chalhoub, sidney - cidade febril cortiços0001

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1 CORTIÇOS UMA OPERAÇÃO DE GUERRA' Era o dia 26 de janeiro de 1893, por volta das seis horas da tarde, quando muita gente começou a se aglomerar diante da esta- lagem da rua Barão de São Félix, n 2 154. Tratava-se da entrada principal do Cabeça de Porco, o mais célebre cortiço carioca do período; um grande portal, em arcada; ornamentado com afigura de uma cabeça de porco, tinha atrás de si um corredor central e duas longas alas com mais de uma centena de casinhas. Além des- sa rua principal, havia algumas ramificações com mais moradias e várias coche iras. Há controvérsia quanto ao número de habitantes da estalagem: dizia-se que, em tempos áureos, o conjunto havia sido ocupado por cerca de 4 mil pessoas; naquela noite de janeiro, com toda uma ala do cortiço interditada havia cerca de um ano pela Inspetoria Geral de Higiene, a Gazeta de Notícias calculava em quatrocentos o número de moradores. Outros jornais da época, porém, afirmavam que 2 mil pessoas ainda habitavam o local," Seja como for, o que se anunciava na ocasião era um verda- deiro combate. Três dias antes os proprietários do cortiço haviam recebido uma intimação da Intendência Municipal para que provi- denciassem o despejo dos moradores, seguido da demolição ime- diata de todas as casinhas. A intimação não fora obedecida, eo prefeito Barata Ribeiro prometia dar cabo do cortiço à força. Às sete horas e trinta minutos da noite, uma tropa do primeiro bata- lhão de infantaria, comandada pelo tenente Santiago, invadiu a estalagem, proibindo o ingresso e a saída de qualquer pessoa. Pi- 15

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Page 1: CHALHOUB, Sidney - cidade febril cortiços0001

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CORTIÇOS

UMA OPERAÇÃO DE GUERRA'

Era o dia 26 de janeiro de 1893, por volta das seis horas datarde, quando muita gente começou a se aglomerar diante da esta-lagem da rua Barão de São Félix, n2 154. Tratava-se da entradaprincipal do Cabeça de Porco, o mais célebre cortiço carioca doperíodo; um grande portal, em arcada; ornamentado com afigurade uma cabeça de porco, tinha atrás de si um corredor central eduas longas alas com mais de uma centena de casinhas. Além des-sa rua principal, havia algumas ramificações com mais moradias evárias coche iras. Há controvérsia quanto ao número de habitantesda estalagem: dizia-se que, em tempos áureos, o conjunto haviasido ocupado por cerca de 4 mil pessoas; naquela noite de janeiro,com toda uma ala do cortiço interditada havia cerca de um anopela Inspetoria Geral de Higiene, a Gazeta de Notícias calculavaem quatrocentos o número de moradores. Outros jornais da época,porém, afirmavam que 2 mil pessoas ainda habitavam o local,"

Seja como for, o que se anunciava na ocasião era um verda-deiro combate. Três dias antes os proprietários do cortiço haviamrecebido uma intimação da Intendência Municipal para que provi-denciassem o despejo dos moradores, seguido da demolição ime-diata de todas as casinhas. A intimação não fora obedecida, e oprefeito Barata Ribeiro prometia dar cabo do cortiço à força. Àssete horas e trinta minutos da noite, uma tropa do primeiro bata-lhão de infantaria, comandada pelo tenente Santiago, invadiu aestalagem, proibindo o ingresso e a saída de qualquer pessoa. Pi-

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quetes de cavalaria policial se posicionaram nas ruas transversaisà Barão de São Félix, e outro grupo de policiais subiu o morro quehavia nos fundos da estalagem, fechando o cerco pela retaguarda.

Os jornais do dia seguinte se deleitaram em publicar a impres-. sionante lista de autoridades presentes à "decepação" do Cabeça de

Porco - como dizia o Jornal do Brazil. O prefeito Barata Ribeiro eo chefe de polícia da Capital Federal assumiram pessoalmente ocomando das operações; e uma numerosa equipe se fez presentepara auxiliá-los: o dr. Emídio Ribeiro, engenheiro municipal, o dr.Artur Pacheco, médico municipal, o dr. Frederico Froes, secretárioda Inspetoria Geral de Higiene, que compareceu acompanhado pelodelegado da Inspetoria no distrito, e mais o fiscal da freguesia, guardasfiscais, oficiais do exército, da armada, da brigada policial, e algunsintendentes (equivalentes aos atuais vereadores).

~ Consumado o cerco policial à estalagem, e posicionados ostécnicos e autoridades, surgiram mais de cem trabalhadores da In-tendência Municipal, adequadamente armados com picaretas emachados. Os empresários Carlos Sampaio e Vieira Souto, tam-bém presentes ao evento, providenciaram o comparecimento deoutros quarenta operários da Empresa de Melhoramentos do Bra-sil, para auxiliarem no trabalho de destruição. Finalmente, um gru-po de bombeiros, com suas competentes mangueiras, se apresen-tou para irrigar os terrenos e as casas, aplacando assim as densasnuvens de poeira que começavam a se levantar.

G O Cabeça de Porco - assim como os cortiços do centro doRio em geral - era tido pelas autoridades da época como um"valhacouto de desordeiros". Diante de tamanho aparato repressi-vo, todavia, não parece ter havido nenhuma resistência mais sériapor parte dos moradores à ocupação da estalagem. De qualquerforma, segundo o relato da Gazeta de Notícias, ocorreram algumassurpresas. Os esforços se concentraram primeiramente na ala es-querda da estalagem, a que estaria-supostamente desabitada haviacerca de um ano. Os trabalhadores começavam a destelhar as casasquando saíram de algumas delas crianças e mulheres carregandomóveis, colchões e tudo o mais que conseguiam retirar a tempo.Terminada a demolição da ala esquerda, os trabalhadores passa-ram a se ocupar da ala direita, em cujas casinhas ainda havia

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sabidamente moradores. Várias famílias se recusavam a sair, seretirando quando os escombros começavam a chover sobre suascabeças. Mulheres e homens que saíam daqueles quartos "estreitose infectos" iam às autoridades implorar que "os deixassemperma-necer ali por mais 24 horas". Os apelos foram inúteis, e os morado-re~ se empenharam então em salvar suas camas, cadeiras e outrosobjetos de uso. De acordo com a Gazeta, porém, "muitos móveisnão foram a tempo retirados e ficaram sob o entulho". Os traba-lhos de demolição prosseguiram pela madrugada, sempre acompa-nhados pelo prefeito Barata. Na manhã seguinte, já não mais exis-

~ tia a célebre estalagem Cabeça de Porco., O destino dos moradores despejados é ignorado, mas Lilian

Fessler Vaz, autora do melhor e mais completo estudo sobre a his-tória dos cortiços do Rio, levantou recentemente uma hipótese bas-tante plausível. QJ2ref~ito B2!ata, nU!fl~~~~tp.(.U:9mRa.!!t~ge~enerosid~_ ...,)n!IDsiQJJ~~JaçyLty:,.ig~l!t~Qºr~qlli;!Jla,bitªy~ aill1~e.!:~~ilJ!Q,,",ª_Jirª-<!ª~,Qª~._r.Wl9~ir~..~_Jwdia1}1_ ser_,ªlKQ.veitadas~2~~~~.~~!!.s!!2:!Yões.De posse do mater~~ª" erg@LI.!~.JJl~!lgsE.asÍJ:!!lasprecá,ܪ_s>-a1guns",mºra..dQf..es...de.Yen:Uer.J)ubidQ_Q_.mQg~.que e){:J.~tial,áJJJes.m():.,pm:::detrá:s:dª:es:ta1agem.JlmJ:r~çho..d.Q..gi!omQrro,j.áp-~~çiª ª!é..QEY..lli!dQ_Q.Q!~窧.eJ2t~,,-~~p"~IQmeI)52~~~_1as,m:QRrietªfÍ,ªs..do ,,.Çab~.ça.4eY.m:G,(LpO.ssuí;UQ!~~Jlf!..911~lasencostas,'lliiiti~a;;·~;§.~li~!~~:êAt~i,~!.ii$Úl~~S~gÚrrcll!f!fu~~··'p2.lios-?p6mais tarc!~~!1l1ª97 •.JºiJllstamente.J!~s.§.~.lQ~~L9~~~~~.f<.>~'!Jlle~~a-belecer com a devida autorização dos chefes militares, os solda--'- ...•• '....,...- ~_-' .'_._ .._., __ 'o ._;":, .. ...L •• .: ,.- •••.••••• :•. _;r.~. ., . ." "'.' .•..•...•:'-" •...•...,..,......•.. -'.' ".' , •..••;••. ..-'.-..... ....:..,:..,..', •.•'_ .'" ,

@"§'J~gressosda campanhade Canlld()s. Qlyg<I,Tl?ª~SOU então a serchamad(;de-;z-ii;~rro da F~Té~'jX'Jestruição do Cabeça de Porco;n-cllcou'o-útiéi~-d~~fi~~d~~uma -~;~, pois dramatizou, como ®nhum outro evento, o processo em alldamento de erradicação dos

~ços cariocas. Nos dias que se seguiram, o prefeito da CapitalFederal foi calorosamente aclamado pela imprensa - ao varrer dmapa aquela "sujeira", ele havia prestado à cidade "serviçoinolvidáveis". Çom efeito, trata-se de algo inesquecível: nem bemê..eanunciava o fim da era dQs cortiços, e a cidade do Rio já entrava'_noséculo das favelas.

As repercussões da destruição do famoso cortiço na grandimprensa do período foram um espetáculo à parte. Na Revista

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lllustroda, o evento foi saudado com um humor asqueroso: o leitorlili servido de um prato com uma enorme cabeça de porco, de olhosentreabertos e fisionomia lacrimejante, e sobre a qual se achavali 111 , barata devidamente cascuda e repugnante. A reputação docortiço demolido e a atividade do inseto na cabeça do porco eramt '!> .rita em versinhos:

Era de ferro a cabeça,De tal poder infinitoQue, se bem nos pareça,Devia ser de granito.

No seu bojo secularDe forças devastadoras,Viviam sempre a bailarPunhos e metralhadoras

o Por isso viveu tranqüilaDos poderes temerosos,Como um'lol,iàic,io'ae filã'--'--' - -- ... 'Humilhando poderosos. _~_ ~.~ .:...._...

Mais eis que um dia a barata,-Deu-lhe -natelha almoçá-Ia; oo..o.. '0' •• 0_'

E assim foi, sem patarata,Roendo, até devorá-Ia! 4

HIII icral, as notícias sobre o episódio louvavam a decisão e a1111 '}-'I'1I1 do prefeito com alusões à mitologia greco-romana. Em es-lilu ollpúri'O bastante comum na imprensa do período, a Gazeta1IIlIIrdiglll'!\vao prefeito em Perseu, e o Cabeça de Porco em Cabeçadi' Medusu: a sim, ficamos informados de que a ação do Barata foiI li 1'lIllljosa quanto a do filho de Júpiter, que viajou até as proximi-iludi' dos infernos para dar cabo de um monstro de cabeça enorme eI l\ll'k,j,tl d serpentes, temido pelos próprios imortais. Já no Jornal'/tI ttmztl, havia receio de que a estalagem fosse como "uma hidra

1i 1i de que nos fala a mitologia". A hidra era uma serpente deI1l1lttiplllS.abeças, cujo hálito venenoso matava todos os que dela se'I"OX muvurn. Se cortadas, essas cabeças tinham a propriedade de

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renascer. Ou seja, o Jornal do Brazil parecia temer que o Cabeça dePorco pudesse ressurgir. Na mitologia, a derrota da hidra foi um dostrabalhos de Hércules. A moral da história do JB é que Barata Ribei-ro, homem pequeno e magricela, devia ser um Hércules dos "novostempos", e sua missão era purificar a cidade, livrando-a definitiva-mente daquele "mundo de imundície".

Esta narrativa da destruição do mais famoso cortiço cariocado século XIX e suas repercussões nos abrem um leque bastanteamplo de perguntas/É dificil entender o porquê de o Cabeça dePorco ter sido demolido de forma tão abrupta e violenta, e sem queprovidência alguma fosse tomada para acomodar as centenas demoradores envolvidos/Se nos detivermos apenas nos lances doespetáculo em si, é impossível perceber o sentido de tamanha de-monstração de força, de capacidade de intimidação e, mais funda-mental ainda, não se encontra a explicação para tanto ódio de clas-se. Os atos de Barata Ribeiro não surpreendem muito, pois esta foiuma personagem que, valendo-se do apadrinhamento do todo-po-deroso Floriano Peixoto, agiu freqüentemente como um déspotadurante o período no qual esteve à frente da administração da cida-de. Mas e a aclamação da imprensa, com suas metáforas de guerrae de masculinidade, e seu regozijo na eliminação de um "outro"tão unanimemente indesejado?

O que mais impressiona no episódio do Cabeça de Porco é suatorturante contemporaneidade. Intervenções violentas das autorida-des constituídas no cotidiano dos habitaniê'S da cidade ~. todãSàsªLep;ª~Q~.$~olJQ..{u1Iii.wjy,çi~á~º-"~Qj~··~;]i!gê:;S:()J!l~:p~scentros urbanos brasileiros. Mas absolutamente não foi sempre as-~~,. e;;~ 'tr~diçã~'f;T~lgum dia inventada, ela também tem a suahistória. O episódio da destmjção do Cabeça de porco se tran~-mou num dos marcos iniciais, num dos mitos de ori em smo, de

orma e conceber a g~Q~ .diferenças sociais na cida-de. Vamos 10cãIízar aqui dois pontos fundamentais dessa forma delidar com a diversidade urbana. O primeiro é a construção da noçãode que "classes pobres" e "classes perigosas" - para usar a termi-nologia do século XIX - são duas expressões que denotam, que des-crevem basicamente a mesma "realidade". O segundo refere-se aosurgimento da idéia de que uma cidade pode ser apenas "administra-

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:]1 da", isto é, gerida de acordo com critérios unicamente técnicos oucientíficos: trata-se da crença de que haveria uma racionalidadeextrinseca às desigualdades sociais urbanas, e que deveria nortearentão a condução não-política, "competente", "eficiente",das polí-ticas públicas. Essas duas crenças, combinadas, têm contribuídomuito, em nossa história, para a inibição do exercício da cidadania,quando não para o genocídio mesmo de cidadãos.

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).;1.!

~SSES POllI?Es., CLASSES PERIGOSAS

A expressão "classes perigosas" parece ter surgido na primei-ra metade do século XIX. A escritora inglesa Mary Carpenter, porexemplo, em estudo da década de 1840 sobre criminal idade e "in-fância culpada" - o termo do século XIX para os nossos "meninosde rua"~/, utiliza a expressão claramente no sentido de um gmpo.sociaHgrmado à margem da ~ociedªd~ civil. Para Mary Carpenter,as cl'!§:ses petigos~ eram ~ollstituídas peJas pesso~ que já hcu-ves-sem passado pela 12risão. ou as que, mesmo não tendo siGO pre-

~s, haviam o tado o~ obta a rática de furtos e não do trabalh . Em suma, a expres-são é utilizada aqui de forma bastante restrita-referindo-se apenasaos indivíduos que já haviam abertamente escolhido Ul}1aestraté-gia de sobrevivência que os colocava à margem da Ie.V

Vamos encontrar o conceito de classes perigosas como umdos eixos de um importante debate parlamentar ocorrido na Câ-mara dos Deputados do Império do Brasil nos meses que se se-guiram à lei de abolição da escravidão, em maio de 1888. Preo-cupados com as conseqüências da abolição para a organizaçãodo trabalho, o que estava em pauta na ocasião era um projeto delei sobre a repressão à ociosidade. Nossos parlamentares, ávidosleitores de compêndios europeus, irão utilizar como fonte nessaquestão alguns autores franceses, cuja definição de classes peri-gosas parecia vir mais ao encontro de suas preocupações. Elesrecorrem com freqüência, por exemplo, a M. A. Frégier, um altofuncionário da polícia de Paris que, baseando-se na análise deinquéritos e estatísticas policiais, escreveu um livro influente,

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publicado em 1840, sobre "as classes perigosas da população nagrandes cidades". 6

O objetivo declarado de Frégier era produzir uma descriçãodetalhada de todos os tipos de "malfeitores" que agiam nas ruas dePans. Frégier chega efetivamente a recuperar muito do mundo dasprostitutas, dos ladrões e dos espertalhões de todo tipo que pare-ciam infestar a velha Paris; o fato, porém, é que, apesar de seuempenho e cuidado na análise das estatísticas, ele não foi capaz deresolver um problema decisivo: seu estudo sobre os "malfeitores"acabou resultando numa ampla descrição das condições de vida ,\d~s pobres parisienses e~ ~eral, e ele ~alhou na tentativa de deter- IIminar com qualquer precisao a fronteira entre as "classes perigo- ~sas" e as "classes pobres". \

Pois é exatamente onde Frégier empaca, onde ele não conse-gue extrair idéias claras e distintas de seus dados, que os nossosdeputados irão encontrar inspiração para o seu filosofar sobre aquestão do trabalho, da ociosidade e da criminalidade na socieda-de brasileira-A'corntssãoparlamentar encarregada de analisar oprojeto de lei sobre arepressão.à.ociosidade vai buscar os funda-mentos teóricos de sua guerra santa contra os vadios - tratava-sede uma questão de "salvação nacional" - citando Frégier:

, As classes pobres e viciosas, diz um criminalista notável, sempreforam e hão de ser sempre a mais abundante causa de todas as sortesde malfeitores: são elas que se designam mais propriamente sob otítulo de - classes perigosas -; pois quando mesmo o vício não éacompanhado pelo crime, só o fato de aliar-se à pobreza no mesmoindivíduo constitui um justo motivo de terror para a sociedade. Operigo social cresce e toma-se de mais a mais ameaçador, à medidaque o pobre deteriora a sua condição pelo vício e, o que é pior, pelaociosidade."

O trecho acima é uma babel de idéias - produzida por Frégiere alegremente encampada pela nossa comissão parlamentar. Note-se, inicialmente, que já estamos muito distantes da definição res-trita e bastante precisa de "classes perigosas" proposta por MaryCarpenter. De fato, a expressão ganha aqui uma abrangência inau-dita. O primeiro enigma a decifrar é se os nobres deputados, ao

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111 I 11111111 I íórrnula "classes pobres e viciosas", pensavam que as1'1111 I I "pohr 's" c "viciosas" significavam a mesma coisa; nesteI I li, lodll I) pobres seriam viciosos. Caso esses termos não apa-I ~1111 101110 sin nimo , ficaríamos coma possibilidade de termos"""11 •• pllhl S honestos, trabalhadores - e pobres viciosos-IIljtll'h 1\'" 'J'iHI11 membros potenciais das classes perigosas.

() d hlll li parlamentares não respondem à questão com ela-I 11. 111' ~ possrvcl perceber uma tendência: para os nobres depu-111 111 • t prln iipul virtude do bom cidadão é o gosto pelo trabalho,

I levu 11' - 'ssariamente ao hábito da poupança, que, por suaI. I 'V 'rl' m conforto para o cidadão. Desta forma, o indiví-

dtlll l\tll 11 o xmscgue acumular, que vive na pobreza, toma-seIIU d I11111Il'1I1 , suspeito de não ser um bom trabalhador. Finalmen-I. 1111I0 o maior vício possível em um ser humano é o não-1111111I1110, 10 .iosidade, segue-se que aos pobres falta a virtude so-

,I 111' S 'n .ial; em cidadãos nos quais não abunda a virtude,1111 \I víci s, e logo, dada a expressão "classes pobres e vi-

II I • , V 'mos que as palavras~'pnbr.es:~e_~viciosas~' .significam aIIU 111 I 'oisa r ra os parlamentares.

111111 v 'Z ometida essa abstração:õue-ssa-imprecísâo, na ori-'111 do ru -i cínio - abstração ou imprecisão porque os depu-

IlIdo ohviumcnte nãopodíam. en.contrardados_de realidade.que11111I1 uuentusscrn a asserçãode que todo trabalhador honesto ne-I 11i 111\ li!' escaparia à pobreza-. ' o resto se segue como que

I" uumhuenl ': s pobres carregam vícios, os vícios produzem osI 111111h'IIUI CS, os malfeitores são perigosos à sociedade; juntando os

I1 11111 da .adeia, temos a noção de que os pobres são, por defi-111\ 11,11 -ri ioso . Por conseguinte, conclui decididamente a comis-

li, li 11'1 .lu rsc pobres [...] são [as] que se designam mais propria-1111'111 - sol o título de - classes perigosas -". Por um lado, aIlIIltiHH. o parlamentar foi competente e chegou às suas conclusõesli 111 ló 'ica; por outro lado,ela tirou conclusões a respeito de coisa1\ nhuma, pois, como vimos, seu raciocínio se desenvolveu a par-111 d lima abstração, de um vazio; do nada.

Mas felizmente já se foram os tempos em que os historiadores11 (I ucr ditavam na possibilidade de as idéias também fazerem his-11'11 11. E infelizmente os historiadores hoje já descobriram que até

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idéias vagas, surgidas do nada e da confusão mental, fazem históriae, como não podia deixar de ser, fazem uma história da pior qualida-de. Assim é que a noção de que a pobreza de um indivíduo era fatosuficiente para torná-lo um malfeitor em potencial teve enormesconseqüências para a história subseqüente de nosso país. Este é, porexemplo, um dos fundamentos teóricos da estratégia de atuação. dapolícia nas grandes cidades brasileiras desde pelo menos as primei-ras décadas do século xx. A polícia age a partir do pressuposto dasuspeição generalizada, da premissa de que todo cidadão é suspeitode algUma coisa até prova em contrário ~?.iJ~gj.COlalguns cidadãõssão mais suspeitos~_o que outros. O romancista Lima Barreto, c~sua argúcia habitual, já descrevia a estratégia com precisão em Ce-mitério dos vivos, texto publicado em 1921:

A polícia, não sei como e por que, adquiriu a mania das generaliza-ções, e as mais infantis. Suspeita de todo o sujeito estrangeiro comnome arrevesado, assim os russos, polacos, romaicos são para ela for-çosamente cáftens; todo o cidadão de cor há de ser por força um ma-landro; e todos os loucos hão de ser por força furiosos e só transportá-veis em carros blindados."

A suspeita de' que os',~ê.t!;,;;·geiros; fossem cáftens parece algocircunscrito ao período his·tónco no qual Lima Barreto estáinse-rido, e a referência ao suplício dos loucos pode ser uma reminis-cência pessoal do romancista, já que ele próprio andou sendoconduzido ao hospício mais ou menos nessa época. Mas e a sus-peita de que "todo cidadão de cor" fosse necessariamente "ummalandro"?

N a verdade, o contexto histórico em que se deu a adoção do~o,n~eit~d~_"classes perigosas" no Brasil fez com que, desde oinicio, ~g~seJQJJm.ssem os.?_~eitos preferenciais. Na dis-cussão sobre a repressão à ociosidade em 1888, a pri~l dificul-dade dos deputados era imaginar como seria possível garantir aorganização do mundo do trabalho sem o recurso às políticas dedomínio características do cativeiro. Na escravidão, em última aná-lise, a responsabilidade de manter o produtor direto atrelado à pro-dução cabia a cada proprietário/senhor individualmente. Este or-ganizava as relações de trabalho em sua unidade produtiva através

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de uma combinação entre coerção explícita e medidas de proteçãoe "recompensas" patemalistas - uma combinação sempre arris-cada, aprendida no próprio exercício cotidiano da dominação. Coma desagregação da escravidão, e a conseqüente falência das práti-cas tradicionais, como garantir que os negros, agora libertos, sesujeitassem a trabalhar para a continuidade da acumulação de ri-quezas de seus senhores/patrões?

Nesse momento de incerteza em relacão ao que poderia 3COg.>

tecer,;pruneira myenção que permjtiu pensar a ~ganiz:il~ãe à~relações de trabalho em novos termos foi a "teoria" da su$eneraJjza~~ - que é, de fat~\!~~ia . €SS~ "classes-

' ....',.....perigosas". Já qu~ f1~o era mais possívelrr.!..~ter a pwdlJ~ãel'OTI~ ~ meio da propn§a~~do..trabalhaàO~!t~~'.~<.~;n~su~~~f,§.~ogenetªlji;;(j;~àam~Rt~ a inveft~ão~e.üiDa-

l~~v estrategta de remessa$? contmua forjlggs hmJtes da UIlUJade~ .. '.~ dutiva,Se não era maig..\k~ .. ' '. . .... '.'V ..

~ trabalh2z~d!!.l"'estava ªmp!lta&Jb.e,,ª~~.ilillidade,.de nãfi-,,€StaF

\:' regularment;--néMluele lugar. D~i,~p9..(,~.sooulo;"cle"a\.l o.:-'.r:...••".ê"~~~...--=--,..-_..,...~.....,...~.~. •

. questão da manutenção da "ordem" ser =.ercebIda comp al.gQ..~~êilcêméãé~~~~~.~ e si);; instjuli&:gS;S espçcíficas~ contrõTé-~ J20lícib :~~ei.r.~L~~i~~d~1.S~!1M:~S!~,Jrabalh@~etc. Nenhum desses elementos éifáva'no ceme da ..2.ljtiça~Àe4io.-:

mio dos tra a .a ores na escravidão;na v~9,ªºe,.até,.1'&;7..1~oexrstia~sequeraIgum regiSffõgêFãid~ado:.

-·'·Q§~~~JAWW'IID1.eitõsw~nÇj;Wrohém.4ec:v.idoàquilo que os ex-senhores e atuais patrões imaginavam ser o caráter

~tvri:h.io"S"'"e'gtessos do catIveiro. Ao discursar em apoio aoprojeto de repressãõ à oCiosidade, ~ deputado Mac-Dowell resu-miu bem a opinião dominante entre os parlamentares a respeitodos libertos:

Há o dever imperioso por parte do Estado de reprimir e opor umdique a todos os vícios que o liberto trouxe de seu antigo estado, eque não podia o efeito miraculoso de uma lei fazer desaparecer, por-que a lei não pode de um momento para outro transformar o que estána natureza.

[...] [A] lei produzirá os desejados efeitos compelindo-se a popu-lação ociosa ao trabalho honesto, minorando-se o efeito desastroso

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que fatalmente se prevê como conseqüência da libertação de umamassa enorme de escravos, atirada no meio da sociedade civilizada,escravos sem estímulos para o bem, sem educação, sem os sentimen-tos nobres que só pode adquirir uma população livre...9

De início, o deputado afirma algo que sugerimos há PO\)co:o "Estado" passa a iêr o "dever inipérioS"õW"aeagir màis dêçldiJã.-métftê=na'pôffircaãe~ãõsfiàbãTIiãdÕres:Em segui-

~ '~~_.' •..•• "_.- ••-.~ •.,-..:o" • ....,,..~+~_~...,•.:.:._..•,"'-~:.;.,'.._-~-,..,... __; __1",::',$ iA< _t. _ - .•• -. i!:!St: .41:E> -==--~"dà, 'encontramos novamente uma certa confusão de idéias~

~tên~~->~~~~~Ii~~~é!~:~t~~I2~~~··~~~.:~~~~~';:~1~i~~-1frov~~ao.~ o "f.ã.t9:"Q~Q,JJ~~~.PQSS;P.J.<!2.Lg~~~~~.,2,U~:~cio~" ---:-,rios~~.,dep!!~<!g9mostra-se inQ<fE!so,,":e!i.m~i!~ment~,aJd-

bui os tais vícios do~n$grº~.a "s<:!\!ant!go estado": as cOIldiçõ~L.)e vida ~'o ~ativeiro seriam ..as responsáveis pel~ suposto

. de'sprepãi'o aô-Sex:éscrãvospàfá'aVí4~e,ffi]li.~J;ãaafLôgóadüiri- ~'te, todavia, e aindanâmeft:i!i~f~as~; oR~laIIlent<lrargum~º~'!-.9º~ .â1ef-dê··r3:ae"híâii:r'nãÓiio.deria.mesmo..ter-abolido..os..YÍGiGS=<d0Sl~bertos, pois u~~'ici~ão pode trll1l;sf2.rmm:.~.QJme.~tá na namre--za~: N~':Stlfçasth~Q;;deRiitiilii1\.m.udQ.Y,.,ÇI;Jrªlllimtede.çOQY~sa' os~deitos" dos negros não se explicam a partir de Um determina-(Jõ'iatü' socIãr= a ~~:Y.r<r~Q;;~Qi~!P...Ji.~...§it!lltrn numcampoextrínseco à hJstóriã' =-a' "natur~b II1§}l!\l-ª!ll:-.seaqui, s~mdú-

~~-~_~_'~~ 'fM,.;_~ ..•...~~ ' _ ' ._-.;:-._.:.4-~~ • . ~~ ..••.•~ ;r .~~_ •._.....•'-,...•...~~._. ~....;..... __.~

.vida,- as famigeradas· teorias racistas, ue se tomariam mais i -fluentes nas déca as segyintes;...e.a.·COllseqüência.disso éque-es"defeitos" dos negros podem ser pensados como insupe.!.áv~!~,_._-~--- ~---,.-----. •.....•.•._---_.'---~-"~~'

~anõd:.:se·-ete-s;-ãSslni, membros potencialmente permanentes--" -----_._---~_ ..... '..~ãSs-es-~-ºs~s. - .$om estã l;eve análise do surgimento da noção de classes

"perigosas, já entendem~ em parte como foi possível ao poder_. públi~ agir com tanta violência ~ra o Cabeça de Pgrcol agld.e-le antro õe suspeitt)"s-:"'KêfestrUlçãodo cortiço carioca mais famo-

~-~'"'_. - - - -:----- - -_.' .

~ ..d.a~ nãQfÓl,Jimª~ iS~~J.~ slm um..e.vento nQJll.Q..ç~sistemático deperségmção;~s;e tipo de moradiaLo .gJle..Yi!YLa~~nsifc:ãri~o. õe~aeii~Tõlli~ri2s ..ll1e~~~,~~~~~a d~l-ª'1Qhmas~~.?~g~9: à,!~i,~le,.riaS~<?_~2.~Ilt,~".?~s_'p~~~!~~S,,~,cl~P:\SlW;-

$~".I.~.pu.bli~anas. E .ép.n~çJsp ª.QJ)lenº~_wxnç.~-ºlJilJ_!J~o...u.tro!?;i.~?~~r~: a~_::~~~!!.~~0~nt~~2.s~0!1~çg.~p.í?~~,~~co~~::~~o:,,!~i_s.1

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II I~ " oram ~im ort~.s.~!Hírio_g:UJ!!ª ..,Q.p...§Jl.~'s·.da

J('011' .outra a escravidão nas última's~~lé~c9,Àas-dQ.séculoXI.)(, Em111111 I pnlüv~as, a aeé~ãop~~íii~acl~_exeui~~:, ~;~~;~;p::~:l;';,~:'::,'~:~~;~~~ª::~~~

l)o!H docwnent~s que_relacion~.e~nosnlll'lIl vislumbrar a dimensão do problema na visão dos senhores e

\I pl' 'r>O~lO . Em 5 de maio de 1869, a coluna de "publicações aIlI'dldo" do Jornal do Commercio trazia uma carta dirigida ao che-I di' pol] ia da Corte: .

I' dint a S.Ex. mandar dar busca em vários cortiços da Corte, quest O transformando em asilo de escravos fugidos, em detrimento

ti H US P ssuidores pata jogos e outros atos imorais eprejudiciais.N 'rfl um grande serviço que prestará S.Ex. aos possuidores de escra-VII , IlIC com esperança recorrem ao zelo e justiça de S.Ex.1O

NI) undo docl1ll!entQ~_habitaçº-e..§. populares -=-.11palavra "cor-1 ,o" 1\ o .onst do texto, apesar de ser óbvia a alusão a este tipodI' III000udia - também aparecetrr'tmnrresermtferijos 'de escravosIlIgtdo., Mas há aqui outro aspecto talvez ainda mais desestru-1111 u1111 da es ravidão 1lTbill1,ª~b proli(exaçào. dos c.Qrtiç()~na ci<ia-I do Rio $0 deu a partir das décadas de 1850 e 186"0, e esteve

1I 1111 10 all~o do fluxo de imigrantes portugueses e ao crescr:=---111 I l uu número de alforrias obtidas pelos escravos. Além disso,

I' 11 (~(Immunto do documento que se segue, tomava-se cada vez111 I 1'011111111 qu os cativos conseguissem autorização de seus se-11111111' pnru que vivessem "sobre si", como se dizia na época. Ago-I I I 11 pI'úpri chefe de polícia da Corte quem endereça uma cor-li' pOlld n 'ia aos vereadores da Câmara Municipal:

, \\('relllria d Polícia da Corte, 19 de março de 1860

'IIIIION, Snrs,

":x illt nesta cidade um grande número de casas alugadas direta-IIH'nl 'l1 scravos, ou a pessoas livres, que parcialmente as sublocamI tI l'I'l\VOS.

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Os males resultantes de uma tal prática são notórios, ninguémignorando que essas casas, além de serem o valhacouto de escravosfugidos e malfeitores, e mesmo de ratoneiros livres, tomam-se ver-dadeiras espeluncas, onde predominam o vício, e a imoralidade bai-xo (sic) de mil formas diferentes.

Urgente seria, pois, reprimir severamente semelhante abuso, proi-bindo-se alugar, ou sublocar qualquer casa, ou parte dela a escravos,ainda mesmo munidos de autorização dos senhores para esse fim....1I

Em suma, segundo a autoridade policial, o problema docontrole social na cidade se agravava pelo fato de os própriossenhores freqüentemente autorizarem que seus cativos vives-sem "sobre si". Na verdade, oQ.~LRermi§~ªº-.~lmIa ~iY~r.§()b.Ie

~"er~.<l~.~~J>.e}~_q,~.~_o~~~~r_a.Y.2sd~_Ç9.!t~e eII!.P..enhavambas-tal}t~,Yiy~lon.g~_Q~.~a~a.d.~ ..senhor e!~~!D:~·~.aI1,~i~-;-d~'adqui-Ti! maior .autoI!9.l!li.al1:ls~iyt<ia4esprodutivas, e '~epresenúlvaainda apossibiljdadedeIevar umavida p~aticamen.i~_indiferen-çável em relação à população liYI~ dacidade. Para os senhores,este tipo de arraQ,jo er~uita..LY~S -vant<ijQSo, pois pe~itT~

--ª!:@nc~LiQI!]ais mais elevaQ.QS..ao.s...cªt.ivos~.ª-1.énuie_de.sub.rigá'-~s_dJ~.Sp_esas COIll.iL5.US1.entQ_dos_llegroS.Para os escravos: àmaior autonomia de moyimento.tinha ainda a vantagem adicio-nal de fa~ilit-ªfjº.rnadas e;XJras_º.<;uraballi~Lçºm.2.,_qQjeti~eameªlhª~_diI1heir02!:![I_cjenJ~p~~X9:_~9PEa.r:sua liberdad~·ã;~-~e-nhores.12 .' .. " -----_.- •• __ .__ .--

--crfãt~,porém, é que a multiplicação de situações nas quaisos escravos obtinham autorização para "viver sobre si" acabou alongo prazo, se tomando mais um impoitã:í1te' elemento desagre-gador da instituição da escravidão na Corte. Não é difícil enten-d.er a razão disso. Tradicionalmente, a escravidão sempre haviaSIdo considerada como uma relação de sujeição e dependênciapessoal; o escravo ficava sob a "sujeição dominical" do senhor,que também era o único a deter a prerrogativa de decidir a respei-to d~ eventual concessão de alforria ao cativo. Tal concepção dedommação tinha necessariamente como um de seus elementos ap.roximidade espacial do trabalhador em relação a seu proprietá-no. Por isso, quando se generalizou, na cidade, a prática de os

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-escravos viverem longe dos senhores, este fato introduziu certaambigüidade na definição "ortodoxa", por assim dizer, de cati-veiro.

Os escravos não deixaram de perceber que havia aí uma bre-cha. Em 1865, por exemplo, a escrava Júlia entrou na justiça com° intuito de obter a liberdade à sua senhora. Entre os vários moti-vos que arrolou para mostrar que fazia jus à alforria, a negra argu-mentou, com a devida apresentação de testemunhas, que moravahavia sete ou oito anos em cortiço no Catete, retirava seu sustento"de lavar roupas de alguns fregueses" e, além disso, que seus co-nhecidos consideravam-na como pessoa livre. Neste caso específi-co, a escrava perdeu a ação judicial, mas há outros exemplos emque alegações semelhantes parecem ter contribuído para quealforrias fossem concedidas na justiça, à revelia da vontade senho-rial."

Tudo isso, obviamente, faz sentido: se o cativeiro se defrnecomo uma relação de sujeição e dependência pessoal, é razoávelsupor que uma pessoa que tenha autonomia de decisão quanto àmoradia-e-aos-seus-meios de-sustento-não esteja S09 o domínio denenhum senhor. Toma-se claro, então, _que escravos vivendo "so-

Ibre si" contribuíssem~paraã-fáiêncIa- de significados sociais essen-

, ciais à continuidade ~a ins~i~ição da escravidão. Os negros pressio-; -~----navam-para.conseguir -o-direito de-morar-fera da casa dos-senhores,j! pois percebiam tal conquista como um passo, ao menos simbólico,

no caminho da liberdade.Neste contexto, a importância das habitações coletivas nas

últimas décadas da escravidão começa a se evidenciar: para escra-vos, assim como para libertos e negros livres em geral, as alterna-tivas viáveis de moradia na Corte, no período, eram cada vez maisos cortiços e as casas de cômodos. São vários os exemplos de es-cravos que moravam em cortiços, ou que tinham suas amásiasmorando em cortiços; além disso, encontram-se famílias de ex-escravos que conseguiam se reunir e passar a morar juntos em ha-bitações coletivas após a liberdade. Com freqüência, era nestashabitações que os escravos iam encontrar auxílios e solidariedadesdiversas para realizar o sonho de comprar a alforria a seus senho-res; e, é claro, misturar-se à população variada de um cortiço podia

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?r.ser um ótimo esconderijo, caso houvesse a opção pela fuga. Emsuma, o que estou querendo sugerir é que o tempo dos cortiços noRio foi também o tempo da intensificação das lutas dos negrospela liberdade, -e isto provavelmente teve a ver com a histeria dopoder público contra tais habitações e seus moradores;1

o SURGIMENTO DA IDEOLOGIA DA HIGIENE

./.~s classes pobres não passaram a ser vistas como classes pe-rigosas apenas porque poderiam oferecer problemas para a organi->zação do trabalho e a manutenção dakrdem pública. Os pobresofereciam também perigo de contágiovPor um lado, o próprio pe-rigo social representado pelos pobres aparecia no imaginário polí-tico brasileiro de frns do século XIX através da metáfora da doençacôntagiosa: s classes perigosas continuariam a se reproduzir en-

~uan o as crianças pobres permanecessem expostas aos vícios deseus pais. Assim, na própria discussão sobre a repressão à ociosi-dade, que temos citado, a estratégia de combate ao problema égeralmente apresentada como consistindo em duas etapas: maisimediatamente, cabia reprimir os supostos hábitos de não-trabalhodos adultos; a mais longo prazo, era necessário cuidar 9.~edl!'?~çãs>_dos menores.

Por outro lado, os pobres passaram a representar peri econtágio no sentido literal mesmo. Os intelectuais- édicograssavam nessa época como .!!!i~~rr.!~na putrefação, ou comoeconomistas em tempo de inflação: analisavam a "realidade", fa-ziam seus diagnósticos, prescreviam a cura, e estavam sempre ina-balavelmente convencidos de que só a sua receita poderia salvar opaciente. E houve então o diagnóstico de que os hábitos de mora-dia dos pobres eram nocivos à sociedade, e isto porque as habita-ções coletivas seriam focos de irradiacão de epidemias, além de,naturalmente, terrenos férteis para a propagação de vícios de todosos tipos.

Ao que parece, os administradores da Corte começaram a notara existência de cortiços na cidade nos primeiros anos da década de1850. Uma epidemia de febre amarela, em 1850, e outra de cólera,

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111I H • l lcvurum bastante as taxas de mortalidade e colocaram111101dl'llI do dia a que tão da salubridade pública, em geral, e dasI IIIHII,' 11 hi i I icas das habitações coletivas, em particular. FoiI I IId I 1111o 1\ Junta Central de Higiene, órgão. do governo impe-II11 IH'irro tudo de zelar pelas questões de saúde pública, e a Câ-1111111Municipal d Corte passou a discutir medidas destinadas au- 1111111'111ma exi tência das habitações coletivas.

1<,111,''I .rnbro de 1853, a comissão de posturas da Câmara ana-1I 111111111pl'(~;'lo de "Regulamento dos Estalajadeiros", que lhe foraI m' 1111nhudo pela Secretaria de Polícia." É lógico que a preocupa-\ li ti I uuloridades policiais era "prevenir que pessoas suspeitas1111(01111(1-il abrigo nas casas a que ele [o regulamento] se refere,111I IIlIdll1\ ivitar desordens, e outros crimes que por ventura pos-

11111'11'0111,tido ". Os vereadores da comissão de posturas julga-111111\I PlOj to de "urgente utilidade pública", e ainda acharam porli 111,'I li' -10 de algumas disposições "em relação à salubridade(llIhl " r". () artigo primeiro definia como estalajadeiro "o indivíduo'1" ti 11I zasalho ou pousada por dinheiro, qualquer que seja a deno-111IU'\' o du asa em que a dei""'=""::- estalagem.hospedaria, cortiço ouhllll'l, 1~J1lr' s medidas destinadas-a-facilitar a vigilância da polícia,hnviu i obri atoriedade de o estalajadeiro possuir um livro de con-tI"I" de »urada e saída de hóspedes ou moradores, e no qual estes

tur] 1111cuidadosamentéidéntificádos. Os subdelegados deveriamli",' 11' [ücntemente as habitações coletivas, certificando-se de que

I I 11li. ' .ncontravam vadios, estrangeiros em situação irregular e1'1 . li IN"susp itas", ou que causassem "desconfianças" e "receios"

1111111.atcgoria tão abrangente e ambígua que era potencialmente111I 'onlrn quaisquer dos moradores de tais habitações. Quanto àsI cuuliv 's de higiene, os estalajadeiros eram obrigados a conservar1111.'lisa' no "melhor asseio possível", conduzindo "o lixo, as águasII;IIN,' utras matérias imundas" para os locais onde era permitido

IIIk-SP 'Jo. Ficava proibido o depósito de lixo e "matérias fecais" emI'lIvas feitas no quintal, ou em qualquer outra parte da casa. Os fis-lais das freguesias deviam zelar pela obediência ao regulamento.

Ape ar da opinião favorável da comissão de posturas, o regu-111111.nto não parece ter sido adotado pela Câmara Municipal. EmI osto de 1855, um projeto de posturas a respeito unicamente de

cortiços, de autoria do fiscal da freguesia de Santa Rita, foi apre-sentado aos vereadores." Na introdução ao projeto, o fiscalargu-mentava que "o preço elevadíssimo das casas nesta Capital deulugar à fundação de moradas, conhecidas pelo nome muito signifi-cativo de cortiços, onde em pequenos quartos habita uma grandepopulação das classes menos abastadas, como é sabido". O au-mento nos preços dos aluguéis para as "classes menos abastadas"estava certamente ligado às transformações na demografia urbanado Rio no período, já referidas anteriormente: o crescimento dofluxo imigratório de portugueses, o aumento do número de alforriasde escravos, e a prática cada vez mais comum de permitir que oscativos residissem "sobre si".

Aqui, novamente, os cort!.ços são vistos tanto como um pro-blema para o c2.11y~le social dos pobres~u~~o como ~ma amea-çãpãia as ~d!s:õel'J!igi~niças da cidade. O fiscal de Santa RitaóeclaiãVã-se-p;eocupado em garantir a "facilidade da existênciados pobres", e propunha uma série de medidas visando a impedirque os cortiços se tornassem "focos de .vícios" ou de transgres-sões "da moralidade dos costumes", assim como "asilos perma-nentes de infecções deletérias da saúde pública". As medidas pro-postas obrigavam os proprietários a efetuarem "todos os reparos,e melhoramentos que forem exigidos pelo Dr. Delegado da Juntade Higiene Pública da freguesia respectiva", proibiam a existênciade "casinhas colocadas nos lugares onde há animais e carroças"- só carroceiros sem família poderiam residir nas cocheiras -,determinavam o calçamento e a iluminação dos pátios, e a colo-cação de pilastra com água. Havia ainda a exigência de lugaresapropriados para as latrinas. A Câmara Municipal forneceria osvasilhames para a condução das "matérias fecais e águas servi-das", ficando tambérri encarregada de remover tais "matérias"todos os dias às cinco horas da manhã; os "fundos" para essasoperações seriam "solicitados do governo". Finalmente, todos oscortiços deveriam ter um portão de ferro, que se fecharia ao to-que de recolher; a partir dessa hora,um dos habitantes passaria aservir de porteiro, ficando com a obrigação de abrir a porta paraos outros moradores e de comunicar as eventuais irregularidadesao inspetor de quarteirão.

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Pelas sugestões do fiscal de Santa Rita, não há que duvidar desuas palavras ao afirmar que sua intenção era melhorar as condi-ções de vida nos cortiços existentes, fazendo com que "esses luga-res" deixassem de ser "focos de enfermidades". "A pobreza que alise asila", obtendo assim mais proteção e comodidade, "conservarásua saúde". Nenhuma das sugestões mencionadas, porém, foi aco-lhida pela Câmara Municipal, que se contentou em adotar apenaso item nove do documento do fiscal: "Não será permitida a cons-trução de novos cortiços sem licença da Câmara, e nessas constru-ções serão guardadas todas as condições higiênicas e não serãohabitáveis sem aprovação da Junta de Higiene Pública" .16

Os vereadores, então, pareciam se preocupar apenas com ascondições higiênicas das habitações coletivas do futuro. Outrasvozes, todavia, concordavam com o fiscal de Santa Rita na opiniãode que algo precisava ser feito quanto aos cortiços existentes. Emoficio enviado pela Secretaria de Polícia da Corte ao Ministériodos Negócios do Império, em março de 1860, eram novamente ospreços "de tal modo exagerados" dos "alugueres de casas" que

'-explIcavani'ósurginieritoe a proliferação dos cortiços."? O doeu-mento.da.Secretaria-de-Polícia, porém, avançava a discussão empelo menos duas direções. Em primeiro lugar, há aqui a idéia deque as condições de vida nos cortiços não se revelavam mais letais

-.------.- ---.-----...-aijenas-quandó'cfã"ocórrêricíii"de "fetires" ou epidemias na Corte;na verdade, era a "tísica", isto é, a tuberculose, que ameaçava "tor-nar-se moléstia endêmica do país". Em outras palavras, o que pro-vava que as condições de saúde pública estavam se deteriorandonão era apenas a ocorrência eventual de epidemias de febre amare-la, varíola, cólera etc., mas a mortandade crescente e constantepela tísica, uma doença que o saber médico da época já associavadiretamente às condições de miséria em que vivia a população.

Ou seja, o documento da Sec~etaria de Polícia er~ capaz decolocar o problema dãsa6de pública numcontexto mais amplo 'dedeterioração dascondições de vida. dos pobresêin geral. Até essemomento não par~~ia possível pensar' .aquestãodas habitaçõescoletivassegundo ps paI"~etros estritamente técnicos da Higiene;ao-contrário, este era um problema social, aser solucionado a par-tir de decisões políticas claras dos govemantes da cidade. Assim,

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..chegamos ao segundo ponto do documento: a Secretaria de Políci I

sugeria a formulação de uma política destinada a promov r li I

edificação de habitações cômodas para o povo". Eram prop stoincentivos aos construtores, incluindo um "adiantamento pecuniárlopor prazo razoável" e a "concessão de isenção de impostos". Gil

quanto medidas definitivas não fossem tomadas nesse sentido, .diante da gravidade da situação, o oficio sugeria que a própria ' •mara Municipal bancasse a iniciativa de construir habitações, "qu •seriam alugadas aos artistas e pessoas pobres por quantia módica",O Ministério do Império encaminhou o documento em quest o 1\Câmara Municipal, e parece que lá ele não suscitou nenhum efeitoprático.

É possível discemir com clareza o eixo fundamental de todnessa primeira década de discussão sobre os cortiços: era necessáriomelhorar as condições higiênicas das habitações coletivas existen-tes. Tratava-se, primordialmente, de uma preocupação com a qua-lidade da habitação popular, de legislar no sentido de obrigar sproprietários a construir residências que zelassem minimamentpela saúde dos moradores - deveria haver coleta regular de lixo,latrinas limpas e em número suficiente, calçamento, janelas am-plas etc. A maneira de encarar o problema, todavia, iria mudarradicalmente. nas décadas seguintes: na forntuJ?s..ão ..deMaurícide Abreu, a ênfase deixaria de ser prioritariamente eformalss con-dições da moradia.le passaria a ser o espaçolo local da habitaçãoj'"

A mudança já se anunciava em outro projeto bastante deta-lhado para a adoção de posturas referentes a cortiços, apresentadà Câmara Municipal da Corte pelo dr. José Pereira Rego, em feve-reiro de 1866.19 Na ocasião, Rego era vereador e estava havia pou-co exercendo o cargo de presidente da Junta Central de Higiene,função que desempenharia por quase duas décadas. Seu projetoestabelecia que "é absolutamente vedado construir novos cortiços"em toda uma extensa .área compreendendo boa parte das fregu -sias centrais da cidade, "ainda mesmo dentro dos quintais ou chá-caras; assim como reconstruir aqueles, que já existem". A Câmaranão adotou de imediato as sugestões do vereador e higienista; ofatº-'-.contudo, é gue ..Í(ld~a disclls!ião~QIIlOJias..habita-ções populares se modificaria nos anos seguintes.

--.-- __ ••• • -- -_.....,.~_ ••• _._. ~ __ ~ __ •• _-- __ 0'

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primeiro fruto da nova maneira de pensar a questão surgiuCOIII li po tura de 5 de dezembro de 1873: "Não serão mais permi-tld 111 as construções chamadas 'cortiços', entre as praças deD.PedroII ( nze de Junho, e todo o espaço da cidade entre as ruas doRin .huclo e do Livramento"." Em setembro de 1876, outra postu-"li re forçaria a proibição, esclarecendo que a interdiçãoãxconstru- .. o dc cortiços val~a mesmo quando os pro?rietários i~'sussem'Jl1 'h má-los "casinhas ou com nomes eqUlvalentes":2fÉstavam

N' 11 ndrando os instrumentos legais para li guerra de extermíniocontra os cortiços ou -:- o que dá quase no mesmo - para a políti-'U de expulsão das "classes pobres"/ "classes perigosas" das área#. rurais da cidade.

Mas antes de passarmos às batalhas, cabe extrair outra liçãolmp rtante do projeto de posturas de Pereira Rego. A introdução'S .rita pelo autor, em que se justificaa preocupação com a prolife-ração dos cortiços, explícita de forma bastante didática algumasid (ias que se tomariam em breve o senso comum dos administra-d res da cidade:-- ---- - ----------.-

o aperfeiçoamento e progresso da higiene pública em qualquerpaís~-'-'--"'-'''-simboliza o aperfeiçoamento moral e material do povo, que o habita;é o espelho, onde se refletem as conquistas, que tem ele alcançadono caminho da civilização." -_.~._---_. --------.-~---.---~_.--.-.--------- .--.-.----.--..-"." ----

Tão verdadeiro é o princípio, que enunciamos, que em todos ospaíses mais cultos os homens, que estão à frente da administraçãopública, procuram, na órbita de suas atribuições, melhorar o estadoda higiene pública debaixo de todas as relações, como um elementode grandeza e prosperidade desses países ...

Entre nós, porém, força é confessar que as municipal idades [...]têm-se esquecido um pouco dos melhoramentos materiais do Muni-cípio e do bem-estar, que deles pode resultar a seus concidadãos,tanto que sobre alguns pontos essenciais e indispensáveis ao estadohigiênico, parece que ainda nos conservamos muito próximos aostempos coloniais."

o discurso do vereador e higienista, partindo da oposição en-tre "civilizaçã~ . " ostula dois princípios es-enciais para ~ompreensão de um imaginán em' gestação entre-----~-~

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os 'políticos e govemantes nas últimas décadas do século XIX. Emprimeiro lugar, está presente a idéia de que existe um "caminho dacivilização", isto é, um modelo .de "aperfeiçoamento moral e ma-terial" que teria validade para qualquer "povo'Lsendo dever dosgovemantes zelar para que tal caminho fosse mais rapidamentepercorrido pela sociedade sob seu domínio. Emsegundo lugar, háa afirmação de que um dos requisitos para que uma nação atinja a"grandeza" e a "prosperidade" dos "países mais cultos" seria a so-lllyão dos problemas de higiene pública. ./j .O resultado dessas duas operações mentais é o processo de

/' configuração dos pressupostos da Higiene como uma ideologia:ou seja, como um conjunto de princípios que, estando destinados aconduzir o país ao "verdadeiro", à "civilização", implicam adespolitização da realidade histórica, a legitimização apriorísticadas decisões quanto às políticas públicas a serem aplicadas no meiourbano. Esses princípios gerais se traduzem em técnicas específi-cas, e somente a submissão da política à técnica poderia colocar oBrasil no "carnil)ho da civilização". Em suma, tomava-se possívelimaginar que haveria uma forma "científica" - isto é, "neutra",supostamente acima dos interesses particulares e dos conflitos so-ciais em geral- de gestão dos problemas da cidade e das diferen-ças _sociajs nela existentes/ I

Tal ordem de idéias iria saturar o ambiente intelectual dopaís nas décadas seguintes, e emprestar suporte ideológico para aação "saneadora" dos engenheiros e médicos que passariam a seencastelar e acumular poder na administração pública, especial- .mente após o golpe militar republicano de 1889. Mas insistir naimportância de conceitos como "civilização", "ordem", "progres-so", e outros afins - os correlatos como "limpeza" e "beleza", eos invertidos tais como "tempos coloniais", "desordem", "imun-dície" etc. - não nos leva muito além da transparência dos dis-cursos, da observação da forma como eles se estruturam e daqui-lo que eles procuram afirm<;r.na sua própria literalidade, e atravésda repetição ad nauseam.yõ que se declara, literalmente, é o de-sejo de fazer a civilização européia nos trópicos; o que se procu- .?tra, na prática, é fazer política deslegitimando o lugar da políticana história. . ~

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AS BATALHAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

A afirmação da Higiene como a ideologia das transformaçõesurbanas da virada do século esteve longe de ser um processo lineare sem conflitos. Pelo contrário, a leitura dos documentos produzi-dos pelos ftrncionários e autoridades da cidade do Rio no períodorevela o debate intenso que agitava os bastidores da administraçãopública, sendo que a questão das habitações coletivas, e especial-mente os cortiços ou estalagens, esteve sempre no centro das con-trovérsias. Apesar do emaranhado de versões conflitantes ou tal-,vez por isso mesmo, é possível identificar algumas tendências ereconstruir as alianças e confrontos que marcavam o vaivém si-nuoso da burocracia da época.

Em 5 de maio de 1864, o chefe de polícia da Corte oficiou àCâmara Municipal reclamando providências sobre problemas queestariam ocorrendo na freguesia de Santa Rita. O subdelegado lo-cal o informara da existência de um cortiço "muito imundo", semn~~.r~ç!Ql!C?.~~2~,_~~l!llU?:,_ eainda por cima fiscalizado porum escravo do proprietário." Além disso, o subdelegado reclama-va de dois terrenO"s-que-nã6~stavanrcefcados, permitindo o despe-jo de lixo por parte dos moradores da vizinhança e a pousada de

_.__.._~'gl~f~Hot:~~~!!L!lojje~.e~çuras~'.Nada disso, porém, dera realmen-te motivo ao ofício: a questão era que o subdelegado e o fiscal da

.freguesia haviam entrado em rota de colisão, e isto supostamenteporque '0 agente municipal nada fizera para solucionar os proble-mas apontados pela autoridade policial.

O fiscal de Santa Rita rebateu a acusação com veemência.Quanto às irregularidades no cortiço, ele achava "admirável" queo subdelegado ignorasse as obrigações da polícia no assunto; se-gundoele, cabia ao fiscal zelar pela limpeza de tais prédios, e esta,garantia, se achava em "estado regular". Quanto aos terrenos, eleseram objeto de uma pendência judicial, logo não havia de quemexigir o cercamento. Finalmente, um contundente contra-ataque:

É de sentir que no cartório do Subdelegado se forjem reclamações ese inventem histórias para comprometer-se a alguém, que mais direi-tos tem para queixar-se de uma autoridade que s.econstituiu Fiscal

I./

II

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da Freguesia dando ordens ou consentindo que seus agentes andemperseguindo e maltratando os míseros tavemeiros e quitandeiros, eque quando encontra quem lhe ponha embaraços, venha abrigar-sesob o manto da proteção da Illma. Câmara.

À primeira vista, parece tolice relatar essas picuinhas entreftrncionários subalternos. Mas, como já dizia Shakespeare, "Thereis history in ali men's lives" [Há história na vida de todos os ho-mens]. Pois é, e então tais picuinhas nos ensinam alguma coisa.

Q)Em primeiro lugar, as autoridades policiais utilizam uma retóricasemelhante à dos higienistas, e clamam por ação contra a supostaimundície de um cortiço e o despejo irregular de lixo. Esse tipo deprocedimento se acentuará a partir da década de 1870; na verdade,higienistas e autoridades policiais estarão quase sempre do mesmolado da trincheira em se tratando de cortiços. Em segundo lugar, o

QJ fiscal da freguesia deixa claro o seu partido ao acusar o subdelegadode perseguição aos "míseros tavemeiros e quitandeiros". E aqui háoutra tendência: fiscais e proprietários estarão freqüentemente domesmo lado contra as incursões de higienistas e policiais, se bemque esta é uma aliança precária e pontual. A Câmara Municie,alestará no centro do fogo cruzado - o cargo de prefeito só passaráaexlstiT-emfinsde-i892-=-~-;gü~ntando as pressões dos diferentesgrupos de interesse e tendo, em última análise, a responsabilidadede traçar as políticas públicas a serem adotadas em relação às habi-tações coletivas. .'

Personagens em ~esta seguirmos as linhas principais doenredo. Para destrinchar a papelada da administração municipal, épreciso ter em mente o ritual necessário para a obtenção de licençapara a construção de cortiços. Corno vimos, o edital de agosto de1855 exigia a perroissão da Câmara para tais edificações, sendoainda necessário que a Junta Central de Higiene considerasse ha-bitável o prédio planejado. Para exemplificar os procedimentos depraxe, temos o caso de José Antônio Mello, dono de uma cocheirana rua de Santa Luzia, freguesia de São José, e que, em novembrde 1871, solicitou à Câmara permissão "para fazer quartos, nosfundos da dii:a cocheira".24 Na Câmara acharam que a licença po-dia ser concedida, obedecidas as posturas e, "no caso de ser parafazer cortiços", respeitado o edital de 1855. Precisava ser consul-

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I til t 1'111 O, <l Junta Central de Higiene. Os higienistas concorda-I 1111 \'0111 LI nc ssão, desde que os animais existentes no local111 ,1111 dul] retirados, "porque de outra forma não há espaço para a'1111 11 \1(,:. o de tais cortiços, além de ficarem eles em más condi-\11 lIi ri ni 'as". A Câmara autorizou em definitivo, mantida aI' I illdu feita pela Junta Central de Higiene. Todo o procedimen-lu dut 011 lOUCO mais de um mês.

A p 'sal' da aparência meramente protocolar, há tutano nessaIIt lúri I. P'\I'aMello, o solicitante, a intenção era "fazer quartos"; o1 '11101 dll .ârnara apenas levantava a hipótese "de ser para fazerI 011 h;OS"; os higienistas não tinham dúvidas de que se tratava de'"11 11111,'<0 d cortiços. Afinal, o que determinava que uma dada1111111 1\', () .olctiva fosse identificada como um cortiço? Como já1111\ 11011 l.ilian Fessler Vaz, esta era uma questão dificil para os, 111111 11Ipor n os, e uma boa parte das controvérsias entre higienis-111• poll .iais, proprietários, fiscais etc. girava em tomo da defini-\ 1\ pl'l' 'isa de sa palavra."

!Iv -rurdo Backheuser, autor de um trabalho clássico sobre as11 1111111,' l'S populares do Rio na virada do século, tentou explicar adlh'Il'lI~tI mtre estalagem e cortiço. O texto de Backheuser foi pu-hl i 1110 P 'Ia primeira vez em 1905. Era o tempo do bota-abaixo doli' li' to P ereira Passos, e a campanha contra os cortiços, portanto, já-1 1111 1 ilcunçado grande parte de seus objetivos. Backheuser defmeI 1IIIIHlIII ' m um leve toque de humor, e outro de preconceito:

1't1qllt:nflscasinhas de porta e janela, alinhadas, contornando o pátio,\I hubitações separadas, tendo a sua sala da frente ornada de regis-

110 li' santos e anúncios de cores gritantes, sala onde se recebemL ittlS, onde se come, onde se engoma, onde se costura, onde se

III1t1dizdos vizinhos, tendo também a sua alcova quente e entaipada,I parada da sala por um tabique de madeira, tendo mais um outro

qu trt inho escuro e quente onde o fogão ajuda a consumir o oxigênio,ÇIlVncnando o ambiente. Dorme-se em todos os aposentos."

de-prédios, tendo um segundo pavimento acaçapado como o primei-ro e ao qual se ascende dificilmente por escadas íngremes, circunda-do também por varandinhas de gosto esquisito e contextura ruinosa.Isto que aí fica resumido é o "cortiço"."

Por um lado, a descrição de Backheuser é preciosa porquenos informa acerca da divisão do espaço interno das casinhas deestalagem e do uso que os' moradores faziam de uma área tãoreduzida; temos, assim, acesso a alguns costumes e conc~P.ÇQ,espopulares sobre a moradia no per!.Q9.Q.Por outro lado, constata-se-que Backheuser tinha pouco a oferec~ possibilitar umadiferenciação objetiva entre:êSt~,êçQí!iÇ~a verdade, oscortiços eram as "estalagens ;ntígãS", malconservadas e onde ascondições higiênicas eram precárias. As descrições parecem su-gerir que a presença de um segundo pavimento era mais comumnas estalagens antigas ou cortiços; o próprio autor, porém, con- .c1ui em seguida que "na 'estalagem' e no 'cortiço' o facies é

I . igual"." O que se extrai do texto de Backheuser éque o elemento J íl-'.:1' -_._._,--- -. ·decisiv.b.·na identificação de uma habitação coletiva co~o um ~~

_, . .._""...cortiço era mesmo o julgamento do observador: nos cortiços as .alcovas eram mais quentes, baixas e escuras; não havia separa-ção adequada entre as famílias, sendo a vida "mais promíscua".

__ o •••• -- -'Todõs esses elementos sãoobviamente subjetivos - isto é, su-jeitos a avaliações radicalmente distintas dependendo dos inte-resses ou do ponto de vista de cada observador-,o que faz comque Backheuser explicite o caráter fortemente ideológico de todaa discussão: "há 'cortiços' onde se penetra com o lenço ao narize de onde se sai cheio de náuseas"."

Há sem dúvida semelhanças relevantes entre os conceitosde ~ e de "€os perig~': ambos supostamente des-crevem "realidades" a respeito dos hábitos das mesmas pessoas- as '~sSe-sp~-, e se caracterizam muito mais pelafluidez, pel;am6Igüfdade, do que por qualquer esforço conse-qüente de precisão de concei1Qs. Esta ambigüidade, obviamen-te, é carregada de significados: como se trata de conceitos alta-mente estigmatizantes, a imprecisão aumenta infinitamente apossibilidade da suspeição, ampliando assim a esfera de inter-

1':111 icguida, a definição de cortiço:

As 'slalagens antigas têm um aspecto mais primitivo, mais grotesco,lIIais mal acabado. São ligeiras construções de madeira, que o tempo'ons lidou pelos consertos clandestinos, atravaricadas nos fundos

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estava devidamente licenciada pela própria Câmara, o projeto apro-vado estava sendo seguido à risca, e que, portanto, nada havia afazer a respeito.

Neste caso, não se sabe de onde partiu a denúncia sobre aconstrução supostamente irregular; ficamos apenas com o fato deque aquilo que o denunciante chamava de cortiço não coincidiacom o que o fiscal da freguesia e a própria Câmara entendiam portal. A julgar pelas histórias em que esse tipo de dado está disponí-vel, a denúncia podia partir de um vizinho, da imprensa, da autori-dade policial, ou da própria Junta Central de Higiene. Qualquerque fosse a origem da informação, Qi.fiscais de fr~g!!~iiã:::geral-mente se empenhavam em desmenti-Ia, defendendo assim a lisurade sua atuação no cargo.

Eles tinham também suas queixas em relação à atuação daJunta de Higiene. O fiscal da freguesia do Espírito Santo escreveupara os vereadores em novembro de 1875, respondendo a reclama-ções dos higienistas: "que na Freguesia a meu cargo, não me cons-ta que se edifiquem da noite para o dia cortiços em lugares insalu-bres, muito menos sem licença". O problema na área eram "as valaspúblicas" que corriam "por dentro de terrenos particulares", impe-dindo que os proprietários melhorassem as condições higiênicasde seus prédios. Na versão do fiscal, inúmeras reclamações já ha-viam sido feitas à Junta para que se tomassem providências "paraacabar com semelhante abuso, prejudicial à salubridade pública".Concluía dizendo que se devia solicitar do governo imperial pro-vidências para que os habitantes da área "gozem do beneficio doesgoto". 33

Há duas maneiras de abordar a estratégia de defesa escolhidapelo fiscal de Espírito Santo. Por um lado, o fiscal se mostra esper-to ao se utilizar das armas forjadas pelos próprios higienistas: nãoexigindo do governo providências quanto às valas abertas existen-tes no local, a própria Junta se tomava culpável por negligênciaem assunto de salubridade pública. Assim, a higiene nas moradiasparticulares ficava prejudicada pela deficiência na prestação deserviços pelo poder público. Por outro lado, a opção de defesa dofiscal implicava uma concordância tácita com o pressuposto deatuação dos sanitaristas: a questão da saúde pública consistia es-

venção das autoridades públicas e comprimindo, por conseguin-te, a cidadania.

Enfim, "cortiço" foi o termo que as autoridades sanitárias pas-saram a utilizar quando desejavam estigmatizar em definitivo de-terminada habitação coletiva. Backheuser escreveu seu texto nummomento em que tal estratégia já havia triunfado e produzido re-sultados importantes; se voltarmos para a década de 1870, recupe-ramos ainda o calor da luta. Os critérios para a identificação dosdiferentes tipos de habitação coletiva eram então ainda mais inde-finidos, pastosos mesmo, se acomodando aos interesses de ocasiãodas partes em confronto. Cubículos originados de subdivisões in-ternas num casarão eram cortiços? Quartos construídos no fundodo quintal de uma residência, ou de uma fábrica ou oficina, eramcortiços? Chefes de família que alugavam cômodos em suas casas,às vezes até o sótão e o porão, seriam corticeiros obrigados a pagarimpostos à municipalidade? Numa cidade em crescimento acele-rado e com déficit crônico de moradias, todos esses expedientesforam bastante utilizados. Parecia haver algum acordo apenas emtomo do que era habitação cõlefiva,~éõmõ definia, porexemplo, apostura de 15 de setembro de 1892~..:~São-todas..as que abrigaremsob a mesma cobertura, ou dentro da mesma propriedade, terrenoetc., indivíduos de famílias diversas, constituindo unidades sociaisiiidépérideriiés "-:>0-- - - ------ - -. --- ---- --- -- -.-- -- - - --- - ---

r:ill..SBum _~epermanece dificil defrnir de forma inequívoca oque.era um-ºo~ o fato é que as controvérsias em tomo de taldefinição emcada caso específico nos abrem uma enorme janelapara a:_(jbservãç~ ejiitefpretàç~ do processo histórico do perío-

...._.~ "--. -~

do. O debate assumiu cáráfér mais decisivo após o edital de de-zembro de 1873, proibindo expressamente a construção de corti-ços numa extensa área do centro da cidade." Em novembro de1874, por exemplo, o fiscal da freguesia de Sacramento foi chama-do a se explicar sobre uma denúncia de que se estava construindoum cortiço na rua Espírito Santo, canto da do Senado." O fiscalrespondeu à Câmara Municipal que "no lugar indicado não se estáconstruindo cortiço algum, a menos que se queira assim chamar aquatorze acomodações em primeiro e segundo pavimento que seestão acabando de construir ...". O fiscal informava ainda que a obra

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I t-u .iulrn nt no controle da higiene das habitações - particular-111('111' as da "classes pobres"/ "classes perigosas". O problema éqru- '!lHepressuposto significava deixar de considerar outros as-111' -tos relevantes para a saúde da população, como a nutrição, as\ \IIIdiç( de salubridade e segurança nos locais.de trabalho, a ex-I('IIH() da jornada de trabalho etc." Paradoxalmente, a espertezado IiH'ai revela o estreitamento de sua ~ãJ:gerii.ª~mãnobra;paraNi' Iivrur dos higienistas naquele momento, ele se enredo~-devezI~\,1 (cias da ideologia da Higiene. -- . ----------

ue essa ideologia lançava raízes cada vez mais profundas emdj.l,lIm; setores da sociedade, torna-se patente pela atuação dos ór-I' 11,' da imprensa a partir da década de 1870. Na realidade, váriospIO' .dim ntos da Junta Central de Higiene contra supostos cortiçosi' detonavam a partir de denúncias dos jornais da época. Em agosto

di' IH76, a Junta oficiou à Câmara informando que "tendo a Impren-1 11 'Nles últimos dias denunciado a construção de um grande corti-

\ o IIOSfundos de um terreno à rua da Guarda Velha", providenciou-t' uma vistoria no local. Os sanitaristas reconheceram que a tal

i 011, trução era melhor que a dos "cortiços comuns", mas resolverami (1I1! I·má-la assim mesmo "não só por sua grande aglomeração, comopi'lII falta de ventilação". O fiscal da freguesia de São José explicouqu ' lIS ca inhas haviam sido construídas pelo proprietário de umaI 'Ihri 'U de cervejas, sendo "aliás bem construídas e arejadas". O fis-(111 1 .ubou lavrando o auto de infração por construção de cortiços1111 (ar 'U proibida, "não obstante parecer-me que a essa edificação11 (I H' P dia aplicar o nome de cortiço, porque, verdadeiramente/1/10 se I ha bem definido o ,que seja cortiço" (grifo meu)."

O 'pisódio demonstra como os higienistas estavam conseguin-do uliados importantes em sua estratégia pela melhoria das condi-~ i'S d salubridade pública da Corte - uma estratégia que se re-umia ada vez mais numa condenação tout court da própria

111\'.' mça de habitações populares, e obviamente de seus morado-I ' • IlUS áreas centrais da cidade. Não quero ser acusado, todavia,dI' purcialidade contra a distinta classe dos doutores médicos higie-IIhHIIS, mesmo porque não é dificil imaginar que algum grau devcnulidade podia existir em vereadores, fiscais da municipalidade,I corticciros sempre dispostos a cobrar aluguéis escorchantes de

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seus inquilinos. Por isso, fica com a palavra o higienista-mor doperíodo, José Pereira Rego, presidente da Junta de Higiene, já en-tão o barão do Lavradio. No caso em questão, ele estava indignadocom a possível concessão de licença para a construção de umahabitação coletiva na rua do Resende. Segundo o barão, tratava-sede autorizar o surgimento de outro cortiço em área onde eles jáestavam previamente proibidos. O oficio, dirigido ao presidenteda Câmara Municipal, éde 11 de fevereiro de 1876:

...cabe à Junta declarar a VExa. que nada tem que ver com a referidalicença, visto como as obras já estão em andamento, talvez com con-sentimento da autoridade fiscal respectiva; e por esta ocasião ponde-ra a mesma Junta a VExa. que, sendo comum o fato de ter a Junta depronunciar-se sobre concessão de licenças para obras que já se achamconcluídas, ou quase concluídas, sem ser ouvido o seu parecer, me-lhor seria dispensá-Ia de um trabalho inútil e de responsabilidadeque não lhe pode nunca competir.

Agora permita V.Exa. que, não se distinguindo as intituladascasinhas dos ..cubículos.componentes de um.cortiço senão na pe-quena diferença de alturas, a Junta continue a sustentar a opinião jápor muitas vezes externadã:de-ilãõ-se-consenfirnoiilterior da Cida-de tais edificações, aumentando assim as causas da insalubridadep_eJ~agt()IIl~rªt;:.ã~depopulação .~11!.~()l1aslimitadas.como aconte-ce no lugar de que se trata, onde já numerosos são os cortiços exis-tentes.i."

No primeiro parágrafo do oficio, o barão se queixa de que aJunta só era chamada a opinar sobre fatos consumados; ou seja, oedital de 1855 valia formalmente, mas na prática a construção dehabitações coletivas era freqüentemente autorizada antes de a Jun-ta ser devidamente consultada. De passagem, o chefe dos higienis-tas insinua que essa situação se explicava pela conivência dosfis-cais de freguesia. No segundo parágrafo, o barão se refere ao fatode os proprietários procurarem driblar a postura que proibia a cons-truçãode cortiços em áreas centrais com o subterfúgio de apelidartais edificações de casinhas.

Pois bem, é praticamente certo que o·barão tinha razão emambos os pontos. A leitura dos documentos da Câmara passa ela-

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ramente a idéia de que não havia muito controle em relaçãÇl aosurgimento ~ halJltaçõe~_º-QJ.s;tiv-as- elas brotavam por todaparte-em função de uma enorme demanda, e não havia como re-verter fatos consumados sem provimento de acomodações alter-nativas para os moradores. Também é verdade que nos anos 1870nerihum proprietário se mostrava ingênuo a ponto de solicitar li-cença para a construção de cortiços: todos iriam edificar "quar-tos", "pequenas casas", ou "casinhas". Neste último ponto, a pró-pria Câmara deu razão ao barão do Lavradio ainda naquele anode 1876, através da confirmação da postura de proibição aos cor-tiços no centro mesmo quando seus proprietários os chamassem"casinhas ou com nomes equivalentes"." A verdade, porém, éque o barão continuaria a se defrontar com agentes municipaiscontrários a essa abrangência cada vez maior do conceito de cor-tiço. No caso em questão, por exemplo, um engenheiro munici-pal escreveu um parecer detalhado a favor da concessão de licen-ça para as casinhas da rua do Resende. Elas seriam perfeitamentehabitáveis com pequenas modificações nas dimensões das jane-las ecóm o"aúiiienfodonúmero de latrinas. o engenheiro arre-matava que "é esta.minha.opiaião .fundada na necessidade daexistência de casinhas para a pobreza, que sem dúvida, não pode-rá morar em casa de alto preço ...".38

-------"Iódós essés pêqiiériósacontecimentos da rotina administrati-va acabam definindo os contornos mais amplos da atuação doshigienistas. Conforme jáficara claro no projeto de posturas de JoséPereira Rego, er@-;ds sanitaristas erigiam as condiçõe:l_ dehigiene pública como o e~.1()---º-efinidor ºº-_Wl:1 de civilizaçãodeum povo. Mãis ainda, haveria critérios objetivos, "científicos",que- poãenam nortear as medidas da administração pública nessaárea. O problema aqui são as implicações políticas claras - e ine-vitáveis? - dessa crença na possibilidade de gestão científica dasociedade: nenhum "outro" político tinha as qualificações neces-sárias para interferir na condução dos negócios públicos porquenão detinha o saber técnico-científico pertinente. Os higienistas sefechavam numa lógica ferrenha, totalmente baseada em procedi-mentos autoconfirmadores. É típica, por exemplo, a serenidadeolímpica com a qual o presidente da comissão sanitária de Santo

Antônio desqualifica a opinião do fiscal da freguesia a respeito desupostos cortiços na rua do Lavradio: "a questão é puramente hi-giênica, e nada tem a ver com o Fiscal.i."." Em outras palavras, ofiscal discordava porque desconhecia os preceitos da ciência daHigiene, e o doutor ainda fazia o favor de perdoá-I o por sua igno-rância.

Era inegável o crescent4~de sedução da ideologia daHigiene sobre alguns setores da sociedade da época. Mas tambémeram significativos os obstáculos impostos à sua difusão pelosmecanismos institucionais da velha monarquia. Em 18 de dezem-bro de 1879, o ministério do Império expediu um aviso mandandoque as comissões sanitárias "intimem para que sejam fechados oscortiços- ou estalagens, quer os que ameacem ruina, quer os que,pela permanência têm-se tomado nocivos à saúde pública"." Amedida representou mais uma vitória dos -higienista~ que agorapareciam contar com o apoio mais decidido do próprio governo X.central para a sua atuação. Mas acontece que o aviso em questãofez ranger a velha máguina institucional em defesa do pacto liberalde respeito à-proprie~de privada. Assim, o que se viu em seguidafoi uma luta intensa: Ias comissões sanitárias ordenavam o fecha-mento de cortiços;~ários proprietários desobedeciam, exigindo queas comissões lhes apontassem os problemas com suas proprieda-des,~ recorrendo' à Câmara Munici~al para a obtenção de ÍÍcençã:para os melhoramentos necessários; as autoridades policiais saíamàs ruas para fazer cumprir as ordens de fechamento, mas às vezesencontravam os corticeiros munidos de mandados judiciais quegarantiam seus direitos de propriedade. Houve cortiços efetiva-mente fechados, pelo menos provisoriamente, para desinfecção ereparos."

A lição dessa história, todavia, é que o pacto liberal de defesa )'1da propriedad:,J?riva4a colocava limites claros às pretensões doshigienistas. Pelo menos durante a vigência da monarquia, perma-neceu sempre difícil adotar medidas mais duras contra os cortiços.No caso do Cabeça de Porco, por exemplo, segundo o relato daGazeta de Notícias por ocasião da demolição, tentativas anterioresde destruí-Io haviam esbarrado exatamente emmedidas judiciais.F

IEm suma, os higienistas imaginavam que sua Ciência pairasse aci-

_I

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I11Udo homens e para além da moral eda política; por enquanto,10 luvia, ainda não haviam conseguido transformar as instituiçõesI1l1m .maranhado de casuísmos. Isto só seria possível com o ad-V nt das primeiras administrações republicanas, e com a ajudad \ .isiva de novos aliados.)

SA IlER, PODER ...

Alguns antecedentes da demolição do Cabeça de Porco escla-I' , ' '111a pectos importantes a respeito da administração da Capital11 d sra! nos primeiros anos do regime republicano. Na verdade, é apnrl ir Ia ascensão de Floriano Peixoto à presidência, em novem-hro ti' I 91, que ocorre um recrudescimento das autoridades pú-Ili 'a~ contra os cortiços." Ao que parece, os higienistas haviamuin ido o auge de sua influência política.

N a história pode começar em 26 de janeiro de 1892, exa-IIIIll 'nt um ano antes da demolição do Cabeça de Porco." Nessadntu, o ministério do Interior expediu um aviso à Inspetoria Geraldl' IIi aicnc determinando providências a respeito dos cortiços, es-• l" "v irdadeiros antros disseminados pela cidade e que constituemoutros tanto focos de infecção". O aviso lembrava inicialmente oque li 'tira e tipuJado no artigo 83 do regulamento-sanitário de 18dl' [un ir de 1890:

quando, a juízo do Inspetor Geral de Higiene, os cortiços ou estala-K 11I-1 ns o puderem, por suas más condições sanitárias, continuar as rvir sem perigo para a saúde pública, a autoridade sanitária, alémdn irn] ição das multas que no caso couberem, intimará logo osprupri tários ou sublocadores para que os fechem dentro de 48 ho-IIIS, só podendo ser reabertos depois de feitos os melhoramentos ne-, 'ssários.

1';111 outras palavras, o regulamento sanitário parecia permitir que\I 11. P 'lor de Higiene determinasse o fechamento de qualquer\'01 li \'0 da cidade num prazo de 48 horas, sem a necessidade deItil didus anteriores para prevenir proprietários e inquilinos. O11 iso informava. ainda que o governo estava disposto a lançar111 o "d ' meios coercitivos mais enérgicos" para o cumprimento

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das determinações do inspetor, assim como providenciar "sobreo alojamento dos moradores das habitações condenadas" - umaboa intenção que permaneceu letra .morta. Urna comissãoconstituída por funcionários da Inspetoria de Higiene - doisdelegados e um ajudante - deveria proceder às "diligências maisrigorosas" com o intuito de indicar os cortiços que precisavamfechar para a realização de melhoramentos.

É verdade que o aviso também determinava que providênciasextremas como o fechamento só se aplicassem a habitações coleti-vas cujas condições fossem "tão mas" que se tomava "impossível,pelo menos em prazos relativamente curtos; fazerem-se modifica-ções ou melhoramentos compatíveis com a natureza das respecti-vas edificações e local em que estiverem situadas". O fato, porém,é que o regulamento sanitário concentrava poderes demais nas mãosdos doutores da Inspetoria de Higiene, e estes, devidamente incen-tivados pelo ministro, não se fariam de rogados. Além disso, é cer-to que os critérios utilizados pelos cientistas da Higiene na avalia-ção das .condições sanitárias dos cortiços tinham poucas chancesde agradar a propri~t~~~_.~_.Íl}_q~Wp..os_a.meaçadosde despejo. Omais complicado da situação é que os cidadãos que se consideras-sem lesados não tinham a quem apelar; como logo veremos, as

__~__decisões.daInspetoria-a respeito de' cortiços -eram irrecorríveis.Segundo a interpretação de alguns dos burocratas que acompanha-riam os acontecimentos dos meses seguintes, nem o ministro doInterior - a quem a Inspetoria de Higiene estava subordinada -poderia revogar uma ordem de fechamento de estalagem determi-nada pelos ~uláP.i2§:

Como seria de esperar, os problemas começaram logo a sur-gir. Em março, a Inspetoria de Higiene ordenou o fechamento daestalagem da rua da Conceição, n2 95. O arrendatário do prédiorespondeu que não podia cumprir a ordem porque os moradores serecusavam a deixar o local. Consultado sobre o impasse, o minis-tro do Interior ordenou que a autoridade policial agisse para "tor-nar efetiva semelhante providência". E o ministro fez ainda mais:instruiu o inspetor geral de Higiene a recorrer diretamente à polí-ciasempreque ocorresse uma situação semelhante; ou seja, o higie-nista ficava dispensado até da autorização do ministério quando

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desejasse recorrer à .força. Paralelamente, o chefe de polícia daCapital Federal era avisado de que deveria acudir prontamente àssolicitações da Inspetoria.

A situação se complicou nos meses seguintes, com o aumen-to dos protestos dos proprietários, a inquietação dos inquilinos eos desentendimentos entre os diferentes órgãos da própria admi-nistração pública. Em maio, José Gonçalves, proprietário da esta-lagem à rua do General Pedra, n2 63, recorreu diretamente ao mi-nistro do Interior contra a ordem de fechamento que havia recebido.No documento que enviou ao ministro, o corticeiro fez um brevehistórico de suas agruras. Em princípios de abril, o inspetor geralordenara o fechamento "dando-lhe um prazo pequeno". José Gon-çalvesrequereu uma vistoria na esperança de provar que sua esta-

G lagem estava em ~ondições, e declarou-se disposto a executar"todos os melhoramentos" que lhe fossem exigidos. O higienistaenviou então uma comissão composta de um ajudante, dois dele-gados e um engenheiro do ministério do Interior. O engenheiroteria declarado, diante das várias pessoas presentes, que a estala-gem "tinha uma grande área e estava em boas condições", e queposteriormente indicaria ao proprietário os melhoramentos neces-sários. Qual não foi a surpresa de José Gonçalves, porém; quando,em 30 de abril, recebeu intimação para fechar a ala direita da esta- _lagem. As lamúrias do proprietário se encerravam com uma notade pesar pelos inquilinos: o cortiço possuía 89 casinhas, "e VExa.compreende em que condições ficava a população ali residente, nocaso de ser cumprida a ordem do Snr, Inspetor, quando não há paraonde mudá-Ia".

Os casos desse tipo se repetiam com freqüência, o que acabouprovocando a manifestação da Sociedade União dos Proprietáriose Arrendatários de Prédios, "núcleo a que pertencem quase todosos proprietários e arrendatários desta Capital". Os corticeiros re-clamavam que eram inexeqüíveis "as ordens continuadas" da Ins-petoria de Higiene para fechamento de estalagens. Em primeirolugar, porque não havia para onde remover os moradores, e nãoera correto sujeitar "grande número de famílias ao vexame e àsinconveniências de verem transferidos seus lares para a praça pú-blica". Em segundo lugar, os funcionários da Higiene estavam agin-

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---'-1--- .I

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1!

" do de forma intempestiva, exigindo a interdição em casos onde osmelhoramentos eram possíveis, e desrespeitando assim o direitode propriedade. Em terceiro lugar, o regulamento sanitário em vi-gor condenava o proprietário sem lhe dar o direito de defesa' mes--,mo as vistorias, nos poucos casos em que eram concedidas, se rea-lizavam em tais condições que o corticeiro geralmente não tinhanenhuma chance de reverter o quadro. O documento da Sociedadedeixou de mencionar uma situação que também parece ter sidocomum: feita a vistoria, o proprietário recebia uma lista dos repa-ros que precisava fazer em seu cortiço; acontece, todavia, que aIntendência Municipal resolvia indeferir o pedido de licença paraa realização das obras. Neste caso, o dono do cortiço ficava semsaída, à mercê da Inspetoria de Higiene. Finalmente, os proprietá-rios acenavam com o potencial de rebeldia de seus aliados de oca-sião - os inquilinos: "Os fechamentos em breve prazo que a Ins-petoria costuma ordenar poderão trazer sérias perturbações à ordempública, porque o desespero nem sempre mede conseqüências e os

__~~~Er-.i~táriose arrendatários de prédios nem sempre têm meios paraacalmar os ímpetos de seus inquilinos".. ---+Diante-da-eonfusão reinante e da veemência dos protestos,Implantou-se a discórdia nas próprias hostes governamentais. Um

__. __<i~s__~.Ul:?~r~~_doE1iniS!~ri() do Interior resolveu tentar algumacoisa contra a prepotência da Inspetoria de .. ene. Sua primeiratentativa neste sentido foi, no mínimo canhestra ncarregado deelaborar pareceres sobre as várias reclamações enviadas pelos pro-prietários, o burocrata descobriu, com certo espanto, que o regula-mento sanitário em vigor não permitia mesmo recurso das deci-sões da repartição de Higiene sequer ao ministro ao qual ela estavasubordinada. Portanto, os protestos enviados pelos donos de corti-ços ao ministro não podiam surtir nenhum efeito. O relator do pa-recer evocou então o regulamento sanitário vigente nos últimosanos do Império. Tal regulamento, de fevereiro de 1886, determi-nava que aqueles que se considerassem lesados pelas decisões darepartição de Higiene - na época, ainda Junta Central de Higiene-podiam impetrar recurso ao ministro. Aparentemente impressio-nado com a sensatez elementar desse dispositivo do regulamentosanitário vigente anteriormente, o relator achou que ele não fora

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I 1"udw, do 110 d janeiro de 1890 "talvez por descuido". O buro-I 1 til 11 \I 11'IIIIIVlI, no entanto, que, apesar do "esquecimento", tal1II 1111 IIVI) '( 111Li '1 uava em vigor, pois seria um absurdo imaginar o111111"11 1), ÂN uutoridades superiores do ministério consideraram

111 11111'10 () pur .cr, e concluíram que "não há que deferir sobre a1111111 1\ 1(\pl":-; .ntação".

FIl\llllIlItO isso, o pessoal da Inspetoria de Higiene adquiria111111 \110111' triun fali ta. Um dos ajudantes da Inspetoria, que acom-I'""h" I dt, P .rto os procedimentos em relação aos cortiços, foiIli iH 11 ,dn pma comentar a chusma de protestos que caía sobre o111 11 I '\1 o do Interior. E o homem resolveu espicaçar os adversá-I o ('\lltNi k-rou "facílima" a tarefa de responder aos argumentos1111 I 1IIIlvl'Im José Gonçalves e outros semelhantes, debochou das11 I 11111 I~' ':-; da ociedade União dos Proprietários quanto à faltadi I I 1"IíON na atuação da Inspetoria, e fulminou impiedosamente., 11111 1Il'l utn d ministério do Interior:

Ribeiro descreveu com~otal :~lJj~tivi~~e"~ sl!.~yról?ria subi~ivi-dade sobre os cortiços, seus proprietários e, principalmente,seusmõfa:âores:--~----'"

Falando das habitações, é forçoso atender para estas sentinas sociaisa que a linguagem do povo apelidou cortiço.

Todos sabem o que é o cortiço.Gerou-os a avareza calculista e fria dos ambiciosos vulgares,

para os quais a moeda é sempre moeda, e o cortiço é a mina auríferae inesgotável a saciar os sentimentos vorazes destes corpos semcoração!

Alimenta-os a lubricidade do vício, que se ostenta impudo-norosa (sic), ferindo os olhos e os ouvidos da sociedade séria quedeles se aproxima, e a miséria andrajosa e repugnante, que faz daociosidade um trono, e por um contraste filho das circunstânciaspeculiares à vida das grandes cidades, ao lado [... ] do vício e dolodaçal impuro do aviltamento moral, está também o leito do tra-balhador honesto, que respira à noite a atmosfera deletéria desteesterquilínio de fezes!

. -Nocortlço acha-se de "tudo: o mendigo que atravessa as ruas comoum monturo-ambulante.-ameretriz impudica, que se compraz emdegradar corpo e alma, os tipos de todos os vícios e até [...] o repre-sentante do trabalho [-r- ]

""Cói:ripfeehde::sedesdelogo opapel que representam na insalubri-dade da cidade estas habitações, quando nos le~brarmos que alémde todas as funções orgânicas dos seres que o povoam, no cortiçolava-se, engoma-se, cozinha-se, criam-se aves, etc.

Só vemos um conselho a dar a respeito dos cortiços: a demoli-ção de todos eles (grifo meu), de modo que não fique nenhum paraatestar aos vindouros e ao estrangeiro, onde existiam as nossassentinas sociais, e a sua substituição por casas em boas condiçõeshigiênicas."

IIINtn li I .itura do parágrafo v, do artigo 83 do Regulamento Sanitá-1 11 puru .hegar-se à evidência de que não cabe, na espécie, recursop 11'11 S.Exa. o Snr. Ministro do juízo ou resolução do Inspetor Geral11l' IIi 'iene, o qual somente por não dispor de elementos de forçap 11'11 tornar efetivo o fechamento de prédios [...], dada a resistência,1 'OI'I'C ao Governo o qual providencia para que os prédios sejam1'1 '1IfIdos [ ... ] Enquanto vigorarem as disposições regulamentares alu-dldus, outra não pode ser a sua interpretação.

quilo que o burocrata do ministério do Interior considerava um1111 ",'do ra exatamente o que valia; naquele momento, a Inspeto-I I de l ligiene parecia o quarto poder da República.

Foi neste contexto, em abril de 1892, que um higienista as-l'l\lld 'U à presidência da Intendência Municipal, e posteriormente,l'lll d 'zembro do mesmo ano, foi nomeado para a prefeitura da( 'npital Federal." Cândido Barata Ribeiro, médico baiano, 49 anos,professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, havia obti-do o título de doutor, em 1877, com uma teseintitulada Quais asmedidas sanitárias que devem ser aconselhadas para impedir odrsenvolvimento e propagação dafebre amarela na cidade do Riodi' Janeiro? Como se tratava de um trabalho "científico", Barata

Toma-se evidente, portanto, que ao ordenar a demolição doCabeça de Porco, entre outros cortiços, Barata Ribeiro estava ape-nas colocando em prática a sua opinião histórica a respeito dessetipo de habitação popular. Mais ainda, e mantendo-se coerente coma sua própria formação na área de saúde pública, ele pregava a

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substituição dos cortiços "por casas em boas condições higiêni-cas". Para realizar tal projeto, não era suficiente aos higienistasgalgarem as posições na administração pública; era preciso sedu-zir e buscar a aliança de setores empresariais."

ços públicos- no caso, concessões para a operação de linhas debonde; paralelamente, outros grupos empresariais, ou até os mes-mos, adquirem terras pouco valorizadas na periferia da cidade; fi-nalmente, concluídas as linhas de bonde e feito o loteamento dosterrenos, os investidores conseguem uma remuneração astronômi-ca para o seu capital. O sucesso da operação é às vezes garantidopela presença desses empresários na Câmara, como vereadores elei-tos - e, portanto, encarregados de votar as diretrizes da políticade expansão urbana. Tudo muito dentro dos conformes, e qualquersemelhança com processos de crescimento mais recentes de cida-des brasileiras não terá sido mera coincidência. 50

Houve nos anos 1880 algumas tentativas de incentivar em-presários da construção civil a erguer moradias baratas para operá-rios. A maior parte das tentativas foi malograda, apesar dos váriosprivilégios concedidos pelo governo aos investidores. Um dos pou-cos contratantes que chegou a construir as casas para operários, oengenheiro e empresário Arthur Sauer, dono da Companhia de Sa-neamento do Rio de Janeiro, justificava assim o seu interesse noinvestimento:

...ELUCRO

O discurso dos higienistas contra as habitações coletivas inte-ressou sobremaneira a grupos empresariais atentos às oportunida-des de investimentos abertas com a expansão eas transformaçõesda malha urbana da Corte. Haveria no processo um enorme poten-cial para a especulação na construção de moradias e no provimen-to da infra-estrutura indispensável à ocupação de novas áreas dacidade..--Ã...J3restigiosaCiência dos higienistas parecia legitimar asretensõeS'aõs empresários ao insistir na necessidade de uma tera-

pia radical no centro da cida e, e ao énfàiizar sempre que ª-ºes~_truição das moradias consideradas insalubres e a diminuição daaglomeração de pessoas naquela área eramos dois motes eSsen=ciais de tal terapia.48 - ---

O crescimento da cidade para novas áreas tomou-se factível apartir dos anos 1870 devido à expansão das linhas de bonde. Pou-co a pouco, fazendas e chácaras nos subúrbios foram sendocom-v" :--pradas e loteadas, numa conjunção de interesses entre empresáriosda área de transportes e agentes do capital imobiliário. Às vezes,um mesmo empresário atuava nas duas áreas de investimento. uniexemplo bastante citado na historiografia é o do barão deDrummond, um nome cuja memória está comumente associada aosurgimento do jogo do bicho. Drummond era sócio da Cia. FerroCarril de Vila Isabel e proprietário de lotes no bairro do mesmonome."

O início da ocupação de Copacabana, já nos anos 1890, foioutro fruto da associação bonde/loteamento, envolvendo ainda ointeresse de vereadores que eram também empresários nesses ra-mos de atividade. Desenha-se assim um padrão de expansão urba-na que quiçá se repetiu em outras cidades brasileiras: primeiro,alguns empresários conseguem o monopólio na exploração de servi-

rt Os cortiços e estalagens da Corte, infeccionados como se acham por

suas péssimas condições sanitárias são os focos principais donde-~ -_o o -.- _. - •• - • - .- • - surgem as epidemias e-nascem afecções mórbidas em ameaça cons-I tante aos moradores próximos, razão pela qual foramcondenados e éí reconhecida a imprescindível necessidade de, quanto antes, seremI tais habitações substituídas por outras, construídas segundo as re-

_,;1 gras higiênicas e de aluguel muito módico para residência de prole-tários, operários e empregados subalternos...sl

Ili!I

Vemos aqui, portanto, que o empresário se apropria do dis-cursõdã Higiene pãi-a justlÍlé;ar=slla opção de Investimento. OinteresSãnte na pássagem é queü"princlpaI In~onverueille doscortiços estaria na "ameaça constante aos moradores próximos";isto é,. a utilidade do projeto não se assentaria na melhoria dascondições de vida das classes populares em si, mas sim na~anta-~m de tomá-Ias menos perigosas para a classe dominante. No-vamente, "classes perigosas" em mais de um sentido: logo adian-te, no mesmo documento, Arthur Sauer descreverá os cortiços

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Só depois de um célebre contrato feito pela Intendência com o Dr.Carlos Sampaio, para o prolongamento das ruas João Ricardo e.Ca- _jueiros, com a obrigação de indenizar as Suplicantes e outros proprie-tários, contrato que devia ser transferido ao Banco Evolucionista, ede mandar este Banco uma comissão ,orçar o valor das desapropria-ções a fazer, é que, por singular coincidência começaram as Supli-cantes e os outros proprietários a ser incÓniõdaaos~s4 ---- -------

Em suma, na versão do~prie~o cerco e a destruição[mal da estalagem estariam diretamente ligados aos investimentosplanejados por Carlos Sampaio, Vieira Souto, e sua Empresa deMelhoramentos. Mais ainda, as proprietárias insinuavam que ademolição do cortiço iria diminuir o valor das desapropriações aserem pagas - pelo menos é isto o que se pode razoavelmentededuzir da referência ao trabalho da comissão que teria ~gr-çamento das desapropriações necessárias. Na versão da prefei~a estalagem deveria ser destruí da porque havia sido co~strüídã-Semlicença da Câmara e contra expressa recomendação de uma porta-ria governamental de 28 de agosto de 1840. Além disso, obvia-mente, haveria o estado "ruinoso" dos prédios e a imundície su-postamente característica do cortiço e sempre condenada pelaInspetoria - antiga Junta - de Higiene."

,.

111I110 ·'f()(.'OH de moléstias e de todos os vícios", caracterizando-II I. 1111 tunto como um problema de higiene quanto de controle

11 11.

Arthur Sauer conseguiu cumprir parte do contrato e sua com-1'111111 II chcc u a construir cinco vilas operárias, abrigando umapopllll~' () superior a 3 mil pessoas. Vieira Souto, contudo, outro10111 -ruplud com uma concessão, fracassou na empreitada. Já nodlll'llllll'lltO de solicitação do contrato, o empresário apontava a11111I'011' n 'ia dos proprietários de cortiço como a principal dificul-d!ll! ' d(lN invc tidores:

prolongar a rua dos Cajueiros, a rua do dr. João Ricardo e aindaabrir um túnel no morro do Livramento. É desnecessário dizerque a realização da obra dependia da destruição completa doCabeça de Porco. De acordo com Lilian Fessler Vaz, CarlosSampaio solicitara ainda as concessões de praxe em tais contra-tos: direito de desapropriação de prédios eterrenos, cessão gra-tuita de terrenos públicos, privilégio para a exploração de umalinha de carris nas ruas adjacentes e no túnel, e mais direito decobrança de pedágio por trinta anos. 53

Em 26 de janeiro de 1893, exatamente o dia da operação deguerra contra o Cabeça de Porco, duas proprietárias da estalagemencaminharam uma representação ao prefeito Barata Ribeiro pro-testando "por perdas e danos contra qualquer ato de violência quese pretenda praticar em espoliação de sua propriedade". Vejam oque diz esse documento:

1'01 ((LI' intuitivo que tais proprietários, estabelecendo os aluguéis11111110 muis baixos do que poderiam fazê-Ios os construtores dosIIIIVOSprédios, dotados de todas as condições de higiene e de con-1111to d vida, formariam numa concorrência impossível de susten-1li, 'li novo ficariam senhores exclusivos do seu campo de torpeI li' ulação."

undo Rob rt Pechman e Luiz Queiroz Ribeiro, estudiososI! I lnnuu ' do capital imobiliário no período, as alegações deVi ÍI I Souto podem.ser contestadas devido ao descompasso entreI "IIOI'Ill' procura e a pequena oferta de moradias.' Para esses1111111 "', Vicira Souto não declarou o verdadeiro interesse dos

''l'IIP Iulistas" na investida contra as habitações coletivas: mui-111 \'01 tiço/) ocupavam terrenos bem localizados, há muito inte-I 1110. II malha urbana, e portanto verdadeiras minas potenciais

li IIIV stimento.() I 'it r talvez se recorde que Vieira Souto era um dos no-

1\1 ('onstantes da longa lista de notáveis presentes à demoliçãoIhI ( , lI> 'ça de Porco. O caro leitor não se terá esquecido tampouco'I'" Vi iira outo lá estava ao lado de Carlos Sampaio, e que am-lIu contribulram com o esforço de demolição providenciando a1"' (,nça de quarenta operários da Empresa de Melhoramentosdo Brasil, companhia da qual eram diretores. Tratava-se, semlu klu, de interesse pela coisa pública e preocupação com a higie-

1\ 11 I habitações. Talvez fosse ainda mais do que isso. Em 1891,11 ( \11I1-1 'lho de Intendência Municipal havia fechado um contratoI 11111 o mgenheiro Garlos Sampaio, que ficava encarregado de

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à~;~ detrimento da tuberculose - uma doençaque, como já foi mencionado, os próprios médicos associavam ànutrição e às condições de trabalho e de vida em geral da popula-ção. Durante todos esses anos de ÇLiseaguda de saúde pública nacidade do Rio (entre aproximadamente 1850 e 1920), a tubercu-lose matou muito mais do que quaisquer das outras doenças epi-dêmicas. A {ÍÍoercuI08e;>porém, parecia atacar indiferentementebrancos e negros, nacionais e estrangeiros e, desculpa suprema,era doença extremamente grave até mesmo em Paris, o que noseximia de qualquer culpa por abrigar a peste." A febre amarelasignificava basicamente o oposto: além de não acometer Paris edeflagrar o Rio anualmente, era um verdadeiro flagelo principal-mente para os imigrantes. Rui Barbosa descreveu assim as carac-terísticas da febre amarela:

É um mal, de que só a raça negra logra imunidade, raro desmentidaapenas no curso das mais violentas epidemias, e em cujo obituário,nos centros onde avultava a imigração européia, a contribuição dascolônias estrangeiras subia a 92 por cento sobre o total de mortos.Conservadora do elemento africano, exterminadora do elemento eu-ropeu, a praga amarela, negreira e xenófoba, atacava a existência danação na sua medula, na seiva regeneratriz do bom sangue africano,com que a corrente imigratória nos vem depurar as veias da

. mestiçagem primitiva, e nos dava, aos olhos do mundo civilizado, osares de um matadouro da raça branca. 57

Se o leitor está impressionado com a virulência do racismoestampado nesse parágrafo de Rui Barbosa, saiba que a tentativade entender a possibilidade histórica de semelhante aberração foioque me moveu na pesquisa sobre febre amarela que originou osegundo capítulo do presente volume. No momento, e como ain-da se trata de concluir este capítulo, basta observar que o concei-to dCêFvITiz~constante na passagem implicava o ideal deembraiiqüêêiiiiento, o "depurar as veias da mestiçagem primiti-va", e isto significava adotar medidas para viabilizar a entradamaciça de imigrantes europeus no país. Uma das medidas neces-sárias seria a melhoria das condições de salubridade pública, comênfase no combate a doenças que, como a febre amarela, amea-çavam principalmente os imigrante~esse sentido, a moderna

Ambas as versões valem pelo que são: conjuntos de arrazoa-dos produzidos num momento de conflito aberto. De qualquer for-

t ma, as versões explicitam para além de qualquer dúvida que higie-li nistas e agentes imobiliários estavam unidos pelas reformas urbanasIj e contra os corticeiros. Se eu fosse um autor dado a grandiloqüências

teórico-estilísticas, teria escrito que acabamos de reconstruir, emparte, o processo histórico de formação da aliança entre a Ciênciae o Capital, aliança que seria essencial às transformações urbanas"radicais" - no sentido da hostilidade em relação às "classes po-bres" e à cultura popular em geral - do início do século xx noRio. Mas eu não sou um autor grandiloqüente, e logo não fica es-crito aquilo que escrevi, apesar de tê-lo provado.

EPÍLOGO

Antes de terminar este capítulo, preciso antecipar-me a umpossível mal-entendido. Ao contrário de várias personagens pre-.sentes nesta minha história, eu não tenho a mania da suspeiçãogeneralizada. Isto é, eu realmente não acho que todos·'o-ç-·-·'-'··'··-·reformadores da cidade na virada do século eram movidos apenaspor considerações maquiavélicas e.interesseiras ..Vários deles, .tal-..vez os mais importantes dentre eles, certamente agiam movidospor convicções íntimas, e alguns deles conseguiram vitórias signi-ficativas contra flagelos humanos reais e que precisavam ser con-trolados - como, por exemplo, e para não deixar de mencionar ocaso mais óbvio, a campanha bem-sucedida liderada por OswaldoCruz contra a febre amarela.

Mas constatar alguns dos resultados atingidos não significafechar os olhos para o fato de que, muitas vezes, tais resultadosforam obtidos a preços sociais excessivamente elevados, e que,apesar de o discurso cientificista da Higiene pretender pairar aci-ma dos homens e para além da moral, tratou-se sempre de tomardecisões políticas claras quanto ao direcionamento dos benefí-cios a serem al~ançados através das iniciativa~ das ~dminis.tra-ções pública~E claro, por exemplo, que havia motivos, diga-mos, nada óbvios ou "neutros", na opção em priorizar o combate

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pl Itlcn da "gestão científica" da cidade escolhia cuidadosamentel

1'1'" h 'n ficiários - isto é, tomava suas decisões políticas - e1'lItl'lIdia qu o saneamento e as transformações urbanas não pre-I II um t r grandes compromissos com a melhoria das condi-'! I'H I I vida de uma massa enorme de pessoas - os negros, es-I' ,'IISp 'it s preferenciais, membros por excelência das "classes

111 I j 'ONIlS/'"() mais trágico em toda essa história é que a alegação de

"" vntif 'idade", de neutralidade nas decisões administrativas, trazI IIIpr{ m seu cerne a violência contra a cidadania. Se os admi-

11 trudor ,os governantes, são eles próprios governados por im-P"I "ivos ditos "científicos" - sejam esses imperativos uma cria-

11 das m ntes férteis de higienistas, naquela época, ou de"IIIIIOlllista , mais recentemente-, não há o que negociar com osI ti \11 os, ssa massa de ignorantes portadores de todos os vícios11\1 110 "ulados pelo vírus da "cultura inflacionária".

Mas s mpre houve quem conseguisse ver a política nas cre-ti IIduis da "ciência". O trecho abaixo, por exemplo, consta de um11111111'1'\) d f vereiro de 1905 do jornal Emancipação, "órgão daI• ,das Arte Gráficas e do proletariado em geral". O articulistati cutin pr ci amente as causas da Revolta da Vacina, que, comoIIhl !IInH, foi o maior movimento de protesto popular contra os

1111 todos utilizados.pelos órgãos de saúde pública no período. Se-IIl1do () uutor, o governo estava .

cortiços e favelas cariocas na virada do século, deixam dúvidas deque a política de erradicação dos cortiços - realizada com deter-minação e truculência, pois que "científica" - possa ter resultadoem qualquer melhoria significativa nas condições de moradia esalubridade da população pobre do Rio.

I

I!

ujoilundo o operário aos processos da experiência científica em nome1111 pr sunçosa sabedoria oficial, muito zelosa pela saúde pública,'lu uido se trata de epidemias que proporcionam altas transações comtlN dinh iros públicos, e tão indiferente aos males que mais nos afli-H 11\, quando pedimos proteção para o nosso trabalho, constantementeli, sultad pelo capitalismo ganancioso e desumano, corno está acon-u-c ndo agora com as obras do porto, da avenida e da prefeitura,(.111.1 O trabalhador percebe um ordenado que mal lhe chega para umpcda 'o de charque, intoxicado e mortífero." .

I

ITrabalhadores sujeitos "aos processos da experiência científica

I 111 11011I' da presunçosa sabedoria oficial"? Sim, e não apenas em11104, I \ fato, as fotografias constantes no caderno de ilustrações, de

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