nesta obra estatildeo presentes artigos de historiadores mas
tambeacutem de antropoacutelogos e socioacutelogos da alimentaccedilatildeo
Tambeacutem pesquisei e fiz uso de registros importantes da histoacuteria da
alimentaccedilatildeo presentes na coleccedilatildeo organizada por Philippe Ariegraves e Georges
Duby ldquoHistoacuteria da Vida Privadardquo bem como da coleccedilatildeo organizada por Fernando
A Novais Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Tais coleccedilotildees foram organizadas
por diversos autores de acordo com os volumes Utilizei trabalhos histoacutericos
dessa coleccedilatildeo nas discussotildees sobre o fogo comensalidade e sociabilidades que
ocorrem no espaccedilo da cozinha
Inclui-se ainda as anaacutelises do espanhol L Jacinto Garciacutea e seu livro
ldquoUna Historia Comestible homiacutenidos cocina cultura y ecologiardquo e ainda Brillat-
Savarin em ldquoA Fisiologia do Gostordquo Recorri com frequecircncia nesta pesquisa a
Luce Giard historiadora francesa Sua importante contribuiccedilatildeo para os estudos
da alimentaccedilatildeo estaacute no v 2 da obra de Michel De Certeau ldquoA Invenccedilatildeo do
Cotidiano II ndash Morar cozinharrdquo
Daniel Roche historiador social e cultural tambeacutem francecircs escreveu
sobre a cultura material francesa do seacuteculo XVIII Sua contribuiccedilatildeo para a histoacuteria
da alimentaccedilatildeo encontra-se no livro ldquoHistoacuteria das Coisas Banaisrdquo publicado
originalmente em 1997 em que trata do nascimento do consumo nos seacuteculos
XVII ao XIX Ao descrever aspectos cotidianos modos de vida comportamentos
46
e o funcionamento das sociedades da eacutepoca que passava por transformaccedilotildees
o autor mostra a famiacutelia como a unidade fundamental de produccedilatildeo e consumo
tanto na aacuterea rural quanto na urbana e isso se refletiu nas praacuteticas e haacutebitos
alimentares Um capiacutetulo do livro eacute dedicado agrave alimentaccedilatildeo como cultura e como
necessidade fisioloacutegica em uma eacutepoca em que obter a alimentaccedilatildeo era a
principal preocupaccedilatildeo das famiacutelias
Na histoacuteria da alimentaccedilatildeo brasileira as referecircncias mais importantes
que percorremos se referem aos trabalhos do historiador e tambeacutem folclorista
Luiacutes da Cacircmara Cascudo Suas obras nesta linha satildeo Histoacuteria da Alimentaccedilatildeo
no Brasil e Antologia da Alimentaccedilatildeo no Brasil Recorremos tambeacutem agrave vasta
contribuiccedilatildeo dada por Gilberto Freyre em ldquoCasa Grande e Senzalardquo e ldquoSobrados
e Mucambosrdquo que assim como Cacircmara Cascudo continuam sendo referecircncia
no campo da histoacuteria da alimentaccedilatildeo no Brasil Importante destacar que os dois
autores natildeo eram formados em curso de histoacuteria jaacute que segundo Silva e Ferreira
(2011) os primeiros cursos superiores de Histoacuteria no Brasil datam da deacutecada
de 1930 na USP no qual Gilberto Freyre lecionava a disciplina de antropologia
Assim os trabalhos de ambos mais do que apenas registros histoacutericos
perpassam fortemente pelas anaacutelises de cunho socioantropoloacutegico
No contexto analiacutetico desta pesquisa em que importa compreender as
mudanccedilas e ou permanecircncias nos haacutebitos alimentares das famiacutelias rurais o
uso do termo ldquosistema alimentarrdquo eacute recorrente Assim importa compreender o
seu significado atribuiacutedo por especialistas na aacuterea de alimentaccedilatildeo e cultura
Passaremos a essa discussatildeo no proacuteximo toacutepico deste capiacutetulo
32 Sistema alimentar17
Poulain (2001) define sistema alimentar como sendo
Lrsquoensemble de regravegles qui reacutesulte de lrsquoorganisation sociale des conceptions relatives au plaisir alimentaire et agrave la santeacute Les modegraveles alimentaires varient drsquoun espace culturel agrave lrsquoautre et au sein drsquoune
17 Nas disciplinas voltadas aos estudos de cunho fisioloacutegico e nutricional da alimentaccedilatildeo o termo adotado
eacute ldquopadratildeo alimentarrdquo Na sociologia e na antropologia da alimentaccedilatildeo utiliza-se principalmente a expressatildeo ldquosistema alimentarrdquo sobretudo na Europa como eacute o caso de Poulain (2001 2003 2013) Contreras e Gracia (2011) Montanari (2008) e Mennell (1996) Jaacute Fischler (1995) que tambeacutem eacute europeu utiliza a expressatildeo ldquosistema culinaacuteriordquo e mais raramente ldquocozinhardquo (cozinha moderna cozinha tradicional cozinha contemporacircnea) poreacutem com o mesmo sentido que o usado pelos outros autores Sistema alimentar eacute tambeacutem utilizado pelos americanos como Harris (2011) Sahlins (2003) Mintz e Dubois (2002)
47
mecircme socieacuteteacute eacutevoluent avec le temps Cette variabiliteacute est rendue possible par le fait que les contraintes biologiques de la meacutecanique physiologique et de lrsquoexploitation des ressources de la nature pegravesent sur les mangeurs18 humains de faccedilon relativement lacircche (POULAIN 2001 p 24)
Para este autor os sistemas alimentares satildeo formados por um conjunto
de conhecimentos tecnoloacutegicos herdados e repassados de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo
que incluem o saber-fazer o gosto as regras e as etiquetas etc Esses
conhecimentos facilitam no processo de escolha dos recursos presentes num
espaccedilo natural e sua transformaccedilatildeo em alimentos para consumo na forma de
pratos atrativos a uma determinada cultura Poulain afirma que esses
conhecimentos se definem concomitantemente como sistemas de coacutedigos
simboacutelicos que retratam os valores de um grupo humano participando da
construccedilatildeo de identidades culturais Na concepccedilatildeo de Poulain (2013) nesse
sistema o alimento estaacute em movimento desde o seu universo de produccedilatildeo
agriacutecola ateacute a chegada ao consumidor sofrendo algumas transformaccedilotildees ao
longo do percurso O sistema alimentar envolve fatores que vatildeo desde os
econocircmicos ateacute os do ambiente domeacutestico quando se adquire alimentos pela
compra ou ainda por meio de cultivo proacuteprio ou criaccedilatildeo de animais ou da pesca
Em um sentido semelhante ao atribuiacutedo por Poulain (2013 e 2014)
Fischler (1979 e 1995) define como sistema culinaacuterio um conjunto de
ingredientes e teacutecnicas que satildeo empregadas na elaboraccedilatildeo de uma refeiccedilatildeo as
combinaccedilotildees e correlaccedilotildees entre os alimentos utilizados e ainda as regras que
envolvem sua escolha preparaccedilatildeo e consumo Atrelados agraves teacutecnicas e aos
ingredientes e consequentemente agraves normas que regem o processo da escolha
ao consumo dos alimentos estatildeo crenccedilas valores siacutembolos representaccedilotildees e
os haacutebitos que satildeo indicadores de cultura de uma sociedade Ou seja normas
essas que estatildeo atreladas ao valor simboacutelico envolvidos no sistema alimentar e
natildeo somente o valor de uso no sentido utilitarista que neste caso seria
secundaacuterio conforme discutido por Sahlins (2003) Afinal como afirma o proacuteprio
Sahlins haacute uma ldquorazatildeo cultural em nossos haacutebitos alimentaresrdquo
Pelas definiccedilotildees dos autores acima percebe-se que as questotildees que
envolvem a alimentaccedilatildeo ou culinaacuteria satildeo estabelecidas pelas caracteriacutesticas e
regras mais ou menos comuns adotadas por grupos de pessoas e pela
18 Termo jaacute explicado na introduccedilatildeo
48
sociedade a qual pertencem Conforme Bourdieu (2007) o gosto que iraacute formar
o haacutebito eacute construiacutedo no convivio familiar e escolar Natildeo por acaso em relaccedilatildeo
agrave comida quase sempre as preferecircncias entre os membros de uma mesma
familia satildeo semelhantes Eacute o gosto tambeacutem que classifica e distingue uma
pessoa de outra um grupo de outro Na formaccedilatildeo do gosto alimentar estatildeo
presentes diferentes aspectos socioculturais que iratildeo inteferir nas escolhas
Embora possa ocorrer o sistema alimentar de um grupo natildeo
necessariamente seraacute adotado por um outro pois ele estaacute ligado agraves questotildees
culturais que em funccedilatildeo de diversos fatores pode gerar uma rejeiccedilatildeo a
determinadas praacuteticas alimentares Um exemplo disso eacute a atribuiccedilatildeo dada a um
determinado alimento ou prato como sendo ldquoexoacuteticordquo poreacutem exoacutetico aos olhos
de quem natildeo estaacute habituado a consumi-lo
Para Helman (1994) eacute a cultura local que assume maior peso no
processo de decisotildees alimentares Eacute ela que primeiramente define as regras
alimentares cabendo-lhe assim determinar
Quem prepara e quem serve o alimento para quem quais indiviacuteduos ou grupos comem reunidos onde e em que ocasiotildees a ingestatildeo do alimento acontece a ordem em que os pratos satildeo servidos dentro de uma refeiccedilatildeo e a maneira como os indiviacuteduos comem Todos esses estaacutegios de ingestatildeo dos alimentos satildeo padronizados rigorosamente pela cultura e constituem uma parte do modo de viver consagrado por aquela comunidade (HELMAN 1994 p 48-49)
Harris (2011) ao tratar da questatildeo lembra que por ser oniacutevora a
espeacutecie humana possui capacidade de ingerir alimentos tanto de origem animal
quanto vegetal Poreacutem por razotildees de adaptabilidade fisioloacutegica alguns
alimentos satildeo descartados do cardaacutepio Jaacute outros mesmo sendo biologicamente
possiacuteveis de ingestatildeo podem ser desprezados por algumas sociedades e
apreciados por outras O autor afirma que as razotildees de apreciaccedilatildeo e rejeiccedilatildeo de
um alimento vatildeo aleacutem da razatildeo fisioloacutegica da digestatildeo Tanto Harris (2011)
quanto Leacutevi-Strauss (1983) apontam que os alimentos rejeitados por razotildees
culturais ou sociais se tornam aceitos para consumo em caso de natildeo haver mais
nada a comer ou seja em caso de fome extrema
Em sentido semelhante Garciacutea (2013) esclarece que homens e animais
tendem a ser conservadores em mateacuteria de gosto embora isso natildeo represente
uma resistecircncia absoluta a experimentaccedilotildees Para o autor a razatildeo dos animais
se daacute por instinto bioloacutegico e a do homem por questotildees culturais Como a
49
formaccedilatildeo do gosto eacute de ordem cultural tambeacutem segundo Bourdieu (2007) isso
faz sentido uma vez que o gosto alimentar apreendido no nuacutecleo familiar
estabelece tambeacutem o haacutebito de cada indiviacuteduo Um haacutebito por ser condicionado
pela cultura eacute mais difiacutecil de ser mudado mas natildeo impossiacutevel pois haacute situaccedilotildees
em que o gosto e consequentemente o haacutebito alimentar podem sofrer
mudanccedilas Essa questatildeo seraacute relativizada mais agrave frente neste trabalho
Neste sentido Garcia (2013) a esclarece que os comportamentos
culturais se formam atraveacutes dos costumes e aprendizados Em geral os seres
humanos preferem o conhecido ao novo ou exoacutetico sobretudo em se tratando
de comida Isso pode estar tanto relacionado ao tipo de alimento como agrave forma
de seu cultivo colheita preparo e armazenamento Um mesmo alimento pode
assumir diferentes sabores e aspectos dependendo da forma como eacute preparado
O peixe tanto pode ser cru na preferecircncia de algumas culturas como pode ser
frito assado ou ensopado e com adiccedilatildeo de temperos e condimentos na
preferecircncia de outras
321 Alimentos aceitos e rejeitados
Esses aspectos dos padrotildees culturais alimentares satildeo tambeacutem tratados
por Sahlins (2003) ao chamar a atenccedilatildeo para o fato de que mesmo o
determinismo cultural de uma sociedade natildeo pode deixar de considerar a
sobrevivecircncia e portanto a continuaccedilatildeo da espeacutecie como por exemplo fazer a
distinccedilatildeo entre alimentos comestiacuteveis e natildeo comestiacuteveis Mas o autor destaca
que haacute uma junccedilatildeo e por isso tambeacutem um conflito entre o aspecto utilitarista
(objetivo) e simboacutelico (subjetivo) na produccedilatildeo e no consumo de produtos Em um
dos capiacutetulos o autor trata do sistema alimentar dos americanos do Norte de
suas preferecircncias alimentares e dos tabus em relaccedilatildeo ao consumo de animais
domeacutesticos Destaca que o aspecto simboacutelico predomina sobre o de ordem
praacutetica Segundo o autor a relaccedilatildeo produtiva estabelecida pela sociedade
americana estaacute pautada no aspecto do que eacute considerado por eles como
comestiacutevel e natildeo comestiacutevel que envolve tanto a exploraccedilatildeo do meio ambiente
quanto as formas de lidar com a terra Neste caso baseado numa relaccedilatildeo em
que ldquoa carne eacute elemento central e os carboidratos e legumes satildeo apoios
perifeacutericos na dietardquo (p 171)
50
A carne como siacutembolo de ldquoforccedilardquo evoca o polo masculino de um coacutedigo social da comida o qual deve originar-se na identificaccedilatildeo indo-europeia do boi ou da riqueza crescente com a virilidade A indispensabilidade da carne como ldquoforccedilardquo e do fileacute como a siacutenteses das carnes viris permanece condiccedilatildeo baacutesica da dieta americana (SAHLINS 2003 p 171)
Segundo o autor o que determina para os americanos qual carne eacute ou
natildeo comestiacutevel eacute a relaccedilatildeo das espeacutecies com a sociedade humana Animais de
estimaccedilatildeo recebem afagos e carinho tem nome proacuteprio diferente da situaccedilatildeo
dos animais para abate Mas essa natildeo eacute uma particularidade dos americanos do
Norte Tambeacutem eacute condiccedilatildeo para outras culturas ainda que os motivos sejam
religiosos como por exemplo na Iacutendia onde o consumo da carne de bovinos eacute
evitado por razotildees religiosas do hinduiacutesmo Os judeus e muccedilulmanos tambeacutem
por motivos religiosos rejeitam a carne de porco que eacute amplamente consumida
na maior parte do ocidente Por outro lado no ocidente eacute praticamente
impensaacutevel a possibilidade de se tomar uma sopa a base de carne de cachorro
alimento relativamente comum ao paladar dos chineses e dos vietnamitas por
exemplo Isso ocorre no ocidente porque catildees satildeo animais de estimaccedilatildeo e
estabelecem relaccedilotildees muito afetivas com os seres humanos vistos como um
membro da famiacutelia conforme aponta Sahlins (2003)
Da mesma forma a carne de cavalo agrada a alguns grupos de regiotildees
francesas belgas e italianas O Brasil natildeo tem por haacutebito consumir a carne de
cavalo apesar de ser um dos maiores exportadores Em meacutedia 15 mil toneladas
por ano19 Segundo Sahlins (2003) durante a crise inflacionaacuteria meteoacuterica nos
Estados Unidos no ano de 1973 foi sugerido pelos governantes que a populaccedilatildeo
adotasse o haacutebito de consumir alimentos mais baratos poreacutem tatildeo nutritivos
quanto a carne de boi (viacutesceras rins coraccedilatildeo) Isso soou como uma afronta para
a populaccedilatildeo A rejeiccedilatildeo pelas viacutesceras se deu por razatildeo socioeconocircmica Para
boa parte da populaccedilatildeo americana comer partes menos nobres do boi seria se
aproximar socialmente de classes mais pobres ldquoA razatildeo para essa repulsa
parece pertencer agrave loacutegica semelhante que recebeu com desagrado algumas
tentativas de substituir a carne bovina por carne de cavalo durante o mesmo
periacuteodordquo (p 172) Em funccedilatildeo disso foi realizado um ato como protesto dos
ldquoapreciadores dos cavalos como animais de estimaccedilatildeordquo
19 httpgrandschefsblogspotcombr201007carne-de-cavalo-o-brasil-e-um-doshtml
51
Tambeacutem eacute exoacutetico para o ocidente o haacutebito da populaccedilatildeo chinesa em
consumir escorpiotildees ratos e uma variedade de insetos Esses alimentos foram
inseridos no cardaacutepio chinecircs em periacuteodo de crise alimentar com o objetivo de
abastecer um paiacutes extremamente populoso Atualmente continuam sendo
consumidos no entanto muito mais como atrativo agrave curiosidade de turistas do
que por necessidade de consumo
Os indiacutegenas da Ameacuterica do Sul possuem o haacutebito de comer alguns
alimentos que os natildeo iacutendios consideram exoacuteticos como por exemplo formigas
larvas de abelhas cupins lagartas besouros etc Em algumas cidades do norte
do Brasil eacute possiacutevel encontrar nas feiras misturas como farofas agrave base de formiga
sauacuteva Eacute interessante ressaltar que um alimento exoacutetico perde essa classificaccedilatildeo
a partir do momento em que passa a agradar ao paladar e a ser consumido sem
aversatildeo a ele Deixando assim de ser exoacutetico para se transformar em familiar
parafraseando DaMatta (1978) Assim o conceito de exoacutetico varia de uma
cultura a outra mas tambeacutem de uma pessoa a outra em uma mesma sociedade
Houve um tempo no Brasil em que comer formiga sauacuteva frita ou tostada
natildeo fazia parte apenas da dieta indiacutegena Relatos de viagem apontam serem
elas importante complemento num periacuteodo de escassez alimentar nas viagens
dos bandeirantes desbravando as Minas Gerais Frieiro (1982) cita documento
da viagem do Conde de Assumar Dom Pedro a Vila Rica em 1717 passando
por Satildeo Paulo quando lhe foi oferecido a ele e agrave sua comitiva formigas sauacutevas
(icaacute) torradas20
Dependendo do contexto o exoacutetico pode ser um emblema de classe e
aqui novamente se insere a argumentaccedilatildeo do gosto como diferenciaccedilatildeo ou
distinccedilatildeo de classes como discutido por Bourdieu (2007) Por exemplo o exoacutetico
considerado ldquochiquerdquo ou ldquogourmetrdquo quando se trata de atribuir status de
consumo e portanto desejado como por exemplo o caviar ou o foie gras Ao
serem aceitos por um perfil de consumidores que aceitam pagar o elevado preccedilo
desses dois produtos eles perderam o status de exoacutetico rejeitaacutevel e passou a
20 Dom Pedro e sua comitiva mais duma vez nos ermos em que pousavam quase passaram fome em
razatildeo do pouco ou quase nada que lhes ofereciam para comer Em Santos e Satildeo Paulo pequenas vilas de algumas centenas de casas o passadio natildeo foi de todo mau Comia-se comumente o que as roccedilas produziam isto eacute milho mandioca feijatildeo e algumas frutas da terra que era o habitual sustento dos paulistas natildeo se comendo carne senatildeo em alguns dias do ano Penetrando no interior com alguns dias de jornada soacute encontraram para cear no rancho dum paulista meio macaco e umas poucas formigas O Conde agradeceu a oferta e comeu (FRIEIRO 1982 p 62)
52
ser visto como um exoacutetico aceitaacutevel assim como jaacute ocorre em boa parte do paiacutes
em relaccedilatildeo agraves comidas japonesas italianas indianas etc que se popularizaram
e jaacute natildeo satildeo mais estranhas ao paladar de boa parte da populaccedilatildeo das aacutereas
urbanas No entanto o exoacutetico popular raramente eacute desejado como a carne de
rato por exemplo consumida pelos chineses mas que no Brasil permanece
sendo rejeitada
Nessa discussatildeo estaacute presente a necessidade de relativizaccedilatildeo da
questatildeo do gosto e do haacutebito alimentar jaacute que apesar de tenderem a ser
tradicionais eacute possiacutevel muda-los ou incorporar novas percepccedilotildees por meio de
significados simboacutelicos (status curiosidade pelo novo para se inserir num
determinado grupo de interesse)
Garciacutea (2009) assim como Harris (2011) estabelece que a correlaccedilatildeo
entre alimentaccedilatildeo e cultura ocorre devido ao fator fisioloacutegico da atividade de
comer estar condicionado culturalmente e isso envolve desde as maneiras de
obtenccedilatildeo dos alimentos ateacute os modos de consumi-los Assim para Garcia
(2009) a escolha dos alimentos se daacute por fatores primeiramente de ordem
cultural e social e em segundo lugar pelas suas qualidades nutricionais e pelo
aspecto econocircmico Nesse sentido o alimento escolhido precisa ser ldquobom para
comerrdquo fazendo uso da expressatildeo utilizada por Harris (2011) ldquoLos alimentos
preferidos (buenos para comer) son aquellos que presentan uma relacioacuten de
costes y benefiacutecios praacutecticos maacutes favorables que los alimentos que se evitan
(malos para comer)rdquo (HARRIS 2011 p 17)
3211 Haacutebitos alimentares orientados por costumes e tradiccedilotildees
Retomando a discussatildeo de Harris (2011) o autor explica que os
costumes culturais e as tradiccedilotildees alimentares de cada sociedade eacute que orientam
os haacutebitos alimentares e essa diversidade deve ser respeitada e valorizada por
aqueles que estudam o tema da alimentaccedilatildeo ldquoComo antropoacutelogo tambieacuten
suscribo el relativismo cultural em mateacuteria de gustos culinarios no se debe
ridiculizar ni condenar los haacutebitos alimentarios por el mero hecho de ser
diferentesrdquo (HARRIS 2011 p 15)
Essa defesa tambeacutem foi feita por Mary Douglas e Ravindra Khare em
1979 quando escreveram uma apresentaccedilatildeo sobre a antropologia da
53
alimentaccedilatildeo no importante perioacutedico ldquoSocial Science Informationrdquo Nesse artigo
as autoras informaram sobre a criaccedilatildeo da ldquocomisioacuten internacional sobre la
antropologia de la alimentacioacutenrdquo A criaccedilatildeo da comissatildeo ocorreu em funccedilatildeo da
necessidade de se discutir as poliacuteticas e estrateacutegias que estavam sendo
desenvolvidas e implementadas nas situaccedilotildees de fome aguda eou crocircnica em
algumas naccedilotildees naquela eacutepoca Pontuaram neste artigo aspectos importantes
que devem ser observados na implantaccedilatildeo de poliacuteticas alimentares para
solucionar a fome Estes aspectos dizem respeito agrave necessidade de se planejar
a soluccedilatildeo de problemas que acometem paiacuteses em situaccedilatildeo de fome que satildeo as
questotildees que envolvem poliacutetica sanitaacuteria e higiene conhecimento de teacutecnicas de
armazenamento e distribuiccedilatildeo mas chamaram a atenccedilatildeo de forma enfaacutetica para
o respeito aos aspectos culturais ldquoHa de basarse em el anaacutelisis de la sociedade
La conviccioacuten de fondo es que los patrones locales de seleccioacuten de alimentos no
pueden ser impuestos sino que dependen de la vida domeacutestica de las ideias
locales sobre processos fisioloacutegicos de divisioacuten de trabajo de horaacuteriordquo
(DOUGLAS KHARE 1979 apud GARCIacuteA 2009 p 30)
Essa argumentaccedilatildeo deixa claro o entendimento diferenciado das autoras
sobre a necessidade da interaccedilatildeo dos antropoacutelogos da alimentaccedilatildeo com
profissionais de outras aacutereas nutricionistas ecologistas economistas
agrocircnomos poliacuteticos e outros atuantes em poliacuteticas sobre o combate agrave fome
para que a cultura alimentar seja respeitada nas intervenccedilotildees sociais Questatildeo
tambeacutem defendida por Valente (2003) ao criticar a limitaccedilatildeo que existe nos
trabalhos isolados em cada especialidade e ao defender a interdisciplinaridade
na elaboraccedilatildeo de projetos porque feitos de forma isolada cada profissional
tende a ver o problema da fome com suas proacuteprias lentes desprezando outras
possibilidades
O profissional da sauacutede ldquoenxergardquo desnutriccedilatildeo e doenccedila e propotildee vacinaccedilatildeo saneamento aleitamento materno etc O agrocircnomo ldquodiagnosticardquo falta de alimentos e propotildee maior produccedilatildeo de alimentos ajuda alimentar etc O educador vecirc ldquoignoracircncia e haacutebitos alimentares inadequadosrdquo e propotildee educaccedilatildeo alimentar Os economistas claacutessicos ldquoidentificamrdquo maacute distribuiccedilatildeo de alimentos e propotildeem uma melhor poliacutetica fiscal geraccedilatildeo de emprego e renda etc Os planejadores diagnosticam ldquofalta de coordenaccedilatildeordquo e propotildeem a criaccedilatildeo de conselhos de alimentaccedilatildeo e nutriccedilatildeo e capacitaccedilatildeo (VALENTE 2003 p 52)
Recentemente a FAOONU (2013) apresentou um projeto em que
propotildee a introduccedilatildeo de insetos como alimentos no combate agrave fome Como
54
justificativa informou que aproximadamente dois bilhotildees de pessoas no mundo
jaacute se alimentam de insetos como besouros lagartas abelhas vespas formigas
gafanhotos grilos cupins libeacutelulas e moscas Agrave praacutetica de se comer insetos da-
se o nome de entomofagia segundo a FAOONU (2013) As justificativas da FAO
estatildeo relacionadas a aspectos de sauacutede pois satildeo altamente nutritivos e ricos em
proteina podendo substituir facilmente em termos nutricionais as carnes de
porco de boi de frango e tambeacutem de peixe aspectos ambientais pois sua
produccedilatildeo gera baixo impacto ao meio ambiente e aspectos relacionados a
fatores econocircmicos e sociais Segundo este oacutergatildeo a criaccedilatildeo de insetos pode vir
a se tornar uma opccedilatildeo de investimento com pouco capital e pode ser importante
fonte de renda e de consumo para camadas mais pobres e populaccedilatildeo sem
acesso agrave propriedade da terra aleacutem de ser uma atividade que natildeo necessita de
tecnologia sofisticada
Sobre isso eacute importante de tecer algumas observaccedilotildees criacuteticas ao
considerar que tal projeto representa um desafio ao propor a inserccedilatildeo de insetos
na dieta em nivel global o que significa tornaacute-la atrativa tambeacutem naquelas
culturas onde satildeo atualmente rejeitadas Todos esses aspectos conduzem a
uma reflexatildeo sobre outro tipo de escolha alimentar que estaacute relacionada agrave
questatildeo de ordem social e econocircmica Ou seja estaacute em pauta se as pessoas
que sofrem de fome aguda ou crocircnica satildeo obrigadas a se adaptar ao exoacutetico se
assim lhes for oferecido em funccedilatildeo de uma poliacutetica puacuteblica ou se isso lhes seria
oferecido como escolha passiacutevel de adoccedilatildeo ou de rejeiccedilatildeo
Tal reflexatildeo remete agraves observaccedilotildees sobre direito agrave liberdade na forma
como eacute tratada por Sen (2000 p 23) ldquoa privaccedilatildeo de liberdade econocircmica pode
gerar a privaccedilatildeo de liberdade social assim como a privaccedilatildeo de liberdade social
da mesma forma pode gerar a liberdade econocircmicardquo O que implica em perda
de acesso e do direito de escolhas inclusive alimentares Portanto acredita-se
que caso esse tipo de alimentaccedilatildeo seja imposta o projeto vai no sentido
contraacuterio ao proposto pela comissatildeo de antropologia da alimentaccedilatildeo citado
acima por Douglas e Khare (1979 apud GARCIacuteA 2009) A imposiccedilatildeo de um
determinado alimento ou o convencimento em adota-lo pode tambeacutem ocorrer
de forma velada utilizando-se campanhas com os grupos locais e ou atraveacutes
da miacutedia como ocorre em relaccedilatildeo a vaacuterios alimentos que passam a ser
55
consumidos sobretudo pelas crianccedilas agrave partir de campanhas publictaacuterias
muitas vezes utilizando-se argumentos apelativos
Certamente essa proposta recente poderaacute ter o debate ampliado nos
proacuteximos anos O que nos interessa aqui eacute sobretudo chamar a atenccedilatildeo para a
inserccedilatildeo de novas praacuteticas alimentares na contemporaneidade Praacuteticas essas
que se mesclam num processo de ampliaccedilatildeo do multiculturalismo alimentar
O proacuteximo item trata da discussatildeo sobre a percepccedilatildeo do alimento como
caracteriacutestica cultural e ainda sobre os reflexos do sistema alimentar
contemporacircneo na vida dos comedores
33 Alimento comida e cultura
Aleacutem de ser uma atitude bioloacutegica a alimentaccedilatildeo assume tambeacutem um
comportamento cultural Discussatildeo jaacute iniciada nos itens anteriores
Bioloacutegica por uma questatildeo de sobrevivecircncia sendo um fator
insubstituiacutevel para a manutenccedilatildeo da vida e condiccedilatildeo sine qua non para todos os
seres humanos Relaciona-se diretamente agrave vitalidade do indiviacuteduo agrave
necessidade fisioloacutegica de ingerir nutrientes capazes de manter o corpo em
funcionamento sendo sob esse aspecto um comportamento relativo agrave natureza
humana O que ingerir e as quantidades a serem ingeridas para suprir as
necessidades variam de uma pessoa para outra de acordo com fatores como
idade altura peso tipo de atividade quadro cliacutenico entre outros
Corresponder a uma atitude natural e de caraacuteter instintivo natildeo torna
necessariamente o ato de alimentar-se como algo consciente sob o aspecto
nutricional porque nem todos os indiviacuteduos conhecem a composiccedilatildeo dos
alimentos e aqueles que conhecem nem sempre pensam a respeito disso ao
realizar as refeiccedilotildees cotidianas aspecto que foi tratado por Harris (2011) e
Garciacutea (2009)
O termo ldquoalimentordquo surgiu segundo Poulain (2013) por volta do ano
1120 mas o seu significado atual somente foi utilizado a partir do seacuteculo XVI
quando passou a substituir a expressatildeo ldquocarnerdquo e esta uacuteltima passou a se referir
apenas agrave carne tal qual a conhecemos ou seja a dos animais comestiacuteveis O
autor explica que anteriormente a expressatildeo ldquocarnerdquo era utilizada para se referir
a tudo o que era bom para manter a vida fossem alimentos caacuterneos ou natildeo
56
Para este autor um alimento deve possuir essas quatro qualidades nutricionais
organoleacutepticas higiecircnicas e simboacutelicas Sobre as simboacutelicas o autor destaca
Para ser um alimento aleacutem das trecircs primeiras caracteriacutesticas de qualidade um produto natural deve poder ser o objeto de projeccedilotildees de significados por parte do comedor Ele deve poder tornar-se significativo inscrever-se numa rede de comunicaccedilotildees numa constelaccedilatildeo imaginaacuteria numa visatildeo de mundo (POULAIN 2013 p 240)
De Garine (1987 p 4) ao resgatar o pensamento de Margaret Mead
destaca que as escolhas alimentares dos seres humanos estatildeo relacionadas agraves
possibilidades de alimentos disponibilizados pelo meio e ao potencial teacutecnico que
possuem
La supervivencia de un grupo humano exige por supuesto que su reacutegimen alimenticio satisfaga las necessidades nutritivas No obstante el nivel de satisfaccioacuten de estas necessidades cuya definicioacuten sigue siendo controvertida variacutea cualitativa y cuantitativamente de una sociedad a otra Tambieacuten cambia en el interior de cada una seguacuten la categoriacutea de edad el sexo el niacutevel econoacutemico y otros criterios (DE GARINE 1987 p 4)
De acordo com Contreras e Gracia (2011) e Woortmann (2007) as
escolhas alimentares que satildeo as formadoras dos haacutebitos se constituem em uma
parte da totalidade cultural Para Contreras e Gracia (2011) pode-se afirmar que
ldquosomos o que comemosrdquo21 tanto no aspecto fisioloacutegico como tambeacutem no
espiritual ao ldquoincorporarrdquo psicossocialmente os elementos culturais daquilo que
ingerimos que pode ser desde elementos ligados agrave espiritualidade como
tambeacutem agrave memoacuteria afetiva Pela mesma razatildeo defendem que ldquocomemos o que
somosrdquo
Comemos aquilo que nos faz bem ingerimos alimentos que satildeo atrativos para os nossos sentidos e nos proporcionam prazer enchemos a cesta de compras de produtos que estatildeo no mercado e na feira e nos satildeo permitidos por nosso orccedilamento servimos ou nos satildeo servidas refeiccedilotildees de acordo com nossas caracteriacutesticas se somos homens ou mulheres crianccedilas ou adultos pobres ou ricos E escolhemos ou recusamos alimentos com base em nossas experiecircncias diaacuterias e em nossas ideias dieteacuteticas religiosas ou filosoacuteficas (CONTRERAS GRACIA 2011 p 16)
21 Conhecido aforismo proferido pelo filoacutesofo alematildeo Ludwig Feuerbach na obra ldquoO misteacuterio do sacrifiacutecio
ou o homem eacute o que ele comerdquo (1862) Tambeacutem Brillat-Savarin escreveu em seu tratado sobre lsquoA Fisiologia do Gostorsquo ldquoDize-me o que comes e te direi quem eacutesrdquo (SAVARIN-BRILLAT 1995 p 15) Os dois aforismos satildeo muito utilizados por aqueles que escrevem sobre alimentaccedilatildeo
57
Em uma percepccedilatildeo semelhante Woortmann (2007) em estudos sobre
dimensotildees sociais da comida entre os camponeses defende a lsquocomidarsquo para
este grupo como sendo uma ldquocategoria cultural nucleante que se articula a
lsquotrabalhorsquo e a lsquoterrarsquo e que as escolhas alimentares que incluem alimentos
proibidos permitidos e os preferidos estatildeo ligadas agraves dimensotildees de gecircnero de
memoacuteria de famiacutelia de identidade de religiatildeo etc
DaMatta (2001 p 56) defende que ldquoo jeito de comer define natildeo soacute aquilo
que eacute ingerido como tambeacutem aquele que ingererdquo Pode-se afirmar portanto que
comer eacute mais do que apenas um ato de sobrevivecircncia eacute tambeacutem um
comportamento simboacutelico e cultural
A diferenccedila entre o alimento como fator bioloacutegico e o alimento como
cultura eacute discutida principalmente por Montanari (2008) Delormier et al (2009)
DaMatta (2001 e 1987) Maciel (2001) Ishige (1987) Silva Mello (1956) Crotty
(1993) De Garine (1987) Cacircmara Cascudo (2004) e Woortmann (1985)
Crotty (1993 apud DELORMIER et al 2009) defende que a praacutetica
alimentar abrange duas acepccedilotildees Aquela posterior agrave ingestatildeo do alimento e que
estaacute relacionada ao universo da biologia (fisiologia e bioquiacutemica) e aquela
anterior agrave ingestatildeo Este uacuteltimo estaacute relacionado agraves questotildees culturais e sociais
ou seja agrave natureza social do comer Segundo a autora no campo da disciplina
da nutriccedilatildeo da-se pouco valor a este uacuteltimo aspecto ateacute mesmo devido aos seus
objetivos teacutecnico-cientiacuteficos Concordando com a percepccedilatildeo de Crotty (1993)
Delormier et al (2009) defendem que natildeo considerar os aspectos sociais e
culturais no campo de interesse representa de certa forma uma limitaccedilatildeo a
qualquer disciplina Estes autores tambeacutem analisam que o processo de escolha
alimentar na maior parte das vezes natildeo se daacute primeiramente pela opccedilatildeo
nutricional mas sim pelas influecircncias do conviacutevio social cotidiano que podem
estar presentes nas relaccedilotildees familiares mas tambeacutem no local de trabalho na
escola e em outros locais de convivecircncia que permitem trocas e ajudam a moldar
as escolhas alimentares dos indiviacuteduos
A atribuiccedilatildeo de status simboacutelico dado ao alimento e ao ato de comer eacute
definida segundo alguns autores pela diferenccedila semacircntica entre ldquocomidardquo e
ldquoalimentordquo DaMatta (1987) ao estudar a comida brasileira defende que toda
substacircncia nutritiva eacute um alimento mas nem todo alimento eacute comida Alimento
aponta o autor eacute universal e geral eacute o que o indiviacuteduo ingere para se manter
58
vivo jaacute a comida ajuda a situar uma identidade e definir um grupo uma classe
uma pessoa ldquoTemos o alimento e temos a comida Comida natildeo eacute apenas uma
substacircncia alimentar mas eacute tambeacutem um modo um estilo e um jeito de alimentar-
serdquo (DAMATTA 2001 p 56) Em uma aproximaccedilatildeo a DaMatta (1987)
Woortmann (1985) aponta ldquocomidardquo como sendo o oposto de mantimento
embora derive dele Pois comida eacute a transformaccedilatildeo do mantimento atraveacutes da
culinaacuteria
Neste sentido comer proporciona uma relaccedilatildeo de intimidade com o ser
humano pois haacute ainda o investimento psicossocial no processo de escolha dos
alimentos O proacuteprio processo de ingerir demonstra a intimidade existente entre
a comida e o corpo considerando que trata daquilo que segundo Mintz (2001
p 31) ldquoeacute colocado para dentro do corpordquo O autor defende que ldquonenhum outro
comportamento natildeo automaacutetico se liga de modo tatildeo iacutentimo agrave nossa
sobrevivecircnciardquo Corroborando esse pensamento Cacircmara Cascudo (2004 p
348) defende que eacute ldquoinuacutetil pensar que o alimento contenha apenas es elementos
indispensaacuteveis agrave nutriccedilatildeo Conteacutem substacircncias imponderaacuteveis e decisivas para
o espiacuterito alegria disposiccedilatildeo criadora bom humorrdquo
Maciel (2001) tambeacutem compartilha da ideia de diferenciaccedilatildeo entre
ldquocomidardquo e ldquoalimentordquo ao reconhecer a junccedilatildeo entre natureza e cultura quando
se trata de alimentaccedilatildeo humana pois poucas horas apoacutes o nascimento
instintivamente a crianccedila chora em busca pelo leite materno Poreacutem a
amamentaccedilatildeo em humanos eacute um ato tambeacutem cultural considerando que o
receacutem-nascido ao ser amamentado experimenta a sensaccedilatildeo de aconchego
favorecendo o viacutenculo entre matildee e filho e ainda o prazer de comer A crianccedila
gosta do sabor do leite e natildeo o rejeita O leite eacute assim alimento e comida ndash
natureza e cultura22
Comida eacute assim o alimento transformado pelas representaccedilotildees sociais
e culturais Eacute o que sugere tambeacutem Montanari (2008) Para este autor
diferentemente das outras espeacutecies animais o homem aproveita os alimentos
que encontra na natureza mas isso natildeo o impede de querer tambeacutem criar a
proacutepria comida usando esses alimentos baacutesicos encontrados mas
transformando-os pelo uso do fogo e uso das praacuteticas tecnoloacutegicas que se
22 Silva Mello (1956) Sandre-Pereira (2012) Mead (1969) e Bosi Machado (2005) satildeo outros autores que
discutem mais profundamente a questatildeo sobre amamentaccedilatildeo e cultura
59
desenvolvem nas cozinhas ldquoOs valores de base do sistema alimentar se definem
como resultado e representaccedilatildeo de processos culturais que preveem a
domesticaccedilatildeo a transformaccedilatildeo e a reinterpretaccedilatildeo da naturezardquo (p 15) O
consumo dos alimentos tambeacutem eacute tratado como cultura pelo autor uma vez que
o homem escolhe o que comer baseado em criteacuterios de ordem econocircmica
nutricional preferecircncias mas tambeacutem em simbologias atribuiacutedas ao alimento
portanto comida Por essas razotildees ldquoa comida se apresenta como elemento
decisivo da identidade humana e um dos mais eficazes instrumentos para
comunica-lardquo (p 16) A natureza produz os alimentos mas a cultura faz surgir
coacutedigos importantes como por exemplo as diferentes opccedilotildees de cardaacutepios as
receitas os haacutebitos que por sua vez se relacionam ao paladar ao prazer
relacionado agraves propriedades organoleacutepticas dos alimentos e sobretudo ao
prazer da degustaccedilatildeo
331 A importacircncia social e cultural do uso do fogo e sua relaccedilatildeo com a comensalidade
O valor cultural do alimento se fortalece a partir da descoberta do fogo e
do iniacutecio do processo de cozimento dos alimentos Os pesquisadores das
Ciecircncias Sociais que primeiramente deram ecircnfase ao papel fundamental do fogo
na transformaccedilatildeo do alimento atribuindo-lhe assim uma funccedilatildeo cultural para
aleacutem da bioloacutegica foram Claude Leacutevi-Strauss Jean Anthelme Brillat-Savarin
Richard Wrangham e Massimo Montanari
Segundo Montanari (2008) para os seres humanos a comida eacute cultura
e natildeo apenas pura natureza devido agrave adoccedilatildeo ndash como parte essencial de suas
teacutecnicas ndash dos modos de produccedilatildeo de preparaccedilatildeo e de consumo de alimentos
bem como o conhecimento sobre plantas proacuteprias para consumo Para o autor
o uso do fogo eacute fundamental na transformaccedilatildeo do alimento bruto em produto
cultural em comida Referente agrave esta percepccedilatildeo Leacutevi Strauss discute em ldquoO Cru
e o Cozidordquo como o uso do fogo permitiu de certa forma o homem passar do
estado da natureza ndash ao se referir a ingestatildeo do alimento de caccedila ou coleta na
forma crua ndash para o estado da cultura a partir da transformaccedilatildeo do alimento em
cozido Numa analogia da linguagem verbal dos grupos em seu artigo
denominado ldquoO Triacircngulo Culinaacuteriordquo o autor propotildee explicar a relaccedilatildeo natureza
60
ndash cultura com a linguagem da comida conferindo status de linguagem universal
agrave comida ldquoassim como natildeo existe sociedade sem linguagem natildeo existe
nenhuma que de um modo ou de outro natildeo cozinhe pelo menos alguns de seus
alimentosrdquo (LEacuteVI-STRAUSS 1968 p 25) O Triacircngulo culinaacuterio proposto pelo
antropoacutelogo se forma pelo cru pelo cozido (assado e fervido) e pelo apodrecido
Estaacute claro que em relaccedilatildeo agrave cozinha o cru constitui o polo natildeo marcado e que os dois outros o satildeo acentuadamente mas em direccedilotildees opostas com efeito o cozido eacute uma transformaccedilatildeo cultural do cru enquanto que o apodrecido eacute uma transformaccedilatildeo cultural dele Subjacente ao triacircngulo primordial haacute portanto uma dupla oposiccedilatildeo entre elaboradonatildeo elaborado de um lado e entre culturanatureza de outro Sem duacutevida alguma estas noccedilotildees constituem formas vazias nada nos ensinam sobre a cozinha de tal ou tal sociedade particular uma vez que apenas a observaccedilatildeo pode nos dizer o que cada um entende por ldquocrurdquo ldquocozidordquo e ldquoapodrecidordquo e uma vez que pode se supor que natildeo seraacute a mesma coisa para todas (LEacuteVI-STRAUSS 1968 p 25)
Em uma escala de relevacircncia cultural o cru estaacute na base mais simples
da escala na sequecircncia viria o assado ocupando segunda posiccedilatildeo pois
necessita apenas do fogo Os mais elaborados satildeo assim fervidos ou
ensopados que por necessitar de maior envolvimento humano e de uma vasilha
com aacutegua estando num patamar de elaboraccedilatildeo mais complexo e portanto
numa escala de maior relevacircncia cultural
Apoacutes Leacutevi-Strauss que analisou a mitologia dos povos ameriacutendios e seu
ldquomundordquo culinaacuterio buscando traduzir entre outras questotildees os mitos sobre a
origem do fogo a partir da representaccedilatildeo desse grupo surgiram outros estudos
destacando a importacircncia do fogo na praacutetica de cozinhar Um desses estudos
recentes eacute do antropoacutelogo Wrangham (2010) que tambeacutem defende a descoberta
do fogo e o cozimento como sendo definidores da humanidade e responsaacutevel
por diferenciar os humanos dos macacos originando o gecircnero Homo
Semelhante afirmaccedilatildeo eacute feita por Garciacutea (2013)
La conquista del fuego supuso (de manera metafoacuterica) la separacioacuten definitiva del mundo de los seres vivos en dos grupos de un lado quedaron los hombres de otro los demaacutes animales El fuego nos transformoacute em humanos La domesticacioacuten del fuego supuso en definitiva un impulso decisivo en la historia humana un impulso fecundador que permitioacute que se produjeran nuevos avances que a su vez abrieron la viacutea a otros progresos generando una reaccioacuten en cadena que ha desembocado en el complejo y tecnificado mundo actual (GARCIacuteA 2013 p 167)
61
Cozinhar aumentou o valor da comida Assim o uso do fogo alterou
fisicamente o corpo humano reduzindo o aparelho digestivo e aumentando o
tamanho do ceacuterebro mas tambeacutem alterando o uso do tempo e a vida social O
impacto recaiu ainda sobre as relaccedilotildees com a natureza que conforme
(WRANGHAM 2010 p 7) ldquotransformou-nos em consumidores de energia
externa e assim criou um organismo com uma nova relaccedilatildeo com a natureza
dependente de combustiacutevelrdquo
O valor cultural do fogo na transformaccedilatildeo do alimento eacute tatildeo claro que
conforme aponta Leach (1970 apud WRANGHAM 2010 p 15) ldquoAs pessoas
natildeo precisam cozer sua comida elas o fazem por razotildees simboacutelicas para
mostrar que satildeo homens e natildeo animaisrdquo Afinal somos os uacutenicos animais
capazes de cozinhar o proacuteprio alimento
Por outro lado natildeo se pode afirmar que ingerir alimento cru natildeo possua
caracteriacutestica cultural pois como argumenta Giard (2012 p 232) ldquoMesmo cru e
colhido diretamente da aacutervore o fruto jaacute eacute um alimento culturalizado antes de
qualquer preparaccedilatildeo e pelo simples fato de ser tido como comestiacutevel rdquo Para a
autora a noccedilatildeo de alimento comestiacutevel iraacute variar de um grupo a outro ou seja
eacute definido pela cultura questotildees que vimos anteriormente neste capiacutetulo
Haacute outro fator muito importante a se destacar o qual se pode atribuir agrave
descoberta do fogo que eacute o fato de ter propiciado agraves pessoas e aos grupos
juntarem-se em torno dele para se aquecer mas tambeacutem para preparar a
comida distribui-la e ingeri-la Facilitou-se assim o estabelecimento de relaccedilotildees
de comensalidade23 que com o tempo foram se tornando encontros cotidianos e
transformando-se em uma atividade socializadora Conforme argumenta Fladrin
e Montanari (1998) independentemente da forma e das diferenccedilas nas normas
de comportamento existentes em cada sociedade o fato eacute que ldquoa comensalidade
eacute percebida como um elemento lsquofundadorrsquo da civilizaccedilatildeo humana em seu
processo de criaccedilatildeordquo (FLANDRIN MONTANARI 1998 p 109) e para Carneiro
(2003) a comensalidade se constitui em ldquoum complexo sistema simboacutelico de
23 Etimologicamente comensalidade deriva do latim ldquocomensalerdquo Accedilatildeo de comer junto na mesma mesa
Com ldquojuntordquo e Mensa ldquomesardquo Implica em partilhar do mesmo momento e local das refeiccedilotildees Para Poulain (2013) a comensalidade estabelece e reforccedila a sociabilidade ldquoEacute pela cozinha e pelas maneiras a mesa que se produzem as aprendizagens sociais mais fundamentais e que uma sociedade transmite e permite a interiorizaccedilatildeo de seus valores A alimentaccedilatildeo eacute uma das formas de se tecer e se manter os viacutenculos sociaisrdquo (POULAIN 2013 p 182)
62
significados sociais sexuais poliacuteticos religiosos eacuteticos esteacuteticos etc
(CARNEIRO 2003 p 2)
Ao redor do fogo eacute possiacutevel se aquecer preparar os alimentos e a
comida mas tambeacutem estabelecer o diaacutelogo Segundo Garciacutea (2013) nos
primoacuterdios da humanidade os encontros diaacuterios dos grupos se davam em torno
do fogo para trocar experiecircncias do dia e traccedilar estrateacutegias de caccedila por exemplo
Para Wrangham (2010) o advento do fogo mudou a maneira de nossos
ancestrais se relacionarem Passava-se mais tempo junto se aquecendo e
alimentando-se em grupo No volume I da primeira obra dirigida por Philippe
Ariegraves e Georges Duby (1990) Histoacuteria da Vida Privada a importacircncia do fogo eacute
destacada logo no iniacutecio do capiacutetulo de autoria de Yvon Theacutebert que trata da
vida privada e da arquitetura domeacutestica na Aacutefrica Romana Nas habitaccedilotildees natildeo
havia chamineacute nem fogotildees e sim lareiras ldquocuja fumaccedila saiacutea por um buraco no
teto e constituiacutea paradoxalmente um dos celebrados prazeres da rude existecircncia
rural quando a neve cobria os camposrdquo (THEacuteBERT 1990 p 303)
Segundo Flandrin e Montanari (1998) o uso do fogo permitiu ao homem
alimentar-se em conjunto inicialmente ao seu redor em aacutereas externas e com o
passar dos anos com a criaccedilatildeo do espaccedilo social alimentar nos ambientes
domeacutesticos (a cozinha e a sala de jantar) e na sequecircncia com a criaccedilatildeo de
espaccedilos externos agraves residecircncias (os restaurantes lanchonetes etc) Assim a
comida que eacute o alimento transformado pela cultura passa a possuir tambeacutem a
funccedilatildeo agregadora para os seres humanos A essa funccedilatildeo denomina-se de
comensalidade que tem como significado a capacidade de estabelecer relaccedilotildees
de sociabilidade importantes pois implica em reunir as pessoas em torno da
mesa Ou seja enquanto come o grupo tem tambeacutem a oportunidade de dialogar
e trocar experiecircncias do cotidiano
Para Fischler (2011) a comensalidade eacute uma das caracteriacutesticas mais
significantes no que se refere agrave sociabilidade humana relacionando-se natildeo
apenas agrave ingestatildeo de alimentos mas tambeacutem aos modos do comer envolvendo
haacutebitos culturais atos simboacutelicos organizaccedilatildeo social aleacutem do compartilhamento
de experiecircncias e valores Nesse sentido Woortmann (1985) esclarece que na
cultura brasileira a refeiccedilatildeo eacute considerada um ato social e que portanto deve
ser feita em grupo para ser percebida efetivamente como uma refeiccedilatildeo Tambeacutem
em nossa cultura segundo o autor criamos significados diferentes para essa
63
accedilatildeo como comer cotidianamente e comer em eventos especiais comer em
casa e comer fora de casa
O caraacuteter simboacutelico-ritual do comer se expressa claramente no haacutebito de convidar pessoas para jantar em nossa casa no ldquojantar forardquo em determinadas ocasiotildees ou no ldquoalmoccedilo de domingordquo Nessas e em outras ocasiotildees anaacutelogas haacute mais em jogo que necessidades nutricionais Natildeo convidamos pessoas para jantar em nossa casa para alimentaacute-las enquanto corpos bioloacutegicos mas para alimentar e reproduzir relaccedilotildees sociais isto eacute para reproduzir o corpo social o que supotildee que sejamos em troca convidados a comer na casa do nosso convidado O que estaacute em jogo eacute o princiacutepio da reciprocidade e da comensalidade A presenccedila da comida eacute contudo central reconstruindo-se necessidades bioloacutegicas em necessidades sociais (WOORTMANN 1985 p 3)
Em semelhante percepccedilatildeo Algranti (1997) aponta que haacute registros de
que desde o periacuteodo colonial no Brasil a reuniatildeo familiar durante as refeiccedilotildees
pelo menos uma vez ao dia se tornou um costume que se perpetuou nas famiacutelias
rurais bem como nas urbanas Tambeacutem Franco (2001) discorre sobre a
comensalidade no meio rural como sendo uma importante maneira de promover
a solidariedade e reforccedilar laccedilos entre os membros de um grupo de afinidade
Neste sentido ldquoo comerrdquo eacute um ato tanto social quanto poliacutetico e envolve
costumes diaacutelogos usos sabores odores e ateacute mesmo as etiquetas que
correspondem agraves maneiras de comer que satildeo aprendidas no proacuteprio processo
de comensalidade que se daacute nos grupos E segundo Giard (2012) momentos
de comensalidade demarcam relaccedilotildees sociais e afetivas entre os membros de
uma famiacutelia e tambeacutem influencia fortemente o desenvolvimento do gosto
alimentar24 A percepccedilatildeo da autora corrobora a discussatildeo de Bourdieu (2007)
sobre a formaccedilatildeo do gosto e da preferecircncia alimentar
3311 O local do fogo e da praacutetica da comensalidade na arquitetura domeacutestica
Na sociedade ocidental o local do fogo em uma habitaccedilatildeo eacute
principalmente a cozinha que primeiramente era anexa agrave casa e o equipamento
que o representa eacute o fogatildeo A cozinha segundo Flandrin (1990) surge em
24 Eacute preciso ressaltar que nem todas as culturas apreciam comer em conjunto Poreacutem natildeo se pode
considerar como regra os preceitos da comensalidade Como nos mostra Geertz (2008 p 190) sobre a cultura balinesa onde comer eacute considerado uma atividade que gera repulsa ldquo() mas ateacute comer eacute visto como uma atividade desagradaacutevel quase obscena que deve ser feita apressadamente e em particular devido agrave sua associaccedilatildeo com a animalidaderdquo
64
funccedilatildeo das transformaccedilotildees nos costumes sociais ao longo do tempo Assim o
prazer no comer e beber junto foi se modificando Isso ocorre
concomitantemente agraves mudanccedilas nas sociedades Ao longo dos anos e dos
seacuteculos a vida privada passou a ser preferida em lugar da vida puacuteblica
sobretudo nos aspectos de convivecircncia de desfrutar da intimidade e aconchego
familiar Avanccedilos tecnoloacutegicos e encontros com outras culturas favoreceram a
vida e a criaccedilatildeo de espaccedilos internos agrave casa destinados agrave comensalidade por
exemplo A cozinha que antes era compartilhada com vaacuterias pessoas ao redor
do paacutetio passa a ser parte interna de cada habitaccedilatildeo O espaccedilo privado estaacute
associado agrave intimidade e ao refuacutegio em contraste a um espaccedilo puacuteblico do qual o
cotidiano domeacutestico das famiacutelias vai se afastando aos poucos As refeiccedilotildees que
eram feitas ao ar livre ou em locais de faacutecil acesso passam a ser feitas em casas
de alvenaria que possuem portas da rua que ficam fechadas impedindo o
acesso a qualquer pessoa que chegar exceto sob o convite dos donos da casa
Mesmo que inicialmente a cozinha tenha se mantido distante dos outros
cocircmodos ocupava um lugar de destaque nas caracteriacutesticas habitacionais das
mais simples agraves mais requintadas desde o periacuteodo Colonial no Brasil conforme
aponta Lemos (1996) em seu estudo sobre as casas urbanas e rurais brasileiras
ldquoEm Portugal ateacute haacute pouco tempo e no Brasil Colonial sempre se chamou a
moradia de lsquofogorsquo ou lsquofogatildeorsquo Qualquer recenseamento dizia que determinada
cidade possuiacutea tantos habitantes em tantos lsquofogosrsquordquo (LEMOS 1996 p 11)
Segundo Lemos (1976) e Abrahatildeo (2007) as cozinhas do periacuteodo de
colonizaccedilatildeo no Brasil estavam sempre voltadas para o exterior da casa em seus
fundos ficando assim distantes dos cocircmodos de dormir mantendo-os livres do
cheiro de fumaccedila e de gordura Por natildeo haver aacutegua encanada na eacutepoca a
cozinha se localizava muitas vezes na aacuterea externa da habitaccedilatildeo Poreacutem
segundo Algranti (1997) jaacute a partir do seacuteculo XVIII estabeleceu-se dois tipos de
cozinhas a ldquocozinha sujardquo onde se preparavam carnes doces e frituras ou seja
destinava-se agraves atividades mais pesadas e portanto permanecia fora da casa e
a ldquocozinha limpardquo que se acopla agrave residecircncia e onde se prepara o cafeacute os bolos
as saladas etc
Segundo Abdala (2007) o espaccedilo da cozinha nas casas do periacuteodo
colonial em Minas Gerais e que perdurou pelo seacuteculo XIX era amplo bem
ventilado e o fogatildeo a lenha feito de barro ou de pedra sabatildeo ocupava local de
65
destaque Era ainda um espaccedilo iacutentimo natildeo sendo permitida a entrada de
estranhos25
A sala de jantar segundo Cacircmara Cascudo (2004) surgiu no final do
seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX Antes disso qualquer cocircmodo da habitaccedilatildeo servia a
esta finalidade mesmo nos imensos castelos onde o conforto era pequeno
apesar dos grandes espaccedilos Saint-Hilaire em seu registro da passagem por
Minas Gerais assim descreve a sala de jantar das casas que visitou
Nas casas dos pobres assim como nas dos ricos existe sempre uma peccedila denominada sala que daacute para o exterior Eacute ali que se recebem os estranhos e se fazem as refeiccedilotildees sentado em bancos de madeira em torno de uma mesa comprida A gente abastada tem o cuidado de reservar na frente de sua casa uma galeria ou varanda formada pelo teto que se prolonga aleacutem das paredes e eacute sustentado por colunas de madeira (SAINT-HILAIRE 1938 p 186)
Ambos os cocircmodos se constituiacuteram ao longo da histoacuteria nos espaccedilos
principais destinados agrave comensalidade E era tambeacutem um espaccedilo assim como
a cozinha em que as mulheres precisavam provar seus dotes como donas de
casa a sua capacidade de receber visitas atividades que faziam parte dos
saberes transmitidos das matildees para as filhas de forma que por mais simples
que fossem as salas de jantar refletiam a personalidade da dona da dona da
casa segundo Abrahatildeo (2010)
As modificaccedilotildees nos tamanhos e estrutura desses espaccedilos domeacutesticos
nos tempos atuais sinalizam que os arranjos destinados a esta atividade estatildeo
sendo redefinidos socialmente mas natildeo desapareceram No sul do Brasil ainda
eacute comum nos dias de hoje os fogotildees a lenha mesmo nas residecircncias urbanas
do interior Diferentemente da regiatildeo sudeste destacando-se Minas Gerais em
que o fogatildeo a lenha eacute em sua maioria feito de alvenaria nos estados do Sul
eles satildeo feitos industrialmente em ferro esmaltado Nos dias frios eacute em torno dele
que a famiacutelia e os amigos se reuacutenem para cozinhar e degustar o pinhatildeo por
exemplo acompanhado de vinho e muita conversa Em Minas o fogatildeo a lenha
estaacute presente em quase todas as habitaccedilotildees rurais e eacute um equipamento que
permanece no imaginaacuterio das pessoas ao pensar em interior e cozinha rural
25 Durante trabalho de pesquisa para mestrado realizado em 1998-1999 na zona rural de Minas Gerais
tive uma experiecircncia interessante em relaccedilatildeo a cozinha e a intimidade das famiacutelias pesquisadas No iniacutecio das vistas as conversas se davam sempre na sala ou na aacuterea externa da casa agrave medida que ia me tornando uma pessoa mais frequente em funccedilatildeo de novas visitas passei a ser recebida na cozinha Isso ocorreu em quase todas as habitaccedilotildees em que estive naquela fase
66
Martins (1998) em pesquisa realizada na regiatildeo amazocircnica expotildee os
detalhes de uma casa da sua cozinha e suas funccedilotildees de sociabilidade Sua
descriccedilatildeo deixa clara tambeacutem a relaccedilatildeo da cozinha como espaccedilo de pessoas da
intimidade do grupo
Nos povoados da fronteira onde haacute algum recurso a porta sempre aberta continua no corredor comprido que leva agrave cozinha Ela eacute o lugar de conversaccedilatildeo dos natildeo estranhos daqueles com quem os moradores da casa tecircm familiaridade e natildeo necessariamente parentesco Lugar dos que podem ir entrando bastando gritar o costumeiro ldquoOacute de casardquo Natildeo satildeo estranhos mas tambeacutem natildeo satildeo parentes Na entrada fica a saleta para receber os propriamente estranhos limite de seu acesso ao interior da casa (MARTINS 1998 p 695)
Nos falam sobre isso tambeacutem Luiacutes da Cacircmara Cascudo e Gilberto
Freyre em suas obras jaacute citadas anteriormente Freyre (2006) ao tratar sobre
as caracteriacutesticas das casas do periacuteodo dos engenhos de cana explica que
havia diferenccedilas entre as cozinhas existentes nas casas grandes de siacutetios
sobrados assobradadas de subuacuterbio com aquela da casa de engenho Nestas
uacuteltimas informa o autor a cozinha foi mais importante Essas diferenccedilas se
refletiam inclusive no tamanho da mesa destinada agraves refeiccedilotildees e que abrigavam
quem chegasse para almoccedilar
Viajantes e mascates aleacutem dos compadres que nunca faltavam dos papa-pirotildees os parentes pobres do administrador do feitor do capelatildeo dos vaqueiros das visitas de passar o dia famiacutelias inteiras que vinham de outros engenhos em carro de boi Eram mesas de jacarandaacute agraves vezes de seis oito metros de comprimento como as que ainda conhecemos na casa-grande ndash vasto sobrado rural do engenho Noruega26 (FREYRE 2006 p 143)
O autor esclarece que as mesas grandes ndash geralmente de cinco por dois
metros (5x2) ndash para receber famiacutelias enormes eram comuns nas casas grandes
de siacutetios e nos sobrados mas o que ocorria eacute que nas cidades e subuacuterbios o
modo de vida era mais retraiacutedo e sem muita movimentaccedilatildeo diferentemente do
que ocorria nas casas de engenho jaacute que aiacute ldquose recebia o viajante a qualquer
momento com bacia de prata toalha de linho um lugar agrave mesa uma rede ou
uma cama para dormirrdquo (FREYRE 2006 p 144)
Marcel Mauss (2003) em seu Ensaio sobre a Daacutediva cita a ldquoTaacutevola
Redondardquo das crocircnicas de Artur mesa cujo formato circular tinha o objetivo
26 Este engenho foi retrato na forma de gravura aquarelada 1933 por Ciacutecero Dias Esta aquarela compotildee
o livro Casa-Grande amp Senzala de Gilberto Freyre (1ordm Tomo 1964) como documento anexo ao livro e disposto em dobradura
67
simboacutelico de ajudar forma a seus cavaleiros a viver em harmonia pois viviam em
disputas e alimentando inveja entre si A ideia era que ao se sentarem ao seu
redor se reconhecessem como iguais jaacute que nela natildeo havia local de destaque
ou de superioridade
Poreacutem nem sempre o moacutevel ldquomesardquo era ou eacute utilizado Comer assentado
no chatildeo faz parte da cultura indiacutegena e tambeacutem oriental Os iacutendios sentam-se
diretamente no solo nu ou em esteiras e os orientais sobre tapetes nos informa
Cacircmara Cascudo (2004 p 794) Segundo o mesmo autor no Brasil colonial os
pobres tambeacutem comiam dessa maneira o que fez surgir o termo ldquocomida de
esteirardquo Os menos pobres comiam em mesa de madeira ldquoA histoacuteria da
alimentaccedilatildeo na esteira decorre precisamente da heranccedila cabocla do escravo
negro dos mesticcedilos humildesrdquo Mesmo entre os ricos no seacuteculo XIX a mesa
existia mas era improvisada feita em taacutebuas aplainadas na maioria das vezes
Apesar de ser um objeto frequente usado como apoio para os pratos os copos
bebidas e os vasilhames com as comidas durante as refeiccedilotildees nas discussotildees
antropoloacutegicas e socioloacutegicas importa principalmente o seu sentido figurado da
mesa relativo ao ldquocomer juntordquo independentemente de ser assentado ao chatildeo
no sofaacute ou em torno de uma mesa de madeira ou de ferro
Neste sentido importa-nos a conotaccedilatildeo entendimento da
comensalidade no processo socializador e agregador como aquele usado por
Poulain (2013) de que a comensalidade envolve comer acompanhando que eacute
tambeacutem semelhante ao sentido atribuiacutedo por Sobal e Nelson (2003) Fischler
(2011) acrescenta um atributo de espaccedilo a este sentido e diz que literalmente
significa ldquocomer na mesma mesardquo A mesa neste caso podendo ser ateacute mesmo
um ciacuterculo no meio de uma floresta ou o momento e local onde ocorrem as
refeiccedilotildees dos operaacuterios da construccedilatildeo civil com suas marmitas nas matildeos ou
ainda uma toalha posta para um pic nic ou em uma roda que se forma em um
evento social Toda a discussatildeo em torno da relaccedilatildeo mesa e comensalidade
aponta que natildeo ser obrigatoacuterio a existecircncia de um local fiacutesico e de um moacutevel
chamado de mesa para que a comensalidade e sociabilidade alimentar ocorra
basta que haja disponibilidade entre as pessoas e uma certa familiaridade na
convivecircncia Isso tanto vale para o meio rural quanto para o meio urbano No
meio rural ateacute mesmo o local de trabalho no meio de um roccedilado distante da
68
casa onde come-se de marmita eacute um local de relaccedilotildees de diaacutelogo e de comer
tendo uma companhia
Os momentos festivos satildeo outras possibilidades de tambeacutem haver
sociabilidade e de ocorrer a comensalidade Nestes momentos come-se natildeo
necessariamente por fome mas pelo prazer do conviacutevio ainda que temporaacuterio
conforme Fladrin e Montanari (1998)
O homem civilizado come natildeo somente (e menos) por fome para satisfazer uma necessidade elementar do corpo mas tambeacutem (e sobretudo) para transformar essa ocasiatildeo em um momento de sociabilidade em um ato carregado de forte conteuacutedo social e de grande poder de comunicaccedilatildeo (FLADRIN MONTANARI 1998 p 108)
Muitas vezes a sociabilidade inicia-se na proacutepria organizaccedilatildeo dos
festejos Nas aacutereas rurais eacute mais comum que as festas comunitaacuterias ou as da
esfera familiar sejam organizadas pelos moradores locais com ajuda da
vizinhanccedila o que propicia maior sociabilidade para aleacutem dos momentos de
comensalidade que ocorrem durante o evento Na cidade pela maior facilidade
de contratar por serviccedilos de organizaccedilatildeo de festas haacute um menor envolvimento
das pessoas que participaratildeo das festas no processo de sua organizaccedilatildeo
Poreacutem como a cultura eacute dinacircmica sofrendo o efeito dos modos de vida
modernos as relaccedilotildees de sociabilidade e tambeacutem de comensalidade ndash antes
mais tradicionais e com maior constacircncia de momentos em grupo ndash tecircm sido
alteradas conforme aponta alguns autores no toacutepico a seguir
34 Praacuteticas alimentares na contemporaneidade entre o tradicional e o moderno
Apesar de as mudanccedilas no consumo alimentar terem ocorrido de forma
tiacutemida antes do seacuteculo XIX eacute a partir da metade dele que autores como Fischler
(1998) Montanari (1998) Teuteberg e Flandrin (1998) Peacutehaut (1998) Capatti
(1998) Levenstein (1998) Cacircmara Cascudo (2004) Pollan (2014) Rossi (2014)
e Contreras e Gracia (2011) consideram como o iniacutecio de mudanccedilas mais
substanciais nas praacuteticas alimentares principalmente na Europa periacuteodo
marcado por profundas transformaccedilotildees nesse continente dentre elas a
expansatildeo da industrializaccedilatildeo que altera os modos de vida das famiacutelias o
aumento da populaccedilatildeo os avanccedilos na produccedilatildeo agriacutecola que gera em pouco
69
tempo o desenvolvimento da induacutestria alimentar Esses efeitos se ampliam
destacadamente nos seacuteculos XX e XXI Muitas dessas mudanccedilas ocorrem
paulatinamente com a introduccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos de outra cultura
como jaacute visto
Autores como Poulain (2013) Montanari (2008) Lody (2008) Pollan
(2014) Woortmann (2007 e 2013) De Garine (1987) Flandrin e Montanari
(1998) e Maciel (2001) discutem como alguns dos aspectos do modo de vida
moderno ndash tempo escasso para executar as vaacuterias atividades facilidade de
acesso agrave informaccedilatildeo estiacutemulo ao consumismo economia de tempo gerado pelo
uso de produtos alimentiacutecios industrializados dentre outros - influenciam as
praacuteticas alimentares e suas interfaces fazendo surgir diversas maneiras de se
alimentar na contemporaneidade
Maneiras essas que podem interferir nos haacutebitos alimentares nos
horaacuterios e locais das refeiccedilotildees no consumo de alimentos e nas praacuteticas
alimentares Por exemplo receitas de famiacutelia que antes estavam nos cadernos
e eram repassados por geraccedilotildees atualmente satildeo encontradas no verso das
embalagens de alimentos na internet em revistas e em programas de televisatildeo
Os horaacuterios de alimentaccedilatildeo nem sempre coincidem entre os membros da famiacutelia
tampouco o espaccedilo domeacutestico eacute mais o uacutenico a ser usado para tal finalidade A
vida contemporacircnea propotildee adaptaccedilotildees agraves novidades que satildeo apresentadas
constantemente Nesse contexto as mudanccedilas atingem tambeacutem as famiacutelias
rurais que encontram formas de se adaptar criando alternativas para lidar com
o novo
Em funccedilatildeo dessas questotildees alguns desses autores analisam
criticamente a tendecircncia atual de homogeneizaccedilatildeo das praacuteticas alimentares
sendo este talvez um caminho sem volta Essa homogeneizaccedilatildeo igualaria os
comedores contemporacircneos ocidentais que sob a influecircncia da globalizaccedilatildeo
passariam rapidamente a ter haacutebitos e gostos alimentares muito semelhantes
Estas consideraccedilotildees estatildeo presentes nas anaacutelises de Arnaiz (2005) que a partir
do estudo sobre a alimentaccedilatildeo dos espanhoacuteis e com base nas argumentaccedilotildees
de autores como Warde (1997) e Germov e Williams (1999) apresenta quatro
tendecircncias para o sistema alimentar moderno
O fenocircmeno da homogeneizaccedilatildeo do consumo em uma sociedade massificada a persistecircncia de um consumo diferencial e socialmente
70
desigual o incremento da oferta personalizada (poacutes-fordista nos termos dos autores) avaliada pela criaccedilatildeo de novos estilos de vida comuns e finalmente o incremento de uma individualizaccedilatildeo alimentar causada pela crescente ansiedade do comensal contemporacircneo ARNAIZ 2005 p 148)
Fischler (1979) se refere a essa tendecircncia alimentar nas sociedades
contemporacircneas como sendo lsquohiper-homogecircnearsquo Em funccedilatildeo disso citando o
estudo realizado por Mennell et al (1992) Fischler (2011) chama a atenccedilatildeo para
o fato de que as praacuteticas alimentares contemporacircneas colocam em risco a
comensalidade enquanto poder de sociabilidade de agregaccedilatildeo considerando
que o mundo moderno tem facilitado a individualizaccedilatildeo inclusive no que se
refere agrave alimentaccedilatildeo Exemplo disso eacute o nuacutemero crescente de pessoas que
mesmo no ambiente domeacutestico servem o seu prato e se assentam na frente da
televisatildeo ou do computador Situaccedilotildees que sinalizam que outras dinacircmicas tecircm
surgido no campo da comensalidade no mundo contemporacircneo Para esses
autores eacute fato o surgimento de um padratildeo alimentar Essa percepccedilatildeo parece
natildeo levar em consideraccedilatildeo a variaccedilatildeo de culturas realidades locais e modos
alimentares diferenciados entre os diversos povos mesmo no contexto
ocidental
Arnaiz (2005) Fischler (1979 e 2011) e Pollan (2014) afirmam que na
sociedade ocidental globalizada e industrializada o tempo aleacutem de escasso eacute
usado prioritariamente em prol da produtividade e do desenvolvimento
capitalista Nesse contexto o que sobra deste tempo eacute dividido entre as tantas
outras tarefas sociais como aquelas desenvolvidas no espaccedilo domeacutestico em
famiacutelia ou entre amigos Pollan (2014) aponta que o haacutebito de cozinhar em casa
vem diminuindo Arnaiz (2005) cita que outro motivo que contribui para isso estaacute
relacionado agraves facilidades geradas pelo processo agroalimentar ou seja vaacuterias
atividades de preparo de alimentos que antes ocupavam muito tempo da
cozinheira atualmente satildeo feitas pelas induacutestrias de alimentos
Poreacutem eacute arriscado afirmar uma tendecircncia agrave homogeneizaccedilatildeo alimentar
pois a cultura eacute dinacircmica e os indiviacuteduos tendem a buscar formas de adaptaccedilatildeo
aos modelos propostos e nessa adaptaccedilatildeo podem buscar praacuteticas alimentares
que mesclem novidade e tradiccedilatildeo Haacute que se levar em consideraccedilatildeo a
diversidade cultural dos grupos mesmo no contexto ocidental Se por um lado
busca-se acompanhar os avanccedilos haacute tambeacutem interesse em preservar
71
caracteriacutesticas culturais consideradas importantes dentre elas aquelas
relacionadas a algumas praacuteticas alimentares Portanto por mais que o peso da
homogeneizaccedilatildeo exista haacute tambeacutem o peso dos elementos da tradiccedilatildeo que
exerce importante influecircncia nas decisotildees e nas escolhas pessoais
Percebe-se na discussatildeo dos autores abordados neste toacutepico a
ocorrecircncia de trecircs vertentes ou movimentos Um primeiro apontado por Anaiz
(2005) Fischler (1979) e Pollan (2014) de que a sociedade tende a adotar um
padratildeo alimentar homogecircneo baseado no consumo prioritaacuterio de alimentos
industrializados de acordo com um estilo de vida moderno e atrelado agraves
novidades Um segundo movimento defendido por De Garine (1987) de que haacute
uma divisatildeo perceptiacutevel na sociedade ocidental formada por um lado por
consumidores prioritariamente tradicionais no seu estilo de exercer as praacuteticas
alimentares e de outro lado por consumidores com tendecircncias agraves praacuteticas
modernas Por fim um terceiro movimento encontrado em Doacuteria (2014) Giard
(2012) Garciacutea Canclini (2013) entre outros que defendem a coexistecircncia da
tradiccedilatildeo com a modernidade no que se refere tambeacutem agraves praacuteticas alimentares
conforme discussatildeo que seraacute apresentada mais agrave frente
Pollan (2014) apesar de acreditar que o ritmo de vida moderno estimule
modos de se alimentar mais homogecircneos com o comedor recorrendo
prioritariamente aos aspectos de praticidade por outro lado pondera algumas
questotildees que satildeo relativas Defende por exemplo que a despeito das mudanccedilas
em curso na sociedade ocidental contemporacircnea a magia e o prazer que
envolvem a atividade culinaacuteria ainda permanecem Mesmo que para um grande
nuacutemero de pessoas isso possa corresponder a uma atividade esporaacutedica em
eventos especiais ou nos finais de semana Por outro lado ainda que a
constacircncia do conviacutevio cotidiano nos momentos das refeiccedilotildees se reduza isso
natildeo implica na perda da qualidade desses momentos Mas o autor concorda
com Fischler (2011) que a diminuiccedilatildeo desta atividade implica em consequecircncias
como transformaccedilotildees no campo da comensalidade com seus significados e
simbolismos Com isso o estilo de vida acelerado e o tempo escasso para
realizar todas as demandas sociais afastam as pessoas do encontro familiar
cotidiano no compartilhamento da comida da manutenccedilatildeo de um horaacuterio fixo
para as refeiccedilotildees e tambeacutem da produccedilatildeo do proacuteprio alimento
72
Em relaccedilatildeo agrave essas questotildees Flandrin e Montanari (1998) consideram a
crenccedila absoluta na homogeneidade dos comportamentos alimentares
exagerada Apesar das mudanccedilas em curso os autores afirmam natildeo ser
evidente pelo menos ainda o desaparecimento das composiccedilotildees e elementos
tradicionais no campo da alimentaccedilatildeo Sinalizam que sobretudo na Europa a
funccedilatildeo social da comida ainda eacute importante Apontam as reuniotildees entre amigos
que ocorrem nos diferentes paiacuteses do planeta ou a reuniatildeo familiar em alguns
dias na semana e que natildeo ordinariamente no cotidiano ainda assim satildeo
momentos de sociabilidade e comensalidade e defendem a necessidade de
relativizaccedilatildeo sobre o assunto
A ldquonormalizaccedilatildeordquo dos comportamentos alimentares ainda natildeo se tornou irreversiacutevel se os modelos de consumo tendem a se assemelhar cada vez mais sua homogeneidade permanece bastante relativa e mais aparente do que real jaacute que os elementos que tem em comum satildeo de fato interpretados segundo a cultura de cada povo e paiacutes inserindo-se em estruturas ainda fortemente marcadas pelas particularidades locais que por sua vez foram-se formando na sequecircncia de um processo histoacuterico longo e articulado (FLADRIN MONTANARI (1998 p 867)
As possibilidades de as praacuteticas alimentares contemporacircneas serem
responsaacuteveis por manter ou de extinguir as tradiccedilotildees alimentares satildeo discutidas
por alguns autores como Berman (2000) Giddens (1991) Bauman (2007)
Garciacutea Canclini (2013) e Giard (2012) O mundo contemporacircneo estaacute
relacionado ao modo de vida moderno e em constante transformaccedilatildeo tendendo
ao dinamismo mesmo que aspectos do tradicional permaneccedilam ainda que com
pesos diferentes de acordo com cada cultura No mundo moderno nada
permanece fixamente e eacute neste contexto que os contrastes entre o moderno e o
tradicional ficam mais aflorados conforme defende Berman (2000)
Ser moderno eacute encontrar-se em um ambiente que promete aventura poder alegria crescimento autotransformaccedilatildeo e transformaccedilatildeo das coisas em redor ndash mas ao mesmo tempo ameaccedila destruir tudo o que temos tudo o que sabemos tudo o que somos (BERMAN 2000 p 15)
Nesse contexto de transformaccedilotildees e dinamismo da substituiccedilatildeo do
antigo pelo novo e da valorizaccedilatildeo do moderno aspectos expostos pelo autor
um dos fatores mais marcantes no campo das praacuteticas alimentares
contemporacircneas eacute a industrializaccedilatildeo dos alimentos e suas consequecircncias para
os comedores com suas benesses e problemas Este sistema apresenta um
73
novo jeito de vivenciar as praacuteticas alimentares no mundo contemporacircneo
sugerindo a ideia de praticidade e economia de tempo A induacutestria de alimentos
pode ser considerada um dos mais importantes promotores de mudanccedilas nos
haacutebitos alimentares das sociedades industriais Mudanccedilas essas que trazem
consequecircncias importantes como as que satildeo discutidas a seguir por Arnaiz
(2015) Pollan (2014) Silva Mello (1956) Cacircmara Cascudo (2004) e De Garine
(1987)
Para Arnaiz (2005) em relaccedilatildeo ao acesso aos alimentos a induacutestria
possui aspectos que podem ser considerados positivos e negativos Dentre os
positivos ela destaca o custo relativamente baixo de obtenccedilatildeo dos bens
alimentares pelos consumidores dos paiacuteses ocidentais industrializados e
tambeacutem a algumas parcelas populacionais dos paiacuteses em processo de
industrializaccedilatildeo Outro fator segundo a autora eacute que a tecnologia de produccedilatildeo
e organizaccedilatildeo da induacutestria de alimentos beneficiou os consumidores que
passaram a contar com maior diversidade de alimentos
A diversificaccedilatildeo alimentar eacute supostamente mais saudaacutevel em termos nutricionais uma vez que permite obter a adequaccedilatildeo de certos nutrientes e evita por exemplo doenccedilas como a pelagra que durante o seacuteculo XIX disseminou-se nas populaccedilotildees mais pobres que tinham o milho como base de sua alimentaccedilatildeo ou ainda doenccedilas como o cretinismo e o boacutecio ateacute recentemente (ARNAIZ 2005 p 148-149)
Para a autora algumas situaccedilotildees negativas se contrastam com as
positivas Cita por exemplo que apesar do acesso aos produtos em termos de
disponibilidade e a um preccedilo relativamente baixo a manutenccedilatildeo da
desigualdade social limita o acesso a muitos desses alimentos Outros fatores
destacados pela autora incluem ainda ldquoa diferenciaccedilatildeo conforme a bagagem
sociocultural que condiciona certos estilos alimentares de grupos de indiviacuteduos
e a persistecircncia das heterogeneidades intra e interterritorial e socialmente
verticalrdquo (ARNAIZ 2005 p 149)
Outro aspecto positivo mas natildeo citado pela autora diz respeito agraves
praticidades e facilidades geradas pela industrializaccedilatildeo dos alimentos Este tipo
de alimento jaacute preacute-processado contribuiu para reduzir o peso do trabalho
domeacutestico que historicamente e tradicionalmente era atribuiacutedo exclusivamente
agraves mulheres Poreacutem o lado positivo da comida industrializada como facilitadora
do dia-a-dia natildeo neutraliza outros fatores negativos tanto do aspecto
74
sociocultural como no aspecto da sauacutede humana conforme apontado por Pollan
(2014) Silva Mello (1956) e Cacircmara Cascudo (2004)
Pollan (2014) destaca o peso da comida industrializada para a sauacutede e
bem-estar humanos ao argumentar que as grandes empresas alimentiacutecias
processam alimentos o que para o autor eacute diferente de produzi-los Ele alerta
para o excesso de sal accediluacutecar e gordura nos produtos processados
industrialmente aleacutem dos produtos quiacutemicos que permitem maior durabilidade
aos alimentos nas prateleiras dos supermercados
Em um sentido semelhante Silva Mello (1956) defende a manutenccedilatildeo
de aspectos importantes da tradiccedilatildeo alimentar tanto para a sauacutede como para a
cultura ao criticar o excesso de modificaccedilotildees provocadas pela induacutestria
alimentar como por exemplo a transformaccedilatildeo do accediluacutecar natural escuro e grosso
em branco refinado e as vitaminas em caacutepsulas como discorre em seu livro
lsquoAlimentaccedilatildeo Instinto Culturarsquo ldquoNatildeo eacute com vitaminas que se mata a fome A
culinaacuteria jaacute que a alimentaccedilatildeo eacute a condiccedilatildeo vital do homem se impotildee como
obrigaccedilatildeo cultural () A chamada poliacutetica cultural comeccedila pela comidardquo (SILVA
MELLO 1956 p 622)
Focando o prejuiacutezo agrave sauacutede dos jovens no Brasil Cacircmara Cascudo
(2004) faz ressalvas agrave praacutetica alimentar moderna que eacute adotada por esse grupo
Para o autor os jovens tecircm maior atraccedilatildeo pelas refeiccedilotildees raacutepidas e substituiccedilatildeo
por lanches Possuem escassez de tempo para participar dos momentos sociais
familiares destinados agrave alimentaccedilatildeo pois sempre tecircm atividades e
compromissos caracteriacutesticos dessa fase da vida Na era dos lanches raacutepidos
eles acabam ldquoperdendo a personalidade do paladar sua fisionomia exigecircncias
predileccedilotildees simpatias Habituam-se agrave comida vulgar e venal raacutepida atendendo
aos reclamos imediatos do estocircmagordquo (p 350) Afirma ainda
Natildeo eacute o alimento em si na potecircncia intriacutenseca de sua substacircncia a fonte isolada da forccedila vital Satildeo os elementos psicoloacutegicos decorrentes da refeiccedilatildeo Cada vez menos refeiccedilatildeo e cada vez mais comidas faacuteceis encontraacuteveis vendidas nos botequins elegantes ou nas cantinas universitaacuterias (CAcircMARA CASCUDO 2004 p 348)
Muitas informaccedilotildees tecircm sido veiculadas nos uacuteltimos anos sobre a
relaccedilatildeo sauacutede-alimentaccedilatildeo referindo-se sobretudo aos alimentos
industrializados No Brasil o ldquoGuia Alimentar para a Populaccedilatildeo Brasileirardquo
publicado em 2006 com uma caracteriacutestica prioritariamente quantitativa foi
75
atualizado em 2014 trazendo um perfil mais qualitativo do que o primeiro e
discute sobre os perigos agrave sauacutede de uma alimentaccedilatildeo baseada em uma dieta de
produtos muito processados ou seja industrializados ao mesmo tempo em que
oferece sugestotildees mais saudaacuteveis para melhorar a qualidade de vida alimentar
da populaccedilatildeo evitando-se frituras e alimentos com grande quantidade de
aditivos quiacutemicos O Guia Alimentar sugere aos comedores uma priorizaccedilatildeo
pelos alimentos in natura e uma maior aproximaccedilatildeo com uma cultura alimentar
mais voltada agraves praacuteticas tradicionais
De Garine (1987) natildeo acredita que o consumo de alimentos
industrializados eacute adotado de maneira generalizada pelas pessoas seja de
forma individualizada seja por grupo familiares Para o autor se por um lado eacute
verdadeiro que a globalizaccedilatildeo tem propiciado uma homogeneizaccedilatildeo dos haacutebitos
alimentares por outro observa-se tambeacutem a permanecircncia da tradiccedilatildeo alimentar
com seus modelos locais de alimentaccedilatildeo A manutenccedilatildeo da tradiccedilatildeo alimentar
estaacute ligada agrave identificaccedilatildeo com as raiacutezes culturais que satildeo passadas por
geraccedilotildees e se esforccedilam por manter alguns rituais e simbologias dessa tradiccedilatildeo
alimentar e portanto natildeo cedendo prontamente ou totalmente aos apelos da
induacutestria pela adoccedilatildeo completa dos alimentos processados Assim para esse
autor natildeo eacute correto generalizar o poder da industrializaccedilatildeo de alimentos pois a
cultura local e a tradiccedilatildeo oferecem um peso que pode tambeacutem influenciar nas
escolhas alimentiacutecias Neste sentido o autor defende inclusive que os paiacuteses
em desenvolvimento se livrem de boa parte do peso das importaccedilotildees valorizando
os alimentos autoacutectones Na percepccedilatildeo deste autor existem dois tipos de
comedores Aqueles que tentam manter uma relaccedilatildeo tradicional e aqueles que
buscam pelo moderno
Possivelmente Gilberto Freyre concordaria com essa conclusatildeo de De
Garine pois era defensor da tradiccedilatildeo culinaacuteria como forma importante de
manutenccedilatildeo e continuidade de uma identidade regional e nacional Em texto
escrito em 1924 e publicado em ldquoTempo de Aprendizrdquo (1979) defende que ldquoo
paladar eacute talvez o uacuteltimo reduto do espiacuterito nacional quando ele se
desnacionaliza estaacute desnacionalizado tudo o maisrdquo (p 367) O autor tratou
sobretudo da cozinha e da comida nordestina de Pernambuco Em seu
ldquoManifesto Regionalistardquo (1996) ndash lido para a plenaacuteria durante o 1ordm Congresso
Brasileiro de Regionalismo ocorrido em Recife em 1926 ndash o maior destaque
76
sobre a importacircncia de se manter a tradiccedilatildeo foi dado agrave parte culinaacuteria Nele
Freyre propotildee uma retomada agrave valorizaccedilatildeo da cozinha regional seus modos de
fazer e de suas praacuteticas Apoacutes discorrer longamente e detalhadamente sobre
as caracteriacutesticas da culinaacuteria pernambucana ele conclui
Feitos estes reparos estou inteiramente dentro de um dos assuntos que me pareceu dever ser versado por algueacutem neste congresso os valores culinaacuterios do Nordeste A significaccedilatildeo social e cultural desses valores A importacircncia deles quer dos quitutes finos quer dos populares A necessidade de serem todos defendidos pela gente do Nordeste contra a crescente descaracterizaccedilatildeo da cozinha regional (FREYRE 1996 p 59)
No entanto esta natildeo eacute a percepccedilatildeo para outros autores que defendem
a existecircncia de um terceiro movimento mais coerente e menos radical que
privilegia a comunicaccedilatildeo entre tradiccedilatildeo e modernidade alimentar Afirmam isso
baseando-se nas raacutepidas transformaccedilotildees que ocorrem no campo da
alimentaccedilatildeo Observam que os espaccedilos para os contornos tradicionais da
produccedilatildeo da comida e dos modos de comer vatildeo sendo diluiacutedos poreacutem natildeo se
extinguem embora ao analisar a tradiccedilatildeo na oacutetica de um mundo em constante
mudanccedila surge sempre a duacutevida sobre a sua capacidade de permanecer
Assim Doacuteria (2014) Giddens (2012) Garciacutea Canclini (2013) Cacircndido (1982)
Cacircmara Cascudo (2004) e Giard (2012) defendem que a modernidade
pressupotildee e impotildee mudanccedilas de formato mas natildeo necessariamente isso
significa o rompimento absoluto com os moldes tradicionais Para estes o
caminho mais interessante eacute o de uma complementaridade pela convivecircncia dos
ldquofatores de persistecircncia ou permanecircncia que contribuem para a continuidade
dos modos tradicionais de vida (praacuteticas e saberes alimentares) com os de
transformaccedilatildeo que representam a incorporaccedilatildeo aos padrotildees modernosrdquo
(CAcircNDIDO 1982 p 200)
Doacuteria (2014) estimula um novo caminho para a culinaacuteria a junccedilatildeo da
tradiccedilatildeo com a inovaccedilatildeo pois a inovaccedilatildeo natildeo existe sem a tradiccedilatildeo natildeo se
chega a uma culinaacuteria dita como ldquonovardquo sem conhecer profundamente os
segredos da tradiccedilatildeo Assim pressupotildee-se a necessidade de um terceiro
caminho uma mescla culinaacuteria possiacutevel na qual o tradicional incorpore
elementos modernos e vice-versa
Sobre o potencial de as tradiccedilotildees alimentares resistirem ocupando
outros espaccedilos ou seja unindo-se ao moderno Poulain (2013 p 35) acena
77
esperanccedilosamente que ldquoa histoacuteria da alimentaccedilatildeo mostrou que cada vez que
identidades satildeo postas em perigo a cozinha e as maneiras agrave mesa satildeo os
lugares privilegiados de resistecircnciardquo
Em sentido semelhante ao exposto acima por Jean Pierre Poulain
Cacircmara Cascudo (2004) defende o peso da tradiccedilatildeo ldquoEspero mostrar a
antiguidade de certas predileccedilotildees alimentares que os seacuteculos fizeram haacutebitos
explicaacuteveis como uma norma de uso e um respeito de heranccedila dos mantimentos
da tradiccedilatildeordquo (p 14) No entanto diferentemente de Gilberto Freyre que defendia
uma tradiccedilatildeo culinaacuteria irretocaacutevel Luiacutes da Cacircmara Cascudo apesar de defensor
das tradiccedilotildees alimentares parecia compreender de forma menos resistente do
que Freyre que a inserccedilatildeo de atributos modernos no campo alimentar se
ampliaria para o bem e sobretudo para o mal segundo as observaccedilotildees
negativas do autor a respeito Mas ele entendia a necessidade de que isso
passasse a ser administrado ao inveacutes de puramente combatido
No povo haacute dois elementos autocircmatos e harmocircnicos coexistentes no assunto alimentar O primeiro estaacutetico basilar tiacutepico indeformaacutevel O segundo renovaacutevel dinacircmico plaacutestico Dos primeiros alguns podem desaparecer ou constituir uso minoritaacuterio Dos segundos outros descem agrave estratificaccedilatildeo tornando-se tradicionais superpondo-se imediatamente agrave camada profunda dos velhos usos participando do antigo patrimocircnio preferencial Essa mecacircnica regulariza a permanecircncia do cardaacutepio familiar Todos os grupos humanos tecircm uma fisionomia alimentar (CAcircMARA CASCUDO 2004 p 373)
Para Garciacutea Canclini (2013) a busca por aspectos tradicionais na
contemporaneidade sinaliza uma necessidade de distanciamento dos indiviacuteduos
com o excesso de modernidade e a inseguranccedila vivida no mundo
contemporacircneo No que se refere a alimentaccedilatildeo as inseguranccedilas ou
desconfianccedilas natildeo satildeo poucas Isso talvez explique a busca que tem ocorrido
pela comida de nossos antepassados
Natildeo obstante o tradicionalismo aparece muitas vezes como recurso para suportar as contradiccedilotildees contemporacircneas Nessa eacutepoca em que duvidamos dos benefiacutecios da modernidade multiplicam-se as tentaccedilotildees de retornar a algum passado que imaginamos mais toleraacutevel Frente agrave impotecircncia para enfrentar as desordens sociais o empobrecimento econocircmico e os desafios tecnoloacutegicos frente agrave dificuldade para entendecirc-los a evocaccedilatildeo de tempos remotos se reinstala na vida contemporacircnea arcaiacutesmos que a modernidade havia substituiacutedo (GARCIacuteA CANCLINI 2013 p 166)
78
Outro exemplo para que a tradiccedilatildeo mantenha sua importacircncia social e
de formaccedilatildeo da sociedade brasileira pode ser demonstrado atraveacutes das Leis de
Incentivo agrave cultura e ao patrimocircnio cultural valorizando tanto a culinaacuteria tiacutepica
quanto o turismo rural com foco na tradiccedilatildeo local No campo alimentar a forma
artesanal de fazer o queijo mineiro e o oficio das baianas do acarajeacute satildeo
exemplos de alimentos que estatildeo entre os patrimocircnios imateriais do paiacutes
catalogados pelo IPHAN (Instituto do Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional)
Outros saberes envolvendo a comida e a cultura encontram-se na lista de
espera Eacute o caso da produccedilatildeo de doces tradicionais pelotenses do modo de
fazer tradicional da cajuiacutena do Piauiacute e o saber fazer do queijo artesanal serrano
de Santa Catarina e Rio Grande do Sul Em niacutevel mundial muitas cozinhas
internacionais jaacute satildeo consideradas Patrimocircnio Imaterial da Humanidade pela
Unesco como eacute o caso das cozinhas Mexicana Francesa e Mediterracircnea
(Greacutecia Itaacutelia Espanha e Marrocos)
Pelo objetivo deste trabalho eacute fundamental dar continuidade agrave discussatildeo
no presente item analisando os reflexos dos haacutebitos alimentares
contemporacircneos sobre as dinacircmicas especificamente rurais buscando
compreender como o rural na atualidade se comporta diante das praacuteticas
alimentares tradicionais e modernas
35 Modernidade e tradiccedilatildeo no contexto alimentar rural contemporacircneo
Ao longo de sua histoacuteria pode-se dizer que o Brasil eacute um paiacutes de muitos
rurais por sua dimensatildeo geograacutefica por suas regiotildees de clima diferenciados e
formaccedilatildeo cultural diversa como exposto por Del Priore e Venacircncio (2006) o
Brasil eacute formado por
Grupos sociais em suas interconexotildees territoriais grupos que satildeo filhos de uma histoacuteria ou seja de um conjunto de costumes comuns ligados agrave religiatildeo ritos mitos praacuteticas econocircmicas crenccedilas teacutecnicas e usos do corpo relacionados com as culturas agriacutecolas ou com a criaccedilatildeo de animais (DEL PRIORE VENAcircNCIO 2006 p 14)
Esses muitos rurais implicam tambeacutem em haacutebitos e praacuteticas alimentares
peculiares Alimentos e praacuteticas que satildeo valorizados em uma determinada
cultura rural pode ser desinteressante para outra Outras tantas caracteriacutesticas
poreacutem podem se assemelhar No entanto eacute cada vez mais tecircnue a linha que
79
separa o rural do urbano e o dinamismo parece ser constante atualmente na
maior parte desses rurais Isso tem gerado a necessidade de reorganizaccedilatildeo do
trabalho e da vida cotidiana das famiacutelias como demonstram as anaacutelises
desenvolvidas por Graziano da Silva (1997) Wanderley (2000 e 2010) e Carneiro
(2005)
Definir o que eacute cultura rural hoje eacute um desafio Segundo Camarano e
Abramovay (1998 p 46) natildeo existe um criteacuterio universal que seja vaacutelido para
definir as fronteiras entre o rural e o urbano e que essa definiccedilatildeo varia de paiacutes a
paiacutes Assim ldquono Brasil eacute considerado como situaccedilatildeo rural os domiciacutelios e a
populaccedilatildeo recenseada que abrange toda a aacuterea fora do considerado urbano
inclusive os aglomerados rurais de extensatildeo urbana os povoados e os nuacutecleosrdquo
Mas esse criteacuterio natildeo explica por si soacute a cultura rural contemporacircnea incluindo
as suas praacuteticas alimentares
Carneiro (2005 p 8) considera outros aspectos para aleacutem da definiccedilatildeo
de limites geograacuteficos entre as duas categorias Segundo a autora durante muito
tempo a oposiccedilatildeo entre o rural e o urbano prevaleceu para a sociologia rural
como abordagem teoacuterico-conceitual em que o rural era determinado pela
ldquocentralidade na atividade agriacutecola isolamento geograacutefico e cultural fraca
mobilidade etcrdquo e tambeacutem o espaccedilo de manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo da tradiccedilatildeo e
dos costumes Mais correto seria dizer por concordarmos com a percepccedilatildeo da
autora de que nos tempos atuais natildeo cabe mais classificar categorias como
rural ou urbano partindo apenas de justificativas de limites geograacuteficos que uma
determinada populaccedilatildeo ocupa mas sim pelas relaccedilotildees sociais que se datildeo no
interior desses espaccedilos Reportando ao trabalho de Marc Mormont Carneiro
(2005) apresenta a distinccedilatildeo entre o rural como categoria analiacutetica e como
categoria operacional destacando que a dificuldade em pensar o rural estaacute no
uso do termo que eacute feito tanto por pesquisadores e na academia quanto por
agecircncias que elaboram estatiacutesticas e ainda utilizada no senso comum
Nos termos de Mormont as propriedades do rural satildeo possibilidades simboacutelicas mas tambeacutem possibilidades praacuteticas Elas orientam as praacuteticas sociais sobre um determinado espaccedilo de acordo com os significados simboacutelicos que lhes satildeo atribuiacutedos sendo portanto inuacutetil procurar em uma realidade fiacutesica econocircmica ou ecoloacutegica os fundamentos de uma ruralidade Tambeacutem seria inuacutetil procurar nesta realidade apenas um imaginaacuterio que faria do rural uma pura construccedilatildeo mental (CARNEIRO 2005 p 9)
80
Nos interessa compreender nessa discussatildeo teoacuterica o que prevalece no
rural contemporacircneo brasileiro uma continuidade atrelada aos modos
tradicionais dos modos de vida e a reproduccedilatildeo social destacando aquelas
questotildees relacionadas agraves praacuteticas alimentares Ou por outro lado se a
aproximaccedilatildeo com o urbano tem transformado o rural a ponto de se estar
perdendo algumas peculiaridades e tradiccedilotildees que historicamente foram
construiacutedas Para instrumentalizar essa anaacutelise torna-se necessaacuteria uma
reflexatildeo sobre a dinacircmica no mundo rural
351 A dinacircmica do rural entre a tradicional e o moderno
Segundo Carneiro (1998 e 2005) compreender o dinamismo que ocorre
no campo eacute importante no sentido de natildeo congelar o conceito de rural como uma
categoria imutaacutevel onde seus habitantes sejam incapazes ldquode absorver e de
acompanhar a dinacircmica da sociedade em que se insere e de se adaptar agraves novas
estruturas sem contudo abrir matildeo de valores visatildeo de mundo e formas de
organizaccedilatildeo social definidas em contextos soacutecio-histoacutericos especiacuteficosrdquo
(CARNEIRO 1998 p 1) A autora tambeacutem argumenta sobre a possibilidade e a
ocorrecircncia de uma nova ruralidade aquela que eacute capaz de fazer conviver com
os reflexos do moderno sobre o tradicional sem que isso signifique um
rompimento com a tradiccedilatildeo descaracterizando o rural Tampouco cabe falar em
uma volta ao passado mas sim do surgimento de uma ruralidade que resgate
determinadas praacuteticas do passado cujo conhecimento pertence aos mais
velhos
Desvendar os distintos significados socialmente atribuiacutedos a espaccedilos e manifestaccedilotildees culturais tidos como rurais sinaliza uma perspectiva de que o mundo rural natildeo estaria sucumbindo agraves pressotildees do universo urbano nem representaria uma ruptura com o urbano Esse processo entendido superficialmente por alguns como de ldquourbanizaccedilatildeordquo do campo produziria novas sociabilidades e novas identidades sociais que dificilmente caberiam em uma uacutenica classificaccedilatildeo mas que continuam a ser representadas socialmente como rurais (CARNEIRO 2005 p 9)
O que os estudos dos autores citados aqui tecircm apontado eacute que as
oposiccedilotildees entre rural e urbano natildeo devem mais ser usadas para pensar a
ruralidade atual brasileira Para Brandemburg (2010) o mundo rural se insere no
processo de modernizaccedilatildeo e ateacute busca por ele mas sem deixar de lado
81
totalmente o modo tradicional de vida Essa coexistecircncia significa a necessidade
de seguir resolvendo os conflitos que surgem a partir dessa dinacircmica O autor
defende que existam rurais em tempos diferentes no Brasil mas que ldquopersistem
ora na sua forma tiacutepica ora sobrepostos ora expressos na forma de um rural
novo reconstruiacutedo ou reflexivordquo (BRANDEMBURG 2010 p 423) O autor cita
Wanderley (1996) quando discorre que este rural reconstruiacutedo eacute aquele em que
o moderno natildeo substitui ou extingue o tradicional mas lhe permite passar por
ressignificaccedilotildees e que se reorganiza socialmente em um grupo ou comunidade
local
Algumas mudanccedilas que vem ocorrendo no meio rural podem alterar os
modos de vida e interferir nas escolhas alimentares das famiacutelias rurais A
facilidade de acesso ao comeacutercio da cidade mais proacutexima ou agrave existecircncia do
comeacutercio na proacutepria comunidade pode gerar interesse em consumir alguns
alimentos que natildeo faziam parte da dieta em tempos passados como os produtos
processados Alguns siacutembolos do estilo de vida moderno chegam mais
facilmente agraves famiacutelias rurais como o uso dos eletrodomeacutesticos que equipam a
cozinha facilitando o trabalho e a reproduccedilatildeo das praacuteticas alimentares como
por exemplo o fogatildeo a gaacutes e a geladeira
Referimos muito no presente trabalho agrave dicotomia ldquopraacuteticas alimentares
contemporacircneasrdquo e como contraponto a existecircncia de uma praacutetica voltada ao
tradicional Assim o tradicional e o novo (ou moderno) surgem como aspectos
importantes agraves vezes conflitantes agraves vezes em interaccedilatildeo Refletir sobre o
mundo moderno pensar sobre modernidade eacute pensar tambeacutem em passado em
tradiccedilatildeo Poreacutem natildeo se pode afirmar que o moderno implica na morte da
tradiccedilatildeo isso foi apontado por Doacuteria (2014) Montanari (2008) e Giard (2012)
Ao analisar-se um tema em que se evidenciem traccedilos de oposiccedilatildeo e ou
de relaccedilatildeo entre o tradicional e o moderno percebe-se que haacute uma tendecircncia
no senso comum em acreditar que a modernidade eacute capaz de extinguir a
tradiccedilatildeo Poreacutem estudiosos do assunto como Giddens (2012) Bartolomeacute (2006)
e Garciacutea Canclini (2013) tecircm mostrado que o caminho mais interessante e que
estaacute em evoluccedilatildeo eacute uma ligaccedilatildeo entre os dois polos da questatildeo
Para Giddens (1991) o tradicional eacute quase sempre atrelado ao passado
idealizado mas que por sua vez se torna dinacircmico com o processo de
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modernizaccedilatildeo e de novas interpretaccedilotildees dadas pelas geraccedilotildees que recebem os
conhecimentos e experiecircncias vividas por seus antepassados
Nas culturas tradicionais o passado eacute honrado e os siacutembolos valorizados porque contecircm e perpetuam a experiecircncia de geraccedilotildees A tradiccedilatildeo eacute um modo de integrar a monitoraccedilatildeo da accedilatildeo com a organizaccedilatildeo tempo-espacial da comunidade A tradiccedilatildeo natildeo eacute inteiramente estaacutetica porque ela tem que ser reinventada a cada nova geraccedilatildeo conforme esta assume sua heranccedila cultural dos precedentes (GIDDENS 1991 p 31)
Em semelhante linha de pensamento Bartolomeacute (2006) entende a
tradiccedilatildeo como um importante veiacuteculo para se recriar identidades Em seu
continuo processo de construccedilatildeo e reconstruccedilatildeo as identidades mesclam
aspectos do passado com os elementos do presente no mundo contemporacircneo
aleacutem de enfrentar as mudanccedilas necessaacuterias para construir novas relaccedilotildees entre
o tradicional e o moderno ldquoEm um de seus niacuteveis implica uma busca no passado
para instituir uma nova relaccedilatildeo com a realidade contemporacircneardquo (BARTLOMEacute
2006 p 58)
Giddens (2012) e Simsom (2003) nos falam sobre o papel da tradiccedilatildeo e
da transmissatildeo dos saberes de uma geraccedilatildeo a outra feita com a presenccedila dos
ldquoguardiatildeesrdquo Para Giddens (2012) tradiccedilatildeo e memoacuteria andam juntas A tradiccedilatildeo
possui ldquoguardiatildeesrdquo e combina o conteuacutedo moral com o emocional O autor
entende a memoacuteria como um processo ativo e natildeo apenas como lembranccedila
Processo ativo porque as memoacuterias satildeo continuamente reproduzidas por esses
guardiatildees que lhes conferem um modo de continuidade das experiecircncias A
presenccedila desses guardiatildees se torna ainda mais importante no mundo
contemporacircneo para que as experiecircncias passadas seus erros e acertos natildeo se
percam da sociedade
Se nas culturas orais as pessoas mais velhas satildeo o repositoacuterio (e tambeacutem frequentemente os guardiatildees) das tradiccedilotildees natildeo eacute apenas porque as absorveram em um ponto mais distante no tempo que as outras pessoas mas porque tecircm tempo disponiacutevel para identificar os detalhes dessas tradiccedilotildees na interaccedilatildeo com os outros da sua idade e ensinaacute-las aos jovens Por isso podemos dizer que a memoacuteria eacute um meio organizador da memoacuteria coletiva (GIDDENS 2012 p 100-101)
Eacute possiacutevel considerar que muitas tradiccedilotildees tecircm sua origem no rural O
rural do passado com caracteriacutesticas muito tradicionais na produccedilatildeo e na
cultura eacute descrito e analisado por Cacircndido (1982) e Brandatildeo (1981) Antocircnio
Cacircndido mostra um dos rurais brasileiros com suas peculiaridades no que se
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refere a alimentaccedilatildeo e a cultura Em ldquoParceiros do Rio Bonito estudo sobre o
caipira paulista e a transformaccedilatildeo dos seus meios de vidardquo o autor apresenta
suas anaacutelises antropoloacutegicas e socioloacutegicas do modo de vida caipira
Neste estudo o autor mostra detalhadamente os modos de vida do
grupo pesquisado seus meios de subsistecircncia a forma tradicional de conduccedilatildeo
dos trabalhos agriacutecolas a composiccedilatildeo de sua alimentaccedilatildeo e seus recursos para
obtecirc-la a cultura caipira as formas de solidariedade o cotidiano do trabalho rural
do momento de acordar sair para o trabalho ao momento de retornar ao siacutetio
No aspecto da comensalidade nos chama a atenccedilatildeo as observaccedilotildees do
autor para a praacutetica alimentar do agricultor estudado por ele que no dia a dia
levava o seu almoccedilo em marmita depositada no embornal para ser consumido
no local de trabalho Os momentos das refeiccedilotildees em famiacutelia na cozinha ficavam
restrito aos domingos
O uso da marmita eacute tambeacutem a realidade de muitas outras aacutereas rurais e
tambeacutem urbanas no Brasil em tempos passados em periacuteodo de grande
movimentaccedilatildeo no campo onde o trabalho era realizado muito distante da
habitaccedilatildeo Atualmente isso permanece e nas aacutereas urbanas tambeacutem eacute uma
praacutetica muita utilizada pelos trabalhadores Mas a comensalidade pode se dar
no local do trabalho havendo outras pessoas na mesma atividade Como jaacute visto
anteriormente para ocorrer a comensalidade natildeo eacute necessaacuterio que o espaccedilo
fiacutesico seja a habitaccedilatildeo
Em relaccedilatildeo ao tipo de comida Cacircndido (1982) descreve uma
alimentaccedilatildeo simples baseada no arroz feijatildeo milho aboacutebora e a mandioca
frutas como jabuticaba e verduras como a couve eram as mais comuns Do mato
se coletava o palmito e se caccedilava a carne Esse tipo de alimentaccedilatildeo natildeo difere
do que Cacircmara Cascudo (2004) descreve como sendo os elementos baacutesicos da
alimentaccedilatildeo presentes na cozinha rural brasileira sendo comum tambeacutem o
cultivo de verduras legumes e frutas para consumo proacuteprio da famiacutelia bem como
a produccedilatildeo de animais sobretudo a galinha e o porco A banha do porco era
usada no lugar do oacuteleo de cereais os animais eram alimentados com milho e
outros produtos plantados e colhidos no quintal
O mesmo tipo de dieta foi descrito por Brandatildeo (1981) em sua pesquisa
com lavradores na regiatildeo de Goiacircnia na deacutecada de 1970 Ao autor destaca que
a dieta das famiacutelias rurais tambeacutem consistia basicamente de arroz feijatildeo milho
84
e mandioca os produtos da horta do quintal (legumes e verduras) frutas
tubeacuterculos carne de porco de aves de caccedila e de peixes Com exceccedilatildeo da caccedila
e do peixe todos os outros itens eram produzidos por elas no entorno da
moradia
O rural tratado por Cacircndido (1982) e por Brandatildeo (1981) produz mais do
que alimentos produz um modo de vida que eacute rico em significados e simbologias
que orienta a reproduccedilatildeo social das famiacutelias rurais
Entre lavradores cuja atividade econocircmica estaacute quase toda dentro dos limites da produccedilatildeo diaacuteria e sazonal de comida para a famiacutelia o alimento e tudo o que envolve o acesso a ele aparecem como agentes reguladores entre o homem e o seu mundo Praticamente todo o seu trabalho eacute dirigido a obter alimentos para uma dieta cujos ingredientes produzem conservam ou comprometem as suas condiccedilotildees pessoais de presenccedila em esferas sociais de relaccedilotildees entre produtores de alimentos (BRANDAtildeO 1981 p 148)
No rural contemporacircneo natildeo se pode mais afirmar que a tradiccedilatildeo eacute
determinante nem que se manteacutem encerrada fechada num mundo agrave parte
conforme jaacute apontado por Brandemburg (2010) e Wanderley (1996) embora
muitos costumes ritos praacuteticas alimentares e de reproduccedilatildeo social e econocircmica
se mantenham Isso se aplica tambeacutem agraves praacuteticas alimentares cabendo agraves
famiacutelias rurais fazerem suas escolhas Escolhas essas que natildeo satildeo tatildeo simples
considerando um universo de possibilidades e a proacutepria dificuldade de opccedilatildeo do
ser humano diante do mundo moderno
Nesse universo de possibilidades de escolhas alimentares os
consumidores contemporacircneos buscam escolher aquilo que mais lhes
apetecem de acordo com razotildees de ordem cultural simboacutelica econocircmica social
etc
La variabilidad de las elecciones alimentarias humanas procede sin duda en gran medida de la variabilidad de los sistemas culturales si no consumimos todo lo que es bioloacutegicamente comestiblese debe a que todo lo que es bioloacutegicamente comible no es culturalmente comestible (FISCHLER 1995 p 33)
Segundo o autor as muitas opccedilotildees no processo de escolha geram
anguacutestias alimentares que eacute uma caracteriacutestica do comensal moderno
Inclusive porque ele tem consciecircncia de uma seacuterie de riscos no campo
alimentar sobretudo os riscos que o alimento pode causar agrave sua sauacutede
85
As discussotildees sobre ruralidade no Brasil natildeo satildeo conclusivas no sentido
de afirmar que o peso da tradiccedilatildeo alimentar se impotildee Especificamente sobre
haacutebitos alimentares das populaccedilotildees rurais no Brasil contemporacircneo haacute
necessidade de ampliar o leque de abrangecircncia e regiotildees de estudo No
levantamento que fiz para a presente pesquisa verifiquei que os estudos sobre
alimentaccedilatildeo no meio rural tecircm sido de caraacuteter regional a maior parte na regiatildeo
Sul do Paiacutes Outra informaccedilatildeo que verifiquei eacute uma variedade de estudos sobre
alimentaccedilatildeo elaborados com consumidores na aacuterea urbana Assim o que
existem de estudos sobre praacuteticas alimentares no meio rural satildeo apontamentos
importantes e relevantes poreacutem ainda incipientes para que que sejam capazes
de definir uma realidade sobre praacuteticas alimentares para todo o rural brasileiro
Se por um lado haacute autores que apontam para uma tendecircncia a uma
homogeneizaccedilatildeo alimentar nas sociedades ocidentais e por outro aqueles que
reforccedilam a importacircncia da tradiccedilatildeo e em sua capacidade de se sobrepor haacute uma
terceira posiccedilatildeo sobre a questatildeo Satildeo autores que percebem a possibilidade do
meio termo ou de uma convivecircncia entre os aspectos da contemporaneidade e
da tradiccedilatildeo no que se refere agrave alimentaccedilatildeo Doacuteria (2014) aponta que o tradicional
e o novo datildeo sinais de que sua interaccedilatildeo eacute fundamental Natildeo se inventam novas
comidas elas estatildeo sendo revisitadas e a induacutestria tem investido nisso
Aleacutem de Doacuteria (2014) Poulain (2013) e Lody (2008) partilham da opiniatildeo
de que mesmo que a cada dia modernas possibilidades alimentares ndash cujo foco
seja a ampliaccedilatildeo do consumo de alimentos processados e ultraprocessados ndash
ampliem seus espaccedilos na sociedade natildeo conseguimos abandonar
completamente os viacutenculos com os haacutebitos alimentares herdados dos pais e
avoacutes Haacute sempre aquele doce especial que a avoacute fazia aquele bolo que soacute se
comia na casa dos pais aquele jeito de comer que aprendemos na infacircncia e
por isso sentimos falta mesmo que adotemos um estilo de vida que nos afaste
cada vez mais do espaccedilo social alimentar domeacutestico Os indiviacuteduos se sentem
emocionalmente ligados aos haacutebitos alimentares de sua infacircncia em geral
marcados pela cultura tradicional
Assim apesar de estarem inseridas em uma cultura que lhes eacute peculiar
as famiacutelias rurais natildeo estatildeo imunes agraves influecircncias dos demais tipos culturais e
tambeacutem natildeo satildeo estaacuteticas como defende Carneiro (1998) Elas acompanham o
ritmo das mudanccedilas em sua realidade nas quais estatildeo incluiacutedas tambeacutem as
86
praacuteticas alimentares Como bem define Elias (1994 p 145) ldquoa relaccedilatildeo entre
sociedade e indiviacuteduo eacute tudo menos imoacutevel Modifica-se com o desenvolvimento
da humanidaderdquo No sentido dado por Norbert Elias para a noccedilatildeo de habitus
social empregado agraves sociedades modernas ocidentais haacute uma tendecircncia para
a diminuiccedilatildeo das diferenccedilas regionais entre as pessoas agrave medida que o
desenvolvimento cria maiores possibilidades de integraccedilatildeo entre as regiotildees O
que natildeo implica obrigatoriamente em substituiccedilatildeo de todas as praacuteticas
tradicionais e adoccedilatildeo a outras
36 O papel feminino nas praacuteticas alimentares na famiacutelia
No processo de decisatildeo alimentar envolvendo o cardaacutepio cotidiano das
principais refeiccedilotildees e as aquisiccedilotildees a serem feitas no mercado eacute a mulher que
na maioria das vezes exerce o poder de decisatildeo embora tome as decisotildees
baseadas no gosto e nos haacutebitos familiares Isso eacute apontado em Arnaiz (1996)
Mennell et al (1992) Carrasco (1992) Freyre (1964 2006) Cacircmara Cascudo
(2004) e Giard (2012) Segundo Doacuteria (2012) mesmo apoacutes a revoluccedilatildeo industrial
e a inserccedilatildeo da mulher no mercado de trabalho a funccedilatildeo alimentar continuou
sendo atribuiacuteda como sendo da mulher
Arnaiacutez (1996) destaca que um dos fatores que contribuiacuteram para que a
relaccedilatildeo mulher ndash alimentaccedilatildeo ocorresse eacute a sua ligaccedilatildeo bioloacutegica com a
maternidade Historicamente a sociedade atribuiu ao papel feminino a
transmissatildeo natural dos trabalhos domeacutesticos e por consequecircncia os cuidados
com os membros da famiacutelia Dentre as atribuiccedilotildees femininas estaacute a de alimentar
seus filhos Citando Carrasco (1992) a autora destaca que a funccedilatildeo de satisfazer
as necessidades atraveacutes da alimentaccedilatildeo eacute primeiramente fisioloacutegica mas
possui tambeacutem outras ldquoSin embargo esta tarea comporta ademaacutes la
reproduccioacuten y satisfaccioacuten de otras relaciones sociales tales como identidade
reciprocidade comensalidade y comunicacioacuten que se expresan em cada uno de
los contenidos de las atividades que incorporardquo (CARRASCO 1992 apud
ARNAIZ 1996 p 31)
Segundo Arnaiz (1996) o papel atribuiacutedo socialmente agrave mulher como
responsaacutevel pela tarefa alimentar para aleacutem de fisioloacutegica encontra principal
argumento no final do seacuteculo XIX quando tanto na famiacutelia burguesa quanto na
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trabalhadora a funccedilatildeo era basicamente reprodutiva Diferentemente do espaccedilo
externo ao lar no qual repousava o objetivo de produccedilatildeo de mercadorias Assim
havia uma clara e explicita divisatildeo sexual do trabalho Ao homem (pai) cabendo
o papel de provedor e agrave mulher (matildee) o papel de reproduccedilatildeo tanto bioloacutegica
quanto social e a responsabilidade pela alimentaccedilatildeo e por outras necessidades
domeacutesticas dos membros da famiacutelia
Woortmann (1985) trata da divisatildeo tambeacutem dos espaccedilos fiacutesicos da
constituiccedilatildeo tradicional da famiacutelia Nessa percepccedilatildeo a famiacutelia supotildee a divisatildeo
do trabalho entre homens e mulheres e cria o espaccedilo do homem provedor como
aquele externo ao lar onde se constitui a relaccedilatildeo racional dos negoacutecios e da
ldquofriezardquo O espaccedilo da mulher como sendo o da casa o espaccedilo das relaccedilotildees
afetivas e portanto acolhedor encontrando dentre as atividades domeacutesticas a
responsabilidade pela elaboraccedilatildeo da comida como a mais caracteriacutestica
expressatildeo dessa afetividade Assim para o autor
O gecircnero eacute tambeacutem construiacutedo no plano das representaccedilotildees atraveacutes da percepccedilatildeo da comida A comida ldquofalardquo da famiacutelia de homens e de mulheres tanto para o antropoacutelogo que realiza a leitura consciente dos haacutebitos de comer como para os proacuteprios membros do grupo familiar ndash e atraveacutes deste ndash que realizam uma praacutetica inconsciente de um habitus alimentar (WOORTMANN 1985 p 2)
Ao atribuir diferenccedila de significado entre ldquocomidardquo e ldquomantimento o
autor mostra que essa diferenciaccedilatildeo tambeacutem possui conotaccedilatildeo de gecircnero pois
aleacutem de existir o antes e o depois da accedilatildeo culinaacuteria existe tambeacutem a conotaccedilatildeo
que envolve a mediaccedilatildeo masculina e a feminina O autor chama a atenccedilatildeo para
o que observou em seu estudo realizado com camponeses no Nordeste em que
mantimento era considerado um produto do roccedilado portanto de domiacutenio
masculino Mas esse mantimento se converteria em comida ao ser ldquoqueimado27rdquo
na cozinha que eacute compreendido como o espaccedilo feminino
O mantimento (natureza) eacute produto do roccedilado (cultura quando eacute oposto ao mato) pelo trabalho do homem Quando eacute queimado isto eacute quando de ldquocrurdquo passa a ldquocozidordquo processo que se realiza a casa domiacutenio da cultura mas no espaccedilo desta que corresponde agrave mulher (natureza) torna-se comida (cultura) Entatildeo o homem-cultura produz o mantimento-natureza e a mulher-natureza produz a comida-cultura (WOORTMANN 1985 p 9)
27 Expressatildeo muito utilizada pelos camponeses da regiatildeo nordeste segundo o autor
88
Cacircmara Cascudo (2004) discute a identidade social feminina na histoacuteria
da alimentaccedilatildeo no Brasil O papel das mulheres indiacutegenas africanas e
portuguesas que produziram uma importante miscigenaccedilatildeo do paladar que tanto
caracteriza a cozinha brasileira Mulheres que foram responsaacuteveis tambeacutem ao
longo da histoacuteria pela transmissatildeo dos segredos e da diversidade culinaacuteria que
dominaram
A culinaacuteria brasileira tem suas raiacutezes nos saberes que foram repassados
por geraccedilotildees de mulheres desses trecircs grupos eacutetnicos e na junccedilatildeo dos seus
saberes De cada grupo eacutetnico que formou a populaccedilatildeo brasileira detalhes foram
herdados e levados agrave mesa familiar ao longo da histoacuteria Muito do que estaacute
presente em nossas praacuteticas alimentares cotidianas e em festejos especiais eacute
reflexo de transmissatildeo cultural e histoacuterica
Sobre a influecircncia e importacircncia da mulher indiacutegena para a alimentaccedilatildeo
Freyre (1964 p 132) a descreve como sendo natildeo apenas ldquoa base fiacutesica da famiacutelia
brasileira mas valioso elemento de cultura material e alimentar na formaccedilatildeo
brasileirardquo Vaacuterios alimentos usados ateacute os dias atuais remeacutedios caseiros
formatos de utensiacutelios de cozinha etc satildeo heranccedilas das mulheres indiacutegenas
Da cunhatilde eacute que nos veio o melhor da cultura indiacutegena O asseio pessoal A higiene do corpo O milho O caju O mingau As comidas preparadas agrave base de mandioca e que se tornaram a base do regime alimentar do colonizador O brasileiro de hoje amante do banho e sempre de pente e espelhinho no bolso o cabelo brilhante de loccedilatildeo ou de oacuteleo de coco reflete a influecircncia de tatildeo remotas avoacutes (FREYRE 1964 p 132)
Segundo o autor a culinaacuteria brasileira natildeo seria a mesma sem os
quitutes de origem indiacutegena Ele destaca como a mescla dos conhecimentos da
mulher indiacutegena e da mulher portuguesa que se deu nas cozinhas das casas
grandes foi importante para tornarem esses quitutes com sabor ldquoabrasileiradordquo
O autor ainda ressalta a contribuiccedilatildeo da cultura africana por meio das mulheres
africanas para a culinaacuteria brasileira Originam dessa cultura a introduccedilatildeo de
azeite de dendecirc pimenta malagueta quiabo farofa quibebe vatapaacute mungunzaacute
caruru milho assado acarajeacute pipoca cuscuz de peixe novas variedades de
preparo de peixes e da galinha alguns doces broas e patildees de milho Segundo
o autor muitas mulheres alforriadas tiravam seu sustento com os tabuleiros de
doces vendiam cocadas quindins matildees bentas etc Algranti (2007) menciona
que antes de se tornarem populares e vendidos em tabuleiros os doces eram
89
considerados iguarias e apenas servidos em ocasiotildees especiais e eram por isso
demarcadores de distinccedilatildeo social
Assim como a junccedilatildeo dos saberes das mulheres indiacutegenas africanas e
portuguesas produziu comidas mais saborosas A troca de conhecimentos
propiciou novas adaptaccedilotildees aos pratos sobretudo aos doces A heranccedila
portuguesa no que se refere aos doces eacute muito forte segundo Freyre (2007)
mas era preciso a matildeo de obra e a intuiccedilatildeo das mulheres negras para dar o
toque certo nos pontos
Com sabores temperos supersticcedilotildees e haacutebitos das trecircs raccedilas que nos formaram a convivecircncia espontacircnea entre o cristal daquele accediluacutecar o sabor selvagem da fruta tropical e aquele que era o alimento baacutesico dos nossos iacutendios ndash a mandioca Juntando pilatildeo urupema saudade peneira de taquara raspador de coco esperanccedila colher de pau panela de barro mais a fartura de porcelana do oriente e bules e vasos de prata Eram doces preparados em tachos de cobre pesado heranccedila portuguesa largos quase trecircs palmos grandes duas alccedilas ardendo sobre velhos fogotildees a lenha Jovens negras tiravam os tachos pesados do fogo sem pedir ajuda As mais velhas usavam experiecircncia e sabedoria trazidas de terras distantes com olhares atentos para natildeo deixar o doce passar do ponto E sempre com aquela mesma forma de fazer ndash tranquila bem devagar sem pressa quase dolente (FREYRE 2007 p 13-14)
Bruit et al (2007) citam doces como as marmeladas goiabadas
rapaduras doces de frutas em calda acompanhados muitas vezes de queijo
como aqueles mais servidos nos jantares festivos que ocorriam nas casas-
grandes no interior de Satildeo Paulo e Minas Gerais Tanto as referecircncias de
Cacircmara Cascudo (2004) como as de Freyre (1964 2003 e 2007) revelam as
praacuteticas alimentares que ocorriam no Brasil colonial sobretudo nas casas-
grandes e dos sobrados que foram caracteriacutesticas primeiramente das regiotildees
dos engenhos de cana
Abdala (2007) afirma o controle da cozinha pelas mulheres no Brasil
colonial Referindo-se principalmente agraves escravas que viviam quase reclusas na
cozinha e por isso se tornaram personagem central na atividade da culinaacuteria
Segundo a autora essa era a realidade em Minas Gerais mas tambeacutem em
outras partes do paiacutes As escravas e as mulheres pobres executavam o serviccedilo
cotidiano Agraves senhoras ricas cabia dar as ordens e administrar os trabalhos
relativos agrave produccedilatildeo da comida Somente em algumas ocasiotildees elas se
dedicavam agrave elaboraccedilatildeo de algum prato ldquoEm casa no decorrer dos dias nas
festas intimas durante visitas como tambeacutem na rua no comeacutercio ambulante ou
90
das vendas cabia agrave mulher toda a funccedilatildeo relacionada agrave comidardquo (ABDALA
2007 p 80) Essa condiccedilatildeo tambeacutem eacute apontada por Vasconcellos (1968) que
apresenta a mulher deste periacuteodo em Minas Gerais como a dona absoluta dos
seus domiacutenios no interior das casas que compreendia tambeacutem a cozinha local
onde o homem raramente acessava
O domiacutenio feminino dos grupos eacutetnicos indiacutegenas africanos e portuguecircs
eacute perceptiacutevel na alimentaccedilatildeo brasileira ainda nos dias de hoje muito embora
com a chegada dos imigrantes europeus e tambeacutem de outras regiotildees a partir
da metade do seacuteculo XIX mulheres de outras culturas trouxeram importantes
contribuiccedilotildees para a culinaacuteria brasileira Destacando as italianas e as alematildes
cuja influecircncia se iniciou no Sul do Brasil mas tambeacutem na cidade de Satildeo Paulo
No interior do estado do Espirito Santo e na regiatildeo serrana do Rio de Janeiro as
culturas italianas e alematildes tambeacutem tiveram papel importante na formaccedilatildeo das
praacuteticas alimentares locais
Segundo Claval (2001) os saberes culinaacuterios foram repassados
matrilinearmente ao longo da histoacuteria e foram feitos principalmente por oralidade
pelas mulheres que podem ser chamadas de as ldquoguardiatildesrdquo termo usado por
Giddens (2012) e Simson (2003) Muitas mulheres mais velhas que natildeo tiveram
a oportunidade de estudar e sabiam apenas assinar o proacuteprio nome guardavam
na memoacuteria as receitas de suas matildees e avoacutes Pode-se dizer que a transmissatildeo
pela oralidade parece contribuir mais para aproximar as geraccedilotildees pela relaccedilatildeo
de proximidade necessaacuteria entre as mulheres Independente da forma se
escritas ou orais o importante eacute a compreensatildeo de que receitas repassadas
pelas geraccedilotildees carregam tambeacutem uma histoacuteria rica em significados e
experiecircncias vividas pelas mulheres das geraccedilotildees Afinal como dito por Doacuteria
(2006 p 103) ldquoreceitas como meros lsquomodos de fazerrsquo satildeo inuacuteteisrdquo
Tambeacutem Giard (2012) atribui agraves mulheres ndash as guardiatildes da tradiccedilatildeo ndash a
influecircncia na preferecircncia por determinados pratos Somos ldquovisitadosrdquo pelos
sabores e cheiros que a memoacuteria muitas vezes insiste em trazer agrave tona as
comidas de tempos de infacircncia e juventude que nos reporta a ocasiotildees
especiacuteficas da vida Em pesquisa etnograacutefica realizada com mulheres dedicadas
a culinaacuteria a autora concluiu que
A aquisiccedilatildeo dos ingredientes a preparaccedilatildeo e as regras de compatibilidade podem muito bem mudar de uma geraccedilatildeo agrave outra mas
91
o trabalho cotidiano das cozinhas continua sendo uma maneira de unir mateacuteria e memoacuteria vida e ternura instante presente e passado que jaacute se foi invenccedilatildeo e necessidade imaginaccedilatildeo e tradiccedilatildeo ndash gostos cheiros sabores formas consistecircncias atos gestos coisas e pessoas especiarias e condimentos (GIARD 2012 p 296)
Apesar do papel central da oralidade o caderno de receita eacute um
instrumento importante para se reportar aos haacutebitos alimentares de tempos
passados Talvez o primeiro registro de uma receita seja a que aponta Sitwell
(2012) Trata-se de um registro de 1700 aC na antiga Mesopotacircmia de uma
receita de ensopado de legumes e carne que foi esculpido em taacutebuas de argila
em fixada a um tuacutemulo Segundo Claval (2001) os registros de receitas em
cadernos tiveram iniacutecio em meados do seacuteculo XIX Haacute quem o tenha herdado
de pessoas da famiacutelia e mesmo que natildeo o utilize no dia-a-dia o manteacutem como
heranccedila afetiva
Abrahatildeo (2007) aponta que natildeo apenas receitas eram registradas em
muitos desses cadernos mas tambeacutem outras anotaccedilotildees necessaacuterias naquele
momento Ele menciona que as receitas culinaacuterias que foram arquivadas em
cadernos traziam ricas informaccedilotildees inclusive sobre outros aspectos
alimentares das eacutepocas como preccedilos ofertas e carecircncias temporaacuterias de
produtos
Atualmente e desde o surgimento da sociedade industrial as atividades
das mulheres passam por transformaccedilotildees com a saiacuteda para o mercado de
trabalho externamente ao lar a dupla jornada de trabalho as mudanccedilas sociais
poliacuteticas e econocircmicas que interferiram na dinacircmica da sociedade e
consequentemente na divisatildeo sexual do trabalho Isso propiciou a aproximaccedilatildeo
masculina da cozinha numa possiacutevel divisatildeo do trabalho domeacutestico espaccedilo
antes ocupado exclusivamente por mulheres Mas ainda assim segundo Doacuteria
(2012) a mulher eacute a principal responsaacutevel pela alimentaccedilatildeo da famiacutelia ldquoNatildeo haacute
duacutevidas de que ainda hoje a cozinha feminina eacute um dos pilares do poder da
mulher em que ela segue administrando a tradiccedilatildeo alimentar (DOacuteRIA 2012 p
255)
Segundo Giard (2012) ldquodentro de uma cultura uma mudanccedila das
condiccedilotildees materiais ou da organizaccedilatildeo poliacutetica eacute o que basta para modificar a
maneira de conceber e de repartir este tipo de tarefas cotidianas podendo
tambeacutem alterar a hierarquia dos diferentes trabalhosrdquo (GIARD 2012 p 211)
92
Para esta autora natildeo haacute nada de essecircncia feminina no fato de as mulheres de
ontem e as de hoje ainda serem as que mais se envolvem nas questotildees relativas
agrave alimentaccedilatildeo A questatildeo eacute puramente histoacuterica social e cultural
Diante das mudanccedilas e da permanecircncia feminina como principal
responsaacutevel pela alimentaccedilatildeo familiar as novas tecnologias disponibilizadas aos
espaccedilos da cozinha o acesso e a variedade de alimentos industrializados
facilitam a conduccedilatildeo desse papel pelas mulheres que desejam manter a
responsabilidade pela alimentaccedilatildeo da famiacutelia mas cujo tempo eacute escasso para
se dedicarem a todas as atividades que executam Por mais que possa haver
algum conflito em usaacute-los nos termos citados por Fischler (1995) haacute poreacutem o
aspecto da comodidade e economia de tempo que atuam como fatores
estimuladores ao seu uso
A dupla jornada de trabalho feminino natildeo ocorre apenas nas aacutereas
urbanas mas tambeacutem nas rurais seja para aquelas que possuem atividade
remunerada fora da propriedade em que moram seja para as que trabalham
apenas na propriedade As atividades das mulheres agricultoras envolvem o
ambiente interno e externo da casa e ainda o seu entorno e para muitas as
atividades tambeacutem do roccedilado conforme Panzutti (2006)
Na vida cotidiana a mulher se ocupa de cozinhar e servir a comida lavar a roupa cuidar dos animais prover a lenha costurar as roupas lavar a louccedila aleacutem de trabalhar na roccedila sempre acompanhada da prole que eacute de seu cuidado Eventualmente eacute auxiliada nessas tarefas por uma filha (PANZUTTI 2006 p 62)
Segundo a autora no meio rural a oposiccedilatildeo entre a casa e o
roccedilado apesar de socialmente ser dividida e hierarquizada mostrando os
domiacutenios dos homens e os das mulheres natildeo as livra de exercer muitas
atividades no espaccedilo considerado masculino Por outro lado a cozinha eacute um
espaccedilo bem definido como sendo o da mulher matildee de famiacutelia
Alguns estudos feitos no Sul do Brasil como o de Zanetti e Menasche
(2007) De Grandi (2003) Paulilo et al (2003) e Heredia (1984) relatam a
experiecircncia de mulheres atuando nas atividades agriacutecolas como o cuidado com
pequenos cultivos pomar pequenos animais mas tambeacutem mantendo a
responsabilidade pelas praacuteticas alimentares na preparaccedilatildeo e organizaccedilatildeo da
alimentaccedilatildeo da famiacutelia
93
Na apresentaccedilatildeo dos dados empiacutericos discuto as situaccedilotildees vivenciadas
pelas famiacutelias e o papel desempenhado pelas mulheres na alimentaccedilatildeo dos
membros da famiacutelia Tanto daquelas que trabalham apenas no siacutetio como
daquelas que exercem atividade remunerada fora dos siacutetios As mulheres
relataram sobre a dinacircmica exercida por elas no que se refere agraves praacuteticas
alimentares e cultura rural Na pesquisa de campo foram apontados pelos
entrevistados elementos aqui discutidos como a transmissatildeo de saberes
culinaacuterios e a relaccedilatildeo entre modos tradicionais e modos contemporacircneos das
praacuteticas culinaacuterias
94
4 ASPECTOS METODOLOacuteGICOS DA PESQUISA E A CHEGADA AO CAMPO
Neste capiacutetulo satildeo apresentados os aspectos metodoloacutegicos que
orientaram a pesquisa de campo bem como os resultados obtidos O trabalho
de campo foi conduzido utilizando-se um delineamento qualitativo agrave luz da
abordagem etnograacutefica no sentido dado por Peirano (1995) dando atenccedilatildeo
especial ao diaacutelogo com o outro Quivy e Campenhoudt (1992) defendem que o
trabalho de investigaccedilatildeo em Ciecircncias Sociais proporciona uma melhor anaacutelise
dos eventos qualitativos bem como uma compreensatildeo mais detalhada e sutil das
dinacircmicas de funcionamento do grupo estudado
Jaacute os direcionamentos de Poulain e Proenccedila (2003) tratam da pesquisa
voltada ao estudo das praacuteticas alimentares num contexto socioantropoloacutegico
Esses autores sugerem atenccedilatildeo conjunta por parte do pesquisador aos
comportamentos dos informantes naquilo que chamam de ldquopraacuteticas observadasrdquo
e ldquopraacuteticas reconstruiacutedasrdquo Para os autores aquilo que o pesquisador observa
durante a entrevista age em conjunto com os relatos dos entrevistados
auxiliando a interpretaccedilatildeo dos dados
As praacuteticas observadas dizem respeito ao que eacute testemunhado pelo
pesquisador satildeo detalhes muitas vezes relevantes mas que nem sempre satildeo
fornecidos pelos interlocutores por razotildees diversas Para facilitar posteriormente
o acesso agraves informaccedilotildees obtidas por meio da observaccedilatildeo o uso de alguns
instrumentos de apoio eacute importante o caderno de campo a cacircmera fotograacutefica
e o gravador As praacuteticas reconstruiacutedas dizem respeito ao trabalho de
rememorizaccedilatildeo Interessa investigar e comparar vivecircncias passadas com as
atuais no caso da alimentaccedilatildeo praacuteticas que foram adotadas alimentos que
fizeram parte da dieta traccedilos de comensalidade comemoraccedilotildees festivas onde
a comida esteja presente o que permanece e o que foi abandonado
Entre outras questotildees busquei verificar junto agraves famiacutelias a influecircncia da
heranccedila culinaacuteria envolvendo a cultura imaterial (eventos relacionados agrave comida
que satildeo tradicionais na famiacutelia) a representaccedilatildeo das praacuteticas alimentares no
tempo passado e presente e o papel dos guardiatildees da tradiccedilatildeo da culinaacuteria
familiar a relaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo bem como com os modos de alimentaccedilatildeo
moderna
95
41 Teacutecnica de pesquisa
A entrevista semiestruturada foi a teacutecnica de pesquisa utilizada para
obtenccedilatildeo de informaccedilotildees das praacuteticas reconstruiacutedas e observadas (POULAIN
PROENCcedilA 2003) justificam como sendo a forma mais confiaacutevel quando dirigida
pelo proacuteprio pesquisador e ainda por permitir aprofundamento das questotildees As
entrevistas podem ser reformuladas ao longo da sua ocorrecircncia com o objetivo
de redirecionar a discussatildeo para o assunto poreacutem sem se prender totalmente agrave
pergunta inicial ldquoAs digressotildees satildeo importantes porque permitem perceber as
representaccedilotildees e os quadros de referecircncia mais ou menos conscientes nos
quais se manifestam as loacutegicas dos atoresrdquo (p 373)
A entrevista permite ao pesquisador uma variedade de interpretaccedilotildees A
atenccedilatildeo do pesquisador e seu feeling tambeacutem satildeo muito importantes pois eacute
preciso estar atento para fazer tanto abordagens objetivas e palpaacuteveis como
simboacutelicas Neste uacuteltimo caso estar atento ao que natildeo aparece claramente na
mensagem e fica impliacutecito na fala
42 Os sujeitos da pesquisa
A definiccedilatildeo dos sujeitos da pesquisa foi realizada a partir de dados
fornecidos pela Emater relativos a cada municiacutepio selecionado Poreacutem como o
trabalho de campo eacute dinacircmico novos informantes surgiram durante esta fase
pois ao entrevistar uma famiacutelia sugiram durante as conversas nomes de outras
pessoas da proacutepria comunidade que pelos objetivos da pesquisa foi
interessante entrevistar Assim as informaccedilotildees da Emater representaram a
porta de entrada mas natildeo uma limitaccedilatildeo para a seleccedilatildeo dos entrevistados
O uacutenico preacute-requisito para a pesquisa era que os interlocutores
morassem na aacuterea rural dos trecircs municiacutepios delimitados O objetivo era conhecer
as praacuteticas que ocorriam no conjunto familiar e natildeo necessariamente as praacuteticas
individuais
Foram realizadas 40 entrevistas abrangendo 17 comunidades rurais
sendo 05 em Piranga 07 em Porto Firme e 05 em Presidente Bernardes cujos
nomes constam no Quadro 1 bem como o nuacutemero de famiacutelias entrevistadas 14
em Piranga 12 em Porto Firme e 14 em Presidente Bernardes O nuacutemero de
96
famiacutelias entrevistadas por comunidade eacute aquele que consta entre os parecircnteses
no referido quadro
Quadro 1 ndash Municiacutepios comunidades e nuacutemero de famiacutelias 2015
Municiacutepios Comunidades
Piranga Boa Vista (2) Manja (3) Mestre Campos (4) Bom Jesus do Bacalhau (2) Tatu (3)
Porto Firme Aacutegua Limpa (2) Bom Retiro (1) Vinte Alqueires (1) Limeira (2) Posses (2) Jacuba28 (2) Satildeo Domingos (2)
Presidente Bernardes Itapeva (3) Mato Dentro (3) Ribeiratildeo (3) Xopotoacute (3) Bananeiras (2)
Fonte Pesquisa de campo 2015
43 A conduccedilatildeo da pesquisa o caminho percorrido
A pesquisa de campo teve como objetivo analisar agrave luz da teoria
sistematizada o significado da comida e as relaccedilotildees de comensalidade atendo-
se agraves mudanccedilas e permanecircncias referentes agraves praacuteticas alimentares das famiacutelias
Mais especificamente analisar a articulaccedilatildeo entre o tradicional e o moderno o
processo de escolha alimentar e os princiacutepios que a determinam como haacutebitos
tradiccedilatildeo praticidade custo etc a influecircncia dos guardiatildees da tradiccedilatildeo na
reproduccedilatildeo do gosto no processo de significaccedilatildeo e ressignificaccedilatildeo da comida
atrelada agraves praacuteticas aos saberes e aos haacutebitos tanto no cotidiano quanto nos
rituais
A pesquisa de investigaccedilatildeo teoacutericobibliograacutefica me conduziu a pensar
as categorias analiacuteticas e as variaacuteveis para a conduccedilatildeo do processo empiacuterico
Assim a alimentaccedilatildeo em seu sentido cultural e simboacutelico como o que foi
discutido nos campos teoacutericos da antropologia e da sociologia da alimentaccedilatildeo
28 Perguntei aos entrevistados desse local se eles sabiam porque a comunidade se chamava Jacuba mas
natildeo souberam responder Os nomes das comunidades estatildeo quase todas relacionadas ao nome de primeira fazenda implantada na localidade Perguntei isso porque ldquojacubardquo eacute um termo indiacutegena usado para se referir a um tipo de comida parecida com o piratildeo agrave base de aacutegua e farinha de mandioca e rapadura muito consumida pelos tropeiros no periacuteodo da mineraccedilatildeo em Minas Antocircnio Cacircndido tambeacutem se refere a ela na descriccedilatildeo dos caipiras paulistas
97
no capiacutetulo anterior eacute eleita como categoria analiacutetica central A partir dela foram
definidas outras quatro subcategorias de suporte 1 As praacuteticas alimentares 2
A comensalidade 3 O espaccedilo social da alimentaccedilatildeo 4 A cultura Como
atributos importantes para a anaacutelise dessas categorias delineei as variaacuteveis
norteadoras da pesquisa empiacuterica e que me ajudaram a observar a descrever
a analisar e a interpretar os dados
Sobre a cultura o interesse foi traccedilar uma caracterizaccedilatildeo ou um ldquoretratordquo
das famiacutelias quanto agrave origem (rural ou urbana) o tempo em que moram na regiatildeo
pesquisada se a terra eacute herdada ou adquirida a faixa etaacuteria aproximada se satildeo
idosos ou jovens a produccedilatildeo de alimentos e as atividades realizadas no
cotidiano
Nas praacuteticas alimentares o interesse foi o de conhecer as informaccedilotildees
relativas aos alimentos mais consumidos no cotidiano e nos eventos especiais
o que eacute produzido no local e o que eacute comprado o horaacuterio das refeiccedilotildees a relaccedilatildeo
com a atividade (por prazer ou por obrigaccedilatildeo) a comida tradicional (o papel dos
guardiatildees da cultura alimentar os cadernos de receita o aprendizado por
oralidade) a comida de antigamente e a comida de hoje a comida para visita e
a comida para os de casa os aspectos levados em consideraccedilatildeo na escolha dos
alimentos (tradiccedilatildeo praticidade custo e atraccedilatildeo pelo moderno)
Para analisar a comensalidade foi preciso identificar se ela estaacute
presente nos haacutebitos familiares no cotidiano e em datas especiais os locais onde
ela ocorre (cozinha copa aacuterea externa da casa sala de visita) e o tempo
aproximado de duraccedilatildeo das refeiccedilotildees
O espaccedilo social da alimentaccedilatildeo se refere ao local de preparo e de
consumo das refeiccedilotildees Importa saber a este respeito quem prepara as
refeiccedilotildees e quais satildeo os equipamentos existentes neste espaccedilo por exemplo a
presenccedila do fogatildeo a lenha e a gaacutes e a constacircncia de seus usos ou seja qual
deles eacute mais utilizado Tambeacutem a existecircncia e usos de equipamentos eleacutetricos
como geladeira freezer forno eleacutetrico forno de micro-ondas batedeira de bolo
etc Neste sentido analisar se nesse espaccedilo social ocorre a relaccedilatildeo entre
tradiccedilatildeo e modernidade na posse e uso dos equipamentos ou o predomiacutenio de
uma dessas caracteriacutesticas Buscou-se ainda analisar se permanecem os
costumes alimentares quanto aos locais destinados agrave comensalidade ou este
espaccedilo social estaacute passando por transformaccedilotildees
98
44 A entrevista semiestruturada
As entrevistas foram gravadas com a permissatildeo dos interlocutores da
pesquisa Apenas uma famiacutelia na comunidade de Ribeiratildeo em Presidente
Bernardes natildeo se sentiu agrave vontade com o gravador e realizei as anotaccedilotildees em
caderno de campo Os nomes dos entrevistados citados no decorrer deste
capiacutetulo satildeo pseudocircnimos que substituiacuteram os verdadeiros para preservar a
identificaccedilatildeo dos participantes conforme exigecircncia constante no Parecer
Consubstanciado do Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa com Seres Humanos (CEP)
da Universidade Federal de Viccedilosa
O estilo da narrativa para apresentaccedilatildeo dos resultados da pesquisa
segue o direcionamento proposto na perspectiva etnograacutefica discutida por
Peirano (1995 e 2008) Marcus e Cushman (1998) e Uriarte (2012) Para Marcus
e Cushman (1998 p 175-176) a narrativa etnograacutefica do seacuteculo XX tem se
baseado no que chamam de realismo etnograacutefico sendo ldquoun modo de escritura
que busca representar la realidade de todo un mundo o de uma forma de vidardquo
Outras caracteriacutesticas da narrativa etnograacutefica realista segundo os autores satildeo
Una cuidadosa atencioacuten hacia nos detalles y demonstraciones redundantes de
que el escritor compartioacute y experimentoacute ese mundordquo
Para Peirano (2008 p 6) ldquoo trabalho de campo se faz pelo diaacutelogo vivo
e depois a escrita etnograacutefica pretende comunicar ao leitor (e convencecirc-lo) de
sua experiecircncia e sua interpretaccedilatildeordquo
45 A imersatildeo em campo a chegada e a travessia
Se a accedilatildeo de comer eacute algo tatildeo iacutentimo ao ser humano conforme reflete
Mintz (2001) analisar os haacutebitos e as praacuteticas alimentares de pessoas e grupos
se torna uma atividade de grande responsabilidade Trabalhar os dados de forma
analiacutetica e criacutetica agrave luz das abordagens teoacutericas e portanto longe do julgamento
do senso comum eacute o papel do pesquisador Foi com essa percepccedilatildeo que
enveredei no campo pensando a pesquisa empiacuterica como descobertas a serem
feitas pelo caminho naquele sentido absorvido quando li Grande Sertatildeo
Veredas de Guimaratildees Rosa pela primeira vez
99
O real natildeo estaacute na saiacuteda nem na chegada ele se dispotildee para a gente eacute no meio da travessia () Assaz o senhor sabe a gente quer passar um rio a nado e passa mas vai dar na outra banda eacute num ponto muito mais em baixo bem diverso do que em primeiro se pensou (ROSA 2001 p 51 e 80)
Fazer pesquisa de campo eacute algo semelhante Faz-se um planejamento
mas durante o percurso eacute preciso lidar por um lado com os ldquoimponderaacuteveis da
pesquisardquo29 e por outro com a expectativa das descobertas a serem feitas na
travessia A praacutetica empiacuterica eacute tambeacutem trabalho analiacutetico e reflexivo mas eacute
sobretudo ndash concordando com a ideia de Peirano (1995 p 57) ndash ldquotrabalho
artesanal microscoacutepico detalhista e que traduz como poucas outras o
reconhecimento do aspecto temporal das explicaccedilotildeesrdquo Ela argumenta ainda que
a conduccedilatildeo de uma pesquisa de campo ldquodepende entre outras coisas da
biografia do pesquisador das opccedilotildees teoacutericas do contexto sociohistoacuterico e das
imprevisiacuteveis situaccedilotildees que se configuram no dia-a-dia no proacuteprio local de
pesquisa entre pesquisador e pesquisadosrdquo (p 22)
Para esta pesquisa as questotildees em torno dos haacutebitos praacuteticas
alimentares e sociabilidades das famiacutelias rurais foram importantes para a
investigaccedilatildeo cientiacutefica pretendida Assim foi necessaacuteria a compreensatildeo por
parte dos interlocutores sobre a importacircncia de sua participaccedilatildeo Coube a eles
apoacutes o entendimento da pesquisa abrir a sua intimidade alimentar cotidiana Fui
convidada pelos entrevistados ndash mulheres na maior parte ndash a ldquoadentrar e puxar
assentordquo na cozinha Tambeacutem me convidaram para conhecer o quintal colher
verdura na horta e inclusive a participar das refeiccedilotildees em todas as casas
visitadas fosse almoccedilo fosse ldquomerendardquo ou mesmo apanhar frutas diretamente
do peacute durante conversas ocorridas no pomar
Assim percorri regiotildees rurais de Piranga Porto Firme e Presidente
Bernardes entre os meses de fevereiro a junho de 2015 fazendo descobertas
aprendendo apreendendo dialogando analisando questionando e refletindo
sobre os sentidos da comida e do comer no espaccedilo rural contemporacircneo das
famiacutelias pesquisadas
29 Termo que foi utilizado primeiramente por Bronislaw Malinowski (1976) ao falar sobre os ldquoimponderaacuteveis
da vida realrdquo para se referir a rotina do trabalho diaacuterio do nativo os detalhes de seus cuidados corporais o modo como prepara a comida e come as simpatias ou aversotildees e etc Utilizo o termo semelhante para pensar os eventos inesperados da pesquisa empirica
100
Naquelas famiacutelias em que fui apresentada diretamente pelos teacutecnicos da
Emater e a quem acompanhei em algumas de suas visitas agraves comunidades
atendidas no mecircs de janeiro de 2015 e mesmo naquelas onde minha preacutevia
apresentaccedilatildeo foi feita via telefone a chegada para a pesquisa foi mais simples
Entretanto naquelas em que houve indicaccedilatildeo por parte dos proacuteprios
entrevistados o processo foi mais lento mas natildeo difiacutecil ou impeditivo Apenas
levei mais tempo para organizar a visita Em um dia ia ao local me apresentava
explicava sobre a pesquisa que havia sido realizada com seus conhecidos na
mesma comunidade respondia agraves perguntas e curiosidades e por fim
agendava um retorno Considero como mais provaacutevel eacute que tenham aceitado
participar da pesquisa em funccedilatildeo de eu ter citado o mesmo trabalho feito com
pessoas conhecidas Natildeo sei dizer se foram buscar confirmaccedilatildeo sobre isso A
teacutecnica da Emater de Piranga que estava se aposentando se propocircs a percorrer
comigo algumas comunidades em alguns dias da segunda quinzena de janeiro
de 2015 me mostrando os caminhos e apresentando a algumas pessoas
Em geral as pessoas foram atenciosas Algumas se mostraram mais
interessadas do que outras e por isso o envolvimento foi maior Poreacutem todas
deram contribuiccedilotildees muito importantes Houve dois casos em que precisei
retornar em outro dia Em um dos casos porque houve falecimento de um
parente na manhatilde do dia da entrevista e natildeo tiveram como me avisar antes Na
outra situaccedilatildeo o casal de aposentados precisou ir agrave cidade resolver problemas
pessoais e pediu para marcarmos um outro dia Foi necessaacuterio tambeacutem o
adiamento da pesquisa em dias de chuva devido agraves condiccedilotildees ruins das
estradas
Optei por dividir o horaacuterio das entrevistas em manhatilde e tarde para
conviver com dois momentos do cotidiano das famiacutelias respeitando os horaacuterios
delas Assim consegui realizar 15 entrevistas na parte da manhatilde e as outras 25
na parte da tarde O horaacuterio de chegada pela manhatilde era entre 800 e 830
tambeacutem em acordo com as famiacutelias Na parte da tarde o horaacuterio era entre 1330
e 1400 Almocei porque era convidada nas casas onde iniciava o trabalho na
parte da manhatilde o que me permitia acompanhar o processo de elaboraccedilatildeo do
almoccedilo as conversas no geral aconteciam na cozinha mas parte delas ocorria
tambeacutem nas hortas e nos quintais
101
A partir do proacuteximo item passo a apresentar os dados obtidos em campo
baseados em informaccedilotildees fornecidas pelos interlocutores da pesquisa e tambeacutem
nas observaccedilotildees que fiz Os itens e subitens estatildeo relacionados agraves variaacuteveis
elencadas no projeto de pesquisa que compuseram o roteiro de entrevista
No item 46 apresento dados de caraacuteter descritivo-analiacutetico sobre a
cultura e os modos de vida do grupo pesquisado as atividades cotidianas de
trabalho as impressotildees empiacutericas e sua relativizaccedilatildeo agrave luz dos dados do IBGE
(2010) sobre uma regiatildeo que aos olhos dos entrevistados parece estar
envelhecendo Apresento e discuto tambeacutem outras percepccedilotildees culturais do
cotidiano Em todo o item algumas reflexotildees sobre as praacuteticas alimentares satildeo
sinalizadas ou apontadas No entanto as discussotildees mais especiacuteficas sobre as
praacuteticas alimentares satildeo feitas no capiacutetulo 5
46 Descobrindo a cultura local dos entrevistados
461 Perfil das famiacutelias
Na regiatildeo pesquisada predomina a agricultura de base familiar que eacute
aquela em que a propriedade a gestatildeo e o trabalho estatildeo ligados agrave famiacutelia no
sentido dado por Gasson e Errington (2003 p 20) O marido a esposa e tambeacutem
os filhos adolescentes quando chegam da escola satildeo os que trabalham na
propriedade Entre os casais idosos as atividades de produccedilatildeo satildeo muito
reduzidas por dificuldades fiacutesicas em executar alguns trabalhos Em alguns siacutetios
haacute filhos casados ou solteiros se responsabilizando pelas atividades dos pais
As aacutereas rurais dos trecircs municiacutepios se assemelham tanto ao que se
relaciona agraves atividades agriacutecolas quanto agrave cultura e haacutebitos cotidianos inclusive
os alimentares A maior parte das famiacutelias (899) mora em pequenos siacutetios que
se formaram por divisatildeo de heranccedila de propriedades maiores O restante
adquiriu por meio de compra Em todos os casos de heranccedila ela proveacutem dos
pais do marido Essas informaccedilotildees obtidas em campo coincidem com o que eacute
apresentado por Maria Joseacute Carneiro (2001 e 1998b) Abramovay et al (1998)
Woortmann (1995) Spanevello e Lago (2010) Paulilo (2003) Mendonccedila et al
(2013) e Moura (1978) ao discutirem o processo sucessoacuterio do meio rural
Apontam que historicamente a heranccedila eacute dada ao filho de sexo masculino que
102
assume a continuaccedilatildeo das atividades ldquoenquanto as mulheres se tornam
agricultoras por casamentordquo (Paulilo 2003 p 188) Situaccedilatildeo semelhante foi
verificada na minha pesquisa As mulheres disseram natildeo ter herdado terra dos
pais agricultores sendo possuidoras de terra a partir do momento em que se
casaram e passaram a partilhar a terra herdada pelo marido
Outros estudos como os de Woortmann (1995) Carneiro (1998b) e
Camarano e Abramovay (1998) tecircm sinalizado uma mudanccedila nos uacuteltimos anos
Uma das razotildees estaacute associada agraves transformaccedilotildees de perspectivas da juventude
rural em relaccedilatildeo ao campo Segundo os autores muitos jovens natildeo demonstram
mais tanto interesse em permanecer no campo e assumir a incumbecircncia total
pela manutenccedilatildeo da terra que pertenceu aos pais Em minha pesquisa natildeo tive
como objetivo discutir a questatildeo sucessoacuteria mas as famiacutelias cujos filhos
moravam nos siacutetios dos pais (666) eram sobretudo aquelas compostas por
casal de idosos e aposentados Nestes casos os filhos natildeo moravam
necessariamente na mesma casa Quando se tratava de filhos casados eles
moravam em casas separadas
A origem rural eacute predominante no grupo pesquisado sendo a realidade
de 95 das famiacutelias entrevistadas As famiacutelias satildeo pequenas sendo 36 pessoas
o tamanho meacutedio incluindo aquelas de casais aposentados e natildeo aposentados
que tecircm os filhos morando em casa Predominam aquelas compostas por
aposentados que moram sozinhos existindo no entanto algumas cujos filhos
solteiros moram com os pais Em alguns dos casos um dos filhos casados mora
no siacutetio mas em casa separada dos pais
As famiacutelias compostas por casais de aposentados correspondem a 24
delas (60) Desse total 11 famiacutelias estatildeo em Presidente Bernardes 08 em
Piranga e 05 em Porto Firme O municiacutepio de Presidente Bernardes representa
aquele com maior percentual de aposentados 80 Em Piranga eles
representam 6875 e em Porto Firme 50
As outras 16 famiacutelias satildeo compostas por casais cuja faixa etaacuteria varia de
30 a 50 anos Nestas famiacutelias os filhos a partir dos 16 anos tecircm saiacutedo para
estudar em outras cidades proacuteximas como Viccedilosa Ouro Preto ou Ouro Branco
onde possam cursar o niacutevel superior Essa foi a realidade encontrada em sete
delas Isso tem ocorrido por interesse tambeacutem dos pais que desejam vecirc-los
formados em um curso superior
103
Em relaccedilatildeo agrave escolaridade a maior parte (646) das pessoas com
idade acima de 60 anos tinham o ensino fundamental incompleto 187
concluiacuteram o ensino fundamental 104 disseram ter sido semialfabetizado ou
seja sabem assinar o nome e ler e escrever muito pouco30 e 63 possuem o
ensino meacutedio completo Entre o puacuteblico na faixa etaacuteria de 30 a 50 anos
predomina o ensino meacutedio completo (532) 373 natildeo completou o ensino
meacutedio e 95 possuem apenas o ensino fundamental completo As mulheres
representam o maior percentual dentre o puacuteblico que concluiu o ensino meacutedio
Os filhos que moram na casa dos pais com idade inferior a 30 anos estatildeo
estudando a maior parte deles crianccedilas e adolescentes
Embora o tema desse subitem natildeo seja objetivo analiacutetico deste trabalho
considerei interessante inserir uma breve discussatildeo em funccedilatildeo de que durante
as entrevistas muitos depoimentos destacaram a saiacuteda dos jovens e a
permanecircncia dos casais de aposentados das regiotildees em que vivem A busca
pela continuidade dos estudos tem determinado a saiacuteda dos jovens Sem
disponibilidade de ensino superior nos municiacutepios em que moram os filhos tecircm
saiacutedo para outras regiotildees proacuteximas e contam com o estimulo dos pais para isso
Os pais alegam que natildeo tiveram oportunidade de fazer um curso superior ou
mesmo teacutecnico e que desejam isso para os filhos porque percebem que a
realidade de trabalho no campo atualmente estaacute mais difiacutecil do que em tempos
atraacutes Relataram que seus pais conseguiram criar famiacutelias grandes com maior
facilidade do que hoje obtendo renda da agricultura Realidade que segundo os
entrevistados estaacute cada vez mais distante na contemporaneidade
Para Zefa moradora de Mato Dentro Presidente Bernardes uma das
explicaccedilotildees para o baixo nuacutemero de pessoas mais novas morando na aacuterea rural
da regiatildeo decorre da divisatildeo das propriedades chegando ao ponto de natildeo ter
mais como dividi-las entre os herdeiros e explica ldquoEsse siacutetio aqui jaacute foi dividido
quando meu sogro deixou aqui para noacutes Se a gente fosse dividir para nossos
nove filhos natildeo ir dar nada entatildeo os filhos foram pra cidade achar um jeito
melhor porque na roccedila eacute tudo mais difiacutecil mesmordquo
Muitos pais ao falarem dos seus filhos jovens destacam que eles se
sentem atraiacutedos por bens e tecnologias que natildeo estatildeo disponiacuteveis no campo o
30 Percebi o constrangimento de alguns quando eu lhes explicava sobre a necessidade de assinatura dos
entrevistados ao ldquoTermo de Consentimento Livre e Esclarecidordquo do Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa
104
mais citado foi o acesso agrave internet O filho de Lola e Marcos que tem 10 anos de
idade possui um celular que soacute utiliza quando vai agrave cidade Consegue acessar
a rede por laacute com o uso da senha que um amigo disponibilizou Os filhos de
Carmem quando visitam os pais reclamam de natildeo ter como acessar a internet
no siacutetio Por outro lado os depoimentos apontaram que os filhos que moram fora
dos siacutetios natildeo tem a mesma reclamaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave comida ao contraacuterio
sentem o desejo de comer a comida tradicional que consumiam quando
moravam no local
Quando os filhos vecircm eles querem comer comida daqui eles falam que eacute ldquocomida de matildeerdquo estatildeo enjoados do que comem na cidade eles falam isso porque eacute com essa comida daqui que foram acostumados comida deles laacute na cidade tem muito tempero artificial igual esse tal de sazon (Doca moradora de Boa Vista Piranga MG 2015)
Haacute no comportamento dos filhos jovens das famiacutelias que entrevistei um
conflito de ordem cultural Desejam manter identidades culturais locais sentem
necessidade da comida da matildee da comida tradicional e de sempre que possiacutevel
visitar os pais como eacute o caso das filhas de Nilsa e Jonas de Satildeo Domingos
Porto Firme que estudam em Viccedilosa Quase todos os finais de semana visitam
os pais Por outro lado sentem falta do acesso a tecnologias e outras opccedilotildees
oferecidas a eles na cidade
Mas o outro lado tambeacutem existe Haacute o exemplo dos filhos que optam por
permanecer junto dos pais por mais tempo embora eu tenha encontrado apenas
dois casos nas famiacutelias entrevistadas Um exemplo eacute o da filha mais nova de
Nanaacute e Custoacutedio moradores de Xopotoacute em Presidente Bernardes Ela continua
morando com os pais trabalha na cidade de Presidente Bernardes e o uso de
uma moto permite que vaacute almoccedilar em casa Ela tambeacutem estuda cursa Letras na
modalidade agrave distacircncia Como natildeo possui internet em casa se dedica ao curso
nos finais de semana na casa da irmatilde casada que mora em um siacutetio localizado
muito proacuteximo agrave cidade e tem acesso agrave internet Seu objetivo depois que se
formar eacute permanecer na regiatildeo como professora na escola estadual do
municiacutepio Seu irmatildeo de 27 anos tambeacutem permanece no siacutetio Apoacutes concluir o
ensino meacutedio optou por trabalhar na agricultura junto com o pai e eacute ele quem
assumia essas atividades na ocasiatildeo da pesquisa
105
Martins (2012) discute que uma das grandes dificuldades da
modernidade para o ldquohomem comumrdquo eacute conseguir superar as irracionalidades e
as contradiccedilotildees impostas por ela que geram conflitos de ordem cultural ldquode
permanente proposiccedilatildeo da necessidade de optar entre isto e aquilo entre o novo
e fugaz de um lado e o costumeiro e tradicional de outrordquo (p 20)
A literatura sobre juventude rural como os trabalhos de Carneiro e
Castro (2007) Brumer (2007) Abramovay et al (1998) Durston (1994) entre
outros tem apontado os desafios para esse grupo etaacuterio em encontrar formas
de permanecer no campo desenvolvendo atividades de trabalho que lhes sejam
atrativas no mundo contemporacircneo Dentre os motivos que estimulam a saiacuteda e
a busca de trabalho em atividades fora da aacuterea rural estatildeo as dificuldades tanto
para conduzir quanto para obter retorno financeiramente favoraacutevel da atividade
rural e a pequena disponibilidade de terra familiar para empreender uma
atividade proacutepria e constituir famiacutelia
Como visto a literatura aponta para uma tendecircncia ao envelhecimento
e masculinizaccedilatildeo do campo Esta foi a minha percepccedilatildeo empiacuterica tambeacutem
Apesar disso eacute preciso considerar que a entrevista abrangendo 40 famiacutelias nos
trecircs municiacutepios natildeo permite classificar essa situaccedilatildeo como generalizada pois a
realidade que encontrei em relaccedilatildeo agrave faixa etaacuteria na regiatildeo pesquisada natildeo
coincide com a realidade apontada pelo IBGE (2010) em termos percentuais
como seraacute mostrado a seguir Isso poreacutem natildeo interfere nos objetivos da
pesquisa pois se trata de uma abordagem qualitativa
No grupo de 40 famiacutelias que pesquisei a populaccedilatildeo idosa eacute
predominante Encontrei um puacuteblico constituiacutedo por 24 famiacutelias cujos casais
tinham acima de 60 anos e 16 famiacutelias cujos casais tinham entre 30-50 anos
Como natildeo havia pessoas viuacutevas a proporccedilatildeo de homens e mulheres era a
mesma 50
No montante das 40 famiacutelias 20 delas possuem filhos morando na casa
dos pais Dentre eles 10 satildeo crianccedilas 08 satildeo jovens e 02 satildeo adultos Nenhum
filho casado mora com os pais Dentre os vinte filhos 08 satildeo mulheres e 12 satildeo
homens Assim o universo de pessoas que constituiacuteam as famiacutelias entrevistadas
foi de 100 pessoas o que representa apenas 048 do total da populaccedilatildeo rural
total da pesquisa do IBGE (2010) mostrado na Tabela 4
106
Assim o perfil etaacuterio do grupo pesquisado se constitui de 48 de
populaccedilatildeo idosa 34 de populaccedilatildeo adulta 8 de populaccedilatildeo jovem e 10 de
populaccedilatildeo infantil
Exceto para o perfil adulto os demais perfis etaacuterios no grupo que
pesquisei apresentam dissonacircncia em relaccedilatildeo ao perfil etaacuterio rural do IBGE
(2010) mostrado nas Tabelas 3 e 4 Pelo IBGE o perfil etaacuterio da regiatildeo se
constitui de 13 de populaccedilatildeo idosa 36 de populaccedilatildeo adulta 26 de
populaccedilatildeo jovem e 23 7 de populaccedilatildeo infantil (Tabela 5)
Tabela 5 ndash Comparativo entre perfil etaacuterio do IBGE (2010) e da pesquisa de campo 2015 ()
Fonte Populaccedilatildeo
rural 1-14 anos
() 15-29
anos () 30-59
anos ()
Acima de 60 anos
()
IBGE (2010) 20755 237 26 36 13 Pesquisa de campo (2015) 100 10 08 34 48
Fonte IBGE (2010) e Pesquisa de campo (2015)
A composiccedilatildeo de gecircnero das famiacutelias pesquisadas se aproxima muito
ao perfil dos dados do IBGE (2010) sendo o puacuteblico masculino um pouco maior
do que o puacuteblico feminino em ambos os casos (Tabela 6)
Tabela 6 ndash Comparativo da composiccedilatildeo de gecircnero do IBGE e da pesquisa de campo 2015
Fonte Populaccedilatildeo
rural Mulheres () Homens ()
IBGE (2010) 20755 481 517 Pesquisa de campo (2015) 100 48 52
Fonte IBGE (2010) e Pesquisa de campo (2015)
107
Em funccedilatildeo dos dados acima eacute possiacutevel afirmar a ocorrecircncia de um
processo de envelhecimento no grupo pesquisado natildeo sendo possiacutevel afirmar
semelhante situaccedilatildeo para toda a regiatildeo rural dos municiacutepios
462 A produccedilatildeo agriacutecola local
A produccedilatildeo agriacutecola eacute pequena mesmo naqueles siacutetios cuja produccedilatildeo
tambeacutem se destina agrave comercializaccedilatildeo A pequena produccedilatildeo de milho objetiva a
produccedilatildeo de fubaacute que possui importacircncia fundamental para a alimentaccedilatildeo das
famiacutelias e dos animais O fubaacute obtido do milho possibilita suprir as famiacutelias com
o produto que eacute utilizado na preparaccedilatildeo do angu alimento consumido
diariamente no almoccedilo e no jantar e na elaboraccedilatildeo da broa uma das principais
quitandas que eacute elaborada diariamente para abastecer a famiacutelia com a
ldquomerendardquo do cotidiano e para ter o que oferecer agraves visitas que chegarem de
surpresa
A cana tambeacutem atende agraves necessidades alimentares animais Apenas
em um siacutetio ela eacute usada para fabricaccedilatildeo de cachaccedila e em outros dois na
fabricaccedilatildeo de rapadura e melado
As principais atividades geradoras de renda das famiacutelias pesquisadas
satildeo leite carvatildeo cafeacute feijatildeo e cachaccedila As famiacutelias que produzem para
comercializaccedilatildeo praticam de duas a trecircs atividades ao mesmo tempo leite e
carvatildeo cafeacute e feijatildeo consorciados e carvatildeo leite e cafeacute Apenas uma famiacutelia
produz cachaccedila para comercializaccedilatildeo e tem nessa atividade uma importante
fonte geradora de renda Nos demais siacutetios cuja produccedilatildeo se destina apenas ao
autoconsumo a produccedilatildeo se baseia em milho feijatildeo leguminosas hortaliccedilas
frutas frangos e porcos caipiras
No Quadro 2 eacute apresentada a origem da renda das famiacutelias Entre
aquelas em que a aposentadoria eacute a uacutenica fonte de renda a produccedilatildeo agriacutecola
se destina apenas para o autoconsumo Naquelas em que a aposentadoria e a
atividade agriacutecola estatildeo presentes a produccedilatildeo eacute administrada por um filho seja
casado ou solteiro mas a maior parte eacute casada e mora proacuteximo aos pais Eacute
importante ressaltar que satildeo sempre os filhos homens que exercem tal funccedilatildeo
Para os pais a presenccedila dos filhos por perto assumindo os trabalhos eacute fator
positivo pois leva-os a se sentir mais tranquilos
108
Quadro 2 ndash Fonte de renda das famiacutelias pesquisadas 2015
Fonte Nordm de famiacutelias
Apenas aposentadoria 14 350
Aposentadoria e atividade agropecuaacuteria no siacutetio 10 250
Atividade agropecuaacuteria no siacutetio e outra 09 225
Atividade agropecuaacuteria 07 175
Total de famiacutelias 40 1000
Fonte Pesquisa de campo 2015
Nas famiacutelias em que a renda eacute obtida da atividade agriacutecola e de outra
fonte a maior parte desta uacuteltima eacute gerada pelo trabalho das mulheres (889)
envolvidas nas seguintes atividades serventes e merendeiras nas escolas rurais
(Marina Ivone e Juliana)31 servente na escola da cidade (Solange) diarista em
casas proacuteximas (Arminda) Haacute tambeacutem aquelas mulheres que utilizam atividades
em casa como eacute o caso de Nilsa Marcelina e Ivone que produzem quitandas e
salgados para vender no entorno ou na cidade proacutexima e Nanaacute que trabalha
como costureira32 Na outra situaccedilatildeo trata-se de uma famiacutelia que possui um
pequeno comeacutercio na comunidade fora do siacutetio onde vive
463 Atividades cotidianas de trabalho nos siacutetios
A maior parte de meus interlocutores foi composta por mulheres e
mesmo quando os homens estavam presentes elas eram as mais ativas no
diaacutelogo Assim muitas das informaccedilotildees sobre o trabalho do cotidiano estatildeo
atreladas agrave realidade vivenciada por elas
Naquelas famiacutelias cuja renda eacute apenas a atividade agropecuaacuteria o
trabalho envolve tambeacutem a mulher e os filhos que estejam morando com os pais
As mulheres se envolvem em todas as atividades seja na lavoura de feijatildeo na
colheita de cafeacute na limpeza do suiacuteno abatido como eacute o caso de Lola (41 anos
31 Marina Ivone Marcelina e Nilsa satildeo moradoras de Porto Firme Arminda e Juliana de Piranga Nanaacute e
Solange de Presidente Bernardes 32 Em duas famiacutelias haacute filhas solteiras (uma em cada famiacutelia) que trabalham fora do siacutetio mas informaram
que suas rendas natildeo contribuem necessariamente para complementar a dos pais
109
moradora de Xopotoacute em Presidente Bernardes) ou na atividade leiteira e do
carvatildeo como eacute o caso de Neiva (39 anos moradora de Posses em Porto Firme)
que fez questatildeo de mostrar a suas unhas ainda manchadas do trabalho na
carvoaria no dia anterior
Mesmo as mulheres que trabalham fora dos siacutetios satildeo unacircnimes em
afirmar que continuam sendo agricultoras jaacute que continuam a exercer a funccedilatildeo
de cuidados da casa ndash incluindo aqueles referentes agrave alimentaccedilatildeo ndash assim como
as atividades agriacutecolas no quintal principalmente nos cuidados com a horta
ldquoSou diarista mas sou agricultora tambeacutemeu cuido da horta da casa mas
quando precisa de fazer algum trabalho na roccedila eu vou mas natildeo vou muitordquo
informou Arminda moradora de Mestre Campos em Piranga
Ivone (38 anos Posses ndash Porto Firme) se envolve muito com todas as
atividades do siacutetio As manhatildes satildeo passadas na escola da comunidade onde eacute
cantineira mas ao chegar em casa no iniacutecio da tarde se junta ao marido para o
trabalho na atividade leiteira na colheita na lavoura e tambeacutem na atividade da
carvoaria Costuma ainda receber encomendas de quitandas vindas da cidade
de Porto Firme e de acordo com o tempo disponiacutevel atende aos pedidos
Observei pelos depoimentos que o trabalho com a horta natildeo eacute visto
como uma atividade agriacutecola Ela eacute percebida como extensatildeo do quintal e da
cozinha e portanto estaacute atrelada aos elementos da casa Trabalhar na roccedila
para eles significa o serviccedilo de capina de roccedilar o milho o feijatildeo colher cafeacute
etc Nos siacutetios em que estive as hortas em sua maioria tambeacutem eram muito
proacuteximas agrave cozinha
As atividades de trabalho cotidiano das mulheres satildeo muito
diversificadas como jaacute visto Envolvem os cuidados da casa do quintal da horta
a alimentaccedilatildeo da famiacutelia atividade leiteira de roccedilado e carvoaria e em alguns
casos trabalho externo ou natildeo ao siacutetio que lhes garantem renda proacutepria
Marcelina (34 anos Satildeo Domingos ndash Porto Firme) diz ter encontrado na
culinaacuteria remunerada motivos para a famiacutelia desistir de se mudar para a cidade
Haacute pouco mais de um ano sua famiacutelia esteve prestes a se mudar para Viccedilosa
em busca de trabalho assalariado O principal motivo eacute que Marcelina natildeo estava
satisfeita com suas atividades no campo As considerava exaustiva mas eram
necessaacuterias para aumentar a renda do casal que era obtida principalmente da
atividade leiteira mas que por ser dividida entre outras duas famiacutelias de irmatildeos
110
do marido ndash que tambeacutem moram na propriedade que pertenceu aos pais ndash
originava uma renda insuficiente para manter sua famiacutelia Uma iniciativa poreacutem
trouxe oportunidade de o casal repensar a saiacuteda do campo A irmatilde de Marcelina
que reside em Viccedilosa produz salgados que satildeo vendidos em bares da periferia
da cidade Marcelina por insistecircncia da irmatilde aprendeu as teacutecnicas de produccedilatildeo
de salgados e passou a produzi-los e vende-los para bares da zona rural de
Porto Firme e Guaraciaba Na ocasiatildeo da pesquisa um ano depois de iniciar
esse trabalho ela conseguiu comprar um freezer novo com a renda dos
salgados o que lhe permitiu aumentar a produccedilatildeo Os salgados satildeo vendidos
na forma congelada e a entrega eacute feita pelo marido de moto Ela compartilhou
essa experiecircncia como sendo muito satisfatoacuteria em sua vida e da famiacutelia Afirmou
que esse foi o principal motivo de eles terem permanecido no campo
Agora o trabalho eacute muito melhor natildeo preciso trabalhar debaixo do sol ardendo natildeo tenho mais dor nas costas trabalho em casa perto dos meninos posso dar o almoccedilo para eles e ver quando eles chegam da escola antes meu marido eacute que tinha que esquentar o almoccedilo e dar para eles (Marcelina moradora de Satildeo DomingosPorto Firme MG 2015)
A experiecircncia de Marcelina sinaliza uma situaccedilatildeo nova na regiatildeo
pesquisada que eacute a produccedilatildeo de alimentos congelados diretamente para
abastecer bares e vendas no meio rural Estaacute presente nesta realidade a
inserccedilatildeo de elementos modernos o trabalho desenvolvido por Marcelina que eacute
uma novidade tambeacutem para ela pois precisou aprender a preparar esse tipo de
alimento a partir de meacutetodos baacutesicos de congelamento de alimentos e a utilizar
o freezer Outro aspecto de modernizaccedilatildeo se refere ao uso da moto como veiacuteculo
para fazer a entrega dos produtos que por sua vez eacute realizada pelo marido
agricultor ao final do dia apoacutes finalizar os trabalhos do siacutetio Por outro lado a
proacutepria famiacutelia pouco consome os produtos congelados feitos por Marcelina por
natildeo fazer parte do haacutebito alimentar da famiacutelia que permanece com preferecircncia
pela comida tradicional ldquoEles natildeo pedem os salgadosnatildeo ligamagraves vezes eu
ateacute faccedilo uns pra gente experimentar e ver como ficourdquo pondera Marcelina
Percebi que essa famiacutelia estaacute buscando se adaptar agraves novas estruturas e
dinacircmicas da sociedade no sentido discutido por Carneiro (1998) incorporando
elementos modernos importantes para sua reproduccedilatildeo sem contudo
abandonar o meio rural e abrir matildeo de suas praacuteticas alimentares tradicionais
111
Chama a atenccedilatildeo tambeacutem nessa experiecircncia o fato de haver consumo no meio
rural para os salgados congelados pelo menos pelos frequentadores dos bares
ou ldquovendasrdquo onde Marcelina fornece seus produtos Isso aponta que se os
congelados natildeo fazem parte do consumo domeacutestico das famiacutelias haacute um espaccedilo
para seu consumo nos bares (ldquovendasrdquo) da regiatildeo
Vemos na situaccedilatildeo exposta aqui um modo de vida tradicional agregando
fragmentos do moderno sem contudo converter-se a ele como discutido por
Martins (2012) percepccedilatildeo semelhante a apresentada por Carneiro (1998)
Os estudos sobre perspectivas e possibilidades para se pensar os rumos
de um novo rural brasileiro ou um rural reinventado vecircm sendo desenvolvidos
por autores como Wanderley (2000 e 2010) e Carneiro (1998 2005 e 2012) em
seus grupos de pesquisa Uma das discussotildees diz respeito agraves novas estrateacutegias
e possibilidades no campo que natildeo sejam necessariamente agriacutecolas como eacute o
caso do turismo do artesanato da agroinduacutestria etc
O cotidiano das mulheres que trabalham fora do siacutetio envolve mais de
uma jornada de atividades que se inicia antes das 600 da manhatilde e segue ateacute agrave
noite apoacutes o jantar ser servido e a louccedila ser lavada No capiacutetulo anterior introduzi
a discussatildeo sobre a dupla jornada de trabalho das mulheres tambeacutem no meio
rural apresentando as pesquisas de Panzutti (2006) com agricultoras no interior
de Satildeo Paulo e de Zanetti assim como as pesquisas de Menasche (2007) com
agricultoras do Sul Ainda sobre essa temaacutetica no sul do paiacutes haacute os trabalhos de
pesquisa de Paulilo et al (2003) e de De Grandi (2003) Analisando os casos
das mulheres da regiatildeo que pesquisei as caracteriacutesticas satildeo muitos
semelhantes agraves descritas pelas pesquisadoras ao estudarem outras regiotildees
O trabalho domeacutestico da mulher eacute considerado infinitamente elaacutestico uma vez que ela transita por ambos os espaccedilos o da produccedilatildeo e o da reproduccedilatildeo o que demonstra que haacute uma flexibilizaccedilatildeo das atividades consideradas produtivas o que natildeo acontece com as atividades reprodutivas e domeacutesticas (DE GRANDI 2003 p 40)
Em outra pesquisa neste caso em uma regiatildeo accedilucareira do Nordeste
do Brasil Heredia et al (1984) discutem a divisatildeo de gecircnero existente na
execuccedilatildeo do trabalho da produccedilatildeo rural Apontam o roccedilado como o lugar do
homem e como o espaccedilo de trabalho da mulher a casa envolvendo a sua
organizaccedilatildeo e a elaboraccedilatildeo da comida para a famiacutelia Mas tambeacutem indicam que
apesar da divisatildeo existem etapas do roccedilado onde a mulher atua como na
112
semeadura e limpeza ao redor das mudas No entanto o contraacuterio natildeo ocorre
como apontam Heredia et al (1984) e Woortmann (1985) Em suas pesquisas
natildeo foi registrado participaccedilatildeo masculina nos trabalhos voltados agrave organizaccedilatildeo
da casa e da elaboraccedilatildeo das refeiccedilotildees destinadas agrave famiacutelia Tampouco em
minha pesquisa identifiquei essa situaccedilatildeo pois satildeo atividades exercidas
basicamente pelas mulheres
Poreacutem encontrei na minha pesquisa uma sinalizaccedilatildeo de que mudanccedilas
ainda que tiacutemidas estatildeo ocorrendo na regiatildeo analisada e isso implica
diretamente nas praacuteticas alimentares Em depoimentos de duas famiacutelias as
mulheres e os maridos que estavam presentes durante a conversa falaram da
participaccedilatildeo destes na preparaccedilatildeo do almoccedilo O primeiro caso eacute o de Marcelina
e Luiz Durante um tempo quando Marcelina trabalhava como diarista Luiz (39
anos Satildeo Domingos ndash Porto Firme) que tem seu trabalho principal na atividade
leiteira assumiu a funccedilatildeo de alimentar os filhos Marcelina deixava o almoccedilo
adiantado quase pronto mas cabia a ele concluir algumas coisas aquecer a
comida e servi-la aos filhos O outro caso eacute o de Marina e Rui Marina sai de
casa cedo com as filhas para a escola onde trabalha como cozinheira Ela deixa
jaacute pronto o arroz e a carne restando ao marido e ao filho jovem temperar o feijatildeo
e refogar a verdura
Esses exemplos apontam para a necessidade de adaptaccedilatildeo agrave realidade
das mulheres rurais que buscam espaccedilos de trabalho remunerado fora dos siacutetios
onde moram e que contam com o apoio dos maridos pelo menos nas
experiecircncias que conheci em campo Os conflitos que permeiam esses ajustes
familiares se por ventura existirem natildeo foram declarados pelos interlocutores
Ao contraacuterio tanto mulheres quanto homens ao falarem sobre o assunto
expressaram naturalidade diante da situaccedilatildeo Eacute importante considerar que a
renda proveniente do trabalho feminino eacute usada para cobrir despesas familiares
e agraves vezes ateacute para cobrir pequenos custos de produccedilatildeo agriacutecola como relata
Solange (30 anos Itapeva - Presidente Bernardes) que trabalha como servente
em uma escola ldquoEu ganho um salaacuterio miacutenimo mas com esse dinheiro eu compro
coisas para a casa para mim e para minha menina ah eacute uma preocupaccedilatildeo a
menos jaacute aconteceu de ter que comprar adubo e pagar veterinaacuterio que veio ver
as vacasrdquo
113
As famiacutelias formadas por aposentados que representam a maioria nesta
pesquisa tecircm uma realidade cotidiana de trabalho que eacute menos ativa Executam
menos atividades no siacutetio embora natildeo deixem de trabalhar Ao falarem de seu
cotidiano os homens disseram que quase natildeo executam mais atividades
agriacutecolas como capina e roccedilado Fazem uma ou outra atividade como cuidar do
paiol do galinheiro da horta preparar a comida para dar aos porcos Fazem isso
ldquopara natildeo ficar parado de tudordquo conforme justificou Neacutelio (morador de Satildeo
Domingos em Porto Firme) Os homens afirmaram se sentirem desconfortaacuteveis
quando natildeo realizam algum trabalho no dia apenas evitam serviccedilos que exijam
grande esforccedilo fiacutesico
No caso das mulheres mais velhas elas continuam se responsabilizando
pela elaboraccedilatildeo das refeiccedilotildees e de todas as outras atividades domeacutesticas aleacutem
do cuidado com a horta e o quintal o que faz com que seu dia seja mais
dinacircmico Aleacutem do preparo das refeiccedilotildees elaboram tambeacutem cotidianamente
quitandas como broas e rosquinhas o que seraacute visto no proacuteximo capiacutetulo
114
5 CULTURA E PRAacuteTICAS ALIMENTARES NO SISTEMA FAMILIAR RURAL RELACcedilOtildeES COM A COMIDA PERMANEcircNCIAS E MUDANCcedilAS
ldquoA arte da cozinha eacute a mais brasileira de nossas artes A mais expressiva do nosso caraacuteter e a mais impregnada do nosso passadordquo
(Gilberto Freyre 1968)
Os toacutepicos de discussatildeo deste capiacutetulo estatildeo subdivididos nos seguintes
temas A discussatildeo sobre a comida considerada como ldquoforterdquo e a classificaccedilatildeo
da comida como cultura e como fator de necessidade fisioloacutegica as mudanccedilas
em curso na nos haacutebitos alimentares o papel ocupado pelo milho e seus
derivados na culinaacuteria cotidiana das famiacutelias a comida do cotidiano a comida
dos dias de festa e as relaccedilotildees de comensalidade nesses contextos os
alimentos comprados e os alimentos cultivados nos siacutetios as permanecircncias de
consumo e as mudanccedilas com a inserccedilatildeo de novos alimentos a mescla cultural
alimentar do tradicional com o moderno as manifestaccedilotildees de perpetuaccedilatildeo
tradicional na elaboraccedilatildeo das quitandas e as suas funccedilotildees no passado e no
presente nas praacuteticas alimentares do grupo pesquisado e por fim a oralidade
no saber fazer e na transmissatildeo das receitas
51 Comida ldquoforterdquo e comida ldquofraca contradiccedilotildees mudanccedilas e permanecircn-cias
Percebi nos depoimentos dos interlocutores a existecircncia de
categorizaccedilatildeo da comida entre ldquoforterdquo e ldquofracardquo Comida forte eacute aquela que
ldquosustentardquo sendo capaz de permitir um intervalo maior entre as refeiccedilotildees e ao
mesmo tempo executar as atividades mais pesadas sem sentir ldquofraquezardquo fiacutesica
Para eles isso tem a ver com a loacutegica de trabalho ou seja o objetivo eacute natildeo
precisar interromper as atividades com frequecircncia para se alimentar Os horaacuterios
apontados para as refeiccedilotildees satildeo cafeacute da manhatilde entre 530 e 600 merenda33
entre 830 e 900 almoccedilo entre 1100 e 1130 merenda da tarde entre 1430 e
1500 e jantar entre 630 e 1900 Em algumas famiacutelias foi citada a ldquomerenda da
noiterdquo que eacute feita pouco antes de dormir
33 ldquoMerendardquo eacute o termo que todos usam para se referir ao que se come nos intervalos entre o cafeacute da
manhatilde e o almoccedilo e entre o almoccedilo e o jantar e agrave noite antes de dormir
115
As informaccedilotildees relativas aos horaacuterios satildeo semelhantes para todas as
famiacutelias inclusive os aposentados disseram manter o ritual de acordar cedo
ainda que suas atividades de trabalho natildeo sejam mais intensas como no
passado
A percepccedilatildeo sobre ldquocomida forterdquo das famiacutelias se assemelha agravequela
discutida por Brandatildeo (1981) em sua pesquisa com agricultores em Goiacircnia O
autor aponta que para o grupo que pesquisou a relaccedilatildeo fortefraco que
atribuiacuteam agrave comida estava diretamente ligada agrave capacidade desse alimento em
garantir ao agricultor maior tempo de trabalho sem sentir fome
Homem forte eacute o homem sadio e resistente para o trabalho A comida forte eacute a que ldquotem sustanccedilardquo cujos efeitos satildeo reconhecidos de dois modos a) na sua capacidade de manter o trabalhador ldquoalimentadordquo por mais tempo sem vontade de comer de novo b) no seu poder de produzir e de conservar mais energia para a atividade braccedilal Eacute neste sentido que a ldquocomida forterdquo equivale ao ldquoalimentordquo categoria de que se exclui a ldquocomida fracardquo (BRANDAcircO 1981 p 109-110)
Para meus interlocutores comida forte eacute principalmente aquela feita com
gordura suiacutena Essa observaccedilatildeo eacute feita em contraposiccedilatildeo ao oacuteleo vegetal que eacute
um produto considerado ldquofracordquo e portanto natildeo oferece a ldquosustanccedila34rdquo desejada
por eles
Para quem trabalha na roccedila a comida feita com oacuteleo natildeo daacute muita sustanccedila A pessoa fica com fome fica meio fraco logo depois A gordura de porco segura mais (Maria 66 anos moradora do Coacuterrego de Itapeva Presidente Bernardes MG 2015)
Aqui se fizer a comida com oacuteleo a barriga comeccedila a roncar rapidinho o oacuteleo eacute fraco natildeo sustenta a gordura de porco eacute forte no serviccedilo que a gente mexe assim que eacute pesado tem de comer comida que sustenta (Carlos 49 anos morador de Posses Porto Firme MG 2015)
Sahlins (2003) ao discutir sobre a categoria de ldquoforccedilardquo atribuiacuteda a
comida relata que algumas culturas destacando a norte americana tem na
carne essa representaccedilatildeo fazendo dela um alimento baacutesico em sua dieta Pela
mesma razatildeo eacute grande consumidora de bacon No puacuteblico da pesquisa a
representaccedilatildeo da gordura e da carne tem uma aproximaccedilatildeo ao que eacute discutido
pelo autor por se tratar de alimento de origem animal como responsaacutevel pela
ldquoforccedilardquo Poreacutem a relaccedilatildeo de forccedila para consumo de carne e de bacon na cultura
34 O termo eacute a forma popular dada a ldquosubstacircnciardquo A capacidade de um alimento dar forccedila energia e
sustentar a fome
116
norte americana estaacute atrelada agrave fator socioeconocircmico como siacutembolo de riqueza
Para o grupo pesquisado a forccedila estaacute atrelada agrave capacidade que a gordura de
porco tem de ampliar o tempo de saciedade mas tambeacutem pelo paladar que
confere agrave comida Neste uacuteltimo aspecto ou seja o da preferecircncia pelo sabor da
gordura se comparada ao oacuteleo Essa preferecircncia eacute tambeacutem justificada pela razatildeo
praacutetica do uso da gordura que eacute o de ser um alimento mais forte e o que melhor
daacute sustentaccedilatildeo
Zaluar (1979) observou a importacircncia da classificaccedilatildeo da comida em
estudo com comunidade de baixa renda na aacuterea urbana Descreve que o grupo
classifica alimentos que consideram como ldquocomidasrdquo porque conferem
saciedade (carne gordura de porco arroz feijatildeo e macarratildeo) e alimentos que
apenas ldquoenganam a fomerdquo (saladas frutas verduras peixe etc) servindo para
o grupo apenas como complemento Nesta classificaccedilatildeo haacute uma diferenccedila do
conceito de comida que se difere de alimento atribuiacuteda por DaMatta (1987)
Tanto no caso do grupo pesquisado por Zaluar na aacuterea urbana quanto no grupo
que pesquisei em aacuterea rural a razatildeo praacutetica para classificar alimentos como
forte estaacute associada agrave necessidade de garantir condiccedilotildees fisioloacutegicas no tempo
dedicado ao trabalho pesado
No grupo que pesquisei visando facilitar o consumo da gordura mais da
metade das famiacutelias cria suiacutenos para essa finalidade Engordam um animal de
cada vez Em apenas uma dessas famiacutelias cria-se um nuacutemero maior para
comercializaccedilatildeo do animal
Haacute um ditado que diz que ldquodo porco soacute natildeo se aproveita o gritordquo pois eacute
possiacutevel usar tambeacutem o intestino para envolver as massas de linguiccedilas e
chouriccedilos o peacute o rabo a orelha e o focinho para feijoada a pele para fazer
torresmo Natildeo eacute difiacutecil entender porque a criaccedilatildeo dos suiacutenos caipiras demonstrou
ser tatildeo importante no grupo pesquisado A alimentaccedilatildeo dos porcos pode ser
produzida nos proacuteprios siacutetios como o fubaacute a cana de accediluacutecar a silagem de
mandioca e ateacute aboacuteboras e batatas doces cozidas misturadas ao fubaacute Nos siacutetios
que visitei o mais usado era o fubaacute
Segundo os agricultores que ldquoengordam o capadordquo35 o animal eacute abatido
sempre que a gordura acaba mas mata-se tambeacutem em veacutespera de festas como
35 Termo que escutei com frequecircncia durante a pesquisa Trata-se do porco castrado destinado agrave engorda
117
natal e ano novo e ainda em casamentos e demais festividades que acontecem
na aacuterea rural Em 2012 na festa de bodas de ouro dos sogros de Lola moradores
da comunidade de Xopotoacute em Presidente Bernardes parte da criaccedilatildeo existente
no siacutetio foi abatida Segundo Lola ldquomatamos dois capados de 17 arrobas e mais
de 15 galinhas caipirasa carne de boi noacutes compramosah e muita linguiccedila
tambeacutemrdquo Da mesma forma Eliana (69 anos moradora de Itapeva em
Presidente Bernardes) compartilhou que para a sua festa de bodas de ouro com
Saturnino ocorrida em junho de 2014 no quintal da casa a famiacutelia matou dois
suiacutenos e aproximadamente 10 frangos caipiras
No cotidiano das famiacutelias engordar um porco no quintal tem a funccedilatildeo
tanto de obter a gordura (banha) como a carne que na maioria das casas eacute
conservada na gordura O que mais ocorre eacute a carne acabar primeiro do que a
gordura Se em tempos passados usar a gordura para conservar as carnes era
uma necessidade jaacute que natildeo havia geladeira atualmente esse haacutebito permanece
por razotildees culturais e tambeacutem pelo sabor diferenciado prevalecendo assim seu
consumo como apontado no depoimento de Laeacutercio 68 anos
Mesmo tendo geladeira a gente ainda conserva a carne na gordura de porco tempera a carne hoje amanhatilde a gente cozinha e frita um pouco quando ela estaacute coradinha a gente potildee na gordura e ela pode ficar ateacute 3 4 meses na gordura natildeo estraga natildeo Uma parte a gente ateacute potildee na geladeira e congela mas natildeo eacute gostoso igual natildeo Muda muito com o frango eacute a mesma coisa Se a gente arruma ele para comer logo depois que mata o sabor eacute um se congela quando vai comer depois eacute outro gosto Natildeo fica bom (Laeacutercio morador de Itapeva em Presidente Bernardes MG 2015)
Tambeacutem na aacuterea urbana o consumo da gordura de porco tem suas
ramificaccedilotildees Natildeo raro eacute possiacutevel verificar em lojas especializadas em produtos
artesanais em Minas Gerais principalmente em lanchonetes de beira de estrada
e pequenos armazeacutens a venda do chamado ldquoporco na latardquo
O sabor conferido agrave comida foi constantemente relacionado com a
gordura suiacutena Os interlocutores deixaram transparecer em suas falas que a
apreciaccedilatildeo do sabor da comida refogada na gordura tem suas raiacutezes no gosto
herdado de geraccedilotildees passadas Cresceram comendo dessa forma Todos
afirmaram preferir o sabor da comida preparada na gordura agrave que eacute feita no oacuteleo
principalmente a verdura o feijatildeo e o arroz como declara Afonso (79 anos
morador de Ribeiratildeo em Presidente Bernardes) ldquoPara mim a verdura tem que
ser feita na gorduraa couve na gordura tem outro saborrdquo e Gilberto (75 anos
118
morador de Manja em Piranga) ldquoA comida feita na gordura de porco eacute mais
saborosa a gente jaacute acostumou com o sabor a couve feita no oacuteleo fica lisa na
gordura ela fica suculentardquo
A gordura eacute usada principalmente para refogar36 hortaliccedilas legumes e
feijatildeo Todos as famiacutelias apreciam a couve refogada na gorduraldquoDeus o livre
de comer uma verdura feita com oacuteleo natildeo fica gostoso do mesmo jeitordquo
Verdura eacute o termo utilizado pelos interlocutores para todos os produtos derivados
da horta inclusive os legumes Encontramos em Frieiro (1982) a explicaccedilatildeo
sobre essa heranccedila cultural
Eacute de recente data o uso de gorduras vegetais alimentiacutecias Antes natildeo era assim a gordura geralmente usada era a de toucinho a banha de porco Os dois alimentos de maior importacircncia para a gente mineira sempre foram o feijatildeo e o toucinho Feijatildeo eacute que escora a casa diz um ditado popular Sim e o toucinho daacute substacircncia ao feijatildeo podia agregar-se Sem a banha que o tempera seria comestiacutevel ldquoo feijatildeo nosso de cada diardquo A comida tradicional dos mineiros nada em banha de porco Dos assados e frituras de todos os guisados e ensopados das sopas dos molhos e farofas pinga a gordura em que satildeo preparados (FRIEIRO 1982 p 156)
Garcia (2013) discute a relaccedilatildeo de comportamentos culturais associados
agrave alimentaccedilatildeo afirmando que a heranccedila do gosto por certo tipo de comida e pela
forma de preparaccedilatildeo eacute responsaacutevel na maioria das vezes pela resistecircncia em
adotar praacuteticas novas e experimentar comidas diferentes e aceitar novos sabores
e texturas ao paladar tradicional Uma das razotildees para a couve permanecer
como verdura predileta do cotidiano natildeo eacute apenas por ser a hortaliccedila mais
resistente da horta mas principalmente pela sua preparaccedilatildeo combinada com a
gordura de porco Essa forma de preparaccedilatildeo compreende aquele ldquosistema
culinaacuteriordquo tratado por Poulain (2013 e 2014) e Fischler (1979 e 1995) que
envolvem regras determinantes (crenccedilas valores siacutembolos representaccedilotildees e
haacutebitos) na escolha preparo e consumo de alguns alimentos O que Sahlins
(2003) chama de ldquorazotildees culturaisrdquo que envolvem o haacutebito alimentar Essa
discussatildeo de sistema culinaacuterio se aplica tambeacutem a outras praacuteticas tradicionais
que fazem parte do grupo pesquisado como a tradiccedilatildeo de fazer as proacuteprias
quitandas mais consumidas
36 Refogar segundo Cacircmara Cascudo (2004 p 522) significa ldquoferver na gordurardquo
119
A estrateacutegia de quem natildeo tem essa criaccedilatildeo no siacutetio eacute comprar a gordura
produzida pelos vizinhos ou mesmo no accedilougue da cidade Eacute comum ocorrer o
abate em parceria familiar ou com a participaccedilatildeo de vizinhos proacuteximos com a
distribuiccedilatildeo entre eles das partes do animal mesmo porque para o abate satildeo
necessaacuterias pelo menos trecircs pessoas segundo a explicaccedilatildeo de Lola O sistema
de partilha no abate de suiacutenos eacute tradicional em muitas aacutereas rurais brasileiras e
uma heranccedila dos portugueses Moura (2013) em seu interessante livro sobre a
tradiccedilatildeo dos embutidos e da produccedilatildeo de suiacuteno caipira na regiatildeo de Traacutes-os-
Montes e Auto Douro em Portugal mostra que os procedimentos de criaccedilatildeo
matanccedila e distribuiccedilatildeo das carnes se assemelham muito agraves que ocorrem no meio
rural brasileiro Tambeacutem Cacircndido (1982) relata em sua pesquisa como se dava
o processo relativo agrave distribuiccedilatildeo da carne suiacutena e de caccedila entre os caipiras
paulistas
Segundo os velhos desde sempre eacute haacutebito ndash quase se diria ndash instituiccedilatildeo a oferta daqueles tipos de carne aos vizinhos imediatos que moram agrave vista ou constituem uma unidade vicinal Quando se mata um porco ou uma caccedila envia-se um pedaccedilo a cada vizinho () Do ponto de vista alimentar essa praacutetica funciona como uma forma de regularizaccedilatildeo do abastecimento caacuterneo jaacute que cada um mata um porco de tempos em tempos (CAcircNDIDO 1982 p 163-164)
Compreendo que este contexto de sociabilidade entre vizinhos eou
familiares que envolve tambeacutem doar ou receber uma parte do animal se
assemelha agrave relaccedilatildeo ldquodaacutediva-trocardquo discutida por Mauss (2003) como forma de
manter a sociabilidade os laccedilos e a dependecircncia reciacuteproca entre os grupos No
caso de vizinhos que ajudam na atividade quando aquele que recebeu vier a
matar o seu animal a reciprocidade ocorreraacute ou seja ele doaraacute ao outro vizinho
parte do animal O que tambeacutem se aproxima do que Cacircndido (1982) discute
sobre a informalidade e obrigaccedilatildeo moral que compotildee as relaccedilotildees de mutiratildeo no
meio rural
Mas haacute nesse sistema algo mais do que simplesmente uma troca de
favor como no entendimento de Mauss (2003) de que a daacutediva natildeo eacute meramente
uma retribuiccedilatildeo formal ou proveniente de um contrato verbal Ela se constitui em
uma relaccedilatildeo que envolve respeito e um tipo de acordo que eacute simboacutelico tanto
assim que a parte da carne a ser doada eacute escolhida pelo doador sem nenhum
acordo anterior
120
Apesar do sabor da gordura de porco ser preferido ao oacuteleo em todas as
famiacutelias em algumas esse consumo tem sido reduzido como nas famiacutelias de
Zefa e Armando e de Maria e Laeacutercio Nos dois casos haacute restriccedilotildees alimentares
para os filhos que satildeo transplantados renais37 Em funccedilatildeo disso os pais jaacute
aposentados optaram pela reduccedilatildeo do consumo de gordura de porco e outros
alimentos gordurosos Disseram que por um tempo tentaram acompanhar
totalmente a dieta dos filhos mas natildeo conseguiram sucesso por sentirem falta
tanto da gordura quanto da carne suiacutena Assim a comida tem sido preparada de
forma separada Como esse preparo separado eacute mais trabalhoso Zefa 67 anos
e o marido 75 anos continuam no esforccedilo de adaptaccedilatildeo ao consumo do oacuteleo
demonstrando solidariedade ao filho 42 anos cuja abstinecircncia alimentar tem
sido difiacutecil
Os outros dois casos de restriccedilatildeo agrave gordura de porco satildeo de mulheres
que demonstraram preocupaccedilatildeo com a sauacutede embora natildeo tenham apontado
nenhum problema especifico Relacionam o consumo da gordura como
prejudicial e em funccedilatildeo disso tambeacutem tecircm tentado reduzir o seu consumo Nilsa
(42 anos moradora de Satildeo Domingos em Porto Firme) justificou ldquoTodo mundo
fala que gordura de porco faz mal para a sauacutederdquo Na sua famiacutelia tem havido
resistecircncia por parte do marido que natildeo abre matildeo da carne de porco e da verdura
refogada na gordura Embora ela admita preferir o sabor da comida com a
gordura de porco acredita que para ter uma qualidade de vida melhor devem
abrir matildeo de seu consumo O marido discorda da esposa natildeo abrindo matildeo do
consumo da gordura e nem da carne de porco A diminuiccedilatildeo tem ocorrido com
dificuldade e tem gerado algum tipo de conflito sobre as escolhas alimentares
deste casal que mora sozinho pois os filhos estudam em outras cidades
O depoimento acima de Nilsa estaacute relacionado agraves divulgaccedilotildees sobre
sauacutede em programas de televisatildeo matinais que ela informou assistir de vez em
quando enquanto cuida dos afazeres da casa Informaccedilotildees sobre pesquisas de
alimentos e sobre sauacutede tecircm sido divulgadas frequentemente pelos meios de
comunicaccedilatildeo O risco de tais informaccedilotildees eacute confundir as pessoas quando natildeo
se faz uma reflexatildeo sobre o assunto Para o consumidor leigo o resultado de
37 Interessante a coincidecircncia de haver dois adultos jovens do sexo masculino com problemas renais e que
passaram por transplante Ambas famiacutelias pertencem agrave mesma comunidade mas natildeo haacute grau de parentesco entre eles
121
uma pesquisa divulgada em meios de comunicaccedilatildeo pode dar uma ideia
distorcida sobre o consumo de um alimento No caso de Nilsa ela demonstrou
considerar que o consumo de gordura de porco prejudica a sauacutede de sua famiacutelia
baseado no que ldquoescuta dizerrdquo Ainda assim houve um momento da conversa
em que ela ponderou criticamente ldquoAgora eu natildeo sei porque faz malnossos
pais e avoacutes a vida inteira comeram comida com gordura e natildeo sei de nenhum
deles que ficou doente por causa dissordquo
Em relaccedilatildeo agrave carne vermelha e a gordura principalmente o bacon e
outras carnes processadas a Organizaccedilatildeo Mundial de Sauacutede (OMS) acaba de
publicar o relatoacuterio do International Agency for Research on Cancer (IARC)38
sobre a associaccedilatildeo do consumo desses alimentos ao cacircncer de intestino O
resultado da pesquisa foi amplamente divulgado por jornais de televisatildeo e na
internet Eacute constante a divulgaccedilatildeo de novas pesquisas de alimentos associados
agrave sauacutede repassar esta informaccedilatildeo eacute funccedilatildeo da OMS como pondera Contreras
(2015) No entanto vaacuterios alimentos jaacute foram apontados como vilotildees da sauacutede
e tempos depois a partir de novas pesquisas deixaram de ser Em funccedilatildeo disso
Fischler (2015) denomina essa situaccedilatildeo como uma espeacutecie de cacofonia sobre
o tema da comida jaacute que o conhecimento cientiacutefico eacute dinacircmico e passiacutevel de
sofrer alteraccedilotildees e cita o exemplo do cafeacute que foi classificado como canceriacutegeno
para depois ser considerado como siacutembolo de longevidade
Profissionais de sauacutede e socioacutelogos da alimentaccedilatildeo tecircm se manifestado
publicamente a respeito da divulgaccedilatildeo recente sobre a carne vermelha Alertam
para o risco que uma leitura apressada sobre o assunto possa gerar ao comedor
fazendo com que abandone por completo o consumo de carne e com isso
apresente problemas de outra natureza por carecircncia de proteiacutenas por exemplo
Destacam a necessidade de relativizar e discutir mais sobre o quanto se come
de um determinado alimento O que natildeo se deve eacute ldquodemonizar alimentosrdquo
pondera Rivera (2015) para natildeo gerar pacircnico desnecessaacuterio nos consumidores
ldquoEs necesaria una estrategia de comunicacioacuten que explique bien las
conclusiones de un informe sin caer en el dramardquo esclarece o antropoacutelogo Xavier
Medina (2015) Para a antropoacuteloga Vilagrave (2015) falar dos riscos agrave sauacutede causado
por alimentos que fazem parte da cultura alimentar de boa parte da populaccedilatildeo
38 Disponiacutevel em httpwwwiarcfrenmedia-centrepr2015pdfspr240_Spdf Acesso em 28 out 2015
122
mundial eacute assunto que merece muito cuidado Assim defende que o mais
interessante seria divulgar que as pessoas sem quadro de doenccedilas podem
comer de tudo mas sempre com moderaccedilatildeo
Outra famiacutelia entrevistada a de Carmem (48 anos moradora de Jacuba
em Porto Firme) tem optado por reduzir o consumo de vaacuterios alimentos aos
quais sempre esteve habituada em funccedilatildeo da dieta de emagrecimento por
recomendaccedilatildeo profissional Assim abriu matildeo da carne e da gordura de porco
de alimentos que contenham gluacuteten do leite de vaca e seus derivados Como no
caso anterior seu marido tambeacutem natildeo adotou a mesma dieta A diferenccedila eacute que
ela prepara separadamente a comida do casal39 No dia a dia Carmem tem uma
atividade de trabalho pesada cuida da casa da horta prepara todas as
refeiccedilotildees tira leite lava o curral varre o quintal em torno da casa ndash atividade que
estava fazendo quando cheguei em sua casa pela manhatilde Ela reclama que sente
fome mas ainda assim estaacute resistindo e seguindo a restriccedilatildeo alimentar
Eu agora soacute posso tomar leite de soja com biscoito de polvilho de manhatilde cedo ai eu tomo isso mas eu tenho que tirar leite muito cedo quando eu acabo eu jaacute estou morrendo de fome aquilo natildeo sustenta ai eu vou comer a mesma coisa de novo Natildeo eu faccedilo um mingau de fubaacute natildeo fica gostoso como como o com leite de vaca mas ajuda a esperar o almoccedilo (Carmem 48 anos moradora de Jacuba em Porto Firme MG 2015)
Nossa conversa continuou na cozinha onde a observei preparando as
comidas separadas Almoccedilamos agraves 1130 Comi a mesma comida feita para o
marido arroz feijatildeo couve carne de porco cozida e meio frita angu e moranga
Carmem comeu moranga com feijatildeo que cozinhou separadamente sem
gordura e sem oacuteleo temperados com sal e alho ovo frito e couve refogada no
oacuteleo de soja
Carmem demonstrou ansiedade em relaccedilatildeo ao que comer ao longo do
dia sendo que parte dessa preocupaccedilatildeo estaacute presente em seu depoimento
acima A outra ansiedade foi demonstrada pela dificuldade em obter resultados
satisfatoacuterios em relaccedilatildeo agrave perda de peso Ela precisa fazer a dieta mas ao
mesmo tempo precisa se sentir ldquoforterdquo para realizar os trabalhos no siacutetio A
situaccedilatildeo vivenciada por ela estaacute relacionada agrave discussatildeo feita por Arnaiz (2005) e
Fischler (1995 e 2015) sobre a ansiedade do comedor contemporacircneo Para os
39 Seus filhos tambeacutem estudam e moram em outras cidades
123
autores eacute cada vez mais difiacutecil saber o que se estaacute comendo e eacute tambeacutem mais
complexo fazer escolhas alimentares No processo de escolha o alimento
precisa ser de boa aparecircncia e qualidade ter baixas calorias natildeo fazer mal agrave
sauacutede natildeo ser caro Aleacutem disso o autor menciona a necessidade de
identificaccedilatildeo do alimento se identificar com a opccedilatildeo moral do comedor por
exemplo seu cultivo natildeo deve ser prejudicial ao meio ambiente natildeo deve utilizar
matildeo de obra escrava etc Tudo isso gera ansiedade na escolha do que comer
Dessa forma Fischler (1995 e 2015) defende que uma nova patologia estaacute
surgindo para aquelas pessoas obcecadas por dieta a ortorexia nervosa que
tem como uma de suas caracteriacutesticas o fato de uma pessoa passar mais de trecircs
horas diaacuterias preocupada com o que vai comer40
Haacute ainda o caso da famiacutelia de Joatildeo e Marli (81 e 72 anos
respectivamente aposentados moradores de Aacutegua Lima em Porto Firme) Em
seu siacutetio a atividade leiteira gera renda para o casal mas sobretudo para o filho
que administra a atividade e mora na cidade A famiacutelia optou por abandonar a
criaccedilatildeo extensiva de suiacutenos porque escutava falar ldquoque a gordura faz mal ao
coraccedilatildeordquo Em funccedilatildeo disso o consumo foi reduzido acreditando natildeo compensar
manter a criaccedilatildeo Aleacutem disso segundo Joatildeo antes havia muitos filhos em casa
para alimentar assim ldquoengordar o porcordquo era mais barato do que comprar a
carne e a gordura Embora tenham reduzido o uso da gordura de porco natildeo a
retiraram da dieta por completo Compram no accedilougue e ela continua sendo
usada dois dias na semana aproximadamente Como criam gado costuma-se
matar um animal e assim o consumo de carne de boi natildeo eacute raro nesta famiacutelia
como o eacute nas outras O depoimento de Joatildeo a seguir chama a atenccedilatildeo para o
fubaacute assunto que seraacute discutido no toacutepico especiacutefico mais agrave frente nesse
trabalho e essa parte de seu depoimento seraacute retomado na discussatildeo A
dificuldade de acessar o uacutenico moinho drsquoaacutegua existente na regiatildeo tambeacutem foi um
motivo que levou a famiacutelia a desistir da criaccedilatildeo dos suiacutenos
Eu engordava porco mas os meacutedicos estatildeo proibindo a gente de comer gordura ai nem engordo mais porco natildeoquando daacute vontade a gente compra um toucinho a carne compra sempre Tambeacutem natildeo compensa engordar natildeo porque o moinho de fazer fubaacute pra porco eacute longe daqui e esses fubaacutes moiacutedos nessas maquinas de hoje (eleacutetrica) nem os porcos gostam muito sabe a gente ateacute que tem um moinho
40 Mais informaccedilotildees sobre esse assunto ver Martins et al (2011)
124
bem pequeno aqui mas eacute soacute pra moer o milho para gente fazer angu e broa (Joatildeo morador de Aacutegua Limpa em Porto Firme MG 2015)
As situaccedilotildees das cinco famiacutelias citadas acima sinalizam o quanto mudar
o haacutebito alimentar e abrir matildeo do costume e do gosto aprendido eacute uma tarefa
difiacutecil mesmo que o apelo para isso seja a sauacutede principalmente quando o
alimento em questatildeo estaacute relacionado a uma atividade produtiva que tambeacutem
possui um apego tradicional como eacute o caso do porco caipira Para Bourdieu
(2007) formaccedilatildeo do gosto e a construccedilatildeo do haacutebito alimentar que eacute algo
aprendido na convivecircncia social sendo a famiacutelia o principal grupo de
aprendizado De Garine (1987) discute que em funccedilatildeo do haacutebito alimentar estar
ligado aos costumes herdados de geraccedilotildees passadas a mudanccedila de uma
alimentaccedilatildeo mais tradicional para uma industrializada natildeo ocorre facilmente
tampouco se daacute de maneira raacutepida Eacute um processo lento e que encontra
resistecircncia do comedor o quanto for possiacutevel
O oacuteleo vegetal eacute um desses exemplos de resistecircncia mas que aos
poucos se insere nas praacuteticas alimentares das famiacutelias Seu uso estaacute presente
em quase todas as casas pesquisadas exceto na famiacutelia de Eliana e Saturnino
que natildeo se adaptaram ao seu consumo para o preparo de nenhum alimento que
consomem no dia a dia No restante das famiacutelias o oacuteleo tem sido usado com
parcimocircnia principalmente para algumas frituras conforme os relatos a seguir
ldquoPorque o oacuteleo deixa a batata mais bonita e mais sequinha o peixe tambeacutem fica
melhor mais crocanterdquo (Margarida 74 anos moradora de Xopotoacute em Presidente
Bernardes) ldquoo arroz fica mais soltordquo (Luisa 57 anos moradora de Bom Retiro
em Porto Firme) ldquonatildeo uso mais gordura para fritar batata doce natildeo soacute oacuteleo
ateacute para lavar a panela eacute mais faacutecilrdquo (Juliana 48 anos moradora de Tatu em
Piranga)
Apesar da preferecircncia pela gordura suiacutena o oacuteleo vegetal tem dividido
espaccedilo com a gordura de porco no sistema culinaacuterio das famiacutelias Nestes casos
eacute um exemplo da possibilidade de introduccedilatildeo de um produto industrializado na
alimentaccedilatildeo sem que tenha sido necessaacuterio abrir matildeo radicalmente de um
produto tradicional excetuados os casos onde haacute restriccedilatildeo alimentar como jaacute
citado
O apego ao sabor e agrave crenccedila na capacidade de sustentaccedilatildeo alimentar
gerada pelo uso da gordura de porco faz com que seu consumo permaneccedila
125
como prioritaacuterio nas famiacutelias Poreacutem novos haacutebitos podem ser aprendidos
conforme argumenta Nevot (2011) Para este autor as mudanccedilas de haacutebitos
alimentares na sociedade atual satildeo permanentes Quanto mais novidades
alimentares emergem com novas tecnologias de produccedilatildeo novas informaccedilotildees
sobre os alimentos satildeo fornecidas ampliando a possibilidade de mudanccedilas de
haacutebitos Surge a necessidade de se aprender cada vez mais a escolher o que
comer Se por um lado herdamos haacutebitos alimentares as circunstacircncias nos
fazem adquirir outros novos
Por outro lado o excesso de novidades alimentares faz com que alguns
alimentos tradicionais sejam colocados em questatildeo gerando a anguacutestia
alimentar do comedor contemporacircneo apontada por Fischler (1995 2011 e
2015) No caso da gordura de porco de um lado estaacute um alimento habitual que
eacute heranccedila cultural tradicional e repassado oralmente por avoacutes e pais um
alimento considerado importante ldquoforterdquo de paladar agradaacutevel e que natildeo era
visto como prejudicial agrave sauacutede dos seus antepassados De outro lado existe a
preocupaccedilatildeo gerada nos tempos atuais que indica o mesmo alimento como
maleacutefico agrave sauacutede e portanto a ser evitado e substituiacutedo por um produto de fonte
vegetal e industrializado o oacuteleo
No grupo pesquisado a questatildeo relacionada agrave origem do oacuteleo vegetal
natildeo surgiu como preocupaccedilatildeo Nenhum interlocutor tocou no assunto da
transgenia associado a esse produto por exemplo Apenas destacaram como
pouco saudaacutevel o consumo da gordura do porco Por outro lado a opccedilatildeo da
maioria das famiacutelias em continuar a consumir a gordura de porco sinaliza uma
influecircncia mais acentuada dos fatores culturais em relaccedilatildeo aos fatores
nutricionais e cientiacuteficos na escolha dos alimentos questatildeo discutida por Garcia
(2009) e Mintz (2001)
511 Outras comidas ldquofortesrdquo
No capiacutetulo 2 utilizei Frieiro (1982) e Zemella (1951) para destacar a
importacircncia histoacuterica da criaccedilatildeo dos suiacutenos no quintal das casas com objetivo
de mitigar o problema da fome surgida durante a fase da mineraccedilatildeo em Minas
Gerais Surgiu daiacute o haacutebito de consumir a carne a gordura e o uso de outras
partes do animal adicionadas ao feijatildeo que se constituiacutea em alimento de grande
126
valor energeacutetico e proteico muito usado em funccedilatildeo disso como alimento dos
escravos Dessa mistura surgiu o que hoje conhecemos como feijoada O feijatildeo
foi tatildeo importante quanto o milho a mandioca a couve a gordura o toucinho e
o arroz para a manutenccedilatildeo das atividades mineradoras
No cotidiano alimentar das famiacutelias pesquisas eacute haacutebito cozinhar o feijatildeo
com toucinho que eacute tambeacutem considerado como alimento ldquoforterdquo O feijatildeo eacute item
diaacuterio nas refeiccedilotildees e seu consumo e cultivo tem laccedilos de heranccedila cultural e
histoacuterica assim como o suiacuteno caipira Apenas trecircs famiacutelias natildeo cultivam o feijatildeo
Uma parte do que eacute produzido eacute comercializada por seis famiacutelias nas demais
em 31 delas a produccedilatildeo destina-se apenas ao autoconsumo Durante a
pesquisa de campo algumas famiacutelias estavam comeccedilando a fase da colheita e
pude observar algumas pessoas no trabalho homens no geral Eacute um trabalho
difiacutecil pois eacute feita no modo tradicional arrancados agrave matildeo O trabalho das
mulheres se daacute principalmente na hora de bater e limpar o produto que seraacute
armazenado no paiol
Para aleacutem da gordura da carne suiacutena e do feijatildeo outros alimentos satildeo
considerados como sendo ldquofortesrdquo para manter o organismo bem nutrido para o
trabalho e satildeo consumidos com muita frequecircncia Satildeo eles o arroz a batata
doce a mandioca o angu e as farinhas de milho e de mandioca
O arroz consumido diariamente natildeo eacute mais produzido pelas famiacutelias
pela dificuldade que seu cultivo tem representado nos uacuteltimos anos segundo os
depoimentos de alguns dos interlocutores
Noacutes colhiacuteamos muito arroz natildeo precisava comprar mas jaacute tem uns cinco anos que a gente parou de mexer com arroz porque fica muito caro produzir do que comprar e tem os passarinhos que atacam a plantaccedilatildeo de arroz um passarinho preto que a gente chama de chupin A gente natildeo pode fazer nada contra eles porque eacute proibido mas quando chega a hora da colheita natildeo tem mais quase nada nos cachinhos de arroz (Lucio 46 anos morador de Bom Jesus do Bacalhau em Piranga MG 2015)
Ateacute uns anos atraacutes a gente plantava arroz socava no pilatildeo soacute para o consumo da famiacuteliamas comeccedilou a dar problema na uacuteltima vez que plantamos quando chegou a eacutepoca de cachear veio o sol muito forte ai natildeo saiu o cachoai resolvemos acabar com a plantaccedilatildeo (Onofre 67 anos morador de Mestre Campos em Piranga MG 2015)
Os entrevistados mencionaram uma diferenccedila no sabor e no aspecto do
arroz industrializado em comparaccedilatildeo ao que cultivavam como mostra o
depoimento de Mafalda (57 anos moradora de Ribeiratildeo em Presidente
127
Bernardes) a seguir Destacaram que o aspecto do tradicional que eles
cultivavam era mais grosseiro e amarelado e que o sabor era diferente aleacutem de
ser mais macio e poroso o que fazia com que o tempero impregnasse melhor
Por outro lado disseram que o industrializado leva menos tempo para ser cozido
Apesar de preferirem o arroz tradicional adquirir arroz no mercado atualmente
eacute mais interessante do que cultivaacute-lo levando-se em consideraccedilatildeo o custo-
benefiacutecio Mais uma vez aparecem aqui aspectos que pesam na escolha
alimentar semelhante ao que acontece com a escolha do oacuteleo vegetal e da
gordura de porco Mafalda expotildee em seu depoimento os aspectos que
considera positivos do arroz atual industrializado (ficar soltinho com a cor clara)
e os negativos (menos saboroso demora para absorver o tempero natildeo daacute a
ldquoligardquo considerada necessaacuteria na elaboraccedilatildeo do arroz doce)
Tem bastante diferenccedila O arroz que a gente colhia ele nunca ficava clarinho sempre tinhas uns gratildeos amarelos no meio poreacutem ele era um arroz mais gostoso Ele era mais macio e pegava mais o tempero Ele era melhor tambeacutem para fazer arroz doce porque ele dava mais liga Esses comprados natildeo daacute liga entatildeo o arroz de hoje natildeo eacute igual ao que a gente fazia antes Mas ele tambeacutem natildeo ficava soltinho na panela como o arroz que a gente refoga hoje Antigamente para ele ficar soltinho a gente tinha que espremer um limatildeo Hoje ficou mais faacutecil pra gente fazer (Mafalda moradora de Ribeiratildeo em Presidente Bernardes MG 2015)
Os demais alimentos considerados ldquofortesrdquo como a mandioca a batata
doce e o milho satildeo produzidos nos siacutetios e satildeo consumidos quase que
cotidianamente seja no cafeacute da manhatilde no almoccedilo e no jantar
A batata doce eacute quase sempre frita ou assada na brasa do fogatildeo a lenha
Usa-se consumi-la pela manhatilde acompanhada de cafeacute41 O mesmo ocorre em
relaccedilatildeo agrave mandioca Mas para consumo no almoccedilo e jantar o mais comum eacute
servi-la cozida ou ensopada com carne
O polvilho derivado da mandioca tambeacutem natildeo eacute mais produzido pelas
famiacutelias em todas elas esse produto agora eacute comprado O polvilho eacute usado
principalmente para fazer brevidade um tipo de bolo que eacute elaborado
esporadicamente Observei que em todas as casas haacute o consumo do biscoito de
polvilho assado poreacutem eacute tambeacutem comprado no mercado Agraves vezes se faz o
biscoito de polvilho frito mas as mulheres alegam que por espirrar muito durante
41 O cafeacute eacute feito em aacutegua adoccedilada e passado no coador de pano Natildeo vi o uso de coadores de papel em
nenhuma das casas
128
a fritura e ser bom para comer apenas por algumas horas apoacutes o preparo ele
natildeo eacute mais habitual como no passado Foi um tempo segundo as mulheres em
que sempre havia muita gente para comer e os produtos industrializados eram
parcos e caros no mercado Aleacutem disso o acesso aos mercados era mais difiacutecil
tornando necessaacuterio produzir praticamente tudo o que era destinado a
alimentaccedilatildeo das famiacutelias Os depoimentos a seguir de Anita (71 anos moradora
de Manja em Piranga) e de Lena (70 anos moradora de Ribeiratildeo em Presidente
Bernardes) tambeacutem sinalizam assim como ocorreu com o arroz que em razatildeo
da praticidade alguns modos tradicionais satildeo substituiacutedas ou passam a ser
retomados apenas em momentos especiacuteficos como naqueles que envolvem
reuniatildeo familiar e um grupo maior de pessoas nas casas Lena menciona o fato
da reduccedilatildeo do tamanho das famiacutelias quando comparadas com as famiacutelias dos
antepassados Outros entrevistados fizeram a observaccedilatildeo de que ldquoantes havia
muita gente na roccedilardquo ldquoantigamente as famiacutelias eram maioresrdquo A reduccedilatildeo do
nuacutemero de pessoas nas famiacutelias ndash na minha pesquisa o tamanho meacutedio eacute 36
pessoas por famiacutelia ndash interfere nas praacuteticas alimentares seja haacute menos pessoas
para se alimentar no dia a dia seja pelo fato de natildeo haver quem ajude na cozinha
e na elaboraccedilatildeo das quitandas Motivos que geram um certo tipo de desacircnimo
em investir em pratos mais trabalhosos que eram feitos e socializados nos
grupos familiares de antigamente
ldquoNa casa da minha matildee fazia muito polvilho Naquela eacutepoca todo mundo fazia muita brevidade agora ficou tatildeo faacutecil comprar o polvilho mas daacute muito trabalho fazer o biscoito frito e o assado natildeo eacute caro no mercado quase todo mundo prefere comprarrdquo (Anita moradora de Manja Piranga MG 2015)
ldquoEu fazia muito biscoito de polvilho frito quando os meninos eram pequenos eles gostavam Mas hoje eu quase natildeo faccedilo maissoacute se eles quando estatildeo aqui me pedem ai eu faccedilo Soacute para noacutes dois a gente compra esse do mercado mesmordquo (Lena moradora de Ribeiratildeo em Presidente Bernardes MG 2015)
Aleacutem do polvilho obtido da mandioca o milho e os seus derivados fazem
parte da cultura alimentar mineira como foi mostrado no capiacutetulo 2 a partir dos
apontamentos de Frieiro (1982) Zemella (1951) Meneses (2007) Arruda
(1999) Cacircmara Cascudo (2004) e Abdala (2007) O milho nesse periacuteodo foi
considerado mais importante do que a mandioca em funccedilatildeo de ser muito usado
tambeacutem para alimentaccedilatildeo animal conforme Meneses (2007) Com o passar dos
anos o milho assumiu lugar mais destacado do que a mandioca na culinaacuteria
129
mineira conforme Frieiro (1982) e Abdala (2007) A regiatildeo da pesquisa como jaacute
visto no referido capiacutetulo eacute uma das primeiras a serem ocupadas por ocasiatildeo da
mineraccedilatildeo em Minas Gerais Isso pode ter influenciado a permanecircncia da
tradiccedilatildeo do consumo do fubaacute que como mostrarei a seguir tem presenccedila
marcante na dieta das famiacutelias
52 Consideraccedilotildees sobre a importacircncia do milho e do fubaacute
Oraccedilatildeo ao Milho (Cora Coralina)
Fui o angu pesado e constante do escravo na exaustatildeo do eito Sou a broa grosseira e modesta do pequeno sitiante Sou a farinha econocircmica do proprietaacuterio sou a polenta do imigrante e a amiga dos que comeccedilam a vida em terra estranha Alimento de porcos e do triste mu de carga o que me planta natildeo levanta comeacutercio nem avantaja dinheiro Sou apenas a fartura generosa e despreocupada dos paioacuteis Sou o cocho abastecido donde rumina o gado Sou o canto festivo dos galos na gloacuteria do dia que amanhece Sou o cacarejo alegre das poedeiras agrave volta dos ninhos Sou a pobreza vegetal agradecida a voacutes Senhor que me fizestes necessaacuterio e humilde Sou o milho
Com exceccedilatildeo das famiacutelias de Antocircnio e Marieta e de Marilia todas as
outras cultivam o milho A produccedilatildeo eacute pequena e destinada agrave alimentaccedilatildeo
animal mas tambeacutem agrave elaboraccedilatildeo de fubaacute produzido em todos os siacutetios onde a
planta eacute cultivada Apenas uma famiacutelia possui moinho movido agrave aacutegua o restante
utiliza moinho eleacutetrico Na ocasiatildeo da pesquisa o moinho drsquoaacutegua era uma
raridade na aacuterea rural pesquisada segundo informaccedilatildeo dos entrevistados Tive
a oportunidade de ver um moinho muito antigo em funcionamento no siacutetio de
Manoel e Donana (72 e 54 anos respectivamente moradores de Limeira em
Porto Firme) (Figura 7) Este moinho tem sua estrutura feita em madeira e jaacute
apresentava sinais de sua idade com algumas peccedilas presas com arame O
trabalho eacute perfeito poreacutem lento Pertenceu aos pais de Manoel foi muito utilizado
no passado e permanece em uso para autoconsumo familiar O moinho se
localiza na margem da estrada por onde passa o coacuterrego A porta de acesso fica
130
constantemente entreaberta mas nunca houve roubo de fubaacute ou depredaccedilatildeo do
local
(a) (b)
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 7 ndash Moinho drsquoaacutegua no siacutetio de Manoel e Donana na Comunidade Limeira Porto Firme
A Figura 8 mostra o moinho eleacutetrico adotado atualmente pelas famiacutelias
O moinho da figura pertence agrave famiacutelia de Nanaacute e Custoacutedio na comunidade
Xopotoacute em Piranga Muito diferente do anterior executa o trabalho com maior
rapidez do que o de moinho drsquoaacutegua poreacutem com qualidade inferior como
apontado pelos entrevistados Neste tipo de moinho natildeo pode observar o
moinho sendo feito jaacute que ele segue direto para o pequeno silo acoplado agrave
maacutequina
Apesar da preferecircncia pelo fubaacute feito no moinho drsquoaacutegua meus
interlocutores afirmaram ter sido necessaacuteria a adaptaccedilatildeo ao moinho eleacutetrico que
se tornou mais usual principalmente em funccedilatildeo da reduccedilatildeo de aacutegua disponiacutevel
nos uacuteltimos anos Mencionaram ainda outro fator que consideram importante
para a reduccedilatildeo da utilizaccedilatildeo do moinho drsquoaacutegua Segundo eles as pessoas mais
velhas se importavam mais em manter os moinhos drsquoaacutegua por ser considerada
uma praacutetica tradicional mas quando os moinhos eleacutetricos surgiram o apelo agrave
praticidade falou mais alto e o moinho drsquoaacutegua foi perdendo espaccedilo nos siacutetios
administrados pelas geraccedilotildees mais novas
131
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 8 ndash Moinho eleacutetrico no siacutetio de Nanaacute e Custoacutedio na Comunidade Xopotoacute em Piranga
Antigamente muita gente tinha moinho drsquoaacutegua aqui mesmo tinham uns 3 ou 4 numa distacircncia de 5 Km por aquifoi acabando os velhos foram morrendo e os mais novos natildeo quiseram saber de mexer com isso natildeo (Alonso 82 anos morador de Xopotoacute em Presidente Bernardes MG 2015)
Os moinhos tocados a aacutegua ficam quase sempre mais longe da casa perto de onde corre uma aacutegua neacute O eleacutetrico pode ficar em qualquer lugar debaixo de uma coberta ou perto do paiol daacute menos trabalho e de primeiro tinha muita gente na roccedila natildeo tinha problema ter muito serviccedilo mas hoje dessa gente nova natildeo tem quase ningueacutem mais aqui (Francisco 64 anos morador de Satildeo Domingos em Porto Firme MG 2015)
A reduccedilatildeo no uso desses moinhos comeccedilou a ocorrer haacute
aproximadamente 15 anos quando ainda era possiacutevel encontrar mais facilmente
o ldquofubaacute de moinho drsquoagua para comprar Se por um lado a adoccedilatildeo do moinho
eleacutetrico facilitou o trabalho por outro o fubaacute produzido por ele sofreu alteraccedilatildeo
na textura e sabor Joatildeo (81 anos morador de Aacutegua Limpa em Porto Firme)
pondera que o fubaacute originado do moinho eleacutetrico ldquonatildeo agrada nem aos animaisrdquo
Segundo os depoimentos o fubaacute de moinho drsquoaacutegua era fino e mais
uacutemido A diferenccedila para o produto do moinho eleacutetrico eacute que ele produz um fubaacute
mais grosso e ressecado Essas caracteriacutesticas alteraram o sabor e a textura de
dois alimentos muito importantes na culinaacuteria da regiatildeo pesquisada a broa e o
132
angu Segundo as mulheres ldquoa broa de antes tinha mais ligardquo Assim para
melhorar sua textura a broa que era elaborada de puro fubaacute passou a ter a
adiccedilatildeo de uma parte de farinha de trigo
As discussotildees em torno das mudanccedilas ocasionadas no fubaacute foram
longas e contaram com participaccedilatildeo interessada de muitos homens que
culturalmente natildeo costumam a discutir assuntos culinaacuterios Talvez isso se
explique pelo fato de os produtos derivados do fubaacute serem tatildeo importantes na
alimentaccedilatildeo cotidiana de todas as famiacutelias e por ser utilizado uma maacutequina para
produzi-lo objeto considerado culturalmente como de domiacutenio masculino Em
funccedilatildeo da importacircncia desses alimentos considero interessante adicionar um
nuacutemero maior de depoimentos mesmo ciente de que em um vieacutes etnograacutefico
deve-se tomar cuidado com o excesso de depoimentos em que estejam
evidenciadas ideias semelhantes conforme observaccedilatildeo feita por Peirano (1995)
() pena que hoje quase natildeo acha mais fubaacute de moinho drsquoaacutegua o fubaacute era fininho e dava uma broa maciahoje as maacutequinas quase que torram o fubaacute A broa fica mais ou menos neacute Eu faccedilo uma broinha com rapadura que ficava muito deliciosa mesmo era quando feita com o fubaacute fino (Neuzeli 63 anos moradora de Vinte Alqueires em Porto Firme MG 2015)
A broa feita com fubaacute do moinho eleacutetrico fica muito solta o sabor da comida mudou muito taacute tudo muito mudado em tudo na roccedila (Vanilda 55 anos moradora de Mestre Campos em Piranga MG 2015)
Por ser raridade o fubaacute produzido no moinho drsquoaacutegua tem ganhado
valorizaccedilatildeo no mercado Encontrado agrave venda apenas nos mercados de produtos
artesanais o seu preccedilo eacute superior ao fubaacute industrializado Poucos produtores
colocam o produto agrave venda pois como a produccedilatildeo eacute pequena ela objetiva
atender agraves necessidades das famiacutelias como o caso de Manoel e Donana Ter
um moinho drsquoaacutegua na propriedade no periacuteodo colonial significava haver ali um
grande uso do fubaacute para diferentes funccedilotildees no local Era considerado na eacutepoca
um equipamento sofisticado segundo Andrade (2014) Atualmente ele eacute visto
como ultrapassado de trabalho lento e atividade trabalhosa perdendo seu
espaccedilo para a tecnologia oferecida pelo moinho eleacutetrico A relaccedilatildeo tradicional e
moderno referente aos moinhos reportam agraves diferentes geraccedilotildees no grupo
pesquisado Em vaacuterios depoimentos foi constante a associaccedilatildeo dos moinhos
drsquoaacutegua como objetos de desinteresse das geraccedilotildees mais novas Assim o
produto gerado pelo moinho tradicional apesar de ser preferido em termos de
133
sabor e textura natildeo eacute um argumento forte o suficiente para que seu uso se
mantenha sob os cuidados dos mais jovens
Ao tratar sobre as substituiccedilotildees dos equipamentos modernos pelos
tradicionais no preparo dos alimentos Giard (2012) discute que a mudanccedila natildeo
se daacute apenas pela substituiccedilatildeo do aparelho ou utensiacutelio mas tambeacutem da relaccedilatildeo
instrumental entre o utilizador o objeto utilizado O moinho dacuteaacutegua eacute mais
trabalhoso de ser utilizado porque se localizava distante das casas como o
exemplo daquele da famiacutelia que visitei Eacute preciso controlar o tempo e fazecirc-lo
parar de funcionar manualmente diferente do moinho eleacutetrico que desliga
sozinho Aleacutem disso a sua produccedilatildeo eacute lenta produz-se muito menos fubaacute no
moinho drsquoaacutegua do que no moinho eleacutetrico no mesmo espaccedilo de tempo Na
contemporaneidade em uma sociedade liacutequido-moderna adaptar-se agraves novas
tecnologias eacute uma forma de natildeo perder tempo como reflete Bauman (2009)
Para Giard (2012) algumas mudanccedilas nas praacuteticas alimentares satildeo inevitaacuteveis
e para usufruir as vantagens de uma cultura material eacute preciso estar pronto para
lidar com seus inconvenientes Em alguns casos a convivecircncia entre uma
praacutetica tradicional e uma moderna eacute possiacutevel mas nem sempre No caso do fubaacute
do moinho tradicional e do eleacutetrico por exemplo natildeo haacute alternativa Eacute preciso
fazer a escolha No caso do fubaacute produzido nos dois tipos de moinhos a
lembranccedila do produto tradicional ainda estaacute na memoacuteria inclusive a do paladar
como mostra a fala de Jonas
Fubaacute de moinho drsquoaacutegua eacute coisa rara demaisquando eu falo chego a sentir o gosto do bolo feito de fubaacute de antigamente e angu o angu de fubaacute de moinho drsquoaacutegua era alaranjado assim meio avermelhado hoje ele fica branco (Jonas 53 anos morador da comunidade Satildeo Domingos em Porto Firme MG 2015)
Sobre a ligaccedilatildeo entre memoacuteria e tradiccedilatildeo Giddens (2012) citando
Halbwachs (1992 p 100) diz que ldquoo passado desmorona mas soacute desvanece
na aparecircncia pois continua a existir no inconscienterdquo As observaccedilotildees sobre o
passado em que existia o moinho drsquoaacutegua foram carregadas de memoacuterias
lembranccedilas de sabores e por que natildeo de idealizaccedilatildeo Um passado que para
meus interlocutores se opotildee ao presente em vaacuterios aspectos dentre eles o
alimentar o artesanal versus o industrial ou seja ou moinho drsquoaacutegua versus o
moinho eleacutetrico Identificar e destacar a comida e os modos de fazer do passado
como no depoimento anterior de Jonas eacute um exemplo dos momentos em que
134
somos visitados pelos cheiros e sabores do passado discutido por Giard (2012)
sobre a memoacuteria afetiva e do quanto o presente e o passado se entrelaccedilam no
imaginaacuterio das pessoas quando se trata de falar sobre comida Para Moulin
(1975 apud GIARD 2012) o tipo de comida preferida de uma pessoa eacute sempre
o mesmo ou muito semelhante agravequele dos pais
Em suma noacutes comemos o que nossa matildee nos ensinou a comer Gostamos daquilo que ela gostava do doce ou do salgado da geleia de manhatilde ou dos cereais do chaacute ou do cafeacute de tal forma que eacute mais loacutegico acreditar que comemos nossas lembranccedilas as mais seguras temperadas de ternuras e de ritos que marcaram nossa primeira infacircncia (MOULIN apud GIARD 2012 p 251)
Depoimentos semelhantes agravequele dado por Vanilda sobre as mudanccedilas
relacionadas agrave comida ldquoo sabor da comida mudou muito estaacute tudo muito
mudado em tudo na roccedilardquo me conduziam a perguntar O que mudou na comida
As respostas dos interlocutores foram no sentido de apontar aqueles alimentos
que eram comuns para eles no passado na infacircncia e juventude e que jaacute natildeo
satildeo mais facilmente encontrados Aleacutem da gordura animal que jaacute foi discutida o
fubaacute tambeacutem permanece no cotidiano Mesmo natildeo sendo mais aquele preferido
produzido no moinho drsquoaacutegua ainda continua presente em vaacuterias elaboraccedilotildees de
quitandas principalmente na broa e no angu alimento que eacute consumido
diariamente pelas famiacutelias
O angu mineiro possui uma mistura simples fubaacute e aacutegua No capiacutetulo 2
mostrei que esse alimento natildeo usava sal pois era um produto raro na regiatildeo
mineradora e portanto caro
Outra maneira de consumir o angu aleacutem daquela servida em almoccedilo e
jantar foi apontada pelas famiacutelias como sendo muito apreciada pelos mais
velhos Eacute o angu adicionado ao leite e sal formando um mingau grosso
geralmente se comia assim na merenda usando a sobra do angu
Antigamente a merenda mais comumisso quando eu ainda era solteira era leite com angu no leite quente ou frio agraves vezes quando me daacute saudade de comer ai eu faccedilo quando a gente era crianccedila tinha sempre (Mercecircs 41 anos moradora de Bom Jesus do Bacalhau em Piranga MG 2015)
O curau doce agrave base de milho foi citado como uma iguaria feita em dias
festivos como no Natal O mingau salgado que tambeacutem eacute a base de fubaacute eacute muito
consumido principalmente em dias frios Trata-se do ldquomingau de couverdquo ou
135
ldquobambaacute de couverdquo Este prato eacute assim como a canjiquinha de milho um dos
caldos preferidos
A canjiquinha e o mingau de couve a gente faz muito aquimas quando estaacute muito calor natildeo neacute Porque eacute para comer bem quentinho que eacute gostoso eu tambeacutem faccedilo quando a comida do almoccedilo eacute pouca para o jantar ai a gente costuma jantar uma sopa coloca muita couve e cebolinha vocecirc natildeo conhece essas comidas natildeo neacute42 (Selma 68 anos moradora de Tatu em Piranga MG 2015)
Outro derivado do milho que jaacute foi muito consumido mas que raramente
eacute elaborado hoje eacute o cuscuz doce agrave base de fubaacute accediluacutecar aacutegua e queijo43 Esse
tipo de cuscuz segundo ele pode ser comido puro com cafeacute ou com leite Um
doce que segundo os interlocutores pode ser comido com colher por ter a
consistecircncia de uma farofa grossa Apesar de ser doce ele possui queijo na
mistura e que tambeacutem era preferencialmente consumido nas merendas
Geralmente eacute feito em uma panela proacutepria o cuscuzeiro mas as mulheres
disseram que nem todos tinham o cuscuzeiro por isso se fazia em uma panela
dentro de outra com aacutegua semelhante agrave teacutecnica do banho maria O cuscuz
salgado natildeo foi citado e quando perguntei sobre ele disseram natildeo ser conhecido
na regiatildeo
Antocircnio 78 anos que aleacutem de agricultor teve uma pequena padaria em
Piranga haacute deacutecadas atraacutes foi dentre os homens entrevistados o que se
mostrou mais interessado em culinaacuteria e relatou algumas de suas experiecircncias
como padeiro e sobre as quitandas patildees e bolos que fazia Contou
detalhadamente como era o cuscuz que fazia Ao compartilhar sua experiecircncia
e reviver as lembranccedilas de eacutepocas passadas Antonio demonstrou emoccedilatildeo pois
esse era um alimento que sentia prazer em fazer e em degustar Ele guarda as
receitas de tudo que fazia na memoacuteria revelando a importacircncia que a padaria
teve em sua vida
O cuscuz natildeo eacute mais elaborado pelas famiacutelias como antes porque eacute
possiacutevel encontrar outros alimentos que os substituem e porque alguns
alimentos permaneceram como haacutebitos cotidianos como os bolos broas que
42 Eu tambeacutem era constantemente ldquoentrevistadardquo por eles Respondi que conheccedilo os dois pratos e que
gosto muito de ambos 43 O queijo usado em muitos ingredientes e consumidos no dia a dia eacute produzido por todas as 34 famiacutelias
(85) que tem atividade leiteira nos siacutetios mas a produccedilatildeo do queijo eacute basicamente para autoconsumo Jaacute a manteiga eacute um produto menos comum de ser fabricado atualmente pelo trabalho de sua produccedilatildeo Mas eacute um alimento que permanece como haacutebito alimentar Compra-se a industrializada ou de vizinhos que porventura fabriquem
136
satildeo feitas em casa e caso contraacuterio satildeo facilmente encontradas no mercado
Segundo Giard (2012) uma explicaccedilatildeo para o abandono de algumas praacuteticas
passadas na culinaacuteria estaacute nas mudanccedilas das provisotildees e ofertas no mercado
Nesse caso ldquopermanece apenas a lembranccedila interiorizada dos sabores antigosrdquo
(p 274) como eacute o caso das recordaccedilotildees de Antonio sobre o cuscuz que fazia
com frequecircncia no passado e que tinha muita aceitaccedilatildeo de seus clientes da
padaria
Uma coisa que eu jaacute fiz muito e que vocecirc natildeo deve nem nunca ter ouvido falar Cuscuz torrado Veja bem natildeo eacute cuscuz cozido no vapor natildeo eacute assado O cuscuz torrado eu fazia assim Socava no pilatildeo 1 quilo e meio de fubaacute 34 de rapadura uma pitada de sal socava ateacute que desmanchava e ficava um beiju sabe Ai levava na focircrma peneirava quando enchia apertava bem cortava e punha no forno brando para torraroh Mas ficava uma coisa fora do comum Jaacute vendi demais isso aqui por essas bandas depois que eu parei de fazer nunca mais eu vi Ele esfarinhava na hora de comervocecirc conhece paccediloca A consistecircncia era parecida com a paccediloca de amendoim (Antonio 78 anos morador de Boa Vista em Piranga MG 2015)
Segundo Cacircmara Cascudo (2004) o cuscuz eacute originaacuterio dos Mouros na
Aacutefrica (Egito a Marrocos) e se escreve originalmente ldquokuz-kuzrdquo Agrave base de arroz
farinha de trigo ou sorgo passou a ser feito de milho com o avanccedilo do cultivo da
plantam do a partir do seacuteculo XVI Mas tanto os africanos quanto os portugueses
jaacute conheciam o cuscuz quando chegaram ao Brasil se em Portugal era
considerado prato aristocraacutetico em final do seacuteculo XVII ldquoNo Brasil pela
humildade do fabrico era manutenccedilatildeo de famiacutelias pobres julgava-se lsquocomida de
negrosrsquo trazida pelos escravosrdquo (p 190)
A pesquisa mostrou que o fubaacute assume posiccedilatildeo de destaque no
cotidiano alimentar das famiacutelias Aleacutem de alimento considerado ldquoforterdquo guarda
tambeacutem um significativo papel cultural as recordaccedilotildees de alimentos que eram
elaborados antes e que natildeo se fazem mais os modos de moer o fubaacute de antes
e de agora interagem com os lugares de emoccedilatildeo relacionados agrave comida Ao
lembrar de como um alimento ou uma praacutetica ocorria acontece tambeacutem o
resgate daqueles que o faziam ou seja dos ldquoguardiatildees da tradiccedilatildeordquo dos quais
nos falam Giddens (2012) e Simsom (2003) A razatildeo alegada para explicar o
porquecirc de alguns alimentos do passado que faziam parte da merenda terem
deixado de ser consumidos como o angu com leite e o cuscuz foi que na
contemporaneidade existem muitas opccedilotildees de merenda que a opccedilatildeo passa a
137
ser pela praticidade neste caso Satildeo alimentos a serem feitos quando se sente
vontade de comecirc-los No cotidiano eacute a broa que assumiu o lugar das outras
merendas agrave base de milho justamente pela rapidez de sua elaboraccedilatildeo
53 Comida de todo dia comida de festa e as relaccedilotildees de comensalidade
531 Comida de todo dia o trivial
Aqui na roccedila falando a verdade o que a gente come mesmo eacute angu arroz feijatildeo e uma verdura (Afonso 79 anos morador de Ribeiratildeo em Presidente Bernardes MG 2015)
A comida de todo dia eacute angu ateacute mesmo para alimentar os animais (cachorro gato galinha) couve arroz feijatildeo e uma carne quase sempre de porco (Ana Luisa 45 anos moradora de Bom Jesus do Bacalhau em Piranga MG 2015)
Destaco o iniacutecio do item com dois depoimentos porque eles sintetizam o
que eacute a comida cotidiana das famiacutelias pesquisadas inclusive naquelas famiacutelias
que possuem crianccedilas adolescente e jovens embora eu tenha conversado com
apenas cinco jovens que se encontravam no siacutetio na ocasiatildeo da entrevista
Segundo os meus interlocutores os pais cultivam nos filhos os seus haacutebitos
alimentares ao manter o mesmo tipo de alimentaccedilatildeo para adultos e crianccedilas
Assim pelo menos em casa dos pais a comida natildeo varia em funccedilatildeo de outras
preferecircncias alimentares e segundo as informaccedilotildees natildeo ocorre disparidades
nesse sentido
Em todas as famiacutelias quatro alimentos estatildeo presentes no almoccedilo de
todos os dias da semana angu arroz feijatildeo ovo ou carne e verdura refogada
em gordura de porco Mesmo havendo variaccedilatildeo para a verdura como serralha
almeiratildeo e mostarda a couve eacute a mais consumida na contemporaneidade assim
era tambeacutem no periacuteodo da mineraccedilatildeo e da ruralizaccedilatildeo
Todas as famiacutelias tecircm hortas nos quintais algumas bem cuidadas e com
grande variedade de plantas outras fragilizadas e com poucos cultivos A
estiagem do periacuteodo foi a grande responsaacutevel pelas ldquohortas fracasrdquo mas em
todas elas havia couve Em uma horta por exemplo havia apenas couve
cebolinha salsa quiabo e jiloacute As hortaliccedilas e ldquocheiro verderdquo mais presentes eram
a couve a serralha a mostarda o almeiratildeo a alface a cebolinha de folha a
138
salsa o manjericatildeo e a hortelatilde Uma hortaliccedila comum na culinaacuteria mineira a
taioba estava presente em poucas hortas Segundo as mulheres por ser
periacuteodo de estiagem a produccedilatildeo dessa hortaliccedila estava prejudicada pois
necessita de muita umidade
Frieiro (1982) Magalhatildees (2004) e Arruda (1990) tratam da importacircncia
que o cultivo da horta teve para a regiatildeo mineradora em Minas Gerais numa fase
de escassez de alimentos Ela era cultivada nos quintais de todas as casas para
garantir o acesso nas refeiccedilotildees agraves fontes de legumes frutas hortaliccedilas e
tubeacuterculos Passado a fase da escassez alimentar na regiatildeo mineradora de
Minas as hortas permaneceram sendo cultivadas Atualmente cultivar a horta
natildeo se daacute mais por carecircncia alimentar jaacute que o acesso agrave compra no mercado eacute
possiacutevel e a baixo custo Mas eacute importante para os entrevistados ter o prazer de
colher a hortaliccedila fresca pouco antes de preparar a refeiccedilatildeo As razotildees satildeo
sobretudo culturais e simboacutelicas para manter a tradiccedilatildeo como no caso das
famiacutelias que pesquisei Ter uma horta ldquobonitardquo eacute motivo de orgulho Maria (66
anos moradora de Itapeva Presidente Bernardes) enquanto mostrava e falava
com tristeza de sua horta que estava sofrendo com a estiagem comentou
ldquominha horta estaacute mirrada feiaparecendo ateacute horta de gente preguiccedilosardquo
Outro motivo para a importacircncia da horta para as famiacutelias pesquisadas eacute a
certeza da qualidade do alimento que cultiva As famiacutelias demonstraram
preocupaccedilatildeo com o uso de agrotoacutexico e natildeo sentem seguranccedila na aquisiccedilatildeo de
alimentos in natura que agraves vezes precisam adquirir no mercado
Os demais vegetais cultivados pelas famiacutelias pesquisadas satildeo aboacutebora
moranga batata doce mandioca inhame chuchu jiloacute quiabo berinjela e tomate
do mato Esses vegetais satildeo produzidos em todas as hortas e muito consumidos
nas refeiccedilotildees diaacuterias A exceccedilatildeo eacute para o tomate que natildeo eacute habito de consumo
local Esporadicamente consomem o tomate que chamam de ldquotomate do matordquo
que nascem naturalmente sem precisar cultivar O principal motivo para natildeo
cultivarem e natildeo consumirem o tomate eacute a necessidade de utilizar muito
inseticida Evitam o maacuteximo o uso de agrotoacutexico nos produtos cultivados no siacutetio
mas natildeo conseguem deixar de usaacute-lo no milho para substituir o roccedilado manual
com a enxada e tambeacutem no feijatildeo armazenado Eacute interessante que esse receio
natildeo os impede de consumir a massa de tomate na macarronada dos domingos
139
Vegetais como cenoura beterraba batata baroa berinjela couve-flor
broacutecolis repolho cebola de cabeccedila e alho satildeo produzidos por poucas famiacutelias
Mas a cebola e o alho jaacute foram cultivados com frequecircncia na regiatildeo No siacutetio de
Maria e Laeacutercio em Itapeva Presidente Bernardes as hortaliccedilas estavam muito
fragilizadas e havia pouquiacutessimas plantas basicamente couve quiabo e
cebolinha mas ela mostrou orgulhosa sua colheita de cebola de cabeccedila e alho
que estava no paiol (Figura 9) dois produtos que natildeo satildeo cultivados por todas
as famiacutelias embora muito consumidas A cebola de cabeccedila por exemplo era
um produto comprado no comeacutercio da comunidade pela maioria das famiacutelias
Isso aponta para a importacircncia que tem para essa famiacutelia a produccedilatildeo de
alimentos que consomem no dia a dia Percebi na conversa com Maria e Laeacutercio
a valorizaccedilatildeo dada agrave produccedilatildeo para autoconsumo Em funccedilatildeo disso o lamento
pela ausecircncia de chuvas foi muito presente durante o diaacutelogo
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 9 ndash Cebolas e alhos armazenados no paiol do siacutetio de Maria e Laeacutercio na comunidade Itapeva em Presidente Bernardes
A pesquisa ocorreu em periacuteodo de colheita do amendoim cultivadas por
quase todas as famiacutelias basicamente para autoconsumo embora uma delas
tenha produzido o suficiente para comercializar Tive a oportunidade de em uma
delas acompanhar parte da colheita e ateacute experimentar arrancar a planta do
chatildeo Algumas mulheres disseram que iriam aproveitar para fazer peacute-de-
moleque A rapadura teria que ser comprada no mercado da cidade jaacute que natildeo
140
eacute mais produzida no siacutetio e em toda a regiatildeo eacute um produto pouco encontrado
Das famiacutelias que entrevistei apenas trecircs produziam rapadura e melado No
periacuteodo de campo a cana estava sendo toda utilizada para alimentaccedilatildeo do gado
A horta de Eliana e Saturnino (69 e 75 anos respectivamente) tambeacutem
de Itapeva Presidente Bernardes (Figura 10) eacute bem diversificada e bem cuidada
Eliana que gosta de cultivar plantas medicinais me mostrou uma delas e
perguntou ldquoVocecirc conhece o remeacutedio ldquoVickrdquo Olhe ele aqui eu tenho plantado
cheire uma folha muita gente aqui de perto vem buscar para tratar a gripe
chiado no peito sempre tratei a gripe dos meus filhos com elardquo Mariacutelia (62
anos moradora de Mestre Campos Piranga) tambeacutem possui uma horta muito
rica e com grande variedade de plantas medicinais Tanto ela quanto Eliana se
mostraram detentoras do conhecimento tradicional dos cultivos e das funccedilotildees
terapecircuticas das ervas medicinais e disseram ter aprendido com as matildees e avoacutes
Apesar de eu eleger as hortas das famiacutelias de Eliana e de Mariacutelia como as
melhores encontrar hortas bem cuidadas e diversificadas foi comum durante a
pesquisa Haacute uma preocupaccedilatildeo especial das mulheres em mantecirc-las produtivas
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 10 ndash Horta no siacutetio de Eliana e Saturnino em Itapeva Presidente Bernardes MG
Os vegetais produzidos nos siacutetios das famiacutelias satildeo aqueles consumidos
nas refeiccedilotildees diaacuterias No dia a dia raramente algum produto vegetal eacute comprado
no mercado exceto quando se deseja algum legume ldquodiferenterdquo como dizem O
periacuteodo de estiagem tambeacutem interfere nisso devido ao fato de que algumas
141
plantas satildeo menos resistentes agrave seca prolongada Durante o periacuteodo da
pesquisa isso ocorria em relaccedilatildeo a alface que natildeo eacute uma hortaliccedila consumida
com frequecircncia pois a preferecircncia eacute pelas verduras que podem ser refogadas
A batata inglesa tambeacutem eacute um produto muito raro na dieta dessas famiacutelias
passa-se meses sem consumi-la a preferecircncia eacute pela batata doce bem como o
inhame e a mandioca
Percebi que a alimentaccedilatildeo cotidiana das famiacutelias eacute muito semelhante
agravequela da fase da mineraccedilatildeo e ruralizaccedilatildeo descritas pelos autores que utilizei no
capiacutetulo como Frieiro (1982) Magalhatildees (2004) Arruda (1990) e Torres (2011)
A tradiccedilatildeo se perpetuou na regiatildeo sem grandes modificaccedilotildees Os mesmos
cultivos nas hortas as mesmas praacuteticas alimentares satildeo mantidas embora
novidades sejam inseridas como a panela eleacutetrica de fazer arroz que seraacute
discutida mais agrave frente
Outra hortaliccedila muito comum na culinaacuteria mineira o ora-pro-noacutebis ou
lobrobrocirc estava presente em quase todas as hortas embora seu consumo natildeo
seja cotidiano como as demais jaacute citadas Embora natildeo seja uma hortaliccedila muito
apreciada encontrei uma crianccedila que prefere o ora-pro-noacutebis agrave couve Ao
perguntar agrave Marcelina e Luiz moradores de Satildeo Domingos em Porto Firme
sobre as verduras que cultivavam e quais eram as mais consumidas
imediatamente o filho Faacutebio de 9 anos acrescentou ldquolobrobocirc taiobardquo
Perguntei-lhe entatildeo se gostava de verduras e ele confirmou Segundo a matildee
ldquoele adora todas as verduras lobrobrocirc ele come as folhas ateacute cruas e taioba e
folha de batata doce ele tambeacutem adora pede para eu fazer com angu e carne
de frangordquo Lola de Presidente Bernardes compartilhou situaccedilatildeo semelhante
sobre seu filho Andreacute de 10 anos O filho aprecia suco de couve (mais que os
refrigerantes) ldquoEles satildeo assim porque natildeo foram acostumados com isso
sempre ensinei que essas coisas fazem mal pra genterdquo
Conhecer o gosto destas duas crianccedilas por verduras e saber que esse
gosto estaacute atrelado aos haacutebitos alimentares dos pais nos conduz mais uma vez
agrave discussatildeo sobre heranccedila dos haacutebitos e gosto alimentar jaacute discutido no capiacutetulo
anterior Na casa dos pais de Faacutebio e tambeacutem em sua escola rural a presenccedila
de verduras de todos os tipos de acordo com a sazonalidade eacute comum Desde
muito novos os filhos deste casal foram introduzidos nos haacutebitos alimentares dos
pais Natildeo haacute o haacutebito familiar de consumir refrigerante que soacute eacute comprado para
142
a casa em dias de festa As bebidas do dia a dia da famiacutelia satildeo aacutegua e suco de
fruta da estaccedilatildeo Insisti em saber se era uma preocupaccedilatildeo com a sauacutede e a
resposta foi que a sauacutede vem como consequecircncia Para eles a prioridade eacute
consumir alimentos que produzem no local e evitar gastos com alimentaccedilatildeo no
mercado Aleacutem disso eacute a comida que estatildeo acostumados
Natildeo tive a oportunidade de conversar com outras crianccedilas durante a
entrevista mas tive depoimentos dos pais a respeito dos haacutebitos alimentares dos
filhos quando eram crianccedilas e que ainda sendo adolescentes manteacutem haacutebitos
alimentares muito parecidos com os dos pais Haacute o caso por exemplo dos filhos
de Antonina (74 anos moradora de Bananeiras em Presidente Bernardes
Antonina) que moram em Satildeo Paulo e que mesmo sendo adultos quando
visitam os pais nas feacuterias pedem para a matildee fazer ldquoa comida que eles estavam
acostumados a comer quando eram pequenosrdquo Esta fala coincide com a
compreensatildeo de Bourdieu (2007) sobre a formaccedilatildeo de haacutebitos alimentares que
sofrem grande influecircncia da convivecircncia dos grupos o que gera gostos muito
semelhantes entre os membros O haacutebito alimentar eacute construiacutedo nesse contexto
e podem ser diferentes de uma cultura para outra
Fui convidada a participar da mesa de refeiccedilotildees ldquode todo diardquo em 15
casas onde fui convidada a almoccedilar com a famiacutelia O horaacuterio de almoccedilo variou
de 1100 a 1130 e essa variaccedilatildeo tem a ver com o horaacuterio em que acordam e
iniciam as atividades que jaacute natildeo eacute mais tatildeo riacutegido como jaacute foi no passado Como
parte das conversas aconteciam geralmente nas cozinhas enquanto o almoccedilo
era preparado pude acompanhar todo o processo Me ofereci para ajudar em
alguma coisa na atividade da cozinha mas a uacutenica ajuda permitida foi
acompanhaacute-las ateacute a horta para ldquoapanharrdquo verdura
Em todos os almoccedilos que participei estavam presentes no cardaacutepio o
ldquotrivial mineirordquo denominaccedilatildeo atribuiacuteda por Eduardo Frieiro para ldquofeijatildeo angu e
couverdquo O autor apoacutes as pesquisas sobre a alimentaccedilatildeo em Minas Gerais da
fase mineradora ateacute meados da deacutecada de 1950 sugeriu alguns dos alimentos
que considerava possiacutevel serem caracterizados como tiacutepicos de Minas Gerais
A sugestatildeo se deu em funccedilatildeo da peculiaridade de seus preparos satildeo eles o
tutu de feijatildeo com torresmo ou linguiccedila o lombo de porco assado a couve
cortada fina e refogada e o angu sem sal
143
Aleacutem do feijatildeo do angu e da couve havia todos os dias tambeacutem o arroz
nas refeiccedilotildees que participei Assim eu elegeria como a comida tiacutepica do almoccedilo
do conjunto das famiacutelias desta pesquisa a seguinte composiccedilatildeo arroz feijatildeo
batido no liquidificador angu couve refogada e carne (de frango ou porco) O
feijatildeo batido eacute comum em Minas e no interior de Satildeo Paulo mas quase
desconhecido nos outros estados Eacute comum associar a Minas Gerais o feijatildeo
tropeiro e ao tutu mas nas famiacutelias que pesquisei a forma de servi-lo eacute
predominantemente batido temperado com gordura de porco e alho Antes de
haver o liquidificador o feijatildeo era amassado agrave matildeo com o uso de um ldquosocadorrdquo
depois adicionava-se aacutegua o resultado era um feijatildeo de caldo grosso e
diferentemente do tutu e do tropeiro natildeo lhe eacute adicionado farinha o que o torna
mais diferente do tutu e mais leve jaacute que a farinha lhe confere a categoria de
comida com ldquosustanccedilardquo Embora a carne de porco tenha sido a mais presente
a de frango tambeacutem foi marcante A carne de boi eu comi em apenas duas casas
na forma moiacuteda e cozida O frango sempre frito ou ensopado algumas vezes era
acompanhado de quiabo O peixe foi servido em uma casa pescado no rio que
passa na propriedade A disponibilidade da carne natildeo era farta mas suficiente
para tecirc-la no prato sem esbanjamento e proporcionar satisfaccedilatildeo Mas os outros
alimentos eram preparados em grande quantidade
Foi recorrente ser servida mais de uma fonte de carboidrato nas
refeiccedilotildees por exemplo arroz angu e ou moranga e ou mandioca e ou batata
doce e ou farinha e ou macarratildeo O carboidrato eacute responsaacutevel pelo suprimento
de energia do organismo Para as famiacutelias esses alimentos satildeo importantes para
dar ldquosustanccedilardquo e tambeacutem satildeo responsaacuteveis por compor um almoccedilo ldquoforterdquo assim
como sinalizaram em relaccedilatildeo agrave gordura de porco Esse aprendizado eacute por
transmissatildeo cultural a mesma loacutegica para o consumo da gordura de porco
532 Comida de domingo de dias festivos e comensalidade
A comida de domingo varia pouco O arroz e o feijatildeo satildeo consumidos
tambeacutem nesse dia Agraves vezes o feijatildeo batido eacute substituiacutedo pelo tutu com cebola
e pelo feijatildeo tropeiro A macarronada com frango ou com carne de panela
tambeacutem eacute um prato presente com frequecircncia aos domingos Todas as famiacutelias
que tecircm os filhos morando proacuteximos inclusive em Viccedilosa afirmaram que aos
144
domingos o almoccedilo eacute dia de reuniatildeo em famiacutelia os filhos e netos chegam para
o almoccedilo e laacute passam o dia Quando os sogros dos filhos moram perto eacute feita
uma divisatildeo almoccedilo em uma casa cafeacute da tarde ou jantar em outra As filhas e
ou noras ajudam no preparo do almoccedilo e de lavar a louccedila Os casais
aposentados que ficam muito sozinhos durante a semana consideram esses
momentos fundamentais porque ldquoo dia fica mais alegrerdquo
() eu fico soacute por conta de cozinhar para eles a mesa essas duas ai ficam sempre cheias de coisas em cima eacute biscoito eacute bolo eacute doce eu gosto de ver os filhos e os netos tranccedilando por ai eles gostam de ficar na cozinha na mesa natildeo cabe todo mundo ai eles colocam umas cadeiras e ficam aqui tambeacutem eles gostam de pegar ovos no galinheiro e bater gemada acostumei eles a comer gemada desde pequenos e eles soacute comem gemada aqui por causa do ovo daqui (Eliana 69 anos moradora de Itapeva em Presidente Bernardes MG 2015)
Nos dias de domingo a casa fica cheia minhas filhas costumam trazer um prato feito por elas e junta com o que eu faccedilo aqui eacute muita fartura eacute muito bom todo mundo conversa ri pena que no fim do dia vai todo mundo embora (Laurinda 77 anos moradora de Tatu em Piranga MG 2015)
A ldquofarturardquo da comida destacada por Laurinda nas ocasiotildees de encontro
familiar eacute um grande valor atribuiacutedo pelas famiacutelias rurais Fartura de alimentos
significa uma boa produtividade de alimentos na roccedila mas significa tambeacutem
seguranccedila Ter ldquoo de comerrdquo todos os dias garantido na mesa eacute um atributo que
lhes eacute importante nas suas condiccedilotildees de famiacutelias agricultoras
O espaccedilo de comensalidade nessas ocasiotildees eacute basicamente a cozinha
lugar preferido da famiacutelia quando estaacute reunida Lody (2008) defende que muitos
haacutebitos alimentares soacute se desenvolvem na medida em que a casa e sua cozinha
tornaram-se capazes de permitir a reuniatildeo da famiacutelia e amigos Talvez por isso
as cozinhas das casas que visitei fossem amplas mesmo que outros cocircmodos
da casa como a sala fossem pequenos Em todas as cozinhas havia um
cocircmodo acoplado pequeno e que funcionava como despensa A presenccedila de
mais de uma mesa foi comum mesa na cozinha com pelo menos seis cadeiras
e bancos de madeira recostados a uma das paredes a outra mesa ficava em
uma copa ou em uma aacuterea externa geralmente de meia parede tambeacutem
proacutexima agrave cozinha onde foi ficava instalado o forno de barro quando existia em
algumas casas ele costumava estar proacuteximo ao paiol embaixo de uma coberta
Assim esses satildeo os espaccedilos onde ocorre a comensalidade nas famiacutelias
145
sobretudo em ocasiotildees especiais como nos almoccedilos de domingo e nos
momentos de convivecircncia familiar nos finais de ano
A comensalidade no grupo entrevistado ocorre tambeacutem nos eventos
maiores Nesse caso pode-se formar uma rede de cooperaccedilatildeo de trabalho para
fazer os festejos acontecerem Duas mulheres contaram com riqueza de
detalhes sobre as festas de bodas de ouro que ocorreram no quintal das casas
Coincidentemente trata-se de duas famiacutelias de Presidente Bernardes A festa
dos sogros de Lola e Marcos ocorreu no siacutetio dos sogros na comunidade de
Xopotoacute em 2011 A festa de Eliana e Saturnino ocorreu tambeacutem no siacutetio na
comunidade de Itapeva em 2014 Jaacute citei essas duas festas anteriormente ao
falar dos animais que foram abatidos para o almoccedilo Em ambas algumas
caracteriacutesticas satildeo comuns uma delas eacute que a festa aconteceu no quintal o que
segundo Eliana ldquoeacute costume na regiatildeo aqui eacute muito pouca gente que aluga
salatildeo pra fazer festa e mesmo casamento acontece tudo aqui na roccedila mesmordquo
Os vizinhos dos siacutetios proacuteximos foram convidados Filhos e outros parentes que
moram fora tambeacutem estiveram presentes Nas duas festas a comida servida foi
a ldquocomida de roccedilardquo e como jaacute dito antes suiacutenos e frangos criados no local foram
abatidos O prato principal foi a carne o restante foi acompanhamento porque
como destacou Lola ldquoem dias de festa tem que ter muita carne que eacute do que o
povo gostardquo
Eliana contou que as mulheres da vizinhanccedila ajudaram com a
organizaccedilatildeo e tambeacutem a fazer ldquoa comida de veacutespera descascando batata
cozinhando mandioca matando e depenando os frangos para o dia da festa
os meus filhos contrataram umas cozinheirasrdquo
Foi realizada uma missa no paacutetio na frente da sua casa No quintal foram
colocados dois grandes ldquofogotildees de cupimrdquo e seu funcionamento seraacute detalhado
mais agrave frente Nestes fogotildees foram feitos os seguintes pratos macarratildeo com
pato tutu arroz frango frito farinha torrada mandioca frita e batata doce Natildeo
foi servida salada De bebida foram servidos refrigerante e cerveja A sobremesa
servida foi o ldquobolo de festa bem granderdquo que os filhos encomendaram da cidade
Foi muito boa a festa a missa a ajuda das mulheres aqui eacute assim todo mundo ajuda uns aos outros quando precisa Teve muacutesica e danccedila as pessoas podiam danccedilar se quisessem (Eliana Itapeva Piranga MG 2015)
146
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 11 ndash Fogatildeo de cupim no quintal do siacutetio de Eliana e Saturnino em Itapeva
Presidente Bernardes
Para a festa de bodas de ouro dos sogros de Lola estiveram presentes
em torno de 200 pessoas entre familiares e vizinhos de siacutetios proacuteximos Pelas
informaccedilotildees de Lola a festa teve maior investimento em produccedilatildeo Foi colocado
um telatildeo no quintal onde se mostrou a retrospectiva do casal desde o
casamento com montagens de fotos Soltaram muitos foguetes e teve muacutesica
de forroacute com espaccedilo para as pessoas danccedilarem no quintal Os filhos que moram
em cidades vizinhas e em Satildeo Paulo foram os responsaacuteveis pela organizaccedilatildeo
do evento e ao contraacuterio da festa do primeiro casal esta natildeo contou muito com
a participaccedilatildeo cooperativa dos vizinhos Todo o trabalho de veacutespera da cozinha
foi feito pela famiacutelia filhas filhos noras e genros do casal Foram contratadas
matildeo de obra para cozinhar no dia e servir a comida O cardaacutepio desta festa
consistiu de churrasco de carne bovina e suiacutena (a carne suiacutena de produccedilatildeo
local) linguiccedila frango frito arroz salpicatildeo farofa de milho vinagrete e uma
mesa de frutas Assim como na primeira festa nesta tambeacutem natildeo teve um prato
147
de saladas ou verduras refogadas apesar de elas estarem presentes nas
comidas de todo dia
Reportamos a Woortmann (1985) quando ele trata dos convites para
refeiccedilotildees em casa com o objetivo de reestabelecer sociabilidades e que nestas
ocasiotildees o aspecto fisioloacutegico ou nutritivo da alimentaccedilatildeo eacute pouco relevante
Mais importante eacute o papel social que ela exerce para agradar aos olhos ao olfato
e por fim ao paladar Eacute importante que as pessoas ao irem embora da festa
faccedilam elogios agrave comida e por isso ela precisa tambeacutem ser farta Como foi visto
no capiacutetulo 2 a carne em Minas nos primoacuterdios da mineraccedilatildeo era uma raridade
nas refeiccedilotildees e por isso passou a assumir um status simboacutelico importante na
refeiccedilatildeo a partir da fase da ruralizaccedilatildeo Fazer uma festa sem servir muita carne
seria motivo de criacutetica e natildeo de elogios Ao contraacuterio o excesso de carne eacute tanto
valorizado quanto classifica um ldquoalmoccedilo na roccedilardquo como farto e bom
Brandatildeo (1982) em sua pesquisa com agricultores do interior de Goiaacutes
trata da comida de festa na roccedila Para o seu grupo pesquisado o sabor e a
fartura da comida oferecida tambeacutem foi declarado como sendo o principal para
o sucesso de uma festa
O valor da comida ldquoboardquo ldquocom gostordquo estaacute em seu modo de preparo ruacutestico e na fartura o tempero forte ldquomuita banha de porco muito toucinho pimenta agrave vontaderdquo sobre uma comida tambeacutem forte e abundante ldquomuita carne de capado muito arroz e feijatildeo mandioca agrave vontaderdquo (BRANDAtildeO 1982 p 136)
Tambeacutem Falci (1995) relata sobre as festas de casamento na roccedila
regiatildeo do Piauiacute no final do seacuteculo XIX onde muita quantidade de comida era
servida mesmo sendo simples a festa de casamento precisava ser farta e era
tambeacutem importante que se convidasse toda a vizinhanccedila rural
Para a festa havia toda a organizaccedilatildeo pois natildeo se dispunha de armazenamento Os porcos tinham jaacute sido postos a sevar nos chiqueiros e estavam no ponto (de uns 8 a 10 kg cada um) assim como os outros animais Ateacute os parentes ajudavam no abastecimento da festa engordavam leitoas ou perus para a festa da sobrinha ou afilhada e no dia faziam-se assados em muitas casas amigas ou de parentes dos noivos (FALCI 1995 p 260)
Nessas ocasiotildees mais do que em dias normais a comida se apresenta
como um coacutedigo que expressa niacuteveis de relacionamento e de interaccedilatildeo social
como no sentido atribuiacutedo por Douglas (1972) Em festas ou manifestaccedilotildees
culturais tradicionais o alimento assume uma categoria de ldquocomidas-coacutedigordquo que
148
se apresenta com a funccedilatildeo binaacuteria de alimentaccedilatildeo e socializaccedilatildeo sendo
carregada de mensagens simboacutelicas
If food is treated as a code the message it encodes will be found in the pattern of social relations being expressed The message is about different degrees of hierarchy inclusion and exclusion boundaries and transactions across the boundaries Like sex the taking of food has a social component as well as a biological one Food categories therefore encode social events (DOUGLAS 1972 p 61)
Em um saacutebado pela manhatilde em que passei no siacutetio de Ana Luisa e Lucas
(45 e 52 anos respectivamente) na comunidade de Bom Jesus do Bacalhau para
agendar entrevista para a semana seguinte havia uma movimentaccedilatildeo de
pessoas Logo descobri que eram parentes que vieram de Ouro Preto e de Belo
Horizonte para passar o final de semana e como uma das sobrinhas estava
fazendo 15 anos de idade naquele dia a famiacutelia resolveu organizar
improvisadamente uma comemoraccedilatildeo no siacutetio Muitos balotildees coloridos estavam
sendo pendurados no teto e nos pilares da varanda Logo que entrei no corredor
externo que daacute acesso agrave cozinha avistei um bolo de aniversaacuterio sendo montado
O bolo jaacute estava com trecircs camadas e recheado de doce de leite e ameixa
faltando ainda a cobertura que seria com creme de coco Para a execuccedilatildeo do
bolo foram utilizados leite longa vida doce de leite e coco ralado ambos
industrializados O bolo estava sendo feito pelas irmatildes de Ana Luiacutesa enquanto
ela e o marido se dividiam na cozinha preparando ldquotira-gostosrdquo e a carne para o
almoccedilo Em um tacho de ferro sobre a trempe do fogatildeo a lenha Ana Luisa fritava
pedaccedilos de carne de porco e outra panela estava sendo frito o ldquomilhopatilderdquo (Figura
12) produzido por Ana Luisa Esse salgado eacute feito de uma mistura agrave base de
fubaacute caldo de galinha e polvilho azedo Segundo Lucas cujo avocirc foi tropeiro o
ldquomilhopatilderdquo artesanal eacute tradiccedilatildeo em sua famiacutelia e foi com a sogra que Ana Luisa
diz ter aprendido a fazer ldquoTodo mundo gosta a gente vende muito dele laacute no
mercadordquo
149
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 12 ndash Processo de fritura do ldquomilhopatilderdquo
A mesa da cozinha estava posta com rosquinha de sal amoniacuteaco queijo
bolo de milho e cafeacute Fui convidada a tomar ldquoum cafezinho e comer alguma coisardquo
e tambeacutem a experimentar o milhopatilde frito Em um dia tumultuado para a famiacutelia
minha visita se encerrou logo
Pude perceber alguns aspectos relacionados agraves praacuteticas alimentares
que satildeo tratados nesta pesquisa a sociabilidade demonstrada no trabalho
conjunto de organizaccedilatildeo da festa a utilizaccedilatildeo de produtos industrializados na
elaboraccedilatildeo do bolo a produccedilatildeo do ldquomilhopatilde alimento de receita tradicional da
famiacutelia a carne e o torresmo de porco caipira criado no siacutetio Nessas praacuteticas
alimentares desenvolvidas na cozinha dessa famiacutelia estiveram presentes agrave
praticidade em utilizar os produtos industrializados mas tambeacutem a manutenccedilatildeo
de praacuteticas tradicionais sinalizando nessa mescla fatores de permanecircncia e de
mudanccedila no sentido tratado por Poulain (2013) Giard (2012) Cacircmara Cascudo
(2004) e Doacuteria (2014)
A comensalidade tambeacutem ocorre envolvendo formas natildeo tradicionais agrave
cultura local Eacute o caso que ocorre na famiacutelia de Antocircnio e Marieta (78 e 73 anos
respectivamente) Antonio o ex-padeiro jaacute citado aqui que para agradar os netos
ndash crianccedilas e adolescentes que moram em aacuterea urbana ndash quando passam feacuterias
em seu siacutetio promove o que os netos chamam de a noite da ldquoPizzada do vovocircrdquo
Neste evento ele eacute o responsaacutevel por produzir pizzas no forno de barro do siacutetio
Disse jaacute ter virado uma tradiccedilatildeo familiar dos uacuteltimos anos Ele prepara as massas
e convoca os netos para ajudar a rechear as pizzas Esses satildeo momentos de
150
comensalidade familiar muito interessantes aleacutem de comerem juntos produzem
a comida em conjunto Geraccedilotildees diferentes partilhando os saberes e prazeres
da comida e da convivecircncia
A produccedilatildeo das pizzas chamou a atenccedilatildeo por natildeo ser um alimento que
faz parte da cultura da regiatildeo pesquisada Nenhum entrevistado aleacutem de
Antocircnio falou sobre esse alimento Tampouco ela eacute citada por Frieiro (1982) ou
Cacircmara Cascudo (2004) como alimentos consumidos em Minas Colonial A
pizza tem sua origem atribuiacuteda agrave Itaacutelia e passou a ser consumida no Brasil
justamente com a chegada desses imigrantes ao Paiacutes Segundo Antonio e
Marieta as pizzas comeccedilaram a ser produzidas por ele no forno de barro nos
encontros de feacuterias dos filhos e netos no siacutetio Uma de suas filhas mora no Rio
Grande do Sul e eacute casada com um descendente de italiano Com um nuacutemero
grande de familiares em casa nessas ocasiotildees e para agradar aos netos
Antocircnio que domina a atividade de panificaccedilatildeo optou em aprender a fazer as
pizzas Um exemplo de hibridismo cultural alimentar em funccedilatildeo de haacutebitos
diferentes de membros da famiacutelia O avocirc valorizando o habito alimentar dos
netos e praticando ao mesmo tempo a atividade de produzir massas que
considera como muito prazerosa Outro aspecto interessante eacute que se trata de
um alimento associado ao mercado fast food nos centros urbanos mas no caso
especificamente dessa famiacutelia o seu consumo tem uma loacutegica que se associa
ao ritmo do slow food
Juntar a famiacutelia para fazer a ldquopizzada do vovocircrdquo eacute uma forma de Antonio
resgatar esse tempo vivido onde era produzida grande quantidade de quitandas
aleacutem de patildees e eacute para os netos um importante momento de aprendizado com o
avocirc como aquele que agrega a famiacutelia usando da comida e assim assumindo
seu papel de guardiatildeo da cultura Nos dias atuais segundo o casal o forno de
barro raramente eacute utilizado soacute mesmo em dias de festa nos finais de ano Nos
depoimentos de Antonio estaacute presente a memoacuteria afetiva ligada agraves praacuteticas
culinaacuterias que lhe foram muito presentes no passado mas que se distancia do
seu cotidiano na contemporaneidade Natildeo por acaso a chegada dos netos eacute
sempre um evento ansiosamente esperado pelo casal
151
533 Os doces
Em relaccedilatildeo agraves frutas as mais comuns nos pomares e quintais eram a
laranja bahia e serra drsquoaacutegua a poncatilde a mexerica o limatildeo galego ou limatildeo
capeta o limatildeo taiti a goiaba a banana a jabuticaba o figo a cidra a pitanga
a acerola a amora a manga e o abacate As frutas satildeo consumidas de acordo
com a sazonalidade e algumas mesmo estando presentes natildeo satildeo
preferenciais como eacute o caso do mamatildeo exceto para fazer doce de mamatildeo
verde Os sucos mais consumidos satildeo de laranja acerola limatildeo e manga
Os doces mais produzidos a partir de frutas locais satildeo os de goiaba
banana e figo Em uma das famiacutelias tive a oportunidade de provar dois doces
receacutem elaborados por Marieta moradora de Boa Vista Piranga doce de ameixa
em calda e doce de figo
Cacircmara Cascudo (2004) relata que o doce representava grande
importacircncia social no periacuteodo Colonial brasileiro heranccedila de Portugal Quando
se queria presentear algueacutem ou homenagear uma bandeja de doce era sempre
uma excelente escolha Era considerado uma boa qualidade feminina saber
fazer o doce de receita de famiacutelia e esse ensinamento era repassado agraves jovens
pelas matildees Tambeacutem Algranti (2007) destaca que nesse periacuteodo os doces natildeo
faziam parte do trivial mas de eventos festivos e por isso consideradas iguarias
Mesmo que com o tempo eles tenham ganhado espaccedilos mais populares e
vendidos em tabuleiros nas ruas
Essa relaccedilatildeo com os momentos especiais descrito pela autora parece
persistir na regiatildeo pesquisada Dentre as famiacutelias que entrevistei a elaboraccedilatildeo
de doces natildeo eacute uma atividade culinaacuteria cotidiana seu consumo e fabricaccedilatildeo
estatildeo associados aos dias de domingo e agraves datas festivas sobretudo agraves festas
de final de ano Natal e Ano Novo
Laurinda 77 anos moradora de Tatu em Piranga relatou que fazia
doces para agradar a todos os filhos quando havia festas de aniversaacuterio em casa
quando eles ainda eram crianccedilas e adolescentes ldquoPara aquele que preferia
rocambole eu fazia rocambole para aquele que preferia pudim eu fazia pudim
agradava a todos os filhos eu gostavardquo
Zefa 67 anos moradora de Mato Dentro em Presidente Bernardes
tambeacutem disse gostar das eacutepocas de elaborar doces Para as festas de final de
152
ano ela comeccedila a fazer um mecircs antes do Natal Os doces tradicionais da sua
famiacutelia satildeo o rocambole de doce de leite e o doce de figo Ela descreveu o
processo de elaboraccedilatildeo
O doce de leite eu comeccedilo a fazer ele agraves 0800 e soacute vou tirar ele do fogo agraves 14 horas ponho num tacho grande ele vai fervendo aos pouquinhos ateacute secar e ficar cremoso mas tem que ser com leite de roccedila leite gordo e leva pouco accediluacutecar Para 8 litros e leite soacute duas xiacutecaras de accediluacutecar O doce de figo antigamente quando natildeo tinha geladeira a gente tinha que ficar fervendo ele para ele natildeo azedar enquanto tivesse doce tinha que fazer isso Hoje natildeo a gente faz o doce e guarda na geladeira e fica verdinho e pode ficar muito tempo guardado (Zefa 67 anos moradora da Comunidade Mato Dentro Presidente Bernardes MG 2015)
O depoimento de Zefa deixa transparecer a dedicaccedilatildeo de tempo ao
preparo do doce e a tenccedilatildeo cuidadosa agraves etapas para natildeo passar do ponto Natildeo
se podia ter pressa Por isso a elaboraccedilatildeo dos doces eram atividades
esporaacutedicas para eventos especiais principalmente para as festas de final de
ano consideradas eventos familiares de grande importacircncia para essas famiacutelias
Percebi durante a pesquisa que essa percepccedilatildeo permanece entre as mulheres
ao falarem da elaboraccedilatildeo dos doces Haacute nos gestuais descritos por Zefa uma
relaccedilatildeo semelhante ao que eacute tratado por Giard (2012) ao relacionar ao trabalho
das cozinheiras de tempos passados em que a paciecircncia para conduzir as
praacuteticas culinaacuterias era a tocircnica
Outrora a cozinheira se servia de um instrumento simples de tipo primaacuterio cujas funccedilotildees tambeacutem eram simples era ela que dirigia o desenrolar da operaccedilatildeo vigiava a sucessatildeo dos momentos da sequecircncia de accedilatildeo e podia representar mentalmente o processo Nessa forma de cozinhar havia uma habilidade de artesatildeo empenhado em aperfeiccediloar seu meacutetodo ou variar suas produccedilotildees (p 284)
Outros dois pontos no depoimento de Zefa merecem destaque O
primeiro quando ela fala de um tempo em que a geladeira natildeo existia Havia a
necessidade de ferver constantemente o doce para natildeo estragar Aqui presente
a relaccedilatildeo com a modernidade Atualmente com o acesso agrave geladeira esse
trabalho foi reduzido Nesse sentido eacute preciso considerar o quanto a tecnologia
industrial facilitou a fabricaccedilatildeo de alimentos sem que necessariamente tenha
alterado a obtenccedilatildeo de um produto de igual qualidade e sabor Zefa continua
fazendo o doce de figo assim como as outras mulheres mas utilizando uma
tecnologia de conservaccedilatildeo moderna e muito importante
153
O segundo ponto diz respeito ao uso do tacho Todas as mulheres que
entrevistei tinham um tacho de cobre que foi herdado de matildee da avoacute ou que foi
comprado por elas Fazer doces em tacho de cobre faz parte da tradiccedilatildeo da
culinaacuteria em vaacuterios lugares do Brasil Poreacutem haacute atualmente uma discussatildeo sobre
o seu uso Em Minas Gerais a Vigilacircncia Sanitaacuteria Estadual proibiu o seu uso
para fabricaccedilatildeo de doces em funccedilatildeo dos resiacuteduos toacutexicos que podem ser
liberados exceto se forem revestidos por banho de ouro prata niacutequel ou
estanho material que natildeo estatildeo presentes nos tachos mais comuns na zona
rural o mais comum e mais barato eacute o revestimento em estanho Surgiu em
funccedilatildeo disso movimentos que defendem a manutenccedilatildeo do uso do tacho de
cobre e que eacute possiacutevel conscientizar as pessoas sobre o uso e higienizaccedilatildeo
correta do tacho sem extinguir seu uso Zefa por exemplo limpa o seu tacho
com sal e limatildeo para retirar todo o azinhavre44 Aleacutem do tacho de cobre haacute o caso
da colher de pau cuja proibiccedilatildeo fez surgir o ldquoManifesto Colher de Paurdquo de autoria
do antropoacutelogo da alimentaccedilatildeo Raul Lody e apoiado pelo FBSSAN (Foacuterum
Brasileiro de Soberania e Seguranccedila Alimentar e Tradicional) O objetivo do
Manifesto eacute cobrar dos oacutergatildeos fiscalizadores um canal de discussatildeo com a
sociedade civil no sentido de encontrar soluccedilotildees menos radicais como a
extinccedilatildeo de usos tradicionais na fabricaccedilatildeo de doces e outros produtos
culinaacuterios45
Joana 39 anos moradora de Jacuba em Porto Firme contou sobre a
festa de casamento de uma parente que aconteceu na roccedila e em que todos os
doces servidos foram feitos pelas mulheres da famiacutelia e outras amigas do casal
Ela proacutepria ajudou na elaboraccedilatildeo Fizeram goiabada figo doce de leite
cajuzinho brigadeiro doce de aboacutebora com coco e outros
A Figura 13 mostra o doce de ameixa que Marieta estava preparando
Trata-se da ameixa vermelha (tambeacutem conhecida como ameixa japonesa) Natildeo
eacute uma fruta muito comum na regiatildeo da pesquisa mas Marieta possui uma aacutervore
que todos os anos daacute muito fruto e ela aproveita para fazer o doce que eacute muito
saboroso
44 Nome que se daacute a oxidaccedilatildeo do cobre a camada esverdeada que resulta desse processo 45 Para ver mais sobre o Manifesto e acessaacute-lo na iacutentegra ver o site da FBSSAN (httpwwwfbssanorgbr
indexphpoption=com_contentampview=articleampid=419manifesto-colher-de-pauampcatid=79ampItemid=672ampl ang=pt-br)
154
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 13 ndash Doce de ameixa feito por Marieta na comunidade Boa Vista em Piranga MG
54 A comensalidade para aleacutem das festas e datas especiais
A comensalidade ocorre de forma diferenciada nas famiacutelias
pesquisadas Em todas elas a maior frequecircncia eacute no jantar indicando o
fechamento de um dia de trabalho mesmo que ela se decirc na sala com o prato
na matildeo e assistindo agrave programaccedilatildeo da TV costume citado pela maioria das
famiacutelias Nesses momentos a conversa gira em torno dos assuntos divulgados
no programa (em geral o telejornal)
Se natildeo se daacute nesse ambiente ela ocorre na cozinha e em ambos os
casos natildeo eacute um momento demorado Mas a comensalidade ocorre sempre no
cafeacute da manhatilde jaacute que quase todos se levantam na mesma hora e tomam o cafeacute
juntos O cafeacute da manhatilde tambeacutem ldquotoma-se ligeirordquo muitas vezes de peacute que ldquoeacute
para natildeo dar preguiccedilardquo observou Carlos (morador de Posses em Porto Firme)
No horaacuterio de almoccedilo dos dias de semana as refeiccedilotildees satildeo feitas em tempo
curto e o assunto costuma ser basicamente em torno de trabalho pelo menos
foi o presenciei nas casas onde almocei A possibilidade de a famiacutelia estar
reunida para o almoccedilo iraacute depender da disponibilidade de tempo e das atividades
de quem estaacute agrave frente do trabalho no local Nas famiacutelias onde as mulheres
trabalham fora do siacutetio elas raramente estatildeo presentes para essa refeiccedilatildeo
quase sempre soacute aos finais de semana As crianccedilas chegam entre 1200 e 1230
155
horas e eacute comum almoccedilarem na escola Neste caso a comensalidade das
crianccedilas e das mulheres ocorre com outro grupo que natildeo o familiar Natildeo haacute uma
restriccedilatildeo para que a comensalidade se decirc apenas no grupo familiar O proacuteprio
conceito definido por Poulain (2013) destaca isso bem como a discussatildeo de
Fladrin e Montanari (1998) sobre o assunto
Em uma das casas visitadas em Presidente Bernardes almoccedilamos na
mesa da cozinha apenas eu e a Nanaacute (dona da casa) O filho que estava
trabalhando na lavoura de cafeacute saiu de moto pouco antes do almoccedilo para buscar
uma ferramenta de trabalho no siacutetio da irmatilde o marido foi almoccedilar em outro
cocircmodo escutando o raacutedio e a filha que trabalha na cidade e almoccedila em casa
serviu o seu prato e foi almoccedilar na frente da televisatildeo na sala Perguntei a Nanaacute
se eles natildeo costumavam almoccedilar juntos na cozinha ela apenas sorriu e disse
ldquoEacute assim mesmo tem dia que eles preferem ir para laacuterdquo Apesar de sua resposta
fiquei na duacutevida se o motivo de isso ter ocorrido foi minha presenccedila afinal
tratava-se de uma pessoa desconhecida O marido Custoacutedio participou da
conversa todo o tempo ateacute o almoccedilo ser servido Me mostrou a lavoura de cafeacute
e a local onde passaraacute o mineroduto cortando seu siacutetio46 e me explicou o
funcionamento do moinho eleacutetrico A filha chegou pouco antes do almoccedilo e
pudemos conversar um pouco quando ela falou do curso que faz na modalidade
agrave distacircncia e de seus planos para o futuro Em todas as outras famiacutelias almocei
em companhia dos que estavam em casa e natildeo percebi constrangimento
semelhante embora tenha observado uma certa timidez inicial principalmente
por parte dos homens e talvez por isso os diaacutelogos eram curtos Em quase
todas as casas escutei expressotildees que tinham conotaccedilatildeo semelhante ldquoVocecirc
natildeo repara natildeoa comida eacute simplesrdquo Entendi isso como uma reaccedilatildeo normal a
uma visita que eacute de fora do seu nuacutecleo iacutentimo Os homens se levantavam e se
ausentavam da cozinha assim que terminaram a refeiccedilatildeo e as mulheres lavavam
a louccedila
Se hoje eacute mais faacutecil para as pessoas interromperem o trabalho e
almoccedilarem em casa em tempos passados a situaccedilatildeo era diferente Quando o
trabalho era mais intenso as atividades eram quase ininterruptas e as refeiccedilotildees
46 Boa parte do siacutetio de Nanaacute e Custoacutedio seraacute desapropriado em funccedilatildeo da passagem do Mineroduto Isso
tem gerado efeitos em suas vidas desde que o processo se iniciou O processo se arrasta haacute anos e eles natildeo sabem muito bem o que vai acontecer Continuam plantando e vendendo o cafeacute que comercializam e outras pequenas lavouras como milho e cana enquanto aguardam o desenrolar da situaccedilatildeo
156
aconteciam distante da casa com o uso de marmitas como explica Neuzeli
moradora de Vinte Alqueires em Porto Firme
O almoccedilo quando o povo trabalhava na roccedila diretoos trabalhadores comiam de marmita Eu arrumava uma marmita caprichadinha para meu marido e meus filhos Mas na casa de meus pais natildeo levava marmita natildeo levava era uns panelotildees grandes de comida em um punha feijatildeo em outro punha a sopa de mandioca ou de inhame com uns pedaccedilos de carne e tinha que encaixar aqui no ombrocomo uma canga e necessitava de duas e trecircs pessoas para levar E laacute na roccedila juntava todo mundo pra comer junto cada um servia o seu coiteacute47 (Neuzeli 63 anos moradora de Vinte Alqueires Porto Firme MG 2015)
Mais um exemplo de como a comensalidade ocorria nas aacutereas rurais
por mais raacutepidas que fossem as refeiccedilotildees Este exemplo assim como aquele em
que as refeiccedilotildees ocorrem na sala assistindo televisatildeo falam de momentos de
comensalidade onde a presenccedila do objeto ldquomesardquo natildeo eacute necessaacuterio precisa-se
eacute que os momentos das refeiccedilotildees sejam partilhados por mais de uma pessoa
55 Mescla cultural praacuteticas de consumo alimentar de ontem e de hoje
Tem sido comum nos uacuteltimos anos na regiatildeo pesquisada a circulaccedilatildeo
de veiacuteculos que comercializam frutas hortaliccedilas e legumes Os alimentos satildeo
vendidos aos moradores locais mas tambeacutem para os pequenos comeacutercios
rurais Por razotildees diversas alguns agricultores estatildeo optando em comprar
determinados produtos in natura ao inveacutes de cultivaacute-los O principal motivo citado
foi a estiagem dos uacuteltimos anos aliado ao custo-benefiacutecio (praticidade ndash preccedilo)
Satildeo vendidos produtos tais como batata inglesa inhame batata doce moranga
banana alface laranja tomate maccedilatilde pera abacaxi e outros Segundo os
interlocutores os produtos satildeo do CEASA
Aqui em Presidente tem caminhatildeo que vem vender fruta e verdura pro povo das roccedilas Aqui em casa noacutes compramos agraves vezes mas eacute maccedilatilde que aqui natildeo daacute mamatildeo tambeacutem porque aqui natildeo daacute mamatildeo bom mais mas eacute soacute mas eu vejo gente aqui comprando inhame mandioca do caminhatildeo ah isso eu natildeo concordo natildeo (Germana 58 anos moradora de Mato Dentro em Presidente Bernardes MG 2015)
Tem muita gente na roccedila hoje que taacute eacute comprando mesmoeles acham difiacutecil criar um frangopreferem compraraqui o frango eacute criado soltono quintaldaacute uns frangos bons gordinhosalguns falam assim gente daqui mesmo que fica mais caro plantar do que
47 Cuia feita a partir do fruto da aacutervore Coiteacute que depois de colhido maduro cortado ao meio e retirado as
sementes eacute utilizado como utensiacutelio na cozinha e em outras atividades
157
comprar ai eu falo para eles que agraves vezes fica mesmo soacute que plantar a gente gasta devagar e se for para comprar a gente tem que tirar tudo de uma vez soacute para pagar aquele montatildeo aleacutem disso tem a sauacutede a gente compra tudo hoje com remeacutedio esses frangos ai de granja eu sei porque meu cunhado tem uma granja aquilo ali o pintinho chega com 45 dias ele jaacute eacute frango pra abate e isso natildeo eacute com comida soacute que consegue natildeodeve ter algum remeacutedio ali (Maacuterio 44 anos morador de Posses em Porto Firme MG 2015)
Os interlocutores na pesquisa disseram que compram tais alimentos
muito raramente soacute mesmo em situaccedilotildees muito especiacuteficas como estiagem
longa um exemplo eacute o da alface que no ano de 2015 quando foi realizado o
trabalho de campo teve produccedilatildeo muito ruim assim como algumas outras
hortaliccedilas Segundo as informaccedilotildees que deram essa forma de aquisiccedilatildeo eacute
relevante entre essas famiacutelias Os aposentados que natildeo possuem filhos para
ajuda-los na produccedilatildeo ponderaram que natildeo acham ruim o caminhatildeo levar esses
produtos ateacute eles porque muitas vezes a produccedilatildeo de alguns alimentos eacute muito
pequena e quando acaba eles precisam mesmo comprar e se o caminhatildeo vai
ateacute os siacutetios isso facilita natildeo se trata todavia de um costume mas de uma
ocorrecircncia esporaacutedica
O depoimento anterior de Mario demonstra uma preocupaccedilatildeo que foi
manifestada por outros entrevistados tambeacutem Haacute nas famiacutelias uma grande
preocupaccedilatildeo com agrotoacutexicos ateacute por isso evitam cultivar tomate como jaacute
mencionado anteriormente Pelo fato de os alimentos serem provenientes do
CEASA a desconfianccedila em relaccedilatildeo a eles eacute fator de resistecircncia no consumo
acreditam que os alimentos possuem ldquomuito venenordquo Assim esses alimentos
representam para eles o oposto dos alimentos que produzem nos proacuteprios siacutetios
considerados como mais saudaacuteveis do que os comprados Novamente pode-se
associar essa preocupaccedilatildeo agrave ldquoangustia alimentarrdquo tratada por Fischler (1995 e
2011)
Esse tipo de comercializaccedilatildeo tambeacutem foi identificado por Sacco dos
Anjos et al (2010) em sua pesquisa na regiatildeo rural de Pelotas no Rio Grande
do Sul Os consumidores de laacute tinham como justificativa a especializaccedilatildeo em
uma determinada atividade produtiva como fruticultura e aviaacuterio A falta de
tempo para produzir para autoconsumo e o alto custo da produccedilatildeo os fez
priorizar a aquisiccedilatildeo dos alimentos que consumiam no dia a dia
158
Apesar de os alimentos cultivados no siacutetio predominarem na alimentaccedilatildeo
das famiacutelias os alimentos industrializados tambeacutem satildeo consumidos Pude ver
alguns desses produtos expostos em moacuteveis da cozinha Outros foram
informados pelos entrevistados A lista dos industrializados consta de manteiga
margarina oacuteleo de soja sal arroz biscoito de polvilho biscoito de maisena
biscoito de aacutegua e sal farinha de trigo farinha de milho farinha de mandioca
leite longa vida leite de soja accediluacutecar macarratildeo massa de tomate polvilho leite
condensado e poacute de cafeacute (naquelas famiacutelias que natildeo o produz ou quando o
produto local acaba) Natildeo houve registro de compra de refrigerantes (usado
apenas em ocasiotildees festivas) alimentos congelados (massas patildees de queijo e
carnes etc) embutidos (salsichas presunto mortadela) Nem todos os produtos
listados satildeo consumidos por todas as famiacutelias trata-se de uma lista de produtos
consumidos pelo montante das famiacutelias
Duas das famiacutelias de Piranga a de Ana Luisa e Lucas e a de Juliana e
Jacinto satildeo proprietaacuterias de um pequeno comeacutercio rural nas comunidades de
Bacalhau e Tatu respectivamente Em ambos eacute comercializado parte do que
produzem nos siacutetios Os alimentos mais vendidos satildeo oacuteleo vegetal arroz (que
passou a ser vendido haacute cerca de 15 anos quando se reduziu drasticamente o
cultivo nas regiotildees) farinha de trigo biscoito de polvilho do tipo ldquopapa-ovordquo
macarratildeo massa de tomate ovos (de granja) nos periacuteodos mais frios do ano
porque a produccedilatildeo de ovos de galinhas caipiras diminui e finalmente a laranja
(da CEASA) a partir dos meses de novembro quando a produccedilatildeo nos pomares
diminui
A escolha de consumo referente aos alimentos industrializados pelas
famiacutelias se daacute pela praticidade aliada a preccedilo pela necessidade de consumo ou
por terem se tornado inviaacuteveis a sua produccedilatildeo nos siacutetios Eacute o caso do arroz do
polvilho do accediluacutecar da rapadura do biscoito de polvilho assado e da manteiga
Sobre as opccedilotildees atuais de consumo e as mudanccedilas nos modos de vida os
depoimentos abaixo apresentam importantes reflexotildees
O ritmo na roccedila taacute muito corrido parece que o pessoal natildeo tem muito prazo mais de ficar cuidando das coisas igual antigamente acho que o pessoal tambeacutem era mais pobre precisava trabalhar mais na roccedila pra produzir e arrumar renda hoje consegue comprar mais coisa Antes soacute compravam sal agora eacute mais faacutecil comprar de tudo antes todo mundo plantava arroz e colhia agrave vontade e ainda sobrava para vender (Joel 71 anos morador de Limeira em Porto Firme MG 2015)
159
A gente compra muita coisa que natildeo compensa mais produzir e nem gente suficiente para produzir aqui na roccedila Tem coisa que natildeo daacute pra produzir aqui igual macarratildeo e rapadura natildeo daacute mais pra fazer nem arroz porque natildeo compensa cafeacute a gente ainda planta um pouquinho e feijatildeo mas soacute daacute para o gasto mesmo (Joseacute 47 anos morador de Mato Dentro Presidente Bernardes MG 2015)
Outro item comprado por todos eacute o accediluacutecar cristal que veio a substituir a
rapadura o accediluacutecar mascavo e o melado que antigamente eram produzidos
Mesmo nas famiacutelias que ainda possuem um pequeno engenho o accediluacutecar cristal
tambeacutem eacute consumido por exemplo para adoccedilar o suco de frutas fazer bolo
broa e outras quitandas Segundo os meus interlocutores o uso do accediluacutecar cristal
industrializado eacute recente datando de cerca de 30 anos
Meus pais tinham um engenho de cana e faziam rapadura e melado hoje a gente planta cana soacute para dar agraves vacasos que que tinham engenho e que continuam a plantar cana usam soacute para produzir cachaccedila ou alimentar as vacas (Lucas 52 anos morador de Bom Jesus do Bacalhau em Piranga MG 2015)
A gente fazia muito melado accediluacutecar mascavo rapadura meus filhos cresceram comendo inhame com melado era muito gostoso e um alimento forte (Luisa 57 anos moradora de Bom Retiro em Porto Firme MG 2015)
Marilia 65 anos moradora de Mestre Campos em Piranga explica
como a sua avoacute fazia o que denominava de ldquoaccediluacutecar brancordquo mas que nada tem
a ver com o accediluacutecar cristal industrializado Recebia esse nome porque era mais
claro do que o accediluacutecar mascavo constituiacutea tambeacutem em um modo ruacutestico de
fabricar o accediluacutecar no siacutetio conforme sua descriccedilatildeo
Ela batia o caldo para rapadura mas sem chegar no ponto de rapadura ai colocava essa massa numa mesa de madeira com beiral por cima da massa ainda quente ela colocava argila escura e deixava no dia seguinte a massa ficava toda quebradiccedila e bem mais clara do que a mascavo Tirava os torrotildees de argila que ficavam bem sequinhos e duro e ficava soacute o accediluacutecar (Marilia 65 anos moradora de Mestre Campos em Piranga MG 2015)
Sobre o que chamei de mescla alimentar no subtiacutetulo ou seja o
consumo concomitante de produtos tradicionais e produzidos pelas proacuteprias
famiacutelias e aqueles adquiridos no mercado ou no caminhatildeo o que a pesquisa
apontou eacute que apesar de as famiacutelias considerarem que o sabor do fubaacute e do
accediluacutecar ficou ruim comparando-se ao que conheceram anos atraacutes as famiacutelias se
mostraram adaptadas ao consumo das formas atuais desses produtos O arroz
permanece nas refeiccedilotildees de todos os dias mesmo sendo industrialmente
160
produzido De forma semelhante o fubaacute do moinho eleacutetrico continua sendo
usado para a fabricaccedilatildeo da broa e do angu a serem consumidos cotidianamente
O accediluacutecar cristal eacute usado com frequecircncia para adoccedilar bolos sucos cafeacutes e
doces Natildeo observei no grupo pesquisado resistecircncia aos produtos
industrializados que consomem Apenas o consumo do oacuteleo vegetal sofreu um
pouco de rejeiccedilatildeo embora tenha sido bem aceito para preparo de frituras exceto
para o casal Eliana e Saturnino que continua resistindo em consumi-lo
O arroz natildeo perdeu a importacircncia que tinha por ser industrializado nem
o fubaacute perdeu seu lugar nas refeiccedilotildees e nas quitandas de todos os dias por deixar
de ser produzido no moinho drsquoaacutegua tampouco a manteiga deixou de ser
consumida por ser industrializada e a margarina eacute usada na elaboraccedilatildeo de bolo
e quitandas embora natildeo seja usada para passar no patildeo O que percebi foi uma
certa resignaccedilatildeo dos meus interlocutores diante de uma realidade alimentar em
transformaccedilatildeo uma vez que as mudanccedilas em curso natildeo ocasionaram draacutesticas
adaptaccedilotildees alimentares Na medida do possiacutevel continuam a comer o que
sempre comeram e a preparar os alimentos da forma que sempre fizeram seus
pais Isso sinaliza que a cultura eacute dinacircmica e estaacute em constante transformaccedilatildeo
Em funccedilatildeo de eventos diversos novos elementos vatildeo surgindo outros vatildeo
sendo incorporados Alguns permanecem na memoacuteria e nas histoacuterias das
famiacutelias assim como outros caem no esquecimento
56 As quitandas para a merenda e para servir agraves visitas
O termo quitanda segundo Silva (2014) e Dourado (2006) origina da
palavra Kitanda da liacutengua quimbundo falada em Angola No Brasil em Minas
Gerais principalmente assumiu a significaccedilatildeo tambeacutem para comidas feitas nos
intervalos das refeiccedilotildees e agrave noite antes de dormir
Nas famiacutelias pesquisadas as quitandas satildeo elaboradas com frequecircncia
Sempre que estatildeo proacuteximas de acabar eacute o momento de fazer outra fornada mas
os dias de saacutebado especialmente satildeo os dias de abastecer a casa para receber
as visitas no domingo que geralmente satildeo a proacutepria famiacutelia os filhos os netos
e mesmo os irmatildeos Nos demais dias da semana a quitanda natildeo pode faltar
pois supre a necessidade diaacuteria pelas merendas A principal quitanda eacute a
ldquorosquinha de sal amoniacuteacordquo que tive a oportunidade de experimentar Algumas
161
mulheres tambeacutem a produzem sob encomenda geralmente para moradores das
cidades proacuteximas As outras quitandas comuns satildeo a broa e o bolo de milho O
cobu de milho (Figura 14) que eacute uma broa enrolada e assada em folha de
bananeira jaacute foi muito comum nas famiacutelias mas por ser de elaboraccedilatildeo mais
trabalhosa foi deixando se ser produzido e hoje o eacute muito raramente Agraves vezes
nos finais de ano quando as casas ficam cheias com a chegada dos filhos e
outros parentes algumas quitandas tradicionais satildeo resgatadas pelas famiacutelias
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 14 ndash Broa do tipo Cobu ou ldquopau a piquerdquo
A broa de fubaacute da Figura 15 havia receacutem-saiacutedo do forno e fui a primeira
a experimentar ainda em temperatura morna Comer bolo quente possui um
prazer especial e muitas pessoas tem essa preferecircncia Natildeo eacute pelo sabor mas
sim pelo fato de saber que se trata de bolo fresco que acaba de sair do forno
com o seu perfume ainda espalhado pelo ambiente A broa feita por Eliana (69
anos moradora de Itapeva Presidente Bernardes) me fez sentir essa sensaccedilatildeo
e neste momento minha memoacuteria afetiva eacute que me levou de volta agrave infacircncia no
siacutetio de meus avoacutes e me trouxe o cheiro que exalava de sua cozinha pela manhatilde
Neste momento da pesquisa senti fortemente a atuaccedilatildeo do tal ldquoimponderaacutevel da
pesquisardquo ao ser recebida com essa delicadeza tatildeo presente nas mulheres
162
rurais com quem tive o prazer de conviver durante a pesquisa Sensaccedilatildeo
semelhante tive ao chegar para a entrevista no siacutetio de Marilia (65 anos
moradora de Mestre Campos em Piranga) e encontrar uma mesa posta com
bolo queijo suco e cafeacute As conversas foram longas com essas e outras
mulheres Experimentei durante a pesquisa o poder da comensalidade
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 15 ndash Broa de fubaacute feita por Eliana em Itapeva Presidente Bernardes
Menos comuns de serem feitos satildeo o bolo agrave base apenas de farinha de
trigo e a ldquorosca da rainhardquo que eacute um tipo de patildeo e que utiliza a farinha de trigo e
fermento bioloacutegico que satildeo opccedilotildees agrave broa de milho Como quitandas
caracteriacutesticas da regiatildeo pesquisada eu elegeria as duas que satildeo consumidas
em todas as casas em que estive broa de fubaacute e rosquinha de sal amoniacuteaco
Mesmo naquelas casas em que natildeo se faz a rosquinha ela eacute consumida porque
eacute comprada nas proximidades
A elaboraccedilatildeo de quitandas sempre foi fundamental na zona rural desde
os tempos dos avoacutes Tanto em tempos atraacutes quanto na contemporaneidade ela
eacute a principal ldquomerendardquo nas famiacutelias Nos tempos antigos os motivos para ter a
despensa abastecida com quitandas eram o difiacutecil acesso agraves cidades e a
necessidade de economizar com essa alimentaccedilatildeo Mas pelos depoimentos das
mulheres com quem conversei e ainda segundo Frieiro (1982) as razotildees satildeo
tambeacutem culturais e simboacutelicas No periacuteodo colonial em Minas quitanda era algo
163
que se fazia em todas as casas nos fornos de barro Era uma caracteriacutestica de
virtude que se atribuiacutea agrave mulher Para ser considerada prendada a mulher
precisava ser boa quitandeira assim cada uma devia dominar bem uma receita
de quitanda que fosse sempre elogiada por quem a degustasse Freyre (2007)
tambeacutem reforccedila a valorizaccedilatildeo dada agrave mulher que dominasse muito bem a
elaboraccedilatildeo de uma receita Essas receitas soacute se passavam oralmente e a
pessoas muito iacutentimas geralmente para agraves filhas e netas
Nas famiacutelias pesquisadas essa tradiccedilatildeo perpetuou com poucas
modificaccedilotildees ao longo do tempo As receitas elaboradas satildeo as mesmas que as
matildees tias e avoacutes faziam Atualmente os siacutetios das famiacutelias pesquisadas natildeo
distam mais do que 20 quilocircmetros das cidades mais proacuteximas mas ainda assim
as idas agrave cidade exceto para quem laacute trabalha ou estuda natildeo eacute constante O
normal eacute o deslocamento com o objetivo de fazer compras receber
aposentadoria eou resolver outros assuntos e ir agrave missa uma vez ao mecircs
Assim semelhantemente aos que ocorria nos tempos passados dos
antepassados ldquoeacute preciso ter a quitanda pronta para o caso de chegar uma visita
e ter o que servir com um cafeacuterdquo
As quitandas a gente faz em casa Broa eu faccedilo todos os dias Broa de fubaacute agraves vezes bolo de farinha o biscoito eacute comprado mas eu faccedilo rosquinha Aqui na roccedila a gente tem que estar prevenida porque se chegar algueacutem a gente natildeo tem tempo de fazer e nem tem onde achar as coisas perto A venda natildeo tem muita coisachega uma visita raacutepidanatildeo daacute nem tempo pra fazer as coisas entatildeo tem que ter uma broa pronta um bolinho uma rosquinha (Lucia 61 anos moradora de Manja em Piranga MG 2015)
Na fala acima Lucia se refere a biscoito e rosquinha Biscoito para eles
eacute o que se compra como o de polvilho assado ndash que tambeacutem eacute consumido com
muita frequecircncia - o de maisena e o de aacutegua e sal para eles pode-se servir os
biscoitos comprados para as visitas mas eacute preciso ter tambeacutem uma quitanda
feita em casa neste caso a broa ou a rosquinha A expressatildeo ldquobolinhordquo natildeo se
refere a bolinho de alguma coisa como ldquobolinho de chuvardquo mas ao bolo no
diminutivo modo comum de se expressar em Minas Gerais
Em tempos passados a elaboraccedilatildeo das quitandas era tambeacutem um
momento de socializaccedilatildeo havia mais mulheres envolvidas no trabalho
geralmente matildees e filhas como citaram minhas interlocutoras As rosquinhas e
broinhas de rapadura o cobu e outras quitandas eram armazenadas em grandes
164
latas bem vedadas para natildeo perder a textura e o sabor De maneira semelhante
se dava o armazenamento na ocasiatildeo da pesquisa Poreacutem o espaccedilo de
socializaccedilatildeo no preparo natildeo eacute como outrora mas um trabalho feito de forma
praticamente individualizada Em algumas ocasiotildees como em periacuteodos de feacuterias
das filhas pode ocorrer de haver uma filha que ajude mas natildeo eacute a regra Poreacutem
trata-se de uma atividade de execuccedilatildeo totalmente feminina
No dia da entrevista com Zefa (67 anos moradora de Mato Dentro
Presidente Bernardes) natildeo havia quitanda sendo preparada no forno a lenha
mas sim um tabuleiro grande de amendoim em casca colhido no quintal que
estava sendo torrado para a elaboraccedilatildeo do lsquocajuzinhorsquo doce que seria servido
na festinha de aniversaacuterio de um ano do neto que mora na cidade de Presidente
Bernardes Ela e suas filhas que moram na cidade iriam organizar juntas essa
festinha familiar
As quitandas satildeo assadas atualmente nos fornos do fogatildeo a lenha jaacute
que os fornos de barro soacute compensam ser acesos para assar grandes
quantidades Assim a broa por ser mais simples eacute assada durante o preparo
do almoccedilo jaacute as rosquinhas satildeo assadas na parte da tarde quando as mulheres
estatildeo mais livres dos outros trabalhos por necessitarem de maior tempo na
elaboraccedilatildeo e muita atenccedilatildeo ao tempo de forno A massa da broa ou do bolo eacute
batida agrave matildeo apesar de a batedeira estar presente em todas as cozinhas e que
satildeo quase sempre presente de filhos ldquoEu bato bolo eacute na matildeo mesmo soacute uso
batedeira quando um faccedilo o ldquobolo drsquoaacuteguardquo que precisa de clara em neverdquo
(Neiva 41 anos moradora de Posses em Porto Firme) No caso de Mariacutelia (62
anos moradora de Mestre Campos Piranga) a batedeira que possui pertenceu
agrave sogra e fica guardada no soacutetatildeo da casa muito raramente utilizada A
praticidade atribuiacuteda agraves batedeiras natildeo convenceu as mulheres que entrevistei
Na realidade elas consideram mais trabalhoso lavar as paacutes da batedeira do que
bater a massa do bolo e da broa na matildeo O uso para as claras em neve
compensa pela rapidez do processo usando o equipamento eleacutetrico Ou seja a
batedeira eacute usada apenas quando se quer um bolo menos ruacutestico O meacutetodo
tradicional prevalece neste caso
Eu tenho dois fornos de barro grande no quintalfazia quitanda umas duas vezes na semana a famiacutelia era grande sete filhos hoje acaboueu faccedilo as coisas eacute no forninho do fogatildeo a lenha mesmo eu
165
jaacute vou fazendo o almoccedilo e assando a quitanda do dia (Uacutersula 78 anos moradora de Bananeiras em Presidente Bernardes MG 2015)
Eu gosto de fazer quitanda tem dia que a gente enjoa mas eu gosto de fazer sim faccedilo broa bolo rosquinha minha neta me ajuda a enrolar as rosquinhas eacute assim que as filhas e netas aprendem a cozinhar comigo tambeacutem era assim (Inecircs 72 anos moradora de Ribeiratildeo em Porto Firme MG 2015)
Para as mulheres a elaboraccedilatildeo das quitandas e doces eacute o que mais
mexe com a memoacuteria afetiva relacionada a alimentos por remeter agrave infacircncia agraves
quitandas feitas pela matildee tias e avoacutes Giard (2012) Lody (2008) e Cacircmara
Cascudo (2004) mencionam como as lembranccedilas e viacutenculos com as comidas
ajudam a manter os haacutebitos vida afora Mesmo que algumas mudanccedilas nos
modos de vida tenham ocorrido permanece o desejo de manter as quitandas do
passado
O relato acima de Inecircs sobre a participaccedilatildeo da neta ajudando a enrolar
as rosquinhas de sal amoniacuteaco que sinaliza o desejo de perpetuar uma receita
tradicional da famiacutelia bem como o de ensinar a neta eacute tambeacutem uma lembranccedila
de si mesma quando ajudava a matildee e da forma como o repasse dessa tradiccedilatildeo
se deu em sua vida Dessa maneira o aprendizado ocorre de maneira luacutedica
Gosta-se da rosquinha feita pela matildee ou avoacute tambeacutem porque era divertido ajudaacute-
las a enrolar e a pincelar com a gema Para uma crianccedila a massa da rosquinha
eacute quase como brincar com as massinhas coloridas na escola e neste caso
ldquobrinca-serdquo com a massinha feita pela avoacute e em sua companhia e ainda pode-
se comecirc-la depois de assada porque tem sabor agradaacutevel ao paladar e agrave
memoacuteria A rosquinha que Inecircs faz com a neta eacute a mesma que ela aprendeu a
fazer com a sua matildee e eacute a mesma que ensinou agraves suas filhas A transmissatildeo do
saber-fazer e dos gestuais de enrolar as rosquinhas e pincelar as gemas satildeo
registros simboacutelicos que ficam na memoacuteria Neste sentido como pondera Leacutevi-
Strauss (2003 p 15) ldquoGestos aparentemente insignificantes transmitidos de
geraccedilatildeo em geraccedilatildeo e protegidos por sua insignificacircncia mesma satildeo
testemunhos geralmente melhores do que jazidas arqueoloacutegicas ou
monumentos figuradosrdquo
O papel de Inecircs nesses momentos eacute pois o da ldquoGuardiatilderdquo da tradiccedilatildeo
(GIDDENS 2012) assunto jaacute discutido no capiacutetulo teoacuterico Em vaacuterios momentos
da entrevista os agricultores reportavam agrave figura dos avoacutes e dos pais ldquoA minha
166
matildee fazia assimrdquo ldquo Quando eu era crianccedila eu gostava de ficar acompanhando
a minha avoacute na cozinha na hortaeu aprendi muito com elardquo
Mesmo que a origem dos ingredientes mudasse por exemplo utilizando
ovo de granja no lugar do ovo caipira e manteiga industrializada o sentido
simboacutelico da receita seria o mesmo Para a neta isso natildeo faria diferenccedila
tampouco para a avoacute transmitir seu saber como pondera Giard (2012)
A aquisiccedilatildeo dos ingredientes a preparaccedilatildeo a cocccedilatildeo e as regras de compatibilidade podem muito bem mudar de uma geraccedilatildeo agrave outra Mas o trabalho cotidiano das cozinhas continua sendo uma maneira de unir mateacuteria e memoacuteria vida e ternura instante presente e passado que jaacute se foi invenccedilatildeo e necessidade imaginaccedilatildeo e tradiccedilatildeo ndash gostos cheiros cores sabores formas consistecircncias atos gestos movimentos coisas e pessoas calores sabores especiarias e condimentos (GIARD 2012 p 296)
Outra questatildeo tambeacutem discutida no item 36 do capiacutetulo anterior trata do
papel historicamente e culturalmente atribuiacutedo agrave mulher no que se refere agrave
alimentaccedilatildeo e agrave cozinha A heranccedila culinaacuteria nas famiacutelias eacute claramente feminina
A matildee ensina a filha eou a neta Antocircnio 78 anos jaacute citado anteriormente
agricultor que tambeacutem foi padeiro eacute o uacutenico exemplo de envolvimento masculino
na atividade ligada agrave culinaacuteria uma exceccedilatildeo
Um assunto jaacute mencionado no capiacutetulo anterior trata da naturalizaccedilatildeo do
gostar de cozinhar Culturalmente tende-se a imputar agraves mulheres o prazer da
culinaacuteria como se o normal fosse que todas gostassem de cozinhar e de assumir
a responsabilidade de alimentar o outro Essa naturalizaccedilatildeo ocorre segundo
Arnaiz (1996) primeiramente em funccedilatildeo da funccedilatildeo bioloacutegica da amamentaccedilatildeo
Um aspecto bioloacutegico que se ampliou para a funccedilatildeo domeacutestica como se fosse
natural Natildeo eacute Algumas mulheres podem gostar muito de cozinhar outras
podem gostar mais ou menos o que parece ser o caso de Inecircs ndash quando diz
ldquotem dia que enjoardquo e pode haver aquelas mulheres que natildeo gostam Durante a
entrevista apoacutes um longo tempo de conversa eu lhes perguntava ndash Vocecirc gosta
de cozinhar Algumas sorriam timidamente ao responder que natildeo gostavam
muito o que me pareceu um certo constrangimento em negar uma condiccedilatildeo
atribuiacuteda como sendo natural ou normal como se eu esperasse uma
confirmaccedilatildeo Como resultado dessas respostas apenas onze mulheres
disseram realmente gostar da atividade e sentir prazer com as funccedilotildees
alimentares que assumem O restante natildeo gosta muito da atividade mas
167
nenhuma delas disse detestar a atividade culinaacuteria As falas reproduziam o
sentido de fazer ldquoporque eacute precisordquo ldquoEu pra falar a verdade natildeo gosto muito
natildeo eu fico na cozinha porque natildeo tem outro recurso mas natildeo gosto muito de
cozinha natildeo eu preferiria ficar soacute costurandordquo (Nanaacute 62 anos moradora de
Xopotoacute em Presidente Bernardes)
Eu gosto Eu natildeo faccedilo por obrigaccedilatildeo natildeo eu gosto aprendi a cozinhar com minha matildee aprendi ajudando Faccedilo broa todo dia Vocecirc viu neacute hoje mesmo eu tocirc fazendo doce de figo e de ameixa vou ali colho e faccedilo faccedilo doce de cidra doce de manga doce de goiaba doce de banana que a gente colhe aqui tambeacutem (Marieta 73 anos moradora de Boa Vista em Piranga MG 2015)
Assim gostar gostar eu natildeo gosto natildeo preferia natildeo ter que cozinhar todo dia porque cansa mas tambeacutem ficar parado sem ter o que fazer eacute ruim pelo menos enquanto eu estou fazendo as coisas eu distraio (Antonina 74 anos moradora de Bananeiras em Presidente Bernardes MG 2015)
As mulheres que dizem gostar de cozinhar principalmente fazer
quitandas e doces satildeo aquelas que mais relataram o prazer de ver a casa cheia
de filhos e netos nas feacuterias feriados e aos domingos Satildeo tambeacutem as mulheres
mais velhas aposentadas Os casais de aposentados relataram certa solidatildeo de
vida nos siacutetios principalmente os que natildeo tecircm filhos por perto o que torna o fato
de receber a famiacutelia em casa uma forma de romper temporariamente com a
solidatildeo Para essas mulheres casa cheia eacute sinal de consumo de muita comida
principalmente porque a cozinha eacute sempre o lugar preferido da casa nessas
ocasiotildees como afirmaram
Dentre as atividades culinaacuterias preferidas lidar com a elaboraccedilatildeo das
quitandas se destaca preferem fazer bolos broas e rosquinhas (a favorita entre
todas as outras) do que preparar a comida do almoccedilo e do jantar
O patildeo francecircs alimento comum nos lanches ou rdquomerendasrdquo na aacuterea
urbana natildeo eacute comumente consumido e natildeo faz parte dos haacutebitos alimentares
das famiacutelias pesquisadas Eacute um item agraves vezes adquirido nas idas agrave cidade
quando costumam comprar rosca doce ou outro patildeo doce Algumas mulheres
gostam de fazer de vez em quando a ldquorosca da rainhardquo Eacute o uacutenico patildeo que foi
citado como elaboraccedilatildeo em algumas poucas casas Antonio informou durante
nossa conversa que ele natildeo conseguia vender patildeo na aacuterea rural porque as
mulheres tinham o haacutebito de fazer broa diariamente Soacute conseguia vender patildees
franceses para moradores da cidade
168
57 Receitas oralidade e registros em cadernos
Esse tema na pesquisa teve como objetivo verificar se as receitas satildeo
transmitidas por oralidade ou por registros escritos O caderno de receitas natildeo eacute
comum para todas as mulheres sobretudo entre as mulheres mais velhas acima
de 50 anos Entre elas satildeo poucas as que possuem receitas escritas
predominando a oralidade na transmissatildeo e o registro na memoacuteria das receitas
que fazem com mais frequecircncia do arroz doce ao doce de figo natildeo se recorre
agraves receitas escritas para elabora-los
Eliana por exemplo natildeo possui cadernos de receitas Tudo o que
aprendeu foi repassado oralmente ao observar e ajudar a matildee e a avoacute
Minha matildee natildeo sabia escrever e nem ler entatildeo natildeo tinha caderno ela aprendeu vendo a matildee dela fazer eu aprendi do mesmo jeito e as minhas filhas tambeacutem aprenderam a cozinhar comigo assim me vendo fazer elas devem ter caderno de receita eu nem sei mas devem de ter sim elas estudaram satildeo inteligentes (Eliana 69 anos moradora de Itapeva em Presidente Bernardes MG 2015)
A filha que mora aqui em casa natildeo gosta de cozinha natildeo mas a outra filha casada gosta Eu aprendi a cozinhar com minha matildee desde novinha mas eu natildeo faccedilo nada de receita natildeo minha matildee nunca teve caderno de receita minha filha casada aprendeu comigo ela me ajudava mas ela tem caderno de receita ela gosta de experimentar umas coisas diferentes para os filhos (Nanaacute 62 anos moradora de Xopotoacute em Presidente Bernardes MG 2015)
Nanaacute aponta em sua fala que das duas filhas uma que eacute casada e tem
filhos gosta de cozinhar e de experimentar novidades e ela associa as ldquocoisas
diferentesrdquo das quais a filha gosta como sendo comidas modernas e por isso
devem estar registradas em um caderno de receita pois o que eacute tradicional fica
registrado na mente eacute memorizado Sua outra filha a mais nova com 26 anos
que eacute solteira e estuda na faculdade natildeo gosta de culinaacuteria No depoimento de
Eliana haacute uma associaccedilatildeo do caderno de receitas com inteligecircncia e a falta dele
com o analfabetismo A sua matildee natildeo sabia ler ela mesmo lecirc pouco e justifica
isso como motivo pelo qual ela natildeo tem um caderno mas destaca que as filhas
por terem estudado devem possuir um
Giard (2012) relata depoimentos de mulheres que pesquisou na Europa
sobre cadernos de receitas tradicionais da famiacutelia que possuem semelhanccedila ao
depoimento de Eliana Uma das mulheres do trabalho de Giard respondeu que
169
as avoacutes eram tatildeo pobres que mal tinham uma cozinha e caderno de receitas natildeo
tiveram tambeacutem
Se a oralidade eacute ainda a forma mais presente de transmissatildeo dos
saberes nas famiacutelias pesquisadas fica a reflexatildeo de como isso poderaacute vir a
ocorrer no futuro com a tendecircncia de saiacuteda dos jovens das aacutereas rurais O maior
comprometimento neste sentido seria em relaccedilatildeo aos modos de fazer
tradicionais nas famiacutelias A oralidade estaacute muito ligada agraves mulheres mais velhas
acima de 50 anos As mulheres mais novas falando aqui da faixa etaacuteria
aproximada de 30 a 45 anos apesar de terem aprendido por oralidade com as
matildees natildeo tecircm aplicado a transmissatildeo das suas praacuteticas culinaacuterias agraves filhas
mesmo porque segundo mencionaram natildeo observam muito interesse ldquodas
filhasrdquo (falaram em relaccedilatildeo agraves filhas e natildeo filhos) na atividade culinaacuteria
Considerando que receitas culinaacuterias atualmente satildeo facilmente
encontradas em banca de revista na internet e no verso de embalagens
industrializadas registrar receitas na memoacuteria ou possuir um caderno de receitas
personalizado pode natildeo fazer muito sentido para as geraccedilotildees mais jovens
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 16 ndash Caderno de receitas que pertenceu agrave matildee de Anita moradora da Comunidade Manja em Piranga
A Figura 16 mostra um ldquocadernordquo que pertenceu a matildee de Anita (71
anos moradora da Comunidade Manja em Piranga) jaacute falecida Trata-se de um
caderno de contas usado tambeacutem para registrar as receitas Na receita haacute uma
170
referecircncia a um ldquopacote de creme infantilrdquo Pesquisei sobre isso e verifiquei que
produtos da Marca Nestleacute jaacute eram vendidos no Brasil na deacutecada de 1920 e na
faacutebrica na cidade de Araras produtos ldquoLactogenordquo (tipo de leite em poacute infantil)
farinha laacutectea e leite condensado Tambeacutem jaacute se vendia na forma embalada a
farinha de trigo poacute Royal e a Maisena A duacutevida que fica eacute se eram produtos que
chegavam facilmente no interior de MG na eacutepoca Haacute que se observar tambeacutem
que o caderno de contas utilizado para anotaccedilotildees estava datado o que natildeo se
sabe eacute se a receita anotada tambeacutem pertence ao mesmo periacuteodo ou se foi
aproveitado como cadernos para anotaccedilotildees de receitas e o tal ldquobolo de Mirardquo
pode ter sido registrado em data posterior Sobre anotaccedilotildees de receitas em
diversos tipos de materiais reporto a Abrahatildeo (2007) que aponta para registros
de receitas culinaacuterias que encontrou anotadas em diversos tipos de lugares e
natildeo raro em conjunto com lista de compras informaccedilotildees sobre plantio etc
A Figura 17 mostra um caderno feito com capricho que pertence a Lucia
(61 anos moradora de Manja Piranga) Ela possui trecircs cadernos de receitas
Um deles pertenceu a sua matildee e os outros dois ela mesma fez com a ajuda das
filhas Quando queria guardar uma receita pedia a uma das filhas para copiar
no caderno outras vezes ela mesmo registrava e recortava figuras de revistas
que encontrasse para ilustrar Na ocasiatildeo da pesquisa ela mencionou que natildeo
tem mais paciecircncia para registrar as receitas mas como gosta de cozinhar
costuma fazer uma ou outra receita poreacutem a maioria dos pratos que gosta de
fazer jaacute estaacute registrada na memoacuteria
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 17 ndash Caderno de receitas de Lucia da Comunidade Manja em Piranga
171
Algumas mulheres demonstraram certo constrangimento em mostrar os
cadernos Diziam que estavam ldquomanchadosrdquo ldquosujosrdquo ldquorasgadosrdquo ldquobagunccediladosrdquo
ldquomal escritosrdquo mas outras se sentiram agrave vontade e mostravam as receitas que
mais gostavam Apenas um caderno estava mais organizado o restante possuiacutea
folhas soltas anotaccedilotildees diversas e desordenadas inclusive endereccedilos de
pessoas contas lembretes e listas de compra As anotaccedilotildees eventuais nesses
cadernos ocorrem porque eles estatildeo visiacuteveis em locais de faacutecil acesso na
cozinha e na falta de outro papel para anotaccedilotildees raacutepidas ele assume esta
funccedilatildeo Pela mesma razatildeo muitos possuem manchas de gordura e respingos
de ingredientes que estavam sendo usados durante a elaboraccedilatildeo da receita Satildeo
detalhes que tambeacutem ldquofalamrdquo da cozinha e dos haacutebitos alimentares das famiacutelias
Eu tenho caderno de receita soacute que taacute tudo rasgado elas satildeo todas testadas ou foi por minha matildee ou minhas avoacutes ou minhas tias primas nada eacute copiado de televisatildeo ou de revista As folhas estatildeo quase todas soltas mas hoje quase tudo que faccedilo eu jaacute sei de cabeccedila (Claudia 66 anos moradora de Limeira em Porto Firme MG 2015)
Tenho uma agenda que uso como caderno de receita eacute uma agenda que desde 1977 quando eu casei que eu anotava tudo inclusive coisa de costura e tem ateacute receita tambeacutem (Mariacutelia 62 anos moradora de Mestre Campos em Piranga MG 2015)
Fonte Luiacutes Pereira pesquisa de campo 2015
Figura 18 ndash Mariacutelia da Comunidade de Mestre Campos em Piranga mostrando seus livros e cadernos de receitas
172
Folheando o caderno de Marieta (73 anos moradora de Boa Vista em
Piranga) me deparei com uma receita de brevidade Comentei que aprecio muito
esse bolo mas que seguindo a receita de minha matildee registrada em seu caderno
a minha nunca fica igual agrave que ela fazia Marieta resolveu entatildeo me ensinar
uma receita faacutecil que prometi testar
ldquoVou te ensinar uma receita faacutecil e muito gostosa A receita chama assim ldquo5 10 15rdquo e eacute assim Vocecirc potildee numa vasilha 5 (cinco) ovos inteiros 10 (dez) colheres de accediluacutecar bate bem e ai coloca as 15 (quinze) colheres de maisena e bate mais ainda Coloca numa forma redonda untada e potildee no fornordquo (Marieta 73 anos moradora de Boa Vista Piranga MG 2015)
Em relaccedilatildeo agraves receitas e agrave cozinha Marieta e Zefa de Presidente
Bernardes foram as mulheres mais empolgadas Contaram detalhes de algumas
quitandas que fazem e de outras que eram feitas por suas matildees e avoacutes Elas
fazem parte das poucas mulheres que entrevistei que confirmaram um grande
prazer em cozinhar
58 Os equipamentos da cozinha rural do fogatildeo a lenha agrave panela eleacutetrica de arroz
Foi em torno do fogatildeo a lenha que muitas das entrevistas aconteceram
enquanto as mulheres preparavam o almoccedilo O fogatildeo a lenha eacute o equipamento
que eu elegeria como o mais representativo na realidade das famiacutelias presente
em todas as cozinhas que visitei durante a pesquisa de campo dos mais
tradicionais feitos de argila aos mais modernos revestidos por azulejo
Instrumento transformador do ldquocru em cozidordquo e da ldquonatureza em culturardquo
propiciador de socializaccedilatildeo e de comensalidade nos dias de inverno por manter
a cozinha aquecida as pessoas gostam de ficar em torno dele sendo assim um
instrumento propiciador de sociabilidades Aleacutem desses aspectos eacute tambeacutem
usado para aquecer a aacutegua do chuveiro via serpentina
Aquela copa ali com aquela mesa eu falo que eacute pra enfeite porque quando meus filhos vem pra caacute com os filhos deles eles juntam tudo eacute aqui na cozinha Senta nesse banco ai nas cadeiras trazem mais cadeira e ficam aqui tem um filho meu que gosta de fritar torresmo ai jaacute viu neacute (Antonina 74 anos moradora de Bananeiras Presidente Bernardes MG 2015)
Eu fico ateacute meio brava agraves vezes e jaacute falo logo - Se ficar em volta de mim no fogatildeo a comida natildeo vai sair natildeo pode esparrodar todo
173
mundo pra laacute (Anita 71 anos moradora de Manja Piranga MG 2015)
Os fogotildees revestidos por azulejos representam um aspecto recente
Segundo os interlocutores uma famiacutelia reformou e revestiu o seu fogatildeo o vizinho
viu aprovou e tambeacutem reformou o seu e em pouco tempo vaacuterios fogotildees na
regiatildeo seguiram a mesma tendecircncia Para eles o revestimento em azulejo
manteacutem o fogatildeo mais limpo por fora porque eacute de faacutecil limpeza Em 11 casas
nos diferentes municiacutepios o fogatildeo estava revestido com esse material No
restante o revestimento era de argila e tinta avermelhada na tonalidade de tijolo
ou amarelado Todos possuem formato semelhante com forno anexo usado
para assar a maior parte das quitandas alguns possuem compartimento para
armazenar lenha e outros natildeo A respeito dos dois modelos de revestimento
apesar de o azulejado dar ao fogatildeo uma conotaccedilatildeo ldquomodernardquo pelo tipo de
revestimento isso natildeo altera em nada a tecnologia do fogatildeo A modernidade
conferida pelo revestimento do azulejo eacute de ordem mais esteacutetica do que
funcional
As Figuras 19 e 20 mostram os fogotildees a lenha comuns e de uso
prioritaacuterio nas casas O primeiro fogatildeo (Figura 19) pertencente agrave Mariacutelia (62 anos
moradora de Mestre Campos Piranga MG) eacute feito em alvenaria revestido por
cimento queimado no estilo tradicional e pintado de amarelo e com barras de
contorno na cor vermelha Sobre ele panelas feitas de materiais diversos como
alumiacutenio pedra barro e ferro Colher de pau e de accedilo inoxidaacutevel O fogatildeo estaacute
com o almoccedilo do dia pronto para ser servido (feijatildeo arroz angu couve carne
de boi moiacuteda com cebolinha de folha) Para evitar sujeiras e proteger o fogatildeo
uma taacutebua de madeira eacute usada como suporte para as panelas e uma lata de tinta
foi reaproveitada para forrar o local do fogo
174
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 19 ndash Fogatildeo a lenha no siacutetio de Mariacutelia
O segundo fogatildeo (Figura 20) pertencente agrave famiacutelia de Nanaacute e Custoacutedio
(61 e 72 anos respectivamente moradores de Xopotoacute em Presidente
Bernardes) eacute revestido por azulejo no estilo mais moderno Como eacute de mais
faacutecil higienizaccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria a proteccedilatildeo pela taacutebua de madeira e pela
placa de lata que haacute no fogatildeo anterior Sobre este fogatildeo estatildeo apenas panelas
de alumiacutenio com o almoccedilo a ser servido (feijatildeo angu batata doce frita couve e
peixe frito (Carpa-capim pescado no rio que passa nos fundos da casa)
Tambeacutem foi servido arroz mas neste caso feito em panela eleacutetrica um item
moderno e do qual falarei mais adiante Outro elemento da modernidade que se
observa na foto satildeo os dois potes de margarina em uma cozinha de caraacuteter
tradicional mas onde elementos da modernidade tambeacutem se fazem presentes
Nesta casa a panela eleacutetrica de fazer arroz fica sobre a pia e um moedor de cafeacute
preso afixado na parede ao lado da mesma pia O peixe e a batata doce por
exemplo foram fritos em oacuteleo de soja e a verdura e o feijatildeo refogados em gordura
de porco Nesta cozinha observei muitos dos elementos da mescla cultural
relativos agraves praacuteticas alimentares
175
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 20 - Fogatildeo a lenha no siacutetio de Nanaacute e Custoacutedio
Um detalhe que observei tambeacutem em todas as cozinhas eacute o cuidado com
a higiene e organizaccedilatildeo das cozinhas Na Figura 20 a pia possui uma cortina
estampada feita pela proacutepria Nanaacute que eacute tambeacutem costureira Coincidentemente
ou natildeo as cores das garrafas teacutermicas combinam com a cor da cortina Na Figura
19 tambeacutem os detalhes chamam a atenccedilatildeo Haacute nessas cozinhas uma noccedilatildeo de
esteacutetica e cuidado com a decoraccedilatildeo que indicam o quanto a cozinha eacute parte
importante da casa e merece destaque pelas famiacutelias em sua organizaccedilatildeo
A Figura 21 eacute outro exemplo Mostra a cozinha pertencente a Eliana e
Saturnino (69 e 75 anos respectivamente moradores de Itapeva Presidente
Bernardes) onde as cadeiras verdes combinam com a cor da porta do forno e
ficam em local estrateacutegico proacuteximo ao calor do fogo Em geral todas as cozinhas
das casas em que estive tem caracteriacutesticas como essas umas mais tradicionais
do que outras mais bonitas esteticamente do que outras mas todas muito
organizadas e limpas
176
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 21 ndash Cozinha com fogatildeo a lenha (azulejado) em siacutetio de Eliana e Saturnino
O fogo eacute destacado por Leacutevi-Strauss (1968) Wrangham (2010)
Montanari (2008) e outros como sendo fundamental para a transformaccedilatildeo do
alimento em comida e no processo da transformaccedilatildeo da natureza em cultura Se
em tempos remotos cozinhavam-se as caccedilas e outros alimentos a ceacuteu aberto
com o passar do tempo o fogo passou a ser inserido no ambiente domeacutestico e a
fazer parte do ambiente fiacutesico das casas Lemos (1996) aponta que durante
muito tempo tanto em Portugal quanto no Brasil as moradias eram chamadas
de fogos ou fogotildees tamanha a importacircncia deste equipamento
Wilson (2014 p 126) aponta que o fogo foi aos poucos sendo apagado
no mundo desenvolvido uma condiccedilatildeo necessaacuteria inclusive para que ele se
incorporasse agraves estruturas das casas Assim surgiram na Inglaterra os ldquofogotildees
fechadosrdquo que funcionavam agrave lenha e que serviam tambeacutem para aquecer a agua
ldquoUm fogatildeo nunca servia apenas para cozinhar tambeacutem era essencial para
fornecer aacutegua quente a toda a famiacutelia esquentar ferros de passar e aquecer as
matildeosrdquo Com o evento da Revoluccedilatildeo Industrial surgiram os fogotildees agrave base de
ferro fundido que funcionavam a carvatildeo Mas a autora explica que seu uso era
comum nas cidades pois nas aacutereas rurais permaneceu o uso do fogatildeo agrave lenha
por muitos anos O avanccedilo tecnoloacutegico logo propiciou o surgimento do fogatildeo a
gaacutes na deacutecada de 1880 considerado pela autora como um equipamento que
177
gerou ldquoum progresso real na cozinhardquo A sua aceitaccedilatildeo foi raacutepida em funccedilatildeo de
sua facilidade e praticidade e como mencionado pela autora em 1939 na
Inglaterra trecircs quartos das famiacutelias cozinhavam no fogatildeo a gaacutes
No que se refere ao grupo pesquisado mesmo em virtude de sua
praticidade o fogatildeo a gaacutes natildeo substituiu o fogatildeo agrave lenha Esse siacutembolo de
modernidade natildeo foi forte o suficiente para romper com a tradiccedilatildeo do fogatildeo agrave
lenha O fogatildeo a gaacutes eacute pouquiacutessimo utilizado ndash apenas para preparar o cafeacute da
manhatilde enquanto acende-se o fogatildeo a lenha ou para fazer ldquocoisa menorrdquo como
aquecer uma aacutegua ou o leite agrave tarde
No caso das famiacutelias em que as mulheres trabalham fora do siacutetio o fogatildeo
a gaacutes eacute mais usado para elaboraccedilatildeo do almoccedilo do que o fogatildeo a lenha A razatildeo
eacute a facilidade para os maridos e os filhos que aquecem o almoccedilo que elas deixam
pronto ou adiantado mas o fogatildeo a lenha permanece usado para aquecer a aacutegua
aquecer a aacutegua do chuveiro pela serpentina como citado por Ivone
Usamos mais o fogatildeo a gaacutes no dia a dia porque eu trabalho na escola do arraial de manhatilde e quando eu chego costumo ir ajudar meu marido ai ateacute acender o fogo demora muito pra aquecer entatildeo o fogatildeo a gaacutes eacute mais praacutetico para noacutesa gente liga o fogatildeo a lenha mesmo mais pra esquentar a aacutegua do chuveiro porque a gente tem serpentina mas a comida mesmo eacute no gaacutes Mas agrave tarde eacute mais faacutecil esquentar a comida no fogatildeo a lenha ainda mais agora que o frio vai chegando porque ele esquenta a casa (Ivone 38 anos moradora de Posses em Porto Firme MG 2015)
Nos que se refere ao uso dos fogotildees eacute tambeacutem possiacutevel perceber a
mescla cultural o moderno e o tradicional convivendo sem que isso gere
mudanccedilas radical nos costumes
As localizaccedilotildees das cozinhas nas casas que visitei satildeo nos fundos da
casa voltadas para o quintal semelhantemente ao que eacute apontado por Lemos
(1976) e Abrahatildeo (2007) sobre a disposiccedilatildeo do fogatildeo e da cozinha das casas
coloniais brasileiras Os fogotildees a lenha assim como o fogatildeo a gaacutes ficam na
ldquocozinha limpardquo expressatildeo usada por Algranti (1997) que eacute interna agrave casa Em
algumas casas havia tambeacutem a ldquocozinha sujardquo que possui mais um fogatildeo a
lenha e ou a gaacutes para torrar pequenas quantidades de cafeacute ligar o acendedor
de ldquolimparrdquo o porco apoacutes o abate fazer frituras de toucinho torresmo etc Natildeo se
trata de uma outra cozinha de alvenaria fechada mas sim de uma pequena
coberta no quintal
178
Outro fogatildeo que fica externo agrave casa eacute o fogatildeo de Cupim jaacute citado (Figura
21) Os fogotildees de cupim tambeacutem satildeo usados para fazer as comidas mais
gordurosas como descreve Doca (55 anos moradora de Boa Vista Piranga)
ldquoQuando a gente mata capado a gente frita as carnes os toucinhos no fogatildeo
de cupim laacute forardquo Os cupins satildeo retirados dos pastos e transportados por
carroccedila ateacute o quintal Neles satildeo feitos um buraco na lateral e rente ao chatildeo onde
eacute colocada a lenha e outro buraco em cima onde coloca-se a panela
Como jaacute mencionado o forno de barro apesar de existente nas casas
quase natildeo eacute utilizado pelas famiacutelias atualmente por motivos jaacute expostos Em uma
das casas o forno estava sendo usado para guardar objetos em desuso
Mas quando meus filhos vecircm ai sim eu acendo o forno grande laacute fora Eles sempre vecircm no natal A casa fica cheia ai daacute gosto usar o forno eles pedem pra fazer o que eles gostam ai a gente faz neacute (Zefa 67anos moradora de Mato Dentro em Presidente Bernardes MG 2015)
A Figura 22 pertence ao siacutetio de Selma e Lourival (68 e 76 anos
respetivamente) moradores da comunidade Tatu em Piranga Ao lado do forno
em alvenaria haacute uma espeacutecie de churrasqueira coberta com uma chapa de ferro
e uma churrasqueira menor de ferro fundido Esse espaccedilo segundo Selma eacute
utilizado apenas quando a casa estaacute cheia com a presenccedila dos filhos que gostam
e fazer churrascos quando estatildeo reunidos Nessas ocasiotildees ela tambeacutem utiliza
o forno para assar maior quantidade de quitandas
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 22 ndash Forno de barro e churrasqueira no siacutetio de Selma e Lourival
179
As famiacutelias possuem alguns equipamentos eleacutetricos nas cozinhas forno
de micro-ondas forno eleacutetrico panela eleacutetrica de fazer arroz e freezer mas nem
todos faziam parte da realidade de todas as famiacutelias Jaacute o liquidificador a
batedeira de bolo o espremedor de frutas e a geladeira existentes em todas as
casas O forno de micro-ondas o freezer e a batedeira de bolo satildeo usados
esporadicamente como jaacute visto no assunto sobre as quitandas com exceccedilatildeo do
freezer de Marcelina que estoca os salgados que produz para vender Natildeo
gostam de usar a batedeira porque ldquodaacute trabalho para lavar e depois guardarrdquo
A gente usa o micro-ondas para esquentar uma comida um leite agrave noite agraves vezes para descongelar uma carne comprar carne no accedilougue taacute muito caro assim eu mato um garrote vem um moccedilo do accedilougue da cidade e mata para noacutes ele conhece as partes desossa e ai congela as partes separadaspotildee nome das carnes em todos os pacotes separados e fica num freezer que a gente tem soacute pra isso (Joatildeo 81 anos morador de Aacutegua Limpa Porto Firme MG 2015)
Considerei interessante o desprendimento com o qual Joatildeo com seus
81 anos falava sobre o uso do micro-ondas Sabe utilizar o equipamento e
apesar de natildeo usar com frequecircncia natildeo demonstrou resistecircncia em utiliza-lo
quando necessaacuterio mas natildeo foi sempre assim O equipamento foi presente dado
por um dos filhos que moram fora da regiatildeo e durante muito tempo o casal
atribuiacutea utilidade a ele ateacute os filhos mostrarem alguns resultados de
descongelamento e aquecimento como o que a famiacutelia mais utiliza explicitado
na sua fala Wilson (2014) discute sobre a resistecircncia que muitos equipamentos
de uso corriqueiro na contemporaneidade ndash dentre eles o micro-ondas ndash tiveram
quando do seu surgimento tendo sido recebido sob protestos de que os meacutetodos
antigos eram melhores e mais seguros
Em quatros das casas que visitei havia a panela eleacutetrica de fazer arroz
Foram presentes de filhos ou mesmo adquiridos pelas mulheres inicialmente
pela curiosidade associada ao preccedilo relativamente baixo Este equipamento
surgiu no Japatildeo na deacutecada de 1960 mudando completamente a rotina de
produzir o tipo de arroz nas cozinhas asiaacuteticas Wilson (2014) destaca que esse
tipo de panela eacute equipamento mais importante nas casas japonesas do que a
televisatildeo Nas famiacutelias que pesquisei e que possui a panela eleacutetrica ela nem de
longe eacute mais importante do que outros equipamentos tradicionais como o fogatildeo
mas estaacute ganhando espaccedilo de convivecircncia na cozinha sem maiores conflitos
180
Em uma das casas onde almocei tive a oportunidade de conhecer seu
funcionamento e experimentar o arroz produzido As mulheres elogiaram o
equipamento afirmando que ldquoO arroz fica mais soltinho eacute muito melhor fazer
arroz nela natildeo daacute trabalho nenhumrdquo (Nanaacute moradora de Xopotoacute em Presidente
Bernardes)
A presenccedila e uso desses equipamentos satildeo tambeacutem exemplos da
coexistecircncia entre elementos modernos e tradicionais nas famiacutelias Enquanto se
faz o restante da comida no fogatildeo a lenha a panela eleacutetrica de arroz fica em
funcionamento sobre a pia Giard (2012) ao tratar da introduccedilatildeo dos
equipamentos eleacutetricos na cozinha destaca que o uso de um aparelho eleacutetrico
envolve a relaccedilatildeo instrumental que se estabelece entre utilizador e objeto
utilizado ldquoA cozinheira apenas alimenta esse objeto teacutecnico com ingredientes
que devem ser transformados depois liga o aparelho apertando um botatildeo
eleacutetrico e recolhe a mateacuteria transformada sem controlar as etapas intermediaacuterias
da operaccedilatildeordquo (GIARD 2012 p 284) Para esta autora apesar da praticidade
desses equipamentos eleacutetricos eles propiciaram rompimentos na transmissatildeo
de algumas habilidades culinaacuterias mas ainda assim considera perfeitamente
possiacutevel a junccedilatildeo da modernidade dos equipamentos eleacutetricos com os utensiacutelios
tradicionais usufruindo das comodidades oferecidas pelos primeiros e mantendo
relaccedilatildeo igualmente necessaacuteria e importante com os objetos tradicionais Mas
defende que satildeo formas de convivecircncia que natildeo devem ser impostas cada
grupo ou pessoa deve fazer sua escolha de acordo com suas manifestaccedilotildees
culturais
Finalizando a pesquisa de campo destaco que ela trouxe informaccedilotildees
ricas sobre o modo de vida a sociabilidade e a cultura das famiacutelias pesquisadas
no que se refere agraves praacuteticas alimentares e a comensalidade A pesquisa mostrou
que as famiacutelias estatildeo inseridas em uma cultura que eacute dinacircmica mas que
preserva e valoriza a cultural tradicional Percebi durante a investigaccedilatildeo muitas
conexotildees e correlaccedilotildees com a pesquisa teoacuterica me conduzindo o tempo a fazer
reflexotildees analiacuteticas pensando na interface entre a teoria e a praacutetica Sobre as
percepccedilotildees finais relacionadas ao campo teccedilo consideraccedilotildees no item a seguir
181
CONCLUSOtildeES
Neste trabalho apontei caracteriacutesticas e peculiaridades das praacuteticas
alimentares das famiacutelias rurais que entrevistei O tema da alimentaccedilatildeo natildeo se
conclui pelo contraacuterio ele eacute dinacircmico Chamo de conclusatildeo aqui o fechamento
analiacutetico com outras discussotildees e reflexotildees sobre esta pesquisa
Haacute uma discussatildeo na antropologia e sociologia da alimentaccedilatildeo sobre a
tendecircncia a homogeneizaccedilatildeo alimentar na sociedade ocidental seguindo os
rumos da sociedade moderna e globalizada como tratado por Bauman (2001)
Esta premissa foi um dos pontos que me fez refletir inicialmente o problema de
pesquisa ao questionar se nela natildeo estava impliacutecita uma desconsideraccedilatildeo agraves
diversidades culturais Nesse sentido pensei a questatildeo no contexto rural ndash
especialmente no contexto rural da Zona da Mata mineira por ser nele onde
mais tive a oportunidade de conviver socialmente e academicamente ateacute hoje
Assim conhecer e analisar o sistema alimentar de famiacutelias rurais seus
haacutebitos praacuteticas e a comensalidade foi fundamental para ponderar e tecer
consideraccedilotildees conclusivas a respeito dessa questatildeo Este trabalho permitiu
compreender que tal premissa natildeo se aplica agrave realidade sociocultural das
famiacutelias pesquisadas No contexto cultural em que vivem natildeo se verificou a
adoccedilatildeo das praacuteticas alimentares homogeneizantes das quais trata Fischler (1979
e 1998) homogeneidade considerada como um resultado natural na dinacircmica
da sociedade contemporacircnea em funccedilatildeo das constantes inovaccedilotildees na induacutestria
de alimentos tornando potencialmente inevitaacutevel a praacutetica e o consumo
alimentar cada vez mais padronizados no ocidente Embora as famiacutelias natildeo
estejam imunes agraves modernidades alimentares da induacutestria demonstraram
capacidade e interesse em selecionar o que desse contexto deve ser adotado e
o que deve ser rejeitado por elas
A pesquisa mostrou a existecircncia de uma homogeneizaccedilatildeo alimentar na
realidade cultural das famiacutelias pesquisadas poreacutem uma homogeneizaccedilatildeo local
e pontual que natildeo eacute semelhante a homogeneizaccedilatildeo alimentar tratada pelo autor
acima Ao contraacuterio nas famiacutelias que pesquisei essa homogeneidade alimentar
estaacute inteiramente ligada agrave tradiccedilatildeo e agrave produccedilatildeo local de alimentos Ela eacute
inclusive compatiacutevel com o processo sociohistoacuterico de ocupaccedilatildeo da regiatildeo e
diretamente determinada por ele Coincidindo com o que pondera Flandrin e
182
Montanari (1998) sobre a necessidade de relativizar a discussatildeo sobre a
homogeneizaccedilatildeo cultural e considerar as particularidades sociais e culturais dos
grupos
Todas as famiacutelias pesquisadas abrangendo os trecircs municiacutepios tecircm
haacutebitos e praacuteticas alimentares semelhantes independente da faixa etaacuteria dos
casais e filhos que formam o grupo familiar A semelhanccedila tambeacutem se aplica aos
produtos cultivados nos siacutetios que representam quase que a totalidade da dieta
baacutesica das famiacutelias Assemelham-se tambeacutem os alimentos adquiridos do
mercado
As mudanccedilas observadas nas praacuteticas alimentares tais como a adoccedilatildeo
de novas tecnologias ndash entre elas a substituiccedilatildeo do moinho drsquoaacutegua pelo moinho
eleacutetrico e a opccedilatildeo de comprar alguns alimentos antes produzidos por eles como
o arroz e o accediluacutecar ndash natildeo implica um abandono total da tradiccedilatildeo As famiacutelias estatildeo
convivendo ou se adaptando aos processos de mudanccedilas no mundo
contemporacircneo sem transformar significativamente a proacutepria cultura O uso do
moinho eleacutetrico em lugar do moinho drsquoaacutegua natildeo tem colocado em risco o
consumo do fubaacute na elaboraccedilatildeo de comidas tradicionais como o angu e a broa
Esse comportamento se assemelha agravequele entendimento apresentado por
autores como Giddens (2012) Doacuteria (2014) e Cacircndido (1982) que acreditam
que a convivecircncia possiacutevel e mais provaacutevel de ocorrer na contemporaneidade
se daacute por meio da mescla entre fatores de persistecircncia e os de mudanccedilas que
se complementam mas sem extinguir as construccedilotildees simboacutelicas tradicionais
Eacute importante ressaltar que a incorporaccedilatildeo das opccedilotildees de praacuteticas
alimentares modernas tambeacutem natildeo eacute acriacutetica As famiacutelias sabem que a
substituiccedilatildeo de uma pratica por outra implica em riscos e em perdas e ganhos
como no caso da gordura de porco Mostraram-se conscientes quanto agrave questatildeo
relativa agrave sauacutede no consumo desse alimento mas ele continua sendo
prioritariamente utilizado na preparaccedilatildeo de comidas tradicionais O que
prevalece neste caso eacute a escolha pelo sabor do alimento e pelo significado
simboacutelico e tradicional atrelado a ele Tal como reforccedilado pelos interlocutores a
comida feita com gordura de porco eacute mais saborosa e eacute a que daacute ldquosustanccedilardquo
Ainda que algumas pessoas tenham demonstrado estar mais preocupadas com
a sauacutede do que com o sabor e preferissem utilizar somente o oacuteleo vegetal natildeo
eacute essa opccedilatildeo que prevalece no montante das famiacutelias porque as mudanccedilas satildeo
183
ou natildeo incorporadas nas praacuteticas alimentares levando em consideraccedilatildeo
tambeacutem a cultura familiar
Pode-se afirmar tambeacutem que a adoccedilatildeo pelas tecnologias e praacuteticas
alimentares modernas natildeo tem sido radical Um exemplo disso eacute a manutenccedilatildeo
prioritaacuteria do uso do fogatildeo a lenha O fogatildeo a gaacutes assume um lugar importante
no preparo do almoccedilo nas famiacutelias onde as mulheres trabalham fora do siacutetio o
que aponta para um dos ajustes necessaacuterios que as famiacutelias tecircm precisado fazer
para se adaptar agraves novas realidades vividas Ainda assim o fogatildeo a lenha
continua sendo utilizado para fazer o jantar e para aquecer a aacutegua do chuveiro
evitando-se com isso o consumo de energia eleacutetrica Natildeo houve tambeacutem
nessas famiacutelias a substituiccedilatildeo de alimentos in natura por industrializados
congelados visando a praticidade na preparaccedilatildeo do almoccedilo Eacute importante
ressaltar que nessas famiacutelias ocorre uma alteraccedilatildeo no papel masculino relativo
a culinaacuteria jaacute que os maridos e os filhos passam a aquecer e a preparar alguns
itens de sua alimentaccedilatildeo Se antes essa era uma responsabilidade
exclusivamente feminina as mudanccedilas no papel masculino sinalizam ainda que
timidamente novas negociaccedilotildees de gecircnero nessas famiacutelias sinalizando
alteraccedilotildees em um espaccedilo que historicamente e culturalmente eacute de domiacutenio
feminino Eacute uma heranccedila que ainda vem resistindo e passando de avoacutes para
matildees e netas e de matildee para filhas
A articulaccedilatildeo entre o tradicional e o moderno na cultura alimentar das
famiacutelias mostrou estar ocorrendo sem impasses ou conflitos significativos
Mesmo que a compra de um alimento in natura proveniente da CEASA vendido
pelos caminhotildees gere receio da ingestatildeo de agrotoacutexicos essa aquisiccedilatildeo ocorre
ainda que eventualmente e por necessidade especiacutefica
A tradiccedilatildeo do consumo e elaboraccedilatildeo das quitandas permanece em todas
as famiacutelias Ela representa aleacutem de uma ldquomerendardquo importante para as famiacutelias
no dia a dia uma importante continuidade tradicional Elaboram-se as mesmas
quitandas haacute geraccedilotildees e ao mesmo tempo ocorrem ligeiras substituiccedilotildees como
o biscoito de polvilho frito pelo assado e adquirido no mercado local O patildeo
francecircs que eacute tatildeo consumido nas aacutereas urbanas natildeo faz parte do gosto
alimentar das famiacutelias e eacute de consumo muito raro
Na manutenccedilatildeo dos haacutebitos alimentares tradicionais estaacute presente a
influecircncia dos guardiatildees da tradiccedilatildeo na reproduccedilatildeo do gosto no processo de
184
significaccedilatildeo e ressignificaccedilatildeo da comida atrelada agraves praacuteticas aos saberes e aos
haacutebitos tanto no cotidiano quanto nas comidas de dias festivos A constacircncia
das expressotildees ldquoaprendemos a comer assimrdquo ldquoaprendi a cozinhar vendo minha
matildee fazerrdquo ldquona casa de meus pais fazia assimrdquo denotam a valorizaccedilatildeo dos
aprendizados e o interesse na perpetuaccedilatildeo dos haacutebitos
No que se refere agrave comensalidade no grupo familiar a pesquisa mostrou
que ela estaacute passando por modificaccedilotildees importantes em algumas famiacutelias
Naquelas em que as mulheres trabalham nas escolas a comensalidade ocorre
na escola em companhia de outras colegas e alunos nos horaacuterios de almoccedilo No
restante do grupo a comensalidade se daacute entre aqueles que estatildeo em casa jaacute
que nessas famiacutelias natildeo foi citado casos de pessoas que almoccedilam na atividade
local com o uso de marmita A comensalidade no horaacuterio de jantar tem sofrido
modificaccedilotildees nos uacuteltimos anos em todas as famiacutelias mesmo naquelas com
pessoas mais velhas Ocorre com frequecircncia entre eles servir o prato e se
sentarem na sala para assistir televisatildeo enquanto jantam Houve entatildeo um
deslocamento da mesa da cozinha para o sofaacute da sala Se em tempos passados
o fogo era um fator socializador e propiciador da comensalidade que ocorria
em torno da fogueira da lareira e do fogatildeo a lenha como apontado por
Wrangham (2010) e Montanari (2008) na modernidade a televisatildeo pode tambeacutem
assumir essa funccedilatildeo tanto no meio urbano quanto no meio rural pelo menos no
que se refere agraves famiacutelias que entrevistei
Alimentos industrializados satildeo consumidos em todas as famiacutelias
embora natildeo em grande quantidade e diversidade proporcionalmente ao que se
encontra disponiacutevel nos mercados e satildeo itens importantes nos cardaacutepios As
famiacutelias adquirem alimentos que sempre fizeram parte dos haacutebitos alimentares
e que em tempos passados jaacute foram produzidos nos siacutetios No entanto compram
tambeacutem alguns alimentos que nunca foram produzidos localmente mas que
passaram a ser adotados o que aponta para a dinacircmica da cultura
O significado da comida para as famiacutelias tem importante ligaccedilatildeo com a
tradiccedilatildeo e representa uma identificaccedilatildeo significativa com as geraccedilotildees passadas
Marca ainda a ligaccedilatildeo com a terra ao serem consumidos prioritariamente o que
se produz no local As comidas tradicionais e elaboradas de modo simples satildeo
as que mais agradam ao paladar das famiacutelias e apesar de ser um cardaacutepio de
certa forma monoacutetono natildeo se torna indesejado e natildeo foi apontado pelas famiacutelias
185
algum desejo ou necessidade por experimentar comidas diferentes das que
estatildeo habituados A prioridade do grupo pesquisados pela alimentaccedilatildeo baseada
em produtos cultivados localmente e em praacuteticas mais tradicionais coincide com
o que proposto pelo ldquoGuia Alimentar para a Populaccedilatildeo Brasileirardquo (2015)
publicado pelo Ministeacuterio da Sauacutede contendo diretrizes de uma alimentaccedilatildeo
saudaacutevel e considerando como importante tambeacutem o aspecto cultural
As famiacutelias estatildeo conscientes de que as transformaccedilotildees constantes que
ocorrem na sociedade atual tecircm o poder de interferir em suas praacuteticas e haacutebitos
alimentares Consideram que vai se tornando cada vez mais difiacutecil manter seus
haacutebitos alimentares por fatores de caraacuteter mais externos do que internos e que
interferem na sua dinacircmica de reproduccedilatildeo social e econocircmica
Inseridas no processo que envolve tanto o desejo de manter sua
autonomia produtiva e cultura alimentar quanto agrave necessidade de ceder a
algumas mudanccedilas essas famiacutelias estatildeo aprendendo a se adaptar com as
experiecircncias do cotidiano natildeo se fecham em seus nuacutecleos culturais e nem se
posicionam avessos agraves mudanccedilas demonstram uma atitude resignada poreacutem
criacutetica acatando os itens da modernidade alimentar que lhes agrada e lhes satildeo
importantes e rejeitando o que natildeo lhes interessa respeitando prioritariamente
a cultura local no sentido tratado por Helman (1994) no processo de escolha
alimentar Haacute nessa percepccedilatildeo um sentido de resistecircncia identitaacuteria alimentar
semelhante agrave que Poulain (2013) discute como sendo uma das caracteriacutesticas
das culturas alimentares locais
Por fim concluo que na ocasiatildeo da pesquisa a comida possuiacutea a
mesma centralidade cultural para as famiacutelias que pesquisei que aquela da eacutepoca
de seus antepassados Apesar de estarem inseridas na dinacircmica
contemporacircnea de mudanccedilas a vida cotidiana ainda segue um ritmo lento que
de certa forma difere do ritmo das aacutereas urbanas o que permite ainda este status
central da comida em sua cultura
186
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ZEMELLA Mafalda O abastecimento da capitania das Minas Gerais no seacuteculo XVIII 1951 276 p Tese (Doutorado) ndash Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo SP 1951
iii
AGRADECIMENTOS
A Deus por tudo Por me sentir capaz de superar os momentos de
tristeza e fragilidade e vivenciar sem culpa os momentos de alegria e de
bonanccedila
Ao meu orientador Joseacute Ambroacutesio Ferreira Neto pela orientaccedilatildeo apoio
e confianccedila Por assumir minha orientaccedilatildeo em 2014 e me ajudar nesta travessia
Pela oacutetima orientaccedilatildeo pelas criacuteticas e elogios
A Rita de Caacutessia Pereira Farias pela coorientaccedilatildeo pelas importantes
contribuiccedilotildees ao trabalho pelo incentivo e as conversas que tivemos
Aos professores membros da banca examinadora Eliana Gomes de
Souza Douglas Mansur da Silva Ricardo Ferreira Ribeiro e ainda Joseacute
Ambroacutesio Ferreira Neto e Rita de Caacutessia Pereira Farias pela participaccedilatildeo pelas
criacuteticas e sugestotildees
Aos teacutecnicos da Emater dos municiacutepios pesquisados Rita Maria
Brumano Oliveira Geraldo Antocircnio da Silva Eduardo Muniz e ao assistente de
escritoacuterio Luiz Antocircnio Faria por todo apoio necessaacuterio agrave realizaccedilatildeo da pesquisa
de campo pela companhia em muitas das comunidades visitadas
Agraves famiacutelias que entrevistei e que me receberam tatildeo bem Agradeccedilo pela
compreensatildeo a respeito da pesquisa e pelas longas horas dedicadas ao diaacutelogo
pelas deliciosas refeiccedilotildees que fiz em companhia delas Meu aprendizado com
essa convivecircncia foi imenso
Agradeccedilo ao meu pai e minha matildee ndash ldquoouro de Minardquo E agradeccedilo pelo
carinho de sempre a toda minha famiacutelia que estaacute o tempo todo presente na
travessia que faccedilo pela vida ainda que muitas vezes agrave distacircncia Aos meus
irmatildeos Cristina e Joseacute Mauro sempre preocupados com a irmatilde mais nova Ao
meu irmatildeo Gumercindo pelo apoio nos momentos difiacuteceis e pelos conselhos
acadecircmicos durante o doutorado Agrave minha cunhada Luciana pelo socorro em
momentos de fragilidade com a sauacutede apoacutes noitadas sem dormir
Ao Felipe amor que chegou no meio da trajetoacuteria do doutorado
companheiro que soacute tem me trazido alegria amor e apoio incondicional e muita
muacutesica
iv
A Luana minha enteada querida pelas revisotildees dos abstracts para
artigos e por ter compreendido facilmente minha ausecircncia em seu casamento
no Rio de Janeiro em funccedilatildeo do trabalho
Agrave Universidade Federal de Viccedilosa pela oportunidade de realizar o
doutorado e aos professores do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Extensatildeo
Rural pelas trocas de experiecircncias e conhecimentos Aos funcionaacuterios do
Departamento de Economia Rural sobretudo Romildo e Carminha pela atenccedilatildeo
e simpatia
Agrave Universidade Estadual do Oeste do Paranaacute instituiccedilatildeo onde atuo haacute
12 anos por ter permitido meu afastamento para fazer o doutorado
Agrave CAPES pelos dois anos de bolsa REUNI (2012 e 2013)
Agraves colegas de doutorado pelas conversas pelas alegrias e tristezas que
compartilhamos em alguns momentos e pelas boas energias que partilhaacutevamos
na conduccedilatildeo do trabalho Agradeccedilo tambeacutem os estudantes do mestrado com
quem fiz amizade ao longo de todo o periacuteodo A Fernanda Machado por me
socorrer elaborando os dois mapas que precisei
v
SUMAacuteRIO
LISTA DE TABELAS vii
LISTA DE QUADROS viii
LISTA DE FIGURAS ix
LISTA DE SIGLAS xi
RESUMO xii
ABSTRACT xiv
INTRODUCcedilAtildeO 1
1 A REGIAtildeO DE ESTUDO 5
11 Um breve histoacuterico de ocupaccedilatildeo da regiatildeo estudada 6
12 Informaccedilotildees atuais sobre a populaccedilatildeo rural e as principais atividades agriacutecolas dos municiacutepios pesquisados 10
13 Atividades produtivas 13
2 A COMIDA EM MINAS GERAIS DA ESCASSEZ Agrave FARTURA 18
21 Contextualizando o lugar da comida no Brasil Colonial nos primoacuterdios 18
22 Fase da mineraccedilatildeo em Minas Gerais escassez de alimentos 24
23 Fase da ruralizaccedilatildeo em Minas Gerais fartura de alimentos 29
3 ALIMENTACcedilAtildeO E CULTURA PERMANEcircNCIAS E TRANSFORMACcedilOtildeES 36
31 A alimentaccedilatildeo como categoria de estudo multidisciplinar contribui-ccedilotildees da antropologia da sociologia e da histoacuteria 36
32 Sistema alimentar 46
321 Alimentos aceitos e rejeitados 49
3211 Haacutebitos alimentares orientados por costumes e tradiccedilotildees 52
33 Alimento comida e cultura 55
331 A importacircncia social e cultural do uso do fogo e sua relaccedilatildeo com a comensalidade 59
3311 O local do fogo e da praacutetica da comensalidade na arquitetura domeacutestica 63
34 Praacuteticas alimentares na contemporaneidade entre o tradicional e o moderno 68
35 Modernidade e tradiccedilatildeo no contexto alimentar rural contemporacircneo 78
36 O papel feminino nas praacuteticas alimentares na famiacutelia 86
4 ASPECTOS METODOLOacuteGICOS DA PESQUISA E A CHEGADA AO CAMPO 94
41 Teacutecnica de pesquisa 95
vi
42 Os sujeitos da pesquisa 95
43 A conduccedilatildeo da pesquisa o caminho percorrido 96
44 A entrevista semiestruturada 98
45 A imersatildeo em campo a chegada e a travessia 98
46 Descobrindo a cultura local dos entrevistados 101
461 Perfil das famiacutelias 101
462 A produccedilatildeo agriacutecola local 107
463 Atividades cotidianas de trabalho nos siacutetios 108
5 CULTURA E PRAacuteTICAS ALIMENTARES NO SISTEMA FAMILIAR RURAL RELACcedilOtildeES COM A COMIDA PERMANEcircNCIAS E MUDANCcedilAS 114
51 Comida ldquoforterdquo e comida ldquofraca contradiccedilotildees mudanccedilas e permanecircn-cias 114
511 Outras comidas ldquofortesrdquo 125
52 Consideraccedilotildees sobre a importacircncia do milho e do fubaacute 129
53 Comida de todo dia comida de festa e as relaccedilotildees de comensalidade 137
531 Comida de todo dia o trivial 137
532 Comida de domingo de dias festivos e comensalidade 143
533 Os doces 151
54 A comensalidade para aleacutem das festas e datas especiais 154
55 Mescla cultural praacuteticas de consumo alimentar de ontem e de hoje 156
56 As quitandas para a merenda e para servir agraves visitas 160
57 Receitas oralidade e registros em cadernos 168
58 Os equipamentos da cozinha rural do fogatildeo a lenha agrave panela eleacutetrica de arroz 172
CONCLUSOtildeES 181
REFEREcircNCIAS 186
vii
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 ndash Aacuterea e populaccedilatildeo da microrregiatildeo de Viccedilosa (2015) 11
Tabela 2 ndash Percentual da populaccedilatildeo urbana e rural da microrregiatildeo de Viccedilosa nas deacutecadas de 1980 a 2010 (2015) 11
Tabela 3 ndash Populaccedilatildeo rural por diferentes faixas etaacuterias 12
Tabela 4 ndash Percentual da populaccedilatildeo rural por diferentes faixas etaacuterias () 13
Tabela 5 ndash Comparativo entre perfil etaacuterio do IBGE (2010) e da pesquisa de campo 2015 () 106
Tabela 6 ndash Comparativo da composiccedilatildeo de gecircnero do IBGE e da pesquisa de campo 2015 106
viii
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 ndash Municiacutepios comunidades e nuacutemero de famiacutelias 2015 96
Quadro 2 ndash Fonte de renda das famiacutelias pesquisadas 2015 108
ix
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 ndash Microrregiotildees da Zona da Mata de Minas Gerais 5
Figura 2 ndash Microrregiatildeo de Viccedilosa Minas Gerais 6
Figura 3 ndash Santuaacuterio de Bom Jesus de Matozinhos em Bom Jesus do Bacalhau 9
Figura 4 ndash Milho colhido no siacutetio de Anita e Gilberto na comunidade de Manja em Piranga 15
Figura 5 ndash Carro de boi transportando espigas de milho da roccedila para o paiol na estrada da comunidade de Manja em Piranga 16
Figura 6 ndash Engenho de produccedilatildeo de rapadura no siacutetio de Lola e Marcos na comunidade Xopotoacute Presidente Bernardes 16
Figura 7 ndash Moinho drsquoaacutegua no siacutetio de Manoel e Donana na Comunidade Limeira Porto Firme 130
Figura 8 ndash Moinho eleacutetrico no siacutetio de Nanaacute e Custoacutedio na Comunidade Xopotoacute em Piranga 131
Figura 9 ndash Cebolas e alhos armazenados no paiol do siacutetio de Maria e Laeacutercio na comunidade Itapeva em Presidente Bernardes 139
Figura 10 ndash Horta no siacutetio de Eliana e Saturnino em Itapeva Presidente Bernardes MG 140
Figura 11 ndash Fogatildeo de cupim no quintal do siacutetio de Eliana e Saturnino em Itapeva Presidente Bernardes 146
Figura 12 ndash Processo de fritura do ldquomilhopatilderdquo 149
Figura 13 ndash Doce de ameixa feito por Marieta na comunidade Boa Vista em Piranga MG 154
Figura 14 ndash Broa do tipo Cobu ou ldquopau a piquerdquo 161
Figura 15 ndash Broa de fubaacute feita por Eliana em Itapeva Presidente Bernardes 162
Figura 16 ndash Caderno de receitas que pertenceu agrave matildee de Anita moradora da Comunidade Manja em Piranga 169
Figura 17 ndash Caderno de receitas de Lucia da Comunidade Manja em Piranga 170
Figura 18 ndash Mariacutelia da Comunidade de Mestre Campos em Piranga mostrando seus livros e cadernos de receitas 171
x
Figura 19 ndash Fogatildeo a lenha no siacutetio de Mariacutelia 174
Figura 20 - Fogatildeo a lenha no siacutetio de Nanaacute e Custoacutedio 175
Figura 21 ndash Cozinha com fogatildeo a lenha (azulejado) em siacutetio de Eliana e Saturnino 176
Figura 22 ndash Forno de barro e churrasqueira no siacutetio de Selma e Lourival 178
xi
LISTA DE SIGLAS
CAPES ndash Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior
CEP ndash Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa com Seres Humanos
ECA ndash Estatuto da Crianccedila e do Adolescente
EMATER-MG ndash Empresa de Assistecircncia Teacutecnica e Extensatildeo Rural do Estado de
Minas Gerais
FAOONU ndash Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas para Agricultura e Alimentaccedilatildeo
FBSSAN ndash Foacuterum Brasileiro de Soberania e Seguranccedila Alimentar e Tradicional
IARC ndash International Agency for Research on Cancer
IBGE ndash Instituto Brasileiro de Geografia e Estatiacutestica
IPHAN ndash Instituto do Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional
ODELA ndash Observatorio de la Alimentacioacuten
OMS ndash Organizaccedilatildeo Mundial da Sauacutede
PAA ndash Programa de Aquisiccedilatildeo de Alimentos
UFV ndash Universidade Federal de Viccedilosa
USP ndash Universidade de Satildeo Paulo
xii
RESUMO
LIMA Romilda de Souza DSc Universidade Federal de Viccedilosa novembro de 2015 Praacuteticas alimentares e sociabilidades em famiacutelias rurais da Zona da Mata mineira mudanccedilas e permanecircncias Orientador Joseacute Ambroacutesio Ferreira Neto Coorientadora Rita de Caacutessia Pereira Farias
Este trabalho tem como objetivo analisar e compreender os significados da
comida e as relaccedilotildees de comensalidade atendo-se agraves mudanccedilas e
permanecircncias referentes agraves praacuteticas alimentares de famiacutelias rurais dos
municiacutepios mineiros de Piranga Porto Firme e Presidente Bernardes A
metodologia escolhida foi qualitativa utilizando-se da entrevista
semiestruturada observaccedilatildeo registros fotograacuteficos e o caderno de campo As
anaacutelises da pesquisa empiacuterica foram construiacutedas agrave luz das abordagens teoacutericas
da antropologia e sociologia da alimentaccedilatildeo e da histoacuteria da alimentaccedilatildeo Apesar
da tendecircncia apontada por alguns autores contemporacircneos de uma
homogeneizaccedilatildeo alimentar na sociedade ocidental fruto do processo de
modernizaccedilatildeo e globalizaccedilatildeo que teria o poder de influenciar e transformar as
praacuteticas alimentares esta natildeo foi a realidade observada nas famiacutelias rurais
pesquisadas A pesquisa apontou para a necessidade de considerar a
diversidade cultural e o contexto sociohistoacuterico ao estudar as questotildees relativas
a alimentaccedilatildeo dos grupos Nas famiacutelias estudadas as praacuteticas alimentares
possuem forte viacutenculo com a tradiccedilatildeo e agrave produccedilatildeo local de alimentos Isso natildeo
significa que elas estatildeo imunes agraves interferecircncias e agraves mudanccedilas
contemporacircneas Neste sentido as mudanccedilas observadas nas praacuteticas
alimentares tais como a adoccedilatildeo de novas tecnologias tecircm ocorrido de forma
ainda tiacutemida e natildeo implica um abandono da tradiccedilatildeo As famiacutelias estatildeo
convivendo ou se adaptando aos processos de mudanccedilas no mundo
contemporacircneo sem negar suas raiacutezes histoacutericas A incorporaccedilatildeo das praacuteticas
alimentares modernas tambeacutem natildeo eacute acriacutetica As famiacutelias sabem que a
substituiccedilatildeo implica em riscos perdas e ganhos No caso da gordura de porco
por exemplo mostraram-se conscientes quanto agrave questatildeo relativa agrave sauacutede no
consumo desse alimento que continua sendo prioritariamente utilizado na
preparaccedilatildeo de comidas tradicionais O que prevalece neste caso eacute a escolha
xiii
pelo sabor do alimento e pelo significado simboacutelico e tradicional atrelado a ele
Inseridas no processo que envolve tanto o desejo de manter sua autonomia
produtiva e cultura alimentar quanto agrave necessidade de ceder a algumas
mudanccedilas essas famiacutelias estatildeo aprendendo a se adaptar agraves dinacircmicas da
modernidade aderindo agraves novidades alimentares que lhes agradam e lhes satildeo
importantes e rejeitando o que natildeo lhes eacute interessante
xiv
ABSTRACT
LIMA Romilda de Souza DSc Universidade Federal de Viccedilosa November 2015 Eating habits and sociabilities in rural families of Minas Geraisrsquo Zona da Mata changings and remainings Adviser Joseacute Ambroacutesio Ferreira Neto Co-adviser Rita de Caacutessia Pereira Farias
This work aims to analyze and understand the meaning of food and commensality
relations limited to the changes and remains related to the eating habits of rural
families in the municipalities of Piranga Porto Firme and Presidente Bernardes
The chosen methodology was qualitative using semi-structured interviews and
observation The instruments used were the recorded interviews photographic
register and field notebook The empirical research analysis was built under the
light of theoretical approaches of anthropology and sociology of the alimentation
and history of the alimentation Despite the tendency pointed out by some
contemporary authors of a food homogenization in Western society as a result
of the modernization and globalization process that would have the power to
influence and transform the eating habits this was not the reality observed in the
surveyed rural families The research indicated the need to consider the cultural
diversity and the socio-historical context in order to study issues related to eating
habits of the groups In the studied families the issues related to eating habits
have a strong bond with the tradition and local food production That doesnrsquot
mean they are immune to interference and to contemporary changes In this
sense the observed changes in dietary practices such as the adoption of new
technologies have occurred still timidly and donrsquot imply a total abandonment of
tradition Families are living or adapting themselves to the changing processes in
the contemporary world without however transforming significantly their own
culture Itrsquos important to highlight that the incorporation of modern eating habits
options is not uncritical too The families know that the replacement of a habit by
another entails risks losses and gains as in the case of pork fat They proved to
be conscious about the matter on health in consumption of that food but it
remains primarily used in the preparation of traditional foods What prevails in this
case it is the choice by the flavor of the food and by the symbolic and traditional
meaning attached to it Inserted in the process involving both the desire to
xv
maintain its productive autonomy and eating culture and the need to give in to
some changes these families are learning to adapt to the everyday experiences
they arenrsquot closed in their cultural cores and even take posiacutetion averse to change
they demonstrate a resigned but critical attitude by submitting to the items of food
modernity they please and consider important as well as rejecting what is not
interesting to them
1
INTRODUCcedilAtildeO
ldquoDepois do idioma a comida eacute o mais importante elo entre o homem e a culturardquo
(Raul Lody 1997)
A alimentaccedilatildeo elemento baacutesico de sobrevivecircncia humana eacute tema
carregado de complexidade Se a razatildeo primeira do ato alimentar eacute a
necessidade fisioloacutegica de nutrir-se as demais satildeo carregadas de justificativas
culturais sociais e econocircmicas que por sua vez determinam as escolhas
alimentares
Aleacutem de ser um comportamento automaacutetico a sociologia a antropologia
e a histoacuteria da alimentaccedilatildeo tecircm mostrado que comer eacute um comportamento que
se liga de forma iacutentima com o comedor1 Em sentido semelhante o entendimento
da comida como categoria analiacutetica nessas trecircs aacutereas de estudo mostra que
pela comida eacute possiacutevel perceber as transformaccedilotildees do mundo social no decorrer
dos tempos Essa relaccedilatildeo se estabelece na escolha e ingestatildeo do alimento pois
conforme pondera Lody (2008 p 12) ldquonenhum alimento que entra em nossas
bocas eacute neutrordquo
Dessa forma este trabalho se fundamenta na compreensatildeo cultural e
social da comida vista como categoria de pensamento simboacutelico Trata-se
daquele sentido em que por meio das regras socialmente estabelecidas no ato
de comer criam-se viacutenculos com quem se come com o que se produz e com as
demais dinacircmicas que envolvem as praacuteticas alimentares O sentido dado por
Cacircndido (1982 p 30) elucida esse intuito
Qualquer que seja a posiccedilatildeo do alimento eacute sempre acentuada a sua importacircncia como fulcro de sociabilidade ndash natildeo apenas do que se organiza em torno dele mas daquelas em que ele aparece como expressatildeo tangiacutevel dos atos e das intenccedilotildees (CAcircNDIDO1982 p 30)
A escolha do tema da pesquisa se deu a partir de um processo que foi
sendo delineado e construiacutedo aos poucos considerando inicialmente o interesse
1 Expressatildeo francesa que na traduccedilatildeo das obras de Poulain (2013) e Poulain e Proenccedila (2003) para o
portuguecircs significa ldquocomedorescomedorrdquo Esta expressatildeo apareceraacute em citaccedilotildees do autor ao longo deste trabalho Representa para a Sociologia da Alimentaccedilatildeo atual o homem que come razatildeo da utilizaccedilatildeo da palavra ldquocomedorrdquo em portuguecircs A utilizaccedilatildeo desse termo segundo os autores surgiu a partir da publicaccedilatildeo de autoria de Aron (1976) ldquoLe mangeur du 19eacutemerdquo (POULAIN PROENCcedilA 2003 p 367)
2
pessoal e profissional pelo assunto2 mas tambeacutem estimulado por questotildees
instigantes proporcionadas por algumas disciplinas cursadas durante o
programa de doutorado Assim para se pensar o problema foram realizadas
leituras de pesquisas e de conteuacutedo teoacuterico das trecircs disciplinas apontadas acima
no que se refere agrave alimentaccedilatildeo O investimento teoacuterico realizado para conduzir
a pesquisa partiu da compreensatildeo de que a reflexatildeo teoacuterica e a pesquisa
empiacuterica se complementam em um percurso de matildeo dupla naquele sentido
apontado por Trajano (1990) Para este autor a priorizaccedilatildeo da teoria em
detrimento da pesquisa de campo ou vice-versa compromete o trabalho em sua
riqueza e profundidade
Atraveacutes da relaccedilatildeo entre pesquisa de campo e anaacutelise teoacuterica o conhecimento antropoloacutegico ganha impulso e avanccedila pois a pesquisa fornece o combustiacutevel que a teoria necessita para adentrar por novos campos e caminhos Por sua vez a teorizaccedilatildeo abre trilhas frescas e inexploradas para o trabalho de pesquisardquo (TRAJANO 1990 p 2)
A pesquisa de campo envolveu famiacutelias rurais de trecircs municiacutepios da
microrregiatildeo de Viccedilosa Piranga Presidente Bernardes e Porto Firme A escolha
desses municiacutepios se deu por eles formarem uma regiatildeo com maior populaccedilatildeo
rural da microrregiatildeo de Viccedilosa e pela sua interessante histoacuteria de ocupaccedilatildeo jaacute
que se trata de uma regiatildeo importante na busca do ouro pelos bandeirantes que
passaram pela zona da Mata questatildeo que seraacute detalhada em um dos capiacutetulos
deste trabalho
Analisar e buscar compreender como as famiacutelias estatildeo lidando com as
transformaccedilotildees alimentares que ocorrem na contemporaneidade foi o eixo
norteador da pesquisa A experiecircncia dessas famiacutelias neste contexto ldquofalardquo de
um grupo que busca responder e se adaptar agraves mudanccedilas sinalizando que o
rural contemporacircneo natildeo estaacute alheio e distante do que ocorre na sociedade mais
ampla questatildeo muito bem sinalizada nos estudos de Maria de Nazareth
Wanderley (2000 e 2009) Maria Joseacute Carneiro (1998) e Joseacute Graziano da Silva
(1997) Mas tambeacutem ldquofalardquo de um grupo que respeita sua tradiccedilatildeo e seus haacutebitos
alimentares suas necessidades de natildeo ceder a todas as mudanccedilas decorrentes
da contemporaneidade
2 Discussotildees de interesse dos grupos de pesquisa em que participo na Universidade Estadual do Oeste do
Paranaacute instituiccedilatildeo onde atuo haacute 12 anos
3
Segundo Wanderley (2009) um dos desafios enfrentados pelos
pesquisadores na contemporaneidade consiste em desvendar os processos
pelos quais se articulam as dinacircmicas internas e externas do mundo rural em
sua diversidade
Neste sentido esta pesquisa tem como objetivo analisar e compreender
o significado da comida e as relaccedilotildees de comensalidade atendo-se agraves
mudanccedilas e permanecircncias referentes agraves praacuteticas alimentares das famiacutelias Mais
especificamente analisar a articulaccedilatildeo entre o tradicional e o moderno o
processo de escolha alimentar e os princiacutepios que a determinam tais como
haacutebitos tradiccedilatildeo praticidade custo a influecircncia dos guardiatildees da tradiccedilatildeo na
reproduccedilatildeo do gosto no processo de significaccedilatildeo e ressignificaccedilatildeo da comida
atrelada agraves praacuteticas aos saberes e aos haacutebitos tanto no cotidiano quanto nos
rituais
Com esta pesquisa pretendo contribuir com as discussotildees sobre o
sistema alimentar contemporacircneo e a necessidade de nessa discussatildeo
relativizar os argumentos levando-se em consideraccedilatildeo a diversidade cultural
especialmente a rural
Esta tese estaacute organizada em cinco capiacutetulos aleacutem da introduccedilatildeo e
conclusatildeo O capiacutetulo 1 apresenta um breve histoacuterico de ocupaccedilatildeo da regiatildeo
estudada e as principais atividades rurais a partir de dados do IBGE (2010) O
capiacutetulo 2 trata de duas fases histoacutericas importantes de Minas Gerais e que
determinaram o sistema alimentar na regiatildeo de exploraccedilatildeo de ouro ateacute meados
do seacuteculo XX as fases da mineraccedilatildeo e a fase da ruralizaccedilatildeo As situaccedilotildees
alimentares ocorridas nesses periacuteodos foram marcantes na formaccedilatildeo cultural
alimentar da regiatildeo que pesquisei O capiacutetulo 3 apresenta a discussatildeo teoacuterica
das aacutereas da antropologia da sociologia e da histoacuteria da alimentaccedilatildeo apontando
o lugar da alimentaccedilatildeo nas principais anaacutelises dessas disciplinas a discussatildeo
existente em torno do sistema alimentar a anaacutelise das diferenccedilas atribuiacutedas
entre alimento e comida em uma abordagem cultural e simboacutelica as
possibilidades de permanecircncia ou extinccedilatildeo dos sistemas tradicionais no contexto
alimentar contemporacircneo a discussatildeo sobre o tradicional e o moderno no
contexto das dinacircmicas alimentares no meio rural e por fim uma breve
discussatildeo sobre o papel feminino nas praacuteticas alimentares na famiacutelia O capiacutetulo
4 apresenta as opccedilotildees e o direcionamento metodoloacutegicos da pesquisa de
4
empiacuterica a imersatildeo em campo e os resultados e algumas das caracteriacutesticas
relativas ao perfil das famiacutelias entrevistadas O capiacutetulo 5 trata da pesquisa
empiacuterica ou seja sobre as praacuteticas alimentares das famiacutelias rurais objeto de
interesse principal desta pesquisa Atraveacutes das entrevistas semiestruturadas o
cotidiano das famiacutelias no que diz respeito a sua cultura alimentar foi relatado e
discutido agrave luz dos objetivos propostos para a pesquisa e das abordagens
teoacutericas utilizadas Concluindo teccedilo outras discussotildees nas conclusotildees sobre a
pesquisa
5
1 A REGIAtildeO DE ESTUDO
As aacutereas rurais pesquisadas estatildeo situadas nos municiacutepios de Piranga
Porto Firme e Presidente Bernardes que pertencem agrave microrregiatildeo de Viccedilosa
localizados na Zona da Mata de Minas Gerais
A Figura 1 apresenta as microrregiotildees que compotildeem a Zona da Mata e
a Figura 2 os municiacutepios que fazem parte da microrregiatildeo de Viccedilosa
Fonte IBGE (2013)
Figura 1 ndash Microrregiotildees da Zona da Mata de Minas Gerais
6
Fonte IBGE (2013)
Figura 2 ndash Microrregiatildeo de Viccedilosa Minas Gerais
11 Um breve histoacuterico de ocupaccedilatildeo da regiatildeo estudada
Segundo Venacircncio (2007) descobertas arqueoloacutegicas recentes
apontam que na ocasiatildeo do descobrimento do Brasil pelos portugueses a regiatildeo
de Minas Gerais era habitada por diferentes grupos eacutetnicos Essas pesquisas
conseguiram estabelecer uma data de povoamento com registros entre 11 mil e
12 mil anos atraacutes O autor destaca que natildeo se pode esclarecer totalmente quais
eram todos esses grupos eacutetnicos mas no que se refere aos seacuteculos XVI e XVII
pelo material arqueoloacutegico encontrado acredita-se que muitos grupos indiacutegenas
entraram em Minas Gerais vindos de aacutereas litoracircneas provavelmente fugindo
da escravidatildeo e da dominaccedilatildeo dos portugueses Ainda segundo o autor na
regiatildeo de estudo que compreende a bacia do Rio Doce e a Zona da Mata mineira
os registros apontam que aqui habitavam primeiramente os botocudos e os
puri-coroados e que mais tarde chegaram os iacutendios goitacaacute fugidos do avanccedilo
7
da colonizaccedilatildeo portuguesa no norte da capitania fluminense hoje conhecida
como Campos dos Goitacazes
Registros feitos por Joatildeo Mawe3 viajante inglecircs que esteve em Minas
Gerais entre 1809 e 1810 detalham o conflito existente tambeacutem entre os
portugueses e os botocudos que rejeitavam ceder aos objetivos de
ldquodomesticaccedilatildeordquo dos colonizadores interessados na aacuterea que jaacute havia sido
identificada como muito rica em ouro Na regiatildeo de Piranga visando garantir a
exploraccedilatildeo do ouro informa Mawe (1922) ldquoexiste uma tropa pouco numerosa
de soldados para fazer patrulhas ao longo das fronteiras reconhecimentos nos
bosques ir procurar os selvagens por toda a parte onde lhes informam que
podem encontra-losrdquo (MAWE 1922 p 60)
A ocupaccedilatildeo da regiatildeo pelos portugueses se deu a partir dos caminhos
que se abriram para a exploraccedilatildeo de ouro no local que teve iniacutecio com os
bandeirantes paulistas Resende (2007) Zemella (1951) e Teixeira (2002)
apontam que esta regiatildeo comeccedilou a ser desbravada a partir de 1693 por uma
expediccedilatildeo bandeirante que saiu de Garganta do Embauacute (regiatildeo da Serra da
Mantiqueira e divisa entre Minas Gerais e Satildeo Paulo) conduzida por Antocircnio
Rodrigues Arzatildeo Essa bandeira pretendia chegar ateacute a regiatildeo denominada
Casa da Casca que se localizava entre Viccedilosa e Abre Campo em busca de
ouro O percurso incluiu o entatildeo arraial de Guarapiranga (atual Piranga) e foi no
rio Piranga na localidade onde hoje eacute a cidade de Itaverava o primeiro lugar
onde se encontrou ouro desde o iniacutecio do referido trajeto
Os nuacutecleos urbanos primeiramente como arraiais ou vilas iam se
formando em torno das Minas e locais dos rios que pareciam mais propiacutecios a
obtenccedilatildeo de grandes quantidades de ouro conforme aponta Torres (2011 p
69)
Os bandeirantes subindo o rio instalaram-se nos vales () Sempre usaram de dois tipos de pontos de referecircncia naturais durante suas interminaacuteveis excursotildees pelas florestas Primeiro os rios cujos cursos subiam ou desciam conforme era o caso ou entatildeo os grandes picos azuis marcos lanccedilados pela natureza para indicar onde estava o ouro
Naquela eacutepoca os atuais municiacutepios de Presidente Bernardes e Porto
Firme natildeo existiam como tal e faziam parte de Guarapiranga (atual Piranga)
3 Ver Mawe (1922)
8
Com a descoberta de ouro no rio Piranga a regiatildeo passou a ser de interesse
para a mineraccedilatildeo e iniciou por consequecircncia a chegada de muitos adventiacutecios
Segundo Resende (2007) e Furtado (2000) a exploraccedilatildeo de ouro em Minas
Gerais historicamente serviu de movimentaccedilatildeo geograacutefica de grande nuacutemero
de pessoas interessadas em enriquecer em Minas Gerais
() Nesse contexto marcado por um tracircnsito volumoso e desordenado de pessoas e de mercadorias tem iniacutecio de forma precoce e espetacular a ocupaccedilatildeo das terras de mineraccedilatildeo em que a uma ldquosede insaciaacutevel do ourordquo corresponde com enorme rapidez a formaccedilatildeo de grandes fortunas e uma desordem perigosa regulada a balas de chumbo (RESENDE 2007 p 29)
Assim a regiatildeo que abrange os municiacutepios da pesquisa passou a se
inserir na dinacircmica econocircmica e social da mineraccedilatildeo Ainda segundo Resende
(2007) os territoacuterios mineiros comeccedilaram a ser ocupados primeiramente onde
havia sido encontrado ouro aos quais eram denominados como o ldquocaminho do
ourordquo Nesse trajeto era possiacutevel encontrar alguma infraestrutura de apoio como
por exemplo vendas estalagens e capelas Eacute no entorno dessas localizaccedilotildees
fiacutesicas estruturais que surgem mais tarde as pequenas vilas os arraiais e ateacute
nuacutecleos urbanos mais importantes no estado de Minas Gerais
Segundo Barbosa (1995) em 1708 o arraial de Guarapiranga sofreu as
consequecircncias da Guerra dos Emboabas conflito entre bandeirantes paulistas
e portugueses em disputa pelo controle das minas e por pouco natildeo foi destruiacutedo
durante os embates
As batalhas foram mais concentradas no lugar onde estaacute o Santuaacuterio do
Senhor Bom Jesus do Matozinhos na comunidade do ldquoBacalhaurdquo em Piranga
Neste local possui uma placa e uma escultura simboacutelica lembrando o ocorrido
Neste santuaacuterio ocorre anualmente a festa religiosa do Jubileu do Bom Jesus e
os fieacuteis (romeiros) permanecem no local por dois a trecircs dias de festejos
9
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 3 ndash Santuaacuterio de Bom Jesus de Matozinhos em Bom Jesus do Bacalhau
Com o decliacutenio da mineraccedilatildeo entre os anos de 1753 a 1756 a regiatildeo
de Guarapiranga foi intensamente povoada quando ldquoinuacutemeras sesmarias foram
concedidas nas quais se mencionavam grandes roccedilas de milho casas de
vivenda paiol senzala engenhos bananais e outras aacutervoresrdquo (BARBOSA 1995
p 254) Ocorria nesse periacuteodo o processo de fortalecimento da agricultura
seguindo um percurso que se deu em toda a regiatildeo de mineraccedilatildeo de Minas
Gerais como seraacute visto no capiacutetulo 2 sobre a fase da ruralizaccedilatildeo em Minas
Em final do seacuteculo XVIII e iniacutecio do seacuteculo XIX a regiatildeo de Guarapiranga
possuiacutea a maior populaccedilatildeo de toda a Zona da Mata mineira com forte dinamismo
econocircmico Segundo Carrara (2007) Guarapiranga abastecia a entatildeo Vila Rica
e regiatildeo com aguardente e alguns produtos agriacutecolas baacutesicos os quais o autor
natildeo detalha quais eram Mas segundo o autor natildeo houve um corte que marcou
o fim da mineraccedilatildeo e iniacutecio da fase agriacutecola na regiatildeo pois durante muitos anos
foi marcante a presenccedila concomitante das minas dos currais e das lavouras
Enquanto a agricultura se fortalecia alguns poucos aventureiros insistiam na
busca de algum sinal de ouro restante nos rios
Segundo Lemos (2012) na fase de fortalecimento da agricultura
sobretudo na primeira metade do seacuteculo XIX houve intenso fluxo migratoacuterio que
fomentou a economia agriacutecola na regiatildeo principalmente voltada para a produccedilatildeo
de aguardente rapadura e melado Segundo Godoy (2012) os engenhos se
10
concentravam sobretudo na regiatildeo do distrito de Santo Antocircnio do Calambau
hoje Presidente Bernardes que na eacutepoca era distrito de Guarapiranga (Piranga)
A prodccedilatildeo da cana de accediluacutecar perdeu forccedila ao longo do tempo e na
ocasiatildeo da pesquisa natildeo era mais atividade central na regiatildeo embora existam
alambiques e algumas marcas de aguardente conhecidas no cenaacuterio nacional
como a ldquoVelha Aroreirardquo produzida em Porto Firme e a ldquoVale do Pirangardquo
produzida em Piranga Mas o que se produz ainda de aguardente eacute de caraacuteter
quase que apenas artesanal e pequena produccedilatildeo Em presidente Bernardes
todos os anos acontece o ldquoFestival da Cachaccedilardquo guardando ainda relaccedilotildees com
a tradiccedilatildeo deste produto
Os dados do IBGE de 1980 a 2010 apontam que os municiacutepios que
compunham como distritos a antiga Guarapiranga (Piranga Presidente
Bernardes e Porto Firme) apresentam queda em sua populaccedilatildeo rural como seraacute
visto a seguir
Tambeacutem segundo informaccedilotildees do IBGE (2010) Presidente Bernardes
e Porto Firme foram emancipados de Piranga em 1953 quando Calambau
passou a se chamar Presidente Bernardes e Porto Seguro passou a se chamar
Porto Firme Ambos os municiacutepios continuam pertencendo juridicamente agrave
Comarca de Piranga
12 Informaccedilotildees atuais sobre a populaccedilatildeo rural e as principais atividades agriacutecolas dos municiacutepios pesquisados
Segundo o IBGE (2010) a microrregiatildeo de Viccedilosa possui aacuterea total de
4826137 kmsup2 Eacute composta por vinte municiacutepios com aacutereas que variam entre
65881 kmsup2 (Piranga) e 8304 kmsup2 (Cajuri) Porto Firme e Presidente Bernardes
possuem aacutereas de 28478 kmsup2 e 2368 kmsup2 respectivamente conforme
apresentado na Tabela 1
Em relaccedilatildeo agrave populaccedilatildeo observa-se que em 50 dos municiacutepios da
microrregiatildeo a populaccedilatildeo rural ultrapassa a urbana conforme a Tabela 1 Os
trecircs municiacutepios desta pesquisa encontram-se entre aqueles que possuem
populaccedilatildeo rural maior que a urbana sendo que entre todos os municiacutepios
Presidente Bernardes e Piranga satildeo os que possuem o maior percentual de
populaccedilatildeo rural em relaccedilatildeo a urbana conforme apontado na Tabela 2
11
Tabela 1 ndash Aacuterea e populaccedilatildeo da microrregiatildeo de Viccedilosa (2015)
Municiacutepio Aacuterea (kmsup2) Densidade
demograacutefica Populaccedilatildeo
total Populaccedilatildeo
rural Populaccedilatildeo
urbana
Piranga 65881 2616 17232 11274 5958 Pres Bernardes 2368 2338 5537 3895 1642 Porto Firme 28478 3658 10417 5586 4831 Araponga 30379 2683 8152 5111 3041 Rio Espera 2386 2544 6070 3667 2403 Canaatilde 1749 2646 4628 2769 1859 Alto Rio Doce 51805 2347 12159 7089 5070 Lamim 1186 2911 3452 1941 1511 Cipotacircnea 15348 4266 6547 3533 3014 Braacutes Pires 22335 2076 4637 2414 2223 Cajuri 8304 4874 4047 1951 2096 Amparo do Serra 14591 3463 5053 2411 2642 Ervaacutelia 35749 5020 17946 8476 9470 Paula Cacircndido 26832 3455 9271 4335 4936 Satildeo Miguel do Anta 15211 4444 6790 3014 3746 Senhora de Oliveira 17075 3328 5683 2427 3256 Pedra do Anta 16345 2059 3365 1173 2192 Teixeiras 16674 6871 11355 3732 7623 Coimbra 10688 6600 7054 1898 5156 Viccedilosa 29942 2412 72220 4915 67305
Fonte IBGE - Censo Demograacutefico de 2010
Tabela 2 ndash Percentual da populaccedilatildeo urbana e rural da microrregiatildeo de Viccedilosa nas deacutecadas de 1980 a 2010 (2015)
Populaccedilatildeo ()
Municiacutepio 1980 1991 2000 2010
Urbana Rural Urbana Rural Urbana Rural Urbana Rural
Piranga 197 803 237 763 299 701 346 654 Pres Bernardes 121 879 154 846 233 767 297 703 Porto Firme 23 77 293 707 411 589 463 537 Araponga 166 834 208 792 32 68 373 627 Rio Espera 264 736 268 732 322 678 396 604 Canaatilde 174 826 207 793 297 703 401 599 Alto Rio Doce 222 778 28 72 354 646 417 583 Lamim 226 774 287 713 38 62 438 562 Cipotacircnea 197 803 26 74 381 619 46 54 Braacutes Pires 153 847 24 76 353 647 48 52 Cajuri 387 613 46 54 546 454 518 482 Amparo Serra 246 754 35 65 458 542 522 478 Ervaacutelia 263 737 323 673 444 556 528 472 Paula Cacircndido 286 714 362 638 43 57 532 468 Satildeo Miguel Anta 389 611 44 56 501 499 554 446 Senhora Oliveira 363 637 451 549 482 518 572 428 Pedra do Anta 232 768 373 627 53 47 651 349 Teixeiras 445 555 533 467 623 377 671 329 Coimbra 456 544 54 46 539 466 73 30 Viccedilosa 806 194 90 10 921 79 931 69
Fonte IBGE - Censos Demograacuteficos de 1980 1991 2000 e 2010
12
A reduccedilatildeo da populaccedilatildeo rural eacute observada em todos os 20 municiacutepios
conforme mostra a Tabela 2 que apresenta informaccedilatildeo demograacutefica da
microrregiatildeo de Viccedilosa nas uacuteltimas trecircs deacutecadas segundo IBGE (2010) Esta
microrregiatildeo encontra-se proporcionalmente dividida em 50 de municiacutepios com
populaccedilatildeo urbana maior do que a rural e 50 em situaccedilatildeo inversa
Nos trecircs municiacutepios desta pesquisa a populaccedilatildeo rural vem diminuindo
ao longo das uacuteltimas deacutecadas Em Piranga Presidente Bernardes e Porto Firme
a populaccedilatildeo rural correspondia a 803 879 e 77 em 1980
respectivamente caindo para 655 703 e 537 respectivamente em 2010
Apesar disso Presidente Bernardes permanece sendo o municiacutepio com maior
populaccedilatildeo residente no campo na microrregiatildeo de Viccedilosa ao longo desse
periacuteodo seguido por Piranga que aparece como o segundo maior municiacutepio com
populaccedilatildeo rural no Censo de 2010 Alguns estudos apontam para a reduccedilatildeo da
populaccedilatildeo rural em outras partes do paiacutes e do mundo como Alves e Marra
(2009) Nunes (2007) ONU (2014) Camarano e Beltratildeo (2000) e Camarano e
Abramovay (1998)
As Tabelas 3 e 4 apontam que a populaccedilatildeo que compreende a faixa
etaacuteria de 30 a 50 anos eacute a maior na aacuterea rural nos trecircs municiacutepios e a populaccedilatildeo
idosa4 apresenta o menor nuacutemero de pessoas residentes no campo
Tabela 3 ndash Populaccedilatildeo rural por diferentes faixas etaacuterias
Municiacutepio Populaccedilatildeo
rural 1 - 14 anos 15 - 29 anos 30 - 59 anos
Acima de 60 anos
Piranga 11274 2748 3203 3751 1308 Pres Bernardes 3895 845 856 1421 610 Porto Firme 5586 1338 1378 2322 780 Total 20755 4931 5437 7494 2698
Fonte IBGE ndash Censo Demograacutefico 2010
Os dados da Tabela 4 mostram que o maior percentual de populaccedilatildeo
idosa se encontra em Presidente Bernardes mas natildeo se destaca em relaccedilatildeo
aos demais municiacutepios Neste municiacutepio tambeacutem estaacute o menor percentual da
4 Puacuteblico considerado acima de 60 anos de idade de acordo com Organizaccedilatildeo Mundial de Sauacutede
13
populaccedilatildeo jovem5 O maior percentual de populaccedilatildeo adulta (30-59 anos)
encontra-se em Porto Firme A maior diferenccedila entre o percentual de populaccedilatildeo
jovem e adulta encontra-se em Porto Firme e a menor em Piranga O percentual
da populaccedilatildeo adulta eacute superior agrave populaccedilatildeo idosa nos trecircs municiacutepios mas se
destaca em Porto Firme As informaccedilotildees das tabelas seratildeo retomadas no item
46 deste trabalho
Tabela 4 ndash Percentual da populaccedilatildeo rural por diferentes faixas etaacuterias ()
Municiacutepio Populaccedilatildeo
rural 1 - 14 anos 15 - 29 anos 30 - 59 anos
Acima de 60 anos
Piranga 11274 243 284 333 116
Pres Bernardes 3895 217 220 364 155
Porto Firme 5586 239 246 415 140
Fonte IBGE ndash Censo Demograacutefico 2010
13 Atividades produtivas
Nos municiacutepios onde foi realizado o trabalho de campo predominam
pequenas e meacutedias propriedades e produccedilatildeo em pequena escala basicamente
para consumo com venda do excedente Os tipos de produccedilatildeo natildeo sofrem
variaccedilotildees importantes entre os trecircs municiacutepios seja em tipo de produccedilatildeo seja
em quantidade produzida
Presidente Bernardes Dados do Relatoacuterio final do Plano Municipal de
Saneamento Baacutesico de Presidente Bernardes (2015) e da Emater local apontam
como principais atividades agropecuaacuterias do municiacutepio a cafeicultura a extraccedilatildeo
de carvatildeo vegetal em pequena escala e a pecuaacuteria leiteira de pequeno porte
Haacute ainda a fabricaccedilatildeo agroindustrial em pequenos alambiques de aguardente e
uma empresa de fabricaccedilatildeo de queijo Aleacutem desses os dados do IBGE (2006)
apontam tambeacutem a produccedilatildeo de milho feijatildeo cana de accediluacutecar suinocultura e
avicultura
5 Faixa etaacuteria entre 15 a 29 anos de idade definida no Estatuto da Crianccedila e do Adolescente (ECA) e
Estatuto da Juventude no Brasil como a que corresponde agrave categoria de juventude
14
Porto Firme Dados do Relatoacuterio final do Plano Municipal de
Saneamento Baacutesico de Porto Firme (2015) e da Emater local apontam como
principais atividades agropecuaacuterias do municiacutepio Pecuaacuteria leiteira cafeicultura
extraccedilatildeo de carvatildeo vegetal e lavoura de feijatildeo No municiacutepio tambeacutem haacute
produccedilatildeo de aguardente artesanal por pequenos alambiques Aleacutem desses os
dados do IBGE (2006) apontam a produccedilatildeo de milho feijatildeo cana de accediluacutecar
suinocultura e avicultura
Piranga Dados do Relatoacuterio Anual da Emater Local (2014) e do IBGE
(2006) apontam como principais atividades agropecuaacuterias do municiacutepio
extraccedilatildeo de carvatildeo vegetal cafeicultura pecuaacuteria leiteira milho e feijatildeo cana de
accediluacutecar suinocultura e avicultura
Segundo as famiacutelias entrevistadas envolvidas na atividade de extraccedilatildeo
de carvatildeo vegetal esta atividade vem substituindo aos poucos a cafeicultura
nos uacuteltimos anos em funccedilatildeo do seu retorno financeiro mais favoraacutevel aos
agricultores aliado ao fato desta atividade lhes ser menos trabalhosa
A regiatildeo rural dos municiacutepios onde foi feita a pesquisa manteacutem muito de
suas caracteriacutesticas tradicionais em vaacuterios aspectos da alimentaccedilatildeo como seraacute
visto neste trabalho Mas tambeacutem na forma de produccedilatildeo transporte e
armazenamento dos produtos A Figura 4 mostra algumas dessas peculiaridades
observadas Segundo Martins (2008 p 26) a inserccedilatildeo das fotografias ldquoeacute um
recurso que amplia e enriquece a variedade de informaccedilotildees de que o
pesquisador pode dispor para reconstruir e interpretar determinada realidade
socialrdquo
A Figura 4 mostra a produccedilatildeo de um casal de aposentados que mora
sozinho Eles executam poucos serviccedilos no siacutetio Um de seus filhos mora na
cidade de Piranga e os outros em outras cidades mais distantes O casal paga
por serviccedilos de plantio e colheita do milho e do feijatildeo A quantidade de milho eacute
muito pequena apenas para uso local A Figura 4a mostra parte do milho no
paiol e a Figura 4b mostra parte do milho jaacute debulhado secando ao sol no quintal
para depois ser processado no moinho eleacutetrico para a produccedilatildeo de fubaacute
15
(a) (b)
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 4 ndash Milho colhido no siacutetio de Anita e Gilberto na comunidade de Manja em Piranga
Muitas estradas das comunidades mais distantes ainda contam com
muitas porteiras que ficam fechadas Eacute o caminho por onde se transita o veiacuteculo
automotor mas ela atende principalmente agrave loacutegica rural tradicional Quem
precisa transitar deve descer do veiacuteculo abrir as porteiras e fechaacute-las ao
atravessar A Figura 5 por exemplo registrada na estrada da comunidade de
Manja em Piranga mostra uma forma tradicional de transportar as espigas de
milho do roccedilado para o paiol mas ainda muito usada na regiatildeo Havia trecircs
pessoas fazendo esse transporte uma pessoa em cima da carroccedila e outros dois
candiando os bois e abrindo e fechando as porteiras
A Figura 6 mostra um engenho de cana que estava sem uso no ano de
2015 pela baixa produccedilatildeo de cana neste ano no siacutetio de Lola e Marcos em
Presidente Bernardes Nele se produz rapadura e melado que eacute vendida para o
comeacutercio de Presidente Bernardes e tambeacutem para os vizinhos das proximidades
16
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 5 ndash Carro de boi transportando espigas de milho da roccedila para o paiol na estrada da comunidade de Manja em Piranga
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 6 ndash Engenho de produccedilatildeo de rapadura no siacutetio de Lola e Marcos na comunidade Xopotoacute Presidente Bernardes
As caracteriacutesticas rurais dos trecircs municiacutepios satildeo muito semelhantes
tanto no que se refere agrave forma de produccedilatildeo agriacutecola quanto na cultura e no perfil
populacional cuja populaccedilatildeo rural supera a urbana Sendo uma regiatildeo cuja
formaccedilatildeo ocorreu a partir da mineraccedilatildeo muitas de suas caracteriacutesticas ainda
estatildeo ligadas a esse processo histoacuterico Outras peculiaridades sobre o perfil das
17
famiacutelias seratildeo apresentadas no capiacutetulo 4 No sistema alimentar o que se
praticava produzia e o que era consumido na fase da mineraccedilatildeo teve influecircncia
na manutenccedilatildeo de muitas das praacuteticas existentes atualmente na regiatildeo onde foi
feita a pesquisa Sobre o que representou a alimentaccedilatildeo na fase da mineraccedilatildeo
e da ruralizaccedilatildeo no periacuteodo de formaccedilatildeo dessa regiatildeo eacute o que seraacute tratado no
proacuteximo capiacutetulo
18
2 A COMIDA EM MINAS GERAIS DA ESCASSEZ Agrave FARTURA
Arruda (1990) destaca em Minas Gerais duas fases muito importantes
para a sua formaccedilatildeo histoacuterica e cultural a primeira eacute a do ciclo da mineraccedilatildeo
que teve iniacutecio no final do seacuteculo XVII e segue ateacute o final do seacuteculo XVIII Neste
periacuteodo a vida urbana emerge com uma intensa movimentaccedilatildeo a segunda fase
eacute a chamada ldquoruralizaccedilatildeordquo que se inicia ao final do seacuteculo XVIII justamente com
o decliacutenio da mineraccedilatildeo seguindo ateacute o iniacutecio do seacuteculo XX Segundo a autora
na segunda fase as aacutereas rurais (as fazendas) passam a ter maior valorizaccedilatildeo
se tornando o ldquomicrocosmo do universo material social e culturalrdquo (ARRUDA
1990 p 135) Aleacutem das duas principais fases a autora destaca uma terceira fase
em Minas que se configura a partir dos meados do seacuteculo XX com a
industrializaccedilatildeo
Para a autora as duas primeiras fases representam formas de
sociabilidade muito peculiares que se expressam nas praacuteticas alimentares
desses periacuteodos e que tiveram influecircncia direta na formaccedilatildeo dos haacutebitos
alimentares em Minas Gerais haacutebitos que se perpetuaram ateacute o periacuteodo
contemporacircneo sendo relevantes para este trabalho Essas informaccedilotildees
ajudaratildeo a analisar se as praacuteticas alimentares comuns a estas fases em Minas
continuam presentes sendo praticadas pelas famiacutelias rurais pesquisadas neste
trabalho
Antes de discutir especificamente as questotildees alimentares relativas agraves
duas fases eacute importante realizar uma sucinta passagem pelo contexto alimentar
no Brasil colonial
21 Contextualizando o lugar da comida no Brasil Colonial nos primoacuterdios
Segundo Panegassi (2013) o colonizador europeu estabeleceu uma
relaccedilatildeo etnocecircntrica com o territoacuterio natural americano e isso se deu tambeacutem e
principalmente em relaccedilatildeo agrave alimentaccedilatildeo No seacuteculo XVI ele natildeo encontrava em
territoacuterios da colocircnia os alimentos que estava habituado a consumir em Portugal
vivenciando assim uma realidade na qual o autor denomina de ldquoescassez
culturalrdquo de alimentos (p 14) O autor cita o exemplo da carta de Joatildeo de Mello
Cacircmara a Dom Joatildeo III por volta de 1530 quando este rei estabeleceu que a
19
colonizaccedilatildeo seria baseada na expansatildeo da ocupaccedilatildeo das terras atraveacutes das
capitanias hereditaacuterias Mello Cacircmara informa a Dom Joatildeo III que traria para a
colocircnia homens de Portugal para cultivarem alimentos mais comuns aos
portugueses evitando mudanccedilas draacutesticas de seus haacutebitos alimentares pois
considerava os alimentos originaacuterios da Colocircnia inferiores para o consumo dos
portugueses
No entanto por mais que os colonizadores portugueses tenham tido
dificuldade em se habituar ao consumo de alimentos aqui disponiacuteveis foi preciso
se render a eles como tambeacutem aponta Freyre (1964)
A adaptaccedilatildeo foi o caminho obrigatoacuterio como destaca Panegassi (2013
p 70)
No acircmbito de uma situaccedilatildeo na qual um grande nuacutemero de pessoas eacute inserido em um novo ambiente cultural ainda que os receacutem-chegados procurem preservar seus padrotildees culturais de origem a necessidade de sobreviver impotildee inuacutemeros ajustes principalmente nos primeiros anos de presenccedila na nova aacuterea
Nesse sentido Holanda (1995) afirma que o interesse pela aventura
pela obtenccedilatildeo de tiacutetulos de posiccedilatildeo social e de prosperidade econocircmica servia
como estiacutemulo para o ldquosacrifiacuteciordquo da adaptaccedilatildeo Os portugueses tentaram
portanto recriar aqui condiccedilotildees de sobrevivecircncia e de adaptaccedilatildeo com poucas
exigecircncias ldquoOnde lhes faltasse o patildeo de trigo aprendiam a comer o da terra
() soacute consumiam farinha de mandioca fresca feita no dia Habituaram-se
tambeacutem a dormir em redes agrave maneira dos iacutendios e a beber e a mastigar fumordquo
(HOLANDA 1995 p 47)
De acordo com Panegassi (2013) os padres jesuiacutetas preferiam comer o
patildeo de mandioca e as bebidas existentes na colocircnia do que os que vinham de
Portugal em navios pois a viagem era longa e os alimentos armazenados
inadequadamente Era comum que os produtos como os patildees chegassem
estragados ao destino ou seja sem condiccedilotildees de serem ingeridos Assim Mello
(1975 apud PANEGASSI 2013 p 104) conclui que
A mudanccedila que se processaraacute nos haacutebitos dieteacuteticos do portuguecircs colonizador do Brasil ou do portuguecircs colonizador de outras aacutereas tropicais eacute menos o resultado de uma capacidade especial de amoldaccedilatildeo do que da impossibilidade de obter um suprimento regular e abundante de trigo e outros viacuteveres de origem europeia
20
Dessa maneira num contexto de convivecircncia cultural e de costumes foi
se estabelecendo ao longo do processo de colonizaccedilatildeo brasileira a conformaccedilatildeo
inicial dos haacutebitos alimentares baseados na miscigenaccedilatildeo cultural alimentar
recebendo posteriormente a influecircncia africana com a chegada dos escravos
conforme seraacute tratado mais agrave frente Os alimentos autoacutectones inicialmente foram
os mais consumidos sobretudo a mandioca por substituir o trigo para a
elaboraccedilatildeo de patildees e bolos No entanto na regiatildeo de mineraccedilatildeo em Minas
Gerais ndash aacuterea de pesquisa deste trabalho ndash o milho e natildeo a mandioca foi
preponderante na alimentaccedilatildeo Como seraacute mostrado mais agrave frente o milho teve
papel fundamental natildeo apenas para alimentaccedilatildeo animal mas tambeacutem para
alimentar os escravos que trabalhavam nas lavras que o ingeriam segundo
Cacircmara Cascudo (2004) na forma de papa angu e canjica Segundo o mesmo
autor foram as mulheres portuguesas que criaram a receita da broa e do pudim
de milho que se tornaram e permanecem pratos tiacutepicos em Minas Gerais
Segundo Torres (2011 p100)
O mineiro nunca usou patildeo da ldquofarinha de paurdquo (mandioca) o patildeo da terra dos primeiros seacuteculos da colonizaccedilatildeo Sempre preferiu o angu os soacutelidos bolos de fubaacute e o cobu enrolado em folha de bananeira Para misturar o feijatildeo usou sempre a farinha de milho (o milho seco socado no monjolo e depois torrado) o angu a farinha de moinho As classes pobres usavam a ldquocanjiquinhardquo subproduto de despolpaccedilatildeo do milho com muito ecircxito para substituir o arroz
A carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei em 1500 aponta algumas
peculiaridades sobre a primeira percepccedilatildeo sobre alimentaccedilatildeo Os portugueses
ofereceram aos iacutendios ldquopatildeo (de trigo) peixe cozido (com condimentos)
confeitos mel massa de ovos figos passados e vinho de uvas mas os iacutendios
natildeo quiseram comer quase nadardquo (BORGES 2014 p 204) Segundo Cacircmara
Cascudo (2004) as novidades para os iacutendios era o patildeo de trigo massa de ovos
os condimentos incluindo o sal o accediluacutecar e finalmente o vinho feito de uvas
apesar de jaacute produzirem bebidas fermentadas a partir do milho da mandioca e
de frutas
A rejeiccedilatildeo dos iacutendios sinaliza que natildeo foi apenas da parte dos
portugueses que houve inicial rejeiccedilatildeo aos novos alimentos e haacutebitos
alimentares como registrado na carta de Mello Cacircmara a Dom Joatildeo III citado
anteriormente Os iacutendios tambeacutem expressaram seu interesse em manter seus
proacuteprios haacutebitos alimentares desconsiderando os alimentos vindos de Portugal
21
Segundo Cacircmara Cascudo (2004) animais como boi vaca porco
galinha cabra e ovelha foram introduzidos pelos portugueses bem como os
cultivos de arroz feijatildeo e verduras pela implantaccedilatildeo de hortas Registros do
padre jesuiacuteta Fernatildeo Cardim que chegou em 1584 descreve a existecircncia de
ldquoalface aboacutebora couve pepino nabos mostarda hortelatilde coentros endros
funchos ervilhas gergelim cebolas alhos e outros legumes que do Reino se
trouxeram que se datildeo bem na terrardquo (CARDIM 1939 p 94)
A partir do que eacute apresentado por Cacircmara Cascudo (2004) e Freyre
(1964) eacute possiacutevel verificar ainda os haacutebitos alimentares dos escravos africanos
que foram trazidos para a colocircnia em meados do seacuteculo XVI primeiramente
inseridos no trabalho dos engenhos de cana e algodatildeo e posteriormente na
mineraccedilatildeo e fazendas de gado
Segundo Cacircmara Cascudo (2004) quase todos escravos eram
obrigados a se alimentar da dieta que lhes era fornecida assim a possibilidade
de escolha do que comer era praticamente nula Eram melhor alimentados
apenas durante a viagem de navio ateacute chegar em terras brasileiras pois
precisariam estar em boas condiccedilotildees para serem revendidos
A refeiccedilatildeo consiste durante a viagem em feijatildeo farinha de milho e de mandioca agraves vezes tambeacutem peixe salgado Sua bebida eacute aacutegua e de quando em quando tambeacutem um pouco de aguardente Sendo levados do Brasil esses gecircneros teriam deterioraccedilatildeo raacutepida e natural (MARTIUS 21 apud CAcircMARA CASCUDO 2004 p 200)
Uma vez instalados nas aacutereas a que foram destinados na colocircnia a
alimentaccedilatildeo do europeu natildeo mudava significativamente Poreacutem em Minas
Gerais era comum a destinaccedilatildeo de pequenas parcelas de terra para que
escravos cultivassem vegetais de sua preferecircncia proacuteximo agraves senzalas
provendo uma alimentaccedilatildeo melhor pelo menos mais diversificada (CAcircMARA
CASCUDO 2004 GUIMARAtildeES REIS 2007) Citando relatos de Gabriel Soares
de Souza que esteve na Bahia de 1570 a 1587 e de Joatildeo Mauricio Rugendas
que passou pelo Brasil de 1821 a 1835 Cacircmara Cascudo (2004) relata que
nesses roccedilados os escravos podiam trabalhar em dias santos e em dias de festa
na casa-grande Era dado aos escravos pequenas parcelas de terra onde eles
podiam cultivar alimentos de seu interesse de consumo
Dessa forma as roccedilas de subsistecircncia aleacutem de contribuiacuterem para reduzir os custos de manutenccedilatildeo da matildeo de obra ao complementarem
22
a alimentaccedilatildeo fornecida pelos senhores criavam um espaccedilo proacuteprio para os escravos contribuindo assim para a prevenccedilatildeo de fugas e revoltas (GUIMARAtildeES REIS 2007 p 330)
A possibilidade de cultivar algumas roccedilas de alimentos preferidos na
cultura africana segundo Cacircmara Cascudo e Gilberto Freyre explica a inserccedilatildeo
de muitas plantas africanas que de alguma maneira os escravos conseguiram
transportaacute-las para o Brasil durante sua viagem Isso tambeacutem permitiu a
inserccedilatildeo de algumas peculiaridades das praacuteticas alimentares africanas na
formaccedilatildeo da comida brasileira atraveacutes das cozinheiras e tambeacutem embora mais
raramente dos cozinheiros que atuavam nas casas-grandes Segundo Freyre
(1964) pode-se atribuir a eles a introduccedilatildeo dos seguintes ingredientes
alimentos e modos de fazer na culinaacuteria brasileira
Azeite-de-dendecirc pimenta malagueta quiabo maior uso da banana variedade de formas de preparar a galinha e o peixerdquo (p 634) Dentro da extrema especializaccedilatildeo de escravos no serviccedilo domeacutestico das casas-grandes reservaram-se sempre dois agraves vezes trecircs indiviacuteduos aos trabalhos de cozinha (FREYRE 1964 p 634)
Freyre (1964) aponta que as influecircncias se deram primeiramente e mais
fortemente nos estados do Nordeste (Bahia Pernambuco e Maranhatildeo) em
funccedilatildeo dos trabalhos nos engenhos da regiatildeo Na Bahia foi muito marcante a
inserccedilatildeo das vendas dos quitutes doces e salgados em tabuleiros ou gamelas
pelas ruas sobretudo pelas mulheres alforriadas mas tambeacutem havia aquelas
que vendiam para reverter a renda agrave sua lsquosinhaacutersquo6 ldquoQuindim cocada sequilhos
mocotoacutes vatapaacutes mingaus pamonhas canjicas acaccedilaacutes abaraacutes arroz-de-coco
feijatildeo-de-coco angus patildeo-de-loacute de arroz patildeo-de-loacute de milho rebuccedilados7rdquo (p
636) Este autor afirma que os dois pratos de origem africana que mais fizeram
sucesso na mesa da casa-grande foram o vatapaacute e o caruru
Com a chegada da Corte Portuguesa em 1808 segundo Cacircmara
Cascudo (2004) Holanda (1995) e Ribeiro (2014) algumas alteraccedilotildees
importantes comeccedilaram a ocorrer no plano alimentar dos mais ricos com a
vinda inclusive de cozinheiros particulares com seus livros de receitas Criaram-
se modismos que tiveram influecircncia principalmente no Rio de Janeiro Um deles
6 No capiacutetulo 3 deste trabalho faccedilo uma discussatildeo mais detalhada sobre o papel das mulheres iacutendias
africanas e portuguesas na formaccedilatildeo da culinaacuteria brasileira 7 Como os portugueses se referem ao doce ldquobalardquo
23
foi a ampliaccedilatildeo do consumo de produtos importados da Europa e o estilo francecircs
de comer
Importava-se conservas doces frutos processados salsichas presuntos manteiga queijo chaacute e temperos () Desde entatildeo os haacutebitos agrave mesa se europeizaram os ideais alimentares e de paladar se tornaram cada vez mais semelhantes aos franceses berccedilo da gastronomia como a conhecida hoje (RIBEIRO 2014 p 50-51)
Freyre (1964) descreve informaccedilotildees dos livros de receitas dos
cozinheiros que vieram de Portugal e que passaram a inserir as novas praacuteticas
alimentares importadas para os mais abastados como a substituiccedilatildeo da gordura
pela manteiga francesa nas frituras diversas o reduzido uso da feijoada e dos
guisados do uso da pimenta e de outros condimentos picantes O proacuteprio trigo
antes uma raridade passou a chegar com maior facilidade e iniciando-se a
produccedilatildeo do patildeo de trigo tatildeo caracteriacutestico em Portugal e que passou a ser
muito consumido tambeacutem no Brasil
Em vez do aluaacute da garapa de tamarindo do caldo de cana ndash o chaacute agrave inglesa em vez de farinha do piratildeo ou do quibebe ndash a batata chamada inglesa Juntando-se a tudo isso o requinte do gelo Manteiga francesa batata inglesa chaacute tambeacutem agrave inglesa gelo ndash tudo isso agiu no sentido da desafricanizaccedilatildeo da mesa brasileira que ateacute os primeiros anos de independecircncia estivera sob maior influecircncia da Aacutefrica e dos frutos indiacutegenas (FREYRE 1964 p 642)
As influecircncias de outras culturas continuaram a se expandir a partir de
metade do seacuteculo XIX com a chegada de novos imigrantes ndash principalmente
italianos alematildees espanhoacuteis japoneses e siacuterio-libaneses ndash novos elementos da
culinaacuteria tiacutepica desses grupos eacutetnicos foram se incorporando a jaacute miscigenada
comida brasileira Na contemporaneidade a influecircncia alimentar mais relevante
de uma cultura externa eacute a norte-americana Poreacutem no seacuteculo XX o hibridismo
alimentar natildeo mais ocorre necessariamente pela intensidade da imigraccedilatildeo mas
sobretudo pela influecircncia da globalizaccedilatildeo Ao facilitar a divulgaccedilatildeo o transporte
e a aquisiccedilatildeo de alimentos de outros paiacuteses esse processo propiciou a
introduccedilatildeo constante de novas praacuteticas e haacutebitos alimentares
Apoacutes a breve introduccedilatildeo sobre os haacutebitos alimentares formados no Brasil
colonial passo a tratar especificamente da regiatildeo de Minas Gerais onde se deu
a fase mineradora regiatildeo na qual estatildeo inseridos os municiacutepios pesquisados
24
22 Fase da mineraccedilatildeo em Minas Gerais escassez de alimentos
O ciclo da mineraccedilatildeo foi muito importante para a economia da colocircnia
portuguesa e iniciou-se apoacutes a quase estagnaccedilatildeo do ciclo do accediluacutecar no final do
seacuteculo XVII Teve seu apogeu em Minas Gerais no seacuteculo XVIII e nesta fase
por determinaccedilatildeo da Coroa Portuguesa toda a matildeo de obra deveria estar
voltada basicamente agrave extraccedilatildeo de ouro e diamante Paula (2007) menciona que
a mineraccedilatildeo foi uma atividade central e decisiva na peculiaridade histoacuterica da
regiatildeo onde ela ocorreu Segundo o autor algumas caracteriacutesticas dessa
atividade foram a rapidez e amplitude com que a regiatildeo foi ocupada O intenso
fluxo imigratoacuterio gerado pela quantidade de ouro e seu preccedilo transformou-a na
Capitania mais populosa do periacuteodo colonial ao imperial Por sua importacircncia
econocircmica e dinamismo da atividade Minas Gerais teve o maior nuacutemero de
escravos da Ameacuterica Portuguesa
O fato de ser ele mesmo o ouro dinheiro em sua forma mais universal teraacute decisivo impacto sob o grau de dinamismo e mercantilizaccedilatildeo da economia mineira A riqueza decorrente da atividade induziraacute o Estado portuguecircs a efetivamente implantar a maacutequina estatal da colocircnia agrave qual seraacute durante muito tempo apenas fisco poliacutecia e justiccedila Satildeo essas dimensotildees que vatildeo determinar o desenvolvimento em Minas Gerais de uma estrutura urbana de uma certa vida poliacutetica e cultural em nada triviais no contexto colonial (PAULA 2007 p 279)
Assim a atividade mineradora fez surgir em Minas Gerais primeiramente
uma sociedade urbana baseada na extraccedilatildeo de ouro e diamantes com a
formaccedilatildeo de pequenos povoados e arraiais Segundo Zemella (1951) ldquoos
arraiais mineiros cresceram tatildeo vertiginosamente que em poucos anos muitos
deles atingiram a dignidade de vila Surgiram primeiramente Mariana Vila Rica
Caeteacute Sabaraacute Vila do Priacutencipe Arraial do Tijuco e outrosrdquo (ZEMELLA 1951 p
46) Nesses ldquooutrosrdquo citados pela autora estaacute incluiacuteda a vila de Guarapiranga
(atuais municiacutepios de Piranga Porto Firme e Presidente Bernardes) como jaacute foi
mencionado
Em funccedilatildeo disso analisa Cacircmara Cascudo (2004) com um contingente
elevado de pessoas que chegavam tanto do litoral da Colocircnia como tambeacutem de
Portugal em busca das riquezas minerais a escassez de alimento foi um fator
marcante nesse periacuteodo jaacute que se plantava muito pouco e boa parte da comida
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era trazida por tropeiros8 a preccedilos elevados Aleacutem disso demorava a chegar
devido agraves dificuldades das tropas em avanccedilar pelas matas e estradas de difiacutecil
acesso
O excesso de ouro mal enfrentava o exageradiacutessimo preccedilo dos gecircneros alimentiacutecios transportados de longe porque natildeo havia vontade e tempo para plantar cereais Garimpeiros e faiscadores9 tinham que comprar qualquer elemento para compor a menor refeiccedilatildeo Toda a escravaria estava ocupada no desmonte das terras e lavagem do ouro (CAcircMARA CASCUDO 2004 p 208)
Segundo Frieiro (1982) e Paula (2007) as crises de abastecimento foram
graviacutessimas e causaram muitas mortes por fome aleacutem da acelerada alta de
preccedilos dos alimentos Magalhatildees (1978) aponta duas grandes crises de fome a
de 1697-1698 e a de 1700-1701 Essas crises propiciaram uma dispersatildeo
populacional do centro da regiatildeo mineradora ldquoOs primeiros habitantes natildeo
pensavam em perder tempo nas canseiras do amanho e plantio da terra A falta
de caminhos agravava sobremaneira o problema do abastecimentordquo (FRIEIRO
1982 p 56)
Segundo o autor tinha-se assim uma alimentaccedilatildeo de baixo valor
proteico Para minimizar isso comia-se o ldquobicho da taquarardquo assado ou torrado
Alimento que jaacute era consumido pelos indiacutegenas
O que comia o faisqueiro na sua lavra Comia do pouco que se plantava nas roccedilas Milho feijatildeo farinha de mandioca e alguma fruta da terra eram o cotidiano sustento dos mineradores O escravo negro pau para toda obra armava o tripeacute de varas fincado no chatildeo e pendurava nele o caldeiratildeo de ferro em que cozinhava o feijatildeo com toucinho servido em pratos de estanho Estendia-se a farinha ao sol numa toalha e ao lado natildeo faltava o ancorote de aacutegua ou aguardente Galinha ovos e doces quando os havia muito raros eram tudo por preccedilo da hora da morte (FRIEIRO 1982 p 57)
A partir disso pela necessidade de manter a atividade e portanto de
manter alimentados os homens para o trabalho o rei ordena a importaccedilatildeo de
carne de boi para Minas vinda de Satildeo Paulo Curitiba sertotildees da Bahia e
Pernambuco Essas regiotildees natildeo possuiacuteam grande plantel mas passaram a
ampliar a produccedilatildeo para atender agrave demanda mineira A carne chegava cara e
8 Uma importante e movimentada rota de comercializaccedilatildeo para abastecer a regiatildeo de suprimentos gerais e
comida surge da exploraccedilatildeo de ouro e diamante Detalhes dessa rota comercial por ser visto em Zemella (1951)
9 Muito comuns na mineraccedilatildeo os faiscadores eram homens livres e pobres havendo mesmo escravos entre eles que entregavam quantia fixa de ouro ao senhor e guardavam o eventual excedente (VAINFAS 2001 p 398)
26
tambeacutem tinha seu preccedilo elevado nas regiotildees de origem jaacute que se priorizava a
exportaccedilatildeo para Minas Apesar da escassez de comida representar um aspecto
negativo para Minas Gerais ela contribuiu para a expansatildeo do mercado de
outras regiotildees do paiacutes que investiram no abastecimento de alimentos da aacuterea de
mineraccedilatildeo conforme aponta Furtado (2000)10
Segundo Zemella (1951) apesar do empenho de Satildeo Paulo e das outras
regiotildees em fazer chegar a carne ateacute as Minas Gerais havia irregularidades no
fornecimento Em funccedilatildeo disso usava-se muito da carne de caccedila e de todo o
tipo de alimento que se poderia obter nas matas aleacutem do pouco que colhiam nas
pequenas roccedilas para subsistecircncia insuficiente para atender a demanda de todos
os trabalhadores que viviam na regiatildeo dedicada agrave mineraccedilatildeo
A situaccedilatildeo de inseguranccedila alimentar grave que se instalava e a grande
dificuldade na obtenccedilatildeo da carne bovina ldquoestimulou o governo metropolitano agrave
formaccedilatildeo de uma zona pecuarista em torno das minas distribuindo sesmarias
em profusatildeo sempre sob a condiccedilatildeo de os agraciados instalarem curraisrdquo
(ZEMELLA 1951 p 192) O objetivo era tambeacutem que com o tempo a produccedilatildeo
de gado se tornasse suficiente para natildeo mais haver comeacutercio com a Bahia
visando fechar os canais por onde escoava o contrabando de ouro
A outra accedilatildeo do governo da qual trata a autora foi instituir a criaccedilatildeo de
suiacutenos onde houvesse espaccedilo para tal Assim passou a ser frequente entre os
mineiros a implantaccedilatildeo de chiqueiros rudimentares no quintal das casas mesmo
nas casas urbanas Surge a partir dessa situaccedilatildeo a preferecircncia pela carne suiacutena
na dieta do mineiro da regiatildeo de mineraccedilatildeo11 carne que estaacute presente na maior
parte das receitas consideradas mineiras ainda nos dias atuais
Outra medida por parte da Coroa para garantir a subsistecircncia interna e
certa autonomia ao longo desse periacuteodo de mineraccedilatildeo foi a criaccedilatildeo da ldquoOrdem
10 A pecuaacuteria que encontrara no Sul um habitat excepcionalmente favoraacutevel para desenvolver-se - e que
natildeo obstante sua baixiacutessima rentabilidade subsistia graccedilas agraves exportaccedilotildees de couro ndash passaraacute por uma verdadeira revoluccedilatildeo com o advento da economia mineira O gado do Nordeste cujo mercado definhava com a decadecircncia da economia accedilucareira tende a deslocar-se em busca do florescente mercado da regiatildeo mineira Outra caracteriacutestica de profundas consequecircncias para as regiotildees vizinhas radicava em seu sistema de transporte A tropa de mulas constitui autecircntica infraestrutura de todo o sistema A quase inexistecircncia de abastecimento local de alimentos a grande distacircncia por terra que deveriam percorrer todas as mercadorias importadas a necessidade de vencer grandes caminhadas em regiatildeo montanhosa para alcanccedilar os locais de trabalho tudo contribuiacutea para que o sistema de transporte desempenhasse um papel baacutesico no funcionamento da economia Criou-se assim um grande mercado para animais de carga (FURTADO 2000 p 81)
11 Nas regiotildees do norte de Minas Gerais outros tipos de carne satildeo mais comuns por exemplo a carne de sol em que se usa mais frequentemente a carne de boi
27
Reacutegia de 27 de fevereiro de 1777rdquo que tornou obrigatoacuterio o cultivo nas aacutereas
rurais em quantidade suficiente para abastecimento de mandioca feijatildeo e milho
considerados alimentos baacutesicos naquela eacutepoca
O milho que na regiatildeo das Minas Gerais passou a ser mais importante
para consumo humano12 do que a mandioca tinha como derivados pipoca
curau pamonha farinha cuscuz biscoitos bolos cerveja de milho verde
aguardente canjica ldquoque os ricos comiam por gosto e os pobres por
necessidaderdquo (FRIEIRO 1982 p 57) Isso porque estes derivados eram
consumidos apenas pelos proprietaacuterios das terras e outros poucos abastados
Segundo Saint-Hilaire (1938) e Frieiro (1982) aos escravos soacute era dado o angu
que durante muito tempo foi a base de sua dieta Saint-Hilaire (1938) que
aprovou o paladar da alimentaccedilatildeo agrave base do milho descreve detalhes do fubaacute e
a importacircncia do angu para a alimentaccedilatildeo dos escravos
Para fazer servir o milho agrave alimentaccedilatildeo ordinaacuteria dos homens eacute ele preparado de duas maneiras diferentes Sua farinha simplesmente moiacuteda e separada do farelo com o auxiacutelio de uma peneira de bambu toma o nome de fubaacute Eacute fazendo cozer o fubaacute na aacutegua sem acrescentar sal que se faz essa espeacutecie de polenta grosseira que se chama como jaacute o disse anguacute e constitui o principal alimento dos escravos (SAINT-HILAIRE 1938 p 206)
O viajante Pohl (1951 apud FRIEIRO 1982) relata o que testemunhou
da alimentaccedilatildeo dos escravos ldquoalimentavam-se os negros ao almoccedilo e agrave ceia
com farinha de milho misturada com aacutegua quente o angu propriamente dito no
qual punham um naco de toucinho e ao jantar davam-lhes feijatildeordquo (POHL 1951
apud FRIEIRO 1982 p 75) O objetivo era alimentar o escravo somente daquilo
que o mantivesse em boas condiccedilotildees de sauacutede e com forccedila suficiente para fazer
render o trabalho na lavra
O angu era desde essa eacutepoca feito sem adiccedilatildeo de sal o que perdura ateacute
os dias de hoje A principal razatildeo para isso naquela eacutepoca era a dificuldade em
obter o sal em Minas Gerais e consequentemente o seu alto preccedilo Assim esse
produto era usado com parcimocircnia para alimentaccedilatildeo animal e alguns alimentos
12 Para fins de alimentaccedilatildeo animal o milho tambeacutem era mais importante do que a mandioca pois dele se
alimentavam os bovinos os suiacutenos os equinos e os galinaacuteceos conforme aponta Meneses (2007) Assim era necessaacuteria uma aacuterea muito grande destinada ao cultivo deste cereal Segundo este autor a praacutetica de produccedilatildeo consorciada de milho e feijatildeo era comum e atendiam a uma ldquoordem bioloacutegica cultural e econocircmica e ainda ecoloacutegica - condiccedilotildees de clima solo e relevordquo (p 344) Com o passar do tempo o milho caiu na preferecircncia dos habitantes das Minas e se tornou mais importante para fins de alimentaccedilatildeo humana tambeacutem
28
que precisariam dele para conservaccedilatildeo como toucinhos e feijatildeo por exemplo
Conforme Frieiro (1982) em funccedilatildeo dessa situaccedilatildeo poder-se-ia talvez atribuir
o angu sem sal como invenccedilatildeo mineira embora isso natildeo possa ser comprovado
jaacute que em outras regiotildees como Satildeo Paulo e Bahia o angu eacute temperado A
obtenccedilatildeo de sal foi um problema geral no paiacutes durante todo o seacuteculo XVIII
segundo o autor
Zemella (1951) em seu importante trabalho sobre o abastecimento de
capitania das Minas Gerais no seacuteculo XVIII destaca essa situaccedilatildeo
O suprimento de sal especialmente para as cidades vicentinas sempre foi difiacutecil e penoso Na Vila de Satildeo Paulo o mau fornecimento do preciso condimento causou ateacute revoltas Se na Vila de Satildeo Paulo que estava relativamente proacutexima do porto de importaccedilatildeo de sal havia tremendas dificuldades para a sua obtenccedilatildeo que seria entatildeo das Gerais As minas no seu desespero conseguiram uma regiatildeo interna os sertotildees marginais do Satildeo Francisco que lhe fornecesse tal mercadoria se bem que em pequenas quantidades O sal chegava agraves cidades mineiras subindo o rio Satildeo Francisco em barcaccedilas (ZEMELLA 1951 p 193)
A autora aponta que o sal assim como a carne os cereais o accediluacutecar e o
toucinho eram produtos vitais de consumo para os mineiros Sendo que a carne
e o sal eram aleacutem de necessaacuterios imprescindiacuteveis e vinham de longas
distacircncias Segundo Carrara (2013) o sal que chegava agraves Minas Gerais vinha
de Sobradinho Pilatildeo Arcado Casa Nova e Remanso na Bahia A autora inclui
na lista ainda dois produtos que eram considerados de grande importacircncia para
os mineiros a pinga e o tabaco A pinga ou cachaccedila era muitas vezes usada
para ajudar a remediar a fome
Como citado por Zemella (1951) e Frieiro (1982) a Ordem Reacutegia
estimulou pequenos cultivos para subsistecircncia e a venda dos excedentes
reduzindo o risco de uma nova crise de fome Com o tempo foi-se regulando o
abastecimento embora a preccedilos ainda estivessem muito elevados para a grande
maioria da populaccedilatildeo da regiatildeo mineradora Segundo Boxer (1969 apud Arruda
1999 p 139) ldquoAs pessoas que tinham uma fazenda ou roccedila nas quais
plantavam legumes criavam aves porcos etc para elas e seus escravos
vendendo o excesso para o consumo na cidade com bons lucrosrdquo
Arruda (1999) menciona que as pessoas mais ricas e que possuiacuteam um
grande nuacutemero de escravos foram as primeiras a iniciarem o cultivo de suas
29
terras para alimentar seus familiares os escravos e a aproveitar a demanda por
alimentos para obter algum lucro com a venda do excedente
Analisando o lugar da comida no processo de formaccedilatildeo do territoacuterio das
Minas Gerais na fase da mineraccedilatildeo verificamos que ela teve uma funccedilatildeo muito
mais fisioloacutegica ou seja a de matar a fome e sustentar a pesada lida diaacuteria que
era o trabalho na lavra Conforme os registros de Mawe (1922) Saint-Hilaire
(1938) e Cardim (1939) verifica-se que os habitantes da regiatildeo de Minas Gerais
faziam suas refeiccedilotildees com muita rapidez e com pouca conversa
Outra observaccedilatildeo importante eacute mencionada por Abdala (2007) que
aponta a existecircncia de uma combinaccedilatildeo de gecircneros adquiridos no comeacutercio com
a produccedilatildeo de alimentos do quintal isso ainda na fase da mineraccedilatildeo ndash no
periacuteodo apoacutes as crises de fome e organizaccedilatildeo do abastecimento interno Como
os preccedilos dos produtos importados eram muito elevados os produtos da terra
foram os principais alimentos consumidos Assim segundo a autora surge uma
cozinha com caracteriacutesticas peculiares que se adaptou agrave situaccedilatildeo vivenciada
pelos habitantes cujo controle poliacutetico e econocircmico era excessivo diante da
realidade em que atender agraves necessidades imediatas de sobrevivecircncia era o
principal objetivo ldquoAgrave exceccedilatildeo das compotas e doccedilarias de maneira geral
inspiradas nos haacutebitos lusitanos os pratos servidos no dia-a-dia caracterizavam-
se pela rusticidade dos produtos da terrardquo (ABDALA 2007 p 73) Nesse periacuteodo
tambeacutem foi muito importante dominar as teacutecnicas de conservaccedilatildeo dos alimentos
o que acarretou na adoccedilatildeo de haacutebitos alimentares muito caracteriacutesticos como a
conservaccedilatildeo da carne do porco na gordura retirada do proacuteprio animal
23 Fase da ruralizaccedilatildeo em Minas Gerais fartura de alimentos
A fase da ruralizaccedilatildeo em Minas Gerais eacute considerada aquela que
paulatinamente vai surgindo um novo dinamismo econocircmico e reprodutivo para
aleacutem da mineraccedilatildeo Segundo Arruda (1999) Igleacutesias (1970) Carrara (2007)
Guimaratildees e Reis (2007) Meneses (2007) Barbosa (1995) e Frieiro (1982) natildeo
ocorreu um corte radical uma linha divisoacuteria onde tenha se encerrado o ciclo da
mineraccedilatildeo e surgido o ciclo da ruralizaccedilatildeo A demarcaccedilatildeo de uma periodizaccedilatildeo
eacute feita pelos autores mais por razotildees metodoloacutegicas para discorrer sobre o ritmo
histoacuterico econocircmico e cultural daquele periacuteodo na regiatildeo
30
Iglesias (1970) utiliza os termos ldquoopulecircncia e decadecircnciardquo da mineraccedilatildeo
e sugere os periacuteodos da seguinte maneira Os anos de 1693 a 1770 a fase
considerada do surgimento ao auge da opulecircncia mineraccedilatildeo e 1770 a 1883 o
que abrangeria a sua decadecircncia Tal decliacutenio orientou consequentemente para
a atividade a agriacutecola Arruda (1999) aponta a Carta (ou Ordem) Reacutegia jaacute citada
no item anterior como o marco de reconhecimento da Coroa do decliacutenio da
mineraccedilatildeo e da necessidade de estimular a produccedilatildeo agriacutecola na regiatildeo Em
suas palavras
A Carta Reacutegia de 1777 consagra ao novo princiacutepio o postulado que reconhece a importacircncia da agropecuaacuteria no conjunto das atividades econocircmicas nas aacutereas de mineraccedilatildeo () A mudanccedila de atitude por parte das autoridades governamentais do Reino corresponde na realidade agrave avassaladora crise da produccedilatildeo auriacutefera depois dos anos sessenta Impunham-se novos caminhos agrave economia de Minas capazes de dar sustentaccedilatildeo aos significativos contingentes populacionais que laacute haviam se estabelecido na primeira deacutecada do seacuteculo XVIII (ARRUDA 1999 p 140)
Nesta fase o problema de abastecimento jaacute natildeo era mais tatildeo grave mas
os preccedilos dos alimentos continuavam altos Era tempo de maior fartura de
alimentos em relaccedilatildeo agrave fase de mineraccedilatildeo mas ainda assim com muitos
obstaacuteculos Zemella (1951) defende que em funccedilatildeo da situaccedilatildeo dada a regiatildeo
de Minas Gerais foi orientando pouco a pouco seus caminhos no sentido da
autossuficiecircncia e as atividades dos habitantes se desviando para a lavoura
pecuaacuteria e a manufatura ldquoNa proacutepria regiatildeo onde se localizavam as lavras13 ou
minas multiplicaram-se as plantaccedilotildees As minas agonizantes passaram a
apoiar-se na lavoura que se expandindo procurava gulosamente as manchas
de terra feacutertil que havia nas imediaccedilotildees das lavrasrdquo (ZEMELLA 1951 p 239)
Mas esse processo natildeo significou um rompimento abrupto da mineraccedilatildeo Assim
o trabalho na lavra permanecia embora em muito menor importacircncia do que
antes ndash nas fases poacutes-colheita ndash quando se utilizava a matildeo-de-obra dos escravos
que pudessem ser retirados temporariamente da lavoura
Guimaratildees e Reis (2007) apontam que os setores da manufatura
pecuaacuteria e lavoura permitiram que a economia de Minas Gerais continuasse a
13 ldquoEm 1702 foi criado a Intendecircncia das Minas oacutergatildeo encarregado de aplicar a legislaccedilatildeo sobre a
mineraccedilatildeo na colocircnia Cabia ainda ao oacutergatildeo dividir o local a ser explorado em Datas lotes de terra entregues ao descobridor das minas As aacutereas maiores que as Datas eram chamadas de Lavras lotes de terras em que a exploraccedilatildeo do ouro soacute seria possiacutevel com teacutecnicas de exploraccedilatildeo mais eficaz e com um grande nuacutemero de escravosrdquo (MUTTER 2012 p31)
31
se desenvolver e a Capitania continuasse a manter seu ritmo de crescimento
populacional durante a segunda metade do seacuteculo XVIII incluiacuteda a populaccedilatildeo
escrava
Com a crise da mineraccedilatildeo a mudanccedila nos rumos da economia mineira provocou transformaccedilotildees quantitativas e qualitativas na agricultura com o fortalecimento da produccedilatildeo interna e com o desenvolvimento de uma elite residente autocircnoma ante o mercado externo (GUIMARAtildeRES REIS 2007 p 332)
Na concepccedilatildeo de Arruda (1999) aleacutem de a agricultura ocorrer nas
regiotildees das lavras como afirmado por Zemella (1951) as sesmarias que foram
concedidas levaram muitos a estabelecerem suas fazendas no interior rural A
autora aponta que nesta fase jaacute ao final do seacuteculo XVIII Minas reduziu muito o
consumo de produtos importados basicamente de Satildeo Paulo Rio de Janeiro e
Bahia passando a comercializar principalmente para o Rio de Janeiro muito do
que passou a produzir embora a produccedilatildeo fosse principalmente para
abastecimento interno como tambeacutem apontado por Graccedila Filho (2007) e por
Guimaratildees e Reis (2007) Exportava-se ldquoqueijo fumo accediluacutecar aguardente e
cana e ainda mas em menor volume couros e solas marmelada e mandioca
algodatildeo pouco cafeacute gado vacum porcos cavalos e galinhasrdquo (DULCI 2007 p
348)
Este autor menciona ainda que as importaccedilotildees que continuaram pelo
seacuteculo XIX foram de produtos como sal tecidos vinho peixe salgado vinagre
e azeite doce
As compras no entanto eram muito menores do que as vendas O poder aquisitivo dos mineiros era baixo portanto jaacute que eles natildeo tinham condiccedilotildees de consumir muitos produtos importados havia espaccedilo para fabricaccedilatildeo local de bens indispensaacuteveis agrave vida diaacuteria (DULCI 2007 p 348)
Para Freyre (2008 p 67) o decliacutenio da mineraccedilatildeo ldquotransformou quase
toda a Proviacutencia de inquietamente mineira a pacatamente agriacutecolardquo Para este
autor a fase da ruralizaccedilatildeo foi melhor para Minas nos aspectos econocircmicos e
sociais Segundo Graccedila Filho (2007) Guimaratildees e Reis (2007) e Arruda (1999)
a fase da ruralizaccedilatildeo em Minas foi um processo relativamente lento que ocorreu
progressivamente e essa realidade natildeo mudou mundo durante quase todo o
seacuteculo XIX
32
Poreacutem a partir de segunda metade desse seacuteculo o setor cafeeiro e o
fabril tornaram essa realidade produtiva e econocircmica mais diversificada
sobretudo na Zona da Mata assim como a pecuaacuteria leiteira na regiatildeo mais ao
Sul do estado
A produccedilatildeo cafeeira na Zona da Mata conforme Pires (2013 p 331)
ldquodesenvolveu uma tiacutepica economia voltada para a produccedilatildeo e exportaccedilatildeo de cafeacute
que a partir de meados do seacuteculo XIX vai se tornando o espaccedilo econocircmico mais
rico do estado ateacute pelo menos o final da deacutecada de 1920rdquo
Tambeacutem foi na Zona da Mata que Dulci (2007) aponta ter surgido no final
do seacuteculo XIX e iniacutecio do XX agroinduacutestrias da cana e do leite que chegaram a
liderar o mercado nacional no iniacutecio do seacuteculo XX Antes disso os engenhos
existentes nas aacutereas rurais em Minas eram rudimentares O autor menciona que
no municiacutepio de Ponte Nova foram instaladas trecircs usinas de cana de accediluacutecar com
a importaccedilatildeo de equipamentos modernos para a produccedilatildeo em escala industrial
Com as usinas chegaram os trens da empresa Leopoldina o que foi muito
importante para o desenvolvimento regional
Em relaccedilatildeo agrave agroinduacutestria do leite em Minas no mesmo periacuteodo o autor
sinaliza que ela se deu de maneira constante acompanhando a evoluccedilatildeo da
pecuaacuteria regional A primeira agroinduacutestria de produtos laacutecteos do estado
estabeleceu-se onde hoje estaacute o municiacutepio de Santos Dumont
Satildeo muitas as teses e discussotildees baseadas em documentos e arquivos
sobre a Minas Colonial e sobre as dinacircmicas produtivas e o controle poliacutetico-
econocircmico nas duas fases a mineraccedilatildeo e a ruralizaccedilatildeo Poreacutem para os
objetivos deste trabalho como jaacute sinalizado no iniacutecio deste capiacutetulo importa
saber se o decliacutenio da mineraccedilatildeo e consequente ampliaccedilatildeo da produccedilatildeo
agropecuaacuteria (considerada assim a fase da ruralizaccedilatildeo) gerou mudanccedilas nos
haacutebitos alimentares da populaccedilatildeo mineira do entorno da regiatildeo mineradora
Conhecer os haacutebitos alimentares da populaccedilatildeo o que era cultivado e que
animais eram criados nesses dois periacuteodos eacute importante para correlacionar com
as informaccedilotildees obtidas na pesquisa de campo
Nesse sentido os autores que orientam a esse respeito satildeo Frieiro
(1982) Magalhatildees (2004) Arruda (1990) Abdala (2007) Vasconcellos (1968) e
Torres (2011)
33
Temos a impressatildeo (e Gilberto Freyre e Caio Prado Juacutenior pensam igualmente assim) que o mineiro tanto na Colocircnia nos tempos de mineraccedilatildeo no Impeacuterio passada a seacuterie de crises dos primeiros tempos de mineraccedilatildeo alimentava-se bem e melhor do que a maioria dos brasileiros ao menos quanto ao peso e valor nutritivo O mineiro exige ldquosustacircnciardquo quer comida substancial e pouco liga para refinamentos complicados (TORRES 2011 p 101)
A observaccedilatildeo de Torres (2011) corrobora a de Frieiro (1982) que
sinaliza para uma alimentaccedilatildeo mais farta na fase da ruralizaccedilatildeo e segundo
Arruda (1999) a produccedilatildeo diversificada nas fazendas era uma caracteriacutestica
deste periacuteodo Os excedentes de carne suiacutena toucinho carne seca farinha de
milho farinha de mandioca rapadura aguardente oacuteleo fumo cafeacute queijos
algodatildeo em fios e tecidos ruacutesticos eram vendidos nas cidades mais proacuteximas
O que os autores citados apontam eacute que houve fartura de produtos
alimentiacutecios sem diversificaccedilatildeo entre o que se comia na fase da mineraccedilatildeo para
a fase da ruralizaccedilatildeo exceto para os mais ricos que podiam investir na
importaccedilatildeo de vinhos azeites do reino e bacalhau Magalhatildees (2004) aponta a
abundacircncia na produccedilatildeo de legumes frutas hortaliccedilas tubeacuterculos e gratildeos
produzidos nos siacutetios e fazendas proacuteximos a Vila Rica e Mariana Ateacute mesmo
nos pequenos quintais das cidades existiam hortas Muitos dos alimentos eram
itens comuns no cotidiano alimentar da populaccedilatildeo como o feijatildeo a farinha e
milho e a couve
Quanto agrave produccedilatildeo de alimentos regionaislocais notam-se principalmente legumes hortaliccedilas frutas e gratildeos produzidos por pequenos sitiantes residentes nos termos das vilas Em Vila Rica por exemplo produziam-se os seguintes gecircneros laranjas bananas quiabos couves batata-doce caraacute mandioca ovos patildees leite azeite de mamona farinha de mandioca e de milho cevada arroz feijatildeo miuacutedo e fradinho (CHAVES 1995 apud MAGALHAtildeES 2004 p 71)
Em relaccedilatildeo agrave proteiacutena animal Magalhatildees (2004) e Frieiro (1982)
apontam que os suiacutenos e as galinhas caipiras continuaram sendo a principal
fonte de consumo Do suiacuteno aleacutem da carne continuou-se a usar o toucinho a
banha focinho orelhas mocotoacutes e fressuras que tambeacutem satildeo fonte de gordura
Diferentemente da carne cujo consumo era restrito aos abastados o toucinho e
a banha eram usados por todas as classes sociais para acompanhar as
hortaliccedilas e o feijatildeo
34
O angu e o feijatildeo continuaram presentes na mesa de todos sobretudo
na do pobre14 Segundo os autores nas famiacutelias mais ricas tinha-se como
costume servir refeiccedilotildees muito fartas para as visitas mesmo que essa natildeo fosse
a realidade cotidiana inclusive com variedades de doces numa tentativa de
apagar as privaccedilotildees alimentares vivenciadas anteriormente
Saint-Hilaire em uma de suas passagens por Minas Gerais no seacuteculo
XIX relata suas percepccedilotildees sobre a comida nas aacutereas rurais
Galinha e porco satildeo as carnes que se servem mais comumente em casa dos fazendeiros da proviacutencia das Minas O feijatildeo preto forma prato indispensaacutevel na mesa do rico e esse legume constitui quase que a uacutenica iguaria do pobre Se a esse grosseiro manjar este uacuteltimo acrescenta mais alguma coisa eacute arroz ou couve ou outras ervas picadas (hellip) Como natildeo se conhece o fabrico da manteiga substitui-se-lhe a gordura que escorre do toucinho que se frita Cada conviva salpica com farinha o feijatildeo ou outros alimentos aos quais se adiciona salsa e faz-se assim uma espeacutecie de pasta (hellip) Um dos pratos favoritos dos mineiros eacute galinha cozida com quiabo mas os quiabos natildeo se comem com prazer senatildeo acompanhados de anguacute espeacutecie de polenta sem sabor Em parte alguma talvez se consuma tanto doce como na proviacutencia das Minas fazem-se doces de uma multidatildeo de coisas diferentes (hellip) Eacute muito raro encontrar vinho em casa de fazendeiros a aacutegua eacute a sua bebida ordinaacuteria (SAINT-HILAIRE 1938 p 186-187)
Na percepccedilatildeo de Magalhatildees (2004) natildeo houve alteraccedilotildees importantes
na comida mineira ao longo dos anos na regiatildeo onde se iniciou a mineraccedilatildeo
Feijatildeo farinha de milho fubaacute e arroz continuaram a ser alimentos baacutesicos
Sobre as quitandas Frieiro (1982 p 166) e Abdala (2007 p 99) citam
o consumo comum dos biscoitos de polvilho assados ou fritos broas pamonhas
brevidades roscas sequilhos bolos broinhas de fubaacute de amendoim e matildees-
bentas As quitandas eram fundamentais nas aacutereas rurais Em funccedilatildeo da
distacircncia das cidades era preciso estar prevenido para a chegada de alguma
visita e para atender agrave famiacutelia diariamente O patildeo de queijo atualmente a
quitanda quase ldquosiacutembolordquo de Minas Gerais foi introduzida apenas em iniacutecio do
seacuteculo XX Natildeo haacute uma data precisa de seu surgimento mas como os autores
apontam o queijo passou a ser produzido para aproveitar as sobras do leite
Segundo Abdala (2007) os viajantes europeus que estiveram em Minas no
seacuteculo XIX relataram a raridade de queijo e manteiga nos menus locais Para a
14 Segundo Omegna (1961 apud FRIEIRO 1982) a parcela mais pobre e livre de Minas Gerais nunca
rejeitou o angu e nem a farinha de milho preferindo-o agrave mandioca Mas o mesmo natildeo se observava em outras regiotildees do Paiacutes justamente por ser comida prioritaacuteria para os escravos e assim optavam pela farinha de mandioca Essa era uma maneira de natildeo se igualar aos escravos
35
autora a introduccedilatildeo do queijo no biscoito de polvilho dando origem ao patildeo de
queijo surgiu justamente no periacuteodo de fartura alimentar quando se utilizava o
excedente para criar diversos pratos Na regiatildeo que pesquisei o patildeo de queijo
natildeo eacute uma quitanda tradicional e raramente eacute consumida
O que se percebe ao final deste capitulo eacute que a alimentaccedilatildeo baacutesica foi
a mesma em Minas desde o periacuteodo da mineraccedilatildeo A ruralizaccedilatildeo ampliou a
produccedilatildeo de alimentos para abastecimento interno e venda do excedente houve
o incremento de algumas produccedilotildees como cafeacute leite accediluacutecar e seus derivados
mas isso natildeo representou novidade em termos de consumo Percebe-se que os
haacutebitos alimentares permaneceram ao longo dos seacuteculos XVIII XIX e pelo
menos ateacute o iniacutecio do XX Os alimentos destacados como os baacutesicos pelos
autores citados aqui satildeo aqueles que atualmente ainda satildeo encontrados nas
receitas consideradas como mais tradicionais da cozinha mineira embora muitas
e dessas receitas sugiram algumas substituiccedilotildees como oacuteleo vegetal no lugar da
banha accediluacutecar cristal no lugar da rapadura ou do melado fermento quiacutemico no
lugar do bicarbonato de soacutedio etc
No capiacutetulo 5 seraacute possiacutevel observar se esses alimentos presentes na
regiatildeo de mineraccedilatildeo em Minas Gerais satildeo ainda adotados pelas famiacutelias rurais
entrevistadas e se existem relaccedilotildees da comida consumida na ocasiatildeo da
pesquisa com a comida do passado
36
3 ALIMENTACcedilAtildeO E CULTURA PERMANEcircNCIAS E TRANSFORMACcedilOtildeES
ldquoComer natildeo envolve apenas a natureza e a cultura Situa-se entre a natureza e a cultura Participa de ambas Tem muito a ver com a primeira e tambeacutem com a segundardquo
(Paolo Rossi 2014)
Apresento neste capiacutetulo a base conceitual e argumentativa da pesquisa
e os principais autores envolvidos com as abordagens contidas neste trabalho
O item 31 tem por objetivo apontar o lugar da alimentaccedilatildeo nas principais
anaacutelises das ciecircncias sociais e da histoacuteria Basicamente trecircs disciplinas
compotildeem as discussotildees presentes neste estudo e se complementam durante o
percurso a Antropologia a Sociologia e a Histoacuteria O item 32 traz a discussatildeo
existente em torno de sistema alimentar e suas relaccedilotildees com as praacuteticas
alimentares O item 33 analisa as diferenccedilas atribuiacutedas entre alimento e comida
na abordagem cultural e simboacutelica das praacuteticas alimentares inserindo a
importacircncia social e cultural do fogo no ato alimentar as dinacircmicas de
comensalidade as praacuteticas alimentares adotadas na contemporaneidade em
suas conexotildees com o tradicional e o moderno O item 34 discute as
possibilidades de permanecircncia ou extinccedilatildeo das praacuteticas tradicionais no contexto
alimentar contemporacircneo O item 35 discute o tradicional e o moderno no
contexto das dinacircmicas alimentares no meio rural e o item 36 trata do papel
feminino nas praacuteticas alimentares na famiacutelia
31 A alimentaccedilatildeo como categoria de estudo multidisciplinar contribui-ccedilotildees da antropologia da sociologia e da histoacuteria
Em importante artigo sobre as balizas historiograacuteficas da alimentaccedilatildeo
Meneses e Carneiro (1997) destacam os enfoques das diversas aacutereas neste
campo que satildeo bioloacutegico econocircmico social cultural e filosoacutefico Importa-nos
sobretudo aquelas referecircncias das ciecircncias sociais e da histoacuteria Para aqueles
autores a antropologia eacute a que mais daacute atenccedilatildeo a este tema e eacute a responsaacutevel
pela maior quantidade de informaccedilotildees a respeito Citam como principais
contribuiccedilotildees iniciais as obras de Claude Leacutevi-Strauss Marshall Sahlins Mary
Douglas entre outros
37
Os antropoacutelogos desde o seacuteculo XIX se empenharam em desenvolver uma etnografia sistemaacutetica dos haacutebitos alimentares e em buscar interpretaacute-los culturalmente A primeira fase da antropologia caracterizou-se por um comparativismo das diferentes tradiccedilotildees culturais A anaacutelise dos tabus onde se destacam os alimentares foi desde os primoacuterdios da Antropologia Cultural um terreno feacutertil para especulaccedilotildees sobre o significado simboacutelico da alimentaccedilatildeo (MENESES CARNEIRO 1997 p 19)
O socioacutelogo e antropoacutelogo brasileiro Gilberto Freyre jaacute em 1926 em seu
ldquoManifesto Regionalistardquo discute ainda que de forma pouco aprofundada sobre
a funccedilatildeo do accediluacutecar no Brasil Mas foi com sua obra publicada em 1939 em que
trata especificamente de uma sociologia do doce ao recolher receitas que eram
guardadas a sete chaves pelas mulheres e que eram repassadas de matildees para
filhas que o autor pode considerado como o precursor do mais importante
trabalho sobre o accediluacutecar Assunto que retoma mais tarde em ldquoCasa-Grande e
Senzalardquo publicado em 1964
O papel das ciecircncias sociais principalmente a contribuiccedilatildeo da
antropologia para os estudos da alimentaccedilatildeo eacute detalhadamente tratado por
Garciacutea (2009) Este autor aponta que apesar de o tema da alimentaccedilatildeo ter sido
importante para os antropoacutelogos desde os primoacuterdios ndash que registraram em seus
cadernos de campo os modos de comer de elaborar a comida e ainda os
principais alimentos consumidos pelos grupos estudados ndash o ano de 1968 eacute
considerado como sendo o iniacutecio aproximado dos estudos voltados mais
especificamente para a antropologia da alimentaccedilatildeo ou seja quando a
abordagem da comida como cultura passa a ser analisada de forma mais
institucionalizada pela antropologia ldquoCuando se fijen de manera clara las dos
maacutes potentes aproximaciones a la Antropologiacutea de la Alimentacioacuten el
estructuralismo y el materialismordquo (p 26) Sua observaccedilatildeo coincide com o
afirmado por Meneses e Carneiro (1997 p 20) de que ldquosomente nas deacutecadas
de 1960 e 1970 na voga do estruturalismo eacute que os estudos antropoloacutegicos
sobre alimentaccedilatildeo deslancham e se define um padratildeo de anaacutelise culturalrdquo
Garciacutea (2009) justifica ainda a fixaccedilatildeo da data de 1968 por este ser o ano da
primeira publicaccedilatildeo do terceiro volume da seacuterie ldquoMitoloacutegicasrdquo de Claude Leacutevi-
Strauss As Origens dos Modos agrave Mesa
Nesta obra Leacutevi-Strauss republicou o artigo ldquoO triacircngulo culinaacuteriordquo onde
apresenta seu entendimento sobre o fato alimentar e defende que a cozinha de
38
uma sociedade eacute uma linguagem inconsciente de sua estrutura Voltaremos a
este artigo mais agrave frente Em ldquoAs origens dos modos agrave mesardquo (Mitoloacutegicas 3)
assim como em ldquoDo mel agraves cinzas (Mitoloacutegicas 2)rdquo Leacutevi-Strauss analisa o que
chama de ldquoentornos e contornosrdquo da alimentaccedilatildeo A diferenccedila eacute que em
ldquoMitoloacutegicas 3rdquo ele analisa como os modos agrave mesa o uso de receitas e os modos
de preparaccedilatildeo em diferentes povos estatildeo conectados ao lado cultural e como
esses aspectos complementam o lado bioloacutegico que eacute o processo de ingestatildeo e
digestatildeo alimentar
Na deacutecada de 1970 Claude Fischler socioacutelogo e antropoacutelogo francecircs
passa a dar ecircnfase em seus estudos ao tema da alimentaccedilatildeo e desenvolve
importante trabalho sobre o accediluacutecar e seus aspectos de efeito simboacutelico e
bioloacutegico Como jaacute visto Gilberto Freyre (1939) trabalhou esta temaacutetica e sua
influecircncia no Brasil Depois de Claude Fischler Sidney Mintz de mesma
formaccedilatildeo acadecircmica tambeacutem publicou trabalhos sobre o accediluacutecar em 1986
analisando sobretudo as relaccedilotildees de poder existentes nesse tipo de produccedilatildeo
na regiatildeo caribenha Neste contexto seu trabalho inseriu o tema da alimentaccedilatildeo
na economia poliacutetica global Mas Sidney Mintz analisou tambeacutem o poder de
atraccedilatildeo de consumo do accediluacutecar e seu uso na culinaacuteria Sobre esse tema publicou
ldquoSweetness and Power The place of sugar in modern Historyrdquo e em Portuguecircs
foi publicado em 2003 o livro ldquoO Poder amargo do accediluacutecar produtores
escravizados consumidores proletarizadosrdquo
Voltando a Claude Fischler ainda na deacutecada de 1970 organizou a
coletacircnea La nourriture ndash Pour une anthropologie bioculturelle de lrsquoalimentation
Mas eacute na deacutecada de 1990 que publica seu mais importante trabalho
Lrsquohomnivore onde discute as transformaccedilotildees ocorridas nas sociedades
ocidentais modernas no campo da alimentaccedilatildeo e seus efeitos na vida das
pessoas
Tambeacutem entre as deacutecadas de 1970 e 1990 quem se destaca neste
campo eacute o antropoacutelogo americano Marvin Harris Seus estudos no campo da
alimentaccedilatildeo enfatizam sobretudo os enigmas culturais buscando explicar as
reaccedilotildees a alguns mitos e tabus alimentares Assim suas publicaccedilotildees mais
importantes foram ldquoVacas Porcos Guerras e Bruxas Os enigmas da Culturardquo
(1978) Bueno para comer enigmas de alimentacioacuten y cultura (1985) ldquoCanibais
e Reisrdquo (1990) Sobre o tema dos tabus alimentares outras importantes
39
contribuiccedilotildees satildeo as dos antropoacutelogos Mary Douglas sobretudo com a obra
ldquoPureza e Perigordquo publicada pela primeira vez em 1966 e Marshal Sallins com
a obra ldquoCultura e Razatildeo Praacuteticardquo publicada originalmente em 1976 Mary
Douglas e Marshal Sallins tecircm uma anaacutelise para os tabus alimentares que difere
da de Marvin Harris que opta pelo determinismo ecoloacutegico para justificar a razatildeo
de alguns grupos como os judeus em natildeo comer alguns alimentos como carne
de porco por exemplo No livro ldquoVacas Porcos Guerras e Bruxas ndash o enigma
da culturardquo ele defende que a Biacuteblia e o Alcoratildeo condenaram o consumo do
porco natildeo por razotildees espirituais de pecado ou impureza mas ldquoporque a sua
criaccedilatildeo constituiacutea uma ameaccedila agrave integridade dos ecossistemas culturais e
naturais baacutesicos do Oriente Meacutediordquo (HARRIS 1978 p 39) Aleacutem disso Harris
aponta que por ter uma alimentaccedilatildeo parecida com a dos humanos ou seja
viverem soltos nos bosques e se alimentarem de castanhas frutas tubeacuterculos e
cereais os porcos representavam uma disputa por comida Jaacute Mary Douglas e
Sallins defendem que a razatildeo para o natildeo consumo de porco se daacute por razotildees
simboacutelicas e religiosas Mary Douglas em ldquoPureza e Perigordquo recorre ao livro
biacuteblico de Leviacuteticos no Velho Testamento para justificar sua percepccedilatildeo Neste
livro haacute uma recomendaccedilatildeo expliacutecita aos judeus sobre os animais que podem
e que natildeo podem ser comidos divididos entre animais limpos e animais imundos
Assim eram considerados limpos e liberados para comer dentre os
quadruacutepedes os que tem unhas fendidas e divididas em dois e que rumina O
porco por natildeo ruminar eacute considerado imundo e proibido Aleacutem disso nada mais
eacute falado a respeito do porco no livro de Leviacutetico Assim a autora defende que os
judeus cumprem o mandamento apenas por razatildeo religiosa e nada tem a ver
com a questatildeo utilitaacuteria ou da disputa pela comida como alegado por Marvin
Harris Sallins em ldquoCultura e Razatildeo Praacuteticardquo compartilha de forma semelhante
a ideia de Mary Douglas ao tratar sobre os haacutebitos alimentares relativos agrave carne
dos americanos do Norte o que seraacute detalhado mais agrave frente
Outro autor importante no campo da alimentaccedilatildeo eacute o socioacutelogo inglecircs
Stephen Mennell Segundo Meneses e Carneiro (1997) na deacutecada de 1980
Mennell buscou investigar os usos sociais da domesticaccedilatildeo da natureza pela
cultura antes mesmo de Claude Leacutevi-Strauss analisando como se datildeo os
modos que lsquocivilizam o apetitersquo e publicou ldquoAll Manners of Food Eating and Taste
in England and France from the Middle Ages to the Presentrdquo (1996) Foi Mennell
40
ainda quem desenvolveu primeiramente estudos sobre as ldquocozinhas identitaacuteriasrdquo
sobre a valorizaccedilatildeo da cozinha nacional da Inglaterra e os ldquoestilos nacionais de
comerrdquo
Contreras e Gracia (2011 p 29) sugerem como objeto para a
antropologia da alimentaccedilatildeo ldquoo conjunto de representaccedilotildees crenccedilas
conhecimentos e praacuteticas herdadas eou aprendidas que estatildeo associadas agrave
alimentaccedilatildeo e satildeo compartilhadas pelos indiviacuteduos de uma dada cultura ou de
um grupo social determinadordquo
No acircmbito da sociologia segundo Meneses e Carneiro (1997) as
questotildees de gecircnero na divisatildeo social do trabalho domeacutestico e ainda gecircnero e
comida foram os que mais atraiacuteram as pesquisas iniciais Sobre este tema
Mabel Garcia Arnaiacutez (1996) antropoacuteloga espanhola a quem recorremos em
vaacuterios momentos neste trabalho destaca em seu estudo sobre os paradoxos da
alimentaccedilatildeo contemporacircnea as importantes contribuiccedilotildees de Mennell (1996) de
Murcott (1983) Pynson (1987) e Kaplan (1980)
Meneses e Carneiro (1997 p 24) mencionam que o tema da
comensalidade tambeacutem foi evidenciado a partir da deacutecada de 1970 ldquoOs estudos
nesta aacuterea se orientaram para a refeiccedilatildeo como instituiccedilatildeo social sua natureza e
funcionamento seus iacutecones ndash como a mesardquo Mais recentemente abrange
fortemente os estudos sobre os efeitos da tecnologia alimentar que propiciou o
haacutebito de comer fora de casa e o surgimento dos Fast food Em sua obra estes
autores citam os trabalhos de Stephen Mennel (1996) Anne Murcott (1983)
Harvey Levenstein (1988) Claude Fischler (1988)
Ao falar em comensalidade natildeo podemos deixar de citar a contribuiccedilatildeo
dada por Norbert Elias (2011) sobre as transformaccedilotildees nas normas de
comportamento social incluindo os modos agrave mesa na sociedade europeia a
partir do final da Idade Meacutedia Nesta obra cuja primeira publicaccedilatildeo ocorreu em
1939 o autor nos leva a descobrir como foram reproduzidas socialmente
algumas regras de boas maneiras de conviacutevio na sociedade e que tambeacutem se
refletem na comensalidade como por exemplo natildeo comer com as matildeos natildeo
colocar os peacutes sobre a mesa como usar os talheres a mesa natildeo falar de boca
cheia entre outras regras O que pode parecer superficialmente uma descriccedilatildeo
fuacutetil sobre coacutedigos de etiqueta social eacute na verdade uma anaacutelise interessante do
quanto aquilo que parece ser natural atualmente nada tem de natural pois satildeo
41
regras que foram sendo aprendidas agrave medida que o homem foi avanccedilando nos
estaacutegios de civilizaccedilatildeo ocidental O autor nos mostra o quanto foi delicado e difiacutecil
para o homem da cultura ocidental se tornar civilizado ao longo do processo
histoacuterico pois o civilizar-se envolvia a mudanccedila ldquoobrigatoacuteriardquo de comportamento
Em seu livro O Processo Civilizador ele se refere agrave sociedade europeia mas
principalmente agrave Franccedila e agrave Alemanha
No vieacutes da sociologia e da antropologia ocorre uma mudanccedila de
interesse no campo dos estudos sobre alimentaccedilatildeo que se observa a partir da
deacutecada de 1990 segundo Meneses e Carneiro (1997 p 20) deslocando-se o
interesse dos tabus para enfocar as ldquopraacuteticas culturais nos processos de
aculturaccedilatildeo e na identidade culturalrdquo
Eacute importante destacar a observaccedilatildeo feita por Contreras e Gracia (2011)
de que tem sido cada vez maior o nuacutemero de autores contemporacircneos que natildeo
fazem distinccedilatildeo nos enfoques disciplinares entre a antropologia e a sociologia
da alimentaccedilatildeo
Ainda natildeo estaacute bem definida a sucessatildeo de paradigmas dentro da antropologia e da sociologia da alimentaccedilatildeo pois a cada uma das correntes foram vinculados trabalhos sobre diferentes aspectos alimentares sem que necessariamente se tenha produzido um questionamento ou uma invalidaccedilatildeo decisiva das aproximaccedilotildees perguntas ou respostas anteriores Poreacutem dentro desse acircmbito de estudo encontramo-nos em uma fase de tentativas e erros ainda que jaacute se comece a definir um nuacutecleo teoacuterico soacutelido que conte com um miacutenimo de generalizaccedilotildees e de hipoacuteteses que podem ser organizadas em um programa teoacuterico comum cujo nuacutecleo consiste em defender a ideia de lsquosistema alimentarrsquo sem desconsiderar contudo a diversidade de definiccedilotildees e atribuiccedilotildees que tal sistema tem recebido (CONTRERAS GRACIA 2011 p 30)
Garciacutea (2009) defende que para a antropologia da alimentaccedilatildeo o
interesse estaacute em encontrar a loacutegica do significado social e cultural da comida
revelando como ela pode classificar accedilotildees pessoas espaccedilos e tempos e
correlacionar essas classificaccedilotildees e seus significados Jaacute na sociologia da
alimentaccedilatildeo o foco estaacute no espaccedilo social da comida as transformaccedilotildees
contemporacircneas e a evoluccedilotildees da comensalidade
Outros autores contemporacircneos utilizados como referecircncia nesta
pesquisa nos campos tanto da antropologia quanto da sociologia da
alimentaccedilatildeo satildeo Jean Pierre Poulain que eacute socioacutelogo e antropoacutelogo francecircs
Esse autor conduz estudos e pesquisas sobre comida cultura e sauacutede nas
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universidades de Toulouse (Franccedila) e Taylor (Malaacutesia) Autor de ldquoSociologias da
Alimentaccedilatildeordquo e ldquoDictionnaire des cultures alimentairesrdquo entre outros Mabel
Gracia Arnaiz eacute antropoacuteloga e pesquisadora da universidade de Rovira e Virgili
na Espanha e membro da Comissatildeo Internacional da Antropologia da
Alimentaccedilatildeo Sua linha de investigaccedilatildeo cientiacutefica envolve estudos socioculturais
da alimentaccedilatildeo sauacutede e gecircnero Autora das obras ldquoAlimentacioacuten salud y cultura
encuentros interdisciplinaresrdquo ldquoParadojas de la alimentacioacuten contemporacircneardquo e
mais recentemente em 2015 publicou ldquoComemos lo que somos Reflexiones
sobre cuerpo geacutenero y saludrdquo Tambeacutem antropoacutelogo e pesquisador na Espanha
Jesuacutes Contreras eacute diretor do ldquoObservatorio de la Alimentacioacuten - ODELA)rdquo autor
de ldquoSubsistencia ritual y poder en los Andesrdquo e ldquoAlimentacioacuten y cultura
necesidades gustos y costumbresrdquo Richard Wranglam eacute um pesquisador inglecircs
que atua na aacuterea de antropologia fiacutesica e primatologia Sua importante
contribuiccedilatildeo para os estudos da alimentaccedilatildeo eacute o livro ldquoPegando Fogordquo em que
aponta a importacircncia do fogo para a transformaccedilatildeo da comida de natureza em
cultura e para a promoccedilatildeo da sociabilidade humana Igor de Garine eacute um
antropoacutelogo francecircs que pesquisa sobre comida e tradiccedilatildeo comida e identidade
comida e industrializaccedilatildeo Autor de ldquoLes Changements des habitudes et des
politiques alimentaires en Afrique Aspects des sciences humaines naturellesrdquo e
Social Aspects of Obesity (Culture and Ecology of Food and Nutrition Por fim
Michael Pollan que eacute americano e apesar de sua importante contribuiccedilatildeo
contemporacircnea sobre comida e cultura o que o tem feito despontar na miacutedia
sobre o assunto sua formaccedilatildeo acadecircmica eacute o jornalismo Autor de ldquoO Dilema do
Oniacutevorordquo e ldquoCozinhar uma histoacuteria natural da transformaccedilatildeordquo e outros
As referecircncias de artigos de publicaccedilatildeo internacional dos referidos
autores e outros que utilizei nesta pesquisa fazem parte do banco de dados do
ldquoObservatoire Cniel des Habitudes Alimentaires15rdquo e do ldquoObservatorio de la
Alimentacioacuten (ODELA)rdquo16
Dentre os brasileiros na aacuterea da alimentaccedilatildeo e cultura abordados nesta
pesquisa aleacutem dos claacutessicos trabalhos de Gilberto Freyre e Cacircmara Cascudo
jaacute citados estatildeo os seguintes autores Renata Menasche cujas pesquisas satildeo
mais centradas na alimentaccedilatildeo e consumo no meio rural e patrimocircnio alimentar
15 Site de acesso httpwwwlemangeur-ochacomconnexion 16 Site de acesso httpwwwodelaorglang=es
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focadas na regiatildeo sul do Brasil Desta autora encontrei avaliando o periacuteodo 2005
a 2015 26 artigos em perioacutedicos envolvendo os temas relacionados acima (como
autora e coautora) 07 deles estatildeo inscritos no portal de perioacutedicos da CAPES
e tambeacutem eacute importante citar dois livros organizados pela autora ldquoA Agricultura
Familiar agrave Mesa saberes e praacuteticas da alimentaccedilatildeordquo publicado em 2007 e
ldquoDimensotildees socioculturais da alimentaccedilatildeordquo publicado em 2012 Maria Eunice
Maciel tambeacutem pesquisa o sul do Brasil em um vieacutes mais geral da comida e
cultura menos voltado ao rural do que a pesquisadora anterior Desta autora
encontrei 08 artigos em perioacutedicos quase todos eles voltados agrave estudos no sul
do Brasil 02 deles inscritos no portal de perioacutedicos da CAPES Ellen Woortmann
pesquisadora de Brasiacutelia cujas pesquisas em alimentaccedilatildeo concentram-se
sobretudo em memoacuteria e patrimocircnio alimentar e aspectos de gecircnero e
alimentaccedilatildeo Seu artigo mais recente na aacuterea de antropologia da comida
publicado em perioacutedico eacute ldquoA comida como linguagemrdquo Carlos Alberto Doacuteria
antropoacutelogo por meio da publicaccedilatildeo de dois recentes livros ldquoFormaccedilatildeo da
Culinaacuteria Brasileirardquo e ldquoe-Boca Livrerdquo Raul Lody tambeacutem antropoacutelogo Sua
publicaccedilatildeo recente mais importante para o campo da alimentaccedilatildeo eacute ldquoBrasil Bom
de Bocardquo Seus estudos tecircm sido mais concentrados na discussatildeo de patrimocircnio
e regionalismo alimentar Jaacute o antropoacutelogo Roberto DaMatta embora natildeo
pesquise especificamente sobre antropologia e comida possui importantes
trabalhos claacutessicos sobre essa temaacutetica e os quais utilizei nesta pesquisa Outras
importantes contribuiccedilotildees brasileiras satildeo as de Mocircnica Abdala Eduardo Frieiro
e Socircnia Maria de Magalhatildees com trabalhos sobre alimentaccedilatildeo com foco em
Minas Gerais de abordagens principalmente histoacutericas No periacuteodo de 2000 a
2015 encontrei 08 artigos de autoria e coautoria de Mocircnica Abdala sobre o tema
da comida e cultura
A leitura de alguns trabalhos dos autores destacados acima foi
fundamental para minha compreensatildeo quanto agrave necessidade de relativizar o
tema da alimentaccedilatildeo conhecer as experiecircncias conduzidas por eles e
correlaciona-las com a discussatildeo pretendida na minha pesquisa As anaacutelises
conduzidas pelos autores convidam agrave reflexatildeo sobre os significados da comida
e do comer na sociedade contemporacircnea Foi possiacutevel perceber que existem
lacunas nas discussotildees sobre a antropologia e sociologia da alimentaccedilatildeo no
Brasil sobretudo no que se refere aos estudos voltados para as populaccedilotildees
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rurais Como o Brasil eacute constituiacutedo culturalmente de vaacuterios rurais variadas
tambeacutem satildeo as relaccedilotildees simboacutelicas com a comida e merecem ampliaccedilatildeo nos
estudos para que seja possiacutevel alcanccedilar toda a sua complexidade
Eacute importante destacar que as pesquisas nas aacutereas da sociologia e da
antropologia da alimentaccedilatildeo no Brasil ainda satildeo muito recentes apesar das
tradicionais obras jaacute citadas de Gilberto Freyre e Cacircmara Cascudo Em
levantamento feito no banco de teses da CAPES e da base do curriacuteculo lattes
dos docentes citados acima foi possiacutevel verificar que a maioria dos trabalhos no
tema da antropologia e sociologia da alimentaccedilatildeo estatildeo vinculados a programas
de poacutes-graduaccedilatildeo na aacuterea de Antropologia Social As teses e dissertaccedilotildees
concluiacutedas pertencentes aos programas nos quais alguns dos pesquisadores
citados acima atuam totalizam 11 dissertaccedilotildees de mestrado e 04 teses de
doutorado iniciadas a partir de 2007 e concluiacutedas ateacute 2013
Em relaccedilatildeo agraves pesquisas mais recentes no Brasil em levantamento feito
no banco de perioacutedicos da Capes ndash ao utilizar termos de busca sobre o tema de
interesse desta pesquisa ndash encontrei as seguintes informaccedilotildees a respeito de
publicaccedilotildees no periacuteodo de 2005 a 2015 Sobre ldquoalimentaccedilatildeo e culturardquo 07
artigos Sobre ldquocomida e culturardquo 02 artigos Sobre ldquoalimentaccedilatildeo e meio ruralrdquo
08 artigos sendo que 06 deles se referem ao ldquoPrograma de Aquisiccedilatildeo de
Alimentos (PAA)rdquo que natildeo eacute objeto de interesse da minha pesquisa Sobre
ldquoalimentaccedilatildeo e consumordquo 12 artigos sendo que a maior parte estaacute relacionada
aos aspectos nutricionais e fisioloacutegicos e natildeo de abordagem antropoloacutegica ou
socioloacutegica
Para as anaacutelises referentes ao campo da alimentaccedilatildeo e mundo rural
brasileiro destacando a cultura modos de vida e a influecircncia dos sistemas
alimentares contemporacircneos no contexto das novas ruralidades os autores que
trazem importantes contribuiccedilotildees a este trabalho satildeo Maria de Nazareth Baudel
Wanderley Joseacute Graziano da Silva Alfio Brandenburg Antocircnio Cacircndido Carlos
Rodrigues Brandatildeo Joseacute de Souza Martins Seacutergio Schneider e Maria Joseacute
Carneiro
Neste capiacutetulo a aacuterea da histoacuteria desempenha papel menos central do
que a antropologia e a sociologia Interessa-nos dessa disciplina sobretudo os
registros que auxiliem a pensar a perspectiva cultural da alimentaccedilatildeo ponto
central deste trabalho
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Dentre os autores em quem buscamos as contribuiccedilotildees nesse sentido
estatildeo Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari Nas uacuteltimas trecircs deacutecadas eles
tecircm trazido importantes contribuiccedilotildees para a compreensatildeo da histoacuteria da
alimentaccedilatildeo sobretudo a histoacuteria da alimentaccedilatildeo na Europa A obra mais
importante que resultou da junccedilatildeo dos dois trata de um volumoso livro de 885
paacuteginas organizado por eles que reuniu vaacuterios pesquisadores da aacuterea com
enfoques diferentes sobre a alimentaccedilatildeo na histoacuteria O livro ldquoA Histoacuteria da
Alimentaccedilatildeordquo que foi publicado em 1996 possui um recorte temporal dividido em
sete partes 1 Preacute-histoacuteria e primeiras civilizaccedilotildees 2 O mundo claacutessico 3 Da
antiguidade tardia agrave alta idade meacutedia 4 Os ocidentais e os outros 5 Plena e
baixa idade meacutedia 6 Da cristandade ocidental agrave Europa dos Estados 7 A eacutepoca
contemporacircnea Para a presente pesquisa interessa sobretudo a seacutetima e
uacuteltima parte que trata da alimentaccedilatildeo contemporacircnea e nela dois capiacutetulos o
que discute ldquoas transformaccedilotildees do consumo alimentarrdquo e ldquoa emergecircncia das
cozinhas regionaisrdquo Nesta obra estatildeo presentes artigos de historiadores mas
tambeacutem de antropoacutelogos e socioacutelogos da alimentaccedilatildeo
Tambeacutem pesquisei e fiz uso de registros importantes da histoacuteria da
alimentaccedilatildeo presentes na coleccedilatildeo organizada por Philippe Ariegraves e Georges
Duby ldquoHistoacuteria da Vida Privadardquo bem como da coleccedilatildeo organizada por Fernando
A Novais Histoacuteria da Vida Privada no Brasil Tais coleccedilotildees foram organizadas
por diversos autores de acordo com os volumes Utilizei trabalhos histoacutericos
dessa coleccedilatildeo nas discussotildees sobre o fogo comensalidade e sociabilidades que
ocorrem no espaccedilo da cozinha
Inclui-se ainda as anaacutelises do espanhol L Jacinto Garciacutea e seu livro
ldquoUna Historia Comestible homiacutenidos cocina cultura y ecologiardquo e ainda Brillat-
Savarin em ldquoA Fisiologia do Gostordquo Recorri com frequecircncia nesta pesquisa a
Luce Giard historiadora francesa Sua importante contribuiccedilatildeo para os estudos
da alimentaccedilatildeo estaacute no v 2 da obra de Michel De Certeau ldquoA Invenccedilatildeo do
Cotidiano II ndash Morar cozinharrdquo
Daniel Roche historiador social e cultural tambeacutem francecircs escreveu
sobre a cultura material francesa do seacuteculo XVIII Sua contribuiccedilatildeo para a histoacuteria
da alimentaccedilatildeo encontra-se no livro ldquoHistoacuteria das Coisas Banaisrdquo publicado
originalmente em 1997 em que trata do nascimento do consumo nos seacuteculos
XVII ao XIX Ao descrever aspectos cotidianos modos de vida comportamentos
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e o funcionamento das sociedades da eacutepoca que passava por transformaccedilotildees
o autor mostra a famiacutelia como a unidade fundamental de produccedilatildeo e consumo
tanto na aacuterea rural quanto na urbana e isso se refletiu nas praacuteticas e haacutebitos
alimentares Um capiacutetulo do livro eacute dedicado agrave alimentaccedilatildeo como cultura e como
necessidade fisioloacutegica em uma eacutepoca em que obter a alimentaccedilatildeo era a
principal preocupaccedilatildeo das famiacutelias
Na histoacuteria da alimentaccedilatildeo brasileira as referecircncias mais importantes
que percorremos se referem aos trabalhos do historiador e tambeacutem folclorista
Luiacutes da Cacircmara Cascudo Suas obras nesta linha satildeo Histoacuteria da Alimentaccedilatildeo
no Brasil e Antologia da Alimentaccedilatildeo no Brasil Recorremos tambeacutem agrave vasta
contribuiccedilatildeo dada por Gilberto Freyre em ldquoCasa Grande e Senzalardquo e ldquoSobrados
e Mucambosrdquo que assim como Cacircmara Cascudo continuam sendo referecircncia
no campo da histoacuteria da alimentaccedilatildeo no Brasil Importante destacar que os dois
autores natildeo eram formados em curso de histoacuteria jaacute que segundo Silva e Ferreira
(2011) os primeiros cursos superiores de Histoacuteria no Brasil datam da deacutecada
de 1930 na USP no qual Gilberto Freyre lecionava a disciplina de antropologia
Assim os trabalhos de ambos mais do que apenas registros histoacutericos
perpassam fortemente pelas anaacutelises de cunho socioantropoloacutegico
No contexto analiacutetico desta pesquisa em que importa compreender as
mudanccedilas e ou permanecircncias nos haacutebitos alimentares das famiacutelias rurais o
uso do termo ldquosistema alimentarrdquo eacute recorrente Assim importa compreender o
seu significado atribuiacutedo por especialistas na aacuterea de alimentaccedilatildeo e cultura
Passaremos a essa discussatildeo no proacuteximo toacutepico deste capiacutetulo
32 Sistema alimentar17
Poulain (2001) define sistema alimentar como sendo
Lrsquoensemble de regravegles qui reacutesulte de lrsquoorganisation sociale des conceptions relatives au plaisir alimentaire et agrave la santeacute Les modegraveles alimentaires varient drsquoun espace culturel agrave lrsquoautre et au sein drsquoune
17 Nas disciplinas voltadas aos estudos de cunho fisioloacutegico e nutricional da alimentaccedilatildeo o termo adotado
eacute ldquopadratildeo alimentarrdquo Na sociologia e na antropologia da alimentaccedilatildeo utiliza-se principalmente a expressatildeo ldquosistema alimentarrdquo sobretudo na Europa como eacute o caso de Poulain (2001 2003 2013) Contreras e Gracia (2011) Montanari (2008) e Mennell (1996) Jaacute Fischler (1995) que tambeacutem eacute europeu utiliza a expressatildeo ldquosistema culinaacuteriordquo e mais raramente ldquocozinhardquo (cozinha moderna cozinha tradicional cozinha contemporacircnea) poreacutem com o mesmo sentido que o usado pelos outros autores Sistema alimentar eacute tambeacutem utilizado pelos americanos como Harris (2011) Sahlins (2003) Mintz e Dubois (2002)
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mecircme socieacuteteacute eacutevoluent avec le temps Cette variabiliteacute est rendue possible par le fait que les contraintes biologiques de la meacutecanique physiologique et de lrsquoexploitation des ressources de la nature pegravesent sur les mangeurs18 humains de faccedilon relativement lacircche (POULAIN 2001 p 24)
Para este autor os sistemas alimentares satildeo formados por um conjunto
de conhecimentos tecnoloacutegicos herdados e repassados de geraccedilatildeo em geraccedilatildeo
que incluem o saber-fazer o gosto as regras e as etiquetas etc Esses
conhecimentos facilitam no processo de escolha dos recursos presentes num
espaccedilo natural e sua transformaccedilatildeo em alimentos para consumo na forma de
pratos atrativos a uma determinada cultura Poulain afirma que esses
conhecimentos se definem concomitantemente como sistemas de coacutedigos
simboacutelicos que retratam os valores de um grupo humano participando da
construccedilatildeo de identidades culturais Na concepccedilatildeo de Poulain (2013) nesse
sistema o alimento estaacute em movimento desde o seu universo de produccedilatildeo
agriacutecola ateacute a chegada ao consumidor sofrendo algumas transformaccedilotildees ao
longo do percurso O sistema alimentar envolve fatores que vatildeo desde os
econocircmicos ateacute os do ambiente domeacutestico quando se adquire alimentos pela
compra ou ainda por meio de cultivo proacuteprio ou criaccedilatildeo de animais ou da pesca
Em um sentido semelhante ao atribuiacutedo por Poulain (2013 e 2014)
Fischler (1979 e 1995) define como sistema culinaacuterio um conjunto de
ingredientes e teacutecnicas que satildeo empregadas na elaboraccedilatildeo de uma refeiccedilatildeo as
combinaccedilotildees e correlaccedilotildees entre os alimentos utilizados e ainda as regras que
envolvem sua escolha preparaccedilatildeo e consumo Atrelados agraves teacutecnicas e aos
ingredientes e consequentemente agraves normas que regem o processo da escolha
ao consumo dos alimentos estatildeo crenccedilas valores siacutembolos representaccedilotildees e
os haacutebitos que satildeo indicadores de cultura de uma sociedade Ou seja normas
essas que estatildeo atreladas ao valor simboacutelico envolvidos no sistema alimentar e
natildeo somente o valor de uso no sentido utilitarista que neste caso seria
secundaacuterio conforme discutido por Sahlins (2003) Afinal como afirma o proacuteprio
Sahlins haacute uma ldquorazatildeo cultural em nossos haacutebitos alimentaresrdquo
Pelas definiccedilotildees dos autores acima percebe-se que as questotildees que
envolvem a alimentaccedilatildeo ou culinaacuteria satildeo estabelecidas pelas caracteriacutesticas e
regras mais ou menos comuns adotadas por grupos de pessoas e pela
18 Termo jaacute explicado na introduccedilatildeo
48
sociedade a qual pertencem Conforme Bourdieu (2007) o gosto que iraacute formar
o haacutebito eacute construiacutedo no convivio familiar e escolar Natildeo por acaso em relaccedilatildeo
agrave comida quase sempre as preferecircncias entre os membros de uma mesma
familia satildeo semelhantes Eacute o gosto tambeacutem que classifica e distingue uma
pessoa de outra um grupo de outro Na formaccedilatildeo do gosto alimentar estatildeo
presentes diferentes aspectos socioculturais que iratildeo inteferir nas escolhas
Embora possa ocorrer o sistema alimentar de um grupo natildeo
necessariamente seraacute adotado por um outro pois ele estaacute ligado agraves questotildees
culturais que em funccedilatildeo de diversos fatores pode gerar uma rejeiccedilatildeo a
determinadas praacuteticas alimentares Um exemplo disso eacute a atribuiccedilatildeo dada a um
determinado alimento ou prato como sendo ldquoexoacuteticordquo poreacutem exoacutetico aos olhos
de quem natildeo estaacute habituado a consumi-lo
Para Helman (1994) eacute a cultura local que assume maior peso no
processo de decisotildees alimentares Eacute ela que primeiramente define as regras
alimentares cabendo-lhe assim determinar
Quem prepara e quem serve o alimento para quem quais indiviacuteduos ou grupos comem reunidos onde e em que ocasiotildees a ingestatildeo do alimento acontece a ordem em que os pratos satildeo servidos dentro de uma refeiccedilatildeo e a maneira como os indiviacuteduos comem Todos esses estaacutegios de ingestatildeo dos alimentos satildeo padronizados rigorosamente pela cultura e constituem uma parte do modo de viver consagrado por aquela comunidade (HELMAN 1994 p 48-49)
Harris (2011) ao tratar da questatildeo lembra que por ser oniacutevora a
espeacutecie humana possui capacidade de ingerir alimentos tanto de origem animal
quanto vegetal Poreacutem por razotildees de adaptabilidade fisioloacutegica alguns
alimentos satildeo descartados do cardaacutepio Jaacute outros mesmo sendo biologicamente
possiacuteveis de ingestatildeo podem ser desprezados por algumas sociedades e
apreciados por outras O autor afirma que as razotildees de apreciaccedilatildeo e rejeiccedilatildeo de
um alimento vatildeo aleacutem da razatildeo fisioloacutegica da digestatildeo Tanto Harris (2011)
quanto Leacutevi-Strauss (1983) apontam que os alimentos rejeitados por razotildees
culturais ou sociais se tornam aceitos para consumo em caso de natildeo haver mais
nada a comer ou seja em caso de fome extrema
Em sentido semelhante Garciacutea (2013) esclarece que homens e animais
tendem a ser conservadores em mateacuteria de gosto embora isso natildeo represente
uma resistecircncia absoluta a experimentaccedilotildees Para o autor a razatildeo dos animais
se daacute por instinto bioloacutegico e a do homem por questotildees culturais Como a
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formaccedilatildeo do gosto eacute de ordem cultural tambeacutem segundo Bourdieu (2007) isso
faz sentido uma vez que o gosto alimentar apreendido no nuacutecleo familiar
estabelece tambeacutem o haacutebito de cada indiviacuteduo Um haacutebito por ser condicionado
pela cultura eacute mais difiacutecil de ser mudado mas natildeo impossiacutevel pois haacute situaccedilotildees
em que o gosto e consequentemente o haacutebito alimentar podem sofrer
mudanccedilas Essa questatildeo seraacute relativizada mais agrave frente neste trabalho
Neste sentido Garcia (2013) a esclarece que os comportamentos
culturais se formam atraveacutes dos costumes e aprendizados Em geral os seres
humanos preferem o conhecido ao novo ou exoacutetico sobretudo em se tratando
de comida Isso pode estar tanto relacionado ao tipo de alimento como agrave forma
de seu cultivo colheita preparo e armazenamento Um mesmo alimento pode
assumir diferentes sabores e aspectos dependendo da forma como eacute preparado
O peixe tanto pode ser cru na preferecircncia de algumas culturas como pode ser
frito assado ou ensopado e com adiccedilatildeo de temperos e condimentos na
preferecircncia de outras
321 Alimentos aceitos e rejeitados
Esses aspectos dos padrotildees culturais alimentares satildeo tambeacutem tratados
por Sahlins (2003) ao chamar a atenccedilatildeo para o fato de que mesmo o
determinismo cultural de uma sociedade natildeo pode deixar de considerar a
sobrevivecircncia e portanto a continuaccedilatildeo da espeacutecie como por exemplo fazer a
distinccedilatildeo entre alimentos comestiacuteveis e natildeo comestiacuteveis Mas o autor destaca
que haacute uma junccedilatildeo e por isso tambeacutem um conflito entre o aspecto utilitarista
(objetivo) e simboacutelico (subjetivo) na produccedilatildeo e no consumo de produtos Em um
dos capiacutetulos o autor trata do sistema alimentar dos americanos do Norte de
suas preferecircncias alimentares e dos tabus em relaccedilatildeo ao consumo de animais
domeacutesticos Destaca que o aspecto simboacutelico predomina sobre o de ordem
praacutetica Segundo o autor a relaccedilatildeo produtiva estabelecida pela sociedade
americana estaacute pautada no aspecto do que eacute considerado por eles como
comestiacutevel e natildeo comestiacutevel que envolve tanto a exploraccedilatildeo do meio ambiente
quanto as formas de lidar com a terra Neste caso baseado numa relaccedilatildeo em
que ldquoa carne eacute elemento central e os carboidratos e legumes satildeo apoios
perifeacutericos na dietardquo (p 171)
50
A carne como siacutembolo de ldquoforccedilardquo evoca o polo masculino de um coacutedigo social da comida o qual deve originar-se na identificaccedilatildeo indo-europeia do boi ou da riqueza crescente com a virilidade A indispensabilidade da carne como ldquoforccedilardquo e do fileacute como a siacutenteses das carnes viris permanece condiccedilatildeo baacutesica da dieta americana (SAHLINS 2003 p 171)
Segundo o autor o que determina para os americanos qual carne eacute ou
natildeo comestiacutevel eacute a relaccedilatildeo das espeacutecies com a sociedade humana Animais de
estimaccedilatildeo recebem afagos e carinho tem nome proacuteprio diferente da situaccedilatildeo
dos animais para abate Mas essa natildeo eacute uma particularidade dos americanos do
Norte Tambeacutem eacute condiccedilatildeo para outras culturas ainda que os motivos sejam
religiosos como por exemplo na Iacutendia onde o consumo da carne de bovinos eacute
evitado por razotildees religiosas do hinduiacutesmo Os judeus e muccedilulmanos tambeacutem
por motivos religiosos rejeitam a carne de porco que eacute amplamente consumida
na maior parte do ocidente Por outro lado no ocidente eacute praticamente
impensaacutevel a possibilidade de se tomar uma sopa a base de carne de cachorro
alimento relativamente comum ao paladar dos chineses e dos vietnamitas por
exemplo Isso ocorre no ocidente porque catildees satildeo animais de estimaccedilatildeo e
estabelecem relaccedilotildees muito afetivas com os seres humanos vistos como um
membro da famiacutelia conforme aponta Sahlins (2003)
Da mesma forma a carne de cavalo agrada a alguns grupos de regiotildees
francesas belgas e italianas O Brasil natildeo tem por haacutebito consumir a carne de
cavalo apesar de ser um dos maiores exportadores Em meacutedia 15 mil toneladas
por ano19 Segundo Sahlins (2003) durante a crise inflacionaacuteria meteoacuterica nos
Estados Unidos no ano de 1973 foi sugerido pelos governantes que a populaccedilatildeo
adotasse o haacutebito de consumir alimentos mais baratos poreacutem tatildeo nutritivos
quanto a carne de boi (viacutesceras rins coraccedilatildeo) Isso soou como uma afronta para
a populaccedilatildeo A rejeiccedilatildeo pelas viacutesceras se deu por razatildeo socioeconocircmica Para
boa parte da populaccedilatildeo americana comer partes menos nobres do boi seria se
aproximar socialmente de classes mais pobres ldquoA razatildeo para essa repulsa
parece pertencer agrave loacutegica semelhante que recebeu com desagrado algumas
tentativas de substituir a carne bovina por carne de cavalo durante o mesmo
periacuteodordquo (p 172) Em funccedilatildeo disso foi realizado um ato como protesto dos
ldquoapreciadores dos cavalos como animais de estimaccedilatildeordquo
19 httpgrandschefsblogspotcombr201007carne-de-cavalo-o-brasil-e-um-doshtml
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Tambeacutem eacute exoacutetico para o ocidente o haacutebito da populaccedilatildeo chinesa em
consumir escorpiotildees ratos e uma variedade de insetos Esses alimentos foram
inseridos no cardaacutepio chinecircs em periacuteodo de crise alimentar com o objetivo de
abastecer um paiacutes extremamente populoso Atualmente continuam sendo
consumidos no entanto muito mais como atrativo agrave curiosidade de turistas do
que por necessidade de consumo
Os indiacutegenas da Ameacuterica do Sul possuem o haacutebito de comer alguns
alimentos que os natildeo iacutendios consideram exoacuteticos como por exemplo formigas
larvas de abelhas cupins lagartas besouros etc Em algumas cidades do norte
do Brasil eacute possiacutevel encontrar nas feiras misturas como farofas agrave base de formiga
sauacuteva Eacute interessante ressaltar que um alimento exoacutetico perde essa classificaccedilatildeo
a partir do momento em que passa a agradar ao paladar e a ser consumido sem
aversatildeo a ele Deixando assim de ser exoacutetico para se transformar em familiar
parafraseando DaMatta (1978) Assim o conceito de exoacutetico varia de uma
cultura a outra mas tambeacutem de uma pessoa a outra em uma mesma sociedade
Houve um tempo no Brasil em que comer formiga sauacuteva frita ou tostada
natildeo fazia parte apenas da dieta indiacutegena Relatos de viagem apontam serem
elas importante complemento num periacuteodo de escassez alimentar nas viagens
dos bandeirantes desbravando as Minas Gerais Frieiro (1982) cita documento
da viagem do Conde de Assumar Dom Pedro a Vila Rica em 1717 passando
por Satildeo Paulo quando lhe foi oferecido a ele e agrave sua comitiva formigas sauacutevas
(icaacute) torradas20
Dependendo do contexto o exoacutetico pode ser um emblema de classe e
aqui novamente se insere a argumentaccedilatildeo do gosto como diferenciaccedilatildeo ou
distinccedilatildeo de classes como discutido por Bourdieu (2007) Por exemplo o exoacutetico
considerado ldquochiquerdquo ou ldquogourmetrdquo quando se trata de atribuir status de
consumo e portanto desejado como por exemplo o caviar ou o foie gras Ao
serem aceitos por um perfil de consumidores que aceitam pagar o elevado preccedilo
desses dois produtos eles perderam o status de exoacutetico rejeitaacutevel e passou a
20 Dom Pedro e sua comitiva mais duma vez nos ermos em que pousavam quase passaram fome em
razatildeo do pouco ou quase nada que lhes ofereciam para comer Em Santos e Satildeo Paulo pequenas vilas de algumas centenas de casas o passadio natildeo foi de todo mau Comia-se comumente o que as roccedilas produziam isto eacute milho mandioca feijatildeo e algumas frutas da terra que era o habitual sustento dos paulistas natildeo se comendo carne senatildeo em alguns dias do ano Penetrando no interior com alguns dias de jornada soacute encontraram para cear no rancho dum paulista meio macaco e umas poucas formigas O Conde agradeceu a oferta e comeu (FRIEIRO 1982 p 62)
52
ser visto como um exoacutetico aceitaacutevel assim como jaacute ocorre em boa parte do paiacutes
em relaccedilatildeo agraves comidas japonesas italianas indianas etc que se popularizaram
e jaacute natildeo satildeo mais estranhas ao paladar de boa parte da populaccedilatildeo das aacutereas
urbanas No entanto o exoacutetico popular raramente eacute desejado como a carne de
rato por exemplo consumida pelos chineses mas que no Brasil permanece
sendo rejeitada
Nessa discussatildeo estaacute presente a necessidade de relativizaccedilatildeo da
questatildeo do gosto e do haacutebito alimentar jaacute que apesar de tenderem a ser
tradicionais eacute possiacutevel muda-los ou incorporar novas percepccedilotildees por meio de
significados simboacutelicos (status curiosidade pelo novo para se inserir num
determinado grupo de interesse)
Garciacutea (2009) assim como Harris (2011) estabelece que a correlaccedilatildeo
entre alimentaccedilatildeo e cultura ocorre devido ao fator fisioloacutegico da atividade de
comer estar condicionado culturalmente e isso envolve desde as maneiras de
obtenccedilatildeo dos alimentos ateacute os modos de consumi-los Assim para Garcia
(2009) a escolha dos alimentos se daacute por fatores primeiramente de ordem
cultural e social e em segundo lugar pelas suas qualidades nutricionais e pelo
aspecto econocircmico Nesse sentido o alimento escolhido precisa ser ldquobom para
comerrdquo fazendo uso da expressatildeo utilizada por Harris (2011) ldquoLos alimentos
preferidos (buenos para comer) son aquellos que presentan uma relacioacuten de
costes y benefiacutecios praacutecticos maacutes favorables que los alimentos que se evitan
(malos para comer)rdquo (HARRIS 2011 p 17)
3211 Haacutebitos alimentares orientados por costumes e tradiccedilotildees
Retomando a discussatildeo de Harris (2011) o autor explica que os
costumes culturais e as tradiccedilotildees alimentares de cada sociedade eacute que orientam
os haacutebitos alimentares e essa diversidade deve ser respeitada e valorizada por
aqueles que estudam o tema da alimentaccedilatildeo ldquoComo antropoacutelogo tambieacuten
suscribo el relativismo cultural em mateacuteria de gustos culinarios no se debe
ridiculizar ni condenar los haacutebitos alimentarios por el mero hecho de ser
diferentesrdquo (HARRIS 2011 p 15)
Essa defesa tambeacutem foi feita por Mary Douglas e Ravindra Khare em
1979 quando escreveram uma apresentaccedilatildeo sobre a antropologia da
53
alimentaccedilatildeo no importante perioacutedico ldquoSocial Science Informationrdquo Nesse artigo
as autoras informaram sobre a criaccedilatildeo da ldquocomisioacuten internacional sobre la
antropologia de la alimentacioacutenrdquo A criaccedilatildeo da comissatildeo ocorreu em funccedilatildeo da
necessidade de se discutir as poliacuteticas e estrateacutegias que estavam sendo
desenvolvidas e implementadas nas situaccedilotildees de fome aguda eou crocircnica em
algumas naccedilotildees naquela eacutepoca Pontuaram neste artigo aspectos importantes
que devem ser observados na implantaccedilatildeo de poliacuteticas alimentares para
solucionar a fome Estes aspectos dizem respeito agrave necessidade de se planejar
a soluccedilatildeo de problemas que acometem paiacuteses em situaccedilatildeo de fome que satildeo as
questotildees que envolvem poliacutetica sanitaacuteria e higiene conhecimento de teacutecnicas de
armazenamento e distribuiccedilatildeo mas chamaram a atenccedilatildeo de forma enfaacutetica para
o respeito aos aspectos culturais ldquoHa de basarse em el anaacutelisis de la sociedade
La conviccioacuten de fondo es que los patrones locales de seleccioacuten de alimentos no
pueden ser impuestos sino que dependen de la vida domeacutestica de las ideias
locales sobre processos fisioloacutegicos de divisioacuten de trabajo de horaacuteriordquo
(DOUGLAS KHARE 1979 apud GARCIacuteA 2009 p 30)
Essa argumentaccedilatildeo deixa claro o entendimento diferenciado das autoras
sobre a necessidade da interaccedilatildeo dos antropoacutelogos da alimentaccedilatildeo com
profissionais de outras aacutereas nutricionistas ecologistas economistas
agrocircnomos poliacuteticos e outros atuantes em poliacuteticas sobre o combate agrave fome
para que a cultura alimentar seja respeitada nas intervenccedilotildees sociais Questatildeo
tambeacutem defendida por Valente (2003) ao criticar a limitaccedilatildeo que existe nos
trabalhos isolados em cada especialidade e ao defender a interdisciplinaridade
na elaboraccedilatildeo de projetos porque feitos de forma isolada cada profissional
tende a ver o problema da fome com suas proacuteprias lentes desprezando outras
possibilidades
O profissional da sauacutede ldquoenxergardquo desnutriccedilatildeo e doenccedila e propotildee vacinaccedilatildeo saneamento aleitamento materno etc O agrocircnomo ldquodiagnosticardquo falta de alimentos e propotildee maior produccedilatildeo de alimentos ajuda alimentar etc O educador vecirc ldquoignoracircncia e haacutebitos alimentares inadequadosrdquo e propotildee educaccedilatildeo alimentar Os economistas claacutessicos ldquoidentificamrdquo maacute distribuiccedilatildeo de alimentos e propotildeem uma melhor poliacutetica fiscal geraccedilatildeo de emprego e renda etc Os planejadores diagnosticam ldquofalta de coordenaccedilatildeordquo e propotildeem a criaccedilatildeo de conselhos de alimentaccedilatildeo e nutriccedilatildeo e capacitaccedilatildeo (VALENTE 2003 p 52)
Recentemente a FAOONU (2013) apresentou um projeto em que
propotildee a introduccedilatildeo de insetos como alimentos no combate agrave fome Como
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justificativa informou que aproximadamente dois bilhotildees de pessoas no mundo
jaacute se alimentam de insetos como besouros lagartas abelhas vespas formigas
gafanhotos grilos cupins libeacutelulas e moscas Agrave praacutetica de se comer insetos da-
se o nome de entomofagia segundo a FAOONU (2013) As justificativas da FAO
estatildeo relacionadas a aspectos de sauacutede pois satildeo altamente nutritivos e ricos em
proteina podendo substituir facilmente em termos nutricionais as carnes de
porco de boi de frango e tambeacutem de peixe aspectos ambientais pois sua
produccedilatildeo gera baixo impacto ao meio ambiente e aspectos relacionados a
fatores econocircmicos e sociais Segundo este oacutergatildeo a criaccedilatildeo de insetos pode vir
a se tornar uma opccedilatildeo de investimento com pouco capital e pode ser importante
fonte de renda e de consumo para camadas mais pobres e populaccedilatildeo sem
acesso agrave propriedade da terra aleacutem de ser uma atividade que natildeo necessita de
tecnologia sofisticada
Sobre isso eacute importante de tecer algumas observaccedilotildees criacuteticas ao
considerar que tal projeto representa um desafio ao propor a inserccedilatildeo de insetos
na dieta em nivel global o que significa tornaacute-la atrativa tambeacutem naquelas
culturas onde satildeo atualmente rejeitadas Todos esses aspectos conduzem a
uma reflexatildeo sobre outro tipo de escolha alimentar que estaacute relacionada agrave
questatildeo de ordem social e econocircmica Ou seja estaacute em pauta se as pessoas
que sofrem de fome aguda ou crocircnica satildeo obrigadas a se adaptar ao exoacutetico se
assim lhes for oferecido em funccedilatildeo de uma poliacutetica puacuteblica ou se isso lhes seria
oferecido como escolha passiacutevel de adoccedilatildeo ou de rejeiccedilatildeo
Tal reflexatildeo remete agraves observaccedilotildees sobre direito agrave liberdade na forma
como eacute tratada por Sen (2000 p 23) ldquoa privaccedilatildeo de liberdade econocircmica pode
gerar a privaccedilatildeo de liberdade social assim como a privaccedilatildeo de liberdade social
da mesma forma pode gerar a liberdade econocircmicardquo O que implica em perda
de acesso e do direito de escolhas inclusive alimentares Portanto acredita-se
que caso esse tipo de alimentaccedilatildeo seja imposta o projeto vai no sentido
contraacuterio ao proposto pela comissatildeo de antropologia da alimentaccedilatildeo citado
acima por Douglas e Khare (1979 apud GARCIacuteA 2009) A imposiccedilatildeo de um
determinado alimento ou o convencimento em adota-lo pode tambeacutem ocorrer
de forma velada utilizando-se campanhas com os grupos locais e ou atraveacutes
da miacutedia como ocorre em relaccedilatildeo a vaacuterios alimentos que passam a ser
55
consumidos sobretudo pelas crianccedilas agrave partir de campanhas publictaacuterias
muitas vezes utilizando-se argumentos apelativos
Certamente essa proposta recente poderaacute ter o debate ampliado nos
proacuteximos anos O que nos interessa aqui eacute sobretudo chamar a atenccedilatildeo para a
inserccedilatildeo de novas praacuteticas alimentares na contemporaneidade Praacuteticas essas
que se mesclam num processo de ampliaccedilatildeo do multiculturalismo alimentar
O proacuteximo item trata da discussatildeo sobre a percepccedilatildeo do alimento como
caracteriacutestica cultural e ainda sobre os reflexos do sistema alimentar
contemporacircneo na vida dos comedores
33 Alimento comida e cultura
Aleacutem de ser uma atitude bioloacutegica a alimentaccedilatildeo assume tambeacutem um
comportamento cultural Discussatildeo jaacute iniciada nos itens anteriores
Bioloacutegica por uma questatildeo de sobrevivecircncia sendo um fator
insubstituiacutevel para a manutenccedilatildeo da vida e condiccedilatildeo sine qua non para todos os
seres humanos Relaciona-se diretamente agrave vitalidade do indiviacuteduo agrave
necessidade fisioloacutegica de ingerir nutrientes capazes de manter o corpo em
funcionamento sendo sob esse aspecto um comportamento relativo agrave natureza
humana O que ingerir e as quantidades a serem ingeridas para suprir as
necessidades variam de uma pessoa para outra de acordo com fatores como
idade altura peso tipo de atividade quadro cliacutenico entre outros
Corresponder a uma atitude natural e de caraacuteter instintivo natildeo torna
necessariamente o ato de alimentar-se como algo consciente sob o aspecto
nutricional porque nem todos os indiviacuteduos conhecem a composiccedilatildeo dos
alimentos e aqueles que conhecem nem sempre pensam a respeito disso ao
realizar as refeiccedilotildees cotidianas aspecto que foi tratado por Harris (2011) e
Garciacutea (2009)
O termo ldquoalimentordquo surgiu segundo Poulain (2013) por volta do ano
1120 mas o seu significado atual somente foi utilizado a partir do seacuteculo XVI
quando passou a substituir a expressatildeo ldquocarnerdquo e esta uacuteltima passou a se referir
apenas agrave carne tal qual a conhecemos ou seja a dos animais comestiacuteveis O
autor explica que anteriormente a expressatildeo ldquocarnerdquo era utilizada para se referir
a tudo o que era bom para manter a vida fossem alimentos caacuterneos ou natildeo
56
Para este autor um alimento deve possuir essas quatro qualidades nutricionais
organoleacutepticas higiecircnicas e simboacutelicas Sobre as simboacutelicas o autor destaca
Para ser um alimento aleacutem das trecircs primeiras caracteriacutesticas de qualidade um produto natural deve poder ser o objeto de projeccedilotildees de significados por parte do comedor Ele deve poder tornar-se significativo inscrever-se numa rede de comunicaccedilotildees numa constelaccedilatildeo imaginaacuteria numa visatildeo de mundo (POULAIN 2013 p 240)
De Garine (1987 p 4) ao resgatar o pensamento de Margaret Mead
destaca que as escolhas alimentares dos seres humanos estatildeo relacionadas agraves
possibilidades de alimentos disponibilizados pelo meio e ao potencial teacutecnico que
possuem
La supervivencia de un grupo humano exige por supuesto que su reacutegimen alimenticio satisfaga las necessidades nutritivas No obstante el nivel de satisfaccioacuten de estas necessidades cuya definicioacuten sigue siendo controvertida variacutea cualitativa y cuantitativamente de una sociedad a otra Tambieacuten cambia en el interior de cada una seguacuten la categoriacutea de edad el sexo el niacutevel econoacutemico y otros criterios (DE GARINE 1987 p 4)
De acordo com Contreras e Gracia (2011) e Woortmann (2007) as
escolhas alimentares que satildeo as formadoras dos haacutebitos se constituem em uma
parte da totalidade cultural Para Contreras e Gracia (2011) pode-se afirmar que
ldquosomos o que comemosrdquo21 tanto no aspecto fisioloacutegico como tambeacutem no
espiritual ao ldquoincorporarrdquo psicossocialmente os elementos culturais daquilo que
ingerimos que pode ser desde elementos ligados agrave espiritualidade como
tambeacutem agrave memoacuteria afetiva Pela mesma razatildeo defendem que ldquocomemos o que
somosrdquo
Comemos aquilo que nos faz bem ingerimos alimentos que satildeo atrativos para os nossos sentidos e nos proporcionam prazer enchemos a cesta de compras de produtos que estatildeo no mercado e na feira e nos satildeo permitidos por nosso orccedilamento servimos ou nos satildeo servidas refeiccedilotildees de acordo com nossas caracteriacutesticas se somos homens ou mulheres crianccedilas ou adultos pobres ou ricos E escolhemos ou recusamos alimentos com base em nossas experiecircncias diaacuterias e em nossas ideias dieteacuteticas religiosas ou filosoacuteficas (CONTRERAS GRACIA 2011 p 16)
21 Conhecido aforismo proferido pelo filoacutesofo alematildeo Ludwig Feuerbach na obra ldquoO misteacuterio do sacrifiacutecio
ou o homem eacute o que ele comerdquo (1862) Tambeacutem Brillat-Savarin escreveu em seu tratado sobre lsquoA Fisiologia do Gostorsquo ldquoDize-me o que comes e te direi quem eacutesrdquo (SAVARIN-BRILLAT 1995 p 15) Os dois aforismos satildeo muito utilizados por aqueles que escrevem sobre alimentaccedilatildeo
57
Em uma percepccedilatildeo semelhante Woortmann (2007) em estudos sobre
dimensotildees sociais da comida entre os camponeses defende a lsquocomidarsquo para
este grupo como sendo uma ldquocategoria cultural nucleante que se articula a
lsquotrabalhorsquo e a lsquoterrarsquo e que as escolhas alimentares que incluem alimentos
proibidos permitidos e os preferidos estatildeo ligadas agraves dimensotildees de gecircnero de
memoacuteria de famiacutelia de identidade de religiatildeo etc
DaMatta (2001 p 56) defende que ldquoo jeito de comer define natildeo soacute aquilo
que eacute ingerido como tambeacutem aquele que ingererdquo Pode-se afirmar portanto que
comer eacute mais do que apenas um ato de sobrevivecircncia eacute tambeacutem um
comportamento simboacutelico e cultural
A diferenccedila entre o alimento como fator bioloacutegico e o alimento como
cultura eacute discutida principalmente por Montanari (2008) Delormier et al (2009)
DaMatta (2001 e 1987) Maciel (2001) Ishige (1987) Silva Mello (1956) Crotty
(1993) De Garine (1987) Cacircmara Cascudo (2004) e Woortmann (1985)
Crotty (1993 apud DELORMIER et al 2009) defende que a praacutetica
alimentar abrange duas acepccedilotildees Aquela posterior agrave ingestatildeo do alimento e que
estaacute relacionada ao universo da biologia (fisiologia e bioquiacutemica) e aquela
anterior agrave ingestatildeo Este uacuteltimo estaacute relacionado agraves questotildees culturais e sociais
ou seja agrave natureza social do comer Segundo a autora no campo da disciplina
da nutriccedilatildeo da-se pouco valor a este uacuteltimo aspecto ateacute mesmo devido aos seus
objetivos teacutecnico-cientiacuteficos Concordando com a percepccedilatildeo de Crotty (1993)
Delormier et al (2009) defendem que natildeo considerar os aspectos sociais e
culturais no campo de interesse representa de certa forma uma limitaccedilatildeo a
qualquer disciplina Estes autores tambeacutem analisam que o processo de escolha
alimentar na maior parte das vezes natildeo se daacute primeiramente pela opccedilatildeo
nutricional mas sim pelas influecircncias do conviacutevio social cotidiano que podem
estar presentes nas relaccedilotildees familiares mas tambeacutem no local de trabalho na
escola e em outros locais de convivecircncia que permitem trocas e ajudam a moldar
as escolhas alimentares dos indiviacuteduos
A atribuiccedilatildeo de status simboacutelico dado ao alimento e ao ato de comer eacute
definida segundo alguns autores pela diferenccedila semacircntica entre ldquocomidardquo e
ldquoalimentordquo DaMatta (1987) ao estudar a comida brasileira defende que toda
substacircncia nutritiva eacute um alimento mas nem todo alimento eacute comida Alimento
aponta o autor eacute universal e geral eacute o que o indiviacuteduo ingere para se manter
58
vivo jaacute a comida ajuda a situar uma identidade e definir um grupo uma classe
uma pessoa ldquoTemos o alimento e temos a comida Comida natildeo eacute apenas uma
substacircncia alimentar mas eacute tambeacutem um modo um estilo e um jeito de alimentar-
serdquo (DAMATTA 2001 p 56) Em uma aproximaccedilatildeo a DaMatta (1987)
Woortmann (1985) aponta ldquocomidardquo como sendo o oposto de mantimento
embora derive dele Pois comida eacute a transformaccedilatildeo do mantimento atraveacutes da
culinaacuteria
Neste sentido comer proporciona uma relaccedilatildeo de intimidade com o ser
humano pois haacute ainda o investimento psicossocial no processo de escolha dos
alimentos O proacuteprio processo de ingerir demonstra a intimidade existente entre
a comida e o corpo considerando que trata daquilo que segundo Mintz (2001
p 31) ldquoeacute colocado para dentro do corpordquo O autor defende que ldquonenhum outro
comportamento natildeo automaacutetico se liga de modo tatildeo iacutentimo agrave nossa
sobrevivecircnciardquo Corroborando esse pensamento Cacircmara Cascudo (2004 p
348) defende que eacute ldquoinuacutetil pensar que o alimento contenha apenas es elementos
indispensaacuteveis agrave nutriccedilatildeo Conteacutem substacircncias imponderaacuteveis e decisivas para
o espiacuterito alegria disposiccedilatildeo criadora bom humorrdquo
Maciel (2001) tambeacutem compartilha da ideia de diferenciaccedilatildeo entre
ldquocomidardquo e ldquoalimentordquo ao reconhecer a junccedilatildeo entre natureza e cultura quando
se trata de alimentaccedilatildeo humana pois poucas horas apoacutes o nascimento
instintivamente a crianccedila chora em busca pelo leite materno Poreacutem a
amamentaccedilatildeo em humanos eacute um ato tambeacutem cultural considerando que o
receacutem-nascido ao ser amamentado experimenta a sensaccedilatildeo de aconchego
favorecendo o viacutenculo entre matildee e filho e ainda o prazer de comer A crianccedila
gosta do sabor do leite e natildeo o rejeita O leite eacute assim alimento e comida ndash
natureza e cultura22
Comida eacute assim o alimento transformado pelas representaccedilotildees sociais
e culturais Eacute o que sugere tambeacutem Montanari (2008) Para este autor
diferentemente das outras espeacutecies animais o homem aproveita os alimentos
que encontra na natureza mas isso natildeo o impede de querer tambeacutem criar a
proacutepria comida usando esses alimentos baacutesicos encontrados mas
transformando-os pelo uso do fogo e uso das praacuteticas tecnoloacutegicas que se
22 Silva Mello (1956) Sandre-Pereira (2012) Mead (1969) e Bosi Machado (2005) satildeo outros autores que
discutem mais profundamente a questatildeo sobre amamentaccedilatildeo e cultura
59
desenvolvem nas cozinhas ldquoOs valores de base do sistema alimentar se definem
como resultado e representaccedilatildeo de processos culturais que preveem a
domesticaccedilatildeo a transformaccedilatildeo e a reinterpretaccedilatildeo da naturezardquo (p 15) O
consumo dos alimentos tambeacutem eacute tratado como cultura pelo autor uma vez que
o homem escolhe o que comer baseado em criteacuterios de ordem econocircmica
nutricional preferecircncias mas tambeacutem em simbologias atribuiacutedas ao alimento
portanto comida Por essas razotildees ldquoa comida se apresenta como elemento
decisivo da identidade humana e um dos mais eficazes instrumentos para
comunica-lardquo (p 16) A natureza produz os alimentos mas a cultura faz surgir
coacutedigos importantes como por exemplo as diferentes opccedilotildees de cardaacutepios as
receitas os haacutebitos que por sua vez se relacionam ao paladar ao prazer
relacionado agraves propriedades organoleacutepticas dos alimentos e sobretudo ao
prazer da degustaccedilatildeo
331 A importacircncia social e cultural do uso do fogo e sua relaccedilatildeo com a comensalidade
O valor cultural do alimento se fortalece a partir da descoberta do fogo e
do iniacutecio do processo de cozimento dos alimentos Os pesquisadores das
Ciecircncias Sociais que primeiramente deram ecircnfase ao papel fundamental do fogo
na transformaccedilatildeo do alimento atribuindo-lhe assim uma funccedilatildeo cultural para
aleacutem da bioloacutegica foram Claude Leacutevi-Strauss Jean Anthelme Brillat-Savarin
Richard Wrangham e Massimo Montanari
Segundo Montanari (2008) para os seres humanos a comida eacute cultura
e natildeo apenas pura natureza devido agrave adoccedilatildeo ndash como parte essencial de suas
teacutecnicas ndash dos modos de produccedilatildeo de preparaccedilatildeo e de consumo de alimentos
bem como o conhecimento sobre plantas proacuteprias para consumo Para o autor
o uso do fogo eacute fundamental na transformaccedilatildeo do alimento bruto em produto
cultural em comida Referente agrave esta percepccedilatildeo Leacutevi Strauss discute em ldquoO Cru
e o Cozidordquo como o uso do fogo permitiu de certa forma o homem passar do
estado da natureza ndash ao se referir a ingestatildeo do alimento de caccedila ou coleta na
forma crua ndash para o estado da cultura a partir da transformaccedilatildeo do alimento em
cozido Numa analogia da linguagem verbal dos grupos em seu artigo
denominado ldquoO Triacircngulo Culinaacuteriordquo o autor propotildee explicar a relaccedilatildeo natureza
60
ndash cultura com a linguagem da comida conferindo status de linguagem universal
agrave comida ldquoassim como natildeo existe sociedade sem linguagem natildeo existe
nenhuma que de um modo ou de outro natildeo cozinhe pelo menos alguns de seus
alimentosrdquo (LEacuteVI-STRAUSS 1968 p 25) O Triacircngulo culinaacuterio proposto pelo
antropoacutelogo se forma pelo cru pelo cozido (assado e fervido) e pelo apodrecido
Estaacute claro que em relaccedilatildeo agrave cozinha o cru constitui o polo natildeo marcado e que os dois outros o satildeo acentuadamente mas em direccedilotildees opostas com efeito o cozido eacute uma transformaccedilatildeo cultural do cru enquanto que o apodrecido eacute uma transformaccedilatildeo cultural dele Subjacente ao triacircngulo primordial haacute portanto uma dupla oposiccedilatildeo entre elaboradonatildeo elaborado de um lado e entre culturanatureza de outro Sem duacutevida alguma estas noccedilotildees constituem formas vazias nada nos ensinam sobre a cozinha de tal ou tal sociedade particular uma vez que apenas a observaccedilatildeo pode nos dizer o que cada um entende por ldquocrurdquo ldquocozidordquo e ldquoapodrecidordquo e uma vez que pode se supor que natildeo seraacute a mesma coisa para todas (LEacuteVI-STRAUSS 1968 p 25)
Em uma escala de relevacircncia cultural o cru estaacute na base mais simples
da escala na sequecircncia viria o assado ocupando segunda posiccedilatildeo pois
necessita apenas do fogo Os mais elaborados satildeo assim fervidos ou
ensopados que por necessitar de maior envolvimento humano e de uma vasilha
com aacutegua estando num patamar de elaboraccedilatildeo mais complexo e portanto
numa escala de maior relevacircncia cultural
Apoacutes Leacutevi-Strauss que analisou a mitologia dos povos ameriacutendios e seu
ldquomundordquo culinaacuterio buscando traduzir entre outras questotildees os mitos sobre a
origem do fogo a partir da representaccedilatildeo desse grupo surgiram outros estudos
destacando a importacircncia do fogo na praacutetica de cozinhar Um desses estudos
recentes eacute do antropoacutelogo Wrangham (2010) que tambeacutem defende a descoberta
do fogo e o cozimento como sendo definidores da humanidade e responsaacutevel
por diferenciar os humanos dos macacos originando o gecircnero Homo
Semelhante afirmaccedilatildeo eacute feita por Garciacutea (2013)
La conquista del fuego supuso (de manera metafoacuterica) la separacioacuten definitiva del mundo de los seres vivos en dos grupos de un lado quedaron los hombres de otro los demaacutes animales El fuego nos transformoacute em humanos La domesticacioacuten del fuego supuso en definitiva un impulso decisivo en la historia humana un impulso fecundador que permitioacute que se produjeran nuevos avances que a su vez abrieron la viacutea a otros progresos generando una reaccioacuten en cadena que ha desembocado en el complejo y tecnificado mundo actual (GARCIacuteA 2013 p 167)
61
Cozinhar aumentou o valor da comida Assim o uso do fogo alterou
fisicamente o corpo humano reduzindo o aparelho digestivo e aumentando o
tamanho do ceacuterebro mas tambeacutem alterando o uso do tempo e a vida social O
impacto recaiu ainda sobre as relaccedilotildees com a natureza que conforme
(WRANGHAM 2010 p 7) ldquotransformou-nos em consumidores de energia
externa e assim criou um organismo com uma nova relaccedilatildeo com a natureza
dependente de combustiacutevelrdquo
O valor cultural do fogo na transformaccedilatildeo do alimento eacute tatildeo claro que
conforme aponta Leach (1970 apud WRANGHAM 2010 p 15) ldquoAs pessoas
natildeo precisam cozer sua comida elas o fazem por razotildees simboacutelicas para
mostrar que satildeo homens e natildeo animaisrdquo Afinal somos os uacutenicos animais
capazes de cozinhar o proacuteprio alimento
Por outro lado natildeo se pode afirmar que ingerir alimento cru natildeo possua
caracteriacutestica cultural pois como argumenta Giard (2012 p 232) ldquoMesmo cru e
colhido diretamente da aacutervore o fruto jaacute eacute um alimento culturalizado antes de
qualquer preparaccedilatildeo e pelo simples fato de ser tido como comestiacutevel rdquo Para a
autora a noccedilatildeo de alimento comestiacutevel iraacute variar de um grupo a outro ou seja
eacute definido pela cultura questotildees que vimos anteriormente neste capiacutetulo
Haacute outro fator muito importante a se destacar o qual se pode atribuir agrave
descoberta do fogo que eacute o fato de ter propiciado agraves pessoas e aos grupos
juntarem-se em torno dele para se aquecer mas tambeacutem para preparar a
comida distribui-la e ingeri-la Facilitou-se assim o estabelecimento de relaccedilotildees
de comensalidade23 que com o tempo foram se tornando encontros cotidianos e
transformando-se em uma atividade socializadora Conforme argumenta Fladrin
e Montanari (1998) independentemente da forma e das diferenccedilas nas normas
de comportamento existentes em cada sociedade o fato eacute que ldquoa comensalidade
eacute percebida como um elemento lsquofundadorrsquo da civilizaccedilatildeo humana em seu
processo de criaccedilatildeordquo (FLANDRIN MONTANARI 1998 p 109) e para Carneiro
(2003) a comensalidade se constitui em ldquoum complexo sistema simboacutelico de
23 Etimologicamente comensalidade deriva do latim ldquocomensalerdquo Accedilatildeo de comer junto na mesma mesa
Com ldquojuntordquo e Mensa ldquomesardquo Implica em partilhar do mesmo momento e local das refeiccedilotildees Para Poulain (2013) a comensalidade estabelece e reforccedila a sociabilidade ldquoEacute pela cozinha e pelas maneiras a mesa que se produzem as aprendizagens sociais mais fundamentais e que uma sociedade transmite e permite a interiorizaccedilatildeo de seus valores A alimentaccedilatildeo eacute uma das formas de se tecer e se manter os viacutenculos sociaisrdquo (POULAIN 2013 p 182)
62
significados sociais sexuais poliacuteticos religiosos eacuteticos esteacuteticos etc
(CARNEIRO 2003 p 2)
Ao redor do fogo eacute possiacutevel se aquecer preparar os alimentos e a
comida mas tambeacutem estabelecer o diaacutelogo Segundo Garciacutea (2013) nos
primoacuterdios da humanidade os encontros diaacuterios dos grupos se davam em torno
do fogo para trocar experiecircncias do dia e traccedilar estrateacutegias de caccedila por exemplo
Para Wrangham (2010) o advento do fogo mudou a maneira de nossos
ancestrais se relacionarem Passava-se mais tempo junto se aquecendo e
alimentando-se em grupo No volume I da primeira obra dirigida por Philippe
Ariegraves e Georges Duby (1990) Histoacuteria da Vida Privada a importacircncia do fogo eacute
destacada logo no iniacutecio do capiacutetulo de autoria de Yvon Theacutebert que trata da
vida privada e da arquitetura domeacutestica na Aacutefrica Romana Nas habitaccedilotildees natildeo
havia chamineacute nem fogotildees e sim lareiras ldquocuja fumaccedila saiacutea por um buraco no
teto e constituiacutea paradoxalmente um dos celebrados prazeres da rude existecircncia
rural quando a neve cobria os camposrdquo (THEacuteBERT 1990 p 303)
Segundo Flandrin e Montanari (1998) o uso do fogo permitiu ao homem
alimentar-se em conjunto inicialmente ao seu redor em aacutereas externas e com o
passar dos anos com a criaccedilatildeo do espaccedilo social alimentar nos ambientes
domeacutesticos (a cozinha e a sala de jantar) e na sequecircncia com a criaccedilatildeo de
espaccedilos externos agraves residecircncias (os restaurantes lanchonetes etc) Assim a
comida que eacute o alimento transformado pela cultura passa a possuir tambeacutem a
funccedilatildeo agregadora para os seres humanos A essa funccedilatildeo denomina-se de
comensalidade que tem como significado a capacidade de estabelecer relaccedilotildees
de sociabilidade importantes pois implica em reunir as pessoas em torno da
mesa Ou seja enquanto come o grupo tem tambeacutem a oportunidade de dialogar
e trocar experiecircncias do cotidiano
Para Fischler (2011) a comensalidade eacute uma das caracteriacutesticas mais
significantes no que se refere agrave sociabilidade humana relacionando-se natildeo
apenas agrave ingestatildeo de alimentos mas tambeacutem aos modos do comer envolvendo
haacutebitos culturais atos simboacutelicos organizaccedilatildeo social aleacutem do compartilhamento
de experiecircncias e valores Nesse sentido Woortmann (1985) esclarece que na
cultura brasileira a refeiccedilatildeo eacute considerada um ato social e que portanto deve
ser feita em grupo para ser percebida efetivamente como uma refeiccedilatildeo Tambeacutem
em nossa cultura segundo o autor criamos significados diferentes para essa
63
accedilatildeo como comer cotidianamente e comer em eventos especiais comer em
casa e comer fora de casa
O caraacuteter simboacutelico-ritual do comer se expressa claramente no haacutebito de convidar pessoas para jantar em nossa casa no ldquojantar forardquo em determinadas ocasiotildees ou no ldquoalmoccedilo de domingordquo Nessas e em outras ocasiotildees anaacutelogas haacute mais em jogo que necessidades nutricionais Natildeo convidamos pessoas para jantar em nossa casa para alimentaacute-las enquanto corpos bioloacutegicos mas para alimentar e reproduzir relaccedilotildees sociais isto eacute para reproduzir o corpo social o que supotildee que sejamos em troca convidados a comer na casa do nosso convidado O que estaacute em jogo eacute o princiacutepio da reciprocidade e da comensalidade A presenccedila da comida eacute contudo central reconstruindo-se necessidades bioloacutegicas em necessidades sociais (WOORTMANN 1985 p 3)
Em semelhante percepccedilatildeo Algranti (1997) aponta que haacute registros de
que desde o periacuteodo colonial no Brasil a reuniatildeo familiar durante as refeiccedilotildees
pelo menos uma vez ao dia se tornou um costume que se perpetuou nas famiacutelias
rurais bem como nas urbanas Tambeacutem Franco (2001) discorre sobre a
comensalidade no meio rural como sendo uma importante maneira de promover
a solidariedade e reforccedilar laccedilos entre os membros de um grupo de afinidade
Neste sentido ldquoo comerrdquo eacute um ato tanto social quanto poliacutetico e envolve
costumes diaacutelogos usos sabores odores e ateacute mesmo as etiquetas que
correspondem agraves maneiras de comer que satildeo aprendidas no proacuteprio processo
de comensalidade que se daacute nos grupos E segundo Giard (2012) momentos
de comensalidade demarcam relaccedilotildees sociais e afetivas entre os membros de
uma famiacutelia e tambeacutem influencia fortemente o desenvolvimento do gosto
alimentar24 A percepccedilatildeo da autora corrobora a discussatildeo de Bourdieu (2007)
sobre a formaccedilatildeo do gosto e da preferecircncia alimentar
3311 O local do fogo e da praacutetica da comensalidade na arquitetura domeacutestica
Na sociedade ocidental o local do fogo em uma habitaccedilatildeo eacute
principalmente a cozinha que primeiramente era anexa agrave casa e o equipamento
que o representa eacute o fogatildeo A cozinha segundo Flandrin (1990) surge em
24 Eacute preciso ressaltar que nem todas as culturas apreciam comer em conjunto Poreacutem natildeo se pode
considerar como regra os preceitos da comensalidade Como nos mostra Geertz (2008 p 190) sobre a cultura balinesa onde comer eacute considerado uma atividade que gera repulsa ldquo() mas ateacute comer eacute visto como uma atividade desagradaacutevel quase obscena que deve ser feita apressadamente e em particular devido agrave sua associaccedilatildeo com a animalidaderdquo
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funccedilatildeo das transformaccedilotildees nos costumes sociais ao longo do tempo Assim o
prazer no comer e beber junto foi se modificando Isso ocorre
concomitantemente agraves mudanccedilas nas sociedades Ao longo dos anos e dos
seacuteculos a vida privada passou a ser preferida em lugar da vida puacuteblica
sobretudo nos aspectos de convivecircncia de desfrutar da intimidade e aconchego
familiar Avanccedilos tecnoloacutegicos e encontros com outras culturas favoreceram a
vida e a criaccedilatildeo de espaccedilos internos agrave casa destinados agrave comensalidade por
exemplo A cozinha que antes era compartilhada com vaacuterias pessoas ao redor
do paacutetio passa a ser parte interna de cada habitaccedilatildeo O espaccedilo privado estaacute
associado agrave intimidade e ao refuacutegio em contraste a um espaccedilo puacuteblico do qual o
cotidiano domeacutestico das famiacutelias vai se afastando aos poucos As refeiccedilotildees que
eram feitas ao ar livre ou em locais de faacutecil acesso passam a ser feitas em casas
de alvenaria que possuem portas da rua que ficam fechadas impedindo o
acesso a qualquer pessoa que chegar exceto sob o convite dos donos da casa
Mesmo que inicialmente a cozinha tenha se mantido distante dos outros
cocircmodos ocupava um lugar de destaque nas caracteriacutesticas habitacionais das
mais simples agraves mais requintadas desde o periacuteodo Colonial no Brasil conforme
aponta Lemos (1996) em seu estudo sobre as casas urbanas e rurais brasileiras
ldquoEm Portugal ateacute haacute pouco tempo e no Brasil Colonial sempre se chamou a
moradia de lsquofogorsquo ou lsquofogatildeorsquo Qualquer recenseamento dizia que determinada
cidade possuiacutea tantos habitantes em tantos lsquofogosrsquordquo (LEMOS 1996 p 11)
Segundo Lemos (1976) e Abrahatildeo (2007) as cozinhas do periacuteodo de
colonizaccedilatildeo no Brasil estavam sempre voltadas para o exterior da casa em seus
fundos ficando assim distantes dos cocircmodos de dormir mantendo-os livres do
cheiro de fumaccedila e de gordura Por natildeo haver aacutegua encanada na eacutepoca a
cozinha se localizava muitas vezes na aacuterea externa da habitaccedilatildeo Poreacutem
segundo Algranti (1997) jaacute a partir do seacuteculo XVIII estabeleceu-se dois tipos de
cozinhas a ldquocozinha sujardquo onde se preparavam carnes doces e frituras ou seja
destinava-se agraves atividades mais pesadas e portanto permanecia fora da casa e
a ldquocozinha limpardquo que se acopla agrave residecircncia e onde se prepara o cafeacute os bolos
as saladas etc
Segundo Abdala (2007) o espaccedilo da cozinha nas casas do periacuteodo
colonial em Minas Gerais e que perdurou pelo seacuteculo XIX era amplo bem
ventilado e o fogatildeo a lenha feito de barro ou de pedra sabatildeo ocupava local de
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destaque Era ainda um espaccedilo iacutentimo natildeo sendo permitida a entrada de
estranhos25
A sala de jantar segundo Cacircmara Cascudo (2004) surgiu no final do
seacuteculo XVIII e iniacutecio do XIX Antes disso qualquer cocircmodo da habitaccedilatildeo servia a
esta finalidade mesmo nos imensos castelos onde o conforto era pequeno
apesar dos grandes espaccedilos Saint-Hilaire em seu registro da passagem por
Minas Gerais assim descreve a sala de jantar das casas que visitou
Nas casas dos pobres assim como nas dos ricos existe sempre uma peccedila denominada sala que daacute para o exterior Eacute ali que se recebem os estranhos e se fazem as refeiccedilotildees sentado em bancos de madeira em torno de uma mesa comprida A gente abastada tem o cuidado de reservar na frente de sua casa uma galeria ou varanda formada pelo teto que se prolonga aleacutem das paredes e eacute sustentado por colunas de madeira (SAINT-HILAIRE 1938 p 186)
Ambos os cocircmodos se constituiacuteram ao longo da histoacuteria nos espaccedilos
principais destinados agrave comensalidade E era tambeacutem um espaccedilo assim como
a cozinha em que as mulheres precisavam provar seus dotes como donas de
casa a sua capacidade de receber visitas atividades que faziam parte dos
saberes transmitidos das matildees para as filhas de forma que por mais simples
que fossem as salas de jantar refletiam a personalidade da dona da dona da
casa segundo Abrahatildeo (2010)
As modificaccedilotildees nos tamanhos e estrutura desses espaccedilos domeacutesticos
nos tempos atuais sinalizam que os arranjos destinados a esta atividade estatildeo
sendo redefinidos socialmente mas natildeo desapareceram No sul do Brasil ainda
eacute comum nos dias de hoje os fogotildees a lenha mesmo nas residecircncias urbanas
do interior Diferentemente da regiatildeo sudeste destacando-se Minas Gerais em
que o fogatildeo a lenha eacute em sua maioria feito de alvenaria nos estados do Sul
eles satildeo feitos industrialmente em ferro esmaltado Nos dias frios eacute em torno dele
que a famiacutelia e os amigos se reuacutenem para cozinhar e degustar o pinhatildeo por
exemplo acompanhado de vinho e muita conversa Em Minas o fogatildeo a lenha
estaacute presente em quase todas as habitaccedilotildees rurais e eacute um equipamento que
permanece no imaginaacuterio das pessoas ao pensar em interior e cozinha rural
25 Durante trabalho de pesquisa para mestrado realizado em 1998-1999 na zona rural de Minas Gerais
tive uma experiecircncia interessante em relaccedilatildeo a cozinha e a intimidade das famiacutelias pesquisadas No iniacutecio das vistas as conversas se davam sempre na sala ou na aacuterea externa da casa agrave medida que ia me tornando uma pessoa mais frequente em funccedilatildeo de novas visitas passei a ser recebida na cozinha Isso ocorreu em quase todas as habitaccedilotildees em que estive naquela fase
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Martins (1998) em pesquisa realizada na regiatildeo amazocircnica expotildee os
detalhes de uma casa da sua cozinha e suas funccedilotildees de sociabilidade Sua
descriccedilatildeo deixa clara tambeacutem a relaccedilatildeo da cozinha como espaccedilo de pessoas da
intimidade do grupo
Nos povoados da fronteira onde haacute algum recurso a porta sempre aberta continua no corredor comprido que leva agrave cozinha Ela eacute o lugar de conversaccedilatildeo dos natildeo estranhos daqueles com quem os moradores da casa tecircm familiaridade e natildeo necessariamente parentesco Lugar dos que podem ir entrando bastando gritar o costumeiro ldquoOacute de casardquo Natildeo satildeo estranhos mas tambeacutem natildeo satildeo parentes Na entrada fica a saleta para receber os propriamente estranhos limite de seu acesso ao interior da casa (MARTINS 1998 p 695)
Nos falam sobre isso tambeacutem Luiacutes da Cacircmara Cascudo e Gilberto
Freyre em suas obras jaacute citadas anteriormente Freyre (2006) ao tratar sobre
as caracteriacutesticas das casas do periacuteodo dos engenhos de cana explica que
havia diferenccedilas entre as cozinhas existentes nas casas grandes de siacutetios
sobrados assobradadas de subuacuterbio com aquela da casa de engenho Nestas
uacuteltimas informa o autor a cozinha foi mais importante Essas diferenccedilas se
refletiam inclusive no tamanho da mesa destinada agraves refeiccedilotildees e que abrigavam
quem chegasse para almoccedilar
Viajantes e mascates aleacutem dos compadres que nunca faltavam dos papa-pirotildees os parentes pobres do administrador do feitor do capelatildeo dos vaqueiros das visitas de passar o dia famiacutelias inteiras que vinham de outros engenhos em carro de boi Eram mesas de jacarandaacute agraves vezes de seis oito metros de comprimento como as que ainda conhecemos na casa-grande ndash vasto sobrado rural do engenho Noruega26 (FREYRE 2006 p 143)
O autor esclarece que as mesas grandes ndash geralmente de cinco por dois
metros (5x2) ndash para receber famiacutelias enormes eram comuns nas casas grandes
de siacutetios e nos sobrados mas o que ocorria eacute que nas cidades e subuacuterbios o
modo de vida era mais retraiacutedo e sem muita movimentaccedilatildeo diferentemente do
que ocorria nas casas de engenho jaacute que aiacute ldquose recebia o viajante a qualquer
momento com bacia de prata toalha de linho um lugar agrave mesa uma rede ou
uma cama para dormirrdquo (FREYRE 2006 p 144)
Marcel Mauss (2003) em seu Ensaio sobre a Daacutediva cita a ldquoTaacutevola
Redondardquo das crocircnicas de Artur mesa cujo formato circular tinha o objetivo
26 Este engenho foi retrato na forma de gravura aquarelada 1933 por Ciacutecero Dias Esta aquarela compotildee
o livro Casa-Grande amp Senzala de Gilberto Freyre (1ordm Tomo 1964) como documento anexo ao livro e disposto em dobradura
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simboacutelico de ajudar forma a seus cavaleiros a viver em harmonia pois viviam em
disputas e alimentando inveja entre si A ideia era que ao se sentarem ao seu
redor se reconhecessem como iguais jaacute que nela natildeo havia local de destaque
ou de superioridade
Poreacutem nem sempre o moacutevel ldquomesardquo era ou eacute utilizado Comer assentado
no chatildeo faz parte da cultura indiacutegena e tambeacutem oriental Os iacutendios sentam-se
diretamente no solo nu ou em esteiras e os orientais sobre tapetes nos informa
Cacircmara Cascudo (2004 p 794) Segundo o mesmo autor no Brasil colonial os
pobres tambeacutem comiam dessa maneira o que fez surgir o termo ldquocomida de
esteirardquo Os menos pobres comiam em mesa de madeira ldquoA histoacuteria da
alimentaccedilatildeo na esteira decorre precisamente da heranccedila cabocla do escravo
negro dos mesticcedilos humildesrdquo Mesmo entre os ricos no seacuteculo XIX a mesa
existia mas era improvisada feita em taacutebuas aplainadas na maioria das vezes
Apesar de ser um objeto frequente usado como apoio para os pratos os copos
bebidas e os vasilhames com as comidas durante as refeiccedilotildees nas discussotildees
antropoloacutegicas e socioloacutegicas importa principalmente o seu sentido figurado da
mesa relativo ao ldquocomer juntordquo independentemente de ser assentado ao chatildeo
no sofaacute ou em torno de uma mesa de madeira ou de ferro
Neste sentido importa-nos a conotaccedilatildeo entendimento da
comensalidade no processo socializador e agregador como aquele usado por
Poulain (2013) de que a comensalidade envolve comer acompanhando que eacute
tambeacutem semelhante ao sentido atribuiacutedo por Sobal e Nelson (2003) Fischler
(2011) acrescenta um atributo de espaccedilo a este sentido e diz que literalmente
significa ldquocomer na mesma mesardquo A mesa neste caso podendo ser ateacute mesmo
um ciacuterculo no meio de uma floresta ou o momento e local onde ocorrem as
refeiccedilotildees dos operaacuterios da construccedilatildeo civil com suas marmitas nas matildeos ou
ainda uma toalha posta para um pic nic ou em uma roda que se forma em um
evento social Toda a discussatildeo em torno da relaccedilatildeo mesa e comensalidade
aponta que natildeo ser obrigatoacuterio a existecircncia de um local fiacutesico e de um moacutevel
chamado de mesa para que a comensalidade e sociabilidade alimentar ocorra
basta que haja disponibilidade entre as pessoas e uma certa familiaridade na
convivecircncia Isso tanto vale para o meio rural quanto para o meio urbano No
meio rural ateacute mesmo o local de trabalho no meio de um roccedilado distante da
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casa onde come-se de marmita eacute um local de relaccedilotildees de diaacutelogo e de comer
tendo uma companhia
Os momentos festivos satildeo outras possibilidades de tambeacutem haver
sociabilidade e de ocorrer a comensalidade Nestes momentos come-se natildeo
necessariamente por fome mas pelo prazer do conviacutevio ainda que temporaacuterio
conforme Fladrin e Montanari (1998)
O homem civilizado come natildeo somente (e menos) por fome para satisfazer uma necessidade elementar do corpo mas tambeacutem (e sobretudo) para transformar essa ocasiatildeo em um momento de sociabilidade em um ato carregado de forte conteuacutedo social e de grande poder de comunicaccedilatildeo (FLADRIN MONTANARI 1998 p 108)
Muitas vezes a sociabilidade inicia-se na proacutepria organizaccedilatildeo dos
festejos Nas aacutereas rurais eacute mais comum que as festas comunitaacuterias ou as da
esfera familiar sejam organizadas pelos moradores locais com ajuda da
vizinhanccedila o que propicia maior sociabilidade para aleacutem dos momentos de
comensalidade que ocorrem durante o evento Na cidade pela maior facilidade
de contratar por serviccedilos de organizaccedilatildeo de festas haacute um menor envolvimento
das pessoas que participaratildeo das festas no processo de sua organizaccedilatildeo
Poreacutem como a cultura eacute dinacircmica sofrendo o efeito dos modos de vida
modernos as relaccedilotildees de sociabilidade e tambeacutem de comensalidade ndash antes
mais tradicionais e com maior constacircncia de momentos em grupo ndash tecircm sido
alteradas conforme aponta alguns autores no toacutepico a seguir
34 Praacuteticas alimentares na contemporaneidade entre o tradicional e o moderno
Apesar de as mudanccedilas no consumo alimentar terem ocorrido de forma
tiacutemida antes do seacuteculo XIX eacute a partir da metade dele que autores como Fischler
(1998) Montanari (1998) Teuteberg e Flandrin (1998) Peacutehaut (1998) Capatti
(1998) Levenstein (1998) Cacircmara Cascudo (2004) Pollan (2014) Rossi (2014)
e Contreras e Gracia (2011) consideram como o iniacutecio de mudanccedilas mais
substanciais nas praacuteticas alimentares principalmente na Europa periacuteodo
marcado por profundas transformaccedilotildees nesse continente dentre elas a
expansatildeo da industrializaccedilatildeo que altera os modos de vida das famiacutelias o
aumento da populaccedilatildeo os avanccedilos na produccedilatildeo agriacutecola que gera em pouco
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tempo o desenvolvimento da induacutestria alimentar Esses efeitos se ampliam
destacadamente nos seacuteculos XX e XXI Muitas dessas mudanccedilas ocorrem
paulatinamente com a introduccedilatildeo de elementos caracteriacutesticos de outra cultura
como jaacute visto
Autores como Poulain (2013) Montanari (2008) Lody (2008) Pollan
(2014) Woortmann (2007 e 2013) De Garine (1987) Flandrin e Montanari
(1998) e Maciel (2001) discutem como alguns dos aspectos do modo de vida
moderno ndash tempo escasso para executar as vaacuterias atividades facilidade de
acesso agrave informaccedilatildeo estiacutemulo ao consumismo economia de tempo gerado pelo
uso de produtos alimentiacutecios industrializados dentre outros - influenciam as
praacuteticas alimentares e suas interfaces fazendo surgir diversas maneiras de se
alimentar na contemporaneidade
Maneiras essas que podem interferir nos haacutebitos alimentares nos
horaacuterios e locais das refeiccedilotildees no consumo de alimentos e nas praacuteticas
alimentares Por exemplo receitas de famiacutelia que antes estavam nos cadernos
e eram repassados por geraccedilotildees atualmente satildeo encontradas no verso das
embalagens de alimentos na internet em revistas e em programas de televisatildeo
Os horaacuterios de alimentaccedilatildeo nem sempre coincidem entre os membros da famiacutelia
tampouco o espaccedilo domeacutestico eacute mais o uacutenico a ser usado para tal finalidade A
vida contemporacircnea propotildee adaptaccedilotildees agraves novidades que satildeo apresentadas
constantemente Nesse contexto as mudanccedilas atingem tambeacutem as famiacutelias
rurais que encontram formas de se adaptar criando alternativas para lidar com
o novo
Em funccedilatildeo dessas questotildees alguns desses autores analisam
criticamente a tendecircncia atual de homogeneizaccedilatildeo das praacuteticas alimentares
sendo este talvez um caminho sem volta Essa homogeneizaccedilatildeo igualaria os
comedores contemporacircneos ocidentais que sob a influecircncia da globalizaccedilatildeo
passariam rapidamente a ter haacutebitos e gostos alimentares muito semelhantes
Estas consideraccedilotildees estatildeo presentes nas anaacutelises de Arnaiz (2005) que a partir
do estudo sobre a alimentaccedilatildeo dos espanhoacuteis e com base nas argumentaccedilotildees
de autores como Warde (1997) e Germov e Williams (1999) apresenta quatro
tendecircncias para o sistema alimentar moderno
O fenocircmeno da homogeneizaccedilatildeo do consumo em uma sociedade massificada a persistecircncia de um consumo diferencial e socialmente
70
desigual o incremento da oferta personalizada (poacutes-fordista nos termos dos autores) avaliada pela criaccedilatildeo de novos estilos de vida comuns e finalmente o incremento de uma individualizaccedilatildeo alimentar causada pela crescente ansiedade do comensal contemporacircneo ARNAIZ 2005 p 148)
Fischler (1979) se refere a essa tendecircncia alimentar nas sociedades
contemporacircneas como sendo lsquohiper-homogecircnearsquo Em funccedilatildeo disso citando o
estudo realizado por Mennell et al (1992) Fischler (2011) chama a atenccedilatildeo para
o fato de que as praacuteticas alimentares contemporacircneas colocam em risco a
comensalidade enquanto poder de sociabilidade de agregaccedilatildeo considerando
que o mundo moderno tem facilitado a individualizaccedilatildeo inclusive no que se
refere agrave alimentaccedilatildeo Exemplo disso eacute o nuacutemero crescente de pessoas que
mesmo no ambiente domeacutestico servem o seu prato e se assentam na frente da
televisatildeo ou do computador Situaccedilotildees que sinalizam que outras dinacircmicas tecircm
surgido no campo da comensalidade no mundo contemporacircneo Para esses
autores eacute fato o surgimento de um padratildeo alimentar Essa percepccedilatildeo parece
natildeo levar em consideraccedilatildeo a variaccedilatildeo de culturas realidades locais e modos
alimentares diferenciados entre os diversos povos mesmo no contexto
ocidental
Arnaiz (2005) Fischler (1979 e 2011) e Pollan (2014) afirmam que na
sociedade ocidental globalizada e industrializada o tempo aleacutem de escasso eacute
usado prioritariamente em prol da produtividade e do desenvolvimento
capitalista Nesse contexto o que sobra deste tempo eacute dividido entre as tantas
outras tarefas sociais como aquelas desenvolvidas no espaccedilo domeacutestico em
famiacutelia ou entre amigos Pollan (2014) aponta que o haacutebito de cozinhar em casa
vem diminuindo Arnaiz (2005) cita que outro motivo que contribui para isso estaacute
relacionado agraves facilidades geradas pelo processo agroalimentar ou seja vaacuterias
atividades de preparo de alimentos que antes ocupavam muito tempo da
cozinheira atualmente satildeo feitas pelas induacutestrias de alimentos
Poreacutem eacute arriscado afirmar uma tendecircncia agrave homogeneizaccedilatildeo alimentar
pois a cultura eacute dinacircmica e os indiviacuteduos tendem a buscar formas de adaptaccedilatildeo
aos modelos propostos e nessa adaptaccedilatildeo podem buscar praacuteticas alimentares
que mesclem novidade e tradiccedilatildeo Haacute que se levar em consideraccedilatildeo a
diversidade cultural dos grupos mesmo no contexto ocidental Se por um lado
busca-se acompanhar os avanccedilos haacute tambeacutem interesse em preservar
71
caracteriacutesticas culturais consideradas importantes dentre elas aquelas
relacionadas a algumas praacuteticas alimentares Portanto por mais que o peso da
homogeneizaccedilatildeo exista haacute tambeacutem o peso dos elementos da tradiccedilatildeo que
exerce importante influecircncia nas decisotildees e nas escolhas pessoais
Percebe-se na discussatildeo dos autores abordados neste toacutepico a
ocorrecircncia de trecircs vertentes ou movimentos Um primeiro apontado por Anaiz
(2005) Fischler (1979) e Pollan (2014) de que a sociedade tende a adotar um
padratildeo alimentar homogecircneo baseado no consumo prioritaacuterio de alimentos
industrializados de acordo com um estilo de vida moderno e atrelado agraves
novidades Um segundo movimento defendido por De Garine (1987) de que haacute
uma divisatildeo perceptiacutevel na sociedade ocidental formada por um lado por
consumidores prioritariamente tradicionais no seu estilo de exercer as praacuteticas
alimentares e de outro lado por consumidores com tendecircncias agraves praacuteticas
modernas Por fim um terceiro movimento encontrado em Doacuteria (2014) Giard
(2012) Garciacutea Canclini (2013) entre outros que defendem a coexistecircncia da
tradiccedilatildeo com a modernidade no que se refere tambeacutem agraves praacuteticas alimentares
conforme discussatildeo que seraacute apresentada mais agrave frente
Pollan (2014) apesar de acreditar que o ritmo de vida moderno estimule
modos de se alimentar mais homogecircneos com o comedor recorrendo
prioritariamente aos aspectos de praticidade por outro lado pondera algumas
questotildees que satildeo relativas Defende por exemplo que a despeito das mudanccedilas
em curso na sociedade ocidental contemporacircnea a magia e o prazer que
envolvem a atividade culinaacuteria ainda permanecem Mesmo que para um grande
nuacutemero de pessoas isso possa corresponder a uma atividade esporaacutedica em
eventos especiais ou nos finais de semana Por outro lado ainda que a
constacircncia do conviacutevio cotidiano nos momentos das refeiccedilotildees se reduza isso
natildeo implica na perda da qualidade desses momentos Mas o autor concorda
com Fischler (2011) que a diminuiccedilatildeo desta atividade implica em consequecircncias
como transformaccedilotildees no campo da comensalidade com seus significados e
simbolismos Com isso o estilo de vida acelerado e o tempo escasso para
realizar todas as demandas sociais afastam as pessoas do encontro familiar
cotidiano no compartilhamento da comida da manutenccedilatildeo de um horaacuterio fixo
para as refeiccedilotildees e tambeacutem da produccedilatildeo do proacuteprio alimento
72
Em relaccedilatildeo agrave essas questotildees Flandrin e Montanari (1998) consideram a
crenccedila absoluta na homogeneidade dos comportamentos alimentares
exagerada Apesar das mudanccedilas em curso os autores afirmam natildeo ser
evidente pelo menos ainda o desaparecimento das composiccedilotildees e elementos
tradicionais no campo da alimentaccedilatildeo Sinalizam que sobretudo na Europa a
funccedilatildeo social da comida ainda eacute importante Apontam as reuniotildees entre amigos
que ocorrem nos diferentes paiacuteses do planeta ou a reuniatildeo familiar em alguns
dias na semana e que natildeo ordinariamente no cotidiano ainda assim satildeo
momentos de sociabilidade e comensalidade e defendem a necessidade de
relativizaccedilatildeo sobre o assunto
A ldquonormalizaccedilatildeordquo dos comportamentos alimentares ainda natildeo se tornou irreversiacutevel se os modelos de consumo tendem a se assemelhar cada vez mais sua homogeneidade permanece bastante relativa e mais aparente do que real jaacute que os elementos que tem em comum satildeo de fato interpretados segundo a cultura de cada povo e paiacutes inserindo-se em estruturas ainda fortemente marcadas pelas particularidades locais que por sua vez foram-se formando na sequecircncia de um processo histoacuterico longo e articulado (FLADRIN MONTANARI (1998 p 867)
As possibilidades de as praacuteticas alimentares contemporacircneas serem
responsaacuteveis por manter ou de extinguir as tradiccedilotildees alimentares satildeo discutidas
por alguns autores como Berman (2000) Giddens (1991) Bauman (2007)
Garciacutea Canclini (2013) e Giard (2012) O mundo contemporacircneo estaacute
relacionado ao modo de vida moderno e em constante transformaccedilatildeo tendendo
ao dinamismo mesmo que aspectos do tradicional permaneccedilam ainda que com
pesos diferentes de acordo com cada cultura No mundo moderno nada
permanece fixamente e eacute neste contexto que os contrastes entre o moderno e o
tradicional ficam mais aflorados conforme defende Berman (2000)
Ser moderno eacute encontrar-se em um ambiente que promete aventura poder alegria crescimento autotransformaccedilatildeo e transformaccedilatildeo das coisas em redor ndash mas ao mesmo tempo ameaccedila destruir tudo o que temos tudo o que sabemos tudo o que somos (BERMAN 2000 p 15)
Nesse contexto de transformaccedilotildees e dinamismo da substituiccedilatildeo do
antigo pelo novo e da valorizaccedilatildeo do moderno aspectos expostos pelo autor
um dos fatores mais marcantes no campo das praacuteticas alimentares
contemporacircneas eacute a industrializaccedilatildeo dos alimentos e suas consequecircncias para
os comedores com suas benesses e problemas Este sistema apresenta um
73
novo jeito de vivenciar as praacuteticas alimentares no mundo contemporacircneo
sugerindo a ideia de praticidade e economia de tempo A induacutestria de alimentos
pode ser considerada um dos mais importantes promotores de mudanccedilas nos
haacutebitos alimentares das sociedades industriais Mudanccedilas essas que trazem
consequecircncias importantes como as que satildeo discutidas a seguir por Arnaiz
(2015) Pollan (2014) Silva Mello (1956) Cacircmara Cascudo (2004) e De Garine
(1987)
Para Arnaiz (2005) em relaccedilatildeo ao acesso aos alimentos a induacutestria
possui aspectos que podem ser considerados positivos e negativos Dentre os
positivos ela destaca o custo relativamente baixo de obtenccedilatildeo dos bens
alimentares pelos consumidores dos paiacuteses ocidentais industrializados e
tambeacutem a algumas parcelas populacionais dos paiacuteses em processo de
industrializaccedilatildeo Outro fator segundo a autora eacute que a tecnologia de produccedilatildeo
e organizaccedilatildeo da induacutestria de alimentos beneficiou os consumidores que
passaram a contar com maior diversidade de alimentos
A diversificaccedilatildeo alimentar eacute supostamente mais saudaacutevel em termos nutricionais uma vez que permite obter a adequaccedilatildeo de certos nutrientes e evita por exemplo doenccedilas como a pelagra que durante o seacuteculo XIX disseminou-se nas populaccedilotildees mais pobres que tinham o milho como base de sua alimentaccedilatildeo ou ainda doenccedilas como o cretinismo e o boacutecio ateacute recentemente (ARNAIZ 2005 p 148-149)
Para a autora algumas situaccedilotildees negativas se contrastam com as
positivas Cita por exemplo que apesar do acesso aos produtos em termos de
disponibilidade e a um preccedilo relativamente baixo a manutenccedilatildeo da
desigualdade social limita o acesso a muitos desses alimentos Outros fatores
destacados pela autora incluem ainda ldquoa diferenciaccedilatildeo conforme a bagagem
sociocultural que condiciona certos estilos alimentares de grupos de indiviacuteduos
e a persistecircncia das heterogeneidades intra e interterritorial e socialmente
verticalrdquo (ARNAIZ 2005 p 149)
Outro aspecto positivo mas natildeo citado pela autora diz respeito agraves
praticidades e facilidades geradas pela industrializaccedilatildeo dos alimentos Este tipo
de alimento jaacute preacute-processado contribuiu para reduzir o peso do trabalho
domeacutestico que historicamente e tradicionalmente era atribuiacutedo exclusivamente
agraves mulheres Poreacutem o lado positivo da comida industrializada como facilitadora
do dia-a-dia natildeo neutraliza outros fatores negativos tanto do aspecto
74
sociocultural como no aspecto da sauacutede humana conforme apontado por Pollan
(2014) Silva Mello (1956) e Cacircmara Cascudo (2004)
Pollan (2014) destaca o peso da comida industrializada para a sauacutede e
bem-estar humanos ao argumentar que as grandes empresas alimentiacutecias
processam alimentos o que para o autor eacute diferente de produzi-los Ele alerta
para o excesso de sal accediluacutecar e gordura nos produtos processados
industrialmente aleacutem dos produtos quiacutemicos que permitem maior durabilidade
aos alimentos nas prateleiras dos supermercados
Em um sentido semelhante Silva Mello (1956) defende a manutenccedilatildeo
de aspectos importantes da tradiccedilatildeo alimentar tanto para a sauacutede como para a
cultura ao criticar o excesso de modificaccedilotildees provocadas pela induacutestria
alimentar como por exemplo a transformaccedilatildeo do accediluacutecar natural escuro e grosso
em branco refinado e as vitaminas em caacutepsulas como discorre em seu livro
lsquoAlimentaccedilatildeo Instinto Culturarsquo ldquoNatildeo eacute com vitaminas que se mata a fome A
culinaacuteria jaacute que a alimentaccedilatildeo eacute a condiccedilatildeo vital do homem se impotildee como
obrigaccedilatildeo cultural () A chamada poliacutetica cultural comeccedila pela comidardquo (SILVA
MELLO 1956 p 622)
Focando o prejuiacutezo agrave sauacutede dos jovens no Brasil Cacircmara Cascudo
(2004) faz ressalvas agrave praacutetica alimentar moderna que eacute adotada por esse grupo
Para o autor os jovens tecircm maior atraccedilatildeo pelas refeiccedilotildees raacutepidas e substituiccedilatildeo
por lanches Possuem escassez de tempo para participar dos momentos sociais
familiares destinados agrave alimentaccedilatildeo pois sempre tecircm atividades e
compromissos caracteriacutesticos dessa fase da vida Na era dos lanches raacutepidos
eles acabam ldquoperdendo a personalidade do paladar sua fisionomia exigecircncias
predileccedilotildees simpatias Habituam-se agrave comida vulgar e venal raacutepida atendendo
aos reclamos imediatos do estocircmagordquo (p 350) Afirma ainda
Natildeo eacute o alimento em si na potecircncia intriacutenseca de sua substacircncia a fonte isolada da forccedila vital Satildeo os elementos psicoloacutegicos decorrentes da refeiccedilatildeo Cada vez menos refeiccedilatildeo e cada vez mais comidas faacuteceis encontraacuteveis vendidas nos botequins elegantes ou nas cantinas universitaacuterias (CAcircMARA CASCUDO 2004 p 348)
Muitas informaccedilotildees tecircm sido veiculadas nos uacuteltimos anos sobre a
relaccedilatildeo sauacutede-alimentaccedilatildeo referindo-se sobretudo aos alimentos
industrializados No Brasil o ldquoGuia Alimentar para a Populaccedilatildeo Brasileirardquo
publicado em 2006 com uma caracteriacutestica prioritariamente quantitativa foi
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atualizado em 2014 trazendo um perfil mais qualitativo do que o primeiro e
discute sobre os perigos agrave sauacutede de uma alimentaccedilatildeo baseada em uma dieta de
produtos muito processados ou seja industrializados ao mesmo tempo em que
oferece sugestotildees mais saudaacuteveis para melhorar a qualidade de vida alimentar
da populaccedilatildeo evitando-se frituras e alimentos com grande quantidade de
aditivos quiacutemicos O Guia Alimentar sugere aos comedores uma priorizaccedilatildeo
pelos alimentos in natura e uma maior aproximaccedilatildeo com uma cultura alimentar
mais voltada agraves praacuteticas tradicionais
De Garine (1987) natildeo acredita que o consumo de alimentos
industrializados eacute adotado de maneira generalizada pelas pessoas seja de
forma individualizada seja por grupo familiares Para o autor se por um lado eacute
verdadeiro que a globalizaccedilatildeo tem propiciado uma homogeneizaccedilatildeo dos haacutebitos
alimentares por outro observa-se tambeacutem a permanecircncia da tradiccedilatildeo alimentar
com seus modelos locais de alimentaccedilatildeo A manutenccedilatildeo da tradiccedilatildeo alimentar
estaacute ligada agrave identificaccedilatildeo com as raiacutezes culturais que satildeo passadas por
geraccedilotildees e se esforccedilam por manter alguns rituais e simbologias dessa tradiccedilatildeo
alimentar e portanto natildeo cedendo prontamente ou totalmente aos apelos da
induacutestria pela adoccedilatildeo completa dos alimentos processados Assim para esse
autor natildeo eacute correto generalizar o poder da industrializaccedilatildeo de alimentos pois a
cultura local e a tradiccedilatildeo oferecem um peso que pode tambeacutem influenciar nas
escolhas alimentiacutecias Neste sentido o autor defende inclusive que os paiacuteses
em desenvolvimento se livrem de boa parte do peso das importaccedilotildees valorizando
os alimentos autoacutectones Na percepccedilatildeo deste autor existem dois tipos de
comedores Aqueles que tentam manter uma relaccedilatildeo tradicional e aqueles que
buscam pelo moderno
Possivelmente Gilberto Freyre concordaria com essa conclusatildeo de De
Garine pois era defensor da tradiccedilatildeo culinaacuteria como forma importante de
manutenccedilatildeo e continuidade de uma identidade regional e nacional Em texto
escrito em 1924 e publicado em ldquoTempo de Aprendizrdquo (1979) defende que ldquoo
paladar eacute talvez o uacuteltimo reduto do espiacuterito nacional quando ele se
desnacionaliza estaacute desnacionalizado tudo o maisrdquo (p 367) O autor tratou
sobretudo da cozinha e da comida nordestina de Pernambuco Em seu
ldquoManifesto Regionalistardquo (1996) ndash lido para a plenaacuteria durante o 1ordm Congresso
Brasileiro de Regionalismo ocorrido em Recife em 1926 ndash o maior destaque
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sobre a importacircncia de se manter a tradiccedilatildeo foi dado agrave parte culinaacuteria Nele
Freyre propotildee uma retomada agrave valorizaccedilatildeo da cozinha regional seus modos de
fazer e de suas praacuteticas Apoacutes discorrer longamente e detalhadamente sobre
as caracteriacutesticas da culinaacuteria pernambucana ele conclui
Feitos estes reparos estou inteiramente dentro de um dos assuntos que me pareceu dever ser versado por algueacutem neste congresso os valores culinaacuterios do Nordeste A significaccedilatildeo social e cultural desses valores A importacircncia deles quer dos quitutes finos quer dos populares A necessidade de serem todos defendidos pela gente do Nordeste contra a crescente descaracterizaccedilatildeo da cozinha regional (FREYRE 1996 p 59)
No entanto esta natildeo eacute a percepccedilatildeo para outros autores que defendem
a existecircncia de um terceiro movimento mais coerente e menos radical que
privilegia a comunicaccedilatildeo entre tradiccedilatildeo e modernidade alimentar Afirmam isso
baseando-se nas raacutepidas transformaccedilotildees que ocorrem no campo da
alimentaccedilatildeo Observam que os espaccedilos para os contornos tradicionais da
produccedilatildeo da comida e dos modos de comer vatildeo sendo diluiacutedos poreacutem natildeo se
extinguem embora ao analisar a tradiccedilatildeo na oacutetica de um mundo em constante
mudanccedila surge sempre a duacutevida sobre a sua capacidade de permanecer
Assim Doacuteria (2014) Giddens (2012) Garciacutea Canclini (2013) Cacircndido (1982)
Cacircmara Cascudo (2004) e Giard (2012) defendem que a modernidade
pressupotildee e impotildee mudanccedilas de formato mas natildeo necessariamente isso
significa o rompimento absoluto com os moldes tradicionais Para estes o
caminho mais interessante eacute o de uma complementaridade pela convivecircncia dos
ldquofatores de persistecircncia ou permanecircncia que contribuem para a continuidade
dos modos tradicionais de vida (praacuteticas e saberes alimentares) com os de
transformaccedilatildeo que representam a incorporaccedilatildeo aos padrotildees modernosrdquo
(CAcircNDIDO 1982 p 200)
Doacuteria (2014) estimula um novo caminho para a culinaacuteria a junccedilatildeo da
tradiccedilatildeo com a inovaccedilatildeo pois a inovaccedilatildeo natildeo existe sem a tradiccedilatildeo natildeo se
chega a uma culinaacuteria dita como ldquonovardquo sem conhecer profundamente os
segredos da tradiccedilatildeo Assim pressupotildee-se a necessidade de um terceiro
caminho uma mescla culinaacuteria possiacutevel na qual o tradicional incorpore
elementos modernos e vice-versa
Sobre o potencial de as tradiccedilotildees alimentares resistirem ocupando
outros espaccedilos ou seja unindo-se ao moderno Poulain (2013 p 35) acena
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esperanccedilosamente que ldquoa histoacuteria da alimentaccedilatildeo mostrou que cada vez que
identidades satildeo postas em perigo a cozinha e as maneiras agrave mesa satildeo os
lugares privilegiados de resistecircnciardquo
Em sentido semelhante ao exposto acima por Jean Pierre Poulain
Cacircmara Cascudo (2004) defende o peso da tradiccedilatildeo ldquoEspero mostrar a
antiguidade de certas predileccedilotildees alimentares que os seacuteculos fizeram haacutebitos
explicaacuteveis como uma norma de uso e um respeito de heranccedila dos mantimentos
da tradiccedilatildeordquo (p 14) No entanto diferentemente de Gilberto Freyre que defendia
uma tradiccedilatildeo culinaacuteria irretocaacutevel Luiacutes da Cacircmara Cascudo apesar de defensor
das tradiccedilotildees alimentares parecia compreender de forma menos resistente do
que Freyre que a inserccedilatildeo de atributos modernos no campo alimentar se
ampliaria para o bem e sobretudo para o mal segundo as observaccedilotildees
negativas do autor a respeito Mas ele entendia a necessidade de que isso
passasse a ser administrado ao inveacutes de puramente combatido
No povo haacute dois elementos autocircmatos e harmocircnicos coexistentes no assunto alimentar O primeiro estaacutetico basilar tiacutepico indeformaacutevel O segundo renovaacutevel dinacircmico plaacutestico Dos primeiros alguns podem desaparecer ou constituir uso minoritaacuterio Dos segundos outros descem agrave estratificaccedilatildeo tornando-se tradicionais superpondo-se imediatamente agrave camada profunda dos velhos usos participando do antigo patrimocircnio preferencial Essa mecacircnica regulariza a permanecircncia do cardaacutepio familiar Todos os grupos humanos tecircm uma fisionomia alimentar (CAcircMARA CASCUDO 2004 p 373)
Para Garciacutea Canclini (2013) a busca por aspectos tradicionais na
contemporaneidade sinaliza uma necessidade de distanciamento dos indiviacuteduos
com o excesso de modernidade e a inseguranccedila vivida no mundo
contemporacircneo No que se refere a alimentaccedilatildeo as inseguranccedilas ou
desconfianccedilas natildeo satildeo poucas Isso talvez explique a busca que tem ocorrido
pela comida de nossos antepassados
Natildeo obstante o tradicionalismo aparece muitas vezes como recurso para suportar as contradiccedilotildees contemporacircneas Nessa eacutepoca em que duvidamos dos benefiacutecios da modernidade multiplicam-se as tentaccedilotildees de retornar a algum passado que imaginamos mais toleraacutevel Frente agrave impotecircncia para enfrentar as desordens sociais o empobrecimento econocircmico e os desafios tecnoloacutegicos frente agrave dificuldade para entendecirc-los a evocaccedilatildeo de tempos remotos se reinstala na vida contemporacircnea arcaiacutesmos que a modernidade havia substituiacutedo (GARCIacuteA CANCLINI 2013 p 166)
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Outro exemplo para que a tradiccedilatildeo mantenha sua importacircncia social e
de formaccedilatildeo da sociedade brasileira pode ser demonstrado atraveacutes das Leis de
Incentivo agrave cultura e ao patrimocircnio cultural valorizando tanto a culinaacuteria tiacutepica
quanto o turismo rural com foco na tradiccedilatildeo local No campo alimentar a forma
artesanal de fazer o queijo mineiro e o oficio das baianas do acarajeacute satildeo
exemplos de alimentos que estatildeo entre os patrimocircnios imateriais do paiacutes
catalogados pelo IPHAN (Instituto do Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional)
Outros saberes envolvendo a comida e a cultura encontram-se na lista de
espera Eacute o caso da produccedilatildeo de doces tradicionais pelotenses do modo de
fazer tradicional da cajuiacutena do Piauiacute e o saber fazer do queijo artesanal serrano
de Santa Catarina e Rio Grande do Sul Em niacutevel mundial muitas cozinhas
internacionais jaacute satildeo consideradas Patrimocircnio Imaterial da Humanidade pela
Unesco como eacute o caso das cozinhas Mexicana Francesa e Mediterracircnea
(Greacutecia Itaacutelia Espanha e Marrocos)
Pelo objetivo deste trabalho eacute fundamental dar continuidade agrave discussatildeo
no presente item analisando os reflexos dos haacutebitos alimentares
contemporacircneos sobre as dinacircmicas especificamente rurais buscando
compreender como o rural na atualidade se comporta diante das praacuteticas
alimentares tradicionais e modernas
35 Modernidade e tradiccedilatildeo no contexto alimentar rural contemporacircneo
Ao longo de sua histoacuteria pode-se dizer que o Brasil eacute um paiacutes de muitos
rurais por sua dimensatildeo geograacutefica por suas regiotildees de clima diferenciados e
formaccedilatildeo cultural diversa como exposto por Del Priore e Venacircncio (2006) o
Brasil eacute formado por
Grupos sociais em suas interconexotildees territoriais grupos que satildeo filhos de uma histoacuteria ou seja de um conjunto de costumes comuns ligados agrave religiatildeo ritos mitos praacuteticas econocircmicas crenccedilas teacutecnicas e usos do corpo relacionados com as culturas agriacutecolas ou com a criaccedilatildeo de animais (DEL PRIORE VENAcircNCIO 2006 p 14)
Esses muitos rurais implicam tambeacutem em haacutebitos e praacuteticas alimentares
peculiares Alimentos e praacuteticas que satildeo valorizados em uma determinada
cultura rural pode ser desinteressante para outra Outras tantas caracteriacutesticas
poreacutem podem se assemelhar No entanto eacute cada vez mais tecircnue a linha que
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separa o rural do urbano e o dinamismo parece ser constante atualmente na
maior parte desses rurais Isso tem gerado a necessidade de reorganizaccedilatildeo do
trabalho e da vida cotidiana das famiacutelias como demonstram as anaacutelises
desenvolvidas por Graziano da Silva (1997) Wanderley (2000 e 2010) e Carneiro
(2005)
Definir o que eacute cultura rural hoje eacute um desafio Segundo Camarano e
Abramovay (1998 p 46) natildeo existe um criteacuterio universal que seja vaacutelido para
definir as fronteiras entre o rural e o urbano e que essa definiccedilatildeo varia de paiacutes a
paiacutes Assim ldquono Brasil eacute considerado como situaccedilatildeo rural os domiciacutelios e a
populaccedilatildeo recenseada que abrange toda a aacuterea fora do considerado urbano
inclusive os aglomerados rurais de extensatildeo urbana os povoados e os nuacutecleosrdquo
Mas esse criteacuterio natildeo explica por si soacute a cultura rural contemporacircnea incluindo
as suas praacuteticas alimentares
Carneiro (2005 p 8) considera outros aspectos para aleacutem da definiccedilatildeo
de limites geograacuteficos entre as duas categorias Segundo a autora durante muito
tempo a oposiccedilatildeo entre o rural e o urbano prevaleceu para a sociologia rural
como abordagem teoacuterico-conceitual em que o rural era determinado pela
ldquocentralidade na atividade agriacutecola isolamento geograacutefico e cultural fraca
mobilidade etcrdquo e tambeacutem o espaccedilo de manutenccedilatildeo e reproduccedilatildeo da tradiccedilatildeo e
dos costumes Mais correto seria dizer por concordarmos com a percepccedilatildeo da
autora de que nos tempos atuais natildeo cabe mais classificar categorias como
rural ou urbano partindo apenas de justificativas de limites geograacuteficos que uma
determinada populaccedilatildeo ocupa mas sim pelas relaccedilotildees sociais que se datildeo no
interior desses espaccedilos Reportando ao trabalho de Marc Mormont Carneiro
(2005) apresenta a distinccedilatildeo entre o rural como categoria analiacutetica e como
categoria operacional destacando que a dificuldade em pensar o rural estaacute no
uso do termo que eacute feito tanto por pesquisadores e na academia quanto por
agecircncias que elaboram estatiacutesticas e ainda utilizada no senso comum
Nos termos de Mormont as propriedades do rural satildeo possibilidades simboacutelicas mas tambeacutem possibilidades praacuteticas Elas orientam as praacuteticas sociais sobre um determinado espaccedilo de acordo com os significados simboacutelicos que lhes satildeo atribuiacutedos sendo portanto inuacutetil procurar em uma realidade fiacutesica econocircmica ou ecoloacutegica os fundamentos de uma ruralidade Tambeacutem seria inuacutetil procurar nesta realidade apenas um imaginaacuterio que faria do rural uma pura construccedilatildeo mental (CARNEIRO 2005 p 9)
80
Nos interessa compreender nessa discussatildeo teoacuterica o que prevalece no
rural contemporacircneo brasileiro uma continuidade atrelada aos modos
tradicionais dos modos de vida e a reproduccedilatildeo social destacando aquelas
questotildees relacionadas agraves praacuteticas alimentares Ou por outro lado se a
aproximaccedilatildeo com o urbano tem transformado o rural a ponto de se estar
perdendo algumas peculiaridades e tradiccedilotildees que historicamente foram
construiacutedas Para instrumentalizar essa anaacutelise torna-se necessaacuteria uma
reflexatildeo sobre a dinacircmica no mundo rural
351 A dinacircmica do rural entre a tradicional e o moderno
Segundo Carneiro (1998 e 2005) compreender o dinamismo que ocorre
no campo eacute importante no sentido de natildeo congelar o conceito de rural como uma
categoria imutaacutevel onde seus habitantes sejam incapazes ldquode absorver e de
acompanhar a dinacircmica da sociedade em que se insere e de se adaptar agraves novas
estruturas sem contudo abrir matildeo de valores visatildeo de mundo e formas de
organizaccedilatildeo social definidas em contextos soacutecio-histoacutericos especiacuteficosrdquo
(CARNEIRO 1998 p 1) A autora tambeacutem argumenta sobre a possibilidade e a
ocorrecircncia de uma nova ruralidade aquela que eacute capaz de fazer conviver com
os reflexos do moderno sobre o tradicional sem que isso signifique um
rompimento com a tradiccedilatildeo descaracterizando o rural Tampouco cabe falar em
uma volta ao passado mas sim do surgimento de uma ruralidade que resgate
determinadas praacuteticas do passado cujo conhecimento pertence aos mais
velhos
Desvendar os distintos significados socialmente atribuiacutedos a espaccedilos e manifestaccedilotildees culturais tidos como rurais sinaliza uma perspectiva de que o mundo rural natildeo estaria sucumbindo agraves pressotildees do universo urbano nem representaria uma ruptura com o urbano Esse processo entendido superficialmente por alguns como de ldquourbanizaccedilatildeordquo do campo produziria novas sociabilidades e novas identidades sociais que dificilmente caberiam em uma uacutenica classificaccedilatildeo mas que continuam a ser representadas socialmente como rurais (CARNEIRO 2005 p 9)
O que os estudos dos autores citados aqui tecircm apontado eacute que as
oposiccedilotildees entre rural e urbano natildeo devem mais ser usadas para pensar a
ruralidade atual brasileira Para Brandemburg (2010) o mundo rural se insere no
processo de modernizaccedilatildeo e ateacute busca por ele mas sem deixar de lado
81
totalmente o modo tradicional de vida Essa coexistecircncia significa a necessidade
de seguir resolvendo os conflitos que surgem a partir dessa dinacircmica O autor
defende que existam rurais em tempos diferentes no Brasil mas que ldquopersistem
ora na sua forma tiacutepica ora sobrepostos ora expressos na forma de um rural
novo reconstruiacutedo ou reflexivordquo (BRANDEMBURG 2010 p 423) O autor cita
Wanderley (1996) quando discorre que este rural reconstruiacutedo eacute aquele em que
o moderno natildeo substitui ou extingue o tradicional mas lhe permite passar por
ressignificaccedilotildees e que se reorganiza socialmente em um grupo ou comunidade
local
Algumas mudanccedilas que vem ocorrendo no meio rural podem alterar os
modos de vida e interferir nas escolhas alimentares das famiacutelias rurais A
facilidade de acesso ao comeacutercio da cidade mais proacutexima ou agrave existecircncia do
comeacutercio na proacutepria comunidade pode gerar interesse em consumir alguns
alimentos que natildeo faziam parte da dieta em tempos passados como os produtos
processados Alguns siacutembolos do estilo de vida moderno chegam mais
facilmente agraves famiacutelias rurais como o uso dos eletrodomeacutesticos que equipam a
cozinha facilitando o trabalho e a reproduccedilatildeo das praacuteticas alimentares como
por exemplo o fogatildeo a gaacutes e a geladeira
Referimos muito no presente trabalho agrave dicotomia ldquopraacuteticas alimentares
contemporacircneasrdquo e como contraponto a existecircncia de uma praacutetica voltada ao
tradicional Assim o tradicional e o novo (ou moderno) surgem como aspectos
importantes agraves vezes conflitantes agraves vezes em interaccedilatildeo Refletir sobre o
mundo moderno pensar sobre modernidade eacute pensar tambeacutem em passado em
tradiccedilatildeo Poreacutem natildeo se pode afirmar que o moderno implica na morte da
tradiccedilatildeo isso foi apontado por Doacuteria (2014) Montanari (2008) e Giard (2012)
Ao analisar-se um tema em que se evidenciem traccedilos de oposiccedilatildeo e ou
de relaccedilatildeo entre o tradicional e o moderno percebe-se que haacute uma tendecircncia
no senso comum em acreditar que a modernidade eacute capaz de extinguir a
tradiccedilatildeo Poreacutem estudiosos do assunto como Giddens (2012) Bartolomeacute (2006)
e Garciacutea Canclini (2013) tecircm mostrado que o caminho mais interessante e que
estaacute em evoluccedilatildeo eacute uma ligaccedilatildeo entre os dois polos da questatildeo
Para Giddens (1991) o tradicional eacute quase sempre atrelado ao passado
idealizado mas que por sua vez se torna dinacircmico com o processo de
82
modernizaccedilatildeo e de novas interpretaccedilotildees dadas pelas geraccedilotildees que recebem os
conhecimentos e experiecircncias vividas por seus antepassados
Nas culturas tradicionais o passado eacute honrado e os siacutembolos valorizados porque contecircm e perpetuam a experiecircncia de geraccedilotildees A tradiccedilatildeo eacute um modo de integrar a monitoraccedilatildeo da accedilatildeo com a organizaccedilatildeo tempo-espacial da comunidade A tradiccedilatildeo natildeo eacute inteiramente estaacutetica porque ela tem que ser reinventada a cada nova geraccedilatildeo conforme esta assume sua heranccedila cultural dos precedentes (GIDDENS 1991 p 31)
Em semelhante linha de pensamento Bartolomeacute (2006) entende a
tradiccedilatildeo como um importante veiacuteculo para se recriar identidades Em seu
continuo processo de construccedilatildeo e reconstruccedilatildeo as identidades mesclam
aspectos do passado com os elementos do presente no mundo contemporacircneo
aleacutem de enfrentar as mudanccedilas necessaacuterias para construir novas relaccedilotildees entre
o tradicional e o moderno ldquoEm um de seus niacuteveis implica uma busca no passado
para instituir uma nova relaccedilatildeo com a realidade contemporacircneardquo (BARTLOMEacute
2006 p 58)
Giddens (2012) e Simsom (2003) nos falam sobre o papel da tradiccedilatildeo e
da transmissatildeo dos saberes de uma geraccedilatildeo a outra feita com a presenccedila dos
ldquoguardiatildeesrdquo Para Giddens (2012) tradiccedilatildeo e memoacuteria andam juntas A tradiccedilatildeo
possui ldquoguardiatildeesrdquo e combina o conteuacutedo moral com o emocional O autor
entende a memoacuteria como um processo ativo e natildeo apenas como lembranccedila
Processo ativo porque as memoacuterias satildeo continuamente reproduzidas por esses
guardiatildees que lhes conferem um modo de continuidade das experiecircncias A
presenccedila desses guardiatildees se torna ainda mais importante no mundo
contemporacircneo para que as experiecircncias passadas seus erros e acertos natildeo se
percam da sociedade
Se nas culturas orais as pessoas mais velhas satildeo o repositoacuterio (e tambeacutem frequentemente os guardiatildees) das tradiccedilotildees natildeo eacute apenas porque as absorveram em um ponto mais distante no tempo que as outras pessoas mas porque tecircm tempo disponiacutevel para identificar os detalhes dessas tradiccedilotildees na interaccedilatildeo com os outros da sua idade e ensinaacute-las aos jovens Por isso podemos dizer que a memoacuteria eacute um meio organizador da memoacuteria coletiva (GIDDENS 2012 p 100-101)
Eacute possiacutevel considerar que muitas tradiccedilotildees tecircm sua origem no rural O
rural do passado com caracteriacutesticas muito tradicionais na produccedilatildeo e na
cultura eacute descrito e analisado por Cacircndido (1982) e Brandatildeo (1981) Antocircnio
Cacircndido mostra um dos rurais brasileiros com suas peculiaridades no que se
83
refere a alimentaccedilatildeo e a cultura Em ldquoParceiros do Rio Bonito estudo sobre o
caipira paulista e a transformaccedilatildeo dos seus meios de vidardquo o autor apresenta
suas anaacutelises antropoloacutegicas e socioloacutegicas do modo de vida caipira
Neste estudo o autor mostra detalhadamente os modos de vida do
grupo pesquisado seus meios de subsistecircncia a forma tradicional de conduccedilatildeo
dos trabalhos agriacutecolas a composiccedilatildeo de sua alimentaccedilatildeo e seus recursos para
obtecirc-la a cultura caipira as formas de solidariedade o cotidiano do trabalho rural
do momento de acordar sair para o trabalho ao momento de retornar ao siacutetio
No aspecto da comensalidade nos chama a atenccedilatildeo as observaccedilotildees do
autor para a praacutetica alimentar do agricultor estudado por ele que no dia a dia
levava o seu almoccedilo em marmita depositada no embornal para ser consumido
no local de trabalho Os momentos das refeiccedilotildees em famiacutelia na cozinha ficavam
restrito aos domingos
O uso da marmita eacute tambeacutem a realidade de muitas outras aacutereas rurais e
tambeacutem urbanas no Brasil em tempos passados em periacuteodo de grande
movimentaccedilatildeo no campo onde o trabalho era realizado muito distante da
habitaccedilatildeo Atualmente isso permanece e nas aacutereas urbanas tambeacutem eacute uma
praacutetica muita utilizada pelos trabalhadores Mas a comensalidade pode se dar
no local do trabalho havendo outras pessoas na mesma atividade Como jaacute visto
anteriormente para ocorrer a comensalidade natildeo eacute necessaacuterio que o espaccedilo
fiacutesico seja a habitaccedilatildeo
Em relaccedilatildeo ao tipo de comida Cacircndido (1982) descreve uma
alimentaccedilatildeo simples baseada no arroz feijatildeo milho aboacutebora e a mandioca
frutas como jabuticaba e verduras como a couve eram as mais comuns Do mato
se coletava o palmito e se caccedilava a carne Esse tipo de alimentaccedilatildeo natildeo difere
do que Cacircmara Cascudo (2004) descreve como sendo os elementos baacutesicos da
alimentaccedilatildeo presentes na cozinha rural brasileira sendo comum tambeacutem o
cultivo de verduras legumes e frutas para consumo proacuteprio da famiacutelia bem como
a produccedilatildeo de animais sobretudo a galinha e o porco A banha do porco era
usada no lugar do oacuteleo de cereais os animais eram alimentados com milho e
outros produtos plantados e colhidos no quintal
O mesmo tipo de dieta foi descrito por Brandatildeo (1981) em sua pesquisa
com lavradores na regiatildeo de Goiacircnia na deacutecada de 1970 Ao autor destaca que
a dieta das famiacutelias rurais tambeacutem consistia basicamente de arroz feijatildeo milho
84
e mandioca os produtos da horta do quintal (legumes e verduras) frutas
tubeacuterculos carne de porco de aves de caccedila e de peixes Com exceccedilatildeo da caccedila
e do peixe todos os outros itens eram produzidos por elas no entorno da
moradia
O rural tratado por Cacircndido (1982) e por Brandatildeo (1981) produz mais do
que alimentos produz um modo de vida que eacute rico em significados e simbologias
que orienta a reproduccedilatildeo social das famiacutelias rurais
Entre lavradores cuja atividade econocircmica estaacute quase toda dentro dos limites da produccedilatildeo diaacuteria e sazonal de comida para a famiacutelia o alimento e tudo o que envolve o acesso a ele aparecem como agentes reguladores entre o homem e o seu mundo Praticamente todo o seu trabalho eacute dirigido a obter alimentos para uma dieta cujos ingredientes produzem conservam ou comprometem as suas condiccedilotildees pessoais de presenccedila em esferas sociais de relaccedilotildees entre produtores de alimentos (BRANDAtildeO 1981 p 148)
No rural contemporacircneo natildeo se pode mais afirmar que a tradiccedilatildeo eacute
determinante nem que se manteacutem encerrada fechada num mundo agrave parte
conforme jaacute apontado por Brandemburg (2010) e Wanderley (1996) embora
muitos costumes ritos praacuteticas alimentares e de reproduccedilatildeo social e econocircmica
se mantenham Isso se aplica tambeacutem agraves praacuteticas alimentares cabendo agraves
famiacutelias rurais fazerem suas escolhas Escolhas essas que natildeo satildeo tatildeo simples
considerando um universo de possibilidades e a proacutepria dificuldade de opccedilatildeo do
ser humano diante do mundo moderno
Nesse universo de possibilidades de escolhas alimentares os
consumidores contemporacircneos buscam escolher aquilo que mais lhes
apetecem de acordo com razotildees de ordem cultural simboacutelica econocircmica social
etc
La variabilidad de las elecciones alimentarias humanas procede sin duda en gran medida de la variabilidad de los sistemas culturales si no consumimos todo lo que es bioloacutegicamente comestiblese debe a que todo lo que es bioloacutegicamente comible no es culturalmente comestible (FISCHLER 1995 p 33)
Segundo o autor as muitas opccedilotildees no processo de escolha geram
anguacutestias alimentares que eacute uma caracteriacutestica do comensal moderno
Inclusive porque ele tem consciecircncia de uma seacuterie de riscos no campo
alimentar sobretudo os riscos que o alimento pode causar agrave sua sauacutede
85
As discussotildees sobre ruralidade no Brasil natildeo satildeo conclusivas no sentido
de afirmar que o peso da tradiccedilatildeo alimentar se impotildee Especificamente sobre
haacutebitos alimentares das populaccedilotildees rurais no Brasil contemporacircneo haacute
necessidade de ampliar o leque de abrangecircncia e regiotildees de estudo No
levantamento que fiz para a presente pesquisa verifiquei que os estudos sobre
alimentaccedilatildeo no meio rural tecircm sido de caraacuteter regional a maior parte na regiatildeo
Sul do Paiacutes Outra informaccedilatildeo que verifiquei eacute uma variedade de estudos sobre
alimentaccedilatildeo elaborados com consumidores na aacuterea urbana Assim o que
existem de estudos sobre praacuteticas alimentares no meio rural satildeo apontamentos
importantes e relevantes poreacutem ainda incipientes para que que sejam capazes
de definir uma realidade sobre praacuteticas alimentares para todo o rural brasileiro
Se por um lado haacute autores que apontam para uma tendecircncia a uma
homogeneizaccedilatildeo alimentar nas sociedades ocidentais e por outro aqueles que
reforccedilam a importacircncia da tradiccedilatildeo e em sua capacidade de se sobrepor haacute uma
terceira posiccedilatildeo sobre a questatildeo Satildeo autores que percebem a possibilidade do
meio termo ou de uma convivecircncia entre os aspectos da contemporaneidade e
da tradiccedilatildeo no que se refere agrave alimentaccedilatildeo Doacuteria (2014) aponta que o tradicional
e o novo datildeo sinais de que sua interaccedilatildeo eacute fundamental Natildeo se inventam novas
comidas elas estatildeo sendo revisitadas e a induacutestria tem investido nisso
Aleacutem de Doacuteria (2014) Poulain (2013) e Lody (2008) partilham da opiniatildeo
de que mesmo que a cada dia modernas possibilidades alimentares ndash cujo foco
seja a ampliaccedilatildeo do consumo de alimentos processados e ultraprocessados ndash
ampliem seus espaccedilos na sociedade natildeo conseguimos abandonar
completamente os viacutenculos com os haacutebitos alimentares herdados dos pais e
avoacutes Haacute sempre aquele doce especial que a avoacute fazia aquele bolo que soacute se
comia na casa dos pais aquele jeito de comer que aprendemos na infacircncia e
por isso sentimos falta mesmo que adotemos um estilo de vida que nos afaste
cada vez mais do espaccedilo social alimentar domeacutestico Os indiviacuteduos se sentem
emocionalmente ligados aos haacutebitos alimentares de sua infacircncia em geral
marcados pela cultura tradicional
Assim apesar de estarem inseridas em uma cultura que lhes eacute peculiar
as famiacutelias rurais natildeo estatildeo imunes agraves influecircncias dos demais tipos culturais e
tambeacutem natildeo satildeo estaacuteticas como defende Carneiro (1998) Elas acompanham o
ritmo das mudanccedilas em sua realidade nas quais estatildeo incluiacutedas tambeacutem as
86
praacuteticas alimentares Como bem define Elias (1994 p 145) ldquoa relaccedilatildeo entre
sociedade e indiviacuteduo eacute tudo menos imoacutevel Modifica-se com o desenvolvimento
da humanidaderdquo No sentido dado por Norbert Elias para a noccedilatildeo de habitus
social empregado agraves sociedades modernas ocidentais haacute uma tendecircncia para
a diminuiccedilatildeo das diferenccedilas regionais entre as pessoas agrave medida que o
desenvolvimento cria maiores possibilidades de integraccedilatildeo entre as regiotildees O
que natildeo implica obrigatoriamente em substituiccedilatildeo de todas as praacuteticas
tradicionais e adoccedilatildeo a outras
36 O papel feminino nas praacuteticas alimentares na famiacutelia
No processo de decisatildeo alimentar envolvendo o cardaacutepio cotidiano das
principais refeiccedilotildees e as aquisiccedilotildees a serem feitas no mercado eacute a mulher que
na maioria das vezes exerce o poder de decisatildeo embora tome as decisotildees
baseadas no gosto e nos haacutebitos familiares Isso eacute apontado em Arnaiz (1996)
Mennell et al (1992) Carrasco (1992) Freyre (1964 2006) Cacircmara Cascudo
(2004) e Giard (2012) Segundo Doacuteria (2012) mesmo apoacutes a revoluccedilatildeo industrial
e a inserccedilatildeo da mulher no mercado de trabalho a funccedilatildeo alimentar continuou
sendo atribuiacuteda como sendo da mulher
Arnaiacutez (1996) destaca que um dos fatores que contribuiacuteram para que a
relaccedilatildeo mulher ndash alimentaccedilatildeo ocorresse eacute a sua ligaccedilatildeo bioloacutegica com a
maternidade Historicamente a sociedade atribuiu ao papel feminino a
transmissatildeo natural dos trabalhos domeacutesticos e por consequecircncia os cuidados
com os membros da famiacutelia Dentre as atribuiccedilotildees femininas estaacute a de alimentar
seus filhos Citando Carrasco (1992) a autora destaca que a funccedilatildeo de satisfazer
as necessidades atraveacutes da alimentaccedilatildeo eacute primeiramente fisioloacutegica mas
possui tambeacutem outras ldquoSin embargo esta tarea comporta ademaacutes la
reproduccioacuten y satisfaccioacuten de otras relaciones sociales tales como identidade
reciprocidade comensalidade y comunicacioacuten que se expresan em cada uno de
los contenidos de las atividades que incorporardquo (CARRASCO 1992 apud
ARNAIZ 1996 p 31)
Segundo Arnaiz (1996) o papel atribuiacutedo socialmente agrave mulher como
responsaacutevel pela tarefa alimentar para aleacutem de fisioloacutegica encontra principal
argumento no final do seacuteculo XIX quando tanto na famiacutelia burguesa quanto na
87
trabalhadora a funccedilatildeo era basicamente reprodutiva Diferentemente do espaccedilo
externo ao lar no qual repousava o objetivo de produccedilatildeo de mercadorias Assim
havia uma clara e explicita divisatildeo sexual do trabalho Ao homem (pai) cabendo
o papel de provedor e agrave mulher (matildee) o papel de reproduccedilatildeo tanto bioloacutegica
quanto social e a responsabilidade pela alimentaccedilatildeo e por outras necessidades
domeacutesticas dos membros da famiacutelia
Woortmann (1985) trata da divisatildeo tambeacutem dos espaccedilos fiacutesicos da
constituiccedilatildeo tradicional da famiacutelia Nessa percepccedilatildeo a famiacutelia supotildee a divisatildeo
do trabalho entre homens e mulheres e cria o espaccedilo do homem provedor como
aquele externo ao lar onde se constitui a relaccedilatildeo racional dos negoacutecios e da
ldquofriezardquo O espaccedilo da mulher como sendo o da casa o espaccedilo das relaccedilotildees
afetivas e portanto acolhedor encontrando dentre as atividades domeacutesticas a
responsabilidade pela elaboraccedilatildeo da comida como a mais caracteriacutestica
expressatildeo dessa afetividade Assim para o autor
O gecircnero eacute tambeacutem construiacutedo no plano das representaccedilotildees atraveacutes da percepccedilatildeo da comida A comida ldquofalardquo da famiacutelia de homens e de mulheres tanto para o antropoacutelogo que realiza a leitura consciente dos haacutebitos de comer como para os proacuteprios membros do grupo familiar ndash e atraveacutes deste ndash que realizam uma praacutetica inconsciente de um habitus alimentar (WOORTMANN 1985 p 2)
Ao atribuir diferenccedila de significado entre ldquocomidardquo e ldquomantimento o
autor mostra que essa diferenciaccedilatildeo tambeacutem possui conotaccedilatildeo de gecircnero pois
aleacutem de existir o antes e o depois da accedilatildeo culinaacuteria existe tambeacutem a conotaccedilatildeo
que envolve a mediaccedilatildeo masculina e a feminina O autor chama a atenccedilatildeo para
o que observou em seu estudo realizado com camponeses no Nordeste em que
mantimento era considerado um produto do roccedilado portanto de domiacutenio
masculino Mas esse mantimento se converteria em comida ao ser ldquoqueimado27rdquo
na cozinha que eacute compreendido como o espaccedilo feminino
O mantimento (natureza) eacute produto do roccedilado (cultura quando eacute oposto ao mato) pelo trabalho do homem Quando eacute queimado isto eacute quando de ldquocrurdquo passa a ldquocozidordquo processo que se realiza a casa domiacutenio da cultura mas no espaccedilo desta que corresponde agrave mulher (natureza) torna-se comida (cultura) Entatildeo o homem-cultura produz o mantimento-natureza e a mulher-natureza produz a comida-cultura (WOORTMANN 1985 p 9)
27 Expressatildeo muito utilizada pelos camponeses da regiatildeo nordeste segundo o autor
88
Cacircmara Cascudo (2004) discute a identidade social feminina na histoacuteria
da alimentaccedilatildeo no Brasil O papel das mulheres indiacutegenas africanas e
portuguesas que produziram uma importante miscigenaccedilatildeo do paladar que tanto
caracteriza a cozinha brasileira Mulheres que foram responsaacuteveis tambeacutem ao
longo da histoacuteria pela transmissatildeo dos segredos e da diversidade culinaacuteria que
dominaram
A culinaacuteria brasileira tem suas raiacutezes nos saberes que foram repassados
por geraccedilotildees de mulheres desses trecircs grupos eacutetnicos e na junccedilatildeo dos seus
saberes De cada grupo eacutetnico que formou a populaccedilatildeo brasileira detalhes foram
herdados e levados agrave mesa familiar ao longo da histoacuteria Muito do que estaacute
presente em nossas praacuteticas alimentares cotidianas e em festejos especiais eacute
reflexo de transmissatildeo cultural e histoacuterica
Sobre a influecircncia e importacircncia da mulher indiacutegena para a alimentaccedilatildeo
Freyre (1964 p 132) a descreve como sendo natildeo apenas ldquoa base fiacutesica da famiacutelia
brasileira mas valioso elemento de cultura material e alimentar na formaccedilatildeo
brasileirardquo Vaacuterios alimentos usados ateacute os dias atuais remeacutedios caseiros
formatos de utensiacutelios de cozinha etc satildeo heranccedilas das mulheres indiacutegenas
Da cunhatilde eacute que nos veio o melhor da cultura indiacutegena O asseio pessoal A higiene do corpo O milho O caju O mingau As comidas preparadas agrave base de mandioca e que se tornaram a base do regime alimentar do colonizador O brasileiro de hoje amante do banho e sempre de pente e espelhinho no bolso o cabelo brilhante de loccedilatildeo ou de oacuteleo de coco reflete a influecircncia de tatildeo remotas avoacutes (FREYRE 1964 p 132)
Segundo o autor a culinaacuteria brasileira natildeo seria a mesma sem os
quitutes de origem indiacutegena Ele destaca como a mescla dos conhecimentos da
mulher indiacutegena e da mulher portuguesa que se deu nas cozinhas das casas
grandes foi importante para tornarem esses quitutes com sabor ldquoabrasileiradordquo
O autor ainda ressalta a contribuiccedilatildeo da cultura africana por meio das mulheres
africanas para a culinaacuteria brasileira Originam dessa cultura a introduccedilatildeo de
azeite de dendecirc pimenta malagueta quiabo farofa quibebe vatapaacute mungunzaacute
caruru milho assado acarajeacute pipoca cuscuz de peixe novas variedades de
preparo de peixes e da galinha alguns doces broas e patildees de milho Segundo
o autor muitas mulheres alforriadas tiravam seu sustento com os tabuleiros de
doces vendiam cocadas quindins matildees bentas etc Algranti (2007) menciona
que antes de se tornarem populares e vendidos em tabuleiros os doces eram
89
considerados iguarias e apenas servidos em ocasiotildees especiais e eram por isso
demarcadores de distinccedilatildeo social
Assim como a junccedilatildeo dos saberes das mulheres indiacutegenas africanas e
portuguesas produziu comidas mais saborosas A troca de conhecimentos
propiciou novas adaptaccedilotildees aos pratos sobretudo aos doces A heranccedila
portuguesa no que se refere aos doces eacute muito forte segundo Freyre (2007)
mas era preciso a matildeo de obra e a intuiccedilatildeo das mulheres negras para dar o
toque certo nos pontos
Com sabores temperos supersticcedilotildees e haacutebitos das trecircs raccedilas que nos formaram a convivecircncia espontacircnea entre o cristal daquele accediluacutecar o sabor selvagem da fruta tropical e aquele que era o alimento baacutesico dos nossos iacutendios ndash a mandioca Juntando pilatildeo urupema saudade peneira de taquara raspador de coco esperanccedila colher de pau panela de barro mais a fartura de porcelana do oriente e bules e vasos de prata Eram doces preparados em tachos de cobre pesado heranccedila portuguesa largos quase trecircs palmos grandes duas alccedilas ardendo sobre velhos fogotildees a lenha Jovens negras tiravam os tachos pesados do fogo sem pedir ajuda As mais velhas usavam experiecircncia e sabedoria trazidas de terras distantes com olhares atentos para natildeo deixar o doce passar do ponto E sempre com aquela mesma forma de fazer ndash tranquila bem devagar sem pressa quase dolente (FREYRE 2007 p 13-14)
Bruit et al (2007) citam doces como as marmeladas goiabadas
rapaduras doces de frutas em calda acompanhados muitas vezes de queijo
como aqueles mais servidos nos jantares festivos que ocorriam nas casas-
grandes no interior de Satildeo Paulo e Minas Gerais Tanto as referecircncias de
Cacircmara Cascudo (2004) como as de Freyre (1964 2003 e 2007) revelam as
praacuteticas alimentares que ocorriam no Brasil colonial sobretudo nas casas-
grandes e dos sobrados que foram caracteriacutesticas primeiramente das regiotildees
dos engenhos de cana
Abdala (2007) afirma o controle da cozinha pelas mulheres no Brasil
colonial Referindo-se principalmente agraves escravas que viviam quase reclusas na
cozinha e por isso se tornaram personagem central na atividade da culinaacuteria
Segundo a autora essa era a realidade em Minas Gerais mas tambeacutem em
outras partes do paiacutes As escravas e as mulheres pobres executavam o serviccedilo
cotidiano Agraves senhoras ricas cabia dar as ordens e administrar os trabalhos
relativos agrave produccedilatildeo da comida Somente em algumas ocasiotildees elas se
dedicavam agrave elaboraccedilatildeo de algum prato ldquoEm casa no decorrer dos dias nas
festas intimas durante visitas como tambeacutem na rua no comeacutercio ambulante ou
90
das vendas cabia agrave mulher toda a funccedilatildeo relacionada agrave comidardquo (ABDALA
2007 p 80) Essa condiccedilatildeo tambeacutem eacute apontada por Vasconcellos (1968) que
apresenta a mulher deste periacuteodo em Minas Gerais como a dona absoluta dos
seus domiacutenios no interior das casas que compreendia tambeacutem a cozinha local
onde o homem raramente acessava
O domiacutenio feminino dos grupos eacutetnicos indiacutegenas africanos e portuguecircs
eacute perceptiacutevel na alimentaccedilatildeo brasileira ainda nos dias de hoje muito embora
com a chegada dos imigrantes europeus e tambeacutem de outras regiotildees a partir
da metade do seacuteculo XIX mulheres de outras culturas trouxeram importantes
contribuiccedilotildees para a culinaacuteria brasileira Destacando as italianas e as alematildes
cuja influecircncia se iniciou no Sul do Brasil mas tambeacutem na cidade de Satildeo Paulo
No interior do estado do Espirito Santo e na regiatildeo serrana do Rio de Janeiro as
culturas italianas e alematildes tambeacutem tiveram papel importante na formaccedilatildeo das
praacuteticas alimentares locais
Segundo Claval (2001) os saberes culinaacuterios foram repassados
matrilinearmente ao longo da histoacuteria e foram feitos principalmente por oralidade
pelas mulheres que podem ser chamadas de as ldquoguardiatildesrdquo termo usado por
Giddens (2012) e Simson (2003) Muitas mulheres mais velhas que natildeo tiveram
a oportunidade de estudar e sabiam apenas assinar o proacuteprio nome guardavam
na memoacuteria as receitas de suas matildees e avoacutes Pode-se dizer que a transmissatildeo
pela oralidade parece contribuir mais para aproximar as geraccedilotildees pela relaccedilatildeo
de proximidade necessaacuteria entre as mulheres Independente da forma se
escritas ou orais o importante eacute a compreensatildeo de que receitas repassadas
pelas geraccedilotildees carregam tambeacutem uma histoacuteria rica em significados e
experiecircncias vividas pelas mulheres das geraccedilotildees Afinal como dito por Doacuteria
(2006 p 103) ldquoreceitas como meros lsquomodos de fazerrsquo satildeo inuacuteteisrdquo
Tambeacutem Giard (2012) atribui agraves mulheres ndash as guardiatildes da tradiccedilatildeo ndash a
influecircncia na preferecircncia por determinados pratos Somos ldquovisitadosrdquo pelos
sabores e cheiros que a memoacuteria muitas vezes insiste em trazer agrave tona as
comidas de tempos de infacircncia e juventude que nos reporta a ocasiotildees
especiacuteficas da vida Em pesquisa etnograacutefica realizada com mulheres dedicadas
a culinaacuteria a autora concluiu que
A aquisiccedilatildeo dos ingredientes a preparaccedilatildeo e as regras de compatibilidade podem muito bem mudar de uma geraccedilatildeo agrave outra mas
91
o trabalho cotidiano das cozinhas continua sendo uma maneira de unir mateacuteria e memoacuteria vida e ternura instante presente e passado que jaacute se foi invenccedilatildeo e necessidade imaginaccedilatildeo e tradiccedilatildeo ndash gostos cheiros sabores formas consistecircncias atos gestos coisas e pessoas especiarias e condimentos (GIARD 2012 p 296)
Apesar do papel central da oralidade o caderno de receita eacute um
instrumento importante para se reportar aos haacutebitos alimentares de tempos
passados Talvez o primeiro registro de uma receita seja a que aponta Sitwell
(2012) Trata-se de um registro de 1700 aC na antiga Mesopotacircmia de uma
receita de ensopado de legumes e carne que foi esculpido em taacutebuas de argila
em fixada a um tuacutemulo Segundo Claval (2001) os registros de receitas em
cadernos tiveram iniacutecio em meados do seacuteculo XIX Haacute quem o tenha herdado
de pessoas da famiacutelia e mesmo que natildeo o utilize no dia-a-dia o manteacutem como
heranccedila afetiva
Abrahatildeo (2007) aponta que natildeo apenas receitas eram registradas em
muitos desses cadernos mas tambeacutem outras anotaccedilotildees necessaacuterias naquele
momento Ele menciona que as receitas culinaacuterias que foram arquivadas em
cadernos traziam ricas informaccedilotildees inclusive sobre outros aspectos
alimentares das eacutepocas como preccedilos ofertas e carecircncias temporaacuterias de
produtos
Atualmente e desde o surgimento da sociedade industrial as atividades
das mulheres passam por transformaccedilotildees com a saiacuteda para o mercado de
trabalho externamente ao lar a dupla jornada de trabalho as mudanccedilas sociais
poliacuteticas e econocircmicas que interferiram na dinacircmica da sociedade e
consequentemente na divisatildeo sexual do trabalho Isso propiciou a aproximaccedilatildeo
masculina da cozinha numa possiacutevel divisatildeo do trabalho domeacutestico espaccedilo
antes ocupado exclusivamente por mulheres Mas ainda assim segundo Doacuteria
(2012) a mulher eacute a principal responsaacutevel pela alimentaccedilatildeo da famiacutelia ldquoNatildeo haacute
duacutevidas de que ainda hoje a cozinha feminina eacute um dos pilares do poder da
mulher em que ela segue administrando a tradiccedilatildeo alimentar (DOacuteRIA 2012 p
255)
Segundo Giard (2012) ldquodentro de uma cultura uma mudanccedila das
condiccedilotildees materiais ou da organizaccedilatildeo poliacutetica eacute o que basta para modificar a
maneira de conceber e de repartir este tipo de tarefas cotidianas podendo
tambeacutem alterar a hierarquia dos diferentes trabalhosrdquo (GIARD 2012 p 211)
92
Para esta autora natildeo haacute nada de essecircncia feminina no fato de as mulheres de
ontem e as de hoje ainda serem as que mais se envolvem nas questotildees relativas
agrave alimentaccedilatildeo A questatildeo eacute puramente histoacuterica social e cultural
Diante das mudanccedilas e da permanecircncia feminina como principal
responsaacutevel pela alimentaccedilatildeo familiar as novas tecnologias disponibilizadas aos
espaccedilos da cozinha o acesso e a variedade de alimentos industrializados
facilitam a conduccedilatildeo desse papel pelas mulheres que desejam manter a
responsabilidade pela alimentaccedilatildeo da famiacutelia mas cujo tempo eacute escasso para
se dedicarem a todas as atividades que executam Por mais que possa haver
algum conflito em usaacute-los nos termos citados por Fischler (1995) haacute poreacutem o
aspecto da comodidade e economia de tempo que atuam como fatores
estimuladores ao seu uso
A dupla jornada de trabalho feminino natildeo ocorre apenas nas aacutereas
urbanas mas tambeacutem nas rurais seja para aquelas que possuem atividade
remunerada fora da propriedade em que moram seja para as que trabalham
apenas na propriedade As atividades das mulheres agricultoras envolvem o
ambiente interno e externo da casa e ainda o seu entorno e para muitas as
atividades tambeacutem do roccedilado conforme Panzutti (2006)
Na vida cotidiana a mulher se ocupa de cozinhar e servir a comida lavar a roupa cuidar dos animais prover a lenha costurar as roupas lavar a louccedila aleacutem de trabalhar na roccedila sempre acompanhada da prole que eacute de seu cuidado Eventualmente eacute auxiliada nessas tarefas por uma filha (PANZUTTI 2006 p 62)
Segundo a autora no meio rural a oposiccedilatildeo entre a casa e o
roccedilado apesar de socialmente ser dividida e hierarquizada mostrando os
domiacutenios dos homens e os das mulheres natildeo as livra de exercer muitas
atividades no espaccedilo considerado masculino Por outro lado a cozinha eacute um
espaccedilo bem definido como sendo o da mulher matildee de famiacutelia
Alguns estudos feitos no Sul do Brasil como o de Zanetti e Menasche
(2007) De Grandi (2003) Paulilo et al (2003) e Heredia (1984) relatam a
experiecircncia de mulheres atuando nas atividades agriacutecolas como o cuidado com
pequenos cultivos pomar pequenos animais mas tambeacutem mantendo a
responsabilidade pelas praacuteticas alimentares na preparaccedilatildeo e organizaccedilatildeo da
alimentaccedilatildeo da famiacutelia
93
Na apresentaccedilatildeo dos dados empiacutericos discuto as situaccedilotildees vivenciadas
pelas famiacutelias e o papel desempenhado pelas mulheres na alimentaccedilatildeo dos
membros da famiacutelia Tanto daquelas que trabalham apenas no siacutetio como
daquelas que exercem atividade remunerada fora dos siacutetios As mulheres
relataram sobre a dinacircmica exercida por elas no que se refere agraves praacuteticas
alimentares e cultura rural Na pesquisa de campo foram apontados pelos
entrevistados elementos aqui discutidos como a transmissatildeo de saberes
culinaacuterios e a relaccedilatildeo entre modos tradicionais e modos contemporacircneos das
praacuteticas culinaacuterias
94
4 ASPECTOS METODOLOacuteGICOS DA PESQUISA E A CHEGADA AO CAMPO
Neste capiacutetulo satildeo apresentados os aspectos metodoloacutegicos que
orientaram a pesquisa de campo bem como os resultados obtidos O trabalho
de campo foi conduzido utilizando-se um delineamento qualitativo agrave luz da
abordagem etnograacutefica no sentido dado por Peirano (1995) dando atenccedilatildeo
especial ao diaacutelogo com o outro Quivy e Campenhoudt (1992) defendem que o
trabalho de investigaccedilatildeo em Ciecircncias Sociais proporciona uma melhor anaacutelise
dos eventos qualitativos bem como uma compreensatildeo mais detalhada e sutil das
dinacircmicas de funcionamento do grupo estudado
Jaacute os direcionamentos de Poulain e Proenccedila (2003) tratam da pesquisa
voltada ao estudo das praacuteticas alimentares num contexto socioantropoloacutegico
Esses autores sugerem atenccedilatildeo conjunta por parte do pesquisador aos
comportamentos dos informantes naquilo que chamam de ldquopraacuteticas observadasrdquo
e ldquopraacuteticas reconstruiacutedasrdquo Para os autores aquilo que o pesquisador observa
durante a entrevista age em conjunto com os relatos dos entrevistados
auxiliando a interpretaccedilatildeo dos dados
As praacuteticas observadas dizem respeito ao que eacute testemunhado pelo
pesquisador satildeo detalhes muitas vezes relevantes mas que nem sempre satildeo
fornecidos pelos interlocutores por razotildees diversas Para facilitar posteriormente
o acesso agraves informaccedilotildees obtidas por meio da observaccedilatildeo o uso de alguns
instrumentos de apoio eacute importante o caderno de campo a cacircmera fotograacutefica
e o gravador As praacuteticas reconstruiacutedas dizem respeito ao trabalho de
rememorizaccedilatildeo Interessa investigar e comparar vivecircncias passadas com as
atuais no caso da alimentaccedilatildeo praacuteticas que foram adotadas alimentos que
fizeram parte da dieta traccedilos de comensalidade comemoraccedilotildees festivas onde
a comida esteja presente o que permanece e o que foi abandonado
Entre outras questotildees busquei verificar junto agraves famiacutelias a influecircncia da
heranccedila culinaacuteria envolvendo a cultura imaterial (eventos relacionados agrave comida
que satildeo tradicionais na famiacutelia) a representaccedilatildeo das praacuteticas alimentares no
tempo passado e presente e o papel dos guardiatildees da tradiccedilatildeo da culinaacuteria
familiar a relaccedilatildeo com a tradiccedilatildeo bem como com os modos de alimentaccedilatildeo
moderna
95
41 Teacutecnica de pesquisa
A entrevista semiestruturada foi a teacutecnica de pesquisa utilizada para
obtenccedilatildeo de informaccedilotildees das praacuteticas reconstruiacutedas e observadas (POULAIN
PROENCcedilA 2003) justificam como sendo a forma mais confiaacutevel quando dirigida
pelo proacuteprio pesquisador e ainda por permitir aprofundamento das questotildees As
entrevistas podem ser reformuladas ao longo da sua ocorrecircncia com o objetivo
de redirecionar a discussatildeo para o assunto poreacutem sem se prender totalmente agrave
pergunta inicial ldquoAs digressotildees satildeo importantes porque permitem perceber as
representaccedilotildees e os quadros de referecircncia mais ou menos conscientes nos
quais se manifestam as loacutegicas dos atoresrdquo (p 373)
A entrevista permite ao pesquisador uma variedade de interpretaccedilotildees A
atenccedilatildeo do pesquisador e seu feeling tambeacutem satildeo muito importantes pois eacute
preciso estar atento para fazer tanto abordagens objetivas e palpaacuteveis como
simboacutelicas Neste uacuteltimo caso estar atento ao que natildeo aparece claramente na
mensagem e fica impliacutecito na fala
42 Os sujeitos da pesquisa
A definiccedilatildeo dos sujeitos da pesquisa foi realizada a partir de dados
fornecidos pela Emater relativos a cada municiacutepio selecionado Poreacutem como o
trabalho de campo eacute dinacircmico novos informantes surgiram durante esta fase
pois ao entrevistar uma famiacutelia sugiram durante as conversas nomes de outras
pessoas da proacutepria comunidade que pelos objetivos da pesquisa foi
interessante entrevistar Assim as informaccedilotildees da Emater representaram a
porta de entrada mas natildeo uma limitaccedilatildeo para a seleccedilatildeo dos entrevistados
O uacutenico preacute-requisito para a pesquisa era que os interlocutores
morassem na aacuterea rural dos trecircs municiacutepios delimitados O objetivo era conhecer
as praacuteticas que ocorriam no conjunto familiar e natildeo necessariamente as praacuteticas
individuais
Foram realizadas 40 entrevistas abrangendo 17 comunidades rurais
sendo 05 em Piranga 07 em Porto Firme e 05 em Presidente Bernardes cujos
nomes constam no Quadro 1 bem como o nuacutemero de famiacutelias entrevistadas 14
em Piranga 12 em Porto Firme e 14 em Presidente Bernardes O nuacutemero de
96
famiacutelias entrevistadas por comunidade eacute aquele que consta entre os parecircnteses
no referido quadro
Quadro 1 ndash Municiacutepios comunidades e nuacutemero de famiacutelias 2015
Municiacutepios Comunidades
Piranga Boa Vista (2) Manja (3) Mestre Campos (4) Bom Jesus do Bacalhau (2) Tatu (3)
Porto Firme Aacutegua Limpa (2) Bom Retiro (1) Vinte Alqueires (1) Limeira (2) Posses (2) Jacuba28 (2) Satildeo Domingos (2)
Presidente Bernardes Itapeva (3) Mato Dentro (3) Ribeiratildeo (3) Xopotoacute (3) Bananeiras (2)
Fonte Pesquisa de campo 2015
43 A conduccedilatildeo da pesquisa o caminho percorrido
A pesquisa de campo teve como objetivo analisar agrave luz da teoria
sistematizada o significado da comida e as relaccedilotildees de comensalidade atendo-
se agraves mudanccedilas e permanecircncias referentes agraves praacuteticas alimentares das famiacutelias
Mais especificamente analisar a articulaccedilatildeo entre o tradicional e o moderno o
processo de escolha alimentar e os princiacutepios que a determinam como haacutebitos
tradiccedilatildeo praticidade custo etc a influecircncia dos guardiatildees da tradiccedilatildeo na
reproduccedilatildeo do gosto no processo de significaccedilatildeo e ressignificaccedilatildeo da comida
atrelada agraves praacuteticas aos saberes e aos haacutebitos tanto no cotidiano quanto nos
rituais
A pesquisa de investigaccedilatildeo teoacutericobibliograacutefica me conduziu a pensar
as categorias analiacuteticas e as variaacuteveis para a conduccedilatildeo do processo empiacuterico
Assim a alimentaccedilatildeo em seu sentido cultural e simboacutelico como o que foi
discutido nos campos teoacutericos da antropologia e da sociologia da alimentaccedilatildeo
28 Perguntei aos entrevistados desse local se eles sabiam porque a comunidade se chamava Jacuba mas
natildeo souberam responder Os nomes das comunidades estatildeo quase todas relacionadas ao nome de primeira fazenda implantada na localidade Perguntei isso porque ldquojacubardquo eacute um termo indiacutegena usado para se referir a um tipo de comida parecida com o piratildeo agrave base de aacutegua e farinha de mandioca e rapadura muito consumida pelos tropeiros no periacuteodo da mineraccedilatildeo em Minas Antocircnio Cacircndido tambeacutem se refere a ela na descriccedilatildeo dos caipiras paulistas
97
no capiacutetulo anterior eacute eleita como categoria analiacutetica central A partir dela foram
definidas outras quatro subcategorias de suporte 1 As praacuteticas alimentares 2
A comensalidade 3 O espaccedilo social da alimentaccedilatildeo 4 A cultura Como
atributos importantes para a anaacutelise dessas categorias delineei as variaacuteveis
norteadoras da pesquisa empiacuterica e que me ajudaram a observar a descrever
a analisar e a interpretar os dados
Sobre a cultura o interesse foi traccedilar uma caracterizaccedilatildeo ou um ldquoretratordquo
das famiacutelias quanto agrave origem (rural ou urbana) o tempo em que moram na regiatildeo
pesquisada se a terra eacute herdada ou adquirida a faixa etaacuteria aproximada se satildeo
idosos ou jovens a produccedilatildeo de alimentos e as atividades realizadas no
cotidiano
Nas praacuteticas alimentares o interesse foi o de conhecer as informaccedilotildees
relativas aos alimentos mais consumidos no cotidiano e nos eventos especiais
o que eacute produzido no local e o que eacute comprado o horaacuterio das refeiccedilotildees a relaccedilatildeo
com a atividade (por prazer ou por obrigaccedilatildeo) a comida tradicional (o papel dos
guardiatildees da cultura alimentar os cadernos de receita o aprendizado por
oralidade) a comida de antigamente e a comida de hoje a comida para visita e
a comida para os de casa os aspectos levados em consideraccedilatildeo na escolha dos
alimentos (tradiccedilatildeo praticidade custo e atraccedilatildeo pelo moderno)
Para analisar a comensalidade foi preciso identificar se ela estaacute
presente nos haacutebitos familiares no cotidiano e em datas especiais os locais onde
ela ocorre (cozinha copa aacuterea externa da casa sala de visita) e o tempo
aproximado de duraccedilatildeo das refeiccedilotildees
O espaccedilo social da alimentaccedilatildeo se refere ao local de preparo e de
consumo das refeiccedilotildees Importa saber a este respeito quem prepara as
refeiccedilotildees e quais satildeo os equipamentos existentes neste espaccedilo por exemplo a
presenccedila do fogatildeo a lenha e a gaacutes e a constacircncia de seus usos ou seja qual
deles eacute mais utilizado Tambeacutem a existecircncia e usos de equipamentos eleacutetricos
como geladeira freezer forno eleacutetrico forno de micro-ondas batedeira de bolo
etc Neste sentido analisar se nesse espaccedilo social ocorre a relaccedilatildeo entre
tradiccedilatildeo e modernidade na posse e uso dos equipamentos ou o predomiacutenio de
uma dessas caracteriacutesticas Buscou-se ainda analisar se permanecem os
costumes alimentares quanto aos locais destinados agrave comensalidade ou este
espaccedilo social estaacute passando por transformaccedilotildees
98
44 A entrevista semiestruturada
As entrevistas foram gravadas com a permissatildeo dos interlocutores da
pesquisa Apenas uma famiacutelia na comunidade de Ribeiratildeo em Presidente
Bernardes natildeo se sentiu agrave vontade com o gravador e realizei as anotaccedilotildees em
caderno de campo Os nomes dos entrevistados citados no decorrer deste
capiacutetulo satildeo pseudocircnimos que substituiacuteram os verdadeiros para preservar a
identificaccedilatildeo dos participantes conforme exigecircncia constante no Parecer
Consubstanciado do Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa com Seres Humanos (CEP)
da Universidade Federal de Viccedilosa
O estilo da narrativa para apresentaccedilatildeo dos resultados da pesquisa
segue o direcionamento proposto na perspectiva etnograacutefica discutida por
Peirano (1995 e 2008) Marcus e Cushman (1998) e Uriarte (2012) Para Marcus
e Cushman (1998 p 175-176) a narrativa etnograacutefica do seacuteculo XX tem se
baseado no que chamam de realismo etnograacutefico sendo ldquoun modo de escritura
que busca representar la realidade de todo un mundo o de uma forma de vidardquo
Outras caracteriacutesticas da narrativa etnograacutefica realista segundo os autores satildeo
Una cuidadosa atencioacuten hacia nos detalles y demonstraciones redundantes de
que el escritor compartioacute y experimentoacute ese mundordquo
Para Peirano (2008 p 6) ldquoo trabalho de campo se faz pelo diaacutelogo vivo
e depois a escrita etnograacutefica pretende comunicar ao leitor (e convencecirc-lo) de
sua experiecircncia e sua interpretaccedilatildeordquo
45 A imersatildeo em campo a chegada e a travessia
Se a accedilatildeo de comer eacute algo tatildeo iacutentimo ao ser humano conforme reflete
Mintz (2001) analisar os haacutebitos e as praacuteticas alimentares de pessoas e grupos
se torna uma atividade de grande responsabilidade Trabalhar os dados de forma
analiacutetica e criacutetica agrave luz das abordagens teoacutericas e portanto longe do julgamento
do senso comum eacute o papel do pesquisador Foi com essa percepccedilatildeo que
enveredei no campo pensando a pesquisa empiacuterica como descobertas a serem
feitas pelo caminho naquele sentido absorvido quando li Grande Sertatildeo
Veredas de Guimaratildees Rosa pela primeira vez
99
O real natildeo estaacute na saiacuteda nem na chegada ele se dispotildee para a gente eacute no meio da travessia () Assaz o senhor sabe a gente quer passar um rio a nado e passa mas vai dar na outra banda eacute num ponto muito mais em baixo bem diverso do que em primeiro se pensou (ROSA 2001 p 51 e 80)
Fazer pesquisa de campo eacute algo semelhante Faz-se um planejamento
mas durante o percurso eacute preciso lidar por um lado com os ldquoimponderaacuteveis da
pesquisardquo29 e por outro com a expectativa das descobertas a serem feitas na
travessia A praacutetica empiacuterica eacute tambeacutem trabalho analiacutetico e reflexivo mas eacute
sobretudo ndash concordando com a ideia de Peirano (1995 p 57) ndash ldquotrabalho
artesanal microscoacutepico detalhista e que traduz como poucas outras o
reconhecimento do aspecto temporal das explicaccedilotildeesrdquo Ela argumenta ainda que
a conduccedilatildeo de uma pesquisa de campo ldquodepende entre outras coisas da
biografia do pesquisador das opccedilotildees teoacutericas do contexto sociohistoacuterico e das
imprevisiacuteveis situaccedilotildees que se configuram no dia-a-dia no proacuteprio local de
pesquisa entre pesquisador e pesquisadosrdquo (p 22)
Para esta pesquisa as questotildees em torno dos haacutebitos praacuteticas
alimentares e sociabilidades das famiacutelias rurais foram importantes para a
investigaccedilatildeo cientiacutefica pretendida Assim foi necessaacuteria a compreensatildeo por
parte dos interlocutores sobre a importacircncia de sua participaccedilatildeo Coube a eles
apoacutes o entendimento da pesquisa abrir a sua intimidade alimentar cotidiana Fui
convidada pelos entrevistados ndash mulheres na maior parte ndash a ldquoadentrar e puxar
assentordquo na cozinha Tambeacutem me convidaram para conhecer o quintal colher
verdura na horta e inclusive a participar das refeiccedilotildees em todas as casas
visitadas fosse almoccedilo fosse ldquomerendardquo ou mesmo apanhar frutas diretamente
do peacute durante conversas ocorridas no pomar
Assim percorri regiotildees rurais de Piranga Porto Firme e Presidente
Bernardes entre os meses de fevereiro a junho de 2015 fazendo descobertas
aprendendo apreendendo dialogando analisando questionando e refletindo
sobre os sentidos da comida e do comer no espaccedilo rural contemporacircneo das
famiacutelias pesquisadas
29 Termo que foi utilizado primeiramente por Bronislaw Malinowski (1976) ao falar sobre os ldquoimponderaacuteveis
da vida realrdquo para se referir a rotina do trabalho diaacuterio do nativo os detalhes de seus cuidados corporais o modo como prepara a comida e come as simpatias ou aversotildees e etc Utilizo o termo semelhante para pensar os eventos inesperados da pesquisa empirica
100
Naquelas famiacutelias em que fui apresentada diretamente pelos teacutecnicos da
Emater e a quem acompanhei em algumas de suas visitas agraves comunidades
atendidas no mecircs de janeiro de 2015 e mesmo naquelas onde minha preacutevia
apresentaccedilatildeo foi feita via telefone a chegada para a pesquisa foi mais simples
Entretanto naquelas em que houve indicaccedilatildeo por parte dos proacuteprios
entrevistados o processo foi mais lento mas natildeo difiacutecil ou impeditivo Apenas
levei mais tempo para organizar a visita Em um dia ia ao local me apresentava
explicava sobre a pesquisa que havia sido realizada com seus conhecidos na
mesma comunidade respondia agraves perguntas e curiosidades e por fim
agendava um retorno Considero como mais provaacutevel eacute que tenham aceitado
participar da pesquisa em funccedilatildeo de eu ter citado o mesmo trabalho feito com
pessoas conhecidas Natildeo sei dizer se foram buscar confirmaccedilatildeo sobre isso A
teacutecnica da Emater de Piranga que estava se aposentando se propocircs a percorrer
comigo algumas comunidades em alguns dias da segunda quinzena de janeiro
de 2015 me mostrando os caminhos e apresentando a algumas pessoas
Em geral as pessoas foram atenciosas Algumas se mostraram mais
interessadas do que outras e por isso o envolvimento foi maior Poreacutem todas
deram contribuiccedilotildees muito importantes Houve dois casos em que precisei
retornar em outro dia Em um dos casos porque houve falecimento de um
parente na manhatilde do dia da entrevista e natildeo tiveram como me avisar antes Na
outra situaccedilatildeo o casal de aposentados precisou ir agrave cidade resolver problemas
pessoais e pediu para marcarmos um outro dia Foi necessaacuterio tambeacutem o
adiamento da pesquisa em dias de chuva devido agraves condiccedilotildees ruins das
estradas
Optei por dividir o horaacuterio das entrevistas em manhatilde e tarde para
conviver com dois momentos do cotidiano das famiacutelias respeitando os horaacuterios
delas Assim consegui realizar 15 entrevistas na parte da manhatilde e as outras 25
na parte da tarde O horaacuterio de chegada pela manhatilde era entre 800 e 830
tambeacutem em acordo com as famiacutelias Na parte da tarde o horaacuterio era entre 1330
e 1400 Almocei porque era convidada nas casas onde iniciava o trabalho na
parte da manhatilde o que me permitia acompanhar o processo de elaboraccedilatildeo do
almoccedilo as conversas no geral aconteciam na cozinha mas parte delas ocorria
tambeacutem nas hortas e nos quintais
101
A partir do proacuteximo item passo a apresentar os dados obtidos em campo
baseados em informaccedilotildees fornecidas pelos interlocutores da pesquisa e tambeacutem
nas observaccedilotildees que fiz Os itens e subitens estatildeo relacionados agraves variaacuteveis
elencadas no projeto de pesquisa que compuseram o roteiro de entrevista
No item 46 apresento dados de caraacuteter descritivo-analiacutetico sobre a
cultura e os modos de vida do grupo pesquisado as atividades cotidianas de
trabalho as impressotildees empiacutericas e sua relativizaccedilatildeo agrave luz dos dados do IBGE
(2010) sobre uma regiatildeo que aos olhos dos entrevistados parece estar
envelhecendo Apresento e discuto tambeacutem outras percepccedilotildees culturais do
cotidiano Em todo o item algumas reflexotildees sobre as praacuteticas alimentares satildeo
sinalizadas ou apontadas No entanto as discussotildees mais especiacuteficas sobre as
praacuteticas alimentares satildeo feitas no capiacutetulo 5
46 Descobrindo a cultura local dos entrevistados
461 Perfil das famiacutelias
Na regiatildeo pesquisada predomina a agricultura de base familiar que eacute
aquela em que a propriedade a gestatildeo e o trabalho estatildeo ligados agrave famiacutelia no
sentido dado por Gasson e Errington (2003 p 20) O marido a esposa e tambeacutem
os filhos adolescentes quando chegam da escola satildeo os que trabalham na
propriedade Entre os casais idosos as atividades de produccedilatildeo satildeo muito
reduzidas por dificuldades fiacutesicas em executar alguns trabalhos Em alguns siacutetios
haacute filhos casados ou solteiros se responsabilizando pelas atividades dos pais
As aacutereas rurais dos trecircs municiacutepios se assemelham tanto ao que se
relaciona agraves atividades agriacutecolas quanto agrave cultura e haacutebitos cotidianos inclusive
os alimentares A maior parte das famiacutelias (899) mora em pequenos siacutetios que
se formaram por divisatildeo de heranccedila de propriedades maiores O restante
adquiriu por meio de compra Em todos os casos de heranccedila ela proveacutem dos
pais do marido Essas informaccedilotildees obtidas em campo coincidem com o que eacute
apresentado por Maria Joseacute Carneiro (2001 e 1998b) Abramovay et al (1998)
Woortmann (1995) Spanevello e Lago (2010) Paulilo (2003) Mendonccedila et al
(2013) e Moura (1978) ao discutirem o processo sucessoacuterio do meio rural
Apontam que historicamente a heranccedila eacute dada ao filho de sexo masculino que
102
assume a continuaccedilatildeo das atividades ldquoenquanto as mulheres se tornam
agricultoras por casamentordquo (Paulilo 2003 p 188) Situaccedilatildeo semelhante foi
verificada na minha pesquisa As mulheres disseram natildeo ter herdado terra dos
pais agricultores sendo possuidoras de terra a partir do momento em que se
casaram e passaram a partilhar a terra herdada pelo marido
Outros estudos como os de Woortmann (1995) Carneiro (1998b) e
Camarano e Abramovay (1998) tecircm sinalizado uma mudanccedila nos uacuteltimos anos
Uma das razotildees estaacute associada agraves transformaccedilotildees de perspectivas da juventude
rural em relaccedilatildeo ao campo Segundo os autores muitos jovens natildeo demonstram
mais tanto interesse em permanecer no campo e assumir a incumbecircncia total
pela manutenccedilatildeo da terra que pertenceu aos pais Em minha pesquisa natildeo tive
como objetivo discutir a questatildeo sucessoacuteria mas as famiacutelias cujos filhos
moravam nos siacutetios dos pais (666) eram sobretudo aquelas compostas por
casal de idosos e aposentados Nestes casos os filhos natildeo moravam
necessariamente na mesma casa Quando se tratava de filhos casados eles
moravam em casas separadas
A origem rural eacute predominante no grupo pesquisado sendo a realidade
de 95 das famiacutelias entrevistadas As famiacutelias satildeo pequenas sendo 36 pessoas
o tamanho meacutedio incluindo aquelas de casais aposentados e natildeo aposentados
que tecircm os filhos morando em casa Predominam aquelas compostas por
aposentados que moram sozinhos existindo no entanto algumas cujos filhos
solteiros moram com os pais Em alguns dos casos um dos filhos casados mora
no siacutetio mas em casa separada dos pais
As famiacutelias compostas por casais de aposentados correspondem a 24
delas (60) Desse total 11 famiacutelias estatildeo em Presidente Bernardes 08 em
Piranga e 05 em Porto Firme O municiacutepio de Presidente Bernardes representa
aquele com maior percentual de aposentados 80 Em Piranga eles
representam 6875 e em Porto Firme 50
As outras 16 famiacutelias satildeo compostas por casais cuja faixa etaacuteria varia de
30 a 50 anos Nestas famiacutelias os filhos a partir dos 16 anos tecircm saiacutedo para
estudar em outras cidades proacuteximas como Viccedilosa Ouro Preto ou Ouro Branco
onde possam cursar o niacutevel superior Essa foi a realidade encontrada em sete
delas Isso tem ocorrido por interesse tambeacutem dos pais que desejam vecirc-los
formados em um curso superior
103
Em relaccedilatildeo agrave escolaridade a maior parte (646) das pessoas com
idade acima de 60 anos tinham o ensino fundamental incompleto 187
concluiacuteram o ensino fundamental 104 disseram ter sido semialfabetizado ou
seja sabem assinar o nome e ler e escrever muito pouco30 e 63 possuem o
ensino meacutedio completo Entre o puacuteblico na faixa etaacuteria de 30 a 50 anos
predomina o ensino meacutedio completo (532) 373 natildeo completou o ensino
meacutedio e 95 possuem apenas o ensino fundamental completo As mulheres
representam o maior percentual dentre o puacuteblico que concluiu o ensino meacutedio
Os filhos que moram na casa dos pais com idade inferior a 30 anos estatildeo
estudando a maior parte deles crianccedilas e adolescentes
Embora o tema desse subitem natildeo seja objetivo analiacutetico deste trabalho
considerei interessante inserir uma breve discussatildeo em funccedilatildeo de que durante
as entrevistas muitos depoimentos destacaram a saiacuteda dos jovens e a
permanecircncia dos casais de aposentados das regiotildees em que vivem A busca
pela continuidade dos estudos tem determinado a saiacuteda dos jovens Sem
disponibilidade de ensino superior nos municiacutepios em que moram os filhos tecircm
saiacutedo para outras regiotildees proacuteximas e contam com o estimulo dos pais para isso
Os pais alegam que natildeo tiveram oportunidade de fazer um curso superior ou
mesmo teacutecnico e que desejam isso para os filhos porque percebem que a
realidade de trabalho no campo atualmente estaacute mais difiacutecil do que em tempos
atraacutes Relataram que seus pais conseguiram criar famiacutelias grandes com maior
facilidade do que hoje obtendo renda da agricultura Realidade que segundo os
entrevistados estaacute cada vez mais distante na contemporaneidade
Para Zefa moradora de Mato Dentro Presidente Bernardes uma das
explicaccedilotildees para o baixo nuacutemero de pessoas mais novas morando na aacuterea rural
da regiatildeo decorre da divisatildeo das propriedades chegando ao ponto de natildeo ter
mais como dividi-las entre os herdeiros e explica ldquoEsse siacutetio aqui jaacute foi dividido
quando meu sogro deixou aqui para noacutes Se a gente fosse dividir para nossos
nove filhos natildeo ir dar nada entatildeo os filhos foram pra cidade achar um jeito
melhor porque na roccedila eacute tudo mais difiacutecil mesmordquo
Muitos pais ao falarem dos seus filhos jovens destacam que eles se
sentem atraiacutedos por bens e tecnologias que natildeo estatildeo disponiacuteveis no campo o
30 Percebi o constrangimento de alguns quando eu lhes explicava sobre a necessidade de assinatura dos
entrevistados ao ldquoTermo de Consentimento Livre e Esclarecidordquo do Comitecirc de Eacutetica em Pesquisa
104
mais citado foi o acesso agrave internet O filho de Lola e Marcos que tem 10 anos de
idade possui um celular que soacute utiliza quando vai agrave cidade Consegue acessar
a rede por laacute com o uso da senha que um amigo disponibilizou Os filhos de
Carmem quando visitam os pais reclamam de natildeo ter como acessar a internet
no siacutetio Por outro lado os depoimentos apontaram que os filhos que moram fora
dos siacutetios natildeo tem a mesma reclamaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave comida ao contraacuterio
sentem o desejo de comer a comida tradicional que consumiam quando
moravam no local
Quando os filhos vecircm eles querem comer comida daqui eles falam que eacute ldquocomida de matildeerdquo estatildeo enjoados do que comem na cidade eles falam isso porque eacute com essa comida daqui que foram acostumados comida deles laacute na cidade tem muito tempero artificial igual esse tal de sazon (Doca moradora de Boa Vista Piranga MG 2015)
Haacute no comportamento dos filhos jovens das famiacutelias que entrevistei um
conflito de ordem cultural Desejam manter identidades culturais locais sentem
necessidade da comida da matildee da comida tradicional e de sempre que possiacutevel
visitar os pais como eacute o caso das filhas de Nilsa e Jonas de Satildeo Domingos
Porto Firme que estudam em Viccedilosa Quase todos os finais de semana visitam
os pais Por outro lado sentem falta do acesso a tecnologias e outras opccedilotildees
oferecidas a eles na cidade
Mas o outro lado tambeacutem existe Haacute o exemplo dos filhos que optam por
permanecer junto dos pais por mais tempo embora eu tenha encontrado apenas
dois casos nas famiacutelias entrevistadas Um exemplo eacute o da filha mais nova de
Nanaacute e Custoacutedio moradores de Xopotoacute em Presidente Bernardes Ela continua
morando com os pais trabalha na cidade de Presidente Bernardes e o uso de
uma moto permite que vaacute almoccedilar em casa Ela tambeacutem estuda cursa Letras na
modalidade agrave distacircncia Como natildeo possui internet em casa se dedica ao curso
nos finais de semana na casa da irmatilde casada que mora em um siacutetio localizado
muito proacuteximo agrave cidade e tem acesso agrave internet Seu objetivo depois que se
formar eacute permanecer na regiatildeo como professora na escola estadual do
municiacutepio Seu irmatildeo de 27 anos tambeacutem permanece no siacutetio Apoacutes concluir o
ensino meacutedio optou por trabalhar na agricultura junto com o pai e eacute ele quem
assumia essas atividades na ocasiatildeo da pesquisa
105
Martins (2012) discute que uma das grandes dificuldades da
modernidade para o ldquohomem comumrdquo eacute conseguir superar as irracionalidades e
as contradiccedilotildees impostas por ela que geram conflitos de ordem cultural ldquode
permanente proposiccedilatildeo da necessidade de optar entre isto e aquilo entre o novo
e fugaz de um lado e o costumeiro e tradicional de outrordquo (p 20)
A literatura sobre juventude rural como os trabalhos de Carneiro e
Castro (2007) Brumer (2007) Abramovay et al (1998) Durston (1994) entre
outros tem apontado os desafios para esse grupo etaacuterio em encontrar formas
de permanecer no campo desenvolvendo atividades de trabalho que lhes sejam
atrativas no mundo contemporacircneo Dentre os motivos que estimulam a saiacuteda e
a busca de trabalho em atividades fora da aacuterea rural estatildeo as dificuldades tanto
para conduzir quanto para obter retorno financeiramente favoraacutevel da atividade
rural e a pequena disponibilidade de terra familiar para empreender uma
atividade proacutepria e constituir famiacutelia
Como visto a literatura aponta para uma tendecircncia ao envelhecimento
e masculinizaccedilatildeo do campo Esta foi a minha percepccedilatildeo empiacuterica tambeacutem
Apesar disso eacute preciso considerar que a entrevista abrangendo 40 famiacutelias nos
trecircs municiacutepios natildeo permite classificar essa situaccedilatildeo como generalizada pois a
realidade que encontrei em relaccedilatildeo agrave faixa etaacuteria na regiatildeo pesquisada natildeo
coincide com a realidade apontada pelo IBGE (2010) em termos percentuais
como seraacute mostrado a seguir Isso poreacutem natildeo interfere nos objetivos da
pesquisa pois se trata de uma abordagem qualitativa
No grupo de 40 famiacutelias que pesquisei a populaccedilatildeo idosa eacute
predominante Encontrei um puacuteblico constituiacutedo por 24 famiacutelias cujos casais
tinham acima de 60 anos e 16 famiacutelias cujos casais tinham entre 30-50 anos
Como natildeo havia pessoas viuacutevas a proporccedilatildeo de homens e mulheres era a
mesma 50
No montante das 40 famiacutelias 20 delas possuem filhos morando na casa
dos pais Dentre eles 10 satildeo crianccedilas 08 satildeo jovens e 02 satildeo adultos Nenhum
filho casado mora com os pais Dentre os vinte filhos 08 satildeo mulheres e 12 satildeo
homens Assim o universo de pessoas que constituiacuteam as famiacutelias entrevistadas
foi de 100 pessoas o que representa apenas 048 do total da populaccedilatildeo rural
total da pesquisa do IBGE (2010) mostrado na Tabela 4
106
Assim o perfil etaacuterio do grupo pesquisado se constitui de 48 de
populaccedilatildeo idosa 34 de populaccedilatildeo adulta 8 de populaccedilatildeo jovem e 10 de
populaccedilatildeo infantil
Exceto para o perfil adulto os demais perfis etaacuterios no grupo que
pesquisei apresentam dissonacircncia em relaccedilatildeo ao perfil etaacuterio rural do IBGE
(2010) mostrado nas Tabelas 3 e 4 Pelo IBGE o perfil etaacuterio da regiatildeo se
constitui de 13 de populaccedilatildeo idosa 36 de populaccedilatildeo adulta 26 de
populaccedilatildeo jovem e 23 7 de populaccedilatildeo infantil (Tabela 5)
Tabela 5 ndash Comparativo entre perfil etaacuterio do IBGE (2010) e da pesquisa de campo 2015 ()
Fonte Populaccedilatildeo
rural 1-14 anos
() 15-29
anos () 30-59
anos ()
Acima de 60 anos
()
IBGE (2010) 20755 237 26 36 13 Pesquisa de campo (2015) 100 10 08 34 48
Fonte IBGE (2010) e Pesquisa de campo (2015)
A composiccedilatildeo de gecircnero das famiacutelias pesquisadas se aproxima muito
ao perfil dos dados do IBGE (2010) sendo o puacuteblico masculino um pouco maior
do que o puacuteblico feminino em ambos os casos (Tabela 6)
Tabela 6 ndash Comparativo da composiccedilatildeo de gecircnero do IBGE e da pesquisa de campo 2015
Fonte Populaccedilatildeo
rural Mulheres () Homens ()
IBGE (2010) 20755 481 517 Pesquisa de campo (2015) 100 48 52
Fonte IBGE (2010) e Pesquisa de campo (2015)
107
Em funccedilatildeo dos dados acima eacute possiacutevel afirmar a ocorrecircncia de um
processo de envelhecimento no grupo pesquisado natildeo sendo possiacutevel afirmar
semelhante situaccedilatildeo para toda a regiatildeo rural dos municiacutepios
462 A produccedilatildeo agriacutecola local
A produccedilatildeo agriacutecola eacute pequena mesmo naqueles siacutetios cuja produccedilatildeo
tambeacutem se destina agrave comercializaccedilatildeo A pequena produccedilatildeo de milho objetiva a
produccedilatildeo de fubaacute que possui importacircncia fundamental para a alimentaccedilatildeo das
famiacutelias e dos animais O fubaacute obtido do milho possibilita suprir as famiacutelias com
o produto que eacute utilizado na preparaccedilatildeo do angu alimento consumido
diariamente no almoccedilo e no jantar e na elaboraccedilatildeo da broa uma das principais
quitandas que eacute elaborada diariamente para abastecer a famiacutelia com a
ldquomerendardquo do cotidiano e para ter o que oferecer agraves visitas que chegarem de
surpresa
A cana tambeacutem atende agraves necessidades alimentares animais Apenas
em um siacutetio ela eacute usada para fabricaccedilatildeo de cachaccedila e em outros dois na
fabricaccedilatildeo de rapadura e melado
As principais atividades geradoras de renda das famiacutelias pesquisadas
satildeo leite carvatildeo cafeacute feijatildeo e cachaccedila As famiacutelias que produzem para
comercializaccedilatildeo praticam de duas a trecircs atividades ao mesmo tempo leite e
carvatildeo cafeacute e feijatildeo consorciados e carvatildeo leite e cafeacute Apenas uma famiacutelia
produz cachaccedila para comercializaccedilatildeo e tem nessa atividade uma importante
fonte geradora de renda Nos demais siacutetios cuja produccedilatildeo se destina apenas ao
autoconsumo a produccedilatildeo se baseia em milho feijatildeo leguminosas hortaliccedilas
frutas frangos e porcos caipiras
No Quadro 2 eacute apresentada a origem da renda das famiacutelias Entre
aquelas em que a aposentadoria eacute a uacutenica fonte de renda a produccedilatildeo agriacutecola
se destina apenas para o autoconsumo Naquelas em que a aposentadoria e a
atividade agriacutecola estatildeo presentes a produccedilatildeo eacute administrada por um filho seja
casado ou solteiro mas a maior parte eacute casada e mora proacuteximo aos pais Eacute
importante ressaltar que satildeo sempre os filhos homens que exercem tal funccedilatildeo
Para os pais a presenccedila dos filhos por perto assumindo os trabalhos eacute fator
positivo pois leva-os a se sentir mais tranquilos
108
Quadro 2 ndash Fonte de renda das famiacutelias pesquisadas 2015
Fonte Nordm de famiacutelias
Apenas aposentadoria 14 350
Aposentadoria e atividade agropecuaacuteria no siacutetio 10 250
Atividade agropecuaacuteria no siacutetio e outra 09 225
Atividade agropecuaacuteria 07 175
Total de famiacutelias 40 1000
Fonte Pesquisa de campo 2015
Nas famiacutelias em que a renda eacute obtida da atividade agriacutecola e de outra
fonte a maior parte desta uacuteltima eacute gerada pelo trabalho das mulheres (889)
envolvidas nas seguintes atividades serventes e merendeiras nas escolas rurais
(Marina Ivone e Juliana)31 servente na escola da cidade (Solange) diarista em
casas proacuteximas (Arminda) Haacute tambeacutem aquelas mulheres que utilizam atividades
em casa como eacute o caso de Nilsa Marcelina e Ivone que produzem quitandas e
salgados para vender no entorno ou na cidade proacutexima e Nanaacute que trabalha
como costureira32 Na outra situaccedilatildeo trata-se de uma famiacutelia que possui um
pequeno comeacutercio na comunidade fora do siacutetio onde vive
463 Atividades cotidianas de trabalho nos siacutetios
A maior parte de meus interlocutores foi composta por mulheres e
mesmo quando os homens estavam presentes elas eram as mais ativas no
diaacutelogo Assim muitas das informaccedilotildees sobre o trabalho do cotidiano estatildeo
atreladas agrave realidade vivenciada por elas
Naquelas famiacutelias cuja renda eacute apenas a atividade agropecuaacuteria o
trabalho envolve tambeacutem a mulher e os filhos que estejam morando com os pais
As mulheres se envolvem em todas as atividades seja na lavoura de feijatildeo na
colheita de cafeacute na limpeza do suiacuteno abatido como eacute o caso de Lola (41 anos
31 Marina Ivone Marcelina e Nilsa satildeo moradoras de Porto Firme Arminda e Juliana de Piranga Nanaacute e
Solange de Presidente Bernardes 32 Em duas famiacutelias haacute filhas solteiras (uma em cada famiacutelia) que trabalham fora do siacutetio mas informaram
que suas rendas natildeo contribuem necessariamente para complementar a dos pais
109
moradora de Xopotoacute em Presidente Bernardes) ou na atividade leiteira e do
carvatildeo como eacute o caso de Neiva (39 anos moradora de Posses em Porto Firme)
que fez questatildeo de mostrar a suas unhas ainda manchadas do trabalho na
carvoaria no dia anterior
Mesmo as mulheres que trabalham fora dos siacutetios satildeo unacircnimes em
afirmar que continuam sendo agricultoras jaacute que continuam a exercer a funccedilatildeo
de cuidados da casa ndash incluindo aqueles referentes agrave alimentaccedilatildeo ndash assim como
as atividades agriacutecolas no quintal principalmente nos cuidados com a horta
ldquoSou diarista mas sou agricultora tambeacutemeu cuido da horta da casa mas
quando precisa de fazer algum trabalho na roccedila eu vou mas natildeo vou muitordquo
informou Arminda moradora de Mestre Campos em Piranga
Ivone (38 anos Posses ndash Porto Firme) se envolve muito com todas as
atividades do siacutetio As manhatildes satildeo passadas na escola da comunidade onde eacute
cantineira mas ao chegar em casa no iniacutecio da tarde se junta ao marido para o
trabalho na atividade leiteira na colheita na lavoura e tambeacutem na atividade da
carvoaria Costuma ainda receber encomendas de quitandas vindas da cidade
de Porto Firme e de acordo com o tempo disponiacutevel atende aos pedidos
Observei pelos depoimentos que o trabalho com a horta natildeo eacute visto
como uma atividade agriacutecola Ela eacute percebida como extensatildeo do quintal e da
cozinha e portanto estaacute atrelada aos elementos da casa Trabalhar na roccedila
para eles significa o serviccedilo de capina de roccedilar o milho o feijatildeo colher cafeacute
etc Nos siacutetios em que estive as hortas em sua maioria tambeacutem eram muito
proacuteximas agrave cozinha
As atividades de trabalho cotidiano das mulheres satildeo muito
diversificadas como jaacute visto Envolvem os cuidados da casa do quintal da horta
a alimentaccedilatildeo da famiacutelia atividade leiteira de roccedilado e carvoaria e em alguns
casos trabalho externo ou natildeo ao siacutetio que lhes garantem renda proacutepria
Marcelina (34 anos Satildeo Domingos ndash Porto Firme) diz ter encontrado na
culinaacuteria remunerada motivos para a famiacutelia desistir de se mudar para a cidade
Haacute pouco mais de um ano sua famiacutelia esteve prestes a se mudar para Viccedilosa
em busca de trabalho assalariado O principal motivo eacute que Marcelina natildeo estava
satisfeita com suas atividades no campo As considerava exaustiva mas eram
necessaacuterias para aumentar a renda do casal que era obtida principalmente da
atividade leiteira mas que por ser dividida entre outras duas famiacutelias de irmatildeos
110
do marido ndash que tambeacutem moram na propriedade que pertenceu aos pais ndash
originava uma renda insuficiente para manter sua famiacutelia Uma iniciativa poreacutem
trouxe oportunidade de o casal repensar a saiacuteda do campo A irmatilde de Marcelina
que reside em Viccedilosa produz salgados que satildeo vendidos em bares da periferia
da cidade Marcelina por insistecircncia da irmatilde aprendeu as teacutecnicas de produccedilatildeo
de salgados e passou a produzi-los e vende-los para bares da zona rural de
Porto Firme e Guaraciaba Na ocasiatildeo da pesquisa um ano depois de iniciar
esse trabalho ela conseguiu comprar um freezer novo com a renda dos
salgados o que lhe permitiu aumentar a produccedilatildeo Os salgados satildeo vendidos
na forma congelada e a entrega eacute feita pelo marido de moto Ela compartilhou
essa experiecircncia como sendo muito satisfatoacuteria em sua vida e da famiacutelia Afirmou
que esse foi o principal motivo de eles terem permanecido no campo
Agora o trabalho eacute muito melhor natildeo preciso trabalhar debaixo do sol ardendo natildeo tenho mais dor nas costas trabalho em casa perto dos meninos posso dar o almoccedilo para eles e ver quando eles chegam da escola antes meu marido eacute que tinha que esquentar o almoccedilo e dar para eles (Marcelina moradora de Satildeo DomingosPorto Firme MG 2015)
A experiecircncia de Marcelina sinaliza uma situaccedilatildeo nova na regiatildeo
pesquisada que eacute a produccedilatildeo de alimentos congelados diretamente para
abastecer bares e vendas no meio rural Estaacute presente nesta realidade a
inserccedilatildeo de elementos modernos o trabalho desenvolvido por Marcelina que eacute
uma novidade tambeacutem para ela pois precisou aprender a preparar esse tipo de
alimento a partir de meacutetodos baacutesicos de congelamento de alimentos e a utilizar
o freezer Outro aspecto de modernizaccedilatildeo se refere ao uso da moto como veiacuteculo
para fazer a entrega dos produtos que por sua vez eacute realizada pelo marido
agricultor ao final do dia apoacutes finalizar os trabalhos do siacutetio Por outro lado a
proacutepria famiacutelia pouco consome os produtos congelados feitos por Marcelina por
natildeo fazer parte do haacutebito alimentar da famiacutelia que permanece com preferecircncia
pela comida tradicional ldquoEles natildeo pedem os salgadosnatildeo ligamagraves vezes eu
ateacute faccedilo uns pra gente experimentar e ver como ficourdquo pondera Marcelina
Percebi que essa famiacutelia estaacute buscando se adaptar agraves novas estruturas e
dinacircmicas da sociedade no sentido discutido por Carneiro (1998) incorporando
elementos modernos importantes para sua reproduccedilatildeo sem contudo
abandonar o meio rural e abrir matildeo de suas praacuteticas alimentares tradicionais
111
Chama a atenccedilatildeo tambeacutem nessa experiecircncia o fato de haver consumo no meio
rural para os salgados congelados pelo menos pelos frequentadores dos bares
ou ldquovendasrdquo onde Marcelina fornece seus produtos Isso aponta que se os
congelados natildeo fazem parte do consumo domeacutestico das famiacutelias haacute um espaccedilo
para seu consumo nos bares (ldquovendasrdquo) da regiatildeo
Vemos na situaccedilatildeo exposta aqui um modo de vida tradicional agregando
fragmentos do moderno sem contudo converter-se a ele como discutido por
Martins (2012) percepccedilatildeo semelhante a apresentada por Carneiro (1998)
Os estudos sobre perspectivas e possibilidades para se pensar os rumos
de um novo rural brasileiro ou um rural reinventado vecircm sendo desenvolvidos
por autores como Wanderley (2000 e 2010) e Carneiro (1998 2005 e 2012) em
seus grupos de pesquisa Uma das discussotildees diz respeito agraves novas estrateacutegias
e possibilidades no campo que natildeo sejam necessariamente agriacutecolas como eacute o
caso do turismo do artesanato da agroinduacutestria etc
O cotidiano das mulheres que trabalham fora do siacutetio envolve mais de
uma jornada de atividades que se inicia antes das 600 da manhatilde e segue ateacute agrave
noite apoacutes o jantar ser servido e a louccedila ser lavada No capiacutetulo anterior introduzi
a discussatildeo sobre a dupla jornada de trabalho das mulheres tambeacutem no meio
rural apresentando as pesquisas de Panzutti (2006) com agricultoras no interior
de Satildeo Paulo e de Zanetti assim como as pesquisas de Menasche (2007) com
agricultoras do Sul Ainda sobre essa temaacutetica no sul do paiacutes haacute os trabalhos de
pesquisa de Paulilo et al (2003) e de De Grandi (2003) Analisando os casos
das mulheres da regiatildeo que pesquisei as caracteriacutesticas satildeo muitos
semelhantes agraves descritas pelas pesquisadoras ao estudarem outras regiotildees
O trabalho domeacutestico da mulher eacute considerado infinitamente elaacutestico uma vez que ela transita por ambos os espaccedilos o da produccedilatildeo e o da reproduccedilatildeo o que demonstra que haacute uma flexibilizaccedilatildeo das atividades consideradas produtivas o que natildeo acontece com as atividades reprodutivas e domeacutesticas (DE GRANDI 2003 p 40)
Em outra pesquisa neste caso em uma regiatildeo accedilucareira do Nordeste
do Brasil Heredia et al (1984) discutem a divisatildeo de gecircnero existente na
execuccedilatildeo do trabalho da produccedilatildeo rural Apontam o roccedilado como o lugar do
homem e como o espaccedilo de trabalho da mulher a casa envolvendo a sua
organizaccedilatildeo e a elaboraccedilatildeo da comida para a famiacutelia Mas tambeacutem indicam que
apesar da divisatildeo existem etapas do roccedilado onde a mulher atua como na
112
semeadura e limpeza ao redor das mudas No entanto o contraacuterio natildeo ocorre
como apontam Heredia et al (1984) e Woortmann (1985) Em suas pesquisas
natildeo foi registrado participaccedilatildeo masculina nos trabalhos voltados agrave organizaccedilatildeo
da casa e da elaboraccedilatildeo das refeiccedilotildees destinadas agrave famiacutelia Tampouco em
minha pesquisa identifiquei essa situaccedilatildeo pois satildeo atividades exercidas
basicamente pelas mulheres
Poreacutem encontrei na minha pesquisa uma sinalizaccedilatildeo de que mudanccedilas
ainda que tiacutemidas estatildeo ocorrendo na regiatildeo analisada e isso implica
diretamente nas praacuteticas alimentares Em depoimentos de duas famiacutelias as
mulheres e os maridos que estavam presentes durante a conversa falaram da
participaccedilatildeo destes na preparaccedilatildeo do almoccedilo O primeiro caso eacute o de Marcelina
e Luiz Durante um tempo quando Marcelina trabalhava como diarista Luiz (39
anos Satildeo Domingos ndash Porto Firme) que tem seu trabalho principal na atividade
leiteira assumiu a funccedilatildeo de alimentar os filhos Marcelina deixava o almoccedilo
adiantado quase pronto mas cabia a ele concluir algumas coisas aquecer a
comida e servi-la aos filhos O outro caso eacute o de Marina e Rui Marina sai de
casa cedo com as filhas para a escola onde trabalha como cozinheira Ela deixa
jaacute pronto o arroz e a carne restando ao marido e ao filho jovem temperar o feijatildeo
e refogar a verdura
Esses exemplos apontam para a necessidade de adaptaccedilatildeo agrave realidade
das mulheres rurais que buscam espaccedilos de trabalho remunerado fora dos siacutetios
onde moram e que contam com o apoio dos maridos pelo menos nas
experiecircncias que conheci em campo Os conflitos que permeiam esses ajustes
familiares se por ventura existirem natildeo foram declarados pelos interlocutores
Ao contraacuterio tanto mulheres quanto homens ao falarem sobre o assunto
expressaram naturalidade diante da situaccedilatildeo Eacute importante considerar que a
renda proveniente do trabalho feminino eacute usada para cobrir despesas familiares
e agraves vezes ateacute para cobrir pequenos custos de produccedilatildeo agriacutecola como relata
Solange (30 anos Itapeva - Presidente Bernardes) que trabalha como servente
em uma escola ldquoEu ganho um salaacuterio miacutenimo mas com esse dinheiro eu compro
coisas para a casa para mim e para minha menina ah eacute uma preocupaccedilatildeo a
menos jaacute aconteceu de ter que comprar adubo e pagar veterinaacuterio que veio ver
as vacasrdquo
113
As famiacutelias formadas por aposentados que representam a maioria nesta
pesquisa tecircm uma realidade cotidiana de trabalho que eacute menos ativa Executam
menos atividades no siacutetio embora natildeo deixem de trabalhar Ao falarem de seu
cotidiano os homens disseram que quase natildeo executam mais atividades
agriacutecolas como capina e roccedilado Fazem uma ou outra atividade como cuidar do
paiol do galinheiro da horta preparar a comida para dar aos porcos Fazem isso
ldquopara natildeo ficar parado de tudordquo conforme justificou Neacutelio (morador de Satildeo
Domingos em Porto Firme) Os homens afirmaram se sentirem desconfortaacuteveis
quando natildeo realizam algum trabalho no dia apenas evitam serviccedilos que exijam
grande esforccedilo fiacutesico
No caso das mulheres mais velhas elas continuam se responsabilizando
pela elaboraccedilatildeo das refeiccedilotildees e de todas as outras atividades domeacutesticas aleacutem
do cuidado com a horta e o quintal o que faz com que seu dia seja mais
dinacircmico Aleacutem do preparo das refeiccedilotildees elaboram tambeacutem cotidianamente
quitandas como broas e rosquinhas o que seraacute visto no proacuteximo capiacutetulo
114
5 CULTURA E PRAacuteTICAS ALIMENTARES NO SISTEMA FAMILIAR RURAL RELACcedilOtildeES COM A COMIDA PERMANEcircNCIAS E MUDANCcedilAS
ldquoA arte da cozinha eacute a mais brasileira de nossas artes A mais expressiva do nosso caraacuteter e a mais impregnada do nosso passadordquo
(Gilberto Freyre 1968)
Os toacutepicos de discussatildeo deste capiacutetulo estatildeo subdivididos nos seguintes
temas A discussatildeo sobre a comida considerada como ldquoforterdquo e a classificaccedilatildeo
da comida como cultura e como fator de necessidade fisioloacutegica as mudanccedilas
em curso na nos haacutebitos alimentares o papel ocupado pelo milho e seus
derivados na culinaacuteria cotidiana das famiacutelias a comida do cotidiano a comida
dos dias de festa e as relaccedilotildees de comensalidade nesses contextos os
alimentos comprados e os alimentos cultivados nos siacutetios as permanecircncias de
consumo e as mudanccedilas com a inserccedilatildeo de novos alimentos a mescla cultural
alimentar do tradicional com o moderno as manifestaccedilotildees de perpetuaccedilatildeo
tradicional na elaboraccedilatildeo das quitandas e as suas funccedilotildees no passado e no
presente nas praacuteticas alimentares do grupo pesquisado e por fim a oralidade
no saber fazer e na transmissatildeo das receitas
51 Comida ldquoforterdquo e comida ldquofraca contradiccedilotildees mudanccedilas e permanecircn-cias
Percebi nos depoimentos dos interlocutores a existecircncia de
categorizaccedilatildeo da comida entre ldquoforterdquo e ldquofracardquo Comida forte eacute aquela que
ldquosustentardquo sendo capaz de permitir um intervalo maior entre as refeiccedilotildees e ao
mesmo tempo executar as atividades mais pesadas sem sentir ldquofraquezardquo fiacutesica
Para eles isso tem a ver com a loacutegica de trabalho ou seja o objetivo eacute natildeo
precisar interromper as atividades com frequecircncia para se alimentar Os horaacuterios
apontados para as refeiccedilotildees satildeo cafeacute da manhatilde entre 530 e 600 merenda33
entre 830 e 900 almoccedilo entre 1100 e 1130 merenda da tarde entre 1430 e
1500 e jantar entre 630 e 1900 Em algumas famiacutelias foi citada a ldquomerenda da
noiterdquo que eacute feita pouco antes de dormir
33 ldquoMerendardquo eacute o termo que todos usam para se referir ao que se come nos intervalos entre o cafeacute da
manhatilde e o almoccedilo e entre o almoccedilo e o jantar e agrave noite antes de dormir
115
As informaccedilotildees relativas aos horaacuterios satildeo semelhantes para todas as
famiacutelias inclusive os aposentados disseram manter o ritual de acordar cedo
ainda que suas atividades de trabalho natildeo sejam mais intensas como no
passado
A percepccedilatildeo sobre ldquocomida forterdquo das famiacutelias se assemelha agravequela
discutida por Brandatildeo (1981) em sua pesquisa com agricultores em Goiacircnia O
autor aponta que para o grupo que pesquisou a relaccedilatildeo fortefraco que
atribuiacuteam agrave comida estava diretamente ligada agrave capacidade desse alimento em
garantir ao agricultor maior tempo de trabalho sem sentir fome
Homem forte eacute o homem sadio e resistente para o trabalho A comida forte eacute a que ldquotem sustanccedilardquo cujos efeitos satildeo reconhecidos de dois modos a) na sua capacidade de manter o trabalhador ldquoalimentadordquo por mais tempo sem vontade de comer de novo b) no seu poder de produzir e de conservar mais energia para a atividade braccedilal Eacute neste sentido que a ldquocomida forterdquo equivale ao ldquoalimentordquo categoria de que se exclui a ldquocomida fracardquo (BRANDAcircO 1981 p 109-110)
Para meus interlocutores comida forte eacute principalmente aquela feita com
gordura suiacutena Essa observaccedilatildeo eacute feita em contraposiccedilatildeo ao oacuteleo vegetal que eacute
um produto considerado ldquofracordquo e portanto natildeo oferece a ldquosustanccedila34rdquo desejada
por eles
Para quem trabalha na roccedila a comida feita com oacuteleo natildeo daacute muita sustanccedila A pessoa fica com fome fica meio fraco logo depois A gordura de porco segura mais (Maria 66 anos moradora do Coacuterrego de Itapeva Presidente Bernardes MG 2015)
Aqui se fizer a comida com oacuteleo a barriga comeccedila a roncar rapidinho o oacuteleo eacute fraco natildeo sustenta a gordura de porco eacute forte no serviccedilo que a gente mexe assim que eacute pesado tem de comer comida que sustenta (Carlos 49 anos morador de Posses Porto Firme MG 2015)
Sahlins (2003) ao discutir sobre a categoria de ldquoforccedilardquo atribuiacuteda a
comida relata que algumas culturas destacando a norte americana tem na
carne essa representaccedilatildeo fazendo dela um alimento baacutesico em sua dieta Pela
mesma razatildeo eacute grande consumidora de bacon No puacuteblico da pesquisa a
representaccedilatildeo da gordura e da carne tem uma aproximaccedilatildeo ao que eacute discutido
pelo autor por se tratar de alimento de origem animal como responsaacutevel pela
ldquoforccedilardquo Poreacutem a relaccedilatildeo de forccedila para consumo de carne e de bacon na cultura
34 O termo eacute a forma popular dada a ldquosubstacircnciardquo A capacidade de um alimento dar forccedila energia e
sustentar a fome
116
norte americana estaacute atrelada agrave fator socioeconocircmico como siacutembolo de riqueza
Para o grupo pesquisado a forccedila estaacute atrelada agrave capacidade que a gordura de
porco tem de ampliar o tempo de saciedade mas tambeacutem pelo paladar que
confere agrave comida Neste uacuteltimo aspecto ou seja o da preferecircncia pelo sabor da
gordura se comparada ao oacuteleo Essa preferecircncia eacute tambeacutem justificada pela razatildeo
praacutetica do uso da gordura que eacute o de ser um alimento mais forte e o que melhor
daacute sustentaccedilatildeo
Zaluar (1979) observou a importacircncia da classificaccedilatildeo da comida em
estudo com comunidade de baixa renda na aacuterea urbana Descreve que o grupo
classifica alimentos que consideram como ldquocomidasrdquo porque conferem
saciedade (carne gordura de porco arroz feijatildeo e macarratildeo) e alimentos que
apenas ldquoenganam a fomerdquo (saladas frutas verduras peixe etc) servindo para
o grupo apenas como complemento Nesta classificaccedilatildeo haacute uma diferenccedila do
conceito de comida que se difere de alimento atribuiacuteda por DaMatta (1987)
Tanto no caso do grupo pesquisado por Zaluar na aacuterea urbana quanto no grupo
que pesquisei em aacuterea rural a razatildeo praacutetica para classificar alimentos como
forte estaacute associada agrave necessidade de garantir condiccedilotildees fisioloacutegicas no tempo
dedicado ao trabalho pesado
No grupo que pesquisei visando facilitar o consumo da gordura mais da
metade das famiacutelias cria suiacutenos para essa finalidade Engordam um animal de
cada vez Em apenas uma dessas famiacutelias cria-se um nuacutemero maior para
comercializaccedilatildeo do animal
Haacute um ditado que diz que ldquodo porco soacute natildeo se aproveita o gritordquo pois eacute
possiacutevel usar tambeacutem o intestino para envolver as massas de linguiccedilas e
chouriccedilos o peacute o rabo a orelha e o focinho para feijoada a pele para fazer
torresmo Natildeo eacute difiacutecil entender porque a criaccedilatildeo dos suiacutenos caipiras demonstrou
ser tatildeo importante no grupo pesquisado A alimentaccedilatildeo dos porcos pode ser
produzida nos proacuteprios siacutetios como o fubaacute a cana de accediluacutecar a silagem de
mandioca e ateacute aboacuteboras e batatas doces cozidas misturadas ao fubaacute Nos siacutetios
que visitei o mais usado era o fubaacute
Segundo os agricultores que ldquoengordam o capadordquo35 o animal eacute abatido
sempre que a gordura acaba mas mata-se tambeacutem em veacutespera de festas como
35 Termo que escutei com frequecircncia durante a pesquisa Trata-se do porco castrado destinado agrave engorda
117
natal e ano novo e ainda em casamentos e demais festividades que acontecem
na aacuterea rural Em 2012 na festa de bodas de ouro dos sogros de Lola moradores
da comunidade de Xopotoacute em Presidente Bernardes parte da criaccedilatildeo existente
no siacutetio foi abatida Segundo Lola ldquomatamos dois capados de 17 arrobas e mais
de 15 galinhas caipirasa carne de boi noacutes compramosah e muita linguiccedila
tambeacutemrdquo Da mesma forma Eliana (69 anos moradora de Itapeva em
Presidente Bernardes) compartilhou que para a sua festa de bodas de ouro com
Saturnino ocorrida em junho de 2014 no quintal da casa a famiacutelia matou dois
suiacutenos e aproximadamente 10 frangos caipiras
No cotidiano das famiacutelias engordar um porco no quintal tem a funccedilatildeo
tanto de obter a gordura (banha) como a carne que na maioria das casas eacute
conservada na gordura O que mais ocorre eacute a carne acabar primeiro do que a
gordura Se em tempos passados usar a gordura para conservar as carnes era
uma necessidade jaacute que natildeo havia geladeira atualmente esse haacutebito permanece
por razotildees culturais e tambeacutem pelo sabor diferenciado prevalecendo assim seu
consumo como apontado no depoimento de Laeacutercio 68 anos
Mesmo tendo geladeira a gente ainda conserva a carne na gordura de porco tempera a carne hoje amanhatilde a gente cozinha e frita um pouco quando ela estaacute coradinha a gente potildee na gordura e ela pode ficar ateacute 3 4 meses na gordura natildeo estraga natildeo Uma parte a gente ateacute potildee na geladeira e congela mas natildeo eacute gostoso igual natildeo Muda muito com o frango eacute a mesma coisa Se a gente arruma ele para comer logo depois que mata o sabor eacute um se congela quando vai comer depois eacute outro gosto Natildeo fica bom (Laeacutercio morador de Itapeva em Presidente Bernardes MG 2015)
Tambeacutem na aacuterea urbana o consumo da gordura de porco tem suas
ramificaccedilotildees Natildeo raro eacute possiacutevel verificar em lojas especializadas em produtos
artesanais em Minas Gerais principalmente em lanchonetes de beira de estrada
e pequenos armazeacutens a venda do chamado ldquoporco na latardquo
O sabor conferido agrave comida foi constantemente relacionado com a
gordura suiacutena Os interlocutores deixaram transparecer em suas falas que a
apreciaccedilatildeo do sabor da comida refogada na gordura tem suas raiacutezes no gosto
herdado de geraccedilotildees passadas Cresceram comendo dessa forma Todos
afirmaram preferir o sabor da comida preparada na gordura agrave que eacute feita no oacuteleo
principalmente a verdura o feijatildeo e o arroz como declara Afonso (79 anos
morador de Ribeiratildeo em Presidente Bernardes) ldquoPara mim a verdura tem que
ser feita na gorduraa couve na gordura tem outro saborrdquo e Gilberto (75 anos
118
morador de Manja em Piranga) ldquoA comida feita na gordura de porco eacute mais
saborosa a gente jaacute acostumou com o sabor a couve feita no oacuteleo fica lisa na
gordura ela fica suculentardquo
A gordura eacute usada principalmente para refogar36 hortaliccedilas legumes e
feijatildeo Todos as famiacutelias apreciam a couve refogada na gorduraldquoDeus o livre
de comer uma verdura feita com oacuteleo natildeo fica gostoso do mesmo jeitordquo
Verdura eacute o termo utilizado pelos interlocutores para todos os produtos derivados
da horta inclusive os legumes Encontramos em Frieiro (1982) a explicaccedilatildeo
sobre essa heranccedila cultural
Eacute de recente data o uso de gorduras vegetais alimentiacutecias Antes natildeo era assim a gordura geralmente usada era a de toucinho a banha de porco Os dois alimentos de maior importacircncia para a gente mineira sempre foram o feijatildeo e o toucinho Feijatildeo eacute que escora a casa diz um ditado popular Sim e o toucinho daacute substacircncia ao feijatildeo podia agregar-se Sem a banha que o tempera seria comestiacutevel ldquoo feijatildeo nosso de cada diardquo A comida tradicional dos mineiros nada em banha de porco Dos assados e frituras de todos os guisados e ensopados das sopas dos molhos e farofas pinga a gordura em que satildeo preparados (FRIEIRO 1982 p 156)
Garcia (2013) discute a relaccedilatildeo de comportamentos culturais associados
agrave alimentaccedilatildeo afirmando que a heranccedila do gosto por certo tipo de comida e pela
forma de preparaccedilatildeo eacute responsaacutevel na maioria das vezes pela resistecircncia em
adotar praacuteticas novas e experimentar comidas diferentes e aceitar novos sabores
e texturas ao paladar tradicional Uma das razotildees para a couve permanecer
como verdura predileta do cotidiano natildeo eacute apenas por ser a hortaliccedila mais
resistente da horta mas principalmente pela sua preparaccedilatildeo combinada com a
gordura de porco Essa forma de preparaccedilatildeo compreende aquele ldquosistema
culinaacuteriordquo tratado por Poulain (2013 e 2014) e Fischler (1979 e 1995) que
envolvem regras determinantes (crenccedilas valores siacutembolos representaccedilotildees e
haacutebitos) na escolha preparo e consumo de alguns alimentos O que Sahlins
(2003) chama de ldquorazotildees culturaisrdquo que envolvem o haacutebito alimentar Essa
discussatildeo de sistema culinaacuterio se aplica tambeacutem a outras praacuteticas tradicionais
que fazem parte do grupo pesquisado como a tradiccedilatildeo de fazer as proacuteprias
quitandas mais consumidas
36 Refogar segundo Cacircmara Cascudo (2004 p 522) significa ldquoferver na gordurardquo
119
A estrateacutegia de quem natildeo tem essa criaccedilatildeo no siacutetio eacute comprar a gordura
produzida pelos vizinhos ou mesmo no accedilougue da cidade Eacute comum ocorrer o
abate em parceria familiar ou com a participaccedilatildeo de vizinhos proacuteximos com a
distribuiccedilatildeo entre eles das partes do animal mesmo porque para o abate satildeo
necessaacuterias pelo menos trecircs pessoas segundo a explicaccedilatildeo de Lola O sistema
de partilha no abate de suiacutenos eacute tradicional em muitas aacutereas rurais brasileiras e
uma heranccedila dos portugueses Moura (2013) em seu interessante livro sobre a
tradiccedilatildeo dos embutidos e da produccedilatildeo de suiacuteno caipira na regiatildeo de Traacutes-os-
Montes e Auto Douro em Portugal mostra que os procedimentos de criaccedilatildeo
matanccedila e distribuiccedilatildeo das carnes se assemelham muito agraves que ocorrem no meio
rural brasileiro Tambeacutem Cacircndido (1982) relata em sua pesquisa como se dava
o processo relativo agrave distribuiccedilatildeo da carne suiacutena e de caccedila entre os caipiras
paulistas
Segundo os velhos desde sempre eacute haacutebito ndash quase se diria ndash instituiccedilatildeo a oferta daqueles tipos de carne aos vizinhos imediatos que moram agrave vista ou constituem uma unidade vicinal Quando se mata um porco ou uma caccedila envia-se um pedaccedilo a cada vizinho () Do ponto de vista alimentar essa praacutetica funciona como uma forma de regularizaccedilatildeo do abastecimento caacuterneo jaacute que cada um mata um porco de tempos em tempos (CAcircNDIDO 1982 p 163-164)
Compreendo que este contexto de sociabilidade entre vizinhos eou
familiares que envolve tambeacutem doar ou receber uma parte do animal se
assemelha agrave relaccedilatildeo ldquodaacutediva-trocardquo discutida por Mauss (2003) como forma de
manter a sociabilidade os laccedilos e a dependecircncia reciacuteproca entre os grupos No
caso de vizinhos que ajudam na atividade quando aquele que recebeu vier a
matar o seu animal a reciprocidade ocorreraacute ou seja ele doaraacute ao outro vizinho
parte do animal O que tambeacutem se aproxima do que Cacircndido (1982) discute
sobre a informalidade e obrigaccedilatildeo moral que compotildee as relaccedilotildees de mutiratildeo no
meio rural
Mas haacute nesse sistema algo mais do que simplesmente uma troca de
favor como no entendimento de Mauss (2003) de que a daacutediva natildeo eacute meramente
uma retribuiccedilatildeo formal ou proveniente de um contrato verbal Ela se constitui em
uma relaccedilatildeo que envolve respeito e um tipo de acordo que eacute simboacutelico tanto
assim que a parte da carne a ser doada eacute escolhida pelo doador sem nenhum
acordo anterior
120
Apesar do sabor da gordura de porco ser preferido ao oacuteleo em todas as
famiacutelias em algumas esse consumo tem sido reduzido como nas famiacutelias de
Zefa e Armando e de Maria e Laeacutercio Nos dois casos haacute restriccedilotildees alimentares
para os filhos que satildeo transplantados renais37 Em funccedilatildeo disso os pais jaacute
aposentados optaram pela reduccedilatildeo do consumo de gordura de porco e outros
alimentos gordurosos Disseram que por um tempo tentaram acompanhar
totalmente a dieta dos filhos mas natildeo conseguiram sucesso por sentirem falta
tanto da gordura quanto da carne suiacutena Assim a comida tem sido preparada de
forma separada Como esse preparo separado eacute mais trabalhoso Zefa 67 anos
e o marido 75 anos continuam no esforccedilo de adaptaccedilatildeo ao consumo do oacuteleo
demonstrando solidariedade ao filho 42 anos cuja abstinecircncia alimentar tem
sido difiacutecil
Os outros dois casos de restriccedilatildeo agrave gordura de porco satildeo de mulheres
que demonstraram preocupaccedilatildeo com a sauacutede embora natildeo tenham apontado
nenhum problema especifico Relacionam o consumo da gordura como
prejudicial e em funccedilatildeo disso tambeacutem tecircm tentado reduzir o seu consumo Nilsa
(42 anos moradora de Satildeo Domingos em Porto Firme) justificou ldquoTodo mundo
fala que gordura de porco faz mal para a sauacutederdquo Na sua famiacutelia tem havido
resistecircncia por parte do marido que natildeo abre matildeo da carne de porco e da verdura
refogada na gordura Embora ela admita preferir o sabor da comida com a
gordura de porco acredita que para ter uma qualidade de vida melhor devem
abrir matildeo de seu consumo O marido discorda da esposa natildeo abrindo matildeo do
consumo da gordura e nem da carne de porco A diminuiccedilatildeo tem ocorrido com
dificuldade e tem gerado algum tipo de conflito sobre as escolhas alimentares
deste casal que mora sozinho pois os filhos estudam em outras cidades
O depoimento acima de Nilsa estaacute relacionado agraves divulgaccedilotildees sobre
sauacutede em programas de televisatildeo matinais que ela informou assistir de vez em
quando enquanto cuida dos afazeres da casa Informaccedilotildees sobre pesquisas de
alimentos e sobre sauacutede tecircm sido divulgadas frequentemente pelos meios de
comunicaccedilatildeo O risco de tais informaccedilotildees eacute confundir as pessoas quando natildeo
se faz uma reflexatildeo sobre o assunto Para o consumidor leigo o resultado de
37 Interessante a coincidecircncia de haver dois adultos jovens do sexo masculino com problemas renais e que
passaram por transplante Ambas famiacutelias pertencem agrave mesma comunidade mas natildeo haacute grau de parentesco entre eles
121
uma pesquisa divulgada em meios de comunicaccedilatildeo pode dar uma ideia
distorcida sobre o consumo de um alimento No caso de Nilsa ela demonstrou
considerar que o consumo de gordura de porco prejudica a sauacutede de sua famiacutelia
baseado no que ldquoescuta dizerrdquo Ainda assim houve um momento da conversa
em que ela ponderou criticamente ldquoAgora eu natildeo sei porque faz malnossos
pais e avoacutes a vida inteira comeram comida com gordura e natildeo sei de nenhum
deles que ficou doente por causa dissordquo
Em relaccedilatildeo agrave carne vermelha e a gordura principalmente o bacon e
outras carnes processadas a Organizaccedilatildeo Mundial de Sauacutede (OMS) acaba de
publicar o relatoacuterio do International Agency for Research on Cancer (IARC)38
sobre a associaccedilatildeo do consumo desses alimentos ao cacircncer de intestino O
resultado da pesquisa foi amplamente divulgado por jornais de televisatildeo e na
internet Eacute constante a divulgaccedilatildeo de novas pesquisas de alimentos associados
agrave sauacutede repassar esta informaccedilatildeo eacute funccedilatildeo da OMS como pondera Contreras
(2015) No entanto vaacuterios alimentos jaacute foram apontados como vilotildees da sauacutede
e tempos depois a partir de novas pesquisas deixaram de ser Em funccedilatildeo disso
Fischler (2015) denomina essa situaccedilatildeo como uma espeacutecie de cacofonia sobre
o tema da comida jaacute que o conhecimento cientiacutefico eacute dinacircmico e passiacutevel de
sofrer alteraccedilotildees e cita o exemplo do cafeacute que foi classificado como canceriacutegeno
para depois ser considerado como siacutembolo de longevidade
Profissionais de sauacutede e socioacutelogos da alimentaccedilatildeo tecircm se manifestado
publicamente a respeito da divulgaccedilatildeo recente sobre a carne vermelha Alertam
para o risco que uma leitura apressada sobre o assunto possa gerar ao comedor
fazendo com que abandone por completo o consumo de carne e com isso
apresente problemas de outra natureza por carecircncia de proteiacutenas por exemplo
Destacam a necessidade de relativizar e discutir mais sobre o quanto se come
de um determinado alimento O que natildeo se deve eacute ldquodemonizar alimentosrdquo
pondera Rivera (2015) para natildeo gerar pacircnico desnecessaacuterio nos consumidores
ldquoEs necesaria una estrategia de comunicacioacuten que explique bien las
conclusiones de un informe sin caer en el dramardquo esclarece o antropoacutelogo Xavier
Medina (2015) Para a antropoacuteloga Vilagrave (2015) falar dos riscos agrave sauacutede causado
por alimentos que fazem parte da cultura alimentar de boa parte da populaccedilatildeo
38 Disponiacutevel em httpwwwiarcfrenmedia-centrepr2015pdfspr240_Spdf Acesso em 28 out 2015
122
mundial eacute assunto que merece muito cuidado Assim defende que o mais
interessante seria divulgar que as pessoas sem quadro de doenccedilas podem
comer de tudo mas sempre com moderaccedilatildeo
Outra famiacutelia entrevistada a de Carmem (48 anos moradora de Jacuba
em Porto Firme) tem optado por reduzir o consumo de vaacuterios alimentos aos
quais sempre esteve habituada em funccedilatildeo da dieta de emagrecimento por
recomendaccedilatildeo profissional Assim abriu matildeo da carne e da gordura de porco
de alimentos que contenham gluacuteten do leite de vaca e seus derivados Como no
caso anterior seu marido tambeacutem natildeo adotou a mesma dieta A diferenccedila eacute que
ela prepara separadamente a comida do casal39 No dia a dia Carmem tem uma
atividade de trabalho pesada cuida da casa da horta prepara todas as
refeiccedilotildees tira leite lava o curral varre o quintal em torno da casa ndash atividade que
estava fazendo quando cheguei em sua casa pela manhatilde Ela reclama que sente
fome mas ainda assim estaacute resistindo e seguindo a restriccedilatildeo alimentar
Eu agora soacute posso tomar leite de soja com biscoito de polvilho de manhatilde cedo ai eu tomo isso mas eu tenho que tirar leite muito cedo quando eu acabo eu jaacute estou morrendo de fome aquilo natildeo sustenta ai eu vou comer a mesma coisa de novo Natildeo eu faccedilo um mingau de fubaacute natildeo fica gostoso como como o com leite de vaca mas ajuda a esperar o almoccedilo (Carmem 48 anos moradora de Jacuba em Porto Firme MG 2015)
Nossa conversa continuou na cozinha onde a observei preparando as
comidas separadas Almoccedilamos agraves 1130 Comi a mesma comida feita para o
marido arroz feijatildeo couve carne de porco cozida e meio frita angu e moranga
Carmem comeu moranga com feijatildeo que cozinhou separadamente sem
gordura e sem oacuteleo temperados com sal e alho ovo frito e couve refogada no
oacuteleo de soja
Carmem demonstrou ansiedade em relaccedilatildeo ao que comer ao longo do
dia sendo que parte dessa preocupaccedilatildeo estaacute presente em seu depoimento
acima A outra ansiedade foi demonstrada pela dificuldade em obter resultados
satisfatoacuterios em relaccedilatildeo agrave perda de peso Ela precisa fazer a dieta mas ao
mesmo tempo precisa se sentir ldquoforterdquo para realizar os trabalhos no siacutetio A
situaccedilatildeo vivenciada por ela estaacute relacionada agrave discussatildeo feita por Arnaiz (2005) e
Fischler (1995 e 2015) sobre a ansiedade do comedor contemporacircneo Para os
39 Seus filhos tambeacutem estudam e moram em outras cidades
123
autores eacute cada vez mais difiacutecil saber o que se estaacute comendo e eacute tambeacutem mais
complexo fazer escolhas alimentares No processo de escolha o alimento
precisa ser de boa aparecircncia e qualidade ter baixas calorias natildeo fazer mal agrave
sauacutede natildeo ser caro Aleacutem disso o autor menciona a necessidade de
identificaccedilatildeo do alimento se identificar com a opccedilatildeo moral do comedor por
exemplo seu cultivo natildeo deve ser prejudicial ao meio ambiente natildeo deve utilizar
matildeo de obra escrava etc Tudo isso gera ansiedade na escolha do que comer
Dessa forma Fischler (1995 e 2015) defende que uma nova patologia estaacute
surgindo para aquelas pessoas obcecadas por dieta a ortorexia nervosa que
tem como uma de suas caracteriacutesticas o fato de uma pessoa passar mais de trecircs
horas diaacuterias preocupada com o que vai comer40
Haacute ainda o caso da famiacutelia de Joatildeo e Marli (81 e 72 anos
respectivamente aposentados moradores de Aacutegua Lima em Porto Firme) Em
seu siacutetio a atividade leiteira gera renda para o casal mas sobretudo para o filho
que administra a atividade e mora na cidade A famiacutelia optou por abandonar a
criaccedilatildeo extensiva de suiacutenos porque escutava falar ldquoque a gordura faz mal ao
coraccedilatildeordquo Em funccedilatildeo disso o consumo foi reduzido acreditando natildeo compensar
manter a criaccedilatildeo Aleacutem disso segundo Joatildeo antes havia muitos filhos em casa
para alimentar assim ldquoengordar o porcordquo era mais barato do que comprar a
carne e a gordura Embora tenham reduzido o uso da gordura de porco natildeo a
retiraram da dieta por completo Compram no accedilougue e ela continua sendo
usada dois dias na semana aproximadamente Como criam gado costuma-se
matar um animal e assim o consumo de carne de boi natildeo eacute raro nesta famiacutelia
como o eacute nas outras O depoimento de Joatildeo a seguir chama a atenccedilatildeo para o
fubaacute assunto que seraacute discutido no toacutepico especiacutefico mais agrave frente nesse
trabalho e essa parte de seu depoimento seraacute retomado na discussatildeo A
dificuldade de acessar o uacutenico moinho drsquoaacutegua existente na regiatildeo tambeacutem foi um
motivo que levou a famiacutelia a desistir da criaccedilatildeo dos suiacutenos
Eu engordava porco mas os meacutedicos estatildeo proibindo a gente de comer gordura ai nem engordo mais porco natildeoquando daacute vontade a gente compra um toucinho a carne compra sempre Tambeacutem natildeo compensa engordar natildeo porque o moinho de fazer fubaacute pra porco eacute longe daqui e esses fubaacutes moiacutedos nessas maquinas de hoje (eleacutetrica) nem os porcos gostam muito sabe a gente ateacute que tem um moinho
40 Mais informaccedilotildees sobre esse assunto ver Martins et al (2011)
124
bem pequeno aqui mas eacute soacute pra moer o milho para gente fazer angu e broa (Joatildeo morador de Aacutegua Limpa em Porto Firme MG 2015)
As situaccedilotildees das cinco famiacutelias citadas acima sinalizam o quanto mudar
o haacutebito alimentar e abrir matildeo do costume e do gosto aprendido eacute uma tarefa
difiacutecil mesmo que o apelo para isso seja a sauacutede principalmente quando o
alimento em questatildeo estaacute relacionado a uma atividade produtiva que tambeacutem
possui um apego tradicional como eacute o caso do porco caipira Para Bourdieu
(2007) formaccedilatildeo do gosto e a construccedilatildeo do haacutebito alimentar que eacute algo
aprendido na convivecircncia social sendo a famiacutelia o principal grupo de
aprendizado De Garine (1987) discute que em funccedilatildeo do haacutebito alimentar estar
ligado aos costumes herdados de geraccedilotildees passadas a mudanccedila de uma
alimentaccedilatildeo mais tradicional para uma industrializada natildeo ocorre facilmente
tampouco se daacute de maneira raacutepida Eacute um processo lento e que encontra
resistecircncia do comedor o quanto for possiacutevel
O oacuteleo vegetal eacute um desses exemplos de resistecircncia mas que aos
poucos se insere nas praacuteticas alimentares das famiacutelias Seu uso estaacute presente
em quase todas as casas pesquisadas exceto na famiacutelia de Eliana e Saturnino
que natildeo se adaptaram ao seu consumo para o preparo de nenhum alimento que
consomem no dia a dia No restante das famiacutelias o oacuteleo tem sido usado com
parcimocircnia principalmente para algumas frituras conforme os relatos a seguir
ldquoPorque o oacuteleo deixa a batata mais bonita e mais sequinha o peixe tambeacutem fica
melhor mais crocanterdquo (Margarida 74 anos moradora de Xopotoacute em Presidente
Bernardes) ldquoo arroz fica mais soltordquo (Luisa 57 anos moradora de Bom Retiro
em Porto Firme) ldquonatildeo uso mais gordura para fritar batata doce natildeo soacute oacuteleo
ateacute para lavar a panela eacute mais faacutecilrdquo (Juliana 48 anos moradora de Tatu em
Piranga)
Apesar da preferecircncia pela gordura suiacutena o oacuteleo vegetal tem dividido
espaccedilo com a gordura de porco no sistema culinaacuterio das famiacutelias Nestes casos
eacute um exemplo da possibilidade de introduccedilatildeo de um produto industrializado na
alimentaccedilatildeo sem que tenha sido necessaacuterio abrir matildeo radicalmente de um
produto tradicional excetuados os casos onde haacute restriccedilatildeo alimentar como jaacute
citado
O apego ao sabor e agrave crenccedila na capacidade de sustentaccedilatildeo alimentar
gerada pelo uso da gordura de porco faz com que seu consumo permaneccedila
125
como prioritaacuterio nas famiacutelias Poreacutem novos haacutebitos podem ser aprendidos
conforme argumenta Nevot (2011) Para este autor as mudanccedilas de haacutebitos
alimentares na sociedade atual satildeo permanentes Quanto mais novidades
alimentares emergem com novas tecnologias de produccedilatildeo novas informaccedilotildees
sobre os alimentos satildeo fornecidas ampliando a possibilidade de mudanccedilas de
haacutebitos Surge a necessidade de se aprender cada vez mais a escolher o que
comer Se por um lado herdamos haacutebitos alimentares as circunstacircncias nos
fazem adquirir outros novos
Por outro lado o excesso de novidades alimentares faz com que alguns
alimentos tradicionais sejam colocados em questatildeo gerando a anguacutestia
alimentar do comedor contemporacircneo apontada por Fischler (1995 2011 e
2015) No caso da gordura de porco de um lado estaacute um alimento habitual que
eacute heranccedila cultural tradicional e repassado oralmente por avoacutes e pais um
alimento considerado importante ldquoforterdquo de paladar agradaacutevel e que natildeo era
visto como prejudicial agrave sauacutede dos seus antepassados De outro lado existe a
preocupaccedilatildeo gerada nos tempos atuais que indica o mesmo alimento como
maleacutefico agrave sauacutede e portanto a ser evitado e substituiacutedo por um produto de fonte
vegetal e industrializado o oacuteleo
No grupo pesquisado a questatildeo relacionada agrave origem do oacuteleo vegetal
natildeo surgiu como preocupaccedilatildeo Nenhum interlocutor tocou no assunto da
transgenia associado a esse produto por exemplo Apenas destacaram como
pouco saudaacutevel o consumo da gordura do porco Por outro lado a opccedilatildeo da
maioria das famiacutelias em continuar a consumir a gordura de porco sinaliza uma
influecircncia mais acentuada dos fatores culturais em relaccedilatildeo aos fatores
nutricionais e cientiacuteficos na escolha dos alimentos questatildeo discutida por Garcia
(2009) e Mintz (2001)
511 Outras comidas ldquofortesrdquo
No capiacutetulo 2 utilizei Frieiro (1982) e Zemella (1951) para destacar a
importacircncia histoacuterica da criaccedilatildeo dos suiacutenos no quintal das casas com objetivo
de mitigar o problema da fome surgida durante a fase da mineraccedilatildeo em Minas
Gerais Surgiu daiacute o haacutebito de consumir a carne a gordura e o uso de outras
partes do animal adicionadas ao feijatildeo que se constituiacutea em alimento de grande
126
valor energeacutetico e proteico muito usado em funccedilatildeo disso como alimento dos
escravos Dessa mistura surgiu o que hoje conhecemos como feijoada O feijatildeo
foi tatildeo importante quanto o milho a mandioca a couve a gordura o toucinho e
o arroz para a manutenccedilatildeo das atividades mineradoras
No cotidiano alimentar das famiacutelias pesquisas eacute haacutebito cozinhar o feijatildeo
com toucinho que eacute tambeacutem considerado como alimento ldquoforterdquo O feijatildeo eacute item
diaacuterio nas refeiccedilotildees e seu consumo e cultivo tem laccedilos de heranccedila cultural e
histoacuterica assim como o suiacuteno caipira Apenas trecircs famiacutelias natildeo cultivam o feijatildeo
Uma parte do que eacute produzido eacute comercializada por seis famiacutelias nas demais
em 31 delas a produccedilatildeo destina-se apenas ao autoconsumo Durante a
pesquisa de campo algumas famiacutelias estavam comeccedilando a fase da colheita e
pude observar algumas pessoas no trabalho homens no geral Eacute um trabalho
difiacutecil pois eacute feita no modo tradicional arrancados agrave matildeo O trabalho das
mulheres se daacute principalmente na hora de bater e limpar o produto que seraacute
armazenado no paiol
Para aleacutem da gordura da carne suiacutena e do feijatildeo outros alimentos satildeo
considerados como sendo ldquofortesrdquo para manter o organismo bem nutrido para o
trabalho e satildeo consumidos com muita frequecircncia Satildeo eles o arroz a batata
doce a mandioca o angu e as farinhas de milho e de mandioca
O arroz consumido diariamente natildeo eacute mais produzido pelas famiacutelias
pela dificuldade que seu cultivo tem representado nos uacuteltimos anos segundo os
depoimentos de alguns dos interlocutores
Noacutes colhiacuteamos muito arroz natildeo precisava comprar mas jaacute tem uns cinco anos que a gente parou de mexer com arroz porque fica muito caro produzir do que comprar e tem os passarinhos que atacam a plantaccedilatildeo de arroz um passarinho preto que a gente chama de chupin A gente natildeo pode fazer nada contra eles porque eacute proibido mas quando chega a hora da colheita natildeo tem mais quase nada nos cachinhos de arroz (Lucio 46 anos morador de Bom Jesus do Bacalhau em Piranga MG 2015)
Ateacute uns anos atraacutes a gente plantava arroz socava no pilatildeo soacute para o consumo da famiacuteliamas comeccedilou a dar problema na uacuteltima vez que plantamos quando chegou a eacutepoca de cachear veio o sol muito forte ai natildeo saiu o cachoai resolvemos acabar com a plantaccedilatildeo (Onofre 67 anos morador de Mestre Campos em Piranga MG 2015)
Os entrevistados mencionaram uma diferenccedila no sabor e no aspecto do
arroz industrializado em comparaccedilatildeo ao que cultivavam como mostra o
depoimento de Mafalda (57 anos moradora de Ribeiratildeo em Presidente
127
Bernardes) a seguir Destacaram que o aspecto do tradicional que eles
cultivavam era mais grosseiro e amarelado e que o sabor era diferente aleacutem de
ser mais macio e poroso o que fazia com que o tempero impregnasse melhor
Por outro lado disseram que o industrializado leva menos tempo para ser cozido
Apesar de preferirem o arroz tradicional adquirir arroz no mercado atualmente
eacute mais interessante do que cultivaacute-lo levando-se em consideraccedilatildeo o custo-
benefiacutecio Mais uma vez aparecem aqui aspectos que pesam na escolha
alimentar semelhante ao que acontece com a escolha do oacuteleo vegetal e da
gordura de porco Mafalda expotildee em seu depoimento os aspectos que
considera positivos do arroz atual industrializado (ficar soltinho com a cor clara)
e os negativos (menos saboroso demora para absorver o tempero natildeo daacute a
ldquoligardquo considerada necessaacuteria na elaboraccedilatildeo do arroz doce)
Tem bastante diferenccedila O arroz que a gente colhia ele nunca ficava clarinho sempre tinhas uns gratildeos amarelos no meio poreacutem ele era um arroz mais gostoso Ele era mais macio e pegava mais o tempero Ele era melhor tambeacutem para fazer arroz doce porque ele dava mais liga Esses comprados natildeo daacute liga entatildeo o arroz de hoje natildeo eacute igual ao que a gente fazia antes Mas ele tambeacutem natildeo ficava soltinho na panela como o arroz que a gente refoga hoje Antigamente para ele ficar soltinho a gente tinha que espremer um limatildeo Hoje ficou mais faacutecil pra gente fazer (Mafalda moradora de Ribeiratildeo em Presidente Bernardes MG 2015)
Os demais alimentos considerados ldquofortesrdquo como a mandioca a batata
doce e o milho satildeo produzidos nos siacutetios e satildeo consumidos quase que
cotidianamente seja no cafeacute da manhatilde no almoccedilo e no jantar
A batata doce eacute quase sempre frita ou assada na brasa do fogatildeo a lenha
Usa-se consumi-la pela manhatilde acompanhada de cafeacute41 O mesmo ocorre em
relaccedilatildeo agrave mandioca Mas para consumo no almoccedilo e jantar o mais comum eacute
servi-la cozida ou ensopada com carne
O polvilho derivado da mandioca tambeacutem natildeo eacute mais produzido pelas
famiacutelias em todas elas esse produto agora eacute comprado O polvilho eacute usado
principalmente para fazer brevidade um tipo de bolo que eacute elaborado
esporadicamente Observei que em todas as casas haacute o consumo do biscoito de
polvilho assado poreacutem eacute tambeacutem comprado no mercado Agraves vezes se faz o
biscoito de polvilho frito mas as mulheres alegam que por espirrar muito durante
41 O cafeacute eacute feito em aacutegua adoccedilada e passado no coador de pano Natildeo vi o uso de coadores de papel em
nenhuma das casas
128
a fritura e ser bom para comer apenas por algumas horas apoacutes o preparo ele
natildeo eacute mais habitual como no passado Foi um tempo segundo as mulheres em
que sempre havia muita gente para comer e os produtos industrializados eram
parcos e caros no mercado Aleacutem disso o acesso aos mercados era mais difiacutecil
tornando necessaacuterio produzir praticamente tudo o que era destinado a
alimentaccedilatildeo das famiacutelias Os depoimentos a seguir de Anita (71 anos moradora
de Manja em Piranga) e de Lena (70 anos moradora de Ribeiratildeo em Presidente
Bernardes) tambeacutem sinalizam assim como ocorreu com o arroz que em razatildeo
da praticidade alguns modos tradicionais satildeo substituiacutedas ou passam a ser
retomados apenas em momentos especiacuteficos como naqueles que envolvem
reuniatildeo familiar e um grupo maior de pessoas nas casas Lena menciona o fato
da reduccedilatildeo do tamanho das famiacutelias quando comparadas com as famiacutelias dos
antepassados Outros entrevistados fizeram a observaccedilatildeo de que ldquoantes havia
muita gente na roccedilardquo ldquoantigamente as famiacutelias eram maioresrdquo A reduccedilatildeo do
nuacutemero de pessoas nas famiacutelias ndash na minha pesquisa o tamanho meacutedio eacute 36
pessoas por famiacutelia ndash interfere nas praacuteticas alimentares seja haacute menos pessoas
para se alimentar no dia a dia seja pelo fato de natildeo haver quem ajude na cozinha
e na elaboraccedilatildeo das quitandas Motivos que geram um certo tipo de desacircnimo
em investir em pratos mais trabalhosos que eram feitos e socializados nos
grupos familiares de antigamente
ldquoNa casa da minha matildee fazia muito polvilho Naquela eacutepoca todo mundo fazia muita brevidade agora ficou tatildeo faacutecil comprar o polvilho mas daacute muito trabalho fazer o biscoito frito e o assado natildeo eacute caro no mercado quase todo mundo prefere comprarrdquo (Anita moradora de Manja Piranga MG 2015)
ldquoEu fazia muito biscoito de polvilho frito quando os meninos eram pequenos eles gostavam Mas hoje eu quase natildeo faccedilo maissoacute se eles quando estatildeo aqui me pedem ai eu faccedilo Soacute para noacutes dois a gente compra esse do mercado mesmordquo (Lena moradora de Ribeiratildeo em Presidente Bernardes MG 2015)
Aleacutem do polvilho obtido da mandioca o milho e os seus derivados fazem
parte da cultura alimentar mineira como foi mostrado no capiacutetulo 2 a partir dos
apontamentos de Frieiro (1982) Zemella (1951) Meneses (2007) Arruda
(1999) Cacircmara Cascudo (2004) e Abdala (2007) O milho nesse periacuteodo foi
considerado mais importante do que a mandioca em funccedilatildeo de ser muito usado
tambeacutem para alimentaccedilatildeo animal conforme Meneses (2007) Com o passar dos
anos o milho assumiu lugar mais destacado do que a mandioca na culinaacuteria
129
mineira conforme Frieiro (1982) e Abdala (2007) A regiatildeo da pesquisa como jaacute
visto no referido capiacutetulo eacute uma das primeiras a serem ocupadas por ocasiatildeo da
mineraccedilatildeo em Minas Gerais Isso pode ter influenciado a permanecircncia da
tradiccedilatildeo do consumo do fubaacute que como mostrarei a seguir tem presenccedila
marcante na dieta das famiacutelias
52 Consideraccedilotildees sobre a importacircncia do milho e do fubaacute
Oraccedilatildeo ao Milho (Cora Coralina)
Fui o angu pesado e constante do escravo na exaustatildeo do eito Sou a broa grosseira e modesta do pequeno sitiante Sou a farinha econocircmica do proprietaacuterio sou a polenta do imigrante e a amiga dos que comeccedilam a vida em terra estranha Alimento de porcos e do triste mu de carga o que me planta natildeo levanta comeacutercio nem avantaja dinheiro Sou apenas a fartura generosa e despreocupada dos paioacuteis Sou o cocho abastecido donde rumina o gado Sou o canto festivo dos galos na gloacuteria do dia que amanhece Sou o cacarejo alegre das poedeiras agrave volta dos ninhos Sou a pobreza vegetal agradecida a voacutes Senhor que me fizestes necessaacuterio e humilde Sou o milho
Com exceccedilatildeo das famiacutelias de Antocircnio e Marieta e de Marilia todas as
outras cultivam o milho A produccedilatildeo eacute pequena e destinada agrave alimentaccedilatildeo
animal mas tambeacutem agrave elaboraccedilatildeo de fubaacute produzido em todos os siacutetios onde a
planta eacute cultivada Apenas uma famiacutelia possui moinho movido agrave aacutegua o restante
utiliza moinho eleacutetrico Na ocasiatildeo da pesquisa o moinho drsquoaacutegua era uma
raridade na aacuterea rural pesquisada segundo informaccedilatildeo dos entrevistados Tive
a oportunidade de ver um moinho muito antigo em funcionamento no siacutetio de
Manoel e Donana (72 e 54 anos respectivamente moradores de Limeira em
Porto Firme) (Figura 7) Este moinho tem sua estrutura feita em madeira e jaacute
apresentava sinais de sua idade com algumas peccedilas presas com arame O
trabalho eacute perfeito poreacutem lento Pertenceu aos pais de Manoel foi muito utilizado
no passado e permanece em uso para autoconsumo familiar O moinho se
localiza na margem da estrada por onde passa o coacuterrego A porta de acesso fica
130
constantemente entreaberta mas nunca houve roubo de fubaacute ou depredaccedilatildeo do
local
(a) (b)
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 7 ndash Moinho drsquoaacutegua no siacutetio de Manoel e Donana na Comunidade Limeira Porto Firme
A Figura 8 mostra o moinho eleacutetrico adotado atualmente pelas famiacutelias
O moinho da figura pertence agrave famiacutelia de Nanaacute e Custoacutedio na comunidade
Xopotoacute em Piranga Muito diferente do anterior executa o trabalho com maior
rapidez do que o de moinho drsquoaacutegua poreacutem com qualidade inferior como
apontado pelos entrevistados Neste tipo de moinho natildeo pode observar o
moinho sendo feito jaacute que ele segue direto para o pequeno silo acoplado agrave
maacutequina
Apesar da preferecircncia pelo fubaacute feito no moinho drsquoaacutegua meus
interlocutores afirmaram ter sido necessaacuteria a adaptaccedilatildeo ao moinho eleacutetrico que
se tornou mais usual principalmente em funccedilatildeo da reduccedilatildeo de aacutegua disponiacutevel
nos uacuteltimos anos Mencionaram ainda outro fator que consideram importante
para a reduccedilatildeo da utilizaccedilatildeo do moinho drsquoaacutegua Segundo eles as pessoas mais
velhas se importavam mais em manter os moinhos drsquoaacutegua por ser considerada
uma praacutetica tradicional mas quando os moinhos eleacutetricos surgiram o apelo agrave
praticidade falou mais alto e o moinho drsquoaacutegua foi perdendo espaccedilo nos siacutetios
administrados pelas geraccedilotildees mais novas
131
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 8 ndash Moinho eleacutetrico no siacutetio de Nanaacute e Custoacutedio na Comunidade Xopotoacute em Piranga
Antigamente muita gente tinha moinho drsquoaacutegua aqui mesmo tinham uns 3 ou 4 numa distacircncia de 5 Km por aquifoi acabando os velhos foram morrendo e os mais novos natildeo quiseram saber de mexer com isso natildeo (Alonso 82 anos morador de Xopotoacute em Presidente Bernardes MG 2015)
Os moinhos tocados a aacutegua ficam quase sempre mais longe da casa perto de onde corre uma aacutegua neacute O eleacutetrico pode ficar em qualquer lugar debaixo de uma coberta ou perto do paiol daacute menos trabalho e de primeiro tinha muita gente na roccedila natildeo tinha problema ter muito serviccedilo mas hoje dessa gente nova natildeo tem quase ningueacutem mais aqui (Francisco 64 anos morador de Satildeo Domingos em Porto Firme MG 2015)
A reduccedilatildeo no uso desses moinhos comeccedilou a ocorrer haacute
aproximadamente 15 anos quando ainda era possiacutevel encontrar mais facilmente
o ldquofubaacute de moinho drsquoagua para comprar Se por um lado a adoccedilatildeo do moinho
eleacutetrico facilitou o trabalho por outro o fubaacute produzido por ele sofreu alteraccedilatildeo
na textura e sabor Joatildeo (81 anos morador de Aacutegua Limpa em Porto Firme)
pondera que o fubaacute originado do moinho eleacutetrico ldquonatildeo agrada nem aos animaisrdquo
Segundo os depoimentos o fubaacute de moinho drsquoaacutegua era fino e mais
uacutemido A diferenccedila para o produto do moinho eleacutetrico eacute que ele produz um fubaacute
mais grosso e ressecado Essas caracteriacutesticas alteraram o sabor e a textura de
dois alimentos muito importantes na culinaacuteria da regiatildeo pesquisada a broa e o
132
angu Segundo as mulheres ldquoa broa de antes tinha mais ligardquo Assim para
melhorar sua textura a broa que era elaborada de puro fubaacute passou a ter a
adiccedilatildeo de uma parte de farinha de trigo
As discussotildees em torno das mudanccedilas ocasionadas no fubaacute foram
longas e contaram com participaccedilatildeo interessada de muitos homens que
culturalmente natildeo costumam a discutir assuntos culinaacuterios Talvez isso se
explique pelo fato de os produtos derivados do fubaacute serem tatildeo importantes na
alimentaccedilatildeo cotidiana de todas as famiacutelias e por ser utilizado uma maacutequina para
produzi-lo objeto considerado culturalmente como de domiacutenio masculino Em
funccedilatildeo da importacircncia desses alimentos considero interessante adicionar um
nuacutemero maior de depoimentos mesmo ciente de que em um vieacutes etnograacutefico
deve-se tomar cuidado com o excesso de depoimentos em que estejam
evidenciadas ideias semelhantes conforme observaccedilatildeo feita por Peirano (1995)
() pena que hoje quase natildeo acha mais fubaacute de moinho drsquoaacutegua o fubaacute era fininho e dava uma broa maciahoje as maacutequinas quase que torram o fubaacute A broa fica mais ou menos neacute Eu faccedilo uma broinha com rapadura que ficava muito deliciosa mesmo era quando feita com o fubaacute fino (Neuzeli 63 anos moradora de Vinte Alqueires em Porto Firme MG 2015)
A broa feita com fubaacute do moinho eleacutetrico fica muito solta o sabor da comida mudou muito taacute tudo muito mudado em tudo na roccedila (Vanilda 55 anos moradora de Mestre Campos em Piranga MG 2015)
Por ser raridade o fubaacute produzido no moinho drsquoaacutegua tem ganhado
valorizaccedilatildeo no mercado Encontrado agrave venda apenas nos mercados de produtos
artesanais o seu preccedilo eacute superior ao fubaacute industrializado Poucos produtores
colocam o produto agrave venda pois como a produccedilatildeo eacute pequena ela objetiva
atender agraves necessidades das famiacutelias como o caso de Manoel e Donana Ter
um moinho drsquoaacutegua na propriedade no periacuteodo colonial significava haver ali um
grande uso do fubaacute para diferentes funccedilotildees no local Era considerado na eacutepoca
um equipamento sofisticado segundo Andrade (2014) Atualmente ele eacute visto
como ultrapassado de trabalho lento e atividade trabalhosa perdendo seu
espaccedilo para a tecnologia oferecida pelo moinho eleacutetrico A relaccedilatildeo tradicional e
moderno referente aos moinhos reportam agraves diferentes geraccedilotildees no grupo
pesquisado Em vaacuterios depoimentos foi constante a associaccedilatildeo dos moinhos
drsquoaacutegua como objetos de desinteresse das geraccedilotildees mais novas Assim o
produto gerado pelo moinho tradicional apesar de ser preferido em termos de
133
sabor e textura natildeo eacute um argumento forte o suficiente para que seu uso se
mantenha sob os cuidados dos mais jovens
Ao tratar sobre as substituiccedilotildees dos equipamentos modernos pelos
tradicionais no preparo dos alimentos Giard (2012) discute que a mudanccedila natildeo
se daacute apenas pela substituiccedilatildeo do aparelho ou utensiacutelio mas tambeacutem da relaccedilatildeo
instrumental entre o utilizador o objeto utilizado O moinho dacuteaacutegua eacute mais
trabalhoso de ser utilizado porque se localizava distante das casas como o
exemplo daquele da famiacutelia que visitei Eacute preciso controlar o tempo e fazecirc-lo
parar de funcionar manualmente diferente do moinho eleacutetrico que desliga
sozinho Aleacutem disso a sua produccedilatildeo eacute lenta produz-se muito menos fubaacute no
moinho drsquoaacutegua do que no moinho eleacutetrico no mesmo espaccedilo de tempo Na
contemporaneidade em uma sociedade liacutequido-moderna adaptar-se agraves novas
tecnologias eacute uma forma de natildeo perder tempo como reflete Bauman (2009)
Para Giard (2012) algumas mudanccedilas nas praacuteticas alimentares satildeo inevitaacuteveis
e para usufruir as vantagens de uma cultura material eacute preciso estar pronto para
lidar com seus inconvenientes Em alguns casos a convivecircncia entre uma
praacutetica tradicional e uma moderna eacute possiacutevel mas nem sempre No caso do fubaacute
do moinho tradicional e do eleacutetrico por exemplo natildeo haacute alternativa Eacute preciso
fazer a escolha No caso do fubaacute produzido nos dois tipos de moinhos a
lembranccedila do produto tradicional ainda estaacute na memoacuteria inclusive a do paladar
como mostra a fala de Jonas
Fubaacute de moinho drsquoaacutegua eacute coisa rara demaisquando eu falo chego a sentir o gosto do bolo feito de fubaacute de antigamente e angu o angu de fubaacute de moinho drsquoaacutegua era alaranjado assim meio avermelhado hoje ele fica branco (Jonas 53 anos morador da comunidade Satildeo Domingos em Porto Firme MG 2015)
Sobre a ligaccedilatildeo entre memoacuteria e tradiccedilatildeo Giddens (2012) citando
Halbwachs (1992 p 100) diz que ldquoo passado desmorona mas soacute desvanece
na aparecircncia pois continua a existir no inconscienterdquo As observaccedilotildees sobre o
passado em que existia o moinho drsquoaacutegua foram carregadas de memoacuterias
lembranccedilas de sabores e por que natildeo de idealizaccedilatildeo Um passado que para
meus interlocutores se opotildee ao presente em vaacuterios aspectos dentre eles o
alimentar o artesanal versus o industrial ou seja ou moinho drsquoaacutegua versus o
moinho eleacutetrico Identificar e destacar a comida e os modos de fazer do passado
como no depoimento anterior de Jonas eacute um exemplo dos momentos em que
134
somos visitados pelos cheiros e sabores do passado discutido por Giard (2012)
sobre a memoacuteria afetiva e do quanto o presente e o passado se entrelaccedilam no
imaginaacuterio das pessoas quando se trata de falar sobre comida Para Moulin
(1975 apud GIARD 2012) o tipo de comida preferida de uma pessoa eacute sempre
o mesmo ou muito semelhante agravequele dos pais
Em suma noacutes comemos o que nossa matildee nos ensinou a comer Gostamos daquilo que ela gostava do doce ou do salgado da geleia de manhatilde ou dos cereais do chaacute ou do cafeacute de tal forma que eacute mais loacutegico acreditar que comemos nossas lembranccedilas as mais seguras temperadas de ternuras e de ritos que marcaram nossa primeira infacircncia (MOULIN apud GIARD 2012 p 251)
Depoimentos semelhantes agravequele dado por Vanilda sobre as mudanccedilas
relacionadas agrave comida ldquoo sabor da comida mudou muito estaacute tudo muito
mudado em tudo na roccedilardquo me conduziam a perguntar O que mudou na comida
As respostas dos interlocutores foram no sentido de apontar aqueles alimentos
que eram comuns para eles no passado na infacircncia e juventude e que jaacute natildeo
satildeo mais facilmente encontrados Aleacutem da gordura animal que jaacute foi discutida o
fubaacute tambeacutem permanece no cotidiano Mesmo natildeo sendo mais aquele preferido
produzido no moinho drsquoaacutegua ainda continua presente em vaacuterias elaboraccedilotildees de
quitandas principalmente na broa e no angu alimento que eacute consumido
diariamente pelas famiacutelias
O angu mineiro possui uma mistura simples fubaacute e aacutegua No capiacutetulo 2
mostrei que esse alimento natildeo usava sal pois era um produto raro na regiatildeo
mineradora e portanto caro
Outra maneira de consumir o angu aleacutem daquela servida em almoccedilo e
jantar foi apontada pelas famiacutelias como sendo muito apreciada pelos mais
velhos Eacute o angu adicionado ao leite e sal formando um mingau grosso
geralmente se comia assim na merenda usando a sobra do angu
Antigamente a merenda mais comumisso quando eu ainda era solteira era leite com angu no leite quente ou frio agraves vezes quando me daacute saudade de comer ai eu faccedilo quando a gente era crianccedila tinha sempre (Mercecircs 41 anos moradora de Bom Jesus do Bacalhau em Piranga MG 2015)
O curau doce agrave base de milho foi citado como uma iguaria feita em dias
festivos como no Natal O mingau salgado que tambeacutem eacute a base de fubaacute eacute muito
consumido principalmente em dias frios Trata-se do ldquomingau de couverdquo ou
135
ldquobambaacute de couverdquo Este prato eacute assim como a canjiquinha de milho um dos
caldos preferidos
A canjiquinha e o mingau de couve a gente faz muito aquimas quando estaacute muito calor natildeo neacute Porque eacute para comer bem quentinho que eacute gostoso eu tambeacutem faccedilo quando a comida do almoccedilo eacute pouca para o jantar ai a gente costuma jantar uma sopa coloca muita couve e cebolinha vocecirc natildeo conhece essas comidas natildeo neacute42 (Selma 68 anos moradora de Tatu em Piranga MG 2015)
Outro derivado do milho que jaacute foi muito consumido mas que raramente
eacute elaborado hoje eacute o cuscuz doce agrave base de fubaacute accediluacutecar aacutegua e queijo43 Esse
tipo de cuscuz segundo ele pode ser comido puro com cafeacute ou com leite Um
doce que segundo os interlocutores pode ser comido com colher por ter a
consistecircncia de uma farofa grossa Apesar de ser doce ele possui queijo na
mistura e que tambeacutem era preferencialmente consumido nas merendas
Geralmente eacute feito em uma panela proacutepria o cuscuzeiro mas as mulheres
disseram que nem todos tinham o cuscuzeiro por isso se fazia em uma panela
dentro de outra com aacutegua semelhante agrave teacutecnica do banho maria O cuscuz
salgado natildeo foi citado e quando perguntei sobre ele disseram natildeo ser conhecido
na regiatildeo
Antocircnio 78 anos que aleacutem de agricultor teve uma pequena padaria em
Piranga haacute deacutecadas atraacutes foi dentre os homens entrevistados o que se
mostrou mais interessado em culinaacuteria e relatou algumas de suas experiecircncias
como padeiro e sobre as quitandas patildees e bolos que fazia Contou
detalhadamente como era o cuscuz que fazia Ao compartilhar sua experiecircncia
e reviver as lembranccedilas de eacutepocas passadas Antonio demonstrou emoccedilatildeo pois
esse era um alimento que sentia prazer em fazer e em degustar Ele guarda as
receitas de tudo que fazia na memoacuteria revelando a importacircncia que a padaria
teve em sua vida
O cuscuz natildeo eacute mais elaborado pelas famiacutelias como antes porque eacute
possiacutevel encontrar outros alimentos que os substituem e porque alguns
alimentos permaneceram como haacutebitos cotidianos como os bolos broas que
42 Eu tambeacutem era constantemente ldquoentrevistadardquo por eles Respondi que conheccedilo os dois pratos e que
gosto muito de ambos 43 O queijo usado em muitos ingredientes e consumidos no dia a dia eacute produzido por todas as 34 famiacutelias
(85) que tem atividade leiteira nos siacutetios mas a produccedilatildeo do queijo eacute basicamente para autoconsumo Jaacute a manteiga eacute um produto menos comum de ser fabricado atualmente pelo trabalho de sua produccedilatildeo Mas eacute um alimento que permanece como haacutebito alimentar Compra-se a industrializada ou de vizinhos que porventura fabriquem
136
satildeo feitas em casa e caso contraacuterio satildeo facilmente encontradas no mercado
Segundo Giard (2012) uma explicaccedilatildeo para o abandono de algumas praacuteticas
passadas na culinaacuteria estaacute nas mudanccedilas das provisotildees e ofertas no mercado
Nesse caso ldquopermanece apenas a lembranccedila interiorizada dos sabores antigosrdquo
(p 274) como eacute o caso das recordaccedilotildees de Antonio sobre o cuscuz que fazia
com frequecircncia no passado e que tinha muita aceitaccedilatildeo de seus clientes da
padaria
Uma coisa que eu jaacute fiz muito e que vocecirc natildeo deve nem nunca ter ouvido falar Cuscuz torrado Veja bem natildeo eacute cuscuz cozido no vapor natildeo eacute assado O cuscuz torrado eu fazia assim Socava no pilatildeo 1 quilo e meio de fubaacute 34 de rapadura uma pitada de sal socava ateacute que desmanchava e ficava um beiju sabe Ai levava na focircrma peneirava quando enchia apertava bem cortava e punha no forno brando para torraroh Mas ficava uma coisa fora do comum Jaacute vendi demais isso aqui por essas bandas depois que eu parei de fazer nunca mais eu vi Ele esfarinhava na hora de comervocecirc conhece paccediloca A consistecircncia era parecida com a paccediloca de amendoim (Antonio 78 anos morador de Boa Vista em Piranga MG 2015)
Segundo Cacircmara Cascudo (2004) o cuscuz eacute originaacuterio dos Mouros na
Aacutefrica (Egito a Marrocos) e se escreve originalmente ldquokuz-kuzrdquo Agrave base de arroz
farinha de trigo ou sorgo passou a ser feito de milho com o avanccedilo do cultivo da
plantam do a partir do seacuteculo XVI Mas tanto os africanos quanto os portugueses
jaacute conheciam o cuscuz quando chegaram ao Brasil se em Portugal era
considerado prato aristocraacutetico em final do seacuteculo XVII ldquoNo Brasil pela
humildade do fabrico era manutenccedilatildeo de famiacutelias pobres julgava-se lsquocomida de
negrosrsquo trazida pelos escravosrdquo (p 190)
A pesquisa mostrou que o fubaacute assume posiccedilatildeo de destaque no
cotidiano alimentar das famiacutelias Aleacutem de alimento considerado ldquoforterdquo guarda
tambeacutem um significativo papel cultural as recordaccedilotildees de alimentos que eram
elaborados antes e que natildeo se fazem mais os modos de moer o fubaacute de antes
e de agora interagem com os lugares de emoccedilatildeo relacionados agrave comida Ao
lembrar de como um alimento ou uma praacutetica ocorria acontece tambeacutem o
resgate daqueles que o faziam ou seja dos ldquoguardiatildees da tradiccedilatildeordquo dos quais
nos falam Giddens (2012) e Simsom (2003) A razatildeo alegada para explicar o
porquecirc de alguns alimentos do passado que faziam parte da merenda terem
deixado de ser consumidos como o angu com leite e o cuscuz foi que na
contemporaneidade existem muitas opccedilotildees de merenda que a opccedilatildeo passa a
137
ser pela praticidade neste caso Satildeo alimentos a serem feitos quando se sente
vontade de comecirc-los No cotidiano eacute a broa que assumiu o lugar das outras
merendas agrave base de milho justamente pela rapidez de sua elaboraccedilatildeo
53 Comida de todo dia comida de festa e as relaccedilotildees de comensalidade
531 Comida de todo dia o trivial
Aqui na roccedila falando a verdade o que a gente come mesmo eacute angu arroz feijatildeo e uma verdura (Afonso 79 anos morador de Ribeiratildeo em Presidente Bernardes MG 2015)
A comida de todo dia eacute angu ateacute mesmo para alimentar os animais (cachorro gato galinha) couve arroz feijatildeo e uma carne quase sempre de porco (Ana Luisa 45 anos moradora de Bom Jesus do Bacalhau em Piranga MG 2015)
Destaco o iniacutecio do item com dois depoimentos porque eles sintetizam o
que eacute a comida cotidiana das famiacutelias pesquisadas inclusive naquelas famiacutelias
que possuem crianccedilas adolescente e jovens embora eu tenha conversado com
apenas cinco jovens que se encontravam no siacutetio na ocasiatildeo da entrevista
Segundo os meus interlocutores os pais cultivam nos filhos os seus haacutebitos
alimentares ao manter o mesmo tipo de alimentaccedilatildeo para adultos e crianccedilas
Assim pelo menos em casa dos pais a comida natildeo varia em funccedilatildeo de outras
preferecircncias alimentares e segundo as informaccedilotildees natildeo ocorre disparidades
nesse sentido
Em todas as famiacutelias quatro alimentos estatildeo presentes no almoccedilo de
todos os dias da semana angu arroz feijatildeo ovo ou carne e verdura refogada
em gordura de porco Mesmo havendo variaccedilatildeo para a verdura como serralha
almeiratildeo e mostarda a couve eacute a mais consumida na contemporaneidade assim
era tambeacutem no periacuteodo da mineraccedilatildeo e da ruralizaccedilatildeo
Todas as famiacutelias tecircm hortas nos quintais algumas bem cuidadas e com
grande variedade de plantas outras fragilizadas e com poucos cultivos A
estiagem do periacuteodo foi a grande responsaacutevel pelas ldquohortas fracasrdquo mas em
todas elas havia couve Em uma horta por exemplo havia apenas couve
cebolinha salsa quiabo e jiloacute As hortaliccedilas e ldquocheiro verderdquo mais presentes eram
a couve a serralha a mostarda o almeiratildeo a alface a cebolinha de folha a
138
salsa o manjericatildeo e a hortelatilde Uma hortaliccedila comum na culinaacuteria mineira a
taioba estava presente em poucas hortas Segundo as mulheres por ser
periacuteodo de estiagem a produccedilatildeo dessa hortaliccedila estava prejudicada pois
necessita de muita umidade
Frieiro (1982) Magalhatildees (2004) e Arruda (1990) tratam da importacircncia
que o cultivo da horta teve para a regiatildeo mineradora em Minas Gerais numa fase
de escassez de alimentos Ela era cultivada nos quintais de todas as casas para
garantir o acesso nas refeiccedilotildees agraves fontes de legumes frutas hortaliccedilas e
tubeacuterculos Passado a fase da escassez alimentar na regiatildeo mineradora de
Minas as hortas permaneceram sendo cultivadas Atualmente cultivar a horta
natildeo se daacute mais por carecircncia alimentar jaacute que o acesso agrave compra no mercado eacute
possiacutevel e a baixo custo Mas eacute importante para os entrevistados ter o prazer de
colher a hortaliccedila fresca pouco antes de preparar a refeiccedilatildeo As razotildees satildeo
sobretudo culturais e simboacutelicas para manter a tradiccedilatildeo como no caso das
famiacutelias que pesquisei Ter uma horta ldquobonitardquo eacute motivo de orgulho Maria (66
anos moradora de Itapeva Presidente Bernardes) enquanto mostrava e falava
com tristeza de sua horta que estava sofrendo com a estiagem comentou
ldquominha horta estaacute mirrada feiaparecendo ateacute horta de gente preguiccedilosardquo
Outro motivo para a importacircncia da horta para as famiacutelias pesquisadas eacute a
certeza da qualidade do alimento que cultiva As famiacutelias demonstraram
preocupaccedilatildeo com o uso de agrotoacutexico e natildeo sentem seguranccedila na aquisiccedilatildeo de
alimentos in natura que agraves vezes precisam adquirir no mercado
Os demais vegetais cultivados pelas famiacutelias pesquisadas satildeo aboacutebora
moranga batata doce mandioca inhame chuchu jiloacute quiabo berinjela e tomate
do mato Esses vegetais satildeo produzidos em todas as hortas e muito consumidos
nas refeiccedilotildees diaacuterias A exceccedilatildeo eacute para o tomate que natildeo eacute habito de consumo
local Esporadicamente consomem o tomate que chamam de ldquotomate do matordquo
que nascem naturalmente sem precisar cultivar O principal motivo para natildeo
cultivarem e natildeo consumirem o tomate eacute a necessidade de utilizar muito
inseticida Evitam o maacuteximo o uso de agrotoacutexico nos produtos cultivados no siacutetio
mas natildeo conseguem deixar de usaacute-lo no milho para substituir o roccedilado manual
com a enxada e tambeacutem no feijatildeo armazenado Eacute interessante que esse receio
natildeo os impede de consumir a massa de tomate na macarronada dos domingos
139
Vegetais como cenoura beterraba batata baroa berinjela couve-flor
broacutecolis repolho cebola de cabeccedila e alho satildeo produzidos por poucas famiacutelias
Mas a cebola e o alho jaacute foram cultivados com frequecircncia na regiatildeo No siacutetio de
Maria e Laeacutercio em Itapeva Presidente Bernardes as hortaliccedilas estavam muito
fragilizadas e havia pouquiacutessimas plantas basicamente couve quiabo e
cebolinha mas ela mostrou orgulhosa sua colheita de cebola de cabeccedila e alho
que estava no paiol (Figura 9) dois produtos que natildeo satildeo cultivados por todas
as famiacutelias embora muito consumidas A cebola de cabeccedila por exemplo era
um produto comprado no comeacutercio da comunidade pela maioria das famiacutelias
Isso aponta para a importacircncia que tem para essa famiacutelia a produccedilatildeo de
alimentos que consomem no dia a dia Percebi na conversa com Maria e Laeacutercio
a valorizaccedilatildeo dada agrave produccedilatildeo para autoconsumo Em funccedilatildeo disso o lamento
pela ausecircncia de chuvas foi muito presente durante o diaacutelogo
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 9 ndash Cebolas e alhos armazenados no paiol do siacutetio de Maria e Laeacutercio na comunidade Itapeva em Presidente Bernardes
A pesquisa ocorreu em periacuteodo de colheita do amendoim cultivadas por
quase todas as famiacutelias basicamente para autoconsumo embora uma delas
tenha produzido o suficiente para comercializar Tive a oportunidade de em uma
delas acompanhar parte da colheita e ateacute experimentar arrancar a planta do
chatildeo Algumas mulheres disseram que iriam aproveitar para fazer peacute-de-
moleque A rapadura teria que ser comprada no mercado da cidade jaacute que natildeo
140
eacute mais produzida no siacutetio e em toda a regiatildeo eacute um produto pouco encontrado
Das famiacutelias que entrevistei apenas trecircs produziam rapadura e melado No
periacuteodo de campo a cana estava sendo toda utilizada para alimentaccedilatildeo do gado
A horta de Eliana e Saturnino (69 e 75 anos respectivamente) tambeacutem
de Itapeva Presidente Bernardes (Figura 10) eacute bem diversificada e bem cuidada
Eliana que gosta de cultivar plantas medicinais me mostrou uma delas e
perguntou ldquoVocecirc conhece o remeacutedio ldquoVickrdquo Olhe ele aqui eu tenho plantado
cheire uma folha muita gente aqui de perto vem buscar para tratar a gripe
chiado no peito sempre tratei a gripe dos meus filhos com elardquo Mariacutelia (62
anos moradora de Mestre Campos Piranga) tambeacutem possui uma horta muito
rica e com grande variedade de plantas medicinais Tanto ela quanto Eliana se
mostraram detentoras do conhecimento tradicional dos cultivos e das funccedilotildees
terapecircuticas das ervas medicinais e disseram ter aprendido com as matildees e avoacutes
Apesar de eu eleger as hortas das famiacutelias de Eliana e de Mariacutelia como as
melhores encontrar hortas bem cuidadas e diversificadas foi comum durante a
pesquisa Haacute uma preocupaccedilatildeo especial das mulheres em mantecirc-las produtivas
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 10 ndash Horta no siacutetio de Eliana e Saturnino em Itapeva Presidente Bernardes MG
Os vegetais produzidos nos siacutetios das famiacutelias satildeo aqueles consumidos
nas refeiccedilotildees diaacuterias No dia a dia raramente algum produto vegetal eacute comprado
no mercado exceto quando se deseja algum legume ldquodiferenterdquo como dizem O
periacuteodo de estiagem tambeacutem interfere nisso devido ao fato de que algumas
141
plantas satildeo menos resistentes agrave seca prolongada Durante o periacuteodo da
pesquisa isso ocorria em relaccedilatildeo a alface que natildeo eacute uma hortaliccedila consumida
com frequecircncia pois a preferecircncia eacute pelas verduras que podem ser refogadas
A batata inglesa tambeacutem eacute um produto muito raro na dieta dessas famiacutelias
passa-se meses sem consumi-la a preferecircncia eacute pela batata doce bem como o
inhame e a mandioca
Percebi que a alimentaccedilatildeo cotidiana das famiacutelias eacute muito semelhante
agravequela da fase da mineraccedilatildeo e ruralizaccedilatildeo descritas pelos autores que utilizei no
capiacutetulo como Frieiro (1982) Magalhatildees (2004) Arruda (1990) e Torres (2011)
A tradiccedilatildeo se perpetuou na regiatildeo sem grandes modificaccedilotildees Os mesmos
cultivos nas hortas as mesmas praacuteticas alimentares satildeo mantidas embora
novidades sejam inseridas como a panela eleacutetrica de fazer arroz que seraacute
discutida mais agrave frente
Outra hortaliccedila muito comum na culinaacuteria mineira o ora-pro-noacutebis ou
lobrobrocirc estava presente em quase todas as hortas embora seu consumo natildeo
seja cotidiano como as demais jaacute citadas Embora natildeo seja uma hortaliccedila muito
apreciada encontrei uma crianccedila que prefere o ora-pro-noacutebis agrave couve Ao
perguntar agrave Marcelina e Luiz moradores de Satildeo Domingos em Porto Firme
sobre as verduras que cultivavam e quais eram as mais consumidas
imediatamente o filho Faacutebio de 9 anos acrescentou ldquolobrobocirc taiobardquo
Perguntei-lhe entatildeo se gostava de verduras e ele confirmou Segundo a matildee
ldquoele adora todas as verduras lobrobrocirc ele come as folhas ateacute cruas e taioba e
folha de batata doce ele tambeacutem adora pede para eu fazer com angu e carne
de frangordquo Lola de Presidente Bernardes compartilhou situaccedilatildeo semelhante
sobre seu filho Andreacute de 10 anos O filho aprecia suco de couve (mais que os
refrigerantes) ldquoEles satildeo assim porque natildeo foram acostumados com isso
sempre ensinei que essas coisas fazem mal pra genterdquo
Conhecer o gosto destas duas crianccedilas por verduras e saber que esse
gosto estaacute atrelado aos haacutebitos alimentares dos pais nos conduz mais uma vez
agrave discussatildeo sobre heranccedila dos haacutebitos e gosto alimentar jaacute discutido no capiacutetulo
anterior Na casa dos pais de Faacutebio e tambeacutem em sua escola rural a presenccedila
de verduras de todos os tipos de acordo com a sazonalidade eacute comum Desde
muito novos os filhos deste casal foram introduzidos nos haacutebitos alimentares dos
pais Natildeo haacute o haacutebito familiar de consumir refrigerante que soacute eacute comprado para
142
a casa em dias de festa As bebidas do dia a dia da famiacutelia satildeo aacutegua e suco de
fruta da estaccedilatildeo Insisti em saber se era uma preocupaccedilatildeo com a sauacutede e a
resposta foi que a sauacutede vem como consequecircncia Para eles a prioridade eacute
consumir alimentos que produzem no local e evitar gastos com alimentaccedilatildeo no
mercado Aleacutem disso eacute a comida que estatildeo acostumados
Natildeo tive a oportunidade de conversar com outras crianccedilas durante a
entrevista mas tive depoimentos dos pais a respeito dos haacutebitos alimentares dos
filhos quando eram crianccedilas e que ainda sendo adolescentes manteacutem haacutebitos
alimentares muito parecidos com os dos pais Haacute o caso por exemplo dos filhos
de Antonina (74 anos moradora de Bananeiras em Presidente Bernardes
Antonina) que moram em Satildeo Paulo e que mesmo sendo adultos quando
visitam os pais nas feacuterias pedem para a matildee fazer ldquoa comida que eles estavam
acostumados a comer quando eram pequenosrdquo Esta fala coincide com a
compreensatildeo de Bourdieu (2007) sobre a formaccedilatildeo de haacutebitos alimentares que
sofrem grande influecircncia da convivecircncia dos grupos o que gera gostos muito
semelhantes entre os membros O haacutebito alimentar eacute construiacutedo nesse contexto
e podem ser diferentes de uma cultura para outra
Fui convidada a participar da mesa de refeiccedilotildees ldquode todo diardquo em 15
casas onde fui convidada a almoccedilar com a famiacutelia O horaacuterio de almoccedilo variou
de 1100 a 1130 e essa variaccedilatildeo tem a ver com o horaacuterio em que acordam e
iniciam as atividades que jaacute natildeo eacute mais tatildeo riacutegido como jaacute foi no passado Como
parte das conversas aconteciam geralmente nas cozinhas enquanto o almoccedilo
era preparado pude acompanhar todo o processo Me ofereci para ajudar em
alguma coisa na atividade da cozinha mas a uacutenica ajuda permitida foi
acompanhaacute-las ateacute a horta para ldquoapanharrdquo verdura
Em todos os almoccedilos que participei estavam presentes no cardaacutepio o
ldquotrivial mineirordquo denominaccedilatildeo atribuiacuteda por Eduardo Frieiro para ldquofeijatildeo angu e
couverdquo O autor apoacutes as pesquisas sobre a alimentaccedilatildeo em Minas Gerais da
fase mineradora ateacute meados da deacutecada de 1950 sugeriu alguns dos alimentos
que considerava possiacutevel serem caracterizados como tiacutepicos de Minas Gerais
A sugestatildeo se deu em funccedilatildeo da peculiaridade de seus preparos satildeo eles o
tutu de feijatildeo com torresmo ou linguiccedila o lombo de porco assado a couve
cortada fina e refogada e o angu sem sal
143
Aleacutem do feijatildeo do angu e da couve havia todos os dias tambeacutem o arroz
nas refeiccedilotildees que participei Assim eu elegeria como a comida tiacutepica do almoccedilo
do conjunto das famiacutelias desta pesquisa a seguinte composiccedilatildeo arroz feijatildeo
batido no liquidificador angu couve refogada e carne (de frango ou porco) O
feijatildeo batido eacute comum em Minas e no interior de Satildeo Paulo mas quase
desconhecido nos outros estados Eacute comum associar a Minas Gerais o feijatildeo
tropeiro e ao tutu mas nas famiacutelias que pesquisei a forma de servi-lo eacute
predominantemente batido temperado com gordura de porco e alho Antes de
haver o liquidificador o feijatildeo era amassado agrave matildeo com o uso de um ldquosocadorrdquo
depois adicionava-se aacutegua o resultado era um feijatildeo de caldo grosso e
diferentemente do tutu e do tropeiro natildeo lhe eacute adicionado farinha o que o torna
mais diferente do tutu e mais leve jaacute que a farinha lhe confere a categoria de
comida com ldquosustanccedilardquo Embora a carne de porco tenha sido a mais presente
a de frango tambeacutem foi marcante A carne de boi eu comi em apenas duas casas
na forma moiacuteda e cozida O frango sempre frito ou ensopado algumas vezes era
acompanhado de quiabo O peixe foi servido em uma casa pescado no rio que
passa na propriedade A disponibilidade da carne natildeo era farta mas suficiente
para tecirc-la no prato sem esbanjamento e proporcionar satisfaccedilatildeo Mas os outros
alimentos eram preparados em grande quantidade
Foi recorrente ser servida mais de uma fonte de carboidrato nas
refeiccedilotildees por exemplo arroz angu e ou moranga e ou mandioca e ou batata
doce e ou farinha e ou macarratildeo O carboidrato eacute responsaacutevel pelo suprimento
de energia do organismo Para as famiacutelias esses alimentos satildeo importantes para
dar ldquosustanccedilardquo e tambeacutem satildeo responsaacuteveis por compor um almoccedilo ldquoforterdquo assim
como sinalizaram em relaccedilatildeo agrave gordura de porco Esse aprendizado eacute por
transmissatildeo cultural a mesma loacutegica para o consumo da gordura de porco
532 Comida de domingo de dias festivos e comensalidade
A comida de domingo varia pouco O arroz e o feijatildeo satildeo consumidos
tambeacutem nesse dia Agraves vezes o feijatildeo batido eacute substituiacutedo pelo tutu com cebola
e pelo feijatildeo tropeiro A macarronada com frango ou com carne de panela
tambeacutem eacute um prato presente com frequecircncia aos domingos Todas as famiacutelias
que tecircm os filhos morando proacuteximos inclusive em Viccedilosa afirmaram que aos
144
domingos o almoccedilo eacute dia de reuniatildeo em famiacutelia os filhos e netos chegam para
o almoccedilo e laacute passam o dia Quando os sogros dos filhos moram perto eacute feita
uma divisatildeo almoccedilo em uma casa cafeacute da tarde ou jantar em outra As filhas e
ou noras ajudam no preparo do almoccedilo e de lavar a louccedila Os casais
aposentados que ficam muito sozinhos durante a semana consideram esses
momentos fundamentais porque ldquoo dia fica mais alegrerdquo
() eu fico soacute por conta de cozinhar para eles a mesa essas duas ai ficam sempre cheias de coisas em cima eacute biscoito eacute bolo eacute doce eu gosto de ver os filhos e os netos tranccedilando por ai eles gostam de ficar na cozinha na mesa natildeo cabe todo mundo ai eles colocam umas cadeiras e ficam aqui tambeacutem eles gostam de pegar ovos no galinheiro e bater gemada acostumei eles a comer gemada desde pequenos e eles soacute comem gemada aqui por causa do ovo daqui (Eliana 69 anos moradora de Itapeva em Presidente Bernardes MG 2015)
Nos dias de domingo a casa fica cheia minhas filhas costumam trazer um prato feito por elas e junta com o que eu faccedilo aqui eacute muita fartura eacute muito bom todo mundo conversa ri pena que no fim do dia vai todo mundo embora (Laurinda 77 anos moradora de Tatu em Piranga MG 2015)
A ldquofarturardquo da comida destacada por Laurinda nas ocasiotildees de encontro
familiar eacute um grande valor atribuiacutedo pelas famiacutelias rurais Fartura de alimentos
significa uma boa produtividade de alimentos na roccedila mas significa tambeacutem
seguranccedila Ter ldquoo de comerrdquo todos os dias garantido na mesa eacute um atributo que
lhes eacute importante nas suas condiccedilotildees de famiacutelias agricultoras
O espaccedilo de comensalidade nessas ocasiotildees eacute basicamente a cozinha
lugar preferido da famiacutelia quando estaacute reunida Lody (2008) defende que muitos
haacutebitos alimentares soacute se desenvolvem na medida em que a casa e sua cozinha
tornaram-se capazes de permitir a reuniatildeo da famiacutelia e amigos Talvez por isso
as cozinhas das casas que visitei fossem amplas mesmo que outros cocircmodos
da casa como a sala fossem pequenos Em todas as cozinhas havia um
cocircmodo acoplado pequeno e que funcionava como despensa A presenccedila de
mais de uma mesa foi comum mesa na cozinha com pelo menos seis cadeiras
e bancos de madeira recostados a uma das paredes a outra mesa ficava em
uma copa ou em uma aacuterea externa geralmente de meia parede tambeacutem
proacutexima agrave cozinha onde foi ficava instalado o forno de barro quando existia em
algumas casas ele costumava estar proacuteximo ao paiol embaixo de uma coberta
Assim esses satildeo os espaccedilos onde ocorre a comensalidade nas famiacutelias
145
sobretudo em ocasiotildees especiais como nos almoccedilos de domingo e nos
momentos de convivecircncia familiar nos finais de ano
A comensalidade no grupo entrevistado ocorre tambeacutem nos eventos
maiores Nesse caso pode-se formar uma rede de cooperaccedilatildeo de trabalho para
fazer os festejos acontecerem Duas mulheres contaram com riqueza de
detalhes sobre as festas de bodas de ouro que ocorreram no quintal das casas
Coincidentemente trata-se de duas famiacutelias de Presidente Bernardes A festa
dos sogros de Lola e Marcos ocorreu no siacutetio dos sogros na comunidade de
Xopotoacute em 2011 A festa de Eliana e Saturnino ocorreu tambeacutem no siacutetio na
comunidade de Itapeva em 2014 Jaacute citei essas duas festas anteriormente ao
falar dos animais que foram abatidos para o almoccedilo Em ambas algumas
caracteriacutesticas satildeo comuns uma delas eacute que a festa aconteceu no quintal o que
segundo Eliana ldquoeacute costume na regiatildeo aqui eacute muito pouca gente que aluga
salatildeo pra fazer festa e mesmo casamento acontece tudo aqui na roccedila mesmordquo
Os vizinhos dos siacutetios proacuteximos foram convidados Filhos e outros parentes que
moram fora tambeacutem estiveram presentes Nas duas festas a comida servida foi
a ldquocomida de roccedilardquo e como jaacute dito antes suiacutenos e frangos criados no local foram
abatidos O prato principal foi a carne o restante foi acompanhamento porque
como destacou Lola ldquoem dias de festa tem que ter muita carne que eacute do que o
povo gostardquo
Eliana contou que as mulheres da vizinhanccedila ajudaram com a
organizaccedilatildeo e tambeacutem a fazer ldquoa comida de veacutespera descascando batata
cozinhando mandioca matando e depenando os frangos para o dia da festa
os meus filhos contrataram umas cozinheirasrdquo
Foi realizada uma missa no paacutetio na frente da sua casa No quintal foram
colocados dois grandes ldquofogotildees de cupimrdquo e seu funcionamento seraacute detalhado
mais agrave frente Nestes fogotildees foram feitos os seguintes pratos macarratildeo com
pato tutu arroz frango frito farinha torrada mandioca frita e batata doce Natildeo
foi servida salada De bebida foram servidos refrigerante e cerveja A sobremesa
servida foi o ldquobolo de festa bem granderdquo que os filhos encomendaram da cidade
Foi muito boa a festa a missa a ajuda das mulheres aqui eacute assim todo mundo ajuda uns aos outros quando precisa Teve muacutesica e danccedila as pessoas podiam danccedilar se quisessem (Eliana Itapeva Piranga MG 2015)
146
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 11 ndash Fogatildeo de cupim no quintal do siacutetio de Eliana e Saturnino em Itapeva
Presidente Bernardes
Para a festa de bodas de ouro dos sogros de Lola estiveram presentes
em torno de 200 pessoas entre familiares e vizinhos de siacutetios proacuteximos Pelas
informaccedilotildees de Lola a festa teve maior investimento em produccedilatildeo Foi colocado
um telatildeo no quintal onde se mostrou a retrospectiva do casal desde o
casamento com montagens de fotos Soltaram muitos foguetes e teve muacutesica
de forroacute com espaccedilo para as pessoas danccedilarem no quintal Os filhos que moram
em cidades vizinhas e em Satildeo Paulo foram os responsaacuteveis pela organizaccedilatildeo
do evento e ao contraacuterio da festa do primeiro casal esta natildeo contou muito com
a participaccedilatildeo cooperativa dos vizinhos Todo o trabalho de veacutespera da cozinha
foi feito pela famiacutelia filhas filhos noras e genros do casal Foram contratadas
matildeo de obra para cozinhar no dia e servir a comida O cardaacutepio desta festa
consistiu de churrasco de carne bovina e suiacutena (a carne suiacutena de produccedilatildeo
local) linguiccedila frango frito arroz salpicatildeo farofa de milho vinagrete e uma
mesa de frutas Assim como na primeira festa nesta tambeacutem natildeo teve um prato
147
de saladas ou verduras refogadas apesar de elas estarem presentes nas
comidas de todo dia
Reportamos a Woortmann (1985) quando ele trata dos convites para
refeiccedilotildees em casa com o objetivo de reestabelecer sociabilidades e que nestas
ocasiotildees o aspecto fisioloacutegico ou nutritivo da alimentaccedilatildeo eacute pouco relevante
Mais importante eacute o papel social que ela exerce para agradar aos olhos ao olfato
e por fim ao paladar Eacute importante que as pessoas ao irem embora da festa
faccedilam elogios agrave comida e por isso ela precisa tambeacutem ser farta Como foi visto
no capiacutetulo 2 a carne em Minas nos primoacuterdios da mineraccedilatildeo era uma raridade
nas refeiccedilotildees e por isso passou a assumir um status simboacutelico importante na
refeiccedilatildeo a partir da fase da ruralizaccedilatildeo Fazer uma festa sem servir muita carne
seria motivo de criacutetica e natildeo de elogios Ao contraacuterio o excesso de carne eacute tanto
valorizado quanto classifica um ldquoalmoccedilo na roccedilardquo como farto e bom
Brandatildeo (1982) em sua pesquisa com agricultores do interior de Goiaacutes
trata da comida de festa na roccedila Para o seu grupo pesquisado o sabor e a
fartura da comida oferecida tambeacutem foi declarado como sendo o principal para
o sucesso de uma festa
O valor da comida ldquoboardquo ldquocom gostordquo estaacute em seu modo de preparo ruacutestico e na fartura o tempero forte ldquomuita banha de porco muito toucinho pimenta agrave vontaderdquo sobre uma comida tambeacutem forte e abundante ldquomuita carne de capado muito arroz e feijatildeo mandioca agrave vontaderdquo (BRANDAtildeO 1982 p 136)
Tambeacutem Falci (1995) relata sobre as festas de casamento na roccedila
regiatildeo do Piauiacute no final do seacuteculo XIX onde muita quantidade de comida era
servida mesmo sendo simples a festa de casamento precisava ser farta e era
tambeacutem importante que se convidasse toda a vizinhanccedila rural
Para a festa havia toda a organizaccedilatildeo pois natildeo se dispunha de armazenamento Os porcos tinham jaacute sido postos a sevar nos chiqueiros e estavam no ponto (de uns 8 a 10 kg cada um) assim como os outros animais Ateacute os parentes ajudavam no abastecimento da festa engordavam leitoas ou perus para a festa da sobrinha ou afilhada e no dia faziam-se assados em muitas casas amigas ou de parentes dos noivos (FALCI 1995 p 260)
Nessas ocasiotildees mais do que em dias normais a comida se apresenta
como um coacutedigo que expressa niacuteveis de relacionamento e de interaccedilatildeo social
como no sentido atribuiacutedo por Douglas (1972) Em festas ou manifestaccedilotildees
culturais tradicionais o alimento assume uma categoria de ldquocomidas-coacutedigordquo que
148
se apresenta com a funccedilatildeo binaacuteria de alimentaccedilatildeo e socializaccedilatildeo sendo
carregada de mensagens simboacutelicas
If food is treated as a code the message it encodes will be found in the pattern of social relations being expressed The message is about different degrees of hierarchy inclusion and exclusion boundaries and transactions across the boundaries Like sex the taking of food has a social component as well as a biological one Food categories therefore encode social events (DOUGLAS 1972 p 61)
Em um saacutebado pela manhatilde em que passei no siacutetio de Ana Luisa e Lucas
(45 e 52 anos respectivamente) na comunidade de Bom Jesus do Bacalhau para
agendar entrevista para a semana seguinte havia uma movimentaccedilatildeo de
pessoas Logo descobri que eram parentes que vieram de Ouro Preto e de Belo
Horizonte para passar o final de semana e como uma das sobrinhas estava
fazendo 15 anos de idade naquele dia a famiacutelia resolveu organizar
improvisadamente uma comemoraccedilatildeo no siacutetio Muitos balotildees coloridos estavam
sendo pendurados no teto e nos pilares da varanda Logo que entrei no corredor
externo que daacute acesso agrave cozinha avistei um bolo de aniversaacuterio sendo montado
O bolo jaacute estava com trecircs camadas e recheado de doce de leite e ameixa
faltando ainda a cobertura que seria com creme de coco Para a execuccedilatildeo do
bolo foram utilizados leite longa vida doce de leite e coco ralado ambos
industrializados O bolo estava sendo feito pelas irmatildes de Ana Luiacutesa enquanto
ela e o marido se dividiam na cozinha preparando ldquotira-gostosrdquo e a carne para o
almoccedilo Em um tacho de ferro sobre a trempe do fogatildeo a lenha Ana Luisa fritava
pedaccedilos de carne de porco e outra panela estava sendo frito o ldquomilhopatilderdquo (Figura
12) produzido por Ana Luisa Esse salgado eacute feito de uma mistura agrave base de
fubaacute caldo de galinha e polvilho azedo Segundo Lucas cujo avocirc foi tropeiro o
ldquomilhopatilderdquo artesanal eacute tradiccedilatildeo em sua famiacutelia e foi com a sogra que Ana Luisa
diz ter aprendido a fazer ldquoTodo mundo gosta a gente vende muito dele laacute no
mercadordquo
149
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 12 ndash Processo de fritura do ldquomilhopatilderdquo
A mesa da cozinha estava posta com rosquinha de sal amoniacuteaco queijo
bolo de milho e cafeacute Fui convidada a tomar ldquoum cafezinho e comer alguma coisardquo
e tambeacutem a experimentar o milhopatilde frito Em um dia tumultuado para a famiacutelia
minha visita se encerrou logo
Pude perceber alguns aspectos relacionados agraves praacuteticas alimentares
que satildeo tratados nesta pesquisa a sociabilidade demonstrada no trabalho
conjunto de organizaccedilatildeo da festa a utilizaccedilatildeo de produtos industrializados na
elaboraccedilatildeo do bolo a produccedilatildeo do ldquomilhopatilde alimento de receita tradicional da
famiacutelia a carne e o torresmo de porco caipira criado no siacutetio Nessas praacuteticas
alimentares desenvolvidas na cozinha dessa famiacutelia estiveram presentes agrave
praticidade em utilizar os produtos industrializados mas tambeacutem a manutenccedilatildeo
de praacuteticas tradicionais sinalizando nessa mescla fatores de permanecircncia e de
mudanccedila no sentido tratado por Poulain (2013) Giard (2012) Cacircmara Cascudo
(2004) e Doacuteria (2014)
A comensalidade tambeacutem ocorre envolvendo formas natildeo tradicionais agrave
cultura local Eacute o caso que ocorre na famiacutelia de Antocircnio e Marieta (78 e 73 anos
respectivamente) Antonio o ex-padeiro jaacute citado aqui que para agradar os netos
ndash crianccedilas e adolescentes que moram em aacuterea urbana ndash quando passam feacuterias
em seu siacutetio promove o que os netos chamam de a noite da ldquoPizzada do vovocircrdquo
Neste evento ele eacute o responsaacutevel por produzir pizzas no forno de barro do siacutetio
Disse jaacute ter virado uma tradiccedilatildeo familiar dos uacuteltimos anos Ele prepara as massas
e convoca os netos para ajudar a rechear as pizzas Esses satildeo momentos de
150
comensalidade familiar muito interessantes aleacutem de comerem juntos produzem
a comida em conjunto Geraccedilotildees diferentes partilhando os saberes e prazeres
da comida e da convivecircncia
A produccedilatildeo das pizzas chamou a atenccedilatildeo por natildeo ser um alimento que
faz parte da cultura da regiatildeo pesquisada Nenhum entrevistado aleacutem de
Antocircnio falou sobre esse alimento Tampouco ela eacute citada por Frieiro (1982) ou
Cacircmara Cascudo (2004) como alimentos consumidos em Minas Colonial A
pizza tem sua origem atribuiacuteda agrave Itaacutelia e passou a ser consumida no Brasil
justamente com a chegada desses imigrantes ao Paiacutes Segundo Antonio e
Marieta as pizzas comeccedilaram a ser produzidas por ele no forno de barro nos
encontros de feacuterias dos filhos e netos no siacutetio Uma de suas filhas mora no Rio
Grande do Sul e eacute casada com um descendente de italiano Com um nuacutemero
grande de familiares em casa nessas ocasiotildees e para agradar aos netos
Antocircnio que domina a atividade de panificaccedilatildeo optou em aprender a fazer as
pizzas Um exemplo de hibridismo cultural alimentar em funccedilatildeo de haacutebitos
diferentes de membros da famiacutelia O avocirc valorizando o habito alimentar dos
netos e praticando ao mesmo tempo a atividade de produzir massas que
considera como muito prazerosa Outro aspecto interessante eacute que se trata de
um alimento associado ao mercado fast food nos centros urbanos mas no caso
especificamente dessa famiacutelia o seu consumo tem uma loacutegica que se associa
ao ritmo do slow food
Juntar a famiacutelia para fazer a ldquopizzada do vovocircrdquo eacute uma forma de Antonio
resgatar esse tempo vivido onde era produzida grande quantidade de quitandas
aleacutem de patildees e eacute para os netos um importante momento de aprendizado com o
avocirc como aquele que agrega a famiacutelia usando da comida e assim assumindo
seu papel de guardiatildeo da cultura Nos dias atuais segundo o casal o forno de
barro raramente eacute utilizado soacute mesmo em dias de festa nos finais de ano Nos
depoimentos de Antonio estaacute presente a memoacuteria afetiva ligada agraves praacuteticas
culinaacuterias que lhe foram muito presentes no passado mas que se distancia do
seu cotidiano na contemporaneidade Natildeo por acaso a chegada dos netos eacute
sempre um evento ansiosamente esperado pelo casal
151
533 Os doces
Em relaccedilatildeo agraves frutas as mais comuns nos pomares e quintais eram a
laranja bahia e serra drsquoaacutegua a poncatilde a mexerica o limatildeo galego ou limatildeo
capeta o limatildeo taiti a goiaba a banana a jabuticaba o figo a cidra a pitanga
a acerola a amora a manga e o abacate As frutas satildeo consumidas de acordo
com a sazonalidade e algumas mesmo estando presentes natildeo satildeo
preferenciais como eacute o caso do mamatildeo exceto para fazer doce de mamatildeo
verde Os sucos mais consumidos satildeo de laranja acerola limatildeo e manga
Os doces mais produzidos a partir de frutas locais satildeo os de goiaba
banana e figo Em uma das famiacutelias tive a oportunidade de provar dois doces
receacutem elaborados por Marieta moradora de Boa Vista Piranga doce de ameixa
em calda e doce de figo
Cacircmara Cascudo (2004) relata que o doce representava grande
importacircncia social no periacuteodo Colonial brasileiro heranccedila de Portugal Quando
se queria presentear algueacutem ou homenagear uma bandeja de doce era sempre
uma excelente escolha Era considerado uma boa qualidade feminina saber
fazer o doce de receita de famiacutelia e esse ensinamento era repassado agraves jovens
pelas matildees Tambeacutem Algranti (2007) destaca que nesse periacuteodo os doces natildeo
faziam parte do trivial mas de eventos festivos e por isso consideradas iguarias
Mesmo que com o tempo eles tenham ganhado espaccedilos mais populares e
vendidos em tabuleiros nas ruas
Essa relaccedilatildeo com os momentos especiais descrito pela autora parece
persistir na regiatildeo pesquisada Dentre as famiacutelias que entrevistei a elaboraccedilatildeo
de doces natildeo eacute uma atividade culinaacuteria cotidiana seu consumo e fabricaccedilatildeo
estatildeo associados aos dias de domingo e agraves datas festivas sobretudo agraves festas
de final de ano Natal e Ano Novo
Laurinda 77 anos moradora de Tatu em Piranga relatou que fazia
doces para agradar a todos os filhos quando havia festas de aniversaacuterio em casa
quando eles ainda eram crianccedilas e adolescentes ldquoPara aquele que preferia
rocambole eu fazia rocambole para aquele que preferia pudim eu fazia pudim
agradava a todos os filhos eu gostavardquo
Zefa 67 anos moradora de Mato Dentro em Presidente Bernardes
tambeacutem disse gostar das eacutepocas de elaborar doces Para as festas de final de
152
ano ela comeccedila a fazer um mecircs antes do Natal Os doces tradicionais da sua
famiacutelia satildeo o rocambole de doce de leite e o doce de figo Ela descreveu o
processo de elaboraccedilatildeo
O doce de leite eu comeccedilo a fazer ele agraves 0800 e soacute vou tirar ele do fogo agraves 14 horas ponho num tacho grande ele vai fervendo aos pouquinhos ateacute secar e ficar cremoso mas tem que ser com leite de roccedila leite gordo e leva pouco accediluacutecar Para 8 litros e leite soacute duas xiacutecaras de accediluacutecar O doce de figo antigamente quando natildeo tinha geladeira a gente tinha que ficar fervendo ele para ele natildeo azedar enquanto tivesse doce tinha que fazer isso Hoje natildeo a gente faz o doce e guarda na geladeira e fica verdinho e pode ficar muito tempo guardado (Zefa 67 anos moradora da Comunidade Mato Dentro Presidente Bernardes MG 2015)
O depoimento de Zefa deixa transparecer a dedicaccedilatildeo de tempo ao
preparo do doce e a tenccedilatildeo cuidadosa agraves etapas para natildeo passar do ponto Natildeo
se podia ter pressa Por isso a elaboraccedilatildeo dos doces eram atividades
esporaacutedicas para eventos especiais principalmente para as festas de final de
ano consideradas eventos familiares de grande importacircncia para essas famiacutelias
Percebi durante a pesquisa que essa percepccedilatildeo permanece entre as mulheres
ao falarem da elaboraccedilatildeo dos doces Haacute nos gestuais descritos por Zefa uma
relaccedilatildeo semelhante ao que eacute tratado por Giard (2012) ao relacionar ao trabalho
das cozinheiras de tempos passados em que a paciecircncia para conduzir as
praacuteticas culinaacuterias era a tocircnica
Outrora a cozinheira se servia de um instrumento simples de tipo primaacuterio cujas funccedilotildees tambeacutem eram simples era ela que dirigia o desenrolar da operaccedilatildeo vigiava a sucessatildeo dos momentos da sequecircncia de accedilatildeo e podia representar mentalmente o processo Nessa forma de cozinhar havia uma habilidade de artesatildeo empenhado em aperfeiccediloar seu meacutetodo ou variar suas produccedilotildees (p 284)
Outros dois pontos no depoimento de Zefa merecem destaque O
primeiro quando ela fala de um tempo em que a geladeira natildeo existia Havia a
necessidade de ferver constantemente o doce para natildeo estragar Aqui presente
a relaccedilatildeo com a modernidade Atualmente com o acesso agrave geladeira esse
trabalho foi reduzido Nesse sentido eacute preciso considerar o quanto a tecnologia
industrial facilitou a fabricaccedilatildeo de alimentos sem que necessariamente tenha
alterado a obtenccedilatildeo de um produto de igual qualidade e sabor Zefa continua
fazendo o doce de figo assim como as outras mulheres mas utilizando uma
tecnologia de conservaccedilatildeo moderna e muito importante
153
O segundo ponto diz respeito ao uso do tacho Todas as mulheres que
entrevistei tinham um tacho de cobre que foi herdado de matildee da avoacute ou que foi
comprado por elas Fazer doces em tacho de cobre faz parte da tradiccedilatildeo da
culinaacuteria em vaacuterios lugares do Brasil Poreacutem haacute atualmente uma discussatildeo sobre
o seu uso Em Minas Gerais a Vigilacircncia Sanitaacuteria Estadual proibiu o seu uso
para fabricaccedilatildeo de doces em funccedilatildeo dos resiacuteduos toacutexicos que podem ser
liberados exceto se forem revestidos por banho de ouro prata niacutequel ou
estanho material que natildeo estatildeo presentes nos tachos mais comuns na zona
rural o mais comum e mais barato eacute o revestimento em estanho Surgiu em
funccedilatildeo disso movimentos que defendem a manutenccedilatildeo do uso do tacho de
cobre e que eacute possiacutevel conscientizar as pessoas sobre o uso e higienizaccedilatildeo
correta do tacho sem extinguir seu uso Zefa por exemplo limpa o seu tacho
com sal e limatildeo para retirar todo o azinhavre44 Aleacutem do tacho de cobre haacute o caso
da colher de pau cuja proibiccedilatildeo fez surgir o ldquoManifesto Colher de Paurdquo de autoria
do antropoacutelogo da alimentaccedilatildeo Raul Lody e apoiado pelo FBSSAN (Foacuterum
Brasileiro de Soberania e Seguranccedila Alimentar e Tradicional) O objetivo do
Manifesto eacute cobrar dos oacutergatildeos fiscalizadores um canal de discussatildeo com a
sociedade civil no sentido de encontrar soluccedilotildees menos radicais como a
extinccedilatildeo de usos tradicionais na fabricaccedilatildeo de doces e outros produtos
culinaacuterios45
Joana 39 anos moradora de Jacuba em Porto Firme contou sobre a
festa de casamento de uma parente que aconteceu na roccedila e em que todos os
doces servidos foram feitos pelas mulheres da famiacutelia e outras amigas do casal
Ela proacutepria ajudou na elaboraccedilatildeo Fizeram goiabada figo doce de leite
cajuzinho brigadeiro doce de aboacutebora com coco e outros
A Figura 13 mostra o doce de ameixa que Marieta estava preparando
Trata-se da ameixa vermelha (tambeacutem conhecida como ameixa japonesa) Natildeo
eacute uma fruta muito comum na regiatildeo da pesquisa mas Marieta possui uma aacutervore
que todos os anos daacute muito fruto e ela aproveita para fazer o doce que eacute muito
saboroso
44 Nome que se daacute a oxidaccedilatildeo do cobre a camada esverdeada que resulta desse processo 45 Para ver mais sobre o Manifesto e acessaacute-lo na iacutentegra ver o site da FBSSAN (httpwwwfbssanorgbr
indexphpoption=com_contentampview=articleampid=419manifesto-colher-de-pauampcatid=79ampItemid=672ampl ang=pt-br)
154
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 13 ndash Doce de ameixa feito por Marieta na comunidade Boa Vista em Piranga MG
54 A comensalidade para aleacutem das festas e datas especiais
A comensalidade ocorre de forma diferenciada nas famiacutelias
pesquisadas Em todas elas a maior frequecircncia eacute no jantar indicando o
fechamento de um dia de trabalho mesmo que ela se decirc na sala com o prato
na matildeo e assistindo agrave programaccedilatildeo da TV costume citado pela maioria das
famiacutelias Nesses momentos a conversa gira em torno dos assuntos divulgados
no programa (em geral o telejornal)
Se natildeo se daacute nesse ambiente ela ocorre na cozinha e em ambos os
casos natildeo eacute um momento demorado Mas a comensalidade ocorre sempre no
cafeacute da manhatilde jaacute que quase todos se levantam na mesma hora e tomam o cafeacute
juntos O cafeacute da manhatilde tambeacutem ldquotoma-se ligeirordquo muitas vezes de peacute que ldquoeacute
para natildeo dar preguiccedilardquo observou Carlos (morador de Posses em Porto Firme)
No horaacuterio de almoccedilo dos dias de semana as refeiccedilotildees satildeo feitas em tempo
curto e o assunto costuma ser basicamente em torno de trabalho pelo menos
foi o presenciei nas casas onde almocei A possibilidade de a famiacutelia estar
reunida para o almoccedilo iraacute depender da disponibilidade de tempo e das atividades
de quem estaacute agrave frente do trabalho no local Nas famiacutelias onde as mulheres
trabalham fora do siacutetio elas raramente estatildeo presentes para essa refeiccedilatildeo
quase sempre soacute aos finais de semana As crianccedilas chegam entre 1200 e 1230
155
horas e eacute comum almoccedilarem na escola Neste caso a comensalidade das
crianccedilas e das mulheres ocorre com outro grupo que natildeo o familiar Natildeo haacute uma
restriccedilatildeo para que a comensalidade se decirc apenas no grupo familiar O proacuteprio
conceito definido por Poulain (2013) destaca isso bem como a discussatildeo de
Fladrin e Montanari (1998) sobre o assunto
Em uma das casas visitadas em Presidente Bernardes almoccedilamos na
mesa da cozinha apenas eu e a Nanaacute (dona da casa) O filho que estava
trabalhando na lavoura de cafeacute saiu de moto pouco antes do almoccedilo para buscar
uma ferramenta de trabalho no siacutetio da irmatilde o marido foi almoccedilar em outro
cocircmodo escutando o raacutedio e a filha que trabalha na cidade e almoccedila em casa
serviu o seu prato e foi almoccedilar na frente da televisatildeo na sala Perguntei a Nanaacute
se eles natildeo costumavam almoccedilar juntos na cozinha ela apenas sorriu e disse
ldquoEacute assim mesmo tem dia que eles preferem ir para laacuterdquo Apesar de sua resposta
fiquei na duacutevida se o motivo de isso ter ocorrido foi minha presenccedila afinal
tratava-se de uma pessoa desconhecida O marido Custoacutedio participou da
conversa todo o tempo ateacute o almoccedilo ser servido Me mostrou a lavoura de cafeacute
e a local onde passaraacute o mineroduto cortando seu siacutetio46 e me explicou o
funcionamento do moinho eleacutetrico A filha chegou pouco antes do almoccedilo e
pudemos conversar um pouco quando ela falou do curso que faz na modalidade
agrave distacircncia e de seus planos para o futuro Em todas as outras famiacutelias almocei
em companhia dos que estavam em casa e natildeo percebi constrangimento
semelhante embora tenha observado uma certa timidez inicial principalmente
por parte dos homens e talvez por isso os diaacutelogos eram curtos Em quase
todas as casas escutei expressotildees que tinham conotaccedilatildeo semelhante ldquoVocecirc
natildeo repara natildeoa comida eacute simplesrdquo Entendi isso como uma reaccedilatildeo normal a
uma visita que eacute de fora do seu nuacutecleo iacutentimo Os homens se levantavam e se
ausentavam da cozinha assim que terminaram a refeiccedilatildeo e as mulheres lavavam
a louccedila
Se hoje eacute mais faacutecil para as pessoas interromperem o trabalho e
almoccedilarem em casa em tempos passados a situaccedilatildeo era diferente Quando o
trabalho era mais intenso as atividades eram quase ininterruptas e as refeiccedilotildees
46 Boa parte do siacutetio de Nanaacute e Custoacutedio seraacute desapropriado em funccedilatildeo da passagem do Mineroduto Isso
tem gerado efeitos em suas vidas desde que o processo se iniciou O processo se arrasta haacute anos e eles natildeo sabem muito bem o que vai acontecer Continuam plantando e vendendo o cafeacute que comercializam e outras pequenas lavouras como milho e cana enquanto aguardam o desenrolar da situaccedilatildeo
156
aconteciam distante da casa com o uso de marmitas como explica Neuzeli
moradora de Vinte Alqueires em Porto Firme
O almoccedilo quando o povo trabalhava na roccedila diretoos trabalhadores comiam de marmita Eu arrumava uma marmita caprichadinha para meu marido e meus filhos Mas na casa de meus pais natildeo levava marmita natildeo levava era uns panelotildees grandes de comida em um punha feijatildeo em outro punha a sopa de mandioca ou de inhame com uns pedaccedilos de carne e tinha que encaixar aqui no ombrocomo uma canga e necessitava de duas e trecircs pessoas para levar E laacute na roccedila juntava todo mundo pra comer junto cada um servia o seu coiteacute47 (Neuzeli 63 anos moradora de Vinte Alqueires Porto Firme MG 2015)
Mais um exemplo de como a comensalidade ocorria nas aacutereas rurais
por mais raacutepidas que fossem as refeiccedilotildees Este exemplo assim como aquele em
que as refeiccedilotildees ocorrem na sala assistindo televisatildeo falam de momentos de
comensalidade onde a presenccedila do objeto ldquomesardquo natildeo eacute necessaacuterio precisa-se
eacute que os momentos das refeiccedilotildees sejam partilhados por mais de uma pessoa
55 Mescla cultural praacuteticas de consumo alimentar de ontem e de hoje
Tem sido comum nos uacuteltimos anos na regiatildeo pesquisada a circulaccedilatildeo
de veiacuteculos que comercializam frutas hortaliccedilas e legumes Os alimentos satildeo
vendidos aos moradores locais mas tambeacutem para os pequenos comeacutercios
rurais Por razotildees diversas alguns agricultores estatildeo optando em comprar
determinados produtos in natura ao inveacutes de cultivaacute-los O principal motivo citado
foi a estiagem dos uacuteltimos anos aliado ao custo-benefiacutecio (praticidade ndash preccedilo)
Satildeo vendidos produtos tais como batata inglesa inhame batata doce moranga
banana alface laranja tomate maccedilatilde pera abacaxi e outros Segundo os
interlocutores os produtos satildeo do CEASA
Aqui em Presidente tem caminhatildeo que vem vender fruta e verdura pro povo das roccedilas Aqui em casa noacutes compramos agraves vezes mas eacute maccedilatilde que aqui natildeo daacute mamatildeo tambeacutem porque aqui natildeo daacute mamatildeo bom mais mas eacute soacute mas eu vejo gente aqui comprando inhame mandioca do caminhatildeo ah isso eu natildeo concordo natildeo (Germana 58 anos moradora de Mato Dentro em Presidente Bernardes MG 2015)
Tem muita gente na roccedila hoje que taacute eacute comprando mesmoeles acham difiacutecil criar um frangopreferem compraraqui o frango eacute criado soltono quintaldaacute uns frangos bons gordinhosalguns falam assim gente daqui mesmo que fica mais caro plantar do que
47 Cuia feita a partir do fruto da aacutervore Coiteacute que depois de colhido maduro cortado ao meio e retirado as
sementes eacute utilizado como utensiacutelio na cozinha e em outras atividades
157
comprar ai eu falo para eles que agraves vezes fica mesmo soacute que plantar a gente gasta devagar e se for para comprar a gente tem que tirar tudo de uma vez soacute para pagar aquele montatildeo aleacutem disso tem a sauacutede a gente compra tudo hoje com remeacutedio esses frangos ai de granja eu sei porque meu cunhado tem uma granja aquilo ali o pintinho chega com 45 dias ele jaacute eacute frango pra abate e isso natildeo eacute com comida soacute que consegue natildeodeve ter algum remeacutedio ali (Maacuterio 44 anos morador de Posses em Porto Firme MG 2015)
Os interlocutores na pesquisa disseram que compram tais alimentos
muito raramente soacute mesmo em situaccedilotildees muito especiacuteficas como estiagem
longa um exemplo eacute o da alface que no ano de 2015 quando foi realizado o
trabalho de campo teve produccedilatildeo muito ruim assim como algumas outras
hortaliccedilas Segundo as informaccedilotildees que deram essa forma de aquisiccedilatildeo eacute
relevante entre essas famiacutelias Os aposentados que natildeo possuem filhos para
ajuda-los na produccedilatildeo ponderaram que natildeo acham ruim o caminhatildeo levar esses
produtos ateacute eles porque muitas vezes a produccedilatildeo de alguns alimentos eacute muito
pequena e quando acaba eles precisam mesmo comprar e se o caminhatildeo vai
ateacute os siacutetios isso facilita natildeo se trata todavia de um costume mas de uma
ocorrecircncia esporaacutedica
O depoimento anterior de Mario demonstra uma preocupaccedilatildeo que foi
manifestada por outros entrevistados tambeacutem Haacute nas famiacutelias uma grande
preocupaccedilatildeo com agrotoacutexicos ateacute por isso evitam cultivar tomate como jaacute
mencionado anteriormente Pelo fato de os alimentos serem provenientes do
CEASA a desconfianccedila em relaccedilatildeo a eles eacute fator de resistecircncia no consumo
acreditam que os alimentos possuem ldquomuito venenordquo Assim esses alimentos
representam para eles o oposto dos alimentos que produzem nos proacuteprios siacutetios
considerados como mais saudaacuteveis do que os comprados Novamente pode-se
associar essa preocupaccedilatildeo agrave ldquoangustia alimentarrdquo tratada por Fischler (1995 e
2011)
Esse tipo de comercializaccedilatildeo tambeacutem foi identificado por Sacco dos
Anjos et al (2010) em sua pesquisa na regiatildeo rural de Pelotas no Rio Grande
do Sul Os consumidores de laacute tinham como justificativa a especializaccedilatildeo em
uma determinada atividade produtiva como fruticultura e aviaacuterio A falta de
tempo para produzir para autoconsumo e o alto custo da produccedilatildeo os fez
priorizar a aquisiccedilatildeo dos alimentos que consumiam no dia a dia
158
Apesar de os alimentos cultivados no siacutetio predominarem na alimentaccedilatildeo
das famiacutelias os alimentos industrializados tambeacutem satildeo consumidos Pude ver
alguns desses produtos expostos em moacuteveis da cozinha Outros foram
informados pelos entrevistados A lista dos industrializados consta de manteiga
margarina oacuteleo de soja sal arroz biscoito de polvilho biscoito de maisena
biscoito de aacutegua e sal farinha de trigo farinha de milho farinha de mandioca
leite longa vida leite de soja accediluacutecar macarratildeo massa de tomate polvilho leite
condensado e poacute de cafeacute (naquelas famiacutelias que natildeo o produz ou quando o
produto local acaba) Natildeo houve registro de compra de refrigerantes (usado
apenas em ocasiotildees festivas) alimentos congelados (massas patildees de queijo e
carnes etc) embutidos (salsichas presunto mortadela) Nem todos os produtos
listados satildeo consumidos por todas as famiacutelias trata-se de uma lista de produtos
consumidos pelo montante das famiacutelias
Duas das famiacutelias de Piranga a de Ana Luisa e Lucas e a de Juliana e
Jacinto satildeo proprietaacuterias de um pequeno comeacutercio rural nas comunidades de
Bacalhau e Tatu respectivamente Em ambos eacute comercializado parte do que
produzem nos siacutetios Os alimentos mais vendidos satildeo oacuteleo vegetal arroz (que
passou a ser vendido haacute cerca de 15 anos quando se reduziu drasticamente o
cultivo nas regiotildees) farinha de trigo biscoito de polvilho do tipo ldquopapa-ovordquo
macarratildeo massa de tomate ovos (de granja) nos periacuteodos mais frios do ano
porque a produccedilatildeo de ovos de galinhas caipiras diminui e finalmente a laranja
(da CEASA) a partir dos meses de novembro quando a produccedilatildeo nos pomares
diminui
A escolha de consumo referente aos alimentos industrializados pelas
famiacutelias se daacute pela praticidade aliada a preccedilo pela necessidade de consumo ou
por terem se tornado inviaacuteveis a sua produccedilatildeo nos siacutetios Eacute o caso do arroz do
polvilho do accediluacutecar da rapadura do biscoito de polvilho assado e da manteiga
Sobre as opccedilotildees atuais de consumo e as mudanccedilas nos modos de vida os
depoimentos abaixo apresentam importantes reflexotildees
O ritmo na roccedila taacute muito corrido parece que o pessoal natildeo tem muito prazo mais de ficar cuidando das coisas igual antigamente acho que o pessoal tambeacutem era mais pobre precisava trabalhar mais na roccedila pra produzir e arrumar renda hoje consegue comprar mais coisa Antes soacute compravam sal agora eacute mais faacutecil comprar de tudo antes todo mundo plantava arroz e colhia agrave vontade e ainda sobrava para vender (Joel 71 anos morador de Limeira em Porto Firme MG 2015)
159
A gente compra muita coisa que natildeo compensa mais produzir e nem gente suficiente para produzir aqui na roccedila Tem coisa que natildeo daacute pra produzir aqui igual macarratildeo e rapadura natildeo daacute mais pra fazer nem arroz porque natildeo compensa cafeacute a gente ainda planta um pouquinho e feijatildeo mas soacute daacute para o gasto mesmo (Joseacute 47 anos morador de Mato Dentro Presidente Bernardes MG 2015)
Outro item comprado por todos eacute o accediluacutecar cristal que veio a substituir a
rapadura o accediluacutecar mascavo e o melado que antigamente eram produzidos
Mesmo nas famiacutelias que ainda possuem um pequeno engenho o accediluacutecar cristal
tambeacutem eacute consumido por exemplo para adoccedilar o suco de frutas fazer bolo
broa e outras quitandas Segundo os meus interlocutores o uso do accediluacutecar cristal
industrializado eacute recente datando de cerca de 30 anos
Meus pais tinham um engenho de cana e faziam rapadura e melado hoje a gente planta cana soacute para dar agraves vacasos que que tinham engenho e que continuam a plantar cana usam soacute para produzir cachaccedila ou alimentar as vacas (Lucas 52 anos morador de Bom Jesus do Bacalhau em Piranga MG 2015)
A gente fazia muito melado accediluacutecar mascavo rapadura meus filhos cresceram comendo inhame com melado era muito gostoso e um alimento forte (Luisa 57 anos moradora de Bom Retiro em Porto Firme MG 2015)
Marilia 65 anos moradora de Mestre Campos em Piranga explica
como a sua avoacute fazia o que denominava de ldquoaccediluacutecar brancordquo mas que nada tem
a ver com o accediluacutecar cristal industrializado Recebia esse nome porque era mais
claro do que o accediluacutecar mascavo constituiacutea tambeacutem em um modo ruacutestico de
fabricar o accediluacutecar no siacutetio conforme sua descriccedilatildeo
Ela batia o caldo para rapadura mas sem chegar no ponto de rapadura ai colocava essa massa numa mesa de madeira com beiral por cima da massa ainda quente ela colocava argila escura e deixava no dia seguinte a massa ficava toda quebradiccedila e bem mais clara do que a mascavo Tirava os torrotildees de argila que ficavam bem sequinhos e duro e ficava soacute o accediluacutecar (Marilia 65 anos moradora de Mestre Campos em Piranga MG 2015)
Sobre o que chamei de mescla alimentar no subtiacutetulo ou seja o
consumo concomitante de produtos tradicionais e produzidos pelas proacuteprias
famiacutelias e aqueles adquiridos no mercado ou no caminhatildeo o que a pesquisa
apontou eacute que apesar de as famiacutelias considerarem que o sabor do fubaacute e do
accediluacutecar ficou ruim comparando-se ao que conheceram anos atraacutes as famiacutelias se
mostraram adaptadas ao consumo das formas atuais desses produtos O arroz
permanece nas refeiccedilotildees de todos os dias mesmo sendo industrialmente
160
produzido De forma semelhante o fubaacute do moinho eleacutetrico continua sendo
usado para a fabricaccedilatildeo da broa e do angu a serem consumidos cotidianamente
O accediluacutecar cristal eacute usado com frequecircncia para adoccedilar bolos sucos cafeacutes e
doces Natildeo observei no grupo pesquisado resistecircncia aos produtos
industrializados que consomem Apenas o consumo do oacuteleo vegetal sofreu um
pouco de rejeiccedilatildeo embora tenha sido bem aceito para preparo de frituras exceto
para o casal Eliana e Saturnino que continua resistindo em consumi-lo
O arroz natildeo perdeu a importacircncia que tinha por ser industrializado nem
o fubaacute perdeu seu lugar nas refeiccedilotildees e nas quitandas de todos os dias por deixar
de ser produzido no moinho drsquoaacutegua tampouco a manteiga deixou de ser
consumida por ser industrializada e a margarina eacute usada na elaboraccedilatildeo de bolo
e quitandas embora natildeo seja usada para passar no patildeo O que percebi foi uma
certa resignaccedilatildeo dos meus interlocutores diante de uma realidade alimentar em
transformaccedilatildeo uma vez que as mudanccedilas em curso natildeo ocasionaram draacutesticas
adaptaccedilotildees alimentares Na medida do possiacutevel continuam a comer o que
sempre comeram e a preparar os alimentos da forma que sempre fizeram seus
pais Isso sinaliza que a cultura eacute dinacircmica e estaacute em constante transformaccedilatildeo
Em funccedilatildeo de eventos diversos novos elementos vatildeo surgindo outros vatildeo
sendo incorporados Alguns permanecem na memoacuteria e nas histoacuterias das
famiacutelias assim como outros caem no esquecimento
56 As quitandas para a merenda e para servir agraves visitas
O termo quitanda segundo Silva (2014) e Dourado (2006) origina da
palavra Kitanda da liacutengua quimbundo falada em Angola No Brasil em Minas
Gerais principalmente assumiu a significaccedilatildeo tambeacutem para comidas feitas nos
intervalos das refeiccedilotildees e agrave noite antes de dormir
Nas famiacutelias pesquisadas as quitandas satildeo elaboradas com frequecircncia
Sempre que estatildeo proacuteximas de acabar eacute o momento de fazer outra fornada mas
os dias de saacutebado especialmente satildeo os dias de abastecer a casa para receber
as visitas no domingo que geralmente satildeo a proacutepria famiacutelia os filhos os netos
e mesmo os irmatildeos Nos demais dias da semana a quitanda natildeo pode faltar
pois supre a necessidade diaacuteria pelas merendas A principal quitanda eacute a
ldquorosquinha de sal amoniacuteacordquo que tive a oportunidade de experimentar Algumas
161
mulheres tambeacutem a produzem sob encomenda geralmente para moradores das
cidades proacuteximas As outras quitandas comuns satildeo a broa e o bolo de milho O
cobu de milho (Figura 14) que eacute uma broa enrolada e assada em folha de
bananeira jaacute foi muito comum nas famiacutelias mas por ser de elaboraccedilatildeo mais
trabalhosa foi deixando se ser produzido e hoje o eacute muito raramente Agraves vezes
nos finais de ano quando as casas ficam cheias com a chegada dos filhos e
outros parentes algumas quitandas tradicionais satildeo resgatadas pelas famiacutelias
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 14 ndash Broa do tipo Cobu ou ldquopau a piquerdquo
A broa de fubaacute da Figura 15 havia receacutem-saiacutedo do forno e fui a primeira
a experimentar ainda em temperatura morna Comer bolo quente possui um
prazer especial e muitas pessoas tem essa preferecircncia Natildeo eacute pelo sabor mas
sim pelo fato de saber que se trata de bolo fresco que acaba de sair do forno
com o seu perfume ainda espalhado pelo ambiente A broa feita por Eliana (69
anos moradora de Itapeva Presidente Bernardes) me fez sentir essa sensaccedilatildeo
e neste momento minha memoacuteria afetiva eacute que me levou de volta agrave infacircncia no
siacutetio de meus avoacutes e me trouxe o cheiro que exalava de sua cozinha pela manhatilde
Neste momento da pesquisa senti fortemente a atuaccedilatildeo do tal ldquoimponderaacutevel da
pesquisardquo ao ser recebida com essa delicadeza tatildeo presente nas mulheres
162
rurais com quem tive o prazer de conviver durante a pesquisa Sensaccedilatildeo
semelhante tive ao chegar para a entrevista no siacutetio de Marilia (65 anos
moradora de Mestre Campos em Piranga) e encontrar uma mesa posta com
bolo queijo suco e cafeacute As conversas foram longas com essas e outras
mulheres Experimentei durante a pesquisa o poder da comensalidade
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 15 ndash Broa de fubaacute feita por Eliana em Itapeva Presidente Bernardes
Menos comuns de serem feitos satildeo o bolo agrave base apenas de farinha de
trigo e a ldquorosca da rainhardquo que eacute um tipo de patildeo e que utiliza a farinha de trigo e
fermento bioloacutegico que satildeo opccedilotildees agrave broa de milho Como quitandas
caracteriacutesticas da regiatildeo pesquisada eu elegeria as duas que satildeo consumidas
em todas as casas em que estive broa de fubaacute e rosquinha de sal amoniacuteaco
Mesmo naquelas casas em que natildeo se faz a rosquinha ela eacute consumida porque
eacute comprada nas proximidades
A elaboraccedilatildeo de quitandas sempre foi fundamental na zona rural desde
os tempos dos avoacutes Tanto em tempos atraacutes quanto na contemporaneidade ela
eacute a principal ldquomerendardquo nas famiacutelias Nos tempos antigos os motivos para ter a
despensa abastecida com quitandas eram o difiacutecil acesso agraves cidades e a
necessidade de economizar com essa alimentaccedilatildeo Mas pelos depoimentos das
mulheres com quem conversei e ainda segundo Frieiro (1982) as razotildees satildeo
tambeacutem culturais e simboacutelicas No periacuteodo colonial em Minas quitanda era algo
163
que se fazia em todas as casas nos fornos de barro Era uma caracteriacutestica de
virtude que se atribuiacutea agrave mulher Para ser considerada prendada a mulher
precisava ser boa quitandeira assim cada uma devia dominar bem uma receita
de quitanda que fosse sempre elogiada por quem a degustasse Freyre (2007)
tambeacutem reforccedila a valorizaccedilatildeo dada agrave mulher que dominasse muito bem a
elaboraccedilatildeo de uma receita Essas receitas soacute se passavam oralmente e a
pessoas muito iacutentimas geralmente para agraves filhas e netas
Nas famiacutelias pesquisadas essa tradiccedilatildeo perpetuou com poucas
modificaccedilotildees ao longo do tempo As receitas elaboradas satildeo as mesmas que as
matildees tias e avoacutes faziam Atualmente os siacutetios das famiacutelias pesquisadas natildeo
distam mais do que 20 quilocircmetros das cidades mais proacuteximas mas ainda assim
as idas agrave cidade exceto para quem laacute trabalha ou estuda natildeo eacute constante O
normal eacute o deslocamento com o objetivo de fazer compras receber
aposentadoria eou resolver outros assuntos e ir agrave missa uma vez ao mecircs
Assim semelhantemente aos que ocorria nos tempos passados dos
antepassados ldquoeacute preciso ter a quitanda pronta para o caso de chegar uma visita
e ter o que servir com um cafeacuterdquo
As quitandas a gente faz em casa Broa eu faccedilo todos os dias Broa de fubaacute agraves vezes bolo de farinha o biscoito eacute comprado mas eu faccedilo rosquinha Aqui na roccedila a gente tem que estar prevenida porque se chegar algueacutem a gente natildeo tem tempo de fazer e nem tem onde achar as coisas perto A venda natildeo tem muita coisachega uma visita raacutepidanatildeo daacute nem tempo pra fazer as coisas entatildeo tem que ter uma broa pronta um bolinho uma rosquinha (Lucia 61 anos moradora de Manja em Piranga MG 2015)
Na fala acima Lucia se refere a biscoito e rosquinha Biscoito para eles
eacute o que se compra como o de polvilho assado ndash que tambeacutem eacute consumido com
muita frequecircncia - o de maisena e o de aacutegua e sal para eles pode-se servir os
biscoitos comprados para as visitas mas eacute preciso ter tambeacutem uma quitanda
feita em casa neste caso a broa ou a rosquinha A expressatildeo ldquobolinhordquo natildeo se
refere a bolinho de alguma coisa como ldquobolinho de chuvardquo mas ao bolo no
diminutivo modo comum de se expressar em Minas Gerais
Em tempos passados a elaboraccedilatildeo das quitandas era tambeacutem um
momento de socializaccedilatildeo havia mais mulheres envolvidas no trabalho
geralmente matildees e filhas como citaram minhas interlocutoras As rosquinhas e
broinhas de rapadura o cobu e outras quitandas eram armazenadas em grandes
164
latas bem vedadas para natildeo perder a textura e o sabor De maneira semelhante
se dava o armazenamento na ocasiatildeo da pesquisa Poreacutem o espaccedilo de
socializaccedilatildeo no preparo natildeo eacute como outrora mas um trabalho feito de forma
praticamente individualizada Em algumas ocasiotildees como em periacuteodos de feacuterias
das filhas pode ocorrer de haver uma filha que ajude mas natildeo eacute a regra Poreacutem
trata-se de uma atividade de execuccedilatildeo totalmente feminina
No dia da entrevista com Zefa (67 anos moradora de Mato Dentro
Presidente Bernardes) natildeo havia quitanda sendo preparada no forno a lenha
mas sim um tabuleiro grande de amendoim em casca colhido no quintal que
estava sendo torrado para a elaboraccedilatildeo do lsquocajuzinhorsquo doce que seria servido
na festinha de aniversaacuterio de um ano do neto que mora na cidade de Presidente
Bernardes Ela e suas filhas que moram na cidade iriam organizar juntas essa
festinha familiar
As quitandas satildeo assadas atualmente nos fornos do fogatildeo a lenha jaacute
que os fornos de barro soacute compensam ser acesos para assar grandes
quantidades Assim a broa por ser mais simples eacute assada durante o preparo
do almoccedilo jaacute as rosquinhas satildeo assadas na parte da tarde quando as mulheres
estatildeo mais livres dos outros trabalhos por necessitarem de maior tempo na
elaboraccedilatildeo e muita atenccedilatildeo ao tempo de forno A massa da broa ou do bolo eacute
batida agrave matildeo apesar de a batedeira estar presente em todas as cozinhas e que
satildeo quase sempre presente de filhos ldquoEu bato bolo eacute na matildeo mesmo soacute uso
batedeira quando um faccedilo o ldquobolo drsquoaacuteguardquo que precisa de clara em neverdquo
(Neiva 41 anos moradora de Posses em Porto Firme) No caso de Mariacutelia (62
anos moradora de Mestre Campos Piranga) a batedeira que possui pertenceu
agrave sogra e fica guardada no soacutetatildeo da casa muito raramente utilizada A
praticidade atribuiacuteda agraves batedeiras natildeo convenceu as mulheres que entrevistei
Na realidade elas consideram mais trabalhoso lavar as paacutes da batedeira do que
bater a massa do bolo e da broa na matildeo O uso para as claras em neve
compensa pela rapidez do processo usando o equipamento eleacutetrico Ou seja a
batedeira eacute usada apenas quando se quer um bolo menos ruacutestico O meacutetodo
tradicional prevalece neste caso
Eu tenho dois fornos de barro grande no quintalfazia quitanda umas duas vezes na semana a famiacutelia era grande sete filhos hoje acaboueu faccedilo as coisas eacute no forninho do fogatildeo a lenha mesmo eu
165
jaacute vou fazendo o almoccedilo e assando a quitanda do dia (Uacutersula 78 anos moradora de Bananeiras em Presidente Bernardes MG 2015)
Eu gosto de fazer quitanda tem dia que a gente enjoa mas eu gosto de fazer sim faccedilo broa bolo rosquinha minha neta me ajuda a enrolar as rosquinhas eacute assim que as filhas e netas aprendem a cozinhar comigo tambeacutem era assim (Inecircs 72 anos moradora de Ribeiratildeo em Porto Firme MG 2015)
Para as mulheres a elaboraccedilatildeo das quitandas e doces eacute o que mais
mexe com a memoacuteria afetiva relacionada a alimentos por remeter agrave infacircncia agraves
quitandas feitas pela matildee tias e avoacutes Giard (2012) Lody (2008) e Cacircmara
Cascudo (2004) mencionam como as lembranccedilas e viacutenculos com as comidas
ajudam a manter os haacutebitos vida afora Mesmo que algumas mudanccedilas nos
modos de vida tenham ocorrido permanece o desejo de manter as quitandas do
passado
O relato acima de Inecircs sobre a participaccedilatildeo da neta ajudando a enrolar
as rosquinhas de sal amoniacuteaco que sinaliza o desejo de perpetuar uma receita
tradicional da famiacutelia bem como o de ensinar a neta eacute tambeacutem uma lembranccedila
de si mesma quando ajudava a matildee e da forma como o repasse dessa tradiccedilatildeo
se deu em sua vida Dessa maneira o aprendizado ocorre de maneira luacutedica
Gosta-se da rosquinha feita pela matildee ou avoacute tambeacutem porque era divertido ajudaacute-
las a enrolar e a pincelar com a gema Para uma crianccedila a massa da rosquinha
eacute quase como brincar com as massinhas coloridas na escola e neste caso
ldquobrinca-serdquo com a massinha feita pela avoacute e em sua companhia e ainda pode-
se comecirc-la depois de assada porque tem sabor agradaacutevel ao paladar e agrave
memoacuteria A rosquinha que Inecircs faz com a neta eacute a mesma que ela aprendeu a
fazer com a sua matildee e eacute a mesma que ensinou agraves suas filhas A transmissatildeo do
saber-fazer e dos gestuais de enrolar as rosquinhas e pincelar as gemas satildeo
registros simboacutelicos que ficam na memoacuteria Neste sentido como pondera Leacutevi-
Strauss (2003 p 15) ldquoGestos aparentemente insignificantes transmitidos de
geraccedilatildeo em geraccedilatildeo e protegidos por sua insignificacircncia mesma satildeo
testemunhos geralmente melhores do que jazidas arqueoloacutegicas ou
monumentos figuradosrdquo
O papel de Inecircs nesses momentos eacute pois o da ldquoGuardiatilderdquo da tradiccedilatildeo
(GIDDENS 2012) assunto jaacute discutido no capiacutetulo teoacuterico Em vaacuterios momentos
da entrevista os agricultores reportavam agrave figura dos avoacutes e dos pais ldquoA minha
166
matildee fazia assimrdquo ldquo Quando eu era crianccedila eu gostava de ficar acompanhando
a minha avoacute na cozinha na hortaeu aprendi muito com elardquo
Mesmo que a origem dos ingredientes mudasse por exemplo utilizando
ovo de granja no lugar do ovo caipira e manteiga industrializada o sentido
simboacutelico da receita seria o mesmo Para a neta isso natildeo faria diferenccedila
tampouco para a avoacute transmitir seu saber como pondera Giard (2012)
A aquisiccedilatildeo dos ingredientes a preparaccedilatildeo a cocccedilatildeo e as regras de compatibilidade podem muito bem mudar de uma geraccedilatildeo agrave outra Mas o trabalho cotidiano das cozinhas continua sendo uma maneira de unir mateacuteria e memoacuteria vida e ternura instante presente e passado que jaacute se foi invenccedilatildeo e necessidade imaginaccedilatildeo e tradiccedilatildeo ndash gostos cheiros cores sabores formas consistecircncias atos gestos movimentos coisas e pessoas calores sabores especiarias e condimentos (GIARD 2012 p 296)
Outra questatildeo tambeacutem discutida no item 36 do capiacutetulo anterior trata do
papel historicamente e culturalmente atribuiacutedo agrave mulher no que se refere agrave
alimentaccedilatildeo e agrave cozinha A heranccedila culinaacuteria nas famiacutelias eacute claramente feminina
A matildee ensina a filha eou a neta Antocircnio 78 anos jaacute citado anteriormente
agricultor que tambeacutem foi padeiro eacute o uacutenico exemplo de envolvimento masculino
na atividade ligada agrave culinaacuteria uma exceccedilatildeo
Um assunto jaacute mencionado no capiacutetulo anterior trata da naturalizaccedilatildeo do
gostar de cozinhar Culturalmente tende-se a imputar agraves mulheres o prazer da
culinaacuteria como se o normal fosse que todas gostassem de cozinhar e de assumir
a responsabilidade de alimentar o outro Essa naturalizaccedilatildeo ocorre segundo
Arnaiz (1996) primeiramente em funccedilatildeo da funccedilatildeo bioloacutegica da amamentaccedilatildeo
Um aspecto bioloacutegico que se ampliou para a funccedilatildeo domeacutestica como se fosse
natural Natildeo eacute Algumas mulheres podem gostar muito de cozinhar outras
podem gostar mais ou menos o que parece ser o caso de Inecircs ndash quando diz
ldquotem dia que enjoardquo e pode haver aquelas mulheres que natildeo gostam Durante a
entrevista apoacutes um longo tempo de conversa eu lhes perguntava ndash Vocecirc gosta
de cozinhar Algumas sorriam timidamente ao responder que natildeo gostavam
muito o que me pareceu um certo constrangimento em negar uma condiccedilatildeo
atribuiacuteda como sendo natural ou normal como se eu esperasse uma
confirmaccedilatildeo Como resultado dessas respostas apenas onze mulheres
disseram realmente gostar da atividade e sentir prazer com as funccedilotildees
alimentares que assumem O restante natildeo gosta muito da atividade mas
167
nenhuma delas disse detestar a atividade culinaacuteria As falas reproduziam o
sentido de fazer ldquoporque eacute precisordquo ldquoEu pra falar a verdade natildeo gosto muito
natildeo eu fico na cozinha porque natildeo tem outro recurso mas natildeo gosto muito de
cozinha natildeo eu preferiria ficar soacute costurandordquo (Nanaacute 62 anos moradora de
Xopotoacute em Presidente Bernardes)
Eu gosto Eu natildeo faccedilo por obrigaccedilatildeo natildeo eu gosto aprendi a cozinhar com minha matildee aprendi ajudando Faccedilo broa todo dia Vocecirc viu neacute hoje mesmo eu tocirc fazendo doce de figo e de ameixa vou ali colho e faccedilo faccedilo doce de cidra doce de manga doce de goiaba doce de banana que a gente colhe aqui tambeacutem (Marieta 73 anos moradora de Boa Vista em Piranga MG 2015)
Assim gostar gostar eu natildeo gosto natildeo preferia natildeo ter que cozinhar todo dia porque cansa mas tambeacutem ficar parado sem ter o que fazer eacute ruim pelo menos enquanto eu estou fazendo as coisas eu distraio (Antonina 74 anos moradora de Bananeiras em Presidente Bernardes MG 2015)
As mulheres que dizem gostar de cozinhar principalmente fazer
quitandas e doces satildeo aquelas que mais relataram o prazer de ver a casa cheia
de filhos e netos nas feacuterias feriados e aos domingos Satildeo tambeacutem as mulheres
mais velhas aposentadas Os casais de aposentados relataram certa solidatildeo de
vida nos siacutetios principalmente os que natildeo tecircm filhos por perto o que torna o fato
de receber a famiacutelia em casa uma forma de romper temporariamente com a
solidatildeo Para essas mulheres casa cheia eacute sinal de consumo de muita comida
principalmente porque a cozinha eacute sempre o lugar preferido da casa nessas
ocasiotildees como afirmaram
Dentre as atividades culinaacuterias preferidas lidar com a elaboraccedilatildeo das
quitandas se destaca preferem fazer bolos broas e rosquinhas (a favorita entre
todas as outras) do que preparar a comida do almoccedilo e do jantar
O patildeo francecircs alimento comum nos lanches ou rdquomerendasrdquo na aacuterea
urbana natildeo eacute comumente consumido e natildeo faz parte dos haacutebitos alimentares
das famiacutelias pesquisadas Eacute um item agraves vezes adquirido nas idas agrave cidade
quando costumam comprar rosca doce ou outro patildeo doce Algumas mulheres
gostam de fazer de vez em quando a ldquorosca da rainhardquo Eacute o uacutenico patildeo que foi
citado como elaboraccedilatildeo em algumas poucas casas Antonio informou durante
nossa conversa que ele natildeo conseguia vender patildeo na aacuterea rural porque as
mulheres tinham o haacutebito de fazer broa diariamente Soacute conseguia vender patildees
franceses para moradores da cidade
168
57 Receitas oralidade e registros em cadernos
Esse tema na pesquisa teve como objetivo verificar se as receitas satildeo
transmitidas por oralidade ou por registros escritos O caderno de receitas natildeo eacute
comum para todas as mulheres sobretudo entre as mulheres mais velhas acima
de 50 anos Entre elas satildeo poucas as que possuem receitas escritas
predominando a oralidade na transmissatildeo e o registro na memoacuteria das receitas
que fazem com mais frequecircncia do arroz doce ao doce de figo natildeo se recorre
agraves receitas escritas para elabora-los
Eliana por exemplo natildeo possui cadernos de receitas Tudo o que
aprendeu foi repassado oralmente ao observar e ajudar a matildee e a avoacute
Minha matildee natildeo sabia escrever e nem ler entatildeo natildeo tinha caderno ela aprendeu vendo a matildee dela fazer eu aprendi do mesmo jeito e as minhas filhas tambeacutem aprenderam a cozinhar comigo assim me vendo fazer elas devem ter caderno de receita eu nem sei mas devem de ter sim elas estudaram satildeo inteligentes (Eliana 69 anos moradora de Itapeva em Presidente Bernardes MG 2015)
A filha que mora aqui em casa natildeo gosta de cozinha natildeo mas a outra filha casada gosta Eu aprendi a cozinhar com minha matildee desde novinha mas eu natildeo faccedilo nada de receita natildeo minha matildee nunca teve caderno de receita minha filha casada aprendeu comigo ela me ajudava mas ela tem caderno de receita ela gosta de experimentar umas coisas diferentes para os filhos (Nanaacute 62 anos moradora de Xopotoacute em Presidente Bernardes MG 2015)
Nanaacute aponta em sua fala que das duas filhas uma que eacute casada e tem
filhos gosta de cozinhar e de experimentar novidades e ela associa as ldquocoisas
diferentesrdquo das quais a filha gosta como sendo comidas modernas e por isso
devem estar registradas em um caderno de receita pois o que eacute tradicional fica
registrado na mente eacute memorizado Sua outra filha a mais nova com 26 anos
que eacute solteira e estuda na faculdade natildeo gosta de culinaacuteria No depoimento de
Eliana haacute uma associaccedilatildeo do caderno de receitas com inteligecircncia e a falta dele
com o analfabetismo A sua matildee natildeo sabia ler ela mesmo lecirc pouco e justifica
isso como motivo pelo qual ela natildeo tem um caderno mas destaca que as filhas
por terem estudado devem possuir um
Giard (2012) relata depoimentos de mulheres que pesquisou na Europa
sobre cadernos de receitas tradicionais da famiacutelia que possuem semelhanccedila ao
depoimento de Eliana Uma das mulheres do trabalho de Giard respondeu que
169
as avoacutes eram tatildeo pobres que mal tinham uma cozinha e caderno de receitas natildeo
tiveram tambeacutem
Se a oralidade eacute ainda a forma mais presente de transmissatildeo dos
saberes nas famiacutelias pesquisadas fica a reflexatildeo de como isso poderaacute vir a
ocorrer no futuro com a tendecircncia de saiacuteda dos jovens das aacutereas rurais O maior
comprometimento neste sentido seria em relaccedilatildeo aos modos de fazer
tradicionais nas famiacutelias A oralidade estaacute muito ligada agraves mulheres mais velhas
acima de 50 anos As mulheres mais novas falando aqui da faixa etaacuteria
aproximada de 30 a 45 anos apesar de terem aprendido por oralidade com as
matildees natildeo tecircm aplicado a transmissatildeo das suas praacuteticas culinaacuterias agraves filhas
mesmo porque segundo mencionaram natildeo observam muito interesse ldquodas
filhasrdquo (falaram em relaccedilatildeo agraves filhas e natildeo filhos) na atividade culinaacuteria
Considerando que receitas culinaacuterias atualmente satildeo facilmente
encontradas em banca de revista na internet e no verso de embalagens
industrializadas registrar receitas na memoacuteria ou possuir um caderno de receitas
personalizado pode natildeo fazer muito sentido para as geraccedilotildees mais jovens
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 16 ndash Caderno de receitas que pertenceu agrave matildee de Anita moradora da Comunidade Manja em Piranga
A Figura 16 mostra um ldquocadernordquo que pertenceu a matildee de Anita (71
anos moradora da Comunidade Manja em Piranga) jaacute falecida Trata-se de um
caderno de contas usado tambeacutem para registrar as receitas Na receita haacute uma
170
referecircncia a um ldquopacote de creme infantilrdquo Pesquisei sobre isso e verifiquei que
produtos da Marca Nestleacute jaacute eram vendidos no Brasil na deacutecada de 1920 e na
faacutebrica na cidade de Araras produtos ldquoLactogenordquo (tipo de leite em poacute infantil)
farinha laacutectea e leite condensado Tambeacutem jaacute se vendia na forma embalada a
farinha de trigo poacute Royal e a Maisena A duacutevida que fica eacute se eram produtos que
chegavam facilmente no interior de MG na eacutepoca Haacute que se observar tambeacutem
que o caderno de contas utilizado para anotaccedilotildees estava datado o que natildeo se
sabe eacute se a receita anotada tambeacutem pertence ao mesmo periacuteodo ou se foi
aproveitado como cadernos para anotaccedilotildees de receitas e o tal ldquobolo de Mirardquo
pode ter sido registrado em data posterior Sobre anotaccedilotildees de receitas em
diversos tipos de materiais reporto a Abrahatildeo (2007) que aponta para registros
de receitas culinaacuterias que encontrou anotadas em diversos tipos de lugares e
natildeo raro em conjunto com lista de compras informaccedilotildees sobre plantio etc
A Figura 17 mostra um caderno feito com capricho que pertence a Lucia
(61 anos moradora de Manja Piranga) Ela possui trecircs cadernos de receitas
Um deles pertenceu a sua matildee e os outros dois ela mesma fez com a ajuda das
filhas Quando queria guardar uma receita pedia a uma das filhas para copiar
no caderno outras vezes ela mesmo registrava e recortava figuras de revistas
que encontrasse para ilustrar Na ocasiatildeo da pesquisa ela mencionou que natildeo
tem mais paciecircncia para registrar as receitas mas como gosta de cozinhar
costuma fazer uma ou outra receita poreacutem a maioria dos pratos que gosta de
fazer jaacute estaacute registrada na memoacuteria
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 17 ndash Caderno de receitas de Lucia da Comunidade Manja em Piranga
171
Algumas mulheres demonstraram certo constrangimento em mostrar os
cadernos Diziam que estavam ldquomanchadosrdquo ldquosujosrdquo ldquorasgadosrdquo ldquobagunccediladosrdquo
ldquomal escritosrdquo mas outras se sentiram agrave vontade e mostravam as receitas que
mais gostavam Apenas um caderno estava mais organizado o restante possuiacutea
folhas soltas anotaccedilotildees diversas e desordenadas inclusive endereccedilos de
pessoas contas lembretes e listas de compra As anotaccedilotildees eventuais nesses
cadernos ocorrem porque eles estatildeo visiacuteveis em locais de faacutecil acesso na
cozinha e na falta de outro papel para anotaccedilotildees raacutepidas ele assume esta
funccedilatildeo Pela mesma razatildeo muitos possuem manchas de gordura e respingos
de ingredientes que estavam sendo usados durante a elaboraccedilatildeo da receita Satildeo
detalhes que tambeacutem ldquofalamrdquo da cozinha e dos haacutebitos alimentares das famiacutelias
Eu tenho caderno de receita soacute que taacute tudo rasgado elas satildeo todas testadas ou foi por minha matildee ou minhas avoacutes ou minhas tias primas nada eacute copiado de televisatildeo ou de revista As folhas estatildeo quase todas soltas mas hoje quase tudo que faccedilo eu jaacute sei de cabeccedila (Claudia 66 anos moradora de Limeira em Porto Firme MG 2015)
Tenho uma agenda que uso como caderno de receita eacute uma agenda que desde 1977 quando eu casei que eu anotava tudo inclusive coisa de costura e tem ateacute receita tambeacutem (Mariacutelia 62 anos moradora de Mestre Campos em Piranga MG 2015)
Fonte Luiacutes Pereira pesquisa de campo 2015
Figura 18 ndash Mariacutelia da Comunidade de Mestre Campos em Piranga mostrando seus livros e cadernos de receitas
172
Folheando o caderno de Marieta (73 anos moradora de Boa Vista em
Piranga) me deparei com uma receita de brevidade Comentei que aprecio muito
esse bolo mas que seguindo a receita de minha matildee registrada em seu caderno
a minha nunca fica igual agrave que ela fazia Marieta resolveu entatildeo me ensinar
uma receita faacutecil que prometi testar
ldquoVou te ensinar uma receita faacutecil e muito gostosa A receita chama assim ldquo5 10 15rdquo e eacute assim Vocecirc potildee numa vasilha 5 (cinco) ovos inteiros 10 (dez) colheres de accediluacutecar bate bem e ai coloca as 15 (quinze) colheres de maisena e bate mais ainda Coloca numa forma redonda untada e potildee no fornordquo (Marieta 73 anos moradora de Boa Vista Piranga MG 2015)
Em relaccedilatildeo agraves receitas e agrave cozinha Marieta e Zefa de Presidente
Bernardes foram as mulheres mais empolgadas Contaram detalhes de algumas
quitandas que fazem e de outras que eram feitas por suas matildees e avoacutes Elas
fazem parte das poucas mulheres que entrevistei que confirmaram um grande
prazer em cozinhar
58 Os equipamentos da cozinha rural do fogatildeo a lenha agrave panela eleacutetrica de arroz
Foi em torno do fogatildeo a lenha que muitas das entrevistas aconteceram
enquanto as mulheres preparavam o almoccedilo O fogatildeo a lenha eacute o equipamento
que eu elegeria como o mais representativo na realidade das famiacutelias presente
em todas as cozinhas que visitei durante a pesquisa de campo dos mais
tradicionais feitos de argila aos mais modernos revestidos por azulejo
Instrumento transformador do ldquocru em cozidordquo e da ldquonatureza em culturardquo
propiciador de socializaccedilatildeo e de comensalidade nos dias de inverno por manter
a cozinha aquecida as pessoas gostam de ficar em torno dele sendo assim um
instrumento propiciador de sociabilidades Aleacutem desses aspectos eacute tambeacutem
usado para aquecer a aacutegua do chuveiro via serpentina
Aquela copa ali com aquela mesa eu falo que eacute pra enfeite porque quando meus filhos vem pra caacute com os filhos deles eles juntam tudo eacute aqui na cozinha Senta nesse banco ai nas cadeiras trazem mais cadeira e ficam aqui tem um filho meu que gosta de fritar torresmo ai jaacute viu neacute (Antonina 74 anos moradora de Bananeiras Presidente Bernardes MG 2015)
Eu fico ateacute meio brava agraves vezes e jaacute falo logo - Se ficar em volta de mim no fogatildeo a comida natildeo vai sair natildeo pode esparrodar todo
173
mundo pra laacute (Anita 71 anos moradora de Manja Piranga MG 2015)
Os fogotildees revestidos por azulejos representam um aspecto recente
Segundo os interlocutores uma famiacutelia reformou e revestiu o seu fogatildeo o vizinho
viu aprovou e tambeacutem reformou o seu e em pouco tempo vaacuterios fogotildees na
regiatildeo seguiram a mesma tendecircncia Para eles o revestimento em azulejo
manteacutem o fogatildeo mais limpo por fora porque eacute de faacutecil limpeza Em 11 casas
nos diferentes municiacutepios o fogatildeo estava revestido com esse material No
restante o revestimento era de argila e tinta avermelhada na tonalidade de tijolo
ou amarelado Todos possuem formato semelhante com forno anexo usado
para assar a maior parte das quitandas alguns possuem compartimento para
armazenar lenha e outros natildeo A respeito dos dois modelos de revestimento
apesar de o azulejado dar ao fogatildeo uma conotaccedilatildeo ldquomodernardquo pelo tipo de
revestimento isso natildeo altera em nada a tecnologia do fogatildeo A modernidade
conferida pelo revestimento do azulejo eacute de ordem mais esteacutetica do que
funcional
As Figuras 19 e 20 mostram os fogotildees a lenha comuns e de uso
prioritaacuterio nas casas O primeiro fogatildeo (Figura 19) pertencente agrave Mariacutelia (62 anos
moradora de Mestre Campos Piranga MG) eacute feito em alvenaria revestido por
cimento queimado no estilo tradicional e pintado de amarelo e com barras de
contorno na cor vermelha Sobre ele panelas feitas de materiais diversos como
alumiacutenio pedra barro e ferro Colher de pau e de accedilo inoxidaacutevel O fogatildeo estaacute
com o almoccedilo do dia pronto para ser servido (feijatildeo arroz angu couve carne
de boi moiacuteda com cebolinha de folha) Para evitar sujeiras e proteger o fogatildeo
uma taacutebua de madeira eacute usada como suporte para as panelas e uma lata de tinta
foi reaproveitada para forrar o local do fogo
174
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 19 ndash Fogatildeo a lenha no siacutetio de Mariacutelia
O segundo fogatildeo (Figura 20) pertencente agrave famiacutelia de Nanaacute e Custoacutedio
(61 e 72 anos respectivamente moradores de Xopotoacute em Presidente
Bernardes) eacute revestido por azulejo no estilo mais moderno Como eacute de mais
faacutecil higienizaccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria a proteccedilatildeo pela taacutebua de madeira e pela
placa de lata que haacute no fogatildeo anterior Sobre este fogatildeo estatildeo apenas panelas
de alumiacutenio com o almoccedilo a ser servido (feijatildeo angu batata doce frita couve e
peixe frito (Carpa-capim pescado no rio que passa nos fundos da casa)
Tambeacutem foi servido arroz mas neste caso feito em panela eleacutetrica um item
moderno e do qual falarei mais adiante Outro elemento da modernidade que se
observa na foto satildeo os dois potes de margarina em uma cozinha de caraacuteter
tradicional mas onde elementos da modernidade tambeacutem se fazem presentes
Nesta casa a panela eleacutetrica de fazer arroz fica sobre a pia e um moedor de cafeacute
preso afixado na parede ao lado da mesma pia O peixe e a batata doce por
exemplo foram fritos em oacuteleo de soja e a verdura e o feijatildeo refogados em gordura
de porco Nesta cozinha observei muitos dos elementos da mescla cultural
relativos agraves praacuteticas alimentares
175
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 20 - Fogatildeo a lenha no siacutetio de Nanaacute e Custoacutedio
Um detalhe que observei tambeacutem em todas as cozinhas eacute o cuidado com
a higiene e organizaccedilatildeo das cozinhas Na Figura 20 a pia possui uma cortina
estampada feita pela proacutepria Nanaacute que eacute tambeacutem costureira Coincidentemente
ou natildeo as cores das garrafas teacutermicas combinam com a cor da cortina Na Figura
19 tambeacutem os detalhes chamam a atenccedilatildeo Haacute nessas cozinhas uma noccedilatildeo de
esteacutetica e cuidado com a decoraccedilatildeo que indicam o quanto a cozinha eacute parte
importante da casa e merece destaque pelas famiacutelias em sua organizaccedilatildeo
A Figura 21 eacute outro exemplo Mostra a cozinha pertencente a Eliana e
Saturnino (69 e 75 anos respectivamente moradores de Itapeva Presidente
Bernardes) onde as cadeiras verdes combinam com a cor da porta do forno e
ficam em local estrateacutegico proacuteximo ao calor do fogo Em geral todas as cozinhas
das casas em que estive tem caracteriacutesticas como essas umas mais tradicionais
do que outras mais bonitas esteticamente do que outras mas todas muito
organizadas e limpas
176
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 21 ndash Cozinha com fogatildeo a lenha (azulejado) em siacutetio de Eliana e Saturnino
O fogo eacute destacado por Leacutevi-Strauss (1968) Wrangham (2010)
Montanari (2008) e outros como sendo fundamental para a transformaccedilatildeo do
alimento em comida e no processo da transformaccedilatildeo da natureza em cultura Se
em tempos remotos cozinhavam-se as caccedilas e outros alimentos a ceacuteu aberto
com o passar do tempo o fogo passou a ser inserido no ambiente domeacutestico e a
fazer parte do ambiente fiacutesico das casas Lemos (1996) aponta que durante
muito tempo tanto em Portugal quanto no Brasil as moradias eram chamadas
de fogos ou fogotildees tamanha a importacircncia deste equipamento
Wilson (2014 p 126) aponta que o fogo foi aos poucos sendo apagado
no mundo desenvolvido uma condiccedilatildeo necessaacuteria inclusive para que ele se
incorporasse agraves estruturas das casas Assim surgiram na Inglaterra os ldquofogotildees
fechadosrdquo que funcionavam agrave lenha e que serviam tambeacutem para aquecer a agua
ldquoUm fogatildeo nunca servia apenas para cozinhar tambeacutem era essencial para
fornecer aacutegua quente a toda a famiacutelia esquentar ferros de passar e aquecer as
matildeosrdquo Com o evento da Revoluccedilatildeo Industrial surgiram os fogotildees agrave base de
ferro fundido que funcionavam a carvatildeo Mas a autora explica que seu uso era
comum nas cidades pois nas aacutereas rurais permaneceu o uso do fogatildeo agrave lenha
por muitos anos O avanccedilo tecnoloacutegico logo propiciou o surgimento do fogatildeo a
gaacutes na deacutecada de 1880 considerado pela autora como um equipamento que
177
gerou ldquoum progresso real na cozinhardquo A sua aceitaccedilatildeo foi raacutepida em funccedilatildeo de
sua facilidade e praticidade e como mencionado pela autora em 1939 na
Inglaterra trecircs quartos das famiacutelias cozinhavam no fogatildeo a gaacutes
No que se refere ao grupo pesquisado mesmo em virtude de sua
praticidade o fogatildeo a gaacutes natildeo substituiu o fogatildeo agrave lenha Esse siacutembolo de
modernidade natildeo foi forte o suficiente para romper com a tradiccedilatildeo do fogatildeo agrave
lenha O fogatildeo a gaacutes eacute pouquiacutessimo utilizado ndash apenas para preparar o cafeacute da
manhatilde enquanto acende-se o fogatildeo a lenha ou para fazer ldquocoisa menorrdquo como
aquecer uma aacutegua ou o leite agrave tarde
No caso das famiacutelias em que as mulheres trabalham fora do siacutetio o fogatildeo
a gaacutes eacute mais usado para elaboraccedilatildeo do almoccedilo do que o fogatildeo a lenha A razatildeo
eacute a facilidade para os maridos e os filhos que aquecem o almoccedilo que elas deixam
pronto ou adiantado mas o fogatildeo a lenha permanece usado para aquecer a aacutegua
aquecer a aacutegua do chuveiro pela serpentina como citado por Ivone
Usamos mais o fogatildeo a gaacutes no dia a dia porque eu trabalho na escola do arraial de manhatilde e quando eu chego costumo ir ajudar meu marido ai ateacute acender o fogo demora muito pra aquecer entatildeo o fogatildeo a gaacutes eacute mais praacutetico para noacutesa gente liga o fogatildeo a lenha mesmo mais pra esquentar a aacutegua do chuveiro porque a gente tem serpentina mas a comida mesmo eacute no gaacutes Mas agrave tarde eacute mais faacutecil esquentar a comida no fogatildeo a lenha ainda mais agora que o frio vai chegando porque ele esquenta a casa (Ivone 38 anos moradora de Posses em Porto Firme MG 2015)
Nos que se refere ao uso dos fogotildees eacute tambeacutem possiacutevel perceber a
mescla cultural o moderno e o tradicional convivendo sem que isso gere
mudanccedilas radical nos costumes
As localizaccedilotildees das cozinhas nas casas que visitei satildeo nos fundos da
casa voltadas para o quintal semelhantemente ao que eacute apontado por Lemos
(1976) e Abrahatildeo (2007) sobre a disposiccedilatildeo do fogatildeo e da cozinha das casas
coloniais brasileiras Os fogotildees a lenha assim como o fogatildeo a gaacutes ficam na
ldquocozinha limpardquo expressatildeo usada por Algranti (1997) que eacute interna agrave casa Em
algumas casas havia tambeacutem a ldquocozinha sujardquo que possui mais um fogatildeo a
lenha e ou a gaacutes para torrar pequenas quantidades de cafeacute ligar o acendedor
de ldquolimparrdquo o porco apoacutes o abate fazer frituras de toucinho torresmo etc Natildeo se
trata de uma outra cozinha de alvenaria fechada mas sim de uma pequena
coberta no quintal
178
Outro fogatildeo que fica externo agrave casa eacute o fogatildeo de Cupim jaacute citado (Figura
21) Os fogotildees de cupim tambeacutem satildeo usados para fazer as comidas mais
gordurosas como descreve Doca (55 anos moradora de Boa Vista Piranga)
ldquoQuando a gente mata capado a gente frita as carnes os toucinhos no fogatildeo
de cupim laacute forardquo Os cupins satildeo retirados dos pastos e transportados por
carroccedila ateacute o quintal Neles satildeo feitos um buraco na lateral e rente ao chatildeo onde
eacute colocada a lenha e outro buraco em cima onde coloca-se a panela
Como jaacute mencionado o forno de barro apesar de existente nas casas
quase natildeo eacute utilizado pelas famiacutelias atualmente por motivos jaacute expostos Em uma
das casas o forno estava sendo usado para guardar objetos em desuso
Mas quando meus filhos vecircm ai sim eu acendo o forno grande laacute fora Eles sempre vecircm no natal A casa fica cheia ai daacute gosto usar o forno eles pedem pra fazer o que eles gostam ai a gente faz neacute (Zefa 67anos moradora de Mato Dentro em Presidente Bernardes MG 2015)
A Figura 22 pertence ao siacutetio de Selma e Lourival (68 e 76 anos
respetivamente) moradores da comunidade Tatu em Piranga Ao lado do forno
em alvenaria haacute uma espeacutecie de churrasqueira coberta com uma chapa de ferro
e uma churrasqueira menor de ferro fundido Esse espaccedilo segundo Selma eacute
utilizado apenas quando a casa estaacute cheia com a presenccedila dos filhos que gostam
e fazer churrascos quando estatildeo reunidos Nessas ocasiotildees ela tambeacutem utiliza
o forno para assar maior quantidade de quitandas
Fonte Romilda Lima pesquisa de campo 2015
Figura 22 ndash Forno de barro e churrasqueira no siacutetio de Selma e Lourival
179
As famiacutelias possuem alguns equipamentos eleacutetricos nas cozinhas forno
de micro-ondas forno eleacutetrico panela eleacutetrica de fazer arroz e freezer mas nem
todos faziam parte da realidade de todas as famiacutelias Jaacute o liquidificador a
batedeira de bolo o espremedor de frutas e a geladeira existentes em todas as
casas O forno de micro-ondas o freezer e a batedeira de bolo satildeo usados
esporadicamente como jaacute visto no assunto sobre as quitandas com exceccedilatildeo do
freezer de Marcelina que estoca os salgados que produz para vender Natildeo
gostam de usar a batedeira porque ldquodaacute trabalho para lavar e depois guardarrdquo
A gente usa o micro-ondas para esquentar uma comida um leite agrave noite agraves vezes para descongelar uma carne comprar carne no accedilougue taacute muito caro assim eu mato um garrote vem um moccedilo do accedilougue da cidade e mata para noacutes ele conhece as partes desossa e ai congela as partes separadaspotildee nome das carnes em todos os pacotes separados e fica num freezer que a gente tem soacute pra isso (Joatildeo 81 anos morador de Aacutegua Limpa Porto Firme MG 2015)
Considerei interessante o desprendimento com o qual Joatildeo com seus
81 anos falava sobre o uso do micro-ondas Sabe utilizar o equipamento e
apesar de natildeo usar com frequecircncia natildeo demonstrou resistecircncia em utiliza-lo
quando necessaacuterio mas natildeo foi sempre assim O equipamento foi presente dado
por um dos filhos que moram fora da regiatildeo e durante muito tempo o casal
atribuiacutea utilidade a ele ateacute os filhos mostrarem alguns resultados de
descongelamento e aquecimento como o que a famiacutelia mais utiliza explicitado
na sua fala Wilson (2014) discute sobre a resistecircncia que muitos equipamentos
de uso corriqueiro na contemporaneidade ndash dentre eles o micro-ondas ndash tiveram
quando do seu surgimento tendo sido recebido sob protestos de que os meacutetodos
antigos eram melhores e mais seguros
Em quatros das casas que visitei havia a panela eleacutetrica de fazer arroz
Foram presentes de filhos ou mesmo adquiridos pelas mulheres inicialmente
pela curiosidade associada ao preccedilo relativamente baixo Este equipamento
surgiu no Japatildeo na deacutecada de 1960 mudando completamente a rotina de
produzir o tipo de arroz nas cozinhas asiaacuteticas Wilson (2014) destaca que esse
tipo de panela eacute equipamento mais importante nas casas japonesas do que a
televisatildeo Nas famiacutelias que pesquisei e que possui a panela eleacutetrica ela nem de
longe eacute mais importante do que outros equipamentos tradicionais como o fogatildeo
mas estaacute ganhando espaccedilo de convivecircncia na cozinha sem maiores conflitos
180
Em uma das casas onde almocei tive a oportunidade de conhecer seu
funcionamento e experimentar o arroz produzido As mulheres elogiaram o
equipamento afirmando que ldquoO arroz fica mais soltinho eacute muito melhor fazer
arroz nela natildeo daacute trabalho nenhumrdquo (Nanaacute moradora de Xopotoacute em Presidente
Bernardes)
A presenccedila e uso desses equipamentos satildeo tambeacutem exemplos da
coexistecircncia entre elementos modernos e tradicionais nas famiacutelias Enquanto se
faz o restante da comida no fogatildeo a lenha a panela eleacutetrica de arroz fica em
funcionamento sobre a pia Giard (2012) ao tratar da introduccedilatildeo dos
equipamentos eleacutetricos na cozinha destaca que o uso de um aparelho eleacutetrico
envolve a relaccedilatildeo instrumental que se estabelece entre utilizador e objeto
utilizado ldquoA cozinheira apenas alimenta esse objeto teacutecnico com ingredientes
que devem ser transformados depois liga o aparelho apertando um botatildeo
eleacutetrico e recolhe a mateacuteria transformada sem controlar as etapas intermediaacuterias
da operaccedilatildeordquo (GIARD 2012 p 284) Para esta autora apesar da praticidade
desses equipamentos eleacutetricos eles propiciaram rompimentos na transmissatildeo
de algumas habilidades culinaacuterias mas ainda assim considera perfeitamente
possiacutevel a junccedilatildeo da modernidade dos equipamentos eleacutetricos com os utensiacutelios
tradicionais usufruindo das comodidades oferecidas pelos primeiros e mantendo
relaccedilatildeo igualmente necessaacuteria e importante com os objetos tradicionais Mas
defende que satildeo formas de convivecircncia que natildeo devem ser impostas cada
grupo ou pessoa deve fazer sua escolha de acordo com suas manifestaccedilotildees
culturais
Finalizando a pesquisa de campo destaco que ela trouxe informaccedilotildees
ricas sobre o modo de vida a sociabilidade e a cultura das famiacutelias pesquisadas
no que se refere agraves praacuteticas alimentares e a comensalidade A pesquisa mostrou
que as famiacutelias estatildeo inseridas em uma cultura que eacute dinacircmica mas que
preserva e valoriza a cultural tradicional Percebi durante a investigaccedilatildeo muitas
conexotildees e correlaccedilotildees com a pesquisa teoacuterica me conduzindo o tempo a fazer
reflexotildees analiacuteticas pensando na interface entre a teoria e a praacutetica Sobre as
percepccedilotildees finais relacionadas ao campo teccedilo consideraccedilotildees no item a seguir
181
CONCLUSOtildeES
Neste trabalho apontei caracteriacutesticas e peculiaridades das praacuteticas
alimentares das famiacutelias rurais que entrevistei O tema da alimentaccedilatildeo natildeo se
conclui pelo contraacuterio ele eacute dinacircmico Chamo de conclusatildeo aqui o fechamento
analiacutetico com outras discussotildees e reflexotildees sobre esta pesquisa
Haacute uma discussatildeo na antropologia e sociologia da alimentaccedilatildeo sobre a
tendecircncia a homogeneizaccedilatildeo alimentar na sociedade ocidental seguindo os
rumos da sociedade moderna e globalizada como tratado por Bauman (2001)
Esta premissa foi um dos pontos que me fez refletir inicialmente o problema de
pesquisa ao questionar se nela natildeo estava impliacutecita uma desconsideraccedilatildeo agraves
diversidades culturais Nesse sentido pensei a questatildeo no contexto rural ndash
especialmente no contexto rural da Zona da Mata mineira por ser nele onde
mais tive a oportunidade de conviver socialmente e academicamente ateacute hoje
Assim conhecer e analisar o sistema alimentar de famiacutelias rurais seus
haacutebitos praacuteticas e a comensalidade foi fundamental para ponderar e tecer
consideraccedilotildees conclusivas a respeito dessa questatildeo Este trabalho permitiu
compreender que tal premissa natildeo se aplica agrave realidade sociocultural das
famiacutelias pesquisadas No contexto cultural em que vivem natildeo se verificou a
adoccedilatildeo das praacuteticas alimentares homogeneizantes das quais trata Fischler (1979
e 1998) homogeneidade considerada como um resultado natural na dinacircmica
da sociedade contemporacircnea em funccedilatildeo das constantes inovaccedilotildees na induacutestria
de alimentos tornando potencialmente inevitaacutevel a praacutetica e o consumo
alimentar cada vez mais padronizados no ocidente Embora as famiacutelias natildeo
estejam imunes agraves modernidades alimentares da induacutestria demonstraram
capacidade e interesse em selecionar o que desse contexto deve ser adotado e
o que deve ser rejeitado por elas
A pesquisa mostrou a existecircncia de uma homogeneizaccedilatildeo alimentar na
realidade cultural das famiacutelias pesquisadas poreacutem uma homogeneizaccedilatildeo local
e pontual que natildeo eacute semelhante a homogeneizaccedilatildeo alimentar tratada pelo autor
acima Ao contraacuterio nas famiacutelias que pesquisei essa homogeneidade alimentar
estaacute inteiramente ligada agrave tradiccedilatildeo e agrave produccedilatildeo local de alimentos Ela eacute
inclusive compatiacutevel com o processo sociohistoacuterico de ocupaccedilatildeo da regiatildeo e
diretamente determinada por ele Coincidindo com o que pondera Flandrin e
182
Montanari (1998) sobre a necessidade de relativizar a discussatildeo sobre a
homogeneizaccedilatildeo cultural e considerar as particularidades sociais e culturais dos
grupos
Todas as famiacutelias pesquisadas abrangendo os trecircs municiacutepios tecircm
haacutebitos e praacuteticas alimentares semelhantes independente da faixa etaacuteria dos
casais e filhos que formam o grupo familiar A semelhanccedila tambeacutem se aplica aos
produtos cultivados nos siacutetios que representam quase que a totalidade da dieta
baacutesica das famiacutelias Assemelham-se tambeacutem os alimentos adquiridos do
mercado
As mudanccedilas observadas nas praacuteticas alimentares tais como a adoccedilatildeo
de novas tecnologias ndash entre elas a substituiccedilatildeo do moinho drsquoaacutegua pelo moinho
eleacutetrico e a opccedilatildeo de comprar alguns alimentos antes produzidos por eles como
o arroz e o accediluacutecar ndash natildeo implica um abandono total da tradiccedilatildeo As famiacutelias estatildeo
convivendo ou se adaptando aos processos de mudanccedilas no mundo
contemporacircneo sem transformar significativamente a proacutepria cultura O uso do
moinho eleacutetrico em lugar do moinho drsquoaacutegua natildeo tem colocado em risco o
consumo do fubaacute na elaboraccedilatildeo de comidas tradicionais como o angu e a broa
Esse comportamento se assemelha agravequele entendimento apresentado por
autores como Giddens (2012) Doacuteria (2014) e Cacircndido (1982) que acreditam
que a convivecircncia possiacutevel e mais provaacutevel de ocorrer na contemporaneidade
se daacute por meio da mescla entre fatores de persistecircncia e os de mudanccedilas que
se complementam mas sem extinguir as construccedilotildees simboacutelicas tradicionais
Eacute importante ressaltar que a incorporaccedilatildeo das opccedilotildees de praacuteticas
alimentares modernas tambeacutem natildeo eacute acriacutetica As famiacutelias sabem que a
substituiccedilatildeo de uma pratica por outra implica em riscos e em perdas e ganhos
como no caso da gordura de porco Mostraram-se conscientes quanto agrave questatildeo
relativa agrave sauacutede no consumo desse alimento mas ele continua sendo
prioritariamente utilizado na preparaccedilatildeo de comidas tradicionais O que
prevalece neste caso eacute a escolha pelo sabor do alimento e pelo significado
simboacutelico e tradicional atrelado a ele Tal como reforccedilado pelos interlocutores a
comida feita com gordura de porco eacute mais saborosa e eacute a que daacute ldquosustanccedilardquo
Ainda que algumas pessoas tenham demonstrado estar mais preocupadas com
a sauacutede do que com o sabor e preferissem utilizar somente o oacuteleo vegetal natildeo
eacute essa opccedilatildeo que prevalece no montante das famiacutelias porque as mudanccedilas satildeo
183
ou natildeo incorporadas nas praacuteticas alimentares levando em consideraccedilatildeo
tambeacutem a cultura familiar
Pode-se afirmar tambeacutem que a adoccedilatildeo pelas tecnologias e praacuteticas
alimentares modernas natildeo tem sido radical Um exemplo disso eacute a manutenccedilatildeo
prioritaacuteria do uso do fogatildeo a lenha O fogatildeo a gaacutes assume um lugar importante
no preparo do almoccedilo nas famiacutelias onde as mulheres trabalham fora do siacutetio o
que aponta para um dos ajustes necessaacuterios que as famiacutelias tecircm precisado fazer
para se adaptar agraves novas realidades vividas Ainda assim o fogatildeo a lenha
continua sendo utilizado para fazer o jantar e para aquecer a aacutegua do chuveiro
evitando-se com isso o consumo de energia eleacutetrica Natildeo houve tambeacutem
nessas famiacutelias a substituiccedilatildeo de alimentos in natura por industrializados
congelados visando a praticidade na preparaccedilatildeo do almoccedilo Eacute importante
ressaltar que nessas famiacutelias ocorre uma alteraccedilatildeo no papel masculino relativo
a culinaacuteria jaacute que os maridos e os filhos passam a aquecer e a preparar alguns
itens de sua alimentaccedilatildeo Se antes essa era uma responsabilidade
exclusivamente feminina as mudanccedilas no papel masculino sinalizam ainda que
timidamente novas negociaccedilotildees de gecircnero nessas famiacutelias sinalizando
alteraccedilotildees em um espaccedilo que historicamente e culturalmente eacute de domiacutenio
feminino Eacute uma heranccedila que ainda vem resistindo e passando de avoacutes para
matildees e netas e de matildee para filhas
A articulaccedilatildeo entre o tradicional e o moderno na cultura alimentar das
famiacutelias mostrou estar ocorrendo sem impasses ou conflitos significativos
Mesmo que a compra de um alimento in natura proveniente da CEASA vendido
pelos caminhotildees gere receio da ingestatildeo de agrotoacutexicos essa aquisiccedilatildeo ocorre
ainda que eventualmente e por necessidade especiacutefica
A tradiccedilatildeo do consumo e elaboraccedilatildeo das quitandas permanece em todas
as famiacutelias Ela representa aleacutem de uma ldquomerendardquo importante para as famiacutelias
no dia a dia uma importante continuidade tradicional Elaboram-se as mesmas
quitandas haacute geraccedilotildees e ao mesmo tempo ocorrem ligeiras substituiccedilotildees como
o biscoito de polvilho frito pelo assado e adquirido no mercado local O patildeo
francecircs que eacute tatildeo consumido nas aacutereas urbanas natildeo faz parte do gosto
alimentar das famiacutelias e eacute de consumo muito raro
Na manutenccedilatildeo dos haacutebitos alimentares tradicionais estaacute presente a
influecircncia dos guardiatildees da tradiccedilatildeo na reproduccedilatildeo do gosto no processo de
184
significaccedilatildeo e ressignificaccedilatildeo da comida atrelada agraves praacuteticas aos saberes e aos
haacutebitos tanto no cotidiano quanto nas comidas de dias festivos A constacircncia
das expressotildees ldquoaprendemos a comer assimrdquo ldquoaprendi a cozinhar vendo minha
matildee fazerrdquo ldquona casa de meus pais fazia assimrdquo denotam a valorizaccedilatildeo dos
aprendizados e o interesse na perpetuaccedilatildeo dos haacutebitos
No que se refere agrave comensalidade no grupo familiar a pesquisa mostrou
que ela estaacute passando por modificaccedilotildees importantes em algumas famiacutelias
Naquelas em que as mulheres trabalham nas escolas a comensalidade ocorre
na escola em companhia de outras colegas e alunos nos horaacuterios de almoccedilo No
restante do grupo a comensalidade se daacute entre aqueles que estatildeo em casa jaacute
que nessas famiacutelias natildeo foi citado casos de pessoas que almoccedilam na atividade
local com o uso de marmita A comensalidade no horaacuterio de jantar tem sofrido
modificaccedilotildees nos uacuteltimos anos em todas as famiacutelias mesmo naquelas com
pessoas mais velhas Ocorre com frequecircncia entre eles servir o prato e se
sentarem na sala para assistir televisatildeo enquanto jantam Houve entatildeo um
deslocamento da mesa da cozinha para o sofaacute da sala Se em tempos passados
o fogo era um fator socializador e propiciador da comensalidade que ocorria
em torno da fogueira da lareira e do fogatildeo a lenha como apontado por
Wrangham (2010) e Montanari (2008) na modernidade a televisatildeo pode tambeacutem
assumir essa funccedilatildeo tanto no meio urbano quanto no meio rural pelo menos no
que se refere agraves famiacutelias que entrevistei
Alimentos industrializados satildeo consumidos em todas as famiacutelias
embora natildeo em grande quantidade e diversidade proporcionalmente ao que se
encontra disponiacutevel nos mercados e satildeo itens importantes nos cardaacutepios As
famiacutelias adquirem alimentos que sempre fizeram parte dos haacutebitos alimentares
e que em tempos passados jaacute foram produzidos nos siacutetios No entanto compram
tambeacutem alguns alimentos que nunca foram produzidos localmente mas que
passaram a ser adotados o que aponta para a dinacircmica da cultura
O significado da comida para as famiacutelias tem importante ligaccedilatildeo com a
tradiccedilatildeo e representa uma identificaccedilatildeo significativa com as geraccedilotildees passadas
Marca ainda a ligaccedilatildeo com a terra ao serem consumidos prioritariamente o que
se produz no local As comidas tradicionais e elaboradas de modo simples satildeo
as que mais agradam ao paladar das famiacutelias e apesar de ser um cardaacutepio de
certa forma monoacutetono natildeo se torna indesejado e natildeo foi apontado pelas famiacutelias
185
algum desejo ou necessidade por experimentar comidas diferentes das que
estatildeo habituados A prioridade do grupo pesquisados pela alimentaccedilatildeo baseada
em produtos cultivados localmente e em praacuteticas mais tradicionais coincide com
o que proposto pelo ldquoGuia Alimentar para a Populaccedilatildeo Brasileirardquo (2015)
publicado pelo Ministeacuterio da Sauacutede contendo diretrizes de uma alimentaccedilatildeo
saudaacutevel e considerando como importante tambeacutem o aspecto cultural
As famiacutelias estatildeo conscientes de que as transformaccedilotildees constantes que
ocorrem na sociedade atual tecircm o poder de interferir em suas praacuteticas e haacutebitos
alimentares Consideram que vai se tornando cada vez mais difiacutecil manter seus
haacutebitos alimentares por fatores de caraacuteter mais externos do que internos e que
interferem na sua dinacircmica de reproduccedilatildeo social e econocircmica
Inseridas no processo que envolve tanto o desejo de manter sua
autonomia produtiva e cultura alimentar quanto agrave necessidade de ceder a
algumas mudanccedilas essas famiacutelias estatildeo aprendendo a se adaptar com as
experiecircncias do cotidiano natildeo se fecham em seus nuacutecleos culturais e nem se
posicionam avessos agraves mudanccedilas demonstram uma atitude resignada poreacutem
criacutetica acatando os itens da modernidade alimentar que lhes agrada e lhes satildeo
importantes e rejeitando o que natildeo lhes interessa respeitando prioritariamente
a cultura local no sentido tratado por Helman (1994) no processo de escolha
alimentar Haacute nessa percepccedilatildeo um sentido de resistecircncia identitaacuteria alimentar
semelhante agrave que Poulain (2013) discute como sendo uma das caracteriacutesticas
das culturas alimentares locais
Por fim concluo que na ocasiatildeo da pesquisa a comida possuiacutea a
mesma centralidade cultural para as famiacutelias que pesquisei que aquela da eacutepoca
de seus antepassados Apesar de estarem inseridas na dinacircmica
contemporacircnea de mudanccedilas a vida cotidiana ainda segue um ritmo lento que
de certa forma difere do ritmo das aacutereas urbanas o que permite ainda este status
central da comida em sua cultura
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