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Catalogação da Publicação na Fonte. Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA).

Araújo, Maria Patrícia de. De memórias da infância à prática artística / Maria Patrícia de Araújo.

– 2012. 49 f.: il. - Monografia (Licenciatura em Artes Visuais) – Universidade Federal

do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Departamento de Artes, 2012.

Orientador: Prof.º Dr. Isaías da Silva Ribeiro.

1. Artes. 2. Memória. 3. Tempo. 4. Prática artística. I. Ribeiro, Isaías da Silva. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

RN/BSE-CCHLA CDU 7

MARIA PATRÍCIA DE ARAÚJO

DE MEMÓRIAS DA INFÂNCIA À PRÁTICA ARTÍSTICA

Memorial Reflexivo apresentado à Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN – como requisito parcial para obtenção do título de Licenciada em Artes Visuais.

Orientador: Prof. Ms. Isaías da Silva

Ribeiro

NATAL 2012

MARIA PATRÍCIA DE ARAÚJO

DE MEMÓRIAS DA INFÂNCIA À PRÁTICA ARTÍSTICA

Memorial Reflexivo apresentado à Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN – como requisito parcial para obtenção do título de Licenciada em Artes Visuais.

BANCA EXAMINADORA

Prof. Ms. Isaías da Silva Ribeiro Orientador

Profª. Drª. Luiza Maria Nóbrega

Prof. Dr. Eduardo Anibal Pellejero

Natal, 18 de dezembro de 2012

Ao meu companheiro Luiz.

Agradecimentos

À minha família, por fazer parte das minhas memórias e por serem as pessoas maravilhosas que são.

Aos meus amigos e colegas por compartilharem dos muitos momentos que tivemos ao longo desses quatro anos.

Ao meu orientador Isaías, pela disposição e paciência.

[...]

caminante, no hay camino,

se hace camino al andar.

Al andar se hace camino,

y al volver la vista atrás

se ve la senda que nunca

se ha de volver a pisar.

[...]

António Machado

Resumo

A questão inicial que norteou esse trabalho foi: é possível desenvolver trabalhos

artísticos a partir da articulação de memórias, experiências e vivências cotidianas da

infância? E, considerando que sim, é possível, adentrei em uma busca, uma tentativa de

relembrar, recuperar, reviver tais memórias. Mais que isso, precisei também selecioná-

las, e a partir daí pensar como transformar tais experiências em práticas artísticas.

Visitando lugares, conversando com a minha família, minha mãe em particular,

revendo fotos e objetos que fizeram parte da minha infância, pude, assim, criar um

terreno fértil de ideias para a criação artística que desejava realizar.

Seguindo esta questão inicial e estes procedimentos, creio que pude, então,

alcançar o meu principal objetivo nessa pesquisa, que foi desenvolver uma série de

trabalhos artísticos – adotando como linguagens a fotografia e a assemblage –, tendo

como referência as memórias da minha infância vivida no Sítio Umari Preto (município

de Florânia, no sertão do Rio Grande do Norte). Foi nesse lugar que vivi até os meus

dez anos de idade; e foi nele que construí o meu imaginário infantil. Ao final desse

processo, realizei nove trabalhos artísticos, que serão expostos na Galeria do DEART,

entre os dias 18 e 20 de dezembro de 2012.

As anotações e reflexões apresentadas neste texto pretendem mostrar como foi o

meu processo criativo, as questões que surgiam – como vou fazer isso?, que material

vou usar? etc. –, bem como as relações que se foram apresentando, a ponto de eu me

aperceber olhando para um monte de tijolos e ver através deles as transformações

sociais que ocorrem ao longo das gerações. Foi como poder sentir o tempo se

materializando, ver suas formas, cores e texturas. Mais que um processo criativo, vivi

um tipo de experiência de percepção. Os objetos muitas vezes assumiram suas formas,

quase que à minha revelia. Foi como se algo se moldasse no meu inconsciente, e só

depois fosse projetado para mim mesma.

Palavras chaves

Artes; Memória; Tempo; Prática artística.

Sumário

Preâmbulo 8

Trabalhos realizados: imagens 10

Introdução: suporte teórico e reflexões 19

O processo: trabalhos, materiais e montagem da exposição 25

Considerações finais 41

Referências 42

Bibliografia consultada 42

Apêndice 1: Divagações: anotações gerais ao longo do processo, presentes no meu diário de pesquisa.

44

8

Preâmbulo

Aqui apresento pensamentos com os quais me deparo. Reflito sobre o que está

ocorrendo nos dias atuais para convivermos com a constante sensação de falta de tempo. Seja

para desenvolver um projeto, escrever um artigo, ter momento de lazer, reunir-se com a

família, cuidar do jardim.

Penso na importância de termos tempo para parar e poder ouvir os próprios

sentimentos e pensamentos. Tempo para poder escolher o que se quer: não fazer nada, ler um

livro, trabalhar ou fazer qualquer outra coisa que se escolheu naquele momento, sabendo que

se terá o tempo suficiente para desenvolvê-la e desfrutá-la, sem precisar interromper porque

“já é hora” de outros compromissos. Ter tempo de desenvolver o que se propõe com

dedicação e qualidade, no momento desejado.

Será que a melhor forma de viver é esta em que nos encontramos, onde sempre temos

várias coisas para fazer, compromissos (com frequência artificialmente criados e impostos) e

horários que nos tiram a possibilidade de aprofundamento no que se deseja? Será que nessa

configuração de sociedade, com o tempo sempre escasso, ainda há tempo para o eu, seja qual

for a concepção de eu que se adote?

E seguem os dilemas: gostaria de fazer isso, mas preciso concluir aquilo, refazer

aquilo outro, ligar para fulano..., talvez no fim de semana, se concluir..., e acompanha uma

lista infindável de afazeres.

Quando, afinal, teremos tempo para o presente, se estamos sempre providenciando

coisas para o futuro ou tentando concluir o que já deveria ter sido realizado no passado?

Quando teremos a oportunidade de nos presentearmos com o tempo presente, vivê-lo e, assim,

nele construirmos nossas memórias? Como ter memória de algo, se no tempo do instantâneo

não conseguimos nos relacionar, se as experiências são efêmeras e sempre há algo novo,

supernovo, novíssimo, acontecendo para nos atrair e distrair a atenção?

Se perdermos nossa memória, perderemos nossa identidade, nossa referência de onde

viemos, quais percursos fizemos, quais foram as dificuldades e erros que já vivemos para não

mais repeti-los. O que de bom já fizemos e podemos aprimorar agora, para não iniciarmos

sempre do zero. É a nossa memória que nos permite seguir, situados no tempo e no espaço.

A memória faz parte da vida de todos nós. Cada pessoa tem suas próprias memórias,

sejam elas boas, neutras ou ruins. São elas que nos permitem aos trinta, cinqüenta, noventa

anos de vida, ou mais, sentirmos cheiros, sabores, alegrias ou ainda revivermos momentos

9

que somente através da memória ainda são possíveis. É a memória que faz, de um fato

passado, uma história do presente.

10

Trabalhos realizados: imagens

Figura 1: “Meus avós, meus pais, meus irmãos. E eu?”.

11

Figura 2: “Tempo”.

12

Figura 3: “Enterros, missas e batizados”.

13

Figura 4: “Processador de memórias”.

14

Figura 5: “Foto de família”.

15

Figura 6: “A lua nasce aqui”.

16

Figura 7: “Vestígios de memória”.

17

Still. 1min, exibido em loop.Figura 8: “Mecânica”.

18

Still. 2min35seg, exibido em loop. Figura 9: “Simbólico”.

19

Introdução: suporte teórico e reflexões

Seja ela individual ou até mesmo coletiva, a memória nos acompanha ao longo dos

tempos, e é através dela que nos tornamos seres históricos. Segundo Canton (2009a, p. 21),

“O fim da história seria a realidade de uma sociedade atemporal que perdeu sua memória,...”.

Quanto à memória coletiva, o geógrafo Milton Santos assinala que: “A memória coletiva é

apontada como um cimento indispensável à sobrevivência das sociedades, o elemento de

coesão garantidor da permanência e da elaboração do futuro.” (SANTOS, 2004, p. 329)

Podemos dizer que somente a memória é capaz de manter vivo algo que pode já não

mais existir e servir de base para as gerações futuras. Ela se constrói em um determinado

tempo e através da relação com um determinado espaço.

Contudo, vivemos em um momento histórico no qual, com a crescente quantidade e

velocidade das informações, temos uma compressão dos espaços através do tempo, gerando

um número de informações impossíveis de serem memorizadas. Sobre este aspecto, Canton

também nos esclarece, dizendo que: “turbulento, esse tempo parece fugaz e raso. Retira as

espessuras das experiências que vivemos no mundo, afetando inexoravelmente nossas noções

de história, de memória, de pertencimento.” (CANTON, p. 20. 2009a).

Sendo assim, podemos entender a perda da memória como um desencontro com a

própria vida, como a perda da identidade do ser e da sociedade à qual pertence.

A memória desenvolve relações diversas com o tempo, o espaço, o lugar, a

afetividade. Em relação ao tempo, Canton argumenta que: “Um dos elementos mais

importantes para pensarmos a vida e a arte contemporâneas é o tempo. Talvez seja mais

prudente citar a ‘falta de tempo’, ou a sensação de que hoje o tempo ‘corre mais rapidamente’,

como a maioria das pessoas costuma dizer”. (CANTON, 2009a, p. 15)

A discussão sobre o tempo (ou a sua falta), apresentada aqui, vai ao encontro das

minhas observações e inquietações nos últimos sete anos (momento em que saí do interior do

estado e vim estudar e morar em Natal, percebendo o contraste existente entre ambos). É

nesse contexto que penso sobre o tempo e o relaciono à memória, opondo-me ao efêmero e às

experiências rasas e ralas, superficiais. Busco, assim, uma desaceleração do tempo a fim de

poder viver com maior profundidade e construir memórias enquanto um agente de resistência

a essa forma de viver numa constante aceleração do tempo e sobreposição das ações

cotidianas.

20

Os termos espaço e lugar, muitas vezes, são usados como sinônimos. Todavia, mesmo

ambos dialogando com questões da memória, existe uma diferenciação.

Os termos espaço e lugar têm o mesmo significado? Na verdade, cada um deles

designa uma relação singular com as circunstâncias e os objetos, [...] a palavra

“espaço” é utilizada genericamente, enquanto “lugar” se refere a uma noção

específica do espaço: trata-se de um espaço particular, familiar, responsável pela

construção de nossas raízes e nossas referências no mundo. (CANTON, 2009b, p.

15)

Outra definição para espaço nos é apresentada por Santos, ao dizer que: “O espaço é

formado por um conjunto indissociável, solidário e também contraditório, de sistemas de

objetos e sistemas de ações, não considerados isoladamente, mas como um quadro único no

qual a história se dá.” (SANTOS, 2004, p. 63).

Podemos dizer que enquanto o espaço é apresentado como o ambiente em que se

desenvolvem todas as relações humanas e históricas, o lugar está relacionado a um espaço

específico, com o qual nos identificamos, construímos nossas raízes e desenvolvemos uma

relação afetiva. É dessa maneira que trataremos estes conceitos neste trabalho.

A afetividade, por sua vez, está ligada a sentimentos de tristeza ou alegria. Assim,

podemos ter memórias afetivas tanto de acontecimentos que nos proporcionaram dor como

prazer. Independentemente do conteúdo que compõe nossas memórias, pensamos que elas

fazem parte do que somos, e que se podem revelar em nossas práticas artísticas.

No contexto da arte contemporânea, e mais claramente após a década de 1990, a

memória se faz cada vez mais presente na temática das produções artísticas. Em relação a

isso, Canton comenta que:

A memória, condição básica de nossa humanidade, tornou-se uma das grandes

molduras da produção artística contemporânea, sobretudo a partir dos anos 1990.

Nesse momento, proliferaram obras de arte que propõem regimes de percepção que

suspendem e prolongam o tempo, atribuindo-lhe densidade, agindo como uma forma

de resistência à fugacidade que teima em nos situar num espaço de fosforescência,

de uma semiamnésia gerada pelo excesso de estímulos e de informação diária.

(CANTON, 2009b, p. 21)

21

Embora o processo de criação dos trabalhos aqui apresentados tenha relacionado a

memória tanto com o lugar, quanto com a afetividade e o tempo, foi a articulação entre tempo

e memória que mais se fez presente ao longo de todos os trabalhos.

A memória, que a princípio seria o ponto de partida para a produção artística, na

verdade teve o tempo como um parceiro constante. Juntos, estes dois elementos formaram a

base para todo o meu processo criativo. Ou melhor, somente com a iniciação dos trabalhos

pude me dar conta do peso que o tempo foi assumindo nesse processo, e de que a memória

estava atuando mais enquanto um fator que me auxiliou a questionar a forma impositiva que o

tempo assumiu em nossas vidas.

Antes de iniciar a execução da série apresentada nesse trabalho, busquei referências de

artistas que também utilizassem a memória como temática de suas produções; assim, pude ter

uma ideia do que já vinha sendo feito nesse campo. Dentre os vários artistas contemporâneos

que trabalham com a memória, em seus diferentes enfoques, aqui destacamos nomes como:

José Rufino, Farnese de Andrade e Marepe. Sobre estes artistas, trazemos algumas

informações, a saber.

a) José Rufino

Ao iniciar o projeto de Trabalho de Conclusão de Curso - TCC, José Rufino foi a

primeira referência artística adotada, uma vez que eu já tinha conhecimento da sua obra

através de uma palestra que o mesmo ministrou em 2009, na Capitania das Artes, Natal, RN,

falando do seu processo criativo.

Nascido em 1965, na cidade de João Pessoa, PB, Rufino utiliza, em suas obras,

materiais ligados à memória familiar, cartas; sobre as quais realiza suas interferências;

mobílias, como escrivaninhas e cadeiras; dentre outros documentos e objetos. “Desde 1990, o

artista vem revelando-se um exímio manipulador de símbolos, construindo uma obra capaz de

expandir sua história pessoal de vida em pequenos e universais testemunhos sobre solidão,

dor, amor, laços familiares”. (CANTON, 2000, p. 46)

22

b) Farnese de Andrade

Artista nascido em 1926, na cidade de Araguari, MG, faleceu em 1996. Foi pintor,

escultor, desenhista, gravador e ilustrador. Desde a década de 60, criou objetos e assemblages

que apresentam caráter autobiográfico. À primeira vista, recebi seus trabalhos com

estranheza, porém, à medida que fui lendo sobre o seu processo de criação, percebi uma

afinidade, devido, principalmente, à forma como ele encontrava e selecionava os objetos

Figura 11: “Sem Título”, 1989 – 2002. Série Cartas de Areia Técnica mista sobre envelope 18 x 15,5 cm Coleção João Marino

Figura 10: “Sem título”, 1993. Série Cartas de Areia Técnica mista sobre envelope 45 x 35 cm

Disponível em: <http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=artistas_obras&cd_verbete=4971&cd_idioma=28555>. Acesso em: 12 de jun. 2012

Disponível em: <http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=artistas_biografia&cd_verbete=4971&cd_item=18&cd_idioma=28555>. Acesso em: 12 de jun. 2012

23

Disponível em: http://www.museuoscarniemeyer.org.br/exposicoes/farnese.htm Acesso em: 12 de jun. de 2012.

Figura 12: “Mater”, 1990; “Anunciação”, 1971; “Oratório do demônio”, 1976.

utilizados, a relação com a memória da infância, a incorporação de retratos de família e por

usar a assemblage como linguagem artística.

c) Marepe (Marcos Reis Peixoto)

Nascido em Santo Antônio de Jesus, BA, no ano de 1970, Marepe afirma valores

existentes no Brasil, fala do trabalhador informal, do negro, da fome e “[...] do nécessaire, que

são objetos de necessidade humana, seus utensílios de sobrevivência, seu instrumental para a

vida” (MAREPE apud CANTON, 2000, p. 180).

Marepe apresenta seu trabalho dizendo ainda que: “Eu me aproprio de objetos que

fazem parte do imaginário brasileiro, são objetos do cotidiano que acabam se tornando

universais” (GAZIRE, 2010).

Figura 13:”Trouxa V”, 1995 Tecido e cerâmica esmaltada 13 x 26 x 26 cm

Figura 14: “Construção 1”, 2010 Ferro e madeira, Ed. 3 70 x 40 x 80 cm

24

Disponíveis em: <http://galerialuisastrina.com.br/artists/marepe.aspx> Acesso em: 12 de jun. de 2012.

Dentre os artistas aqui apresentados, foi com o trabalho de Marepe que mais me

identifiquei; neles, pude ver elementos que fizeram parte da minha infância, do meu

cotidiano. Elementos que compõem minhas memórias. Foi como se ele, Marepe, tivesse ido lá

ao Sítio, ao meu sítio, meu lugar, e tivesse coletado os objetos que deram origem aos seus

trabalhos: trouxas, pás, carrinhos de mão, machadinha e “chibanques” (chibancas). Ver esses

trabalhos é como estar cultivando no roçado, voltando do açude, ou fazendo um cuscuz à

moda antiga, quando colocávamos o milho recém moído em um prato, o enrolávamos em um

pano e o cozíamos no vapor. Desse modo, seus trabalhos me remetem à minha infância no

sítio.

Porém, de um modo geral, o que percebi em comum entre os trabalhos desses artistas,

e com o que me identifiquei, foi a utilização de objetos prontos que se combinam formando

algo novo, são assemblages. Ou, se nos afastarmos cem anos mais na história da arte,

podemos considerar uma forma de ready-made, como os feitos por Marcel Duchamp a partir

dos anos de 1912. São objetos ressignificados.

A ressignificação de objetos é a linha principal dos trabalhos da série que fiz. Eles, em

sua maioria, foram criados a partir de objetos que fazem parte das minhas memórias, dos

quais me apropriei e ressignifiquei ao meu modo.

Após essa breve amostragem de enfoques atribuídos à memória por artistas diversos,

esclareço que aqui, neste TCC, a memória se apresenta como ação de resistência ao veloz, à

unificação dos tempos, à homogeneização da diversidade dos lugares. E considerando ainda o

que mostra Canton, que: “O próprio narrador, que pode ser vivido sob a figura do artista

criador, deveria, pois, transmitir o que a tradição oficial ou dominante não recorda.”

(CANTON, p. 21, 2009a). E, finalmente, minha intenção ao construir essa série artística,

através das minhas memórias de infância, é narrar através da arte sobre o que já foi esquecido,

o que já não é dito, sobre hábitos, vidas e costumes negligenciados e relegados ao

esquecimento.

Figura 15: “Filipinos”, 2010 Pás, estrutura de carrinho de mão, amostrador de grãos 172 x 83 x 30 cm

25

O processo: trabalhos, materiais e montagem da exposição

O processo geral

A memória foi o ponto de partida para a criação desses nove trabalhos artísticos.

Assim sendo, o meu universo de estudo se constitui pelas minhas memórias de infância, até os

meus dez anos de idade (em 1994), quando ainda vivia no Sítio Umari Preto, Florânia, RN.

O interesse de desenvolver esta pesquisa em artes surgiu a partir do desejo de articular

memórias, experiências e reflexões a um lugar de minhas vivências cotidianas da infância, a

fim de desenvolver uma poética através de uma série de experimentações artísticas, tais como

fotografia e assemblage.

Na minha infância, no Sítio, cresci em contato com árvores, animais e poucas pessoas,

quando comparado a quem vive em uma cidade, por menor que esta seja. Foi uma experiência

incrível, que me traz ótimas recordações.

Acordar aos primeiros raios de sol, ouvir cantadores de viola no rádio de pilha, ao

mesmo tempo em que ouvia pássaros cantando e vacas mugindo. No terreiro (quintal),

galinhas, galos, e, vez em quando, pintinhos. O leite fresquinho, que meu pai e meus irmãos

acabavam de tirar da vaca. No caminho para a escola, com minhas amigas do sítio vizinho,

fazíamos uma parada nas mangueiras, goiabeiras e umbuzeiros, quando tinham essas frutas,

levando-as para o lanche na “hora da merenda”. Bonecas de pano, panelinhas de barro feitas

pela minha mãe, sabugos de milho, bilocas (bola de gude), cacos de telha, pedras e folhas,

tudo isso me proporcionava ótimas brincadeiras. A lua cheia, nascendo por traz da serra,

parecia gigantesca e clareava toda a noite, e, quando era noite de lua, ficava mais fácil visitar

algum parente; pai, mãe e meia dúzia de crianças seguiam caminhando estradas e veredas

afora. O inverno era o período mais esperado do ano, e com ele a promessa de fartura e boas

colheitas, pois, quando isso acontecia, o milho estava garantido na comemoração de São João,

que ao pôr do sol tinha sua bandeira hasteada, próxima à fogueira. Os vizinhos se reuniam e a

criançada brincava solta no terreiro. Embora a vida no sítio não fosse composta apenas de

bons momentos, hoje percebo que até as dificuldades geraram frutos tão bons quanto aqueles

que colhíamos no sítio. Um desses frutos foi a feliz oportunidade de ter tido uma boa infância,

o que, no contexto atual da nossa sociedade urbana, parece cada vez mais distante, como um

mundo de fantasias que não mais se vê, apenas se houve falar que já existiu.

Estas são algumas das memórias da minha infância, vividas nesse lugar quase onírico,

que utilizei como ponto de partida para minha produção artística, apresentada neste TCC.

26

O Sítio Umari Preto representa para mim, nessa série de trabalhos, um não à amnésia

da atualidade. E, diante da atual configuração da nossa sociedade, onde a memória se

desvanece a cada dia, perante o crescimento e a efemeridade das informações, proponho,

através da minha prática artística, tendo a memória, inicialmente, como foco central, somar

forças aos artistas que fazem desta uma possibilidade de se contrapor à imposição da

fugacidade do tempo, buscando novas perspectivas (artísticas, inclusive) para se viver

também o que já não é novo, que fez e faz parte da memória individual ou coletiva e está

sendo esquecido.

Não se trata de querer viver nostalgicamente, ser contra as transformações da

sociedade ou congelar o tempo, mas de perceber outras possibilidades de se relacionar com o

tempo e com a memória. Para mim, nesse momento, uma opção de vivenciar isso é a

expressão artística.

Como cada pessoa tem seu ritmo, cada uma terá o seu tempo. O tempo de que falo

certamente não é esse imposto e regulamentado pelo relógio e pelas instituições, que faz com

que cada vez mais tenhamos a sensação de não termos tempo algum; mas me refiro, sim, à

noção de tempo como o ritmo natural de cada pessoa.

Para a realização dessa pesquisa, adotei as seguintes etapas de trabalho, descritas a

seguir.

Etapa 1: revisão bibliográfica sobre os temas memória, lugar, espaço, tempo e

afetividade e suas relações no campo das artes visuais. Foram feitas leituras sistemáticas e

fichamentos das obras mais pertinentes ao trabalho em questão, ressaltando os pontos

abordados pelos autores que eram relevantes ao assunto deste TCC (produção artística a partir

de memórias). Esta etapa teve como objetivos a fundamentação teórica e a verificação do

estado da arte sobre o tema de estudo.

Etapa 2: visitas ao Sítio Umari Preto. A primeira delas ocorreu em janeiro deste ano

(2012). Nessa ocasião, pude tirar fotografias do sítio, da casa onde vivi e de lugares por onde

passava e brincava. Foi feita uma coleta inicial de alguns poucos objetos que fazem parte da

memória desse lugar. A segunda visita foi realizada em julho deste ano. Nela, complementei o

meu acervo fotográfico e trouxe o maior número de objetos que pude, dos quais muitos foram

utilizados na produção da série.

Etapa 3: pesquisa documental envolvendo álbuns de fotografias da família e objetos do

Sítio (baú, tijolos, telhas, panela, pilão etc.), que foram utilizados ora como referência para a

criação das propostas dos trabalhos, ora como suportes (físicos) a estes, ou os próprios objetos

tornaram-se os trabalhos artísticos aqui apresentados.

27

Etapa 4: a partir das memórias, objetos e documentos coletados do/no Sítio,

desenvolvi a série de trabalhos artísticos mencionada anteriormente, adotando fotografia e

assemblage como modalidades de expressão artística. Nesta etapa, relacionei o Sítio, fonte de

memórias do meu cotidiano infantil, com os textos lidos, e elaborei os projetos/estudos

artísticos para os trabalhos que compõem esta série. Em seguida, executei os trabalhos e

realizei, na medida do possível, o registro fotográfico do processo.

A ideia inicial era utilizar diversos materiais, preferencialmente reciclados (por um

posicionamento político meu frente ao consumismo), e, se possível, objetos provenientes do

próprio Sítio. E, realmente, ao iniciar os trabalhos, os materiais recolhidos no Sítio foram a

melhor opção para a composição daqueles. Esses objetos têm um tipo de identidade peculiar;

marcas, texturas, cores e formas que eu jamais conseguiria de outro modo. Só eles as têm. São

como seres com autonomia, personalidade marcante, que se fizeram indispensáveis no meu

processo de criação.

Ciente de que mesmo elaborando um projeto para cada objeto desenvolvido, este

sofreria alterações, uma vez que, no processo criativo, muitas componentes surgem e

transformam os estudos iniciais, e, ciente de que tais componentes seriam incorporadas,

modificadas ou descartadas de acordo com o desenrolar do processo, optei pelo registro

fotográfico e anotações (através de um diário de pesquisa) como estratégias para acompanhar,

não somente a construção de cada objeto, mas os desdobramentos que ocorreram.

Etapa 5: exposição dos nove trabalhos realizados, que aconteceu na galeria do

Departamento de Artes da UFRN, entre os dias 18 e 20 de dezembro de 2012.

Uma observação que considero importante ressaltar é que, até me aproximar do

resultado final de cada trabalho, foram muitas as tentativas, derivações e configurações

pensadas, até poder, finalmente, considerar que aquela composição seria a mais adequada.

Assim sendo, a finalização dos trabalhos só ocorreu, de fato, no momento da montagem

propriamente, que foi no dia 17/12/12. Apenas nesse momento, com todos os trabalhos juntos

no espaço onde eles estavam sendo expostos, é que os considerei finalizados.

Trabalho 1 – Meus avós, meus pais, meus irmãos. E eu?

Embora esta não tenha sido a primeira ideia que tive para esta série, foi o primeiro

trabalho que consegui definir que seria realizado. Uma pirâmide composta por quatro tijolos.

Três deles, maciços e antigos, de cor vermelha e tamanhos diferentes. Estes, coletei no Sítio.

O quarto tijolo, o menor, também maciço, mas de cor branca, eu já tinha em casa – e é

vendido hoje em dia em qualquer loja de material de construção.

28

Esse trabalho aconteceu! Eu jamais havia pensado nele até o momento em que ele já

estava feito. Este foi um exemplo de algo que “simplesmente” acontece, vem pronto, está

pronto, e eu tive apenas que ver e compreender o que estava diante de mim. Foi como se meu

inconsciente tivesse deixado tudo pronto, e depois me apresentado o resultado do “seu”

trabalho.

No mês de julho, fiz uma visita ao Sítio e voltei com o carro cheio de coisas de lá

(baú, lamparina, telhas, barril, pedras, frascos de vidro vazios, moinhos, panela de barro,

tijolos, etc.), trouxe o que tinha à disposição (e cabia no carro), sem pensar se usaria, ou

como. Já em casa, na hora de descarregar o carro, fui colocando estas coisas espalhadas entre

garagem, varanda e jardim, ambientes que já são meio fundidos.

Vieram sete tijolos, sendo que estão divididos em três tamanhos diferentes. Quando os

coloquei no chão, fiz uma pirâmide utilizando três tijolos, com diferentes tamanhos. Naquele

momento, não pensei em nada específico, apenas os empilhei e observei aquela configuração.

Já não lembro quando, se na mesma semana ou não, olhei esses tijolos empilhados e

visualizei a materialização de diferentes gerações. Pensei logo: estes tijolos, como estão, já

serão um dos trabalhos para o meu TCC. Vi através deles as transformações que vêm

ocorrendo ao longo dos anos, nossa opção civilizatória, a ideia de progresso adotada, a opção

do capitalismo como modelo econômico, que tenta definir padrões em todas as sociedades. Vi

a ação do tempo, as marcas do tempo, e vi também como nossa cultura (capitalista/ocidental)

vem mudando a própria percepção e relação com o tempo.

Foi incrível, para mim, perceber tantas coisas ao simplesmente olhar três tijolos

empilhados. Nesse instante, desta quase visão, eu acrescentei à pilha de tijolos um quarto

tijolo; este não veio do sítio; é o tijolo maciço branco que se vende atualmente; ele estava

próximo dos outros e não pude deixar de perceber o contraste gritante que há entre o tijolo de

hoje e os de antigamente, entre os quais, alguns provavelmente tenham mais de cem anos.

Nesse momento, a pirâmide ficou com quatro tijolos. E eu pensei: é esse o nosso

modelo de civilização: maximizar o lucro a qualquer custo. E o custo que estamos pagando é

social, é a nossa qualidade de vida, é a opressão das minorias, e, mais que isso, é a

necessidade da manutenção das desigualdades sociais, pois é esta a base do nosso modelo de

civilização capitalista. Assim, vendo os tijolos diminuídos cada vez mais, relacionei-os com

todas estas questões acima mencionadas. Não são só os produtos que produzimos que estão

cada vez menores e descartáveis, somos nós mesmos, enquanto sociedade, que estamos

perdendo em qualidade de vida.

29

Num outro dia, uns dois meses depois, vendo o filme Ponto de Mutação, fiquei

maravilhada com as discussões que o filme aborda, seja sobre o tempo, ciência, política, a

sociedade contemporânea. Enfim, no filme (baseado no livro O Ponto de Mutação, de Fritjof

Capra) pude ver essas discussões e relações, acima mencionadas, que já eram postas no início

da década de 1980, e que, ainda hoje, pouco avançaram. Percebi uma relação entre o que eu

vinha pensando, em consequência desse trabalho, com as questões postas no filme.

Enquanto as mudanças sociais necessárias para um mundo mais equilibrado, em todos

os sentidos, não acontecem, sigo sonhando. Lutando, pacificamente, é claro, para poder ter

tempo de viver o presente, desejando que o assustador futuro que está sendo configurado

agora não se concretize e lembrando um tempo passado que sequer vivi, mas que eu sei que

nele a imposição do tempo ainda não estava posta, bem como que o homem e a natureza eram

um só elemento, uno e indissociável. Assim, minhas memórias vão para além do tempo em

que já vivi, meu presente é uma busca e um encontro, e meu futuro é incerto, como o de todos

nós.

Foi a partir desse trabalho com os tijolos, e das reflexões por ele desencadeadas, que

percebi o rumo que tomaria para produzir todos os outros trabalhos desta série. Em meio a

esse processo inicial, percebi que o fator tempo, agora, assumia tanta relevância quanto a

memória. Constatei que saíra de uma possível relação de nostalgia com minhas memórias

para finalmente poder caminhar entre elas e atualizá-las. E, ao inserir realmente o tempo nesse

processo, agora eu posso partir das minhas memórias e relacioná-las com as questões que

envolvem o tempo (falta de tempo, velocidade do tempo, perda de tempo etc.), que tanto se

fazem presentes no meu atual momento de vida, e sobre as quais já venho refletindo há mais

de sete anos.

Talvez, posso arriscar dizer, que este TCC partiu de questões da memória, não para

resgatar um passado e sim para refletir sobre as possibilidades de futuro. Pensar sobre o que

estamos fazendo de nossas vidas e nas consequências das nossas ações, que podem interferir

decisivamente na vida, inclusive de outras pessoas.

A figura 16 mostra a configuração que desencadeou a idealização desse primeiro

trabalho, que intitulei “Meus avós, meus pais, meus irmãos. E eu?”. Partindo dessa

configuração inicial, e após algumas tentativas de outras possibilidades de disposição dos

tijolos, cheguei a uma que considerei mais satisfatória para o que eu queria obter. Uma

arrumação que remete a uma linearidade cronológica e que, ao mesmo tempo, dá aos

materiais (os tijolos) a maior visibilidade possível, permitindo que as pessoas, ao vê-los,

30

possam perceber a textura, a cor, as marcas provocadas pela ação do tempo e a matéria do

qual foram feitos; enfim, senti-los de fato, com toda a sua essência.

Ao finalizar o trabalho, ele ficou com a seguinte configuração (figura 17 ): os quatro

tijolos foram colocados de lado, do maior para o menor, os três (vermelhos) que vieram do

Sítio ficando com um espaçamento de 15 centímetros entre um e outro e o tijolo branco, o

menor deles, ficando na ponta, a 30 centímetros do tijolo mais próximo. Em cada tijolo

escrevi uma parte do título que dei a este trabalho. Desse modo temos: 1º tijolo: meus avós: 2º

tijolo: meus pais, 3º tijolo: meus irmãos; e 4º tijolo: E eu?.

Nos tijolos vindos do Sítio, optei por escavar as frases, como uma maneira de

reafirmar a força dos objetos provenientes de um momento passado, capaz de resistirem aos

anos. Enquanto que para o tijolo branco fiz a frase em alto relevo, utilizando carvão raspado e

aglutinado com cola, portanto, passível de ser removida. Faço aqui uma relação com a

efemeridade e fragilidade dos objetos fabricados atualmente, cada dia mais descartáveis.

Figura 16: configuração inicial para o trabalho “Meus avós, meus pais, meus irmãos. E eu?”.

Figura 17: configuração final para o trabalho “Meus avós, meus pais, meus irmãos. E eu?”.

31

Trabalho 2 – Tempo

Em julho deste ano, quando peguei alguns objetos do Sítio, vieram cinco telhas. Estas,

eu as coloquei escoradas na parede, uma ao lado da outra. Olhando essa configuração,

pensava em como utilizar as telhas para algum dos trabalhos. Dia 7 de agosto, cheguei a

pensar em pendurar três ou quatro delas e escrever nas mesmas uma poesia que fiz no ano de

2007 e que falava do tempo, ou, antes, sobre a falta de tempo.

Mais de um mês depois me veio outra possibilidade, que era deixar as telhas em pé, no

chão mesmo, mas posicioná-las de modo que remetessem a páginas de livros; seria tipo um

livro de artista. Nessa possibilidade, seriam usadas as cinco telhas e em cada uma delas iria

uma estrofe daquela poesia.

Ao iniciar a montagem de cada proposta, já no mês de outubro, revi essa configuração,

pois, para que as telhas ficassem em pé, sem estarem escoradas em parede, precisariam de

uma base ou suporte, e a minha intenção é usar o mínimo possível de elementos externos.

Diante desse impasse, cheguei a uma nova ideia de disposição. Nesta, colocaria as

cinco telhas, cada uma com uma estrofe da poesia escrita, deitadas no chão, em ordens

inversas. Essa disposição me remeteu às estradas de terra para chegar ao Sítio, que às vezes,

não sei por que, ficavam repletas de umas “ondinhas” de areia, e quando andávamos por elas

de bicicleta balançávamos/trepidávamos por inteiro.

Considerando que seria muito texto nas telhas, optei por escolher apenas algumas

frases da poesia, e cheguei então à disposição final desse trabalho (figura 18), que intitulei

“ tempo”, mesmo título da poesia de onde retirei as frases. As frases selecionadas foram as

seguintes: Passa a vida; Tempo, tempo, tempo...; Quanto tempo falta?; e, Quiçá viver... sem

no tempo pensar. Escolhi apenas quatro frases; desse modo, uma das telhas fica sem texto.

Figura 18: configuração final para o trabalho “Tempo” .

32

Para chegar nesta disposição, considerei alguns fatores.

A telha: nenhum outro material me daria o mesmo efeito visual destas telhas, em

particular. Elas são artesanais, cada uma tem uma identidade. Marcas do tempo, marcas

deixadas pelas mãos de quem as fez, texturas e uma vida própria. Cada uma é um ser, e

contém um universo em si. Têm suas memórias e histórias. São testemunhos do tempo que já

passou.

As frases: dentro da poesia que utilizei, considerei que essas frases, já mencionadas,

eram mais representativas para meus propósitos. Falar do tempo fugaz da contemporaneidade

(Passa a vida; Tempo, tempo, tempo...; Quanto tempo falta?); deixar a possibilidade de outra

maneira de se relacionar com o tempo (Quiçá viver... sem no tempo pensar); e o convite,

através da telha sem inscrição, para que cada pessoa, ao ver esse trabalho, possa criar, a seu

modo, um novo estilo de se relacionar com o tempo.

Os materiais e o modo de escrever as frases: dei preferência para o carvão, por ser um

material, assim como as telhas, também feito artesanalmente, e com o qual eu convivi na

minha infância no Sítio. Porém, todas as vezes em que escrevi a palavra tempo nas telhas,

utilizei o carvão raspado e aglutinado com cola, para que essas palavras ficassem fixadas nas

mesmas. Assim, faço um contraponto entre esse tempo fixo, rígido, marcado e mecânico do

tempo atual (através da palavra tempo fixada), com a possibilidade de outro tempo, fluido e

natural, que não pode ser medido ou quantificado, que é cíclico (através das demais palavras

soltas, prontas para serem levadas por esse tempo cíclico). Ver figura 19.

Figura 19: detalhes do trabalho “Tempo”.

33

Trabalho 3 – Enterros, missas e batizados

Revendo alguns álbuns de família, que minha mãe me emprestou para que eu pudesse

consultar ao longo desse processo de construção dos trabalhos, encontrei um álbum com fotos

do enterro da minha avó materna. Nas fotografias em que eu aparecia, percebi que estava

usando um vestido branco, meia calça branca e sapatos pretos.

Quando criança, sempre que eu ia a missas, enterros e batizados, me lembro de estar

usando essa roupa. Como eu detestava esse tipo de roupa, que pinicava e apertava. Sempre

gostei de estar com os pés no chão, de roupas folgadas, de short ou calça. Era uma tortura,

para mim, sair toda “embrulhada”.

Foi diante destas lembranças que surgiu o projeto deste trabalho, após muitas

derivações, claro. A princípio, pensei em reproduzir esta vestimenta através de uma escultura,

utilizando papel reciclado. Porém, ao falar com minha cunhada para que ela me ajudasse na

confecção da escultura, ela me mostrou outras fotos, em que a filha dela, minha sobrinha,

estava usando o mesmo vestido. Nestas fotos havia muito mais detalhes do que a foto que eu

tenho usando-o, isso facilitaria na hora de fazer a escultura. Esse vestido já tem algumas

décadas e segue a tradição de, quando já não serve para a atual usuária, ser repassado para

outra criança usar.

Nessa conversa, minha cunhada sugeriu, então, que seria melhor fazermos olhando

diretamente para o vestido. “Mas, onde está esse vestido?”, perguntei. E, para minha surpresa,

fiquei sabendo que depois que ele já não serviu mais para minha sobrinha, foi repassado para

uma de suas primas, sobrinha da minha cunhada. Nesse mesmo momento, minha cunhada

ligou para sua irmã e perguntou se ela ainda estava com o vestido. E estava! Porém, ela mora

em um sítio, no interior da cidade de Caicó.

Resumidamente, após mais de um mês de ligações para diferentes pessoas, e

combinações entre estas, o vestido finalmente chegou às mãos de um de meus irmãos, que

estava na cidade de São Vicente, vindo para onde moro, Pium, em Nísia Floresta.

Foi uma verdadeira aventura o resgate deste vestido, e nesse meio tempo, enquanto o

mesmo não chegava, refiz o projeto inicial, e decidi que o próprio vestido seria um dos

trabalhos da série.

E, quando o vestido finalmente chegou às minhas mãos, constatei mais uma vez que a

utilização dos objetos antigos tem uma simbologia maior, e que eles dão mais força em cada

trabalho. Esses objetos já vêm com as marcas do tempo; eles próprios já são fragmentos de

minhas memórias.

34

Embora o título desse trabalho seja “Enterros, missas e batizados”, optei por relacioná-

lo apenas aos enterros, uma vez que foram estes eventos os mais marcantes na minha

memória de criança.

O que foi feito: selecionei fotos de enterros, pessoas mortas e convites para missas de

aniversário de morte. Estas fotografias e convites são de parentes, alguns morreram quando eu

era criança, outros morreram antes mesmos de eu ter nascido. Mesmo assim as inclui, pois

tais fotografias, em que meus familiares aparecem, também são parte das minhas memórias de

infância.

Após a seleção das fotos, as imprimi em casa mesmo; recortei-as e as distribui ao

longo do vestido, deixando-as sob o tecido do vestido, figura 20. Para isso, utilizei pedaços de

tecido (voil) branco. Costurei-os sob o vestido, formando um tipo de bolso, dentro do qual

cada foto foi sendo colocada. Assim como minhas memórias, o vestido também estará

impregnado por esses eventos de morte, ou recomeço para uma nova vida.

Trabalho 4 – Processador de memórias

Gostaria de fazer algum trabalho que pudesse mostrar o processo de construção da

própria série. Para isso, considerei que a utilização de fotografias seria mais adequada. Pensei

em imprimir várias fotos dos trabalhos sendo montados, experimentados e finalizados.

Posteriormente, acrescentei a essa ideia mais uma, que era adicionar também fotocópias de

fotografias antigas de família; afinal, estas fizeram parte de todo o processo de criação da

série, servindo como fonte de reconstrução de muitas das minhas memórias, já borradas com

o tempo. A questão que se apresentou foi: como apresentar todas estas fotos, sejam as do

processo de construção da série, sejam as vindas dos álbuns de família?

Figura 20: trabalho “Enterros, missas e batizados” e detalhes do trabalho.

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Um dos objetos que veio do sítio foi um pilão, já bem corroído pelo tempo, pelos

cupins, e pelo desgaste de alguns anos tomando sol e chuva, pois este eu encontrei jogado do

lado de fora da casa. O pilão mostrou-se uma boa opção para ser utilizado como receptáculo

para todas essas imagens. Um dia ele já serviu para triturar grãos, agora ele servirá como

processador de memórias.

Este trabalho, intitulado “Processador de memórias”, figura 21, apresenta uma mistura

entre fotografias de família, que são registros das minhas memórias da infância; com

fotografias registrando o processo de atualização dessas memórias, através da criação da série.

Trabalho 5 – Foto de família

Outro objetivo meu para essa série era poder utilizar barro (argila) na composição de

algum trabalho. Quando criança, lá no Sítio, sempre brinquei com panelinhas de barro, feitas

pela minha mãe, e eu mesma também fazia bonecos de barro. Era uma brincadeira muito

prazerosa, e uma grande lambança.

Pensei em utilizar o barro em algo que simbolizasse toda a minha família (meu pai,

minha mãe, meus seis irmãos e eu). Adotei uma foto em que estamos todos juntos como

referência (figura 22). A princípio havia pensado em fazer nove panelas de barro, cada uma

simbolizando uma pessoa. Depois, quando fui iniciar a produção da série, vi que entre os

objetos que vieram do Sítio havia justamente uma panela de barro, que usávamos para cozer

os alimentos quando ainda morávamos lá. Considerei que esta seria a mais adequada para

simbolizar o meu pai, falecido no ano de 2009, e a partir dessa panela faria as demais. Assim,

só precisei fazer as oito panelas restantes.

Figura 21: trabalho “Processador de memórias” e detalhes do mesmo.

36

A confecção dessas panelas foi realizada pela minha mãe. Falei para ela o tamanho

que cada uma deveria ter. Os diferentes tamanhos das panelas estão associados à idade de

cada uma das pessoas representadas. À medida que mãe ia fazendo as panelas, eu ia

acompanhando para ver se seria necessário aumentar, diminuir ou remodelar algo na forma

das mesmas. Foi um processo interessante, mas lamento por não ter tido condições de

compartilhar mais esse momento com ela.

Conversando com mãe sobre as panelas, ela comentou por que eu não fazia também

um fogão à lenha para colocar as panelas. Tempo depois, revendo os objetos trazidos do Sítio,

vi um pedaço da grade de ferro de um fogão a lenha e avaliei que daria para incorporá-lo no

trabalho das panelas.

Desse modo, a disposição final das panelas ficou a seguinte: utilizando três dos outros

tijolos vindos do Sítio, fiz uma base para apoiar a grade de ferro, e sobre elas pus as panelas

que simbolizam os meus pais. No chão, em frente, ficam as demais panelas, todas

enfileiradas, como ficávamos na época quando se ia tirar uma foto.

O tamanho de cada panela, como já mencionei, tem relação com a idade de cada

pessoa, e a distância entre as panelas, que simbolizam os filhos, faz referência aos anos que

passaram entre o nascimento de cada um. Defini que cada ano entre o nascimento dos filhos

corresponde a cinco centímetros entre as panelas, como mostra a figura 23.

Figura 22: referência visual para o trabalho “Foto de família”.

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Trabalho 6 – A lua nasce aqui

Pensei em selecionar uma fotografia das que tirei quando estive no Sítio, que fosse

representativa deste lugar. Porém, me pareceu impossível sintetizar tudo que vivi lá e todas as

coisas que marcaram minha infância em uma única imagem. Logo, pensei em utilizar várias

fotografias representativas da minha infância, com imagens de lugares específicos, objetos,

animais, detalhes e caminhos.

Estando no Sítio, ao olharmos para o nascente (leste), vemos uma grande serra. É por

traz dela que o sol e a lua nascem. Muitas vezes, via a lua cheia nascendo, alaranjada e

gigantesca. Era de uma beleza indescritível. Pensando nisso, optei por utilizar o contorno

dessa serra como linha guia para fixar na parede todas as fotos do Sítio que selecionei.

Assim sendo, para a realização desse trabalho selecionei noventa e nove fotografias, já

mencionadas. As fotos, em sua maioria, foram impressas em tamanho padrão, 10x15cm,

sendo que quinze delas têm tamanhos diversos e maiores que o padrão. Escolhi uma

fotografia da serra que foi usada como referência visual para guiar a posição de todas as fotos

na parede.

Este trabalho só foi finalizado na hora da montagem da exposição, pois somente na

galeria é que eu pude montá-lo.

Figura 23: configuração do trabalho “Foto de família”.

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Trabalho 7 – Vestígios de memória

Este trabalho consiste em um baú, proveniente do Sítio, utilizado como receptáculo

para outros objetos também ali encontrados. Selecionei vários objetos (bengala, ralador de

milho, duas molduras de quadros, barril de carregar água, moinho para milho, torno, concha

do mar etc.), todos fizeram parte da minha infância e estão presentes em minhas memórias.

Os objetos foram dispostos dentro do baú e este ficou com sua tampa entreaberta

(figura 25), para que desse modo as pessoas possam ver o que tem dentro, mas não por

completo. Para tal, isto é, para vê-los melhor, faz-se necessário abrir a tampa; só assim

poderão, se desejarem, ver e manusear os objetos. Estes, antes guardados no baú da minha

memória, agora se tornam coletivos. É uma forma de compartilhamento de memórias.

Esses objetos, assim como os demais vindos do Sítio, mantêm a característica de já

trazerem em si as marcas do tempo, de serem eles próprios testemunhos de outro tempo, de

outro modo de vida, que já não é tão fácil encontrar nos dias atuais.

Figura 24: algumas fotos usadas na composição do trabalho “A lua nasce aqui”.

Figura 25: configuração do trabalho “Vestígios de memória”.

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Trabalho 8 – “Mecânica” e Trabalho 9 – “Simbólico”

Os dois trabalhos que se seguem foram desenvolvidos em janeiro, quando fui a

Florânia para visitar o Sítio. São duas filmagens: a primeira é uma gravação mostrando o

relógio que era do meu pai funcionando durante um minuto. Ele é um tipo de relógio que

funciona com o movimento do próprio corpo, enquanto está sendo usado. Como há muito não

era utilizado, precisei balançá-lo algumas vezes para ele voltar a funcionar; assim pude fazer a

gravação. Queria registrar o relógio, guardar uma lembrança desse objeto que meu pai sempre

usou.

A segunda gravação mostra a projeção das nuvens em uma porta, durante dois minutos

e trinta e cinco segundos – projeção essa criada a partir de uma réstia passando através de um

buraco na telha. Ao acordar, pela manhã, o quarto estava escuro, pois as janelas e porta

estavam fechadas, mas minha vista foi atraída por um claro na porta. Durante um tempo fiquei

observando as imagens das nuvens lá projetadas; e, como a câmera fotográfica estava por

perto, decidi gravar. Lembrei de quando criança, no Sítio. Lá, sempre havia uma ou outra

réstia formando esse tipo de “cineminha”, com as nuvens e o sol.

Ambas as gravações foram feitas na casa da minha mãe, na cidade de Florânia.

Somente após iniciar a produção dos trabalhos, por volta de agosto, foi que vi na

gravação do relógio a possibilidade de transformá-la em um trabalho para essa série, e, em

setembro, percebi que a gravação das nuvens completaria a mesma e funcionaria como um

contraponto para o vídeo do relógio. Assim, estes dois vídeos são representações que

sintetizam as questões relacionadas ao tempo, as quais discuto ao longo dessa produção. De

um lado, o tempo mecânico, do outro, um tempo simbólico.

O trabalho 8, “Mecânica”, consiste na apresentação de um vídeo mostrando o

movimento dos ponteiros do referido relógio ao longo de um minuto. Ele foi exibido em loop,

de modo que esse minuto se repete durante todo o momento da exposição.

Esse vídeo, para mim, faz alusão ao tempo mecânico vivido na atualidade. Um tempo

impessoal que padroniza ações e modos de vida, que poderiam ser diversos, enclausurando-os

em um ritmo único. É a representação da dicotomia entre homem e natureza.

No trabalho 9, “Simbólico”, o vídeo tem dois minutos e trinta e cinco segundos de

duração e também foi exibido em loop durante a exposição. Através dele podemos ver as

nuvens que passam no céu projetadas em uma porta. Vejo, através deste vídeo, um tempo

simbólico, onírico, o tempo particular de cada ser; vejo a valorização da diversidade de

ritmos, a possibilidade de uma reintegração homem-natureza. É a união do ser, consigo

mesmo e com o que o rodeia. Esse vídeo sintetiza toda a esperança que tenho em termos

40

outras possibilidades de nos relacionarmos com o tempo, com nós mesmos, com os diversos

seres que nos circundam, com o cosmo, talvez. Assim como a fenda na telha deixa a luz do

sol passar e traz para dentro do quarto o céu que está lá fora, vejo esse vídeo como a abertura

que aponta para outros universos, outras possibilidades, a oportunidade de irmos além do que

achamos ser imaginável.

Montagem da exposição

Fiz os trabalhos desta série considerando que eles seriam expostos. Ao ser definido

que o espaço da exposição seria a Galeria do Departamento de Arte da UFRN, fui até o local e

verifiquei as medidas do espaço; distância entre colunas; localização de janelas e portas. A

partir dessas informações, pude pensar melhor em como dispor os trabalhos.

Os trabalhos “Mecânica” e “Simbólico” foram projetados na parede recoberta por

tecido, voil branco. O trabalho “A lua nasce aqui” foi montado em uma das paredes. O

trabalho “Enterros, missas e batizados” ficou pendurado por um fio nylon. E os outros cinco

trabalhos foram dispostos pelo chão.

Uma vez que todos os trabalhos estavam na Galeria, é que ocorreu a definição da

localização precisa de todos os trabalhos.

41

Considerações finais

Levando em consideração que o objetivo principal desse projeto de TCC é

desenvolver uma série de trabalhos artísticos, tendo como referência as memórias da minha

infância vivida no Sítio Umari Preto, todas as propostas aqui apresentadas estão relacionadas

ao referido objetivo, uma vez que foi a partir da utilização das minhas memórias, de objetos,

de fotos de família, enfim, de referências àquele lugar e àquele tempo, que elaborei tais

trabalhos.

Embora alguns trabalhos dialoguem com o tempo presente, eles não fogem do

objetivo; foram desdobramentos naturais ao meu momento de criação; são diálogos entre as

memórias de um tempo passado, reflexões sobre o tempo presente e perspectivas para o

tempo futuro. As reflexões apresentadas ao longo deste texto são os meus devaneios, é como

vejo e sinto essa série, é como a relacionei com minhas memórias e com o mundo que me

rodeia.

Nesta série, mesmo adotando minhas próprias memórias como referência criativa,

pretendi ir além da esfera pessoal, visando contribuir com uma reflexão sobre a importância

da memória, tanto individual quanto coletiva, que nos situa no tempo, no espaço e nos torna

seres sociais e históricos. Almejo também, através dessa pesquisa, trazer para o Departamento

de Artes uma corroboração para as discussões de questões da arte contemporânea,

envolvendo, em particular, reflexões sobre memória e tempo, ainda pouco exploradas nos

TCCs no Curso de Artes Visuais.

42

Referências

CANTON, Katia. Tempo e memória. São Paulo: Martins Fontes, 2009a. (Coleção temas da arte contemporânea).

______. Espaço e lugar. São Paulo: Martins Fontes, 2009b. (Coleção temas da arte contemporânea).

______. Novíssima arte brasileira: um guia de tendências. São Paulo: Iluminuras, 2000.

SANTOS, Milton. A natureza do espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. 4ªed. São Paulo: Edusp, 2004.

Sites:

GAZIRE, Nina. Quintal universal:... Revista Istoé independente, Artes Visuais. [S.I.] Editora Três, Ed. 2125. 30 Jul. 2010. Disponível em: <http://www.istoe.com.br/reportagens/91281_QUINTAL+UNIVERSAL>. Acesso em: 12 jun. 2012.

Museu Oscar Niermeyer. Farnese (objetos). Curitiba, 2005. Disponível em: <http://www.pr.gov.br/mon/exposicoes/farnese.htm>. Acesso em: 04 de jun. 2012.

Bibliografia consultada

CAPRA, Bernt Amadeus. Ponto de mutação. Direção: Bernt Capra. Produção: Adrianna A.

J. Cohen. Roteiro: Floyd Byars, Fritjof Capra. Elenco: Liv Ullmann, Sam Waterston, John

Heard, Ione Skye. Título original: Mindwalk. EUA: Overseas Filmgroup, 1990. 1 DVD

(111min), son., color. [Filme realizado pelo irmão de Fritjof Capra, baseado no livro deste, O

Ponto de Mutação.]

Dicionário Oxford de Arte. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. Tradução: Marcelo Brandão Cipolla.

43

MOREIRA, Maria Carla Guarinello de Araújo (Org.). Arte em pesquisa. Londrina: Eduel, 2005.

SANTOS, Marcio Elias. A Superfície, O Objeto e A Matéria. Campinas, SP: [s.n.], 2009. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas.

ZAMBONI, Sílvio. A pesquisa em arte: um paralelo entre arte e ciência. 3ª ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2006. (Coleção polêmicas do nosso tempo, 59)

44

Apêndice 1: Divagações: anotações gerais ao longo do processo, presentes no meu diário

de pesquisa.

Anotações de 05/05/12

[...] Na reestruturação do projeto de TCC, refiz os objetivos geral e específicos, e na

justificativa, seguindo uma recomendação de Isaías, acrescentei uma proposição de teor

pessoal, falando das lembranças do Sítio e como foi essa infância lá. Foi muito boa essa

experiência. Reviver momentos impossíveis de ser recuperados, a não ser através da própria

memória.

Cada vez mais eu me dou conta de como a minha infância no Sítio foi importante para

quem eu sou hoje. É como ter vivido num mundo encantado. Mesmo as dificuldades, que

sempre existiram, não chegam como uma lembrança ruim. O Sítio era o meu mundo e lá eu

fui feliz.

Pensando sobre a felicidade, chego a me impressionar como o Sítio criou uma

importância simbólica tão grande para mim. Ao sair do Sítio para Florânia, eu ainda não tinha

isso claro. Foi a minha vinda para Natal, o contato com a universidade e com toda essa

efervescência de uma cidade grande – veículos, pessoas, prédios, ruas, lojas e uma constante

sensação de falta de tempo –, que foram, aos poucos, me levando de volta ao Sítio. E foi

naquele modo de vida “tranquilo” que comecei a ver mais possibilidades para a felicidade.

Coloquei tranquilo entre aspas, pois estou ciente de todas as dificuldades que se enfrentam ao

viver no sítio, principalmente quando sua sobrevivência depende do que você mesmo produz;

eu já vivi isso, mas nas cidades não se vive a paz e a harmonia lá existentes. Na cidade a

fantasia se perde ou é paga.

Anotações de 15/05/12

[...] Quanto às leituras que estou fazendo, li outro livro da Kátia Canton, “Tempo e

memória”, e ele é ótimo. Hoje, após essa leitura, relendo o que já havia escrito aqui (no diário

de bordo) em 05/05/12, percebi que escrevi sobre a sensação de falta de tempo, e neste livro,

em vários momentos, se discute essa temática e como o tempo está presente na arte

contemporânea e faz parte da prática de vários artistas. Nesse momento, eu percebi que não

somente a memória, mas o tempo, sua passagem acelerada, e essa constante sensação de não

se ter tempo para se dedicar a fundo em algo, são, há alguns anos, uma das minhas maiores

dificuldades. Estou dentro desse modelo de tempo excessivamente veloz, onde a memória se

45

perde, mas não aceito essa condição e reluto para não me render a esse modo de vida,

conduzido por uma amnésia generalizada. Em 2007, durante o meu curso de Licenciatura em

Geografia, fiz uma poesia que intitulei “Tempo”; nela eu tratava dessa sobreposição de

sentirmos a sensação de falta de tempo e simultaneamente termos o tempo pré-determinado

para tudo. A poesia diz o seguinte:

Passa tempo, Tempo passa, Passam horas, Adianta, atrasa. Nunca retorna. Tempo é vento, Não se vê, sente. Passa o tempo, Passa a vida. Horas contadas. Tempo de dormir, Tempo de acordar, Tempo de trabalhar, Tempo de estudar. Tempo, tempo, tempo... Tempo de ter tempo. A vida num relógio, A vida num tempo sem vida. Sorrir... Cantar... Ser feliz! Sonhar... Viver! Viver e amar. Quanto tempo falta? Estou atrasada! Por hora não posso mais pensar. O tempo diz... Já é hora, levanta-te e vai! Quando for tempo voltarás a pensar... Sonhar... Amar... Quiçá viver... sem no tempo pensar.

Desde que vim morar em Natal, em 2005, o meu descontentamento com o modo como

estamos conduzindo a vida é uma constante. Estamos quantificando nossas vidas e a

qualidade do viver fica cada vez mais distante. E a universidade, em particular, aderiu

fielmente a esse modelo quantificável de civilização, que me recuso a conceber.

46

Foi então, lendo o livro “Tempo e memória”, que relembrei destas informações e

percebi que não só a memória, mas também o tempo deverá fazer parte do meu TCC. Embora

dia 05/05/12 eu tenha mencionado algo sobre a falta de tempo nas minhas anotações, acho

que ainda não havia me apercebido dessa componente como parte integrante do meu TCC.

Anotações de 07/06/12

Muitas coisas ocorreram nestes últimos dias, e o momento de apresentar o projeto do

TCC está chegando. Dia 18 de junho tenho que entregar o projeto, e no dia 25/06 apresentá-lo

à banca. [...]

Pois é, agora estou na fase de finalizar o projeto, mas não consigo iniciar a

fundamentação teórica. E para piorar a situação, consegui deletar quase duas páginas de

anotações que já havia feito para a fundamentação. Assim, estou na estaca zero novamente.

Minha cabeça parece se negar a pensar e o que eu mais quero é poder iniciar a parte prática.

Ao longo do curso de artes, fui me conhecendo melhor e percebendo também como,

cada vez mais, não me identifico com o modo de vida acadêmico e científico. É como uma

prisão que impede certos movimentos, define outros e rearranja outros tantos.

A universidade não é diversa, mas preconceituosa, restritiva; enclausura o pensamento

plural buscando torná-lo único. Ela, ansiando por um suposto rigor científico, impede que

possamos ousar, subverter, inverter, SER. Por que temos todos que fazer tudo igual? Por que

toda uma diversidade de pensamentos tem que passar sempre pela mesma fôrma? A ciência,

ou melhor, os cientistas, são pretensiosos. Acham-se o supra-sumo da sociedade, o que existe

de mais respeitável, afinal eles são produtores de conhecimento, do “verdadeiro”

conhecimento. Isso é uma grande asneira. Não são os títulos que uma pessoa consegue

acumular ao longo da vida que definem o seu caráter, o quão respeitada ela deve ser.

Além disso, são esses mesmos cientistas que criam e legitimam muitas das armas de

destruição em massa, que patenteiam princípios ativos de plantas, impedindo que

medicamentos sejam acessíveis a todos, e por aí vai. Soma-se a isso o fato de que ser um PhD

significa que você está ultraespecializado em um recorte; não se tem um conhecimento amplo

sobre diferentes componentes da vida, mas sim um recorte limitado. Não vejo nenhuma

superioridade na ciência e no conhecimento que ela produz. Existem muitas formas de

conhecer, existem muitas formas de conhecimento, e a ciência é só mais uma. A fórmula da

aspirina, feita por cientistas, não é mais importante que o chá de qualquer uma erva, feita por

qualquer pessoa, ainda que ela seja analfabeta. Pois é, muitas formas de conhecimentos estão

presentes em culturas que têm uma tradição oral, da qual a escrita e a ciência não fazem parte.

47

Pensando em todas essas coisas, somando a minha oposição aos caminhos que a

sociedade como um todo está seguindo, fico cada vez mais avessa à pretensão científica, à

alienação da sociedade, à voracidade do modelo capitalista, à vida como uma mercadoria, à

racionalização do viver.

Preciso de magia, do silêncio, da diversidade, da fauna e da flora. Necessito de

liberdade. Quebrar os relógios. Escolher meu próprio tempo atemporal.

Se existe um sentido na vida, ou foi perdido, ou não foi encontrado, pois é tudo tão

confuso. O homem é tão cruel. Um animal que não se considera animal e que é capaz de

matar seu semelhante e qualquer outra forma de vida. É tudo tão irracional. Somos um nada

comparado à imensidão do universo. Quantos mistérios existem no cosmo e ficamos querendo

explicar tudo racionalmente, e se algo não pode assim ser explicado, então não é válido, deve-

se esquecer.

Estamos sempre inibindo ações, pensamentos, possibilidades de existência. Somos

seres tão limitados. E, para piorar ainda mais, os poucos que conseguem ver além do visível

são excluídos. Não queremos ver e conhecer para além do já conhecido. O desconhecido é

assustador e o homem não consegue acessá-lo sem enquadrá-lo nos moldes do racional.

Com tantas coisas para pensar, tantos mistérios a desvendar, o meu jardim para cuidar,

e tenho que escrever uma fundamentação teórica para validar o meu TCC, seguindo as

sagradas normas da ABNT. Quem aguenta isso? Sinto-me asfixiada.

A imagem seguinte mostra como finalizei o texto acima.

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Anotações de 07/08/12

Só temos o agora! Ele acabou de passar... Você o viveu?

Anotações de 17/08/12

Confesso! Em cada face há um verso.

Anotações de 25/09/12

O tempo. Como pensá-lo? Como aproveitá-lo? Aproveitá-lo, isso em si já é uma

postura quantificadora da vida, atitude que infelizmente está impregnada nas nossas mentes.

Mas, contudo, podemos subverter essa imposição de modo de vida. Pensar o tempo, e vivê-lo,

de modo mais orgânico, cíclico, o tempo da natureza, da onda que vai e vem, o tempo que não

se computa, que não se perde, não se gasta. Viver o tempo da vida, quando homem e natureza

são ainda indissociáveis. Viver o tempo do respirar sereno. Viver! Não correr contra o tempo,

viver.

Anotações de 04/10/12

Não sou otimista, Não sou pessimista, Sou sonhadora.

Anotações de 04/10/12

Penso no passado, Assusto-me com o futuro, E vivo no presente. No meu presente. Quero viver no mundo do onírico, Dos poetas, Dos artistas, Dos loucos, Da liberdade. Viver! Viver é uma opção. Optei por viver a liberdade de quem não quer agradar, De quem não quer vencer, De quem não quer chegar lá. Vivo na liberdade de quem quer apenas viver.

Anotações de 05/10/12

Feito um carrossel, minha cabeça gira. Minhas ideias? Embaralham-se.

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Anotações de 05/10/12

No tempo em que o tempo não é medido, mas, sim, vivido.

Anotações de 10/12/12

Estou parando por aqui, até mais ver.