bernardo ricupero caio prado nacionalização do marxismo

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  • 8/8/2019 Bernardo Ricupero Caio Prado Nacionalizao do Marxismo

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    1Caio Prado Jr. e a nacionalizao do marxismo no Brasil

    CAIO PRADO JR.E A NACIONALIZAO

    DO MARXISMONO BRASIL

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    2 Bernardo Ricupero

    Departamento de Cincia Poltica

    Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias HumanasUniversidade de So Paulo

    ChefeMaria Hermnia Tavares de Almeida

    Vice-ChefeFernando Limongi

    Coleo Comentrio

    CoordenadorCludio Vouga

    Comisso EditorialCludio VougaEduardo Kugelmas

    Gabriel CohnLcio Kowarick

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    3Caio Prado Jr. e a nacionalizao do marxismo no Brasil

    Bernardo Ricupero

    CAIO PRADO JR.E A NACIONALIZAO

    DO MARXISMONO BRASIL

    Departamento de Cincia Poltica da USP

    Prmio Lourival Gomes MachadoMeno Honrosa

  • 8/8/2019 Bernardo Ricupero Caio Prado Nacionalizao do Marxismo

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    4 Bernardo Ricupero

    EDITORA 34

    Editora 34 Ltda.Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000So Paulo - SP Brasil Tel/Fax (11) 816-6777 [email protected]

    Departamento de Cincia PolticaFaculdade de Filosofia, Letras e Cincias HumanasUniversidade de So PauloAv. Prof. Luciano Gualberto, 315 Cid. Universitria CEP 05508-900So Paulo - SP Brasil Tels/Fax (11) 211-2269 / 818-3754 / [email protected] http://www.cienciapolitica-usp.br

    Copyright Editora 34 Ltda., 2000Caio Prado Jr. e a nacionalizao do marxismo no Brasil BernardoRicupero, 2000

    AFOTOCPIADEQUALQUERFOLHADESTELIVROILEGAL, ECONFIGURAUMAAPROPRIAOINDEVIDADOSDIREITOSINTELECTUAISEPATRIMONIAISDOAUTOR.

    Capa, projeto grfico e editorao eletrnica:Bracher & Malta Produo Grfica

    Reviso:Alexandre Barbosa de Souza

    1 Edio - 2000

    Catalogao na Fonte do Departamento Nacional do Livro(Fundao Biblioteca Nacional, RJ, Brasil)

    Ricupero, BernardoR81c Caio Prado Jr. e a nacionalizao do marxismo

    no Brasil / Bernardo Ricupero. So Paulo:Departamento de Cincia Poltica da Universidade deSo Paulo; Fapesp; Ed. 34, 2000.256 p.

    ISBN 85-7326-161-7

    1. Prado Jr., Caio, 1907-1990. 2. Marxismo -Brasil. I. Departamento de Cincia Poltica da

    Universidade de So Paulo. II. Fapesp.CDD - 320.5

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    5Caio Prado Jr. e a nacionalizao do marxismo no Brasil

    CAIO PRADO JR.E A NACIONALIZAO DO

    MARXISMO NO BRASIL

    Agradecimentos ........................................................ 7Prefcio .................................................................... 9

    Introduo ................................................................ 21

    I. TEXTOECONTEXTOEM CAIO PRADO JR.

    1. O problema Caio Prado Jr. ....................................... 372. Histria das idias e comdia ideolgica no Brasil .... 47

    II. O CONTEXTO

    3. Existe um pensamento marxista latino-americano?... 613.1. A questo ........................................................................ 633.2. Marxismo e Amrica Latina:

    uma incompreenso mtua ......................................... 693.3. Momentos da histria do socialismo na Amrica Latina .. 733.4. A III Internacional e a Amrica Latina ............................. 753.5. A Revoluo de Outubro vista da Amrica Latina ........... 813.6. Para alm do localismo e do cosmopolitismo

    da esquerda latino-americana ..................................... 89

    4. A aventura brasileira do marxista Caio Prado Jr. ..... 924.1. Marxismo e Brasil: uma histria quase inexistente .......... 924.2. Caio Prado Jr. e o PCB .................................................... 1084.3. Caio Prado Jr. e a literatura sobre a formao do Brasil .. 1144.4. Caio Prado Jr. como continuador e inovador

    no marxismo do Brasil ................................................ 124

    III. O TEXTO

    5. A Colnia ................................................................. 1375.1. O sentido da Colnia....................................................... 1375.2. Momentos da histria colonial ........................................ 147

    5.3. O carter da colonizao de acordo com Caio Prado Jr... 1505.4. A Colnia vista por Caio Prado Jr. .................................. 155

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    6 Bernardo Ricupero

    6. A transio entre Colnia e Nao ........................... 1606.1. A formao do Estado Nacional brasileiro ...................... 1626.2. O fim da escravido ......................................................... 1696.3. A Repblica ..................................................................... 1716.4. A formao econmico-social brasileira........................... 172

    7. A Nao ................................................................... 1957.1. A crtica poltica de Caio Prado Jr. .................................. 1957.2. Caio Prado Jr. e a esquerda ou mais um captulo

    na histria da crtica da cpia brasileira ...................... 1997.3. A repercusso da crtica de Caio Prado Jr. esquerda ..... 2137.4. O programa poltico de Caio Prado Jr. ............................ 2187.5. A Nao para Caio Prado Jr. ........................................... 222

    Concluso: O que est vivo e o que est mortoem Caio Prado Jr.? ......................................... 229

    Referncias bibliogrficas ......................................... 237

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    7Agradecimentos

    AGRADECIMENTOS

    Gildo Maral Brando, Rubens Ricupero, Luiz BernardoMurtinho Perics, Gabriela Nunes Ferreira, Fernando Novais,

    Rubem Murilo Leo Rgo, Alexandre de Freitas Barbosa, TulloVigevani, Norman Gall, Danda Prado, Antonio Candido, PauloMartinez, Lincoln Secco, Raimundo Santos, Sylvia Sampaio GesRicupero, Eduardo Kugelmas, Francisco de Oliveira, Maria DAl-va Kinzo, Ana Maria dos Santos, Jos Clovis de Medeiros Lima,Maria Raimunda dos Santos e Mrcia Regina Gomes.

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    9Prefcio

    PREFCIO

    Numa pesquisa recente feita artesanalmente com um peque-no mas senior grupo de economistas, socilogos, antroplogos e

    cientistas polticos, sobre quais seriam as obras e autores brasi-leiros mais importantes do sculo XX, as respostas indicaram noestudos tericos ou empricos executados segundo sofisticadosmanuais metodolgicos, mas Casa-Grande & Senzala (1933) eSobrados e Mucambos (1936), de Gilberto Freyre; Formao Eco-nmica do Brasil(1954), de Celso Furtado; Os Donos do Poder(1958), de Raymundo Faoro; Razes do Brasil(1936), de SrgioBuarque de Holanda; Coronelismo, Enxada e Voto (1948), deVictor Nunes Leal; Formao do Brasil Contemporneo (1942)e Evoluo Poltica do Brasil(1933), de Caio Prado Jr.; A Fun-o Social da Guerra na Sociedade Tupinamb (1952) e A In-

    tegrao do Negro na Sociedade de Classes (1964), e outros, deFlorestan Fernandes; Populaes Meridionais do Brasil(1920) eInstituies Polticas Brasileiras (1949), de Oliveira Vianna; e OsSertes (1902), de Euclides da Cunha1.

    1 Cf. Simon Schwartzman, As cincias sociais brasileiras no sculoXX, nov. 1999 (mimeo.). O autor esclarece que a amostragem utilizada, res-trita lista de cientistas sociais com os quais se corresponde via Internet, foide 49 intelectuais, dos quais 10 socilogos, 13 cientistas polticos, 14 econo-mistas, 6 antroplogos, alguns historiadores e gente proveniente da rea dedireito, filosofia e administrao. O livro de Fernando Henrique Cardoso eEnzo Faletto, Dependncia e Desenvolvimento na Amrica Latina (1970), teria

    sido citado como um dos mais influentes, no sendo entretanto reconhecidocomo de mrito eqivalente aos demais.

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    Pode ser que resida aqui uma anomalia. Tomando comopadro as cincias exatas que progridem esquecendo seus fun-dadores e desconsiderando a natureza das cincias sociais cujo trabalho, sob certo aspecto, se assemelha ao de Penlope, quepara atingir seus objetivos necessita refazer seu prprio caminho, uma interpretao positivista no hesitaria em qualificar talsituao como resistncia absoro dos procedimentos meto-dolgicos e tcnicos que caracterizariam a verdadeira cincia,indicao de o quanto estamos atrasados no terreno da profis-sionalizao e institucionalizao do saber.

    Fora desse sectarismo, no entanto, o que a lista evidencia

    que historicistas e anti-historicistas, holistas e individualistas meto-dolgicos, humanistas e cientificistas, aprendemos todos a pensaro Brasil com aqueles pensadores. Essa realidade, parte ineliminvelda experincia intelectual de cada um de ns e de cada geraodos 80 aos 21 anos, por si s suficiente para tornar risvel o darde ombros com que por vezes se os considera como alquimistasdiante dos qumicos, como literatura para o deleite dominical doesprito, como relevantes to-somente do ponto de vista da histriada cincia. Apesar do carter datado de muitas de suas proposiestericas e anlises empricas, continuam a ser lidos como teste-munhas do passado e como fonte de problemas, conceitos, hip-

    teses e argumentos para a investigao cientfica do presente.O que talvez seja peculiar desse momento a extenso em

    que esto sendo tomados como objetos de anlise em si mesmos,a quantidade de comentrios que esto sendo produzidos sobresuas idias, o uso que se est fazendo da histria intelectual comoinstrumento e perspectiva para repensar a evoluo histrica e aproblemtica poltica contempornea do pas. Com efeito, almda emergncia ou renovao das disciplinas que tematizam osproblemas do viver em transio como a violncia em suasdiversas formas, o fenmeno da pluralizao religiosa, a explo-so de associativismo, as redefinies das relaes de gnero, a

    requalificao das relaes raciais, as condies sociais para oexerccio da cidadania, o funcionamento das instituies demo-

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    crticas, a ascenso da mdia a um papel de primeiro plano naformao da vontade poltica da populao, o processo de globa-lizao e criao de blocos econmicos regionais, as mudanas nasrelaes internacionais etc. , uma das caractersticas mais sa-lientes das cincias sociais que estamos fazendo o crescimento ea diversificao dessa rea de pesquisa que vem sendo chamadacom maior ou menor propriedade de pensamento poltico oupensamento social brasileiro.

    Mas por que agora e no antes?Minha primeira hiptese que, sem diluir a diferena entre

    o ensaio e a investigao cientfica, apenas uma comunidade aca-

    dmica consciente da prpria fora pode confessar suas dvidasintelectuais para com os ensastas. A segunda que h uma ntimarelao entre o carter cclico do interesse por esses pensadores ea dinmica histrica e cultural da poltica brasileira, ou mais espe-cificamente, alguma conexo de sentido na coincidncia entre essaexploso intelectual e a conjuno crtica mudana global e,sob certo aspecto, concentrada no tempo, que est forando areorganizao das esferas de nossa existncia e a reformulao dosquadros mentais que at agora esquematizavam nosso saber2 que estamos vivendo, apenas comparvel aos perodos abertos pelaAbolio e pela Revoluo de 30. A terceira que a forma narra-

    tiva especfica que aqueles pensadores consolidaram est longe deser um fenmeno de juventude: um gnero de maturidade, su-pondo acumulao intelectual prvia e refinamento estilstico.

    De fato, a pesquisa sobre o pensamento poltico prolongauma tradio intelectual que se foi acumulando desde, pelo me-nos, a dcada de 70 do sculo XIX. Como espcie acadmica, noentanto, ela autonomizou-se dos estudos literrios apenas nos anos

    2 Para o conceito de conjuno crtica, ver Kurt von Mettenheim, Con-junes crticas da democratizao: as implicaes da Filosofia da Histriade Hegel para uma anlise histrica comparativa. In: Clia Galvo Quirino,

    Cludio Vouga e Gildo Maral Brando (orgs.), Clssicos do PensamentoPoltico. So Paulo: Edusp/Fapesp, 1998.

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    50 deste sculo, quando se tornou agudo o debate sobre os gran-des rumos a dar ao desenvolvimento econmico, a universidadese consolida e a direo intelectual e moral at ento exercida pelopensamento catlico se v desafiada por uma variedade de cor-rentes que tm em comum o materialismo e o progressivismo.Definiu alguns de seus principais esquemas interpretativos no fi-nal da dcada de 70, quando se tornou evidente que a associaonecessria entre industrializao e democracia no passava deequao otimista, a investigao sobre a natureza do Estado seimps, o exame das bases conceituais do autoritarismo formu-ladas em grande estilo no incio da era Vargas vem para o pri-

    meiro plano e a universidade foi deixando de sofrer a competi-o com agncias produtoras de idias como os partidos progra-mticos da velha esquerda. E sai da periferia para a cidadaniaintelectual plena apenas neste final de sculo, quando a exaustodo Estado nacional-desenvolvimentista se manifesta por todos osporos, a especializao exacerba a fragmentao do mundo inte-lectual e a sociedade se v diante do imperativo de reformular suasinstituies e redefinir seu lugar no mundo ou perecer.

    Tudo se passa como se o esforo de pensar o pensamento seacendesse nos momentos em que a nao e sua intelectualidadese vem constrangidas a refazer espiritualmente o caminho per-

    corrido antes de embarcar numa nova aventura para declinarou esmaecer em seguida. Seguramente, h algo aqui da coruja deMinerva, que s ala vo ao anoitecer. Mas se temos de usar ametfora hegeliana, conviria lev-la at o fim e reconhecer que,justamente porque no h como ter uma perspectiva adequadasobre a poca atual sem recolhermos a exemplaridade dessa he-rana3, a reflexo sobre o pensamento poltico, totalizante pornatureza, pode nos levar a perceber sinais da aurora que vislum-bram a estrutura do novo mundo.

    3 Francisco C. Weffort, A cultura e as revolues da modernizao.Braslia: Ministrio da Cultura, jan. 2000 (mimeo.), p. 2.

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    13Prefcio

    Aceita a legitimidade da questo da herana, trata-se agorade focalizar uma de suas vertentes mais significativas e observaruma das mais consistentes tentativas de confront-la com a suahistria e com o nosso tempo. O trabalho que o leitor tem em mos originariamente uma dissertao de mestrado que recebeu men-o honrosa no Prmio Lourival Gomes Machado para as melho-res teses defendidas em 1997 no Departamento de Cincia Polti-ca da Universidade de So Paulo4 uma anlise circunstanciadado aspecto poltico da obra do historiador Caio Prado Jr. e, aomesmo tempo, uma defesa apaixonada, mas no acrtica, da gran-deza e da atualidade de seu pensamento. Atente-se para a singu-

    laridade e as dificuldades do empreendimento. Dos trs pais fun-dadores da moderna cincia social brasileira Gilberto Freyre,Srgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr. , este que j foi con-siderado o mais slido, hoje, provavelmente, o menos lido e omais difcil de ser analisado. Podemos estabelecer o clebre pre-fcio de Antonio Candido a Razes do Brasile a aula magna deFernando Henrique Cardoso no Instituto Rio Branco sobre os li-vros que inventaram o Brasil como os marcos desse captulo dahistria das idias pela qual a sociologia gilbertiana e acrescente-se a oliveiraviannista foram sendo reabilitadas num contextode deificao de Srgio Buarque de Holanda e minimizao de

    Caio Prado Jr. Parte dessa mudana tem a ver com o desprestgioatual do marxismo, que relegou esse autor ao segundo plano; partecom o xito de sua obra, com o fato de que muitos de seus con-

    4 Tambm premiada em 1997, a dissertao de Gabriela Nunes Fer-reira, Centralizao e Descentralizao no Imprio: O Debate entre Tava-res Bastos e Visconde de Uruguai, foi publicada em 1999 nesta coleo. Adissertao de Vera Alves Cepeda, Razes do Pensamento Poltico de CelsoFurtado: Desenvolvimento, Nacionalidade e Estado Democrtico, e a tese deLuiz Guilherme Piva, Ladrilhadores e Semeadores: A Modernizao Brasi-leira no Pensamento Poltico de Oliveira Vianna, Srgio Buarque de Holanda,

    Azevedo Amaral e Nestor Duarte (1920-1940), esta orientado por BorisFausto, premiadas em 1998, devero ser editadas em breve.

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    ceitos, hipteses e resultados, revolucionrios a seu tempo, foramincorporados cincia normal e integrados ao nosso universomental; e parte ainda com as transformaes ideolgicas, trocade lealdades polticas, reconstruo das referncias intelectuaisocorridas na universidade e fora dela, como reflexo e resposta stransformaes mundiais em curso. A suspeita de que, no caso,as razes polticas pesam mais o combustvel para a exploraodas razes intelectuais capazes de contrariar essa volubilidade dafortuna, que diz mais da poca do que da obra considerada.

    Convm chamar ateno, desde j, para a linguagem tensa,nem sempre elegante, mas sempre viva com que Bernardo Ri-

    cupero escreve. Ela reflete um crebro em ebulio, lutando paradomar uma multiplicidade de idias e referncias histricas, umacombinao pouco usual de juventude e erudio que, alm dis-so, no teme se confrontar com o mundo. Observe-se a conscin-cia metodolgica que comanda a pesquisa, a forma como a ex-posio segue o processo de investigao. Ainda que no se atenhaao contextualismo lingstico de Skinner, sua anlise parte do con-texto intelectual e no meramente social ou econmico do pen-samento de Caio Prado Jr. e se preocupa em descrever seus prin-cipais interlocutores, as foras culturais e polticas que delimitamo campo intelectual e poltico no qual se move. Dele reconstri o

    suficiente para situar a obra. Mas o quadro que delineia no merasomatria de seus elementos nem tal contexto vem tratado comocondicionante externo, sociolgico por assim dizer, mas comopressuposto que vai sendo reposto pela anlise interna do texto,como parte integrante dele. Mapear conceitos e estruturas concei-tuais e ver como se articulam com a perspectiva poltica mobili-zada eis o ncleo do trabalho. Percorrido esse caminho, poss-vel retornar ao contexto e examinar a influncia e a permannciadessa viso terica e concepo poltica na esquerda brasileira.

    Posta a questo dessa maneira, fica claro por que o cami-nho escolhido no podia ser o da biografia, seja psicolgica seja

    intelectual; nem o da sociologia, seja a dos intelectuais ou de suasinstituies. Tambm importa pouco saber se o autor era ou dei-

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    xava de ser um aristocrata de nascena, pois no cabe explicar umaestrutura terica ou um problema intelectual como o da qualida-de de seu marxismo, ou mesmo sua arraigada subestimao dadensidade e do alcance da industrializao brasileira, pela evoca-o de sua origem de classe. Em nenhum momento a produ-o intelectual lida como reflexo ideolgico de base material oude grupo social preexistente. No se trata, tampouco, de reduziridias s estratgias micropolticas das coteries as quais confereeventualmente identidade institucional, nem de estudar a miradede obras medocres pelas quais uma determinada compreenso dascoisas se refrata e se propaga.

    Trata-se, isto sim, de submeter a teste emprico o suposto se-gundo o qual as obras-primas, os textos fundacionais, as grandescriaes culturais so mais capazes porque mais coerentes, maisamplas, mais profundas e mais autnomas de revelar a naturezade uma poca e a consistncia de uma concepo poltica. A anliseconcentra-se num aspecto especfico de um todo mais vasto, masa abordagem utilizada permite interpelar as idias de Caio Prado

    Jr. a sim, sem reducionismos como momentos da consti-tuio de um ator especfico o marxismo no Brasil , comotentativas de diagnosticar e resolver problemas reais, de dirigirpoltica e culturalmente a ao de foras sociais determinadas.

    A leitura de Bernardo Ricupero situa-se numa determinadalinhagem, pressupe e completa anteriores abordagens: se a deFernando A. Novais apanhava o sentido do Caio Prado Jr. histo-riador, se a de Rubem Murilo Leo Rgo esmiuava o socilogoque fez da questo agrria o ponto nevrlgico para repensar asociedade toda, se a de Carlos Nelson Coutinho revelava um mar-xista latino-americano cuja sensibilidade para com a modalidadedo desenvolvimento capitalista tornava-o comparvel apenas aosgrandes internacionais, a de Bernardo Ricupero visa e deve sero primeiro a faz-lo sistematicamente problematizar o sentidodo Caio Prado Jr. poltico e terico da poltica. No demasiado

    insistir na delicadeza do projeto, que confronta a parte no apenasmais polmica, mas tambm a mais vulnervel desse pensamento.

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    Seguindo a sugesto de Fernando A. Novais5, Ricupero mos-tra como a viso que Caio Prado tem da poltica nasce organica-mente do seu trabalho de historiador e como a perseguio incan-svel de uma problemtica bsica as questes da construonacional e das possibilidades de mudana inscritas no processohistrico conforma o esforo tenaz para fazer a crtica de todoprojeto poltico que no nasa das determinaes do prprio pro-cesso. Caio, entretanto, um notvel historiador e um analistapoltico nem sempre arguto e este n, admitido com a clarezaque o distingue tanto das leituras apologticas quanto da crticasuperficial, que Bernardo quer desatar. Explora, assim, as mlti-

    plas e contraditrias relaes entre debilidades historiogrficas eacertos polticos, entre miopia prtica e acuidade analtica. De-monstra como a problemtica da passagem da estrutura colonialpara a estrutura nacional est na origem de seu nacionalismo po-ltico e a estreiteza deste tem a ver com a parada a meio caminhode seu trabalho de historiador cuja revelao da natureza co-mercial do empreendimento colonizador sugeriu mas no rea-lizou uma considerao do movimento do conjunto do mundocolonial ; e sua subestimao do escopo da substituio indus-trial de importaes no pode ser vista parte, mas faz corpo comsua precria percepo da questo democrtica tal como se apre-

    sentou na poltica concreta. Ao mesmo tempo, Caio Prado jamaisembarcou na canoa da esquerda para a qual sua crtica abriu ca-minho, assim como sua desconfiana quanto natureza da indus-trializao vacinou-o contra a equao otimista que seus com-panheiros de partido alimentaram; num certo sentido, o que po-deria ser caracterizado como seu udenismo poltico aguou suasensibilidade para com fenmenos, como o do peso da burocra-cia e do Estado no tipo de capitalismo realmente existente, queseus contemporneos encararam acriticamente.

    5 Em Caio Prado Jr. na historiografia brasileira. In: Reginaldo Mo-

    raes, Ricardo Antunes e Vera B. Ferrante (orgs.), Inteligncia Brasileira. SoPaulo: Brasiliense, 1986, p. 22.

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    Recusando avaliar esse pensamento por metro externo a ele,Bernardo mostra como muitos de seus desencontros com a reali-dade so exacerbaes de descobertas, nascem da extraordinriacoerncia de sua obra. As respostas que d aos diferentes proble-mas no so independentes umas das outras: a questo, portan-to, tem a ver menos com as teses que defendeu e as posies queadotou, do que com o mtodo e a forma de us-lo.

    O que est em jogo, ento, no apenas a singularidade deCaio Prado Jr., mas, atravs dela, o destino do marxismo no Brasil.A perspectiva adotada investigar um caso de aculturao deum conjunto de idias elaboradas em e para outra realidade, ve-

    rificar como se constitui um novo pensamento poltico diferen-cia o trabalho de Bernardo Ricupero de uma historiografia forma-lista que sequer contempla a hiptese e para a qual as idias sopor definio autctones e funcionais aos grupos que as produ-zem. Dado que o capitalismo um s e o mesmo em toda parte,reza esta orientao, e que elas so produto social como qualqueroutro, falar em descompasso, desajuste, inadequao, dualidade,no passa de paradoxo verbal ou capitulao insuportvel ideo-logia nacional. Mas ao contrrio da maioria dos estudos da emi-grao das idias, que de modo tosco ou sofisticado enfatizam omimetismo e no avanam alm da reiterao da diferena entre

    pas legal e pas real, a anlise de Bernardo no se limita a constataro transplante, invectivar a desadaptao ou reconhecer a inape-tncia que nos faz, ao imitar, recriar. A originalidade da cpia demonstrada especificando em que consiste, como foi produzidae quais os seus resultados, o modo pelo qual uma determinadateoria, sendo ela mesma, no obstante outra. A hiptese bsica que estamos diante de caso bem-sucedido de assimilao e re-criao de um conjunto de idias, de uma orientao terica emetodolgica que prova sua fecundidade heurstica dando contade situao distinta da qual nasceu para dar expresso e, ao con-seguir isso, revela-se como universal. A nacionalizao dessa

    teoria no ento um fenmeno unvoco, mas duplamente arti-culado, sugerindo, como diz um belo achado do texto, soluo

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    positiva para o dilema proposto por Gramsci sobre a tradutibi-lidade das linguagens cientficas. Assim, o que poderia pareceruma obviedade ou um doutrinarismo a suposio de que boaparte do interesse pela obra de Caio Prado Jr. provm precisamentede sua associao com o marxismo desnaturalizado, revelasua face heurstica.

    Tal nacionalizao, portanto, no se esgota nela mesma.A extraordinria substituio cultural de importaes que impli-ca deve ser vista como parte do processo de autonomizao dacultura brasileira, como aporte a mercado interno de idias ca-paz de regular suas trocas com o mercado mundial. Ao longo dos

    anos 30 aos 80, o marxismo acaba por se constituir numa cul-tura em sentido sartreano, por destilar uma srie de problemas,hipteses, formas de abordagens, controvrsias, resultados oufracassos analticos que vo constituir um fundo comum ao quala comunidade cientfica obrigada a se referir no enfrentamentodas questes postas pela circunstncia histrica. Nesse processo,a identidade dos intelectuais vai deixando de ser dada pela suafiliao a uma grande marca registrada do mercado intelectualmundial e passa a depender da consistncia das respostas da-das aos problemas postos pelo nosso desenvolvimento e evoluohistrica6, pela capacidade de repensar a problemtica mundial

    contempornea de tica prpria e altura do que h de maisavanado internacionalmente.

    este o caso de Caio Prado Jr., nos mostra Bernardo Ri-cupero.

    Gildo Maral BrandoSo Paulo, fevereiro de 2000

    6 Cf. Roberto Schwarz, Entrevista a Gildo Maral Brando e Oswaldo

    Louzada Filho. In: Encontros com a Civilizao Brasileira, n 15, Rio deJaneiro, Civilizao Brasileira, 1979.

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    19Introduo

    Para Rubens, Marisa, Cristina, Isabel e Mariana

    CAIO PRADO JR.E A NACIONALIZAO

    DO MARXISMONO BRASIL

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    INTRODUO

    Quando comentei com algumas pessoas que pretendia es-crever sobre Caio Prado Jr., boa parte delas mal conseguiu dis-

    farar a estranheza. Tenho a impresso de que devem ter imagi-nado que um estudo desses seria uma perda de tempo. Essa ati-tude me parece refletir uma imagem bastante difundida de nossoautor em alguns crculos bem pensantes: como algum que tevesua importncia, mas que , de certa forma, datado.

    A relevncia de Caio Prado Jr. reconhecida por ser ele con-siderado, juntamente com Gilberto Freyre e Srgio Buarque deHolanda, um dos autores que inaugura, a partir da dcada de trin-ta, uma nova maneira de se entender o Brasil. As abordagens dostrs teriam sido favorecidas sobretudo pelos novos ventos que pas-saram a soprar no pas desde os anos vinte e se tornaram irrever-

    sveis com a Revoluo de 1930. J se tornou mesmo redundantecitar Antonio Candido1 quando afirma que sua gerao foi mar-cada por trs livros: Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre,Razes do Brasil, de Srgio Buarque de Holanda e Formao doBrasil Contemporneo, de Caio Prado Jr.

    Mas, a partir das importantes sugestes de Antonio Candido,formulou-se uma quase representao da contribuio que cadaum desses autores teria dado compreenso de nossa realidade.2

    1 Antonio Candido, Prefcio. In: Srgio Buarque de Holanda, Ra-zes do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria Jos Olympio Editora, 1978.

    2 No h, propriamente, uma interpretao dessas externalizada, masuma certa sensibilidade, presente em, por exemplo: Fernando Henrique Car-

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    Tem-se mesmo a impresso de que h quase o equivalente a umadiviso do trabalho entre os pais fundadores do pensamento so-cial brasileiro. Influenciado pela antropologia cultural norte-ame-ricana, Gilberto Freyre teria importncia por ser dos primeiros areconhecer a relevncia da contribuio negra na formao denossa sociedade. Inspirado, por sua vez, na sociologia weberianae na hermenutica alem, Srgio Buarque de Holanda teria cha-mado a ateno para a predominncia entre ns de relaes pri-mrias, verdadeiro impedimento para o estabelecimento da demo-cracia no Brasil. J Caio Prado Jr. garantiria seu lugar no panteodos grandes intrpretes do Brasil, por ser o inaugurador no pas

    do uso de um mtodo relativamente novo, o materialismo his-trico. O que teria feito com que as classes emerg(iss)em pelaprimeira vez nos horizontes de explicao da realidade social bra-sileira enquanto categoria analtica.3

    Desses trs pensadores fundamentais, Srgio Buarque o queprovavelmente conserva a melhor reputao, o que talvez se devamais a motivos polticos do que intelectuais. Mas como no pode-ria deixar de ser, nem mesmo o historiador weberiano est imu-ne s crticas. A principal delas que ele enfatiza demasiadamen-te a importncia que tiveram os aspectos culturais em nossa his-tria. Conseqentemente, sua anlise compartilharia de defeitos

    comuns a outros enfoques do tipo, em especial, certa dificuldadeem lidar com a mudana.

    Em relao a Freyre,4 as avaliaes so mais contundentes.Conviveria com seu lado positivo uma face malfica. Afinal, o

    doso, Livros que inventaram o Brasil. In: Novos Estudos Cebrap,n 37,1993;Richard Morse, A Volta de McLuhanama,trad. Paulo HenriquesBritto. So Paulo: Companhia das Letras, 1990.

    3 Carlos Guilherme Mota, Ideologia da Cultura Brasileira.So Paulo:tica, 1980, p. 28.

    4 Fernando Novais sugere que, em parte, por motivos geogrficos,

    Freyre e Prado Jr., ambos filhos de classes dominantes, tm perspectivas opos-tas. Enquanto Freyre pertence a uma regio, o nordeste, que j teve dias

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    socilogo pernambucano seria o principal formulador de umaideologia, a ideologia da democracia racial. Ela teria sua impor-tncia por fornecer, nas palavras de Renato Ortiz, uma carteirade identidade ao brasileiro,5 mas tambm, como ideologia, nodeixaria de encobrir aspectos no muito edificantes de nossa rea-lidade. Em particular, a brutalidade que teve a escravido entrens, brutalidade que persiste nas relaes entre raas. Assim, comodisse certa vez Florestan Fernandes, o brasileiro passou a ser osujeito que tem o preconceito de no ter preconceito.6

    melhores, Prado Jr. do estado que mais se desenvolve no Brasil desde o finaldo sculo passado, So Paulo. Assim, a perspectiva de Freyre seria saudosista,enquanto a de Prado Jr. estaria voltada para o futuro. Ver: Fernando Novais,Caio Prado Jnior historiador. In: Novos Estudos Cebrap,n 2, 1983.

    interessante notar como j em 1942, quando da publicao de For-mao do Brasil Contemporneo, apareciam comparaes entre Freyre ePrado Jr., contra as quais Srgio Milliet se insurgia. Ver: Srgio Milliet, Umagrande promessa. In: A Noite,05/11/1942.

    5 Renato Ortiz, Cultura Brasileira e Identidade Nacional,So Paulo,1985, p. 45.

    6 Interpretaes mais recentes da obra de Gilberto Freyre tm, porm,modificado sua imagem. Ultimamente tem se valorizado sobretudo sua preo-cupao com temas mais subterrneos das cincias sociais, como o cotidia-

    no e a vida privada, aos quais comeou a prestar ateno quase no mesmoperodo da chamada Nova Histria na Frana. Mesmo as avaliaes a res-peito da representao que o mestre de Apipucos faz da sociedade brasileiraj no so iguais s de alguns anos atrs; se antes o que se ressaltava eram osaspectos falsificadores e idealizadores da experincia brasileira presentes nosseus livros, agora, chama cada vez mais ateno um conflito interno obrado socilogo pernambucano entre elementos que identifica como positivosna relao das trs culturas que nos formaram e elementos negativos, pre-sentes na violncia que caracterizava uma sociedade como a colonial, basea-da na escravido, e para os quais no deixa de alertar. Ver: Luiz Felipe deAlencastro, Prefcio. In: Fernando Novais (coord.), Histria da Vida Pri-vada no Brasil, vol. 2. So Paulo: Companhia das Letras, 1997; Ricardo Ben-zaquen de Arajo, Guerra e Paz: Casa-Grande & Senzala e a Obra de Gil-

    berto Freyre nos Anos 30. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994; Roberto DaMatta,A originalidade de Gilberto Freyre. In: ANPOCS-BIB, n 34, 1987.

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    No caso de Caio Prado Jr., boa parte das crticas, ou, aindapior, do silncio em relao a ele, provm de sua associao como marxismo. Assim, tratar-se-ia de autor economicista, inca-paz de compreender as mltiplas facetas que compem a nossarealidade. Tem-se mesmo a impresso de que alguns reagem comcerto alvio ao pretenso desmoronamento da obra do historiadorpaulista, supostamente ocorrido como conseqncia e conjunta-mente com a queda do Muro de Berlim.

    A nosso ver, porm, boa parte do interesse da obra de CaioPrado provm precisamente de sua associao com o marxismo.Isto em razo do que mais significativo na sua obra derivar de

    uma notvel e pouco comum utilizao da abordagem marxistana anlise de um certo objeto, a experincia histrica brasileira.Sua realizao, ao estudar o Brasil, faz mesmo com que se afasteda maior parte de nossos marxistas, incapazes que foram, quasetodos eles, de compreender as particularidades das quais feitanossa formao econmico-social.

    Pode-se, portanto, parafrasear algum e afirmar que CaioPrado Jr. foi um marxista do Brasil, mas nem todo marxista doBrasil foi Caio Prado Jr. Ou seja, a primeira afirmao nos servepara muito pouco, situa Caio Prado em certo contexto intelectuale poltico, mas no explica suas diferenas dentro desse contex-

    to, o que impossibilita uma compreenso mais completa de seupensamento. A afirmao no explica inteiramente esse pensamen-to precisamente porque nem todo marxista do Brasil Caio Pra-do Jr. Conseqentemente, precisamos avanar no problema e en-tender como um determinado marxista do Brasil, Caio Prado Jr.,no qualquer marxista do Brasil, mas verdadeiramente um mar-xista brasileiro, isto , algum que abre caminho para a aproxi-maoda teoria marxista com a realidade brasileira.

    No entanto, como vimos, a atual atitude dominante em re-lao a obra de Caio Prado de desvaloriz-la, justamente devi-do a sua associao com o marxismo. Assim, nossa tarefa neste

    trabalho ser tambm a de tentar contribuir para a recuperaode sua reputao. evidente, contudo, que essa recuperao

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    no pode ser acrtica. Ou seja, ela s tem sentido se abrirmoscaminho para que se possa ir alm do que props Caio e, de cer-ta forma, superar nosso autor. Seria, entretanto, impossvel levara cabo essa tarefa enorme em apenas um estudo, o que nos leva aprocurar contribuir a esse esforo maior privilegiando um aspec-to especfico da sua obra. Obra sabidamente rica e variada, queconta com livros de histria, economia, filosofia, poltica, geografiae viagens. O aspecto da obra do historiador paulista que decidi-mos privilegiar , alm do mais, particularmente subestimado, asimplicaes polticas de suas anlises.7

    Portanto, ao estudar o pensamento de Caio Prado Jr., pre-

    tendemos utilizar procedimento anlogo ao seu em Formao doBrasil Contemporneo. Ou seja, para compreender determinadofenmeno, privilegiaremos a anlise de um aspecto seu que nosparece revelar o que tem de mais importante. Assim como o finaldo perodo colonial revela a essncia do que foi o sistema colo-nial, parece-nos que a poltica na obra de nosso autor, at mes-mo por seu carter intencionalmente polmico, evidencia as te-ses mais importantes que defendeu ao longo de sua vida.

    Mas mesmo que no existissem todos os motivos j arrola-dos para continuar a ler e estudar Caio Prado, haveria pelo me-nos duas outras razes para insistir nesse esforo. Chamaremos

    o primeiro desses motivos de externo ao nosso autor, enquan-to o segundo ser apelidado de interno a seu pensamento. Maisespecificamente, a razo externa para ainda valoriz-lo estrelacionada penetrante crtica que faz linha dominante de umainfluente perspectiva intelectual e polticano Brasil, aquela quebrotou do Partido Comunista Brasileiro (PCB). J o motivo inter-

    7 Inspirados por Antonio Gramsci, entendemos, contudo, poltica emsentido amplo, como uma filosofia prtica. Assim, mesmo que no de formaexplcita, praticamente toda a obra de Caio, orientada para a interveno nomundo concreto, est impregnada de poltica. Ver: Antonio Gramsci, Selec-

    tions from the Prison Notebooks,org. e trad. Q. Hoare e G.N. Smith. NovaYork: International Publishers, 1992.

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    no para continuarmos a levar Caio a srio provm de seus pr-prios mritos como historiador e intrprete de nossa realidade.

    Esta diviso , porm, em grande parte arbitrria, j que oCaio Prado Jr. historiador incompreensvel sem levar em contao Caio Prado Jr. militante poltico. O que Jean Starobinski8 notaem Rousseau, nos parece aplicvel tambm ao nosso autor, isto, so ambos pensadores que no aceitaram separar sua vida daobra. Nos seus livros, Caio Prado no deixa dvidas quanto asua convico de que o estudo terico deve ser orientado para acompreenso do presente. Compreenso esta que deve servir fun-damentalmente para que se possa intervir na realidade do momen-

    to com a qual se tem de defrontar. Por sua vez, naquilo que serefere ao poltica, o historiador paulista particularmentecontundente em insistir que ela deve ser orientada por uma teo-ria adequada.

    Caio Prado Jr. , portanto, um firme defensor da tese de quedeve existir unidade entre teoria e prtica. Seu caso talvez sejamesmo dos poucos em que justo falar na elaborao de umateoria prtica, que aparece em quase todos seus escritos, e deuma prtica terica, da qual so provas empreendimentos comoa Editora e a Revista Brasiliense. Mesmo assim, decidimos man-ter a distino entre os dois motivos para se continuar a ler e es-

    tudar Caio Prado a fim de facilitar a exposio.A primeira das razes apontadas para se insistir na leitura e

    estudo de Caio liga-se influncia poltico-cultural que teve porum bom tempo a esquerda brasileira. Na Amrica Latina em ge-ral, desde o segundo ps-guerra at recentemente, socialistas exer-ceram a liderana em nosso debate intelectual. Alguns, como ochileno Norberto Lechner,9 chegam a afirmar que por muito tem-

    8 Jean Starobinski,Jean Jacques Rousseau: La Transparence et lObs-tacle. Paris: Gallimard, 1971.

    9 Norberto Lechner, Que Significa Hacer Politica? Lima: DESCO,1982.

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    po existiu na regio apenas uma intelectualidade, a intelectualidadede esquerda, sendo muito raros os casos de intelectuais assumi-damente conservadores, liberais e populistas. Talvez apenas osromnticos e positivistas tiveram influncia comparvel junto anossa intelectualidade. Dessa forma, foi a esquerda que, na maiorparte dos casos, escolheu os temas e deu o tom das discussespolticas que mais nos marcaram, como aconteceu nas polmicasa respeito da industrializao, do petrleo, do imperialismo, donacionalismo etc.

    No caso especfico do Brasil, como nota Gildo Maral Bran-do,10 essa influncia cultural talvez tenha servido at para con-

    trabalanar o pequeno peso numrico de socialistas. Alm do mais,a esquerda que em suas mltiplas manifestaes aqui se consti-tuiu, teve como referncia bsica as teses e atuao do PartidoComunista. Foi afirmando ou negando o modo de ser e de fazerpoltica do PCB que a esquerda, ou, como preferem alguns, asesquerdas brasileiras, desenvolveu(ram) uma (ou mltiplas) iden-tidade(s) prpria(s).

    Caio Prado Jr., no interior da esquerda e do prprio PCB,faz a crtica mais devastadora teoria e prtica dominantes nocampo socialista. Essa crtica, que j vinha aparecendo desde adcada de quarenta, culmina na publicao de A Revoluo Bra-

    sileira em 1966.Mas, como j apontamos, h tambm razes internas ao

    pensamento de Caio Prado que justificam seu estudo. Caio reali-zou reflexo original sobre a histria e a sociedade brasileiras, queconstitui contribuio particularmente importante para a com-preenso de nossa realidade. Entre os nossos historiadores, foi dosque mais e melhor assinalaram o peso que carregamos por causado passado colonial. O historiador paulista chamou a ateno,em especial, para o sentido que teve a colonizao entre ns:

    10 Gildo Maral Brando, A Esquerda Positiva: As Duas Almas doPartido Comunista (1920/1964).So Paulo: Hucitec, 1997.

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    empreendimento comercial voltado para o mercado externo, ba-seado na produo de gneros tropicais em grandes unidades agr-colas, trabalhadas pelo brao escravo.11

    Em razo de sua compreenso do peso do passado colonial,Caio Prado Jr. tambm no deixa dvidas em relao insistn-cia que tm certos traos, que h muito deveriam ter sido supera-dos de nossa formao econmico-social, de (teimosamente) per-manecer nela: atrs daquelas transformaes que s vezes nospodem iludir, sente-se a presena de uma realidade j muito anti-ga que at nos admira de a achar, e que no seno aquele pas-sado colonial.12 Em certos momentos, Caio Prado, por assim

    dizer, nos sugere que ainda somos parte do passado, j que no osuperamos de todo. Ou quando muito, concede em outros trechosde sua obra que estamos vivendo em perodo de transio entre asituao colonial e a almejada situao nacional.

    De qualquer forma, isto assunto para mais tarde. Antes,talvez devssemos explorar uma terceira razo para continuar-mos a ler e estudar Caio Prado Jr. Esse motivo, quem sabe, sirvamesmo como interseo entre os dois outros apresentados an-teriormente. s, a partir da dcada de cinqenta, como nota

    11

    Os livros de Caio Prado Jr. tm, inclusive, lugar de destaque na lite-ratura acerca do Brasil pelo seu carter sistemtico. Como poucos pensado-res brasileiros, chega praticamente a deduzir toda sua obra de uma catego-ria central: o sentido da colonizao.

    Assim, talvez se possa mesmo consider-lo, fazendo recurso aos ter-mos que Isaiah Berlin utiliza, como uma toupeira, que relaciona tudo auma nica viso central, um sistema mais ou menos coerente ou articulado,em termos dos quais compreende, pensa e sente. J os companheiros degerao de Caio, Srgio Buarque de Holanda e principalmente GilbertoFreyre, seriam mais como raposas, que perseguem muitos fins, muitasvezes no relacionados e mesmo contraditrios, ligados, se tanto, apenas dealguma forma factual (Isaiah Berlin, Russian Thinkers.Nova York: PelicanBooks, 1979, p. 22).

    12 Caio Prado Jr., Formao do Brasil Contemporneo.So Paulo:Livraria Martins Editora, 1942, p. 7.

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    Novais,13 que se comea de fato a elaborar na Amrica Latina ummarxismo diferente, nascido, em grande parte, da confrontaocom as formulaes cepalinas.14

    , portanto, notvel que no verdadeiro deserto intelectualque era o pensamento de inspirao socialista por estas plagas,tenham surgido precursores originais como Jos Carlos Mariteguie Caio Prado Jr. Alm do mais, como sugere Novais, uma dasformas mais interessantes para avaliar o pensamento de Caio Pra-do seria confront-lo com o meio a partir do qual elaborou suasidias e do qual destoa por seu no-dogmatismo: o marxismo doBrasil e da Amrica Latina.

    precisamente o que pretendemos fazer. Procuraremos mos-trar que, ao nacionalizar o marxismo, isto , ao conseguir tra-duzir o modo de abordagem dessa teoria s condies de umaexperincia histrico-social especfica, a do Brasil, Caio Prado Jr.se destaca de nossos marxistas, que at recentemente, em sua quasetotalidade, foram incapazes de realizar uma reflexo original so-bre o pas em que vivem.15

    13 Novais, op. cit.; Ibid., Caio Prado na historiografia brasileira. In:Ricardo Moraes, Inteligncia Brasileira.So Paulo: Brasiliense, 1986.

    14

    Pode-se tambm atribuir, no caso brasileiro, grande peso ao apare-cimento da universidade a partir dos anos trinta.

    15 Diversos autores reconhecem o pioneirismo de Caio Prado Jr. aoutilizar o marxismo como instrumento terico para explicar o Brasil. Assim,Carlos Nelson Coutinho ressalta a sua criatividade e os seus extraordin-rios mritos pioneiros enquanto intrprete marxista da histria brasileira(Carlos Nelson Coutinho. In: Maria Angela DIncao (org.), Histria e Ideal.So Paulo: Brasiliense, 1989, p. 117), enquanto Maria Odila Silva Dias su-gere que ao decifrar as possibilidades de adequao da dialtica materialis-ta ao contexto das contradies brasileiras, elaborado na sua especificidade,(...) propunha um desafio fundamental de mtodo (...) Por isso atingiu, em1942, justamente por conciliar a interpretao marxista com a diversidadenacional, um nvel de concretude e de sofisticao do mtodo, que somente

    vinte anos depois comeou a encontrar similares nas obras de Pierre Vilar,Albert Soboul e E <

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    Mais importante ainda, a utilizao do marxismo por par-te de Caio Prado sugere uma soluo positiva para o dilema pro-posto porAntonioGramsci: o problema que surge saber seuma verdade terica, cuja descoberta corresponde a uma prti-ca especfica, pode ser generalizada e considerada como univer-sal para uma poca histrica. A prova de sua universalidade con-siste precisamente: 1) em se transformar num estmulo para co-nhecer melhor a realidade concreta de uma situao que dife-rente daquela em que foi descoberta; 2) (...) Na sua capacidadede se incorporar nessa mesma realidade como se ela fosse origi-nalmente uma expresso dela.16 Portanto, a universalidade do

    marxismo consistiria precisamente na sua capacidade de se con-verter em uma fora viva nas mais variadas sociedades, o que fa-ria que, de verdade terica abstrata, passasse a ser uma universa-lidade concreta.17

    Nossa tese, conseqentemente, que iniciativas como as deCaio, de buscar, atravs de uma abordagem marxista, compreen-der a particularidade brasileira, tornam possvel tanto utilizar omarxismo como importante ferramenta terica para entender o

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    3 0 > /! a mo um agente annimo do Departamento Espe-

    cial de Ordem Poltica e Social (DEOPS) reconhece que Caio Prado Jr. umluminar do marxismo, possuindo esprito vivo e lcido e que no se submetes imposies de elementos medocres e obtusos (Pronturio de Caio Pra-do Jr. no DEOPS, 30-K-33, Informao Reservada, 27 de dezembro de 1955).

    16 Gramsci, Escritos Politicos,sem indicao de tradutor. Mexico D.F.:Ediciones Pasado y Presente, 1977, p. 201.

    17 Jos Aric, Maritegui y los Origenes del Marxismo Latino Ameri-cano. Mexico D.F.: Ediciones Pasado y Presente, 1978.

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    Brasil, como demonstram a capacidade que tem essa teoria deexplicar sociedades as mais diversas.18 Ou seja, h na obra de CaioPrado Jr. duas dimenses principais uma ligada teoria mar-xista, e outra realidade brasileira que se aproximam devidoao sucesso que teve em utilizar o materialismo histrico na anli-se de nossa formao econmico-social.

    Essa aproximao deve mesmo abrir caminho para que teoriae realidade se transformem. A teoria, ao buscar apreender as espe-cificidades inerentes a qualquer formao econmico-social, terde ir alm de certos esquemas simplificadores que tem necessida-de de utilizar. Por outro lado, o esforo terico s faz sentido se

    servir para modificar a realidade com a qual tem de se defrontar.A fim de demonstrar que a obra de Caio Prado abre caminho

    para uma aproximao entre teoria marxista e realidade brasileira,dividimos o trabalho em trs partes e sete captulos. Ao longo delesse procurar estabelecer um caminho cumulativo que esperamospermita, ao final do texto, confirmar a tese principal. Ou seja, quea obra de Caio Prado Jr. representa um caso bem-sucedido de na-cionalizao do marxismo. Nacionalizao esta que teria se dadoatravs de uma traduo da abordagem marxista para as condi-es particulares da experincia histrico-social brasileira.

    A primeira parte do livro, que se chamar Texto e contex-

    to em Caio Prado Jr., discutir o procedimento a ser adotadoao analisar-se a obra de Caio Prado. Basicamente, se defender aidia de que a melhor forma de compreender as posies por eledefendidas ao longo da vida ser confrontando-as com os am-bientes intelectuais e polticos em que atuou. Dividiu-se, dessa for-ma, essa parte metodolgicado trabalho em dois captulos: um

    18 Uma coisa dizer que a explicao de Marx sobre o capitalismocorresponde a certas condies especficas, outra afirmar que seu mtodotem uma validade que vai alm dessas condies. Assim, mesmo que boa partedas descobertas de Marx tenha como referncia bsica a Inglaterra da segunda

    metade do sculo XIX, a forma como ele chegou a estas descobertas podeser til para a compreenso de outras pocas e sociedades.

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    mais genrico sobre as dificuldades que se tem de enfrentar quan-do se quer estudar historicamente um pensador poltico, intitu-ladoO problema Caio Prado Jr., eoutro sobre os desafios par-ticulares que se apresentam para o estudo de um autor brasilei-ro, Histria das idias e comdia intelectual no Brasil. A partirdeles, poder ser realizada, nos demais captulos, uma verificaodas posturas comuns e divergentes que existiram entre nosso au-tor e seus ambientes, o que possibilitar uma posterior avaliaoda originalidade de Caio e de sua capacidade de nacionalizaro marxismo.

    Na segunda parte, sabendo que a questo central da pes-

    quisa demonstrar que a obra de Caio Prado Jr. representa a ela-borao de um marxismo original, preocupado com as condiesespecficas de nossa experincia histrico-social, se procurarsitu-la num certo horizonte intelectual e poltico, o marxismodo Brasil, e comparar seus trabalhos com os de outros autoresque se identificaram no pas com essa vertente intelectual e pol-tica. Mas o marxismo brasileiro, se tal coisa existe, , para para-frasear o que diz Caio Prado a respeito da colonizao, apenasum episdio, um pequeno detalhe num quadro maior, o marxis-mo da Amrica Latina, o qual, por sua vez, passvel de ser consi-derado como parte do que alguns autores chamam de marxismo

    do Terceiro Mundo, que por via das teses da III Internacional,no passa de derivao do marxismo sovitico. Portanto, parapodermos estudar nosso autor, teremos antes de chegar a ele,ou seja, percorrer, no possvel, o caminho do contexto intelec-tual e poltico que o gerou e do qual destoa por sua originalidade.Assim, nossa maneira de proceder ser ir do mais geral, o marxis-mo da Amrica Latina, para o particular, o marxismo brasileirode Caio Prado Jr.

    Dessa forma, a segunda parte do trabalho, que se intitularO contexto, tratar dos ambientes intelectuais e polticos emque Caio Prado foi ativo, identificando tambm os principais in-

    terlocutores com os quais se deparou ao longo de sua atividadeintelectual e poltica. Essa parte consistir de dois captulos: Exis-

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    te um pensamento marxista latino-americano?19 e A aventurabrasileira do marxista Caio Prado Jr.20.

    J a terceira parte do livro, dedicada mais diretamente aoestudo da obra de Caio Prado Jr. e denominada O texto, par-tir de um problema especfico, a questo central que o preocupaao longo de sua obra e atividade poltica: a relao entre Colniae Nao e, a partir dela, a transio entre essas duas situaes. Oque far com que essa parte se divida em trs captulos, intituladosrespectivamente: A Colnia, A transio entre Colnia e Na-o e A Nao.

    A terceira parte do trabalho no est, entretanto, desligada

    da segunda, em razo de o pensamento de Caio Prado, tanto notratamento da Colnia, como da transio e da Nao, estar for-temente marcado pela influncia marxista. Conseqentemente, otexto se vincula diretamente ao contexto, s sendo possvel en-tender o primeiro a partir do segundo.

    Resumindo nosso esforo, pode-se dizer que, atravs da com-parao de Caio Prado Jr. com seus contextos, procuraremos cha-mar a ateno para os traos originais presentes em seu texto.Dessa forma, pretendemos mostrar que teve sucesso em naciona-lizar o marxismo no Brasil.

    19 Esse captulo foi originalmente publicado em: Paulo Barsotti e LuizBernardo Perics (orgs.), Amrica Latina: Histria, Idias e Revoluo. SoPaulo: Xam, 1998.

    20 Esse captulo foi originalmente publicado na Revista de Sociologiae Poltica, n 8, 1997.

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    35O problema Caio Prado Jr.

    I

    TEXTO E CONTEXTOEM CAIO PRADO JR.

    No Brasil, talvez mais que em outro lugar qualquer (por-

    que o mesmo mal tambm existiu e ainda existe em outras par-tes), a teoria marxista da revoluo, na qual direta ou indireta-mente, deliberada ou inadvertidamente, se inspira todo pensa-mento brasileiro de esquerda, e que forneceu mesmo os linea-mentos gerais de todas as reformas econmicas fundamentaispropostas no Brasil, a teoria marxista da revoluo se elaborousob o signo de abstraes, isso , de conceitos formulados a priorie sem considerao adequada dos fatos; procurando-se posterior-mente, e somente assim o que o mais grave encaixar nes-ses conceitos a realidade concreta.

    (Caio Prado Jr.)

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    36 Texto e contexto em Caio Prado Jr.

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    37O problema Caio Prado Jr.

    1.O PROBLEMA CAIO PRADO JR.

    H duas atitudes principais em relao ao procedimento quese deve adotar quando se estuda a histria das idias. A primeira

    reivindica a autonomia de certas idias, j que elas teriam valoruniversal, tendo se convertido em clssicas. Assim, as questesque colocam continuariam a valer para alm das sociedades epocas em que foram geradas. A outra abordagem, em contras-te, considera que o que explica as idias o contexto mais amploem que foram produzidas. Portanto, seria s a partir do entendi-mento de certas condies especficas, sejam elas sociais, econ-micas, polticas ou culturais, que teriam originado certas preo-cupaes, que se poderia explicar as idias.1

    A primeira atitude, que enfatiza a importncia do texto, ten-de a ser a de uma certa histria da filosofia poltica, tal como

    aparece, por exemplo, na obra de Leo Strauss. O antigo profes-sor da Universidade de Chicago considera que todo conhecimen-to das coisas polticas implica em suposies sobre a natureza dascoisas polticas, o que significa suposies no apenas sobre a si-tuao poltica dada, mas a vida poltica ou a vida humana comotal.2 Conseqentemente, a grande preocupao da filosofia po-

    1 Por trs de cada uma dessas atitudes em relao histria das idiasencontram-se concepes rivais sobre a natureza humana e a razo. Enquantoest implcita na primeira uma viso das duas como imutveis, a segunda asconsidera como em constante transformao.

    2 Leo Strauss, Quest-ce que la Philosophie Politique,trad. OlivierSedyn. Paris: Presses Universitaires de France, 1992, p. 22.

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    ltica, independentemente de sociedade ou poca histrica, seriacom a questo do bom governo.

    A segunda abordagem, que prioriza a importncia do con-texto scio-histrico, , por sua vez, a da sociologia do conheci-mento, tal como aparece, por exemplo, nos livros de Karl Mann-heim.3 O socilogo hngaro chega a dizer que a sociologia doconhecimento busca compreender o pensamento no contexto con-creto de uma situao histrico-social, de onde s muito gradati-vamente emerge o pensamento individualmente diferenciado. As-sim, quem pensa no so os homens em geral, nem tampoucoindivduos isolados, mas os homens em certos grupos que tenham

    desenvolvido um estilo de pensamento particular em uma inter-minvel srie de respostas a certas situaes tpicas caractersti-cas de sua posio comum.4

    Uma hipottica avaliao da obra de Plato nos serve comoexemplo para ressaltar as diferenas entre as duas abordagens.Exagerando o ponto de vista dos que se identificam com a postu-ra da histria da filosofia poltica, se consideraria que as questescolocadas por Plato continuam a poder ser aplicadas ao mundode hoje, independentemente do fato de terem sido elaboradas naGrcia h mais de dois mil anos, j que captariam certas verda-des universais. Socilogos do conhecimento, por sua vez, prova-

    velmente acreditariam que o que Plato tinha para dizer talveztivesse alguma validade para outros membros da plis ateniensecomo ele, mas s quase por coincidncia isso ocorreria conosco,homens de hoje em dia, que vivemos em condies completamentediferentes das do filsofo.

    No caso da obra de Caio Prado Jr., seria possvel invocar oargumento em favor da adoo do primeiro tipo de abordagem

    3 bvio, porm, que nem Strauss nem Mannheim so os nicos re-presentantes dessas abordagens de histria intelectual. Apenas escolhemos ume outro devido a sua representatividade e influncia.

    4 Karl Mannheim, Ideologia e Utopia,trad. Srgio Magalhes Santei-ro. Rio de Janeiro: Zahar, 1972, p. 31.

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    de histria das idias, que prope a autonomia de certas obras,porque boa parte de seus livros so indiscutivelmente clssicos.5

    Tem esse carter particularmente sua obra historiogrfica, prin-cipalmente a dedicada ao estudo do perodo colonial. Assim, sepoderia dizer que, como muito do que Caio Prado revelou sobreo Brasil Colnia tem valor perene, no haveria por que perder-setempo estudando detalhes sobre os contextos, muitos deles j ex-tintos, em que escreveu seus livros, o que s teria sentido, se tan-to, como curiosidade. Muito mais proveitosa, conseqentemen-te, seria a anlise que se ocupasse diretamente dos textos, em es-pecial daquilo que est sujeito a controvrsias. No entanto, atra-

    vs desse procedimento, retirar-se-ia Caio Prado, ou ao menosalgumas de suas descobertas, verdades indiscutveis, do deba-te poltico-cultural.

    J a segunda abordagem, que explica o autor pelos contex-tos que o envolveram, pode levar reduo de Caio Prado aosambientes em que agiu. esta, inclusive, a maneira mais fcil deconsiderar sua obra. Caio poderia ser visto, dessa forma, comoum intelectual comunista, um membro da gerao de intelec-tuais de 30, um militante nacionalista, um traidor de classe, outudo isso combinado, mas no mais do que essas suas circunstn-cias. Provavelmente seria considerado sobretudo como um mar-

    xista brasileiro, o que, apesar do possvel reconhecimento que o principal dos nossos marxistas, faria com que fosse visto comoum marxista entre outros marxistas. O que esse enfoque esque-ceria, ou preferiria esquecer, porm, so as inmeras divergnciasque existiam entre Caio Prado e seus ambientes. Agir dessa ma-neira seria, alm do mais, particularmente grave porque preci-samente nessas divergncias que se situa boa parte da importn-cia de sua obra.

    De qualquer forma, nenhuma dessas abordagens nos serve.

    5 verdade que so clssicos no exatamente no sentido de Strauss,

    de verdades universais, mas num sentido mais limitado, j que revelam cer-tas caractersticas fundamentais da formao econmico-social brasileira.

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    At porque o que pretendemos fazer provavelmente no teria ser-ventia para elas.

    Se se considera que tudo est nos clssicos, que certasidias tm valor perene, ou como diz Strauss, que toda posturafilosfica implica em respostas s questes fundamentais, em res-postas que pretendem ter um valor ltimo, sendo verdades de umavez por todas,6 qual o sentido de estud-las historicamente?O mximo que se poder fazer uma leitura correta dos tex-tos, exegese que talvez lance alguma luz sobre o que o autor real-mente quis dizer.

    Por outro lado, se se encaram as idias como que dadas pelo

    ambiente em que apareceram, no h como fazer diferenciaoentre elas. Exagerando, j que haveria uma causalidade inequ-voca, em que o contexto gera as idias, todas as idias, fruto domesmo ambiente, seriam quase que iguais. caracterstica dessapostura a seguinte afirmao de Mannheim: somente num sen-tido muito limitado o indivduo cria por si mesmo o modo de falare de pensar que lhe atribumos. Ele fala a lngua de seu grupo:pensa do modo que seu grupo pensa.7 Conseqentemente, sefssemos aceitar a tese de Mannheim, no haveria grande moti-vo para estudar separadamente o pensamento de um indivduo,precisamente o que queremos fazer com Caio Prado Jr.

    Acreditamos, portanto, que ao mesmo tempo que s se podecompreender uma obra levando em conta o contexto scio-his-trico em que foi gerada, que existem certas obras excepcionaisque transcendem os meios em que foram produzidas. Dessa forma,essas obras, apesar de fazerem referncia a situaes particulares,so capazes de continuar a nos dizer coisas relevantes, mesmoquando no mais existem os ambientes em que apareceram.

    Tentaremos, assim, levar em conta neste trabalho tanto o tex-to de Caio Prado Jr. como seu contexto. Para tanto, buscaremos

    6

    Strauss, op. cit., p. 73.7 Mannheim, op. cit., pp. 30 e 31.

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    inspirao em Antonio Candido, que aponta para o fato de que ho-je sabemos que a integridade da obra no permite adotar nenhu-ma dessas vises dissociadas; e que s a podemos entender fun-dindo texto e contexto numa interpretao dialeticamente ntegra,em que tanto o velho ponto de vista que a explicava pelos fatoresexternos, quanto o outro, norteado pela convico de que a es-trutura virtualmente independente, se combinam como momen-tos necessrios do processo interpretativo. (...) Sabemos ainda, queo externo (no caso, o social,) importa, no como causa; nem comosignificado, mas como elemento que desempenha um certo papelna constituio da estrutura, tornando-se, portanto, interno.8

    Dito isto, para entendermos o texto de Caio Prado,partire-mos como ele, de fatos empricos isolados e abstratos e procura-remos ir progressivamente nos aproximando da totalidade con-creta, unidade do diverso, do qual estes fatos no passam de ex-presso. Nossa nica diferena em relao a Caio ser quanto aoobjeto: enquanto ele se eleva do abstrato ao concreto, para com-preender a experincia histrico-social brasileira, ns, ao tentar-mos fazer o mesmo, nos limitaremos a procurar entender seu pen-samento. Mesmo assim, temos plena conscincia de que, como ohistoriador paulista, estamos imersos nessa totalidade que oBrasil, parte, por sua vez, do capitalismo mundial.

    Em plano mais restrito, entretanto, pode-se considerar queo que faz de uma determinada obra uma totalidade, sua coernciainterna. a existncia ou no de coerncia interna na obra lite-rria que estabelece, como nota Lucien Goldmann, que todas aspassagens contrrias ou concord(em) ou no te(nham) absoluta-mente sentido algum. Portanto, o sentido de um elemento de-pende do conjunto coerente da obra inteira.9 A fora do pensa-

    8 Antonio Candido, Literatura e Sociedade. So Paulo:CompanhiaEditora Nacional, 1965, p. 4.

    9 Lucien Goldmann, Dialtica e Cultura,trad. Luiz Fernando Cardo-

    so. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p. 15. notvel como essas observaes de Goldmann a respeito da histria

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    mento de um grande autor por vezes tal, que, ele, em razo dacoerncia da obra, chega a fazer afirmaes que entram em con-tradio com a realidade. De qualquer forma, a partir do reco-nhecimento do que constitui a totalidade do pensamento de umdeterminado autor, pode-se entender como uma parte da obra seliga a outra, e ainda mais importante, como essa parte se relacio-na com a estrutura do conjunto do pensamento.

    Goldmann fornece um resumo til do que constitui a tota-lidade de uma obra: as respostas que um pensador d aos diferen-tes problemas com que depara no so independentes umas dasoutras e, mais ainda, nem mesmo so independentes da maneira

    pela qual ele encara as questes mais perifricas e subordinadasque inevitavelmente ele encontra em seu caminho. Entre as manei-ras de encarar as mais diferentes coisas, entre as respostas que o

    pensador d s questes mais afastadas, existe um vnculo que fazdo conjunto dessas respostas e dessas maneiras de ver uma tota-lidade, ou pelo contrrio, um amontoado ecltico de fragmentosesparsos.10 As grandes obras, portanto, exprimem, no nvel deuma coerncia de grande porte, atitudes globais do homem dian-te dos problemas fundamentais colocados pelas relaes inter-hu-manas e as relaes entre os homens e a natureza, atitudes glo-bais (ns as chamamos vises de mundo) que existem em nmero

    limitado.11O pensamento de Caio Prado, apesar de corresponder per-

    feitamente ao que Goldmann caracteriza como constituindo umatotalidade, no tem, entretanto, como preocupao que o norteiaa experincia humana em geral, mas a experincia de certos ho-

    do pensamento, coincidem com as de Caio Prado Jr. sobre a histria brasi-leira, em particular, com sua categoria de sentido da colonizao. O quetem uma explicao simples: ambos, em domnios diferentes, souberam bemutilizar a dialtica.

    10

    Goldmann, op. cit., p. 52.11Ibid., p. 94.

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    mens no Brasil. O que se explica at em razo da sua condiode brasileiro. Assim, enquantoo pensamento europeu sempretomouseus problemas como os problemas universais, o homemeuropeu como o homem sem adjetivos, aqueles que nasceram noBrasil e, de forma geral na Amrica Latina, nunca puderam tertamanha pretenso. Conseqentemente, se existir tal coisa comoum pensamento brasileiro e latino-americano, ele dever ter comogrande tema justamente sua acidentalidade, isto , o fato de per-tencer-se a um mundo, forjado pelo europeu, sem ser inteiramenteparte dele.12

    Isto , enquanto o pensamento europeu parte do abstrato,

    (o homem universal, que equivale ao europeu), sem ter de preo-cupar-se tanto com o concreto (as peculiaridades que tornam pos-svel a esse homem reivindicar-se como universal), o pensamentolatino-americano dever sempre ter como horizonte o concreto,entendido como as particularidades constitutivas de nossa expe-rincia. Mas nessa condio, talvez seja possvel reconhecer mes-mo uma certa universalidade, j que todos os homens, sejam elesfranceses, dominicanos ou chineses, so, na verdade, antes de tudo,singulares.

    Mesmo assim, o primeiro instrumento para reconstruir atotalidade do pensamento de um autor, seja ele europeu ou lati-

    no-americano, descobrir o tema ou os temas em torno dos quaissua obra se articula. O que no deixa de ser verdadeiro tambmpara uma tradio intelectual, que, como assinala Robert Nisbet,se organiza em torno de um ncleo de idias centrais graass quais ela se perpetua de gerao em gerao.13 Essas idiasnormalmente vem acompanhadas de seus opostos como noexemplo clssico da sociologia de Ferdinand Tonnies e suas ca-

    12 Ver: Leopoldo Zea, El Pensamiento Latino-Americano.Barcelona:Editorial Ariel, 1976.

    13 Robert Nisbet, La Tradition Sociologique,trad. Martin Azuelos.Paris: Presses Universitaires de France, 1984, p. 9.

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    tegorias de comunidade e sociedade que estabelecem paresantiticos.

    No caso do Brasil, a reflexo mais significativa sobre o pasdesde a independncia, gira, como nota Paulo Arantes, em tor-no do esforo, a um tempo de ilustrao e expresso, voltado paraa desobstruo das vias de passagem da Colnia para a Nao.14

    Dessa forma, o grande tema de Caio Prado Jr., a relao entreColnia e Nao, o mesmo da principal tradio intelectualbrasileira. Mas a partir desse problema, devido a sua posturamarxista, se diferencia de outros autores que no Brasil trataramda questo.

    Todos os autores dessa tradio, entretanto, procuraramatingir pblicos que se constituram em funo de determinadoscontextos. O pblico tem tamanha importncia para a obra, quese pode mesmo dizer que, em ltima instncia, um escritor s existequando tem algo para comunicar a leitores. No caso particulardaqueles que pensam a poltica, seus contextos so basicamenteintelectuais e polticos.

    James Tully define contexto ideolgico15 como o conjun-to de textos escritos ou usados no mesmo perodo, preocupadoscom os mesmos ou problemas similares e que compartilham umcerto nmero de convenes.16 , assim, o contexto intelectual

    que fornece a um autor seu vocabulrio e as questes bsicas comas quais pretende lidar. Deve-se, portanto, prestar ateno espe-cialmente aos lugares comuns lingsticos que unificam um certonmero de textos. Entre outros pontos, esses lugares comuns apa-

    14 Paulo Arantes, O Fio da Meada.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996,p. 93.

    15 Usamos o termo contexto intelectual em lugar de ideolgico, devi-do carga menos marcada do primeiro. No entanto, o sentido que tem parans contexto intelectual basicamente o mesmo de contexto ideolgico paraTully.

    16 James Tully. In: Quentin Skinner e James Tully, Meaning and Con-text: Quentin Skinner and his Critics. Oxford: Polity Press, 1988, p. 9.

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    recem na forma de um vocabulrio, certo nmero de princpios epressupostos compartilhados.

    O contexto poltico est preocupado, por sua vez, com osefeitos prticos de um determinado texto. Mesmo que o pensa-dor poltico no tenha controle sobre o que se far com o queescreveu, ele pretende geralmente influenciar a ao poltica. Namaior parte dos casos, essa a principal inteno, mesmo que noadmitida, tanto de quem escreve um panfleto, como do autor deum tratado poltico.

    Portanto, da confrontao de um autor com seus contextos possvel entender suas motivaes ao escrever um texto e, ain-

    da mais importante, avaliar sua originalidade. O que ocorre de-vido ao fato de que autores particularmente importantes so ca-pazes de transcender seus contextos; mesmo que mantenham aterminologia e as preocupaes de seu meio, subvertem-no, ques-tionando seus lugares comuns. Talvez se possa considerar umpensador como clssico mais por ir contra o senso comum dogrupo e perodo em que escreveu, o que pode contribuir para criarum novo senso comum, do que por captar o esprito de seu gru-po e poca. inclusive por Gramsci ser um clssico desse tipo,que Norberto Bobbio sugere que a primeira tarefa que deve co-locar-se uma investigao do pensamento gramsciano de pr em

    destaque e analisar seus traos originais e pessoais.17O mesmo vale para Caio Prado Jr. Pertence a um ambiente

    facilmente reconhecvel: a esquerda brasileira. inclusive esse meioque lhe fornece os temas que sente necessidade de confrontar como a questo nacional, a questo agrria e estabelece a ter-minologia que utiliza imperialismo, nacionalismo, revoluoetc. Mas, maneira de alguns clssicos particularmente impor-tantes, Caio vai alm de seus ambientes. Dessa forma, num livroesquerdista dos anos 60 com a familiar palavra revoluo em seu

    17 Norberto Bobbio, Gramsci y las Ciencias Sociales,trad. Jos Aric.Mexico D.F.: Ediciones Passado y Presente, 1972, p. 69.

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    ttulo,18A Revoluo Brasileira, demole o que chama de teoriaortodoxa da revoluo brasileira, ou seja, precisamente a teoriade seu meio.

    18 Mantega d como exemplos de livros brasileiros da dcada de ses-senta com a palavra revoluo em seu ttulo: Introduo Revoluo Brasi-leira, de Nelson Werneck Sodr, A Pr-Revoluo Brasileira, de Celso Fur-tado, O Caminho da Revoluo Brasileira, de Moniz Bandeira e Perspecti-

    vas da Revoluo Brasileira, de Marcos Peri.Ver: Mantega, A EconomiaPoltica Brasileira.Petrpolis: Polis/Vozes, 1984.

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    2.HISTRIA DAS IDIASE COMDIA IDEOLGICA NO BRASIL

    Quem se dedicar ao estudo de um autor brasileiro do passa-do, como queremos fazer com Caio Prado Jr., ter de enfrentar

    certos desafios especficos. Antes de tudo, o estudioso se ocuparde um campo de reflexo relativamente pouco explorado, a his-tria das idias do Brasil. De todas as indagaes que podem vir mente do interessado nesse tema, uma como que naturalmentese impe: qual o sentido de estudar historicamente as idiasbrasileiras? Se verdade que esse problema preocupa todo aque-le que se dedica histria das idias, a questo assume, numa si-tuao de capitalismo tardio e perifrico como a brasileira, no-vas implicaes que podem mesmo recoloc-la em outros termos.Assim, enquanto um francs ou um ingls sabem que, de manei-ra geral, as idias que brotam de suas sociedades correspondem

    s condies de seu meio, um brasileiro no pode ter tanta certe-za acerca da adequao entre idias e realidade em seu pas.

    Portanto, para ns, no limite, a questo no mais de saberqual o sentido de estudar a histria das idias, mas se h sentidoem tal empreendimento. Ou talvez seja melhor dizer que o empreen-dimento pode no mximo ter um sentido cmico, j que a corres-pondncia entre idias e realidade entre ns freqentemente todistante que ela acaba por assumir um carter quase ridculo.1

    1 Como nota Jean Hyppolite, analisando a filosofia de G.W.F. Hegel,tragdia e comdia no so apenas categorias estticas, elas traduzem as

    posies filosficas da conscincia. (...) A comdia a elevao do homemsobre todo destino, a tragdia ao contrrio, o reconhecimento do destino e

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    O problema do qual nos ocuparemos no , porm, exclu-sivo de brasileiros, mas de todos aqueles que vivem uma experin-cia de capitalismo tardio e perifrico. Dessa forma, j Marx, em1844, notava a monstruosa discrepncia entre as exigncias dopensamento alemo e as respostas da realidade alem.2

    O que sugere que, no fundo, nosso problema reflete o de-senvolvimento desigual e combinado que caracteriza o capitalis-mo. As idias, assim como as manufaturas, no so originalmen-te produzidas na periferia capitalista, o que obriga sua impor-tao. Mas ao mudarem de ares, as idias se transformam. Umbom exemplo disso o que ocorreu com o positivismo na Amri-

    a reconciliao com ele (Jean Hyppolite, Introduction la Philosophie delHistoire de Hegel. Paris: ditions du Seiul, 1983, p. 103).

    2 Karl Marx. Introduo crtica da Filosofia do Direito de Hegel.In: Manuscritos Econmicos e Filosficos,trad. Arthur Moro. Lisboa: Edi-es 70, pp. 87 e 88.

    Se esse um problema srio em pases como a Alemanha, que chega-ram tarde ao capitalismo, ainda mais grave em pases como o Brasil, que,alm disso, passaram por uma experincia colonial. Assim, diversas vanta-gens do atraso tendem a ser anuladas num quadro de inexorvel integraosubalterna ao centro capitalista, j que a liberdade de manobra aqui me-nor e impe, de maneira geral, respostas a dinamismos que de antemo no

    controlamos. Contribui tambm para isso os contextos histricos em que sedo o desenvolvimento capitalista nos dois pases. Enquanto na Alemanhaesse desenvolvimento, ocorrido a partir do ltimo quartel do sculo passa-do, encontra um quadro internacional relativamente desobstualizado, em que,apesar da presena preponderante da Inglaterra, diferentes potncias dispu-tam o esplio colonial, o brasileiro, transcorrido principalmente entre 1945-79, depara com a presena de um pas claramente hegemnico no mundo,ou ao menos, no mundo livre, os EUA. Isso ajuda a explicar o porqu docapitalismo alemo ter assumido uma perspectiva imperial, que contribuiupara a ecloso de duas guerras mundiais, ao passo que o brasileiro foi maistmido, se dando sombra e como quase concesso da potncia dominante.Ver: Jos Lus Fiori, Os Moedeiros Falsos. Petrpolis: Vozes, 1997 e WalquriaLeo Rego, Questes sobre a noo de via prussiana. In: Ricardo Antu-

    nes e Walquria Leo Rego, Lukcs: Um Galileu no Sculo XX. So Paulo:Boitempo, 1996.

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    ca Latina. Enquanto essa corrente poltica, no contexto europeuposterior Revoluo Francesa e Revoluo Industrial, tinhaclaramente um papel conservador, j que procurava dotar de or-dem a sociedade que nascia, a exemplo do que havia caracteriza-do a sociedade feudal, ela assumiu postura nitidamente reformistaao ser importada em pases americanos.

    Indo mais longe, pode-se dizer que, mesmo que se coloquea culpa pela inadequao em diferentes suspeitos as idias oua realidade , o problema subsiste. Ou seja, como no temos res-posta clara para a equao, na qual as idias teimam em no com-binar com a realidade, no adianta inverter seus termos. Pode-se,

    conseqentemente, considerar as idias como inautnticas ou arealidade como postia, mas enquanto no se avanar em relaoa uma ou a outra, procurando-se super-las, no haver soluopara a questo.

    Questo que, na verdade, a de nossos homens cultos. Ou,como colocou o fundador do populismo russo, Aleksandr Her-zen: o que os impressionou foi a completa contradio entre as

    palavras em que foram ensinados e as realidades que assumia avida sua volta. Seus professores, seus livros, suas universidadesfalavam uma lngua que era inteligvel para o corao e a mente.Seus pais e mes, seus parentes, e todos em torno deles falavam

    outras coisas com as quais nem mente nem corao concordavam,mas que estavam de acordo com os poderes estabelecidos e os in-teresses pecunirios. Em nenhum lugar esta contradio entreeducao e vida real assumiu tais propores como entre a no-breza da Rssia.3

    O problema, portanto, como mostra Herzen, que em so-ciedades como as nossas, os homens cultos so dos poucos quetm acesso s frmulas intelectuais provenientes dos centros

    3 Aleksandr Herzen, Recollections of Russian intelectuals: 1830s and

    1860s, trad. Leo Naviozov. In: George Gibian, The Portable Nineteenth-Century Russian Reader.Londres: Penguin Books, 1993, pp. 396 e 397.

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    civilizatrios. Como essas frmulas no correspondem s con-dies de vida de uma situao perifrica, cria-se um sentimentode desconforto.

    Mas como o prprio Herzen sugere, esse desconforto noocorre por acaso. No tanto um problema das idias, mas sobre-tudo da realidade. O que reflete a prpria situao dos homenscultos, que, como mostra Roberto Schwarz,4 mais do que um elo-gio so, entre ns, uma categoria social. Assim, essa categoria surgena Rssia da nobreza e se confunde com ela, enquanto no Brasilalgo de similar se d com ela e nossas oligarquias e burguesias.

    Muitas vezes, porm, mais do que simples derivao das

    classes dominantes, as intelectualidades perifricas so sua cons-cincia culpada. Culpa que reflete mesmo o papel de conscinciaque pretendem assumir nessas sociedades. Se como intelectuaistradicionais que, ao menos no incio so, gostam de se ver comopreocupados com o destino de toda a nao, no podem deixarde notar a discrepncia entre as condies de vida material e es-piritual das classes dominantes e o que na Rssia se chamava depovo escuro, as massas nativas. Acabam, assim, por constatarque as grandes maiorias das populaes de seus pases, muitasvezes sujeitas a uma forma ou outra de trabalho compulsrio, nopertencem, na verdade, vida nacional, sendo quase estrangei-

    ros em seus pases. O que foi particularmente o caso no Brasil,onde todo um povo foi transplantado contra sua vontade paracivilizar o pas.

    Este no pertencer representa, contudo, um bvio constran-gimento para a constituio de uma nao, j que, como ensinouo Abade Sieys h mais de duzentos anos, a nao precisamen-te seu povo, ou seja, o Terceiro Estado.

    verdade, porm, que aquele que for procurar no mercadodas idias um conceito para nao encontrar outros alm desse.

    4 Roberto Schwarz, Ao Vencedor as Batatas.So Paulo: Duas Cida-des, 1992.

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    Possivelmente, ao lado, ou at mesmo afastado, da noo impes-soal e racional da Revoluo Francesa, achar um significado, deorigem alem, que enfatiza os elementos culturais e possivelmen-te tnicos da nacionalidade.

    O que se explica, em grande parte, em razo de ser a naouma coisaem pases como os EUA e a Frana, onde ela criada apartir de e coincidindo com a organizao do Estado, e outra di-versa em pases como a Alemanha ou Israel, em que essa idiaprecede ao Estado. Assim, no primeiro caso, o nacionalismo poltico, enquanto no segundo principalmente cultural. Ou seja,enquanto na Frana e nos EUA, a nao uma realidade bastan-

    te palpvel, que nasce num momento preciso, a fundao do Es-tado, em outras situaes, como as da Alemanha e de Israel, elano algo com o qual nos defrontemos facilmente, o que faz comque se tenha de estabelec-la a partir de algumas referncias. J.S.McClelland, ao falar dos EUA, coloca bem o problema: a idiada americanidade est fundada num ato poltico e no na exis-tncia prvia de uma cultura nacional. (Pode ser mesmo argumen-tado que a cultura americana em geral tem sido estabelecida parase combinar nos, ou combinar com os, valores polticos originaisque no incio todos os verdadeiros americanos compartilhavam.)Por outro lado, quando os movimentos nacionalistas europeus

    exigiam a criao de seus governos, eles ainda tinham que deci-dir como seriam seus governos.5

    H, portanto, razes e implicaes distintas nessas concep-es acerca da nao. Enquanto a atitude francesa e norte-ame-ricana tem suas origens intelectuais no iluminismo, a segundareflete a reao romntica Revoluo Francesa, principalmentes invases napolenicas. O que faz com que a primeira concep-o da nao seja a de algo constitudo por um contrato, enquantoa segunda a v como fruto da herana deixada pelos antepassa-

    5 J.S. McClelland, A History of Western Political Thought.Londres:Routledge, 1996, p. 621.

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    52 Texto e contexto em Caio Prado Jr.

    dos. Conseqentemente, franceses e norte-americanos considera-riam os laos que unem os membros da nao como principalmen-te mecnicos, a nao sendo uma construo racional, enquantoalemes e israelenses acreditariam que esses laos so orgnicos,a nao refletindo algo que est alm da razo.

    Mas o sentido francs, de um corpo de associados que vi-vem sob uma lei comum e so representados pela mesma legisla-tura,6 ou seja, do conjunto de cidados com determinados di-reitos e obrigaes, convm melhor a pases culturalmente dbioscomo o Brasil. Com efeito, em casos como o nosso, o significadoalemo, devido ao seu ideal implcito de comunidade orgnica,

    pode mesmo dar origem a posturas excludentes e racistas. Mes-mo assim, se se considerar a nao a partir do sentido democr-tico da Revoluo Francesa, se ver que, ela , no limite, umaimpossibilidade em pases como o Brasil, j que a cidadania ne-les aparece como um quase privilgio de grupos reduzidos.

    De qualquer maneira, o divrcio em pases de capitalismotardio e perifrico entre classes dominantes e subalternas, d, mui-tas vezes, origem a outro divrcio no interior do primeiro grupo.Esse divrcio entre as classes dominantes e aqueles que deveriamser seus idelogos, os homens cultos, que no se sentem intei-ramente vontade em tal papel. Cria-se, assim, um grupo, ou me-

    lhor, a impresso da existncia de um grupo, na maior parte doscasos proveniente das classes dominantes, mas que se sente des-locado delas, algo como a intelligentsia russa.7 A prpria existncia

    6 Emmanuel Joseph Sieys, Quest-ce que le Tiers tat?. In: AlbertSoboul, 1789: LAn Un de la Libert. Paris: Messidor/ditions Sociales, 1988,p. 58.

    7 A palavra russa intelligentsia tem dois sentidos principais. De acor-do com uma definio mais ampla, se refere ao grupo de indivduos edu-cados, cultos, mas, segundo uma concepo mais subjetiva e normativa,diz respeito a um grupo particular, comprometido com a transformao da

    ordem social. Richard Pipes, contudo, considera a primeira definio exces-sivamente genrica, enquanto v a segunda como sendo por demais espec-

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    53Histria das idias e comdia ideolgica no Brasil

    desse grupo, como a histria russa demostrou, cria possibilida-des inusitadas para as idias, que podem mesmo tentar fazer comque a realidade se submeta a elas.8

    Por outro lado, o to comum sentimento de alheamento deboa parte das intelectualidades dos pases de capitalismo tardio eperifrico dificulta neles o estabelecimento de uma identidade na-cional, j que seria esse grupo que deveria criar os smbolos parase pensar a nao. Esse alheamento, na verdade, reflete mesmouma certa incapacidade das burguesias perifricas de cooptaremsuas intelectualidades, o que, no limite, tem implicaes sobre aprpria hegemonia burguesa nessas sociedades. Ou seja, em situa-

    es perifricas, a frgil direo intelectual e moral da burguesiamuitas vezes se reflete tambm numa identidade nacional precria.

    fica. O que faz com que procure criar uma definio que esteja a meio cami-nho entre as duas. Diz, assim, que uma intelligentsiaemerge sempre que huma discrepncia significativa entre aqueles q