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3. Bares e botequins tradicionais, patrimônio cultural na gestão da cidade do Rio de Janeiro O patrimônio cultural se tornou a opção da autora da presente pesquisa na relação entre os bares e botequins da cidade do Rio de Janeiro e a discussão geográfica. Muitas podiam ter sido as escolhas como, por exemplo, o aprofundamento na questão das tradições desses espaços, talvez na própria sociabilidade que vem sendo apontada como a tradição “denominador comum” desses lugares; ou ainda sobre a maior visibilidade no que diz respeito às relações de poder entre os atores sociais frequentadores desses lugares, o papel da bebida alcoólica nas relações sociais pelo intermédio desses espaços; ou então a associação dos botequins à rua; enfim, os bares e botequins abrem inúmeras oportunidades de pesquisa a serem exploradas pelas ciências sociais e, portanto, a Geografia.. Nos decretos n.º 34.869, de 05 de dezembro de 2011 e n° 36.605 de 11 de dezembro de 2012 (respectivamente anexos 7.1 e 7.2) foram declarados vinte e seis bares e botequins da cidade do Rio de Janeiro como patrimônios culturais intangíveis 71 , o que despertou meu interesse. Tal oficialização faz relação da cultura (e suas vertentes) ao viés da política, já que o próprio conceito de patrimônio cultural proporciona, assim como o de botequim, muitas possibilidades de pesquisas a serem desenvolvidas no meio acadêmico. Fonseca (2003) ressalta que o patrimônio é uma categoria que permite a possibilidade de transitar analiticamente entre diversos mundos sociais e culturais. Para ele, “como é possível usar essa noção comparativamente? Em que medida ela pode nos ser útil para entender experiências estranhas a modernidade?” (Idem, 2003, p.22). Para Veloso (2006) o patrimônio cultural 71 Pelas considerações dos decretos e reportagens como http://www.rio.rj.gov.br/web/guest/exibeconteudo?article-id=2358915, http://www.revistadehistoria.com.br/secao/em-dia/chope-oficial (ambos acessados em 06 de fevereiro de 2013) fica entendido que eles são patrimônio cultural imaterial da cidade. A partir desse entendimento, somado ao capítulo anterior, será guiado o presente capítulo.

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3. Bares e botequins tradicionais, patrimônio cultural na gestão da cidade do Rio de Janeiro

O patrimônio cultural se tornou a opção da autora da presente pesquisa na

relação entre os bares e botequins da cidade do Rio de Janeiro e a discussão

geográfica. Muitas podiam ter sido as escolhas como, por exemplo, o

aprofundamento na questão das tradições desses espaços, talvez na própria

sociabilidade que vem sendo apontada como a tradição “denominador comum”

desses lugares; ou ainda sobre a maior visibilidade no que diz respeito às relações

de poder entre os atores sociais frequentadores desses lugares, o papel da bebida

alcoólica nas relações sociais pelo intermédio desses espaços; ou então a

associação dos botequins à rua; enfim, os bares e botequins abrem inúmeras

oportunidades de pesquisa a serem exploradas pelas ciências sociais e, portanto, a

Geografia..

Nos decretos n.º 34.869, de 05 de dezembro de 2011 e n° 36.605 de 11 de

dezembro de 2012 (respectivamente anexos 7.1 e 7.2) foram declarados vinte e

seis bares e botequins da cidade do Rio de Janeiro como patrimônios culturais

intangíveis71

, o que despertou meu interesse. Tal oficialização faz relação da

cultura (e suas vertentes) ao viés da política, já que o próprio conceito de

patrimônio cultural proporciona, assim como o de botequim, muitas

possibilidades de pesquisas a serem desenvolvidas no meio acadêmico. Fonseca

(2003) ressalta que o patrimônio é uma categoria que permite a possibilidade de

transitar analiticamente entre diversos mundos sociais e culturais. Para ele, “como

é possível usar essa noção comparativamente? Em que medida ela pode nos ser

útil para entender experiências estranhas a modernidade?” (Idem, 2003, p.22).

Para Veloso (2006) o patrimônio cultural

71

Pelas considerações dos decretos e reportagens como

http://www.rio.rj.gov.br/web/guest/exibeconteudo?article-id=2358915,

http://www.revistadehistoria.com.br/secao/em-dia/chope-oficial (ambos acessados em 06 de

fevereiro de 2013) fica entendido que eles são patrimônio cultural imaterial da cidade. A partir

desse entendimento, somado ao capítulo anterior, será guiado o presente capítulo.

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exibe um dos paradoxos mais contundentes dos tempos atuais, uma vez que,

necessariamente se associa à tradição, à história, á modernidade sólida e, ao

mesmo tempo, precisa sintonizar-se com a pós modernidade e, mais que isso,

com a agenda contemporânea (p.450).

Ao justificar a opção de investigação, menciono Castro (2009), para quem

a política, no seu sentido institucional e operacional, invadiu as mais diferentes

dimensões do mundo contemporâneo e, nesse sentido, é preciso um pluralismo

teórico-conceitual mais adequado aos fenômenos que aparecem, pelo menos

aparentemente, como contraditórios na atualidade. Aí está o papel da geografia

que precisa refletir sobre as questões colocadas pelas dimensões inerentes à

política e o território na ordem atual e nas mais variadas escalas de análise

(CASTRO, 2009). Portanto, o patrimônio deve ser discutido nessas dimensões já

que ele como um instrumento de prática social é, de acordo com Arantes (s/d),

uma realidade criada por meio da atribuição de valores, um processo de

negociação e conflito.

(...) que, necessariamente, articula o plano local a esferas políticas e sociais mais

abrangentes, particularmente, o Estado: envolve instituições governamentais e

não governamentais, instituições acadêmicas e administrativas, interesses

públicos e negócios privados. (ARANTES, s/d, p.53)

Também a sociedade, aquelas pessoas que realmente “vivem” esses

patrimônios, precisam ter a sua participação cívica envolvida, as suas

representações legitimadas, pois, como bem diz Gonçalves (2005), um patrimônio

não pode depender somente de decisões políticas de uma agência de Estado nem

de uma atividade consciente e deliberada de indivíduos e grupos; os objetos,

símbolos ou bens culturais que se tornam patrimônio precisam “encontrar

‘ressonância’72

junto ao seu público” (idem, 2005, p.19).

Recorrendo a Durand (2001) é preciso reconhecer a cultura como objeto

de política e administração pública, “entender que a arte e a cultura dependem da

72

Ressonância, para o autor, acontece quando os bens culturais encontram respaldo ou

reconhecimento junto a setores da população, têm a capacidade de alcançar um universo além

daquele estabelecido por fronteiras formais. Por isso, para ele, não necessariamente os bens que

são elevados a patrimônio por alguma agência do Estado possuem essa ressonância, que é crucial.

“(...) para uma política dar certo há que se ter apoio. Se há um processo que para as pessoas não

tem importância, como tombar vários prédios indiscriminadamente, as pessoas não tomam

consciência, depois se demole e ninguém ligará. Ninguém terá essa atitude com o Cristo redentor,

por exemplo. Então há que se considerar o bem de que se fala, a concepção das pessoas acerca

desses bens e esse é o segredo da ressonância (..)” (GONÇALVES, 2011,p.47). Um maior

entendimento de ressonância está nos trabalhos de Gonçalves (2005, 2011)

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sustentação econômica e institucional como qualquer outra atividade humana”

(Idem, 2001, p.66). Para o mesmo autor é nítida a necessidade de uma visão mais

orgânica em relação ao que é tido e praticado como gestão cultural, o que vai ao

encontroa visão de Botrel et al (2011) para quem deve-se conjugar a gestão

pública à gestão social em relação aos bens culturais no Brasil. Dessa forma,

questiona-se, também, o quanto realmente se vem avançando nas práticas

institucionais. Na atual conjuntura cultural, administrativa e política para Paes

(2009), as leis, decretos, constituições e afins configuram instrumentos de

proteção dos patrimônios culturais brasileiros (PIRES, 2010), ou melhor, são

políticas de proteção que caminham entre avanços e retrocessos desde o século

XX. Todavia, lembra Campos (2012) que

As decisões jurídicas e políticas possuem um efeito econômico, que pode ser

devastador. Não pode o agente público desconsiderar tal consequência, bem

como não pode se pautar somente nela. A cultura, como bem que ultrapassa as

questões financeiras, pode ser causa de consequências econômicas devastadoras,

caso as ações políticas sejam desarrazoadas. Reconhecer o valor cultural de um

edifício e, consequentemente, diminuir seu valor venal devido ao próprio

tombamento, é, no mínimo, um ato contraditório do poder municipal. Um bem

tombado não pode ter sua apreciação econômica desvalorizada. Tombamento não

é sinônimo de engessamento. Cultura não é causa de menosprezo comercial

(p.14)

A passagem de Campos (2012) ao unir o econômico ao jurídico e político

é muito relevante, pois a noção de patrimônio confunde-se com a de propriedade,

como relatam Funari (2001) e Gonçalves (2003), sendo que essa noção de

patrimônio envolveria mais as questões econômicas e jurídicas (FUNARI, 2001).

A dimensão política do patrimônio permeou também todo o IV Simpósio

de Geografia, Turismo e Patrimônio Cultura realizado nos dias 30 e 31 de

outubro de 2012 na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ73

). Como

ouvinte desse simpósio, ficou a importância da defesa da Geografia e do papel dos

geógrafos na dimensão do patrimônio, pois trabalhar com esse conceito apresenta

novas possibilidades de analisar as formas simbólicas, os valores, os sujeitos

desses processos, sua espacialidade, temporalidade e escalaridade.

73

A mesa redonda Patrimônio Cultural: Identidades Territoriais, Memórias e Ideologias que era

composta pelos pesquisadores Rodolfo Bertoncello (Universidade de Buenos Aires – Argentina),

Simone Scifoni (FFLCH – USP) e Paulo César Garcez Marins (Museus Paulista – SP)

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Vê-se a necessidade de mostrar, portanto, que as questões que envolvem a

transformação / elevação dos símbolos culturais em patrimônio cultural, no caso

os bares e botequins tradicionais, também são processos norteadores de políticas

públicas espaciais da e na cidade do Rio de Janeiro, onde a escala municipal de

atuação e sua respectiva legislação assumem significativa relevância. Esta relação

vai desde a conexão do conceito do patrimônio cultural com o fortalecimento /

fragmentação do Estado Nacional até os cidadãos, que o tomam como real

instrumento de luta política no seu dia a dia. Cabe ressaltar ainda que por mais

que os bares e botequins tradicionais, os quais podem ser considerados símbolos

culturais, tenham sido declarados patrimônio intangível da cidade e aqui essa

conexão tente ser compreendida, além de apontar possíveis potencializadores

dessas patrimonialização, existe a possibilidade de, nesse sentido, surgirem mais

dúvidas do que entendimentos.

3.1. De símbolo a patrimônio cultural: um reconhecimento. 3.1.1. Bares e botequins como símbolos e identidades.

Os seres humanos experienciam e transformam o mundo natural em um mundo

humano, através de seu engajamento direto enquanto pensantes, com sua

realidade sensorial e material. A produção e reprodução da vida material são,

necessariamente, uma arte coletiva, mediada na consciência e sustentada através

de códigos, de comunicação. Esta última é a produção simbólica. Tais códigos

incluem não apenas a linguagem em seu sentido formal, mas também o gesto, o

vestuário, a conduta pessoal e social, a música, a pintura, a dança, o ritual, a

cerimônia, as construções. Mesmo essa lista não esgota a série de produções

simbólicas através das quais mantemos os nossos mundo vivido, porque toda

atividade humana é, ao mesmo tempo, material e simbólica, produção e

comunicação. Essa apropriação simbólica do mundo produz estilos de vida

(genres de vie) distintos e paisagens distintas, que são histórica e geograficamente

específicos. A tarefa da geografia cultural é apreender e compreender essa

dimensão da interação humana com a natureza e seu papel na ordenação espacial

(COSGROVE, 2003, p.103).

Cosgrove (2003) evidencia que os seres humanos vivem, produzem e

apropriam o seu mundo, ou seja, se manifestam culturamente, através das

dimensões simbólicas, já que a cultura é uma representação simbólica constituída

por sistemas simbólicos. A repetição da palavra simbólica pode soar estranha,

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mas, nos dá a dimensão da importância do símbolo nos estudos que se propõem a

somar a abordagem cultural, principalmente os sociais.

A cultura hoje tende a ser compreendida como outra vertente do real, um sistema

de representação simbólica existente em si mesmo (...) como uma ‘visão de

mundo’ que tem sua coerência e seus próprios efeitos sobre a relação da

sociedade com o espaço (BONNEMAISON, 2000, p.86).

E Cosgrove (2003) ainda afirma que a cultura é o meio pelo qual as

pessoas transformam o fenômeno cotidiano do mundo material em um mundo de

símbolos significativos que dão sentido e atrelam valores.

As discussões realizadas por Mello (2002, 2008, s/d) nos levam a

compreender que símbolos são representativos da cultura (grupo cultural) e

atribuições de significados e valores por parte dos indivíduos desse grupo cultural.

Assim, são sentidos dados pelos homens pelo poder da linguagem e do discurso,

sendo, então, forjados pelos valores, representações e práticas sociais. Ou seja,

são partes expressivas de um todo, apesar de estarem em todas as partes e nas

mais diversas escalas espaciais. Podem ser individuais e coletivos, além de serem

representativos, extinguindo-se no tempo, outros forjados; outros são impostos,

projetados pelo poder público e/ou privado; uns são símbolos de status, alguns são

rejeitados por uma parcela da sociedade e não pela outra parcela... .

Ao transcenderem, sejam os símbolos materiais ou imateriais, vão ao

encontro da proposta da dissertação, confundindo-se com a alma das respectivas

culturas ao carregarem a memória, os valores e as tradições. Nesse momento, os

símbolos são permanências e representam também resistências das localidades.

Assim, os bares e botequins tradicionais são construções cujas tradições são

materializadas ou não, já que é por onde tradições foram enumeradas. Entre elas a

principal é a sociabilidade, além de serem destacadas a qualidade da bebida e o

sabor do prato / petisco, sua decoração e ambiência material.

Ainda em relação aos símbolos de maneira geral, de acordo com Paes

(2009) estes são o “conjunto de símbolos variados, materiais ou abstratos, que

exprimem as crenças e os valores de uma coletividade em torno de suas

identidades-territoriais” (p.3), podendo-se produzir iconografias. Além disso, os

símbolos são permeados por relações de poder, sendo assimilados ou não, seja na

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escala individual ou coletiva, pelo estoque de conhecimento (somatório/ acúmulo

daquilo que aprendemos, vivenciamos, formalmente, relações informais, afetivas,

viagens...). Entre outras possibilidades de entendimento, verifica-se, portanto, a

diversidade de abrangência dos símbolos culturais quanto as suas relações com o

espaço geográfico.

Já Fernandes (2009) traz a discussão em torno das paisagens urbanas das

cidades, que ele denomina de cityscapes, para também afirmar a importância das

inscrições simbólicas materiais e imateriais que modelam o espaço ao longo do

tempo. O foco está no urbano, pois para o autor esses espaços concentram as mais

fortes densidades demográficas além de polarizarem os poderes políticos,

econômicos e simbólicos. Ainda para o autor, por estarem em cidades, ou melhor,

em grandes cidades, essas paisagens são, portanto, “uma complexa realidade

cênica, funcional e simbólica marcada por uma multivariada (re) produção do

espaço e diferentes lógicas de poder” (Idem, 2009, p.196). A cidade, portanto,

seria a conjugação de cronologias espaciais que modificam a matriz paisagística

dos espaços ao longo do tempo e nos remete ao conceito de geodiversidade

diacrônica, que, continua o autor, “se refere a um espaço geográfico que no visível

e no não visível, apresenta diferentes padrões em diferentes contextos sociais”

(Idem, 2009, p.197). Assim sendo, podemos associar esse pensamento aos

botequins de ontem e de hoje e a relação desses símbolos com a cidade do Rio de

Janeiro e sua paisagem urbana.

A cityscape está também marcada pela geodiversidade sincrônica com elementos

de identificação que diferenciam os lugares entre si (...). Esta simbologia é uma

marca de identificação mas também um meio de promoção e marketimg

territorial, factor importante numa lógica global de concorrência entre cidades,

lugares que buscam relevância, poder de atracção e elementos de distinção. Esta

cartografia de geossímbolos engloba um vasto espectro de elementos aos quais se

atribuem valores de representação, selectiva e simplificada, de cada lugar. (Idem,

2009, p.200)

A geodiversidade sincrônica, isto é, a diferenciação dos lugares pela presença de

símbolos identificadores, está também associada a elementos de afirmação do

poder, que ao longo dos tempos, se plasmaram no espaço urbano. Estas

manifestações de poder político, econômico e simbólico têm sido promovida por

actores muito diversificados, que vão do Estado, às entidades religiosas e apropria

empresa privada. (idem, 2009, p.201)

Para reforçar a ideia de símbolos como guardiões da memória e história de

uma cultura ou grupo cultural nos lugares - sejam eles urbanos ou não - a

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contribuição dos “geossímbolos” de Bonneimason (2000) e Fernandes (2009), da

iconografia e dos lugares de memória utilizado por Paes (2009), os símbolos

como restauração do passado de Mello (2002) e a dimensão histórica resgatada

por Haesbaert (1999) são muito importantes.

Segundo Bonneimason (2000):

Um geossímbolo pode ser definido como um lugar, um itinerário, uma extensão

que, por razões religiosas, políticas ou culturais, aos olhos de certas pessoas e

grupos étnicos assume uma dimensão simbólica que os fortalece em sua

identidade (Idem, 2000, p.109)

A reflexão sobre a cultura leva a aprofundar o papel simbólico no espaço. Os

símbolos ganham maior força e realce quando se encarnam nos lugares. O espaço

cultural é um espaço geossimbólico, carregado de afetividade e significações.: em

sua expressão mais forte, torna-se território santuário, isto é, um espaço de

comunhão com um conjunto de signos e valores. A idéia de território fica então

associada à idéia de conservação cultural (Idem, p.111).

Já para Mello (2002), baseado em Yi-fu Tuan, os lugares do passado

podem ser restaurados “em cerimônias como o retorno/lembranças e a memória

herdada/assimilada” (p.63-64). Além disso, os lugares do passado não se tratam

apenas de simples formas materiais, mas, essas formas materiais são lugares que

representam e proporcionam abrigo, experiências espacializadas, emoções,

desvaneios e reminiscências sendo a “consciência do passado é um elemento

importante no amor pelo lugar” (Idem, 2002, p.64). Para o mesmo autor, símbolos

materiais e imateriais evocam os lugares do passado sejam eles quadros, músicas,

oralidade e etc., e que ajudam a juntar e recompor os destroços do passado,

“permitindo o ingresso à magia das preciosidades dos lugares pretéritos, que

continuam presentes/interiorizados no intimo do individuo ou de uma

coletividade” (Idem, 2002, p.67).

Paes (2009), por sua vez, traz os lugares de memória. Esses lugares são

marcados por dimensões espaciais, uma dimensão epistemológica e por outra

política e permitem que “uma coletividade atribua uma imagem a ela mesma,

tanto para se reconhecer como para se fazer reconhecer por sua singularidade em

relações aos outros” (Idem, 2009, p.3), e a memória que fica materializada nesses

lugares são fontes inesgotáveis quando pretende re-semantizar o espaço

geográfico e reorganizar os territórios.

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Quanto à defesa das identidades através dos símbolos e memória nos

lugares, Haesbaert (1999) também dá contribuições. No que diz respeito à

discussão em torno da crise ou não da identidade cultural no momento atual, Hall

(2004) se torna uma leitura fundamental, assim como Giddens (1997) no que diz

respeito às transformações e ressignificações das tradições. Há a necessidade do

aprofundamento para o pleno desenvolvimento do tema das tradições, identidades

sociais e das identidades territoriais, destacando-se o papel do símbolo quanto

perpetuador de tradições e formador de identidades nos lugares. Primeiramente

Haesbaert (1999) afirma que a identidade pode se referir tanto a pessoas como

objetos e coisas, como os bares e botequins tradicionais. Posteriormente ele afirma

que apesar de vários autores não considerarem as identidades fora do campo das

representações, a base material, ou melhor, territorial das identidades devem sim

ser ressaltada já que essa materialidade serve de referência para a construção de

diversas identidades. E logo depois ele traz o símbolo ao dizer que “para

entendermos a identidade social e a mediação do espaço na construção da

identidade territorial é muito importante discutirmos a noção de símbolo” (Idem,

1999, p.177). O símbolo manteria assim uma relação mais direta com a coisa

nomeada ao mesmo tempo em que permite outras aberturas, inclusive as

inesperadas.

Uma das características mais importantes da identidade territorial,

correspondendo a uma característica geral da identidade, é que ela recorre a uma

dimensão histórica, do imaginário social, de modo que o espaço que serve de

referência ‘condense’ a memória do grupo, tal como ocorre deliberadamente nos

chamados monumentos históricos nacionais. A (re) construção imaginária da

identidade envolve, portanto, uma escolha, entre múltiplos eventos e lugares do

passado, daqueles capazes de fazer sentido na atualidade. Nesta perspectiva, a

‘memória é solicitada e reestruturada sem cessar (...) (Idem, 199, p.180).

Tuan (2011), por sua vez, mostra que o sentido do passado atual, por

exemplo, está ancorado em velhas cartas e objetos de estimação adquiridos ou

herdados. Ou, como continua ele, ao se pensar no nível mais público e escalas

maiores, a escola, o bar da esquina (grifo meu) ou a igreja local são

reminiscências do passado vivido das pessoas. Esses são elementos que

(...) agem subconscientemente nos sentidos das pessoas relativos às suas raízes

com o lugar. Sua destruição causa mais mágoa do que a demolição de um prédio

tombado pelo patrimônio, que só pode ser entendido e apreciado comgrande

esforço de imaginação. (Idem, 2011, p.14)

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A passagem de Tuan (2011) se associa aos botequins. Assim, os bares e

botequins tradicionais da cidade do Rio de Janeiro, que misturam hoje em dia

características portuguesas, espanholas, alemães, nordestinas e etc., podem ser

considerados geossímbolos, também, como afirma Fernandes (2009), pois esses

espaços de sociabilidade podem ser relacionados ao que ele chama de símbolos

associados a lentidão ou mesmo à paragem, “espaços que, em alguns casos,

promovem o mais pausado percurso pedreste e, noutros, o encontro, o debate, a

sociabilidade da troca e da criação artística” (Idem, p.211).

Dessa forma, os bares e botequins tradicionais são símbolos culturais

materiais e imateriais cuja base está no território e a força de toda a sua

representação, no lugar. Inegavelmente, por terem sua base material, além da

simbólica, no território, toda a discussão ao redor desses espaços de

sociabilidades, agora patrimônios culturais, perpassam pela geografia política.

Como diz Castro (2009), de forma simples e explicativa, o campo da geografia

política se define na “relação entre a política – expressão e modo de controle dos

conflitos sociais – e o território – base material e simbólica da sociedade”. Para a

autora, é através dessa perspectiva que se encontram “as ebulições que apontam as

transformações na ordem atual em diferentes escalas” (Idem, 2009). Assim

sendo, os bares e botequins tradicionais transcendem sua materialidade já que

guardam a memória da cidade do Rio de Janeiro carregando consigo sua origem e

história, sendo produtos e produtores da mesma, perpassando tradições imateriais

e simbólicas e gerando identidades sejam elas sociais, territoriais, culturais,

forjadas ou ambas simultaneamente. Para seus frequentadores fiéis ou não, seus

donos, garçons, flâneurs e malandros do entorno, a própria cidade..., para eles os

botequins são símbolos por fazerem parte do seu cotidiano. Ou seja, são lugares

que eles apropriam para a sua vida e com eles criam identidades. Os bares e

botequins são símbolos também porque funcionam dentro da lógica urbana da

cidade e a concretude desses lugares enquanto importantes estabelecimentos

comerciais se vincula a essa urbanidade. Assim, são símbolos da modernidade

carioca.

Esses símbolos são únicos e cariocas, ainda que sua representação seja

apropriada pelo Brasil afora e até internacionalmente, como relata Conrado (2010)

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e a reportagem Farra Carioca em Londres (anexo 7.9). Segundo a reportagem A

história do botequim e sua influência na formação cultural do povo74

, “(...) estes

estabelecimentos surgiram com a abertura dos armazéns portugueses no Rio de

Janeiro do século XIX e, desde então, tornaram-se um dos pilares da cultura

brasileira (...). Resgatando as palavras dos palestrantes do I Seminário

Internacional do Bar Tradicional, o bar tradicional é um museu no século XXI,

pois suas paredes “seguram” a história dos seus fundadores, da cidade, seus

habitantes, e o entrecruzamento deles. Baseando-se nessa discussão, os botequins

devem ser tomados como símbolos culturais da cidade do Rio de Janeiro, já que

podem ser considerados uns de seus frutos, funcionando dentro da sua lógica

urbana que, felizmente ou não, dá a eles hoje bastante visibilidade75

. Pinho (2000)

afirma que:

Falar de bares e botequins é falar do próprio Rio, com seu jeito moleque e

boêmio, seus bares que contam histórias, que narram fatos e que lembram os bons

momentos. Bar também é saudade. Saudade dos Jangadeiros, do Real Astória, do

Gôndola, do Zeppelin, do Mau Cheiro e tantos outros que a poeira do tempo

levou (Idem, 2000, p.23)

Os bares e botequins tradicionais são “carioquices clássicas” 76

. E talvez,

por isto, como símbolos culturais de sociabilidade configurando a maior tradição,

foram declarados patrimônios imateriais ou intangíveis. Se não, quais foram os

motivos que levaram a patrimonialização desses espaços de sociabilidades

cariocas? Quais os discursos por trás desse ato, se para quem vive os botequins no

dia a dia, eles já são símbolos. Será que a decisão jurídica de torná-los patrimônio

é benéfica ou prejudicial para a sua essência? Quando elevados à condição de

patrimônios culturais os bens culturais ganham proteção legal, todavia, a quem

essa proteção se torna significante? É na busca por estas respostas que essa

pesquisa foi desenvolvida.

74

Disponível em http://www.revistaboemia.com.br/Pagina/Default.aspx?IDPagina=163, acessado

em 17 de fevereiro de 2013. 75

Em alguns blogs visitados (a exemplo de http://butecodoedu.blogspot.com.br/2006/11/rio-

botequim-vade-mcum-de-otrio.html, acesso em 19 de fevereiro de 2013) nota-se que muitos

conhecedores dos bares e botequins tradicionais, principalmente seus frequentadores antigos, são

avessos a essa visibilidade por esta deturpar a essência de tais estabelecimentos. 76

Expressão retirada da página TodoRio no Facebook que citava o Bar Urca como uma

“carioquice clássica”.

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3.1.2. Os símbolos culturais, entre eles os bares e botequins, são transformados em patrimônio cultural

Depois dizem que o Rio não é mais aquele. E aí, o que a gente faz? Faz o livro.

Faz com a declarada intenção de preservar os que ainda existem e resgatar o que

já existiu de melhor em bares e botecos do Rio de Janeiro (...) oferecemos este

livro ao carioca que sabe dar valor a sua cidade e ao que ela tem de mais gostoso

(...). Sim, porque, de uma noite para outra, eles podem deixar de existir. É mais

fácil fechar a porta de um boteco do que abri-la com categoria (Bar, boteco e

botequim: imagens de um sentimento, 1987).

Identificar, selecionar, proteger, preservar, valorizar, documentar,

normatizar, divulgar e etc., ou seja, o ato de patrimonialização é uma prática

social composta por ações e decisões permeadas de discursos políticos. E daí

surgem questionamentos fundamentais, como, por exemplo: Quem tem o saber,

poder e legitimidade no que diz respeito aos atos de patrimonialização? A quem

interessa os nossos patrimônios culturais? Por que o patrimônio de um lugar foi

escolhido? Quem lê as representações simbólicas e as ordenam? Por que algumas

materialidades (e imaterialidades) se tornam patrimônio e outras não? Entre

muitas outras perguntas Veloso (2006) revela que, o patrimônio cultural “deve ser

entendido como um campo de lutas a que diversos atores comparecem

construindo um discurso que seleciona, se apropria de práticas e objetos e as

expropria” 77

(p.438). Para Gonçalves (2011), a prática social da

patrimonialização é política.

Está sempre envolvido política, sobretudo, política de reconhecimento.

Envolvendo processo de patrimonialização, há uma certa ingenuidade em achar

que está em jogo apenas a defesa de práticas tradicionais para identidade do

grupo, no sentido mais restrito. Há sempre uma política de reconhecimento, uma

reivindicação de reconhecimento que vai envolver também dimensões materiais,

dimensões econômicas – terra, áreas urbanas, posse de determinados objetos

77

No momento atual da cidade do Rio de Janeiro algumas questões que envolvem o patrimônio

cultural estão em destaque. Primeiramente um projeto milionário por parte do empresário Eike

Batista na Marina da Glória, que faz parte do Aterro do Flamengo – tombado em 1965 e cenário

que ajudou o Rio a conquistar o título de Patrimônio Mundial como paisagem cultural urbana da

Unesco. , foi aprovado pelo IPHAN. Essa aprovação por parte do IPHAN vem sendo muito

questionada já que não houve qualquer divulgação ao público ou audiência prévia. Nas redes

sociais, como o Facebook, o protesto se engrossa. Para melhores informações ler a reportagem

http://oglobo.globo.com/rio/sonho-de-eike-iphan-aprova-projeto-de-predio-na-marina-da-gloria-

7655863 (acessada em 19 de fevereiro de 2013). Outra problemática envolve o antigo Museu do

Índio localizado ao lado do Maracanã e que deve ser demolido devido a modernização do próprio

Maracanã e seus arredores para atender a Copa do Mundo de 2016. Maracanã que, por sua vez,

indo ao encontro das discussões, já não poderia mais ser considerado patrimônio cultural devido

as inúmeras transformações que sofreu por conta das adaptações aos modelos internacionais de

estádios, tendo assim perdido a sua essência.

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materiais, lucro sobre determinados conhecimentos. Quem trabalha com

patrimônio, inevitavelmente, vai esbarrar com esses processos. O que acho, no

entanto, é que não é por causa disso que é possível dizer que patrimônio é um

instrumento como outro qualquer, usado para lutas políticas. (GONÇALVES,

2011, p.46)

Para Paes (2009) o ato de patrimonialização envolve as esferas cultural,

técnica e política; Cultural, porque decidimos aquilo que vai ser preservado, o que

nos remete aos nossos valores; Técnica, porque também somos nós que

desenvolvemos os saberes, instrumentos e criamos as normas do que diz respeito

a essa preservação e; Política, porque o ato da patrimonialização envolve ações e

decisões, interesses diversos e que nem sempre caminham para o mesmo lado.

Gonçalves (2011), indo ao encontro dessa complexidade, enfatiza, que o

patrimônio deve ser desnaturalizado, ou seja, considerado como “fato social”,

“incluindo-se aí os seus aspectos simultaneamente legais, econômicos,

fisiológicos, estéticos, culinários, musicais, etc.” (p. 44), para ir, dessa forma,

além das suas noções jurídicas, (ainda que tais noções sejam elementos

importantes por reconhecerem que determinados bens estão legalmente

protegidos, o que gera consequências).

O ato de tornar símbolos e signos culturais em patrimônios, continua Paes

(2009), é um recurso recorrente para a conservação dos mesmos, sejam eles

“monumentos ou objetos aparentemente banais, cidades, sítios históricos,

paisagens naturais, festas, ritmos, crenças, modos de fazer, o savoir faire, seja um

artesanato, um prato típico ou uma técnica construtiva” (p.1). Dessa forma

admite-se que todas as espacialidades produzidas pelos bens culturais são

passíveis de serem patrimonializadas e, assim,

a categoria patrimônio serviria como ponte, mediação entre dimensões que foram

tratadas comumente na ciência moderna como oposições – o material e o

imaterial, o sujeito e o objeto, o corpo e o espírito, o sagrado e o profano, o

passado e o presente, etc. (Idem, 2009, p.1).

Froehlich e Alvez (2007) afirmam que alguns desses bens símbolos e bens

culturais até então tidos como aspectos rotineiros, como, por exemplo, as práticas

religiosas e os hábitos alimentares, são ressaltados e ganham valor no momento

atual.

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Afinal, os seres humanos usam símbolos sobretudo para agir, e não somente para

se comunicar. O patrimônio é usado não apenas para simbolizar, representar ou

comunicar: é bom para agir. Essa categoria faz a mediação sensível entre os seres

humanos e divindades, entre mortos e vivos, entre passado e presente, entre o céu

e a terra e entre outras oposições. Não existe apenas para representar idéias e

valores abstratos e para ser contemplado. O patrimônio, de certo modo, constrói,

forma as pessoas (GONÇALVES, 2003, p.27)

Botrel et al (2011) diz que nos últimos anos as concepções de bens

culturais e de patrimônio (já que nem todo bem cultural é patrimônio, ainda que

haja a crítica por parte de alguns de que “tudo” é patrimônio nos dias de hoje)

vêm sofrendo transformações no sentido de que esses bens são percebidos como

elementos que fazem parte “(...)do dia a dia, do cotidiano, dos espaços públicos

das sociedades” (p.42). Da assimilação do patrimônio como constituinte do

cotidiano e da sociedade, os bens culturais e patrimônio passam a pertencer a

todos e, por isso, “(...) devem ser preservados e gerenciados, estabelecendo seus

limites físicos e conceituais, bem como as regras e as leis para que isso aconteça”

(Idem, 2011, p.42). O ato de patrimonialização tanto para Paes (2009) quanto para

Veloso (2006) é extremamente relevante porque envolve e descortina diversas

dimensões. Outro ponto a destacar é o senso de coletividade que permeia esse

conceito. Sem dúvida, como mostra Veloso (2006), definir patrimônios significa

falar dos valores e interesses coletivos que não são fixos nem imutáveis. Os

valores e interesses coletivos não são vagas abstrações, por estarem associados “a

práticas sociais concretas e são construídos e vividos no interior da vida social,

com seus conflitos, contradições, consensos e hierarquias” (p.440). Enquanto

prática social o ato de patrimonialização, com o passar do tempo, adquire novos

usos e é refuncionalizado.

É fundamental, portanto, entender a prática social da patrimonialização na

relação temporal destacada por Gonçalves (2011). “Patrimônio tem a ver como

experimentamos o tempo e como nos situamos nesse tempo!” (Idem, p.47). Para

ele estamos vivenciando o “regime presentista de tempo”, no qual a construção do

patrimônio é para o presente, busca menos raízes no passado, assim como menos

desdobramentos futuros.

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Esse passado existe para ser usufruído, vendido no presente, hoje, entendendo-se

aqui o termo “vendido” não como algo que seja forjado, um simples artifício, mas

no sentido de algo que está sendo construído, um determinado espaço ou objetos

ou práticas sociais e culturais que possuem ressonância, isto é, que vêm a ser

utilizadas pelas pessoas que se identificam com esses bens e o consomem. (Idem,

2011, p.44)

Já Oliveira (2008), ao valorizar a perspectiva temporal, nos recorda que

quando se fala em patrimônio diretamente se lida com três conceitos: história,

memória e identidade, conceitos esses que se inter-relacionam e cujos conteúdos

são definidos e modificados ao logo do tempo. Mais adiante veremos que tais

modificações ao longo do tempo foram cruciais para a assimilação da

imaterialidade enquanto cultura popular. A temporalidade não pode ser dissociada

da criação do patrimônio para atender aos anseios de identidade de determinada

cultura, como diz Campos (2012). Para este autor a íntima relação entre a

formação de um Estado e a criação da nação é instrumentalizada pela invenção do

patrimônio desse Estado-nação.

Não há ainda como deslocar o patrimônio da conjuntura da globalização

na qual as lógicas mercadológicas e de empresarialização do espaço se sobrepõem

às demais; onde os bens culturais se tornam objetos de consumo e surgem as

cidades espetáculo (PELEGRINI, 2006), o fenômeno de gentrificação78

se

intensifica e o patrimônio corre o risco de se tornar um fetiche (VELOSO, 2006).

Como declaram Froehlich e Alvez (2007), existe uma tendência atual de

valorização dos bens culturais, uma espécie de mutação cultural que vem

permeando os discursos em favor dessa preservação. Possivelmente essa mudança

é paralela à refuncionalização79

pelas quais as cidades vêm passando na tentativa

de aderir à modernidade, o que culmina em diferentes estratégias de valorização,

representação e apropriação dos bens culturais. Assim, claramente, não se pode

desconectar a cidade do Rio de Janeiro da realidade de intensas transformações

urbanas, a fim de virar uma cidade global. Por esse viés, indaga Paes (2009) se

estariam os bens culturais e o patrimônio cultural, dessa forma, sendo vistos

somente pelo viés do consumo cultural, pela lógica econômica e mercadológica

“agregando valor econômico às paisagens urbanas e aos lugares-símbolo de

78

Gentrificação é o processo de enobrecimento do espaço urbano, onde há a revitalização de áreas

centrais de grandes cidades e, consequente, valorização imobiliária. Veloso (2006, p.447) 79

Termo utilizado por Paes (2009).

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pertencimento de identidades territoriais, e contribuindo na seleção de um

conjunto de formas e expressões culturais que passaram a ser atrativas para o

olhar turístico”. (Idem, 2009, p.5)

Parece ser muito nítido que o ritmo frenético da patrimonialização se caracteriza

por uma ‘reinvenção’ semântica e funcional em vários domínios (...) Não é

despiciendo salientar que as cidades entraram, em vários domínios, numa lógica

de empresarialização, sendo concebidas, frequentemente, como produtos a escoar

em certos mercados. (...) Nesta lógica de promoção de um produto, o patrimônio

tornou-se recurso incontornável das estratégias de definição de uma imagem de

marca, constituindo-se, ele próprio, como a ‘marca’ que define um certo valor

concorrencial e comunicacional (PEIXOTO, 2001, p.215)

Para Peixoto (2011), essa lógica de empresarialização que vem movendo

as cidades, característica da atual época pós-moderna, motiva, inclusive, uma

renovação identitária. Veloso (2006) soma outras discussões quando fala do

fetiche do patrimônio.

O perigo que se corre é o de transformar os bens culturais em mero objetos de

consumo, em transformar o patrimônio material em expressões de uma história

rasa; ou, ainda, transformar as manifestações culturais do patrimônio imaterial em

fetiche, ou seja, privilegiar o produto transformado em objeto de consumo como

qualquer outra mercadoria que circula na sociedade atual. Enfatiza-se que as

manifestações patrimoniais não podem transforma-se em mero objeto de

consumo, muito embora, como qualquer outro produto, também percorram a

trilha da sua própria alienação (VELOZO, 2006,p.439).

Os bares e botequins tradicionais podem ser apontados, ainda, como uma

expressão do setor estratégico da economia criativa a ‘ser explorada’ nas mais

diversas escalas de atuação, por diferentes atores. De acordo com Figueiredo et al

(2011), a economia criativa busca e valoriza atividades que, essencialmente, se

baseiam nas criatividades80

(unindo inovações, imaginações, singularidades...) dos

lugares, das cidades e seus territórios. E muito além do caráter quantitativo que

lhe é característico, como a geração de empregos e a renda no conjunto da

economia carioca, a economia criativa permeia os novos pensamentos quanto as

tradicionais políticas de desenvolvimento urbano; assim, é preciso “(...)

80

Nesse momento não será aqui realizada uma definição teórica nem a respeito de economia

criativa assim como de criatividade. Para um melhor aprofundamento do assunto recomenda-se

Figueiredo et al (2011), todavia, é válido ressaltar, muito sucintamente, que a cultura e suas

ramificações permeiam as criatividades.

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contemplar a criatividade como um importante recurso territorial” (Idem, 2011,

p.12)81

.

No I Seminário Internacional de Bar Tradicional o atual prefeito da

cidade do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, e que o mesmo tornava ‘público’ o

primeiro decreto que declarava doze bares e botequins tradicionais como

patrimônio cultural carioca. Junto ao prefeito estavam o Secretário de Turismo, o

presidente do SindRio (Sindicato de Hotéis, Bares e Restaurantes do Rio de

Janeiro), o presidente da Fecomércio (Federação de Comércio do Estado do Rio

de Janeiro) e o Subsecretário de Patrimônio da cidade do Rio de Janeiro. Naquele

dia questionei o processo de patrimonialização, já que somente os gestores da

cidade sabiam sobre esse processo. Este primeiro decreto é, oficialmente, o de n.º

34.869, de 05 de dezembro de 2011. Praticamente um ano depois, no dia 11 de

dezembro de 2012, mais quatorze bares e botequins tradicionais também foram

declarados patrimônio cultural carioca pelo Decreto n°36.605. Ambos os decretos,

ainda que se diferenciem em alguns pontos, declaram esse total de 26 bares e

botequins como patrimônio cultural imaterial ou intangível82

da cidade do Rio de

Janeiro. Isso significa que tais estabelecimentos não são tombados83

, pois, é

comum associar políticas de proteção do patrimônio cultural somente ao ato de

tombamento de bens, móveis e imóveis materiais.

Mesmo que como foi muito exposto por Gonçalves (2005) e Fonseca

(2003) o patrimônio, mesmo o imaterial, é material já que não é possível pensar

na vida social sem os objetos materiais e as técnicas corporais que eles supõem,

pois, “(...) para que haja qualquer tipo de comunicação, é imprescindível um

81

Na Lei Complementar n° 111 de 2011, que Dispõe sobre a Política Urbana e Ambiental do

Município do Rio de Janeiro, institui o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Sustentável do

Município do Rio de Janeiro e dá outras providências (e que será mais bem analisada mais a frente

de acordo com o tema da dissertação); a questão da criatividade é colocada dentro da relação entre

políticas econômicas e culturais. No artigo 268 o conteúdo é “Valorizar a dimensão econômica da

cultura, dinamizar o potencial criativo da cidade, transformar a política cultural em braço

estratégico do projeto de desenvolvimento econômico e humano, inserindo a cidade no circuito

internacional de cidades

criativas”(http://mail.camara.rj.gov.br/APL/Legislativos/contlei.nsf/bff0b82192929c2303256bc30

052cb1c/cdd6a33fa14df524832578300076df48?OpenDocument,

acesso em 25 de fevereiro de 2013). 82

Para alguns autores o termo intangível é mais apropriado que imaterial. Para essa diferenciação

ir a Oliveira (2008). 83

O ato do tombamento exprime, juridicamente, ao patrimônio o seu valor enquanto propriedade e

por muito tempo foi tido como o único instrumento de proteção e patrimonialização e, por isso,

cada vez mais questionam-se os seus limites

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suporte físico” (FONSECA, 2003, p.65) e, portanto, na verdade, a categoria de

patrimônio é ambígua por essência84

. Exclusões e diferenças no que tange a

legislação e proteção dos patrimônios materiais e imateriais no Brasil existem

desde a constituição de 1937. Ainda que tal ambiguidade caracterize a categoria

patrimônio (GONÇALVES, 2005), os bares e botequins foram patrimonializados

pela sua imaterialidade. Segundo os dois decretos, são locais que traduzem o

“espírito carioca” e onde

a ancestralidade e as características dos modos do fazer dos bens em questão que,

através da sua continuidade histórica e sua relevância local, se tornaram

referência para a memória, a identidade cultural e a formação social carioca

(Decreto n°36.605 de 11 de dezembro de 2012).

Uma pequena pausa precisa ser feita ao se falar em ambiguidades no que

diz respeito à categoria patrimônio. Ainda que existam separações a exemplo do

material/imaterial, assim como humano / natural / paisagístico / arqueológico, é

preciso quebrar com tais fragmentações por mais “didáticas” que elas possam ser

e, infelizmente, dessa forma continuam a ser apresentadas (PELEGRNI, 2006 a).

Digo isso, pois, como ressalta Cerqueira (2005), não se pode discutir patrimônio

dissociando o humano do natural, seja por parte das pesquisas, intervenções ou

políticas públicas. A paisagem cultural, sob a ótica das sustentabilidades do

espaço, assim como o turismo e a educação patrimonial e/ou ambiental, por

exemplo, não podem ignorar essa interação entre o ambiente natural e a cultura.

Para o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Sustentável do Município do

Rio de Janeiro de 2011, a paisagem da cidade do Rio de Janeiro representa o mais

valioso bem da cidade.

Retomando à vertente imaterial da categoria, de interesse para a presente

pesquisa, para Veloso (2006), o patrimônio imaterial ou intangível85

corre riscos

maiores em se transformar em mero produto, objeto “coisificado” ou feitichizado.

Dessa forma, a fim de evitar essas armadilhas da mercantilização, a autora destaca

o conceito recente de referência cultural, adotado pela Constituição Federal de

1988. “Sua importância deriva do fato de que seu foco recai sobre os produtores

84

Para a a compreensão da complementaridade entre patrimônio material e imaterial ir a

Gonçalves (2003, 2005, 2011), Fonseca (2003) e o site do IPHAN, além de Paes (2009) e Veloso

(2006) que trazem essa diferenciação mescladas as suas propostas de trabalho. 85

Maiores detalhamentos acerca dessa imaterialidade será realizada no próximo passo dessa

dissertação.

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dos bens culturais e não sobre o produto”, reforçando também o caráter tanto

simbólico quanto político da produção e apropriação do patrimônio cultural

(Idem, 2006, p.443).

Indaga-se, portanto, por que em 2011 os bares e botequins tradicionais

foram formalmente declarados e registrados como patrimônio cultural da cidade

do Rio de Janeiro? Lembrando que a fala do prefeito Eduardo Paes no seminário

já referenciado relacionava os bares e botequins tradicionais às criatividades que

precisam ser potencializadas na cidade. Será que a patrimonialização desses

estabelecimentos é, portanto, somente pensada dentro dessa lógica do consumo

cultural da cidade mercadológica? Além da construção dessa “alma carioca”

forjada onde a maioria das pessoas realizam, somente, o lazer nos botequins86

(e,

portanto, onde a identidade se torna fantasiada), o botequim precisa ser reforçado

quanto identidade real daquelas pessoas que nesse espaço fazem sua vida87

e o

consomem, para as quais ele verdadeiramente é um lugar, sejam os seus donos,

frequentadores fiéis e assíduos, garçons, flâneurs, etc. Para esse público, os bares

e botequins possuem a ressonância de Gonçalves (2005, 2011) sendo eles

patrimônio cultural ou não.

(...) uma decisão jurídica pode vir a ajudar ou prejudicar, influindo sobre um

processo que já acontece nas práticas cotidianas, endossando ou rejeitando

características, perfis etc. Não há fórmula prévia. Como no caso dos registros de

patrimônio imaterial de um restaurante. O restaurante pode ser bem sucedido em

termos mercadológicos, mas isso é um efeito da sua ressonância no cotidiano da

população. Por exemplo, o restaurante Leite em Recife: podem registrá- lo como

patrimônio imaterial, mas a ressonância que tem na memória da cidade é

fundamental. Não há como mexer nisso (GONÇALVES, 2011, p.44)

Para esse mesmo autor, “um patrimônio, seja um restaurante ou uma festa

popular, não pode ser controlado. Seu sucesso ou fracasso dependerá de processos

complexos de apropriação. A legislação pode ajudar ou não” (Idem, p. 45). Faz-

se, portanto, a relação com Fernandes (2011) quando a autora afirma que o que ela

denomina de manifestações materiais ou “suportes” só se constituem como

referências culturais88

quando são consideradas e também valorizadas como

86

Não que a realização do lazer não seja merecedora de atenção, afinal, o ser humano precisa de

lazer. 87

“(...) o cotidiano, assim, é fundamental porque nele as ambiguidades são as mais flagrantes e é

onde afinal decisões são tomadas” (GONÇALVES, 2011, p.45) 88

Referência cultural é um conceito que surgiu na Constituição Federal de 1988.

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marcas distintivas por sujeitos determinados (p.113). Creio que esses sujeitos

determinados de Fernandes (2011) são aquelas pessoas para qual o patrimônio

possui a ressonância de Gonçalves (2005, 2011).

Assim, alguns dos bares e botequins tradicionais da cidade do Rio de

Janeiro podem ser bem sucedidos mercadologicamente, como alguns o são;

todavia, isso acontece porque eles já possuem ressonância na memória da cidade,

estando eles ou não registrados, agora, como patrimônio imaterial. Por sua vez,

“ser bem sucedido” pode ser mais complicado para alguns desses

estabelecimentos por diversos fatores, assim, ser elevado a patrimônio cultural é

uma maneira de manter sua permanência e, consequentemente, sua importância

enquanto símbolo da cidade. E a legislação que envolve a prática de

patrimonialização - entre avanços e retrocessos, ajudando ou não – existe, está

institucionalizada e, por gerarem consequências socioespaciais precisam ser

debatidas, questionadas. Sendo assim, não há como ignorar os dois decretos que

declararam vinte seis bares e botequins como patrimônio cultural intangível da

cidade.

3.2. A necessária incorporação da imaterialidade pelas políticas de patrimônio cultural.

Como bem ressalta Arantes (s/d), a julgar que o patrimônio cultural é uma

realidade criada por meio da atribuição seletivas de valores diversos aos bens /

signos / elementos culturais materiais e imateriais, se torna interessante a sua

preservação ou ainda sua salva-guarda89

enquanto prática social (p.52), e a

preservação dessas práticas sociais envolve assim diversos agentes e processos

“(...) na seleção do que preservar, nas decisões de como fazê-lo, com quem, para

quê, ou seja, destacam-se como objeto de reflexão as condições sociais de

produção do patrimônio e seus usos” (idem, s/d, p.52).

89

Não só Arantes (s/d) utiliza o termo salva-guarda. Nessa parte do capítulo poderá ser percebido

que outras referências bibliográficas assim o fazem.

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A preservação é – ela mesma – uma tradição envolvendo a transmissão de

acervos de bens culturais, a formação de um corpo jurídico, de procedimentos

institucionais e relações políticas que foram sendo concebidos, acumulados e

transformados ao longo do tempo. (Idem, s/d, p.52)

Cabe aqui ser ressaltado que a preservação do patrimônio cultural90

, e o

reconhecimento da pluralidade de valores e diversidades culturais ganham cada

vez mais espaço desde a escala municipal até o cenário político mundial. Mais

uma vez, portanto, é preciso lembrar que o patrimônio precisa ser entendido como

prática multi e transescalar. “Agências internacionais vêm incentivando a

formulação de projetos voltados para o fomento do turismo cultural e do

desenvolvimento sustentável em diversas regiões do planeta” (Idem, 2006, p.61).

Dessa forma, e voltando a utilizar Botrel et al (2011), a assimilação e preservação

do patrimônio cultural enquanto constituinte do cotidiano e da sociedade precisam

de gerenciamento que estabeleçam seus limites físicos e conceituais gerenciados,

assim como regras e leis. De acordo com Pires (2010), dentre os instrumentos de

preservação estão a seleção, restauro, conservação, revitalização, gentrificação,

proteção, valorização, divulgação, reconhecimento e, mais recentemente,

inventário, registro e salvaguarda. Apesar do autor não citar, lembremos, é claro,

do tombamento.

Desde agora se faz necessário apresentar as instituições governamentais

que se responsabilizam por essa preservação em nível internacional e nacional.

Mundialmente a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação,

Ciência e Cultura) é o órgão responsável pelas áreas de atuação diversidade

cultural, patrimônio mundial, cultura e desenvolvimento. No Brasil, o IPHAN

(Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) é o organismo federal

responsável quanto à proteção do patrimônio brasileiro. Nas escalas estadual e

municipal do Rio de Janeiro esse exercício é realizado, respectivamente, pelo

INEPAC (Instituto Estadual do Patrimônio Cultural) e SMC (Secretaria Municipal

de Cultura da cidade do Rio de Janeiro), dentro da qual há a Subsecretaria de

Patrimônio Cultural, Intervenção Urbana, Arquitetura e Design.

90

Para os autores que usam o termo patrimônio cultural, substituir a fragmentação humano /

natural / paisagístico / arqueológico pela palavra cultural é o mais apropriado depois da entrada da

visão antropológica sobre cultura, sua pluralidade e complexidade e, consequente, preservação.

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A ação preservacionista é, assim, antes de qualquer coisa, uma política

social que entende e “oficializa” o patrimônio enquanto prática social. E essa ação

política para Arantes (s/d) ao longo do tempo “(...) consolidou-se juridicamente e

perante a opinião pública, a sua legitimidade enquanto esfera de atuação

governamental” (p.53), sendo que são nas arenas institucionais municipais,

estaduais e federais onde são tomadas as decisões e resolvidos os conflitos que

surgem em relação ao patrimônio cultural. Dessa forma, o Estado não pode deixar

de ser reconhecido, ao mesmo tempo em que não pode ser considerado como

exclusivo nas tomadas e materializações das decisões. Tão importantes quanto as

esferas governamentais nos problemas emergentes desse campo, volta a ser

reforçado, estão as instituições não governamentais, acadêmicas, interesses

públicos e privados fora e, principalmente, a própria sociedade que no seu dia a

dia vive e dá ressonância ao patrimônio cultural, mesmo que, talvez, não saiba que

isso o faz. Assim, a passagem de Castro (2009) abaixo se torna significante.

Na realidade, considerar o Estado como instituição e como questão para a

geografia política contemporânea não significa atribuir-lhe qualquer tipo de

exclusividade como campo de reflexão, mas apenas indica o reconhecimento de

que uma análise banalizada pela política nas sociedades modernas não pode

ignorá-lo, qualquer que seja a disciplina. (p.47)

Em se falando da sociedade e seu papel fundamental nas questões que

envolvem as políticas de patrimonialização, de acordo com Gonçalves (2011)

muitos bens culturais já são reconhecidos e monopolizados por pessoas,

independente de serem patrimônios / preservados ou não. Todavia, cremos que

poucas pessoas sabem o que significa ser “patrimônio cultural”, e nem têm ideia

que bares e botequins podem ser patrimonializados. Ainda que as possibilidades

de discussão nesse momento sejam inúmeras, essa sessão será dedicada a entender

a inserção da imaterialidade e sua pluralidade dentro das políticas públicas de

patrimônio que são respaldadas pelas instituições governamentais e pela

legislação – constituições, decretos federais e municipais; para assim, poder

chegar aos dois decretos municipais que declararam vinte e seis bares e botequins

cariocas como patrimônio cultural intangível.

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3.2.1. A imaterialidade nas suas formas legais de apropriação

Não tenho aqui a pretensão de discutir todos os detalhes das legislações de

patrimonialização91

, o importante é, através de uma contextualização mais

genérica, compreender que a concepção de patrimônio cultural se tornou mais

ampla assim como a própria definição de cultura em si, principalmente a partir da

década de 1980, incorporando-se à sociedade através de pesquisadores, órgãos

públicos, instituições de forma legal pelas legislações. No que diz respeito ao

patrimônio cultural ressalta-se que a sua formalização se deu pela abrangência da

pluralidade cultural brasileira, em que a assimilação da imaterialidade veio

transformar um cenário que se encontrava estagnado e incompleto.

A patrimonialização é um processo jurídico que é guiado no espaço por

leis. Quanto ao cenário nacional, o processo de formulação das políticas públicas

de patrimônio e seus instrumentos de preservação desde a década de 1930 serão

tomados como recorte temporal. Portanto, qualquer registro quanto à vontade ou a

existência de tais políticas públicas anteriores a 1930 não serão aqui abordadas 92

.

Inicia-se a discussão proposta reescrevendo algumas palavras de

Gonçalves (2011) e Oliveira (2008a). Para Gonçalves (2011), “patrimônio tem a

ver como experimentamos o tempo e como nos situamos nesse tempo!” (p.47) e

para Oliveira (2008a), “ao falarmos de patrimônio estamos lidando com história,

memória e identidade, conceitos inter-relacionados cujos conteúdos são definidos

e modificados ao longo do tempo” (p.114). A legislação referente às políticas

públicas de patrimônio acompanha, desde a década de 1930 até os dias de hoje, as

questões colocadas pela sociedade brasileira em diferentes momentos históricos.

O primeiro órgão federal de proteção do patrimônio, a Inspetoria dos

Monumentos Nacionais foi fundada em 1934 (OLIVEIRA, 2008a), mesmo ano

91

Só o farei em relação à importância do município como gestor do seu território. 92

Também não será aqui aprofundada, por mais que isso seja importante, a relação entre a

formulação das políticas públicas de preservação e os intelectuais e artistas brasileiros ligados ao

movimento modernista e os conflitos entre modernistas e neocoloniais, por exemplo. Isso muito

bem faz Oliveira (2008a), além de Campos (2006) e o site do Iphan

(http://portal.iphan.gov.br/portal/montarPaginaSecao.do?id=11175&retorno=paginaIphan, acesso

em 20 de fevereiro de 2013)

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em que, segundo Pelegrini (2006), a Constituição da República explicita o dever

do Estado em proteger os bens naturais e culturais além de abrandar o direito de

propriedade (lembrando que o conceito de patrimônio é relacionado ao de

propriedade). Todavia, a proteção à cultura da época era exclusiva nas cidades

históricas mineiras consideradas, então, as relíquias e preciosidades nacionais a

serem preservadas (OLIVEIRA, 2008a). O próprio nome do órgão que exalta os

monumentos deixa claro que os primeiros bens culturais a serem considerados

pelas políticas públicas de patrimonialização foram os materiais, pensamento esse

que permaneceu forte até a década de 1970 e ainda continua disseminado. Fora

isso, tais monumentos compunham o sistema referencial simbólico da hegemonia,

ou seja, das cidades históricas mineiras consideradas representativas da história e

memória das classes hegemônicas do país naquele momento.

O próximo passo dado em relação às políticas de proteção do patrimônio

histórico e artístico93

ocorreu em 1937 quando a Inspetoria dos Monumentos

Nacionais foi desativada e a Lei n°378, somada ao Decreto-lei n° 25, criou o

Sphan (Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) – atual Iphan94

-,

atrelado ao Ministério da Educação. De acordo com Pires (2010) essa política de

preservação elaborada em 1937 “(...) tinha o nítido propósito de criação de

símbolos para a formação identitária da nação e buscava no patrimônio material

os elementos sensíveis para tal representação (...)” (p.81), pensamento esse

complementado por Campos (2006, p.2) ao trazer que a criação do Sphan foi um

mecanismo de reafirmação de nacionalidade elaborado no intuito de promover a

unificação do povo brasileiro que havia sido fragmentada pela herança federalista

e oligárquica e que, através do Sphan seriam eleitos àqueles bens a compor o

acervo representativo da nação brasileira e sua tradição, um “ideal de brasilidade”,

afirma o autor.

A partir do final do século XIX e início do século XX, a consolidação da forma

moderna do Estado como um projeto territorial e socialmente enraizado teve no

nacionalismo um recurso ideológico necessário (...). Na construção do imaginário

social, forjado pelo nacionalismo, o território tornou-se progressivamente um

patrimônio que a nação deve preservar como herança para as novas gerações,

93

Pois era assim que era denominado o que atualmente se chama de patrimônio cultural. 94

Alguns textos usam essas siglas todas em maiúsculas e outros com a primeira em maiúscula e as

demais minúsculas, por isso, como, nesse momento, elas serão utilizadas em grande quantidade,

fico com a segunda opção mais por uma questão visual.

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sendo a ordem estatal a sua garantia. Um imaginário geográfico é o substrato

dessa construção; o conhecimento e a valorização da natureza e o trabalho que a

sociedade nela imprimiu também são encontrados em todas as expressões do

nacionalismo (CASTRO, 2009, p.45)

O Sphan, como intervenção estatal, nascido desse discurso nacionalista,

entendia como única forma de preservação o tombamento. O órgão tinha como

política proteger os bens de excepcional valor, e os bens a serem protegidos como

patrimônio-símbolo eram aqueles advindos da tipologia urbana e arquitetônica do

século XVIII – barroco colonial e suas representações (PIRES, 2010). Os estados

de Minas Gerais, principalmente, além de Rio de Janeiro, São Paulo, Pernambuco

e Bahia eram as unidades federadas consideradas pelos gestores como as

detentoras da cultura brasileira (CAMPOS, 2012). O Sphan definiu como o lugar

da civilização brasileira o estado de Minas Gerais, enfatiza Oliveira (2008a).

A atuação do Sphan se dava mediante o mecanismo de tombamento dos

remanescentes da arte colonial ameaçados pela urbanização, pelo saque, pela

comercialização dos antiquários e colecionadores. Esse primeiro momento da

política de preservação do patrimônio brasileiro orientou-se por uma concepção

de política cultural – mais tarde chamada de “pedra e cal” -, executada

principalmente pelo estatuto do tombamento. Vale lembrar que a expressão

“tombamento” vinha do direito português, no qual o verbo “tombar” significava

“inventariar” ou “inscrever” nos arquivos do reino, guardados na Tore do Tombo.

Tombamento, portanto, significava inscrever em um dos quatro livros do Tombo:

Livro de Belas Artes, Livro Histórico, Livro Arqueológico e Etnográfico, e Livro

Paisagístico. (Idem, 2008a, p.120)

Os funcionários do Sphan é que passaram a ter autoridade como intérpretes e

guardiões dos valores culturais da nação. Eles conseguiram convencer as elites da

importância de consagrar bens representativos do passado religioso luso-

brasileiro. Nesse primeiro momento da política de preservação, a equipe do

Sphan atuava em nome dos interesses nacionais, acima dos interesses particulares

ou do governo, e se considerava intérprete ou porta-voz da sociedade ainda

desorganizada. A política do órgão era defendida por seus funcionários, que se

sentiam como salvadores, como missionários a defender a matriz luso-brasileira

da cultura nacional. Na história do Sphan predominou a versão modernista da

história da arquitetura. Seus funcionários eram, em sua maioria, arquitetos

(formados pela Escola de Belas Artes), artistas plásticos, fotógrafos, engenheiros.

Eram eles que definiam os critérios de seleção. Só mais tarde museólogos e, mais

recentemente, historiadores e antropólogos passaram a compor o quadro de

funcionários da instituição. (Idem, 2008a, p.121).

Para Pelegrini (2006) esse foi o órgão que realizou o primeiro

levantamento dos bens de interesse histórico e cultural nacionais. Isso se tornou

louvável como iniciativa pública, afinal, as relíquias materiais mineiras estavam

ameaçadas. Percebe-se pelas citações acima, entretanto, que, além do

tombamento, os funcionários do Sphan detinham o poder de decidir o que

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representava a excepcionalidade de uma cultura que, naquela época, já era tão

ampla e rica na sua pluralidade, inclusive em termos materiais. E tais agentes

fizeram isso de forma extremamente reducionista a partir do momento em que

apenas a memória e herança da religiosidade luso-portuguesa foi considerada.

Onde estavam todas as representações, mesmo que materiais, das culturas

indígena e africana, por exemplo? E das outras etnias europeias que ajudavam a

construir nossa nação? Oliveira (2008a) diz que as pessoas influentes daquele

primeiro órgão responsável pelas políticas de patrimônio releram o Brasil e sua

cultura como uma manifestação estética e histórica da coletividade brasileira,

inventando um discurso que não respondeu a questões importantes no que diz

respeito à tradição brasileira, sua cultura genuína, sua civilização como era

reconhecido pelas elites cultas brasileiras. Fora isso, segue a autora, a partir do

momento em que o Sphan baseava sua prática de proteção e preservação no

tombamento, existia, inclusive, a Divisão de Estudos e Tombamentos que limitava

o direito de propriedade em nome de valores culturais. Como bem expõe Pelegrini

(2006) muito além do conjunto de monumentos e documentos que existiram, o

que sobreviveu enquanto memória coletiva de tempos passados é o efeito das

escolhas realizadas por algumas forças atuantes da época. Para Campos (2006), a

própria criação da identidade nacional via tombamentos, desde a década de 1930,

se configurava como um efeito da globalização, pois, naquela época fortalecer as

fronteiras políticas a culturais era preciso no cenário mundial.

Pelegrini (2006) é categórica ao dizer que no Brasil as políticas

direcionadas para a área cultural e em particular aquelas referentes à proteção

patrimonial “(...) têm oscilado entre as diferentes concepções de identidade

nacional dos governos que se sucederam” (p.73). E isso nos faz voltar a

Gonçalves (2011), pois o autor insiste em afirmar que o patrimônio equivale a

maneira pela qual experimentamos o tempo e neles nos situamos. Pelegrini (2006)

mostra que a Constituição de 1946 foi a que inaugurou a preocupação em relação

aos documentos históricos e sua proteção, além de ter reafirmado a

responsabilidade do Estado no que diz respeito às políticas de patrimônio.

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A década de 1950, por sua vez, trouxe novos ares que impregnaram as

manifestações culturais nacionais, a modernidade parecia ter chegado ao país,

afirma Oliveira (2008a), através da

(...) procura da pureza, de se despir dos ornamentos, tudo isso se manifestaria na

abstração, nas técnicas construtivas. A bossa-nova na música, o cinema novo, o

concretismo e neoconcretismo na poesia e nas artes plásticas (...) (p.124).

Quanto aos anos 1950 e as suas novidades Pelegrini (2006a) explicita que

Juscelino Kubitschek restringiu suas responsabilidades patrimoniais na defesa do

folclore brasileiro. As mudanças continuaram a partir dos anos 1960. Passaram a

faltar recursos e os problemas em relação às cidades históricas aumentavam; o

instrumento tombamento começava a encarar uma nova elite que não mais se

identificava unicamente com a cultura portuguesa: a então “modernidade”

portuguesa se tornou velharia frente as novas influências de outras culturas

dominantes estrangeiras (OLIVEIRA, 2008). Fora que pelos vieses econômico,

social e político, a década de 1960 iniciou um novo cenário: era a chegada da

ditadura militar e a política de cultura dos governos militares, consequentemente,

abarcou as políticas públicas de patrimônio.

De acordo com Pelegrini (2006), os atos institucionais de 1967

adicionaram novas categorias de bens a serem preservados (como jazidas e sítios

arqueológicos) e nos primeiros momentos da ditadura o órgão voltou-se a

pesquisa e inventariação da arquitetura e obras de artes brasileiras ainda pelo valor

estético. Por sua vez, Oliveira (2008a) diz que passada a fase mais dura desse

momento histórico, a política do agora Iphan (antigo Sphan) passou a ser

considerada inadequada aos novos tempos, o mesmo era visto como elitista,

pouco representativo da pluralidade, ou seja, não possuía nenhuma ligação com os

problemas fundamentais do ‘desenvolvimento’. Os governos militares passaram

então a olhar de outra maneira para o campo da cultura, no sentido de buscar

maior legitimidade e reorganizar a esfera cultural. Demonstrativo desse olhar,

segue a autora, foi a elaboração, em 1973, do Programa de Cidades Históricas

(PCH) o qual “viabilizou importantes iniciativas no campo da preservação do

patrimônio de cidades nordestinas, cujos monumentos, casas, igrejas

representassem os ciclos da cana-de-açúcar, do couro e do algodão na região

Nordeste” (p.125). Percebe-se assim que a materialidade dos bens culturais, ou

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seja, eles enquanto objetos, continuava a ser o que importava, todavia, a política

do patrimônio já se expandia com maior intensidade pelo país já novas cidades

foram inseridas no processo como Natal, Teresina e Fortaleza (OLIVEIRA,

2008a).

Uma das mais importantes transformações iniciadas durante os anos da

ditadura militar foi a criação do Centro Nacional de referência Cultural (CNRC)

em 1975, que tinha como objetivo maior “mapear, documentar e entender a

diversidade cultural do Brasil” (Idem, 2008a, p.125). Para Pires (2010), o CNRC

foi fundamental por ter lançado uma nova visão sobre o patrimônio cultural, que

fora expandido na dimensão do processo social, abrindo portas para a posterior

assimilação oficial da até então esquecida imaterialidade.

De 1975 a 1979 foram desenvolvidos pelo CNRC projetos reunidos em quatro

programas: artesanato, levantamentos socioculturais, história da tecnologia e

ciência no Brasil e levantamentos de documentação sobre o Brasil. Entre os

projetos especialmente valorizados por Aloísio Magalhães estavam: estudo

multidisciplinar do caju,museu ao ar livre de Orleans (imigração italiana),

cerâmica de Amaro de Tracunhaém, tecelagem em teares de quatro pedais do

Triângulo Mineiro. Ou seja, tais projetos tinham pouca ou nenhuma relação com

patrimônio, no sentido da autenticidade ou tradição, como era entendido na fase

heroica do Sphan, valorizavam a capacidade de invenção do artesão brasileiro. A

proposta era realizar um inventário do saber-fazer. (OLIVEIRA, 2008a, p.125-

126)

Pires (2010) enfatiza que o CNRC promoveu inúmeros avanços nas

políticas de patrimônio, a partir do momento em que introduziu ações voltadas

para proteger as práticas, os saberes os modos e as artes de fazer populares. O

CRNC, afirma Pelegrini (2006) orientou, por exemplo, programas de preservação

de bens voltados à cultura ameríndia e negra. Dessa forma a ampliação da

categoria acolheu um novo conceito, o de referência cultural que, posteriormente,

foi “potencializado” pela Constituição Federal de 1988. Para Fonseca (2011) falar

em referências culturais significa “dirigir o olhar para representações que

configuram uma identidade da região para seus habitantes, e que remetem à

paisagem, às edificações e objetos, aos fazeres e saberes, às crenças, hábitos, etc.”

(p.113).

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Quando se fala em referências culturais, se pressupõem sujeitos para os quais

essas referências façam sentido (referências para quem?). Essa perspectiva veio

deslocar o foco dos bens - que em geral se impõem por sua monumentalidade, por

sua riqueza, por seu .peso. material e simbólico - para a dinâmica de atribuição de

sentidos e valores. Ou seja, para o fato de que os bens culturais não valem por si

mesmos, não têm um valor intrínseco. O valor lhes é sempre atribuído por

sujeitos particulares e em função de determinados critérios e interesses

historicamente condicionados. Levada às últimas consequências, essa perspectiva

afirma a relatividade de qualquer processo de atribuição de valor - seja valor

histórico, artístico, nacional etc. – a bens, e põe em questão os critérios até então

adotados para a constituição de patrimônios culturais, legitimados por disciplinas

como a história, a história da arte, a arqueologia, a etnografia, etc. Relativizando

o critério do saber, chamava-se atenção para o papel do poder (Idem, 2011,

p.112)

É válido ressaltar que essa abertura da categoria patrimônio, cujo início

“real” se deu década de 1970, veio associado ao processo de crise do Estado-

nação que, na década de 1930, recheava os discursos da construção do patrimônio

nacional. Campos (2012) realiza essa associação de forma muito clara. Para ele,

em 1930 ter uma identidade nacional significava abolir as fronteiras internas

nacionais, sendo que na década de 1970 a globalização da cultura já havia gerado

uma crise desse mesmo Estado-nação, enfraquecendo ou quase abolindo suas

fronteiras. As culturas marginais ou minoritárias que até então não eram

reconhecidas, segue o autor, apropriaram-se dessa “abertura” para reivindicarem

seu espaço. “Para alguns, a soberania nacional, como conceito, está se tornando,

cada vez mais, ‘um termo político obsoleto’ (...) para outros ‘o Estado-nação

tornou-se demasiado pequeno para resolver os grandes’” (Idem, 2012, p.5).

Castro (2009, p.227) complementa ao mostrar que o Estado-nação está se

transformando, a política econômica nacional é menos eficaz que no passado e

aquelas formas de geopolítica que se apoiaram em tipos de nacionalismos foram

ultrapassadas, onde o território é assim “(...) arena privilegiada dos conflitos e

opções colocados pela globalização” (Idem, 2009, p.241).

Além disso, de acordo com Pelegrini (2006a) foi a partir da década de

1980 que a visão antropológica da cultura passou a ser fomentada, quando

passaram a ser oficialmente consideradas como cultura “as maneiras do ser

humano existir, pensar e se expressar, bem como as manifestações simbólicas dos

seus saberes, práticas artísticas e cerimoniais, sistema de valores e tradições”

(Idem, 2006a, p.117). De acordo com Cerqueira (2005), a vastidão da cultura

imaterial é objeto preferencial do estudo da Antropologia social já que essa

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ciência “disseca e interpreta as complexas relações entre as diversas redes

simbólicas e construção de identidades culturais plurais” (Idem, 2005, p.94).

Botelho (2001) amplia a discussão ao afirmar que a dimensão antropológica da

cultura atinge o plano do cotidiano, sua elaboração e produção material e

simbólica é no dia a dia, uma questão de hábitos e costumes. Por essa

interpretação cada individuo, inclusive, constrói a sua volta seus valores, manejam

suas identidades e estabelecem suas rotinas, ou seja, erguem a sua volta pequenos

mundos de sentidos. (BOTELHO, 2001). Para essa autora, a dimensão

antropológica se distingue da sociológica. “A dimensão sociológica da cultura

refere-se a um conjunto diversificado de demandas profissionais, institucionais,

políticas e econômicas, tendo, portanto, visibilidade em si própria” (p.75). A

dimensão sociológica é um circuito organizacional que estimula a produção,

circulação e consumo dos bens simbólicos. Não estaria dessa forma arraigada no

cotidiano, mas sim, em um universo institucionalizado. Todavia, mostra Botelho

(2001) que essa distinção também precisa ser evitada na prática, pois, diz ela que

em experiências de políticas culturais democráticas para que a dimensão

antropológica não fique ‘presa’ á retórica é necessária a institucionalização

sociológica. Por mais que essa fragmentação / complementaridade entre tais

dimensões da cultura propostas por Botelho (2001) não seja aqui mais

detalhadamente abordada é preciso destacar que ambas são igualmente

importantes ao se pensar em políticas públicas. As novas políticas de patrimônio

precisam aderir à pluralidade antropológica e, se é pela dimensão sociológica que

tal pluralidade é institucionalizada, não há como rejeitar essa última.

Antes de partir para a Constituição Federal de 1988 e os momentos

posteriores a ela um exemplo de inovação no campo da política pública de

patrimônio ocorrido em 1988 precisa ser lembrado. De acordo com Oliveira

(2008a) o tombamento do terreiro Casa Branca em 1982 significou o resultado de

uma luta política e simbólica importante que rompeu com o imaginário de que só

a matriz católica luso-brasileira guiava as patrimonializações brasileiras.

Segundo Oliveira (2008a), a nova face da política de patrimônio possui

certidão de nascimento, ou seja, os artigos 215 e 216 da Constituição de 1988. A

partir de 1988 ficou demonstrado a preocupação do constituinte em proteger o

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bem jurídico social e muitos artigos relativos foram dedicados a cultura e aos bens

culturais foram dedicados. Como a definição dos artigos 215 e 216 artigos são

fundamentais para a temática presente, assim como fizeram Oliveira (2008a) e

Fonseca (2005), eis aqui os pontos que considero mais significativos para o

momento de investigação95

:

Art. 215 - O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e

acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a

difusão das manifestações culturais.

§ 1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e

afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório

nacional.

§ 2º - A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação

para os diferentes segmentos étnicos nacionais.

§ 3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual,

visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder

público que conduzem à:

I - defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro;

II - produção, promoção e difusão de bens culturais;

III - formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas

dimensões;

IV - democratização do acesso aos bens de cultura;

V - valorização da diversidade étnica e regional.

Art. 216 - Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material

e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à

identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade

brasileira, nos quais se incluem:

95

A íntegra dos mesmos está disponível em

http://www.dji.com.br/constituicao_federal/cf215a216.htm (acesso em 23 de fevereiro de 2013).

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I - as formas de expressão;

II - os modos de criar, fazer e viver;

III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;

IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às

manifestações artístico-culturais;

V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,

arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

§ 1º - O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá

o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância,

tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.

§ 2º - Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação

governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela

necessitem.

§ 3º - A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e

valores culturais.

§ 4º - Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei.

§ 5º - Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de

reminiscências históricas dos antigos quilombos.

A partir dos artigos elencados da Constituição Federal de 1988, a

concepção de patrimônio passou oficialmente a assimilar então os bens e símbolos

de natureza imaterial ou intangível. Lugares, festas, religiões, formas de medicina

popular, música e dança, culinária, técnicas, modos de fazer e etc., por exemplo,

podiam ser, então, patrimonializados. (GONÇALVES, 2005). Para o Iphan, o

patrimônio imaterial é transmitido de geração em geração e são constantemente

recriados pelas comunidades e grupos ao gerarem sentimento de identidade e

continuidade, contribuindo para a promoção do respeito a diversidade cultural e á

criatividade humana96

. “A categoria ‘intangibilidade’ se relaciona, por sua vez, ao

caráter desmaterializado que assumiu a referida moderna noção antropológica de

96

http://portal.iphan.gov.br/portal/montarPaginaSecao.do?id=10852&retorno=paginaIphan (acesso

em 23 de fevereiro de 2013).

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‘cultura’” (GONÇALVES, 2005, p.27). Para Fonseca (2001), os textos que tem

como base a concepção antropológica cultural

(...) enfatizam a diversidade não só da produção material, como também dos

sentidos e valores atribuídos pelos diferentes sujeitos a bens e práticas sociais.

Essa perspectiva plural de algum modo veio ‘descentrar’ os critérios considerados

objetivos, porque fundados em saberes considerados legítimos que costumavam

nortear as interpretações e as atuações no campo da preservação de bens culturais

(Idem, 2001, p.112-113).

Além de passar a contemplar a imaterialidade o artigo 216 traz novas

formas de preservação além do tombamento e que são diretamente relacionadas

aos bens imateriais: o inventário e registro. Instrumentos de preservação esses que

no ano de 2000 foram potencializados / disciplinados pelo Decreto n°3.551 de 04

de agosto, quando este criou Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que

constituem o patrimônio cultural brasileiro e o Programa Nacional do Patrimônio

Imaterial. O instituto do registro ficou aplicável aos bens imateriais com a mesma

importância que o tombamento no que diz respeito aos bens materiais. Depois

desse decreto97

, os bens imateriais ou intangíveis precisam estar registrados em

um dos quatro livros propostos: I - Livro de Registro dos Saberes, para

conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades; II -

Livro de Registro das Celebrações, para rituais e festas que marcam a vivência

coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da

vida social; III - Livro de Registro das Formas de Expressão, para as

manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas; IV - Livro de

Registro dos Lugares, onde serão inscritos mercados, feiras, santuários, praças e

demais espaços onde se concentram e reproduzem práticas culturais coletivas.

Ainda que de acordo com o Decreto n° n°3.551 / 2000 promova que partes

legítimas (Ministério da Cultura, Secretarias de Estado, Municípios ou Distrito

Federal, associações civis ou sociedade e etc.) provoquem a instauração do

processo de registro, cabe ao Iphan dirigir as propostas para o registro. Depois de

passar pelo Iphan, tais propostas são submetidas ao Conselho Consultivo do

Patrimônio Cultural. Percebe-se, portanto, que o Iphan continua, depois de 70

anos, como órgão detentor de maiores poderes quanto às políticas publicas de

97

A íntegra do decreto pode ser encontrada em

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D3551.htm (acesso em 23 de fevereiro de 2013).

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patrimônio brasileiras. Os bens imateriais registrados em um dos livros acima

sofrem reavaliações pelo menos de 10 em 10 anos por parte do Iphan para ver se

continuam ou não declarados como patrimônio. Caso os bens não preservem as

características marcantes que o fizeram ser registrados em um dos livros acima e o

identificaram representativos da categoria patrimônio cultural brasileiro perdem o

“título”, mas, o registro desse bem como referência cultural do seu tempo

permanece. Todavia, como mostra Oliveira (2008a), algumas dúvidas

acompanham esse processo de registro dos bens imateriais na conjuntura das

transformações que o espaço vivencia, inclusive quanto as suas tradições e

identidades. Em dez anos, na dinâmica atual, as “características marcantes”

mudam e muito. “Vale citar como exemplos de dificuldades um ritual, uma vez

registrado, nunca mais deve ser modificado? Um prato típico não pode ser

alterado? Um falar popular não é passível de atualização?” (OLIVEIRA, 2008,

p.134).

Ao se falar do Decreto n° n°3.551 / 2000 se torna fundamental lembrar que

através deste, pelo seu artigo oitavo, foi instituído, no âmbito do Ministério da

Cultura, o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, visando à implementação

de política específica de inventário, referenciamento e valorização do patrimônio.

Como informa o Iphan

O Programa Nacional do Patrimônio Imaterial/PNPI, instituído pelo Decreto nº

3.551, de 4 de agosto de 2000, viabiliza projetos de identificação,

reconhecimento, salvaguarda e promoção da dimensão imaterial do patrimônio

cultural. É um programa de apoio e fomento que busca estabelecer parcerias com

instituições dos governos federal, estadual e municipal, universidades,

organizações não governamentais, agências de desenvolvimento e organizações

privadas ligadas à cultura e à pesquisa.

(http://portal.iphan.gov.br/portal/montarDetalheConteudo.do?id=12689&sigla=In

stitucional&retorno=detalheInstitucional, acesso em 24 de fevereiro de 2013).

E os objetivos desse programa são

Implementar política de inventário, Registro e salvaguarda de bens culturais de

natureza imaterial; contribuir para a preservação da diversidade étnica e cultural

do país e para a disseminação de informações sobre o patrimônio cultural

brasileiro a todos os segmentos da sociedade; captar recursos e promover a

constituição de uma rede de parceiros com vistas à preservação, valorização e

ampliação dos bens que compõem o patrimônio cultural brasileiro e incentivar e

apoiar iniciativas e práticas de preservação desenvolvidas pela sociedade (Idem,

acesso em 24 de fevereiro de 2013).

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Apesar das críticas que a institucionalização dessa imaterialidade cultural

brasileira possa receber - das dúvidas que geram, e isso é importante no sentido do

processo ser dinâmico e as leis e decretos precisarem mudar e apresentar

melhoramentos - Arantes (s/d, p.56) ressalta que no Brasil as discussões sobre

patrimônio ficaram mais intensas e mais apaixonantes à medida que os elementos

culturais intangíveis passaram a ser preservados. Fora a pluralidade que passou a

ser considerada, essa intangibilidade rompeu com a concepção mais tradicional

que persistia nos discursos e práticas políticas do patrimônio cultural brasileiro

impostos pelos grupos dominantes e baseados na materialidade da “pedra e cal” 98

.

Essa mudança de pensamento e assimilação no que diz respeito a esse conceito

caminha paralelamente a globalização e seus pares dialéticos tal como

homogeneização / heterogeneização, globalismo / localismo, identidade e

comunidades locais reais ou não, fragmentação das fronteiras nacionais /

fortalecimento de nacionalismos, o lugar do/no mundo de Carlos (2007) e etc.

(FONSECA, 2005) para o então “patrimônio cultural”.

Para Fonseca (2005), essa iniciativa de concepção abrangente, subjetiva e

mais popular é bastante louvável porque ela “(...) representa uma inovação e

flexibilização nos usos da categoria patrimônio, particularmente no Brasil.

Oferece também a oportunidade de aprofundar nossa reflexão sobre os

significados que pode assumir essa categoria” (Idem, 2005, p.24). Utilizo “mais

popular” porque apesar de ter assimilado a cultura popular brasileira,

configurando possibilidades de escapar da valorização do eurocentrismo, o

patrimônio intangível não pode ser somente atrelado ao popular, ou folclore, isso

se torna perigoso. Essa retificação foi debatida no IV Simpósio de Geografia,

Turismo e Patrimônio Cultura e pode ser encontrada em Veloso (2006).

Para reforçar a importância da assimilação da imaterialidade nas políticas

de patrimônio no Brasil, Veloso (2006) diz que a identificação e valorização do

patrimônio cultural, em especial o que é designado de imaterial ou intangível,

enseja o fortalecimento do espaço público, espaço esse que a autora chama de

privilegiado, pois, nele os múltiplos grupos sociais, suas manifestações culturais e

identitárias tem a oportunidade de serem reconhecidas como representação

98

Expressão utilizada por Gonçalves (2005) e Fonseca (2005).

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legítima da cultura brasileira. Mesmo assim, ainda para essa autora, o patrimônio

intangível possui mais facilidade de se tornar um fetiche na lógica moderna de

apropriação dos bens culturais, pois, para ela o que esse conceito e suas práticas

trazem de mais fecundo (e por isso, tão cruciais) “(...) é sua relação visceral com a

vida social e cotidiana dos grupos sociais, que são sujeitos desse processo, porque

portadores dos conhecimentos, dos saberes, fazeres e memórias dos lugares (...)”

(Idem, 2006, p.445). Todavia, para finalizar essa etapa, depois de todo o diálogo

travado onde foi ressaltada a importância do reconhecimento e legalização dos

bens e símbolos imateriais, considero bastante relevante a fala de Campos (2011)

logo a seguir. Se a patrimonialização imaterial é um ato simbólico, por outro lado,

por exemplo, o tombamento recebe apoio no sentido de reduzir tributações entre

muitas outras coisas (e obrigações), ou seja, ambos são instrumentos de

preservação relevantes. Lembrando-se de que, a representação simbólica é muito

importante, principalmente, para as pessoas / comunidade que literalmente vivem

esse simbolismo.

O patrimônio cultural deve ser entendido e tratado não como uma classificação

dividida em gênero “patrimônio cultural” e espécies “material” e “imaterial”; tal

classificação pode ser utilizada de forma didática, mas não de forma

hierarquizante entre os bens culturais. Portanto, o entendimento abrangente do

que seja patrimônio cultural não só evita a hierarquia entre patrimônio material e

imaterial, como também impede que se construa uma ideia errônea de que o

registro seja um instrumento de salvaguarda de segunda categoria, menos

importante que o tombamento. Aliás, não são somente esses os meios de

acautelamento, proteção e salvaguarda do patrimônio cultural: existem, ainda,

conforme a Constituição republicana de 1988, inventário, a vigilância e a

desapropriação, que ainda precisam ser regulamentados pelos legisladores

brasileiros e/ou pelos gestores do patrimônio cultural. O que vai determinar o uso

de cada um desses instrumentos é a natureza do bem. (Idem, 2011, p.100-101)

3.2.2. O município como gestor do seu patrimônio cultural

Como os dois decretos responsáveis pela declaração dos vinte e seis bares

e botequins tradicionais da cidade do Rio de Janeiro como patrimônios culturais

intangíveis são municipais, a assimilação institucional dessa imaterialidade

precisa ser entendida pela efetivação da Constituição Federal de 1988. Nesse

sentido, cabe aqui trazer os deveres do município do Rio de Janeiro para com a

gestão do seu território, inclusive, a gestão da sua cultura local e,

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consequentemente, dos seus patrimônios culturais. As pesquisas sobre o

planejamento e gestão da cidade do Rio de Janeiro, inegavelmente, do município

carioca (e seus gestores públicos, representativos da sociedade) aparecem como

um dos pontos principais no âmbito da pesquisa, já que suas responsabilidades são

cruciais para a aplicação um desenvolvimento socioespacial.

Quanto ao papel do Estado na gestão dos patrimônios cabe destacar que

mesmo que ele não sendo mais o único gestor do território, ressalta-se as suas

funções administrativas crucias para a qualidade da gestão. Nesse contexto Castro

(2009) compreende a relevância do debate sobre os municípios no Brasil, sendo

que não há agenda política atualizada sem que esse debate seja inserido. Para a

autora o município é um recorte federativo com importante grau de autonomia;

tratando-se ainda de um território político por excelência, pois se constitui em um

distrito eleitoral formal. Ainda segundo a geógrafa, é na escala local que “(...)

habitamos e exercemos os nossos direitos e deveres de cidadania, onde buscamos

os serviços a que temos direito, onde votamos e candidatos são votados. Também

é nele que são concretizadas as políticas públicas” (Idem, 2009, p.135).

Neste sentido, a disponibilidade e o uso dos espaços públicos nos municípios

podem nos revelar muitos traços e características da própria sociedade brasileira e

as condições por elas escolhidas no processo de organização do seu território.

Também podem ser identificadas as condições melhores ou piores para o

desenvolvimento do capital social do país, bem como as relações de poder e de

interesses que se organizam nesta escala social e política, com efeitos para a

sociedade e outras escalas da federação (Idem, 2009, p.136).

Quando se fala em competências por parte do Estado na escala municipal

de atuação, a Constituição Federal de 1988 é crucial, pois foi a partir dela que os

municípios passaram a ter mais autonomia em relação à gestão do seu território,

trazendo consequências territoriais que resvalam diretamente na sociedade. Dentre

as nove competências estabelecidas aos municípios pelo artigo 30 da constituição

de 1988, as que mais se enquadram a discussão proposta são: 1. Legislar sobre

assuntos de interesse local; 2. promover, no que couber, adequado ordenamento

territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da

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ocupação do solo urbano; e 3. promover a proteção do patrimônio histórico-

cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual99

.

Ainda no que tange a legislação nacional, o artigo 216-A, da Constituição

de 1988, fala sobre o Sistema Nacional de Cultura, reforçando o caráter

descentralizador do Estado neste tema. Segundo o próprio artigo esse sistema é

organizado em regime de colaboração, de forma descentralizada e participativa,

institui um processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de

cultura, democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da Federação e a

sociedade, tendo por objetivo promover o desenvolvimento humano, social e

econômico com pleno exercício dos direitos culturais

(http://www.dji.com.br/constituicao_federal/cf215a216.htm, visitado em 24 de

fevereiro de 2013).

Alguns dos seus princípios são muito claros em relação ao tema

‘descentralização’, como: 1. cooperação entre os entes federados, os agentes

públicos e privados atuantes na área cultural; 2. integração e interação na

execução das políticas, programas, projetos e ações desenvolvidas; 3.

complementaridade nos papéis dos agentes culturais; 4. autonomia dos entes

federados e das instituições da sociedade civil; 5. descentralização articulada e

pactuada da gestão, dos recursos e das ações; 6. democratização dos processos

decisórios com participação e controle social (Idem, acesso em 24 de fevereiro de

2013). No seu inciso IV observa-se que os Estados, o Distrito Federal e os

Municípios organizarão seus respectivos sistemas de cultura em leis próprias.

Nesse sentido, Castro (2009) discorre de forma bastante esclarecedora quanto ao

poder e visibilidade que a escala municipal passou a ter após a Constituição de

1988.

Após a Constituição de 1988, novas atribuições foram definidas para esta escala

local da política nacional, e as exigências crescentes de organizações da

sociedade em torno de direitos da cidadania contribuem para maior visibilidade

dessa escala. Afinal, cidadania se conquista através da lei geral, mas é vivida no

cotidiano do território, ou seja, naquele das relações de proximidade, de oferta e

acesso aos serviços que tornam o direito de uma prática social real. A escala

municipal é portanto significativa do fazer político no espaço e oferece um vasto

campo para a geografia política contemporânea que vai desde a visibilidade de

um espaço político de ação das organizações da sociedade civil até as decisões

concretas que resultam em políticas publicas que impactam o território e a vida

do cidadão. Paralelamente, este é o recorte que revela, em escala reduzida,

99

Artigo na sua íntegra encontrado em http://www.dji.com.br/constituicao_federal/cf029a031.htm

e acessado no dia 24 de fevereiro de 2013.

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comportamentos, valores e preferências que permitem compreender traços

característicos e diferenças regionais na sociedade nacional (CASTRO, 2009,

p.134).

Botelho (2001) considera que, pelo viés antropológico, a cultura deve ser

considerada como expressão das relações que cada indivíduo estabelece com seu

universo mais próximo e, por esse pensamento, para a autora, num aspecto

estrutural e em termos de política pública a ação é, dessa forma, privilegiadamente

municipal. No entanto, por mais que as esferas estadual e federal não sejam

capazes de produzir ações mais diretas, ao se pensar na relação cidadão e cultura,

o apoio de tais esferas legitima politicamente as ações municipais assim como

precisam ser levadas em consideração à municipal ao se imaginar em qualquer

ação conjunta (BOTELHO, 2001).

Na escala municipal de atuação, as políticas públicas de patrimônio

cultural como o exercício de gestar, legislar, proteger e preservar são realizadas

pela Secretaria Municipal de Cultura da cidade do Rio de Janeiro (SMC), dentro

da qual há a Subsecretaria de Patrimônio Cultural, Intervenção Urbana,

Arquitetura e Design, cujas competências são100

:

1. proteger e promover o patrimônio cultural do Rio de Janeiro;

2. fiscalizar e autorizar o licenciamento de obras relativas ao patrimônio

cultural do Município do Rio de Janeiro e sua ambiência;

3. planejar, coordenar, desenvolver e supervisionar programas, projetos e

demais ações técnicas necessárias para a proteção, a conservação e a

preservação dos bens tangíveis e intangíveis que integram o patrimônio

cultural do Município do Rio de Janeiro, respeitada a legislação em vigor;

4. promover iniciativas com outros níveis de governo para realização dos

objetivos da política do patrimônio e para a integração das ações de proteção

e de conservação entre órgãos e entidades municipais, estaduais e federais;

5. tratar, gerar e manter atualizado o banco de dados sobre o patrimônio

cultural do Município do Rio de Janeiro e proporcionar os meios de acesso às

informações;

100

Retiradas do site: http://www0.rio.rj.gov.br/patrimonio/competencia.shtm (acesso no dia 25 de

fevereiro de 2013).

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6. promover ações que vissem a impedir a evasão, a destruição e

descaracterização de bens e documentos de valor cultural do Município do

Rio de Janeiro;

7. manter intercâmbio com os órgãos públicos, privados ou pessoas físicas e

jurídicas, visando a preservação da memória e a proteção do patrimônio

cultural do Município do Rio de Janeiro;

Dessa forma, o município do Rio de Janeiro, amparado pela Constituição

de 1988, necessita dialogar com as escalas estadual e federal, mesmo possuindo

liberdade para planejar, gerir e legislar sobre seus patrimônios culturais

materiais101

e imateriais. Como o interesse aqui são os bares e botequins que

foram declarados como patrimônios culturais intangíveis, torna-se importante

trazer as principais leis e / ou decretos municipais realizados pós 1988 sob os

quais os dois decretos dos bares e botequins tradicionais, assim como muitos

outros, se basearam. Igualmente aos bares e botequins são declarados patrimônio

cultural imaterial da cidade, por exemplo: Obra Musical de Pixinguinha (já citado

nessa dissertação no capítulo anterior), Bossa Nova, Torcida do Flamengo,

Cordão da Bola Preta entre outros102

.

101

Á nível municipal os procedimentos para o reconhecimento das isenções tributárias relativas aos

registros materiais dos móveis e imóveis estão no Decreto n°28247 de 30 de julho de 2007, que

pode ser encontrado em: http://www0.rio.rj.gov.br/patrimonio/pastas/legislacao/Dec_28247-

2007_Isencoes.pdf (acesso em 25 de fevereiro de 2013). E a Lei n°166 de 27 de maio de 1980

dispõe sobre o município e seu poder de decidir acerca das ações dos registros materiais ou não em

seu território.

Disponível em: http://www0.rio.rj.gov.br/patrimonio/pastas/legislacao/lei166_80tombamento.pdf

(acesso em 25 de fevereiro de 2013). 102

A lista de alguns desses patrimônios imateriais está no site

http://www0.rio.rj.gov.br/patrimonio/inst_reg_bens_culturais_natureza_imaterial.shtm (acesso em

25 de fevereiro de 2013).

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Figura 3: Cordão da Bola Preta – entidade carnavalesca da cidade do Rio de Janeiro fundada

em 1918103

.

Os dois decretos dos bares e botequins tradicionais possuem como base:

1. o Decreto n°23.162 de 21 de julho de 2003104

;

2. a Lei Ordinária n° 3.947 de 16 de março de 2005 que institui o Registro de

Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural

carioca e dá outras providências105

; e

3. a Lei Complementar 111 de 1° de fevereiro de 2011 que dispõe sobre a

Política Urbana e Ambiental do Município, institui o Plano Diretor de

Desenvolvimento Urbano Sustentável do Município do Rio de Janeiro e dá

outras providências106

. Sendo que ampara na Lei nº 10.257 de 10 de julho de

2001107

, que configura o Estatuto da Cidade.

103

Fonte: http://tvbrasil.ebc.com.br/nosbracosdabatucada/episodio/cordao-do-bola-preta (Acesso

em 25 de fevereiro de 2013) 104

A íntegra desse decreto não está na internet, só tive acesso a ele através de um pedido a

Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro. 105

http://mail.camara.rj.gov.br/APL/Legislativos/contlei.nsf/f12936e2b81d99c503257960006a1e5f

/abed66016bd944a6032576ac0072eb42?OpenDocument (acesso em 25 de fevereiro de 2013) 106

http://mail.camara.rj.gov.br/APL/Legislativos/contlei.nsf/bff0b82192929c2303256bc30052cb1c

/cdd6a33fa14df524832578300076df48?OpenDocument (acesso em 25 de fevereiro de 2013) 107

http://www010.dataprev.gov.br/sislex/paginas/42/2001/10257.htm (acesso em 25 de fevereiro

de 2013)

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O Decreto n°23.162 de 21 de julho de 2003 foi a primeira ação legal da

prefeitura que instituiu o Registro Cultural de Bens Imateriais cariocas e teve por

finalidade preservar a memória coletiva e intangível dos modos do fazer e viver;

das criações artísticas, científicas e tecnológicas; das atividades e celebrações; dos

lugares; das formas de expressão. Com esta ação, estabeleceu-se um grande

avanço para a pesquisa, o reconhecimento e o registro de diversas formas de

expressão cultural que conferem identidade ao povo carioca. E através da Lei

Ordinária n° 3.947 de 16 de março de 2005, portanto, esse Registro de Bens

Culturais de Natureza Imaterial à nível municipal foi fortalecido108

. Assim, como

ocorre com o registro dos bens imateriais a nível federal, os bens culturais

imateriais cariocas, pela Lei Ordinária n° 3.947, precisam estar registrados em um

dos quatro livros: I - Livro de Registro dos Saberes; II - Livro de Registro das

Atividades e Celebrações; III - Livro de Registro das Formas de Expressão; IV -

Livro de Registro dos Lugares (Site da Câmara do Município do Rio de Janeiro,

visitado em 25 de fevereiro de 2013). A inscrição em um desses livros tem, como

referência, a continuidade histórica do bem e sua relevância local para a memória,

identidade cultural e a formação social carioca.

O documento de registro afirma que poderão ser reconhecidas, como sítio

cultural carioca, as áreas de relevante interesse para o patrimônio cultural da

cidade, visando à implementação de política específica de inventário e valorização

do patrimônio. De acordo com o decreto são partes legítimas para provocar o

pedido de registro todas as instâncias municipais que trabalham com a cultura

como o Secretário Municipal, o Conselho Municipal de Proteção do Patrimônio

Cultural ou seus Conselheiros, o órgão executivo municipal do patrimônio

cultural, demais Secretarias Municipais ou órgãos da administração municipal, o

Conselho Municipal de Cultural do Poder Legislativo Municipal e as sociedades

ou associações civis.

À Secretaria Municipal da Cultura cabe assegurar, ao bem registrado, a

documentação por todos os meios técnicos admitidos, cabendo ao órgão executivo

municipal do patrimônio cultural manter banco de dados com o material

108

Como a Lei Ordinária n° 3.947 de 16 de março de 2005 é praticamente igual ao Decreto

n°23.162 de 21 de julho de 2003 em relação ao seu conteúdo, a autora opta pela lei de 2005 que é

mais recente.

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produzido durante a instrução do processo; e sua a ampla divulgação e promoção.

Depois de realizado o registro do bem imaterial em questão, continua o decreto, o

Patrimônio Cultural será publicado no Diário Oficial para eventuais

pronunciamentos da sociedade em geral sobre o registro. Os pronunciamentos

deverão ser apresentados ao Conselho Municipal de Proteção do Patrimônio

Cultural no prazo de até trinta dias, contados da data de publicação do parecer.

Depois desse processo, em caso de decisão favorável do Prefeito, o bem será

inscrito no livro correspondente e será classificado como "Patrimônio Cultural

Carioca". Além desse “selo de qualidade” atribuído ao bem imaterial ou

intangível, a Secretaria Municipal da Cultura poderá propor a criação de outras

formas de incentivo para a manutenção dos bens registrados, validando-se a partir

do momento que, diferentemente dos tombamentos dos bens móveis e imóveis

materiais, o patrimônio imaterial não recebe apoio legal quanto a redução de suas

tributações. Como ocorre também no caso da patrimonialização dos bares e

botequins, cuja intangibilidade é territorializada também pelo próprio

estabelecimento comercial em si. Como na legislação federal, os bens imateriais

cariocas devem passar por revalidações, pelo menos, de dez em dez anos e em

caso de negação da mesma é mantido apenas o registro como referência cultural

de seu tempo.

Em 2011, com suporte no Estatuto da Cidade109

, foi criada, em nível

municipal, a Lei Complementar 111, de 1° de fevereiro de 2011, a qual Dispõe

sobre a Política Urbana e Ambiental do Município, institui o Plano Diretor de

Desenvolvimento Urbano Sustentável do Município do Rio de Janeiro e dá outras

providências. Dentre os princípios na qual essa lei se formulou e foi implementada

destaco:

109

Não será realizada aqui uma discussão a respeito do Estatuto da Cidade, todavia, cabe lembrar

que o mesmo possui um caráter de reforma urbana e de acordo com suas diretrizes estabelece

normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do

bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental. E

dentro do que considera como política urbana está a proteção, preservação e recuperação do meio

ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e

arqueológico.

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1. desenvolvimento sustentável, de forma a promover o desenvolvimento

econômico, a preservação ambiental e a equidade social;

2. função social da cidade e da propriedade urbana;

3. democracia participativa, de forma a se promover ampla participação

social;

4. articulação de políticas públicas de ordenamento, planejamento e gestão

territorial municipal; e

5. valorização proteção e uso sustentável do meio ambiente, da paisagem e

do patrimônio natural, cultural, histórico e arqueológico no processo de

desenvolvimento da Cidade.

No que diz respeito ao Plano Diretor da cidade do Rio de Janeiro, este é

um instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana e parte

integrante do processo de planejamento do município, orientando as ações dos

agentes públicos e privados e determinando as prioridades para aplicação dos

recursos orçamentários e investimentos. Suas diretrizes e normas relativas são:

1. política municipal de desenvolvimento sustentável;

2. ordenamento territorial do Município;

3. ordenação do uso e ocupação das áreas urbanas;

4. políticas públicas setoriais e seus programas;

5. instituição e aplicação de instrumentos legais;

6. sistema municipal de planejamento e gestão;

7. da participação pública efetiva e continuada, através dos Conselhos

Municipais, Conferências da Cidade, Audiências Públicas e da disponibilização

ampla de informações qualificadas sobre a Cidade; e

8. desenvolvimento urbano com base na política de planejamento e

desenvolvimento sustentável.

Muitos são os capítulos, as seções e subseções do Plano Diretor e por

conta disso a figura 04 (abaixo) traz os artigos que considero mais relevantes em

se tratando da temática proposta. Não tenho como pretensões detalhar todos esses

artigos nesse momento, além do que, ao longo dessa pesquisa eles serão

retomados e assimilados pelas discussões. Torna-se importante, todavia, perceber

que o patrimônio cultural faz parte do conjunto dos instrumentos de política

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urbana, ambiental e cultural, além de ser constituinte das políticas públicas

setoriais, onde ganha um capítulo dedicado às políticas que o envolvem. Por fim

está presente, também, na políticas de meio ambiente dentro do conjunto

paisagem, já que a proteção da paisagem, inclui, “fomentar a preservação do

patrimônio cultural e ambiental urbano”

(http://mail.camara.rj.gov.br/APL/Legislativos/contlei.nsf/bff0b82192929c230325

6bc30052cb1c/cdd6a33fa14df524832578300076df48?OpenDocument, acesso em

27 de fevereiro de 2013).

É preciso destacar que o artigo 132 dessa lei traz os instrumentos básicos

para proteção do patrimônio cultural e o que precisa ser estabelecido na aplicação

desses instrumentos, dentre os quais está o registro e declaração dos bens de

natureza imaterial. Sendo esse registro reforçado pelo artigo 141, que assim como

os decretos e leis já expostos aqui, traz os quatro livros onde os bens imateriais

podem ser registrados (págs. 80 e 86). O Plano Diretor dedica ainda uma

subseção ao licenciamento e fiscalização do patrimônio cultural, porém, como

esta traz pontuamentos exclusivos aos bens tombados, não é do interesse dessa

pesquisa.

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Figura 4: Síntese dos pontos mais importantes110

da Lei Complementar 111 / 2011 em

relação à abrangência do patrimônio cultural dentro da temática proposta.

110

Importantes para a presente autora.

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Fonte: Elaborada pela autora dessa baseada na a Lei Complementar 111, de 1° de

fevereiro de 2011111

.

Debruçar-se sobre essa legislação municipal é preciso porque as

patrimonializações municipais são qualificadas por muitos especialistas e

estudiosos como aquelas que se dão “da noite para o dia”, ou seja, costumam ser

desqualificadas. Fora que, recorrendo mais uma vez a Gonçalves (2011) e

complementando com o relato que Thiago de Mello deu à Revista História da

Biblioteca Naciona.

Às vezes você quer proteger e mata o essencial do bar, protesta o antropólogo. O

que caracteriza o botequim para o carioca, não é o bar em si. Não é o balcão, a

geladeira, ou ter um santo abençoando a casa, mas as relações que existem lá

dentro. Como você vai tombar esse patrimônio da conversa fiada, do cara que vai

lá reclamar do trabalho, olhar a menina na rua? questiona. Para ele, seria melhor

oferecer condições para o bom funcionamento dos bares, se possível reduzindo os

custos para as casas. Mas é melhor discutir isso numa mesa de bar

(http://www.revistadehistoria.com.br/secao/em-dia/chope-oficial, acesso em 27

de fevereiro de 2013).

De acordo com autores lidos e pela própria legislação o registro de

patrimônio imaterial demanda muitos estudos para que assim seja feito da forma

correta. Mesmo assim será justo desqualificar, como alguns fazem, os decretos

municipais? O que vai além do IPHAN na defesa e fiscalização112

do patrimônio?

E mais: Deve o patrimônio ser somente associado ao poder do Estado (nas suas

diferentes escalas)? Conforme um palestrante de uma turma de extensão que

realizei113

pelo IUPERJ114

, a política de patrimônio do país não deve ser associada

unicamente a esse órgão federal; mas sim ser inserido em um campo múltiplo e

ampliado que leve mais em consideração as esferas estaduais e municipais, além

das iniciativas privadas. Para esse mesmo palestrante, os patrimônios tradicionais

locais têm que sobreviver também se não estiverem somente sob o domínio e

estudos do IPHAN. Ou seja, iniciativas comunitárias e a atuação de outros atores

111

Fonte:

http://mail.camara.rj.gov.br/APL/Legislativos/contlei.nsf/bff0b82192929c2303256bc30052cb1c/c

dd6a33fa14df524832578300076df48?OpenDocument (Acesso em 25 de fevereiro de 2013) 112

Para Pelegrini (2006a) a fiscalização por parte do Iphan já se faz precária e isso acarreta

consequências como, por exemplo, “a depredação de parques nacionais e sítios arqueológicos, a

destruição de produções artísticas e arquitetônicas, o desenvolvimento do turismo indiscriminado”

(p.131) 113

Curso de extensão Patrimônio Histórico: possibilidades de pesquisa e mercado de trabalho

para jovens historiadores e cientistas sociais. 114

Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro.

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devem ser inseridos nesse processo, como pode ser observado nos artigos 198 e

199 da Lei Complementar 111 Dessa forma, ao seguir caminhos “alternativos” a

essa rigidez do Iphan, não seriam os municípios, em se tratando de gestão por

parte do Estado, os mais aptos a conhecerem a sua cultura, tradições, expressões,

saberes locais?

3.3. Identificando os decretos de 2011115 e 2012116 de patrimonialização de bares e botequins carioca.

115

Decreto n.º 34.869, de 05 de dezembro de 2011 (íntegra deste no anexo 7.1) 116

Decreto n.° 36.605, de 11 de dezembro de 2012 (integra deste no anexo 7.2)

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Figura 5: Espacialização do Decreto n° 34.869 de 05 de dezembro de 2011117

.

Fonte: Elaborado pela geógrafa Jaqueline Peluzo com base no Decreto n°34.869

disponível no site da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro

Figura 6: Espacialização do Decreto n° 36.605 de 11 de dezembro de 2012.

Fonte: Elaborado pela geógrafa Jaqueline Peluzo com base no Decreto n°36.605 disponível no

site da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro118

117

Endereços completos dos bares e botequins da figura 5 estão no anexo 7.1. 118

Endereços completos dos bares e botequins da figura 6 estão no anexo 7.2.

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Nos últimos dois anos (2011 e 2012) vinte e seis bares e botequins da

cidade do Rio de Janeiro, através de dois decretos, foram declarados patrimônios

culturais intangíveis. São muito poucos em relação as centenas (ou, talvez,

milhares) de estabelecimentos da cidade, mas, de qualquer forma, esta pequena

parte de bares e botequins ganhou essa titulação, um selo de qualidade e status.

Para os dois decretos os bares e botequins tradicionais têm importância cultural na

sua imaterialidade e, por isso, devem ser preservados ou terem sua preservação

ampliada porque: 1. são locais de convivência democrática que traduzem o

“espírito’ carioca de comemorar, de reunir, de festejar”; 2. por conta da

necessidade de buscar mecanismos de incentivos para a permanência desses bens

culturais da cidade que passam por processo de transformação ou de

desaparecimento; 3. devido a ancestralidade e as características dos modos do

fazer dos bens em questão119

que, através da sua continuidade histórica e sua

relevância local, se tornaram referência para a memória, a identidade cultural e a

formação social carioca”; 4. porque há a necessidade de se ampliar a preservação

da memória intangível da cultura carioca na figura dos Bares e Botequins

tradicionais.

De acordo com a reportagem Chope Oficial, o atual subsecretário

municipal de Patrimônio Cultural do Rio, Washington Fajardo, afirma que o ato

dos dois decretos

(...) não tem poder de tombamento, é apenas uma indicação que muda o status do

bar. “É para reconhecer o valor deles. Infelizmente já aconteceu de muitos bares

centenários fecharem. Então queremos chamar atenção para esses que são

tradicionais, e assim estimular o uso e fazer com que eles possam permanecer”,

comenta ele.

A ideia é atrair mais movimento para os estabelecimentos. “A gente não valoriza

muito nossos bares como outras cidades fazem. Eles são um patrimônio

importante. E também do ponto de vista econômico e turístico. Assim como se

vai a um café em Paris ou a um pub em Londres, como ir ao Rio e não ir a um

botequim? É para promover e melhorar os negócios”, afirma Fajardo.

O projeto visa valorizar o bar por meio das características tradicionais de seu

ambiente e fazer com que fornecedores evitem instalar equipamentos como

119

Falta uma compreensão mais clara dessa pesquisa sobre o que os decretos consideram como

“ancestralidade e os modos de fazer”, já que a investigadora não conseguir entrevistar o atual

Subsecretário de Patrimônio Cultural do Rio, apesar de muitas tentativas frustradas. Sendo assim,

a investigadora crê que o que os decretos consideram como tal sejam, por exemplo: 1. o modo de

preparo dos muitos pratos elencados no capítulo anterior como grandes tradições pelos seus

donos; 2. o jeito de tirar o chope do Bar da Amendoeira também ressaltado no capítulo passado; 3.

o bom atendimento da casa; 4. a manutenção da atmosfera original e, 5. a administração familiar.

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geladeiras modernas, que destoam do clima de século passado. A vantagem mais

objetiva é que os donos terão direito de requerer isenção de IPTU junto à

prefeitura. “O que muda é o reconhecimento”, conclui Fajardo.

(http://www.revistadehistoria.com.br/secao/em-dia/chope-oficial).

Pelo que foi dito pelo gestor de patrimônio da cidade em algumas

entrevistas, se entende que os vinte e seis bares têm o direito a isenção de IPTU se

requererem junto à Prefeitura120

, ou seja, tal isenção não se dá de forma

automática após a oficialização dos decretos, já que os donos dos bares precisam

entrar com esse pedido frente ao gestor municipal. Ressalta-se que, portanto,

isenção de IPTU não é sinônimo de tombamento.

A questão do tombamento ou não desses estabelecimentos é bastante

controversa. As respostas advindas dos questionários que retornaram das

entrevistas realizadas pela pesquisadora nos vários bares e botequins121

foram

diversificadas em relação à pergunta: Para você seria importante que seu

bar/botequim fosse tombado? Por quê? (anexo 7.3). Sete dos quatorzes bares e

botequins dos quais obtive retorno são a favor do tombamento, cinco afirmaram

que não e dois não opinaram. Parece-me que muitos nem saibam o que significa

ser tombado, já que alguns afirmaram, por exemplo, não saber o que representa

ser patrimônio imaterial da cidade. Quanto aos que demonstraram interesse eis

então as diferentes justificativas:

1. porque seria preservado e os assíduos frequentadores ficariam bem felizes

(Pavão Azul)122

;

2. prolongaria a vida do estabelecimento (Bar do Jóia);

3. é um reconhecimento da cultura (Bar Luiz);

4. apesar de achar importante considera o tombamento algo impossível (Nova

Capela);

120

Outra entrevista em que esse assunto relacionado ao IPTU é citado:

http://oglobo.globo.com/zona-norte/decretado-bar-amendoeira-adonis-viram-patrimonio-da-

cidade-7119116 (acesso em 01 de março de 2013) 121

No anexo 7.4 é apresentado uma tabela que ilustra quais bares e botequins foram visitados e de

quais obtive o retorno do questionário. 122

Questionário respondido por uma assídua frequentadora que já ia ao botequim antes da ‘atual’

administração.

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5. ficaria intacto do jeito que sempre foi (Bar da Amendoeira);

6. por fazer parte da história (Armazém do Senado);

7. iria fazer parte da história para sempre (Adega Flor de Coimbra).

Em relação aos que se opõem ao tombamento verifica-se que para dois

estabelecimentos a negação está relacionada á perda do valor comercial dos

mesmos. Um dos gerentes á frente, há muitos anos, do Restaurante 28, por

exemplo, disse que já houve a proposta de compra do estabelecimento, todavia,

segundo o próprio, devido ao lugar já ser tombado o possível comprador desistiu,

pois não poderia mudar nada ali. Ainda disse que em muitos meses o Restaurante

28 tem mais prejuízos do que lucros, devido a pouca freguesia. Para a Casa

Villarino, o tombamento não é bem quisto por interferir nas ações a serem

definidas pela organização. Já o Bar Brasil e o Cervantes não são a favor porque

para eles essa não é a questão mais importante. “Acredito que não, pois não é o

lugar, mas, sim a essência do que é do que se faz dentro dele que importa”

(Resposta do Cervantes á pergunta).

Na discussão recente sobre o tema, há pesquisadores que afirmam que os

bares e botequins não poderiam ser considerados nem patrimônio material nem

imaterial da cidade do Rio de Janeiro. Segundo um deles123

, materialmente, eles

não podem ser patrimônio porque alguns bares não estão mais no seu lugar de

origem além das grandes transformações que esses estabelecimentos sofreram ao

longo do tempo. No que diz respeito a sua dimensão imaterial, para o mesmo

pesquisador, as tradições são completamente diferentes nos dias de hoje. Todavia,

para outros pesquisadores, as tradições não podem ser congeladas, pois se

congeladas não solucionam questões contemporâneas nas quais o patrimônio está

inserido; é preciso lembrar que o mundo muda, se transforma, se recria, e as

modificações são inevitáveis e com elas temos que aprender a lidar. Dessa forma,

as materialidades e imaterialidades estão sujeitas á dinâmica do próprio espaço, ou

seja, em permanente transformação.

123

Pesquisador Paulo Knauss na extensão que fiz no IUPERJ.

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Quanto aos estabelecimentos que tiveram que sair dos seus lugares de

origem, e, talvez, em resposta á crítica destacada anteriormente, a passagem a

seguir é significativa ainda traga outros questionamentos.

Lembra daquele bar que a gente sempre dava uma paradinha depois do trabalho?

Lembra? Pois é, não está mais lá. Verdade. Bares tradicionais do Rio de Janeiro

mudaram de malas e cuia para outros lugares dentro da cidade. Driblaram o

progresso e conseguiram permanecer vivos. Mas será que ao mudarem de

endereço também mudaram suas características? E a freguesia? Acompanhou ou

mudou também? A melhor resposta é descobrir em loco, antes que mudem

definitivamente para bem longe (Bar, boteco, botequim: imagens de um

sentimento, 1987, p.27).

O mesmo livro Bar, boteco, botequim: imagens de um sentimento (1987)

traz alguns exemplos de estabelecimentos que, por alguma razão, foram parar em

novos lugares124

. Ao buscar a história dos mesmos, um me chamou a atenção, o

Bar Jangadeiro. De acordo com o site

http://psipanema.blogspot.com.br/2008/05/bar-jangadeiro.html (visitado em 01 de

março de 2013), antes de fechar suas portas em 1995, esse bar mudou de endereço

quatro vezes. Quando inaugurado em 1935, na Praça General Osório em Ipanema,

ele, de origem alemã, se chamava Bar Rhenania e consta ter sido “sede” da Banda

de Ipanema. Em 1971, a especulação imobiliária o fez mudar para a rua Teixeira

de Melo, no mesmo bairro, sendo que em 1985, ainda na mesma rua, trocou de

número. Foram três deslocamentos antes de deixar de existir, em 1995. De alguma

forma, esse botequim resistiu até onde pôde, independente das razões que levaram

ao seu fim. Será que se ele fosse patrimônio cultural carioca isso teria acontecido?

Portanto cabe-nos entender e levar em consideração a complexidade

desses lugares, onde a sociabilidade configura “a tradição denominadora comum”

dos mesmos como algo intangível, ainda que tenha na materialidade seu suporte,

ou seja, o próprio espaço do botequim, a rua com que ele dialoga e realiza trocas,

sua ambiência e seus objetos, seus donos, garçons, fregueses e etc., afinal, o corpo

é uma materialidade que deve ser considerada ao se pensar em práticas sociais

diversas. Em relação às outras tradições (como as citadas no final do capítulo 2 e

124

Alguns desses bares que não estão mais situados nos seus lugares de origem são destacados

pelo livro Bar, boteco, botequim: imagem de um sentimento (1987). São eles: Café Lamas (do

bairro do Catete foi para o Flamengo), A Capela (localizado no Largo da Lapa se mudou para a rua

Mem de Sá no mesmo bairro, com a mudança teve acrescentado o “Nova” ao seu nome), e

Uisqueria Gouveia (atualmente situado na Avenida Rio Branco).

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que serão retomadas no capítulo 4) fica difícil encontrar outro denominador

comum já que os inúmeros bares da nossa cidade e os vinte e seis

patrimonializados possuem tradições muito diferentes entre eles. Foi entendido

que os bares cariocas têm influência portuguesa, espanhola, alemã, nordestina, o

que gera diferenças quanto à dinâmica dos estabelecimentos, suas relações de

poder, nos sabores da comida, nos gostos a serem aplicados na ambiência, nas

religiões e santos que os protegem...; além do que, botequins com pouco tempo de

existência são, para alguns, como tradicionais igualmente a aqueles cuja origem

remete ao século XIX. Essa diversidade no que diz respeito às tradições, por sua

vez, gera identidades distintas, fora que muita coisa mudou: a ação da vigilância

sanitária no controle da qualidade dos estabelecimentos, o avanço da técnica

permitindo uma produção industrial frente o preparo artesanal das comidas e

acepipes, a possibilidade de a família ter outra fonte de renda fora o seu bar e

botequim (o que pode levar a um menor envolvimento sentimental e a perda da

mão de obra familiar no mesmo) entre várias outras transformações. Se

antigamente, por exemplo, o rádio reinava no botequim, hoje em dia quase todo

estabelecimento. Ou seja, outros tempos, outras tradições sendo definidas.

Mesmo apresentando tradições diferenciadas que se recriam

constantemente, para o livro Bar, boteco, botequim: imagens de um sentimento

(1987) alguns estabelecimentos resistem à mudança ainda que pelo fator

sentimental125

.

Resistir e resistir. Alguns bares e botecos do Rio ainda seguem esta máxima. Eles

mantiveram sua arquitetura tradicional, mesmo com a pressão da urbanização e

modernização do cenário carioca. Ou pelo menos, o sentimento de antes. São

poucos, vistos no geral. Mas ainda assim guardam o espírito do boteco em cada

coluna, espelho ou cantinho de rodapé. Conseguem manter vivo um pouco do que

foram os bares e botecos na história do Rio de Janeiro (Idem, 1987, p.39).

Sendo assim, por mais que alguns botequins tenham mudado de rua ou

bairro; por mais que sua materialidade sofra modificações constantemente126

acompanhando o ritmo da vida urbana e mudando, dialeticamente, à sociedade;

125

O livro traz como exemplo dessa resistência os bares: Bar Luiz, Casa Villarino, Bar Paladino,

Bar Brasil, Casa Simpatia, Amarelinho Bar e Restaurante; sendo que os quatro primeiros desses

seis estão na lista de patrimônio cultural carioca (voltar às tabelas 04 e 05). 126

Se pensando na estrutura e ambiência desses estabelecimentos, como eles não são tombados

não há como imobilizar ou impedir transformações, caso essa seja a vontade do dono, por

exemplo.

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por mais que cada botequim crie identidades distintas (sejam eles mais pés-limpos

ou mais pés-sujos) com influência européia ou nordestina ou a mistura de ambas,

a relação deles com a cidade do Rio de Janeiro (e sua coletividade social) é única.

Os botequins vêm acompanhando o início da formação “Rio, cidade cosmopolita”

até os dias de hoje, em que nem o próprio cosmopolismo é o mesmo. Pelo viés da

imaterialidade, a tradição maior é a sociabilidade e os bares e botequins podem

sim ser encaixados no que as leis e os decretos consideram patrimônio imaterial.

Para os dois decretos, os bares e botequins tradicionais devem estar inscritos no

Livro de Registro das Atividades e Celebrações, pois são considerados os rituais e

festas que marcam a vivência coletiva do trabalho, e no Livro de Registro dos

Lugares, que abarca mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços onde se

concentram e reproduzem práticas culturais coletivas. Por tudo o eu foi discutido,

os botequins e bares adéquam-se aos livros supracitados.

Quanto as suas tradições materiais ainda que elas sejam diferentes, elas

também guardam a história e memória da cidade do Rio de Janeiro. Para os

estudiosos do território carioca, os bares e botequins são considerados museus em

pleno século XXI. A partir do momento que materialidade e imaterialidade

precisam uma da outra para se configurarem como símbolo cultural, prática social

e patrimônio cultural, seria necessário pensar no tombamento estabelecimentos.

Ambos os decretos falam que é preciso buscar incentivos para a

permanência desses bens culturais da cidade. Portanto, reconhecer a carga

simbólica desses espaços de sociabilidade, sem dúvidas, é algo extremamente

significativo para evitar grandes transformações ou desaparecimentos, já que se

acredita que o reforço do simbólico produz identidades, que são instrumentos de

lutas políticas. Entretanto, esse simbolismo garante a permanência física desses

bens na cidade já que os decretos não têm poder de tombamento? Alguns donos

de bares e botequins entrevistados cobram esse apoio além da consideração

simbólica. Mais uma vez, ressalta-se que a cidade do Rio de Janeiro é intangível, é

subjetiva, é repleta de “carioquices clássicas” que se dissipam pelo ar, sotaque,

encontros, culto ao corpo, sua musicalidade, seus sabores e etc. Nesse sentido, sua

imaterialidade precisa ser levada em consideração, ser carioca, sem dúvida, é algo

único.

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3.3.1. As diferenças entre os decretos

Algumas diferenças entre o primeiro e segundo decreto são mais

perceptíveis; outras são mais sutis; porém, ambas precisam ser analisadas com um

rigor maior. Quando foi declarado o primeiro decreto, em dezembro de 2011, a

lista dos bares e botequins escolhidos chamava a atenção, pois, com exceção do

Bar Lagoa na Lagoa e do Café Lamas no Flamengo (ambos bairros da zona Sul da

cidade do Rio de Janeiro), os outros dez estabelecimentos escolhidos

concentravam-se na zona Central da cidade, como pode ser observado na figura 5

(pág.91). Esse fato causou muitos questionamentos, inclusive, das pessoas que

não sabiam do decreto e que perguntaram o porquê da concentração dos

patrimônios em uma determinada região da cidade e a não consideração sobre os

outros tantos em outros espaços da cidade. Quem vive, circula, “flaina” pela

cidade sabe que, por exemplo, a zona Norte é caracterizada por estabelecimentos

tradicionais como os da zona Sul.

Percebe-se que no primeiro decreto os estabelecimentos selecionados são

bem antigos, sendo que dois deles remetem ao século XIX, respectivamente, 1874

e 1887; relembra-se que, de acordo com o Subsecretário municipal de Patrimônio

Cultural da cidade do Rio de Janeiro, o principal critério para a escolha dos vinte e

seis bares e botequins tradicionais foi a idade dos mesmos. Por outro lado,

verifica-se que a idade em si não é a tradição maior a ser levada em consideração

quando se imagina um botequim, e mesmo que fosse, nenhum bar das outras

zonas teria sua história ligada ao início do século XX? Depois da Reforma Pereira

Passos (1903-1906), por exemplo, grande parte da população, principalmente os

mais populares (e dentro desse conjunto ‘mal quisto’ estavam os donos e

frequentadores dos botequins) foi “deslocada” para a zona Norte e lá

recomeçaram a vida, recriaram suas identidades, levando consigo suas tradições.

Por conta dos estabelecimentos declarados patrimônio em 2011 e devido à

ausência de divulgação do decreto para a sociedade muito foi especulado a

respeito da qualificação do mesmo. Torna-se relevante saber o que levou à

elaboração desse decreto em 2011 e, também, a escolha de um grupo em

especifico de doze estabelecimentos concentrados em certa parte da cidade, ou

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seja, desvendar os sentidos simbólicos e práticos deste primeiro decreto. Quais

estudos teriam sido feitos para respaldar a inserção desses estabelecimentos em

um dos quatro livros do registro de bens imateriais? Se tais espaços de

sociabilidade, há tanto tempo, já possuem essa simbiose com a cidade, uma

relação tão direta e dependente, qual a razão de somente, em 2011, serem eles

oficializados como patrimônios culturais intangíveis. Lembra-se que em 2003

(reforçado em 2005 e 2011)127

a legislação já permitia a patrimonialização, em

nível municipal, dos bens culturais imateriais.

Em 2013 ocorreu a sexta edição carioca do evento gastronômico Comida

Di Buteco. Esse evento, de iniciativa privada, busca resgatar a “culinária de raiz”

e a perpetuação da tradição dos botecos, ainda que seja preciso considerar tudo

aquilo que fora exposto acerca das tradições dos bares e botequins tradicionais (o

próprio evento merece ser questionado em vários quesitos já que é,

essencialmente, mercadológico). A cada ano, o evento citado se torna mais

expressivo no cenário carioca; assim é cabível imaginar que o mesmo pode ter

influenciado na transformação desses bares e botequins tradicionais em

patrimônio cultural carioca. Ao observar que esse evento gera empregos,

movimentação do turismo e de setores associados aos serviços, ou seja, melhora

os negócios o Estado pode ter se apropriado dessa iniciativa. De acordo com um

dos sócios do evento,

Há séculos, o boteco faz parte da paisagem de nossas cidades. Mas por ser um

espaço de comércio popular, não despertava a atenção necessária e, portanto,

vivia à margem da sociedade. Quando o Comida di Buteco começou em Belo

Horizonte, foi como se colocássemos um holofote sobre toda a riqueza da cozinha

de raiz da nossa região e destes estabelecimentos que tem, em sua maioria, uma

história familiar por trás. Isso mudou a forma como as pessoas viam o boteco, e,

junto a esse carinho para o qual a população se despertou, os estabelecimentos

também tiveram a oportunidade de se profissionalizar e de se tornar sustentável,

sem deixar de lado sua essência (http://www.comidadibuteco.com.br/comida-di-

buteco-ha-13-anos-o-maior-concurso-de-cozinha-de-raiz-do-brasil/, acesso em 03

de março de 2013)

Para Paes (2009) é preciso aprofundar as reflexões acerca das diferentes

estratégias e formas de valorização, representação, apropriação e uso dos bens

patrimoniais localizados nas áreas centrais urbanas em processo do que ela

127

Em 2003, os botequins possuíam maior visibilidade e já existia o Guia Rio Botequim, por

exemplo. Mas, em oito anos (2003-2011) essa tradição ganhou ainda mais destaque, sendo

potencializada.

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denomina de refuncionalização128

. A partir desse aprofundamento criam-se

possibilidades de compreender por quais modos o patrimônio histórico é

incorporado a esfera do consumo cultural,

(...) agregando valor econômico as paisagens urbanas e aos lugares-símbolo de

pertencimento de identidades territoriais e, contribuindo na seleção de um

conjunto de formas e expressões culturais que passaram a ser atrativas para o

olhar turístico (Idem, 2009, p.5)

No dia 31 de março de 2013 a Folha de São Paulo publicou uma

reportagem denominada Alta do Aluguel ameaça lojas históricas na rua da

Carioca, No Rio que os comerciantes da tradicional rua da Carioca, quarteirão

histórico e tombado como patrimônio cultural da cidade, trabalham sem a garantia

de manutenção ou não dos seus negócios e comércios devido a alta dos aluguéis

na área. E dentre os estabelecimentos está o Bar Luiz, um dos nossos patrimônios

culturais imateriais, bar que na rua da Carioca há 86 anos.

O grupo Opportunity comprou cerca de 40 imóveis da Venerável Ordem Terceira

de São Francisco da Penitência --18 deles são casarões localizados no lado ímpar

da rua, nos limites do morro de Santo Antônio. Após o negócio, a maior parte dos

contratos de locação perdeu a eficácia.

"Ficaram de fora apenas os que tinham no contrato e no registro do imóvel a

garantia de que o aluguel seria mantido. A maioria não tinha", diz Roberto Cury,

presidente da Sarca (Sociedade Amigos da Rua da Carioca e Adjacências).

Muitos dizem não ter condições financeiras de manter o negócio após o

aumento. O novo locatário alega que a renovação dos contratos é feita "a preço

justo" (leia mais na página C5).

Em um dos casos, o valor cobrado mensalmente passará de R$ 10 mil para R$

68 mil. Mas o grupo alega que o imóvel tem uma área de 958 m². "Se tivermos

que pagar esse valor, será inviável ficarmos aqui", diz Felipe Rio, sócio do

restaurante Cataroca, que teve o aumento.

Os comerciantes acreditam que o reajuste é uma forma de expulsá-los do local

para ser feito um shopping, o que é negado pelo Opportunty.

Os comerciantes dizem que têm sido pressionados para fechar o acordo. Eles

têm até o final deste mês para assinar os novos contratos de aluguel, segundo a

Sarca. Caso não assinem, terão 90 dias para entregar os imóveis.

(http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/1254801-alta-do-aluguel-ameaca-lojas-

historicas-na-rua-da-carioca-no-rio.shtml, acesso em abril de 2013).

O segundo decreto, oficializado em dezembro de 2012 tornou patrimônio

cultural intangível um grupo de quatorze estabelecimentos, dois a mais que o

primeiro. Diferentemente do anterior, este considerou, por exemplo,

128

Peixoto (2003) de forma bastante interessante realiza um estudo acerca dos centros históricos,

seus patrimônios, turismo e sustentabilidade cultural na cidade dentro desse contexto de

refuncionalização.

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estabelecimentos na zona Norte da cidade, havendo uma melhor distribuição

desses bens culturais pelo território carioca. Pelo segundo, como ilustra a figura 6

(pág.92), oito bares estão localizados na zona Sul, quatro na zona Norte, um na

Lapa e outro no Centro129

(zona Central). Como o primeiro decreto sofreu

algumas críticas quanto á distribuição geográfica dos patrimônios, neste segundo

decreto, a zona Norte foi contemplada e, agora, também possui bares e botequins

patrimonializados.

Enquanto o primeiro decreto considerava o parecer do Conselho Municipal

de Proteção do Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro (CMPC) no processo nº

01/005.542/2011 para instituir e declarar, o segundo decreto levou em

consideração os estudos realizados pelo Instituto Rio Patrimônio da Humanidade.

Essa questão é importante, pois, de alguma forma foi citado por ambos, que

estudos foram realizados com o intuito de justificar a patrimonialização imaterial,

assim como exigem as leis e os decretos. O primeiro decreto havia colocado em

um parágrafo único que o órgão executivo municipal de proteção do patrimônio

cultural deveria realizar os estudos necessários à inscrição dos bens citados no

Livro de Registro das Atividades e Celebrações e/ou no Livro de Registro dos

Lugares. Por sua vez, o segundo decreto afirma também, em um dos seus

parágrafos únicos, que o órgão executivo municipal de proteção do Patrimônio

Cultural inscreverá os bens citados no caput deste Artigo no Livro de Registro das

Atividades e Celebrações e no Livro de Registro dos Lugares.

Outra diferença sutil pode ser notada em uma das considerações que

justificam a patrimonialização. Para o segundo decreto, é necessário considerar a

ancestralidade e as características dos modos do fazer (grifo meu) dos bens em

questão que, através da sua continuidade histórica e sua relevância local, se

tornaram referência para a memória, a identidade cultural e a formação social

carioca. No primeiro, a expressão “dos modos de fazer” não aparece, e a sua

inserção nos remete mais um a vez à Veloso (2006), quando a autora afirma que

ao se tratar do patrimônio intangível o que precisa ser fortalecido e preservado não

são os produtos, mas sim os produtores desses bens culturais. A partir do

129

O próprio decreto separa a Lapa do Centro.

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momento que o segundo decreto somou a palavra “características” a expressão

“dos modos de fazer” retirou o peso que era associado aos bens, somente.

Para finalizar, dado que o patrimônio imaterial é, por definição,

constituído por bens de natureza processual dinâmica e internamente muito

diverso, as políticas de preservação devem responder efetivamente, por sua

preservação (Oliveira, 2004, p.29). Fora isso, por exemplo, voltando a ressaltar a

importância da legislação enquanto política publica e prática social e também já a

realizar conexões com o próximo capítulo, Cerqueira (2005) enfatiza que, ao se

propor trabalhar com educação patrimonial precisa-se ter um conhecimento

genérico a respeito da legislação nacional referente ao patrimônio, assim como

dos os conceitos propugnados pelos órgãos internacionais. A complementar,

Durand (2001) afirma que “uma visão orgânica para a área cultural de governo

também implica conhecer a divisão do trabalho que a lei e os costumes

estabelecem entre governo e iniciativa privada em matéria de políticas sociais”

(p.67). Para Arantes (s/d), a inclusão dos bens culturais intangíveis, e seu caráter

popular, nos programas de proteção e salvaguarda vêm acarretando “o

compartilhamento de decisões com um novo público, tarefa para qual nem sempre

os agentes públicos e as normas jurídicas vigentes estão preparados” (p.60).

Portanto, ainda que todas as críticas feitas às patrimonializações dos bares

e botequins através de decretos sejam relevantes, como se pode pensar em novas

possibilidades dos usos desses espaços de sociabilidade a partir da sua

patrimonialização? Como pensar, por esse viés, em sustentabilidades na e para a

cidade do Rio de Janeiro através de uma gestão pública, social e cultural mais

eficiente, abrangente, justa, plural, subjetiva, intangível e fortalecedora de

identidades e etc.? Os dois decretos já existem e cabe aos estudiosos proporem

melhorá-los, alargá-los no sentido da abrangência e discutí-los para fazer com que

avanços sejam obtidos, críticas absorvidas, já que do primeiro para o segundo

passos importantes foram dados. São questionamentos como estes que guiarão o

próximo capítulo.

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