bogart, anne - a preparação do diretor

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A preparação do diretor Sete ensaios sobre arte e teatro Anne Bogart Tradução Anna Viana Revisão de tradução Fernando Santos wmfmartinsfontes SÃO P AULO 20 I I

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livro para diretores teatrais

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  • A preparao do diretor

    Sete ensaios sobre arte e teatro

    Anne Bogart

    TraduoAnna Viana

    Reviso de traduoFernando Santos

    wmfmartinsfontesSO PAULO 20 I I

  • Esta obra fo i publicada originalmente em ingls com o t tuloA DIRECTOR PREPARE S, SEVEN ESSAY S DN ART AND THEATRE ' ,

    por Rouiledge, Londres e Nova York 'Copyright 2001, Anne Bogart

    Copyrigllt 2011, Editora WMF Martins Fontes us,So Paulo; para Q prese nt e edio.

    1: edi o 2011

    Trad u oANNAVIANA

    Revi so d e trad uoFernando Santos

    Acompanhamento edi tori alM rcia Leme

    Revises grficasAna Maria de O. M. Barbosa

    Sandra Ga rcia CortesEdio de arte

    Katia Harumi TerasakaProduo grfica

    Geraldo AlvesPaginao

    Mo acir Kaisumi M atsusaki

    Dados In ternacion ais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Bras ile ira do Livro, Sp' Brasil)

    Bogart, AnneA pre parao do d iretor : se te ensaios sobre arte e teatro / Anne

    Bogart ; tradu o Anna Viana ; reviso de traduo FernandoSan tos . - So Paulo : Editora WMF Martins fontes, 2011.

    Ttu lo original: A Director Prepares : Seven Essays on Art andTheatre

    ISBN 978-85-7827-45 1-1

    1. Cria o (Literria, arts tica e tc .) 2. Teatr

  • Sumrio

    Agradecimentos 9

    Introduo 11

    Prefcio: histria e anti-histria 17:.~

    J

    1 Memria 29

    2 Viblncia 49

    3 Erotismo 67

    4 Terror 83

    5 Esteretipo 95

    6 Timidez 115

    7 Resistncia 137

  • '
  • Introduo

    A arte grande e engrandece a voc e a mim. Para um mundodiminuto, suas perspectivas so chocantes. A arte a sara ardenteque abriga e torna visveis nossos anseios mais profundos.

    Jeane~)f! Winterson

    Vejo o teatro como uma forma de arte porque acredito em seuI

    poder transformador. Trabalho no teatro porque quero o desa-fio da determinao e da articulao em minha vida diria. Adireo teatral m e escolheu tanto quanto eu a escolhi. Encon-tramos uma outra. Gosto de olhar. Gosto de estu dar. Gostode conhecer pessoas na atmosfera carregada de uma sala deensaio ou de um teatro.

    O teatro tem sido bom para mim. Tem me proporcionadograndes amizades, amores, viagens, trabalho, diverso, terrore prazer. Ofereceu-me tambm uma vida inteira de estudo. Es-tudar um compromisso de perodo integral que envolve lerli v ros , ler pessoas , ler situaes , ler sobre o p assado e ler opresente. Para estudar, voc entra em um local com a totali-dade do seu ser, escu ta e comea a se mover dentro dela comsua imaginao. Voc pode estudar cada situao em que se

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  • A PREPARAO DO DIRETOR

    encontra. Pode aprender a ler a vida enquanto a vida estacontecendo.

    Um mergulhador primeiro flutua na gua, espera de queo fundo do mar abaixo dele comece a fervilhar de vida. Sdepois ele comea a se movimentar. assim que eu estudo.Escuto at haver movimento e ento comeo a nadar.

    Como eu queria abordar o teatro com o olhar do artista,comecei a estudar as ferramentas que herdamos e os procedi-mentos que usamos para realizar o trabalho teatral. Estudeitambm o que os artistas de outras reas fazem - como pen-sam e como criam. Procurei a ajuda de aliados no processo ar-tstico. Como chegamos um ao outro na arena de ensaio ou nopalco? Como comeamos e como continuamos?

    Como diretora de teatro enfrentei constantes problemasque simplesmente no desapareciam. Diversas vezes , depareicom a violncia, a memria, o terror, o erotismo, o esteretipo,a timidez e a resistncia. Em vez de evitar esses problemas,descobri que estud-los seria mais produtivo. E esse estudomudou a maneira como encaro o meu trabalho no teatro. Osproblemas se transformaram em aliados.

    A preparao do diretor uma articulao desse estudo.Os artistas so pessoas dispostas a articular a transitorie-

    dade e a transformao. Um bom artista encontra novos mo-delos para nossas ambiguidades e incertezas. O artista setransforma no criador do futuro atravs do ato violento da ar-ticulao. Digo violento porque a articulao um ato defora. Exige agressividade e capacidade para entrar na briga etraduzir essa experincia em expresso. Na articulao co -mea uma nova organizao do cenrio herdado.

    Um grande amigo meu, o escritor Charles L. Mee [r., m eajudou a identificar a relao entre a arte e a maneira como as

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    INTRODUO

    sociedades esto estruturadas. Ele pensa que, medida queas sociedades se desenvolvem, so os artistas que articulamos mitos indispensveis para a formao da nossa experinciade vida e fornecem parmetros para a tica e os valores. Mui-tas vezes, os mitos herdados perdem seu valor porque ficampequenos e restritos demais para dar conta das complexidadesdas sociedades em permanente transformao e expanso.Nesse momento, so necessrios novos mitos para abrangeraquilo em que estamos nos transformando. Essas novas cons-trues no eliminam nada que j exista; ao contrrio, elas in-corporam novas influncias e produzem outras formaes. Asnovas mitologias sempre assimilam ideias, culturas e pessoasexcludas das mitologias anteriores. Dessa forma, conclui Mee,a histria da arte a histria da assimilao.

    Culturas e comunidades artsticas nacionais e internacio-">

    nais vivem hoje grandes transformaes de suas-initologias .As revolues tecnolgica e empresarial mudaram o modocomo n s comunicamos, interagimos, vivemos, fazemos artee articulamos nossa tica e nossos valores. Os mitos do sculopassado so hoje inadequados para abranger essas novas ex-perincias. Estamos vivendo no espao entre mitologias. ummomento muito criativo, cheio de possibilidades de novas es-truturas sociais, de paradigmas alternativos e de assimilaode influncias culturais dspares.

    Acredito que as novas mitologias sero criadas e articula-das na arte , na literatura, na arquitetura, na pintura e na poe-sia. Os artistas que criaro um futuro possvel de viver, pormeio de sua capacidade de articular a transitoriedade e atransformao.

    No entanto, para que isso acontea neste mundo em r-pida mudana, preciso ao , rapidez, determinao e traba-

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  • A PREPARAO DO DIRETOR

    lho puxado. Para sobreviver, seguir em frente , sustentar umafamlia, garantir um teta sobre nossa cabea, preciso agir apartir de um impulso pessoal bastante particular: o instintode sobrevivncia. Existe sempre o perigo de esse modo desobrevivncia dominar o processo artstico. A maioria dasescolhas que fazemos em nosso jeito de sobrevi~erbrota danecessidade de segurana e progresso. Mas o instinto de se-gurana d acesso a apenas uma pequena parte de nossa ca-pacidade criativa. Se limitarmos nossos impulsos ao impulsode sobrevivncia, o mbito, o alcance de nosso trabalho arts-

    tico ser limitado.Lewis Hyde afirma em seu livro The Gift: Imagination and

    the Erotie Life ofProperty [A doao: imaginao e a vida er-tica da propriedade] que os seres humanos sempre agem etomam decises a partir d e duas fontes possveis: o instinto de

    sobrevivncia e o impulso de doao .O impulso de doao , assim como o instinto de sobrevi-

    vncia, tambm exige ao e determinao , mas os resulta-dos so diferentes porque a inteno que provoca a ao notem nada que ver com segurana. A ao tem origem no im-pulso de dar um presente a algum e na necessidade de criaruma viagem para os outros , distinta de suas experincias di-rias. Esse instinto exige generosidade, interesse nos outros e

    identificao.Imagine planejar uma festa-surpresa para comemorar o

    aniversrio de um amigo . Voc decide quem convidar, comosurpreender e quando revelar, tudo com a transferncia dasensao de prazer e entusiasmo. Voc est estruturando umaviagem para outra pessoa por meio da empatia sincera e dosentimento sincero . A ao criativa e as escolh as brotam dompeto de doao. Esse tipo de impulso determina tambm o

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    I!

    INTR ODU O

    modo como compomos uma cano, escrevemos uma histria,projetamos uma casa e ensaiamos uma pea de teatro . Cria-mos viagens para serem recebidas pelos outros em um espritode doao.

    Para enxergar o teatro como uma forma de arte , temos deser capazes de agir nesse esprito de empatia. Mas no globali-zado mundo atual, nos vemos imersos no comrcio, no mer-cado e, talvez em consequncia disso , nos vemos em conflito.No mundo utilitrio , no somos apenas artistas, somos pro-dutores tambm. Cada um de ns tem dentro de si um produ-tor e um artista. Devemos tomar cuidado para que um nodomine o outro. O produtor precisa proteger o doador e saberquando e como lhe dar espao e liberdade. O doador tem d eceder lugar ao instinto de sobrevivncia nos momentos cer-tos. Os dois precisam ter seu espao e autonomia. Como so-breviver no mercado e ainda assim fazer arte? .t om o viverneste mundo rpido e competitivo e ainda chegar a um ensaiocom a capacidade de invocar a criana selvagem e violentaque existe dentro de ns e que torna a arte potica, magnfica,perigosa e aterrorizante? Nesse clima de corrida pela sobrevi-vncia, como gerar doaes com presena e generosidade?

    O estudo da violncia, da memria, do terror, do erotismo,do esteretipo, da timidez e da resistncia me ajudou a tratarcada um desses aspectos como um aliado no processo cria-tivo. Foi uma jornada em busca de outras culturas, ideias epessoas. Deu-me a coragem de acolher o desequilbrio de nos-sas incertezas e experimentar a violncia da articulao a fimd e tornar reais as novas mitologias do n osso tempo.

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  • PrefcioHistria e anti-histria

    Examine por um momento uma mente comum em um diacomum. A mente recebe uma mirade de impresses - triviais, fan-

    tsticas, evanescentes ou gravadas com a dureza do ao. Vm detodos os lados, uma torrente incessante de tomos incontveis; e,

    ao carem, ao se moldarem na vida deste ou daquele dia, a nfase

    cai diferente de antes; o momento de importncia no ocorreu

    agora, mas ento.I

    Virginia Woolf

    Quando jovem, o filsofo francs Jean-Paul Sartre trabalhoucomo marinheiro em navio mercante. Em urna noite fria etempestuosa, o navio atracou no porto de Hamburgo, na Ale-manha. Sartre desceu do navio e caminhou na chuva pelasruas varridas pelo vento at o abrigo de um velho bar. Sentou--se e pediu urna b ebida. Depois de algum tempo , uma lindamulher foi at a sua m esa, apresentou-se e se sentou ao ladodele. Comearam a conversar. Por fim, depois d e um bomtempo, ela p ediu licena e foi ao banheiro. Enquanto a espe-rava, antecipando a sua volta, Sartre imaginou a noite que elespassariam juntos em um quarto d e hotel, a seduo , o sexo e,

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  • A PREPARAO DO DIRETOR

    enfim, a despedida na manh seguinte. Imaginou as cartas quetrocariam na expectativa de um reencontro. Visualizou a his-tria que tinham pela frente. De repente , Sartre teve uma epi-fania. Deu-se conta de que cada momento da vida, inclusiveaquele, oferecia uma escolha. Ele poderia optar pela fico fa-bricada de uma histria ou abraar os altos e baixos descont-. -,nuos da existncia humana e viver sem a segurana de umahistria. De imediato, Sartre tomou uma decis~. Levantou--se , saiu do bar para a tempestade e nunca mais viu a mulher.

    Este prefcio uma tentativa de organizar os altos e bai-xos de minha vida em uma histria na inteno de criar umcontexto para a leitura deste livro. Em ltima anlise, porm,assim como o episdio de Sartre, uma anti-histria. A reali-dade um constructo de pensamento que deseja continuidade .Na verdade, a expectativa de continuidade uma maravilhosainveno. A realidade depende daquilo que escolhemos obser-var e do modo como escolhemos faz-lo. Os momentos deminha vida so descontnuos, so saltos.

    Meu pai, Gerard S. Bogart, serviu durante trinta anos naMarinha dos Estados Unidos. Obteve a patente de capito. Opai de-mnha me tambm era da Marinha. O nome dele eraalmirante Raymond Ames Spruance, e , devido a sua excep-cional habilidade de estrategista, considerado por muitoshistoriadores navais como o principal elemento catalisador navitria da batalha de Midway durante a Segunda Guerra Mun-dial. Como geralmente ocorre com as famlias d e militares,ns todos, dois irmos, meus pais e eu, mudvamos a cada umou dois anos para uma nova base naval em um lugar diferentedos Estados Unidos ou do mundo. Esse ritmo de vida feito d emudanas rpidas e abruptas reforou algo que en con tr ei de-pois no teatro. Em toda escola grande e desconhecida eu sem-

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    PREFCI O

    pre achava um lugar acolhedor para encenar as peas. Essasprodues eram experincias rpidas, intensas, nas quais todosse aproximavam, trabalhavam muito para realizar algo mara-vilhoso e depois se despediam para sempre. Trabalhei nos bas-tidores dessas produes. Eu vasculhava os corredores embusca de objetos de cena durante as aulas. Fazia anotaespara o professor/diretor. Ficava at mais tarde e chegava maiscedo. Abria as cortinas , pendurava luzes e vendia ingressos.

    Quando eu estava com 13 ou 14 anos, Jill Warren, minhaprofessora de francs na Middletown High School em RhodeIsland, a primeira pessoa a enxergar em mim o potencial paraum futuro diferente do que a minha formao indicava, de-clarou que eu era uma diretora de teatro. No sei bem o que elaviu em mim, mas a maneira especial com que me tratava fezuma enorme diferena na forma como eu me via. EI

  • A PREPARAO DO DfRETOR

    Formei-me em 1974, na Bard College, onde dirigi muitos es-petculos e me vinculei a uma companhia teatral chamada ViaTheater.

    A Via Theater, inaugurada pelo meu colega Ossian Carne-ron, dedicava-se pesquisa prtica da obra de Jerzy Gro-towski. Mantivemos a companhia por dois anos . Passamosesse perodo realizando um exaustivo trabalho corporal emum poro e excursionamos pelos Estados Unidos e pelo Ca-nad em uma van: sete pessoas e um cachorro chamado Godot.Depois que me formei na Bard College , o Via Theater foi con-vidado a se apresentar em Delhi, na ndia, mas a companhiase desfez definitivamente em Tel-Aviv, Israel , a caminho dandia. De repente, e pela primeira vez na vida, eu no tinhanenhum tipo de compromisso. Estava livre e podia ir paraqualquer lugar do mundo. P erceb i de imediato que a cidadede Nova York era o lugar certo para mim.

    Mudei-me para Nova York com uma mochila e os 2 mildlares que sobraram do que eu havia economizado para aviagem ndia. Era dezembro de 1974. Encontrei um loft naGrand Street, no Soho - trs quartos, sala, sala de jantar, es-t do.de dana, sem aquecimento. Custava apenas 325 dla-res por ms para alugar aquilo tudo, o que no era raro naquelesprimeiros tempos de loucura do Soho. Logo encontrei amigospara repartir o loft, de forma que cada um no pagava muitomais que cem dlares por ms. Durante, os cinco anos seguin-tes, tive muitos em p regos: trabalhei corrio telefonista do depar-tamento de cobrana de uma companhia de gua, fui analistade despesas de uma em presa de corretagem em Wall Street,cuidei de crianas em um programa extracurricular de teatro ,dei workshops em um centro de readaptao para pessoas comproblemas mentais e terminei meu mestrado em histria do

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    PREfCIO

    teatro no departamento da New York University, que hoje sechama Estudos de Performance. Dirigi tambm uma porode espetculos com atores que no se importavam em traba-lhar de graa em lugares no convencionais. Eu trabalhava emespaos no teatrais porque no conseguia encontrar um tea-tro em Nova York disposto a dar uma chance a uma diretorajovem e sem experincia. Dirigi apresentaes em vitrines delojas, coberturas de prdios, construes, pores, uma salade reunio romena, discotecas, clubes noturnos , uma agncia dedetetives, uma escola abandonada e em muitos outros lugaresfceis de invadir.

    Por conta de meu teatro no convencional, em 1979 fuiconvidad a para dar aulas na Experimental Theater Wing(ETW) , poca um programa relativamente novo e inovadordo curso de graduao da New York University. A. ETW medeu o tempo e as condies necessrios para eu m~ desenvol-ver como diretora criando novos espetculos com estudantes.O que e recebia pelo trabalho dava para sobreviver e pagar asdespesas com outros trabalhos teatrais que eu continuava pro-duzindo. Foi na ETW que conheci a coregrafa Mary Overlie,inventora do Seis Pontos de Vista, na minha opinio umaforma maravilhosa de pensar tempo e espao. Os seus insigthsme levaram ao desenvolvimento de uma nova atitude na for-mao de atores.

    Foi nessa poca que tive o primeiro contato com o traba-lho da Schaubhne, de Berlim. Essa aventura comeou quandoassisti a um filme alemo chamado Somtnetg ste , baseado napea pr-revolucionria de Mximo Gorki, Datsniki [Gente dovero]. Quando o filme terminou, fiquei sentada no cinema,paralisada de emoo e assombro. Nunca tinha visto tamanhacombin ao de atuao notvel, belas imagens, engajamento

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  • A PREPARAO DO DIRETOR

    poltico e pura inteligncia. Eu estava tomada, comovida einteressada em quem havia criado aquela obra.

    Nos crditos finais do filme , consegui identificar que umdiretor alemo, Peter Stein, e sua companhia teatral, a Schau-bhne, haviam filmado a pea em Berlim Ocidental. Munidaapenas dessa informao e com um genuno interesse em des-cobrir mais, matriculei-me no curso de alemo do G'oethe Insti-tute para poder me aproximar daqueles artistas . A lnguaalem logo me levou a uma informativa e bonita revista men-sal sobre teatro alemo intitulada Theater Heute. Cada nmerotrazia informaes sobre produes teatrais da Schaubhne edescrevia as peas e os processos daquele teatro coletivo es-pecial. Mergulhei nos artigos e fotografias e comecei a incor-porar suas inovaes minha direo.

    Armada com esse novo recurso e estmulo, continuei a di-rigir espetculos no centro de Nova York, com oramentobaixo ou inexistente, incorporando o que havia aprendido. Euenvolvia questes polticas no contexto de todas as produes.Experimentei novas abordagens de atuao que transforma-ram meu entendimento do papel criativo do ator na realizaode novas produes e usei, mais conscientemente do quenunca, ideias especficas para os locais das apresentaes.

    Comecei tambm a receber telefonemas de atores, escritorese diretores que vinham da Alemanha e queriam conferir a cenateatral em Nova York. Eles haviam sido estirrrulados a me pro-curar por colegas que sabiam d e meu fascnio pela arte alem.Esses visitantes assistiam a meus ensaios e apresentaes. Pas-sei muitas madrugadas em restaurantes do East Village pergun-tando a eles tudo o que queria saber sobre sua forma de trabalho,o que tinham feito e visto na Alemanha e o que achavam da artedo teatro. De vez em quando, eu convidava atores alemes para

    22

    PREFCIO

    atuar em minhas peas em Nova York. Por fim, a Theater Heute,de onde eu surrupiava minhas ideias, publicou um extenso ar-tigo sobre meu trabalho, descrevendo-o como exemplar da novacena teatral norte-americana. A grande ironia era que eu haviaroubado muita coisa de suas prprias pginas.

    O artigo sobre meu trabalho na Theater Heute fez que eurecebesse convites para dirigir na Alemanha, ustria e Sua.Aceitei tudo e comecei uma srie de aventuras na Europa queacabaram me levando de volta aos Estados Unidos com umanoo mais profunda de mim mesma como norte-americana eo compromisso de investigar a cultura norte-americana.

    N o meu primeiro trabalho na Europa, a direo de umapea com alunos de graduao em uma academia de inter-pretao em Berlim Ocidental, resolvi falar apenas em alemoe tentar trabalhar como um diretor alemo. Eu no gqstava nemcon fiava mais em minha origem norte-americana. Estava con-vencida de que os norte-americanos eram superficiais e que-ria, mais do que tudo, ser europeia. Decidida a encontrar umanova maneira de ser e de trabalhar, iniciei o projeto com osestudantes com a questo, importante na poca, da ocupaode casas abandonadas em Berlim. O resultado foi desastroso.No processo, desenvolvi uma doena alem chamada Angst.Tinha medo de comear a ensaiar qualquer coisa porque par-tia do princpio de que todas as minhas ideias eram superfi-ciais e tudo o que eu propusesse aos atores seria muitosimplrio. A produo acabou sendo uma confuso. Sem ne-nhum modelo slido para os atores se apoiarem, nenhum rigorde pensam,ento ou ao , ela era vaga e confusa. O pblico ale-mo en ch eu o teatro todas as noites para ver o trabalho me-docre da diretora norte-americana. Gritava para o palco , paraos atores saberem quanto era ruim. E era ruim mesmo.

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  • A PREPARA O DO DIRETOR

    Foi em uma penso nas montanhas dolomitas, no norteda Itlia, depois do fracasso em Berlim, que tive uma granderevelao pessoal que me salvou. Eu me dei conta, de maneiraabsolutamente definitiva, que eu era norte-americana; tinhaum senso de humor norte-americano, um senso de estrutura,ritmo e lgica norte-americanos. Pensava como n?rte-ameri-cana. Movimentava-me como norte-americana. E, subitamente,ficou claro para mim que a rica tradio da histria e do povonorte-americano existe para ser usada e assumida. De repente ,eu me senti livre. Todo o restante do meu trabalho na Europae, de fato, desde aquele momento na penso na Itlia, foi maisleve e mais alegre. Aceitei e comecei a louvar os ombros sobreos quais me apoiava.

    Esse insight detonou uma aventura no teatro que paramim continua at hoje: a explorao da cultura norte-ameri-cana. Grande parte de meu trabalho norte-americano , ou seja, sobre acontecimentos histricos norte-americanos , como ovaudeville, as maratonas de danas e os filmes mudos , assimcomo sobre certos artistas norte-americanos: Gertrude Stein,Orson Welles, Emma Goldman, Andy Warhol, Robert Rau-schenberg e Robert Wilson, alm de msicos e peas de escri-tores essencialmente norte-americanos, como William Inge ,Elmer Rice, Leonard Bernstein, George S. Kaufrnan etc. Meuinteresse relembrar e celebrar o esprito norte-americano emtoda a sua difcil , ambgua e distorcida glria.

    Foi Ariane Mnouchkine, diretora artstica do Th tre duSoleil, na Frana, que me mostrou, de maneira definitiva,como era necessrio ter uma companhia. Quando perguntei aela por que trabalhava apenas com sua companhia, ela olhouseveramente para mim e disse: "Bom , no se pode faz er nadasem uma companhia. No m e en ten d a mal, companhias so

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    PREF C IO

    difceis. As pessoas vo embora, partem seu corao e as difi-culdades so constantes, mas o que voc pode realizar semuma companhia?" A pergunta dela induziu a uma epifaniapessoal na qual me dei conta de que toda grande apresentaode teatro e de dana a que j assisti, sem exceo, foi produ-zida por uma companhia.

    Munida desse novo entendimento e de uma nova neces-sidade, comecei a me concentrar em criar as condies quetornassem possvel uma companhia. Comecei articulandomeu sonho em voz alta, sempre que possvel, descrevendo oque eu imaginava. Quando algum me perguntava o que euqueria, em que acreditava, minha resposta invarivel era: "Umacompanhia. "

    Em 1989, quando vim a ser a segunda diretora artstica daTrinity Repertory Company, em Providence , Rhoyle Island,herdei uma slida companhia de atores. Levou um ano , glo-rioso e terrvel , para a junta de diretores do teatro en con trarum jeito 'de forar minha sada. O que eu aprendi , de fato, foique no se pode assumir a companhia de outra pessoa. pre-ciso comear do nada.

    A oportunidade de comear do nada apareceu logo a se-guir, com a ajuda e o apoio do diretor japons Tadashi Suzuki.No muito depois da minha derrocada na Trinity, fui convi-dada a ir para Toga Mura, no Japo, participar e observar oFestival Internacional de Artes de Toga. Na regio de Toga' fi-cava a residncia de vero de Suzuki, nas verdes montanhasbem acima da cidade de Toyama. Todo ano ele convidava ar-tistas e companhias de todo o mundo para se apresentaremem seu festival. Suzuki e eu nos demos muito bem, e seismeses depois , em Nova York, Suzuki, com o estmulo de PeterZeisler, diretor do Theatre Communications Croup, p erguntou

    25

  • A PREPARAO DO DIRETOR

    se eu gostaria de iniciar com ele um novo empreendimento.Ele props que crissemos juntos nos Estados Unidos um cen-tro parecido com seu local de trabalho em Toga Mura, parapromover o intercmbio de artistas teatrais do mundo todo."Voc escolhe o lugar", disse Suzuki, "porque dentro de cincoanos terei outras coisas para fazer. Ajudo voc a comear." Oque ele ajudou a comear transformou-se em mi~ha compa-nhia, a SITI Company, que o centro de meu trabalho criativoh dez anos.

    Escolhi Saratoga Springs , Nova York, como o local ondeSuzuki e eu instalaramos nosso novo empreendimento. Sa-ratoga uma linda cidade ao p das montanhas Adirondack,culta, mas tranquila, e a apenas trs horas de Nova York. Du-rante os primeiros anos de existncia da SITI, a companhiaviajava todos os anos a Toga Mura para trabalhar tanto comSuzuki como comigo em novas produes que apresentva-mos no Festival de Toga, no Japo, e que depois trazamospara Saratoga. Suzuki e eu reunimos um grupo de atoresnorte-americanos que se tornou o ncleo da SITI Company.Cada ator-tinha de passar pelo treinamento de representaode Suzuk, que altamente fsico , para que pudesse atuar nasprodues dirigidas por ele. Eles treinavam tambm os Pontosde Vista, comigo.

    As abordagens dspares do treinamento dos atores produ-ziram uma grande alquimia. Sem nenhum plano ou projetopremeditado para unir os dois treinamentos , eles acabaramservindo para contrabalanar um ao outro, e o resultado foiafortunado . Muito diferentes em abordagem e origem, o m-todo Suzuki e os Pontos de Vista se transformaram no cernedo treinamento e ensino da SITI Company. Apresentar essesdois mtodos de treinamento em um mesmo corpo resulta em

    26

    PREF CIO

    fora, foco, flexibilidade, visibilidade, audibilidade, esponta-neidade e presena.

    Embora a SITI Company tenha comeado como uma ati-vidade de vero, instalada na Skidmore College, em Saratoga,ela logo se transformou em uma atividade de ano inteiro combase em Nova York. O grupo de atores, cengrafos e figurinis-tas, tcnicos e administradores que compe a SITI Companytornou-se minha famlia artstica. Juntos ensaiamos novos es-petculos, excursionamos, ensinamos , e todo ms de junhorealizamos um programa de treinamento de trinta dias em Sa-ratoga para artistas de teatro de todo o mundo. Embora Suzukitenha efetivamente deixado a companhia para desenvolveroutros projetos, ele continua generoso e colaborativo.

    A SITI Company hoje um grupo de artistas e amigos com-petent?s e determinados que criou sua prpria marJa e identi-dade. As vezes, frustrante para mim receber os crditos peloque, de fato, feito por eles . Ns juntamos nossas ideias evamos ern frente. Nossa cooperao de natureza expansiva.

    Os membros da companhia de atores so todos , por natu-reza, sobreviventes que desenvolveram um grande respeitomtuo ao longo do tempo. So capazes de falar francamenteuns com os outros sobre coisas difceis. Todos eles no satuam e viajam com novas produes, como tambm ensinamos mtodos Suzuki, Pontos de Vista e Composio aonde querque vamos. Tenho uma dvida de profunda gratido com EllenLauren, Will Bond, Tom Nelis, Akiko Aizawa, J. Ed Araiza, Bar-ney O 'Hanlon, Kelly Maurer, Jefferson Mays, Stephen Webbere Leon lngulsrud por sua pacincia, perseverana e talento.

    As eq u ip es responsveis pelo cenrio, figurino e pelaparte tcnica tm suas prprias carreiras n o mundo, mas re-tornam SITI para desenvolver trabalhos com a companhia

    27

  • A PREPARAO DO OIRETOR

    como uma forma de exercitar os msculos. O sonoplasta Dar-ron L. West o melhor dramaturgista * que conheo. Acom-panha os ensaios desde o primeiro dia, e suas intervenessonoras so como um ator no palco. O cengrafo Neil Patelconstri elegantes espaos que os atores usam como trampo-lim. Mimi Jordan Sherin joga no palco obstculos de luz parao desenvolvimento de cada produo. James S~heutte olha,escuta, pensa e surge com roupas criativas que ressaltam o es-pao em que elas se inserem.

    No momento em que escrevo estas palavras, a SITI Com-pany ocupa o centro de minha vida. A jornada que levou criao desta companhia a jornada de preparao para teruma companhia. Ariane Mnouchkine estava absolutamentecerta: o estado normal de uma companhia a crise constante.Mas uma crise que vale a pena e uma aventura permanente.

    Para onde vo os altos e baixos agora, no sei. E a histriasempre depender de quem est lendo isto. Mas, pessoalmente,o que sei que tenho uma grande dvida para com as pessoasque me estimularam e inspiraram. Obrigada pela carona.

    * O dramaturgista uma funo relativamente moderna no teatro. uma espcie de colaborador geral na pesquisa, anlise e coordenao detodos os aspectos criativos do espetculo. Ele assessora o dramaturgo (autordo texto teatral), o encenador, os atores, os msicos, o cengrafo, o figuri-nista, o iluminador e tc . (N. da T.)

    28

    "r-I!

    1

    Memria

    preciso apenas ler, olhar, ouvir, lembrar.

    Virginia Woolf

    Dentro de toda boa pea mora uma questo . Um pea im-

    portante aquela que levanta grandes questes que perduram

    no tempo. Montamos uma pea para lembrar de questes re-

    levantes; lembramos delas em nossos corpos, e as percepes

    ocorrem em tempo e espao real. Por exemplo, a questo da

    hbris um problema com o qual a humanidade ainda estlidando, razo pela qual algumas antigas peas gregas pare-

    cem manter intactos seus frescor e atualidade. Quando pro-

    curo uma pea em uma estante, sei que dentro do livro existe

    uma semente: uma questo adormecida espera de minha

    ateno. Ao ler a pea, toco na questo com minha prpria

    sensibilidade. Sei que a pea me tocou quando as questes

    agem e provocam ideias e associaes pessoais - quando ela

    me assombra. Nesse momento, tudo o que vivencio no coti-

    diano est relacionado a ela. A questo foi liberada em meu in-consciente. Ao dormir, meus sonhos esto imbudos dessa

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  • A PREPARAO DO DIRETOR

    questo. A doena da questo se espalha: para os atores, ce-ngrafos, figurinistas, tcnicos e, por fim, para a plateia. Noensaio, tentamos encontrar formas e modelos que possam con-ter as questes vivas no presente, no palco. O ato de lembrarnos liga ao passado e altera o tempo. Somos dutos vivos dememria humana.

    O ato da memria um ato fsico e est no ce;he da arte doteatro. Se o teatro fosse um verbo, seria o verbo "lembrar".

    Em meados da dcada de 1980, o falecido diretor teatrale filsofo polons Jerzy Grotowski aceitou trabalhar no de-partamento de teatro da Universidade da Califrnia, em Ir-vine. A universidade concordou em construir um estdio deacordo com suas especificaes e trazer participantes domundo inteiro para trabalhar no que ele chamou de "dramaobjetivo". A atriz Wendy Vanden Heuvel, minha amiga, foide Nova York a Irvine para participar do ensaio de Grotowski;quando ela voltou, perguntei com o tinha sido a experincia."De incio, fiquei muito frustrada", disse ela. Solicitados atrabalhar intensamente do pr do sol at o amanhecer, ela eoutros participantes da frica, do Sudeste Asitico , da Eu-ropa Oriental, da Amrica do Sul e do Oriente Mdio persis-tiram durante vrias semanas. A frustrao inicial de Wendyvinha de sua dificuldade em localizar uma fonte de energia ede recursos fsicos para suportar as longas horas de trabalho.Depois de extremamente ex au s tos fsicarnente, os outros par-ticipantes acessavam padres e cdigos conhecidos de suasorigens. Isso parecia lhes dar uma reserva inesgotvel deenergia quando comeavam a danar e a se movimentarusando formas que eram exclusivas de suas culturas particu-lares, de acordo com padres antigos profundamente im-pregnados em suas memrias corp orais. Mas com Wendy no

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    MEMRIA

    acontecia nada. Como norte-americana, ela no encontravanenhum recurso cultural profundamente impregnado que aajudasse a enfrentar as noites interminveis. Depois de muitafrustrao e cansao, e para seu grande alvio , ela por fimtocou suas razes judaicas , desenterrando dessa fonte cdi-gos de som e movimento profundamente enraizados nessacultura. Seu corpo lembrou.

    A histria de Wendy me preocupou porque eu no soujudia. Confrontada com as mesmas noites sem dormir e exaus-to fsica , como eu me movimentaria? Quais so os meus c-digos? O que meu corpo iria lembrar? Fiquei intrigada. O que cultura'? De onde vem o teatro dos Estados Unidos? Nos om-bros de quem estamos apoiados? O que informam minhas sen-sibilidades artsticas? Qual o papel da memria?

    Resolvi partir em busca de razes para enco:?trar meulugar na histria do teatro norte-americano. Eu queria reviverintensamente o passado para utiliz-lo. Quem e o que eu podiaincorporar? Queria sentir o passado e seu povo na sala de en-saio junto comigo e permitir que eles influenciassem minhasescolhas como diretora. Comecei por uma tentativa de identi-ficar influncias predominantes em meu trabalho.

    As influncias mais imediatas eram facilmente acessveis.Durante o final da dcada de 1960, o teatro nos Estados Uni-dos passou por uma erupo, quase uma revoluo. Eu memudei para Nova York em 1974 e o clima ainda era vertigi-noso. Essa insurreio cultural e seus praticantes foram umafonte rica de ideias e paixo: o Living Theater, o Open Theater,o Manhattan Theater Project, o Performance Group, o Breadand Puppet Theater, os bailarinos da [udson Church e pessoascomo Robert Wilson , Richard Foreman e Meredith Monk.Quase dava para sentir essas presenas em meus ensaios . Eu

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  • A PREPARAO DO DIRETOR

    me inspirava e ganhava coragem com seus exemplos e seusmtodos. Eles eram os ombros sobre os quais eu me apoiava.

    Mas a busca alm dessas influncias imediatas que setornou problemtica. Para minha surpresa e frustrao, des-cobri um srio bloqueio de informao dos primeiros anos. Euconseguia localizar influncias at por volta de 1968; depois ,tudo se interrompia. Era difcil entrar em sintonia com as ge-raes anteriores de uma forma concreta. Eu no conseguiasenti-las na sala junto comigo. No as estava usando em meusensaios. No era alimentada por elas ideolgica, tcnica, es-ttica ou pessoalmente de uma forma que parecesse essencialou prtica.

    Evidentemente eu conhecia as pessoas proeminentes e asgrandes companhias da primeira metade do sculo. Sabia doengajamento poltico e das conquistas estticas do FederalTheater Project, do Mercury Theater, do Group Theater, doCivic Theater, do Living Newspaper e de pessoas como Eva LeGallienne, [osh Logan, Hallie Flannagan, Orson Welles, JosFerrer, Elia Kazan, Clifford Odets e tantos outros, mas por queeu tinha tanta dificuldade em acessar suas sabedorias? Porque eu no conseguia usar e dominar seus engajamentos pol-ticos evidentes e suas relaes apaixonadas com causas sociaisque to claramente influenciaram o modo como trabalharam eo que realizaram? Alm da influncia desgastada de uma ver-so aguada do sistema Stanislavsky, por que eu no conseguiasentir essa gente na sala junto comigo? Eu me sentia desligadada paixo e do compromisso dessas pessoas. Achei que era im-possvel me apoiar em seus valores e ideais. Por que no podiame apoiar com segurana em seus ombros? O que acontecera?

    Logo apurei que entre 1949 e 1952 a comunidade teatraldos Estados Unidos foi atingida por um terremoto: a era

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    MEMRIA

    McCarthy. Essa investida poltica forou todo o mundo a al-terar ou adaptar radicalmente suas vidas e valores. Algunsdeixaram o pas para nunca mais voltar, muitos entraram nalista negra e foram forados a parar de trabalhar, outros apenasmudaram, abjuraram, desengajaram-se, calaram-se. Hoje , malnos lembramos da era McCarthy, e a maioria de ns no temconscincia das srias consequncias desse catalisador es-quecido. Por meio de um mecanismo brutalmente eficiente,artistas foram orientados a se afastar de questes relativas aomundo real. Sem esse elo social, grande parte dos artistas sevoltou para dentro. O que muitos de ns no nos damos conta quanto foi completa a influncia dessa inspida ao polticana maneira como trabalhamos hoje. Assim como as conse-quncias do stalinismo , a manobra poltica mais eficiente aquela que esquecida depois. E ns esquecemos 'porque asaes da mquina McCarthy foram bem-sucedidas.

    Nascida em 1951, cresci com a ideia de que "arte e pol-tica no ~e misturam". Agora eu me pergunto: de onde vinhaesse lema? Hoje, muitos de ns esquecemos as repercussesdaqueles anos sombrios e ignoramos as transformaes radi-cais sofridas pelas pessoas mais afetadas por elas. Eu queriaaprender com o compromisso apaixonado que essas pessoastinham com o mundo que as rodeava e com o tipo de teatronascido dessa paixo, e usar esse aprendizado. Mas isso foiomitido. As manipulaes do Comit Interno de AtividadesAntiamericanas destruram os canais de comunicao com as

    geraes futuras.Os artistas , subitamente desobrigados de qualquer res-

    ponsabilidade pessoal pelo mundo sua volta, modificaramsuas formas e seus meios de expresso. Pintores abraaramo expressionismo abstrato , um movimento que glorifica a

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  • A PREPARAO DO DIRETOR

    expresso pessoal isolada de qualquer contexto externo e nas-cido, de maneira apropriada, diretamente na esteira do ma-carthismo. Todo o mundo olhava para dentro. Dramaturgossuportaram o mpeto do novo ataque para evitar o engaja-mento poltico. As peas foram ficando cada vez mais sobre"voc, eu, nossos apartamentos e nossos problemas". E a te-mtica se estreitando cada vez mais. "

    Felizmente, dramaturgos de esprito amplo como Suzan--Lori Parks, Chuck Mee, Anna Devere Smith, Emily Mann e

    Tony Kushner comearam a inverter a tendncia com peasque voltam a se envolver com as grandes questes sociais.Exemplos disso so America Plays [A Amrica representa],Investigation of a Murder in El Salvador [Investigao de umassassinato em El Salvador], Fixes in the Mirrar [Fogos no es-pelho], Execution ofJustice [Execuo d e justia] e Angels itiAmerica [Anjos na Amrica]. Essas peas representam novastentativas de retomar o cantata com os temas sociais. Como

    atesta o sucesso da pea de Kushner na Broadway, o apetitepor obras de relevncia social imenso. Para mim, essa reto-mada de contato com o mundo um ato de vida. Herbert Mus-champ , ao fazer a resenha de um livro sobre a Bauhaus paraThe New York Times, escreveu: ..

    Os artistas no devem se afastar de seu tempo. Eles devem se jogarna luta e ver o que podem fazer de bom ali. Em vez de manteruma distncia segura dos ftidos pntanos dos valores do mundo,devem mergulhar de cabea neles e agitar as coisas ... Os Apoiosmodernos querem fazer isso na praa do mercado; a integridadedo artista sai fortalecida, no comprometida, pelo trato com a rea-lidade social.

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    1 MEMRIACorrendo o risco de generalizar demais, os norte-ameri-

    canos professam uma falta de histria. Somos, na definiode Gore VidaI, os Estados Unidos da Amnsia. No entanto ,temos uma histria extraordinria: rica, complexa e fecunda.Na tentativa de reconectar fontes anteriores a 1968, comecei aexaminar a gnese das artes da representao nos Estados Uni-dos. Meu trabalho de diretora passou a ser uma inteno delembrar e reconectar uma herana artstica. Concentrei-me naspeas de autores norte-americanos seminais e em novas obrassobre a histria de fenmenos ultra-americanos, como o vau-deville, a representao no cinema mudo e as maratonas dedana. Sa no encalo de meus ancestrais para estabeleceruma relao ativa com eles.

    /

    o discernimento histrico envolve uma percepo no s de queo pas sado passado, mas de que ele est presente; o discerni-mento histrico impele o homem a escrever no apenas impreg-nado da essncia de sua prpria gerao, mas tambm com acompreenso de que o conjunto da literatura da Europa desdeHomero, e nesse contexto o conjunto da literatura de seu prpriopas, tem existncia simultnea e compe uma ordem simultnea.Esse discernimento histrico, que um discernimento do atem-poral assim como do temporal, e do atemporal e do temporal jun-tos, o que torna um escritor tradicional. E , ao mesmo tempo,o que torna um escritor mais aguadamente consciente de seulugar no tempo, de sua prpria contemporaneidade.

    T. S. Eliot

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  • A PREPARAO DO DIRETOR

    A memria desempenha um papel extremamente impor-tante no processo artstico. Cada vez que se monta uma pea,est-se dando corpo a uma memria. Os seres humanos soestimulados a contar histrias a partir da experincia de lem-brar de um incidente ou de uma pessoa. O ato de expressar oque lembrado constitui, de fato, segundo o filsofo RichardRorty, um ato de redescrio. Ao redesc"rever ,~lguma coisa,novas verdades so criadas. Rorty sugere que no existe reali-dade objetiva, no existe ideal platnico. Ns criamos verda-des descrevendo, ou redescrevendo , nossas convices eobservaes. Nossa tarefa, e a tarefa de cada artista e cientista, redescrever as hipteses que herdamos e inventar ficespara criar novos paradigmas para o futuro.

    A verdade no pode estar l fora - no pode existir independente

    da mente humana ... O mundo est l fora, mas as descries do

    mundo no esto. S as descries do mundo podem ser verda-

    deiras ou falsas . O mundo em si - sem a ajuda das atividades des-critivas dos seres humanos - no pode.

    Raymond Rorty

    Se a era do macarthismo determinou que a arte no deveter ligao com sistemas sociais e polticos, o que resta nar-cisismo; o culto ao indivduo, a cultura arrogante do eu.

    O que cultura? Acredito que cultura experincia com-partilhada. E ela est em constante transformao. As ideias ,de fato, esto entre os aspectos mais con tagian tes da culturahumana. Imagine um vasto campo em uma noite fria de in-verno. Espalhadas pelo campo, fogueiras acesas , cada umacom um grupo de pessoas bem juntinhas para conservar o

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    1i MEMRIA

    calor. As fogueiras representam a experincia compartilhadaou a cultura de cada grupo reunido em torno de cada fogueira.Imagine que algum se levanta e atravessa o campo frio, es-curo, ventoso, at outro grupo reunido em torno de outra fo-gueira. Esse ato d e fora representa a troca cultural. E assimque as ideias se espalham.

    Em nossa cultura, que est rapidamente se espalhandopelo mundo , a ao coletiva suspeita. Fomos desestimuladosa pensar que a inovao possa ser um ato colaborativo. Tem dehaver uma estrela. O esforo grupal um sinal de fraqueza.Ns reverenciamos o caubi que galopa sozinho pela plan-cie. Somos criados para ganhar dinheiro e gastar com ns mes-mos. As pessoas so consideradas bem-sucedidas quandoficam ricas e aparecem na televiso. O sucesso comercial aplaudido. r'

    Quero algo mais. Procurei uma ligao com uma culturanorte-americana anterior para encontrar um caminho alterna-tivo para 6futuro.

    O macarthismo no foi a gnese da paranoia norte-ameri-cana. O teatro dos Estados Unidos no nasceu como uma en-tidade comercial, embora tenha se tornado, em grande medida,dependente de sua viabilidade comercial. Foram feitas esco-lhas e, como consequncia, vieram os ajustes . Lembrar as pes-soas e os acontecimentos e redescrev-Ios us-los, subirsobre seus ombros e gritar alto.

    Nossas tendncias culturais foram forjadas pelos aconte-cimentos histricos, sociais e polticos e por pessoas que ti-veram a coragem de se levantar e abrir caminho pelo campofrio, de fazer escolhas. Rosa Parks, que se recusava a sentar naparte de trs do nibus, os operrios que entraram em greve,Lillian Hellman, Martin Luther King, artistas e cientistas que

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  • A PREPARAO DO DIRETOR

    romperam com regras clssicas. Nossa cultura fruto de inte-raes sociais e dos ajustes que fazemos para mudar. Quandotraduzidos para contextos diferentes , essas interaes e ajus-tes tm a capacidade camalenica de mudar de sentido - svezes apenas ligeiramente, outras vezes radicalmente.

    A gnese do teatro nos Estados Unidos te~ uma histriafascinante. Para fazer um esboo do panorama de nosso tea-tro contemporneo, vou tentar "redescrever" a histria dasartes cnicas nos Estados Unidos. Vou delinear alguns acon-tecimentos e saltar de era em era para mostrar que os ombrossobre os quais nos apoiamos so complexos e diversifica-dos , movidos por impulsos contraditrios e compromissoscomplexos.

    Resolvi comear bem do incio. A teoria do caos sugereque todos os fenmenos esto unidos e entrelaados de ma-neira complexa. Uma borboleta bate as asas em Honolulu eacaba gerando um furaco no Japo. Eu me perguntei se po-deria localizar o Big Bang do teatro nos Estados Unidos , paraassim acompanhar as repercusses e ver se nossa experinciahoje resultado do bater das asas de uma borboleta vrias cen-tenas de anos atrs. Eu queria saber se o macrocosmo continhao microcosmo desde o incio.

    A primeira pea produzida nas colnias foi Ye Bare andye Cubb [O urso e a raposinha]. Ela foi encenada na Fowkes 'Tavern, um bar na costa oriental da Virginia, em 1665. Depoisda primeira apresentao , algum acusou a pea de blasfema.O caso foi levado a julgamento, mas o juiz argumentou queno podia julgar uma pea que no tinha visto. Ento , foi feitauma segunda apresentao de Ye Bare and ye Cubb no tribu-nal! Em seguida, o juiz decidiu que a pea no era blasfemapelo fato de ser entretenimento.

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    1MEMRIA

    Ser esse acontecimento de 1665 um microcosmo do ma-crocosmo que veio a ser o teatro norte-americano? Ser o en-tretenimento o fundamento do teatro norte-americano e a basede onde se origina nosso julgamento do teatro? Se a tradiohumanista europeia percebe a arte como reflexo, ns a co-nhecemos, sobretudo, como diverso?

    Os pioneiros que desenharam nossas fronteiras, que traba-lhavam muito mas tambm gostavam bastante de se divertir,precisavam de entretenimentos alegres, quanto mais triviaismelhor. No entanto, a ambivalncia puritana prevalecia numaacentuada resistncia ao teatro. As peas eram denunciadascomo armadilhas do diabo pela literatura antiteatro , em ttu-los como "Teatro, o caminho direto para o inferno". Os pio-neiros do teatro norte-americano tiveram de implantar seupalco em um deserto de fanatismo e preconceito. "

    .'Outro aspecto notvel do crescimento do teatro norte-ame-

    ricano a tremenda dificuldade de sua gnese. A populaoera escassa, e a locomoo de um lugar para outro era extrema-mente difcil. quase impossvel para ns, no sculo XXI, teruma ideia dos rigores da vida diria nos sculos XVII e XVIII .

    At 1775, Virginia e Maryland eram as duas nicas col -nias que no tinham tido leis antiteatro em algum momento.O progresso do teatro era impedido no apenas pelo precon-ceito moral, mas por uma rgida convico da classe mdia deque as produes cnicas eram frvolas e uma perda de tempoprecioso. At a msica enfrentava uma fervorosa resistnciareligiosa. Em 1778, com as foras coloniais em luta pela vidae pela liberdade, o Congresso Federal adotou uma lei que proi-bia qualquer forma de teatro.

    Apesar dessa resistncia, uma grande diversidade de en-tretenimento apareceu nos Estados Unidos pr-Guerra Civil.

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    A PREPARAO DO DIRETOR

    A variedade de etnias que se estabeleceu nas colnias explicaa heterogeneidade: espetculos em carroes, sesses de lan-terna mgica, exposies panormicas, espetculos circenses,minstrel shows* , espetculos em barcos ou "teatros flutuan-tes ", espetculos do Oeste selvagem, melodramas e compa-nhias shakespearianas em excurso. Depois da,Guerra Civil ,literalmente centenas de companhias excursio~aramcom Acabana do Pai Toms.

    A primeira produo teatral exportada pelos Estados Uni-dos foi um minstrel show. Homens brancos com o rosto pintadode preto cantavam e danavam pardias do entretenimento dosescravos nas plantaes, para grande divertimento do pblicoeuropeu. O vaudeville - a palavra vem do francs voix de ville,"voz da cidade" - conseguiu incorporar esquetes de diversosgrupos urbanos imigrantes debaixo do mesmo teto. Pela pri-meira vez, reuniam-se pessoas de bairros tnicos diferentes que,em outras circunstncias, no conseguiriam entender a lngua eos costumes uns dos outros. O vaudeville era um ambiente rui-doso e vivo em que as culturas se conheciam umas s outras pormeio de esquetes e dramas de entretenimento. Esse fenmenoaltamente popular predominou entre 1865 e 1930. A gnese docinema foi em parte responsvel por sua morte.

    Apesar da Revoluo Norte-Americana e da subsequenteindependncia poltica, os norte-americanos sentiram-se cul-

    * Minstrel shows eram espetcu los teatrais populares, encenados desdea colonizao norte-americana, que reuniam esquetes cmicos , variedades,dana e msica, a princpio com artistas brancos maquiados como negros e,principalmente depois da Guerra Civil, negros com o rosto maquiado depreto (blackfaces) , sen d o que o contorno dos lbios e dos olhos era marcadocom tinta branca, que combinava com luvas e meias da mesma cor. O con -traste claro e escuro produzia interessante efeito cnico. (N. do E.)

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    1;i

    MEMRIA

    turalmente dependentes da Inglaterra e da Europa Ocidentaldurante a maior parte dos sculos XVIII e XIX. Consequente-mente, antes do sculo XX havia poucos dramaturgos norte--americanos. A virada do sculo mudou isso tudo. Uma sbitaavalanche de atividades reanimou as artes. No fim da PrimeiraGuerra Mundial , o pas industrializado comeou a ser uma su-perpotncia, e os artistas de teatro , instigados por novas ideiasvindas da Europa e bastante influenciados pela psicanlise,pelo feminismo, pela poltica progressista e radical , pelo ps--impressionismo, expressionismo e simbolismo, comearama formar o moderno teatro norte-americano. Esse novo teatrofavorecia a rejeio da verossimilhana, que havia sido umapreocupao que o sculo XIX tivera com a fotografia. O des-tacado designer Robert Edmund Jones defendia o expressio-nismo contra o realismo:

    Realismo uma coisa que praticamos quando no estamos nos

    sentindo muito bem. Quando no estamos com vontade de fazer

    um esforo extra .

    O expressionismo, por outro lado, interessava-se pela ex-presso do ser interior, do subconsciente e sua tenso com arealidade superficial. Os dramaturgos norte-americanos co -mearam a experimentar, com bastante xito, o expressio-nismo, que se tornou durante algum tempo a fora dominantedo teatro norte-americano. Eugene O'Neill receitou: "Rejeite abanalidade das superfcies!" O expressionismo era

    uma viso intensa que procura captar a pulsao da vida, violen-

    tando necessariamente os fatos externos para desnudar os fatosinternos.

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  • A PREPARAO DO DIRETOR

    Alm dos primeiros trabalhos de Eugene O'Neill, o mo-vimento expressionista norte-americano contou ainda comos autores Elmer Rice, Susan Glaspell, John Howard Lawsone Sophie Treadwell. Esses artistas rejeitaram o realismo eabraaram a teatralidade e a poesia da experincia subjetiva.Apoiaram dramaturgos nativos e propuseram mp. teatro norte--americano inspirado nas recentes revoluesrartsticas daEuropa daquela poca sem imit-las. Robert Edmund [onesdeclarou: "Imagine s! Chega de salas de bom gosto e bemmobiliadas, com uma parede faltando." Toda essa tnica noexpressionismo ainda pode ser sentida muito mais tarde emCamino real, de Tennessee Williams, em Nossa cidade, deThornton Wilder, e em A morte de um caixeiro-viajante, deArthur Miller.

    O mundo da dana tambm, pela primeira vez, produziualternativas radicais ao mundo dominante do bal: Ruth St.Denis, Ted Shawn, Agnes DeMille e Martha Graham criaramcompanhias e performances que pareciam brotar do solo norte-

    -americano.Talvez os anos 1920 tenha sido um reflexo do que os

    norte-americanos fazem melhor sob presso: uma celebraoda intensidade, do exagero, da energia e da indstria; a capa-cidade de entrar corajosamente na sala sem saber quem ou oque est l dentro. Nenhuma outra era chega perto da inacre-ditvel produo de msica de qualidade e encenaes vi-brantes: George S. Kaufman e seus colaboradores , Jelly RollMorton, Bessie Smith, Louis Armstrong, Ma Rainey, os Gersh-win, Cole Porter, Ethel M erman, Billy Rose , Irving Berlin,George M. Cohan, [erome Kern, Fanny Brice, Bert Williams,Oscar Hammerstein II e muitos outros. Em um nico ano ,1926, Rodgers and Hart tinham cinco espetculos em cartaz

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    MEMRIA

    ou estreando na Broadway. Em 1927, a Broadway atingiu opico de produes de todos os tempos, quando os crticos dos24 jornais dirios da cidade apontaram 268 opes.

    O final dos anos 1920 trouxe a Depresso. O vaudeville, ajoia da coroa do entretenimento popular norte-americano,morreu quando os filmes falados substituram a arte dos fil-mes mudos. A absoro do talento pelo cinema comeou a di-luir o vigor do palco. Um novo mtodo para atores , baseadonas antigas teorias do russo Konstantin Stanislavsky, veio adominar nossa abordagem da representao pelo resto dessesculo.

    Stanislavsky e sua companhia, o Teatro de Arte de Mos-cou, apresentaram peas de Tchekov e Gorky nos Estados Uni-dos , durante os anos de 1923 e 1924. Quando chegaram aosEstados Unidos, essas produes j tinham quase vinte anos

    fe apenas refletiam as primeirssimas experincias de Stani-slavsky com a "memria em ot iv a" e a "concentrao interna".Mas para as sensibilidades norte-americanas , essa revolucio-nria abordagem da representao teve um tremendo impactosobre os jovens do teatro, entre eles Lee Strasberg, StellaAdler, Robert Lewis, Harold Clurman e muitos outros , quenunca tinham visto nada igual quela extraordinria compa-nhia de atares da Rssia.

    Bastante influenciado pelas teorias pavlovianas dos refle-xos condicionados e por certas descobertas da atraente e novafronteira do inconsciente , Stanislavsky havia desenvolvidomtodos para o treinamento do ator que resultaram em um se-dutor realismo psicolgico e um notvel conjunto de repre-sentaes cap az de retratar o comportamento humano ultrar-realisticamente. Quando Stanislavsky deixou os Estados Uni-dos , os professores de interpretao ligados pesquisa inicial de

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  • A PREPARAO DO DIRETOR

    Stanislavsky, inclusive Richard Boleslavsky e Maria Ous-penskaya, que permaneceram em Nova York, foram assedia-dos para ensinar esse mtodo a entusiasmados e vidos jovensnorte-americanos. Lee Strasberg, que havia sido fortementeinfluenciado pelas ideias recentes e modernas de SigmundFreud, uniu seu conhecimento de Stanislavskx com a paixopor Freud e chegou a uma abordagem poderosa da emoo edo inconsciente, usando o que hoje conhecemos como me-mria afetiva, evocao emocional e memria sensorial. Essaabordagem da atuao se transformou na Bblia do GroupTheater, do Actors Studio, da Neighborhood Playhouse e de

    muitas ramificaes.Os norte-americanos abraaram os experimentos russos

    apaixonada e equivocadamente, enfatizando de forma exage-rada os estados emocionais personalizados. O sistema Stani-slavsky, ento diludo em um "mtodo", mostrou-se eficaz nocinema e na televiso, mas no teatro produziu um desastrososufocamento da entrega emocional. Acredito que a grande tra-gdia do palco norte-americano o ator que, devido a um en-tendimento grosseiro de Stanislavsky, supe que "se eu sinto,

    o pblico sentir".As tcnicas originadas da visita do Teatro de Arte de Mos-

    cou aos Estados Unidos constituam, de fato, um pequeno as-pecto da vida inteira que Stanislavsky dedicou ao teatro. Elelogo abandonou seus primeiros exp~rimentos com memriaafetiva e partiu para um trabalho pioneiro em pera e orientouexperimentos em ao fsica e em algo que chamou de uni-dade psicofsica da experincia. No fim da vida, rejeitou suastcnicas psicolgicas iniciais, chamando-as de "equivocadas".Mas era tarde demais. Os norte-americanos j haviam se ape-gado a um aspecto extremamente limitado de seu "sistema",

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    MEMRIA

    transformando-o em uma religio. A americanizao ou mi-niaturizao do sistema Stanislavsky tornou-se o ar que res-piramos e, assim como o ar que respiramos, raramente temosconscincia de sua onipresena.

    Onde estaramos agora se o Teatro de Arte de Moscou notivesse aportado em nossas praias? Ser que o movimento ex-pressionista dos anos 1910 e 1920 teria se desenvolvido emalgo ainda mais excitante? Teria inspirado outras obras-pri-mas expressionistas alm de Camino real, Nossa cidade e Amorte de um caixeiro-viajante? Quem e o que teriam sido asgrandes influncias no teatro? Que tal Martha Graham? Esta-ria ela a par de algo que poderia ter tido um impacto substan-cialmente mais profundo na arte teatral?

    Martha Graham estava se transformando em uma fora im-portante durante os anos 1920. Assim como artistas de outrasreas, ela foi influenciada pelas mesmas ideias que J~riaram oexpressionismo. Agora me volto para ela em busca de inspi-rao e orlientao.

    Embora tenha dado aulas com Sanford Meisner na Neigh-borhood Playhouse, a abordagem expressionista de MarthaGraham na criao do personagem nunca foi realmente tra-duzida para atores. Por exemplo, para criar um personagemem suas danas, ela pegava a fonte e desconstrua o texto emuma srie de gestos que expressavam a vida emocional portrs das palavras. Segundo Martha Graham, o intrprete temde procurar os sentidos por trs do gesto e da expresso e de-pois remont-los, compondo com eles um padro, um dese-nho, um propsito - uma coreografia. Martha Graham foi umapioneira em nosso meio.

    Hoje, grande parte de nosso teatro "intelectualizado" queest em voga continua sendo uma imitao da tradio da

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  • A PREPARAO DO DI RETOR

    Europa Ocidental. Nossos entretenimentos populares nativosso considerados "vulgares". Mas esse senso de inferioridadee dependncia trai a diferena inerente entre europeus enorte-americanos. Os europeus tm, de modo geral, uma cul-tura literria. Os norte-americanos tm uma cultura auditiva.Nossa tradio dominante evanglica. Para ns, o som daspalavras tem precedncia sobre o significado. Embora finja-mos estar vontade no palco com a literatura como os euro-peus, na verdade estamos pouco vontade. Esse relativoembuste passa uma impresso de falsidade no teatro.

    Nos Estados Unidos gostamos de fingir que no temos his-tria, mas, de fato, nossa histria rica e complexa. Sinto quens, os praticantes do teatro hoje, somos tmidos demaisquando se trata de investigar os ombros sobre os quais nosapoiamos. Comparado ao rpido crescimento e aos comple-xos ajustes s inovaes , eventos e movimentos do teatro nosvrios sculos passados, nosso progresso hoje parece tmido.Representar, por exemplo, a nica atividade artstica nos Es-tados Unidos que no passou por nenhuma mudana nos l-timos 75 anos. A maior parte da atuao atual muitoparecida com a que se praticava nos anos 1930. Nosso traba-lho no cresceu o suficiente, e nossos objetivos convencionaisparecem estreitos demais.

    Quero uma exploso artstica. Nosso atual estilo de vidaaltamente tecnolgico exige uma exp,erincia teatral que nopode ser satisfeita pelas telas do vdeo e do cinema. Querouma interpretao que seja potica e pessoal , ntima e colos-sal. Quero estimular um tipo de humanidade no palco queexija ateno, que expresse o que somos e sugira que a vida maior. por essa razo que estou tentando lembrar e estudaro passado e combin-lo com as ideias mais novas da filosofia,

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    MEMRIA

    da cincia e da arte. Para contribuir com uma exploso arts-tica estou pesquisando novas abordagens para a representa-o no palco que combine o vaudeville, a opereta, MarthaGraham e a dana ps-moderna. Quero encontrar formas queecoem nossas ambiguidades presentes. Quero contribuir comum campo que produzir no palco momentos que ampliaroas definies do que significa ser humano.

    Teatro sobre memria; um ato de memria e descrio.Existem peas, pessoas e momentos da histria a revisitar.Nosso tesouro cultural est cheio a ponto de explodir. E as jor-nadas nos transformaro, nos tornaro melhores, maiores emais conectados. Possumos uma histria rica, variada e nica,e celebr-la lembrar. Lembrar us-la. Us-la ser fiel aquem somos. preciso muita energia e imaginao. E um in-teresse em lembrar e descrever de onde viemos. .

    Robert Edmond Ienes escreveu o seguinte err!'The Dra-matic Imagination [A imaginao dramtica]:

    I

    Em todos esses dramas do passado existe um sonho - uma exci-

    tao, um humor fino e raro, uma ideia de grandeza. Se queremos

    criar isso no teatro, temos de trazer de volta esse humor, essa ex-

    citao, esse sonho. A pura verdade que a vida ficou to cheia,to apressada, to corriqueira, to comum, que perdemos a abor-

    dagem da arte como artistas. Sem isso, no somos nada. Com

    isso, tudo possvel. Ei-Ias a, nos antigos dramas. Vamos olhar

    para isso. Vamos aprender isso. Vamos trazer para dentro do 'tea-

    tro uma viso do que o teatro pode ser. No existe outro modo.De fato, no existe nenhum outro modo.

    Se conseguirmos nos perceber com relao a nossos ante-cessores e com os impulsos que havia por trs de suas inova-

    47

  • A PREPARAO DO DIRETOR

    es, nosso prprio teatro se tornar necessariamente mais in-tenso, potico, metafrico, humano e expressivo. Nossos so-nhos coletivos sero maiores; nossos espaos ficaro maisatraentes. Talvez ao lembrar o passado descubramos quesomos capazes de criar com maior energia e articulao.

    Se consigo enxergar longe porque estou apoiado sobre ombrosde gigantes.

    Isaac Newton

    Como resultado da associao com a memria e as conse-quentes jornadas pelo passado, sinto-me fortalecida , encora-jada e cheia de energia. Sinto-me ligada mais profundamentequeles que vieram antes de mim e inspirada por eles. Sintocoragem para m e pronunciar em defesa da minha profissoporque os ombros sobre os quais me apoio so slidos. As jor-nadas atravs do passado m e inspiraram e estimularam a de-senvolver produes sobre os norte-americanos e sobre nossahistria. E esses encontros com homens e mulheres notveisme fizeram sentir que essas pessoas so meus aliados. A pes-quisa me levou a novas formas de pensar a interpretao, adramaturgia, o cenrio, o figurino, a iluminao e a trilha so-nora. Percebi que existe um senso de estrutura norte-ameri-can o, um senso de humor norte-americano, uma maneira deouvir e reagir que tem razes culturais. Diante de noites inso-nes e de esgotamento fsico, posso at en contrar alguma formaancestral de movimento.

    48

    2

    Violncia

    Em relao a todos os atos de iniciativa e criao, existe uma ver-dade elementar cujo desconhecimento destri ideias e projetos

    brilhantes; no momento em que a pessoa se compromete de

    forma definitiva, a Providncia tambm age.Toda sorte de coisas acontece para ajudar a pessof, coisas que

    nunca teriam ocorrido. Todo um fluxo de eventos o'rota da deci-

    so, fazendo surgir em favor da pessoa toda espcie de incidentes,

    encontros e assistncia material imprevistos, que nenhum homem

    sonharia pudessem lhe cruzar o caminho.Faa o que fizer, ou sonhe fazer, comece j. A ousadia traz

    com ela genialidade, fora e magia.

    Goethe

    Ao observar o diretor Robert Wilson ensaiando, me dei conta,pela primeira vez, da necessidade de violncia no ato criati vo.Foi no vero de 1986, e at aquele momento eu nunca haviatido a oportunidade de ver outro diretor ensaiar com atares.

    Era a montagem de Hamletmachine , de Heiner Mller, re-presentada por alunos de atuao da New York University. Oensaio estava marcado para comear s sete da noite. Cheguei

    49

  • ,J

    A PREPARA O DO OIRETOR

    cedo e encontrei um clima de expectativa. Na ltima fileirado teatro , canetas na mo, estudantes de ps-graduao e pro-fessores esperavam com ansiedade a entrada de Wilson. Nopalco, os jovens atares se aqueciam. Uma equipe de diretoresde cena estava sentada atrs de uma pilha de mesas compri-das na beira do palco. Wilson chegou s sete e quinze. Sentou--se no centro da plateia em meio agitao e ao rudo e pas-sou a observar intensamente o palco. Pouco a pouco, todo omundo no teatro se aquietou at o silncio ficar penetrante.Aps uns cinco minutos desesperadores de absoluta imobili-dade, Wilson levantou-se, caminhou at uma cadeira nopalco e ficou olhando para ela. Depois do que me pareceuuma eternidade, ele se abaixou, tocou a cadeira e deslocou-adois centmetros . Quando ele deu um passo para olhar a ca-deira de novo, notei que eu estava com dificuldade para res-pirar. A tenso na sala era palpvel, quase insuportvel. Emseguida, Wilson chamou uma atriz para perto de si , para mos-trar o que queria que ela fizesse. Ele demonstrou: sentou-sena cadeira, inclinou-se para a frente e mexeu os dedos ligei-ramente. Ento ela tomou o lugar dele e copiou com precisoa inclinao e os gestos de mo. Eu me dei conta de que es-tava inclinada para a frente em minha poltrona, profunda-

    . mente incomodada. Como nunca havia vivenciado outrodiretor trabalhando , sentia como se estivesse observando ou-tras pessoas em um ato privado, ntimo. E identifiquei nessanoite a necessria crueldade da deciso.

    O ato decisivo de colocar um objeto em um ngulo pre-ciso do palco, ou o gesto de mo de um ator, me pareceramquase um ato de violao. Achei isso perturbador. No entanto,no fundo , eu sabia que esse ato violento uma condio ne-cessria para todos os artistas.

    50

    V IOLNCIA

    A arte violenta. Ser decidido uma atitude violenta. An-tonin Artaud definiu a crueldade como "determinao infle-xvel, diligncia, rigor". Colocar uma cadeira em determinadongulo do palco destri todas as outras escolhas possveis,todas as outras opes possveis. Quando um ator adquire ummomento espontneo, intuitivo ou apaixonado durante o en-saio, o diretor pronuncia as palavras fatdicas "gu arde isso",eliminando todas as outras solues possveis. Essas duas pa-lavras cruis cravam uma faca no corao do ator, ele sabe quea prxima tentativa de recriar aquele resultado ser falsa , afe-tada e sem vida. Mas l no fundo o ator tambm sabe que aimprovisao ainda no arte. S quando houve uma deciso que o trabalho pode realmente comear. A determinao , acrueldade que extinguiu a espontaneidade do momento , exigeque o ator comece um trabalho extraordinrio: re~~uscitar osmortos. O atar tem de encontrar uma asp on tan e'dade nova,mais profunda, dentro dessa forma estab elecid a . E isso, paramim, lo que faz dos atores heris . Eles ac eitam essa violn-cia, trabalham com ela, levando habilidade e imaginao

    arte da repetio. significativo que a palavra francesa para en saio seja r -

    ptition. Com certeza, pode-s e afirmar que a arte do teatro aarte da repetio. (A palavra inglesa rehearsal [ensaio] propere-heat [reouvir]. O alemo Probe [prova] sugere uma investi-gao. Em japons keiko se traduz por prtica. E assim. pordiante . Estudar as palavras que as diferentes lnguas usampara ensaio de um fascnio infinito.) Ao en sa iar, o atar pro-cura formas que possam ser repetidas. Atores e diretores cons-troem juntos uma moldura que possibilitar novas correntesinfindveis d e fora vital, d e vicissitudes e ligaes em ocio-nais com outros atores. Gosto de pensar na encenao, ou mol-

    51

  • A PREPARAO DO DIRETOR

    dagem, como um veculo pelo qual o ator pode se mover ecrescer. Paradoxalmente, so as restries, a preciso, a exati-do, que possibilitam a liberdade. A forma passa a ser um con-tinente no qual o ator pode encontrar infinitas variaes eliberdade interpretativa.

    Para o ator, essa violncia necessria na criao de umpapel para o teatro nitidamente difere~te da violncia ne-cessria ao atuar para a cmera. Na representao cinemato-grfica, o ator pode fazer alguma coisa por impulso sem sepreocupar em repetir aquilo infinitamente. O que vital paraa cmera que o momento seja espontneo e fotognico. Noteatro, ele tem de ser repetvel.

    Grandes interpretaes emanam tanto exatido quantouma poderosa sensao de liberdade. Essa liberdade s podeser encontrada dentro de certas limitaes escolhidas. As li-mitaes servem como uma lente para focalizar e ampliar oevento para a plateia, assim como para dar aos atores algo comque se comparar. Uma limitao pode ser to simples quantomanter-se na luz adequada e falar o texto exatamente comoest escrito, ou to difcil quanto cumprir uma complexa co-reograa enquanto canta uma ria. Essas limitaes convidamo ator a enfrent-las, abal-las, transcend-las. O pblico sente

    .. que o ator est testando seus limites; representando alm donormal, apesar das limitaes.

    No comeo de sua carreira, Chuck Close, um pintor norte--americano do realismo fotogrfico, especializado em retratose autorretratos em dose, decidiu que queria ser mais que umtcnico. Ele comeou a colocar para si mesmo profundas li-mitaes na maneira de pintar, a fim de transcender o artesa-nato. Sentia que essas limitaes, estruturais ou materiais,eram um teste para sua criatividade e ampliavam suas reali-

    52

    VIOLNCIA

    zaes. A limitao extrema ocorreu em 1988, quando ele so-freu um derrame e ficou paralisado devido a um cogulo nacoluna vertebral. Ele recuperou o uso parcial dos braos e con-seguiu voltar a pintar depois de desenvolver tcnicas que lhepermitiam trabalhar em uma cadeira de rodas. Foi obrigado areaprender a pintar da cadeira de rodas com pincis amarra-dos mos. Essas limitaes rigorosas, bem alm de qualqueruma que ele pudesse sonhar para si, o encorajaram a efetuaruma notvel transio em sua abordagem e resultaram no quepode vir a ser a obra mais significativa de sua vida.

    Articular-se diante das limitaes: a que a violncia seinstala. Esse ato de violncia necessria, que de incio parecelimitar a liberdade e diminuir as opes, por sua vez traz mui-tas outras alternativas e exige do ator uma noo de liberdade

    mais profunda. ;'O virtuose violoncelista Yo Yo Ma no poupa esforos

    para atuar em espaos musicais diferentes dos da sua expe-rincia clssica. Ele fez diversas gravaes de msica apalachecom o s do violino Mark O'Connor. Para adaptar sua forma-o clssica msica apalache e ao estilo de O'Connor, Yo YoMa mudou de propsito o modo de segurar o arco. Posicio-nou a mo na parte inferior do arco em vez da posio clssicacostumeira. De repente, o virtuose do violoncelo se sentiu to-talmente fora de sua zona de conforto com essa nova limita-o. Mas essa nova maneira de tocar acabou abrindo outraspossibilidades para Yo Yo Ma e um novo meio de o artista seexpressar.

    Usei o modo de tocar dos intrpretes do Barroco. Eles tm menos

    necessidade de preencher grandes espaos. Assim, tenho oportu-

    nidades infinitamente maiores de criar uma nova camada de

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  • A PREPARAO 00 OIRETOR

    ritmo. Isso mudou a minha maneira de tocar Bach. Na verdade,

    possvel desenvolver uma enorme variedade de inflexes sem per-der a clareza rtmica.

    Yo Yo Ma correu o risco do fracasso. O risco um ingre-diente-chave no ato de violncia e articulaovSem aceitar orisco, no pode haver nenhum progresso , nenhuma aventura.O esforo para representar de forma articulada a partir de umestado de desequilbrio e risco transmite ao uma energiaextraordinria.

    Trememos diante da violncia da articulao. No entanto,sem a necessria violncia, no existe expresso fluente.Quando em dvida, procuro, naquele momento, a coragem dedar um salto: articular algo, mesmo no tendo certeza de queseja correto ou apropriado. Armada apenas de um pressenti-mento, tento dar um mergulho, e no meio do mergulho esforo--m e para ser o mais articulada possvel. "Se no conseguedizer" , escreveu o filsofo Ludwig Wittgenstein, "ap on te." Emmeio assustadora incerteza, procuro me apoiar no momentoe apontar com clareza. Mesmo que no saiba em que ngulouma -cadeira deve estar no palco, tento agir de maneira deci-dida. Fao o melhor que posso . Tomo decises antes de estarpronta. a tentativa de articular que heroica e indispensvelao mesmo tempo.

    Um dia, impossibilitada d e comparecer a um ensaio paraa remontagem de uma p ea que eu havia dirigido com minhacompanhia, a SITI Company, pedi a um dos meus alunos degraduao em direo na Columbia University que m e substi-

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    VIOL N CIA

    tusse. No dia seguinte, perguntei a Ellen Lauren, integranteda companhia, como o rapaz tinha se sado como diretor subs-tituto. " No muito bem", ela disse. "P or que no?", perguntei."Bom, ele no disse nada." Ela explicou que, do ponto de vistadela , no importa quanto a observao seja inteligente ou in-gnua, como atriz ela precisa que a pessoa responsvel porobservar, o diretor, diga alguma coisa em torno da qual elapossa organizar sua prxima tentativa. A questo tentardizer alguma coisa quando se est em um momento de inde-finio, mesmo que voc no saiba direito o que dizer. Fazeruma observao. Ficar em silncio, evitar a violncia da arti-culao diminui o risco de fracasso, mas no permite a possi-bilidade de avano.

    Tem medo demais do futuro

    Ou mritos muito midos

    Quem no ousa jogar duro

    Para iganhar ou perder tudo.

    Aprendi a palavra japonesa irimi quando estava estu-dando aikid, uma arte marcial do Oriente. A traduo literalde irimi "en trar" , mas pode tambm ser traduzida por "esco-lher a morte". Quando atacado, voc tem sempre duas opes:entrar, itimi, ou dar a volta, ura. Ambas, quando feitas do jeitocerto, so criativas. Entrar ou "escolher a morte" significa en-trar inteiro com total aceitao , se necessrio, da morte. Onico jeito de vencer arriscar tudo e estar plenamente dis-posto a morrer. Isso pode ser uma ideia exagerada para a sen-sibilidade ocidental, mas faz sentido na prtica criativa. Paraalcanar a violncia da determinao , preciso "escolher amorte " no momento da atuao de maneira plena e intuitiva

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  • A PREPARAO DO DIRETOR

    sem parar para refletir se aquela a deciso correta ou se vaifornecer a soluo vencedora.

    til tambm saber quando usar ura , ou seja, dar a volta.Pacincia e flexibilidade so uma arte. Existe um momentopara ura e existe um momento para irimi. E nunca sabemoscom antecedncia quando chegam esses momentos, precisosentir a situao e agir imediatamente. No calor. da criao,no h tempo para reflexo; s existe ligao com o que estacontecendo. A anlise, a reflexo e a crtica devem ser feitasantes ou depois do ato criativo, nunca durante.

    Como jovem diretora eu era melhor com um, dar a volta,do que com itimi, entrar. Nos ensaios, eu evitava interrompero trabalho dos atores. Temendo tomar uma deciso a respeitode qualquer diviso ou encenao especfica, preocupada queminha interveno pudesse destruir o frescor e a espontanei-dade da vida que parecia estar acontecendo to naturalmentesem minha contribuio , eu ficava quieta. Ento , claro , anoite de estreia se aproximava e vinha o pnico. De repente,a falta de alguma coisa slida ou tangvel para os atores usa-rem como comparao ficava dolorosamente bvia para mim."O que ficamos fazendo esse tempo todo?", eu perguntava amim mesma luz da ausncia de acordos , de encenaes, detrampolins dos quais os atores pudessem tentar as alturas. Derepente, forada pela presso e pelas circunstncias, eu ace-lerava o processo e negociava com os ateres em busca de mo-mentos , aes e padres a repetir e com os quais contar. Porfim, esses acordos se transformavam nos trampolins que per-mitiam aos atores se encontrar uns com os outros com segu-rana e estabilidade e lhes dava, ao m esmo tempo, coragem deassumir os riscos esse n ciais e dar os saltos intuitivos dentroda estrutura das aes e das palavras. Depois de algum tempo,

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    VIOL~NCIA

    encontrei a coragem necessria para fazer esses acordos cadavez mais cedo no processo de ensaio. Aprendi a entrar.

    O dramaturgo sul-africano Athol Fugard descreveu acensura como hesitao. Para ele, censura no necessaria-mente a proximidade de inspetores do governo ou umaameaa de priso , mas, mais do que isso, a hesitao de suamo ao escrever. Censura a sua prpria vacilao particu-lar, provocada por todo tipo de dvida sua espreita. Cen-sura uma hesitao fsica luz de uma ideia passageira oude uma dvida sobre como seus pares vo receber o que vocest escrevendo, se vo ou no gostar se aquilo for publicado. luz de nossas h esitaes, devemos permanecer profunda-mente ligados ao ato. Temos de ser decididos e intuitivos si-multaneamente.

    Richard Foreman, talvez o mais intelectual dO.8 diretoresnorte-americanos, disse que, para ele, a criao cem porcento intuitiva. Descobri que ele tem razo. Isso no significaque nd se deva pensar analtica, terica, prtica e critica-mente. Esse tipo de atividade do lado esquerdo do crebro temsua hora e lugar, mas no no calor da descoberta durante o en-saio e no diante da plateia. Assim que a porta do local deensaio se fecha ou que a cortina sobe para uma apresentao,no h tempo para pensar nem refletir. Nesses momentos deintensa presso existe apenas o ato intuitivo da articulaodentro da crise da ao. Assim como o pintor no pode fazeruma pausa no momento em que est interagindo com a tintae a tela, o processo de ensaio no deve ser perturbado pelateoria. O bom ensaio para mim como a experincia de usaruma prancha Ouija. Voc coloca as mos na pulsao e escuta.Sente. Vai atrs. Age no momento que antecede a anlise, nodepois. o nico jeito.

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  • A PREPARAO DO DIRETOR

    A distoro uma destruio parcial, um ingrediente in-dispensvel para tornar visvel aquilo que vago. violentatambm. Agnes DeMille descreveu o uso da distoro, ou vi-rada, na dana:

    A distoro a prpria essncia da arte e de toda a dana. A dis-

    toro o que impede que o movimento rtmico comum seja um

    cambalear inspido no ar. A distoro a extenso do esforo, o

    prolongamento ou nfase alm da norma. Ela pode ser surpreen-

    dente ou notvel e ajudar a fixar o gesto na memria - sim, e no

    significado, porque exprime a superao da dificuldade, o predo-

    mnio e o triunfo do humano.

    Estar desperto no palco, distorcer alguma coisa - um mo-vimento, um gesto, uma palavra, uma frase -, exige um ato denecessria violncia: a violncia da indefinio. Indefiniosignifica remover os pressupostos confortveis a respeito deum objeto, de uma pessoa, palavras, frases ou de uma narra-tiva, e voltar a questionar isso tudo. O que se define instanta-neamente muitas vezes esquecido. Tudo no palco pode estaradormecido quando excessivamente definido.

    Victor Schklovsky, o formalista russo que seguramenteinspirou Bertolt Brecht com seus Quatro ensaios sobre for-malismo, escrito nos anos 1920, desenvolveu importantes teo-rias sobre a funo da arte. Tudo em torno de ns, escreveuele, est adormecido. A funo da arte despertar o que estadormecido. Como se faz isso? Segundo Schklovsky, voc virao que estiver adormecido ligeiramente at ele despertar.

    Bertolt Brecht, provavelmente influenciado pelos escritosde Schklovsky, desenvolveu teorias para transformar o que era

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    VIOl~NCIA

    estranho em familiar e o que era familiar em estranho durantea articulao do efeito de distanciamento (Verfremdung) [es-tranhamento, distanciamento]. Ele deve ter usado a ideia devirar alguma coisa, de distorc-la para torn-la no familiar,at ela despertar, a fim de v-la de um modo novo em suaabordagem da representao para o palco.

    Um exemplo dessa ideia shklovskyana de distoro ou"virada" pode ser encontrado no filme de Alfred HitchcockSuspeita. Em uma sequncia, o marido (Cary Grant) sobe aescada levando um copo de leite em uma bandeja para sua es-posa (Ingrid Bergman), que est doente na cama no andar decima. Nesse momento particular, o suspense est em se per-guntar se o marido envenenou ou no o leite. Ele um ma-rido amoroso ou um vilo assassino? O que no bvio, masdecerto afeta a maneira como experimentamos a cena, a qua-lidade do leite. Hitchcock colocou uma pequena lmpada, in-visvel para o pblico, dentro do copo de leite, de forma queele tivesse um pequeno brilho. Embora a plateia no saiba exa-tamente por qu, o leite parece vivo, desperto, impositivo eem estado de perigo potencial.

    A criatividade em primeiro lugar um ato de destruio.

    Pablo Picasso

    Para o pintor, violncia a primeira pincelada que ele dna tela. Tudo o que vem depois disso, no trabalho da pintura,como indicou Picasso, diz respeito correo da ao inicial.

    59

  • A PREPARAO DO DIRETOR

    Quando se comea um quadro, geralmente fazemos algumas des-

    cobertas agradveis. preciso estar atento contra elas. Destrua-a,

    refaa-a diversas vezes. A cada destruio de uma bela descoberta,o artista no a suprime realmente, mas sim a transforma, Con-

    densa, a torna mais substancial. O que aparece no final o resul-

    tado das descobertas descartadas. De outra forma, voc setransforma em seu prprio connoisseur. Eu no vendo nada para

    mim mesmo.

    Pablo Picasso

    o pblico do teatro deve se sentir envolvido pelos acon-tecimentos , mas tambm ligeiramente incomodado com oque est acontecendo. As interaes, as palavras e as aesno palco devem ser vigorosas, arrojadas e impositivas. Osatores tm diante de si a imensa tarefa d e despertar os cli-chs adormecidos. Por exemplo, as palavras "eu te amo" , porserem ditas com tanta frequncia, no tm sentido, a menosque sejam indefinidas, distorcidas, reviradas e oferecidas sobuma nova forma. S en to elas tero frescor e sero audveis.Pegar uma xcara de ch algo que foi feito tantas vezes que

    . sempre definida e categorizada antes que a ao comece.Quando a ao definida pelo ator antes de ser executada,ela estar adormecida. No "brilha". O artista se relacionacom os materiais mo a fim de despert-los, de desdornes-tic -Ios . Para liberar o potencial de uma palavra ou ao necessrio que o atar r epresente de tal forma que no des-creva o seu significado, mas sim o transforme ligeiramente ,de modo que a multiplicidade de seus sentidos potenciais

    fique evidente e desperte.

    60

    VIOL NCIA

    Se um fenmeno pode ser definido como " isso, e apenas isso",

    significa que ele existe apenas em nossas mentes. Mas se ele tem

    uma existncia real, nunca podemos ter a esperana de defini-lo

    completamente. Suas fronteiras esto sempre em movimento,

    com excees e analogias se abrindo o tempo todo.

    jerzy Grotowski

    Outro tipo de violncia a da discordncia. Acredito que na discordncia que certas verdades sobre a condio hu-mana so reveladas. possvel perceber a v erd ad e quandoimagens , ideias ou pessoas discordam. Na arte, essas discor-dncias esto por toda parte.

    Quase no final do filme d e Bernardo Bertolucci O ltimotango erh Paris os amantes representados por Marlon Brandoe Maria Schneider esto sentados em uma mesinha em umsalo onde se dana tango. Schneider, em dose up, informabrutalmente a Brando, com quem est tendo um intenso casoamoroso, que no quer mais saber dele. Diz que vai se levan-tar e deix-lo ali e insiste que nunca mais quer v-lo. EnquantoSchneider fala, a cmera se afasta e mostra que ela est se mas-turbando por baixo da mesa. Nesse momento, o pblico se vdiante d e dois palas opostos: a atrao e a vontade de fugir.Entre esses dois opostos en con tra-se a verdade indmita ecomplexa que estar vivo.

    A verdade que uma ex perincia e no algo fcil de defi-nir est, na maioria das vezes, no espao en tre opostos. Est nadivergncia de ideias ou imagens. No exemplo de O ltimo

    61

  • A PREPARAO DO DIRETOR

    tango, a verdade sobre o complexo relacionamento no pode-ria existir no espao de uma ideia. Ela expressa na tensoentre opostos, a oposio da atrao fsica com a vontade defugir. A oposio, ou dialtica, estabelece sistemas alternati-vos de percepo. Cria espaos de choque onde o insiglit pode

    ocorrer."Na adaptao para o cinema do musical Cabaxet h uma

    cena em que um lindo rapaz loiro se levanta em uma cerveja-ria ao ar livre na Alemanha pr-guerra e canta "O amanh per-tence a mim". um belo dia ensolarado e, uma a uma, asoutras pessoas na cervejaria vo se levantando e cantam juntocom ele. Depois de algum tempo, o rapaz loiro levanta o braono qual est presa uma sustica. Nesse momento, o pblicode hoje se v confrontado com dois extremos: 1) a cano contagiante, o rapaz atraente e, se voc estivesse l naqueledia, poderia ter se juntado a ele antes de ver a sustica; 2) o co-nhecimento das consequncias histricas do nazismo. Essaassociao entre dois opostos estabelece uma experincia, nofornece uma resposta. A verdade est na tenso entre opostos.

    No se pode olhar diretamente as grandes questes hu-manas assim como no se pode olhar diretamente para o sol.Para encarar o sol, preciso olhar ligeiramente do lado dele.Entre o sol e o ponto que voc est olhando fica a percepodo sol. Na arte e no teatro usamos a metfora como "essa coisaao lado". Atravs da metfora, vemos a verdade de nossacondio. A palavra metfora vem do grego, meta (acima,alm) e pheteiu (conduzir, levar). Metfora aquilo que le-vado alm da literalidade da vida. Arte metfora e metfora

    transformao.

    62

    VIOLNCIA

    A violncia comea com a deciso, com um compromisso.A palavra compromisso [em ingls, commitment], vem dolatim committere, que quer dizer "pr em ao, reunir, juntar,confiar e fazer". Comprometer-se com uma escolha d a sen-sao de violncia, a sensao de saltar de um trampolim alto.Isso porque a deciso uma agresso contra a natureza e ainrcia. Mesmo uma escolha aparentemente to pequenacomo decidir o ngulo exato de uma cadeira parece uma vio-lao do fluxo, do curso livre da vida.

    Mas a maioria dos artistas concordaria que seu trabalhono provm de uma ideia de como ser o produto final; aocontrrio, surge de um apaixonado entusiasmo pelo assunto.

    o poema do poeta espremido dele pelo assunto que o entu-siasma.

    Samuel Alexander

    Para gerar o entusiasmo indispensvel, tem de haver algoem jogo, em risco, algo importante e incerto. Segurana nodesperta nossas emoes.

    No uma tragdia no saber o que se est fazendo e noter todas as respostas. Mas a paixo e o entusiasmo por algo oconduziro pela incerteza. Se voc se sente inseguro e nosabe realmente o que est fazendo, tudo bem. Tente apenastrabalhar com interesse na preciso. Seja preciso com aquiloque no sabe. O realismo no palco no gerado por uma sen-sao de realidade ou verdade, mas ele emerge antes, do atopreciso e determinado com relao a algo que nos entusiasma.

    Quando eu era diretora artstica do Trinity RepertoryTheatre em Providence, Rhode Island, uma jovem estudante

    63

  • A PREPARAO DO DIRETOR

    de direo na Brown University me convidou para assistir aum ensaio completo de sua produo. Quando cheguei salade ensaio, ela informou que levaria alguns minutos para oelenco estar pronto para comear. Naturalmente ela estavanervosa com o ensaio completo e com a minha presena. Sen-tei para esperar e assisti jovem diretora cO!fieter um errofatal. Um ator aproximou-se dela e perguntou o que deviafazer com determinada cadeira. Apressada e ansiosa, ela disseestas palavras: "Tanto faz."

    Uma coisa s ter importncia para o pblico se voc lheder importncia. Se voc cuida disso, mesmo que por um mo-mento, o compromisso de sua ateno criar a tenso de aten-o. Se algo no recebe a ateno deliberada do ator e dodiretor, ele no receber a ateno do pblico. Ficar invisvel.O ato de deciso atribui presena ao objeto. A jovem diretoradeveria ter dedicado apenas um instante ao compromisso desua ateno com o problema. Ela poderia ter invertido a per-gunta do ator e perguntado onde ele achava que a cadeira de-veria ficar. Tambm poderia ter parecido perdida por ummomento e depois , a partir de seu verdadeiro estado de inse-gurana, ter decidido.

    O ensaio da Hamletmachine dirigida por Robert Wilsonme fez perceber a legitimidade e a necessidade da violncia noato criativo. Decidir um ato de violncia, porm a deciso ea crueldade fazem parte do processo colaborativo que o teatroprope. Decises do origem a limitaes, que, por sua vez,pedem o uso criativo da imaginao.

    Trabalho com uma companhia, a SITI Company, porque um grupo de artistas que aprenderam a discordar uns dos ou-

    64

    VIOLNCIA

    tros com generosidade. Desenvolvemos uma forma de usar aviolncia com compaixo e delicadeza. Acho essa abordagemessencial para minha maneira de trabalhar. Ser cruel , em l-tima anlise, um ato de generosidade no processo colabora-tivo. "Ter ideias fcil", ns sempre dizemos no calor de umensaio. As ideias vm e vo , mas o que importante o com-promisso com uma escolha e com sua clareza e comunicabi-lidade. No se trata da ideia certa, nem mesmo da decisocerta, mas da qualidade da deciso. Tentamos trabalhar intui-tivamente uns com os outros, nossas mos em conjunto naprancha Ouija, e ento, no momento certo , entramos. "Esco-lhemos a morte."

    65

  • 3

    Erotismo

    Existe uma tenso que atravessa toda uma obra musical e nuncase esgota. Uma longa corda de prata que se puxa. s vezes, h

    um pequeno n na corda, mas ela nunca cede. Existe sempre uma

    fora irresistvel a distend-Ia da primeira ltima nota. preciso

    prender a plateia desde a primeira nota .

    Alfred Brendel

    Apesar de o papel da atrao e do erotismo no teatro rara-mente ser discutido, ambos so ingredientes vitais ao ato cria-tivo e dinmica entre pblico e atores. A fim de examinar asquestes da atrao e do erotismo, este captulo segue o pa-dro arquetpico de uma relao apaixonada.

    1. Alguma coisa ou algum o arrebata.2. Voc se sente atrado.3. Sente a energia e o poder.4. Ele o desorienta.5. Voc faz o primeiro contato; ele corresponde.6. Voc vivencia um relacionamento prolongado.7. Voc transformado em carter permanente.

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  • A PREPARAO DO DIRETOR

    1 Alguma coisa ou algum o arrebata

    No faz muito tempo, ao visitar o Museu de Arte Modernade So Francisco, encontrei uma gigantesca pintura de An-selm Kiefer intitulada Ositis e sis.