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Tânia Magali Ferreira Furquim Aventuras instrutivas: Teresa Margarida da silva e Orta e o romance setecentista Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas. Orientadora: Profa. Dra. Márcia Abreu Campinas Universidade Estadual de Campinas Instituto de Estudos da Linguagem Departamento de Teoria Literária 2003

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Tânia Magali Ferreira Furquim

Aventuras instrutivas: Teresa Margarida da silva e

Orta e o romance setecentista

Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas. Orientadora: Profa. Dra. Márcia Abreu

Campinas Universidade Estadual de Campinas Instituto de Estudos da Linguagem Departamento de Teoria Literária

2003

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“Por conseguinte, leia meu filho!

Os sábios, que escreveram antes de nós,

são viajantes que nos precederam nas vias do

infortúnio e que nos estendem a mão e nos

convidam a nos unirmos a eles, quando tudo

nos abandona. Um bom livro é um bom

amigo!”

Bernardin de Saint Pierre, In: Paulo e Virginia, pg. 67.

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Ao meu marido, Neto, pela dedicação, e ao meu filho

querido, Nícolas, por ser minha fonte de inspiração.

Aos meus pais, Vanderlei e Maria Lúcia, por terem me

estimulado a continuar sempre em frente.

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Agradecimentos

Agradeço em primeiro lugar à professora Dra Márcia Abreu, por ter sido mais do

que uma orientadora, uma amiga que me incentivou, uma mestra que me ensinou tantas

coisas, que sugeriu leituras e orientou a produção desse texto.

Ao Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da

UNICAMP pela acolhida e aulas ministradas.

À CAPES, pela bolsa de mestrado e pelo incentivo à pesquisa.

Sou muitíssimo grata aos professores Paulo Franketti, Marisa Lajolo e Betânia

Amoroso pelas valiosas contribuições na elaboração da dissertação.

Aos funcionários da Pós-Graduação e da biblioteca do IEL pela atenção e ajuda

prestimosa.

Quero agradecer também aos amigos do Projeto Memória de Leitura, em especial às

amigas: Germana, Hebe, Cris, Valéria e Marina, pela convivência e troca de experiências.

Às amigas queridas: Geovânia, Carmem, Edilaine, Cristiane, Vanete e Graciléia,

pelo incentivo.

Ao meu marido pela ajuda com o computador e por ter me auxiliado em todas as horas.

Aos meus pais, pela incessante dedicação e por terem me ensinado a amar os livros.

Ao meu irmão, Robson, pela amizade e carinho.

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SUMÁRIO Introdução...............................................................................................................................1 Capítulo 1 A época de Teresa Margarida.............................................................................3

1.1. A vida conturbada de Teresa Margarida .............................................................3 1.2. Formação cultural da romancista ......................................................................13 1.3. Obras da romancista ..........................................................................................19

Capítulo 2 Raízes e diálogos ...............................................................................................27

2.1. Aventuras de Diófanes ......................................................................................27 2.2. A figura feminina .............................................................................................29

2.2.1. Incapacidade e fraqueza feminina x igualdade de sexos ...................29 2.2.2. O trabalho e o ócio ............................................................................. 36 2.2.3. A moderação e o recato na aparência .................................................39 2.2.4. O silêncio e a moderação das conversas..............................................49

2.3. A família – a representação da vida privada .....................................................53

2.3.1. O marido e o pai .................................................................................59 2.3.2. A esposa e a mãe ................................................................................70 2.3.3. Educação feminina............................................................................. 75 2.3.4. Educação dos filhos ............................................................................85 2.3.5 Os filhos ...............................................................................................95

Capítulo 3 Máximas e romances .......................................................................................100 Conclusão............................................................................................................................109 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..............................................................................110

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Introdução

Aventuras de Diófanes, publicado por Teresa Margarida da Silva e Orta em 1752, é

considerado o primeiro romance das Américas e o primeiro do gênero também na literatura

brasileira. Sua autora, uma paulista, mudou-se para Portugal ainda jovem e lá publicou seu

texto. O romance tornou-se um sucesso, tendo sido editado em 1752, 1777 e 1790,

recebendo três edições em menos de cinqüenta anos. Conquistou o público também no

Brasil para onde foi remetido com freqüência no final do século XVIII e início do XIX,

chegando a ser o décimo primeiro título de Belas Letras mais enviado para o Rio de

Janeiro.1

Há controvérsias se é este o primeiro romance brasileiro, porém não se pode negar

sua importância, enquanto representante do gênero. Além de ser um indicador do gosto do

público leitor dos setecentos, apresenta importantes informações com relação ao sistema

cultural luso-português e à evolução do romance. Todavia, até o presente momento,

permanece pouco estudado. As obras completas de Teresa Margarida – à exceção da

correspondência – foram publicadas há apenas dez anos.2

Seu romance comporta muitas análises e pesquisas diferenciadas por apresentar um

amplo leque de questões ainda inexploradas. Por isso foi necessário centrar esta dissertação

em um aspecto. Escolhemos o que mais nos encantou na leitura: a sua correspondência

com textos do período e seu diálogo com outros gêneros.

Dessa forma, procuramos descobrir no interior do romance e na sua comparação

com outros livros comportamentos e crenças comuns ao século XVIII. Essa busca conduziu

a uma breve análise do gênero romanesco no setecentos, resultado da confrontação de

Aventuras de Diófanes com outros romances.

No primeiro capítulo, apresentam-se informações biográficas de Teresa Margarida

da Silva e Orta, o nascimento no Brasil, o enriquecimento do pai, sua mudança para

Portugal, o casamento, as relações familiares, que como veremos foram extremamente

conturbadas e marcadas por diversos processos judiciais.

1 Ver, a respeito, a tese de Márcia Abreu. Caminhos da Leitura, Campinas, UNICAMP, 2002. (Tese de livre docência do Departamento de Teoria Literária) 2 Montez, Ceila. Obra Reunida. Teresa Margarida da Silva e Orta. Rio de Janeiro, Graphia, 1993.

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Será enfocada também sua formação intelectual, a de seu irmão ilustre, Matias

Aires, e de pessoas com as quais se relacionava, como Alexandre de Gusmão e frei Manuel

do Cenáculo. Nesse sentido, apresentaremos o contexto intelectual português em que

predominavam os ideais iluministas e o cientificismo.

Faz-se também uma síntese de sua produção, privilegiando a prosa ficcional: as

diversas edições de seu romance Aventuras de Diófanes e as modificações por que passou.

No segundo capítulo, apresentaremos o enredo do romance de Teresa Margarida,

analisando alguns temas que o norteiam. Já que a obra contém uma grande quantidade de

ensinamentos morais e levanta elementos para várias discussões, restringimos nossa

interpretação à discussão sobre a família e à representação feminina.

Também faremos uma comparação entre o romance Aventuras de Diófanes (1752),

de Teresa Margarida da Silva e Orta, e outros textos com os quais, de alguma forma,

dialoga: os romances Aventuras de Telêmaco (1699), de François Fénelon, O Feliz

Independente do Mundo e da Fortuna (1779), do padre Theodoro de Almeida, o livro de

máximas: O Casamento Perfeito (1630), de Diogo de Paiva Andrada; e os tratados

filosóficos Reflexões Sobre a Vaidade dos Homens (1752), de Matias Aires, O Verdadeiro

Método de Estudar (1746), de Luiz Antônio Verney, e A Educação das Moças (1687),

também de Fénelon.

No terceiro capítulo buscamos comparar o romance com esses textos, visando

observar se a autora prega valores comuns a textos contemporâneos a si, para verificar

como o romance de Teresa Margarida está inserido no contexto cultural europeu dos

setecentos.

Além disso, pretendemos verificar em que sentido Aventuras de Diófanes difere dos

outros dois textos romanescos: Aventuras de Telêmaco e O Feliz Independente do Mundo e

da Fortuna, que também são romances didáticos moralizantes.

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Capítulo 1

A época de Teresa Margarida

1.1. A vida conturbada de Teresa Margarida

Teresa Margarida da Silva e Orta nasceu na cidade de São Paulo, provavelmente

entre o final de 1711 e início de 1712. Era filha de José Ramos da Silva, um português que

fez fortuna no Brasil, tornou-se Cavalheiro da Ordem Militar de Cristo e Provedor da Casa

da Moeda de Lisboa, e de uma paulista, Catarina Orta. Teresa Margarida mudou-se para

Portugal ainda criança, aproximadamente aos cincos anos. Vejamos abaixo um trecho do

testamento de seu pai:

Declaro que casei na cidade de S.Paulo com a Senhora Dona Catharina de Horta, minha muito amada e prezada e honrada mulher, o qual casamento fiz por carta de ametade3 de que não houve escritura mais que o costume do Reino: deste matrimônio tivemos outros filhos dos quais ao presente são vivos só três a saber: Mathias, que é o mais velho; Dona Catharina que está freira em Odivelas e Dona Theresa que está casada com o Senhor Pedro Jansen Moller de Prae.4

Segundo Tristão de Athayde,5 essa família era um dos fenômenos sociais mais

expressivos do Brasil do período. José Ramos da Silva, pai de Teresa Margarida, viera para

o Brasil, em 1695. Em 1704, casou-se com D.Catarina Orta de família ilustre paulistana.

Nessa época, já era um dos homens mais ricos de São Paulo, proprietário de imóveis na

cidade e de terras auríferas e diamantinas em Minas Gerais. Foi um dos que fizeram fortuna

atuando como fornecedor dos “bandeirantes”, dos paulistas.6

A história dos bandeirantes, suas expedições e a descoberta das minas de ouro estão

intimamente ligadas aos paulistas e à vila de Piratininga (antiga denominação da cidade de

São Paulo). Fernão Dias Pais, Borba Gato, Garcia Rodrigues Pais foram alguns dos

3 Forma mais comum de casamento no reino em que o marido e a esposa ficavam meeiros dos seus bens. Entre os nobres eram comuns pactos nupciais e a escritura de dote e arras. 4Testamento de José Ramos da Silva feito em 09 de abril de 1743. Apud Ennes, Ernesto. Dois Paulistas Insignes, Cia Editora Nacional, São Paulo, 1944, p. 422. 5 Athayde, Tristão de. Teresa Margarida da Silva e Orta, “Precursora do Romance Brasileiro”. In: Holanda, Aurélio Buarque de (coord.). O Romance Brasileiro (De 1752 a 1930), Rio de Janeiro, Edições O Cruzeiro, 1952, p. 13. 6 Idem.

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paulistas que participaram da busca por prata, pedras preciosas e ouro. Em 1698, Garcia

Rodrigues abriu um novo caminho que ligava o Rio de Janeiro à região das Minas. Borba

Gato descobriu ouro no rio das Velhas por volta de 1700, próximo a atual cidade de

Sabará. 7

Iniciou-se a era do ouro no Brasil. Houve um grande movimento migratório para a

região das Minas Gerais (inicialmente chamada de Minas dos Cataguazes) entre 1698 e

1770.8 O tráfico de escravos e o comércio cresceram devido às novas necessidades: braços

para trabalhar nas minas, ferramentas, animais de carga, alimentos, etc.

Mineração em Minas Gerais (modo de minerar para se retirar diamantes). Aquarela anexa ao ofício de João da Rocha Dantas e Mendonça (1775). Reproduzido de História da Expansão Portuguesa no Mundo, Lisboa, Ed. Ática, 1940, p. 257.

Segundo Ernesto Ennes, José Ramos da Silva teve sucesso graças ao seu tino

comercial, ao invés de juntar-se à grande maioria dos brasileiros e portugueses que

imigraram para a região das Minas Gerais, resolveu dedicar-se ao comércio e edificar casas

em São Paulo. O comércio com a região das minas era rendoso, pois os comerciantes

cobravam caro pelo abastecimento dessa nova população. Eram comuns os abusos, os

7 Souza, Laura de Mello e Bicalho, Maria Fernanda Baptista. 1680-1720 O Império deste Mundo, Coleção Virando Séculos, São Paulo, Cia das Letras, 2000, p. 23 a 25. 8 Ibidem, p. 26.

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preços altos por víveres e equipamentos. Foi esse comércio que originou a fortuna da

família de Teresa Margarida.

José Ramos da Silva e toda sua família mudaram-se para Portugal por volta de

1717. Aos 16 anos, ainda na adolescência, Teresa Margarida casou-se contra a vontade da

família, por esse motivo foi deserdada pelo pai. Ela casou-se com Pedro Jasen Moller9

judicialmente amparada, contra a vontade paterna em 20 de Janeiro de 1728. O sistema

legal português admitia o matrimônio contra o pátrio poder em algumas situações

específicas. 10

Moda feminina em 1700 em São Paulo. Desenho de Belmonte. Extraído de No Tempo dos Bandeirantes, de Belmonte, São Paulo, Departamento de Cultura, 1939, p. 183. Provavelmente, as mulheres da família de Teresa Margarida vestiam-se dessa forma, quando ainda viviam em São Paulo, como era costume.

Em Portugal, somente se apelando para o poder régio haveria a possibilidade legal

de se conseguir uma licença para se casar sem o consentimento paterno, fato que aconteceu

9 Filho do desembargador Henrique Moler, figura influente na sociedade da época. 10 Dom Felipe instituiu a lei de 23 de Novembro de 1616 que dizia o seguinte: “E consideradas as rasões, que se me apontarão: Hei por bem, e mando, que todas as pessoas, de qualquer estado, e condição, que sejão, que estiverem bens da minha Corôa, ou se quiserem habilitar para os ter, em caso que possão em algum tempo vir a herdar: sejão obrigados, antes de casar, a haver licença minha, para o que me apresentarão consentimento de seus pais: e não os tendo, de seus Curadores (se elles não forem interessados em os dar): a qual licença se pedirá ao Dezembargo do Paço, aonde em caso que os pais ou Curadores lhes neguem seus consentimentos, conhecerão das razões, que para isso tem, e me farão consulta sobre ellas com o mais, que em rasão de conveniência, igualdade se offerecer: E que as pessoas, que se casarem, sem, estes requisitos todos, fiquem incapazes de em algum tempo poderem haver bens da Coroa e privados dos que já tiverem (...)”. Ordenações Filipinas, Volume III, Livro IV, Additamentos, nota (1), Fundação Calouste Gulbenkian, Coimbra, 1985, p. 1052.

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com Teresa Margarida que, mesmo sendo menor de idade (a maioridade segundo a lei era

somente alcançada aos 25 anos), legalmente ganhou o direito de se casar.

Segundo Maria Beatriz Nizza da Silva, para que o casamento legal se efetivasse se

deveria respeitar o princípio de igualdade,11 vigente no antigo regime. A escolha do cônjuge

deveria respeitar a condição de igualdade quanto à idade, à condição de fortuna e à saúde.

Entretanto, a que prevalecia era a condição social, ou seja, era imprescindível que os noivos

pertencessem a mesma classe social. A escolha dos maridos privilegiava mais as condições

de nascimento, a posição social do pretendente, do que as suas possessões ou sua idade.

Aliás, constantemente os maridos eram mais velhos do que as esposas.

De acordo com sua hierarquia social, os jovens podiam apelar diretamente ao rei ou

aos seus magistrados, e se recebessem a permissão para o matrimônio, podiam ir logo falar

com um pároco e fazer os preparativos para a cerimônia do casamento, mesmo sem o

consentimento dos pais ou tutores.12 Assim, os nobres que administravam bens da Coroa,

isto é, os que tinham um relacionamento mais estreito com o poder régio, recorriam

diretamente ao rei, enquanto os demais nobres à Mesa do Desembargo do Paço e as outras

pessoas, ou seja, as das outras classes (os comerciantes e a plebe, por exemplo) tinham o

direito de apelar aos corregedores ou provedores de comarca.

Embora as leis e o poder régio reiterassem a obediência que os filhos devem aos

pais, eram sabidos os excessos cometidos pelo pátrio poder por aqueles que muitas vezes

não consentiam nos matrimônios dos filhos sem razão. Para o governo português, o

prejuízo era imenso, pois não haveria um aumento de população. Essa interferência do

Estado na vida privada é uma das características do Antigo Regime em que o rei se

colocava claramente na posição de pai de seus vassalos, portanto seria sua obrigação cuidar

do bem estar da população. Por isso interferiam diretamente na relação entre pais e filhos.

11 “Título XXII: Do que casa com mulher virgem, ou viúva que stiver em poder de pai, mãi, avô, ou senhor, sem sua vontade. Defendemos, que nenhum homem case com alguma mulher virgem, ou viúva honesta, que não passar de vinte e cinco anos, que stê em poder de seu pai, ou mãi, ou avô, vivendo com elles em sua caza, ou stando em poder de outra alguma pessoa, com que viver, ou a em caza tiver, sem consentimento de cada huma das sobreditas pessoas. (...) Porém, se for pessoa, que notoriamente seja conhecido, que ella casou melhor com elle, do que a seu pai, mãi, ou pessoa, em cujo poder stava, poderá casar, não incorrerá elle, nem as testemunhas na dita pena.” Ordenações Filipinas, Volume III, Livro V, Titulo XXII, Coimbra, Fundação Calouste Gulbenkian, 1985, p. 1172. 12 Silva, Maria Beatriz Nizza da. Cultura no Brasil Colônia , Petrópolis, Editora Vozes, 1981, p. 27.

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Aliás, era comum a interferência até mesmo nas questões conjugais. Algumas vezes eram

os próprios vassalos que procuravam o rei para decidir questões particulares.

A necessidade de aumentar a população, principalmente nas colônias, era uma

preocupação constante do governo português, afinal terra despovoada, nessa época, era alvo

de nações interessadas em conseguir novos territórios e riquezas, principalmente na

América. As invasões de estrangeiros no território brasileiro durante o século XVII e XVIII

eram comuns. Os mais famosos foram os holandeses e os franceses.13

Frota de Duguay-Trouin na Baia de Guanabara. Coleção da Livraria Cosmos. Extraída de História Geral do Brasil, de Francisco de Varnhagen, B.Horizonte,

Itatiaia/EDUSP, v.2, 1981, p. 228. José Ramos da Silva teria entrado num dos barcos da frota francesa e descoberto seu plano de invasão.

É evidente que a preocupação do governo era muito maior com os nobres, uma vez

que muitos pais enclausuravam suas filhas em mosteiros para não deixá-las casar com

quem não queriam, ou ainda para não ter que dividir os bens da família com as filhas. Ao

contrário, o rei e sua administração preocupavam-se imensamente com a questão do

povoamento: faziam-se necessários homens e mulheres, de preferência brancos, casando e

procriando para o progresso da nação. Daí a preocupação com o enclausuramento das

jovens e com os casamentos.

13 Das invasões francesas no início do século XVIII, há duas famosas que nos interessam, pois têm relação com a família de Teresa Margarida. A primeira é a de Jean François Duclerc, corsário francês, que atraído pelo ouro das minas que escoava pelo porto do Rio de Janeiro, atacou a cidade em 19 de Setembro de 1710 com uma esquadra composta por 6 navios. O francês não obteve sucesso, morrendo na prisão logo depois. Em 1711, Duguay-Trouin, conseguiu a façanha de conquistar a cidade do Rio de Janeiro com uma esquadra de 17 navios. Esta invasão nos interessa, pois José Ramos da Silva foi aclamado herói devido a sua atuação contra os franceses em Ilha Grande. Segundo Ernesto Ennes, José Ramos teria entrado nos barcos franceses disfarçado e descoberto seu plano de aportar numa ilha deserta para operar o desembarque das tropas.

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Na família de Teresa Margarida parece que este foi o procedimento adotado

também. Assim, que chegaram em Portugal, José Ramos da Silva enclausurou suas duas

filhas no Convento de Trinas, objetivando sua educação. A irmã de Teresa, Catarina,

tornou-se freira em Odivelas, vivia confortavelmente, na verdade, até usufruía certo luxo de

acordo com os dados apresentados no testamento do pai.

Declaro que minha filha Donna Catherina, freira em Odivellas o fez primeiro no Convento das Trinas, onde gastei com ella passante de quinze mil Cruzados, e de Odivellas vinte, entrando neste o que importaram as Bullas de sua Transmugação e dez mil cruzados que Custaram as Cazas em que ella mora a Prata e trastes de caza que lho poz os quaes trinta e cinco mil cruzados que com ella gastei me quiz ella compençar com me renunciar a Sua Legitima, como consta por huma Escriptura que me fez antes de Professar na Notta do Tabellião Manoel de Oliveira, para cuja Legitima e mais auttos conçernetes a ella proçederam as formalidades como consta por Sentenças e Documentos que se acham no Livro do Patriarchado.14

Não se pode esquecer que para se ter uma filha freira os pais gastavam grandes

somas, já que havia a necessidade de apresentar um dote religioso, que equivalia ao dote de

casamento, para que as filhas da elite pudessem tomar o hábito de freira15. Um filho ou uma

filha que seguisse a vida eclesiástica trazia prestígio social, mas também muitas despesas

com educação e mudanças de um convento para outro, como é o caso de Catarina. Já o

destino de Teresa Margarida foi diferente, marcado por sua obstinação em sair do convento

e se casar com Pedro Jansen Moller.

Teresa Margarida não foi a única a recorrer à luta judicial com a família, também

não foi a última a sacrificar os laços familiares em prol de seu casamento ou a lutar pelos

seus direitos legais. Segundo Ernesto Ennes, a romancista é fruto de sua época. Com o novo

reinado, a mulher portuguesa modificou-se; velhos hábitos e costumes cotidianos foram

deixados de lado. Embora a maioria dos casamentos continuasse a se realizar de acordo

com a vontade dos pais, segundo o modelo vigente, iniciaram-se, nessa época, movimentos

de resistência. Tanto no Reino quanto no Brasil ocorreram vários casos de filhos que se

rebelaram contra a vontade paterna. O caso de Teresa Margarida seria apenas um dentre

outros que a história manteve guardado nos documentos legais do século XVIII.

14 Testamento de José Ramos da Silva . Apud Ennes, Ernesto. Op.cit., p. 422. 15 Silva, Maria Beatriz Nizza da. Vida Privada e Cotidiano no Brasil, Lisboa, Editora Referência/Estampa, 1993, p. 64.

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As brigas judiciais continuaram ao longo de sua vida. Logo após seu casamento, o

irmão tentou anular seu dote.16 Todavia ela ganhou na Justiça a contenda. Após a morte do

pai, em 1743, iniciaram-se desavenças quanto ao testamento paterno. Por isso afastou-se de

seu irmão ilustre: Matias Aires, autor de Reflexões sobre a Vaidade dos Homens e figura de

destaque no contexto social e cultural da época.

Teresa Margarida reatou sua amizade com o irmão após a morte de seu marido.

Moraram juntos em São Francisco de Borja até sua morte, em 1763. Após seu falecimento

tornou-se tutora de seu sobrinho, Manuel Ignácio Ramos da Silva Eça, que ficou famoso

por publicar em 1770 a obra póstuma do pai: Problema de Arquitetura Civil, a saber:

Porque os edifícios antigos têm mais duração e resistem mais ao tremor de terra que os

modernos? 17

Gravura que representa Matias Aires. Extraído de Reflexões sobre a Vaidade dos Homens, São Paulo, Martins, 1966. Nota-se a intenção de ressaltar a intelectualidade na representação através do uso dos símbolos: a estante de livros, a pena, a lâmpada iluminando o ambiente ao fundo e o caráter de efemeridade da existência e da vaidade (simbolizado pela caveira) em contrapartida à durabilidade do saber representado pela sabedoria das letras.

Mas os problemas com a Justiça continuaram na vida de Teresa Margarida mesmo

após a morte do irmão. Em 1764, ela e seu sobrinho Manuel Ignácio, entraram na Justiça

pelos bens de Matias Aires.

16 O dote era um tipo de antecipação da “legítima”, da parte da herança que caberia à filha no caso da morte dos pais. Como o sistema português pregava a igualdade entre os herdeiros, os pais transformaram os testamentos num “ajuste de contas”, conhecido como colação. Dessa forma, justificavam seus gastos com cada herdeiro e após a morte dos pais, atribuía-se a cada um o que ainda lhes era de direito. Por isso, o cálculo do dote da filha normalmente respeitava o valor que os pais calculavam ser a sua parte nos bens. No caso de Teresa Margarida, o pai e o irmão alegavam que ela já teria recebido sua parte nos bens, não tendo direito a mais nada. 17 Ennes, Ernesto. Dois Paulistas Insignes – José Ramos da Silva e Matias Aires Ramos da Silva de Eça, Op.cit., p. 145/146.

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Dom José por graça de Ds. Rey de Portugal &a Faço saber a vôs Dez.or Fran.co X.er da S.a q’ Manoel Ign.o Ramos da S.a e Eça me reprezentou por Sua p.am com assistencia de seu Tutor q’por falecim.to de seu Pay Mathias Ramos se apoderara seu Irmão Joseph Ayres a titullo de Tutor delle supp.e dos bens do dito meu Pay, e q’entrara a destruillos com tal excesso que tanto elle supp.e como sua Tia D.Thereza Marg.da de Orta requererão sequestro nos ditos bens e com effeito por Decreto de 28 de Novr.o de 1764 fora Eu servido nomearvos Juiz Administrador da d.a herança (...).18

Após ter conseguido o seqüestro dos bens dos irmãos, Teresa Margarida iniciou

uma nova contenda contra os sobrinhos,19 contestou a legitimidade do testamento do irmão

e a paternidade dos sobrinhos, para poder ficar de posse dos bens. Todavia, ela perdeu a

questão, o testamento foi validado e os bens divididos entre os dois herdeiros de Matias

Aires.

A relação entre Teresa Margarida e sua família foi sempre atribulada, repleta de

brigas judiciais pela posse de bens. Entretanto, de sua vida doméstica, da relação com o

marido e os filhos pouco se sabe. Ceila Montez infere que ela teve apenas dois filhos,

Henrique e José, através de dados apresentados no testamento de seu pai.

Não se pode esquecer, entretanto, que ela ainda era jovem quando o pai morreu e

fez seu testamento. Teresa e Pedro teriam tido pelo menos nove filhos. O próprio Ernesto

Ennes, estudioso da história da família de Teresa Margarida, entra em contradição quanto

ao número exato de filhos do casal.

Nos Nobiliarios que tenho das Famílias deste Reino se acha a de Jansen, que sendo Estrangeiro se estabeleceo ha perto de hum Seculo nesta cidade, e a de Ramos que he portuguesa e tem o seu solar na Commarca da cidade do Porto na freguezia de Sam Miguel de Beire em huma Quinta, e Casa que ainda hoje conserva o nome de Paço, e a tivera por Honra os Ascendentes dos Fidalgos deste apelido, e pelos titullos de ambos consta que Henrique Jansen Moller, José Jansen Moller, Joaquim Jansen Moller, Manoel Jansen Moller, Pedro Jansen Moller, Antônio Jansen Moller, Alexandre Jansen Moller, Ayres Xavier Jansen Moller e Agostinho Jansen Moller são todos irmãos.

Filhos legitimos de Pedro Jansen Moller Van Praet morador que foi desta cidade, Fidalgo de geração, e Cavalleiro da Ordem de Christo, e de sua mulher Dona Thereza Margarida da Silva e Orta, de cuja Família falaremos sucessivamente.20

18 Consulta da Mesa da Consciência e Ordem sôbre a petição de Manuel Inácio Ramos da Silva e Eça, na qual alega que por falecimento de seu pai, Matias Aires, se apoderara seu irmão José Aires dos bens do dito seu pai e que entrara a destrui-los com tal excesso que tanto ele como sua Tia, D.Tereza Margarida da Silva e Orta, requereram sequestro dos ditos bens (...). - Apud Ennes, Ernesto. Op.cit. Documento n. 94, p. 470/471. 19 Matias Aires teve dois filhos: José Aires Ramos da Silva e Eça e Manuel Ignácio Ramos da Silva e Eça. 20 Genealogia dos Jansens, Hortas e Ramos organizada em 1757 por José Freire Monterroio Mascarenhas, em Lisboa, em 5 de julho de 1791. Apud. Ennes, Ernesto. Op.cit., p. 478.

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Em 1770, quando já era viúva e avó, foi encarcerada no Mosteiro de Ferreira de

Aves, por ordem do Marquês de Pombal. Seu filho mais novo, Agostinho Jansen Moller e

Pamplona de 22 anos, apaixonara-se por uma jovem de família rica e influente: Teresa

Melo. Para ajudar o filho, Teresa Margarida escreveu uma carta ao rei e ao conde de Oeiras

(depois Marquês de Pombal) dizendo que a jovem estava grávida, por isso era necessário

realizar logo o casamento.

Agostinho almejava o consentimento da família para realizar o matrimônio, que o

tutor da jovem não aprovava. Contudo, a mentira foi descoberta e os jovens receberam

punições severas: Agostinho foi degredado para a África, Teresa Melo, confinada no

convento de Cós 21 e Teresa Margarida, encarcerada no convento de Ferreira Aves.

Em 1777, após a queda de Pombal, D.Maria I revogou a pena de Teresa Melo.

Também Agostinho foi libertado, voltando para Portugal. Em 1780, eles finalmente se

casaram.

Agostinho e Teresa Melo foram punidos com severidade, pois havia interesses

econômicos envolvidos na questão. Todavia não foram os únicos, também Teresa

Margarida acabou sendo punida, afinal mentiu para o rei e o Marquês de Pombal sobre a

gravidez da jovem. Sua pena foi permanecer encarcerada por aproximadamente sete anos.

Tanto no reino como na colônia, o enclausuramento era uma medida comum para o “mau

comportamento” feminino.

Como não havia penitenciárias femininas que pudessem resguardar a honra e a

integridade física das mulheres que cometiam algum tipo de crime ou simplesmente não se

comportavam como ditavam as “boas regras” sociais ou a vontade de seus maridos ou pais

(tutores ou curadores), a reclusão era sempre uma boa solução.

Muitos eram os motivos que levavam os homens a enclausurarem suas mulheres

nos conventos, desde adultério, mau comportamento, até a necessidade de viajar e deixá-las

O próprio Ernesto Ennes diz que Teresa Margarida teve doze filhos em seu artigo: Uma Poetisa Brasileira Infeliz, In: Separata dos Anais das Bibliotecas e Arquivos, Lisboa, 1946. 21 Havia muitos interesses envolvidos. Teresa Melo e seu irmão, Estevão Soares de Melo tinham como tutor um parente do Marquês de Pombal: Henrique de Melo de Sousa e Lacerda que almejava tomar posse dos bens da família. Para isso, conseguiu por intermédio de seu ilustre parente que Estevão e Teresa Melo fossem deserdados, perdendo sua posição e bens. Em 1772, Estevão foi mandado para Angola juntamente com Agostinho e Teresa Melo trancafiada num convento.

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em segurança. Mas se esse era o principal castigo imposto às mulheres por sua má conduta

na vida privada, segundo a visão de seus parentes, o poder público também apoiava tais

medidas e constantemente fazia uso deles, para punir crimes cometidos por mulheres,

como, por exemplo, o adultério ou mesmo como aconteceu com Teresa Margarida, a sua

cumplicidade na mentira do filho.

Esse tipo de prisão servia ao mesmo tempo ao intento das famílias e do governo,

porque eram enviadas para o convento não apenas as mulheres que contrariavam seus

maridos, como também as que contrariavam a determinação régia22, como foi o caso de

Teresa Margarida.

Teresa Margarida foi libertada do cárcere somente em 1777 por intervenção de

D.Maria I. Ainda no convento de Ferreira Aves escreveu poemas e uma Novena de São

Bento, que atestam seu sofrimento por estar enclausurada.

Justiça e compaixão ao mesmo tempo Desta prisão vos pedem meus clamores; Justiça solicita a inocência Procura compaixão a dor mais forte. Teresa Margarida Silva e Orta Vos suplica mandeis a Casa volte: Mostrará, que a impostura, e não o crime A inocente pôs em tais rigores.

Teresa Margarida nessa posição de suplicante, humilhada, apela em seu poema para

a “Justiça” e a “Clemência”. Posiciona-se como a “injustiçada”, por isso apela à

compaixão, sua “dor” é tanto física, de estar enclausurada, quanto moral, de se ver

caluniada. Por fim, ela suplica para voltar para “Casa”, para a sua família. Como esse

poema foi dedicado à rainha, o pedido é evidente: suplica por sua liberdade. Agindo dessa

forma, a rainha estaria declarando sua inocência, conseqüentemente o rei teria sido iludido.

Não há nenhuma informação sobre Teresa Margarida após a saída do cárcere, ou

sobre seus últimos dias de vida. Segundo Ernesto Ennes, ela teria falecido em 1793.23

22 Ribeiro, Arilda Inês Miranda. A Educação da Mulher no Brasil-Colônia, São Paulo, Editora Arte e Ciência, 1997, p. 98. 23 Ennes, Ernesto. Uma Poetisa Brasileira Infeliz, Op.cit., p.27.

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1.2. Formação cultural da romancista

De onde teria vindo a cultura e a habilidade com as letras de Teresa Margarida?

Alguns afirmam que teria provindo da erudição do irmão, pois Matias Aires estudou em

Coimbra e permaneceu também longo tempo estudando na França. Lá, diplomou-se em

Direito (Sorbone 1728-1733), entrou em contato com o cientificismo, estudou ciências

naturais e matemática, e aprofundou os conhecimentos dos textos greco-romanos.

Em Paris, teve professores famosos: Godin, Grasse e Phourmond24. Outros

atribuem-nas ao ambiente português em que havia um vasto movimento literário, nesse

período, influenciado principalmente pela França e Inglaterra. Academias, discussões,

panfletos, periódicos e livros teriam ajudado a formar sua intelectualidade.25

É preciso frisar que Teresa Margarida foi uma mulher instruída, afinal recebeu

educação formal. Em Portugal, estudou no Convento das Trinas. É óbvio que o contato com

o irmão e com outros intelectuais, como Alexandre de Gusmão, Frei Manuel do Cenáculo e

Furtado de Mendonça26, pode ter ajudado a desenvolver o gosto pelas ciências naturais,

pela matemática, pela astronomia e política.

Contudo, o fato de ter escrito um romance e possuir conhecimentos de mitologia

grega já são elementos suficientes para atestar a sua formação e cultura, numa época em

que a maioria das mulheres não tinha acesso a uma educação formal. Além disso, sua

posição social e econômica privilegiada facilitava o acesso e a aquisição de material escrito,

livros, periódicos etc.

Para entendermos um pouco melhor sua inclinação para as ciências e a política,

analisemos seu grupo de relações. Matias Aires (1705-1770), seu irmão ilustre, estudou no

24 Louis Godin (1704-1760) astrônomo e matemático francês era membro da Academia de Ciências. Participou em 1734 da expedição de Charles-Marie de la Condamine juntamente com Pierre Bouguer (1698-1758), o objetivo da expedição francesa era confirmar as teorias de Newton. Publicou livros científicos e uma história da Academia de Ciências. Segundo Tristão de Athayde, Godin e Grasse foram dois famosos naturalistas da época, os quais ensinaram a Matias Aires matemática, física e química. Phourmond foi um famoso poliglota que sabia vinte língua orientais e outras ocidentais, teria ensinado hebraico ao irmão de Teresa Margarida. Athayde, Tristão de. In: Introdução - Reflexões sobre a Vaidade dos Homens, São Paulo, Martins, 1966, p.09-20. 25 Martins, Wilson. História da Inteligência Brasileira, Vol I (1550/1794), 4 ed., São Paulo, T.A.Queiroz, 1992, p.368/369. 26 Teresa Margarida teria mantido correspondência com essas importantes figuras da vida pública portuguesa. Tal correspondência parece ter sido levantada por Ernesto Ennes, mas nunca foi publicada.

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colégio de Santo Antão,27 colégio jesuíta, que se localizava em Lisboa, famoso na época

pelas aulas de Astronomia, Geometria, Aritmética; chegou a abrigar o Observatório

Astronômico do Colégio de Santo Antão. O colégio era reconhecido pela qualidade de seus

professores, estrangeiros como Capassi e Carbone28, e o padre oratoriano Theodoro de

Almeida29, autor de O Feliz Independente do Mundo e da Fortuna (1779).

Matias Aires é reconhecido como um dos grandes humanistas do século XVIII,

comparado a Montaigne e La Rochefoucauld. Também é considerado um dos que abriram

caminho aos estudos e ao cientificismo em Portugal. Escreveu Lettres Bohemiennes (1759);

Problema de Arquitetura Civil (1770) e Reflexões Sobre a Vaidade dos Homens ( 1752),

que teve reedições em 1761, 1778, 1786 e 1921.

Esse culto à ciência foi trazido a Portugal por Matias Aires e por ele comunicado à sua irmã. Completamente embebido de cartesianismo, e mais do que isso, penetrado pelo naturalismo científico que o século XVII legara ao século XVIII, Matias Aires ia ser, em Portugal, o patriarca do cientificismo.30

Frei Manuel do Cenáculo (1724-1814) também foi figura de destaque na sociedade

portuguesa. Estudou na Universidade de Coimbra, onde se formou doutor em Teologia, foi

presidente da Real Mesa Censória, Bispo de Beja e Arcebispo de Évora. Em 1750, viajou

para Roma tomando contato com uma vertente católica do iluminismo (centrado na

harmonia entre Razão e Fé)31. De ideais iluministas, foi co-autor na escrita dos principais

textos da reforma pombalina da Universidade de Coimbra e autor de várias obras

eclesiásticas e filosóficas32.

27 O prédio onde se localizava o colégio de Santo Antão foi doado após o terremoto de 1755 para a Confraria da Misericórdia, lá se instalou o Hospital de Todos-os-Santos, hoje Hospital de São José. 28 Capassi e Carboni eram padres italianos. Chegaram em Portugal em 1722. Carbone trabalhou ativamente na criação do observatório do colégio de Santo Antão, o qual foi financiado por D. João VI que mandou trazer os melhores equipamentos de toda Europa para seu funcionamento. Capassi foi enviado ao Brasil em 1729 para reformar as cartas geográficas. Para saber mais ler: Sousa, Caetano de. História Genealógica, Lisboa, 1741, Tomo VIII. 29 Padre Theodoro de Almeida era padre oratoriano. Foi professor no colégio de Santo Antão. É considerado ao lado de Luís Antonio Verney uma das figuras mais importantes do iluminismo português. Principais obras: Filosofia Experimental (1757); Recreação Filosófica ( 10 volumes – 1751-1800); Cartas Físico-Matemáticas (1874); O Feliz Independente do Mundo e da Fortuna ( 3 tomos – 1779); Meditações dos Atributos Divinos (4 volumes – 1796); Cartas Espirituais ( 1804). 30 Athayde, Tristão de. Teresa Margarida da Silva e Orta, Precursora do Romance Brasileiro. In: Montez, Ceila. Op.cit.p. 215. 31 Calafate, Pedro. http://www.instituto-camoes.pt/cvc/filosofia/ilu6.html (consultado em 15/07/2002) 32 Dentre sua extensa obra, apresentamos alguns títulos: Conclusiones Philosophicas... (1747); Conclusiones Lógico...(1748); Conclusiones Philosophicas Critico-Rationalis... (1751); Instrução Pastoral... (1786); Cuidados Literarios (1791); Memórias Historicas... (1794).

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Frei Manuel do Cenáculo Vilas Boas. Quadro anônimo,

óleo sobre tela, Lisboa.33

Furtado de Mendonça (1700-1769), irmão do Marquês de Pombal, foi governador

do Estado do Grão-Pará e do Maranhão (1751-1759), fixando residência em Belém do Pará,

consolidou o poder português na região norte. Foi secretário de Estado, da Marinha e de

Negócios Ultramarinos. Sua produção intelectual está ligada principalmente às reformas

administrativas, econômicas e militares que empreendeu em Portugal e no Brasil,

documentos preservados em sua correspondência pessoal e oficial.

Teto do Palácio de Oeiras, residência de Pombal. O quadro Concórdia Fratum apresenta o Marquês de Pombal ladeado por seus dois irmãos, Paulo Antônio de Carvalho e Mendonça e Francisco Xavier de Mendonça Furtado. Atribuído a Joana do Salitre (1770-1775). Segundo Ivan Teixeira, o próprio conde de Oeiras, Sebastião José, mandou pintar esta alegoria política no teto de sua residência. A pintura mostra a íntima relação entre os irmãos, as mãos dadas representando sua concórdia, numa relação física e espiritual entre eles, sob o olhar atento da divindade da Concórdia, filha de Júpiter e Têmis.

Teixeira, Ivan. In: Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica, p. 448.

33 http://www.cncdp.pt/djoaovi/catalogo/espacoxii.html (consultado em 10/07/2002).

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Alexandre de Gusmão (1695-1753) estadista luso-brasileiro, exerceu funções

diplomática em Paris e Roma. Em 1730, tornou-se secretário privado do Rei D.João V.

Como membro do Conselho Ultramarino, executou sua maior obra: o Tratado de Madri

(1750) 34. Publicou Tratado dos limites das Conquistas (1750); Representação Dirigida a

el-rei D.João V; Panorama (publicado em 1840); Coleção de Vários Escritos inéditos

políticos e literários de Alexandre de Gusmão (publicado em 1841). Deixou também

muitas cartas.

Alexandre de Gusmão.35

As relações de Teresa Margarida com essas figuras de destaque, tanto socialmente

quanto intelectualmente, visto a atuação deles na vida política e sua produção intelectual,

atestam sua erudição e sua formação cultural ilustrada: todos são homens influentes, alguns

exerceram funções importantes dentro do governo português e da política pombalina.

Segundo Tristão de Athayde, sua erudição conduziu-a a posição de destaque no

círculo cultural português; sua importância foi tanta que ele chegou a afirmar que “os dois

irmãos eram duas expressões excepcionais da cultura portuguesa do seu tempo: Matias

Aires, o maior filósofo luso-brasileiro do século XVIII; Teresa Margarida, a maior

romancista”. Assim, ambos teriam marcado a transição da cultura de seu povo de uma fase

a outra. 36 Ou seja, tanto os textos filosóficos de Matias Aires, como o romance de Teresa

Margarida, eram a expressão de um novo estado de espírito em Portugal: o início do

liberalismo no país. Juntamente com Alexandre de Gusmão e outros brasileiros radicados

34 O Tratado de Madri acabou com o Tratado de Tordesilhas e aumentou a área territorial brasileira, dividindo a América do Sul entre Portugal e Espanha. Alexandre de Gusmão baseou-se nos princípios do “uti possidetis” e legalizou a ocupação do território brasileiro, criando fronteiras naturais. 35 www.instituto-camoes.pt/bases/descbrasil/agusmao.htm (consultado em 10/07/2002) 36 Athayde, Tristão de. Op.cit., p. 03 e 04.

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em Portugal, Teresa Margarida fazia parte desse grupo ligado às idéias iluministas, alguns

deles eram conhecidos como “estrangeirados”.

Segundo Ivan Teixeira, o próprio Marquês de Pombal37 teria sido um estrangeirado:

embora fosse português, também ele teve uma formação “afrancesada” que lhe permitia ter

uma visão mais ampla de Portugal, analisando sua situação, comparando-a com a dos

demais paises da Europa. Pombal também percebia seu isolamento e atraso, por isso

visava, como os demais estrangeirados, a ilustração do país, a transformação cultural e

social, o bem-estar coletivo.38

Para alcançar seus objetivos tomou uma série de atitudes e medidas, algumas delas

até violentas e autoritárias: expulsou os jesuítas, exilou, prendeu e aniquilou todos os que se

opuseram a ele. Com o pretexto de castigar os envolvidos no atentado contra D.José I 39

prendeu mais de mil pessoas.40

37 Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782) foi diplomata em Londres (1738-1744) e em Viena (1745-1749). Ascendeu no governo no reinado de D.José I de quem recebeu os títulos de Conde de Oeiras (1759) e de Marquês de Pombal (1769). Foi nomeado pelo rei Secretário dos Negócios Estrangeiros e da Guerra e após o terremoto de 1755, comandou a Secretaria dos Negócios do Reino, colocando nos demais cargos pessoas de suas relações e confiança. Permaneceu no poder até a morte de D.José, em 1777. 38 Segundo Ivan Teixeira, estrangeirar-se, nesse período, significava conhecer Portugal de fora para poder avaliar os efeitos do isolamento, assim os estrangeirados eram aqueles que tendo vivido e estudado fora do reino, comparavam-no com as demais nações cultas da Europa, criticando seu atraso, propondo inovações. 39 O atentado contra D.José I ocorreu em 3 de setembro de 1758. Segundo o livro O Processo dos Távora (Lisboa, 1921), que apresenta uma cópia do processo de 27 de abril de 1767, a família do Conde de Távora foi detida, os fidalgos foram para prisões do Estado e as senhoras e crianças foram confinadas em mosteiros. A condenação e execução dos réus ocorreu em 1759, sendo executadas 11 pessoas: o Marquês de Távora, D.Leonor de Távora, o Conde de Atouguia e outros familiares. 40 Teixeira, Ivan. Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica, São Paulo, EDUSP, 1999, p.37.

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Execução dos Távora (1759). Ao total foram executadas 11 pessoas, entre eles a Marquesa de Távora, em destaque. Reproduzido do Processo dos Távora, Lisboa, 1921, p. 192/193 e 64/65. Percebe-se na representação que diante das questões políticas da época nem mulheres foram poupadas da morte violenta por execução em praça pública. Além disso, nota-se que havia mulheres influentes e cultas que exerciam papéis de destaque não somente na política, mas no cenário cultural da época.

Segundo Ernesto Ennes, Teresa Margarida teria sido além de uma mulher muitíssimo culta, muito bem relacionada, mantendo em seu círculo de amizades pessoas influentes e intelectuais da corte portuguesa, fora os já citados, apresenta ainda: D. Manuel (1697-1766) 41, o Conde de Tarouca42 e Joaquim Jansen.

E, na verdade, Tereza Margarida freqüentou o Paço, privou e manteve durante a sua longa e atribulada vida relações, conhecimento e amizades com alguns dos vultos mais ilustres e representativos do tempo como Francisco Xavier de Mendonça Furtado e Conde de Oeiras, de quem recebeu até a incumbência de redigir um dos muitos libelos contra os Padres da Companhia, que supomos ser a famosa “Relação abreviata...”, e muitos outros, de entre os quais alguns foram padrinhos dos filhos, como o Infante D.Manuel, irmão de El-Rei D.João V, Conde de Tarouca, Joaquim Jansen, Inquisidor do Santo Ofício, e o grande Alexandre de Gusmão, de quem guardamos cartas preciosíssimas dirigidas ao marido e outras por ela escritas a d. Frei Manuel de Cenáculo, que a seu tempo publicaremos, que atestam a alta consideração em que era tida e o meio cultíssimo em que vivia e lhe era familiar.43

41 D. Manuel era o irmão mais novo de D.João V. Foi embaixador na Inglaterra em 1707. Em 715, sumiu da Corte, deixando uma carta para seu irmão explicando-lhe que iria ajudar seu primo na guerra da Hungria. Após o final da guerra, peregrinou por toda a Europa, levando uma vida dispendiosa e boemia. Participou de negociações diplomáticas na Áustria entre 1725-26. Segundo Barbosa Machado, em Biblioteca Lusitana, Matias Aires teria ido se encontrar com ele na Corte da Espanha em 1728. 42 O conde de Tarouca tornou-se embaixador na Inglaterra em 1707 e também participou das negociações em Viena (1725-26) entre Portugal e Espanha para a fixação de limites na colônia de Sacramento, no sul do país. 43 Ennes, Ernesto. Op.cit., p.82.

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Para se avaliar melhor o envolvimento dela com esses personagens ilustres

portugueses e sua participação no panorama cultural da época, precisaríamos ter acesso à

essa correspondência, o que não foi possível já que demandaria uma busca em bibliotecas

portuguesas e em especial mais informações que tivessem sido deixadas por Ernesto Ennes.

1.3. Obras da romancista

Em 1752, quando Teresa Margarida tinha aproximadamente 40 anos, publicou,

com o pseudônimo de Dorotéia Engrassásia Tavareda Dalmira, seu primeiro e único

romance: Máximas de Virtude e Formosura, pela Tipografia de Miguel Manescal da Costa.

Esta obra foi considerada o mais antigo romance escrito por um autor brasileiro.44

Primeira edição de Máximas de Virtude e Formosura (1752). Extraído de Bibliografia Brasileira, Rubens Borba de Moraes,

p. 635.

Em 1777, ano em que Teresa Margarida foi libertada do cárcere, publicou-se a sua

segunda edição pela Régia Oficina Tipográfica, que manteve o pseudônimo de Dorotéia

Engrássia Tavareda Dalmira e adotou o nome, com o qual o romance ficou conhecido, de

Aventuras de Diófanes.

Em 1790, saiu a terceira edição do romance com o título de Aventuras de Diófanes,

Imitando o Sapientíssimo Fénelon na sua Viagem de Telêmaco, com o pseudônimo de

Dorotéia Engrássia Tavareda Dalmira, porém sua autoria foi atribuída pelo editor a

44 Bloem, Rui. O Primeiro Romance Brasileiro – Retificação de um erro da História Literária do Brasil. In: Montez, Ceila. Op.cit., p. 221/222.

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Alexandre de Gusmão, secretário de D.João V. É necessário salientar que Alexandre de

Gusmão já havia falecido há 37 anos e que Teresa Margarida ainda estava viva, entretanto

não fez qualquer tentativa de elucidar a confusão.

Alguns acham que a atitude de atribuir a autoria do romance a Alexandre de

Gusmão seria uma “estratégia de propaganda” 45 do editor, enquanto outros acreditam que

foi uma forma de despistar as autoridades para que a autora não sofresse novas

retaliações46.

Edição de 1977 em que aparece a referência ao livro Aventuras de Telêmaco de Fénelon. Extraído de Bibliografia Brasileira, Rubens Borba de Moraes, p. 636.

Na edição de 1818, o romance é atribuído somente a “Uma Senhora Portuguesa” e

passa a se intitular História de Diófanes, Climinéia e Hemirena, Príncipes de Tebas.

Entretanto, esta edição apresenta-se mutilada, pois estão presentes apenas os dois primeiros

capítulos da primeira edição. Como as edições anteriores levantaram a discussão da autoria

do romance, parece que nesta se resolveu instaurar por completo o mistério, atribuindo-se

sua autoria simplesmente a uma “senhora portuguesa”.

45 Wilson Martins defende a tese de que atribuir o romance a Alexandre de Gusmão teria motivos comerciais. In: História da Inteligência Brasileira, Vol I, 4 ed. ,T.A.Queiroz, São Paulo, 1992, p.368. 46 Segundo Wilson Martins, um dos que acreditam nessa possibilidade é Jaime Cortesão que a apresenta em seu livro: Alexandre de Gusmão e o tratado de Madri. In: Martins, Wilson. Op.cit., p. 365.

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Diogo Barbosa Machado em seu livro Biblioteca Lusitana (1759) foi o primeiro a

afirmar que Teresa Margarida era a autora do romance. Rui Bloem fez um estudo crítico

sobre a autoria do romance e também confirmou ser Teresa Margarida da Silva e Orta sua

autora. Entre seus argumentos estão principalmente dois: o fato de o próprio Barbosa

Machado ser contemporâneo dos envolvidos e ser extremamente criterioso com as

informações; e o nome da suposta autora: Dorotéia Engrássia Tavareda Dalmira, ser um

perfeito anagrama de Dona Teresa Margarida da Silva e Orta.

Edição de 1790 em que aparece como verdadeiro autor Alexandre de Gusmão. In: Bibliografia Brasileira, Rubens B. de Moraes, p.637.

A constatação de que Teresa Margarida era de fato a autora gerou controvérsias, afinal ela não era portuguesa de nascimento, já que nasceu em São Paulo, mas viveu a maior parte de sua vida em Portugal. Como classificar sua obra então: como literatura brasileira ou portuguesa? Não se deve esquecer que nessa época não se fazia diferenciação de nacionalidade dos que nasciam no reino ou na colônia, legalmente todos eram cidadãos portugueses, o que havia era uma distinção entre os portugueses do reino e os ultramarinos. A solução poderia ser classificá-la como literatura colonial brasileira, ou luso-brasileira.

No Brasil, o romance só foi publicado em 1945 com o título de Aventuras de

Diófanes, como autora aparecia o nome de Teresa Margarida da Silva e Orta.47

Do período de cárcere (1770-1777), restaram apenas três textos: uma novena a São

Bento e dois poemas (um invocando a proteção divina, outro pedindo a rainha, D.Maria I

sua liberdade) que permaneceram inéditos até a publicação por Ceila Montez de sua obra

reunida em 1993.

47 Esta edição contém também dois trabalhos de Rui Bloem: um estudo biográfico de Teresa Margarida e outro crítico sobre a autoria do romance.

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Segundo Ernesto Ennes e Tristão de Athayde, Teresa Margarida também teria

escrito a Relação Abreviata48 cujo tema são os erros cometidos pelos jesuítas. Todavia não

existem evidências reais para essa afirmação, somente suspeitas de Ernesto Ennes. Segundo

Ivan Teixeira, esta obra teria sido escrita com a supervisão direta do Marquês de Pombal,

tendo sido inclusive editada por ele simultaneamente em diversas línguas e distribuída pela

Europa.49

, Relação Abreviata (1757). Reproduzido de Ivan Teixeira Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica, São Paulo, FAPESP/EDUSP, 1999, p. 61.

Há também uma vasta correspondência da autora com pessoas ilustres, já citadas

neste capítulo, porém, como já dissemos, essas cartas estariam localizadas em diversas

bibliotecas de Portugal tendo sido encontradas por Ernesto Ennes, mas continuam inéditas.

O romance de Teresa Margarida fez um sucesso tão grande que teve pelo menos

quatro edições entre o final do século XVIII e início do XIX. Esse sucesso não se restringiu

apenas a Portugal, este romance também figurava entre os mais requisitados nas listas de

pedidos dos brasileiros à censura, segundo Márcia Abreu.

48 Esta obra foi editada provavelmente em 1757. Segundo Tristão de Athayde esse texto foi atribuído erroneamente a Salvador Furtado de Mendonça, irmão do Marquês de Pombal e governador do Pará. Foi traduzido para quatro línguas e espalhado por toda a Europa, em mais de 20.000 exemplares, o que era um número assombroso para a época. Entretanto, segundo ele, não teria sobrado nenhum exemplar para se saber mais sobre seu conteúdo. Também Ernesto Ennes afirmou ser Teresa Margarida a autora desse texto. 49 Ivan Teixeira localizou exemplares dessa obra em português e francês, e analisou além da relação de Pombal com esse “documento”, sua influência em outros textos, inclusive no Uraguay de Basílio da Gama. Teixeira, Ivan. Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica, São Paulo, EDUSP, 1999, p. 60, 61 e 62.

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Segundo Ceila Montez, nesse romance a autora pôs em prática suas idéias, sendo a

obra marcada pela influência do Iluminismo francês; da filosofia racionalista de Descartes;

do liberalismo de Locke e de conceitos apreendidos em Aventures de Télémaque, de

Fénelon.

Fénélon, Arcebispo de Cambraia de Joseph Vivien (1657-1734), Pinacoteca de Munique.50

François de Salignac de la Mothe-Fénelon (1651-1715)51 publicou vários textos,

dentre eles destacaremos os mais conhecidos: Diálogos de eloqüência (1681); Tratado da

educação das filhas (1687), escrito para as oito filhas do duque de Beauvilliers; Explicação

das máximas dos santos (1697); Diálogo dos mortos (escrito em 1692 e publicado em

1712), escrito para os estudos dos príncipes; Aventuras de Telêmaco (escrito em 1694 e

publicado em 1699), também escrito para os príncipes; O exame de consciência de um rei

(publicado em 1734).

Aventuras de Telêmaco inicia-se com um passeio de Calipso, quando a deusa

encontra destroços de um navio naufragado e avista dois sobreviventes: o jovem Telêmaco,

filho de Ulisses, e Mentor, seu mestre e acompanhante de viagem. Eles chegam à ilha, logo

após a partida de Ulisses. A partir daí, o jovem conta à deusa, em flash back, sua

empreitada: viajaram até Pilos e Esparta para saber do paradeiro de seu pai; encontraram

50 www.gallery.euroweb.hu/art/v/vivien/fénelon.jpg (consultado em 10/07/2002) 51 Fénelon estudou Belas Letras e Filosofia, foi ordenado em Saint-Sulpice. Reconhecido por sua eloqüência, nomearam-no diretor de uma instituição para reeducar jovens protestantes convertidos ao catolicismo. Em 1689, foi nomeado pelo rei, Luís XIV, preceptor de seus filhos: o duque de Borgonha e o duque de Berry. Devido a sua situação privilegiada recebeu vários títulos e honras: entrou para a Academia Francesa, tornou-se arcebispo de Cambraia, etc. Devido a questões políticas, perdeu a benevolência do rei, por isso foi exilado da corte, privado de seus títulos e pensão. Faleceu em 1715 em Cambraia.

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Menelau de quem foram hóspedes até continuarem sua busca; atravessaram mares e países

(Sicília, Egito, Chipre), depois naufragaram, chegando à ilha de Calipso. 52

Telêmaco acompanhado de Minerva, que tomou a forma de Mentor, chegam a

Ilha de Calipso. Extraído de Aventuras de Telêmaco, Versalhes, 1824.53 Nota-se na gravura a oposição entre o jovem Telêmaco à frente com sua

jovialidade e alegria, compartilhada pela deusa e suas companheiras, e Mentor, logo atrás do jovem, como seu guardião, reservado e quieto, apenas a observar a cena, como se fosse mero espectador e não participante, uma sombra a seguir o jovem.

Encerra-se, então, o flash back. A partir daí, os leitores acompanham Telêmaco e

Mentor em suas aventuras, à medida que elas acontecem. O jovem e seu protetor fogem da

Ilha de Calipso lançando-se ao mar de onde são resgatados por um barco. Chegam no porto

de Salento, onde encontram Idomeneo, antigo companheiro de Ulisses. Mentor permanece

na cidade auxiliando o monarca, enquanto Telêmaco junta-se ao exército grego

(comandado por Nestor, Filoctetes e Falantes) para lutar contra os Danaos.

52 Fénelon parte da viagem de Telêmaco até Pilos, relatada na Odisséia, canto IV, verso 619, e constrói seu enredo. A jornada do jovem é paralela a do pai, em muitos momentos eles quase se encontram. Ao longo da narrativa retomam-se também fatos da Ilíada e da Eneida. 53 www.fh-augsburg.de/.../17siecle/Fenelon (consultado em 15/07/2002)

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Entre uma batalha e outra, o jovem desce aos infernos e chega até os Campos

Elísios para procurar seu pai. Como não o encontra, retorna para o campo de batalha, para

o combate final do qual sai vencedor absoluto. Depois de tantas peripécias, Telêmaco e

Mentor resolvem novamente rumar para casa. Perto da Ítaca, Mentor revela ser Minerva,

faz-se conhecer como sua protetora e o manda atracar. O jovem vai à casa de Eumenes

onde reencontra seu pai, terminando a narrativa.

O romance de Fénelon foi muito lido não apenas na França, como no resto da

Europa, inclusive no Brasil e em Portugal.54 Sua influência não se restringiu ao romance de

Teresa Margarida, também o padre Theodoro de Almeida tomou-o como base para criar

O Feliz Independente do Mundo e da Fortuna. Tomei por modelo o Grande Arcebispo de Cambray no seu

Telêmaco, e outras Obras, desse gênero, em que com a suavidade do néctar encantador da poezia, se dão as máximas mais salutiferas para os costumes.55

Pd. Theodoro de Almeida. Extraído de História de Portugal Ilustrada, Lisboa, Bertrand, 1932, p. 301. O retrato é uma metáfora de sua condição: homem letrado e culto, daí sua representação com a pena.

Em O Feliz Independente do Mundo e da Fortuna narram-se as aventuras de

Vladisláo, rei da Polônia no século XIII, cuja fama alastrou-se pela Europa por ter

colocado no trono seu primo Lesko. Embora fosse o herdeiro legítimo do trono polonês,

abdicou do poder em favor de seu parente para viver tranqüilamente no campo, estudando

sua filosofia e o Evangelho. Passou então a viver solitário, como um eremita, e adotou o

nome de Misseno. Um dia, passeava pelo campo, quando encontrou o conde de Moravia e

54 Segundo Márcia Abreu, Aventuras de Telêmaco foi o texto de Belas Letras mais enviado para o Rio de Janeiro no final do século XVIII e início do XIX, totalizando 38 pedidos de envio a Real Mesa Censória. Para saber mais ver tese de Márcia Abreu. Caminhos da Leitura, Campinas, UNICAMP, 2002. (Tese de livre docência do Departamento de Teoria Literária) 55 Almeida, Theodoro de. O Feliz Independente do Mundo e da Fortuna. Lisboa, Régia Oficina Tipográfica, 1779, Tomo I, p. XV.

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sua meia-irmã, Sofia, viúva de Nicoláo Canabé. Resolveu ensinar-lhes suas máximas de

como viver realmente feliz. Entretanto, o conde foi enviado para as cruzadas e Misseno

resolveu acompanhá-lo para domar-lhe as paixões, aconselhá-lo.

O Feliz Independente do Mundo e da Fortuna ou A Arte de Viver Contente de Pe. Theodoro de Almeida, 1799. Extraído de História da Literatura Portuguesa Ilustrada, Lisboa, Bertrand, 1932, p.301.

Embarcam para o Oriente onde permanecem por cerca de onze meses. Ao longo da

viagem, o conde separou-se de Misseno, pois seu barco perdeu-se no nevoeiro.

Reencontraram-se em Constantinopla, depois ajudaram o Sultão de Icônio na guerra na

Armênia Menor.

Ao longo da narrativa, o conde de Moravia mente, engana, apaixona-se inúmeras

vezes, chega até a tramar a morte de Misseno. Por fim, eles se separam definitivamente e o

ancião retorna para a Polônia onde assume o compromisso de aconselhar o primo para o

bem estar da nação. Porém, nega-se a continuar na corte polonesa, indo morar novamente

no campo. Algum tempo depois recebe a notícia de que o conde da Moravia tinha

assassinado um homem e se matado.

Nesta dissertação, procuraremos mostrar o diálogo mantido por Teresa Margarida

com Fénelon, e com outros autores, como Matias Aires, Theodoro de Almeida e Luís

Antonio Verney, no conceito de educação e na moral que permeiam a obra. Quanto às

demais influências citadas pela autora, não se pode dizer que seja uma relação direta, na

realidade, parecem muito mais ideais e conhecimentos compartilhados por muitos

intelectuais da Europa e que também tiveram sua repercussão nos portugueses, como

Matias Aires e Theodoro de Almeida.

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Capítulo 2

Raízes e diálogos

2.1 Aventuras de Diófanes

Antes de apresentar o enredo do romance, é necessário que expliquemos que há no

desenrolar da história uma série de mudanças de nomes, pois as personagens principais - a

família real de Tebas e o príncipe de Delos - trocam de identidade ao longo da narrativa.

Para melhor entender essas mudanças, veja o quadro abaixo:

Posição social

Momento inicial

Verdadeira identidade Identidade assumida

na narrativa

Nome adotado

Rei de Tebas Diófanes velho leproso Antionor

Rainha de Tebas Climinéia acompanhante de Belino Delmetra

Princesa de Tebas Hemirena um jovem viajante Belino

Príncipe de Delos Arnesto um jovem viajante naufrago Albênio

O romance começa com a viagem da família real de Tebas – Diófanes, o rei e

Climinéia, a rainha, acompanhados dos filhos - para Delos a fim de celebrar as bodas da

princesa Hemirena com o príncipe Arnesto de Delos. Entretanto, o barco é capturado pelo

povo de Argos que mata o jovem príncipe Almeno e vende Diófanes, Climinéia e

Hemirena como escravos.

Após três anos de terrível escravidão em que Hemirena teve que trabalhar no campo

e nos serviços domésticos, sofrendo maus tratos da família a qual fora entregue, a princesa

é vendida para Beraniza, princesa de Atenas, que se afeiçoa a ela. Hemirena permanece

incógnita em Atenas por aproximadamente quatro anos, porém quando Beraniza falece, a

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jovem é assediada pelo príncipe Ibério, por isso foge vestida de homem e assume a

identidade de Belino a fim de procurar por sua família.

Em seu trajeto, passa por Corinto e Argos, onde encontra Climinéia, que adotou o

nome de Delmetra, vivendo numa gruta com as feras. Embora não se reconheçam, vão

juntas morar numa aldeia de pastores, permanecendo ali por aproximadamente quatro anos,

período durante o qual viveram harmoniosamente no campo, Belino pastoreando e

Delmetra cuidando dos doentes e ensinando suas máximas para os pastores. Contudo

Belino desperta a paixão em uma pastora o que os obriga a deixar o lugar.

Reiniciam sua jornada, passam por Esparta onde Belino é recrutado para a guerra e

levado à força. Delmetra permanece na cidade como preceptora de dois meninos a espera

do rapaz. Resolve ir visitá-lo em Micenas e é informada de sua morte. Desolada segue para

Corinto, onde reencontra Diófanes, que sob o nome de Antionor, aparece como um velho

leproso. Ela não o reconhece, e ele, embora descubra a verdade enquanto dialogam, prefere

não se identificar. São ambos presos acusados de espionagem.

Belino reaparece e arranca Delmetra da prisão, enquanto Diófanes é levado pelos

guardas. Delmetra conversa com um dos guardas e descobre que Antionor é na verdade

Diófanes. Diante do seu desespero, Belino se revela à mãe. Continuam sua viagem para

Tebas de barco, todavia naufragam e se separam. Belino resolve procurar Delmetra com um

pequeno barco, em sua busca salva num penedo um jovem chamado Albênio, que na

verdade é Arnesto, príncipe de Delos. Após dezessete dias de procura, Belino e Albênio

encontram Delmetra presa numa ilhota.

Albênio separa-se deles, Belino e Delmetra continuam sua viagem para Tebas,

encontram-se com Antionor no meio da estrada. Finalmente os três revelam-se, contam

suas peripécias e juntos retomam seu caminho. Logo à frente encontram Albênio que se

revela também, vão todos para Tebas, onde a população festeja a volta dos monarcas e o

casamento de Hemirena e Arnesto, os quais logo depois viajam para Delos.

A ação narrativa é intercalada com discursos moralizantes, isto é, além das

“aventuras”, resumidamente narradas acima, o romance apresenta muito discurso e

pregação moral, típico de um romance de aprendizagem. As personagens funcionam como

exemplos de moral ativa, exemplos a serem seguidos, e também se tornam “pregadores” de

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comportamentos, uma vez que ao longo do enredo discutem e apresentam comportamentos

e crenças.

O romance de Teresa Margarida apresenta material variado para pesquisas, pois a

autora aborda situações diversas as quais enfocam tanto comportamentos individuais, como

coletivos, aspectos sociais, econômicos, políticos e pedagógicos, na impossibilidade de

tratar de todos esses temas, limitamos nosso estudo à família, e especialmente à mulher,

esposa e mãe, e às questões que as envolvem, para confrontá-las com outros textos a fim

de que possamos analisar em que medida Aventuras de Diófanes dialoga com o discurso

intelectual em circulação nos séculos XVII e XVIII.

2.2. A figura feminina

Ao longo do romance de Teresa Margarida é possível identificar alguns modelos de

comportamento feminino e crenças comuns ao século XVIII. É imprescindível esclarecer

que a figura feminina, a mulher apresentada tanto nos romances setecentistas como nos

livros filosóficos e de máximas, era a mulher das classes mais abastadas as quais tinham

condições de praticar a leitura, devido à educação formal ou informal e ao acesso de livros.

O objetivo dessa parte da dissertação é discutir a imagem feminina construída

nesses textos. Para isso, se faz mister ter um ponto de partida: a de que a figura feminina

em todos eles remete às mulheres da elite sócio-econômica. A partir disso é possível poder

analisar quais são os modelos de comportamento pregados.

2.2.1. Incapacidade e fraqueza feminina x igualdade de sexos

Em Portugal, desde a Idade Média pregava-se que as mulheres eram

intelectualmente incapacitadas, por isso a maioria delas, com exceção das que optavam

pela vida religiosa nos conventos, não recebiam educação formal. Alardeava-se que o sexo

feminino teria uma incapacidade natural para o aprendizado o que acentuava seu caráter

frágil e propagava a idéia de que a mulher precisava ser guiada, amparada, tornando-se

comum a crença de que os homens da família deveriam zelar por elas; primeiro, o pai e os

irmãos, depois o marido e os filhos.

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Dentro dessa estrutura patriarcal construída ao longo dos séculos, aqueles que

ousaram defender, senão a igualdade dos sexos, pelo menos a capacidade feminina, e a

necessidade de sua formação intelectual, já foram extremamente inovadores.

Capa da primeira edição de Reflexões sobre a Vaidade dos Homens. Extraído da edição da Editora Martins, 1966.

Dentre eles, citaremos Matias Aires, que em Reflexões sobre a Vaidade dos Homens

prega a igualdade natural dos homens, isto é, dos seres humanos, sendo as diferenças mera

ilusão.

Só a vaidade sabe dar existência às coisas que a não têm, e nos faz idólatras de uns nadas, que não têm mais corpo, que o que recebem do nosso modo de entender, e nos induz a buscarmos esses mesmos nadas, como meios de nos distinguir; sendo que nem Deus, nem a natureza nos distinguiu nunca. Na lei universal ninguém ficou isento da dor, nem da tristeza; todos nascem sujeitos ao mesmo princípio, que é a vida e, ao mesmo fim, que é a morte: a todos compreende o efeito dos elementos; todos sentem o ardor do sol, e o rigor do frio; a fome, e a sede, o gosto, e a pena, é comum a tudo aquilo que respira: o Autor do mundo fez ao homem sobre uma mesma idéia uniforme, e igual, e na ordem com que dispôs a natureza, não conheceu exceções nem privilégios: nunca o homem pode ser mais nem menos do que homem, e por mais vaidade lhe esteja sugerindo certos atributos, ou qualidades, que o fazem parecer maior, e mais considerável, que os mais homens , essas mesmas qualidades, ainda sendo verdadeiras, sempre são imaginárias; porque também há verdades fantásticas, e compostas somente de ilusões.56

O filósofo acreditava inclusive que os homens submetiam as mulheres a uma forma

de escravidão, já que elas ficavam totalmente a mercê deles, de suas leis e regras que

pregavam a submissão. Em todo o tempo prevaleceu nos homens o poder; eles arrogaram a si

toda a jurisdição legislativa: a sujeição em que ficaram as mulheres, foi a pena da sua primeira culpa. Aquela sujeição, que não devia exceder as regras da eqüidade, veio a degenerar-se em tirania, e a introduzir nelas uma espécie de escravidão.57

56 Aires, Matias. Reflexões sobre a Vaidade dos Homens, São Paulo, Martins, 1966, p. 65/66. 57 Ibidem., reflexão número 113, p. 144.

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As críticas de Matias Aires são contundentes, sua aversão ao tratamento

dado às mulheres é evidente, parece que além de não concordar com essa estrutura, ainda

resolve fazer de suas reflexões um lugar de denúncia da tirania masculina e da submissão

feminina, isto é, expõe a situação de opressão com a qual as mulheres conviviam.

Jean-Jacques Rousseau (1717-1778) em Emílio ou Da Educação defendia a tese

de que embora homens e mulheres fossem iguais na espécie (biológico), tudo que tinham

de diferente vinha do sexo, por isso mulheres e homens seriam moralmente diferentes .

(...) Segue-se que a mulher foi feita especialmente para agradar ao homem. Se, por sua vez, o homem deve agradar a ela, isso é de necessidade menos direta; seu mérito está na sua potência, ele agrada só por ser forte. Concordo que essa não é a lei do amor, mas é a da natureza, anterior ao próprio amor.58

Segundo esta visão, a mulher teria sido feita para agradar o homem, por isso deveria

ser subjugada por ele. A mulher deveria então se tornar agradável ao homem em vez de

provocá-lo; assim suas armas seriam seus encantos. Para Rousseau, a força feminina reside

no “torná-la necessária pela resistência”. Dessa forma, não haveria vencedor nem vencido

já que dessa relação nasceriam o ataque e a defesa, a audácia de um sexo e a timidez do

outro, a modéstia e a vergonha com que a natureza armou o fraco para sujeitar o forte.59

A diferença entre homens e mulheres provinha de aspectos do sexo que marcavam

também sua moral, seu comportamento e papéis sociais. Rousseau procura valorizar a

natureza frágil feminina, postulando que mesmo sem força física a mulher pode fazer valer

seu poder sobre o homem, com sua delicadeza e modéstia, assim o fazendo satisfazer seus

desejos.

A postura de ambos diante da questão da igualdade dos sexos é diversa. Mais do

que defender a igualdade entre os sexos ou propor que as mulheres não eram inferiores aos

homens, Matias Aires estaria denunciando uma questão social: os portugueses tinham a seu

favor uma estrutura de poder, na legislação portuguesa quem comandava a vida das

mulheres eram seus tutores legais, pais, maridos etc., eram comuns atos de tirania, punições

etc. Enquanto Rousseau, embora afirmando a igualdade física entre homens e mulheres,

58 Rousseau, Jean-Jacques. Emílio ou Da Educação, S.Paulo, Martins Fontes, 1999, p. 492/493. 59 Ibidem., p. 493.

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procura mostrar onde reside a força do sexo feminino, ensinando as mulheres a usar as

armas do seu sexo, a sedução.

Em Casamento Perfeito Diogo de Paiva de Andrada já aconselhava os casados,

denunciando os excessos masculinos amparados pela lei: (...) importa muito que o homem prudente não desconfie tanto de sua

mulher, que a feche nos mais remotos aposentos, porque as mulheres sempre desejam o que se lhes esconde. E não há dúvida, que quanto mais o desconfiado se desvela em pôr leis, preceitos e ameaças, para se segurar do que receia, tanto mais ardis, enganos, e traças lhe andam buscando, para lhe meter a mão em tudo, o que guarda 60.

Casamento Perfeito de Diogo de Paiva de Andrade (1576-1660). Extraído de História da Literatura Portuguesa Ilustrada, Lisboa, Bertrand, 1932, p.250.

Outro inovador foi Luis Antônio Verney61 cuja sintonia com as tendências

européias o fazia pregar em seu Verdadeiro Método de Estudar que também as mulheres

deviam ser instruídas, o que estava de acordo com as novas teorias pregadas na Europa, por

exemplo, por Jean-Jacques Rousseau e Fénelon.

Mas, antes que acabe, tocarei um ponto que se deve um ir aos estudos que apontamos; e vem a ser o estudo das Mulheres. Parecerá paradoxo a estes Catões portugueses ouvir dizer que as Mulheres devem estudar contudo, se examinarem o caso, conhecerão que não é nenhuma parvoíce ou coisa nova, mas bem usual e racionável. Pelo que toca à capacidade, é loucura persuadir-se que as Mulheres tenham menos que os homens. Elas não são de outra espécie no que toca a alma; e a diferença do sexo não tem parentesco com a diferença do entendimento. 62

60 Andrada, Diogo de Paiva de. Op.cit., p. 50. 61 Luís Antônio Verney, filho de franceses, permaneceu a vida toda na Itália. Foi um dos mais importantes estrangeirados, pois sua obra: Verdadeiro Método de Estudar foi a base para que Pombal reformasse o ensino em Portugal e em suas colônias. 62 Verney, Luís Antônio. IX – Apêndice sobre o Estudo das Mulheres. In: Verdadeiro Método de Estudar, Lisboa, Sá da Costa, 1952, p. 123 e 124.

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Para Verney, entretanto, o sexo não interferia na capacidade, no entendimento, no

discernimento da pessoa. Sua visão racional do mundo, seu conhecimento científico não o

deixavam compactuar com tais ideais, professados, por exemplo por Rousseau. Se

biologicamente homens e mulheres tinham as mesmas habilidades e capacidades; e também

do ponto de vista da religião suas almas eram da mesma espécie, não haveria razão em

determinar a capacidade intelectual segundo o sexo. Por isso ele defendeu a educação

feminina em Portugal e em suas colônias.

Primeira edição do Verdadeiro Método de Estudar.

Extraído de História da Literatura Portuguesa Ilustrada, Lisboa, Bertrand, 1932, p. 293.

Contudo, havia aqueles que ainda acreditavam na incapacidade intelectual, na

fraqueza física e moral feminina. Por isso muitas mulheres não tiveram direito a nenhum

tipo de educação, nem mesmo a de “prendas domésticas”. Enquanto isso, a maioria dos

“filhos da elite”, os jovens provenientes das famílias mais abastadas, completavam seus

estudos, formando-se nas universidades de Portugal, principalmente na Universidade de

Coimbra, ou estrangeiras, como as francesas.

O romance de Teresa Margarida também foi inovador na época, pois apresentava o

mesmo discurso de Verney e Matias Aires, famosos por suas idéias e respeitados

intelectuais do século XVIII. No seu romance, nas falas da personagem Delmetra,

apresenta-se o mesmo discurso de Verney em defesa das mulheres, propõe-se a valorização

das capacidades e habilidades femininas.

(...) Estes discursivos se não dizem que as almas têm sexo, para que forjam distinções, que não têm mais subsistência que na sua corrupta imaginação, pois foram igualmente criadas, e a disposição dos órgãos (de que dizem provém a bondade do espírito) é tão vantajosa nas mulheres, como nos homens? Alguns há tão faltos de espírito, e capacidade, que se lhes tirassem um

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só grau, não lhes faltaria nada para brutos; assim como são inumeráveis as heroínas, que se têm visto tão inteligentes, que umas têm parecido milagre nas artes,e outras têm dado a entender que eles julgam ignorância, o que são efeitos da modéstia. Não resplandece em todos a luz brilhante das ciências; porque eles ocupam as aulas, em que não teriam lugar, se elas as freqüentassem, pois temos igualdade de almas, e o mesmo direito aos conhecimentos necessários; e o dizerem que as nossas potências são o refugo das suas, porque não sabemos entender, ajuizar, aprender, e queremos sempre o pior, é sobra de maldade, e insofrível sem-razão, quando há sempre neles mais que repreender, e nas mulheres muito que louvar, menos naquelas, que muito os atendem, porque eles as arruinaram. Enfim digam o que quiserem, e fazei vós o que deveis; que as que souberdes encher as vossas obrigações, não achareis entre os bons algum, por mais insensato que seja, que vos negue a veneração; que eu só estou mal com as camponesas, que não cuidam mais que em comer, dormir, e falar; porque ainda às grandes senhoras não perdoa a nota, que façam cidade se não ocuparem em cousa alguma, porque são incuráveis os males, que produzem pensamentos levianos, e momentos perniciosos.63

Além de pregar as qualidades femininas, a personagem Delmetra equipara os sexos:

homens e mulheres são dotados das mesmas capacidades, já que as almas não têm sexo,

como se pode falar em distinções entre homens e mulheres? A lógica de Delmetra é muito

convincente, e todo seu discurso almeja a elevação da mulher a mesma condição do

homem, discurso muito parecido com o de Verney.

Luís Antônio Verney da Coleção de Martinho A. da Fonseca. Extraído de História da Literatura Portuguesa Ilustrada, Lisboa, Bertrand, 1932, p.294.

A personagem defende também o direito das mulheres de ter uma educação formal.

Dessa forma, critica aqueles que defendem a inferioridade feminina, os que acreditavam

que as mulheres não tinham capacidade de “entender”,64 e sabemos que não eram poucos.

63 Orta, Teresa Margarida da Silva e. Op.cit., p. 92. 64 Segundo Arilda Inês Miranda Ribeiro, a tradição Ibérica, herdada por Portugal e suas colônias, considerava as mulheres ignorantes, seres inferiores, parte do “Imbecilitus sexus” (inferiores natos: crianças, doentes e incompetentes). In: Ribeiro, Arilda Inês Miranda. Op.cit, p. 61.

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Por fim, a personagem discute uma questão mais ampla: se o potencial é o mesmo

nos dois sexos, o que tornaria as pessoas melhores ou piores, mais capazes ou menos? Sua

conclusão é que a educação voltada para o crescimento intelectual, moral e espiritual, faria

a diferença.

Em poucas palavras, Delmetra resolve a antiga contenda homem x mulher,

apontando para a necessidade de instrução e de educação. Está pronta a receita, é só

começar a criar homens e mulheres mais aptos e construir um mundo melhor.

Essa discussão estendeu-se ao longo do século XVII e XVIII, não apenas na Europa,

mas também no Brasil. E o fruto dessa nova realidade foi que muitas mulheres tiveram

acesso a uma educação formal, muitas delas começaram a escrever, e também publicar

livros, como é o caso de Teresa Margarida que editou seu romance.

É possível encontrar em outros textos da mesma época , como O Feliz Independente

do Mundo e da Fortuna, evidências da discussão da incapacidade feminina de entender e,

portanto, participar de discussões e assuntos masculinos.

(...) Perdoai-me se me metto a Filosofar; mas ainda que mulher, como quero ter parte no descubrimento deste thesouro, quero dar de quando em quando com o discurso a minha enxadada, porque de outro modo não participarei delle.

(...) Muito tempo ha (lhe diz a Emperatriz) que eu ás escondidas do Mundo, dentro de mim mesma, desprezava esses famosos homens, que occupão todos os clarins da fama; mas não me atrevia a declarar o meu pensamento, porque hum discurso feminino não merece credito em matérias de valor, e de proezas: porém já que vos acho de acordo, vos direi naturalmente o que julgo, pedindo-vos que me corrijais o excesso. (...)

(...) Porém críticas de mulheres que pouco caso merece! Fiquei aqui entre estas paredes sepultado este discurso (...)..65

Os trechos de O Feliz Independente do Mundo e da Fortuna mostram personagens

femininas desculpando-se por se meter em assuntos não femininos, isto é, discutir assuntos

importantes, fazer avaliações, filosofar, não eram atividades para as mulheres, privilégio

somente dos homens, capazes de pensar. Todavia, também apresentam a subversão dessa

ordem, pois as personagens tiveram a coragem de expressar suas opiniões, mesmo

timidamente dado que são pequenos trechos apresentados ao longo dos três volumes do

romance, e mostrar que também elas tinham capacidade de raciocínio, o problema é que a

65 Almeida, Theodoro. Op.cit., Tomo II, p.190, Tomo III p. 164 e 167.

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sociedade e os homens não aceitavam suas colocações, delegando-lhes uma posição de

meras espectadoras das discussões masculinas.

Tanto em Aventuras de Diófanes, quanto no Feliz Independente do Mundo e da

Fortuna, vemos essa tendência de questionar tais valores ainda vigentes, entretanto não

assumem uma posição combativa, violenta, preferem questionar tais crenças, mostrando

através das personagens femininas sua vontade de participar do mundo e interferir nas

questões tidas como masculinas, suas qualidades e capacidades.

2.2.2. O trabalho e o ócio

Diogo de Paiva de Andrada aconselhava, em seu livro de máximas, as esposas a

fugir da ociosidade.

Dado o exemplo conveniente de sua virtude, o que devem procurar com todas suas fôrças, é fugir sempre da ociosidade; porque , Idem est ociosus, et malus, como bem aponta um Discreto Filósofo. Quer dizer: O mesmo é estar ociosos, que ser ruim.66

Para ele, a ociosidade traria três malefícios: o primeiro, a curiosidade e a fofoca:

quem costuma não tratar de si, é mui curioso de saber dos outros; o segundo, o excesso de

preocupação com sua aparência: é cousa certa nas ociosas gastar o tempo em variar galas,

toucados, e trajos; e por último, a inclinação para ter maus pensamentos: a ociosidade é

porta muito aberta para pensamentos mal ordenados.

(...) lembrando-se ela do particular ofício das mulheres, entendesse, que não casara, para estar ociosa em delícias, e passatempos, senão para estar sempre ocupada em suas teias, e costuras, e no mais, que pertence às mulheres honradas. 67

A ociosidade não traria problemas apenas à família, mas também à nação devido à

falta de honestidade e de ocupação, o que afetaria o progresso da pátria. Para ilustrar isso,

Diogo de Paiva de Andrada explica ainda que entre os romanos o trabalho feminino era

lei: todas as mulheres, desde a mais nobre até a mais humilde, que não fiasse, ou

lavrassem, fossem desterradas daquela República, como viciosas, e malfeitoras.

66 Andrada, Diogo de Paiva de. Op.cit., p. 147. 67 Ibidem., p. 149/150.

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Nota-se no quadro de Debret (1816-1830) “Uma senhora brasileira em seu lar” que a senhora e seus criados estão ocupados com os afazeres domésticos, até mesmo a jovem ocupa-se com as letras, num culto ao trabalho em detrimento do ócio,

tido como pernicioso. Extraído de Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, S.P, Círculo de Livro, v. I, 1975, p. 162.

Assim, o melhor remédio para que as mulheres não fossem tentadas pelo “demônio”

era o trabalho, estar ocupada em trabalhos domésticos - fiar, coser, etc. - ler, contanto que

fosse uma leitura edificante (livros devotos e de histórias não amorosas); fazer orações;

cuidar do trabalho das criadas e contar-lhes “exemplos devotos”.

(...) Apenas entrei em vossos domínios, tive pelo melhor anúncio ver os campos férteis, as gentes compassivas, sendo as mulheres modestas, e os homens atentos; nas aves se me apresentava só, a que nestes Domínios podia anunciar-me o triunfar dos trabalhos na vossa presença.68

Também no romance de Teresa Margarida, o trabalho é condição primordial para a

existência de uma boa nação, para que homens e mulheres sejam bem sucedidos, para que

os reinos e os povos prosperem. Numa nação bem governada até mesmo as mulheres

assumem uma função: elas também trabalham, não se dedicando ao ócio e às frivolidades.

(...) Já as mulheres fiavam, e teciam, e tinham gosto de se ocuparem em úteis curiosidades, aborrecendo a antiga ociosidade.69

O trecho acima faz parte do relato de Arnesto, príncipe de Delos, de suas aventuras:

enquanto procurava sua amada Hemirena permaneceu por um tempo num reino com uma

população agreste, entretanto com dedicação conseguiu transformá-lo num lugar civilizado.

Nesse fragmento, o príncipe critica as mulheres ociosas. Para mudar isso, Arnesto atribui às

mulheres do reino uma função ativa, pois também elas são necessárias para que a nação

alcance o progresso, o seu trabalho é de suma importância: fiavam e teciam, provendo os

68 Orta, Teresa Margarida da Silva e. Op.cit., p. 68. 69 Ibidem., p.169.

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lares de vestimentas, de tecidos. A personagem também instituiu “úteis curiosidades”,

provavelmente as mesmas citadas em Casamento Perfeito e Aventuras de Telêmaco.

(...) o que nella me cativa he o seu (...) assíduo trabalho, a sua habilidade para tecer, e bordar, sua aplicação ao meneio de toda a casa de seu Pai, dês que sua mãi he fallecida (...)

Quando a vemos em fim entre huma roda de donzellas meneando a áurea agulha, julgão todos que he a própria Minerva, que na terra tomou forma humana, e inspira aos homens as boas artes. Ella anima as mais a trabalhar, e lhes suaviza o trabalho , e o aborrecimento com o encanto de sua voz, quando entoa todas as historias prodigiosas dos Deoses, e com o melindre do seu bordado dá mate na mais exquisita pintura. Ditoso o homem, a quem com ella unir o suave hymeneo! Só terá para temer o perdella, e sobrar-lhe em dias.70

O discurso tanto nos romances, como no livro de máximas, parece ser o mesmo, e

até a concepção de ocupações femininas é a vigente, como já vimos nos anteriores. Esse era

o modelo a ser perpetuado: de que a mulher deveria sempre cuidar de seus afazeres,

independente de sua classe social, assim não haveria tempo para ter maus pensamentos e

muito menos más ações.

Tanto que isto percebi, para conservar a minha pureza, determinei retirar-me a esta solidão com huma fiel criada que me quiz acompanhar. Aqui vivo da cultura deste pequeno terreno, incógnito aos mortaes, que julgão esses rochedos impenetráveis: o trabalho de minhas mãos me occupa, e a consideração do meu entendimento me recreia; e este dirigido por superior Luz, que me ajuda, e fortalece, me ensinou a dar ás minhas paixões hum alimento próprio, mas innocente.71

Além disso, o trabalho conjunto das mulheres poderia ser tido como oportunidade

de elevação moral e espiritual, pois podiam tratar de assuntos úteis e contar histórias

edificantes. Isso nos remete também à leitura dos romances em questão, que procuravam

atender a esses objetivos, juntamente com livros de máximas, textos religiosos, histórias de

santos etc.

O discurso tanto nos romances como no livro de máximas parece o mesmo, contudo

os argumentos apresentados em Aventuras de Diófanes e Casamento Perfeito são mais

afins, mostram-se mais inovadores, pois não criticam a ociosidade somente pelo fato de ela

facilitar a desonestidade das mulheres casadas, isto é, pelas consequências no plano

individual, como ocorre em Aventuras de Telêmaco e O Feliz Independente do Mundo e da

Fortuna; a crítica principal centra-se no trabalho feminino enquanto elemento construtor

dessa “nova ordem”. A responsabilidade pelo que será construído, pela nação, também é 70 Fénelon. François. Aventuras de Telêmaco, Op.cit., p. 420.

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atribuída às mulheres, por isso sua contribuição seria extremamente necessária. Ambos

ampliam as conseqüências da ociosidade para uma perspectiva mais ampla, a do coletivo.

2.2.3. A moderação e o recato na aparência

Um dos atributos femininos mais alardeados durante o século XVIII foi a modéstia.

As mulheres deveriam ser comedidas, humildes, o que significava que deveriam ter

simplicidade e moderação na aparência e nos hábitos. Entretanto, o excesso de vaidade e de

preocupação com a aparência era tido principalmente como característica feminina.

Reparando Telêmaco, que para elle tinhão destinado huma veste de fina lã, cuja alvura escurecia a da neve, e huma roupa de púrpura bordada de ouro, esta magnificência causou nelle o alvoroço, que he natural nos poucos annos.

Disse-lhe então mentor com voz grave, e sonora: estes são por venturaa, ó Telêmaco, os pensamentos, que devem occupar o coração do filho de Ulysses? Trata antes de sustentar o crédito de teu pai, e vencer a fortuna que te persegue: que hum mancebo, que gosta de ataviar-se com vaidade, como huma mulher, he digno de sabedoria , e da gloria, bem merecida só daquelle, que sabe suportar o trabalho, e pisar aos pés os apetites.72

Pregava-se que a mulher deveria mostrar sua virtude também nas vestimentas

modestas, numa “armadura” de recato que não despertasse a sensualidade e também não

gastasse excessivamente o dinheiro do esposo com supérfluos: vestimentas e enfeites caros.

Por huma abertura que deixavão os ramos de dous alamos entrelaçados, entravão ás furtadelas alguns delgados raios do Sol, que visitavão a Ubaldina , toda occupada no trabalho de tecer cestinhos de palma, com a sua criada, sem reparar nos hospedes não esperados. Advertindo nelles, o sobressalto fez vir ao seu semblante hum pudor virginal, que augmentou a sua belleza, e igualmente a modéstia.73

A moderação e a simplicidade eram atributos desejados, pois muitos acreditavam

que eram formas de reprimir a sexualidade. Afinal, mulheres recatadas e modestas não

chamavam a atenção masculina, não se faziam atraentes para os olhares masculinos. O

encanto feminino, dessa forma, permaneceria confinado no casamento, somente o marido, o

“senhor” poderia desfrutar da companhia da esposa, desfrutar de sua conversa “agradável”

e de sua beleza.

O recurso do encantamento deveria ser usado pelas esposas apenas dentro do seu

lar, por isso deveriam aprendê-lo através do relacionamento com outras mulheres. Dessa

71 Almeida, Theodoro de. Op.cit., Tomo II, p.100/101. 72 Fénelon. François. Aventuras de Telêmaco, Op.cit., p. 42. 73 Almeida, Theodoro de. Op.cit., Tomo II, p. 98.

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forma, tornar-se-iam mestras “na arte de prender seus maridos e filhos”, agradando-os com

sua presença.

(...) Se os vossos maridos caírem nesta perigosa doença, por compaixão deles lhes tirai toda a ocasião, que possa alterar as suas imaginações; porque quanto é mais ardente o amor, tanto é maior a dor, que conduz para os delírios. O recato é o remédio, que só pode moderar tanto mal, porque os indícios costumam perturbar a razão ainda aos mais nobres sujeitos; e reparei que nem Júpiter roubara a Europa, se ela se negara aos seus olhos; e cuidai em não cair naquela enfermidade, em a qual vos achareis sem mais companhia que o verdugo formidável, que nas entranhas se emprega: e quando para tão grande mal tenhais causa conhecida, não vos queixeis com indiscretos excessos; porque o silêncio, a prudência, e o sofrimento costumam repreender severamente os culpados, e a indústria, e discrição vos devem revestir de agrado; com o quê vereis ou animar-se o amor, ou infundirdes respeito; porque o desafogo das palavras não é mais que fartar de água na força da sezão, que não só não cura, mas a aumenta.74

A paixão não era bem vista. “Encantar” o marido, não significava despertar-lhe a

paixão, já que esse sentimento era comparado a uma doença, “uma enfermidade”, “um

mal”, um tormento que enlouquecia, tirava a razão, causando sofrimento e delírios.

Uma esposa moderada podia ser agradável, sem atormentar o marido. Para isso, o

recato era imprescindível, pois é a visão de uma bela mulher ou do corpo feminino

despertaria a paixão masculina. Aqueles que acreditavam nisso, pregavam que para acabar

com a paixão era necessário que a mulher não se mostrasse bela e escondesse seu corpo do

olhar masculino.

Contudo, nem todos pensavam dessa forma. Matias Aires, por exemplo, acreditava

que o esconder a beleza feminina incitava ainda mais a curiosidade masculina e aumentava

a paixão. Quem dissera, que o recato, e a modéstia, mais chamam do que

desviam, mais servem de convidar, que de afastar! quem foge, parece que quer que o sigam; quem deixa, parece que quer que o busquem: o mesmo é cobrir o rosto, que incitar mil vontades de o descobrir; a desconfiança faz nascer a instância e o cuidado; o engano muitas vezes se evita só com não o presumir; e o mesmo que dar um sinal de guerra; o que se guarda, e se esconde é a primeira coisa, que se assalta; a liberdade do porto é o que o conserva livre de invasão.75

O filósofo está refletindo sobre o claustro feminino nos conventos, quando as

mulheres encobriam sua beleza com véus: “uma comunidade religiosa coberta de véus, o

que faz imaginar é que cada véu encobre uma beleza, e muitas vezes o que encobre, é uma

fealdade enorme; o pensamento nesta parte é sempre favorável, porque embaixo daquelas

74 Orta, Teresa Margarida da Silva e. Op. cit., p. 93.

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sombras nunca supõe outras sombras, luzes sim (...)”76. Para ele, o desejo de esconder a

beleza feminina acabava aumentando a curiosidade masculina e as paixões.

Acreditava-se que a beleza feminina provocava nos homens a paixão, o desejo, por

isso ciúmes também eram um sentimento comum, e com ele o desejo de esconder as

mulheres, guardá-las do “olhar alheio”. Como já vimos, a saída mais comum era o

confinamento nos conventos, o claustro.

O ciúme dos homens fabricou os ferros, e a formosura das mulheres dói o crime original, que nunca puderam expiar, nem remir: a mesma formosura com que as dotou a natureza, lhes tirou a liberdade; alcançaram na beleza o maior favor , mas comprado por um custo imenso, isto é à custa da liberdade; ficaram sujeitas aos homens por força, e os homens a elas por vontade. Infeliz e estudada consolação! O cativeiro costuma ser à medida da formosura; quanto mais belas, mais presas: para terem alguma liberdade é preciso que não tenham nenhuma formosura. Cruel situação! quem há de trocar uma coisa pela outra, ou quem sabe qual das duas é melhor? Ter liberdade e formosura juntamente, é muito; ter uma coisa, e perder a outra, é pouco. Quem há de resolver-se a perder a liberdade, e também que mulher se não há de afligir na falta de formosura? 77

Ciúmes e desconfiança eram tidos como perigosos, sentimentos destruidores que

poderiam levar pessoas honestas, principalmente os maridos, a cometerem atrocidades e

até desestabilizar estados.

O primeiro, e mais trabalhoso é aquele infernal, e terrível monstro dos ciúmes, com o qual não pode haver alma quieta, nem vida segura, nem virtude firme, nem amor verdadeiro, nem governo bem ordenado, nem honra bem avaliada: onde eles entram, não há coração tão generoso, que não penetrem, e desanimem, nem lealdade tão constante, que não descomponham, e desbaratem: fazem súbitas transformações de amor em ódio, de brandura em aspereza, de mansidão em ferocidade, de alegria em perpétuas ânsias, e tristezas, de riso em miseráveis lágrimas, e suspiros, e de uma vista clara, e desenganada em mui prejudicial, e enganosa cegueira, com a qual fazem sujeitar a uma mesma suspeita a inculpáveis, e viciosos, e a destruir com igual vingança a inocentes, e compreendidos (...).

E são de maneira prejudiciais os efeitos da desconfiança, que até a Impérios, e Monarquias põem em notável risco de se perderem, como puseram ao de Macedônia em tempo de Filipe pai de Alexandre com as contínuas desconfianças, que corriam entre ele, e sua mulher Olímpias, até que pararam em morte de ambos..78

Para que semelhantes desgraças não acontecessem, Diogo de Paiva de Andrade

aconselhava que “a mulher, nem há de ver, nem há de ser vista, principalmente quando

estiver muito enfeitada, porque ambas estas causas costumam provocar desonestidade” 79.

75 Aires, Matias. Op.cit., p. 147. 76 Idem. 77 Ibidem., p. 144 /145. 78 Andrada, Diogo de Paiva de. Op.cit.,p. 34 e 52. 79 Ibidem., p. 127.

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Ele dizia também “que destes faustos,e riquezas, lhes nasce logo o quererem ser vistas;

porque ninguém gasta sua fazenda em vestidos custosos para se querer fechar entre quatro

paredes, senão ostentar nas partes mais públicas seus ornamentos e bizarrias”80, isto é, o

excesso de ornamentos era um indício de que a mulher queria ser admirada publicamente,

o que não era desejado pelo marido.

Ilustração de Luís Jardim para Reflexões sobre a Vaidade dos Homens, R.J., Tecnoprint, 1967, p. 73.

Percebe-se que embora o desenho apresente pessoas em vestimentas atuais, o ideal

da mulher fatal que subjuga os homens, que atrai a atenção masculina, e os escraviza ainda

persiste.

Todavia, o autor pregava que as mulheres deveriam vestir-se e se enfeitar de acordo

com sua posição e idade. As casadas tinham por obrigação andarem bem compostas e

ornadas, de acordo com as posses do marido. O conceito de moderação nas vestimentas

variaria de acordo com a condição econômica e posição social do esposo.

Os enfeites, e atavios andam à medida das idades, qualidades, e fazendas, ou mais, ou menos tempo de casadas, com tal ordem, e conformidade, que o que em umas é moderação, será em outras demasia; e o perigo desta matéria consiste mais nas desproporções, que nos excessos; porque quando uma, que for moça, ilustre, e rica trouxer as galas, e ornamentos, que lhe competem, com os quais se veste mais por decência, que por leviandade, parece, que tem mão no desejo dos ociosos, e na liberdade dos atrevidos: pelo contrário parece, que por um, e outro desconto está chamando, a que, tendo mais anos, e menos cabedal, e qualidade, se enfeita com os mesmos trajos, e galantarias (...).81

O fragmento é uma tradução do autor do filósofo Teofrasto: “Mulier, nec alios videre, nec ipsa videri debet, praesertim quae eleganter ornata sit; utrumque enim ad res inhonestas incitamentum est.” 80 Ibidem., p. 126/127. 81 Ibidem., p. 162.

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O que a maioria dos autores recomenda é o uso de ornamentos e vestimentas

adequados, isto é, havia regras sociais que deveriam ser respeitadas. Deveriam ser

respeitadas as conveniências sociais, as posses da família, a idade etc. Qualquer excesso ou

desrespeito a essas regras era mal visto, o que poderia fazer com que a reputação de uma

mulher ficasse comprometida. Todavia preferia-se a simplicidade, a falta de preocupação

com os adornos em excesso.

(...) o que nella me cativa he o (...) desprezo em que tem os vãos enfeites, o esquecimento, ou ainda a ignorancia, em que está da sua formosura. Julgalla-hião pela alegre Vênus, quando seu Pai lhe ordena que ao som de flautas guie as choreas das Cretenses donzellas; tão prendada he das graças! Quando a leva comsigo à caça pelo Mattos, parece qual Diana no meio das suas Nynfas: magestosa, e destra no frechar das settas: todo o mundo a admira, e só ella he quem o não sabe.82

Os textos parecem compartilhar a visão, normalmente masculina, de que a beleza

feminina é a culpada pela paixão e pelas más ações. Eximem-se os homens da culpa de

ações violentas e impensadas, quando apaixonados, atribuindo-lhes uma insanidade

momentânea, desencadeada pela visão da mulher amada.

No romance de Teresa Margarida, o discurso das personagens constitui a parte

retórica do romance. Ora transcorrem as aventuras com as personagens vivenciando

situações, ora predomina o discurso retórico por meio do diálogo entre as personagens.

Como vimos até agora, os ideais e as crenças que perpassam o romance ficam bem

evidentes nos diálogos entre as personagens, contudo isto não significa que também não se

encontrem na ação narrativa, na experiência das personagens, como veremos a seguir.

Em Aventuras de Diófanes, embora Hemirena/Belino, princesa de Tebas disfarçada

de rapaz, vista-se com moderação e recato, sua beleza desperta paixões por onde quer que

passe. A jovem pastora Atília se apaixonou perdidamente por Belino e sofreu muito, como

podemos verificar no trecho abaixo:

Atília, Pastora bela, inclinada ao gentil Belino, toda aquela tarde insensivelmente não podia apartar dele os seus olhos; e esperando-o no dia seguinte na mesma fonte dos festejos, lhe disse: Sabe, amado Belino, que desde o primeiro dia que te vi, não sei quando sou triste, ou contente, porque na tua ausência sinto um não sei quê, que me aflige; e quando te vejo, o mesmo excesso de prazer me consome. Perdi o gosto de meus lindos cordeirinhos: as flores já não me alegram, nem folgo de ouvir as aves, porque choro, quando as ouço. Se em o teu nome se fala, eu sinto repetir em o meu peito o eco. Alegro-me quanto te

82 Fénelon. François. Aventuras de Telêmaco, Op.cit., p. 420.

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vejo, mas o coração sempre palpita; e se este mal que eu padeço, é o bem, de que falam todos, quem pudera não o ter, pois é mal que tanto atormenta! 83

Note-se que o estopim da paixão é a visão do ser amado: sua aparência física, sua

beleza é o que a levou a amá-lo. Mas não é somente como homem que Hemirena/Belino

despertará paixões. Dois homens apaixonam-se por Hemirena ao longo da narrativa. O

primeiro é Ibério, príncipe de Atenas.

É sem igual (lhe respondeu Ibério) a admiração, que me causa o ouvir-te; porque quando não é outro o meu desígnio, mais que render cultos à sua formosura, a tua isenção me maltrata. Pois sabe que às tuas prendas sempre tributarei adorações, sem que espero mais ditoso prêmio, que permitires-me o ver-te, porque ao teu decoro levantarei padrões, para lhe gravares letras, que imortalizem o teu severo rigor. (...) Não pode a força de tua desatenção (disse Ibério) conseguir que eu não te veja, e deixe de amar-te; e como no teu sossego interesso, quanto arrisco em a tua ausência, eu me retiro, cedendo o meu gosto só a favor do teu alívio.84

A paixão de Ibério pela jovem é despertada também pela sua formosura, por isso

seu intento principal é sempre vê-la, existe uma necessidade física da sua visão, como se

pode notar no trecho acima.

O segundo apaixonado é Arnézio, ministro de uma cidade onde a jovem foi presa

injustamente. Para ser retirada da companhia dos malfeitores, Hemirena se viu obrigada a

revelar sua feminilidade.

Arnézio, que só sabia que o gentil Belino era a belíssima Hemirena, (ainda que ignorava este nome, e mais prerrogativas dele) persuadido de uma violenta paixão, uma tarde, em que já a vontade perdia de vista o entendimento: Adorada Senhora, (lhe disse) eu sacrifico à tua beleza o domínio de meu alvedrio, e serei com grande excesso satisfeito, se me não negares a tua benigna atenção.85

Novamente há referências à beleza de Hemirena, como desencadeadora da paixão e

de perda da razão. Note-se que o discurso dos amantes é similar nos três casos: o

desencadeador da paixão é a visão do ser amado (homem ou mulher), há uma necessidade

física de ver o amado e quando se está apaixonado perde-se o entendimento.

Também Arnesto, príncipe de Delos e noivo de Hemirena, evidencia a relação entre

paixão e beleza quando pensa em sua amada, como podemos ver no trecho abaixo:

Sem consolação chorávamos o nosso desterro, pois não víamos meio algum, que nos desse liberdade, e com ardentes suspiros me magoava da

83 Orta, Teresa Margarida da Silva e. Op.cit., p.96. 84 Ibidem., p. 73 e 74. 85 Ibidem., p. 159.

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belíssima Hemirena, vendo castigados os delírios de buscá-la, não sabendo merecê-la (...).86

Teresa Margarida apresenta em seu romance a busca de um de amor ideal, sem

excessos e moderado. O que se prega nas leituras edificantes, é a “disciplina do amor”, ou

seja, condenam-se os excessos, o amor paixão, a libido, a sexualidade, que levariam a um

estado de demência, de loucura.

De que serve esta formosura extraordinária á pobre miserável sobre quem cahio este raio? Todo o mundo se alvoroça desde que ella aparece; todos fitão nella os olhos; e já ella não he senhora dos seus, porque o menor movimento delles he observado; e quantas pessoas se achão no seu povo, tantas sentinellas a guardão.

Assim he ( respondeu Iria) mas com que gosto vê curvar diante de si os joelhos? Por toda a parte encontra adorações; tudo são sacrifícios (...).

Suponhamos que assim he, diz a Irmã prudente, e ainda acrescento mais: Quero que todos os corações ardão em holocausto; que o fogo se atêe por toda a parte (...). Tudo isto bem considerado, causa hum tormento incrivel á infeliz, que he o objeto. Se com a belleza tem virtude, e tem honra, o sangue, que se derramou em seu objecto, lhe deixou huma nodoa tal, que jamais poderá lavar-se. Esse vapor espesso, que exhalão os corações impuros, lhe causa hum fétido intolerável (...).

(...) quanto maior he o seu merecimento, tanto mais vivo he o estimulo para os louvores, e o incentivo para a cobiça. A infeliz não póde escapar do laço. Se admite os louvores, esta perdida; se os não admite, de que lhe serve o ser prendada.87

Theodoro de Almeida explicita no seu romance outros inconvenientes da formosura.

Para ele, a beleza além de despertar a paixão atrai sentimentos negativos: a inveja, a

discórdia e a infelicidade.

Basta só a chusma das feias para lhe fazerem huma guerra surda, mas cruel, e interminável; e nas formosas a inveja lhe prepara huma guerra mais aberta, e ( deixai-me explicar assim) encarniçada. Aqui he que a infeliz tem muito que sofrer; porque todas as que pretendem as adorações, não hão de consentir por nenhum modo ver diante de si outro ídolo mais elevado, que as encubra. (...)

Confesso que fiquei admirado, vendo como huma pastora fallava com tanta noticia dos perigos da belleza extraordinária nas Cortes; mas depois me informou Polibio seu pai, que Mathildes sua esposa, em quanto vivêra em Palácio havia passado grandes trabalhos pela sua extraordinária formosura; e que Zefia sua filha mais velha, havia participado da mãi pelos seus documentos, e avisos, todo o horror, com que olhava as extraordinárias prendas da natureza. e voltando para mim lição da pastora, conclui para meu proveito, que desejar hum exced3er consideravelmente aos mais, em qualquer prenda, seja qual for, he procurar o seu próprio tormento, e a sua infelicidade. 88

86 Ibidem., p. 168. 87 Almeida, Theodoro de. Op.cit., Tomo I, p. 185/187. 88 Ibidem., p. 187 e 189.

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Dessa forma, as conseqüências da formosura eram apenas males (ciúmes, inveja,

discórdia), por isso era necessário sisudeza e recato na aparência, principalmente na Corte.

Era necessário ensinar às jovens como se portar. Com esse objetivo a personagem Delmetra

explica aos pastores, em Aventuras de Diófanes, sobre o comportamento feminino e sobre

como deveriam se vestir e ornar as jovens na Corte .

Qual é o pior trabalho das mulheres na Corte (perguntou Barnélia)? A eleição das cores, com que pintam a formosura (respondeu Delmetra), pois gastam a maior parte do dia em contínuas transformações, sem chegarem a conhecer que o natural lhes está melhor; e assim passam de desejo a desejo, querem, e não querem, mancham-se, e desmancham-se; fazendo-se aborrecer de perto, as que se fizeram amar de longe; e sem parecerem de manhã as que são à tarde, não têm mais constante estado que em conservarem aquela indiscreta opinião. 89

O discurso do romance assemelha-se ao de Diogo de Paiva de Andrada, pois é dada

a mesma solução para não despertar paixões e desonestidade: a moderação na aparência

feminina.

Ilustração de Santa Rosa para Reflexões sobre a Vaidade dos Homens de Matias Aires, São Paulo, Martins, 1966. São apresentados na gravura os símbolos da vaidade: Espelho, jóias, vestimentas. A jovem vê no espelho seu reflexo, admira-se, é a própria representação da vaidade. Entretanto, ao seu lado vê-se a caveira, símbolo da morte, finitude.

Entretanto, o romance de Teresa Margarida está centrado numa questão específica,

o que pode ter relação com sua época e com a vida na corte, o principal problema apontado

89 Orta, Teresa Margarida da Silva e. Op.cit., p. 89.

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no texto é o do excesso de pintura e enfeites. A critica parece ser contra a inconstância da

aparência feminina, isto é, as mulheres não serem as mesmas sempre, modificando-se

constantemente através de uso de cosméticos e ornamentos, daí nunca aparentarem o que

realmente são.

Quanto ao luxo, e a ociosidade, como são vícios, que em Creta não se conhecem, he desnecessário enfreallos. (...) Não se permittem moveis preciosos, nem roupas de custo, nem banquetes esplendidos, ou palácios dourados. Os vestidos são de lã fina, e de boa cor, mas lizos, e sem bordadura (...).90

Nesse fragmento de Aventuras de Telêmaco, Mentor discorre sobre as qualidades da

cidade de Creta, procurando mostrar a Telêmaco que uma grande civilização não se

constrói com luxo e ostentação. A critica contra os excessos aparece comumente quando se

trata da corte, com sua vida inconstante, cheia de divertimentos: bailes, recreios e

conversações, onde se exercitam a vaidade e a futilidade.

Também Diogo de Paiva de Andrada condenou o uso demasiado dos cosméticos

que, segundo ele, mascaravam as mulheres, tentando encobrir seus defeitos e sua velhice.

Tingis a cabeça, mas nunca podereis tingir a idade, encheis o rosto de posturas, mas nunca lhe podereis tirar as verrugas, deixai de lhe pôr esses ungüentos; porque não pareça, que vos mascarastes; acabai já com vossas doidices, e sabei que não há confeição, que vos torne formosa, e moça, se acertastes de ser velha, ou disforme. E se acaso houver para quem seja necessária esta lembrança, saiba que não lemos de mulher alguma, que por usar de posturas no rosto alcançasse mais do mundo, que afrontas, desprezos, e desterros, e que de uma Aspásia contam as histórias, que sendo filha de um homem particular, só porque no rosto não punha nada, veiu a ser Rainha dos mais célebres e poderosos Reinos, que teve o mundo naquela idade, porque dela afora outros, nos diz Eliano, que Ciro, Rei que então era dos Medos, e Persas a escolheu por sua mulher. (...)91

O que está sendo pregado é a aparência real, sem maquiagem, sem tintas e cores. O

excesso de cuidado com o visual mostraria uma tendência da mulher a ser dissimulada, não

mostrar a realidade, disfarçar. Por isso, em contrapartida, parecia-se valorizar a beleza

natural, não artificial, não produzida.

O discurso do romance de Teresa Margarida é muito similar a este na pregação da

formosura natural, numa critica clara às mulheres que perdem muito de seu tempo

produzindo penteados e rostos pintados, na criação de uma aparência totalmente artificial.

90 Fénelon. François. Aventuras de Telêmaco, Op.cit., p. 113. 91 Andrade, Diogo de Paiva de. Op.cit. p. 164 e 165.

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O retrato da Marquesa de Alorna92, que acompanha suas obras, mostra os adereços femininos do setecentos em Portugal: o penteado escultural, os adereços e os detalhes dos vestidos afrancesados que as mulheres da elite usavam em Portugal no período. Extraído de História da Literatura Portuguesa Ilustrada, Lisboa, Bertrand, 1932, p.328.

Todavia, em Casamento Perfeito, o autor está mais centrado na questão das

vestimentas e na adequação à posição assumida socialmente pela mulher, como já vimos,

sendo esse discurso apenas um apêndice. Enquanto no romance, essa parece ser uma das

questões centrais, pois implicaria em outras: a inconstância da vida, a velhice, o fim da

formosura. Na narrativa, são freqüentes as referências à velhice e aos infortúnios que

testam a formosura da jovem Hemirena.

Na narrativa, o uso de outras identidades e a mudança no visual também são

subterfúgios para a sobrevivência numa sociedade que valoriza a aparência e é regida

socialmente dessa forma - não nos esqueçamos do conselho de Diogo de Paiva de Andrada

para que as mulheres vistam-se de acordo com sua classe e posição do marido. No

romance, as personagens usam esse conhecimento para se disfarçar: viajar incógnitas.

Em resumo, são apresentados, nos textos, vários problemas causados pela formosura

e pelo excesso de preocupação com a aparência. Por isso era extremamente relevante

questionar os comportamento das jovens e suas crenças. Segundo o discurso apresentado

nos textos, fazia-se mister mostrar-lhes que a beleza é uma maldição com a qual já se nasce,

assim as jovens honestas deveriam mostrar em seus gestos e hábitos, na moderação das

suas vestimentas e ornatos, o recato, para dessa forma não despertar a paixão nem ser alvo

de leviandades.

92 A Marquesa de Alorna, D. Leonor de Almeida, a célebre poetisa Alcipe, foi enclausurada por ordem de Pombal no convento de Chelas após o atentado contra D. José I, em 1758. Após sua libertação, casou-se com o Conde de Oyenhausen, um austríaco, e percorreu a Espanha e a França. Famosa por ser culta, viajada e por sua poesia.

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2.2.4. O silêncio e a moderação das conversas

Nos séculos XVII e XVIII, os excessos de toda natureza são sempre condenados.

Entre os excessos condenáveis identificavam-se as conversações demasiadas, as gritarias, o

falar muito, apresentados como práticas femininas.

Meus Cavalheiros, os homens de bom juízo disputão com razões, as mulheres com palavras; os rapazes com mofas.93

Dessa forma, pregava-se como qualidade para as mulheres, o comportamento

oposto: o silêncio, a moderação nas conversas, o tom de voz baixo.

(...) o que nella me cativa he o seu (...) silencio, a sua modéstia, o seu retiro. (...) Sabe callar, e sendo no obrar aturada, não he arrebatada (...).94

Em Casamento Perfeito, Diogo de Paiva de Andrade dedica um capítulo inteiro de

seu livro à necessidade das mulheres serem caladas. O silêncio era tido como qualidade

principalmente entre as mulheres casadas, pregado na literatura como característica de

pessoas virtuosas e nobres.

E era o silêncio antigamente tão temido, e respeitado até dos mesmos difamadores, que Virgílio, que o foi tão grande da Rainha Dido, e com tanta soltura, e atrevimento lhe assacou testemunhos contra a pureza, não se atreveu a lhos assacar contra o silêncio; porque, quando fingiu, que os embaixadores de Enéas lhe foram a Cartago pedir socorro, diz, quando ela lhe deu resposta.

Tum breviter Dido vultum, demissa profatur.

Quer dizer: Falou Dido pouco, e com o rosto baixo. (...) 95

Pregava-se a moderação das conversas, isto é, as mulheres casadas deveriam falar

pouco, principalmente com estranhos, e conversar somente com seus maridos. Contudo, até

no diálogo com os maridos deveria haver cuidado, pois, segundo ele, mulheres muito

faladoras perdiam o interesse dos esposos. As esposas nunca deveriam falar asperamente

com seus maridos, nem brigar com eles, o proposto é que fossem suaves e mansas, não

reclamassem nem brigassem.

Também aconselhava-se que deveriam tomar cuidado com as conversas com outras

mulheres, pois seriam más companhias, as faladeiras e as que pregassem maus hábitos,

inclusive o de falar demais e de brigar com os maridos. 93 Almeida, Theodoro de. Op.cit., Tomo I, p. 131. 94 Fénelon. François. Aventuras de Telêmaco, Op.cit., p. 420/421.

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Como o silêncio, e o sofrimento são circunstâncias tão necessárias para a quietação das mulheres casadas, a boa razão, e discurso mostram, que o não fica sendo menos a conversação de pouca gente, pois claro está, que quando se lhes encomenda, que falem pouco, também se lhes deve encomendar, que falem com poucos, (...)e para uma e outra segurança convém, que essas poucas pessoas, com quem tratarem, sejam na língua tão registradas, que com razões pouco importantes lhes não façam perder, ou arriscar duas perfeições, que tanto importam, como é o sofrer, e o calar, sem as quais não podem viver quietas, nem bem casadas; porque será muito possível, que tratando com uma só pessoa, seja ela tão desatada na língua, que por si venha a falar mais que uma multidão copiosa (...).96

Uma das preocupações do autor é que essas amizades ajudassem inclusive a

correspondência amorosa, levando cartas e recados. Por isso, os maridos deveriam tomar

cuidado com a qualidade das pessoas com as quais as mulheres conversassem, desde os

criados até os visitantes.

(...) e as que andam fazendo queixas desnecessárias, e seguindo conselhos impertinentes, tudo contra a inquietação de sua vida, e perfeição de seu estado, se conversarem com pouca gente, e essa qualificada em prudência, e virtude, nem podem ter ocasião de se andar queixando, nem arriscar-se aos trabalhos, e discórdias, que costumam causar ruins conselheiros; pois está claro que as tais pessoas lhes não devem nunca consentir palavras, senão mui escolhidas e concertadas, nem menos dar-lhes nenhuns conselhos, senão mui acertados, e proveitosos, e o que elas devem seguir, e abraçar com todas suas forças, é o de quem lhes encomendar que tragam sempre o pensamento na Lei de Deus, e a ocupação em obras de virtude, entre os limites da vida, que professam (...).97

No romance de Teresa Margarida, embora o silêncio e a moderação das conversas

também sejam pregados, a preocupação da autora parece recair em outro foco: o das

conversas fúteis. Embora a autora também esteja tratando da má influência da companhia

de outras mulheres e do teor de suas conversações, o temor maior parece ser não com a

felicidade conjugal, mas com a corrupção da moral e dos bons costumes.

Criticam-se as conversações desregradas, pois, para a personagem, as mulheres que

não se portam com moderação, falando alto e ao mesmo tempo, seriam tidas como as que

não sabem se comportar.

Este mal inveterado se acha nas mulheres, que tomam lições no seminário da vaidade, onde se aprendem mil erros, são contínuos os bailes, recreios, conversações, em que na chusma desentoada falam muitas ao mesmo tempo; umas em dilatados cumprimentos, outras repetindo histórias mal aplicadas, com os quais pretendem os créditos das entendidas; outras se fingem sábias, falando nos Escritores, e tanto a arte aos Poetas, e outras, que como estátuas de vaidade na contemplação da sua beleza, e bizarria, se estão revendo em si mesmas, e exercitando-se em visagens, e melindres; porque muitas ignoram

95 Andrada, Diogo de Paiva de. Op.cit., p. 169. 96Ibidem., p. 180. 97Ibidem., p. 192 e 193.

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que a formosura do rosto apenas nasce, tem mil contrários, que a arruínam; e que só faz cara ao tempo, e aos trabalhos, a que com suavidade as faz amáveis, e tão poderosas, que confundem a ousadia, tiram as armas ao atrevimento, e triunfam dos rendidos, sem mais trabalho que recomendarem-se silêncio, que costuma alegar a seu favor; e que em degenerando esta suavidade de espírito, perdem o preço para com os que lhes são superiores, se fazem enfadonhas aos iguais, insofríveis aos inferiores, e aborrecidas de todos, e quando prepara, para outrem o veneno, bebem a maior parte.98

Além disso, o teor das conversas nos bailes e festas também não era dos mais

elevados; segundo a narradora, restringiam-se a histórias frívolas, mostras de falsa

erudição, ou conversas fúteis que visavam apenas o divertimento e as lisonjas.

Mulheres desse tipo, segundo a personagem Delmetra, tornar-se-iam enfadonhas,

porque ninguém gostaria de sua companhia. Em resumo, o que se apresentaria é a idéia de

que na corte as damas perdem tempo com fofocas e falsos elogios. A referência à “falsa

erudição” também é importante, pois mostraria que as mulheres da corte desejam apenas

ser elogiadas, procuram falar de arte e de literatura sem realmente terem conhecimentos, o

que ao invés de servir para valorizá-las, acabaria denunciando sua ignorância. A crítica é

contundente, e o quadro é o da frivolidade e da falta de conhecimentos das mulheres da

corte.

Já as mulheres que se manteriam em silêncio, quando não há nada interessante para

se dizer, seriam superiores àquelas. O problema dessas mulheres de conversa e hábitos

fúteis, segundo a personagem, seria a falta de sabedoria: esquecem-se que o tempo passa e

quando envelhecerem (a formosura do rosto apenas nasce, tem mil contrários, que a

arruínam), perderão sua “beleza” e com ela os elogios que motivaram suas vidas.

Contudo, segundo Delmetra, as mulheres amáveis e silenciosas continuariam tendo

seu valor e seu poder, porque mesmo após envelhecerem seriam motivo de afeto e atenção,

porque sua companhia agradável e suas palavras elevadas propiciariam prazer.

Teresa Margarida parece estar pregando no seu romance o mesmo padrão de

comportamento que encontramos em outros textos do século XVIII e XVII. Embora

estejam sendo pregados o silêncio e a moderação das conversações, o interesse da autora

está voltado, ao que parece, para questões específicas da sua realidade e de seu

conhecimento: as conversas fúteis das mulheres na corte portuguesa e sua falsa erudição.

98 Orta, Teresa Margarida da Silva. Op.cit., p. 89.

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Em Casamento Perfeito cujo objetivo de Diogo de Paiva de Andrada é a busca nos

escritores greco-romanos de exemplos universais de comportamentos, que foram pregados

para os casados desde a Antiguidade, há uma ligação com modelos comportamentais

femininos filiados a uma longa tradição civilizadora e moralizante.

Nesse sentido, sua preocupação é mostrar às esposas exemplos para a felicidade

conjugal. Como seu objetivo é servir de “manual para as casadas”, procura ser o mais geral

possível, não levantando questões de sua época, para os quais possivelmente não

encontraria exemplos na tradição clássica ou na vida dos santos, por isso procura apagar

inclusive referências à classe social para que um maior número de pessoas, fossem da

nobreza ou não, pudesse utilizá-lo.

Esse apagamento social serviria para que o livro fosse mais lido. Contudo, o

apagamento não é absoluto, pois há referências de ordem econômica: criados, confortos,

educação, livros, etc, que identificam seus leitores e leitoras como integrantes das classes

mais abastadas.

Teresa Margarida estaria mais ligada a sua realidade do que Diogo de Paiva de

Andrada, por isso as questões que se apresentam no seu romance seriam mais

contemporâneas de sua época, a problematização seria mais específica: a vida na corte na

metade do século XVIII. A alegoria do mundo greco-romano é apenas um painel, um

cenário para o espetáculo real, e para os problemas que ela resolve discutir.

2.3. A família – a representação da vida privada.

No século XVIII, para se constituir uma família, segundo a lei do Estado e da

Igreja, era necessário a união entre um homem e uma mulher em matrimônio, isto é, a

constituição de um laço marital.

É o casamento (como todos sabemos) um contrato de duas vontades ligadas com o amor que Deus lhe comunica, justificadas com a graça que lhe deu Cristo, e autorizadas com as cerimônias, que lhe ajuntou a Igreja Católica. 99

Nessa época, os casamentos da elite portuguesa eram, em sua maioria, arranjados,

os pais e os pretendentes entravam num acordo, normalmente sem a participação da noiva.

99 Andrada, Diogo de Paiva de. Op.cit., 3.

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As jovens não tinham o direito de dar sua opinião sobre o casamento. Embora os rapazes

tivessem um pouco mais de liberdade do que as moças, o que acabava prevalecendo eram

os interesses familiares e a vontade paterna.

A mesma lembrança nos faz Plutarco, encomendando encarecidamente a todos os pais que casem seus filhos com pessoa de igual nobreza. (...) Convém que esteja a balança da nobreza em tão igual ponto, que não possa pender para alguma das partes; porque se pende para a da mulher, logo lhe acende a desconfiança; se para a do marido, logo lhe arrisca o sofrimento; e se não há grande cabedal de virtude ou prudência, estão mui certas as desavenças, e algumas vezes as desaventuras. (...) Estes inconvenientes, e perigos, e outros muitos, de que os livros andam cheios, costumam sempre resultar de não haver igualdade nos casamentos: e por isto mandavam os Romanos na Lei Júlia, que fossem os casamentos igualmente nobres: e quando acertassem de o não ser, não pudesse um herdar a fazenda do outro. 100

Segundo Diogo de Paiva de Andrada, para se conseguir um bom matrimônio se

deveria respeitar o princípio de igualdade, vigente ainda no século XVIII. Embora o autor

trate apenas da condição de nobreza, nos setecentos a escolha do cônjuge deveria respeitar

também a condição de igualdade quanto à idade, à fortuna e à saúde. Entretanto, era

imprescindível que os noivos pertencessem a mesma posição social para que se efetivasse o

casamento legal. A escolha dos maridos privilegiava mais as condições de nascimento, a

posição social do pretendente, do que as suas possessões ou idade.

O que prevalecia era o princípio da racionalidade, ou seja, era a razão que

permeava tal escolha, não havia lugar para o amor, ou mesmo a atração física, 101 por isso o

mais apto para decidir sobre o futuro dos jovens era sempre o pai e na sua falta a mãe viúva

ou o tutor legal.

Ilustração de Santa Rosa para Reflexões sobre a Vaidade dos Homens de Matias Aires, Ed.Martins, 1966. Note-se a representação do amor com a figura dos jovens

100Ibidem., p. 4, 5, 6 e 10. 101Silva, Maria Beatriz Beatriz Nizza da. Sistema de Casamento no Brasil Colonial, Lisboa, EDUSP, 1984, p. 69/70.

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Apaixonados e atrás deles a caveira que representa a efemeridade, isto é, o caráter momentâneo, transitório, um agouro de que a felicidade eterna não existe.

A paixão, o amor desordenado, era tida como nocivo, daí a necessidade de que a

família fizesse a escolha do cônjuge dos filhos, uma vez que somente os parentes teriam

discernimento e sabedoria para decidir o futuro da família. No romance de Teresa

Margarida, prega-se não a paixão, mas a afeição comedida102 entre os indivíduos, isso

possibilitaria um bem estar generalizado: na constituição da família e do reino, já que as

virtudes teriam o poder de propagar-se e ocasionar o bem estar geral da nação.

(...) Do próprio amor bem ordenado nasce aquele afeto, que propaga tanto, que passa à prole, à pátria, à amizade, e aos conjuntos, o qual em seus motos se alarga, como quando na água se lança a pedra; formando um círculo, outros muitos se lhe seguem; que ainda que o primeiro seja o maior, sempre é tão igualmente nobre, que adorna o espírito; e quanto mais se alarga, tanto é no racional mais próprio.103

A família era tida como a célula-mater da nação, sua função era a criação de bons

cidadãos que a fizessem prosperar, se a família não cumprisse seu papel, toda a estrutura

nacional correria o risco de ruir. Por isso, o estado português estava constantemente

preocupado com a formação das famílias e com seus problemas. O rei e seus assessores

além de suas funções públicas, eram requisitados constantemente para intervir em questões

de ordem familiar.

A importância dessa intervenção do Estado é evidenciada também no discurso

romanesco. Note-se que o soberano é tido como tutor de seus vassalos, daí a importância de

sua vigília, as leis são um instrumento de punição e de premiação para manter a

estabilidade do reino, além disso o próprio soberano deve ser fonte de inspiração, modelo

exemplar para seus súditos.

As despesas demasiadas (lhe respondi), e as praças guarnecidas de vagabundos. O que não devem consentir os Soberanos, porque hão de dar conta aos Deuses imortais dos costumes, e bens das suas Repúblicas, não como senhores, mas como tutores: e assim devem castigar aos que mal obram e premiar aos que bem servem; porque ainda que não foram companheiros dos

102 Tanto em Aventuras de Diófanes como em outros textos da época, é fácil encontrar o repudio à paixão, ao amor desregrado e violento. No século XVIII, esse tipo de sentimento era tido como extremamente danoso, pois a pessoa deixava de ser guiada pela razão. São constantes as comparações dos apaixonados com loucos, néscios, cegos, doentes: quem pudera dizer a todas (as pastoras) o tormento, que eu padeço, para que se acautelem antes de cair doentes! que isto é morte, que dura sempre; agonia, que não acaba; dor, que de cada vez mais cresce, e a desgraça maior que todas. (p. 96). 103 Orta, Teresa Margarida da Silva, Op.cit. 170/171.

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vassalos nas culpas, o serão nas penas. A perpétua estabilidade de um Reino só costuma conservar a reta distributiva de prêmios, e de castigos; porque assim como estes são demoras da maldade, costumam aqueles obrigar as vontades, e conciliar amor, animando para as heroicidades; e em se premiarem os merecimentos, se publicam leis para criar beneméritos; e castigando um réu, se põe o mais forte padrão, para que ninguém o seja; assim como ao Soberano tanto devem amar os bons, como temer os maus, fazendo que se persiga a humildade, e que da fortuna conhecerão que esta não é segura, não a afiançando boas obras; e aos que injustamente perseguir a desgraça, animará alguma justa esperança; e como é preciso mais ânimo para vencer os vícios, que valer para cometer os exércitos, o Rei que não for casto, é preciso que seja cauto, para não dar escândalo aos vassalos, com o que aumentaram as glórias de seus nomes Alexandre, Marco Aurélio, Cipião, e outros varões admiráveis. 104

Se a família é responsável pela formação dessa nação, um dos objetivos principais

desse tutor deveria ser sua regulação e constante vigia, porque dependeria da sua

estabilidade e organização o futuro do estado nacional. Atribuir ao soberano a função de

tutor é o mesmo que chamá-lo de “pai da nação”, isto é, concede-lhe uma importância

muito maior na vida de cada cidadão e na sua vida privada.

Essa visão de soberano como guia de sua nação está ligada ao Antigo Regime, ao

século XVII, em que a função do rei era primordial, aquele que comandava e regulava seu

reino. Nesse sistema, postulava-se a primazia do poder régio, isto é, o poder do rei

sobrepunha-se à igreja e ao povo. No setecentos, o estilo de vida civilizado era regulado por

leis, códigos e interdições. Nesse contexto, a família se tornou lugar central na formação

moral e social, pois assim se mantinha o controle sobre o indivíduo, consolidando-se o

poder régio, autoritário.

Tais ideais não eram ilustrados, pois os iluministas franceses pregavam a liberdade

do cidadão, isto é, não existia um guia para sua formação (castas sacerdotais ou ordens

sociais), nem figuras (pai, padre, rei), nem saberes, ele próprio seria responsável pela sua

formação enquanto cidadão ativo na sociedade. Dessa forma, a própria visão de família

mudou, passando de um núcleo de interesses de linhagem, de autoridade social e interesses

econômicos para um centro de experiências e tensões psicológicas, com uma importância

muito mais afetiva.105

104Ibidem., p. 115/116. 105 Para saber sobre essas duas teorias políticas ler: Cambi, Franco. História da Pedagogia. S.P., UNESP, 1999.

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O azulejo apresenta um casal vestido segundo os padrões da moda francesa do século XVIII. Os senhores da casa vestidos de maneira luxuosa numa varanda ao ar livre, enquanto são servidos por um criado, visivelmente inferior a eles tanto pelo tamanho e vestimentas, como por sua posição servil, o casal age como se ele não existisse, nem nota sua presença. Além da moda da época, o azulejo deixa evidente a estrutura social vigente. Atribuído a António de Oliveira Bernardes, século XVIII. Aplicado no recinto da piscina do Jardim Zoológico. Reproduzido de O livro de Lisboa, Lisboa, Horizonte, 1994, p.350.

Embora apresente diferentes teóricos, a Ilustração, no geral, pregava alguns

conceitos que nos interessam: a liberdade como direito natural inalienável, a igualdade

legal, a participação de todo cidadão na legislação e um pacto entre indivíduo e governante,

daí rejeitarem a opressão e o poder absoluto das monarquias, pregando que o governante

tinha como dever zelar pelo bem comum.106 Nesse sistema, o bem comum dependeria

também de atitudes individuais, cada cidadão seria uma parte integrante e primordial do

organismo nacional com direitos e deveres, e dentro dele o comportamento individual, os

méritos e virtudes de cada uma de suas partes, afetaria toda a sociedade.

Durante o período colonial, o estado português preocupava-se muito com a

formação de famílias, principalmente no Brasil. Segundo Maria Beatriz Nizza da Silva, a

administração colonial, durante todo o século XVIII, tinha como uma de suas metas na

capitania de São Paulo incentivar os casamentos 107. Incentivando a constituição de

famílias e a fixação em vilas, a administração buscava uma ordenação dessa sociedade. A

família e os povoados eram sinônimo de organização social, o que tornava mais fácil o

controle espiritual e político, afastava a violência e os vícios.

No romance de Teresa Margarida é possível recuperarmos essa representação de

família e os papéis atribuídos principalmente à mulher dentro dessa estrutura familiar. O 106 Para saber mais sobre a Ilustração ler: Reformismo Ilustrado, Censura e Práticas de Leitura: Usos do Livro na América Portuguesa. São Paulo, USP, 1999. (Tese de doutorado da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas)

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objetivo desse trabalho é apresentar essas representações e articulá-las com outros textos da

época para verificar em que medida estes textos estão em consonância.

Dentro dessa sociedade, as atividades produtivas eram exercidas principalmente

pelos homens, às mulheres cabia normalmente gerar filhos, nutri-los e garantir o bem estar

da família. Quando a mulher desempenhava este papel, que lhe fora atribuído cultural e

socialmente, estava assumindo sua função no mundo, segundo a crença e o discurso da

época, inclusive entre os iluministas.

Por outro lado, as mulheres que se negavam a assumir tal papel, aquelas que

ousavam se intrometer na vida pública e contrariar o poder político, e portanto, rebelar-se

contra essa condição, desafiando as leis e não se portando como mandava a “cartilha”

dessa sociedade, eram marginalizadas.

Segundo Crampe-Carnabet, havia entre os iluministas uma constante preocupação

em se apresentar a diferença feminina, esta quase sempre marcada pela inferioridade, e

torná-la compatível com o princípio de igualdade baseado no direito natural. Assim

conferiam às mulheres papéis sociais: esposa e mãe, que lhes possibilitava o “ser cidadã”.

Por outro lado, não lhes era conferido um estatuto político.108 Dessa forma, apresentava-se

um modelo novo (a função social das mulheres, direito à instrução), porém justificavam-se

crenças antigas (inferioridade feminina, necessidade de ser subjugada).

No romance de Teresa Margarida, assim como em outros textos da época (tanto

ficcionais como não ficcionais) pode-se observar os modelos comportamentais atribuídos a

cada integrante da família.

O romance de Teresa Margarida apresenta como uma de suas questões centrais o

comportamento das pessoas numa sociedade civilizada. Dentre os papéis sociais

apresentados, dá-se bastante importância às funções familiares e à idéia de que cada

indivíduo cumpra suas obrigações no cotidiano doméstico para o desenvolvimento da

nação. Dessa forma, faz-se imprescindível que se apresentem e discutam os

comportamentos e atribuições que a autora designa a cada um dos integrantes familiares.

107 Silva, Maria Beatriz Nizza da. Op.cit., p. 20, 21 e 22. 108 Crame-Carnabet, Michele. “A Mulher no Pensamento Filosófico do Século XVIII.” In: Duby, G. e Perrot, M. História das Mulheres no Ocidente, Volume 3, SP/Porto, EBRADIL/Afrontamentos, 1991, p. 405/406.

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2.3.1. O marido e o pai

Em Aventuras de Diófanes, as funções masculinas estão mais voltadas para a vida

social do que para a particular. As questões apresentadas no discurso romanesco para o

público masculino tratam mais das funções políticas, de gerenciamento da nação.

Provavelmente esse fato deve-se às crenças vigentes, de que ao homem cabia a organização

política e civil, enquanto à mulher, o lar e a vida doméstica, crenças difundidas inclusive

por iluministas. Entretanto, como veremos ao longo desse capítulo, no interior do próprio

romance essa crença será subvertida uma vez que a personagem Hemirena mesmo sendo

mulher levará uma vida repleta de aventuras.

Ao longo do romance, a autora em alguns momentos evidencia funções do homem

no ambiente doméstico e mostra quais comportamentos deveria adotar . A principal função

masculina no ambiente familiar, segundo o romance, deve ser reguladora, isto é, enquanto

“chefe de família” uma de suas principais atribuições é mandar executar e ver se suas

ordens foram seguidas, para o bem comum.

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Gravura de Debret “Um funcionário a passeio com a família.” Nota-se a

colocação dos pais, cercando os filhos, e a posição do marido à frente de todos, como o guia, atrás seguem os empregados. Fica evidente a figura paterna como “cabeça da família” e seu poder tanto na família como na sociedade. A mãe também mostra a ação de vigília, pois os filhos ficam entre ambos, sua importância civilizadora e de guardiã da família também fica evidente no seu posicionamento, embora esteja atrás do marido, é ela que verifica as ações dos filhos, pois estando o pai na frente, ele guia, mas não tem visão

do que ocorre atrás dele, simbologia da vida familiar em que a mãe tem mais contato com os filhos e pode resguardá-los melhor e verificar suas atitudes. Extraído de Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, São Paulo, Circulo do Livro, vol. I, 1975, p. 162. Dessa forma, ao marido cabe pensar no bem estar de sua família. É ele quem toma

as decisões por ela, legalmente é essa sua responsabilidade. Normalmente são os outros

membros da família que executam o que ele prescreveu, portanto cabe-lhe também outra

função: a de vigilância do ambiente doméstico. Para isso, deve estar sempre alerta,

verificando tudo que ocorre no lar com a esposa e os filhos, controlando seus

comportamentos, desejos, ações, para, dessa forma, poder interceder.

Lembre-vos também, que nas ações dos pais de famílias não têm desculpa os descuidos, porque nos filhos reverbera a luz do vigilante cuidado, como as do Sol nos mais astros; e é tanto o que das boas doutrinas dependem os bons costumes, que muito mais se alegrou o Macedônio, tendo Aristóteles para instruir o filho, que quando viu nascido Alexandre, porque os documentos aperfeiçoam o ser ao homem (...).109

(...) aumentai para glória do meu trabalho o bom exemplo, com que vos hei dito, que os pais deveis persuadir os filhos a bem obrar: fazer em que se não esqueçam do que lhes pedir a inclinação (...).110

109 Orta, Teresa Margarida da Silva e. Op. cit., p. 174/175. 110Ibidem., p. 78.

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Os fragmentos acima são respectivamente discursos de Arnesto, príncipe de Delos,

e Antionor, identidade assumida por Diófanes, rei de Tebas. Note-se que o discurso das

duas personagens masculinas procuram exaltar o papel do chefe da família e sua

responsabilidade no progresso dos filhos.

No romance, a vigilância paterna tem como objetivo ensinar bons costumes,

principalmente aos filhos. Acreditava-se que havia uma tendência humana para o mal, daí a

necessidade de ensinar as virtudes, segundo Matias Aires:

Toda a ciência se corrompe no homem,; porque este é como um vaso de iniqüidade, que tudo o que passa por ele, fica inficionado (...). Nas sociedades, o mal é mais comunicável; a perdição é mais natural; o que é bom, mais depressa tende a perder-se, que a melhorar-se; os frutos da terra quando chegam ao estado de madureza, nem persistem nele, nem retrocedem para o estado de verdura; antes caminham até que totalmente se arruínem.; por isso o último grau de perfeição, costuma ser o primeiro na ordem da corrupção.111

Matias Aires postula que o homem por ser corrompido, disseminaria corrupção em

todas as suas ações, espalhando o mal e os maus costumes. Somente a Providência Divina

teria o poder de acabar com o domínio da vaidade, das paixões, inclinando o ser humano

para o bem e para as formas de alcançá-lo.

O vicio fazemos sem arte, sem tempo, sem mestre, e sem trabalho; a virtude não vem comumente, senão como fruto da experiência, da meditação, dos preceitos, e dos anos: para o vicio não necessitamos de conhecer; nem saber nada; para a virtude é-nos preciso conhecer, e saber tudo.112

Para domar a condição humana, em sua inclinação natural para o mal, ele acredita

na educação (meditação, preceitos) e também no amadurecimento (experiência e os anos).

Essa visão era compartilhada também pelo padre Theodoro de Almeida, como se vê nesse

trecho de seu romance:

Volto-me ao meu livro, em que eu tinha todo o thesouro; e a Mão suprema conduzia de maneira a minha, que o abrisse sempre onde achasse a resposta aos meus anciosos cuidados. Eis-que encontro nos Evangelhos a mais alta doutrina , o Moral mais sublime, e tudo o que póde fazer huma alma verdadeiramente grande. Ahi he que eu vi o modo pratico para imitar o grande modelo, que me fora superiormente dado: ahi he que nas sentenças maravilhosas, de que hontem vos fallei, descubri a origem da verdadeira alegria; e no mesmo tempo que hia lendo, e meditando, huma Mão superior, e incognita (sem dúvida a graça Divina) mudava o meu entendimento, e transformava o coração. As passadas idéas, com que o mundo me tinha

111 Aires, Matias. Op.cit., máxima 125, p. 168. 112 Ibidem., máxima 75, p. 88.

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educado, desapparecerão como imagens de sonho, ou erros de meninice: tirou-se-me hum véo dos olhos, huma nuvem do coração, hum pezo do peito (...).113

Nesse trecho, percebe-se que eles compartilhavam a crença de que era necessário

ensinar os homens a ir contra sua natureza negativa. Por isso, a preocupação do pai com os

filhos era tão grande, partia-se da crença de que o ser humano era naturalmente inclinado

para o mal, por isso somente uma boa formação, bons exemplos, poderiam transformá-los.

Para isso, os pais deveriam se preocupar com o cotidiano dos filhos, seus

comportamentos e sua aprendizagem. Contudo, não podemos esquecer que os próprios

romances estavam no cerne dessa discussão: vistos por alguns como forma de bem educar,

como Teresa Margarida e Theodoro de Almeida, e por outros como leitura corruptora.

Dessa forma, ocorre uma metalinguagem: nos seus romances ambos vão pregar a leitura

edificante, categoria na qual seus próprios livros poderiam ser inseridos.

Em Aventuras de Diófanes, embora haja a pregação de que é função paterna o

cuidado com os filhos, essa se restringe a orientá-los, isto é, centraliza-se na administração

de suas vidas, contudo veremos, ainda nesse capítulo, que a execução era função materna.

No romance, uma das obrigações paternas mais importantes é a escolha dos

cônjuges dos filhos.

(...) os pais, que cegos pela avareza, e encantados pela suavidade de seus interesses, casam as filhas dotadas de vivacidade, e mais graças do Céu, com maridos cheios de vícios, e achaques. Estas merecem que o aplauso universal lhes laureie o sofrimento, pois desde sua tenra idade se reservaram para amar um monstro; quando a lei da natureza permite desejarem bons maridos,e as do matrimônio exortam a sofrê-los: se os amam pelos Deuses, que o determinam facilmente o conseguem; mas se por si mesmas querem amá-lo, parece moralmente impossível. Têm-se visto donzelas inconsideradamente entregues pelos seus maiores a maridos tão asquerosos, que fora melhor conduzi-los ao leito, que encaminhá-los ao tálamo; porque em seus muitos anos, e mal ordenados costumes só se exercitaram em tudo o que destrói a saúde; mas nem assim deixam as prudentes consortes de lhes assistir, amá-los, e curá-los, sendo este um dos milagres do nosso sexo; e para evitar o trabalho da desunião, que entre estes é uma ordinária, não há remédio melhor que o de abraçarem os gênios dos maridos, que em lhes ganhando uma vez os corações, não se verá que resistam às vontades das mulheres; e com esta indústria haverá entre eles aquela obediência, que é como a liga admirável, que entrelaça tão estreitamente que há trabalho em discernir o que obedecem, ou o que manda.114

113 Almeida, Theodoro de. Op.cit., Tomo I, p.92. 114 Orta, Teresa Margarida da Silva e. Op.cit., p. 95/96.

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Quem está falando no trecho é a personagem Delmetra que durante uma conversa

com os pastores prega suas máximas. Ela defende que em certas circunstâncias não se sabe

quem manda e quem obedece, isto é, se a mulher souber se comportar não é necessário ser

submissa, as esposas conseguirão repartir o poder (ora mandar, ora obedecer) no casamento

com os maridos. Mas atente que a responsabilidade por essa “boa relação” é da esposa, a

mulher deve saber como conseguir esse “milagre”, é de natureza “participar desse jogo”.

Delmetra explica também que os filhos devem obedecer aos pais e aceitar suas

decisões, contudo também faz uma crítica: a de que muitos pais (e tutores) não usam

discernimento e raciocínio para fazer uma escolha tão importante da qual dependerá o

futuro da família, porém se pautam principalmente na ganância. Ou seja, o que influenciava

na escolha do futuro cônjuge não é o bem estar do filho, mas os bens e outros benefícios

conseguidos com a futura união.

Embora no século XVIII o casamento fosse visto como uma transação comercial

cuja função é trazer lucros, Teresa Margarida postula que os pais devem se preocupar não

apenas com a situação econômica da filha, mas também com o seu bem estar. Assim casar

jovens com homens muito velhos,115 doentes ou cheios de vícios não deveria ser um ato

praticado por um bom pai (ou tutor).

Teresa Margarida não se mostra claramente contra essa visão monetária do

casamento, parece apenas abominar certa atitude paterna que privilegia o fator econômico

em detrimento do bem estar familiar, entretanto exorta as filhas à obediência. A crítica

contra o abuso de poder se faz presente, porém não se pode esquecer que a própria Teresa

Margarida se rebelou contra o poder paterno ao casar contra a vontade do pai, isto é,

embora o seu discurso seja de submissão, seus atos contrariam tais ensinamentos, ela é mais

conservadora no romance do que foi em sua vida. Essa contradição pode estar intimamente

ligada ao fato de que o romance era na verdade um manual de sobrevivência feminina, um

livro de conduta para ser usado ao longo da vida, daí o discurso conservador e de acordo

com os preceitos da época, pregar atitudes tidas como “modernas” poderia inviabilizar a

sua publicação e também o apreço do público.

115 Em Casamento Perfeito, Diogo de Paiva de Andrada aconselha a não se casar jovens “na flor da idade” com quem as envelheça. Segundo ele, a contrariedade que as moças jovens têm com maridos velhos assemelha-se ao fogo da pólvora, quando se dispara uma bomba. A conseqüência

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Também Diogo de Paiva de Andrada pedia aos pais que, ao escolher seus genros,

privilegiassem primeiro o caráter, depois o dinheiro, o que mostra ser esse um problema

recorrente o qual preocupava os intelectuais e as autoridades da época:

(...) E de passagem advertimos aos pais de famílias, a quem é necessário casar filhas (porque a nenhuma se deve dar êste estado senão com urgente necessidade) que procurem com mais diligência saber dos costumes, e condições dos genros, que buscam, ou lhes oferecem, que de suas fazendas, ou dignidades, lembrando-se que diz Democrito (...): quem achou um bom genro, cobrou um filho, quem o achou ruim, perdeu uma filha. 116

A importância da escolha do cônjuge também é tematizada em Aventuras de

Telêmaco e Mentor, que representa a figura paterna do mestre, preceptor do filho de

Ulisses, tem por objetivo ensiná-lo, por isso o diálogo e a experiência são suas aliadas. No

romance, prega-se uma boa relação entre pais e filhos, ou mestres e pupilos, através da

interação. Dessa forma, Mentor dialoga com o jovem, explicando-lhe como escolher uma

boa noiva, pensando nos atributos desejáveis a boa esposa.

(...) tornou-lhe Mentor: Antíope é meiga, singela, e sisuda. Suas mãos não menos prezam o trabalho: tudo antevê ao longe, e dá providência a tudo: sabe calar, e sendo no obrar aturada não lhe arrebata: está sempre ocupada a toda hora, não há nada que a estorve, porque tudo faz a seu tempo, capricha da boa ordem da casa de seu Pai: o que para ela é melhor adorno, do que a sua própria formosura. Ainda que em tudo se esmere, e tenha a cargo o emendar,estreitar, poupar, (coisas que fazem aborrecidas quase todas as mulheres) de toda a família se faz amável: mas é porque nela não se acha, como nas demais mulheres, a paixão, contumacia, leviandade, nem condição: com um mover d’olhos dá a perceber-se, e todos temem descontentá-la; passa as ordens precisas, manda só o que pode executar-se, repreende com doçura, e repreendendo anima; nela descansa o coração de seu Pai, qual viajante quebrantado do ardor do Sol, que repousa à sombra sobre a tenra relva. Tens razão, Telêmaco, Antíope é um tesouro digno de buscar-se pelas mais arredadas terras (...).117

Fica evidente que Mentor está qualificando a jovem para ser futuramente noiva de

seu pupilo, já que ela possui todas as qualidades desejáveis para ocupar tal posição e

também despertou a admiração e o amor no jovem.

desse tipo de casamento seria a discórdia e a repugnância, além do risco de não haver filhos. Capítulo XIII Que não sejam as idades diferentes, p. 71 a 80. 116 Andrada, Diogo de Paiva de. Op.cit., “Cap. XI O meio, que se deve tomar entre a confiança, e a desconfiança”, p. 63/64. 117 Fénelon, François. Aventuras de Telêmaco, Op.cit., p. 421/422.

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Gravura de Aventuras de Telêmaco que apresenta o jovem Telêmaco presenteando Antíope, filha de Idomeneo, com a cabeça do javali que havia matado. Livro Dezessete, Versalhes, 1824.118 Percebe-se a corte do jovem Telêmaco a Antíope, para impressionar a jovem, o rapaz lhe entrega um prêmio: a cabeça do javali que havia caçado, símbolo de sua destreza na caça. Para conquistar a admiração da amada era preciso mostrar-lhe seus atributos: habilidades com as armas, coragem, eram admiradas.

Fénelon estaria pregando o diálogo, a interação, em detrimento da ação autoritária.

É evidente que se continua a pregar o poder de decisão do pai sobre a vida dos filhos, o

próprio Mentor diz a Telêmaco que ele deve conversar com o pai e obter seu

consentimento:

Telêmaco, o amor que lhe tens he justo, os Deoses ta destinão, o affecto com que a amas he arrazoado, convém esperar o beneplácito d´Ulisses. Louvo-te o não ter-lhe descoberto seus sentimentos; (...) nunca ella dará promessa a ninguém: deixando por conta de seu Pai o dalla a quem bem entender: nem já mais tomará por esposo, homem que não seja temente aos Deoses, e que cumpra quanto he do decoro. Vamos, Telêmaco, vamos para Ithaca: só me resta fazer com que encontres com teu Pai, e por-te em estado de obter huma esposa digna da idade de Ouro.119

(...) E posto que sei, que mais pode a ausência fazer perder, nem lhe quero fallar, nem fallar a seu pai no meu amor, porque só a ti te devo fallar nelle, até que Ulysses, restaurado a o seu Throno me declare que consente nisso.120

Note-se que no segundo trecho o próprio Telêmaco explicita sua posição de

conformidade com essa crença: antes de conversar com a amada e com o pai dela

apresentando usas intenções de desposá-la, precisa da aprovação paterna. Parece que o que

se está contestando é a violência das ações e as decisões intransigentes. Para Fénelon, o

118 www.fh-augsburg.de/.../17siecle/ Fenelon (consultado em 15/07/2002) 119 Fénelon, François. Aventuras de Telêmaco, Op.cit., 421/422 120 Ibidem., p. 423.

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diálogo possibilitaria uma cumplicidade entre pai e filhos, além disso, os jovens

aprenderiam os motivos por trás das escolhas efetuadas, o que conseqüentemente faria parte

do processo de aprendizagem.

Gravura de Aventuras de Telêmaco que mostra o jovem Telêmaco no Campos Elísios acompanhado de seu avô Anquises, que o guia em sua caminhada. Livro Quatorze, Versalhes, 1824.121 A superioridade de Anquises, que representa a idade e a sabedoria dos mais velhos, fica evidente na colocação das personagens, o avô está posicionado acima do jovem, enquanto o rapaz fica abaixo dele, numa posição inferior devido a sua imaturidade e juventude, por isso precisa ser guiado, o avô mostra-lhe o caminho a ser tomado,

guiando-o pela estrada, numa referência a sua experiência de vida, daí seu poder sobre o jovem.

Em Aventuras de Diófanes, Teresa Margarida prega o mesmo tipo de atitude para a

aprendizagem dos jovens, quando os pastores, de uma aldeia em que Delmetra e Belino

permaneceram, reúnem-se para discutir assuntos de interesse geral e os mais jovens

perguntam aos mais velhos sobre questões variadas, ou ainda nos conselhos e nas conversas

constantes, ao longo de todo o romance. O diálogo transforma-se, então, em elemento

básico para a interação entre pais e filhos, preceptores e pupilos, jovens e velhos. Não

podemos esquecer também que o próprio romance seria uma forma de diálogo entre

personagens e leitores, assim como nos livros de máximas entre leitores e cultura clássica,

em que se busca ensinar comportamentos ou ensinamentos.

No romance, os comportamentos são apresentados principalmente como contra-

exemplos, isto é, parte-se, nos diálogos, dos exemplos negativos, do que os maridos não

devem ser ou fazer. No trecho abaixo, Delmetra evidencia quais os sentimentos que

originam a maledicência dos homens contra as mulheres e logo em seguida, explica-os um

a um.

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Quantas são as qualidades, com que os homens dizem mal de nós? Ignorância, maldade, e loucura (lhe respondeu Delmetra). A primeira se acha em uma casta de néscios, que para se difamarem por novo estilo, dão a entender que têm grande experiência, e já crescido enfado; e como as frases dos satíricos sempre são aplaudidas (porque é grande o número dos ignorantes mal morigerados) fazem a conversação alegre, talvez porque nunca foram bem vistos; e gabando-se de favores, que eles dizem que receberam, fazem a vileza contagiosa (...)

A segunda qualidade se acha nos homens, que entregues aos vícios não podem digerir alguns trabalhos, que buscaram com a vaidade de queridos, ou com as diligências do atrevimento. Estes são como os cães, que mordidos por aqueles, com quem foram entender, correm mordendo a todos os que encontram; e como os que enganados de um pequeno alívio coçam a chaga, que acrescentam. (...)

A terceira ordem destes nossos inimigos são uns melancólicos furiosos, que têm pior afeto que a loucura, porque apenas declaram guerra a uma pessoa do nosso sexo, logo a intimam a toda a natureza, que nos defende no silêncio. Estes vendem a vingança como doutrina, e procuram persuadir a todos que o menor espírito de todos os homens, que há no Mundo, tem melhores qualidades que os das mulheres mais capazes de todo o Universo. 122

Para Delmetra, os homens falam mal das mulheres, e conseqüentemente também

das esposas, porque são levados pela ignorância (quando resolvem ser satíricos e ficar

contando mentiras e vantagens para outras pessoas), pela maldade (quando querem se

vingar de não serem amados) e pela loucura (quando pregam a superioridade masculina).

Prega-se, desta forma, que os maridos não devem falar mal de suas esposas já que são

sempre sentimentos mesquinhos que impulsionam tais atitudes. Delmetra apresenta ainda

outros exemplos de maus maridos que causam dano à família e desgostam as esposas.

Qual é o maior trabalho das casadas? os maridos imprudentes (lhe respondeu): e é tão grande a infelicidade das mulheres, que se por sorte o que lhe cabe é néscio, colérico, ou zeloso, não só lhes é preciso todo o sofrimento para os ouvir, mas também muito para os ver; advertindo que se entristecem com todas as sem-razões, ou os querem satisfazer em todas as queixas, para tão grande trabalho não bastam em uma todas as forças, que a natureza pela outras repartiu, porque se são néscios, não os convencem ajustadas razões, antes os põem em pior estado. Se são coléricos, e os não emenda a discrição, com que os sofrem, nunca se emendam do que se lhes diz. Se são zelosos, ainda que conheçam que pelo caminho de as guardar, as levam a desesperar, correm com a sua tormenta, sem que se lembrem de que o melhor modo de as ensinar a serem honestas é fazendo delas inteira confiança..123

Os maus maridos seriam aqueles que como loucos ficam reclamando sem motivo;

ou ainda os que são encolerizados e os ciumentos. Os loucos infernizariam a vida da

esposa, já que é impossível agradá-los ou agüentar seus desmandos. Os encolerizados por

121 www.fh-augsburg.de/.../17siecle/ Fenelon (consultado em 15/07/2002) 122 Orta, Teresa Margarida da Silva. Op.cit., p. 91/92.

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serem excessivamente nervosos, tornam-se violentos, agridem e discutem. E os ciumentos

enclausuram suas esposas, porque desconfiam delas.

(...) os homens dão lugar aos confiados, para que se atrevam a falar-lhes mal de suas mulheres, devendo severamente repreender (senão castigar) aos que a isso se atrevem; porque quase todos anima o interesse de se introduzirem com o simples, que os ouve. Também há alguns tão indignos maridos, que mais as querem ver brincando que fiando, por se livrarem de lhes darem o preciso.124

A personagem apresenta ainda como bons comportamentos maritais o não dar

ouvidos às intrigas e maledicências de outras pessoas e o bem cuidar de suas esposas: não

instigando-as aos divertimentos ao invés das suas obrigações. O marido deveria, portanto,

cuidar do bem estar da esposa e dos filhos, provendo suas necessidades.125

Como se pode notar, o romance Aventuras de Diófanes apresenta para o leitor um

retrato de comportamento de bom marido, deixando implícitos, ao longo do romance,

comportamentos essenciais para um bom matrimônio e a convivência da família.

Em Casamento Perfeito, no entanto, não há implícitos, todas as idéias são

claramente expostas e estão organizadas para que o leitor encontre o que quer: há capítulos

sobre os comportamentos da esposa e do esposo. Aquilo que aparece diluído no romance,

apresenta-se diretamente no livro de máximas:

(...) e visto como as mulheres sofrem tão mal o que padecem por vício, ou culpa de seus maridos, fica tão perturbada a paz, e amor dos que jogaram, como dos que desperdiçaram sua fazenda.126

(...) e quando os maridos tratarem de ser devotos, e virtuosos, e com obras derem a entender a suas mulheres, que justamente os têm nessa conta, claro está, que há de crescer o amor entre eles à medida da opinião de sua virtude; e como no amor, que chega a semelhantes termos, não pode haver vícios, que se imitem, nem desavenças, de que se vinguem, fica somente esta competência da virtude fazendo-os crescer cada vez mais na perfeição de seu estado.127

Embora Diogo de Paiva de Andrada acredite numa fragilidade maior de caráter nas

mulheres (por serem menos prudentes, têm mais necessidade de ser advertidas), também

123Ibidem., p. 94. 124Ibidem., p.94/95. 125 Em Casamento Perfeito, Diogo de Paiva de Andrada apresenta uma série de qualidades que o marido deve ter para alcançar um bom casamento: que sejam os homens casados modestos e recolhidos, que se guardem de todo jogo, não ser pródigo nem avarento, que sejam devotos, e virtuosos. 126 Andrada, Diogo de Paiva de. Op.cit., p. 124. 127Ibidem., p. 133.

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postula, como Teresa Margarida, uma grande responsabilidade para o marido na felicidade

do casal. Atualmente pode parecer óbvio que a esposa e o marido dividam o poder e as

responsabilidades dentro do matrimônio, contudo nem sempre foi assim, em outras épocas,

à mulher era conferida toda a responsabilidade pelo sucesso do casamento, e

principalmente pelo seu fracasso.

As qualidades expostas no romance de Teresa Margarida referentes ao marido,

parecem estar em consonância com a época, pregando-se valores como o poder paterno

sobre a família, sua função de provedor, seu estado de constante vigília; evidenciam-se

também outras idéias visíveis em outros textos do século XVII: o diálogo e o não

autoritarismo paterno, em Aventuras de Telêmaco, a responsabilidade do marido no bom

andamento do matrimônio e do pai na escolha do genro, em Casamento Perfeito. Contudo,

a crítica claramente expressa contra os casamentos por interesse e as críticas aos maus

comportamentos de maridos (violência, ciúmes etc.) não parecem ser insignificantes, visto

que foram feitas por uma mulher, num contexto em que tal participação ainda era escassa.

Não podemos esquecer que Teresa Margarida era uma “estrangeirada”, e como tal

havia tomado contato com os ideais iluministas e com as idéias e concepções que se

propagavam através da Europa. A representação de esposo e de pai que se apresenta em seu

romance está inserida no dilema de seu texto, e por que não de Portugal, a tentativa de

tentar conciliar os novos ideais com os antigos, tentando uma acomodação. Por isso, co-

existem elementos tradicionais com outros inovadores. Todavia, ela não era a única

estrangeirada em Portugal, e alguns comportamentos pregados em Aventuras de Diófanes,

parecem estar também em outros romances e livros de máximas, como veremos ainda mais

ao longo desse capítulo.

Entretanto, não podemos deixar de valorizar a coragem da romancista ao expor

comportamentos masculinos de sua época. A sua crítica tem o poder de nos fazer entender

um pouco melhor as contradições e os problemas enfrentados pelas famílias no Brasil e em

Portugal durante o setecentos.

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2.3.2. A esposa e a mãe

A função feminina familiar no século XVII e XVIII centrava-se principalmente na

administração doméstica: cuidar do lar e do bem estar da família, em especial dos filhos,

como detalharemos mais adiante.

seu principal cuidado deve ser instruir e educar os filhos de forma cristã, cuidar com diligência das coisas da casa, não sair sem necessidade nem sem permissão de seu marido, cujo amor deve ser superior a todos, depois de Deus.128

No romance, à figura feminina no âmbito familiar eram atribuídos os cuidados com

a saúde: era a mulher quem se preocupava com os alimentos que deveriam ser servidos, sua

qualidade, preparação; também se ocupava com as doenças – era ela quem cuidava dos

doentes, medicava-os e lhes restabelecia a saúde.

(...) Não lhe deu manjares delicados semelhantes aos que lhes haviam servido em Tebas, mas sim dos inocentes, em que não periga a saúde, compunha-se finalmente o jantar de ervas, frutas, leite, e favos de mel. Agora vejo ( lhe disse Antionor) qual é o gosto dos que com alegria comem; porque estes manjares, que me permite a vossa bondade, me são mais saborosos, que os delicadíssimos, que de sua Real mesa me fazia participar Anfiarau (...).129

(...) e como estavam fora de Argos, e já na campanha de Micenas, se ofereceram ao serviço daqueles rústicos, e foram admitidos em casa de Leda, que vestindo a Delmetra, lhe encarregou a assistência de uma velha enferma, e entregou seus rebanhos a Belino (...).130

Em Aventuras de Diófanes, a personagem Delmetra cuida da alimentação do

hóspede. Prega-se a moderação na alimentação, do que conseqüentemente adviria a saúde

e o bem estar; já o excesso, a gula e a bebedeira seriam sinônimo de mau comportamento e

falta de saúde.

Quando houvesse problemas de saúde, a atuação feminina também seria

imprescindível, porque, como se vê no romance, também era a mulher que ficaria

encarregada de cuidar e restabelecer a saúde do enfermo: com seus cuidados, remédios,

alimentos e também com o desvelo e a dedicação com os quais deveria assisti-lo. Assim,

essas funções femininas mostram a preocupação que a mãe/esposa deveria ter com os

aspectos físicos dos seus familiares. Poderíamos citar outros, como cuidar das dependências

128 Arceniaga, Manuel de. (1724) Apud Del Priore, Mary. A Mulher na História do Brasil, São Paulo, Contexto, 1994, p.18/19. 129 Orta, Teresa Margarida Silva e. Op. cit., p. 130. 130 Ibidem., p. 86.

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do lar e da higiene da família, mas todos eles estão centrados num mesmo princípio: o do

bem estar físico familiar.

A segunda responsabilidade feminina tinha relação com a formação familiar, com

seu lado psicológico, com seu comportamento, com seus hábitos culturais e sociais.

(...) que é difícil conservar a perfeição da verdadeira mãe de famílias; ou seja pela educação dos filhos, em que todo o cuidado é pouco, ou pela modéstia, e bons costumes das pessoas, de quem se servem, de que muito dependem as grandes casas, para que o respeito as tenha por sagradas. Tanto que me acostumei àqueles , com quem convivia, busquei modo de ganhar-lhes as vontades, conforme seus gênios, para os persuadir a se governarem com melhor economia, para os filhos se sujeitarem aos pais, os moços respeitarem os maiores, e se aplicarem, e para as mulheres darem maior preço a sua estimação no resguardo de suas pessoas, em que se acautelarem no falar, e nos exercícios cotidianos, e eu as ensinava ao que elas podiam admitir, por ser grande a sua rusticidade.131

Dessa forma, a mãe/esposa deveria preocupar-se com a educação dos filhos, com

seu comportamento e seus hábitos. Isto é, ela deveria cuidar para que sua prole tivesse os

comportamentos socialmente aceitos, o que é o mesmo que dizer que sua função é a

apresentar-lhe modelos comportamentais. Entretanto, não eram somente os filhos que

deveriam ser instruídos na “arte de se comportar bem”, também os criados, e até mesmo o

marido/pai.

A mãe/esposa assume então o papel de “civilizadora”, ou seja, é a mulher a

encarregada de perpetuar os comportamentos nessa sociedade, de propagar os tidos como

mais acertados. Ela torna-se a “sapiente”, aquela que guarda a chave do bom

relacionamento entre as pessoas; a instrutora, aquela que instrui os demais na “arte de se

comportar em família e em sociedade”; a conselheira, aquela que sabe avaliar os problemas

cotidianos e resolvê-los. A figura da mãe civilizadora é central no romance e de extrema

importância para se entendê-lo.

Para que sua função se efetivasse a esposa/mãe, enquanto instrutora deveria se

preocupar com todo modelo que é apresentado para a sua família, tanto ela como o marido

deveriam ser exemplos para os filhos, por isso ambos teriam que apresentar boas condutas,

assim como todos que fossem aceitos no convívio do lar. Dessa forma, não haveria a

apresentação de maus comportamentos. Pai e mãe são apresentados como exemplares, pois

deles dependem a não corrupção dos filhos e sua boa educação, a família e a nação também

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dependem de sua conduta. No romance, tudo é exemplar, um modelo a ser seguido pelos

leitores para alcançar uma boa vida privada e social.

Ah que se muitos pais soubessem conhecer quanto são prejudiciais as más companhias, e o mau exemplo, não haveriam famílias destruídas pelos vícios, que herdam uns dos outros! E não acabam de conhecer que o verdadeiro amor para com os filhos deve consistir em os não habilitar para os aumentos, persuadindo-os com o bom exemplo a que procedam bem (...).132

A importância da educação e da formação dos filhos nas atividades maternas era

tão grande que a apresentaremos mais detalhadamente logo adiante, visto a quantidade de

questões implicadas.

Para que esta estrutura familiar funcionasse, dada a importância do papel feminino,

era imprescindível que a esposa/mãe cumprisse sua função, aceitando-a completamente.

Para isso, ensinava-se um modelo de comportamento feminino que pregava a submissão.

(...) a mulher discreta não deve querer mais que o que permitem as posses do marido, ensiná-lo a ser moderado, sofrendo com galantaria as suas incivilidades, calar o que suspeitar, e dissimular o que sober; eles vieram primeiro ao Mundo, fizeram as leis, e tomaram para si as regalias; e já que são mais velhos, não há mais remédio que fazer gala da sujeição, viver com eles e ter paciência; porque se advertirem que não são isentos de naufragarem na Estígia, ordenarão bem as suas ações; e as mulheres que desempenharem as obrigações de seu estado, irão a descansar nas odoríferas sombras dos Elísios.133

Para justificar, a submissão e a imposição, como se vê no trecho acima,

normalmente usava-se a religião: as mulheres que cumprissem suas obrigações de

esposa/mãe seriam recompensadas com o Paraíso.

O primeiro, e principal é uma esperança bem fundada de serem todos predestinados, que é o remate das felicidades, e como este bem se não pode conseguir, senão com sólida, e verdadeira virtude, e os casados por o serem perfeitos é necessário que tenham a mesma, como atrás deixamos provado, bem se infere, quão particular correspondência tem a salvação das almas com a perfeição dos casamentos.134

Tanto Teresa Margarida como Diogo de Paiva de Andrada mostram que a

responsabilidade pelo casamento e pela família deve ser dividida pelo casal. Entretanto,

Teresa Margarida apresenta um paradoxo: a importância do papel feminino na família e,

por outro lado, sua submissão ao marido, seu espírito de resignação, já que deve viver de

131Ibidem., p. 148. 132 Ibidem., p. 100. 133 Ibidem., p. 95. 134 Andrada, Diogo de Paiva de. Op.cit., p. 193.

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acordo com suas posses, obedecer suas ordens, mesmo quando ele estiver errado ou se

comportar mal.

No romance, a personagem Delmetra aconselha que a mulher deve aceitar a

opressão. Como já foi dito, elas não usufruíam a liberdade de escolha: nem de marido, nem

de modo de vida. Primeiro, elas estavam condicionadas à vida que os progenitores lhes

proporcionassem. Posteriormente, viveriam conforme as posses dos maridos. Quanto maior

o poder aquisitivo familiar da mulher, ou quanto mais elevada sua condição social, menos

liberdade sobre sua vida ela tinha.

Alguns iluministas portugueses do século XVIII já valorizavam a importância da

mulher na vida familiar e em sociedade, como Verney, todavia havia controvérsias. O que

se apresenta em Aventuras de Diófanes parece ser essa dicotomia: a valorização feminina e

sua realidade de opressão.

Embora o romance de Teresa Margarida negue essa concepção de que a mulher é

um ser mais fraco, menos capaz, também não se trata de nenhum manifesto feminista, que

pregue a emancipação feminina, porém existe um discurso a favor da “igualdade” entre

homens e mulheres, e, portanto, de direitos iguais para ambos. Contudo, para o equilíbrio

do mundo, para a constituição de boas famílias é necessário que homens e mulheres vivam

em harmonia, casem-se, formem famílias e se dediquem à boa criação de seus filhos, para a

criação de um mundo próspero.

Não se pode esperar muito mais que isso, a valorização das funções e das

habilidades femininas. Não se pode esquecer que no século XVIII, embora o Iluminismo

tenha apresentado um discurso filosófico que eliminava as diferenças de raça e de sexo, foi

elaborado por homens, por isso acabou justificando a inferioridade do sexo feminino. Por

outro lado, não se pode esquecer o mérito de ter-lhe atribuído uma função social e direitos.

Teresa Margarida também defende o casamento, e principalmente o amor, como

fórmula essencial para modificar toda a sociedade, todos os reinos, inclusive Portugal. Bons

casamentos, ou seja, casamentos entre pessoas virtuosas, gerariam bons pais e mães que por

sua vez gerariam filhos virtuosos e bem instruídos, que por sua vez se tornariam bons

cidadãos, modificando assim o reino, na ficção, e Portugal, na realidade. O que a autora

propõe é uma estrutura cíclica em que uma mudança implicaria em outras mudanças, que

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seriam capazes de juntas operar uma grande transformação: o progresso da nação. Tudo

isso centrado na imagem do “cidadão”.

Aventuras de Diófanes apresenta um discurso feminino, com questões de interesse

das mulheres de sua época e apresenta também discussões pertinentes ao seu contexto:

como a valorização da figura feminina dentro da família e da sociedade, ideal iluminista,

contudo seu discurso não é feminista, combativo ou agressivo, por isso a leitura desse

romance é tão relevante. O romance foi muito lido e bem aceito pelos leitores, como

atestam suas sucessivas edições, o que mostra que o discurso romanesco atingiu seu

objetivo: fomentou uma discussão importante para a época, o papel feminino na sociedade,

e por outro lado, sua meta foi alcançada através da ficção, de maneira indireta, alegórica.

Daí sua importância.

2.3.3. Educação Feminina

Uma das principais funções maternas, como já foi dito, era a educação dos filhos.

Acreditava-se que as pessoas e principalmente os jovens e as crianças eram influenciáveis.

Por isso a educação formal e informal privilegiava o exemplo, ou melhor os bons exemplos,

edificantes da moral e dos bons costumes.

As casadas devem sempre acautelar-se na presença das donzelas, pelo que do exemplo se pode recear; assim como é em todas conveniente uma discreta elevação, com que não estimem as liberalidades, nem queiram mais grandeza que o desprezá-las; porque as que desejam mais que o que lhes permite a sua esfera, estado, e possibilidade, têm mais um inimigo para vencer o seu coração.135

No romance, a personagem Delmetra explica que a formação dos jovens era

primordial, principalmente das donzelas. Para concretizá-la era necessário que as mães se

preocupassem em ensinar-lhes somente valores elevados, ou melhor, os comportamentos

mais adequados, segundo essa sociedade. E quem estaria mais apto a ensinar como uma

jovem deve se portar senão uma matrona que já teria a experiência de vida necessária para

ela espelhar-se.

Dessa forma, se cristalizariam apenas os comportamentos mais aceitos por essa

sociedade, preservados pelas próprias mulheres que se comportaram conforme esses

preceitos. Assim formava-se um discurso passado de mães para filhas ou de esposas para

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futuras esposas que pautaria os comportamentos. Essa forma de transmissão não foi a

única, porém parece ter sido comum.

A preocupação com a educação, em especial a feminina, não se originou no século

XVIII. Na França, esta temática já era abordada por Fénelon em 1696, quando escreveu seu

livro A Educação das Meninas.

Ensine uma moça a ler e a escrever corretamente. É vergonhoso, porém comum, as mulheres que têm o talento e a civilidade, não saber bem pronunciar o que elas lêem; ou elas hesitam, ou elas recitam como se lessem, no lugar de pronunciar em tom simples e natural, mas firme e uniforme. Elas erram também mais grosseiramente pela ortografia, ou pela maneira de dispor ou de associar as letras ao escreverem (...).136

Como se verifica no fragmento acima, ele acreditava que era necessário ensinar as

jovens a ler e a escrever corretamente. Além disso, pregava também que deveriam aprender

ainda as quatro operações aritméticas para auxiliá-las com as contas, corriqueiras na

economia doméstica.

É evidente que a formação que ele propõe para as mulheres, relaciona-se com as

funções que lhes eram atribuídas: cuidados domésticos e educação dos filhos. Tudo que

excedesse a esse objetivo, não era bem visto por ele, como, por exemplo, a leitura de

poesias, a música e a pintura. Esses conhecimentos não teriam nenhuma utilidade nas

tarefas diárias femininas, aliás podiam ser tidas como “perda de tempo”, pois além de

desviar a atenção das mulheres de suas verdadeiras obrigações com a família serviam para

estimular a criatividade e a imaginação, coisas tidas como perigosas.

Rousseau em Emílio ou Da Educação137 postulava que as mulheres deveriam estar

sempre preocupadas com as necessidades dos homens, isto é, elas deveriam agradá-los,

sendo-lhes úteis; deveriam se fazer amar e honrar, educar os jovens, cuidar dos adultos, 135 Orta, Teresa Margarida da Silva e. Op.cit., p. 89. 136Apprenez à une fille à lire et à écrire correctament. Il est honteux, mais ordinaire, de devoir des femmes Qui ont de l’esprit et da la politesse, ne savoir pas bien prononcer ce qu’elles lisent; ou elles hésitent, ou elles chantent en lisant, au lieu qu’il faut prononcer d’un ton simple et naturel, mais ferme et uni.Elles manquent encore plus grossièrement pour l’orthographe, ou pour la manière de former ou de lier les lettres en écrivant (...). Fénelon, François. De L´education des filles, In: Ouvres, Gallimard, 1983, p. 160.

137 Estudos mais recentes sobre a Pedagogia de Rousseau puseram em destaque a existência em suas obras de dois modelos educativos bem diferenciados. De um lado, o modelo de educação natural e libertária que privilegia a formação do homem, visto em Emílio; de outro, uma educação

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aconselhá-los, dar-lhes uma vida agradável e suave, estes eram os deveres das mulheres. A

esposa-mãe era a responsável pelo bem estar e pela satisfação dos membros da família, um

verdadeiro anjo protetor que zelaria por todas as suas necessidades sempre abnegada e

carinhosa.

Segundo ele, para que as mulheres pudessem desempenhar bem tais funções,

deveriam ser educadas desde a infância. A ignorância, a falta de preparação das meninas

ocasionaria um grande dano à família e à sociedade, já que as futuras esposas e mães não

saberiam a forma correta de agir em família e muito menos em sociedade. Havia a

necessidade de ensinar-lhes comportamentos, doutriná-las para que desempenhassem seu

papel familiar e social com maestria. O que ele estava propondo era a sistematização de um

processo que já acontecia: a educação para a submissão.

A diferença é que antes a própria mulher (esposa e mãe) participava menos

diretamente desse processo e não lhe era atribuída nenhuma função mais específica. A

partir do século XVII, isso foi se modificando e a mulher passou a ser valorizada, tornando-

se a educadora dos filhos: ela deveria passar lhes a hierarquia de poder, ensinar aos filhos

homens a arte de mandar e às filhas mulheres a de obedecer 138. Nessa sociedade não

haveria nenhuma possibilidade de homens e mulheres terem os mesmos direitos ou

posições .

Primeiro, as mulheres eram guiadas pelo poder paterno e posteriormente pelo

marido. E eles tinham plenos poderes perante a lei para cuidar de seus bens ou puni-las, de

acordo com seu arbítrio. As mulheres só podiam aprender e fazer o que os homens

determinassem e sua maior forma de domínio residia na educação feminina, maneira

eficiente de ensinar os comportamentos “adequados” segundo a visão e a estrutura de poder

masculina. Dessa forma, perpetuava-se a estrutura social e familiar, cristalizavam-se

comportamentos e valores.

Alguns intelectuais do século XVIII diferiam em partes das idéias de Rousseau, e

pregavam que as mulheres deveriam ser instruídas também para entreter. Assim, a esposa

social e política desenvolvida pelo Estado, que aparece em Considerações sobre o governo da Polônia, obra póstuma de 1782. Para saber mais ler: Cambi, Franco. História da Pedagogia. 138 Com Emílio, Rousseau influenciou profundamente o pensamento pedagógico moderno, propondo uma nova concepção de infância e uma nova atitude pedagógica, embora tenha relegado à mulher uma posição naturalmente subalterna em relação ao homem,

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deveria satisfazer a família com conversas e atividades agradáveis. Luis António Verney foi

um deles.

Quanto ao cantar e tocar instrumentos, não me parece ser de precisa necessidade às mulheres, ainda civis. Se se aprendesse quanto bastava para entreter, ou no campo, ou em casa, a sua família, não o condenaria. Sucede algumas vezes que uma filha que canta e toca diverte um pai, ou mãe, que padece enfermidades habituais; e neste caso, o ter estas prendas pode ser virtude e ter merecimento. Pode também uma senhora aprender estas partes, para se divertir a si nas horas ociosas, e entreter-se modestamente; e disto digo o mesmo.139

Em seu já mencionado livro O Verdadeiro Método de Estudar, diferentemente de

Fénelon e Rousseau, como já foi visto, propunha que as jovens aprendessem o canto e a

dança com o objetivo de se ocupar e divertir a família. Segundo ele, a situação da educação

das mulheres no reino de Portugal e nas suas colônias era terrível. Entre as suas propostas

estava a educação feminina:

Certamente que a educação das mulheres neste Reino é péssima; e os homens quase as consideram como animais de outra espécie; e não só pouco aptas, mas incapazes de qualquer gênero de estudo e erudição. Mas, se os Pais e Mães considerassem bem a matéria, veriam que têm gravíssima obrigação de as ensinar melhor; e que de o não fazerem resulta gravíssimo prejuízo à República, tanto nas coisas públicas, como domésticas.140

Cuidar da educação feminina seria, então, primordial para ele, uma vez que esse

não era um problema que afetava apenas a esfera privada, mas principalmente a pública.

Não se pode esquecer que ele via na mulher a mãe dos futuros cidadãos portugueses. Com a

sua ignorância só poderiam ser criados filhos também ignorantes.

A educação formal era ministrada principalmente às mulheres da elite em

conventos e recolhimentos. Segundo Arilda Ribeiro, os conventos apareceram no Brasil

somente na segunda metade do século XVII, antes disso as famílias mais abastadas

enviavam suas filhas aos conventos portugueses. Como ela mesma cita, Teresa Margarida

teria sido um dos raros casos de uma jovem de família abastada, que estudou num convento

português, e se destacou no campo intelectual 141.

(...)E não te davam nesse tempo ocupação, em que empregar-te? Nos primeiros meses (lhe respondeu) em os empregos de servir a casa, de que eu não tinha nem a mais leve notícia, padeci inexplicáveis contratempos, porque haviam sido outros os meus exercícios, e não sabia servir em o que ali me mandavam. Que prendas tens? Lhe perguntaram. Fui, Senhoras, instruída (lhes respondeu)

139 Verney, Luís Antônio. Op.cit., p. 143/144. 140 Ibidem., p. 148/149. 141 Ribeiro, Arilda Inês Miranda. Op.cit, p. 89/91.

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em a Música, Poesia, e alguma parte de Astronomia; mas quem renasce em novo ser tão desgraçado, perdendo de vista o gosto, se conserva as prendas na memória, é obrigada a vontade a desprezá-las como ruínas do tempo. 142

A personagerm Hemirena dialoga, nesse trecho, com as princesas de Atenas,

Beraniza e Argenéia, e mostra que os hábitos e costumes, as ocupações femininas, eram

determinadas por sua classe social. As mulheres das classes mais abastadas ocupavam-se

com amenidades, por isso sua educação visava as artes: música, poesia, pintura, o que era

uma prática comum desde a Antiguidade, enquanto os homens da elite social cuidavam da

arte política ou bélica, as mulheres ocupavam-se com as artes amenas, de entretenimento.

Hemirena não dominava a arte de “servir”, o que reforça a idéia de que ela era de

classe elevada. Também foi bem instruída, além disso tinha conhecimentos de astronomia,

o que implicava em conhecimentos físicos e matemáticos, em aquisição de conhecimentos

científicos, portanto, numa educação formal: mestres, livros, bibliotecas, pesquisas. Para se

poder ter uma educação desse tipo eram necessários “cabedais”, uma boa condição

financeira, pois boa instrução e conhecimento científico demandavam uma condição

econômica privilegiada.

A própria Teresa Margarida também ocupou uma posição privilegiada, teve acesso

à educação no Convento das Trinas, como já vimos, onde foi instruída em música e

poesia.143 Segundo Arilda Inês Miranda Ribeiro, pouco se sabe do que se ensinava nos

conventos. Provavelmente se ensinava leitura, escrita, música, trabalhos domésticos,

principalmente feitura de doces e de flores artificiais.144 Seu contato com o irmão e com

outros intelectuais, atesta seu gosto pelas ciências naturais, pela matemática e pela

astronomia, como já foi visto.

No romance, apresenta-se o domínio das artes como virtude. A dança, a música, a

pintura e até mesmo o conhecimento de arte poética eram muito valorizados como prendas

necessárias para a vida em sociedade no setecentos.

Quando apascentava o gado, cantava suavemente, fazendo que renascessem com a maior glória os antigos varões, de quem repetia os mais cadentes versos. (...) As pastoras, querendo imitar o canto de Belino, se

142 Orta, Teresa Margarida da Silva e. Op.cit., p. 67. 143 Ribeiro, Arilda Inês Miranda. Op.cit., p. 91. 144 Ibidem., p. 101.

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exercitavam em seus inocentes festejos. Delmetra juntamente animava aqueles divertimentos (...).145

Mas no caso de Hemirena, a jovem também domina as ciências, conhecimento em

evidência no século XVIII. Maria Beatriz Nizza da Silva, em Cultura no Brasil Colonial,

fez um levantamento na Gazeta do Rio de Janeiro sobre as matérias oferecidas aos

meninos e às meninas do período colonial. Sua conclusão foi que, quando se tratava de

meninas, a sociedade carioca priorizava o ensino da leitura, escrita, costura e bordado.

Valorizavam-se também as prendas sociais, a música, a dança, o canto e o desenho 146.

Embora trate de um período posterior, tal levantamento serviu para evidenciar a valorização

do ensino às mulheres das artes para o entretenimento no Brasil e em Portugal.

Costumes de São Paulo no começo do século XIX. Gravura de Rugendas, Viagem Pitoresca através do Brasil. Extraído de Histórias e Tradições da Cidade de São Paulo, de Ernani Silva Bueno, Vol. I, São Paulo, José Olympio, 1953, p. 431. Nota-se na gravura a valorização da música e do canto como atividade social, interação entre homens e mulheres. Nesta representação o grupo é composto por pessoas de ambos os sexos, que pertencem à elite, pois possuem vestimentas caras e adereços: chales, leques etc., as damas estão acompanhadas de um provável serviçal. O clima é de divertimento e de descanso, o que só pode ser desfrutado pela elite durante o dia.

Na educação masculina, a autora verificou que além do ler e escrever havia uma

maior variedade de disciplinas oferecidas pelas aulas particulares: catecismo, religião,

moral, política, filosofia, gramática latina, matemáticas puras, matemáticas aplicadas à

145 Orta, Teresa Margarida da Silva e. Op.cit., p. 86/87. 146 Silva, Maria Beatriz Nizza da. Cultura no Brasil Colonial. Op.cit p. 99.

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geografia, marinha, arquitetura, comércio, aritmética, álgebra, trigonometria, astronomia,

desenho, pintura, belas-letras etc.147

Por isso, nessa época, valorizava-se a instrução das jovens voltada para as “prendas

domésticas”. Todo conhecimento adquirido pelas jovens deveria ser relacionado às suas

tarefas no lar: fiar, coser, cozinhar. Certamente, as jovens de famílias mais abastadas não

precisariam fazer o trabalho manual diretamente, porém era sua obrigação saber ordenar os

serviços domésticos e verificar o trabalho dos criados. Por isso aprender a escrever era visto

como uma atividade ligada às funções domésticas: fazer previsões de gastos, salários,

tempo despendido em tarefas, livros de contas, livros de recitas, listas de compras etc.

No caso da jovem pertencer as classes mais abastadas, sua educação poderia

contemplar o entretenimento, enquanto as de classes menos privilegiadas teriam como

aprendizado principal cuidar do lar, executar tarefas que promovessem o bem-estar da

família, sua higiene, alimentação etc., funções que a nobreza não exercia, pois dispunham

de criados.

Outra fonte de instrução eram os livros. A pregação da leitura era importante, se

lembrarmos que nos séculos XVII e XVIII discutia-se acerca da instrução feminina e do

perigo das leituras praticadas pelas mulheres.

(...) Há mulheres na Corte, que (...) nunca tiveram mais aplicação que a dos seus enfeites; e é cousa lastimosa que deixemos de enriquecer nossos conhecimentos necessários com a leitura dos bons livros, que são companheiros sábios de honesta conversação. Nós não temos a profissão das ciências nem obrigação de sermos sábias; mas também não fizemos voto de sermos ignorantes. Há mulheres, que em acabando os primeiros cumprimentos já não querem mais que dizer mal, e falar em enfeites, e outras semelhanças ninheiras; estas fora melhor que aprendessem a calar, se não sabem tratar o conveniente; não digo que sejam sábias como as Musas, e Sibilas; mas que conforme sua esfera, e possibilidade, se apliquem às ciências, e ao que sirva para a boa direção dos costumes, que como não são animais, que tirem das flores, veneno, não podem abusar da celestial ambrósia, que nos livros se acha (...).148

No romance de Teresa Margarida defende-se a leitura como forma de

aperfeiçoamento moral e de acabar com a ignorância. Os livros são tidos aqui como

“companheiros sábios”, ou seja, na falta de pessoas para bem instruir as donzelas, a leitura

147 Ibidem., p.100/101. 148 Orta, Teresa Margarida da Silva. Op.cit., p. 90.

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de livros bem escolhidos seria um paliativo, um substituto para a falta de alguém sábio com

quem pudessem se aconselhar e aprimorar sua formação.

Detalhe de Reflexões sobre a Vaidade dos Homens de Matias Aires, São Paulo, Martins, 1966. Na figura vê-se a representação da leitura ao ar livre, campestre, O casal parece estar num jardim, em sossego. Enquanto a jovem lê, o rapaz a observa atentamente. A leitura era tida com divertimento no século XIX, provavelmente a moça está lendo para seu acompanhante, a leitura oralizada era muito comum, ou ela lê silenciosamente um livro, enquanto ele espera que ela termine sua leitura. O clima é de intimidade, como se a leitura fosse partilhada, há uma relação entre leitura e emoção, como se a jovem estivesse “desligada” do mundo devido à leitura. A intimidade e a sensualidade aparecem nos gestos do rapaz, seu braço paira acima da jovem, tocando o tronco da árvore, seu rosto voltado para ela, a proximidade entre eles é tanto física como emocional, porém não há contato físico.

O conselho é que as jovens que tivessem condições econômicas se aplicassem às

ciências. O que se defende é que as moças de classe social mais abastada deveriam ter uma

instrução mais formal, que possibilitasse mais conhecimentos, além do básico ler e

escrever, também conhecimentos científicos. Teresa Margarida parece estar defendendo o

tipo de instrução que ela mesma teve: bons colégios, acesso a livros e ao conhecimento

científico. (...) e ao que sirva para a boa direção dos costumes, que como não são

animais, que tirem das flores, veneno, não podem abusar da celestial ambrósia que nos livros se acha porque o ignorar a gravidade da culpa, e os preceitos da modéstia, conduzem para o tropeço. Nem digo que seja útil o lerem toda a casta de livros, pois são perniciosos os que tratam das paixões , que insensivelmente costumam introduzir-se nos ânimos; porque ainda que se pintem com agradáveis cores, elevado estilo e invenções honestas, nem assim nos convém lê-los, e vasta que nos apliquemos aos que nos enchem de documentos admiráveis, e fazem temer os efeitos do ócio. A paixão que se exercita em alguma boa obra, diverte as mais, que podem inquietar o espírito, e na gostosa fadiga dos estudos tem a maior glória do entendimento, vendo pela memória desterradas as trevas da ociosidade, e ignorância, tirando os melhores exemplos de perfeição. Oh quanto será feliz a que guardar no coração estas ponderações! Pois só as desprezam as

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que , como aves noturnas, não podem ver as luzes; estas são as que deixam o honesto, e generoso de nossos costumes, com o que nos tiram o crédito, pois vivem entre os deleites, e a inveja, que as negam às venerações, e lhes arruínam a alegria.149

Entretanto, há ressalvas: não se pode “abusar da celestial ambrósia, que nos livros

se acha”, ou seja, não é qualquer tipo de livro que pode ser lido. Note-se que a comparação

é expressiva: no livro encontra-se o alimento celestial que a deusa Hebe servia aos deuses

do Olimpo para que continuassem sempre jovens. O livro seria, portanto, fonte de

sabedoria, já que a beleza não permanece, o que permanece é o conhecimento, que seria

oferecido aos mortais para ser consumido nos livros, assim como a ambrósia é o alimento

oferecido aos deuses. Poderia-se pensar ainda naquela frase célebre da Bíblia, “nem só de

pão vive o homem, mas de toda a palavra que vem da boca do senhor”. A composição é a

mesma, comparar a leitura edificante ao consumo de alimento básico para a sobrevivência.

No meu gabinete tenho maiores delicias do que posso achar lá por fora.

Nelle ajunto huma assemblea escolhida de pessoas, as mais bem instruídas nas sciencias, mais engraçadas na conversação, e mais distinctas na eloqüência. Ninguém me falta á hora que quero: tenho tal felicidade, que sem escandalizar a ninguém, só falla aquelle de quem eu faço mais gosto. Se estou em hora de gostar das delicias do Parnaso, tenho poetas admiráveis: se quero noticias de Paixes remotos, sempre ha quem me informe com miudeza, e verdade. Se me recrea a história, tenho arte para fazer vir diante de mim os Heroes mais famosos, que produzirão os Séculos, e que no curto theatro de minha casa representem os mais raros successos, que acontecerão no mundo.150

Também em O Feliz Independente do Mundo e da Fortuna, a personagem Sofia

apresenta seus livros como fonte de instrução. Todavia, nesse caso, a personagem atribui à

leitura outra função concomitante: servir de recreação e de deleite. Nota-se que os livros

cumprem um duplo objetivo: formar, ou informar, e também divertir, tanto que ela prefere

permanecer no gabinete confinada com seus amigos: os livros, do que ir praticar outras

ações: conversas, passeios, jogos etc. Além disso, é preciso notar que ela cita como

exemplos de leituras de recreação: histórias dos heróis famosos e as poesias.

Em Aventuras de Diófanes, também se enfocam os livros perniciosos cuja leitura

não traria nenhum benefício, por isso deveriam ser evitados. Que tipo de livro não deveria

ser lido então? Aqueles que tratassem das “paixões”, ou melhor, os que tivessem por tema

o “amor” (mesmo os que pintados com agradáveis cores, elevado estilo e invenções

honestas) não convinha ler. Obras desse tipo visariam apenas o divertimento, por isso 149 Idem.

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poderiam “inquietar o espírito”, com pensamentos não-elevados, e prejudicar o

“entendimento”.

Em Casamento Perfeito, Diogo de Paiva de Andrada recomenda: “ler livros

devotos, que é a lição mais conveniente, e acomodada para toda a gente Cristã; ou também

de histórias, contando que não sejam lascivas, nem amorosas; porque nestes há muitos

perigos, mal-entendidos, que às vezes causam danos bem certos (...).” 151

A leitura recomendada é a que serve de exemplo, fonte de “documentos

admiráveis”, e alerta sobre o “ócio”. Os livros que proporcionam em seu interior os

melhores exemplos de perfeição, seriam os mais recomendados, pois podem acabar com a

“ociosidade” e “ignorância” ao mesmo tempo. A leitura edificante implicaria num trabalho

intelectual que possibilitasse a reflexão, concomitantemente à aquisição de conhecimentos

práticos para o dia-a-dia.

Vós, as serranas, que não podeis instruir as filhas nas ciências, basta que não as deixeis viver ociosas, pois é tão precioso o costumá-las com o trabalho cotidiano, como ao lavrador o arado, e ao militar as armas. A natureza dotou os homens de mais força e as mulheres de mais sutileza de espírito; e às que se servem dela entregues ao ócio incita paixões ardentes, que arruínam ao entendimento; que assim como não há cousa mais amável que a bondade, não há tão segura como uma inocente, e dócil sinceridade, aplicando-se esta em repreender os Poetas, desmentir as fábulas, e vencer a ignorância, e a maldade, que nos tem por inimigas do sossego público; e persuadamo-nos de que é só bela, e admirável, a que se adorna de prudente moderação em todas as suas palavras , e só malquista entre a gente civil, as que com a ociosidade, e aspereza de gênios a todos fazem horror, sem que jamais lhes lembre que o viver é trabalhar; nem que houvessem povos , que puseram fora dos seus muros os mesmos Deuses, que não assistiam ao trabalho, nem que não deixam de padecer ultrajes as mulheres, que só exercitam o inútil. 152

A personagem Delmetra aconselha as mães que não pudessem instruir suas filhas

nas ciências devido à sua falta de condições financeiras e à dificuldade de encontrar livros e

mestres, a preocupar-se mais com a ociosidade. Por isso recomenda o trabalho honesto

como forma de promover o progresso moral já que não haveria tempo para se ter maus

pensamentos.

150 Almeida, Theodoro de. Op.cit., Tomo I, p. 65/66. 151 Andrada, Diogo de Paiva de. Op.cit., p. 156.

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2.3.4. Educação dos filhos

Em Aventuras de Diófanes, enquanto os filhos podiam ter mestres, ou serviçais que

cuidassem da sua instrução, às filhas era vetado esse tipo de contato, e as mães deveriam

manter maior controle sobre seus hábitos e sua formação.

(...) me encarreguei, como sabes, da educação de uns meninos, que suposto lhes buscavam os meios, que lhes conciliassem a boa inclinação, os domésticos da mesma casa destruíam todo o efeito daquele trabalho, como ordinariamente sucede. (...) como se para a educação dos filhos tivessem aquelas menos pesada obrigação, não me entregaram a filha, porque é tesouro tão importante, que sem muito larga experiência não se confia mais, que ao vigilante cuidado das mães.153

Segundo Delmetra, a educação das filhas “é tesouro tão importante” que não se

confia a mais ninguém a não ser as mães. Porém, não podemos esquecer que a própria

Teresa Margarida foi instruída, teve acesso à instrução em Portugal, onde estudou em

colégio de freiras, também a Marquesa de Alorna (Leonor de Almeida de Portugal Lorena e

Lencastre), poetisa famosa, esteve encarcerada no convento de Chelas onde adquiriu uma

cultura moderna (teve contato com as idéias de Locke e Voltaire).154

No Brasil, também existem exemplos de mulheres instruídas que provavelmente

tiveram mestres, uma vez que tinham pouca oportunidade de receber instrução formal, já

que mesmo no sistema pombalino, as mulheres não eram aceitas nas Aulas Régias.155 No

século XVII, Beatriz Brandão, poetisa e escritora natural de Ouro Preto, estudou francês e

italiano. No século XVIII, Barbara Heleodora da Silveira, poetisa natural de Minas Gerais,

era reconhecida por sua cultura, e Rita Joana de Sousa, de Pernambuco, escrevia prosa e

verso, também pintava e era estudiosa da História de Espanha e França.156 Por isso o

conselho de Delmetra no romance parece ser conservador. No entanto, talvez esse conselho

se insira no contexto português, uma vez que Ribeiro Sanches (1699-1782) em carta escrita

152 Orta, Teresa Margarida da Silva e. Op.cit., p. 90/91. 153 Ibidem., p.151. 154 Para saber mais ler: Coelho, Jacinto do Prado. Dicionário das Literaturas Portuguesa, Brasileira e Galega. Porto, Figueirinhas, 1980. Moisés, Massaud. A Literatura Portuguesa. São Paulo, Cultrix, 1961. 155 Silva, Maria Beatriz Nizza da. Vida Privada e Quotidiano no Brasil, Na Época de D.Maria I e D. João VI, Ed. Estampa, Lisboa, 1993, p. 21/22. 156 Para saber mais ler: Almeida, Palmira Morais Rocha de. Dicionário de Autores no Brasil Colonial, Ed. Colibri, Lisboa, 2003. Sabino, D.Ignez. Mulheres Ilustres do Brasil, Ed. das Mulheres, 1996.

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em 1754 desaprova o hábito, recentemente introduzido entre os nobres, de contratar mestras

estrangeiras, que, segundo ele, seriam mulheres de inferior condição e preparação.157

No romance, os meninos, por outro lado, poderiam ser assistidos por serviçais, a

questão era outra: a qualidade da instrução. Era necessário mestres para ensinar-lhes bons

modelos, por isso foi escolhida Delmetra, devido a sua elevação moral e aos bons

conhecimentos que demonstrou.

Eu vos entrego nos filhos o tesouro, que mais desejo guardar e defender dos que intentam roubar-lhes a candidez, e inocência. Bem sei que quando é má a inclinação, não a vence a educação; mas é certo que se de todo não a destrói, sempre a modera; e quando não a vença, nem a modere, eu satisfaço como devo, em buscar-lhes os meios úteis, e não consentir-lhes o pernicioso: quanto mais que o tempo , que se gasta em modificar-lhes o espírito, bem paga o trabalho, não os deixando perder o equilíbrio, para que não caiam no abismo de vícios, em que se habituam os que correm com a liberdade, e má inclinação. O amor próprio, que quase sempre saboreia os ânimos das mães, não é bastante, para que eu desconheça as vossas singularidades, as mais próprias para tal emprego, pois sei quanto é pesada esta obrigação, e que não consentir no que convém para a boa educação dos filhos é nascido de um aparente amor, que produz efeitos de ódio; e juntamente não quererem mortificar-se, vendo com inteireza, e aparente sossego castigar os filhos.158

A mãe das crianças também acredita que os meninos são seu “tesouro”.159 E como

tal deve zelar pela educação, que é muito valorizada por ser tida como modeladora e

moderadora do caráter, com o poder de limitar a má inclinação e neutralizar os vícios, a que

estão expostos os jovens que desfrutam de liberdade demasiada.

A metáfora do tesouro é elucidativa: o tesouro é de inestimável valor, é constituído

pelas jóias mais caras de uma família, suas pedras mais preciosas, por isso deve ser

guardado, longe do olhar alheio, que pode querer se apropriar de tal bem. Os filhos também

são os bens mais preciosos de uma comunidade, pois representam a continuidade, o que

mantêm os bens e o nome da família, passando de uma geração para outra. Por isso manter

uma boa educação para aqueles que vão dar continuidade à família também é importante.

Assim, mantém-se seu status e sua posição social. Os jovens, os “tesouros” também podem 157 Lopes, Maria Antonia. Mulheres, Espaço e Sociabilidade, Livros Horizonte, Lisboa, 1989, p.94/95. 158 Orta, Teresa Margarida da Silva e. Op.cit., p. 98/99. 159 Também em Casamento Perfeito, Diogo de Paiva de Andrada apresenta uma metáfora similar: a de que os filhos são os enfeites, os adornos, as jóias da mãe. (...) Vindo uma mulher ilustre de Campânia a Roma, e sendo hóspeda daquela honrada Cornélia, mãi dos Gracos, lhe mostrou diversidade de toucados, que para se enfeitar trazia consigo, e pediu que lhe mostrasse os seus, respondeu-lhe Cornélia, que os tinha fora de casa, porém que não

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ser corrompidos pela presença de “estranhos”, maus elementos, que podem colocar em

perigo os ensinamentos que a família repassa para seus rebentos.

Nós temos observado que o cérebro das crianças é ao mesmo tempo completamente impetuoso e humilde, isso lhes causa um movimento contínuo. Esta moleza do cérebro faz com que todas as coisas se lhes imprimam facilmente; e que as imagens de todos os objetos sensíveis sejam muito vivas: assim deve-se estimular e “escrever” em suas mentes enquanto as índoles se formam facilmente. Mas se deve escolher bem quais imagens eles devem gravar; pois não se deve despejar em um reservatório as pequenas e preciosas raridades. (...)160.

Era forte, no século XVII e XVIII, a crença de que a criança era “influenciável”,

isto é, a mente infantil era entendida como um livro onde se “imprimiam” comportamentos

e o seu caráter, uma argila a ser moldada. Dessa forma, os pais e os serviçais tornavam-se

os responsáveis pela formação infantil, serviam de exemplos, modelos que influenciariam

na sua formação, moldariam seu comportamento e gênio. Essa valorização do papel da

família e dos exemplos na formação infantil repercutiu na ação materna na educação dos

filhos. A mulher, cuja principal função era a organização da vida familiar, passou a

interferir diretamente na formação intelectual e mesmo moral dos filhos.

Era uma tarefa difícil para os pais controlar o contato de seus filhos com os

empregados, e no caso do Brasil com os escravos, ou ainda restringir sua influência sobre

os filhos já que as crianças passavam a maior parte do tempo com eles, e sem a presença

controladora dos pais.

Por outro lado, a crescente difusão da leitura também poderia representar um grande

inimigo já que não era possível exercer uma função seletiva absolutamente eficaz. Segundo

Márcia Abreu, os próprios órgãos governamentais incumbidos de exercer a censura e

fiscalizar a circulação de livros em Portugal e suas colônias, não conseguiam controlar a

circulação de inúmeras obras proibidas no Brasil.161

tardariam muito, e daí a pouco vindo seus filhos da escola, lhos mostrou dizendo, que aqueles eram os seus enfeites. (p. 161) 160 Nous avons remarque que le cerveau des enfants est tout ensemble chaud et humilde, ce qui leur cause um mouvement continuel. Cette mollesse de cerveau fait que toutes choses s´y impriment facilement, et que les imagens de tous les objets sensibles y sont très vives: ainsi il faut se hâter d´écrire dans leurs têtes pendant que les caractères s´y forment aisément. Mais il faut bien choisir les images qu´on y doit graver; car on ne doit verser dans um réservoir si petit et si précieux que des choses exquises. Fénelon, François. De L’Éducation des Filles. Op.cit., p. 103. 161 Ver Márcia Abreu. Caminhos da Leitura, Campinas, UNICAMP, 2002.

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Outro problema que ocupava a mente materna era o castigo dos filhos. Afinal como

deveria agir a mãe para punir os filhos? O discurso romanesco evidência a preocupação

com o comportamento das mães que ou não deixam castigar os filhos, ou castigam-nos

demais, cometendo um erro em ambos os casos. Quando não os castigam, tentam poupá-los

da dor, assim mostram-se fracas e denunciam sua fraqueza ao não agüentar o sofrimento de

vê-los serem castigados. Entretanto, puni-los com severidade demasiada também seria um

erro. Por isso as mães deveriam procurar também proporcionar uma educação que

modelasse os filhos, agindo com justiça. Vejamos o diálogo entre Delmetra e Almerina:

(...) Vós sabeis, ó Delmetra, o cuidado que deve dar a boa educação dos filhos, porque nos meninos, como cera branda, tudo se lhes imprime; e que se os maus costumes têm raízes na educação, raríssima vez deixavam de ser os frutos monstruosos. A má-criação, e o mau exemplo apostam entre si fazerem-se conhecer toda a vida. Bem sei que este cuidado só deve tocar aos pais; mas quando o estilo disfarçado em fantástica decência os retira de seus olhos a maior parte do dia, devem ter bem examinado o sujeito, a quem os encarregam, porque dos maus costumes dos servos insensivelmente se revestem; e como sei que é difícil achar tantas, e tão precisas circunstâncias em uns sujeitos, que eu me contentava de que tivessem bastante prudência para se acautelarem, ocultando aos meninos as suas paixões dominantes, reconhecendo em vós a minha própria capacidade para tão importante emprego, pelas virtudes, que em vós tenho observado, quero aproveitar-me do acaso(...).162

A primeira coisa que deve ser feita segundo a personagem é o cuidado com a

educação, é necessário fazer uma seleção do que aprenderão. E quando as mães não

pudessem cuidar disso pessoalmente, a solução seria a boa seleção de serviçais. Dever-se-

ia, nesse caso, ter cautela, “ examinando o sujeito, a quem os encarregaram”. Novamente, o

que se verifica é a preocupação com a suscetibilidade dos jovens, com a influência de

impressões externas em seu caráter, ou seja, os maus costumes e exemplos dos servos

poderiam influenciá-los. Por isso se fazia imprescindível uma voa seleção dos criados, e

principalmente de quem iria cuidar da sua educação.

É assim que Delmetra torna-se a guardiã dos três filhos de Almerina. Por ter as

qualidades desejadas pela mãe das crianças, por mostrar bons exemplos e bom caráter será

oferecida a ela a função de “preceptora” dos meninos. Função que aceitará e exercerá com

muito sucesso.

(...) e bem haveis de saber que melhor efeito faz no ânimo de um filho o severo olhar de seus pais, que muitas advertências de um bom criado.(...) Porém não deveis negar, que há gênios, em que faz melhor impressão o conselho do bom criado, que muitas advertências dos pais; porque se as palavras do criado

162 Orta, Teresa Margarida da Silva e. Op.cit., p. 98.

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tem crédito, se ouvem com afeto, são mais bem sucedidas que as dos pais, que se ouvem com tédio, e horror. A maior parte destes vemos sempre entre dous extremos, de carinho indiscreto, ou rigor demasiado: o muito carinho foi sempre a ruína do respeito; e do rigor demasiado nasce horror, cresce aborrecimento, e quase sempre acaba em pouco caso, ou com delírios da exasperação.163

Segundo a mãe, as advertências de um “bom criado” muitas vezes podem substituir

o “olhar severo dos pais”. Além disso, a maioria dos pais não apresenta moderação, toma

ações extremas - ou carinho demasiado, ou rigor demasiado - o que acaba por prejudicar a

formação dos jovens. O conselho é bem direto: moderação. Os “preceptores” dos jovens,

aqueles que cuidam da sua educação devem, via de regra, ser moderados em suas atitudes.

(...) Os ternos sentimentos da mãe os não deve conhecer os filhos, e convém não brincar com eles desde muito pequeninos, porque desde então principia a obrar o respeito. Bem sabeis que o vosso maior cuidado se deve aplicar em que tremam, sendo ameaçados convosco, e que uma vossa palavra, ou olhar severo, sintam como o maior castigo; é preciso que o vosso enfado também dos olhos o entendam, e que com a maior vigilância os ensinam a temer a ira do Céu, a amar a honra, a verdade, a pobreza, as virtudes, e as letras. Não consintais que lhes façam medos, nem contem histórias ridículas; porque se pode aproveitar o tempo, contando as generosas ações de Alexandre; as que se fizeram de honra, e valor, quando os Gregos foram contra os Troianos, aquela mais ilustre grandeza, com que alguns Soberanos têm perdoado as ofenças; os honradíssimos créditos , com que acaba o vassalo, que expôs a vida, defendendo a do seu Rei; o rigor, com que a justiça costuma castigar os delitos; a nobreza com que os ofendidos procuram fazer bem a seus inimigos, e quais são as felicidades, para que as boas obras conduzem, etc. Este é o melhor modo de se lhes fazerem amar, e decorar as ações mais nobres, porque ouvem com gosto, e assim conservam na memória as melhores instruções, e máximas convenientes. Bem sei que de ordinário não sabem de tais histórias as pessoas, que lhe costumar contar as inúteis, de que toda a vida se lembram; mas assim como os servos, que entram de novo em uma casa, conforme a variedade, que há entre elas, aprendem os costumes, aprendam também algumas histórias próprias para as repetirem aos meninos, como repetem as outras.164

Segundo Delmetra, a preocupação acerca da educação dos filhos deve começar

cedo, quando ainda são “pequeninos”. É necessário desde a mais tenra idade ensinar-lhes o

respeito, por isso ela diz que “convém não brincar com eles desde muito pequeninos”.

Em Emílio, Rousseau dedica todo o primeiro livro à idade infantil, propondo uma

educação higiênica capaz de criar na criança hábitos salutares. Ele enfatiza as qualidades

necessárias a uma ama, ser sadia e de origem camponesa. Também discute a

insensibilidade dos adultos nas questões infantis: choro, uso de fraldas. No segundo livro,

dedicado à puerícia (dos três aos doze anos), apresenta a importância da intervenção, do

ensino de noções essenciais através da experiência direta. Ele recusa qualquer forma de

163 Ibidem., p.99. 164 Idem.

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instrução precoce, como o ensino de línguas estrangeiras, histórias ou fábulas. Para ele,

devem ser fortalecidos primeiramente o corpo e os sentidos.

Embora Rousseau também pregue a importância de uma educação precoce, sua

visão do que deve ser ensinado difere um pouco de Teresa Margarida, ambos pregam a

necessidade de noções de boa conduta, porém Rousseau não defende a instrução escolar e o

uso de leituras nesta fase. Somente no terceiro livro, em que trata da pré-adolescência, ele

defende a formação intelectual, o único livro que ele recomenda a leitura é Robinson

Crusoé.

Nesse ponto, Teresa Margarida assemelha-se mais a Fénelon que prega em

Educação das Meninas que se “misturem na infância a instrução com a brincadeira”. Ele

valoriza na infância a importância didática das histórias morais, por isso aconselha a leitura

de fábulas. Esse interesse de Fénelon pelas fábulas está inserido na popularização das

fábulas de La Fontaine e nos contos de fadas de Perrault na França como instrumento de

educação dos nobres da corte no século XVII.

Em Aventuras de Diófanes, prega-se que as crianças devem aprender a temer, a

respeitar o olhar ou as palavras severas dos pais, para não os desobedecer. O respeito aos

pais poderia representar também o respeito ao Estado e às leis, isto é, àqueles que

aprendessem a respeitar as regras estabelecidas na família, estaria mais apto a ser

futuramente um bom cidadão e respeitar os desígnios do rei e do estado português.

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Gravura “O pente quebrado”. Extraído de Rousseau, Confissões (1766-70).165 A figura mostra o olhar severo do pai diante do filho, sua repreensão. O filho mostra-se humilde, desculpando-se. Enquanto a mãe, a figura feminina, fica entre os dois, posicionando-se ao lado do filho e na mesma altura dele,

denotando sua posição similar, hierarquicamente o pai é superior a ambos. Além disso, a mãe parece mais compreensiva, amistosa, ao escutar e olhar diretamente para o filho. A gravura deixa evidente como funcionava a relação entre pais e filhos no setecentos e posteriormente.

Aprendendo a temer os pais, o próximo passo é temer a “ira do Céu”, ou seja,

inculcar-lhes a religião e o medo dos castigos divinos, que colocam os homens no

“caminho do bem”. É claro que sabemos que o temor da “danação eterna”, “dos castigos

divinos”, ajudou a tornar o mundo mais civilizado. O temor sempre foi fonte de submissão,

de subjugação, por isso os pais logo cedo deveriam colocar em prática suas ações

“civilizadoras”, “educadoras” e “moralizantes”. Nesse caso, aprenderiam o respeito às leis

da igreja, sujeitando-se futuramente aos preceitos religiosos que ainda norteavam os

comportamentos no século XVIII.

A partir daí tudo ficaria mais fácil, depois do “inferno”, era só mostrar o “paraíso”,

isto é, apresentar que ações seriam coroadas de êxito: “amar a honra, a verdade, a pobreza,

as virtudes, e as letras”. Isto é, mostrar-lhes o que deveriam fazer para serem bem sucedidos

nessa sociedade, apresentando-lhes como deveriam agir, o que estudar etc.

O próximo passo para alcançar o sucesso seria uma boa aprendizagem, por isso era

imprescindível o cuidado com as histórias. Novamente, vemos a valorização da leitura. A

propaganda é direta: “não consintais que lhes façam medos” e “nem contem histórias

ridículas”. Por que perder tempo com esse tipo de histórias, sem nenhum valor, quando se

podem praticar leituras edificantes?

165 www. fh_augsburg.de/~harsch/gallica/chronologie/18siecle/rousseau. (consultada em 20/07/2002)

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Rousseau faz sua leitura ao lado de seu pai. Extraído de Confissões.166

No setecentos, na França, a leitura já era tida como parte importante da educação dos jovens. A gravura mostra o pai ocupado em seus afazeres, enquanto o filho se ocupa com sua formação, o pai supervisiona o filho, verificando o que ele está lendo e como.

As leituras recomendadas são as que apresentam os bons exemplos e valores (honra,

coragem, valentia, fidelidade). Tais exemplos poderiam vir da ficção clássica: as ações de

Alexandre e as dos Gregos contra os Troianos (Ilíada); e de ficção nacional, ou seja, textos

que mostrassem a grandeza dos soberanos, a fidelidade do vassalo, que defende seu rei.

É preciso frisar que a propaganda não é gratuita: a leitura do romance em questão,

assim como de seu modelo, Aventuras de Telêmaco, enquadrar-se-iam perfeitamente nesse

tipo de leitura pregada: a edificante que apresenta histórias com valores elevados, bons

modelos de comportamento. Assim, os jovens ouviriam com gosto tais histórias,

conservando na memória “melhores instruções” e “máximas convenientes”.

A recomendação da personagem é simples: se os servos não souberem contar

“histórias edificantes” devem aprendê-las . Para isso, seria imprescindível a interferência

da mãe para que aprendessem a contá-las e “repeti-las aos meninos”; ou a existência de

livros, pois, dessa forma, os “servos” que soubessem ler poderiam simplesmente lê-los para

seus pupilos.

Nas palavras da personagem fica implícito que o romance em questão vinha cumprir

exatamente esta função, assim como o romance de Fénelon, auxiliar na educação dos

meninos e meninas.

166 www.fh_augsburg.de/~harsch/gallica/chronologie/18siecle/Rousseau (consultado em 20/07/2002)

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(...) E não acabam de conhecer que o verdadeiro amor para com os filhos deve consistir em os não habilitar para os aumentos, persuadindo-os com o bom exemplo a que procedam bem, e amem os livros, dos quais se fazem os tesouros mais seguros; porque se a inveja os intenta roubar, só dura a mentira enquanto a verdade não chega; são bens livres das penas dos delitos, morgados, que se não empenham, e dinheiro, que se transporta sem fadiga, quando uma desgraça obriga a mudar de uma para outra terra. Onde irá um sábio, que não se faça preciso; e esta melhor riqueza falta muitas vezes aos filhos, porque nunca seus pais com o exemplo lhe ensinaram a procurá-la. Há uma nação , em que é costume repreender-se o filho–famílias pelo primeiro delito; pelo segundo castigar-se com brandura; e pelo terceiro ser morto, e o pai desterrado: e é certo que os que os consentem viciosos, criam assim os seus piores inimigos; porque estes em muito tempo não matam, e em poucos dias acaba o pai, a quem o filho com um desgosto matou. Quando chegam aos quatorze anos, se encarregam mais que ao cuidado da mãe, aos olhos do pai, que lhes deve mostrar agrado prudente, para se animarem a falar na sua presença, para observar se falam demasiado, se são os seus discursos acertados, se se descompõem com ações, e outras semelhantes miudezas, para os advertirem a que se hajam com modéstia, e tenham civilidade; mas de modo tal , que não tomem medo de falar na presença dos que os devem advertir. 167

O discurso de Delmetra novamente é propagandístico, a mestra aconselha que os

jovens “amem os livros”. Isso porque o que se apresenta é a função formadora da leitura,

que serve ao ideal de moldar o caráter dos jovens.

Para os progenitores poderem avaliar melhor o caráter do filho e seu desempenho,

Delmetra recomenda ainda que dialoguem entre si. Assim os pais poderiam observar os

filhos, reparar se usam de bom tom e de fineza ao se expressar oralmente. Para isso era

imprescindível que não temessem falar diante dos pais, pois somente assim poderiam

instrui-los a como se portar bem.

Todo esse arsenal de conselhos sobre a educação dos filhos e como as mulheres

deveriam se comportar, mostram um ideal: a mulher da elite, a esposa e mãe das famílias

mais abastadas representada como o “anjo do lar” é a responsável pelo bem estar da

família, o sucesso e o progresso do marido e dos filhos, pois sua influência era como um

“bálsamo” que elevava a todos moralmente e espiritualmente.

Entretanto, é necessário desconfiar-se de tal “criação”. Poderíamos chamar de

criação ou imaginação, já que o que se apresenta é a feitura de um ideal feminino que

tomasse para si a responsabilidade de toda uma nação. A família sendo seu domínio e sua

função fazer com que progredisse, era o mesmo que lhe atribuir a responsabilidade pelos

problemas de toda uma nação.

167 Orta, Teresa Margarida da Silva e. Op.cit., p. 100.

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Afinal, se os homens e mulheres de uma nação são viciosos, mal inclinados para as

más ações e para a imoralidade, são responsabilidade dos pais, mas nesse contexto, como já

vimos, principalmente da mãe. Se ao pai cabia a averiguação do caráter e da educação dos

filhos, além da escolha de seu destino, à mãe cabia desde a mais tenra idade, quando ainda

eram pequeninos, sua formação moral e espiritual. E, como também já foi dito, deveria

cuidar “destes detalhes” ela mesma, devido à gravidade da ação. Posteriormente, deveria

cuidar também das companhias dos filhos, da sua instrução, ou seja, da seleção dos

serviçais que iriam lhe fazer companhia e educá-lo. Deveria até mesmo escolher as leituras

praticadas por seus filhos e filhas, mantendo-se sempre vigilante.

Não nos esqueçamos também dos bons exemplos que ela deveria, por obrigação,

apresentar-lhes sempre, para que sua criação fosse a melhor possível. Finalmente, quando

alguma coisa saísse errado, quem seria o culpado? a quem caberia a responsabilidade dos

maus atos dos filhos? É claro que aos pais, mas em especial às mães.

Todo esse discurso acerca da importância das mães na célula familiar tinha o seu

porquê. Valorizar as mães, as esposas, as mulheres, dar-lhes o reconhecimento por sua

importância na constituição e manutenção familiar. Entretanto, não se pode esquecer que

esse discurso ficcional não correspondia à realidade, era na verdade um modelo de

comportamento a ser seguido pelos leitores, um ideal de educação para os jovens. Por isso

muitas das idéias pregadas por Teresa Margarida são similares, em termos, a de outros

autores e pensadores em destaque na época, como Fénelon e Rousseau.

Contudo, essa valorização do papel feminino na educação dos filhos,

consequentemente na boa organização familiar e estatal, e da importância da leitura são

elementos fundamentais na obra de Teresa Margarida e devem ser reconhecidos como

inovadores, principalmente no contexto de Portugal.

2.3.5. Os filhos

Em Aventuras de Diófanes, há um discurso em especial que apresenta claramente o

que um pai espera de sua prole: a reprodução do que lhe foi ensinado. A cena apresentada é

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a da separação familiar, por isso o pai, o rei de Tebas, recomenda a filha, a princesa

Hemirena, como ela deve se portar quando estiverem separados.

(...) Amada filha, (disse) já que a tão miserável estado te reduziu a minha cruel fortuna, conserva sem desmaios as sólidas doutrinas da tua educação, o exercício das virtudes, e a lembrança da distinção, com que nasceste, para sempre serem nobres as tuas ações: teme os Deuses, ama constante o decoro, despreza o ócio, e serve o teu destino.168

Percebe-se que a preocupação paterna está centrada nas ações da jovem: o pai

espera que ela se comporte bem, isto é, reproduza a doutrina que lhe foi passada ao longo

da vida por sua família: os preceitos religiosos, éticos, morais etc. Afinal a separação não o

deixará verificar se ela realmente sabe como se comportar, por isso sua temeridade e os

conselhos que lhe dá diante da separação iminente.

Nos anseios da personagem Diófanes, podemos vislumbrar os comportamentos

esperados dos filhos, a sua função dentro da estrutura familiar: detentores de um legado que

deve ser passado adiante futuramente – o nome da família, sua fortuna, posição e

comportamentos nobres devem ser imortalizados, passados de geração para geração.

Portanto, ser filho é também ser um reprodutor do legado familiar. No caso de Hemirena,

embora despojada de sua posição e de seus bens, ainda lhe sobra um elemento para

reproduzir: sua ação e seus modos devem refletir uma boa criação, único tesouro que não

lhe foi confiscado.

No romance de Fénelon, Telêmaco também enfrenta a prática do que aprendeu com

seu mestre: Mentor. Nesse caso, porém, eles estão a maior parte do tempo juntos, o

preceptor representa não somente aquele que transmite conhecimentos, como o que prepara

para a vida e acompanha o desenvolvimento do seu pupilo, o tutor do jovem na falta de seu

pai, substituindo-o em suas funções. O comportamento do mestre é paternal, isso explicita,

no romance, alguns dos problemas na relação entre pais e filhos, e principalmente o que se

pensava sobre os deveres filiais .

Mentor, enquanto mestre e figura paterna, já forneceu a seu protegido os

conhecimentos intelectuais e os modelos de comportamento vigentes. Seu objetivo então é

verificar se o jovem, figura representativa do filho, segue seus ensinamentos. Nesse caso, a

viagem de Telêmaco, isto é, o romance, representa a aquisição de conhecimentos práticos e

168 Ibidem, p. 61.

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o amadurecimento do jovem, ou seja, se ele já está preparado para viver em sociedade

como adulto, respeitando as regras éticas e morais desse convívio.

(...)Mentor, meu amado Mentor, dizia-lhe eu, e quem me tirou de abraçar os teus conselhos? Quão infeliz sou em fiar de mim n’huma idade, em que falta a prudencia para antever o futuro, e não há experiencia do passado, nem madureza bastante para regular o presente! Ah! Se escapamos desta tormenta, desconfiarei sempre de mim, como do mais perigoso inimigo, e só me fiarei de ti.169

No trecho acima, o jovem Telêmaco, filho de Ulisses, reconhece seus defeitos,

sabe que deverá lutar consigo mesmo para sair vencedor dessa batalha. Ele tem consciência

de que o seu problema é a juventude, que o leva a desprezar os conselhos sábios de Mentor,

o qual simboliza o pai, o instrutor, e personifica a sabedoria, com sua velhice e experiência.

À medida que a viagem acontece, o rapaz vai se modificando, ganha experiência, deixando

de lado sua imaturidade. Aprende a agir, segundo os modelos do mestre, e a reproduzi-los.

Por isso, suas atitudes passam a ser coroadas de sensatez, diplomacia, justiça.

Dessa forma, apresenta-se, como ocorre com Aventuras de Diófanes, um modelo de

bom comportamento filial: durante a infância e adolescência, os filhos deveriam se

desenvolver intelectualmente e moralmente, absorvendo somente o que seus progenitores

lhe proporcionassem em termos de conhecimentos e convivências. Até que adultos,

completada sua aprendizagem, colocassem-na em prática, obedecendo as crenças de sua

família , os preceitos de seu pai e se comportassem conforme as regras da sociedade na qual

estariam inseridos. E na velhice, os pais esperavam o amparo de sua prole, isto é, que o

filho os assistisse, cuidasse deles na doença.

Consolai-vos, Senhora, (lhe disse) que aqui está o vosso querido filho Belino, já não há causa para os delírios: eu sou o mesmo, que sempre vos assistirá, enquanto o permitirem os Deuses; descansai para podermos continuar a busca a desejada pátria (...).170

Todavia, em Aventuras de Telêmaco, privilegia não a atuação do indivíduo no

âmbito familiar, mas seu desempenho no público. Assim, o que se apresenta, nesse

romance, é a vivência dos filhos, dos jovens no ato de sua transformação em cidadão.

(...) Quanto aos filhos, dizia Mentor, não pertencem tanto a seus pais, como à República: são filhos do Povo, são a sua esperança, e a sua força. Uma vez que chegam a estragar-se, já não é tempo de corrigi-los. Não basta exclui-los dos empregos, quando se entende que são indignos deles: é muito melhor

169Fénelon, François. Aventuras de Telêmaco, Op.cit., p. 19. 170 Orta, Teresa Margarida da Silva e. Op. cit., p. 157.

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precaver o mal, do que ver-te na precisão de puni-lo. O rei acrescentava ele, que é pai do seu Povo todo, mais particularmente o é da mocidade, que é a flor da Nação toda: é da flor se cria o todo. (...) Observe constantemente as Leis de Minos, o qual ordena que os filhos sejam criados no desprezo da dor, e no da morte: que se constitua a honra em fugir das delicias, e riquezas: que sejam avaliadas, como vícios infames, a injustiça, e a mentira, e a ingratidão, e a covardia: que desde os mais tenros anos se lhes ensine a entoar os louvores dos Heróis, que foram amados dos Deuses, e que obraram ações generosas em serviço da Pátria, e nos combates deram luzidas mostras de valor.171

No trecho acima, verifica-se a preocupação de Mentor com os jovens, com sua

formação para se tornarem cidadãos íntegros, sem vícios, mas também aptos guerreiros,

para combater pela pátria. Não podemos esquecer que no romance Telêmaco representa o

jovem, o filho, que embora tivesse defeitos, supera-os.

O rapaz transforma-se ao longo de sua viagem num adulto, num herói como seu pai,

ao final da narrativa, e o mérito por essa mudança não é apenas de sua educação intelectual

e moral, mas principalmente da ação transformadora, da moral vivenciada, das experiências

vividas, das reflexões, conclusões que o próprio jovem chega ao longo de sua caminhada,

de sua viagem a procura de seu pai.

Le avventure di Telêmaco figliuolo d´Ulisse, Venezia/Firenze, P.N. Rapaudy, 1801.172 Ilustração de Aventuras de Telêmaco, edição italiana.

Nota-se na gravura a exaltação da cultura greco-romana, os deuses estão presentes em toda a obra, e aparecem sobre a cabeça da personagem Telêmaco, guiando-o, protegendo-o. Em Portugal, Teresa Margarida não poderia fazer referência ao paganismo, pois correria o risco de sua obra não passar

pela censura, conseqüentemente não seria editada. Por isso embora seu romance esteja ambientado na Grécia Antiga, a moral cristã prevalece .

171 Fénelon. François. Aventuras de Telêmaco, Op.cit., p. 279. 172 www.arengario.it/archivio/ librillu/25infanz.htm (consultado em 20/07/2002)

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Telêmaco empreende uma busca ao seu progenitor, todavia ele encontra a si mesmo,

passa a conhecer-se melhor. Sua viagem representa também a sua busca de auto-

conhecimento cujo resultado é a imagem de um bom filho que se transformou num adulto

responsável, um herói, como seu pai.

É notório que para se reproduzir um sistema comportamental, uma qualidade filial

se faz mister: a obediência. Logo, para que toda uma estrutura social e comportamental se

efetivasse era necessário que os filhos seguissem os ensinamentos de seus pais e acatassem

seus desejos. Somente assim se conseguiria continuar a propagar as ações tidas como

corretas, e se perpetuar comportamentos.

Confrontando os dois romances, percebe-se que embora em ambos esteja sendo

pregado que os filhos devem obedecer ao pai, há algumas diferenças. Se no romance de

Teresa Margarida o comportamento filial é importante enquanto reprodutor de crenças

familiares que interferirão diretamente no andamento da nação, já que uma é tida como

reflexo da outra, em Fénelon, essa questão é tratada com outro foco: o indivíduo. Cada

jovem é tido como um futuro cidadão. A discussão sobre a obediência e a reprodução de

valores está mais centrada nas conseqüências para a nação: bom cidadão x mau cidadão,

bom governante x mau governante.

O valor moral é o mesmo, a importância também é a mesma, todavia a forma de

tratamento da temática no interior dos romances difere. Isso se deve provavelmente ao

objetivo de cada um: em Aventuras de Diófanes discute-se a vida pública indiretamente,

isto é, como a vida privada e os comportamentos individuais afetam a vida pública, a

relevância da família e de uma boa formação foi elevada a tema central, para alcançar

também o público feminino; enquanto que em Aventuras de Telêmaco o primordial é a vida

pública, os vassalos, os guerreiros e os governantes, já que foi escrito com uma função

específica: a educação de um futuro governante, o que se apresenta são ações do futuro

governante e guerreiro, Telêmaco, e suas conseqüências na vida pública, no bem comum.

Objetivos diferentes, justificam tratamentos variados para um mesmo tema.

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Capítulo 3

Máximas e romances

Aventuras de Diófanes, assim como seu suposto modelo Aventuras de Telêmaco,

caracteriza-se pela oscilação entre discurso moral e ação narrativa. A representação

feminina e os modelos comportamentais pregados para a família no romance, como vimos,

assemelham-se aos de outros textos portugueses do século XVIII.

Teresa Margarida ao escrever um romance didático tinha como um de seus

objetivos apresentar ensinamentos morais para aqueles que efetuassem sua leitura. Os

modelos usados em sua pregação parecem ser os mesmos de outros textos moralizantes,

como os de máximas, representados nesse trabalho pelo livro de Diogo de Paiva Andrada,

Casamento Perfeito.

As duas obras compartilham uma função: moralizar e o conteúdo de ambos, nesse

sentido, não difere. Esses textos apresentam as crenças e a cultura portuguesa da época, por

isso postulam valores comuns: a valorização das funções domésticas femininas e da

educação, a exaltação da família e de sua manutenção.

Todavia, a forma escolhida por seus autores varia. Para entendermos melhor, essa

diferença, vejamos alguns trechos dos Agradecimentos e do Prólogo do Feliz Independente

do Mundo e da Fortuna, de padre Theodoro de Almeida, que nos elucidarão:

Para fazer passar os homem da tr is te s i tuação em que os v ia , lamentando-se por in fe l ices , e muitas vezes culpando a vossa amorosa, e sempre sabia Providencia , bem sabeis SENHOR, que muitas vezes pensei , e es tudei os meios , que ser ião mais úte is; e o meu coração me dic tava, que es tudasse por mim, e que tentasse curar os meus Irmãos, como vós me t ínheis curado; que as re f lexões , que me t inhão s ido úte is em alguns sucessos , que o Mundo fa lsamente costuma chamar adversos , não ser ião to talmente inute is a quem , ta lvez com menos causa, gemia. Cedi a es te pensamento , crendo que faci lmente pega em hum coração a doutr ina transplantada de outro , que se acha em s i tuação semelhante; e me appl iquei a curar as fer idas dos que gemião

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af l ic tos; preparando o mesmo remédio de diverso modo , para di ferentes qual idades de enfermos.

Aos que não tinhão horror ao sangue, e chagas de vosso Sacrosanto

cadáver, lhes offereci o remédio com o titulo de Thesouro de Paciência nas vossas Sacratíssimas Chagas. Sahi bem do intento, e vós o sabíeis. O Espírito santo derramava a sua Graça sobre o remédio, que eu lhes presentava, e os enfermos saravão. Outros porém vi, que levados de huma errada preocupação do Mundo, ou não querião olhar, ou passavão com os olhos mui depressa pela representação das vossas feridas; não se capacitando que humas lagrimas só se podem curar bem com outras; e que as que derramamos pela pena, só se vedão com as que vós derramastes pela nossa culpa. Não esmoreci, e preparando o mesmo remédio de vossa salutifera doutrina, de outro modo, o disfarcei com a apparencia do que todos geralmente gostão: estudei no modo de lho dar a beber disfarçado, sem que perdesse nada da sua intrínseca virtude, para que sentissem o effeito, attrahidos da doçura que se lhes presentava.(...)173

No fragmento aparece uma discussão interessante: de que os ensinamentos que

pretendia ministrar poderiam ter formas diferentes. Tudo dependeria do público a que

destinava suas “reflexões”. A primeira forma era a direta, livros cujo objetivo seriam

claramente a aprendizagem, como os de máximas, os filosóficos etc., voltados para leitores

que almejassem mais conhecimento ou erudição.

A outra era “disfarçada”, isto é, os ensinamentos permaneceriam “camuflados” no

interior de um romance, gênero bastante difundido, cujo público leitor praticaria uma

leitura mais amena, que proporcionasse concomitantemente conhecimento e

entretenimento. Note-se que fica evidente que o conteúdo, “as reflexões”, permaneceriam

os mesmos, o que mudaria seria a forma de apresentação, o gênero com suas

especificidades.

Vejamos um outro trecho em que o autor trata melhor das características do gênero

romanesco e da construção do seu romance:

Ora esta pintura da Felicidade, que só se podia conseguir por meio da Virtude, convinha que eu lha puzesse diante dos olhos , e bem perto , para que a cressem possivel, e a não reputassem puro fantasma da imaginação, mas realidade , tocando-a quasi com as mãos. Por este motivo busquei hum Heroe verdadeiro na historia, ao qual cita pintura, quadrasse, porque deste modo os disuadia sem violência do erro commum, com que se busca a Felicidade pelo caminho do vicio; e fazia entrar os Leitores na verdadeira estrada da Alegria : pois facilmente nos animamos a fazer o que vemos praticado, quando os.effeitos são agradáveis.

Era-me logo indispensavelmente preciso hum Heroe , em que fizesse brilhar a Virtude, a qual quando se vê praticada , he tanto mais agradável , que os simples conselhos, quanto a solfa cantada o he a respeito da puramente escrita ; e

173 Almeida, Theodoro de. Op.cit., p. XI.

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assentei que o devia buscar entre os Príncipes Christãos, para que ninguem pudesse suspeitar, que eu fazia nascer a Felicidade de maximas independentes da Religião Romana, que he a unica em que podemos ser felices na vida, e esperar a completa felicidade depois da morte. Este ponto era essencialissimo, para que não confundisse ninguem a minha Filosofia com a Filosofia pagã; e as Máximas, tiradas do Evangelho com os conselhos de Platão, ou de Seneca, ou daqueles falsos Filosofos, que nos nossos tempos vendem com o especioso titulo do Bem da, Sociedade, os proscriptos, e já desprezados erros dos antigos sofistas.174

Theodoro de Almeida justifica no Prólogo o disfarce das máximas no romance.

Embora tenha tentado fazer poesia, a “trava métrica” dificultou-lhe o empreendimento (pois

“o que dizer” torna-se secundário na arte poética), por isso escolheu um “estilo” que

agradava mais ao público, o romance.

Para ele, o gênero romanesco possibilitaria mostrar o ensinamento em “prática”,

para isso faltava-lhe apenas escolher as personagens. O autor de O Feliz Independente do

Mundo e da Fortuna queria usar apenas máximas da religião cristã, sem fazer referências

ao paganismo. Parece que ele não queria ser confundido com outros escritores, como

Fénelon e Teresa Margarida, por exemplo, por isso centrou-se no cristianismo e na religião,

exaltando os governantes da cristandade e os conflitos vividos realmente por personagens

históricos.

Isso parece dar um caráter mais real à obra e diminuir a restrição ao romance, que

era tido como excesso de imaginação, invenção. Além disso, o fato de centrar a história na

cristandade, no aparecimento de anjos, santos, ermitões etc., poderia lhe render facilidade

na edição e comercialização da obra.

O romance de Theodoro de Almeida é construído a partir da oposição herói x anti-

herói. Vladisláo, que adota o nome de Misseno, encarna a virtude, enquanto o Conde de

Moravia representa a vilania. O livro é construído de maneira que o leitor confronte

constantemente as ações de um e de outro. A participação feminina no romance existe e o

próprio autor explica o motivo de sua inclusão, quando afirma:

(...)Para affastar muito ao longe a austeridade, que se teme em humas

maximas, que declarão guerra aberta aos vícios todos, puz estudo em que às vezes mãos delicadas houvessem de curar as feridas; e fiz entrar neste enredo a Emperatriz Viuva de Nicoláo Canabé, que por poucas horas gozou desta honra na passagem tumultuosa, que o Sceptro do Oriente fizera dos Gregos para os Latinos.175

174 Ibidem., p. XVIII a XX. 175 Ibidem., p. XXIV.

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Percebe-se que a participação de personagens femininas é tida, pelo autor, como

atenuante, maneira de incluir mais delicadeza e sentimentalismo à obra. As personagens

femininas no romance têm uma função secundária, sua participação é menor do que a do

herói e do anti-herói ao longo da narrativa.

No romance de Teresa Margarida estas questões levantadas na obra de Theodoro de

Almeida também aparecem. Em Aventuras de Diófanes, assim como em Aventuras de

Telêmaco, o paganismo fazia parte da construção narrativa. Por isso a autora usou de

subterfúgios para que a referência ao mundo pagão não atrapalhasse na aquisição das

licenças176 para edição do seu livro. Como se pode notar pelo trecho de sua Protestação

abaixo transcrito:

Declaro que nesta Obra uso das palavras Deuses, Nume, Fado, etc., no

sentido, em que as têm usado muitos católicos, somente para imitar, fingir as fábulas, e termos dos antigos Gentios, que não chegaram a conhecer o verdadeiro Deus Trino, e Uno, nem os admiráveis efeitos da nossa Santa lei, posto que muitos souberam exercitar algumas virtudes morais; e nesta forma quero que sejam entendidos estes meus escritos, que com a mais profunda, e rendida obediência aos Decretos Pontifícios sujeito humildemente à correção, e censura da Santa Madre Igreja Católica, e Apostólica Romana, e seus Ministros.177

Essa questão é retomada no Prólogo, onde ela também apresenta seu romance como

ficção baseada nos moldes de autores de outros países da Europa.

Um dos defeitos, que alguns acharão nesta obra, será a idéia fantástica,

podendo aplicar-se o mesmo tempo à história verdadeira; ao que respondo, que me persuadiram os Espanhóis, Franceses, e italianos, que entendem ser este método o que produz melhor efeito, e como de Grego não sei cousa alguma, e as mais línguas pouco melhor as entendo, por não mendigar notícias antigas, nem me arriscar a mentir errando, me resolvi a seguir o caminho desta idéia, em que são os eventos, e objetos fantásticos, mas não o essencial, que conduz para o melhor fim (...). 178

176 Em Portugal e em suas colônias, para se editar ou comercializar livros era necessário obter licença da censura. Desde 1536, o sistema era dividido em três poderes: o Santo Ofício, o Ordinário e o Desembargo do Paço. Esse sistema vigorou até 1768, quando o Marquês de Pombal o unificou, criando a Real Mesa Censória. Para saber mais ler: Moraes, Rubens Borba de. Livros e Bibliotecas no Brasil Colonial, Rio de Janeiro, Biblioteca Universitária da Literatura Brasileira, Volume 6, 1979. 177 Orta, Teresa Margarida da Silva e. Op.cit. p. 196. 178 Ibidem., p. 57.

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A autora justifica seu uso da ficção, da fantasia, citando povos famosos por sua

literatura que também as utilizaram. Além disso, retoma a questão do uso do paganismo,

minimizando a sua importância na obra.

Para que se efetivasse “a moral em ação”, era necessária a escolha das personagens

ficcionais. A autora constrói seu romance a partir de uma família: o rei de Tebas, sua

esposa, filhos e o futuro genro. Na narrativa, há uma grande participação das personagens

femininas, Climinéia (Delmetra) e Hemirena (Belino). Na realidade, são as personagens

femininas que se movimentam na narrativa, encontrando inúmeros perigos e os demais

personagens ao longo de suas viagens. As aventuras das personagens masculinas são

contadas normalmente em flash back.

Essa maior participação feminina relaciona-se com um dos objetivos do romance de

Teresa Margarida, o didatismo. Ela almeja moralizar rapazes e moças, por isso apresenta

questões que interessam aos dois sexos. Aventuras de Telêmaco, como já vimos, também é

um romance didático, contudo seu objetivo principal é a aprendizagem do Duque de

Borgonha, por isso centra-se nas questões políticas, de Estado, que interessariam ao futuro

governante. As personagens femininas também aparecem no romance de Fénelon,

entretanto sua participação está atrelada a esse objetivo maior do livro.

Em Aventuras de Diófanes, a participação de Hemirena travestida de homem,

assumindo funções masculinas, como guerrear, pode parecer contrária aos ensinamentos

moralizantes e aos modelos femininos e familiares apresentados ao longo da narrativa, que

são condizentes com os de outros textos da época, como foi visto.

Entretanto, não podemos nos esquecer de que a “donzela guerreira” é uma figura

presente não apenas na literatura e na história mundial,179 mas também na de Portugal 180 e

179 Segundo Walnice Nogueira Galvão, existem várias referências à donzela guerreira, dentre elas citaremos: Mu-lan, chinesa do século V que lutou contra os tártaros para substituir o velho pai; Santa Joana D´Arc, a donzela de Orléans, que liderou ataques contra o invasor inglês; Palas Atena/Minerva, deusa virgem guerreira, e Ártemis/Diana, deusa caçadora; Bellatrix, a Guerreira, estrela gama da constelação de Órion; Atalanta, donzela-guerreira da Grécia antiga; Camila, personagem da Eneida, caçadora e boa guerreira, lutou contra Enéias e morreu em batalha; Marfisa e Bradamante, ambas aparecem em Orlando Innamoratto, de Boiardo, e em Orlando Furioso, de Ariosto; “la China Poblana”, Catarina de San Juan, raptada em Bangladesh no século XVII foi vendida como escrava, chegou ao México vestida de homem; a Monja Alferes, a espanhola Catalina de Erauso, vestida de homem paticipou de lutas no Peru e Bolívia. As mulheres que guerreiam são diferentes da donzela guerreira por aparecerem em bando, terem filhos. Um exemplo são as valquírias das sagas nórdicas, decidem quem vai vencer a batalha e conduzem os mortos em seus cavalos alados para ao Valhala. Outro exemplo, são as amazonas gregas. Dentre elas, as mais famosas são Pentesiléia, que lutou ao lado dos troianos na Guerra de Tróia, façanha relatada na Ilíada, e Hipólita, com quem se casou Hércules em seu nono trabalho.

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do Brasil. Existem muitos exemplos de mulheres corajosas, empreendedoras, e de donzelas

guerreiras na História do Brasil até o Setecentos.181

Segundo Arilda Inês Miranda Ribeiro, dentre as capitanias doadas no século XVI,

duas foram governadas por mulheres: D. Ana Pimentel, esposa de Martin Afonso de Souza,

governou a capitania de São Vicente, enquanto D. Brites (ou Beatriz) de Albuquerque,

esposa de Duarte Coelho, governou a de Pernambuco.

Walnice Nogueira Galvão explica que durante as invasões holandesas no nordeste,

ficaram famosas mulheres como Clara Camarão, esposa de D. António Felipe Camarão,

que lutou ao lado de outras mulheres e homens em Porto Calvo, e as defensoras de

Tejucupapo, que rechaçaram os holandeses com dardos e lanças. Em são Paulo de

Piratininga, as esposas dos derrotados no episódio do Capão da Traição na Guerra dos

Emboabas, recusaram-se a acolher os maridos, enquanto eles não voltassem à batalha.

Também a jovem Maria Úrsula de Abreu e Lencastre, que fugiu do Rio de Janeiro por volta

de 1700, serviu vestida de homem na Índia durante aproximadamente 12 anos.182

Todos esses exemplos de mulheres que exerceram importantes papéis durante o

período colonial, sejam o de administrar ou o de pegar em armas, parecem indicar uma

tendência, não do século XVIII, mas da situação vivida pelos portugueses, principalmente

de além mar, os habitantes das colônias.

Fica claro a princípio, que diante da ideologia que perpassava a época, a passividade existia por parte das mulheres apenas quando era conveniente. No momento em que havia a necessidade de ocupar papéis supostamente masculinos em benefício da hegemonia da classe dominante, a passividade era substituída imediatamente pela atividade permanente.183

Dentre as personagens históricas citaremos: as piratas Mary Read, inglesa, e Anne Bonny, irlandesa, que atuaram na área do Caribe no Oitocentos. 180 A mulher vestida de homem, a dama que vai à guerra, aparece nos rimances ibéricos da Idade Média e faz parte da tradição espanhola e portuguesa. Normalmente narra a história de D. Martinho, ou outro nome qualquer, em redondilha maior. O caso histórico de dona Antónia Rodrigues, que disfarçada de soldado lutou na África, pode ter se fundido à história original. No Brasil, faz parte da tradição cultural popular. Câmara Cascudo a recolheu em prosa, publicando em Contos Tradicionais do Brasil e em Trinta Estórias Brasileiras com o nome de “Maria Gomes”. Para saber mais ler: Galvão, Walnice Nogueira. A Donzela-Guerreira – Um Estudo de Gênero. São Paulo, Senac, 1997. 181 No século XIX, pode-se citar também, Maria Quitéria de Medeiros, que participou da Guerra da Independência; Anita Garibaldi, que vestida de homem lutava ao lado do marido na Guerra de Farrapos; Maria Curupaiti e Jovita Alves Feitosa que lutaram na Guerra do Paraguai. Para saber mais ler: Sabino, D. Ignez. Mulheres Ilustres do Brasil. Florianópolis, Ed.das Mulheres, 1996. 182 Ela transformou-se em personagem central do romance de Gustavo Barroso, a Senhora de Pangin, segundo Walnice Nogueira Galvão. 183 Ribeiro, Arilda Inês Miranda. Op.cit., p. 31.

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As conquistas portuguesas do século XVI ao XVIII e a exploração de suas colônias

foram tarefas muito árduas. A necessidade de colonizar e manter sua hegemonia parece ter

obrigado o povo português a se adaptar. Nesse processo, as mulheres também tiveram

muitas vezes que assumir outras funções para sua sobrevivência e a preservação do

domínio português.

Teresa Margarida passou a infância no Brasil, sua mãe era de família tradicional

paulista, além disso seu pai participou ativamente da corrida do Ouro em Minas Gerais e de

uma das invasões francesas no Rio de Janeiro, como já vimos. Ela conhecia a realidade das

mulheres das colônias portuguesas, as quais conviviam com situações atrozes, e

provavelmente também sabia que as mulheres guerreiras eram muito populares na

literatura, por isso o fato de Hemirena vestir-se de homem, lutar para sobreviver e manter

sua virtude intacta, ajudaria a promover o romance entre o público leitor.

A princesa de Tebas age no romance impulsionada pela sua precária situação, sem

ninguém que a defenda, sem posição social ou condições econômicas, empreende uma

busca pelo seu mais precioso bem: a família e pela preservação de sua honra. Os motivos

que a levaram a assumir as vestimentas masculinas e adotar a identidade de Belino, quando

extintos, isto é, no reencontro familiar, possibilitam-lhe voltar a sua própria condição e

assumir novamente seu papel na sociedade e na família, por isso quem assume o discurso

narrativo no final da história é seu noivo, príncipe de Delos, que representa o futuro

governante:

(...) pois eu vos respondo como verdadeiro amigo, vos aconselho com expressões de legítimo afeto, vos animo com leis de boa razão, e justiça, com armas, e homens, que vos descansem, e com memórias de meus trabalhos, para que vejais que se as fadigas fazem o descanso, também este entre nós faz guerra às virtudes, que em vós sempre aumentem os Deuses consoladores.184

Suas experiências tornam Arnesto apto para desempenhar suas funções no Estado,

por isso discorre como devem proceder os monarcas para o progresso da nação. Enquanto

o silêncio da personagem Hemirena simboliza seu retorno à condição feminina, à posição

de filha e de noiva. Ao voltar a sua condição de mulher, reforçam-se os preceitos que foram

desenvolvidos ao longo do romance, como, por exemplo, o de que as mulheres devem

guardar silêncio e manterem-se quietas.

184 Silva, Teresa Margarida da Silva. Op.cit., p. 195.

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Juntamente com esses ideais, a autora está pregando a ação feminina, através da

personagem Hemirena, e sua imagem de donzela-guerreira, travestida de homem, lutando

na guerra, a salvar a mãe e o noivo, pode parecer no mínimo estranha.

Há uma oscilação na representação feminina no romance, pois se de um lado prega-

se que a mulher deve ser submissa ao pai/marido e desempenhar suas obrigações

domésticas e sociais, por outro, quando o bem familiar e da nação demandarem, a mulher

poderia assumir outras funções, mesmo que masculinas.

Pode parecer que o romance é contraditório, mas preferimos pensar que na realidade

ele está de acordo com o momento histórico vivido em Portugal em que os ideais

iluministas valorizavam as mulheres, suas funções domésticas, e se pregava a educação

feminina voltada para o bem estar familiar e o progresso da nação. De acordo com os textos

apresentados nesse trabalho, havia intelectuais portugueses envolvidos nessa proposta,

dentre eles Teresa Margarida. Porém, também é verdade que faz parte da história e da

literatura mundiais que as mulheres podem agir como homens em momentos críticos, como

os de guerra.

É importante atentar que as mulheres que assumem definitivamente funções

masculinas, como a de lutar, não são bem vistas, e na literatura normalmente têm morte em

conflitos. Por outro lado, aquelas que desempenham tais funções para o bem geral, nas

situações de perigo, retomam sua vida normalmente, voltando à condição anterior. Essas

seriam as louváveis, tidas como verdadeiras heroínas, tramitariam entre dois mundos: o

masculino e o feminino.

Em Aventuras de Diófanes, isso não parece ser gratuito, faz parte de uma realidade

conhecida da autora e também confere mais dinamismo à narrativa. Se Teresa Margarida

tivesse feito de Hemirena apenas uma mulher, teríamos provavelmente duas possibilidades:

aumentar a parte discursiva do romance, somando-se os discursos de Hemirena aos de

Climinéia (Delmetra); ou apresentar mais cenas domésticas em que ambas aparecessem em

suas tarefas cotidianas, restringindo-se os encontros e desencontros na estrada entre as

personagens, uma vez que como mulheres não poderiam estar andando sozinhas por tantos

caminhos. Nos dois casos, a participação feminina na narrativa seria menor, como ocorre

em O Feliz Independente do Mundo e da Fortuna e em Aventuras de Telêmaco.

Se, por um lado, os ensinamentos morais do romance de Teresa Margarida estão em

consonância com outros textos, como o Casamento Perfeito, isto é, com as máximas da

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época, por outro lado, o que confere ao romance grande importância é a forma como a

autora conseguiu conciliar as reflexões morais e a moral em ação na narrativa, construindo

um livro que embora pertença ao mesmo gênero de Aventuras de Telêmaco e O Feliz

Independente do Mundo e da Fortuna, difere de ambos pois aumenta a participação das

mulheres na narrativa e a discussão das questões femininas.

Além disso, sua ligação com textos como os de Verney e Matias Aires, serve para

apresentar um vislumbre da situação cultural e intelectual de Portugal no setecentos.

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Conclusão

O romance de Teresa Margarida foi muito lido durante o século XVIII e início do XIX, no

entanto foi esquecido pela história literária. Somente em meados do século XX, Ernesto

Ennes resgatou a obra e sua história editorial, mesmo assim o livro permaneceu relegado a

dicionários bibliográficos, notas de rodapé e pequenos parágrafos em Histórias Literárias.

É instigante analisar textos como Aventuras de Diófanes, que não foram

canonizados, pois isso possibilita-nos um amplo campo de pesquisa já que muitas vezes

somos os pioneiros, os primeiros a ler, interpretar e descobrir informações em uma obra de

outra época, parte de outra realidade histórica e cultural.

Foi muito interessante descobrir que existe uma “história” por trás da própria

criação do romance, as trocas de título, os acréscimos e as modificações, o uso do anagrama

e as confusões na atribuição da autoria, o desejo de sigilo da autora etc. Além disso, a

própria vida de Teresa Margarida poderia ter inspirado um bom romance.

A importância de resgatar essa obra está no fato de que ela fez parte do processo de

construção e consolidação do gênero romanesco. E sua análise nos forneceu indicações

desse processo e das transformações ocorridas. Além disso, as crenças e comportamentos

pregados nos possibilitaram vislumbrar um panorama dos ideais da época.

Não se pode negar que o fato de o romance ter sido escrito por uma mulher, em

meados do século XVIII, seja mais um fator de interesse. Além disso, o disfarce, tanto da

identidade da autora, quanto os subterfúgios no romance, os travestimentos, mostram uma

lógica que preside o romance.

Se seu ilustre irmão, Matias Aires, tornou-se patrono de uma das cadeiras da

Academia Brasileira de Letras, Teresa Margarida e sua obra continuam a não serem levadas

em conta.

Aventuras de Diófanes é um importante texto da literatura luso-brasileira do período

colonial, por isso poderia ser mais estudado e valorizado.

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