chalhoub, sidney. 'trabalho, lar e botequim - o cotidiano dos trabalhadores do rio de janeiro...

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Sidney Chalhoub UNICAMP UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Reitor HERMANO TAVARES Coordenador-Geral da Universidade FERNANDO GALEMBECK Pr6-Reitor de Desenvolvimento Universiterio JURANDIR FERNANDES PrO-Reitor de Extensa° e Assuntos Comunitirios ROBERTO TEIXEIRA MENDES Pro-Reitor de Graduacao ANGELO LUIZ CORTELAllO Pro-Reitor de Pesquisa IVAN EMILIO CHAMBOULEYRON Pro-Reitor de POs-Graduacao JOSE CLAUDIO GEROMF.1, Nos, EDITORA DA UN (CAMP Diretor Executivo LUIZ FERNANDO MILANEZ Diretor Editorial TULIO Y. KAWATA Coordenador-Geral CARLOS ROBERTO LAMAR/ Conselha Editorial ELZA COTRIM SOARES — LUIZ DANTAS LUIZ FERNANDO MILANEZ M. CRISTINA C. CUNHA — RICARDO ANTUNES TRABALHO, LAR E BOTEQUIM 0 cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque

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Sidney Chalhoub

UNICAMP

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

ReitorHERMANO TAVARES

Coordenador-Geral da UniversidadeFERNANDO GALEMBECK

Pr6-Reitor de Desenvolvimento UniversiterioJURANDIR FERNANDES

PrO-Reitor de Extensa° e Assuntos ComunitiriosROBERTO TEIXEIRA MENDES

Pro-Reitor de GraduacaoANGELO LUIZ CORTELAllO

Pro-Reitor de PesquisaIVAN EMILIO CHAMBOULEYRON

Pro-Reitor de POs-GraduacaoJOSE CLAUDIO GEROMF.1,

Nos,EDITORA DAUN (CAMP

Diretor ExecutivoLUIZ FERNANDO MILANEZ

Diretor EditorialTULIO Y. KAWATA

Coordenador-GeralCARLOS ROBERTO LAMAR/

Conselha EditorialELZA COTRIM SOARES — LUIZ DANTAS

LUIZ FERNANDO MILANEZM. CRISTINA C. CUNHA — RICARDO ANTUNES

TRABALHO, LAR E BOTEQUIM0 cotidiano dos trabalhadores no

Rio de Janeiro da belle époque

EICHA CATALOGRÁPICA ELABORADA PEIABIBLIOTECA CENTRAL DA UNICAMP

1

Indices para catalogo sisternatico:

I. Trabalhadores - Rio de Janeiro (RI) - CondicOes sociais 301.240981532, Rio de Janeiro (RJ) - Usos e costumes 301.240981533. Lazer 790.0135

Copyright © by Editora da Unicamp, 2001

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D. •

',0-6-O6 Li; ,„lo i col

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Ed' ores Universibiries

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Tel.: (19) 3788-1015 - Tel./Fax: (19) 3788-1100www.editora.unicamp. hr

a.4%.)yziongz ,/

IMITORA AJITJADS

PREFACIO A SEGUNDA EDICAO

Prefaciar nao ê °tido leve — como raspar mandioca,

exemplo de cousa tida por suave no Brasil oitocentista. Pre-

faciar nova edicio de livro prOprio, passados 15 anos da

publicacao original, a tarefa canhestra, quase improvivel.

Nio sei como isso foi acontecer. Talvez eu queira finalmente

dar resposta sorridente as virias pessoas que perguntam, ain-

da hoje em dia, quando haveri nova edicio de Trabalho, lar

e botequim. Ci esti. Escrevo essas linhas e fico em paz.

0 tempo e Lugar de urn livro explicam muito de seu

feitio. A pesquisa e redacio deste aqui ocorreram em meio

a urn turbilhio politico continuo: ressurgimento dos mo-

vimentos sociais de massa no pals, luta pela derrubada da

ditadura militar, anistia, redemocratizacio, eleicees para

governador, campanha para as Diretas-Ji. Tempo que dei-

xou saudade, nâo apenas pelo motivo prOprio da juventu-

de vivida e ida. Era urn momento histOrico raro, desses em

que a crenca no futuro vira experiência coletiva. A histOria

'vivida pertencia tambem a empreitada de produzir conhe-

cimento histOrico. Surgiam novos programas de pds-gra-

duacio, os debates teOricos alargavam-se, possibilidades de

Chalhoub, Sidney.C35t Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos traha-

Ihadores no Rio de Janeiro da belle Epoque / SidneyChalhoub, - 24 ed. -- Campinas, SP: Editora da Unicamp,2001. (.1

1. Trabalhadores - Rio de Janeiro (RJ) - CondicOessociais. 2. Rio de Janeiro (RJ) - Usos e costumes. 3.Lazer. 1. Titulo.

CDD - 301.24098153ISBN: 85-268-0543-6 - 790.0135

SOBREVIVENDO...

BtquietafOes tetiricas e objetivas

Este pritneiro capitulo aborda as rixas e conflitos en-volyendo os membros da classe trabalhadora do Rio deJaneiro na primeira decada do seculo XX que estejam dire-tamente associados aos problemas de reproducao da vidamaterial desses individuos. Sendo assim, focalizam-se prio-ritariarnente as tensOes e conflitos que emergem de situa-cees no trabalho e de questaes ligadas ao problema da habi-tat:fat). Nesta tentativa de reconstituicao de alguns aspec-tos essenciais dessas tensOes e conflitos cotidianos, des-taca-se a importincia das rivalidades etnicas e nacionais en-

?quanta expressaes das tensOes provenientes da concorrenciada forca de trabalho — em condiceies bastante desfavori-vcis — num mcrcado de trabalho capitalista em formacio.

Parece haver urn certo consenso entre os historiadoresde que as rivalidades e conflitos raciais e nacionais se cons-tituiram num dos principais elementos limitadores da efi-cacia do movimento operario brasileiro na Primeira Kepi-blica. Sheldon Maram, por exemplo, escreve que "os confli-

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tos entre brasileiros e imigrantes, e entre os prOprios grupos

etnicamente divididos, foram uma das principais limitacóes

do movimento operatio brasileiro".' Se isto foi verdade,

contudo, provavelmente refletia uma realidade experirnen-

tada pela classe trabalhadora em seu conjunto, na prtitica

cotidiana da vida. Ou seja, seria necessésio que estas diviseies

nacionais e raciais fizessem parte da visao de mundo da classe

trabalhadora, constituindo-se num aspecto importante da

ideologia popular. Refletindo sobre a experiencia histOrica

das classes pobres no Rio de Janeiro nas decadas anteriores

ao advento do movimento operario na RepUblica

parece verdadeiro que as divithes nacionais e raciais fossem

elementos profundamente arraigados na mentalidade po-

pular. Afinal, na composicao etnica da classe trabalhadora

do Distrito Federal predominavam imigrantes — especial-

mente portugueses — e brasileiros nao-brancos — a cidade

apresentava a maior concentracio urbana de negros e mu-latos no Sudeste. 2 Isto significa dizer que duas das principais

clivagens da sociedade colonial e depois imperial conti-

nuavam a ser parte integrante da experiéncia de vida popular:

refiro-me as contradicaes senhor-patrao branco versus es-cravo-empregado negro, e colonizador-explorador portu-gues versus colonizado-explorado brasileiro. 3 No nivel dasmentalidades e atitudes populares, isto significava que

muitas vezes a igualdade de situacio de classe entre portu-

gueses e brasileiros pobres ficava obscurecida pelo ressenti-mento o imigrante trazia de sua terra natal — e refor-

cava ainda em terras tropicais — sua concepcao de ser racial

e culturalmente superior aos brasileiros pobres de cor; c es-

tes, por outro lado, para quern a escravidão era ainda urnpassado bastanre recente, ressentiam-se dos brancos em gerale, mais ainda, dos imigrantes, que vinham chegando ao Rio

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de Janeiro ern grander levas desde os 61timos anos da Mo-

narquia, abocanhando boa parte da fatia de empregos dis-

poniveis na cidade.A constatacao, relativamente Obvia, de que as divisOes

nacionais e raciais cram urn elemento importante na menta-

lidade da classe trabalhadora carioca nao nos leva, por si

so, muito longe na analise. Se esses elementos constituem

tracos continuistas importantes no processo histOrico da

cidade do Rio de Janeiro ao longo do seculo XIX e da Pri-

meira Republica, é Ilia menos relevante atentar para o fato

de que essas rivalidades nacionais e raciais sic reativadas e

ate reelaboradas pela classe trabalhadora dentro do contexto

mais amplo da transicio para a ordem burguesa na cidade

no periodo pOs-Abolicao. A reconstrucio do preconceito

racial e nacional neste contexto passa, na verdade, canto por

uma serie de imposicOes propaladas de circa para baixo

pelas classes dominantes quanta pelos ajustamentos dos po-

pulares as condicOes concretas da luta pela sobrevivencia.

Boris Fausto, por exemplo, pensa que urn dos dados essen-

ciais dessa luta pela sobrevivencia cram as condicOes de

oferta da forca de trabalho. A cidade do Rio de Janeiro, na

epoca, reunia contingentes de populacao em proporcao

superior as limitadas necessidades do setor industrial e de

servicos. Essa populacao pobre, continuamente engrossa-

da por migrantes internos e imigrantes estrangeiros, lutava

na pritica corn uma dificuldade ingente em arrumar em-

prego e tinha de se sujeitar a receber salarios baixos que de-

terioravam ainda mais suas condicries de existencia. Eulalia

M. L. Lobo, por exempla, afirma que "a abolicao da escra-

vatura liberou mao-de-obra do campo para a cidade, for-

mando-se um mercado de trabalho corn superabundância

de oferta, na medida em que o afluxo de imigrantes veio

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refonar o contingente dos libertos e a melhoria das con-dicOes de higiene, reduzir a mortalidade". 4 Para complicarainda mais o quadro, essa abundante oferta de fona de tra-balho, aumentando a competicao entre os trabalhadores,dificultava a organizacio das lutas reivindicatOrias.s

A complexidade do periodo estudado salta aos olhose desafia tenazmente as timidas tentativas de generalizacloesbocadas acima. A observacao, correta em seu sentido maisgeral, de que eram arduas as condicOes de competicio dafona de trabalho no mercado capitalista em formacao nacidade levanta intimeros Problemas, dos quail apenas al-guns seri° abordados neste trabalho. Seria importante, porexemplo, esclarecer que "Mercado de trabalho" 6 este, poisneste momento seria ilusOrio pensar que toda a situacao seresume ao velho esquema do trabalhador despossuido,dono apenas de sua capacidade de trabalho, que se encon-tra entao no tal "mercado'com urn capitalista altivo e car-rancudo que, detentor dos meios de producio, acena-Ihecom a possibilidade de urn emprego. Esse esquema frac, diconta de milhares de individuos que, nao conseguindo ounao desejando se tornar trabalhadores assalariados, sobre-viviam sem se integrarem ao tal "mercado", mantendo-secomo ambulantes, vendedores de jogo de bicho, jogado-res profissionais, mendigos, biscateiros etc.

Em sintese, o problema das rivalidades nacionais e ra-ciais entre os membros da classe trabalhadora remete tantoa aspectos inerentes a mentalidade popular, ja ha muitointernalizados por brasileiros pobres e imigrantes, quanto aconjuntura especifica de transicao para a ordem capitalistana cidade do Rio de Janeiro da epoca. Este trabalho focalizaprincipalmente o segundo aspecto do problema. Neste sen-tido, 6 importante percebef os intimeros conflitos indivi-

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duals em situacOes de trabalho dentro do contexto mais am-plo da competicao entre populares pela viabilizaclo de suasobreyivencia em condiciies extremamente desfavoriveis,sendo os conflitos nacionais e raciais a expressao mais comumdessas tensOes provenientes da luta pela sobrevivência.

0 restante do capitulo esta dividido em cinco partesprincipals. A primeira parte 6 uma tentativa de reconstru-cat) do esforco das classes dominantes em elaborar uma novaetica de trabalho no period° pOs-Abolicao. Esta reconstru-cab 6 necessaria na medida em que, no processo de elabo-racdo dessa nova etica de trabalho, as classes dominantesrevelam aspectos de sua visa° de mundo que tendem a jus-tificar em certa medida as tenthes e rivalidades nacionais eraciais entre os membros da classe trabalhadora. A segun-da parte focaliza os conflitos surgidos entre companheirosde trabalho, procurando ressaltar o papel da competicaoentre os trabalhadores e das rivalidades nacionais e raciaisnesse contexto. A terceira parte procura reconstruir parcial-mente o paternalismo e os elementos de tensao contidos

na relrano patrao—empregado. A quarta pane trata de ou-

tro aspecto fundamental da luta pela sobrevivéncia dosmembros das classes populares: o problema da habitacao.Os intimeros conflitos entre senhorio e inquilino reativamvelhas concepciies populares sobre o portugués coloniza-dor, explorador e avarento, e o brasileiro colonizado e ex-plorado. Finalmente, tomaremos urn segmento especificoda classe trabalhadora, os trabalhadores portuarios ouestiiadores, e tentaremos observar como aspectos concre-tos da experiencia individual de vida dos membros das clas-ses populares, como a competicao pela sobrevivencia e asrivalidades nacionais e raciais, impOem limites bastante

rears a eficacia das lutas reivindicatOrias.

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Trabalhadores a vadios; imigrantes e libertos: a construAciodos mitos e a patologia social

fa dizia Cicero que a escravidao nao se podia man-ter, quando o senhor no dispunha do escravo comodo seu boi, do seu arado, do seu carro. Era precisoque dele pudesse usar e abusar.Desde que o escravo adquiria urn direito, o senhorperdia na autoridade, e a escravidio estava ameacadade extincao.V. Exa. conhece a histeria desta instituicao, se talnone merece o fato da escraviddo. Desde o comeco,nao se reconheceu no escravo uma besta, mas urnhomem; tinha direitos, que impunham ao senhordeveres.Esses direitos cresceram, alargaram-se, foram mais emais atendidos pelo legislador, mandados respeitar.Urn dia, o instrumento, o boi, o arado, pelo sopro dolegislador levantou-se; tomou as formas de homem;p6s-se ern pa, e disse ao poder pUblico, armado des&a cabeca aos p6s: — Eu sou livre; fostes vas que re-conhecestes o meu direito; eu sou livre; nä° me rendo, prefiro morte (sensacio).6

As palavras acima foram pronunciadas diante dos par-

lamentares do imperador pelo ministro da Justiea, Ferreira

Vianna, no dia 20 de julho de 1888. 0 torn paretic() do

discurso e a sensacio que parece ter causado indicam Lem

o paroxismo das emocOes num momento percebido pelos

deputados como de extrema gravidade para o pais. As pa-

lavras de Ferreira Vianna, na verdade, historian a seu modo

o processo segundo o qual o mundo do trabalho tornou-se

um problema para as elites brasileiras a partir de meados

do seculo XIX, quando o fim do trafico negreiro obrigou

os barges do Imperio a pensar o fim da propriedade escra-

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va. Corn efeito, a transieäo do trabalho escravo para o tra-

balho livre no Brasil do seculo XIX colocou as classes do-

minantes da epoca diante da necessidade premente de rea-

lizar reajustes no seu universo mental, de adequar a sua

visdo de mundo as transformactles socioecon6micas que

estavam em andamento. No mundo de outrora, ordenado

pela presenca do escravo, a questa() do trabalho era escas-

samente problematizada na esfera das mentalidades: o tra-

balhador escravo era propriedade do senhor e, sendo assim,

o mundo do trabalho estava obviamente circunscrito d es-

fera mais ampla do mundo da ordem, que consagrava o

principio da propriedade.'

0 processo que culminouno 13 de maio, no entan-

to, realizou finalmente a separacão entre o trabalhador e

sua forea de trabalho. Corn a libertacio dos escravos, as

classes possuidoras nao mais poderiam garantir o suprimen-

to de forea de trabalho aos seus empreendimentos econ6-

micos por meio da propriedade de trabalhadores escravos.

0 problema que se coloca, entio, e de que o liberto, dono

de sua forea de traballio, tome-se urn trabalhador, isto é,

disponha-se vender sua capacidade de trabalho ao capita-

lista empreendedor. Por urn lado, esse problema tinha seu

aspecto pride° que se traduzia na tentativa de propor

medidas que obrigassem o individuo ao trabalho. Por ou-

tro lado, era preciso tambem urn esforco de revislo de con-

ceitos, de construed° de valores que iriam constituir uma

nova erica do trabalho. Como ja foi sugerido na introdu-

cdo, o conceito de trabalho precisava se despir de seu card-ter . aviltante e degradador caracteristico de uma sociedade

escravista, assumindo uma roupagem nova que the dense urn

valor positivo, tornando-se entio o elemento fundamen-

tal para a implantacdo de uma ordem burguesa no Brasil.

65

Nas paginas seguintes, abordaremos alguns aspectos

das transformacOes no universo mental das classes domi-

nantes como contrapartida a transicao do trabalho escra-

vo pan o trabalho livre, a partir da analise dos debates

sobre a repressao da ociosidade na Camara dos Deputados

cm 1888. Neste debate, o liberto, o "trabalhador nacio-

nal", parece ser a preocupacao exclusiva dos parlamenta-

res, mas podemos clara- mente acompanhar o esforco mail

amplo de elaboracao, de construed° de uma nova erica do

trabalho. 0 imigrante e a grande presenca ausente nesses

debates: raramente os debatedores irao se referir a ele ex-

plicitamente, mas so este fato, num momento em que a

ociosidade esti em foco, ja 6 elucidativo do papel que os

nossos deputados reservavam para os imigrantes neste pro-

cesso de construcio de uma nova etica do trabalho.

0 projeto de repressao a ociosidade de 1888 — ela-

borado pelo ministro Ferreira Vianna — comecou a ser

apreciado na Camara dos Deputados em julho, e sua dis-

cussao foi bastante marcada pelos animos ainda exaltados

pelas repercussOes da lei de 13 de maio. A utilidade do

projeto foi votada quase que unanimemente pela Camara,

sendo que muitos deputados o viam como "de salvacio

priblica para o Imperio do Brasil".

Havia um claro consenso entre os deputados de que

a Abolicao trazia consigo os contornos do fantasma da

desordem. Na mesma epoca em que o projeto sobre a ocio-

sidade tramitava na Camara, urn grupo de deputados, li-

derado por Lacerda Werneck e sc identificando claramente

com os interesses das "classes dos lavradores", dirigia uma

interpelacao ao ministro da Justin que visava exigir medi-

das do governo para garantir a defesa da propriedade e da

66

seguranca individual dos cidadios, ji que estas, de acordo

com os interpelantes, estavam seriamente ameasadas pelas

"ordas" de libertos que supostamente vagavam pelas estra-

das "a furtar e rapinar".8

Dramatizando ao maxim° a situacao, os deputados

falain da solidao e do desert() a que ficaram reduzidas as fa-

zendas de Vassouras, onde as "pacificas e laboriosas popula-

cOes locais" — isto 6, os proprietarios e suas familias — eram

agora obrigadas a trabalhar dia e noite para "salvarem alguns

carocos de feijao" que garantissem sua alimentacao. Mais do

que isto, a lei de 13 de maio era percebida como uma ameaca

a ordem porque nivelava todas as classes de um dia para o

outro, provocando um deslocamento de prOfisseies e de ha-

bitos de conseqiiencias imprevisiveis. Para concluir, os

interpelantes citavam diversos casos de crimes que teriam

sido cometidos por libertos nos dias anteriores, provando

assim d caos social que reinava especialmente nas provincial

do Rio de Janeiro e de Minas Gerais. Como paliativo ime-

diato para o problema, sugeria-se que os libertos fossem

recrutados em massa para o exercito.

Em sua resposta, Ferreira Vianna mostra claramente os

exageros das afirmacties dos interpelantes e diz que uma das

respostas do governo aos temores gerais de comprometi-

menti da ordem era o projeto de repressao a ociosidade

que estava em discussao na Camara. 0 problema, portan-

to, 6 de enfase e de decidir que medidas praticas tomar;

contudo, havia, sem dilvida, o consenso de que a ordem

estava ameacada. Na verdade, urn dos pontos principais de

toda essa discussio por ocasiao da interpelacao, assim como

do projeto sobre a. ociosidade propriamente, 6 o consenso

que se estabelece quanto ao suposto carater do liberto. Em

primeiro lugar, os libertos eram em geral pensados como

67

individuos que estavam despreparados para a vida em so-

ciedade. A escravidao nao havia dado a esses homens ne-

nhuma nocao de justica, de respeito a propriedade, de li-

berdade. A liberdade do cativeiro nao significavatpara o

liberto a responsabilidade pelos seus atos, e sim a possibi-

lidade de se tornar ocioso, furtar, roubar etc. Os libertos

traziam em si os vicios de seu estado anterior, nao tinham

a ambicao de fazer o bem e de obter um trabalho honest()

e nao eram "civilizados" o suficiente para se tornarem cida-

dabs plenos em poucos meses. Era necessario, portanto, evi-

tar que os libertos comprometessem a ordem, e para isso

havia de se reprimir os seus vicios. Esses vicios seriark venci-

dos atraves da educacao, e educar libertos significava criar

o habit° do trabalho atraves da repressio, da obrigarorie-

dade. Este era exatamente o objetivo do projeto de Ferreira

Vianna, como bem resume o deputado Mac-Dowell:

Votei pela utilidade do projeto, convencido, cometodos estamos, de que hoje, mais do que nunca,preciso reprimir a vadiacio, a mendicidade desne-cessaria, etc. [...] Ha o dever imperioso pot- panedo Estado de reprimir e opor um dique a todos osvicios que o liberto trouxe de seu antigo estado, eque nä. ° podia o efeito miraculoso de uma lei fazerdesaparecer, porque a lei nao pode de urn moment()para outro transformar o que esti na natureza.[...] a lei produzira os desejados efeitos compelin-do-se a populacao ociosa ao trabalho honesto, mine-rando-se o efeito desastroso que fatalmente se prevêcomo conseqUencia da libertacio de uma massa enor-me de escravos, atirada no meio da sociedade civiti-zada, escravos sem estimulos para o bem, sem edu-cacao, sem os sentimentos nobres que so pode ad-quirir uma populacao livre e finalmente sera regula-da a educaclo dos menores, que se tornarao instru-

68

mentos do trabalho inteligente, cidadaos morigera-dos, [...] servindo de exemplo e edificacao aos ou-tros da mesma classe social.°

0 problema com que se defrontavam os parlamenta-

res era, em sintese, o de transformar o liberto em trabalha-

dor. Tomava-se como ponto de partida, entao, o suposto

de que todos os libertos eram ociosos, o que visava garan-

tir, de ink)°, o direito da sociedade civilizada em emen-

da-los. Mas a transformacão do liberto em trabalhador nao

podia se dar apenas atraves da repressao, da violência ex-

plicita. Afinal, nao se desejava um retorno a alguma forma

disfarcada da hedionda instituisao da escravidao. Que fa-

zer, entao? Bem, era necessario educar os libertos. Educar

significa incutir no indivIcluo "essas grandes qualidades que

tornam urn cidadao aril e o fazem compreender os seus

deveres e os seus direitos".'° Ora, que grandes qualidades

sac) essas que fazem de um indivicluo um cidadao

de "rather"? 0 amor e o respeito religioso a propriedade

sac), sem chivida, qualidades fundamentais do bom cidadio.

Mas esse nao 6 o ponto essential a enfatizar neste contex-

to. Estamos pensando nos libertos, e convem acenar ape-

nas muito remotamente a esses individuos com a possibi-

lidade de se tornarem proprietirios. Para o liberto, tornar-

se born cidadao deve significar, acima de Ludo, amar o tra-

balho em si, independentemente das vantagens materiais

que possam dal advir. Educar o liberto significa transmitir-

lhe a nocao de que o trabalho e o valor supremo da vida

em sociedade; o trabalho e o elemento caracteristico da

vida "civilizada". Mas como pensar no trabalho como algo

positivo, nobilitador, em uma sociedade que foi escravista

durante mais de tit s6culos? Como "convencer" o liberto

69

a ser trabalhador, logo de, recem-advindo da escravidao?

Mais do que isso, como justificar as medidas repressivas

visando garantir a organizacao do trabalho?

Os debates sobre o projeto de repressao a ociosidade

mostram claramente a tentativa dos parlamentares de pre-,cisar o conceito de trabalho e seu significado no mundo

em que viviam. Procurava-se uma justificativa ideolOgica

para o trabalho, isto é, rathes que pudessem justificar a sua

obrigatoriedade para as classes populares A construcao do

conceito de trabalho passa por diversas etapas. A nocio

primeira e fundamental é a de que o trabalho é o elemento

ordenador da sociedade, a sua "lei suprema"." 0 cidadao

recebe tudo da sociedade, pois esta the garante a seguran-

ca, os direitos individuais, a liberdade, a honra etc. 0 ci-

dadao, portanto, esta permanentemente endividado corn a

sociedade e deve retribuir o que dela recebe corn o seu tra-

balho. 0 trecho abaixo, de urn discurso do deputado Ro-

drigues Peixoto, ilustra bem esse ponto:

Em todos os tempos, o trabalho foi considerado oprimeiro elemento de uma sociedade bem organizada.Cada membro da comunidade deve a esta uma partedo seu tempo e do seu esforso no interesse geral, cujainobservancia apresenta gravidade, o que autoriza decerto modo a intervencao do Estado.[...] 6 preciso que tenham todos uma ocupacao por-que V. Exa. sabe que, desde que o individuo respira,como que contrai uma divida coin a sociedade, a qualso pagara corn o trabalho.12

Outro ponto fundamental e a relacao que se estabele-

ce entre trabalho e moralidade: quanto mais dedicacao e

abnegacao o individuo tiver em seu trabalho, maiores se-,

rio os seus atributos morals. Urna das justificativas ideo-

70

lOgicas fundamentals para o projeto era a intencao de mo-

ralizar o individuo pelo trabalho. Era precis() incutir nos

cidadiros o habit° do trabalho, pois essa era a Unica forma

de regenerar a sociedade, protegendo-a dos efeitos nocivos

trazidos por centenas de milhares de libertos — individuos

sem nenhum senso de moralidade. Dentro deste espirito,

o projeto prevé que os ociosos sera° conduzidos a role-

nias de trabalho, corn preferencia para atividades agricolas,

onde sera() internados coin o objetivo de adquirir o habit°

do trabalho. Essa retOrica moralista mai acoberta o obje-

tivo dos legisladores: a pena para o ocioso devia ser bas-

tantc longa (de urn a trés anos para o reincidente), pois o

que se desejava nao era a punicao pura e simples do indi-

viduo, mas sim sua reforrna moral — e este objetivo nä()

podia ser alcancado em curto prazo. A severidade das pe-

nas, portanto, explica-se pelo seu rather educativo, de re-

genera00 moral do condenado, como expressa o relator da

comissao parlamentar encarregada de dar urn parecer ini-

cial sobre o projeto:

Desde que o objetivo 6 a correcao moral, evidente-mente cram insuficientes, para se alcancar esse ob-jetivo, as disposicOes penais do nosso COdigo Cri-minal, que estabelecem a prisio de 9 a 24 dias; era

l

ecessario corrigir urn ato inveterado, por conse-uinte, faze-lo substituir por outro, regenerando,

fazendo adquirir o amor ao trabalho, pela pratica dotrabalho. Ora, um habit() desses nio se adquire empouco tempo..."

0 projeto previa ainda que uma parte do dinheiro obti-

do por meio do trabalho dos condenados nos estabelecimen-

tos correcionais seria depositado em urn fundo e cada con-

71

n

denado receberia urn certo pectilio por ocasiao de sua salda

da prisao. 0 objetivo aqui era tambern educacional, pois

visava formar no individuo a ambicio de possuir alguma

coisa atraves de uma atividade honrada. Tome-se o cuitlado

de nao dar a este "possuir" a énfase na esperanca de adquirir

propriedade — o que se pensa antes é incutir no individuo

o habit° de ser econOmico e de viver mais confortavelmente,

pois esses hibitos o estimulariam para o trabalho."

De qualquer forma, o respeito religioso a proprieda-

de é consagrado no projeto no item das circunstancias agra-

vantes na pratica da vadiagem: urn dos agravantes da pena

era quando o individuo possuidor de certa fortuna 4acaba

por esbanja-la, ficando na miseria e sem condicOes de sus-

tentar a familia. 0 debate dente item mostra o paroxismo a

que pode chegar esse respeito devido a propriedade, como,

por exemplo, quando urn dos deputados nao concorda corn

o fato de urn individuo que esbanja sua fortuna ter a pena

agravada, ja que o cal individuo precisaria era de tratarnento

medico, pois so poderia estar louco! Diz o deputado:

Ora, S. Exa. sabe que quase sempre a prodigalidadee inerente a uma enfermidade, porque ninguem, naintegridade das suas faculdades, pora fora aquilo quepossui.Sabe ainda V. Exa. que todos nos temos amor aosnossos hens, ao fruto do nosso trabalho ou ao quede outrem herdamos. Por conseqUencia, urn indivi-duo que esbanja aquilo que possui, que perde o amora propriedade, nit) a simplesmente um vinvo: é prin-cipalmente um enfermo e a circunstancia do esban-jamento nao deve ser para ele um agravante."

Vejamos agora como os deputados percebiam a rela-

clo patrao–empregado neste mundo do trabalho em pro-

72

cesso de construcao ideolOgica. 0 paterrralismo e o elemen-

to fundamental neste contexto: a autoridade do patrao

enfatizada e considerada essential para que o trabalhador

se veja obrigado a desempenhar suas tarefas corn a eficién-

cia exigida, mas os possiveis excessos na autoridade patro-

nal sac) dissimulados sob a forma de protecao, da orienta-

cao que o born patrao devia a seus trabalhadores passivos

e abnegados. Diz o deputado Rodrigues Peixoto:

0 patrao, depois de celebrado o contrato, se consti-tui uma especie de juiz domestic° e tern acao incon-testdvel sobre o trabalhador, para guia-lo e acon-selha-lo. Se alguma vez esse individuo sai das 6rbi-tas legais e pratica alguma falta ou delito ligeiro, quenao precisa ser punido pela lei, o pr6prio patrao, emvirtude do regulamento que ali existe, e que estabe-lece direitos e deveres entre locatario e locador, theinflige castigos moderados como aqueles que infli-gem os pais aos filhosi6

Outro momento importance neste processo de cons-

trucio da ideologia do trabalho e a elaboracao do concei-

to de vadiagem: corn todo o alarmismo e os exageros ca-

racteristicos destes homens quando discutem assuntos que

supostamente ameacam o seu mundo, o esforco agorae pela

afirmacao do ainda hojc poderoso mito da preguica inata

do "trabalhador national".

0 conceit° de vadiagem se constrOi na mente dos par-

lamentares do fim do Segundo Reinado basicamente a partir

de urn simples processo de inversao: todos os predicados

associados ao mundo do trabalho sao negados quando o

objeto de reflexao e a vadiagem. Assim, enquanto o traba-

lho e a lei suprema da sociedade, a ociosidade a uma amea-

ca constante a ordem. 0 ocioso a aquele individuo que,

73.

DaviBellan
Realce

negando-se a pagar sua divida para corn a comunidade por

meio do trabalho honesto, coloca-se a margem da socie-

dade e nada produz para promover o bem comum.

Ha, portanto, uma incompatibilidade irredutivel en-

tre manutencao da ordem e ociosidade. Mas era essential

para os nossos deputados compreender melhor as causas da

ociosidade do trabalhador brasileiro. A crenca nesta ocio-

sidade parecia comum a todos, e citava-se, por exemplo, o

caipira paulista, "um verdadeiro parasita, que consome ape-

nas e nada produz"." Como explicar esta anomalia? Urn dos

deputados nos di uma explicacao didatica, elaborando um

conceito que ele chama de "lei da necessidade"." Segundo

ele, nos lathes europeus e asiaticos se acha realizada a teoria

de Malthus e Ricardo, ou seja, ha urn excesso de popula-

cao ern relacao a capacidade de produzir viveres. A vida

bastante dura para essas populaches, que se sentem entao

estimuladas para o trabalho pela prOpria necessidade de lu-

tar pela sobrevivencia. No Brasil, ao contrario, o indivi-

duo encontra muitas facilidades para subsistir, pois o nosso

solo 6 rico, o nosso clima e ameno e a abundancia se nota

por toda parte. Sendo assim, a nossa populacao nao preci-

sa ter habitos ativos de trabalho, pois tern facilidade em

obter a came, o peixe, o fruto, e, alem disso, a amenidadedo clima permite. ao brasileiro passar perfeitamente ao re-

lento, sem cobrir o corpo corn vents pesadas e caras. Em

nosso pais, portanto, e preciso obrigar o individuo ao tra-

balho, pois a tentacao da ociosidade é irresistivel.

Ociosidade deve ser combatida nao soi porque negan-

do-se ao trabalho o individuo debca de pagar sua divida para

corn a sociedade, mas tambem porque o ocioso 6 urn per-

vertido, urn viciado que representa uma ameaca a moral e

aos bons costumes. Urn individuo ocioso e urn individuo

74

sem cducacao moral, pois nab tern nocao de responsabili-

dade, nao tem interesse em produzir o bem comum nem

possui respeito pela propriedade. Sendo assim, a ociosida-

de 6 um estado de depravacio de costumes que acaba le-

valid° o individuo a cometer verdadeiros crimes contra a

propriedade e a seguranca individual. Ern outras palavras,

a vadiagem 6 um ato preparatOrio do crime, dal a necessi-

dadc de sua repressao. Assim se expressa a comissio parla-

mentar que estudou o projeto:

0 projeto [...] revela a intenclo de orientar espiri-tos transviados, corrigir disposicries viciosas, antesque punir criminosos.Se o legislador tern o imprescindivel dever de con-sagrar no direito positivo prescricees tendentes arepressio dos crimes que atentam 1 ordem social, naothe e licito desconhecer que esses atos derivam-se, omais das vezes, do relaxamento ou da depravacio doscostumes, tendo geralmente como causa geradora aociosidade."

Outro aspecto interessante 6 a relacao estabelecida

ent* ociosidade e pobreza. 0 projeto reconhecia que eram

duas as condicOes elementares para que ficasse caracteriza-

do o delito de vadiagem: o habit() e a indigencia, especial-

mcnte a Ultima. Se urn individuo e ocioso, mas tem meios

de garantir sua sobrevivencia, ele nab é obviamente peri-

goso a ordem social. SO a uniao da vadiagem corn a indi-

afeta o senso moral, deturpando o homem e engen-

drando o crime. Fica claro, portanto, que existe uma ma

ociosidade e uma boa ociosidade. A ma ociosidade e ague-

la caracteristica das classes pobres, e deve ser prontamente

reprimida. A boa ociosidade 6, corn certeza, atributo dos

nobres deputados e seus iguais...

75

DaviBellan
Realce
DaviBellan
Realce

Os parlamentares reconhecem abertamente, portanto,

que se deseja reprimir os miseriveis. Passam a utilizar, en-

tic), o conceit° de "classes perigosas", avidamente apren-

dido nos compendios europeus da epoca. Segundo Alberto

Passos Guimaraes, o termo "classes perigosas" apareceu

originalmente na Inglaterra e se referia as pessoas que ja

houvessem passado pela prisao ou as que, mesmo ainda nao

tendo sido presas, haviam optado por obter o seu susttn-

to e o de sua familia:13°r meio da pritica de furtos e naodo trabalho. 2° Esta utilizacao do termo, por conseguinte,

bastante restrita, referindo-se apenas aos individuos que

ja haviam abertamente escolhido uma estrategia de sabre-

vivencia que os colocava a margem da lei. Os nossos de-

putados, contudo, citam principalmente autores franceses

e alargam consideravelmente as proporcOes do termo.2140s

legisladores brasileiros utilizam o termo "classes perigosas"

como sinOnimo de "classes pobres", e isto significa di zer

que o fato de ser pobre torna o indivfduo automaticamen-

te perigoso a sociedade. Os pobres apresentam maior ten-

dencia a ociosidade ysao cheios de vicios, menos moraliza-

dos e podem facilmente "rolar ate o abismo do crime". Dizum dos deputados:

As classes pobres e viciosas [...] sempre foram e- bac)de ser sempre a mais abundante causa de todas assortes de malfeitores: sao elas que se designam maispropriamente sob o titulo de — classes perigosas —;pois quando mesmo o vicio nao e acompanhado pelocrime, s6 o fato de aliar-sea pobreza no mesmo indi-viduo constitui um justo motivo de terror para a so-ciedade. 0 perigo social cresce e torna-se de mais amais ameacador, a medida que o pobre dereriora a suacondicao pelo vicio e, o que e pior, pela ociosidade.22

76

Resta situirmos como os nossos deputados percebem

a insercao do imigrante ncste mundo do trabalho em pro-

cesso de construcio ideolOgica. 0 artigo 3 fi do projeto sobre

a repressao da ociosidade preve que o estrangeiro reinci-

dente no delito de vadiagem podera expulso do pais.

0 rigor da pena para o estrangeiro reincidente e o fato de

que quase nao se menciona o imigrante nestes debates so-

bre a ociosidade mostram bem que o consenso a respeito

do trabalhador imigrante ja havia sido atingido anterior-

mente. Como mostra Jose de Souza Martins, as classes

dominantes pensavam que o imigrante deveria ser "mori-

gerado, sObrio e laborioso", 23 isto é, ao cultivar as princi-

pais virtudes consagradas na etica capitalista, o imigrante

deveria servir de exemplo ao trabalhador national. 0 imi-

grante e sua familia deveriam estar sempre dispostos ao

trabalho arduo e as condicOes diffceis de vida, pelo menos

nos primeiros tempos, sendo que estes sofrimentos seriam

mais tarde compensados pelo acesso a pequena agricultura

familiar. Dentro deste contexto, a facil entender o porquê

do rigor da pena do estrangeiro que era detido por vadia-

gem: destinado a servir de exemplo, de protatipo do tra-

balhador ideal na ordem capitalista que se anuncia, sua

nao-adequacao a estes parametros era vista como uma amea-

ca a ordem social. Ressalte-se, porem, que esta visao posi-

tiva do imigrante aplicava-se principalmente aqueles que

se destinavam, nesse period°, as zonas cafeeiras de Sao Pau-

lo, especialmente os italianos. A situacao parecia ser bem

mais ambigua e contradit6ria quando estavam em questa°,

por exemplo, os 106.461 imigrantes portugueses, geralmen-

te homens solteiros e empregados no pequeno comercio,

que habitavam a cidade do Rio de Janeiro em 1890. 24 Vol-

taremos a este Ultimo aspecto oportunamente.

77

Seguem-se algumas observacties de carter geral que

darao nao so a t6nica das outras partes dente capitulo, mas

que, na verdade, introduzem aspectos que sera() explora-

dos ao longo de todo o restante do trabalho.

1) 0 universo ideolOgico das classes dominantes brasi-

leiras na agonia do Segundo Reinado e, depois, durante a

RepUblica Velha parece estar dividido em dois mundos que

se definem por sua oposicao urn ao outro: de urn lado, ha o

mundo do trabalho; de outro, ha o da ociosidade e do cri-

me. No discurso dominante, o mundo da ociosidade e do

crime esta a margem da sociedade civil — isto 6, trata-se de

urn mundo marginal, que é concebido como imagem inver-

tida do mundo virtuoso da moral, do trabalho e da ordem.

Este mundo as avessas — amoral, vadio e caOtico — 6 perce-

bido como uma aberracao, devendo ser reprimido e contro-

lado para que nao comprometa a ordem. Portanto, urn dis-curso ideolOgico dualista e profundamente maniqueista —

baseado na tradiclo crista ocidental de procurar distinguir

sempre o bem do mal, o certo do errado etc. — parece ser a

caracteristica fundamental da visa() de mundo das classesdominantes brasileiras no period° estudado.

A documentacao analisada ate aqui parece permitir,

contudo, pelo menos como hipOtese, a leitura de uma outra

forma de insercao do pobre isto 6, do ocioso e do cri-

minoso em potencial — no mundo da ordem. A visa() de

mundo dos nossos parlamentares postula urn paralelismo

perfeito entre a hierarquizacao da estrutura social e as di-

versas panes constituintes do universo ideolOgico. No nivel

mais elevado da hierarquia social nOs temos os proprietarios— patnies seguidos de forma um unto distante pelos

bons trabalhadores. Neste nivel reina a ordem por excelen-

78

cia, ja que os individuos ai localizados sio aqueles de mais

alto grau de moralidade, pois amam o trabalho e sabem

respeitar a propriedade. No nivel inferior, nOs temos o

mundo dos ociosos. Neste mundo, existe urn certo grau de

dcpravacao moral e uma tendencia a desordem, pois estes

individuos nao respeitam a lei suprema da sociedade — o

trabalho. Finalmente, temos o mundo do crime, que e for-

Mado pelos individuos de maus instintos, miseriveis e

infensos aos ditames da ordem. Assim, cria-se um sistema

seglindo o qual o individuo mais bem situado na hierar-

quia social e sempre mais dedicado ao trabalho, mais mo-

ral e ordeiro do que o individuo que o precede. Ao con-

natio, quanto maior a pobreza do individuo, maior sua

repulsa ao trabalho e menor a sua moralidade e seu apego

a ordem.Em outras palavras, o sistema se caracteriza por uma

livha continua que une o mais moral ao menos moral no

universo ideolOgico, e o mais rico ao mais pobre na estru-

tura social. Neste sentido, nao ha urn dualismo, uma opo-

sicao entre dois mundos diferentes, isto 6, nao ha urn

mundo do trabalho e outro da ociosidade e do crime —

ha, na verdade, apenas urn mundo, coerente e integrado na

sua dimensao ideolOgica. Nao faz sentido, entaci, pensar o

ocioso e o criminoso como individuos que vivem a mar-

gem do sistema, marginais em relacao a urn suposto mun-

do da ordem. Cabe pensar a ociosidade e o crime como

clementos constituintes da ordem e, mesmo, como elemen-

tos fundamentals para a reproducio de urn determinado

tipo de sociedade. Ha de se questionar a visa° tradicional-

mente veiculada pelas classes dominantes brasileiras — tan-

to-no passado quanto no presente — de que a vadiagem e

o crime, que sao nocees cuja producio social por si 56 ji

79

DaviBellan
Realce
DaviBellan
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Realce
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Realce

constitui urn importance campo de analise, sdo contracli-

cOes dentro do sistema, simples conseqtrencias indesejaveis

de suas deficiências. Em suma, a hipótese que se quer Ian-

car aqui é a de que a existencia da ociosidade e do crime

tern uma urilidade Obvia quando interpretada do ponto de

vista da racionalidade do sistema: ela justifica os mecanis-

mos de controle e sujeicao dos grupos sociais mais poltres.25

Mais do que isto, ja que ideologicamente quase se

equivalem os conceitos de pobreza, ociosidade e crimi-

nalidade — sao todos atributos das chamadas "classes pe-rigosas" entao a decantada "preguica" do brasilliro, a

"promiscuidade sexual" das classes populares, os seusLatos

haters" de violencia etc. parecem ser, antes que dados in-

questionaveis da "realidade", construcOes ou interpretacOesdas classes dominantes sobre a experiencia on condic6us de

vida experimentadas pelos populares. Estas noc6es, contu-

do, nao se confundem corn a experiencia real de vida dos

populares, nen) sac) a Unica leitura possivel desta experien-

cia. Em suma, cabe enfatizar que mitos como a "prelgvica"

do brasileiro, a "promiscuidade sexual" dos populares e

outras congeneres sao construcOes das classes clominantes

para justificar sua dominacao de classe, sendo, entdo, ape-

nas uma versa() on leitura possivel da "realidade", apresen-

tada de maneira mais ou menos consciente pclos agentes

hisuiricos fiestas classes.

2) A cidade do Rio de Janeiro receben grande mime-

ro de estrangeiros nos anos imediatamente anteriores .e se-guintes a Abolicao, sendo que este contingente de iman-

tes vein se estabelecer numa cidade que continha na epoca

um grande minter° de negros e mulatos que viviam seas

primeiras experiéncias como trabalhadores livres. Os dados

80

referentes a estrutura ocupacional da cidade em 1890 mos-

tram uma marginalizacao ocupacional dos nao-brancos

ocorrendo em parte devido a presenca dos imigrantes eu-

ropeus. Mais da meta& dos 89 mil estrangeiros economi-

camente ativos trabalhava nocomercio, indUstria manu-

fatureira e atividades artis.ticas, ou seja, os imigrantes ocu-

pavam os setores de emprego mais dinamicos. Enquanto

isso, 48% dos nao-brancos economicamente ativos em-

pregavam-se nos servicos domesticos, 17% na indtistria,

16% nao tinham profissao declarada e o restante encon-

trava-se em atividades extrativas, de criacao e agricolas.26

Estes dados sugerem uma questa° fundamental para a in-

vestigaclo histOrica, mas que tem sido estranhamente ig-

norada pelos historiadores — em parte talvez pela difi-

culdade de levantamento de u,ma documentacio adequa-

da, e em parte sem dtivida pela influencia notavel do po-

deroso mito da "democracia racial brasileira"; a questa°,

bastante complexa, pode ser enunciada de forma relativa-

mente simples, qual seja, como explicar o fato da subordi-

nacao social do negro no Rio de Janeiro no periodo pOs-

AboLica°, faro este amplamente comprovado pelos dados

disponiveis sobre a estrutura ocupacional da cidade?

No caso da cidade do Rio de Janeiro, a situacao de

subordinacio social do negro no perfodo pcis-Abolicao nao

foi ate hoje objeto de uma investigacao cientifica mais se-

ria e abrangente. Para o caso de Sao Paulo, porem, existem

estudos bastante pormenorizados sobre a situacao do ne-

gro no periodo pOs-Abolicao, estudos estes realizados es-

pecialmente por Florestan Fernandes. 27 Fernandes, na ver-

dade, acaba encabecancio uma "escola" de sociOlogos que

produziu excelentes trabalhos a respeito do negro brasilei-

ro nao so em Sao Paulo, mas tambem em outras parses do

81

DaviBellan
Realce

Brasil." A influencia desta "escola" foi bastante grand;

tendo sido suas analises sobre o problema negro geralmente

aceitas e permanecido sem serem revistas ou questionadas

nos meios academicos ate bem pouco tempo.

0 ponto de partida de Florestan Fernandes e a caracte-

rizacao da sociedade escravista colonial e imperial no Brasil

como uma sociedade estamental e de castas: os elementos

das classes dominantes se classificavam em termos estamen-

tais, os escravos em termos de casta, sendo que os elementos

mesticos livres ou libertos oscilavam entre os dois tipos de

classificacao. A ordem estamental ainda apresentava alguma

fluidez, mas o sistema de castas era bastante rigido, sendo

que os escravos estavam reduzidos a urn estado de "anomia

social", pois nao participavam de um sistema definido de

direitos e de obrigacties socials. E dentro deste quadro

conceitual mais amplo que Fernandes situa seu estudo so-

bre a integracao do-negro na sociedade de classes em forma-

cao na cidade de Sao Paulo no final do seculo XIX e nas

primeiras decadas do seculo XX.

Para ele, entao, o escravismo era um sistema de castas

cuja desagregasao —coincidindo corn a fordiacao das clas-

ses sociais — nao se refletiu numa mudanca substancial da

posicao social do negro. Os negros foram incorporados as

plebes, tendo ficado condenados a uma "condicao de casta

disfarcada"." Os negros e mulatos encontravam-se des-

preparados para o papel de trabalhadores livres. A popula-

cao de cor nao tinha nem o treinamento tecnico, nem a

mentalidade e disciplina do trabalhador livre, ficando, as-

sim, excluida das oportunidades econOmicas e sociais ofe-

recidas pela ordem social competitiva emergente. Fernandes

enfatiza o efeito desagregador da escravidao, que havia

destruido quase todo o vestigio da heranca cultural negra.

82

A escravidao havia ainda destituido os negros de toda vida

familiar e dificultado a criacao de formas de cooperacao

assistencia mutua baseadas na familia. Por conseguinte, a

heranca do escravismo, ao produzir entre negros e mula-

tos um cstado de anomia social, pobreza e despreparo para

o trabalho livre, teria sido o principal fator responsavel pelo

isolarnento e subordinacao social dos negros e mulatos no

periodo pOs-Abolicao.0 problema principal suscitado pela analise de Fernan-

des 6 esta nocao de que negros e mulatos se encontravam

num estado de "anomia" ou "patologia social" no periodo

pOs-Abolicao, estado este que se explicaria como uma he-

ranca direta do escravismo. A primeira objecao sena que se

pode l4vantar neste contexto 6 a de que a visa° que Fernandes

passa do liberto — como despreparado para o trabalho li-

vre, destituido de vida familiar etc. — e perigosamente pre-

xima aquela veiculada pela classe dominante brasileira no

momento crucial da transicao do trabalho escravo para o

trabalho livre, como mostram os debates parlamentares do

periodo. Esta e uma objecao importante na medida em que

a concepclo do liberto que parecia caracterizar a visa° de

mundo da classe dominante brasileira no fim do seculo XIX

era, em grande pane, uma construclo ideolOgica que visa-

va atender as necessidades desta classe de controlar e disci-

plinar a forca de trabalho num momento crucial da transi-

cab para uma ordem capitalista no pais, especialmente no

Sudeste.Outra objecao, talvez ainda mais fundamental, 6 que

estudos recentes sobre a escravidao, especialmente as pesqui-

sas do Katia Mattoso e Robert Slenes, tern mostrado que,

apesar de toda a repressao e violencia inerentes a condicao

de "ser escravo no Brasil", os negros escravos foram capazes

83

de manter, adaptar ou reconstruir padreies culturais, retacCies

de familia e laws de solidariedade e ajuda mnrua entre. cies."

Mesmo se aceitarmos as premissas da teoria da parologia

social, portanto, pesquisas mais recentes, baseadas em sada

e extensa pesquisa empirica, oferecem-nos dados que .abalam

fortemente a tentativa de explicar a condicio do negro bra-

sileiro no periodo pOs-Abolicio pela via de sua suposta pa-

tologia, heranca do periodo escravista.

Alem disco, Gilberto Velho nos leva a meditar sobre

algumas das premissas bisicas da teoria da patologia socia1.31

Preocupado corn o estudo do chamado "comportamento des-

viante", Velho oferece uma critica penetrante da teoria da

anamia enquanto teoria explicativa do "desvio". Ele perce-

be, de inicio, que o problema do desvio e sempre visro ora

do ponto de vista de uma patologia do individuo, 34 doponto de vista de uma patologia do social. Ele observ-a que

estas interpretacOes, apesar de aparentemente irreconcilii-

veis, partem de premissas fundamentalmente semelhantes.

Por urn lado, a ideia do desvio, pressupondo assim a exis-

tencia de comportamentos "normais" claramente del i mita-

dos ern uma sociedade, leva ao estabelecimento tie urn

modelo muito rigido de cultura ou sociedade,send° a

pluralidade de comportamentos dentro de uma euttura

vista dentro de limites muito empobrecedores. Por outro

lado, estas abordagens partem de uma visio dicotOrnica da

realidade, °pond° individuo e sociedade como dims; end-

dades puras e abstratas. Como escreve G. Velho, ` coil Se criauma individualiclade pura, uma essencia defrontando-se

corn o meio ambiente exterior, tie outra qualidade, au en-

tic) urn fato social puro, tambem todo-poderoso, qtre pai-ra sobre as pessoas"."

84

3) Velho faz ainda algumas observacetes que servem

para esclarecer de que forma os imimeros conflitos indivi-

duais expressados nos processos criminais de homicidio

estudados por nos sio percebidos ao longo do trabalho.

Feitas estas observacães, restari situi-las dentro do contexto

histOrico mais amplo cla cidade do Rio de Janeiro na Pri-

meira Reptiblica, permitindo-nos, assim, perceber as rela-

cees, por exemplo, entre as tensOes nacionais e raciais re-

cuperadas no nivel da micro-histeiria e este processo his-

tarico mais amplo da cidade no periodo.

Preocupado sempre corn o estudo do chamado "corn-

portamento desviante", Velho procura indicar novas pers-

pectivas para as pesquisas, na tentativa de virar a pigina das

influéncias da teoria da patologia social sobre nossas anilises.

Ele sugere inicialmente que se parta de urn conceito de cultu-

ra menos rigid°, ou seja, que se abandon o pressuposto de

urn monolitismo ern dado meio sociocultural, pois a cultu-

ra é uma linguagem permanentemente acionada e transfor-

mada por pessoas que desempenha' m diferentes papeis e pos-

suem experiencias existenciais pr6prias. Trata-se, portanto,

de deixar de encarar a cultura como uma entidade acabada e

de procurar enfatizar o cariiter multifacetado, dinimico e are

ambiguo da vida cultural. Dentro desta perspectiva, o indivi-

duo desviante nio é necessariamente urn "deslocado", nem

a cultura 8 uma entidade tic) monolitica e, mesmo, esmaga-

dora. Para Velho, entio, o. desviante e urn individuo que faz

uma leitura diferente de urn cOdigo sociocultural, into é, ele

nao esti fora de sua cultura, mas faz dela uma leitura diver-

genre daquela dos individuos ditos "ajustados". A possibi-

lidade da existencia dessas leituras diferentes ou divergentes

garantida pelo prOprio canker desigual, contraditOrio e po-

litico de todo sistema sociocultural.

85

As teorias de Velho convergem tambem corn a contri-

buicao dos chamados "interacionistas", como Howard Becker,

por exemplo. 34 Para Becker, nao existem desviantes em si

mesmos, mas apenas uma relacio entre atores (individuos,

grupos) que acusam outros atores de transgredir limites e va-

lores de uma determinada situacao sociocultural. 0 que existe,

entao, sao confrontos entre individuos ou grupos concretos,

entre acusadores e acusados. Neste sentido, abandona-se a de-

finicio de desvio a partir de urn modelo rigido de cultura,

capaz de prever a existencia de urn suposto comportamento

"medio" ou "normal" dentro de urn sistema social; ao con-

trario, o desvio passa a ser a conseqdencia da aplicacão por

outrem de regras e sancifies, ou seja, o desvio passa a ser urn

problema politico, e nao uma qualidade inerente ao ato da

pessoa. Assim, tanto as rixas e conflitos por questhes de tra-

balho e habitasao, que seri° analisados nas outran panes dente

capitulo, como as rixas da hora do lazer e do ,amor, que serao

analisadas nos outros capitulos desk estudo, sao vistos como

urn acontecimento politico dentro de urn determinado mi-

crogrupo sociocultural. Isto é, existem facceies dos mais dife-

rentes tipos em qualquer grupo human, o que implica uma

permanente possibilidade de confrontos a partir das tensifies

e divergencias entre tais faccdes. No nivel da sociedade mais

ampla, essas tensOes sac) expressas nas lutas de linhagens, classes

etc. Mas essas tensees e lutas aparecem tambem ern situacOes

microscOpicas do social, como nos grupos de trabalho e de

vizinhanca, na familia etc. De faro, uma verdadeira "politica

do cotidiano" caracteriza a dinamica de funcionamento des-

ses microgrupos socioculturais.

4) Resta, finalmente, juntar os elos aparentemente per-

didos dessas imimeras observaccies de relevancia tanto teO-

86

rica quanto empirica e dar ao leitor a visa() de conjunto que

se pretende. 0 conceito de "politica do cotidiano" desen-

volvido por Velho e bastante util na medida em que nos

chama a atencao para o fato de que os processos criminals

de homicidio que analisamos devem ser vistos como a ex-

pressao de tenthes e conflitos entre grupos ou individuos,

permitindo assim que nos livremos urn pouco do conceito

de "comportamento desviante", que é, ern larga medida —

e especialmente ainda quando a fonte analisada sao proces-

sos ciminais uma construclo dos mais poderosos para

justificar seu jugo sobre aqueles que 'hes sao antagOnicos.

As teorias de Velho nos serviram, dem disso, para a elabo-

racao de procedimentos metodolOgicos que aprofundaram

bastante a nossa compreensao do prOprio processo de pro-

duclo social de um processo criminal. Assim, para dar ape-

nas urn exempt°, era uma pratica bastante comum das auto-

ridades policiais e judiciarias da epoca interrogar as teste-

munhas de urn determinado conflito sobre os antecedentes

dos envolvidos. Perguntava-se ao interrogado, por exemplo,

se o acusado era "morigerado e trabalhador" ou "desordeiro

e vadio". E uma constatacao Obvia, mas nao por isso ir-

relevante, a de que este vocabulaxio dos agentes juridicos em

seu interrogatOtio revela que tuna das funcOes essenciais do

aparato policial e judiciario era o reforco dos valores funda-

mentals da etica de trabalho capitalista. Para constatar isso,no cntanto, nao teria sido necessario ler processos criminais

a mancheias. Ao responder a esta pergunta, a testemunha

nos revelava geralmente sua atitude ern relacao ao conflito,

ou seja, de que lado se alinhava e quais seus interesses em

relacao a lun. Percebeu-se, dessa forma, e para muito alem

do nivel da simples intuicao, que imigrantes da mesma na-

cionalidade tendiam sempre a achar que o oponente de urn

87

de seus patricios em um confront° era um "desordeir° e

vadio". Foi assim tambem que se percebeu, em (intro exem-

pla que urn empregado que depunha num process° sue

envolvia seu patrao tendia a referir-se a este coma "born chefe

de familia e trabalhador", fato este que, associadp a °turas

condicOes gerais de trabalho que pudemos recuperar a eraves

dos depoimentos nos processor, muito nos ensina a respeitoda relacgo pattlo–empregado em diversas situaceles mi-cro-histaricas concretas.

A "traducao" do conceito de "polftica do cotidfsno"

para procedimentos metodolOgicos concretos, porem, ain-

da nio completa o quadro. Se estas observacOes nos aju-

darn a esclarecer o significado "antropolOgico" de cada

conflito microssocial especifico, ainda nao nos ajudarn a

perceber estes conflitos no movimento mais amplo da so-

ciedade em questa°, into é, no prOprio processo histerico.

Pierre Vilar ji nos alertou que a histaria trata dos "enri-

quecimentos e dos empobrecimentos" e trio do rico e do

itpobre, ou do vencedor e do vencido, ou mesmo d bur-

guesia e do proletariado, como categorias estanques sem

movimento. 35 Pei-Isar o contrario seria achar possivel corn-

preender os pOlos de uma relacio isoladamente, sem aten-

tar para a relacao em si em seus diversos momentos.

Assim, sabemos que o processo histOrico por (me pas-

sou a cidade do Rio de Janeiro na Primeira Reptiblica aPre-

sentou um trace continufsta fundamental em relaca° aos

tempos coloniais e imperials: a continuacão da subcirelina-

cao social dos brasileiros de cor, ou seja, o negro passou

de escravo a trabalhador livre, sem mudar, contudo, sua

posicao relativa na estrutura social. Isso significa mit, no

desenrolar das rivafidades nacionais e raciais que, tom°

sugerimos e veremos adiante, foram a expressdo mais co-

88

mum das tensOes provcnientes , da competicao pela sobre-

vivencia na cid.ade do Rio de Janeiro da Primeira

os brasileiros de cor foram, ou continuaram a ser, os

grandes perdedores. dentro de urn esforco de compreen-

sao deste processo hist6rico mais amplo — que, a nosso

ver, nab pode ser adequadamente explicado a partir dos

pressupostos da teoria da patologia social — que queremos

situar os imimeros microconflitos sociais que analisaremos

a seguir. Enfim, 6 importante entender de que forma as

determinacOes histericas mais amplas interferem, ao mes-

mo tempo que se forjam, nas situacOes micro-histOricas

concretas e, etn longo prazo, apontam os vencedores da luta

cotidiana pela sobrevivencia e pelas possibilidades de as-

censao social entre os trabalhadores.

Companheiros tie trabalho, desempregados e gatunos

0 caso abaixo parece mostrar uma situacao bastante

tipica para o surgimento de uma rixa e posterior conflito

entre companheiros de trabalho, assim como sugere aspec-

tos bastante comuns das condicOes de trabalho em uma

pequena fabrica no Rio de Janeiro do infcio do seculo XX.Urn dos depoentes, AntOnio Jose Teixeira, natural da ca-

pital federal, de 20 anon, solteiro, industrial, declara

que e 9 encarregado gerente, da olaria da rua Capi-tao Felix nUmeto um e por isso e quo se encarregada administracio da mesma olaria. Que entre oitoempregados para a servico teve urn nacional de corpreta de nome Ramiro Costa e que pelo mau proce-dimento do mesmo e do geMio alterado teve necessi-dade de despedi-lo do servico isso ha oito dial mais

89

ou menos. Que, ontem, Is nove horas da noite maisou menos, de declarante achava-se na olaria e viuquando alguns dos empregados, chegavam da rua parase recolher, e ao entrarem no pott5o, o mesmo Ra-miro Costa, que se achava do lado de fora do porta°agrediu aos mesmos empregados, armado corn urnfueiro de carroca, e ern seguida corn urn revolver quetrazia disparou dois ou tres tiros, atingindo ao em-pregado Germano Jose Pinto, que ficou ferido.36

A olaria que serviu de cena para o fato relatado era

localizada em Sao CristOvao, tuna freguesia pontilhada de

fabricas como a mencionada acima e que, portanto, apre-

sentava em seu panorama urn einbrilo de proletariado de

fabrica. 37 Os oito empregados da olaria habitavam ern quar-

tos no alojamento da prOpria fabrica. 0 relacionamento

entre os companheiros de trabalho parecia bastante fnti-

mo, ja que no prOprio dia do conflito, um sabado, haviam

saido todos "despreocupados e alegres", como declarou urn

deles, para fazerem a barba em Benfica. 0 gerente tambem

morava na fibrica, mas Liao havia acompanhado os empre-

gados a barbearia.

De acordo corn o relato do gerente, a origem das ten-

sees que culminaram na cena de sangue foi sua decisao de

despedir urn empregado que tinha "mau procedimento".

0 empregado despedido, no entanto, o preto Ramiro, aca-

bou descarregando sua ira sobre seus companheiros de tra-

balho e nao sobre o gerente. Todos os outros empregados

da pequena fabrica eram portugueses, e todos condenam

unanimemente a conduta de Ramiro, que tinha "maus ins-

tintos" e era "muito desordeiro", segundo urn deles. A acu-

sacio que pesava sobre Ramiro era a de que ek, por ser urn

indivkluo "rixoso, provocador e autoritario", nit) cumpria

90

as ordens dos chefes e estragava os animais corn que traba-

lhava. 0 preto Ramiro tinha 25 anos, era natural da capi-

tal federal, casado, analfabeto e trabalhava como cocheiro

na fabrica. Ele ficou foragido durante seis meses, e suas

declaracOes sobre o evento nao constam dos autos. Urn dos

portugueses, porem, nos informa que Ramiro se conside-

rava perseguido pelos companheiros e julgava que "eles

houvessem concorrido para a saida dele". Para completar

o quadro, recta mencionar que, cerca de dois ou tit dias

apps a saida de Ramiro, urn outro portugues foi contrata-

do para trabalhar na olaria.Esta pequena histOria traz a tona diversos aspectos que

sâo bastante recorrentes na documentacao coligida. Temos

aqui urn patrao — ou seu representante direto, urn geren-

te — que parece praticar abertamente a discriminacio con-

tra o brasileiro pobre de cor quando da contrataclo de

empregados para sua pequena fabrica. Vemos tambem um

grupo de imigrantes portugueses que se mostra bastante

solidario e unido numa situacao conflituosa, sendo que

apOiam inteiramente a versdo dada pelo gerente a respeito

do procedimento de Ramiro. Tanto o gerente da fabrica

como seus empregados utilizam as armas ideolOgicas for-

necidas pelos construtores da etica de trabalho capitalista

para reforcar sua acusaclo contra Ramiro; auxiliados pelo

interrogatOrio dos agentes policiais e juridicos, os acusa-

doreF afirmam que Ramiro e "desordeiro" e "mau trabalha-

dor". 0 preto Ramiro, no entanto, oferece uma leitura

diferente de sua experiéncia, considerando-se perseguido

pclo grupo acusador. No moment() da luta, Ramiro pode

ter tido a satisfacao de consumar a agressao que, ao que tudo

indica, tinha planejado corn antecedéricia contra aqueles

que via como seus inimigos, mas, em longo prazo, teve de

91

enfrentar o desemprego, urn period() de seis meses como

foragido da policia e, finalmente, o encarceramento e o

constrangimento de ser processado por crime de terlitativa

de homicidio. Ele acabou sendo condenado a apenas tres

meses de prisao, pois o jtiri desqualificou seu crime paraofensas fisicas leves.

A solidariedade entre imigrantes ern situacOes con-

flituosas no trabalho 6 mais uma vez ilustrada no caso a

seguir, de briga entre funcionarios da Inspetoria de Lim-peza PUblica. 38 A cena do crime e a porta de entrada da

prOpria inspetoria, na Praca da Reptiblica, e o preto Eu-

clides de Oliveira, natural do estado do Rio de Janeiro, de

21 anos, solteiro, analfabeto, ajudante de caminhao da

Limpeza PUblica, narra na delegacia o conflito que resul-

tou na morte do italiano Bernardo Caputto, de 44 anos,vitivo, varredor:

[...] que seu verdadeiro nome e Euclides Pereira deOliveira, mas a certo que na Limpezalica e Par-ticular deu o nome de Manoel de Souza Segundo, eisso para ocupar esse lugar que ali exerce e que foimandado dar pelo carroceiro da mesma limpeza, denome Agostinho de tal; que ontem a noite procura-do na Inspetoria por Gaspar dos Santos Monteiropara receber do declarante a quantia de cinco

que the era devedor e nao tendo essa quantiadisse a Gaspar que voltasse hoje para a receber; queem seguida comecou a brincar corn urn italianovarredor, brincadeira essa que consistia ern querero declarante tirar dele a vassoura a qual puxava; quenessa ocasiao urn outro italiano barbado disse a eledeclarante "larga a vassoura" e ato continuo deu-lheurn cascudo, pelo que o declarante por seu turno deunesse italiano urn cascudo tambem; que atracou-se

92

corn esse italiano barbado para brigar e nessa ocasiaoapareceu o italiano Bernardo Caputto corn UM cabode vassoura na mao e quis dar no declarante uma ca-cetada; que entio o declarante sacou da cinta uma pe-quena faca de acougue, investiu contra Caputto e vi-brou-lhe uma facada no peito; [...] que Gaspar dosSantos Monteiro que se achava ao lado do declarantetambem puxou de uma grande faca, mas nab chegoua ferir Caputto, pelo menos que ele declarante visse;[...] que tambem se achava juntamente corn Monteiro,Manoel da Silva que tern o vulgo de Gamba, mas esseo declarante nao viu puxar arma alguma [...1.

Vemos, portanto, que a questa() de Euclides comeca

corn urn italiano, de quern tenta tomar a vassoura, mas ern

seguida chega urn outro italiano, o barbudo, que toma as

dores do patricio. Finalmente, chega urn terceiro italiano,

armado de cabo de vassoura, que acaba sendo tritima de

uma facada certeira de Euclides. Havia outros funcionarios

no local, entre eles mais alguns italianos, e o acusado 6 aqui

novamente rotulado de "homem rixoso e desordeiro".

Os dois homens que estavam em companhia de Eucli-

des por ocasiao da ocorrência cram portugueses, sendo urn

deles Manoel da Silva, de 21 anos, solteiro, analfabeto, e

o outro, Gaspar Monteiro, de 18 anos, tambëm solteiro,

que "assinou o name". 0 pouco que estes homens nos con-

tarn de sua vida ja ilustra outra vez a solidariedade entre

imigrantes da mesma nacionalidade pela viabilizacao de sua

sobrevivência: ambos eram vendedores ambulantes de lin-

giiica, sendo que o patrao era outro portugues, o pai de

Gaspar. Manoel da Silva declara que nao tinha domicllio

certo, dormindo ora em casa de seu patrao, ora em casa do

filho deste. Esta relacao bastante estreita entre patrao e

empregado, incluindo muitas vezes a coabitacio, parecia

93

bastante comum em se tratando de imigrantes de mesma

nacionalidade.

0 conflito do preto Euclides corn os italianos, na ver-

dade, foi provavelmente tambem urn conflito entre portu-

gueses e italianos. Manoel e Gaspar procuram, obviamen-

te, negar qualquer participacao no conflito. No entanto,

ambos fugiram em desabalada carreira quando o italiano

Caputto caiu morto, vitimado pela facada de Euclides. Os

italianos sit) unanimes em incluir os dois portugueses como

companheiros de Euclides e, portanto, seus opositores. 0

prOprio Euclides confirma esta versa° na delegacia, mas na

pretoria nega que os portugueses estivessem em sua corn-

panhia. Os autos incluem tambem o depoimento de uma

testemunha que declara ter escutado os dois portugueses

contarem em urn botequim, em torn de "gabolice", sua

participacao no conflito. A questio permanece, portanto,

urn tanto indefinida, e o juiz declara improcedente a de-

mincia contra os portugueses. 0 preto Euclides foi con-

denado pelo jfiri a 15 anos de prisao, tendo morrido de

tuberculose pulmonar depois de cumprir dois anos de pena.

Estes dois casos iniciais ja sugerem o papel fundamental

desempenhado pelas rivalidades nacionais e raciais nos con-

flitos em situayks de trabalho. Sugerem tambem uma forte

tendencia entre os imigrantes da mesma nacionalidade de

se mostrarem solidarios nessas ocasi&s. As rathes alegadas

pelos nossos personagens para as contendas em situacOes

de trabalho podem ser bastante variadas, mas os tracos

comuns entre essas contendas sao relativamente faceis de

se identificar: primeiro, elan revelam uma situacao altamen-

te competitiva no trabalho; segundo, a competicao se ma-

nifesta principalmente por mein das lutas entre imigrantes

e nacionais. Observemos essas breves generalizacOes nos

94

casos seguintes, que sao de conflitos nos quail membros

de urn mesmo grupo de trabalho parecem competir para

"mostrar servico", ou seja, para conquistar a simpatia dos

patrOes ou superiores e conseguir beneficiar-se de alguma

forma do carater paternalista da relacao patrao–emprega-

do — predominante especialmente nos pequenos estabe-

lecimentos comerciais e industriais do periodo.

No primeiro desses casos, dois companheiros de traba-

lho em urn depOsito de carvao em Sao Cristávio brigam

por terem ideias diferentes a respeito da forma como de-

viam proceder em relacao a seu superior hierarquico no

servico, que, no caso, era um feitor." Como disse uma das

testcmunhas, divergencia entre os dois nascia do modo

de pensar acerca do servico deles". 0 ofendido Joaquim de

Oliveira, pardo, 23 anos, solteiro, cocheiro, di-nos sua

versa° do ocorrido:

[...] tendo deixado o caminhâo de que e cocheiro narespectiva cocheira, dirigiu-se corn alguns conheci-dos seus companheiros e mais Miguel de tal ao bo-tequim na rua Almirante Mariath onde foram tomarcafe; que ali teve uma teima corn Miguel por ter fei-td spear ern caminho urn moco que viajava no vagiopara dar lugar ao feitor que encontrava ern caminhoe dessa teima resultou que Miguel sacou de um re-volver, alvejou-o contra de depoente e o detonouindo a bala atingi-lo na barriga [...].

0 acusado era o portugués Miguel de Paiva, de 24

anos, solteiro, carvoeiro. Vemos" no caso, portanto, que o

porligues aparentemente se irritou corn a subserviencia de

Oliveira em relacio ao feitor. A briga foi testemunhada por

outros tres portugueses, entre eles o dono do botequim

onde se deu a luta. 0 relato desses tres portugueses e se-

95

melhante no essential, corn todos afirmando que Oliveira

havia "provocado" seu patricio dando-Ihe "empurrOes" e

gritando "Quebro-te a cara". Enquanto os portugueses

parecem justificar o crime de seu patricio caracterizando-o

como urn am de defesa, o 6nico brasileiro que se achava

prOximo ao local ouvira apenas a detonacio do tip, pois

se encontrava num quartinho nos fundos do botequim.

Este brasileiro, contudo, auxiliou os "meganhas" — apelido

dos pracas de pOlfcia na epoca — a prender o acusacio, que

se havia escondido na latrina de uma casa de cOmodos.

Este processo revela tambem outro aspecto muito re-

corrente na documentacao coligida. 0 crime foi cometido

num botequim durance urn dos intervalos da jornada de

trabalho. Estes intervalos para tomar cafe e cachaca no

botequim, prolongados as vezes pelo jogo a dinheiro, eram

bastante comuns principalmente entre carvoeiros, estiva-

dores, carroceiros, ambulantes e outros trabalhadores que

nao se viam circunscritos a urn espaco fechado rigidamen-

te disciplinado. Dal decorre o fato de que muitas das "ques-

toes por motivo de servico" acabavam resultando em con-

flitos nestes momentos de lazer nos intersticios da jornada

de trabalho, quando, aparentemente, as questOes podiam

ser resolvidas sem pot- ern risco os meios de sobrevivenciados contendores.

0 processo seguinte mostra dois empregados do Hos-

pital da Miseric6rdia que competem para "mostrar servi-

co" as irmis e que acabam resolvendo a rixa entre des numdos intervalos da jornada de trabalhoim Quiterio Feitoza,

pernambucano, de 24 anos, solteiro, servente de enfermei-

ro, conta-nos sua briga corn Jose da Silva, portugues, 23

anos, solteiro, enfermeiro. Os envolvidos, assim como to-

dos os outros empregados da Santa Casa de Misericendia

96

que depeem no processo, moram no local de trabalho e,

no momento da briga, estavam todos descansando e con-

versando sentados prOximo as arvores da praia de Santa

Luzia, em frente ao hospital. Diz Quiterio

[...] que ha muitos dias que por motivos de chimesha prevencao da parte do ofendido que conhece pelonome de Silva e que a enfermeiro da mesma enfer-maria da qual ele depoente servente por causa dapreferencia que lhe a dada pelas Irmas da referida en-fermaria, tendo sido ate insultado e agredido na refe-rida enfermaria pelo ofendido. Que hoje acha-va-se sentado na praia de Santa Luzia em frente aSanta Casa, quando a ele chegou-se o ofendido pro-vocando-o por duas ou três vezes. Que ele depoenteficou de sobreaviso. Que a urn momento dado o ofen-dido dirigiu-se a ele depoente, empurrando-o, dizendoele depoente ao ofendido "deixe disso"; que voltandonovamente o ofendido para cima dele depoente, eledepoente sacou do seu revolver e disparou urn tiro

[•••]•

As testemunhas do crime, todos companheiros de tra-

balho dos envolvidos, confirmam que havia uma antiga rixa

entre eks e que ambos vinham trocando provocacOes havia

alguns dias, sem, entretanto, serem mais especificos quanto

a causa da desavenca entre os lutadores. Urn fato interes-

sante neste processo e que o acusado redige sua defesa de

prOprio punho, talvez apenas orientado por UM advogado

ou um companheiro mais experiente da Casa de Detencao

quanto ao contend°. Escrevendo em pessimo portugues,

o acusado "implora a uma suplica" e diz "que me acho

dento de urn carsere tao amargurado". Explica que "urn

homem cansado do trabalho, estando em seu discanso, e

97

vindo urn outro em devido a provoca-lo, aponta de amea-

sar-me corn amorte, eu o passiente, vendo, tratei de minha

defeza para que... nao me feri-se". Pede ainda "caridade"

para "urn pobre infeliz", anexando tambem urn atestado de

urn medico do Recife para quem havia trabalhado, no qual

consta que o acusado sempre tivera conduta "irrepreen-

slyer, sendo "trabalhador e de boa moral". A estrategia de

defesa do acusado, portanto, nab foi negar o ato que co-

meteu, mas sim tentar colocar-se como urn "born trabalha-

dor", imbuido dos valores da &lea de trabalho capitalista.

0 estratagema deu certo e ele foi absolvido.

Uma nova briga entre urn brasileiro e um imigrante

por motivo de competicao ern situacao de trabalho tern

como cenirio uma oficina de sapateiros, na Rua Senhor dos

Passos. 4' Maria Cecilia Baeta Neves, ao tracar as caracteris-

ticas gerais da indUstria de calcados do Rio de Janeiro na

primeira decada do seculo XX,42 fornece-nos elementos im-

portantes para contextualizar o fascinante flagrante da ro-

tina de trabalho numa oficina de sapateiros da epoca que

nose dado pelo processo em questao. A indUstria de cal-

cados da cidade no periodo e predominantemente artesanal,

sendo as oficinas corn cerca de 20 operarios os estabeleci-

mentos industriais mais comuns no ramo. A producao nes-

sas oficinas tern urn carater individual, isto é, cada opera-

rio trabalha a seu modo e corn relativa independência dos

outros trabalhadores. De forma caracteristica para uma

epoca de transicio para a ordem capitalista, a separacao

entre o capital e o trabalho ainda nao estava definitivamente

realizada: os "artesaos" ou "artistas sapateiros" que traba-

lhavam nessas oficinas, apesar de assalariados, eram donos

de seus instrumentos de producao. Sendo assim, o oficio

ainda era visto como uma "arse", corn as ferramentas sen-

98 1

do utilizadas como uma extensao do trabalhador e a qua-

lidadc do produto final dependendo diretamente da inte-

ligérLa e da qualificacao professional do "artista". Nat) exis-

te, portanto, "qualquer forma de adequacao das atividades

humanas aos ritmos e movimentos do processo mecanico,

prOprio da indlistria moderna".43 Finalmente, eram admi-

tidos "aprendizes" nas oficinas, para que se treinassem no

oficio, c os industriais recorriam tambem ao trabalho do

menor, visando ao aumento do lucro por meio da compres-

sao salarial.

Jose Bcnto de Souza, natural do Distrito Federal, de

14 anos, solteiro, aprendiz de sapateiro, narra sua briga

corn Joaquim Alves Casemiro, português, de , 20 anos, sol-

teiro, sapateiro:

[...] que estava hoje a uma hora da tarde mais oumenos, na oficina de sapateiro a rua Senhor dosPassos nUmero noventa e três da qual 6 operario, eentregava-se ao seu trabalho, sentado no banco queoJupa na dita oficina, quando alguns de seus corn-panheiros comecaram a brincar corn ele declaranteentre os quais o de nome Joaquim Alves Casemiroque levantara-se do seu Lugar para vir junto dele acu-sado arrebatar os aviamentos que tinha no seu ban-co; que feito por Casemiro, ele acusado levantou-sepor sua vez para apanhar os ditos aviamentos queaquele espalhara pelo chao, voltando ao seu banco

5 ara continuar o servico que fazia; que outros corn-anheiros nessa ocasiao atiravam pedacos de sofa e

outros pequenos objetos sobre ele acusado, tendoCasemiro reproduzido a brincadeira de vir ao ban-co dele declarante tomar-lhe os aviamentos para tor-nar a espalha-los pelo chi(); que ele acusado diantede tal procedimento pretendeu fazer corn Casemiro

99

o que este fizera-lhe indo ao banco do mesmo tomar-lhe os seus aviamentos, mas nessa ocasiao foi em-purrado pelo mesmo Casemiro; que voltando a seubanco de trabalho Casemiro insistiu em renovar abrincadeira, ocasiao em que de acusado com a facaque trabalhava levantou-se e foi ao encontro deCasemiro fazendo mencao de quem pretendia fed-1o;que assim procedeu sem intencao de fazer mal a seucompanheiro, porque calculara que este recuasse,mas nao se deu isso e quando deu acordo a si verifi-cou que havia ofendido a Casemiro [...].

Esse flagrante da rotina de trabalho na oficina nos

mostra o carater individual e paralelo do processo produ-

tivo, cada trabalhador debrucando-se sobre seus afazeres de

forma independente dos outros. Daf se justifica a serieda-

de do confronto que se segue a troca de provocacees entre

os contendores: os artesaos se sentem ligados a sua "obra"

— como diz um deles — e o ataque a esta equivale a uma

agressao real ao autor de tal "obra". A suposta "brincadei-

ra" que estes meninos sapateiros realizarn ao longo do pro-

cesso produtivo assume, na verdade, um cardter altamente

competitivo. 0 prOprio fato de que era Jose Bento a viti-

ma favorita das "brincadeiras" que acabavam por prejudi-

car a produtividade de seu trabalho, fato confirmado por

outros depoentes, é revelador: apesar de bastante jovem,

de é "estimado por seu patrao", como diz uma das teste-

munhas, e, akin disco, "sabe ler e escrever e e bastante ati-

vo", ji recebendo "salario correspondente a uma diaria dedois ou trés como afirma outra testemunha. Este

salad() era bastante alto para uma crianca aprendiz de sa-

pateiro que, de acordo corn M. C. Baeta Neves, percebia

normalmente uma diaria entre mil e 1.500 reis em 1906.44

100

[...] estava ele restemunha em a venda prOxima a casaonde trabalhava como carpinteiro o denunciado, quea vitima encontrando-se com o denunciado em a ditavenda onde de testemunha se achava pediu ao denun-ciado uma grosa que havia emprestado respondendoo denunciado mal corn palavras mas pelo que a viti-ma, que estava fazendo a cabeca ern uma bengala, deucom a mesma na cabeca do denunciado ferindo-o eeste correndo ao quarto armou-se de uma garrucha[...]; que o denunciado nao se achava embriagado pelocontririo a vitima estava embriagado; [...] que co-nhece os precedentes do denunciado e nao the constaserem maus, sabendo apenas ter ele dim que havia dematar alguem [...].

0 portugues Manoel contesta o depoimento dente

brasileiro que nega que o acusado estivesse embriagado

quando da ocorrencia e que ainda sugere que a agressao foi

premeditada — Manoel teria dito que "havia de matar al-

guem". As outran testemunhas afirmam que os dois con-

101

Jose Bento, portanto, sendo um sapateiro de futuro pro-

missor e gozando da estima de seu patrao, acaba sendo a

vitima predileta dos companheiros que competiam corn elepelas possibilidades restritas de ascensao social.

0 conflito seguinte, novamente entre urn brasileiro

de cor e um portugues, ocorre numa disputa entre ambos

pela posse de uma grosa ou lima, urn instrumento de tra-

balho importante para ambos. 45 Uma das testemunhas,Jose. Mendes, natural do estado do Rio, de 38 anos, nar-

ra os antecedentes do conflito no qual o portugues Manoel

Torres, de 28 anos, solteiro, carpinteiro, matou corn dois

tiros de garrucha o pardo Paulo Oliveira,de 50 anos, ca-sado, bengaleiro:

tendores estavam embriagados, e o advogado do acusado

organiza a bem-sucedida defesa do rat em torno do con-

ceito juridico da "privacao de sentidos e inteligencia"," ou

seja, Manoel, estando embriagado, Ira° podia ser respon-

sabilizado criminalmente pelo seu ato. Aqui, mais uma vez,

a jornada de trabalho esta intimamente ligada aos perio-

dos de lazer no botequim, que acaba se transformando naarena de luta dos contendores.

Parece desnecessirio multiplicar indefinidamente os

exemplos de briga entre imigrantes e brasileiros em situa-cOes de trabalho. 47 Os casos analisados ja sugerem a im-

portancia dos conflitos nacionais e raciais enquanto ex-

pressao das tensOes provenientes da luta pela sobrevivén-

cia. Mas ate aqui vimos apenas casos em que brasileiros e

estrangeiros se enfrentam durante a jornada de trabalho.

Restam ainda alguns nos quais crimes de homicidio sur-

gem como conseqiiencia de atitudes desesperadas de in-

dividuos desempregados, ou como resultado de tentati-

vas de ataque a propriedade — os roubos e furtos dos

"gatunos". Aqui, novamente, parece maior a probabilida-

de de que estrangeiros e brasileiros se encontrem em cam-pos opostos de luta.

Assim, Candido Silva, natural do estado do Rio, 27

anos, solteiro, lavrador, assassinou corn uma facada o ita-

liano Hercilio Aldeghir, tambem de 27 anos, casado, ope-

ratio. 0 crime se deu em uma venda, em Bangu, e, inter-

rogado sobre o que o levara a cometer tal ato, Candido

explicou: "que achando-se com force e sem dinheiro para

se tratar resolveu praticar esse crime, uma,vez que assim

[obteria?] amparo, que nunca teve 'ofensas do morto e nem

nunca the pediu coisa alguma, que cometeu o crime pelomotivo ja exposto".48

102

As explicacdes do acusado devem, sem chavida, ter cau-

sado estranheza as autoridades policiais e judiciarias, que

tentam por todos os meios descobrir um motivo mais plau-

sivel para o crime. As investigaciies foram innteis, pois as

testemunhas declaram nao saber o porque da agressao de

Candido, limitando-se a afirmar que ele tinha "marts pre-

cedences". Finalmente, o acusado é levado para o Hospi-

cio Nacional para ser examinado por uma comissao de

Afirmando sempre que matara por estar "desem-

pregado, doente e corn fume", necessitando, pois, de pro-

tecao, Candido e considerado louco, corn os peritos achan-

do que ele sofria de "imbecilidade, corn episOclios deliran-

tes". E irnpossivel deixar de pensar, no entanto, que as ex-

plicaciics de Candido tinham a sua lOgica — fosse esta a

lOgica dT loucura, ou a da extrema pentiria.Foram localizados ainda quatro casos de brigas entre

brasileiros e imigrantes devidos a furtos ou roubos. Em urn

desses casos urn negociante portugues afirma que dois ho-

mens — urn brasileiro e urn espanhol — entraram em seu

estabelecimento comercial e roubaram trezentos e tantos

mil-reis. 0 portugues dispara tiros . contra estes individuos

postectormente. 49 Em outro processo urn chacareiro espa-

nhol vinha por uma estrada montado em urn cavalo quan-

do foi interceptado por tees brasileiros que o acusavam de

haver roubado o cavalo que montava. AID& uma discussio

azedada, o cavaleiro espanhol respondeu corn tiros a seus

acusadores e declarou na delegacia que os brasileiros pare-

ciam ser assaltantes. 50 No caso seguinte, o caixeiro de urn

armazem, de nacionalidade brasileira, afirma que teve de

disparar sua espingarda contra dois gatunos que tentaram

penetrar no estabelecimento quando la dormia. Urn dos

ofendidos, de nacionalidade desconhecida, morre, mas o

103

sobrevivente, urn português, diz que fora cobrar do brasi-

leiro uma divicia que tinha "por causa de urn anel". 5 ' Fi-nalmente, temos um grupo de marinheiros que sai Para

fazer compras; quando da saida de uma casa de negacios,

um desses marinheiros pega a saca de compras de urn ou-

tro — trio se sabe se por acaso ou matreiramente. qai sur-

gem a discussao e a briga, na qual se enfrentaram ubm bra-

sileiro pernambucano e•um espanhol.52

Em contrapartida a estes 14 casos mencionados de

brigas entre brasileiros e estrangeiros em situasfies ligadas

a competiedo pela sobrevivencia, temos apenas cinco casos

de conflitos envolvendo apenas imigrantes e três envolVen-

do apenas brasileiros em situaeOes semelhantes. Os proces-

sos que relatam conflitos entre imigrantes mostrain as re-

des intimas de solidariedade e ajuda maitua 'gale estes imi-

grantes teciam entre si. Ao mesmo tempo, (des revelam que

a mesma situacio de petniria que reforeava esras redes de

solidariedade entre patricios impunha tambem certos limi-

tes a essas prâticas de ajuda anima, pois a necessidade de

competir pela obtencao dos meios de sobrevivéncia obs-

curecia algumas vezes os lacos de solidariedade na Tonal.

De qualquer forma, e apesar de a documentaca'o analisada

ser especializada em violencia, o que mais ressalta no con-

junto é o carter predominantemente solid,irio das rarefies

entre imigrantes de mesma nacionalidade.

Uma boa parte do comercio da cidade do Rio siR Ja-

neiro no inicio do seculo XX era realizada por ambulances.

Ao descrever a atividade dos ambulantes no period°, Luiz

Edmundo pinta em cores vivas uma atividadefrenetia; corn

homens e mulheres indo e vindo a gritar "histericos pre-

geres"." A descricâo deste cronisra sugere tambem clue ha-

via no comercio ambulante uma certa tendencia de grupos

104

de uma mesma nacionalidade em se dedicar a urn ramo se-

melhante dentro dessa atividade. Assim e, por exemplo, que

os italianos aparecem como vendedores de peixe ou de jor-

nal, os turcos e turcas sac) vendedores de fOsforos, espe-

lhinhos, tesouras, botOes e outran miudezas. Os portugue-

ses, muito numerosos, deserriPenhavam funcdes mais varia-

das, aparecendo como leiteiros, vendedores de frutas, baca-

lhau etc. Alern disso, Luiz Edmund°, ferrenho inimigo dos

portugueses, a quern responsabilizava pelo "atraso national",

afirma que estes dominavam o pequeno comercio nao am-

bulante da cidade, estando estabelecidos em "mercearias,

padarias e quitandas". 54 Quanto aos brasileiros, ha a esperada

referência a baiana "do cuscuz, da pamonha, do amendoim

e da cocada", aos "moleques vendedores de biscoitos e debalas" e aos pretos vendedores de sorvete. Finalmente, cabe

assinalar que, as vezes, os ambulantes de uma mesma nacio-

nalidade se aglomeravam numa determinada area da cidade,

como, por exemplo, os imigrantes sirios e libaneses — cha-

mados indistintamente de turcos — que ja naquela epoca se

localizavam em gran& rainier° ao longo da Rua Senhor dos

Passos e adjacencias.

Assim, Miguel Abrahao, sirio, de 18 anon, solteiro,

vendedor ambulante, narra o conflito a que assistiu entre

dois outros vendedores ambulantes, seus patricios:

[...] que anteontem as cinco horas e meia da tardemais ou menos estando no largo da Se em frente aigreja viu [...] o menor Salornio Elias vendedor ambu-lante de fasforos e cigarros vendendo a urn individuoe nesse [ilegivel] apareceu urn seu compatriota de no-me Elias Iunes o qual teve forte discussdo corn Sa-lomdo; que este rerirou-se ern direcao a rua Uruguaia-na sendo perseguido por Elias que ai vendo-o vender

105

cigarros e fasforos a urn outro individuo, levantou dopau que consigo trazia dando uma pancada na cabeca,lado esquerdo, de Salmi() produzindo-lhe urn "galo",passando-se este fato naquela rua entre a do Hospicio•e Alfandega em frente a uma padaria afi existence; queSalon-110 com a pancada foi por terra perdendo quaseos sentidos ficando corn fortes dores na cabeca e per-turbado; que ao chegar em casa foi Salomäo para oleito, vomitando muito e perdendo a fala, sendo en-

)tan socorrido por diversos medicos entre des o Dr.Olympio da Fonseca; que Salomão apesar dos socorrosprestados veio a falecer ontem as sete horas da noitede comocäo cerebral [...].55

Tonto o acusado quando o ofendido neste episOclio ti-

nhorn apenas 15 anos de idade. Os iversos depoimentos de

imigrantes sirios no processo mostram a mobilizacio dos

patricios que eram vizinhos da familia do "compatriota en-

fermo" para prestar-lhe auxilio e mostrar solidariedade. To-

dos sio uninimes em identificar a origem do conflito na

concorrencia entre os jovens pelo monowilio do ponto-de-

venda no qual trabalhavam. Outro fato interessante e o

duelo que se trava entre os agentes juridicos: o delegado,

ao redigir a formacio de culpa, defende a tese da "futilida-

de" da agressio, "oriunda da venda de uma pequena caixa

de fasforos" e cometida por urn "birbaro"; o advogado do

/eu contra-argumenta que näo houve "motivo frith", pois o

reu e a vitima pretendiam "ter o exclusivo da venda no local

em que se deu o fato" — para ele, o ocorrido foi uma "fatali-

dade". Ao defender a tese da futilidade da agressio, o dele-

gado esti cumprindo o seu papel, que e o de tentar "produ-

zir" o criminoso por meio de uma certa interpretacio ou

leitura dos atos cometidos pelos contendores durante o

confronto. 0 advogado de defesa reconhece no epis6dio uma

106

situacao clara em que individuos trocam acusacOes e se agri-

dem corn o firme propOsito de garantir urn espaco que Ihes

permita a sobrevivencia. Contudo, ele concebe esta situa-

cao nab como o produto concreto de determinacees sociais

mais amplas, mas sim como uma "fatalidade" — urn aciden-

te ou urn capricho de urn destino ign6bil. Neste caso, por-

tanto, ent que temos total concordancia entre as testemu-

nhas quanto aos atos e as motivacOes dos contendores, po-

demos discernir duas leituras divergentes destes atos, pro-

postas a partir dos diferentes papas sociais desempenhados

pelos agentes juridicos no epis6dio.0 processo seguinte narra a briga entre dois vendedores

ambulances de nacionalidade portuguesa, Albertino Goncal-

ves, de 30 anos, casado, analfabeto, e Jose Antonio Vieira,

de 15 anos, solteiro, "assina o nome". 0 acusado Vieira conta

o ocorrido:

[...] que saiu da rua da Misericardia [...] na compa-nhia do portugues Albertino Gonsalves e de Marce-lino de tal e de Alvaro Joaquim Portela, corn o fim[de] comprarem uma carroca para vender frutas, narua de Sao Clemente [...]; que of chegando tratavamde fazer o negacio sendo que Albertino Gonsalves, ofe-receu mais do que ele acusado pela compra da carroca,motivo porque tiveram desde logo uma discussaodando-lhe Albertino tres bofetadas, motivo porque eleacusado lancando mao de uma pedra arremessou-acabeca de Albertino e logo disparou a correr L.1.56

Vemos ai, novamente, que os contendores competem

pela obtencdo de urn instrumento de trabalho que a essen-

tial para a sua sobrevivencia, ou seja, a carroca de frutas. A

anilise do processo em seu conjunto, no entanto, caracte-

riza bem a estreiteza dos locos de solidariedade entre os

107

imigrantes portugueses em questa°. Uma das testemunhas,

outro português vendedor de frutas, de 43 anos, conta que

o acusado Vieira, ao chegar de Portugal havia poucos me-

ses, hospedara-se em sua casa e resolvera iniciar sua villa na

nova terra tambem como vendedor ambulante de frutas e

hortalicas. Vieira trabalhava corn o filho desta testemunha,

"portando-se sempre corn a melhor correcao ja nos send-

cos que the eram encarregados, ja particularmente". A uniao

entre ester portugueses e evidenciada mais ainda pelo Fato

de que o prOprio ofendido pede para nao ir a cout; de

delito, pois nao queria incriminar o acusado, que era seu

amigo. Este caso, portanto, ilustra bem as possibilidades

que se abriam ao imigrante portugues que chegava ao Bra-

sil, pois podia contar corn a ajuda de outros patricios para

iniciar a vida. Esta vida nova, entretanto, podia ter vicis-

situdes imprevistas: o ofendido nao contou corn o atendi-

mento medico adequado, afirmando uma das testemunhas

que houve grande demora na Santa Casa, e acabou falecendo

devido ao ferimento recebido.

Foram localizados ainda dois casos de brigas entre por-

tugueses neste contexto Em urn deles, o acusado — que se

declarou desempregado — parece ter invadido o sitio doofendido para roubar e, sendo descoberto, lutou corn seuopositor e acabou por mats-lo. 57 Em outro processo, nao se

sabe bem o motivo da rivalidade entre dois portugueses,

ambos estivadores, mas durante a troca de provocacdes um

deles fica bastante aborrecido ao ser chamado de "vagabun-

do"." Finalmente, temos apenas urn caso de tentativa de

homiaidio entre imigrantes de nacionalidades diferentes, que

serve para ilustrar novamente os lacos de solidariedade exis-

tences entre imigrantes de mesma nacionalidade. A testemu-

nha Joao de Oliveira, espanhol, de 59 anos, vinvo, analfa-

108

beto, hortello, narra o conflito entre seu patricio Joaquim

Biosco, de 47 anos, solteiro, horWlao, e o portugues Manoel

Antonio, de 23 anos, casado, arialfabeto, carroceiro:

[...] que passava em frente a casa do senhor Manoeldos Prazeres a all viu o indivfduo Manoel Ant6nio con-versando corn a senhora do senhor Manoel dos Pra-zeres dizendo as seguintes palavras: que iria a casado espanhol Joaquim Biosco para mats-lo, visto tereste machucado urn seu animal, e que isso no passa-ria de hoje, s6 se ek nao pudesse; que a senhora deManoel dos Prazeres procurou dissuadi-lo de seusintentos, nada conseguindo, pordm, que o que decla-ra ouviu pelo interesse que a conversacio the desper-tara, tratando-se, como se tratava, de urn conhecidoseu; que despedindo-se da senhora referida dirigiu-sea casa de Joaquim Biosco, que fica pr6xima, a querninterpelou na porta da rua sobre a origem dos fe-rimentos que alegava apresentar urn burro de sua pro-priedade, que conduzia; que Joaquim Biosco ne-gando a autoria de tail ferimentos apenas informouque, mais de uma vez, teve ocasi5o de enxotar de suahorn animais que ali entravam, mas isto sem feri-los,que nests ocasido, dando por finda a discussào ManoelAnt6nio simulou retirar-se, dizendo ir queixar-se apolicia de Joaquim Biosco; que este nao dando impor-tancia ao caso encaminhou-se para o interior de suacasa, ao mesmo tempo que Manoel Antonio retroce-dendo disparou dois tiros de revolver contra Bioscoe fugiu, internando-se no maw prOximo [...]."

Neste conflito, ocorrido na freguesia de Santa Cruz,

vemos que os contendores se enfrentam por questeies que

envolvem diretamente seus meios de sobrevivencia em uma

freguesia rural: a pequena producao de alimentos — no caso,

a horn de Biosco — e um animal fundamental para o trans-

109

it

leiros pobres de cor que ja ai se encontravam e continua-

vam a afluir do interior do pais. Cria-se assim uma situa-

cao altamente competitiva para os membros da classe tra-

balhadora, pois o mercado de trabalho assalariaclo em for-

macao na cidade nao tern condicnes de absorver esta mao-

de-obra abundante. Na verdade, os donos do capital se

beneficiavam amplamente da existência deste exercit° de

reserva na capital da RepUblitca, que isso barateava bas-

tante o custo da forca de trabalho. Quanto aos populares,

tinham de conviver corn as agruras de urn futuro incerto,

baixos salarios, longas jornadas de trabalho e ardua corn-

peticao para conseguirem uma ocupacio como assalariados

da indtistria ou do comercio. Muitos optam, temporaria

ou definitivamente, por desempenharem atividades a mar-

gem desse mercado de trabalho em formacao, exercendo

atividades autOnomas que Ihes garantiam a sobrevivencia.

Por exemplo, o corn6rcio ambulante, filho mais da neces-

sidade e da tradicao do que da opcao desses individuos,

floresce na cidade e dribla corn maestria a repressao que the

e imposta pelo "progressismo" equivoco de alto custo so-

cial das elites, tao bem representado pela ansia demolidora

— mas dita "civilizadora" -- do prefeito Pereira Passos,

como veremos corn mais detalhes logo adiante.

Mas mesmo entre os membros da classe trabalhadora,

que sofreu como um todo os resultados concretos dessa tan-

sicao para a ordem capitalista c a ideologia do progresso que

a acompanhava, houve vencedores e perdedores. Como vi-

mos, na pratica cotidiana da vida, tal como se manifesta nos

conflitos microssociais recuperados por mis, a competicao

pela sobrevivencia e pela ascensao social entre os populares

tendia a colocar em campos opostos de luta imigrantes e bra-

sileiros pobres, especialmente os de cor. Que estas tensOes

112

tivessem que se exprithir desta forma precisa, e nao de qual-,quer outra, parece ser em grande parte o resultado das tra-

dicionais contradicOes senhor-patrao branco versus escra-

vo-empregado negro, e colonizador-explorador portugues

versus colonizado-explorado brasileiro que vinham dando a

6:mica do processo histOrico da cidade do Rio de Janeiro havia

seculos. Deste confronto, reativado no periodo pOs-Abolicao

atraves da chegada macica de imigrantes, especialmente por-

tugueses, a cidade, resultou a recriacao ou a continuacao em

urn novo contexto da subordinacao social do negro brasi-

leiro. A documentacao coligida e analisada ate aqui, assim

como parte do que ainda vira a seguir, permite-nos aventurar

hipOteses sobre o porqué deste fato

Primeiramente, ha o fato Obvio de que havia uma clara

predisposicao por parte dos membros das classes dorninan-

tes em pensar o negro como urn mau trabalhador e em re-

conhecer no imigrante um agente capaz de acelerar a tran-

sicao para a ordem capitalista. Em termos praticos, isso sig-

nificava quc os individuos que tinham o poder de gerar

empregos tendiam a exercer praticas discriminatOrias contra

as brasileiros de cor quando da contratacao de seus empre-

gados. 0 forte preconceito contra o negro se combinava

na epoca corn a obsessao das elites em promover o "pro-

gresso" do pais. Uma das formas de promover este "progres-

so" era tentar "branquear" a populacao nacional. A tese do

branqueamento tinha como suporte basic° a ideia da supe-

rioridade da raga branca e postulava que corn a miscigena-

cio constante a rata negra acabaria por desaparecer do pals,

nielhorando assim a nossa "rata" e eliminando urn dos prin-

cipais entraves ao progresso nacional — a presenca de um

grande contingente de populacao de cor, pessoas perten-

ccntes a uma rata degenerada. 63 0 paroxismo desses senti-

113

mentos negativos em relacao ao negro dal uma ideia exata

das dificuldades que ele tinha de enfrentar para conseguir

uma colocacdo como assalariado em estabelecimentos co-

merciais e industriais dominados por brancos.

Existia ainda, no caso da cidade do Rio de Janeiro, um

outro fator de complicacão para o negro: alem de branco,

era grande a probabilidade de ele ter de se defrontar corn

urn empregador estrangeiro, na maioria das vezes portu-

gues. Com efeito, os portugueses dominavam grande parte

da atividade comercial e de servicos da cidade e mostravam

uma acentuada preferencia por seus patricios quattdo da

contratacao de empregados." E verdade que a atitude das

classes dominantes em relacao ao portugues era em geral

ambigua, e Luiz Edmundo, por exemplo, chega a sugerir

que eles eram os "autores do atraso nacional". 65 Esta atitu-

de negativa em relacao ao portugues, entretanto, era rela-

tivizada pelo fato de que dentro das prOprias elites parecia

haver urn minter° considerivel de abastados comerciantes

portugueses. Entre os populares, os portugueses carrega-

yarn, sem dtivida, o estigma de serem avarentos e explora-

dores, o que na verdade apenas refletia a situacao real de

predominancia portuguesa no pequeno comercio da cida-

de. Ern suma, os brasileiros pobres de cor se viam pratica-

mente privados da possihilidade de conseguir uma coloca-

cao como assalariados numa das areas mais dinamicas da

economia da cidade — o comercio.

Patrao e empregado

A imagem da relacao patrao–empregado gerelmente

veiculada pelas classes dominantes brasileiras na Reptibli-

114

ca Velha era de que esta relacdo se assemelhava em muitos

aspectos a relacao entre pais e filhos. 0 patrao era uma

especie de "juiz domestico" que procurava guiar e aconse-

lhar o trabalhador, que, em troca, devia realizar suas tare-

fas com dedicacio e respeitar seu patrio." Esta imagem

ideal da relacáo patrao–empregado tern urn objetivo

de controle social, procurando esvaziar o potencial de con-

flito inerente a uma relacio baseada fundamentalmente na

desigualdade entre os individuos que dela participam.

Uma questa() importante a saber ate que ponto esse

paternalismo na relacao patrao–empregado é realmente

compativel corn relacOes de producio do tipo capitalista.

Procurarei argumentar nesta parte que, no contexto da tran-

sicio para a ordem capitalista na cidade do Rio de Janeiro

na RepUblica Velha, a imagem paternalista da relacio pa-

trao–empregado funcionou eficazmente como elemento

mitigador das tensOes entre patrOes e empregados, pelo

menos ate o final da primeira decada do secuto XX. Ressal-

te-se aqui que a documentacio coligida privilegia os pe-

quenos e medios empreendimentos econOmicos — sejam

des agricolas, comerciais ou industriais nao versando

sobre a relacio patrao–empregado em empreendimentos de

maior vulto, como as grandes incistrias, por exemplo.67

Ha diferencas no conteUdo do paternalismo na rela-

cab patrao–empregado dependendo do tipo de atividade

econOmica na qual se realiza essa relacao. Assim, comece-

mos por analisar dois processes provenientes das fregue-

sias rurais da cidade e que envolvem diversos lavradores.

Benjamim Marques Seixas, de 22 anos, solteiro, portugues,

analfabeto, conta a briga que teve corn o pardo Joao de tab

115

[...] que hoje as nove horas da noire mais ou menosde declarante foi a uma venda da vizinhanca e encos-tou-se ao baled(); que na dita venda se achavam Do-mingos Manoel da Rocha e urn Joao de tal, ambosde cor parda, e este, papa implicar corn o declaran-te, disse-Ihe que se desencostasse, ao que o declarantenab deu resposta alguma e retirou-se para dentro doterreno da chicara em que mora; que dal a momen-tos entraram os ditos Domingos e Joao e aproxi-maram-se do respondente; que ern seguida, o mes-mo Domingos comecou a provoca-lo insultando-ocorn palavras; que em seguida, Joao tambem insul-tou-o, e sem que o declarante desse o menor moti-vo, o mesmo Joao, armado de urn cacete, corn eledeu-lhe duas cacetadas que depois de ferido orespondente correu para o interior da casa onde seachava seu patrao. Manoel dos Santos festejando SaoManoel corn diversos amigos, e referindo-lhe o su-cedido em altos gritos foi logo socorrido pelo ditoseu patrao que saiu imediatamente em demanda docriminoso, e chegando ao sitio onde tivera lugar ofato referido, nao mais foi encontrado o seu agressorpois tinha-se ja evadido, achando-se al somente Do-mingos a quern seu dito panic, intimou para vir darsuas declaracOes nesta delegacia.6a

Estamos novamente diante de urn conflito entre urnportugues e urn brasileiro pobre de cor. 0 depoimento deBenjamim, apesar de narrar urn conflito ocorrido no seu

period° de lazer, a muito titil para compreendermos as con--

dicOes de trabalho numa freguesia rural da cidade e o tipo

de relacao patrio–empregado vigente nesse contexto. Ben-

jamim residia no seu local de trabalho, ou seja, morava na

chicara de hortalicas cujo dono, seu patrao, era urn portu-

guês de 30 anos, solteiro e que sabia ler e escrever. 0 dono

da chicara estava festejando sao Manoel corn alguns "ami-

116

gos", e pelo depoimento das testemunhas nota-se que al-

guns destes "amigos" cram empregados seus na dita chica-

ra. Verrios, portanto, o convivio Intim° entre o patrao e

scus empregados que, no caso, tambem eram portugueses,

reforcando assim a nocao de que o imigrante, quando pa-

trao, discriminava abertamente o brasileiro pobre por oca-

siao da contratacao de seus empregados. Note-se tambem

que, nestas pequenas propriedades agrfcolas das freguesias

rurais da cidade, patrOes e empregados compartilhavam as

mesmas condicOes de vida e, ern alguns casos, como no

narrado acima, a identidade cultural e os lacos de solidarie-

dade nacional diminuf am a distancia social e congracavam

todos em torno de festejos e do objetivo comum de ganhar

a vida.Apesar do abrandamento da distancia social entre pa-

trao e empregado neste contexto, a situacdo como urn todo

revcste-se de um claro teor paternalista. Todos us portu-

gueses reunidos na casa de Manoel prontamente se uniram

em tomb do patricio ofendido e foram a delegacia denun-

ciar o ocorrido. E significativo, no entanto, o fato de Ben-

jamim se dirigir ao paträo "em altos gritos" pedindo sua

ajuda. 0 patrao é a primeira pessoa a quern o ofendido

recorre, e deste mesmo patrao ele espera protecao e solida-

riedade total neste moment() de infortrinio. 0 patrao, por

sua vez, corresponde as expectativas e age imediatamente

para redimir seu empregado das ofensas do pardo Joao de

tal. Em contraste corn o comportamento solidario dos

portugueses, o pardo Domingos — sem drivida ciente de

que se encontrava numa situacio ern que a relacio de for-

cos the era amplamente desfavoravel, podendo ser conside-

rado crimplice na pratica do delito — tentava livrar-se dos

apuros em que se achava incriminando ainda mais seu corn-

117

panheiro foragido, Joao de tal, que seria urn "desor leiro

conhecido e de mats instintos".

0 processo seguinte tambem mostra a convivencia

Intima entre patthes e empregados numa freguesia rural da

cidade, sendo que novamente urn empregado conta corn a

protecao do patrao num momento de apuros. Antonio

Fernandes, conhecido como Antonio Espanhol devido a sua

nacionalidade, de 40 anos, solteiro, analfabeto, lavrador,narra assim o ocorrido:

[...] , que em urn dos domingos do princfpio do Inescorrente ele declarante veio as seis horas da tardemais ou menos ao botequim de Tomas Espanhol si-tuado na estaclo do Cordovil, em companhia deFrancisco Cunha e Jose AntOnio Cunha, a fim de be-berem um pouco, quando ai estavam apareceulhesManoel Bonificio da Silva, conhecido por Manoel daPinga, que corn ele e seus companheiros tambembebera; que Manoel Bonificio da Silva é empregadodele declarante e de seus sOcios Jose da Cunha eFrancisco da Cunha; que passada uma hora mais oumenos apareceu no referido botequim Jose Ca-boclo, e tomou um calice de parati e ao entrar Ma-noel Bonifacio dirigira-Ihe a palavra, usando destafrase: Vai-te embora Jose, nao venhas comprometeraqui a ninguem, Jose retirou-se mas voltou pouco tem-po depois e ficando como que espiando na porn dobotequim, Manoel Bonifacio repetiu a frase j...]como Jose Caboclo continuasse espia-lo, Manoel Bo-nifacio saiu do botequim e correu perseguido por JoseCaboclo, e alcancado aquele por este, atracaram-se osdois [...] que continuando na luta, o seu sOcio Fran-cisco da Cunha interveio e os separou [...1.69

A primeira parte do depoimento de AntOnio Espanhol

relata uma cena na qual patrfies e empregado confraterni-

118

zam num botequim proximo a pequena rota na qual to-

dos trabalhavam. Neste interim, o empregado Manoel da

Pinga, natural do estado do Rio, 30 anos, solteiro, analfa-

beto, entra em conflito corn urn dos outros freqiientadores

do botequim. No depoimento acima, urn dos patthes de

Pinga procura colocar Canto a si como aos seus sOcios Fran-

cisco e Antonio Cunha, ambos portugueses, como simples

observadores do conflito, tendo Francisco tentado apenas

apartar a briga. As outras testemunhas, entretanto, contam

em sua maioria que os patrOes "tomaram as dores" de Pin-

ga, e o auxiliaram na agressio ao pardo Jose Caboclo. Este

apareceu morto no dia seguinte, estendido na linha do

trem, e a policia suspeitava que ele nao havia sido atrope-

lado pelo trem, mas sim colocado nos trilhos quando

era cadaver. Os tit parties e o empregado Pinga, portan-.

to, tornam-se suspeitos de terem comerido o crime e sao

processados por homicidio. Os quatro acusados se defen-

dem sem procurar incriminar uns aos outros, corn todos

afirmando que o faro de Caboclo ter sido pego pelo trem

nada tinha a ver corn a briga que havia ocorrido no bote-

quim horas antes. Os atropelamentos pelos trens da Leo-

poldina eram bastante comuns nessa e'poca, e os rêus aca-

baram impronunciados por falta de provas.

Os casos relatados sugerem, portanto, que nesses pe-

quenos empreendimento4 agricolas nas freguesias rurais da

cidade havia a possibilidade de uma relacao bastante estreita

entre patrio e empregado, o que diminula de certa forma

a distancia social entre Iles. Mesmo assim, o patrao tendia

a desempenhar o papel de protetor e orientador de seus

empregados, que sem dervida lhe retribufam a protecao corn

longas e penosas jornadas de trabalho. A relacao patra'o-

empregado nos pequenos empreendimentos econemicos

119

nas freguesias mais urbanizadasIda cidade era, em muitos

aspectos, semelhante a descrita nestes casos rurais; no en-

tanto, parece haver tambem alguns elementos novos.

A semelhanca essencial 6 que, tanto nos pequellos

empreendimentos rurais quanto nos urbanos, a atitude

paternalista dos parities tem o claro sentido de possibili-

tar o aumento da exploracao da forca de trabalho. Nas

pequenas casas comerciais do centro da cidade, por exem-

pt°, como vendas, padarias, botequins etc., era comum que

o patrao permitisse que o empregado residisse e se alimen-

tasse no prOprio local de trabalho. Em compensacao, ao

fazer isto, o empregado se obrigava tambem a cumprir lon-

gas jornadas de trabalho, pois muitos desses estabelecimen-

tos normalmente fechavam apenas por poucas horas durante

a noire. Aluisio Azevedo, em 0 cortifo, seu celebre relato

da vida das classes populares da cidade do Rio de Janeiro

no fim do seculo XIX, sugere um outro possivel significa-

do que os empregados desses pequenos estabelecimentos

comerciais deviam atribuir a atitude paternalista dos pa-

rities. Ele nos conta, logo no inicio do livro, como o per-

sonagem principal, o portugues Joao Roma°, iniciara a

escalada que o levaria ao enriquecimento. Joao trabalhara

dos 13 aos 25 anos como empregado de um vendeiro que

acabara fazendo fortuna em sua "suja e obscura taverna" no

bairro de Botafogo. Joao economizara bastante durante

esses anos, e o patrao, ao voltar para Portugal, deixou para

seu empregado como pagamento "nem so a venda corn o

que estava dentro, como ainda urn conto e quinhentos em

dinheiro"."

0 que a histOria de:Joao Roma° parece sugerir e que

a dedicacao e submissa'o ao patrao durantc tantos anos

justificavam-se, na verdade, pcla esperanca de ascensio so-

120

ciao que sua situacao the dava. Essa esperanca de ascensio

social era bastante justificavel em seu caso, pois tinha a pele

branca e era um inaigrante que trabalhava para seu patricio.

0 processo seguinte sugere mesmo que nos pequenos es-

tabelecimentos comerciais — onde predominava o paterna-

lism na relacao patrao–empregado de uma forma bastan-

te direta — o empregado se sentia quase que como urn seicio

de seu patrio e, pelo menos as vezes, identificava-se intei-

ramente coin os interesses dele. Essa identificacao de inte-

resses entre patrao e empregado aumentava ainda mais

quando ambos cram imigrantes e, muitas vezes, ate paren-

tes. Assim, Augusto Bastos, portugues, solteiro, de 21 anos,

trabalhava como caixeiro na venda de seu tio Jose Bastos,

tambem portugués, de 32 anos, solteiro. Ambos sabiana ler

e escrever, e Augusto conta na delegacia o caso de tentati-

va de homicidio no qual teria sido vitima:

[...] que anteontem cerca de dez horas da noite pou-co mais ou menus como de costume fechou as por-tal da casa de negacio onde a empregado e em se-guida veio para a porta da rua e encostou-se paratomar fresco a urn dos umbrais de pedra da porta, eviu em seguida Epaminondas Mirandela, residencena casa fronteira, em estado exaltado proferindoobscenidades as quais eram dirigidas ao scu patraoquc achava-se ausente por ji ter se retirado para asua residencia, dizendo nnais que havia de matartodos os galegos ai residences. Que cerca de onzehoras da noite do mesuno dia, Epaminondas Miran-dela, saindo pelos fundos da casa de sua resid2ncia,veio para a calcada da sua casa e dai de revOlver empunho continuou a proferir obscenidades e falar nonome de seu pacrão, Jose de Oliveira Bastos, e emseguida apontando o revOlver para ele depoente des-fechou dois tiros L.]."

121

0 acusado Epaminondas Mirandela era natural do es-

tado do Rio, tinha 30 anos, era casado, sabia ler e escrever

e possuia ulna venda bem praxima aquela de Jose Bassos. Os

dois negociantes tinham acirracla rivalidade devido a eon-

correncia comercial que travavam. Epaminondas nega a . acu-

sacao de que teria atirado em Augusto, dizendo que "tuck)

nao passa de uma farsa" e atrihuindo a queixa "a desvaneajosa

concorrencia que a sua casa de negticio faz a casa do queixo-

so, Canto assim que no domingo passado as portas do

dele depoente amanheceram sujas de fezes".

Ha diversos aspectos a ressaltar nesse eptsedio. Fri:1416-

r°, a competicao comercial entre os pequenos negociantes

se exprirne on se confunde corn as rivalidades nacionais

entre brasileiros e portugueses. Segundo algumas testemu-

nhas, Epaminondas diz mesmo que havia de agrecfir Os

portugueses, pois "que quern mata galegos nao tern crinae".

Este conflito pode ter sido rambem a expressio de teriSOes

raciais, pois Epaminondas e identificado como um incfiyi-

duo "de cor morena". Segundo, vemos que Epaminondas

nao faz distincão alguma quanto a seus Opositores: o nego-

ciante e o seu empregado sao tratados igualmente como setts

inimigos, que tendem apenas a ser identificados como

membros de urn conjunto mais amplo e numeroso de an-

tagonistas — os "galegos". Finalmente, a situactio configu-

rada na venda de Jose Bastos e tipica do Rio de Janeiro

daquela epoca, sendo uma presenca quase constante n•.tdo-

cumentacao analisada. Ai temos patrao e empregado por-

tugueses habitanclo o mesmo local em que trabalhatri. 0

empregado e considerado urn protegido do patrip, qua: no

caso — de forma nenhuma atipico — é tambem seu do. 0

preprio empregado e sobrinho, ao relatar a ocorrencia na

pretoria, informa-nos que e "caixeiro de seu do [...] tonian-

do interesse pelo negecio", o que mostra de forma inequi-

voca que a situacio em que se encontrava continha uma

possibilidade, ou ate mesmo uma promessa, de ascensfie

social.

Urn outro indica,dor de que o teor paternalista da re-

lac"ao patrao–empregado funcionava como eficiente miti-

gador de confutes é o pequeno niimero de casos de brigas

entre patrao e empregado localizados por nos. Em apenas

dois processes temos conflitos diretos entre patrao e em-

pregado. Assim, Manoel de Abreu, português, de 25 anos,

casado, alfaiate, analfaheto, narra a briga que teve corn seu

empregado Bernardo Francez, italiano, de 17 anos, soltei-

ro, analfabeto:

[...] que BernardoFrancez era seu empregado e on-tern saiu sem ter para tal fim pedido a necessarialicenca pelo que quando voltou fez-lhe as contas e odespediu, tendo Bernardo ficado a dever-lhe vinte equatro provenientes do rename de urn ter-no de roupa; que Bernardo saiu e as duas horas datarde voltou e pela janela comecou a insults-lo coinfrases ofensivas como sejam filho da pun, corno eoutros e apanhando de uma pedra a arremessou parasua casa indo ela quebrar o vidro da janela; que eledeclarante exasperou-se corn esse procedimento deBernardo tirando de sua gaveta o seu revolver "Bul-dog" e disparou dois tiros.72

0 empregado Bernardo da uma versdo diferente dos

fatos, afirmando que qle mesmo havia se despedido do

emprego e que a briga corn Manoel de Abreu se deu por-

que este havia estragado urn terno de sua propriedade,

cortando-o corn uma tesoura e arremessando-o na rua. A

defesa do reu neste processo exemplifica novamente como III

122 123

o discurso juridico desempenha o seu papel na construcao

ideolOgica da oposiclo born trabalhador/mau trabalhador

ou trabalhador/vadio. 0 advogado de defesa afirma que

Manoel "nao é um desocupado, was urn honesto operiPo

alfaiate, que procura tirar corn seu trabalho os meios de

subsistencia para sua familia". Temos af, portanto, a ten-

tativa de enquadrar o acusado na imagem ideal de homem

que e compativel corn a ordem capitalista emergente: Ma-

noel a urn born trabalhador, que cumpre sua funcao social

essencial — a de prover a subsistencia de sua familia. Ber-

nardo, por outro lado, aparece no discurso do advogado

de defesa como urn mau trabalhador, que havia "incorrido

em diversas faltas no seu trabalho", a ponto de provocar

criticas dos fregueses.No processo seguinte, temos um negociante portugués

que tern como empregados dois outros portugueses. 0

patrao Antonio da Man, de 28 anos, casado, sabendo ler

e escrever, conta como acabou levando um tiro de seu

empregado, o compatriota Firmino Rodrigues, de 23 anos,

solteiro, analfabeto:

que mandou o acusado levar um amarrado decinqUenta sacos a urn fregues, saindo o mesmo de suacasa pelas nove horas da manha. Que o acusado vol-tou desse servico que poderia ser feito ern duas ho-ras as quatro da tarde razao pela qual ele informanteadmoestou-o. Que em resposta disse o acusado queainda tinha vindo cedo, limitando-se ele informantea dizer: born, esta direito, esta a tua vontade. Que oacusado entrou para os lados da cozinha onde pOs-sea brincar corn seu companheiro Jose Afonso, enquan-to ele informante continuava na sala no servico desacos na presenca de Miguel. Que ouvindo ele infor-mante o acusado dizer: olha que eu atiro, levantou-se

124

para impedir a continuacio de tal brinquedo, nadapodendo fazer por ter recebido urn tiro no rosto [...IQue o acusado era seu empregado apenas ha oitodias e que anteriormente ja o fora tambem sendocerto que entre os dois nunca houve a menor desa-venca

Neste caso, vemos que Antonio tern dificuldade de

manter a disciplina de seus compatriotas e empregados

durante o servico. As textemunhas dividem-se entre duas

possiveis versOes dos fatos: alguns depoentes acham que a

agressao foi proposital, pois Firmino ficara ofendido corn

a repreensao que levara de seu panic.; outros depoentes,

porem, procuram inocentar Firmino, dizendo que a arma

havia disparado acidentalmente quando Firmino brincava

corn Jose Afonso, seu companheiro de trabalho e pâtricio.

0 mais interessante é que o pretrio depoimento do patrao

ofendido nao é peremptOrio a esse respeito: apesar de

admitir que havia repreendido seu empregado, AntOrli°

tcrmina por dizer que jamais havia tido desavenca corn

Firmino. Beneficiado pela dUvida, o reu e facilmente ab-

solvido no Oft

Parece, contudo, existir uma relacao direta entre maior

grau de hierarquizacao das posicOes no trabalho e a ocor-

rilncia de conflitos durante o servico, pelo mcnos em em-

preendimentos econOmicos de pequeno ou medio porte.

A maior hierarquizacao aumenta a distancia entre os pa-

p-6es e Os empregados mais subalternos, criando uma ca-

nvada intermediaria de funcionatios privilegiados que

been vista pelos funcionarios inferiores. Quando esta()

ausentes as mediacOes da hierarquia de comando, a menor

a distancia social entre patrao e empregado, o que tende a

despertar mcnores contradicOes entre ambos. 0 pequeno

125

negociante ou emPresario, nao rare recem-saido dos pro-

pries menos operarios, serve antes como um model@ de

ascensào social para cada um de seus empregaclos, clue o

respeitam pelo seu Exit° pessoal. 74 Convem, no entanto, nä°

idealizar o quadro: mesmo que a clocumentacao coligida

mostre que o empregado muitas vezes se identifica arra-

mente corn os interesses do patrfio nos pequenos empreen-

dimentos econOmicos, a situacao é em si contradReitia e

potencialmente conflitiva. No Ultimo processo connrita-

do, per exemplo, vimos que o patrao Antonio e o empre-

gado Firmino tem uma concepcao diferente acerca do tem-

po necessario para realizar a tarefa "de levar urn amarrado

de cinqUenta saws a um fregues". 0 patrao acha que Fir-

mino demorou-se demasiaclamente na tarefa, mas este re-

truca que "ainda tinha vindo cede". Este curio di lego

mostra bem os limites objetivos de uma possivel comuni-

dade de interesses entre pattio e empregado, mesmo no

ambito do pequeno empreendimento econOrn' ico.Dc qualquer forma, as evidencias indicam que o' au-

mento das mediacOes da hierarquia de comando enfraquece

de certa forma a eficacia da clominacao paternalista, acir-.

rando-se entao os conflitos entre os empregados e os fun-

cionarios intermediaries que representam, por via de regra,

os interesses do pattio. Assim, por exemplo, o portugués

Antonio Ferreira da Costa era o encarregado de urea co-

cheira onde tambem trabalhava urn outro portugués, de

nome Joaquim Pereira. Cerro dia, por volta das seis horas

da tarde, Joaquim voltava do service para a cocheira e, ao

aproximar-se, AntOnio the gritou para que nao soltasse

ainda os animals. Seguiu-se uma "grande questao" na qual

Joaquim agrediu Antonio. Em seu depoimento, Joaquim

se defende dizendo que o encarregado o havia maltratado,

126

implicando corn ele "a ponto de querer intervir em seu

servico".750 prOximo processo a bastante rico, envolvendo em

uma mesma situacao relacOes paternalistas entre o repre-

sentante do patrao, isto é, o gerente, e alguns empregados,

insubordinacao de outras empregados em relacao a auto-

ridade deste mesmo gerente e, como Rano de fundo do

conflito, as rivalidades nacionais entre brasileiros e portu-

gueses e tambem entre, imigrantes de nacionalidades dife-

rentes. A cena se passa na cocheira de uma empresa de trans-

porte de carnes verdes, a Rua Mariz e Barros. A cocheira

pertence a uns portugueses, que nao estao presentee na

ocasiao. La trabalhavam diversos empregados de naciona-

lidade portuguesa, mas havia tambem alguns brasileiros e

pelo menos urn espanhol. Havia uma consideravel hierar-

quizacao do comando, pois, alem dos patrOes ausentes,

temos ainda, pelo metros, um encarregado ou gerente e seu

assessor, ambos de nacionalidade portuguesa. 0 acusado

Maciel Rodrigues Veiga, espanhol, de 27 anos, solteiro,

sabendo ler e escrever, cocheiro, di a sua versao dos fates:

[...] quando estava a aparelhar bestas para mete-lasna carroca, sucedeu que uma delas the pisou o pe, eent5o ele deu nela uma pancada com urn pequeno pauque apanhou no chi(); que vendo isto o feitor No-gueira repreendendo [sic] dizendo-Ihe que nao que-ria que maltratasse os animals e que estava despe-dido do service, e chamando-o de filho da puta a umaobservacio que Ihe fez [...], respondeu que litho daputa era ele Nogueira; que ouvindo isto, Nogueiraavancou para ele armado de machado, circundadopor mail outras pessoas, que [...] agredido, fugiu di-zendo: "Esperem al que voces me pagam"; que foicasa, armou-se de um revolver de seu use e com ele

127

armado voltou 3 cocheira; que ai chegado, disse,dirigindo-se ao feitor Nogueira "agora estou aqui,se voc2s querem me matar, que venham"; que nesseato Domingos Antonio Nunes, conhecido por Pi-ca-Fumo [...] que estava a porta do escrithrio puxoudo revolver e deu no declarante um tiro que nao oatingiu; que recebendo o tiro, o declarante correupara o fundo da oficina [...] ouvindo um rapaz gri-tar que estava ferido [...]; que Domingos Pica-Fumonào gosta dele declarante e tern ma vontade contrade ha muito tempo, tendo tido tambem questeies pormotivos de servico corn o tenor Nogueira que repu-ta tambem seu desafeto.76

0 mais revelador neste processo e reparar como se

constituem os grupos em confronto. Apcnando a versa° do

espanhol Maciel, segundo a qual havia sido o portugues

Pica-Fumo, uma especie de assessor do gerente, o autor do

disparo que acabou por matar urn outro empregado da

cocheira, temos diversos cocheiros de nacionalidade brasi-

leira. Estes cocheiros dizem ainda que o animal que levara

a pancada de Maciel era "trefego e insubmisso" e que real-

mente diversos empregados seguiram o espanhol armados

de paus e vassouras. Para completar, afirmam que o acusa-

do era homem "trabalhador, sempre empregado e de bons

costumes". 0 outro grupo, encabecado pelo gerente e por

Pica-Fumo, era constituido piase exclusivamente por por-

tugueses e, segundo sua versa° dos fatos, o espanhol Maciel

havia espancado "brutalmente" o animal, teria xingado

Nogueira de "galego" e "filho da puta" e havia disparadodiversos tiros.

A situacao descrita contem em si varios dos antago-

nismos possfveis e que temos visto repetidamente nestes

microgrupos de trabalho que analisamos. Primeiro, temos

128

a oposicao ja amplamente vista entre os empregados bra-

sileiros e os portugueses. Os brasileiros apenarn em sua

mannia a versa() do acusado, o espanhol Maciel, enquanto

todos os portugueses apenam a versa° dada pelo gerente e

poi Pica-Fumo, seus compatriotas. Segundo, temos o an-,tagonismo entre alguns empregados — o espanhol e alguns

brasileiros — e os funcionarios intermediirios da hierar-

quia de comando na cocheira. 0 epis6dio relatado se ini-

cia quando o espanhol Maciel nao aceita a repreensio do

gerente e se insubordina. Finalmente, o advogado de defe-

sa parece ter percebido bun o sentido do jogo de forcas em

questa() ao contestar os depoimentos dos empregados por-

tu:guescs da cocheira, dizendo que eles cram "dependentes"

do gcrente e de Pica-Fumo. Coin isto, ele parece compreen-

der que os empregados portugueses gozavam de uma situa-

ciao privilegiada na dita cocheira, pois seus patr6es e os

funcionarios intermediarios cram seus compatriotas. 0

praprio fato de quc os funcionarios intermediarios cram

portugueses ja mostra que os patricios dos proprietarios da

cocheira estavam mais justificados em sonhar corn a ascen-

sao social em futuro prOximo e, por conseguinte, apoiavam

mais facilrnente o gcrente quando do confronto dente corn

um scu companheiro de trabalho.Em outro processo, vemos uma situaCio em que, num

conflito entre um funcionario intermediario, no caso urn

chefe de trefego de uma companhia de bondes, e urn fun-

cionerio subaltern, muitos empregados parecem coagidos

a apoiar a versa° do chefe de trafego corn receio de possi-

veis represalias. 0 chefe de trifego resolvera passar urn fis-

cal do quadro dos fiscais efetivos para a reserva. Dal para a

frente existem duas verseies sobre os acontecimentos: o

ihefe diz que o fiscal se revoltara e tentara assassins-lo a

129

t

tiros de revolver; o fiscal, por outro lado, diz que tudo nao

passava de invencao e que nem sequer estivera no local

mencionado como a cena do crime. As testemunhas, todos

portugueses e espanhOis, apOiarn a versa() do chefe, mas

de forma muito contundente. Em geral dizem que viram o

acusado no local do crime e que ouviram disparos, was

alguns deles afirmam que viram o acusado dar cis tiros con-.tra o ofendido. Contestando destas testemunhas, o

acusado diz que "a mesma deu seu depoimento por insi-

nuacio do ofendido, que sendo chefe do trafego stc

assim nao procedesse teria lido demitido perdendo o

gar". 0 juiz parece dar mais credit° a versao do fiscal, res-,saltando ate mesmo que fora o prOprio ofendido quem dera

a queixa, sendo que a 'policia nao havia sabido do ocor'ri-

do anteriormente. Justificando sua decisao de deciarar im-

procedente a demincia, o juiz escreve:

[...] considerando que as testemunhas inquiridas nosumario [...] sao dmpregados subalternos dada companhia e dependentes mais ou menos do su-posto ofendido; e que essas testemunhas merecerampor isso a contradita que o reu !hes opOs; que essastestemunhas, akin de serem suspeitas, sac) discordese incompletas em seus depoimentos julgo im-procedente a dernincia

E, para concluir, o juiz resolve infligir ao rem "casti-

gos moderados, como aqueles que infligem os pais aos fi-

lhos", 78 e, no caso, aplicava-se um sermao: que o reu seia

posto "em liberdade [...] depois de vir a minha preSenca a

fim de ser convenientemente admoestado".

130

Senhorio e inquilino

Nilo ha quem ignore que, corn as demon-ceies e reconstrucees que o aformoseamen-to da cidade exigiu, houve no Rio umaverdadeira "crise de habitacio". 0 mimerode casas habitaveis diminuiu em geral,porque a reconstrucio e morosa., 1116mdisso, diminuiu especialmente, e de modonotavel, o mimero de casas modestas, des-ti nadas a moradia da gene pobre — por-que, substituindo as ruas estreitas e hu-mildes em que havia predios pequenosharatos, rasgaram-se ruas largas e suntuo-sas, em que se edificaram palacetes de-gantes e taros. E que fizeram os proprie-tarios dos casebres e dos cochichOlos queas picaretas demolidoras pouparam? viramna agonia da genre pobre uma boa fontede renda, ,c aumentaram o preco dos seuspredios. E uma crise completa e terrivel:ha poucas casas para os humildes, e essasmesmas poucas casas alugam-se por umpreco que nao 6 acessivel ao que possuemos poucos favorecidos de fortuna, os queapenas podem ganhar ordenado exiguo ouminguado salad°.

OLAVO BILAC"

Para sobreviver, os nossos personagens nao precisam

apenas de uma atividade one 'hes garanta urn rendimento.

Eles precisam, tambem, de um teto. E, como nos explica

Bilac, o problema da moradia era seri° no Rio de Janeiro

no inicio do s6culo XX.

Os trechos a seguir constam das edicOes do Correio daManhei de 6 de janeiro e de 25 de novembro de 1906. Ambos

tecem comentarios a respeiro da administracao do prefeito

Pereira Passos (1902-1906) e procuram avaliar os resulta-

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