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Relatório de Pesquisa Avaliação da Situação de Assentamentos da Reforma Agrária no Estado de São Paulo Fatores de sucesso ou insucesso

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Page 1: Avaliação da Situação de Assentamentos da Reforma … · 5 – Formas de obtenção de áreas para os projetos de assentamento rural: Incra e ITESP – São Paulo (2002 e 2010)

Relatório de Pesquisa

Avaliação da Situação de Assentamentos da Reforma Agrária no Estado de São Paulo Fatores de sucesso ou insucesso

2013

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PrMissão do Ipea

oduzir, articular e disseminar conhecimento paraaperfeiçoar as políticas públicas e contribuir para o planejamento do desenvolvimento brasileiro.

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Avaliação da Situação de Assentamentos da Reforma Agrária no Estado de São PauloFatores de sucesso ou insucesso*

Relatório de Pesquisa

* À direção da Superintendência Regional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária de São Paulo (Incra-SP), especialmente ao superintendente Raimundo Pires Silva e a seus diretores, pelo apoio incondicional a esta pesquisa; aos técnicos de campo, pela inspiração e o prazer da convivência; aos assentados da reforma agrária, pela paixão cravada na luta pela terra, razão e sentido desta pesquisa.

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Governo Federal

Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República Ministro Wellington Moreira Franco

Fundação pública vinculada à Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, o Ipea fornece suporte técnico e institucional às ações governamentais – possibilitando a formulação de inúmeras políticas públicas e programas de desenvolvimento brasileiro – e disponibiliza, para a sociedade, pesquisas e estudos realizados por seus técnicos.

PresidenteMarcelo Côrtes Neri

Diretor de Desenvolvimento InstitucionalLuiz Cezar Loureiro de Azeredo

Diretor de Estudos e Relações Econômicas e Políticas InternacionaisRenato Coelho Baumann das Neves

Diretor de Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da DemocraciaAlexandre de Ávila Gomide

Diretor de Estudos e PolíticasMacroeconômicas, SubstitutoCláudio Hamilton Matos dos Santos

Diretor de Estudos e Políticas Regionais,Urbanas e AmbientaisRogério Boueri Miranda

Diretora de Estudos e Políticas Setoriaisde Inovação, Regulação e InfraestruturaFernanda De Negri

Diretor de Estudos e Políticas SociaisRafael Guerreiro Osorio

Chefe de GabineteSergei Suarez Dillon Soares

Assessor-chefe de Imprensa e ComunicaçãoJoão Cláudio Garcia Rodrigues Lima

Ouvidoria: http://www.ipea.gov.br/ouvidoriaURL: http://www.ipea.gov.br

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Brasília, 2013

Relatório de Pesquisa

Já é quase tempo de amor. Colho um sol que arde no chão,

lavro a luz dentro da cana, minha alma no seu pendão.

Madrugada camponesa. Faz escuro (já nem tanto),

vale a pena trabalhar. Faz escuro mas eu canto

porque amanhã vai chegar.

Thiago de Mello

Avaliação da Situação de Assentamentos da Reforma Agrária no Estado de São PauloFatores de sucesso ou insucesso

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Coordenação de Desenvolvimento Rural (Disoc/Ipea)Brancolina Ferreira (coord.)Alexandre Arbex ValadaresAntonio Teixeira Lima JúniorFábio AlvesJosé Juliano de Carvalho FilhoBruna Sichi Gonçalves

As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada ou da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República.

É permitida a reprodução deste texto e dos dados nele contidos, desde que citada a fonte. Reproduções para fins comerciais são proibidas.

© Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – ipea 2013

FICHA TÉCNICA

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SUMÁRIO

LISTA DE ILUSTRAÇÕES ............................................................................................................................................... 7

1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................................................................... 9

2 A REFORMA AGRÁRIA EM SÃO PAULO: TRAJETÓRIA ................................................................................................. 9

3 RESULTADOS DOS LEVANTAMENTOS REALIZADOS EM SÃO PAULO ........................................................................ 14

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................................................................ 67

REFERÊNCIAS ........................................................................................................................................................... 69

APÊNDICES ............................................................................................................................................................... 71

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

BOXES

1 – Educação nos assentamentos rurais

FIGURAS

1 – Solo degradado de assentamento em São Paulo

MAPAS

1 – Cartograma da distribuição dos municípios por classe de taxa de aumento da área cultivada com cana-de-açúcar (safras

1995/1996-2007/2008)

2 – Áreas produtoras de álcool e área de influência das usinas

3 – As usinas no estado de São Paulo

TABELAS

1 – Número de famílias assentadas nos projetos de reforma agrária em São Paulo por ano (2003-2010)

2 – Famílias assentadas em São Paulo, em projetos criados pelos governos federal (PA + PDS) e estadual (PE) (2002, 2006 e 2010)

3 – Projetos em execução, por período de criação – São Paulo (dez./2010)

4 – Famílias assentadas e área média, em projetos em execução, segundo o período de criação – São Paulo (dez./2010)

5 – Formas de obtenção de áreas para os projetos de assentamento rural: Incra e ITESP – São Paulo (2002 e 2010)

6 – Área de colheita e reforma de cana-de-açúcar no estado de São Paulo, por região administrativa (RA) – safra 2010-2011

7 – Área de expansão da cana para o estado de São Paulo segundo categorias de uso da terra

8 – Distribuição da produção do estado de São Paulo – safra 2006-2007

9 – Distribuição dos assentamentos geridos pelo ITESP que implantaram cana-de-açúcar para fornecimento à agroindústria

10 – Despesa e gasto tributário (2005 a 2009)

11 – Despesas e gasto tributário (2005-2009)

12 – Financiamentos de custeio de lavoura concedidos a produtores e cooperativas no estado de São Paulo – área financiada e em-

preendimento (2010)

13 – Participação do capital estrangeiro na indústria sucroenergética em São Paulo

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1 INTRODUÇÃO

Este relatório é parte de uma pesquisa mais abrangente que tem por objetivo analisar os assentamentos rurais em diferentes contextos socioeconômicos. A iniciativa de começar pelo estado de São Paulo decorreu da observação prévia de situações específicas e emble-máticas para a avaliação das possibilidades de sucesso dos assentamentos rurais da refor-ma agrária e da consolidação de uma agricultura familiar capaz de garantir a segurança alimentar naquele estado.

A pesquisa de campo foi realizada junto aos principais atores sociais que atuam direta e indiretamente em assentamentos rurais sob a responsabilidade da Superinten-dência Regional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) de São Paulo (SR-8): técnicos e coordenadores do escritório central da SR-8; responsáveis e coordenadores de escritórios avançados; técnicos que trabalham junto aos assentados na prestação de serviços de assistência técnica; assentados, dirigentes de cooperativas de assentados e representantes dos movimentos sociais rurais. Para a elaboração deste relatório, foram visitados assentamentos nas regiões de Araraquara-Ribeirão Preto – área de forte presença e expansão do agronegócio da cana-de-açúcar, laranja e eucalipto – e de Andradina – área de atuação intensiva da SR-8, nos termos de uma estratégia de ação designada como “radicalização das políticas públicas” nos assentamentos. Também serviram de referência para este trabalho os relatórios de campo relativos à pesquisa prospectiva realizada em fevereiro de 2010 em assentamentos de diversos municípios paulistas,1 e, ainda, o Relatório de Campo, de pesquisa concluída em 2006, em assen-tamentos rurais de São Paulo, realizada pelo professor José Juliano de Carvalho Filho.

Em fevereiro de 2010, uma versão preliminar deste relatório foi apresentada em São Paulo diante de um público formado por dirigentes e técnicos da SR-8, de representantes de movi-mentos sociais e dos assentados, e de pesquisadores acadêmicos dedicados ao tema da reforma agrária. As discussões suscitadas naquela ocasião determinaram a incorporação de ajustes e a adição de novas informações a esta versão.

2 A REFORMA AGRÁRIA EM SÃO PAULO: TRAJETÓRIA

A partir de 2003, ampliou-se a participação do governo federal na constituição de assentamentos rurais em São Paulo, embora recentemente este ritmo tenha arrefecido. Até aquele ano, a maior parte dos assentamentos tinha sido criada pelo Instituto de Terras do Estado de São Paulo (ITESP). Muitos destes, porém, passaram à adminis-tração do Incra, que os reconheceu e registrou junto ao Sistema de Informações de Projetos da Reforma Agrária (Sipra/Incra), e, assim, estendeu às famílias assentadas nestes projetos o direito de acesso a todas as políticas estabelecidas no Programa de Reforma Agrária de âmbito federal. Atualmente, a presença da assistência técnica e extensão rural do ITESP nos projetos “siprados”, ao menos nas áreas pesquisadas, é esporádica. Ao final de 2010, a maior parte dos assentados (60%) estava em projetos criados diretamente pelo governo federal – projetos de assentamento (PAs) e projetos de desenvolvimento sustentável (PDS). O número de assentados em projetos criados pelo governo estadual – projetos estaduais (PEs) –, já reconhecidos pelo Incra, pouco variou entre 2002 e 2010 (tabelas 1, 2, 3 e 4).

1. Assentamentos localizados nos seguintes municípios: Apiaí, Americana, Bauru, Cajamar, Iaras, Iperó, Itapetininga, Itapeva, Limeira, Pederneiras, Presidente Epitácio, Promissão, Rancharia, Sumaré e Teodoro Sampaio.

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10 Relatório de Pesquisa

Entre 2003 e 2004, a SR-8 precisou reestruturar-se e estabelecer novos procedimentos e prioridades. Com o descenso da política de reforma agrária nos anos imediatamente anterio-res, o estoque de terras disponível para novos assentamentos reduzira-se significativamente. O ano de 2005 foi o de melhor desempenho, em termos da quantidade de famílias assenta-das: mais de 2 mil. Com ligeiras variações, o ritmo de criação de novos PAs de 2005 a 2009 foi de, em média, onze por ano, beneficiando quase oitocentas novas famílias anualmente. Em 2010, houve uma reversão no ritmo de execução do programa de reforma agrária. Para tanto, contribuiu decerto a criação, em outubro de 2009, no Congresso Nacional, de outra Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) contra o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a terceira em cinco anos. Instalada em meio à forte campanha de criminalização contra o movimento, deflagrada após a ocupação por trabalhadores sem-terra de área sob domínio da empresa Cutrale, em Borebi, no estado de São Paulo. A CPMI defi-nia, formalmente, como seu objetivo, investigar “as condições e responsabilidades relaciona-das a desvios e irregularidades verificados em convênios e contratos firmados entre a União e organizações ou entidades de reforma e desenvolvimento agrários”; em termos concretos, porém, esta apuração representava, em âmbito nacional, um obstáculo paralisante às ações do programa de reforma agrária, e, no âmbito do estado de São Paulo, uma reação à política de obtenção de terras desenvolvida pela SR-8. Outros fatores, porém, como as restrições orçamentárias que atingiram o Incra e o engessamento burocrático-normativo da atuação do órgão, dificultando a manutenção de um quadro de técnicos de campo em quantidade e qualidade suficientes e compatíveis com o ritmo de criação de novos projetos e adensamento de antigos, também ajudam a explicar a retração que a política de assentamentos sofreu nos últimos anos no estado.

A tabela 1 mostra, ano a ano, o andamento dos projetos de assentamentos realizados a partir de 2003. Desde logo fica evidente que, no cômputo de famílias assentadas a cada ano, tem peso significativo a ocupação de lotes vagos em projetos criados em anos anterio-res. Em 2003, por exemplo, as 692 novas famílias assentadas foram distribuídas por 100 projetos de assentamento; nos anos subsequentes, como se pode ver, aumenta o número dos projetos que receberam novas famílias, sobretudo em 2009 e em 2010.

TABELA 1 Número de famílias assentadas nos projetos de reforma agrária em São Paulo por ano (2003-2010)

AnoNúmero de projetos que receberam novas famílias

Número de famílias assentadas em todos os projetos

Número de projetos novosFamílias assentadas nos

projetos criados

2003 100 692 6 143

2004 90 726 6 195

2005 110 2.003 13 1.131

2006 140 1.014 12 563

2007 113 1.665 11 1.097

2008 137 1.976 9 593

2009 147 1.547 10 578

2010 173 1.234 3 194

Total 1.010 10.857 70 4.494

Fonte: Sipra/SDM/Relatório: Rel_0229. Jan./2001.

A tabela 2 separa em dois grupos os projetos criados pelos governos federal e estadual, revelando a estagnação da política de reforma agrária realizada pelo ITESP e o crescimento das ações empreendidas pelo Incra. Se em 2002 os projetos instalados pelo Incra compreen-diam cerca de 40% do total, ao passo que o ITESP respondia por 60% dos assentamentos

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11Avaliação da Situação de Assentamentos da Reforma Agrária no Estado de São Paulo

do estado, em 2010 a proporção de participação de cada um destes órgãos inverteu-se, e o Incra passou a ser responsável direto pelo criação de 60% dos projetos existentes.

TABELA 2 Famílias assentadas em São Paulo, em projetos criados pelos governos federal (PA + PDS) e estadual (PE) (2002, 2006 e 2010)

Tipo de projeto 2002 2006 2010

PA + PDS 4.336 5.767 9.756

PE 6.279 6.387 6.407

Total 10.615 12.154 16.163

Fonte: Sipra/SDM/Relatório: Rel_0227. Dez./ 2002; set./2006; jan./2001.Obs.: PA = projeto de assentamento federal; PDS = projeto de desenvolvimento sustentável, também do governo federal; PE = projeto de assenta-

mento estadual.

O período compreendido entre 1995 e 2002 apresenta o melhor desempenho da reforma agrária em São Paulo, como consta da tabela 3. Contudo, os números do Sipra não mostram em que medida ações de estruturação produtiva e de melhoria das condições de vida foram realizadas.

Entrevistas com assentados em projetos de dez anos ou mais de criação quase sem-pre revelaram a intermitência e descontinuidade das ações de assistência técnica, de re-cebimento dos créditos iniciais e, por consequência, do acesso ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) A. Como apresentado adiante, o equacionamento destas carências foi buscado, com sucesso, com a política de radicalização dos programas direcionados aos assentados e assentamentos.

TABELA 3 Projetos em execução, por período de criação – São Paulo (dez./2010)

Períodos Número de projetos Área (ha)Capacidade (número

de famílias)Número de famílias

assentadasÁrea média (área/

capacidade)

Até 1994 13 45.364 1.850 1.690 24,52

De 1995 a 2002 140 182.259 8.778 8.210 20,76

De 2003 a 2010 97 104.710 6.825 6.263 15,34

Total 250 332.333 17.453 16.163 19,04

Fonte: Sipra/SDM /Relatório: Rel_0227. Dez./ 2002; set./2006; jan./2001.

A tabela 3 também revela que a área média dos lotes de assentamento reduziu-se a patamares quase sempre inferiores ao módulo fiscal estabelecido para o município onde estão situados. Nos PDS, a diferença da área média do lote em projetos criados entre 2003 e 2006 – 23,5 ha – em relação à área média em projetos instalados entre 2007 e 2010 – 4 ha – é ainda mais acentuada.

Segundo definição do Incra, os projetos classificados como de desenvolvimento susten-tável destinam-se “às populações que baseiam sua subsistência no extrativismo e atividades de baixo impacto ambiental”, praticando “o manejo sustentável e a preservação de reservas de matas primárias” e se dedicando, mais comumente, a atividades como “o comércio de mudas de árvores da floresta, cascas medicinais, sementes, artesanato, resina, cipó, entre outros”.2 Boa parte dos PDS de São Paulo, especialmente aqueles instalados em antigos

2. Incra (2010b).

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12 Relatório de Pesquisa

hortos,3 não estão todavia em condições de cumprir tais preceitos, pelo menos não antes de muito tempo de investimentos e concentração de esforços para a recuperação dos seus solos, que se encontram bastante degradados.

Por seu turno, ao promover a instalação de assentamentos do tipo PDS em São Paulo, a SR-8 tinha ainda em vista uma finalidade estratégica importante: em um con-texto fundiário marcado pela escassez de terras disponíveis e por uma agressiva expan-são do agronegócio sucroalcooleiro, a modalidade do PDS apresentou-se como recurso alternativo para assegurar a obtenção de terras para a reforma agrária e assim atender a uma importante demanda social que já se configurava com a ocupação, por famílias sem-terra, de áreas da antiga Ferrovia Paulista S.A. (Fepasa) – empresa pública estadual que administrava a malha ferroviária paulista – que haviam retornado para o domínio da União. Além disso, em virtude de especificidade normativa deste tipo de projeto, cujas regras oferecem meios de evitar que a exigência de concessão de licenciamento am-biental, de competência do estado, se converta em obstáculo em um contexto político desfavorável, os PDS permitem que as ações de assentamento das famílias se realizem mais tempestivamente, com subsequente liberação de créditos de instalação e, com eles, com o início do processo de construção das moradias e de acesso a outros serviços que ajudam a reforçar, na reforma agrária, sua dimensão de política garantidora dos direitos básicos da cidadania.

Mas a dificuldade de produção e geração de renda nos PDS também foi relatada nas entrevistas. A minifundização no interior destes projetos constitui um problema funda-mental. Resultado da pressão do movimento social por assentar o maior número possível de famílias, do sentido de urgência social que revestem as próprias ações de reforma agrária e da dificuldade de obter áreas extensas em regiões de disputa por terra – parte dos PDS localiza-se nas cercanias de centros urbanos –, o reduzido tamanho dos lotes restringe as possibilidades de estruturação produtiva dos projetos e se soma a outros problemas, como as demandas da cadeia produtiva de cada localidade e a própria “cultura do trabalho”, na deflagração das contradições presentes na implantação dos PDS em São Paulo.

As áreas nossas não estão adequadas. Há certa restrição, mas estamos fazendo o georreferencia-mento para averbar nossas áreas de reserva. Estas terras não estão preservadas. As próprias áreas de reserva eram feitas com reflorestamento de eucalipto (...). Houve muita retirada ilegal de eucalipto! (Mauro, coordenador de Desenvolvimento Agrário, do ITESP, Araraquara).

Ainda assim, os assentados entrevistados nesses projetos se mostraram satisfeitos com o presente e otimistas quanto ao futuro. Sua satisfação expressava-se também pelo “retor-no” ao campo e pela percepção de melhorias na sua qualidade de vida, em contraste com a visão crítica que tinham em relação à precariedade do trabalho nos centros urbanos. No espaço rural, numa terra que lhes pertence, podiam então voltar a ter esperanças de um futuro melhor para toda a família.

É o que diz seu Firmino, que por muitos anos trabalhou em siderúrgicas:

Quando cheguei aqui eu era empregado, agora tomo gosto pelo meu trabalho (...). Até hoje o meu patrão fala que, quando eu quiser voltar, a porta e portão estão abertos, mas não quero, não, quero ficar na roça. Aqui tá bom demais (Seu Firmino, assentado no PDS Sepé Tiaraju, em Serrana-SP).

3. Os hortos constituíam áreas com plantio de eucaliptos para servirem de suporte às necessidades de madeira da antiga Companhia Paulista de Estradas de Ferro (Fepasa).

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13Avaliação da Situação de Assentamentos da Reforma Agrária no Estado de São Paulo

O conhecimento e o domínio do trabalho no campo são outros fatores de satisfação e realização para os assentados. Como esclarece seu Firmino: “Eu nasci e me criei com mi-nha mãe e oito irmãos, na roça. Eu sei o tempo que se planta, eu sei o tempo que se colhe. Eu sei torrar farinha, eu sei como se fabrica a goma. Tirar leite, e muito mais”.

TABELA 4 Famílias assentadas e área média, em projetos em execução, segundo o período de criação – São Paulo (dez./2010)

Tipo de projeto Período Número de famílias assentadas Área média

PA 1900 a 1994 1.690 24,52

1995 a 1998 1.701 19,00

1999 a 2002 1.064 17,79

2003 a 2006 1.785 14,72

2007 a 2010 2.323 15,07

  PA – total 8.563 17,98

PDS 2003 a 2006 522 23,27

2007 a 2010 671 4,04

  PDS – total 1.193 12,63

PE 1995 a 1998 2.070 25,55

1999 a 2002 3.375 19,81

2003 a 2006 737 20,40

2007 a 2010 225 21,44

  PE – total 6.407 21,65

Total 16.163 19,04

Fonte: Sipra/SDM/Relatório: Rel_0227. Data: 10/01/2011.Obs.: PA = projeto de assentamento federal; PDS = projeto de desenvolvimento sustentável, também do governo federal; PE = projeto de assenta-

mento estadual.

As famílias assentadas pelo Incra em São Paulo passaram de 4,3 mil, em 2002, para mais de 10,5 mil em 2010. De outra parte, o aumento das famílias em assentamentos es-taduais pouco evoluiu: de 6,2 mil, em 2002, subiu a apenas 6,4 mil em 2010. O total de famílias sob a responsabilidade da SR-8 – como expresso na tabela 1 – chegava, em 31 de dezembro de 2010, a 16,1 mil.

As áreas destinadas aos projetos estaduais são obtidas via processo de discriminação e arrecadação de terras devolutas, que, por força da Carta Constitucional de 1988, passaram a integrar o patrimônio fundiário dos estados.4 Por isso, terras destinadas a projetos de assentamentos rurais estaduais, quando “sipradas”, registram, na referência à sua forma de obtenção, a categoria “reconhecimento”. Para a criação de projetos de assentamento fede-rais, o Incra emprega outras modalidades de obtenção, basicamente a desapropriação. Este processo, entretanto, não é de fácil tramitação: embora os recursos assinalados para paga-mento de indenizações fiquem depositados em juízo, a concessão de imissão da autarquia na posse da terra costuma tardar para muito além do prazo legal: em alguns casos, por mais de dez anos. O instituto do “rito sumário” para processos de desapropriação, determinado por lei,5 não tem sido aplicado, e o embasamento técnico e jurídico que fundamenta os processos de desapropriação para fins de reforma agrária encontra-se defasado: os índices de

4. Como tal processo de discriminação e arrecadação não foi completado, persistem muitas áreas em poder de grandes fazendeiros, o que tem propiciado embates políticos, judiciais e policiais com trabalhadores rurais sem-terra, que lutam pelo cumprimento do preceito constitucional de destinação de terras públicas para a reforma agrária (Artigo 188 da Constituição Federal).5. Lei Complementar no 76, de 7 de julho de 1993.

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14 Relatório de Pesquisa

produtividade, cujos parâmetros definem o conceito de imóvel improdutivo, foram fixados com base no Censo Agropecuário de 1975 e aguardam ainda a devida atualização, conforme mandamento da Lei Agrária.6

TABELA 5 Formas de obtenção de áreas para os projetos de assentamento rural: Incra e ITESP – São Paulo (2002 e 2010)

Forma deobtenção

Incra ITESP – PE Total  

2002   2010   2002   2010   2002   2010  

Área (ha)

(%) Área (ha) (%) Área (ha) (%) Área (ha) (%)Área (ha)

(%)Área (ha)

(%)

Desapropriação 81.157 93,1 154.531 85,3 0 0 1.317 0,9 81.157 29,1 155.848 46,9

Reconhecimento 800 0,9 4.657 2,6 191.424 100 149.649 99 192.224 69 154.307 46,4

Outras1 5.249 6,0 21.938 12,1 0 0 240 0 5.249 1,9 22.178 6,7

Total 87.206 100 181.126 100 191.424 100 151.207 100 278.630 100 332.333 100

Fonte: Sipra/SDM/Relatório: Rel_0227. Dez./2002 e jan./2011.Nota: 1 Arrecadação, compra e venda, transferência, cessão, adjudicação e outras não especificadas.

Se em 2002 as áreas desapropriadas constituíam menos de 30% das áreas ocupadas por projetos da reforma agrária em São Paulo, ao final de 2010 elas alcançaram 47%, ultrapassando aquelas obtidas mediante reconhecimento, modalidade mais utilizada pelo ITESP. Assim, as desapropriações, que, em 2002, abarcavam 81,2 mil ha, praticamente duplicaram, ao final de 2010, sua área total, alcançando 156 mil ha. De outra parte, no mesmo período, pouco aumentou a participação das áreas que conformam os projetos estaduais, revelando forte contração da política de assentamentos promovida pelo estado.

A terceira parte deste relatório destina-se a aprofundar algumas das questões referidas até aqui e fornecer, com base nas entrevistas e outros dados empíricos colhidos em campo, evidências adicionais para delinear um diagnóstico dos fatores de sucesso e de insucesso dos assentamentos de reforma agrária em São Paulo.

3 RESULTADOS DOS LEVANTAMENTOS REALIZADOS EM SÃO PAULO

3.1 Fatores de sucesso

3.1.1 Concepção da política: linha de ação, pessoal técnico e organização administrativa da SR-8

A linha de ação adotada pela SR-8, sob a denominação de “radicalização da política pú-blica”, consiste, fundamentalmente, em promover uma aceleração da execução da política agrária, reduzindo o intervalo entre as sucessivas etapas que constituem o seu ciclo, a contar da imissão na posse da terra e do parcelamento das glebas.

Os princípios que norteiam essa estratégia são a tempestividade e a agilidade, sobretudo em relação à liberação dos recursos dos créditos de instalação, destinados às primeiras ações de estruturação produtiva dos lotes e à construção das moradias das famílias assentadas. A execução da política de reforma agrária em São Paulo foi concebida segundo o objetivo

6. A Lei no 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, estabelece no Artigo 11: “Os parâmetros, índices e indicadores que informam o conceito de produtividade serão ajustados, periodicamente, de modo a levar em conta o progresso científico e tecnológico da agricultura e o de-senvolvimento regional, pelos Ministros de Estado do Desenvolvimento Agrário e da Agricultura e do Abastecimento, ouvido o Conselho Nacional de Política Agrícola”.

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de, em dois ou três anos a contar de sua instalação, dotar um projeto de assentamento dos meios e das condições necessárias à consolidação do processo de produção.

Os efeitos dessa busca de agilidade sobre a estruturação produtiva dos assentados tornam-se visíveis pela comparação entre os PAs de criação recente e os PAs mais antigos. A entrada da política pública nos PAs novos realiza-se de maneira mais completa, com maior grau de encadeamento entre as etapas e maior volume de recursos. Assim, a concen-tração, nas fases iniciais, da aplicação dos créditos e da prestação de serviços de assistência técnica aos assentados acaba por colocar os assentamentos recém-constituídos em um está-gio de desenvolvimento e organização mais adiantado que o dos PAs antigos.

Apesar disso, entre os produtores assentados há mais tempo, é comum a percepção de que o Incra está, atualmente, mais presente nos assentamentos. Nas idas a campo, em assen-tamentos novos ou antigos, são inúmeros os sinais que confirmam este parecer: os assentados comparecem em sua quase totalidade às reuniões convocadas pelos técnicos de campo, sen-tem-se à vontade para colocar qualquer tipo de questionamento ou solicitar esclarecimentos à parte, tratam-nos com familiaridade, o que indica que as visitas se dão com significativa assiduidade – ainda que não se realizem com a frequência ideal –, e, por fim, se mostram atentos às informações trazidas pelos técnicos, considerando-as, de fato, como indicações oficiais do órgão que eles representam. Paulo Freire, liderança do MST, analisa a relação com o Incra, tangenciando as contradições que marcam a política social em um Estado capitalista:

A nossa relação com o Estado aqui é pelo Incra, muito pouco com o ITESP. E, com toda a tranqui-lidade, mas com os limites que todo órgão estatal tem. Ainda mais uma política que não é priorida-de nem estatal, nem do governo. Então, há a contradição que é inerente ao Estado capitalista e há a contradição de reforma agrária. No campo da esquerda mesmo há disputa de projetos de reforma agrária, uma é produtivista (...) outra que é popular (Paulo Freire, militante do MST).

Apesar de, no conjunto das entrevistas, ser corrente essa referência à ampliação da pre-sença do Incra nos assentamentos, uma crítica importante ao seu desempenho administra-tivo, pontuada em muitos relatos, ressalta que, em certas ocasiões, a autarquia atua aquém de suas possibilidades. Promotor de Justiça do Meio Ambiente em Ribeirão Preto, Marcelo Goulart oferece um parecer crítico à atuação do Incra, reportando os efeitos decorrentes do problema de acesso à água, que atinge os assentamentos na sua região:

O Incra não toma as providências, eu consegui que o DAEE (Departamento de Águas e Energia Elétrica de São Paulo) fizesse um projeto pro Incra, entregaram ano passado e nada aconteceu. Os assentamentos da Fazenda da Barra, próximos aos centros urbanos, eles fazem desvio de água da rede pública. O pessoal do [assentamento] Mario Lago que está distante (...) eles têm que pegar água contaminada dos córregos ou furar poço contaminando o aquífero Guarani. Estimulados pelo Incra porque não tem competência pra executar o projeto. Não sei se com-petência, falta de recurso (...)

No entanto, a interveniência do Ministério Público para resolução do conflito de acesso à água, numa região que é de recarga do aquífero Guarani, resultou na formulação de um termo de ajuste de conduta (TAC), pelo qual os assentados deviam abster-se de implantar poços em seus lotes. Para um dos entrevistados, o TAC “só serve pros assenta-mentos, os caras do agronegócio irrigando a cana aqui, aí o pessoal começa a questionar o porquê de eles poderem e nós não”.

Se a luta por terra, no estado de São Paulo especialmente, não parece concluir-se com a criação do assentamento, mas segue sendo travada pelos assentados, dia a dia, mesmo após entrarem na posse de sua parcela, a questão do acesso à água tem-se apresentado, cada

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vez mais, às famílias assentadas, como um dos mais problemáticos prolongamentos do seu conflito inicial pelo acesso à terra. Em outra seção deste relatório, o problema da água será tratado mais a miúdo, mas, nesta altura, tendo por base a citação do promotor de Justiça do Meio Ambiente de Ribeirão Preto e por fundo a questão do desempenho administrativo da SR-8, é possível oferecer uma ideia do grau de complexidade que atravessa o contexto de atuação do Incra: a perfuração de poços para captação da água que serve ao consumo doméstico das famílias assentadas e sem a qual, evidentemente, elas não podem permanecer na terra, depende do licenciamento ambiental do assentamento, providência que compete ao governo estadual e que, portanto, se sujeita à discricionariedade deste; além disso, uma vez que as águas do aquífero Guarani já servem ao abastecimento integral de Ribeirão Preto, São José do Rio Preto e suas adjacências, é difícil compreender que seja vedado justamente aos assentados o direito de utilizá-las para satisfazer as necessidades de suas famílias.

As estratégias administrativas da SR-8 envolvem, porém, outros aspectos relevantes. A for- mação do quadro de técnicos de campo – um quadro numeroso e ativo, que dinamizou a pres-tação de serviços de assessoria técnica, social e ambiental pelo Programa de Assessoria Técnica Social e Ambiental à Reforma Agrária (Ates) nos assentamentos do estado – merece menção especial. A despeito dos problemas inerentes às modalidades precárias de contratação dos técni-cos de campo, como se verá mais adiante, o fato de a maior parte deles ser composta de filhos de assentados, que passaram pela experiência dos acampamentos, dos despejos e da organização dos assentamentos onde suas famílias ainda vivem, tem um significado político e social de extraordinária importância, sem falar em sua força simbólica. Do ponto de vista dos assenta-dos, é oportuno contar com a assistência de um técnico habituado a lidar com as dificuldades práticas do trabalho agrícola e do processo de estruturação de um assentamento. Do ponto de vista do Incra, a presença de assentados no seu corpo técnico denota o compromisso do órgão com a base social a que se destina sua política e, portanto, em sentido mais amplo, com a causa da reforma agrária; além disso, a competência demonstrada em sua atuação por estes técnicos filhos de assentados, muitos dos quais têm ou estão em vias de obter formação técnica ou supe-rior – com o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) –7 em agronomia, engenharia florestal e áreas afins, contribui para a legitimação da própria política de reforma agrária. Por fim, a participação ativa dos assentados em um órgão de Estado, conhecendo os problemas e as condições que envolvem a atuação do poder público, contribui para a formação política deste grupo quanto ao conhecimento de seus direitos e dos mecanismos de funciona-mento das instituições. Este aprendizado, incorporado às bases, tende, em alguma medida, a favorecer capacidade de mobilização e o exercício da autonomia dos assentados.

Por todas essas razões, mas também pelos bons resultados técnicos que ela tem apre-sentado, a política de contratação de filhos de assentados como técnicos de campo poderia converter-se em diretriz nacional do Incra. As superintendências do órgão, de modo geral, padecem de uma drástica carência de pessoal, tanto em termos numéricos – em virtude da grande evasão de servidores recém-concursados e da rotatividade dos contratos de terceiri-zação – quanto na sua capacidade de fazer frente à grande e complexa demanda de serviços que os assentamentos exigem. Um modelo de contratação de pessoal técnico que contem-plasse a possibilidade de incluir uma reserva de vagas para assentados, nos respectivos níveis de formação definidos para cada função, mas que, ao mesmo tempo, não os sujeitasse aos riscos de uma contratação de curto prazo, teria certamente impactos bastante positivos sobre o desenvolvimento dos assentamentos e sobre a eficácia da ação do Incra. Em regiões

7. De responsabilidade do Incra, o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) tem por objetivo ampliar o acesso da população assentada à educação: operando desde o nível de alfabetização até o ensino superior, o Pronera funciona por intermédio de convênios celebrados entre o Incra e as instituições de ensino, especialmente universidades públicas.

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onde não se conta com jovens habilitados, poder-se-ia pensar em programas específicos de capacitação e orientação profissional, por meio da ampliação da atuação do Pronera.

O perfil dos técnicos de campo, considerando assentados e não assentados, é tão variado quanto o universo de problemas encontrados nos assentamentos, e é importante que siga sendo assim: técnicos com formação universitária na área de ciências humanas tra-balham em parceria com técnicos graduados em ciências da terra e com técnicos agrícolas. Esta composição tem-se mostrado bem-sucedida, e, em campo, foi possível observar que os assentados identificam os técnicos como representantes do Estado, habilitados a atender a solicitações que, embora excedam sua função institucional direta, se inscrevem na cate-goria geral dos serviços públicos e sociais: elas incluem desde informações sobre produção agrícola, como qualidade de sementes, nível desejável de correção do solo, podas, criação de animais, aproveitamento do espaço do lote, até sugestões sobre a divisão de cômodos da moradia, esclarecimentos com respeito às formas de acesso a serviços de educação e saúde, explicações sobre processos de requerimento de aposentadoria junto à Previdência, instruções para a formação de cooperativas com vistas à participação em programas públi-cos de crédito e comercialização da produção e muitos outros temas. É importante notar que todas estas questões com que a assistência técnica tem de lidar no dia a dia dos assen-tamentos – garantia de renda e trabalho, moradia digna, acesso a serviços públicos etc. – transcendem os limites do trabalho de orientação produtiva e se inserem em um conceito mais amplo de cidadania. Eis uma relação que convém sublinhar: a reforma agrária é um instrumento de consolidação da cidadania no meio rural.

Digno de nota é o trato cordial e atencioso dos técnicos com os assentados, que por vezes consultam-nos mesmo a respeito de questões psicológicas e conflitos familiares – e são particularmente exemplares suas atuações em casos de violência doméstica. Não é exagero afirmar que o corpo de técnicos de campo que trabalha sob a orientação da SR-8 constitui, por si só, um fator de sucesso dos assentamentos, e que a dedicação deles às suas atividades, muitas vezes exorbitando de suas tarefas formais, contém um importante elemento de engajamento político.

Uma das principais consequências do fortalecimento da atuação direta do Incra nos as-sentamentos foi o despertar de uma demanda por serviços que a ausência anterior do Estado fizera permanecer por muito tempo adormecida. Dito de outro modo, os assentados come-çaram a cobrar mais avanços e a externar suas críticas em relação ao órgão justamente porque o Incra passou a estar mais presente nos assentamentos. Com isso, a interação entre o órgão e os assentados tem-se tornado mais dinâmica e produtiva; por esta razão, os desacordos e as contradições inerentes a uma relação deste tipo ganham relevo. Este processo permite que as deficiências da política apareçam e novas soluções sejam elaboradas.

A interiorização dos escritórios do Incra nos assentamentos – a criação de escritórios avançados, como em Andradina – SP e a instalação de bases de administração e atendi-mento em diversos municípios com assentamentos no entorno – tem-se revelado uma importante estratégia capaz de responder a esse crescimento das demandas por serviços. Além de reduzir o número de problemas que chegam à sede da superintendência e ofe-recer a possibilidade de buscar equacionamentos mais imediatos para problemas locais, a estratégia se traduz pelo fortalecimento da presença do Estado nos assentamentos. Esta mudança repercute, positivamente, na ampliação das ações de extensão, regularização documental, resolução de conflitos; nos processos de orientação na elaboração e im-plementação de projetos produtivos junto aos assentados; nas iniciativas de incentivo à

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organização de grupos de famílias; na agilização do atendimento; e na promoção de uma orientação técnica de qualidade. Além disso, mais enraizado nos assentamentos, o Incra pode converter-se em catalisador das atividades de outros agentes públicos envolvidos na implantação de políticas conexas com a de reforma agrária –, por exemplo, a de expansão das redes de energia elétrica.

Cumpre reconhecer que a gestão da SR-8 está verdadeiramente empenhada em pro-mover uma política de reforma agrária no estado de São Paulo. Não resta dúvida quanto à capacidade do grupo de pôr em execução o projeto em que acredita e enfrentar os custos políticos e administrativos que esta luta acarreta. A superintendência tem-se destacado pelo esforço em buscar soluções políticas práticas para problemas não suscetíveis de ser resolvi-dos em tempo hábil por meio de ritos normativos ou sobre os quais a rotina burocrática não estabeleceu precedente. O compromisso da administração da superintendência com o seu público ganhou notável expressão no lançamento de uma importante campanha de defesa política da reforma agrária e de valorização do assentado, sob o lema “Orgulho de ser assentado”; concebida para elevar a autoestima dos assentados e granjear-lhes maior reco-nhecimento social, a iniciativa poderia inspirar campanhas nacionais de efeito semelhante, que tornassem públicos os resultados positivos gerados pela política de reforma agrária sobre a vida das famílias assentadas.

O alcance desses resultados benéficos não se restringe ao público dos assentamentos: um técnico em desenvolvimento agrícola do ITESP, que trabalha com assentamentos ru-rais, lembrou que a instalação de um projeto produz impactos positivos sobre o conjunto da atividade econômica dos municípios, sobretudo dos de médio e pequeno porte, que recebem a maior parte dos assentamentos. Se, a princípio, a instalação de um projeto de assentamento enfrenta resistências políticas locais, à medida que se vão efetivando as fases de implantação da política esta rejeição começa a comutar-se em aceitação: a liberação dos créditos de instalação, gastos no comércio local, imprime um novo giro à economia do município; a estruturação da produção, com a crescente participação dos assentados em feiras e mercados locais e em programas de distribuição de alimentos a escolas e entidades socioassistenciais, promove a integração do assentamento à vida da comunidade e confere a ele um peso importante na economia do município. Conforme assevera Mauro, coorde-nador de Desenvolvimento Agrário do ITESP em Araraquara:

é um mundo capitalista, mas na medida em que os assentados vão produzindo, consumindo, se vestem melhor, eles vão sendo aceitos. O assentado se tornou um consumidor. Atualmente, os pre-feitos até gostam de um assentamento no município, pois os assentados vão produzir e consumir nele, acabam gerando recursos para o município. Alguns prefeitos apoiam e buscam a implantação de assentamento na sua região.

Nessa perspectiva, pode-se inferir o caráter contraditório da reforma agrária no país e, especificamente, em São Paulo. Pode-se perceber que a experiência de luta pela terra forja novas racionalidades econômicas nas relações de trabalho dentro dos assentamen-tos, sobretudo na relação com a natureza. Ao mesmo tempo, a relação dos assentados com a comunidade local – questão cara ao desenvolvimento dos projetos – desloca-se de uma desaprovação inicial à aceitação legitimada por uma “cidadania do consumo”. Em síntese, a integração do assentado à comunidade, grosso modo, passa pela mobilização de capital, pela produção dos assentamentos, nos mercados locais. No entanto, algumas entrevistas esclarecem que o “Orgulho de ser assentado” refere-se também ao processo de aprendizagem que se constitui ao longo da luta por terra e converte esta mesma luta em espaço de formação político-ideológica. É também notável entre os assentados o orgulho

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consequente do retorno ao campo. As palavras de seu Firmino – assentado no PDS Sepé Tiaraju, em Serrana –, criado no campo, mas trabalhador de longa data em meios urba-nos, oferecem testemunho disto: “Em roça sou um profissional, em planta, em colheita, em tudo. Produção de farinha é comigo!”.

Dona Mônica, também assentada do PDS Sepé Tiaraju, em Serrana, conta com entu-siasmo tudo que aprendeu junto aos sujeitos da reforma agrária:

Olha, eu entrei na luta pela terra sem conhecimento nenhum, sem saber o que era reforma agrária, sem saber os meus direitos (...). Na luta pela terra eu aprendi muito sobre isto, junto com o MST (...) bandeira que me ajudou a conquistar o meu pedacinho de terra, devo muito a esta bandeira.

3.1.2 Execução da política: tempestividade e concatenação das ações de liberação de crédito

O aprofundamento e a aceleração das políticas existentes, ainda que seus instrumentos sejam falhos e insuficientes, têm gerado efeitos positivos do ponto de vista do desenvolvi-mento social e econômico dos assentamentos e contribuído para reduzir os índices de eva-são. A preocupação com o tempo de execução da política impõe-se diante das dificuldades inerentes ao próprio processo de instalação das famílias e de organização da produção nos assentamentos: como as áreas desapropriadas encontram-se, frequentemente, desgastadas e erodidas, as fases subsequentes à criação do projeto envolvem, além do objetivo de pro-mover, pela produção, a recuperação do solo – o que requer investimentos expressivos e permanentes –, a necessidade de garantir condições mínimas de permanência das famílias na terra. No estado de São Paulo, o encurtamento de cinco para dois anos no ciclo de exe-cução das políticas, a contar da imissão na posse até o acesso ao PRONAF A, mostra que, em termos gerais, este objetivo vai sendo alcançado.

Os dados preliminares da pesquisa do Incra Qualidade de vida, produção e renda nos assentamentos de reforma agrária no Brasil (2010a) confirmam esse êxito: 75% dos assenta-dos em São Paulo declaram já ter tido acesso aos créditos do PRONAF, ao passo que a mé-dia nacional fica em 52%. A mesma diferença de desempenho pode ser verificada no que respeita ao acesso aos créditos do Incra. À exceção do apoio inicial – recebido por 56% dos assentados em São Paulo, pouco abaixo do índice nacional de 62%, talvez em virtude da antiguidade de parte dos assentamentos paulistas –, em todos os demais créditos, o acesso dos assentados no estado é maior que o índice nacional, especialmente quanto ao fomento e seu adicional, conforme a seguir.

• Crédito de aquisição de materiais de construção: 67% de acesso em São Paulo, con-tra 62% no país.

• Crédito de recuperação de casas/materiais de construção: 32% em São Paulo contra 16% no país.

• Crédito da modalidade Apoio Mulher: 2,6% em São Paulo, contra 0,5% no país.

• Fomento: 61% em São Paulo, contra 25% no país.

• Adicional fomento: 10% em São Paulo, contra 2% no país.

Três etapas de realização da política de reforma agrária têm-se mostrado fundamen-tais: a etapa de fixação das famílias na terra e demarcação dos lotes; a etapa de liberação dos créditos, em especial os dois primeiros fomentos e o crédito para habitação; e o pro-cesso de inclusão dos assentados em políticas públicas de aquisição da produção, como

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o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) da Agricultura Familiar e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE, ou Merenda Escolar).

De modo geral, os assentados participam do processo de demarcação e distribuição dos lotes, que geralmente se dá por consenso. Diferenças quanto ao tamanho da área são ponderadas segundo a localização do lote no interior do assentamento, o nível de inclina-ção do terreno e outros fatores.8 Não se registram problemas de demarcação das áreas de reserva legal, e as idas a campo demonstram que elas são respeitadas. As obras de infraes-trutura – estradas, poços – também são pensadas em parceria com os assentados em um processo que se poderia denominar “PDA [Plano de Desenvolvimento de Assentamento] práticas”. Em todo caso, a pesquisa do Incra (2010) aponta que, em São Paulo, o grau de satisfação dos assentados com o tamanho dos lotes é alto: 53% consideram-no bom e 19%, ótimo. No que tange à fertilidade, 42% julgam-na boa, e 12%, ótima.

Quanto à liberação dos créditos, um fator de sucesso da gestão da SR-8, do ponto de vista da permanência dos assentados na terra, é a aplicação relativamente rápida dos recursos concedidos às famílias para construção de moradias. Uma das dimensões mais exitosas da política de reforma agrária é a política habitacional que ela inclui; e um mérito importante da SR-8 foi reconhecer que a política habitacional empreendida pelo Incra é não simplesmente adicional, mas constitutiva, de fato, da política de reforma agrária como um todo. A despeito das complicações burocráticas que envolvem a compra dos materiais de construção, o crédito destinado à construção das casas, quando liberado tempestiva-mente, ajuda a enraizar a família no lote, por isso é preciso que as famílias o recebam logo após a entrada na terra. Uma vez construída, a casa torna-se patrimônio da família, e esta, confrontada com a possibilidade de abandonar a terra para abrigar-se em uma moradia precária na periferia da cidade, não hesitará em permanecer no assentamento, ainda que seja apenas em função da qualidade da moradia.

No entanto, não se pode garantir que a política de créditos, por mais bem coordena-da que seja, dê conta de todo o processo de estruturação produtiva da família assentada. Uma análise mais circunstanciada do impacto real dos créditos para a reforma agrária e do seu significado para a reprodução social dos assentados foge ao escopo deste relatório, mas pode-se afirmar que, a partir do modo com que tal política foi concebida e das finalidades a que se destina – segurança alimentar, acesso à água e moradia –, as modalidades do cré-dito acabam por substituir direitos, isto é, subordinar a prestação de serviços por parte do Estado a uma contrapartida onerosa com a qual a família é obrigada a arcar. O “ciclo vir-tuoso” dos créditos não é automático. As palavras de uma assentada em um projeto situado na região de Ribeirão Preto, repetindo as de outros informantes, põem em evidência este impasse: “Já tem muita gente indo embora com medo de não conseguir pagar os emprésti-mos” (Dona Mônica, assentada no PDS Sepé Tiaraju, em Serrana).

Conforme foi dito, o pacote de créditos para a reforma agrária inclui a possibilidade de acesso ao PRONAF A, crédito destinado basicamente para investimentos e que, teoricamen-te, completaria o montante dos créditos concedidos, sob outras modalidades, para a estrutu-ração produtiva de cada lote. No entanto, ainda que os assentados tenham acesso aos créditos, estes acabam por vezes sendo utilizados para suprir, em prejuízo da produção e do próprio futuro econômico da família, insuficiências relativas a serviços básicos de que as famílias necessitam e que o Estado não provê. É o que se depreende da fala de um assessor do MST:

8. Problemas relativos à extensão diminuta dos lotes e à forma de ocupação da área em alguns assentamentos foram levantados, mas disto se tratará na segunda parte deste relatório.

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No TAC [termo de ajustamento de conduta] nós elencamos os grandes eixos: cultura, educação, meio ambiente e produção. Na última reunião sobre o TAC nós fechamos a rodovia e dissemos que não íamos mais discutir antes de discutir sobre a água. Daqui a pouco chega o PRONAF e, ao invés de usar para a produção, o assentado vai usar para comprar mangueira, torneira. O PRONAF tem que se pagar e (...) acaba usando o recurso que é, teoricamente, para a pro-dução – algo que vai dar retorno pra você poder pagar este empréstimo – acaba sendo usado pra outros fins. Pra previsão do TAC, dia 31 de dezembro [de 2010] tem que instalar a água lá (Paulo Freire, militante do MST).

Esse ponto ilustra, sob certo aspecto, como a política de créditos, por mais bem executada que seja, pode engendrar um paradoxo prático: para que os recursos sejam aplicados com efetividade na produção, é preciso que as condições de subsistência da família e as condições infraestruturais desta produção estejam dadas; se o Estado não as provê e, em troca, elege a política de crédito como principal política pública dirigida à população dos assentamentos, as famílias tendem a empregar alguns recursos do cré-dito orientado à produção – como o Fomento ou o PRONAF – na satisfação daquelas condições básicas – de subsistência e de produção – anteriores ao próprio processo pro-dutivo. Outro problema é que, a despeito de seu caráter de direitos básicos, algumas finalidades atendidas pela política de créditos – como segurança alimentar e acesso à moradia – não são atividades produtivas em sentido estrito, isto é, geradoras de exce-dentes que poderiam ser usados na quitação destes mesmos créditos; no entanto, estes créditos serão cobrados.

3.1.3 Repercussão positiva da política sobre as condições de vida e de produção dos assentados

Com efeito, em todos os assentamentos visitados, foi possível verificar obras de construção de moradias, em variados estágios de conclusão, demonstrando que a política de liberação de créditos desse tipo teve uma abrangência maciça. Conforme mostra a pesquisa do Incra (2010), 76% das casas das famílias assentadas em São Paulo têm seis ou mais cômodos – no país este índice é de 48% –, e cerca de 70% dos beneficiários avaliam como ótima ou boa a qualidade da moradia – contra 49%, no restante do país. Subsistem grandes complicações burocráticas quanto à forma com que as compras de material são feitas. Tais compras são realizadas em bloco pelos assentados, em nome de sua associação, junto a fornecedores baseados na região; estes, entretanto, nem sempre dispõem de estoque suficiente para sa-tisfazer esta demanda, o que acaba por atrasar ou interromper parcialmente a entrega dos materiais de construção. Além disso, como os assentados não têm acesso ao recurso, que se transfere diretamente, após os trâmites legais, da conta aberta em nome de sua associação pela superintendência para a conta dos fornecedores dos materiais de construção, os prazos para efetivação do pagamento podem estender-se por meses. Assim, em virtude dos desen-contros que se podem gerar em um processo como este, as famílias, de uma parte, ficam por vezes sujeitas aos riscos de não receberem o material tal como foi comprado, na qua-lidade e na quantidade que previram; os fornecedores se expõem aos riscos de receberem apenas meses depois da contratação do serviço, embora em geral eles costumem embutir este risco nos seus preços; e a superintendência precisa despender tempo e trabalho para garantir a conformidade de todas as etapas do processo burocrático a um normativo rigo-roso, sob a vigilância constante dos órgãos de controle. Malgrado tudo isto, os resultados da política de habitação – construção e reparo de moradias – desenvolvida pela SR-8, por meio da administração dos recursos dos créditos de instalação, são muito bons, e refletem a preocupação da gestão de converter os meios da política de reforma agrária em instrumen-tos de garantia da cidadania.

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22 Relatório de Pesquisa

A etapa complementar da política de ampliação do acesso ao crédito é a inclusão dos assentados em programas de aquisição pública da produção. Experiências como o PAA e o PNAE são um alento no deserto da política agrária. Ambos estimulam a auto-organização coletiva, não endividam, induzem a melhoria dos cultivos e proporcionam segurança e ren-da monetária. Estas ações testemunham a importância das políticas oferecem alternativas seguras de comercialização, as quais, no meio rural brasileiro, constituem tradicionalmente o mais sério entrave ao desenvolvimento socioeconômico dos produtores rurais. A garantia de compra pública ajuda a manter o nível dos preços e reduz a dependência dos produtores em relação aos intermediários, que, de maneira geral, adquirem sua produção a baixos va-lores e cobram por serviços adicionais, como embalagem, frete e emissão de notas.

Mesmo com algumas dificuldades na execução dos programas – no caso do PAA, alguns assentados relataram que o pagamento da Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) pode atrasar até seis meses, o que pode comprometer a adesão dos produtores e suscitar a ação de intermediários –, o programa tem alcançado importantes resultados nos assentamentos. O relato da secretária de Agricultura do município de São Carlos, Maria Regina Bortolotti, ressalta este êxito: “com o funcionamento do PAA desde 2007, conse-guimos organizar os agricultores e os projetos para os assentamentos”. Ela afirma ainda que, entre as principais dificuldades para o desenvolvimento das políticas, além do problema do acesso à água para a produção em muitos assentamentos de São Carlos e proximidades, está o “preciosismo burocrático”: “Você não pode formalizar algo absolutamente informal! (...). A intenção do governo Lula não foi formalizar a agricultura informal, foi desformalizá-la para ter canais de escoamento”.

A inclusão dos assentados nesses programas tem efeito estruturante do ponto de vista do planejamento da exploração, da diversificação da produção e da aplicação mais cons-cienciosa de métodos de produção mais eficazes e menos nocivos ao meio ambiente – em virtude dos padrões de qualidade exigidos. A pesquisa do Incra (2010) fornece algumas informações positivas a este respeito. Em termos de conhecimento de técnicas de produ-ção, 51% dos assentados de São Paulo afirmam estar satisfeitos em grau “bom” e 15% deles declaram nível ótimo de satisfação; para o país, estes valores giram em torno de 32% e 5%, respectivamente. Estes indicadores repercutem, evidentemente, o trabalho da assistência técnica, que, embora incorra em problemas e insuficiências graves em todo o país, parece realizar-se de maneira mais sistemática e assídua nos assentamentos paulistas. Outro ponto a merecer destaque refere-se à utilização de métodos de cultivo pró-ambiente. A compara-ção entre o nível de adesão a alguns destes métodos, dos assentados em São Paulo e o dos assentados considerados nacionalmente, revela diferenças notáveis, conforme a seguir.

• Adubação verde: 22,69% dos assentados em São Paulo a adotam, contra 9,07% dos assentados em geral.

• Curvas de nível: empregadas por 63,73% dos assentados em São Paulo, contra 5,62% dos assentados em geral.

• Rotação de culturas: sistema praticado por 38,07% dos assentados em São Paulo, contra 21,15% dos assentados em geral.

• Consórcio de culturas: utilizado por 33,84% dos assentados em São Paulo, um pou-co abaixo dos 39,76% registrados entre os assentados em geral.

• Adubação orgânica: aplicada por 54,09% dos assentados em São Paulo, contra 26,96% dos assentados em geral.

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23Avaliação da Situação de Assentamentos da Reforma Agrária no Estado de São Paulo

• Controle alternativo de pragas e doenças: feito por 25,74% dos assentados em São Paulo, contra 8,13% dos assentados em geral.

• Pousio: realizado por 20,76% dos assentados em São Paulo, contra 29,55% dos as-sentados em geral.

Esse panorama positivo completa-se com a constatação de que os dados sobre pro-blemas ambientais em São Paulo são mais positivos que os verificados em outras regiões do país: a título de exemplo, pode-se mencionar, com base na mesma pesquisa do Incra, que 9% dos assentados em São Paulo reconhecem ter problemas com queimadas no seu lote e 1% deles admite ter problemas com desmatamento; em nível nacional, estes valores alcançam respectivamente 32% e 24%.

Esses dados estão provavelmente subestimados e podem camuflar a dura realidade da situação ambiental de alguns dos assentamentos, sobretudo pelos efeitos do entorno ocu-pado extensivamente pelo agronegócio da cana-de-açúcar; não se podem perder de vista ainda os casos em que os projetos foram instalados em áreas já muito degradadas – como os hortos. Também vale lembrar o pequeno número de assentamentos que já obtiveram licenciamento ambiental.

Conforme exposto em trabalho recente do Ipea (2010):9

Desde 2001,10 os assentamentos necessitam de licenciamento ambiental para sua criação. As pos-sibilidades de intervenção são definidas em função do impacto ambiental potencial. O órgão li-cenciador pode, a partir de estudos ambientais, indicar as restrições técnicas e legais aplicáveis; se for negada a aprovação, o pedido de licenciamento é suspenso e a instalação, desautorizada. Uma vez que os PAs se encontram sob estreita vigilância dos órgãos ambientais federais e estaduais, sua instalação tem efeitos positivos sobre a proteção da floresta, em comparação com o padrão usual de apropriação e exploração da terra no país.

De acordo com alguns entrevistados, não se cobra dos grandes produtores rurais o mesmo respeito às leis ambientais que se tem exigido dos assentados. Sobre isto, Mônica, assentada no PDS Sepé Tiaraju, em Serrana, questiona a possibilidade da coexistência da agroecologia com o agronegócio nos assentamentos de São Paulo: “Como é que a gente vai entrar no agroecológico com esse monte de cana aqui em volta? (...) se eu não me engano, tem norma de 100 metros de distância pra ser certificado”.

Mônica se refere à exigência, para efeitos de certificação, de uma distância mínima entre uma cultura que faz uso de adubos químicos e agrotóxicos e uma produção ecológica. O PDS da Fazenda da Barra é visto como avanço político por Mônica, mas ela se preocupa com a viabilidade econômica:

A gente começou a entregar (produção para merenda) em São Carlos, tem uma doutora lá maravi-lhosa, doutora Regina! Mas, aí nosso produto começou a voltar porque tinha bicho. O que a agrô-noma dela falou (agrônoma da Secretaria de Agricultura de São Carlos): Pra comprar o produto de vocês, preciso de certificado agroecológico. Nós não temos! Então, eu acho assim, é minha crítica, né... Como nós vamos fazer? A gente não entra no comércio, nem pra merenda escolar, a gente não pode jogar veneno, a gente não tem o certificado de agroecológico, a gente tá dando tiro no pé! (...) Os bichos dos usineiros vêm tudo pra dentro do assentamento, nosso produto fica bichado! (Dona Mônica, assentada no PDS Sepé Tiaraju, em Serrana).

9. Ver Ipea (2010).10. A Resolução Conama no 289, de 25 de outubro 2001, dispõe que assentamentos não são isentos do processo de licenciamento ambiental, e que este deve ficar a cargo do órgão estadual competente. Entre outras diretrizes, a resolução proíbe a criação de assentamentos em área florestal e exige licença ambiental para assentamentos novos e licença de operação para assentamentos criados antes de 2001 – condição criada por termo de compromisso de ajustamento de conduta firmado junto ao Ministério Público em 2003.

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24 Relatório de Pesquisa

A questão da viabilidade econômica dos programas envolve o grau de participação da mão de obra familiar na produção. Uma vez que a garantia de compra constitui uma garantia de rendimentos para a família, programas como PAA e PNAE estimulam a parti-cipação de outros membros da unidade familiar, sobretudo os filhos, na divisão de tarefas do lote. É importante que a renda gerada por estes programas rivalize, em termos de custo de oportunidade, com a expectativa da renda a ser obtida por meio de um emprego formal na cidade – isto é, um salário mínimo –, o que, por enquanto, só acontece pontualmente. Apesar disso, já se podem mensurar os efeitos positivos de sua aplicação em São Paulo: de acordo com a pesquisa do Incra (2010), 53% dos assentados no estado avaliam como boa a disponibilidade da mão de obra familiar, e, para 16%, a satisfação neste quesito chega ao grau ótimo; para os assentados do país como um todo, os índices ficam em 40% e 6%, respectivamente. No que tange à comercialização da produção, os dados mostram que, nos assentamentos de São Paulo, 39% e 7% dos assentados dizem-se satisfeitos em grau bom e ótimo, respectivamente; os índices nacionais correspondentes estão em 30% e 3%.

Resta acrescentar que a estruturação produtiva dos lotes, induzida pelo PAA e pelo PNAE – com a diversificação da produção que ela envolve –, permite ao agricultor am-pliar suas alternativas de comercialização. Neste quesito, as feiras de assentados, organi-zadas pelos próprios produtores com apoio do Incra ou de outros órgãos locais, têm-se apresentado como importante alternativa de escoamento da produção, além de contribu-írem para promover uma integração social maior do assentamento com o núcleo urbano do município. Podem ainda ser pensadas estratégias de intermediação do Incra junto a redes locais de supermercados, uma vez que alguns assentados já recorrem, com sucesso, a esta via de comercialização.

Programas de compra pública da produção ainda são diminutos em termos de abran-gência e recursos disponibilizados, mas, em termos de estrutura de funcionamento, pro-posta e resultados concretos, se apresentam como excelente alternativa de política para pequenos produtores rurais familiares e assentados. Seria desejável que sua cobertura fosse ampliada e outras instituições públicas que fazem aquisição regular de gêneros alimentí-cios – universidades, forças armadas, hospitais etc. – passassem também a ser incluídas em políticas de compra da produção da agricultura familiar.

É importante ressalvar que as operações de tais programas envolvem questões de lo-gística que extrapolam as competências da política agrária. A participação dos assentados no PAA e no PNAE é assegurada pela estreita interação que se estabelece entre eles e os técnicos do Incra, sob a inciativa da administração das superintendências regionais locais. Técnicos da CONAB que participam do grupo de coordenação do PAA já afirmaram à equipe do Ipea que o grau de êxito do programa, quanto à adesão dos assentados, depende, fundamentalmente, do engajamento dos gestores locais, do Incra e da própria CONAB: são estes gestores que podem informar aos assentados sobre a existência do programa, ex-plicar-lhes o conteúdo das normas de participação e auxiliá-los a levantar a documentação necessária para a inscrição de seus projetos e constituição de suas associações. Os assentados de São Paulo apresentam participação notável no PAA. Em termos absolutos, superam todos os demais estados: em números da CONAB de 2008, são 3,3 mil produtores as-sentados envolvidos no programa; em termos relativos, isto representa cerca de 20% do total de assentados no estado; nos estados do Rio Grande do Sul e Sergipe, encontram-se o segundo e o terceiro maior conjunto de assentados fornecedores para o PAA – com índices de participação de 15% e 11%, respectivamente.

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25Avaliação da Situação de Assentamentos da Reforma Agrária no Estado de São Paulo

3.1.4 Autonomia e capacidade de auto-organização dos assentados

O processo de constituição do assentamento é coletivo: desde a luta pela obtenção da ter-ra, passando pela construção de relações com o Incra e outros órgãos de Estado para con-solidar as fases de instalação e haver acesso às políticas públicas, até a própria estruturação produtiva do projeto, os assentados são chamados a atuar como coletividade. Mesmo que a repartição dos lotes e o consequente distanciamento entre as famílias pareçam esvaziar este caráter de coletividade, conferindo ao projeto coletivo do assentamento a feição de uma soma de projetos individuais, a experiência tem demonstrado que, na prática, o assentamento segue sendo coletivo: as decisões fundamentais das etapas de instalação do assentamento são tomadas em assembleia – e os efeitos destas decisões atingem a todos –, as políticas públicas induzem os assentados a se associarem e se relacionam com eles como coletividade, e mesmo as “decisões individuais” de produção tendem a se socializar pela troca de experiências entre as famílias produtoras e pela necessidade delas, em função da escassez de meios, de constituir projetos em comum umas com as outras. É evidente, con-tudo, que esta dinâmica incorpora também conflitos internos, mas a própria existência deles conflitos demonstra o caráter intrinsecamente coletivo do processo de organização de um assentamento.

A fala de um assentado ilustra a primeira transição entre a luta e a criação do assenta-mento, e pontua a dimensão coletiva deste processo:

À noite eu vinha trazer comida e água pra mulher, enquanto na cidade eu catava latinha, papelão, mesmo doente. Minha mulher não é estaca não, é mourão! Depois de muita luta surgiu o sorteio (dos lotes), não tenho muita certeza, mas acho que foi por consenso (Seu Firmino, assentado no PDS Sepé Tiaraju, em Serrana).

Esse relato nos remete à situação precária em que vivem as famílias nos acampamentos durante a luta pela terra. Muitos assentados lembram-se das violências sofridas nesta etapa, todavia suas falas revelam o orgulho que sentem da luta e seus aprendizados, assim como da terra conquistada. O relato também ilustra como a reprodução da vida no período de acampamento é marcada pela escassez de bens primários (alimentos, vestuário, moradia, água) e como, por consequência, os trabalhadores são determinados a desenvolver uma sé-rie de estratégias de subsistência, muitas vezes pautadas em uma economia familiar. Muitos homens – ou mulheres – trabalham nas cidades enquanto as mulheres – ou homens – e crianças garantem a ocupação. Nesta situação, é comum que alguns assentados, vinculados a ocupações externas, não tenham condições para participar organicamente das decisões relativas ao parcelamento dos lotes.

O caráter das políticas de aquisição pública de alimentos, como mencionado, acaba favorecendo a organização dos assentados. A modalidade “doação simultânea” do PAA, por exemplo, exige que os participantes se reúnam em associações ou cooperativas; também o PNAE dispõe que os produtores devem formar associações, tendo em vista a necessidade de dar escala à produção e garantir fornecimento contínuo e regular – e em quantidade suficiente – de alimentos aos estudantes da rede pública. Mas os benefícios trazidos pela auto-organização dos assentados ultrapassam, em seu sentido político e social, os ganhos estritamente econômicos. Suas cooperativas e associações não funcionam como empresas: elas configuram redes sociais produtivas, que permitem aos agricultores desenvolver uma percepção do caráter social do trabalho e da natureza coletiva que caracteriza um assenta-mento de reforma agrária.

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26 Relatório de Pesquisa

A visita a campo mostrou como o funcionamento de programas como PAA e PNAE fortalece os vínculos internos do grupo assentado: em alguns locais, o valor das cotas de fornecimento por produtor foi reduzido com o intuito de incluir mais participantes nos projetos; em outros, a ordem de entrega dos produtos era frequentemente readequada à rotina de produção dos participantes, de maneira a impedir a perda de alimentos que esta-vam em estágio propício para consumo. Quanto à percepção do caráter de projeto coletivo do assentamento, a mudança incide especialmente na relação do assentado com a terra. Se ele segue mantendo com esta uma relação patrimonial e assume uma estratégia de produ-ção tipicamente patronal, limitada à dimensão privada da terra sob seu domínio e marcada por um espírito individualista de concorrência por recursos e mercado ante os demais as-sentados, suas chances de progresso socioeconômico ficam restritas exatamente ao tamanho de seu lote e ao de sua família. Por sua vez lado, a condição de cooperado ou associado pode incutir no assentado a percepção do caráter comum da terra e de seu pertencimento a um projeto coletivo de produção. Sem que isto signifique a anulação total de sua pespectiva individual, centrada no bem-estar de sua família e, portanto, voltada especialmente aos cuidados com o seu lote – porque é sabida a resistência dos assentados a tomar parte em projetos nomeadamente coletivos –, a participação dos assentados em programas como o PAA e o PNAE, sobretudo em virtude dos ganhos gerados a partir disto, pode inspirar a percepção de que as possibilidades de melhoria de sua situação socioeconômica estão em grande medida relacionadas às possibilidades de desenvolvimento socioeconômico do as-sentamento como um todo.

Além de promover uma união e uma coesão social mais forte nos assentamentos – essencial para o êxito do PA –, a auto-organização é fundamental para a obtenção de ganhos sociais e políticos que dependam da capacidade de mobilização dos assentados. Conforme se pôde verificar, esta mobilização pode ter por objetivo solucionar problemas, por assim dizer, condominiais, como o abastecimento e a distribuição de água e luz, ou questões de direito, como acesso a créditos ou a prestação de serviços públicos.

Do primeiro caso, registraram-se exemplos importantes: assentados que se correspon-sabilizam, em sistema de revezamento, na gestão das contas de luz, e se comprometem a recolher, para um fundo comum, uma pequena porcentagem mensal, usada para contratar eventuais consertos ou ajustes na rede de energia;11 assentados que se cotizam para adquirir canos de distribuição da água dos poços artesianos e se responsabilizam pela montagem e manutenção da rede; ou, ainda, assentados que se organizam em mutirão para auxiliar na construção de casas dentro do assentamento. Nos assentamentos de maior porte, estas ações abrangem grupos menores de assentados, unidos por laços de vizinhança, de família ou de reciprocidade.

Quanto à mobilização por questões de direito, os expedientes adotados pelos assentados são os protestos públicos e as ocupações. Nas visitas a campo, se teve notícia, por exemplo, de ocupações recentes em agências bancárias, por efeito da não liberação dos créditos do PRONAF, ou em prefeituras e secretarias, pela falta de prestação de serviço público de transporte escolar, além da organização de um ato de interrupção temporária do tráfego em estrada para protestar contra o cometimento de crime ambiental por agentes externos em área de assentamento. Estas iniciativas, na maioria das vezes, se mostram bem-sucedi-das: elas, de fato, provocam as mudanças desejadas – por exemplo, transferência de gerente

11. O revezamento para pagamento da conta de energia para funcionamento do motor que distribui água surgiu depois que os assentados inscritos como responsáveis junto à empresa fornecedora de energia acabaram por ser considerados devedores, em virtude da inadimplên-cia ou do descaso de outros assentados. Há casos de assentados que estão impossibilitados de receberem qualquer financiamento por terem ficado inadimplentes com a empresa de energia elétrica.

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de banco hostil à liberação de créditos aos assentados ou restabelecimento do serviço de transporte –, e confirmam a percepção geral de que a política de reforma agrária não avança por inércia, mas por impulso. Estes protestos, além de enfrentarem um problema pontual de restrição de direito, têm, como pano de fundo, a luta contra o preconceito de que sofrem os assentados; deste ponto de vista, vale registrar a promoção de manifestações de conteúdo não reivindicatório, em que os assentados prestam conta de sua produção à cidade, apresentam seus produtos ou, ainda, incentivam a visita de moradores da área urbana aos assentamentos.

Ademais, o sentido de auto-organização dos assentados deve transcender o momento de luta pela terra e se enraizar na realidade dos assentamentos. No processo de luta pela terra, a experiência tem demonstrado que as conquistas não se fazem sem enfrentamento e mobilização. Em grande parte das visitas, foi possível ouvir depoimentos que evocavam com nostalgia a fase dura dos acampamentos, em razão do sentido de solidariedade então construído e que, na rotina individualizante dos assentamentos, acaba por se enfraquecer. Isto ocorre, por vezes, porque, após a instalação do assentamento, a pauta de reivindicações se modifica e a questão genérica da posse da terra se fragmenta em questões mais específi-cas, como o acesso a créditos, melhoria de infraestrutura, acesso a mercados, renegociação de dívidas. Com isso, podem começar a surgir dissensos nos assentamentos; verifica-se uma tendência de distanciamento dos assentados em relação ao movimento social que apoiou a luta pela terra, e, reciprocamente, uma perda de legitimidade deste em relação às suas bases. Não raro, este processo dilui-se na proliferação de dissidências absolutamente impotentes.

Dona Leonilda, assentada no PA Guarany, no município de Pradópolis, depois de ter permanecido sete anos acampada lutando pela terra, conta sobre as experiências de solidariedade dentro do acampamento: “Sobrevivíamos unidos, dividia o alimento um com o outro. Se vinha uma cesta pra mim e eu não precisava de uma inteira, que minha família é pequena, a gente dividia a cesta. Porque eles tentaram matar nós por cansaço e fome, mas não”.

Mônica, também assentada, falou sobre o sentimento de solidariedade que experi-mentou na primeira vez em que esteve em uma ocupação: “No dia 3 de agosto fui para a Fazenda da Barra, para conhecer. (...) Quando eu cheguei lá, eu senti com o meu coração que eu tinha que ajudar aquelas famílias a ocupar a fazenda e mostrar a verdade” (Dona Mônica, assentada no PDS Sepé Tiaraju, em Serrana).

Paulo Freire, militante do MST, tantas vezes citado neste relatório, faz um síntese a esse respeito: “Na época de acampamento a luta é pela conquista da terra e quando está no assentamento a luta é pela sobrevivência”.

Sobre as dissidências no movimento social rural, Paulo Freire traz também importantes considerações, ressaltando que a propagação de conflitos internos enfraquecia o movimento, dificultando resoluções quanto ao acesso à terra e abrindo espaço ao agronegócio:

Aqui a hegemonia dos sindicatos rurais é a força sindical. Dos movimentos aqui, temos um grupo de duzentas famílias que formou o MLST (Movimento de Libertação dos Sem Terra). Temos o Luiza Mahin, o Índio Galdino, o MLST, e o MST. Quando se formou o MLST a animosidade era muito grande, ao ponto de ser separado por corda e bandeira. Só não se chegou às vias de fato, por conta da visão do movimento que visualizou que qualquer conflito interno ali só traria benefício pro agronegócio. Já fizemos luta em conjunto; com o MLST não, mas com os demais.

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No entanto, a experiência de cooperativas construídas sobre as bases do movimento social tem mostrado que essa transição entre a luta pela terra e a organização do assenta-mento é possível e benéfica. É evidente que a constituição de uma cooperativa ou associação impõe ao movimento social e aos assentados dificuldades de natureza diversa das enfrenta-das na fase inicial da luta, e, ao mesmo tempo, requer deles habilidades e conhecimentos diferentes, que, na maior parte das vezes, eles aprendem, com surpreendente velocidade, na própria prática. Esta transição coloca, ao menos, três questões importantes: o aperfei-çoamento da militância política, a fim de garantir diálogo mais amplo e qualificado com o governo, do ponto de vista do acesso às políticas públicas existentes; a percepção de que a dedicação à produção nos lotes consiste numa forma de militância política, na medida em que confere lastro de legitimidade à reforma agrária; a adoção de uma estrutura menos verticalizada de decisões nos assentamentos por parte das lideranças que neles atuam, tanto para ampliar a participação política dos assentados quanto para evitar que tais lideranças acabem por desempenhar o papel de agentes do Estado.

A preservação dos meios de ação coletiva e a construção de instrumentos de articu-lação entre vários PAs podem ser muito úteis à promoção do progresso social e do desen-volvimento econômico dos assentamentos. Além disso, conforme foi possível observar em visita à assembleia anual de uma cooperativa de assentados, a transição exitosa do movi-mento social para esta fase de organização econômica da produção nos assentamentos pode restituir-lhe a legitimidade angariada na fase de luta pela terra, e, ao mesmo tempo, fazer ver aos assentados que sua condição atual é produto desta luta e representa apenas um es-tágio no processo mais amplo de reforma agrária.

Em São Paulo, a pesquisa do Incra (2010) apura uma porcentagem relativamente baixa de participação dos assentados em associações e cooperativas, em comparação com a média nacional: enquanto se registra que 78% dos assentados do país participam em associações ou cooperativas, em São Paulo o índice chega a apenas 53%. A disparidade reflete-se ainda no grau de frequência com que os assentados participam das reuniões destas entidades coletivas: 52% dos assentados do país afirmam comparecer a mais de 70% das reuniões, ao passo que em São Paulo são apenas 34% os que declaram a mesma assiduidade. Uma possível explicação para tal diferença, que contrasta com a grande representatividade do estado em políticas nos quais a filiação a cooperativas é obrigatória – como no PAA –, é sugerida pelo fracionamento dos movimentos sociais na região que concentra a maior disputa por terra no país.

3.1.5 Presença de serviços públicos no assentamento ou no entorno: educação

O acesso local a serviços de educação constitui outro estímulo à permanência dos assenta-dos na terra, principalmente da população mais jovem.

Os problemas que caracterizam a educação rural são conhecidos: turmas multisse-riadas e unidocentes, baixa oferta de ensino médio na área rural, conteúdos didáticos dis-sociados da realidade do morador do campo etc. A estas dificuldades, tem-se somado, recentemente, a tendência de esvaziamento das escolas rurais. Isto tem ocorrido, em parte, em virtude da decisão de algumas prefeituras de substituir a prestação do ensino nos es-tabelecimentos situados em área rural pela oferta de transporte público diário até as esco-las urbanas. Esta substituição se explica em grande parte pela transferência, aos governos estaduais e municipais, de recursos federais que, no âmbito do Programa Caminhos da Escola e do Programa Nacional de Apoio ao Transporte Escolar (Pnate), garantem a eles

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a possibilidade de realizar a manutenção ou ampliação das frotas existentes ou contratar serviços terceirizados de transporte. A despeito de atenderem ao objetivo de assegurar aos estudantes acesso à escola, tais políticas acabam por induzir, pela diminuição do número de alunos, ao fechamento das escolas rurais.

A tendência de fechamento das escolas rurais, com transferência dos estudantes para escolas urbanas, obriga-os a acordar de madrugada e a percorrer, às escuras, grandes dis-tâncias até o ponto de passagem da condução; além disso, perde-se a oportunidade de trabalhar um currículo escolar que valorize a realidade social dos alunos rurais e assentados, retirados do seu ambiente. O melhor seria conciliar, a certa altura do processo de aprendi-zado, a frequência dos alunos a escolas urbanas e rurais: isto é, alunos da cidade poderiam, em certos meses, assistir a aulas nas escolas rurais, e vice-versa.

De acordo com a Sinopse Estatística da Educação Básica de 2009 do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), as crianças ma-triculadas no ensino fundamental – público e privado – em escolas de área rural somam 4,9 milhões, aproximadamente 15% do total de estudantes matriculados neste nível de ensino. Estudantes do ensino fundamental residentes em área rural que dependem de transporte para escolas situadas em áreas urbanas somam 1,6 milhão; considerando que são bastante baixos o número de estudantes que residem em área rural e estudam em área urbana sem que dependam de transporte para seu deslocamento e o número de estudantes que moram na cidade e estudam no campo – isto é, assumindo que todos os matriculados no ensino fundamental de escolas em área rural moram no meio rural –, chega-se à conclusão de que cerca de um quarto dos estudantes de ensino fundamental que moram no campo estudam na cidade.

É necessário indicar, no entanto, que 1,8 milhão de estudantes que moram e estu-dam na área rural dependem de transporte para ir à escola. É presumível que o tempo de deslocamento destes estudantes seja menor que o daqueles que vivem no campo e estudam na cidade, mas tal indicador aponta para a necessidade de planejar a distribui-ção das escolas rurais, de modo a evitar que se criem unidades muito próximas umas das outras e que disputem entre si os alunos da região, e que escolas sejam instaladas em pontos muito distantes das áreas de maior concentração de população rural – em geral, os assentamentos.

Para São Paulo, são 118,3 mil os estudantes matriculados no ensino funda-mental em escolas da área rural, algo em torno de 2% do total matriculado neste nível de ensino no estado. Dos estudantes que moram e estudam no campo, 48,5 mil dependem de transporte para ir à escola, isto é, 40%. Mas a pesquisa do INEP registra ainda que 130,3 mil estudantes, matriculados no ensino fundamental e re-sidentes em área rural, estudam em escolas urbanas e usam transporte diário para se locomover até elas. Pode-se estimar, pois, que de um total aproximado de 249 mil estudantes de ensino fundamental que moram no campo em São Paulo, ao menos 52% frequentam escolas urbanas.

A pesquisa do INEP aponta que, de um total de 152,2 mil unidades de ensino fun-damental no país, 77,2 mil – ou seja, 50,7% delas – estão no campo. A média de alunos matriculados no ensino fundamental por unidade de ensino na área rural é de cerca de 60 estudantes; nas cidades, este índice é de aproximadamente 340. Em São Paulo, no en-tanto, a relação entre a localidade dos estabelecimentos é francamente desigual em favor

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das áreas urbanas: elas concentram 91% dos estabelecimentos de ensino fundamental do estado – 13,7 mil sobre 15 mil –. A área rural dispõe de apenas 1,2 mil escolas de ensino fundamental. Quanto à média de matriculados por estabelecimento deste nível de ensino, as escolas urbanas paulistas têm, em média, 437 alunos, ao passo que as rurais abrigam, em média, 98 alunos.

Os resultados para o ensino médio reportam uma grande discrepância quanto ao número de estabelecimentos localizados nas áreas urbanas e rurais: aquelas concentram 91,5% de um total de cerca de 26 mil. Em São Paulo, há apenas 170 estabelecimentos de ensino médio fora das áreas urbanas, o equivalente a 2,8% do total. Em relação ao número de matriculados neste nível de ensino, são cerca de 8 milhões em todo o país, mas apenas 250 mil em escolas situadas fora das áreas urbanas. No país, há cerca de 1 milhão de estu-dantes matriculados no ensino médio e residentes em áreas rurais. Destes, 87% estudam em escolas urbanas. Em São Paulo, 49 mil estudantes vivem no campo e cursam o ensino médio; destes, 85% estudam nas cidades.

Apesar das deficiências de ordem geral, apontadas no início desta seção, as escolas visitadas nos assentamentos do estado estão em muito boas condições de funcionamen-to. Foi possível observar que algumas das escolas contam com assentados no seu quadro funcional, desempenhando atividades docentes ou de apoio, um fato bastante positivo do ponto de vista da valorização do saber e das capacidades de pessoas de origem rural em uma instituição historicamente talhada para a vida urbana. Algumas escolas incen-tivam os alunos a desenvolver tarefas ligadas ao trabalho com a terra – como cuidar de pequenas hortas –, além de estimularem a aquisição de conhecimentos relativos ao solo, às características e propriedades dos vegetais e outros temas. Em algumas escolas, são executados trabalhos específicos de promoção da leitura e iniciação à informática, em geral por iniciativa e esforço do professorado e da direção. A alimentação de quali-dade, muitas vezes contando com produtos cultivados no próprio assentamento, é um traço presente em todas as instituições de ensino visitadas. Vale destacar, ademais, que as crianças se mostram bastante felizes com o ambiente escolar de que dispõem. Pais e professores relataram que as escolas rurais têm-se mostrado menos vulneráveis à ação aliciadora de vendedores de entorpecentes, precisamente em virtude de se localizarem num espaço comum às crianças e às suas famílias. Assim as crianças podem circular com mais liberdade

Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2009, do Insti-tuto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), quase um quarto da população (23%) com mais de 5 anos de idade que vive no campo não é alfabetizada. Em São Paulo, são 11% de analfabetos em área rural. Nos assentamentos, segundo a pesquisa do Incra (2010), este índice, em termos nacionais, é de 16%; nos assentamentos paulistas, o índice é de 13%, ligeiramente maior que o de analfabetos no conjunto geral das áreas rurais do estado. Cumpre advertir que estes dados não são rigorosamente equiparáveis, uma vez que há divergência quanto à amostra das duas pesquisas e ausência de espe-cificação do grupo etário pesquisado no levantamento do Incra; eles indicam apenas a ordem de grandeza dos indicadores.

Os dados gerais sobre educação no campo são ainda dramaticamente preocupantes, mas os assentamentos, segundo levantamentos mais recentes, apresentam índices um pou-co melhores que no restante das áreas rurais.

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31Avaliação da Situação de Assentamentos da Reforma Agrária no Estado de São Paulo

BOX 1Educação nos assentamentos rurais

O último levantamento mais abrangente acerca da educação nos assentamentos rurais foi publicado em 2007, trazendo, todavia, dados relativos a 2004. A Pesquisa Nacional de Educação na Reforma Agrária, do INEP, apontava a existência de 8,6 mil escolas em 5,5 mil assentamentos de 1,6 mil municípios. Cerca de 25% das escolas funcionavam em instalações provisórias galpões, casas de farinha, igreja etc.; 29% eram construções provisórias; 24% tinham cobertura de zinco ou amianto; e 6% de palha ou sapé. Quanto aos equipamentos, 68% das escolas dispunham de cozinha; 9% de bibliotecas; 7% de refeitório; e 2% de laboratórios de informática. Em apenas 30% das escolas, as merendas combinavam, em proporções equivalentes, produtos industrializados e naturais, e somente em 5% estes últimos eram predominantes.

Quanto à escolaridade dos assentados, a pesquisa de 2004 mostrou que 27% nunca haviam frequentado a escola, e 39% haviam cursado apenas as séries iniciais do ensino fundamental. As informações sobre aces-so à escola indicavam que 65% dos alunos estudavam em escolas do assentamento, 13% em escolas do entorno rural e 22% na cidade. Em São Paulo, no entanto, 47% dos estudantes assentados frequentavam escolas nas cidades. O tempo de deslocamento dos alunos de suas casas até a escola era de meia hora para 68% dos estudantes – o mesmo para 50% dos estudantes assentados em São Paulo.

No país, 58% dos estudantes faziam o trajeto a pé e 27% usavam transporte escolar municipal; em São Paulo, este último era usado por 75% dos estudantes, e apenas 14% deles iam à escola a pé.

Entre as famílias assentadas, 4% tinham crianças na faixa de 7 a 14 anos fora da escola. Os principais mo-tivos alegados para esta situação foram: o fato de a escola estar situada muito distante do local de moradia (31%) e a inexistência de escolas que oferecem os níveis ou séries escolares pretendidos (27%). Em São Paulo, apenas 0,7% das crianças na faixa etária indicada estava fora da escola. A base de referência de tais dados, no entanto, está significativamente defasada em relação ao atual universo de assentamentos, que compreende hoje mais de 8 mil projetos.

A recente pesquisa do Incra (2010) apresenta dados mais positivos com respeito à cobertura de matrícula das crianças residentes em assentamentos: considerando os projetos de todo o país, havia apenas 1,82% de crianças fora da escola; em São Paulo este índice era de 0,82%; contudo, tanto no levantamento referente à totalidade dos assentamen-tos, quanto no que respeita apenas a São Paulo, é expressiva a porcentagem da categoria “não informado” para a apuração do número de crianças matriculadas: 11,81% no país e 16,99% no estado. Não é possível assegurar se tal dado deve ser atribuído a um erro de captação da pesquisa de campo ou a um alto nível de desinformação das famílias, mas o fato é que, com tais porcentagens, o índice de resposta afirmativa resulta ser inferior – 82% nos assentamentos de São Paulo e 86% no país – à média de crianças entre 7 e 14 anos matriculadas em instituições de ensino no país, situada na casa dos 96%.

A citada pesquisa do Incra levantou ainda dados referentes à quantidade e à qualificação dos professores, do ponto de vista dos assentados: 53% dos assentados do país consideram “boas” a quantidade e a qualificação dos professores; para 9,37%, o nível de satisfação com estes serviços é de grau “ótimo”. Em São Paulo, o grau “ótimo” atinge 15%, e o “bom”, 56%. Convém ter em conta que estes dados refletem as percepções dos assentados; eles não constituem um indicador objetivo da situação do ensino nem fazem distinção entre escolas urbanas e rurais.

Além disso, cumpre lembrar, como muitas vezes as entrevistas com assentados reve-lam, que o estudo é visto pela família e pelos jovens como meio de ascensão social, o que significa, quase sempre, abandonar a vida no campo. Esta opção está ligada à expectativa de renda dos filhos dos assentados, e a escola se lhes apresenta como meio de qualificação pro-fissional capaz de garantir inserção melhor no mundo do trabalho. Políticas públicas de ga-rantia de compra da produção têm começado a operar uma ligeira mudança neste quadro,

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32 Relatório de Pesquisa

motivando o retorno dos filhos dos assentados ao campo, segundo foi possível captar em alguns relatos. Mas a escola rural, para contribuir com a transição de modelo agrícola fun-dado na proteção e na reprodução da unidade agrícola familiar, deve não apenas promover a transmissão dos novos conhecimentos e técnicas que têm sido produzidos com respeito à atividade agrícola, à produção de alimentos saudáveis e à relação com o meio ambiente, mas enfrentar, ainda, no plano ideológico, a questão da valorização social do trabalho agrícola e da ciência do homem do campo.

3.1.6 Presença de serviços públicos no assentamento ou no entorno: saúde

A presença de unidades básicas de atendimento à saúde nos assentamentos ou em loca-lidades próximas, à medida que oferece a segurança do acesso ao serviço, constitui im-portante fator de bem-estar para as famílias, que não se veem obrigadas a efetuar grandes deslocamentos para receber atenção médica em caso de necessidade. É fundamental que o meio rural possa contar com uma rede de serviços equivalente à encontrada nas áreas urbanas: em primeiro lugar, isto favorece a permanência das famílias na terra, e, além dis-so, ajuda a desfazer a ideia segundo a qual no meio rural não existem condições mínimas de conforto e que, não obstante, a população que vive no campo está já, por assim dizer, habituada às dificuldades.

Uma pequena parte dos assentamentos conta com atendimento de saúde em postos locais, embora tenham corrido informações de que alguns postos de atendimento foram fechados pelo governo do estado ou do município. Boa parte dos assentados relata receber a visita dos médicos do Programa Saúde da Família (PSF), a intervalos de vinte a trinta dias; e em alguns dos assentamentos visitados foram ouvidos relatos positivos de atendimentos de urgência prestados pelas ambulâncias do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) – casos de intoxicação de crianças com agrotóxicos, acidentes de trabalho e até mes-mo de assistência a parturientes. Contudo, a rede de saúde dos assentamentos está longe de satisfazer a demanda. Muitos assentados reclamam dos longos intervalos entre os aten-dimentos e dizem que, nas situações mais sérias, são obrigados a se deslocar até as cidades.

Na pesquisa feita pelo Incra (2010), a percepção dos assentados acerca do acesso a serviço de saúde demonstra um significativo grau de insatisfação. Em termos de avalia-ção, menos da metade deles – em torno de 47% – considera que a prestação deste serviço melhorou após o assentamento da família. Para cerca de 20% dos assentados, a situação piorou em relação às condições anteriores de acesso à saúde. Em São Paulo, os números seguem a mesma grandeza: 51% veem melhora neste quesito, ao passo que 21% julgam ter havido piora. Uma vez que os assentamentos são instalados em áreas mais distantes dos núcleos urbanos, onde, de modo geral, há apenas a terra, sem qualquer infraestrutura pre-viamente instalada, é presumível que assentados com residência anterior em bairros rurais mais antigos ou em periferias urbanas se ressintam da necessidade de enfrentar distâncias maiores para acessar um serviço básico.

Com efeito, os dados relativos a acesso a posto de saúde ou hospital são bastante ne-gativos: 28% dos assentados consideram “ruim” e 27% “péssimo” o acesso a tais serviços. Em São Paulo, os dados também são desanimadores: 16% e 27% dos assentados, respec-tivamente, classificam de ruins e péssimas as condições de deslocamento a unidades de atendimento. Dois fatores cruzam-se aqui: a distância e o estado das estradas internas dos assentamentos, ruim ou péssimo para 57% dos assentados do país e para um quarto dos assentados em São Paulo, segundo a mesma pesquisa.

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33Avaliação da Situação de Assentamentos da Reforma Agrária no Estado de São Paulo

A atuação dos agentes de saúde e o desempenho do PSF têm avaliações mais positivas entre os assentados, o que justifica, em certa medida, a inclusão desta seção entre os fatores de sucesso para a política de reforma agrária. No país, 45% dos assentados consideram “boa” ou “ótima” a assistência prestada; em São Paulo, o índice de aprovação em grau bom e ótimo é de 52%. As informações administrativas do Ministério da Saúde (MS) realçam esta apreciação favorável, embora apenas do ponto de vista do potencial quantitativo do programa, sem ter em conta a sua efetividade qualitativa. De acordo com os dados do Ca-dastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES-MS), existem 79 equipes do PSF em atuação nos assentamentos e quilombos de São Paulo. Considerando que a população de assentados no estado chega a 56,1 mil pessoas – 15,8 mil famílias vezes 3,7, número médio de pessoas por família, estimado a partir dos dados da mencionada pesquisa do Incra –, a proporção de atendimento seria, em termos aproximados, de uma equipe para cada 710 pessoas. Acrescentando-se a este contingente as 1.230 famílias quilombolas do estado – algo em torno de 5 mil pessoas –, a proporção se alteraria para uma equipe para cada 773 pessoas, ou 208 famílias, aproximadamente. O número satisfaz os parâmetros do MS, que situa entre 2,4 mil e 4,5 mil pessoas – entre seiscentas e 1 mil famílias – o grupo populacional a ser atendido por cada equipe do PSF.

Contudo, a partir dos dados do CNES – considerando os dados de maio de 2009 –, foi possível constatar que 38 municípios paulistas que abrigam assentamentos não dispõem de equipes do PSF voltadas para a população rural. Entre eles, contam-se cidades grandes, como Taubaté e Bauru, e cidades pequenas, como Getulina e Ipeúna. Em todos estes muni-cípios, registra-se a existência de postos de saúde, de serviços de pronto atendimento e uni-dades básicas de saúde; no entanto, para a população rural, que vive em áreas mais afastadas, o modelo tradicional de atendimento – em que os usuários devem deslocar-se aos estabele-cimentos de prestação do serviço – é pouco acessível. Nos assentamentos destes municípios onde não há PSF, vivem 3.540 famílias em 52 projetos – PAs, PDS e projetos estaduais.

Por seu turno, foi possível averiguar que 26 projetos contam com postos de saúde locais, no interior do assentamento ou em áreas próximas, o que resulta em uma população de 3,1 mil famílias – 19% do total de assentados do estado – que têm, presumivelmente, acesso a atendimento médico próximo à moradia. Não é possível averiguar, senão in loco, como operam estes postos de saúde, de que aparelhagem eles dispõem e qual a qualidade do serviço prestado; a pesquisa de campo e as entrevistas subsequentes permitiram, entretanto, constatar que, em muitos casos, os postos de saúde recebem pacientes apenas uma vez por semana; em alguns locais, a ausência de equipe médica no posto de saúde é “compensada” pela presença de um motorista, encarregado, nos dias de atendimento, de conduzir a po-pulação a locais onde é possível encontrar atendimento.

As equipes do PSF compõem-se basicamente de um médico, um enfermeiro, um auxiliar ou técnico de enfermagem e de agentes comunitários de saúde, na proporção de um agente para quatrocentas pessoas em área urbana e para 280 pessoas em área rural. Os integrantes devem ter jornada de trabalho de 40 horas semanais; as prefeituras, que arregimentam a equipe, devem submeter a composição delas à aprovação do MS, que efetua os repasses de recursos de acordo com o número de equipes formadas. Infeliz-mente não há dados quantitativos sobre a regularidade com que o serviço é prestado, mas os relatos de beneficiários e participantes têm mostrado haver alta rotatividade na função de médico das equipes; além disso, as administrações municipais têm encontrado dificuldades para contratar médicos que se disponham a trabalhar no regime de jornada fixado e pelo salário proposto.

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34 Relatório de Pesquisa

A avaliação negativa que parte da população assentada faz acerca do acesso a serviços de saúde e da qualidade da prestação decorre, ao que se pôde perceber, de duas razões prin-cipais. A primeira delas concerne à disponibilidade intermitente ou periódica dos serviços existentes nos assentamentos: como as famílias são visitadas pelas equipes do PSF a cada vinte ou trinta dias e os postos de saúde restringem seu funcionamento a apenas um dia por semana, casos de certa gravidade ou que precisam receber atenção imediata – fraturas, problemas cardíacos etc. – quase nunca encontram atendimento oportuno no assentamento ou nas cercanias, e acabam por obrigar os assentados a efetuar o deslocamento até a cidade. Isto significa que, embora o serviço esteja disponível, o beneficiário não percebe sua eficácia.

A segunda razão envolve a dimensão política mais ampla, relacionada à maneira com que os assentamentos de reforma agrária são vistos pelas secretarias locais de saúde e à for-ma com que os profissionais de saúde lidam com os assentados. A relação dos municípios – sua população e suas autoridades – com os assentamentos criados no seu entorno ainda é, em grande parte dos casos, carregada de preconceito. Por concentrar uma população mi-grante de origens variadas, sem vínculos com os habitantes locais, e se situar distante dos núcleos urbanos, o assentamento é muitas vezes visto como uma “cidade marginal”.

Essa conotação depreciativa reflete-se na atitude de profissionais encarregados de pres-tar assistência médica à população assentada. Os assentados são por vezes submetidos a diferentes tratamentos discriminatórios: parte dos médicos, mesmo entre os vinculados ao PSF, resiste a prestar atendimento fora das áreas urbanas; profissionais encarregados de efetuar o transporte até as unidades de atendimento “selecionam” o nível de urgência das demandas dos assentados, o que os obriga ou a deslocarem-se por sua própria conta até elas ou a percorrerem a pé a distância entre sua moradia e o ponto de passagem da condução; nas filas para consulta ou acesso a medicamentos, os assentados são novamente preteridos em favor de “pessoas da cidade”, isto é, pessoas que, por intermédio de relações de paren-tesco, amizade ou conhecimento com os profissionais do atendimento de saúde – o que é reativamente comum em municípios pequenos –, gozam de prioridade no atendimento. Propostas de instalação de farmácias básicas em áreas de assentamentos são descartadas sob a suspeita de que os assentados podem apropriar-se e vender ilegalmente os medicamentos.

Apesar desses problemas, avanços têm sido registrados nas ações de atendimento pré-natal e na área de saúde da mulher e da gestante; outras iniciativas, como o estimulo à produção de hortas medicinais e ao aprendizado de técnicas de manipulação e armaze-namento de plantas com propriedades medicamentosas, embora ainda sejam incipientes no conjunto dos assentamentos, merecem ser destacadas, na medida em que valorizam os conhecimentos dos assentados e os envolvem no planejamento de uma política de saúde para o assentamento.

3.1.7 O combate do Incra às integrações do agronegócio e a criação de assentamentos contíguos

Esses dois pontos podem ser tratados em conjunto, uma vez que abrangem as estratégias de intervenção da SR-8 sobre a estrutura fundiária do estado. A “integração” dos assentados à indústria canavieira ocorre por meio do arrendamento do lote às usinas. A prática de arrendamento é, em si mesma, irregular, e o Incra-SP a combateu por meio da aplicação de advertências verbais e oficiais e da fixação de prazos para que o assentado que arrendou seu lote reverta tal condição. Nos casos em que os assentados insistiam na prática, um dos recursos da autarquia foi pleitear na Justiça a reintegração dos lotes, o que acarretou a ex-pulsão das famílias.

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35Avaliação da Situação de Assentamentos da Reforma Agrária no Estado de São Paulo

Mas, além de ilegal, o “arrendamento”, tal como é proposto pelas usinas, frequente-mente prejudica o assentado, e, ao disseminar-se, afeta o projeto de assentamento como um todo, desfigurando-o, seja pela expansão da monocultura, seja pela deterioração das relações entre os assentados. Longe de regularem uma relação típica de arrendamento, apenas estabelecendo o tempo de usufruto do imóvel mediante pagamento ao titular, os contratos propostos pelas usinas preveem, sob o nome de “arrendamento”, uma verdadeira alienação da área do lote e da força de trabalho do assentado. Este último reduz-se a simples mão de obra terceirizada para plantio, trato e corte da cana, recebendo, não propriamente pela terra, mas pela sua produção. Ao final do processo, o assentado é obrigado a quitar, junto à usina, os custos dos diversos insumos – mudas, fertilizantes, defensivos, equipa-mentos, máquinas e, eventualmente, mão de obra externa – que ela lhe subsidiou ou a cuja aquisição ela o obrigou, em vista da necessidade de garantir a uniformidade da produção. Os valores são calculados, não a partir dos preços vigentes à época da aquisição dos insu-mos, mas a partir de preços praticados no mercado, no ato da quitação, sobre o valor da tonelada da cana. Previsivelmente, o preço do arrendamento por hectare cai à medida que mais assentados e pequenos agricultores aderem à proposta das usinas. Não raro, embora se conheçam casos de “arrendatários bem-sucedidos” nos assentamentos – em especial en-tre os primeiros cooptados pelas usinas, que se tornaram uma espécie de “efeito-demons-tração” para os demais –, muitos dos que aderiram a tais contratos ficaram endividados; alguns disseram, nas entrevistas, que se sentiam “presos à cana”.

A relativa dependência do conjunto de trabalhadores rurais, assentados ou não, com o setor sucroalcooleiro em São Paulo guarda uma ambiguidade perversa:

O compromisso dos usineiros com o governo do estado é em 2014 encerrar as queimadas da cana, que do ponto de vista ambiental é uma vitória. No entanto, do ponto vista social e do trabalho... Isto implica de 300 a 500 mil boias-frias desempregados. Aqui em Ribeirão Preto há um movi-mento de urbanização precarizado. Aqui temos pessoas que vêm de uma safra e não renovam para a segunda safra ou retornam para suas famílias, vivem de bico na construção civil. Tudo isto vem de tentar transformar o etanol em uma commodity. Acabar com as queimadas é para transformar o etanol em commodity. Aí, no campo do enfrentamento, a função social é muito da questão am-biental, do trabalho e também do endividamento dos assentados (Paulo Freire, militante do MST).

A prática de arrendamento de parte dos lotes de assentamento à cana foi induzida pela atuação da fundação ITESP. A Portaria no 77/2004 do ITESP, válida para os assentamentos estaduais, autoriza o arrendamento “a culturas agroindustriais” de até 50% dos lotes de 15 ha e de 30% dos lotes de área superior a este limite, estabelecendo que a exploração – isto é, o plantio, o trato e o corte da cana – deve ser feita com a força de trabalho familiar dos assen-tados. Além do conflito institucional com o ITESP – que resultou, em termos práticos, na assunção da SR-8 da administração de projetos estaduais –, a política de combate ao arrenda-mento empreendida pelo Incra-SP enfrentou forte reação na grande mídia, de que é exemplo a matéria Incra quer proibir cana em assentamentos de São Paulo, publicada no jornal O Estado de São Paulo, em 26 de janeiro de 2008 (Tomazela, 2008). É digna de nota, neste processo, a combatividade demonstrada pela SR-8, cujas ações atenderam não apenas à defesa da terra como bem público, mas também à defesa da própria reforma agrária, como patrimônio po-lítico e social e obra de resgate da independência dos assentados.

A reforma agrária consiste em um dos instrumentos mais eficazes para a defesa do patrimônio fundiário do país. A SR-8 tem buscado promover um modelo de reforma agrá-ria de fixação, e não de titulação, tendo por objetivo não apenas evitar que os lotes sejam posteriormente vendidos e reincorporados à agricultura patronal ou ao estoque do mercado fundiário, mas, ainda, garantir que os assentados acessem o conjunto de políticas públicas –

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36 Relatório de Pesquisa

políticas sociais, de crédito, moradia, comercialização etc. – que acompanha, ou deveria acompanhar, a política de reforma agrária.

Do ponto de vista fundiário, a reforma agrária, ao garantir acesso à terra aos peque-nos agricultores, sem alienar em definitivo a propriedade da área, tem funcionado como instrumento indireto de controle do mercado de terras; em outros termos, as terras desti-nadas à reforma agrária estão resguardadas contra a apropriação privada e impõem limites à expansão de um mercado fundiário cujo padrão de funcionamento tem gerado estruturas fortemente concentradoras. Entre os assentados, com quem foi possível conversar a res-peito da titulação, nenhum deles manifestou-se preocupado em obtê-la; alguns afirmaram preferir manter-se em tal condição, a fim de seguir tendo acesso a políticas atreladas ao assentamento. O quadro encontrado em um assentamento onde houve titulação de lotes dos beneficiários mostra que tal passo nem sempre reverte em benefício para os assentados. Verificou-se, então, na área, a entrada em ampla escala do agronegócio da cana e do euca-lipto, a conversão de lotes em sítio de recreação, o esvaziamento da ótima escola instalada no PA, entre outros problemas. Nessa oportunidade, os autores foram consultados por pro-dutores remanescentes do assentamento sobre a possibilidade de a área ser reincorporada à base do Incra.

A estratégia da SR-8 de criar assentamentos contíguos no Oeste paulista (região Araça-tuba-Andradina), com a proposta de consolidar no local uma “área reformada”, é talvez o traço mais marcante de sua atuação do ponto de vista da defesa do patrimônio fundiário pú-blico e da democratização do acesso à terra. Cumpre notar que esta estratégia se desenvolveu em uma área sob fortíssima pressão pela expansão da cana-de-açúcar, e que a convizinhança dos assentamentos permitiu estabelecer uma zona de contenção a tal avanço e proteger re-lativamente os assentados contra o assédio intenso das usinas, ainda que os efeitos negativos da proximidade dos canaviais – fluxo de dejetos, aspersão de veneno, contaminação do solo etc. – se façam sentir em parte dos lotes dos PAs.

Hélio Neves, da Federação dos Empregados Rurais Assalariados do Estado de São Paulo (FERAESP), confirma a difícil convivência dos assentamentos com o agronegócio da cana, sobretudo no que se refere a uma “suposta” mútua dependência:

Tinha uma greve: cem parados no dia que ia começar o corte de cana na Bela Vista. Aí, a usina tinha que fazer um acordo (...). Hoje, se nós pegarmos, por exemplo, nessa trajetória, grupo eco-nômico como Grupo Cosan, ponta do agronegócio; Grupo Meto, ponta do agronegócio, eles dis-cutem com a FERAESP a presença deles no assentamento, discutem numa situação de igualdade. Os principais grupos econômicos estão dentro dos assentamentos. Não é conversa de academia, nem de boteco, é verdade, eles entram no assentamento, ocupam a terra e plantam, muitas vezes com auxílio de políticas públicas (Hélio Neves, presidente da FERAESP).

De 1981 até o último ano, 2010, foram criados, nos doze municípios compreen-didos no Oeste paulista – Andradina, Araçatuba, Suzanápolis, Pereira Barreto, Castilho, Ilha Solteira, Murutinga do Sul, Mirandópolis, Pauliceia, Nova Independência, Itapura e Guaraçaí –, 36 projetos – 35 deles por iniciativa federal –, abrangendo 58,8 mil ha, dis-tribuídos entre 3 mil famílias. Contudo não é possível estimar ainda a dimensão do im-pacto fundiário promovido pela estratégia de concentração de assentamentos na região empreendida pela SR-8 a partir de 2003-2004: a base de dados sobre a qual seu efeito pode ser calculado – o Censo Agropecuário – registra a situação fundiária até o final de 2006. Deste ano em diante, foram criados dez projetos de assentamento na região: três em Castilho (Cafeeira, Santa Isabel e Ipê), dois em Araçatuba (Chico Mendes e Araçá),

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37Avaliação da Situação de Assentamentos da Reforma Agrária no Estado de São Paulo

dois em Itapura (Cachoeira e Zumbi dos Palmares), um em Mirandópolis (São Lucas), um em Pereira Barreto (Olga Benário) e um em Guaraçaí (Santa Luzia), redistribuindo uma área total de 15,3 mil ha e abrigando um total de 811 famílias.

A julgar pela descrição oferecida no censo, até 2006, contudo, a região segue conservando o padrão concentrador que a tem caracterizado historicamente. Considerando os municípios de Andradina, Araçatuba e Castilho, os estabelecimentos com área superior a 500 ha repre-sentam sempre menos de 5% do número total – 4,5% em Araçatuba, 3,5% em Castilho e 2,5% em Andradina – e concentram sempre mais de 50% da área total – 66,5% em Araçatu-ba, 59,3% em Castilho e 50,9% em Andradina. Em contrapartida, os estabelecimentos com área de 1 a 50 ha somam 71,8% em Araçatuba, 84,1% em Castilho e 83,8% em Andradina, dominando, entretanto, apenas 9,5%, 15,2% e 23,0% da área total correspondente a cada um destes municípios, respectivamente. É interessante observar, porém, que, em 2006, ano de referência do censo, Andradina era, entre tais municípios, o que tinha a mais extensa área de assentamento – cerca de 15 mil ha (eram 8,1 mil ha em Castilho, embora o número de pro-jetos fosse maior); esta distinção ajuda a explicar por que os dados de concentração referentes ao município, conquanto ainda dramáticos, estão melhores que os dos demais e que os dados nacionais correspondentes.

Podem-se citar casos como o de Itapetininga, na região Centro-Sul do estado, onde existem três assentamentos – um deles, estadual – e uma distribuição fundiária menos desi-gual: os estabelecimentos com mais de 500 ha, representando 2,1% do número total, abran-gem 42% da área total. No entanto, estes casos não contemplam ainda a área de expansão da cana-de-açúcar no estado: em 2006, esta cultura ocupava, em Itapetinga, apenas 3,3% da área total. Mas outro dado reforça a importância das ações da SR-8 no Oeste paulista e o grau de complexidade da questão fundiária local: sempre tomando como base o censo, é possível verificar que em Andradina, no ano de 2006, os lotes de assentamentos de reforma agrária representavam 65% dos estabelecimentos de agricultura familiar no município; em Castilho, eles correspondiam a mais de 85% dos estabelecimentos deste tipo. Isto significa que, em uma parte do estado onde o avanço do agronegócio da cana é extremamente agres-sivo – na região de Andradina e entorno, que engloba Castilho e outros municípios, a área plantada de cana cresceu 8,5 vezes de 2001 a 2009, excedendo 150 mil ha –, são os assenta-mentos que têm garantido a sobrevivência do modelo de agricultura familiar.

3.2 Fatores de insucesso

Para efeitos didáticos, os fatores de insucesso estão agrupados em macrotemas a partir dos quais se tenta relacionar a experiência adquirida em campo com dados secundários que subsidiam uma avaliação mais profunda do que vem ocorrendo nos assentamentos rurais e das configurações específicas da questão agrária no estado de São Paulo.

3.2.1 Questões internas aos assentamentos

Acesso à energia elétrica

Os dados referentes ao acesso à energia elétrica da população rural como um todo corro-boram as informações positivas que cercam o desempenho do Programa Luz Para Todos, lançado em 2003 pelo governo federal. Coordenado pelo Ministério de Minas e Energia (MME), operacionalizado pela Eletrobras e tendo suas ações executadas por concessionárias de energia elétrica e cooperativas de eletrificação rural, o programa estabelecia como meta a

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universalização do acesso à energia elétrica nas áreas rurais. De acordo com a PNAD 2009, este objetivo está perto de ser alcançado: até aquele ano, apenas 6,5% dos domicílios em área rural não tinham iluminação elétrica. Este número representa, em termos absolutos, cerca de 500 mil moradias e uma população de 2 milhões de pessoas, o que não é pouco. Mas, em 2004, ano em que começou a operar o Programa Luz Para Todos, a porcentagem de domicílios em área rural sem iluminação elétrica ultrapassava 18%.

Contudo, a pesquisa do Incra (2010) sobre as condições de vida nos assentamentos brasileiros relata que, neles, o acesso à iluminação elétrica é mais restrito que na área rural em geral: 22% das famílias assentadas não dispõem de eletricidade em suas residências. Em São Paulo, este índice é bem menor – 10%. No estado, 64% das residências contam com fornecimento regular de energia elétrica o ano todo, em condições adequadas ao con-forto da família, porcentagem maior que a preocupante média nacional de 42%. Cerca de um quarto dos assentados paulistas afirma dispor de energia elétrica na moradia, mas com fornecimento intermitente e quedas constantes de força; no país, 31% das famílias assen-tadas declaram viver a mesma situação.

Outro problema referente ao acesso à energia elétrica pode ser ilustrado pelos dados, menos recentes, do Censo Agropecuário. O número dos estabelecimentos que, em 2006, utilizavam energia não apenas no domicílio, mas também na atividade agrícola, corres-pondia apenas a 17% do total; em São Paulo, todavia, a situação é mais favorável: cerca de 35% dos estabelecimentos agropecuários empregavam energia elétrica na atividade agríco-la. Embora os resultados do censo referentes ao número de famílias assentadas não sejam compatíveis com as informações registradas na base do Sipra – este último computava cerca de 12 mil famílias assentadas em São Paulo até 2006, ao passo que o censo identifica apenas 7,1 mil estabelecimentos em assentamentos –, eles podem oferecer uma indicação aproximada da proporção de estabelecimentos de assentados no estado com disponibilida-de de energia elétrica para a atividade agrícola. Ao passo que, para os assentados brasileiros, era de 9% a proporção dos que utilizavam energia elétrica na produção, para os assentados paulistas este índice alcançava 31%. Isto significa que, em São Paulo, mais que no Brasil, o acesso à energia elétrica para a produção era, entre os assentados (31%), próximo ao grau de utilização de energia na atividade agrícola dos estabelecimentos agropecuários como um todo (35%), em 2006.

As porcentagens são baixas, e as reclamações dos assentados em relação à disponi-bilidade de energia, tanto para uso doméstico quanto para a produção, são recorrentes. De maneira geral, os assentados manifestavam a expectativa de que a instalação de rede elétrica e serviço de abastecimento de água fosse imediata após a criação do assentamento, mas o processo de organização do projeto pode, em suas etapas iniciais, encontrar entraves que retardem a chegada destes serviços.

Para a instalação da energia, é preciso que os lotes estejam demarcados, que o projeto já tenha obtido licenciamento ambiental, e, por vezes, que a construção das casas já tenha sido iniciada, senão terminada. Em regra, a condição mais difícil de cumprir é a obtenção do licencia-mento, emitido pelas secretarias estaduais de meio ambiente. Tal autorização é necessária porque a instalação destes serviços no assentamento implica frequentemente um impacto ambiental.

Mas, conforme se pôde verificar em entrevistas com técnicos de campo, a concessão do licenciamento é, por vezes, propositalmente postergada, em geral por questões mais políticas que administrativas, embora sempre sejam alegados pretextos burocráticos para justificar o atraso. Em muitas ocasiões, foi possível verificar que existe uma acentuada assimetria entre

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o tratamento dado por órgãos de fiscalização ambiental aos assentamentos, de uma parte, e a grandes empreendimentos agrícolas ou industriais, de outra parte. Como as atividades destes últimos – papeleiras, fábricas de cimento, grandes canaviais etc. – causam impactos ambientais sabidamente mais sérios, é de surpreender que assentamentos situados na mesma região encontrem tão numerosas dificuldades para receber eletricidade. Estas complicações, em alguns locais, estendem-se à relação do Incra com as prestadoras credenciadas para a instalação da rede. Alguns assentados buscam remediar o problema com a aquisição de ge-radores próprios ou cabeamentos improvisados. Em todo caso, mesmo com a ausência de energia elétrica, os assentamentos permanecem na terra e produzem nela. Mais de uma vez, em campo, surpreendeu a equipe do Ipea saber, depois de visitar lotes bem cultivados e cuja produção era destinada aos programas públicos de aquisição de alimentos, que a família de assentados que ali vivia e trabalhava não tinha acesso à rede de eletricidade.

Acesso a saneamento básico

O acesso a serviços de saneamento básico é uma exceção no meio rural. De acordo com a PNAD 2009, apenas 8% dos domicílios rurais do país estão ligados a redes de esgoto. Nos assentamentos, este índice é ainda menor, e pouco varia segundo estado ou região: os assentamentos do país como um todo e os de São Paulo, especificamente, registram, neste quesito, porcentagem próxima a 1%. Em São Paulo, é ligeiramente superior a proporção das famílias que utilizam fossa séptica para o tratamento primário do esgoto doméstico – 13% contra uma média nacional de 12% de famílias que recorrem ao mesmo mecanismo.

As fossas sépticas operam a separação e a decomposição físico-química dos dejetos sólidos. O processo reduz o risco de contaminação do solo pelo esgoto residual, além de ser fundamental para combater doenças como verminoses e cólera. As sépticas são mais higi-ênicas que as fossas negras e simples, utilizadas em 81% dos domicílios dos assentamentos em São Paulo, cuja escavação sem revestimento interno permite a infiltração de dejetos, com perigo de contaminação do solo e da água. A construção de fossas deste tipo deve obedecer a regras próprias – distância mínima em relação às casas e aos lençóis freáticos, formas de aterramento etc. –, sobre as quais a assistência técnica deve advertir os assenta-dos. Conhecendo-se as dificuldades existentes para a expansão das redes de esgoto em áreas rurais, é preferível que seja estimulada a construção de fossas sépticas nos assentamentos para reduzir os riscos que o tratamento inadequado de resíduos pode trazer às famílias.

Outro ponto relevante diz respeito ao tratamento do lixo não biodegradável nas áreas de assentamento. As áreas rurais do país contam apenas parcialmente com serviço de coleta de lixo. Segundo a PNAD 2009, chega a 67% o índice de domícilios rurais que não são assistidos por coleta de lixo. Para as áreas rurais de Saõ Paulo, esta proporção é bem menor, conquanto ainda significativa: 19%. Na grande maioria dos casos em que não há coleta, o lixo é queimado ou enterrado na propriedade. Nos assentamentos, ainda de acordo com pesquisa do Incra (2010) registram-se problemas relativos à destinação inadequada de em-balagens de agrotóxicos, à poluição de córregos e de nascentes e à deposição de lixo a céu aberto: o primeiro problema é relatado por 11% das famílias assentadas no país e por 10% das famílias assentadas em São Paulo; o segundo é informado por 7% dos assentados do país e por 5% das famílias de assentamentos paulistas; o terceiro aparece em 12% dos domicílios de assentados em São Paulo e em quase um quarto dos domicílios de assentados do país.

Pode-se concluir a partir dos dados que a questão do destino e tratamento do lixo em São Paulo está um pouco mais bem equacionada que no país em geral. Mas, nas visitas a campo, pôde-se constatar, em várias ocasiões, os efeitos práticos do armazenamento inadequado de

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agrotóxico e do acúmulo de lixo no interior de alguns lotes. Em alguns deles, observou-se a existência de tonéis e latas de agrotóxico, ainda cheios, guardados junto à área de servi-ço das casas ou apenas encostados nas paredes externas, ao alcance de crianças e animais. Em outros lotes, os recipientes vazios do veneno misturam-se ao lixo plástico comum, lan-çado a céu aberto. É possível afirmar que o despreparo e a falta de cuidado com que os tra-balhadores aplicam os defensivos nas lavouras – em poucos locais se viam os equipamentos de proteção individual necessários a tal atividade – estendem-se à forma com que eles lidam com as embalagens das substâncias após a utilização. Como os efeitos nocivos decorrentes do contato com o agrotóxico não são sempre visíveis, alguns assentados pareciam tratar com esta substância como se fora algo apenas um pouco diferente de água.

Problemas com o lixo também foram encontrados em alguns lotes, especialmente de dois tipos: nos lotes dos chamados para-rurais, homens mais velhos que vivem sós em par-celas pequenas e cuja maior parte da renda advém da aposentadoria, e nos lotes de tamanho muito reduzido, nos projetos em que a estruturação produtiva ainda é incipiente. Pode-se afirmar que um lote estruturado e produtivo gera menos acúmulo de lixo que um lote ocio-so, e que algumas famílias assentadas, vindas de áreas urbanas, mantêm, nos lotes, um vo-lume de produção de lixo com grande quantidade de plástico e vidro, mais conforme a um modo de vida urbano – com coletas mais regulares – que rural. Este acúmulo representa, por si só, um grande risco para as crianças que habitam as parcelas. Outro ponto importante diz respeito à queima do lixo; em alguns lotes, pôde-se constatar que o lixo havia sido queimado a apenas poucos metros das residências, oferecendo às famílias um sério risco de alastramen-to das chamas e da fumaça. Convém sublinhar que, nas ocasiões em que estes danos foram constatados – tanto nos casos da destinação das embalagens de agrotóxicos quanto nos do tratamento do lixo –, os técnicos de campo presentes procuraram advertir os assentados.

Acesso à água e qualidade do solo

Um dos problemas reiteradamente evocados pelos assentados é a precariedade do acesso à água. O abastecimento de água nos lotes envolve dois aspectos principais: água para con-sumo doméstico e água para a produção.

A pesquisa do Incra (2010) aponta que 79% dos assentados do país afirmam dispor de água em quantidade suficiente para atender às necessidades familiares; para o estado de São Paulo, o índice é praticamente o mesmo, 76%. Este dado é, sem dúvida, positivo, mas não permite conhe-cer como a família obtém a água que bebe. Como a água é um bem vital, é de se esperar que os assentados busquem dar solução à sua escassez tão logo se instalem nos lotes. A responsabilidade de realizar a perfuração dos poços é do Incra, mas as complicações envolvidades neste proces-so – que se iniciam com a disponibilidade de recursos, passam pela exigência de licenciamento ambiental e terminam no ato de contratação da prestadora do serviço – tornam-no, por vezes, muito demorado. O abastecimento, em alguns assentamentos onde não há poços instalados ou onde a rede não é completa, é feito por caminhões-pipa; mas esta não é a regra. Alguns assentados afirmaram, em entrevistas, que parte das evasões pode ser explicada justamente pela dificuldade das famílias de ter acesso à água. Outros disseram ter empenhado recursos do fomento ou de sua própria conta na perfuração de poços-cacimbas em seus lotes e na construção de uma pequena rede de distribuição doméstica. Em princípio não há como garantir que a água obtida por tal meio seja adequada ao consumo.

A SR-8 investiu, entre 2003 e 2008, mais de R$ 11 milhões na perfuração de 181 po-ços, com a construção de reservatórios e implantação de rede adutora, atendendo a mais de 5 mil famílias assentadas. O custo médio para levar água a cada família fica em R$ 2.200,

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e cada poço serve, em média, a 27,6 famílias. Para alguns assentados, o ideal seria um poço para cinco ou dez famílias. É claro que, haja vista a distância dos lotes, os custos de insta-lação de uma rede de distribuição que respeitasse esta proporção seriam muito elevados. A julgar pela porcentagem de famílias assentadas em São Paulo que alegam não ter acesso à água em quantidade suficiente para consumo doméstico, pode-se dizer que o déficit de abastecimento afetaria ainda cerca de 4 mil famílias. Considerando este número, o custo de construção de quatrocentos poços, segundo a média de um para cada dez famílias, poderia chegar a R$ 24 milhões.

O acesso à água para produção constitui um capítulo à parte, especialmente problemático. Não se trata de uma questão restrita aos assentamentos. De acordo com os dados do Censo Agropecuário 2006, apenas 6% – 329 mil – dos estabelecimentos agropecuários do país fazem uso de sistemas ou métodos de irrigação. No estado de São Paulo, o índice é de 12%.

Seria importante que o Incra buscasse parceria com os diversos ministérios para lançar um plano nacional de democratização do acesso à água nas áreas de assentamento com o caráter de incentivo à produção. Os assentados reivindicam ter, pelo menos, 1 ha irrigado no lote. E, de fato, não se pode exigir que os assentados se estruturem de maneira produ-tiva, a fim de fazer frente às demandas do PAA e do Merenda Escolar, por exemplo, sem acesso à água para irrigação. Se é possível apontar uma prioridade de ação para os assenta-dos, em termos de infraestrutura, ela é precisamente esta: aumentar a oferta de água nos lotes com vistas à produção.

Dada a escassez, a distribuição da água pelos lotes é, em alguns projetos, objeto de disputa entre os assentados. Queixas de que uma família capta mais água que outra por meio de tubulações clandestinas, ou de que uma família armazena água para produção enquanto outra não tem água bastante para beber, ou, ainda, de que os custos do abas-tecimento não são repartidos de maneira equitativa surgiram com frequência nas entre-vistas. Por sua vez, foi possível verificar, como já foi referido noutra parte deste relatório, que, em alguns casos, grupos pequenos de assentados com residências próximas uns dos outros se encarregaram da divisão dos custos e dos trabalhos de instalação de redes lo-calizadas de distribuição de água, mas, com o arranjo improvisado e vulnerável, muitas vezes os canos e as mangueiras são deixados à superfície.

A insuficiência de água ocupa o centro das preocupações de grande parte dos assen-tados entrevistados, e constitui um dos principais entraves que dificultam o pleno desen-volvimento da produção da vida social nos assentamentos. Em entrevista, a secretária de Agricultura de São Carlos, responsável por promover a política do PAA com êxito para os produtores da região, enfatiza que um grande obstáculo para a produção de alimentos de qualidade nos assentamentos e unidades agrícolas familiares é o precário acesso à água.

Apesar dos aquíferos e nascentes presentes na região, os assentamentos continuam sem acesso à água. São diversas as instâncias responsáveis pela compra e instalação de poços, além da distribui-ção da água pelos lotes (...). Mas, o Incra tem falhado muito, o pessoal do 21 [PDS Comunidade Agrária 21 de Dezembro] estava num processo de empobrecimento mesmo. Eles só não degrin-golaram porque nós começamos a dar alimentos pra eles (Maria Regina Bortolotti, secretária de Agricultura de São Carlos).

O aumento de conflitos em todo o país em função do acesso à água e as dificuldades do Incra e assentados de garantir provisão de água aos assentamentos permitem afirmar que a concentração fundiária tem, cada vez mais, como contrapartida, o controle dos recursos hídricos. As restrições impostas aos assentamentos com respeito ao uso da água beiram, por

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vezes, as raias do paroxismo: assentados em um projeto cortado por um rio, por exemplo, eram proibidos de usar sua água, ao passo que uma grande fazenda de cana das imediações utilizava-o imperturbavelmente como escoadouro de dejetos.

Um técnico agrícola do ITESP atribui a precariedade de disponibilidade de água para os assentamentos da região de Araraquara, Ribeirão Preto, Descalvado e São Carlos ao cor-te dos eucaliptos dos antigos hortos da Fepasa: “Depois da retirada dos eucaliptos, as três diferentes lagoas tornaram-se uma só”.

Pontuou-se esta declaração, pois ela indica o conflito permanente entre as possíveis formas de utilização das terras na região: de um lado, os assentamentos rurais – aqui indi-retamente culpabilizados pela falta de recursos hídricos –; de outro, a completa omissão do Estado ante a forma incisiva com que o agronegócio interfere no acesso e uso de recursos naturais, como terra e água. Em várias entrevistas, ficou evidente que, além da ausência de recursos hídricos, a expansão do agronegócio na região vem prejudicando a produção nos assentamentos e trazendo riscos à saúde dos trabalhadores.

Outro problema importante, cuja solução mereceria talvez a criação de um programa específico, é o da qualidade do solo. Como, de modo geral, as terras em áreas de assentamento são aquelas que se encontravam ociosas e, portanto, não cumpriam sua função social – razão pela qual sofreram ação de desapropriação –, são grandes as chances de que o seu solo esteja já muito desgastado, em virtude do uso intensivo e predatório realizado por seus ocupantes anteriores, ou que seja pouco adequado à utilização agrícola, devido a acidentes de relevo, baixa fertilidade natural ou outros fatores. Muitos assentados reclamam da qualidade da terra e do fato de terem de arcar com as despesas necessárias à sua correção. Amplos programas de correção do solo, com distribuição de calcário aos assentados, já foram tentados, mas de forma casual e com pouco sucesso. Esta também deveria ser uma linha de ação permanente do Incra.

FIGURA 1 Solo degradado de assentamento em São Paulo

Cumpre ressaltar que as ações para correção dos solos e abastecimento de água não foram realizadas, com a abrangência necessária, pela SR-8, em virtude das restrições orça-mentárias dos últimos dois anos. Não se trata aqui de apontar à SR-8 o que deve ser feito, especialmente porque o nível de execução do órgão vai ao limite dos recursos disponíveis.

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É, todavia, importante assinalar estas carências para que se tenha em conta o grau de difi-culdade com que os assentados e o Incra operam. Muitas vezes, em visita aos assentamen-tos, ao entrar em lotes produtivos e diversificados, com crianças saudáveis e quintais bem cuidados, acabava-se por descobrir, em conversa com alguém da família, que ali ainda não havia chegado luz, que faltava a água e o solo era hostil.

3.2.2 Questão política e contextualização econômica

Nesta parte do relatório, serão apresentadas algumas práticas a partir das quais uma fração do capital exerce hegemonia sobre o setor agrícola, subordinando a política agrária a seus interesses e projetos por meio do controle direto de instituições públicas estratégicas, do comando da maior fatia dos recursos públicos disponíveis para o setor, da transformação de seu poder financeiro em sobrerrepresentação política e da inutilização dos princípios normativos que regulam as relações sociais e econômicas no campo.

A abordagem toma como referência a identificação dos macroproblemas agrários, evi-tando excessivos particularismos ou questões essencialmente localizadas. Isto não implica, contudo, desconsiderar a questão local ou os dilemas do estado que foi historicamente o lócus privilegiado do desenvolvimento capitalista e da articulação dos setores agrícola e in-dustrial no país. O que importa, de fato, é conectar e relacionar desenvolvimento agrícola e questão agrária, realçando suas contradições e ambivalências e levando em consideração a inserção de São Paulo no contexto nacional.

A hegemonia setorial da agricultura comercial, a expansão das cercas das usinas nos territórios paulistas, a intensificação de formas específicas de controle sobre a terra e a des-regulação da expansão agrícola contraposta à extensa normatividade que regula a política agrária são os destaques desta avaliação. A conjugação das impressões da pesquisa de campo com os dados secundários permite aqui comparar os desafios de uma realidade vivida em âmbito local com os dilemas conformadores da questão agrária nacional.

A hegemonia setorial da agricultura empresarial e o bloco no poder12

A política agrícola brasileira normatizada, em seus princípios e diretrizes, na Constituição Federal de 1988 (CF/1988), possui diversos instrumentos e instituições que decidem, em concreto, o papel estratégico do setor agrícola no conjunto da economia do país. Em ter-mos macroeconômicos, o setor agrícola comercial está atrelado, numa estratégia de curto prazo, à geração de superávits comerciais na conta de transações correntes da balança de pagamentos. Este papel é comumente explicado na literatura econômica por dois motivos: inicialmente, pela tendência natural à geração de superávits neste setor, que exporta muito mais que importa; e pela enorme vantagem competitiva que o país possui em termos de inserção no comércio agrícola internacional.

A ditadura militar encontrou também no setor agrícola o verniz modernizante de um regime de exceção, constituindo um conjunto de políticas e incentivos que visava moder-nizar a agropecuária e o latifúndio sem provocar mudanças na estrutura fundiária. A par-ticipação do Estado neste processo foi fundamental não só porque estruturou uma forte política de crédito rural com transferência direta de recursos públicos baseada em subsídios implícitos,13 mas também porque colocou o setor agrícola numa relação privilegiada, arti-culando-o à indústria e ao setor externo.

12. A categoria “bloco no poder” expressa a unidade contraditória dos setores que compõem a classe politicamente dominante. O Estado atua como ente organizador desta dominação ao mesmo tempo em que prioriza os interesses específicos de um setor hegemônico interno ao bloco. 13. Ver, a este respeito, Delgado (1985).

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44 Relatório de Pesquisa

Em 1982, com a crise da dívida externa brasileira, o governo respondeu aos graves problemas macroeconômicos com uma política de geração de superávits na balança de pagamentos baseada na exportação de produtos primários. Contudo, com a alta dívida pública contraída nos anos 1970, as despesas com a política de subsídios ao setor primário apresentaram tendência decrescente. O setor passou, por seu turno, por um processo de endividamento, com consequências diretas para o baixo desempenho do produto interno bruto (PIB) agrícola até a primeira metade da década de 1990.

Esse movimento tenderia a ganhar contornos drásticos a partir do Plano Real. O lan-çamento do plano de estabilização econômica pelo governo tinha entre seus pilares o proces-so de desregulamentação trabalhista, a liberalização dos mercados e a abertura econômica. Neste cenário, as atividades agropecuárias tornaram-se menos atrativas, com perda evidente de espaço político do setor agrícola no bloco no poder.14 Esta queda pode ser explicada pela limitação dos gastos públicos com o setor, pela diminuição dos dispêndios com a política de crédito rural e com a exposição à concorrência internacional, resultado da sobrevalorização cambial do período 1994-1999. Apenas a título elucidativo, em 1994, o Tesouro Nacional detinha 27% de participação no crédito rural total concedido, caindo para apenas 0,11% em 1999.15 A hegemonia do setor financeiro no interior do bloco no poder resultava numa grande transferência de renda do setor agrícola para o setor financeiro.

Desde 1999, as consequências da abertura comercial e da liberalização do mercado brasileiro, acossada por uma política geradora de profundos déficits na balança co-mercial, trouxeram ameaças à estabilidade econômica do país. Diante da iminência de uma situação de insolvência, com a combinação de déficits em conta corrente e baixas reservas internacionais, o governo brasileiro retirou as travas do câmbio e lançou uma política de estímulo às exportações com lastro na produção agrícola e de produtos de baixa intensidade tecnológica. Sem romper com o ciclo de internacionalização e libe-ralização financeira, os interesses foram reacomodados, restituindo o lócus dos setores alijados da repartição dos frutos da abertura econômica no período 1994-1999 e reco-locando a agricultura comercial como elemento subordinado, porém fundamental, para a manutenção dos pilares de um modelo de acumulação que tem no setor financeiro o controle da política econômica.16

Essa reconversão do agronegócio no interior da política macroeconômica significou, em termos político-econômicos, a reacomodação do agronegócio no interior do bloco no poder, uma vez que os superávits da balança de pagamentos passam a assumir um papel essencial para a manutenção do ciclo de reprodução capitalista no Brasil até os dias atuais.

Os ruralistas e a sua inserção no interior do bloco no poder

Mesmo durante o período de declínio político-econômico, os ruralistas passaram a investir no Congresso como espaço de articulação e negociação de seus interesses. Nesse cenário, modifica-se a tendência que apontava o enfraquecimento do setor ruralista enquanto força organizada na década de 1990. O ruralismo ganha força política e musculatura financeira durante os últimos dez anos.

14. Em 1995, os produtores rurais de vários estados do país dirigiram-se a Brasília em protesto contra a política agrícola do governo FHC, cuja pauta tinha como epicentro o aumento da dívida agrícola e a reivindicação de sua renegociação.15. A partir de 1994, o Tesouro diminui a sua participação no financiamento, concentrando seus gastos na equalização das taxas de juros aplicadas ao setor.16. A esse respeito, vale ressaltar que o setor financeiro indicou todos os presidentes do Banco Central dos últimos doze anos.

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45Avaliação da Situação de Assentamentos da Reforma Agrária no Estado de São Paulo

A história da bancada ruralista percorre toda a República brasileira, porém, para os objetivos deste trabalho, a CF 1988 é marco suficiente para a identificação da sua evolução histórica. Na Assembleia Constituinte e na legislatura 1991-1995, o setor possuía não mais que vinte deputados. De acordo com o Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC),17 na legislatura 1995-1999, a bancada ruralista apresentou um salto gigantesco, passando a ter uma representação de 117 deputados. Ou seja, o período de maior crise do setor foi também o período em que ele mais cresceu enquanto grupo de interesse organizado no interior do Poder Legislativo.

Nas legislaturas seguintes, o setor perdeu força, caindo para 89 representantes no perí-odo 1999-2003 e para 73 na legislatura 2003-2007. Esta tendência de queda foi invertida nas eleições de 2006, quando a bancada recuperou a sua capacidade de sobrerrepresentação política, passando a possuir 116 membros, num crescimento de 59% em relação à legisla-tura anterior. Neste período, a bancada logrou êxito em diversas investidas no Congresso Nacional, tais como: a aprovação da lei de biossegurança; a liberação dos transgênicos por medidas provisórias; a aprovação do relatório final da CPMI da Terra; a convocação de uma nova comissão parlamentar de inquérito (CPI), conhecida como a CPI do MST; a renego-ciação sucessiva das dívidas agrícolas dos grandes produtores rurais. Todas estas ofensivas são o resultado de seu modus operandi político: o setor pressiona pela aprovação de suas demandas sob a ameaça constante de ruptura com o governo. A sucessão de crises do setor acaba por servir como fonte de sustentação financeira e poder da bancada.

Com seu tamanho atual, o grupo parlamentar ruralista é considerado a maior ban-cada de representação de interesses18 no Congresso Nacional. Em uma votação, porém, a bancada consegue mobilizar até o dobro de seus integrantes, alcançando, invariavelmente, a maioria absoluta da Câmara dos Deputados.

Em sua maioria, os ruralistas sempre compõem a base do governo. De acordo com o INESC, cerca de 25% da base de apoio parlamentar do governo Lula pertencia ao bloco rura-lista, mesmo desconsiderando os integrantes do PSDB e do DEM. À exceção do PT, todos os demais partidos da base possuem entre seus quadros representantes do setor. Mais de 50% da bancada pertencem a três partidos – DEM, PMDB e PP. A identificação majoritária deste se-tor com partidos conservadores deixa bem claro qual é a identidade ideológica desta bancada.

Em termos geográficos, os ruralistas estão presentes em 23 estados da Federação, com grande representação estabelecida nos estados de Minas Gerais (dezesseis deputados), Paraná (dezesseis) e Goiás (nove). São Paulo participa desta fatia com a presença de sete deputados ni-tidamente identificados com as bandeiras do setor. Em termos regionais, o Nordeste e o Sudeste concentram a maior parte da bancada. O fato de, neste quesito, a região menos desenvolvida econo-micamente figurar no mesmo patamar da região mais desenvolvida destaca apenas a existência de elos de interesse entre a elite agrária tradicional e o setor empresarial moderno.

O modo de atuar da bancada se modificou ao longo dos anos, passando de uma atu-ação agressiva e truculenta no período em que era hegemonizada pela União Democrática Ruralista (UDR) (1990-1994) para uma representação diversificada dos diversos setores que integram o bloco – pecuaristas, empresários rurais e setor de biotecnologia.

17. O INESC utiliza como critério para identificação dos ruralistas a principal fonte de renda dos parlamentares. Contudo, outros elementos podem ajudar a identificar o vínculo de parlamentares com a bancada, por exemplo, a atuação deles nas votações, nas proposições legis-lativas e nos pronunciamentos em tribuna. A título de exemplo, enquanto o INESC contou 73 ruralistas eleitos em 2002, a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) identificou 182.18. Bancadas de interesse são grupamentos que se articulam a partir de projetos pessoais e posições de classe nem sempre expressos nos programas partidários. Tais grupamentos, ao contrário, são suprapartidários, marcados pela sua enorme capilaridade.

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46 Relatório de Pesquisa

Contudo, os ruralistas não são fortes apenas na Câmara dos Deputados. Eles possuem uma vasta representação nas assembleias legislativas estaduais. De acordo com o Projeto Excelências,19 da organização não governamental (ONG) Transparência Brasil, o setor conta com 134 deputados estaduais espalhados pelas assembleias de onze estados. A Assembleia Legislativa do estado de Tocantins tem entre seus quadros 58% de membros considerados parlamentares ruralistas. Esta representação elevada se repete em Rondônia (46%), Goiás (33%), Mato Grosso do Sul (33%), Rio Grande do Norte (29%), e Minas Gerais, Mato Grosso e Roraima (todos com 25%). Em São Paulo, 10% dos deputados estaduais são con-siderados ruralistas, segundo o mesmo critério.

Na Câmara dos Deputados, os parlamentares atuam em bloco, ocupando espaços importantes como as vice-presidências das bancadas partidárias e as comissões temáticas permanentes, e, assim, bloqueando pautas contrárias aos interesses do setor nos próprios trâmites legislativos. No Senado, a situação não é diferente: todos os integrantes da banca-da ocupam posições na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária.

Além de criar constrangimentos legais à reforma agrária, a bancada ruralista define a pauta das questões agrária, ambiental e das políticas de demarcação de terras no país. Dados seu peso numérico e seu caráter suprapartidário – em um contexto de fragilização da unidade dos partidos –, ela dispõe de uma capacidade de mobilização mais ampla que sua compo-sição, e, numa votação que diga respeito diretamente a seus interesses, tem poder de fazer sempre valer sua posição. A reiterada difusão, pela mídia, da visão ruralista acerca da questão agrária faz parte desta estratégia de construção de hegemonia e desconstrução dos movimen-tos sociais. O estudo do INESC propõe algumas explicações para o avanço da bancada, como a frustração das expectativas com relação ao poder de intervenção do governo sobre a estrutu-ra fundiária e a relativa homogeneização ideológica dos partidos, que privilegia os candidatos de maior visibilidade, isto é, aqueles que dispõem de maior poder econômico. Outras causas podem ser aventadas, como a secular crença no “desinteresse” dos ricos em fazer fortuna com a política, ou como a retórica conservadora, marcada pelo moralismo paternalista tradicional, que defende a ordem acima de tudo, prega a defesa intransigente da propriedade privada ao mesmo tempo que excita o temor a uma violência difusa e imprevisível, e enaltece a figura do “pobre obediente” como cidadão legitimamente merecedor de proteção e amparo.

Em seu discurso e atuação, os membros da bancada empenham-se em atribuir à sua plataforma de interesse regional e de classe o caráter de defesa dos interesses nacionais, ressaltando invariavelmente a importância do agronegócio para a economia brasileira e celebrando a condição do país de “celeiro do mundo” ou “potência agrícola”. Além disso, as lideranças da bancada sabem alternar, com grande habilidade política e segundo a are-na de discussão, as suas opiniões e posicionamentos: assim, quando se trata de negociar a expansão do crédito ou a destinação de recursos públicos ao agronegócio, os ruralistas insistem em afirmar que a agricultura familiar é uma atividade de subsistência destituída de potencial comercial; por sua vez, quando se trata de rever as dívidas do setor agrícola ou angariar legitimidade na opinião pública para aumentar a repressão aos movimentos sociais rurais, a bancada arvora-se em representante de todos os produtores, incluindo as dívidas dos agricultores familiares na pauta de renegociação ou semeando entre eles a ideia de que mesmo os pequenos proprietários correm o risco de ter suas terras ocupadas – embora, por lei, elas não sejam suscetíveis à desapropriação para reforma agrária.

19. O Projeto Excelências identifica como parlamentares ruralistas aqueles que possuem, em suas declarações de bens, parcela considerável do seu patrimônio correspondente à propriedade de imóveis rurais e/ou rebanhos.

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47Avaliação da Situação de Assentamentos da Reforma Agrária no Estado de São Paulo

A atuação de grupos de interesse é traço comum à vida legislativa de qualquer país, e, entre nós, a ação dos ruralistas não tem em vista um projeto de domínio político mais amplo, mas atende fundamentalmente ao objetivo de obter mais recursos para o setor agropecuarista de exportação e garantir a manutenção das condições socioeconô-micas que favorecem a acumulação de capital.20 Este último ponto traduz-se na posição ambígua da bancada em relação às questões ambientais – de ordinário, subordinadas às exigências do “desenvolvimento” de um país que se vangloria de ter uma das mais modernas agriculturas do mundo –, e na sua resistência a toda iniciativa de lei que pro-ponha ampliar a proteção social do trabalhador rural e punir as formas coercitivas de exploração do trabalho.

No caso de São Paulo, a estrutura de poder em torno do agronegócio é ainda mais pujante do ponto de vista econômico, dado o seu grau de agroindustrialização. No estado, os setores tradicionais do agronegócio alinham-se estritamente ao setor industrial. Não é à toa que grande parte das exportações de bens de capital e insumos do país tem o território paulista como porta de entrada. Ilustra bem esta articulação intersetorial a criação, em 2007, do departamento de agronegócio na Federação das Indústrias do Estado de São Pau-lo (FIESP), presidido pelo ex-ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Roberto Rodrigues. Seu sucessor na pasta era também produtor rural, estabelecido na região de Ribeirão Preto e vinculado à produção de açúcar e álcool em São Paulo, subsetor que mais avança sobre os campos paulistas.

3.2.3 A expansão do modelo agrícola tradicional por meio do investimento na produção de cana: hegemonia e contra-hegemonia na disputa pelo controle do território21

O modelo agrícola brasileiro está baseado em uma estrutura ambivalente: de um lado, na produção agrícola para exportação e, de outro, em um setor agrícola familiar organizado em pequenos lotes rurais voltados basicamente para a produção de alimentos. Os resulta-dos do Censo Agropecuário 2006 confirmam, em tese, tal realidade: segundo os dados, a agricultura familiar produz cerca de 70% dos produtos alimentícios que abastecem o mer-cado interno, garantindo a segurança alimentar da população brasileira. Dito isto, tem-se, pois, um setor altamente capitalizado, produtor de commodities, e cuja função está expressa na política macroeconômica adotada, e um setor que garante o abastecimento alimentar e a geração de renda entre os produtores mais descapitalizados do campo. O modelo brasileiro ambivalente seria, portanto, um modelo de convívio com públicos e agentes específicos com funções político-econômicas determinadas. Os dados disponíveis sobre a produção do setor agrícola no estado de São Paulo, contudo, não permitem sustentar tal afirmação.

A expansão agrícola comercial em São Paulo fornece visões distintas do desenvol-vimento capitalista do meio rural brasileiro. A expansão da cana, de acordo com o setor produtivo, não constituiria ameaça à produção de alimentos no país, na medida em que os indicadores de uso da terra demonstram a existência de áreas agricultáveis em abun-dância. Segundo o setor, o Brasil teria aproximadamente 347 milhões de ha de terras aráveis. Deste total, 211 milhões de ha seriam de pasto, 69 milhões de lavoura e “apenas”

20. O modo de atuação da bancada ruralista consiste antes em ocupar posições estratégias, segundo seus interesses, no aparelho insti-tucional, que em dirigi-lo a partir do centro – o que a política classista-partidária de alianças a dispensa de fazer. Em 2009, por exemplo, na Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural, os ruralistas ocupavam a presidência e a vice-presidência, e, entre os 40 membros titulares, detinham 25 assentos; na subcomissão especial com o objetivo de fazer a intermediação dos conflitos agrários no Brasil, os ruralistas estavam representados na relatoria e em seis dos sete assentos de titulares.21. Uma análise atual, mais completa e crítica acerca desse tema pode ser encontrada em Lima Júnior (2012).

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48 Relatório de Pesquisa

7,8 milhões de ha seriam plantados com cana. O argumento obviamente desconsidera uma série de fatores cruciais para a decisão de investimento do setor agrocomercial, quais sejam: existência de capacidade instalada e de infraestrutura disponível para escoamento da produção, fatores político-institucionais, bem como as características da estrutura fundiária preexistente. São Paulo reúne todos os requisitos necessários para garantir a viabilidade econômica dos investimentos do setor sucroalcooleiro, e os dados confirmam que seu avanço não adota a cerca das propriedades familiares como limite.

As taxas de aumento da área plantada de cana no estado são expressivas, ultrapassando a barreira de 1.000% de incremento em diversos municípios do Oeste paulista. As menores taxas de crescimento de área plantada estão situadas nos municípios em que o cultivo su-croalcooleiro já estava consolidado, caso da região de Ribeirão Preto (mapa 1).

MAPA 1 Cartograma da distribuição dos municípios por classe de taxa de aumento da área cultivada com cana-de-açúcar (safras 1995/1996–2007/2008)

Fonte: CANASAT/Inpe.22

Segundo o Projeto CANASAT, São Paulo produz cana-de-açúcar em nada menos que 5,3 milhões de ha de área cultivada, com presença em onze regiões administrativas das quinze atualmente existentes. A região administrativa com a menor quantidade de área plantada de cana-de-açúcar é Sorocaba, com 262.401 ha. Nas demais regiões administra-tivas, a área ocupada não é menor que 400 mil ha (tabela 6). Mesmo diante da crise finan-ceira de 2009, a área expandida com o cultivo, registrada na safra 2010-2011, foi de quase 100 mil ha, nada menos que 33% de toda a área ocupada com assentamentos em 30 anos de política de reforma agrária.

22. O Projeto CANASAT, desenvolvido pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), tem por objetivo identificar e mapear a cultura da cana-de-açúcar por meio de imagens de satélite de observação da terra.

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49Avaliação da Situação de Assentamentos da Reforma Agrária no Estado de São Paulo

TABELA 6 Área de colheita e reforma de cana-de-açúcar no estado de São Paulo, por região administrativa (RA) – safra 2010-2011

RADisponível para colheita (ha)

Em reforma4 (ha)Total da área

cultivada5 (ha)Soca1 Reformada2 Expansão3 Total1+2+3

Araçatuba 524.040 15.517 27.151 566.708 19.936 586.644

Baixada Santista 0 0 0 0 0 0

Barretos 341.372 30.234 8.278 379.884 21.370 401.254

Bauru 436.838 24.141 8.009 468.988 30.799 499.787

Campinas 466.629 29.938 4.303 500.870 31.724 532.594

Central 382.326 27.720 9.017 419.063 32.971 452.034

Franca 416.356 39.174 4.031 459.561 40.756 500.317

Marília 375.186 19.630 10.868 405.684 29.147 434.831

Presidente Prudente 369.443 16.350 27.206 412.999 14.781 427.780

Registro 0 0 0 0 0 0

Ribeirão Preto 401.007 41.891 1.644 444.542 37.540 482.082

São José do Rio Preto 621.599 37.953 32.727 692.279 31.339 723.618

São José dos Campos 0 0 0 0 0 0

São Paulo 0 0 0 0 0 0

Sorocaba 234.358 7.312 4.211 245.881 16.520 262.401

Total 4.569.154 289.860 137.445 4.996.459 306.883 5.303.342

Fonte: CANASAT.Notas: 1 Soca é a classe de lavouras de cana que já passaram por mais de um corte, ou seja, é a cana que rebrotou de uma planta ou de uma soca.

Nesta classe também se encontram as lavouras reformadas com cana planta de ano.2 Reformada é a classe das lavouras de cana planta de ano e meio que foram reformadas no ano-safra anterior e que estão disponíveis para

colheita na safra corrente. 3 Expansão é a classe de lavouras de cana que pela primeira vez estão disponíveis para colheita. Lavouras de cana que foram convertidas em

outro uso por um período igual ou maior a duas safras e voltaram a ser cultivadas com cana também se inserem nesta classe.4 Em reforma é a classe das lavouras de cana que não serão colhidas devido à reforma com cana planta de ano-e-meio ou por serem des-

tinadas a outro uso. Quando a lavoura da classe em reforma é de fato reformada com cana planta de ano-e-meio, ela passa para a classe reformada no ano-safra seguinte.

5 Total cultivada engloba todas as classes citadas anteriormente (notas 1, 2, 3 e 4), mas não inclui as lavouras de cana em área de expansão que somente estarão disponíveis para colheita no ano-safra seguinte. Por exemplo, uma lavoura de cana plantada em fevereiro de 2008 so-mente estará disponível para colheita na safra 2009-2010 e, portanto, não está incluída na classe total cultivada referente à safra 2008-2009.

Como é possível ver, a segunda região em área plantada na safra 2010-2011 em São Paulo é a região de Araçatuba, com 586,6 mil ha, perdendo apenas para a de São José do Rio Preto. Ocorre que é justamente em Araçatuba que está a maior concentração de as-sentamentos de reforma agrária e é nesta região que a superintendência do Incra projeta a constituição de uma “área reformada”. Têm-se, pois, políticas ambivalentes com resultados díspares: de uma parte, uma bem-sucedida política agrícola de financiamento da expansão do cultivo de cana para incremento da diversificação da matriz energética, e, de outra, uma política agrária que, com grandes dificuldades, financia a expansão dos assentamentos em um ritmo ditado pela escassa quantidade de recursos e pelo grau – baixo – de priorização que lhe é conferido pelo governo federal.

Nessa disputa desigual por controle do território, não há modelo de equilíbrio. De acordo com dados coletados por intermédio do projeto CANASAT, Aguiar et al. (2009) fornecem algumas evidências do que vem ocorrendo no meio rural paulista. O canavial substituiu outras formas de uso da terra em suas áreas anexadas. A área de expansão da cana em São Paulo na safra 2007-2008, por exemplo, foi de 636,8 mil ha: deste total, 321,1 mil eram ocupados por pastagens, 304,6 mil por outras culturas

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50 Relatório de Pesquisa

agrícolas, 8,9 mil por cítrus e 2 mil por áreas de floresta e reflorestamento. A área de expansão da safra 2008-2009 confirma que, ao menos em termos de supressão de formas distintas de uso da terra, o setor canavieiro prima pela diversificação: do total de 662 mil ha anexados, 371,3 mil ha eram ocupados por pastagens, 268,6 mil ha por outras culturas agrícolas, 20 mil ha eram áreas de cítrus e 2 mil ha áreas de reflores-tamento e florestas (tabela 7).

TABELA 7 Área de expansão da cana para o estado de São Paulo segundo categorias de uso da terra

SafraCana

(expansão)Pasto Agricultura Reflorestamento Floresta Cítrus

2007-2008 636.814 321.119 304.625 1.027 1.046 8.997

2008-2009 661.969 371.262 268.633 876 1.281 19.919

Fonte: Aguiar et al. (2009).

Os dados da Produção Agrícola Municipal (PAM), do IBGE, para São Paulo reforçam a tese de que a convivência entre a expansão do agronegócio e os demais cultivos agrícolas é menos harmônica do que parece. Enquanto a cana-de-açúcar experimentou um cresci-mento vertiginoso na quantidade produzida (182,1%) no período 1990-2009 – à custa de uma expansão de 175% da área plantada –, outras 25 culturas apresentaram queda no mesmo período.23

É importante frisar que a segurança alimentar não é uma questão resolvida em São Paulo. A PNAD 2004 identificou que, no Brasil, naquele ano, havia cerca de 30,2 milhões de pessoas com 10 anos ou mais de idade vivendo em domicílios com insegurança alimen-tar moderada ou grave. Deste total, 3,6 milhões de pessoas vivem em São Paulo, o segundo maior contingente em todo o país, inferior apenas ao da Bahia.

3.2.4 O cerco aos assentamentos

Os assentamentos de reforma agrária estão presentes em 88 municípios paulistas. Por sua vez, as 218 usinas de São Paulo estão espalhadas por 161 municípios, mas sua área de in-fluência se estende sobre quase todas as cidades do estado (mapas 2 e 3). De acordo com a CONAB, apenas as regiões com maior adensamento populacional e a faixa litorânea estão ausentes do raio de influência da expansão canavieira. Vale frisar ainda que 36% dos municípios com a presença de assentamentos de reforma agrária possuem unidades sucroalcooleiras em funcionamento. Isto significa dizer que nada menos que 135 assen-tamentos de reforma agrária estão localizados em territórios com a presença de unidades processadoras, ou seja, 54% do total de projetos estão em território controlado diretamen-te pela produção canavieira.

23. Este comportamento da expansão da cana sobre as áreas de cultivo agrícola não é absolutamente novo em de São Paulo. Segundo Ramos e Szmrecsányi (2002, p. 102), no período 1968-1970 a 1980-1982, a expansão da cana foi resultado da incorporação de 582 mil ha de pastagens naturais, 117 mil do arroz, 101 mil do algodão, 58 mil do milho, 56 mil do amendoim, 20 mil da mandioca, 16 mil da mamona e 2 mil da batata.

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51Avaliação da Situação de Assentamentos da Reforma Agrária no Estado de São Paulo

MAPA 2 Áreas produtoras de álcool e área de influência das usinas

Fonte: CONAB.

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52 Relatório de Pesquisa

De acordo com os dados do Projeto CANASAT sobre área cultivada, dezesseis muni-cípios com projetos de assentamento que não possuíam plantação de cana em seus respec-tivos perímetros na safra 2003-2004 passaram a ter canaviais em seus territórios na safra 2010-2011. Por sua vez, somente dez municípios não possuem cana plantada nesta última safra, e apenas um apresentou decréscimo de área total cultivada no período em análise. Contudo, mesmo neste caso, a redução dos canaviais foi irrisória em termos globais: uma perda de somente 53 ha de área plantada. No conjunto dos municípios paulistas com assentamentos de reforma agrária, a cana expandiu-se por mais 573,4 mil ha, o que repre-senta 25% da área total de 2,3 milhões de ha acrescida ao cultivo de cana em sete anos em todo o estado de São Paulo. Isto significa que a maior parte dos assentamentos está inserida em áreas de expansão canavieira.

A difícil convivência entre projetos que respondem por diferentes concepções de de-senvolvimento – de um lado, o agronegócio centrado na produção de commodities para o mercado externo, e, de outro, a reforma agrária, estratégia de combate à concentração fundiária e de reprodução do modelo agrícola familiar e de seus efeitos positivos no mundo do trabalho e na segurança alimentar – não só pode suscitar graves conflitos locais, como também se expressa, de modo mais cabal, na disputa por recursos públicos e políticas de apoio às suas demandas específicas. Neste embate, os assentados e sem-terra têm histori-camente sofrido grandes reveses. Paulo Freire, liderança do MST, analisa esta conflituosa e desigual relação:

Para nós, é um desafio essa convivência da reforma agrária com o agronegócio. Nós sabemos que as disputas do modelo, do projeto da reforma agrária popular do movimento e o projeto do agronegó-cio, são disputas estruturais. Não apenas convivência conjuntural. Para nós, a imissão de posse [em favor do Incra, para criação de um assentamento] é apenas uma etapa do enfrentamento. Mas nossa luta se dá no dia a dia com a hegemonia do agronegócio. A imissão da posse para nós é uma vitória, é uma conquista, mas é apenas parte do enfrentamento ao agronegócio.

De acordo com o Projeto CANASAT, a área plantada de cana na safra 2010-2011 nos municípios com presença de assentamentos foi de 1,1 milhão de ha, o que significa dizer que em sete anos a área plantada dobrou nestes territórios. Levando-se em consideração apenas as áreas de expansão de alto e médio potencial de cultivo nos municípios com assen-tamentos, de acordo com o previsto no zoneamento agroecológico aprovado pelo Decreto no 6.961/2009,24 haveria mais 2,7 milhões de ha de cana acrescidos às áreas destes municí-pios, atingindo o total de 3,9 milhões de ha de cana cultivada, aproximadamente 75% da área atualmente ocupada pela cana em todo o estado de São Paulo.

24. O objetivo geral do zoneamento agroecológico é fornecer subsídios técnicos para auxiliar na formulação de políticas públicas voltadas à expansão e à produção sustentável da cana no território brasileiro.

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53Avaliação da Situação de Assentamentos da Reforma Agrária no Estado de São Paulo

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54 Relatório de Pesquisa

A tendência à concentração fundiária

Em São Paulo, segundo o Censo Agropecuário 2006, a agricultura familiar, somando 151.015 unidades, representa 66,35% do total de estabelecimentos agropecuários. A agricultura pa-tronal, por sua vez, representa 33,65% dos estabelecimentos, ou seja, 76.579 unidades. Em termos de área, por seu turno, a agricultura familiar possui apenas 2,5 milhões de ha sob seu controle, cerca de 15% de toda a área dos estabelecimentos agropecuários do estado, ao passo que a agricultura patronal se estende por 14,1 milhões de ha, aproximadamente 85% da área total. Os estabelecimentos acima de 1 mil ha, que ocupavam 4,7 milhões de ha em 1995, passaram a ocupar 5,9 milhões de ha em 2006, mesmo ante a diminuição no número absoluto de estabelecimentos agropecuários nesta faixa de área. Em termos de concentração de terra, portanto, São Paulo é um Brasil piorado.

Um dos efeitos do aumento do preço dos alimentos e dos recordes das safras agríco-las é o aumento dos preços da terra. As terras mais valiosas do país estão nas regiões Sul e Sudeste, que contam também com a maior infraestrutura instalada. No Sudeste, dois mu-nicípios ocupam o segundo e terceiro lugares em preço de terra por hectare: Ribeirão Preto e Sertãozinho. Ambos registram a presença de grandes usinas de cana-de-açúcar, além de extensas áreas plantadas com esta cultura. Em dezembro de 2010, o hectare de terra custava R$ 24 mil nestas duas cidades, alta de 20% em relação ao ano anterior.

O preço da terra agrava as dificuldades para o desenvolvimento de assentamentos no estado, uma vez que, além do processo de autovalorização do capital centrado principal-mente na produção de commodities, dá lugar também à especulação da terra. Em áreas pró-ximas a centros urbanos, onde foram criados projetos de assentamento, o problema toma a forma de especulação imobiliária e sujeita os assentados a frequentes ameaças de expulsão. É o que explica uma liderança do MST:

Nas áreas próximas a grandes cidades há também o enfrentamento ao setor imobiliário. Ali na fazenda da Barra [área desapropriada para fins de reforma agrária] quem fez o enfrentamento político-ideológico conosco foi o agronegócio, mas puxado pelo setor imobiliário, por um corretor de imóveis daqui de Ribeirão Preto (Paulo Freire, militante do MST).

Do ponto de vista do agronegócio da cana, o processo de aquisição de terras em São Paulo representa, pois, um altíssimo custo imobilizado para as usinas, motivo pelo qual a apropria-ção direta de território via contratos de compra e venda vem se mostrando altamente desvan-tajosa. Ao mesmo tempo, o cultivo de cana só se torna lucrativo em larguíssima escala, o que implica a incorporação de grandes áreas por poucos grupos econômicos, acirrando, assim, o grau de concentração de renda que caracteriza o setor. Por esta razão, o volume de forneci-mento de cana-de-açúcar tem crescido também mediante os contratos de arrendamento e/ou contratos de parceria, isto é, por intermédio de estratégias de controle da terra que prescindem da propriedade direta sobre a área explorada. Em São Paulo, o fornecimento de cana oriunda de fornecedores “independentes” tem crescido nos últimos anos, passando de 40 milhões de t em 1992 para 90 milhões de t na última safra, segundo informações divulgadas pela União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica).

Os dados sobre o perfil dos produtores de cana-de-açúcar elaborados pela Orga-nização de Plantadores de cana da região Centro-Sul do Brasil (Orplana) permitem, mais uma vez, identificar a tendência concentracionista do setor. A despeito da im-portância dos fornecedores “independentes”, 44,2% destes produzem apenas 3,9% do total. Por sua vez, apenas 5,2% dos produtores de São Paulo fornecem 52,6% de toda a cana produzida.

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55Avaliação da Situação de Assentamentos da Reforma Agrária no Estado de São Paulo

TABELA 8 Distribuição da produção do estado de São Paulo – safra 2006-2007

Estrato da produção Número de produtoresProdutores

(%)Acumulado

(%)Produção

(%)Acumulado

(%)

< 1000 t 6.188 44,2 44,2 3,9 3,9

De 1.000 a 3.000 t 3.863 27,6 71,8 10,1 14

De 3.000 a 6.000 t 1.693 12,1 83,9 10,5 24,5

De 6.000 a 9.000 t 696 5 88,8 7,5 31,9

De 9.000 a 12.000 t 402 2,9 91,7 6 38

De 12.000 a 18.000 t 438 3,1 94,8 9,4 47,4

De 18.000 a 24.000 t 219 1,6 96,4 6,6 54

De 24.000 a 50.000 t 317 2,3 98,7 15,5 69,5

De 50.000 a 75.000 t 88 0,6 99,3 7,8 77,3

De 75.000 a 100.000 t 41 0,3 99,6 5,1 82,5

> 100.000 t 59 0,4 100 17,5 100

Total 14.004 100 - 100 -

Fonte: Orplana.

Ainda de acordo com a Orplana, 90% dos fornecedores produzem até 10 mil t de cana em uma área média de 60 ha. Com a proibição da queima da cana, grande parte deles ou tem de vender as suas terras, pois a mecanização só se mostra eco-nomicamente viável para os grandes proprietários, ou se associa em condomínios e consórcios de produtores. Contudo, o que mais chama atenção neste dado é que esta área média indica que um dos vetores de expansão da cana é a incorporação de áreas controladas por pequenos produtores, entre eles os agricultores familiares e os assentados de reforma agrária – sobretudo os assentados de projetos estaduais, para os quais o ITESP oficializou a política de “integração” dos pequenos produtores com a grande indústria sucroalcooleira.

A integração subordinada dos assentamentos estaduais: do endividamento à perda de controle sobre a terra

As tentativas de integração do complexo industrial da cana e dos assentamentos rurais não são novidade em São Paulo, mas estão intimamente conectadas à péssima estrutura dos assentamentos, à histórica ausência do Estado nestes territórios e ao alto grau de precarização das condições de vida da população assentada. A identificação dos assen-tamentos com as favelas rurais, a ausência de perspectivas de melhoria das condições de vida dos assentados e o assédio das usinas por intermédio de projetos de consórcio foram característicos das primeiras tentativas de integração dos assentamentos rurais aos objetivos da política agrícola e à lógica de acumulação do setor agroindustrial no interior de São Paulo.

O cerco das usinas, combinado com a articulação política de prefeitos, vereadores e deputados conectados com as demandas do agronegócio, além dos sucessivos endi-vidamentos de assentados junto às instituições financeiras, constituíram as condições a partir das quais as usinas conseguiram implantar o cultivo de cana-de-açúcar em assentamentos de algumas regiões paulistas. Contudo, as negativas de parte dos assen-tados ao assédio das usinas contribuíram para o acirramento de conflitos internos, fra-gilizando ainda mais as possibilidades de afrontar a participação do capital privado no controle direto sobre os objetivos da política de criação de assentamentos no interior da política de reforma agrária.

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56 Relatório de Pesquisa

Em 2002, contudo, o ITESP põe fim no imbróglio que tornava obscura a relação real existente entre usinas e assentamentos de reforma agrária, legalizando e legitimando a situ-ação. Por meio da Portaria no 75/2002, o órgão estadual estabelece e regula a possibilidade de integrar os assentamentos ao parque agroindustrial sucroalcooleiro, sob a justificativa de promover a capitalização das famílias, garantindo o incremento da renda e melhores condições de vida aos assentados.

Contudo, o plantio da cana no interior dos assentamentos não só alterou a na-tureza da relação dos assentados com a terra, como praticamente obrigou a totali-dade dos assentados a aderir ao modelo canavieiro de exploração, dada a utilização intensiva de herbicidas e as consequências incontroláveis da queima da cana sobre lotes com outros tipos de cultivo. O acesso à terra, que pode oferecer aos assentados a possibilidade de dispor livremente dos recursos naturais e de seu próprio trabalho para garantir uma vida digna, é substituído por relações de dependência e subordina-ção. Em tais situações, portanto, o Estado acaba por atuar como mero intermediador de mão de obra, patrocinando uma típica relação de terceirização, em que o risco da atividade é transferido do complexo usineiro para os produtores de cana-de-açúcar e nítidas relações de trabalho são camufladas sob a forma de contratos de compra e venda de produtos agrícolas.

Como a produção de cana só se viabiliza economicamente a partir do plantio em áreas extensas e em larga escala, a consequência óbvia da “integração” dos assentamentos ao com-plexo usineiro tem sido seu constante endividamento e, o mais importante, o agravamento da perda de controle sobre a terra. A política agrária converte-se assim em uma ação pública perversa, reproduzindo relações degradantes de trabalho no campo. De acordo com dados da fundação ITESP, em 2008, existiam mais de 350 assentados de reforma agrária amarra-dos a contratos de fornecimento de cana às usinas (tabela 9).

TABELA 9 Distribuição dos assentamentos geridos pelo ITESP que implantaram cana-de-açúcar para fornecimento à agroindústria

Grupo técnico de campo Agroindústria Projeto de assentamento Número de assentados

AraraquaraUsina Santa Luzia Usina MaringáUsina São Martinho

Monte Alegre Bueno de Andrade SilvâniaGuarany

212

Teodoro Sampaio Destilaria Alcídia

Santa ZéliaSanta Terezinha da Alcídia Alcídia da Gata Santa Cruz da Alcídia

31

Rosana Destilaria Alcídia Gleba XV 38

BebedouroUsina AndradeUsina Viralcool

IbitiúvaReage Brasil

60

Fonte: ITESP (2008).Elaboração: Barone e Ferrante (2009).

Se o estado de São Paulo, contudo, tenta resolver o problema da renda e das condições de vida dos assentados atuando como mero intermediador de mão de obra, e se o agrone-gócio avança sobre o território paulista subordinando a política agrária, qual é então o real papel da política de reforma agrária no contexto atual do Estado brasileiro? Qual é o seu peso em termos orçamentários?

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57Avaliação da Situação de Assentamentos da Reforma Agrária no Estado de São Paulo

3.2.5 O financiamento ao setor agrícola versus financiamento das políticas agrárias: a reforma agrária como uma “pequena política”25

A hegemonia do agronegócio diante das políticas de reforma agrária tem, talvez, na sua posição no interior das disposições orçamentárias a sua expressão mais acabada. Sob todas as formas de dispêndio e transferências diretas ou indiretas de recursos públicos, fica ainda mais nítida a contínua perda de posição da reforma agrária e o seu isolamento cada vez maior das grandes políticas de Estado.

As formas pelas quais a política de reforma agrária se apequena no sistema de poder se reproduzem no quadro de despesas organizadas por função na estrutura de distribuição dos recursos orçamentários. Enquanto a função agricultura, em 2010, teve R$ 14,8 bilhões de despesas liquidadas ou inscritas em restos a pagar não processados, a função organização agrária, em que estão alocados os recursos disponíveis para a política de reforma agrária, despendeu R$ 4,3 bilhões. Cumpre ressaltar que, sob a função organização agrária, estão contemplados todos os dispêndios relativos ao gerenciamento fundiário, à destinação de terras públicas, à reforma agrária, à agricultura familiar e às comunidades quilombolas.26

TABELA 10 Despesa e gasto tributário (2005 a 2009) (Em R$ milhões)

  2005 2006 2007 2008 2009

Organização agrária Valor PIB (%) Valor PIB (%) Valor PIB (%) Valor PIB (%) Valor PIB (%)

Orçamento fiscal e da seguridade social

3.583 0,17 4.249 0,18 4.854 0,18 4.522 0,15 4.845 0,15

Gasto tributário 21 0 23 0 23 0 29 0 125 0

Total 3.605 0,17 4.272 0,18 4.877 0,18 4.551 0,15 4.874 0,15

Fonte: Siafi, Dest, Receita Federal e IBGE.Obs.: os dados do orçamento fiscal e da seguridade social expressam os valores empenhados; quanto ao gasto tributário, os dados referem-se aos

valores efetivos de 2005 a 2008 e ao previsto em 2009.

Pelos dados da tabela 10, vê-se que, no período 2005-2009, a evolução dos dispêndios com a função organização agrária chegou, no máximo, a 0,18% do PIB em cada período. Em termos de gasto tributário, os efeitos dos dispêndios são quase nulos sobre o gasto total. Houve, durante o período 2005-2009, incrementos sucessivos de recursos para algumas subfunções, como extensão rural – de R$ 56,6 milhões para R$ 406 milhões – e ordenamen-to territorial – de R$ 124,5 milhões para R$ 402,2 milhões. A subfunção reforma agrária também teve um acréscimo substancial, passando de R$ 1,68 bilhão em 2005 para R$ 2,94 bilhões em 2009. Contudo, os dados nesta subfunção não são absolutamente comparáveis, na medida em que, em 2005, os créditos direcionados à instalação de assentados e os refe-rentes à aquisição de terras e investimentos básicos para início da produção constavam da subfunção encargos especiais na função organização agrária, passando apenas em 2009 a ser incorporados à subfunção reforma agrária.

Em contrapartida, a função agricultura, em todo o período, teve valores muito su-periores em relação aos dispêndios com a função organização agrária, representando, no mínimo, o dobro de participação no PIB. Com relação aos gastos empenhados em 2009, os valores apresentam trajetória bem diferente das estimativas de gastos da função organização

25. Conforme Oliveira (2011). A expressão “pequena política” é tomada aqui na acepção de Gramsci. 26. A operacionalização dos programas e das funções componentes da função organização agrária é feita por diversos órgãos, quais sejam: Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), Incra, CONAB (via PAA), Secretaria do Tesouro Nacional (STN) – negociação e equalização de juros subsidiados destinados à agricultura familiar –, bancos públicos, entes estaduais e municipais.

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58 Relatório de Pesquisa

agrária: enquanto nesta os empenhos em 2009 não conseguiram sequer superar os gastos do período pré-crise, na função agricultura, os empenhos cresceram cerca de 30%.

TABELA 11 Despesas e gasto tributário (2005-2009) (Em R$ milhões)

Agricultura2005 2006 2007 2008 2009

Valor PIB (%) Valor PIB (%) Valor PIB (%) Valor PIB (%) Valor PIB (%)

Orçamento fiscal e da seguridade social

8.328 0,4 10.149 0,4 11.345 0,4 9.773 0,3 14.723 0,5

OI 4 0 5 0 5 0 5 0 7 0

Gasto tributário 1.189 0,1 5.506 0,2 5.705 0,2 7.184 0,2 7.199 0

Total 9.521 0,4 15.660 0,7 17.055 0,6 16.962 0,7 21.928 0,7

Fonte: Siafi, Dest, Receita federal e IBGE.Obs.: os dados do orçamento fiscal e da seguridade social expressam os valores empenhados; quanto ao gasto tributário, os dados referem-se aos

valores efetivos de 2005 a 2008 e ao previsto em 2009.

Chama atenção ainda que os gastos tributários no setor cresceram a uma taxa de 505% no período 2005-2009, ante 77% de elevação nos gastos empenhados com recursos do Or-çamento Fiscal e da Seguridade Social. Atualmente, portanto, do total dos gastos com a fun-ção agricultura, cerca de 32% correspondem a valores referentes à renúncia tributária. Deste montante, 79,6% dos gastos tributários na função agricultura são referentes a renúncias associadas à contribuição social para o PIS-PASEP e à Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins).

Considerando-se o montante do crédito rural aplicado em São Paulo, de acordo com os dados do Anuário Estatístico do Crédito Rural, de 2010, os cultivos de eucalipto, laranja e cana-de-açúcar consumiram pouco mais de R$ 2,5 milhões de crédito de custeio, equiva-lendo a 66,1% de todo o valor despendido com esta modalidade de crédito para São Paulo. Este montante foi direcionado para pouco mais de 2 milhões de ha, o equivalente a 66,7% de toda a área financiada no estado. Ou seja, a concentração do financiamento no setor comercial reproduz a mesma lógica da concentração da propriedade da terra: retirando-se estes três produtos – cana, laranja e eucalipto –, todo o crédito restante foi repartido entre, no mínimo, 98 diferentes culturas.

TABELA 12 Financiamentos de custeio de lavoura concedidos a produtores e cooperativas no estado de São Paulo – área financiada e empreendimento (2010)

Produtos Número de contratos Total financiado (R$) Área financiada (ha)

Cana-de-açúcar 14.487 1.941.248.730 1.729.289

Eucalipto 41 54.138.661 64.049

Laranja 5.359 659.043.758 236.446

Demais lavouras 25.760 1.360.230.369 1.012.432

Total 45.647 4.014.661.518 3.042.216

Fonte: Anuário Estatístico do Crédito Rural.

Os dados disponíveis de investimento em assentamentos de reforma agrária em São Paulo no período 2003-2008 demonstram o grau de isolamento das políticas direciona-das a este grupo em relação à “grande política” de investimentos do Estado. De acordo com o Incra, de 2003 a 2008, os assentamentos paulistas receberam, em termos de in-fraestrutura, os seguintes investimentos: R$ 24,3 milhões em estradas, R$ 74,4 milhões

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59Avaliação da Situação de Assentamentos da Reforma Agrária no Estado de São Paulo

em habitação e R$ 11 milhões em perfuração de poços, construção de reservatórios e im-plantação de rede adutora; no mesmo período, foram também investidos R$ 4,2 milhões na política de fomento à agroindustrialização. Somando, portanto, todos os investimentos em infraestrutura e fomento, realizados em sete anos, para assentamentos de reforma agrá-ria em São Paulo, chega-se a um valor total de pouco mais de R$ 113 milhões. Mesmo se adicionados todos os recursos disponibilizados para financiamento da produção via PRO-NAF, mais os recursos investidos com assistência técnica e as compras públicas executadas pelo PAA, a participação da reforma agrária no conjunto das políticas do setor em São Paulo poderia ser considerada, em termos relativos, inexpressiva.

Além disso, não é demais lembrar que grande parte dos recursos direcionados ao setor agrícola comercial não estão arrolados na função agricultura, mas são inseridos em outros grandes programas do governo como investimentos selecionados para acelerar o cresci-mento econômico. A este respeito vale destacar que uma parte das obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) tem como beneficiário direto o agronegócio: ferrovias, portos e hidrovias em construção estão em regra conectados às perspectivas de investimen-to do setor privado em algumas regiões agrícolas.

A hegemonia dos interesses do agronegócio no âmbito estadual é ainda mais evidente. O quadro das despesas do governo estadual para o exercício de 2009 não deixa margem a quaisquer dúvidas. Somando-se os valores despendidos com as funções agricultura e or-ganização agrária, esta última representaria meros 6,39% do total de recursos públicos despendidos no setor agrário/agrícola. A subfunção reforma agrária tem participação ainda mais irrisória, limitada a 5,24% das despesas do governo de São Paulo no exercício de 2009. Curiosamente, considerando-se apenas as receitas oriundas da indústria, serviços e agropecuária, a participação desta última na receita gerada é de apenas 0,98%. Em suma, as despesas governamentais com o setor agrícola são infinitamente superiores à receita gerada por ele mesmo.

Mas o conflito entre o modelo de agricultura familiar e assentamento e o modelo do agronegócio não se restringe apenas à disputa por recursos e políticas públicas. Os dois modelos funcionam segundo racionalidades distintas. Paulo Freire, militante do MST, ao contar sobre o projeto do movimento para o fomento à produção agroecológica, ilustra como se dá, neste plano, o enfrentamento ao agronegócio:

Toda política do Estado brasileiro pro campo é pautada no agronegócio e nós trabalhamos com produção agroecológica. Quando falamos em produção agroecológica é a produção de alimentos saudáveis, mas também é uma produção que permita liberar o trabalhador rural para outras ativi-dades, como lazer, formação (...) Tudo que leva à formação da pessoa humana na sua integralidade. Mas, como toda a estrutura e logística é voltada pro agronegócio, nós temos dificuldades (...) tanto em relação ao tamanho do módulo rural (...) O tamanho em si não prejudica, mas se não há uma política de tecnologia para isto, na época da seca, por exemplo, não tem produção.

Em tal contexto, as lutas cotidianas dos assentados e trabalhadores sem-terra, desvinculadas de um projeto amplo e bem definido de reforma agrária, transformam-se em demandas pontuais e fragmentadas, facilmente despolitizadas quando transfor-madas em pequenos problemas de execução ou gestão de política pública. Isoladas da grande política, a última pá de cal que restaria à reforma agrária seria a burocratização de suas prescrições, relegando quase à inexecução o pouco que lhe resta no quadro geral das políticas públicas.

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60 Relatório de Pesquisa

3.2.6. O processo de burocratização da política de reforma agrária e suas consequências

A política agrária possui uma diversidade de normas incidentes que deveriam dispor, num primeiro plano, sobre os direitos e as garantias fundamentais, o papel do Estado e da sociedade civil no cumprimento de suas prescrições e, num segundo plano, sobre a re-gulamentação e executoriedade destas determinações, garantindo sua efetividade e eficá-cia. A política agrária tem suas principais disposições legais inscritas na CF/1988 e nas Leis no 4.504/1964 e no 8.629/1993, na Lei Complementar no 76/1993, nos Decretos nos 433/1992 e 2250/1997, e em uma infinidade de normas esparsas, sem qualquer siste-maticidade ou organicidade. A regulamentação da matéria agrária já nasce, portanto, fa-dada a um imbróglio de disposições contraditórias, sujeitando a reforma agrária ao “ritmo legiferante” do Poder Judiciário e às pressões do poder econômico local.

Convém frisar, contudo, que, quando se trata dos dispositivos normativos que regulam a intervenção do Estado sobre a sociedade, o fracionamento da estrutura de poder, funcional para a acomodação de interesses no interior do Estado, coloca em uma zona de indetermi-nação os limites constitucionais assinalados aos modos de uso da terra e à sua apropriação privada. Isto é reforçado ainda mais pelas políticas públicas direcionadas ao setor agrícola, cujas decisões de investimento público não se subordinam aos elementos componentes da função social do uso da terra. Tal situação de aparente anomia é às vezes agravada por ins-trumentos públicos que influenciam no longo prazo os rumos do setor no Brasil. O Plano Safra, por exemplo, apesar de ser um instrumento de planejamento conjuntural e de curto prazo, produz efeitos de longo prazo, na medida em que sua regularidade anual garante certa permanência de fatores determinantes e estruturantes das relações socioeconômicas no cam-po, e seus objetivos, centrados na acumulação de capital pelo setor agrícola, prevalecem fre-quentemente sobre os dispositivos constitucionais acerca das funções econômica, ambiental e trabalhista que condicionam a apropriação privada e o uso da terra.

Por seu turno, o Incra, visando estabelecer critérios e regular procedimentos administra-tivos no âmbito de sua atuação, institui diversas instruções normativas, normas de execução e portarias. Para ilustrar o grau de burocratização das políticas de reforma agrária, podem-se estudar, por exemplo, as normas de execução que orientam o processo de obtenção de terras (NE Incra/DT no 95/2010) e de aplicação dos créditos de instalação (NE Incra/DD no 79/2008).

A NE no 95/2010 institui procedimentos administrativos e critérios técnicos nas ações de obtenção de terras, fase fundamental do processo de redistribuição de patrimônio no âmbito das políticas de reforma agrária. De acordo com a norma de execução supracitada, o Incra, ainda na fase administrativa, deve adotar nada menos que vinte procedimentos administrativos, o que envolve resumidamente as etapas a seguir.

1) Planejamento para obtenção de imóveis rurais com a definição de áreas prioritárias, com base em diagnóstico regional.

2) Identificação prévia dos imóveis rurais de interesse para incorporação ao programa de reforma agrária com projeções de custos.

3) Comunicação prévia da entrada do Incra no imóvel a ser vistoriado. O ingresso no imóvel poderá ocorrer em até três meses após a comunicação prévia.

4) Havendo complexidade na identificação dos proprietários, a Procuradoria deverá manifestar-se.

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61Avaliação da Situação de Assentamentos da Reforma Agrária no Estado de São Paulo

5) Levantamento da cadeia dominial até o destaque do patrimônio público para o privado.

6) Não havendo possibilidade de levantamento da cadeia dominial até a origem, o Estado deverá ser instado a manifestar-se sobre a autenticidade dos títulos de do-mínio do imóvel.

7) Realização de vistoria de fiscalização, com a verificação dos requisitos da função so-cial da propriedade.

8) Elaboração do laudo agronômico de fiscalização (LAF), que deve conter parecer quan-to à viabilidade técnica e ambiental do assentamento de trabalhadores rurais, devendo ser ainda conclusivo quanto ao cumprimento dos requisitos da função social.

9) Para identificar eventual pretensão concorrente de outros órgãos públicos federais, o Incra deverá oficiar a Fundação Nacional do Índio (Funai), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), as secretarias estaduais de meio ambiente, gerência regional de patrimônio da União, a Fundação Palmares, as prefei-turas municipais, entre outros órgãos.

10) Expedição de ofício comunicando a abertura de processo de obtenção de terras ao Programa Nacional de Crédito Fundiário.

11) Expedição de ofício ao Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) para verificar a existência de direitos subjetivos privados de natureza minerária.

12) Emissão de portaria conjunta DNPM/Incra com o objetivo de implantar o cadastro nacional de monitoramento das áreas de interesse do DNPM e do Incra.

13) Atualização cadastral do imóvel.

14) Notificação do proprietário quanto à classificação fundiária do imóvel.

15) Prazos sucessivos para a interposição de impugnação administrativa e recurso admi-nistrativo quanto à decisão da classificação fundiária do imóvel.

16) Encaminhamento, à coordenação de obtenção, do conjunto-decreto para instrução dos procedimentos relativos à edição do decreto declaratório de interesse social para fins de reforma agrária. O conjunto-decreto é o resultado da juntada de diversas cer-tidões, cópias de ofícios e protocolos de requerimento.

Essa forma de regulação do processo de obtenção de terras garante ao proprietário a possibilidade de modificar a situação de fato do imóvel, com reflexos nas prováveis ações judi-ciais, fase em que o descumprimento dos preceitos fundamentais e dos ritos processuais espe-cificamente estabelecidos para garantir a celeridade de todo o processo é ainda mais flagrante.

Se a celeridade foi, para a gestão da SR-8, um dos principais ganhos em termos de execução dos programas e créditos de reforma agrária, não parece ser este o princípio que rege toda a normatividade referente à execução dos créditos de instalação, uma das fases mais relevantes na constituição dos assentamentos rurais.

Os créditos de instalação são um conjunto de recursos distribuídos entre nove di-ferentes modalidades que objetivam garantir moradia, segurança alimentar e nutricional das famílias assentadas, fomento inicial ao processo produtivo, inserção e participação das mulheres na dinâmica produtiva e econômica, fortalecimento da geração de excedentes e recuperação da capacidade econômico-financeira dos assentados. Os créditos concedidos não possuem valores altos, mas são cruciais para o sucesso da política, pois, se bem aplica-dos, evitam futuros endividamentos e garantem a autonomia dos assentados em torno do

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62 Relatório de Pesquisa

processo produtivo. Porém, aqui também a burocratização do processo de liberação dos recursos, resultado da necessidade de adotar cerca de vinte diferentes ações ou procedimen-tos administrativos, traz prejuízos inestimáveis aos assentados, como se a celeridade fosse pouco importante para pessoas que passaram tantos anos vivendo à margem das estradas.

Num cenário como esse, os problemas de infraestrutura, o baixo número de servido-res e a insegurança quanto à continuidade dos investimentos, especialmente provocada por contingenciamentos de recursos, tornam a ação do Incra extremamente frágil. Vale frisar que o Incra foi uma das instituições públicas que mais absorveram as consequências de uma política de desmonte dos aparatos do Estado, com perda contínua de quadros técnicos e sucateamento de sua infraestrutura básica, essencial para o desempenho de suas funções.

A burocratização das políticas também vem causando reflexos diretos na qualidade e quantidade de serviços de assistência técnica nos assentamentos. O Programa de Assessoria Técnica, Social e Ambiental à Reforma Agrária foi instituído pelo Incra em 2003 com o ob-jetivo de prestar assessoria às famílias assentadas. Os serviços de (Ates) são disciplinados pela NE no 71/2008. Na prática, o programa não se resume à prestação de serviços de assistência técnica, mas engloba também todas as atividades burocráticas que viabilizam o acesso dos assentados a diversos serviços sociais básicos e às políticas públicas.

De acordo com o Manual de Ates aprovado por meio da NE no 78/2008, o núcleo operacional de Ates deve ser constituído por profissionais de níveis médio e superior, com formação multidisciplinar nas áreas de ciências agrárias, sociais, ambientais e eco-nômicas, mantendo as seguintes proporções mínimas: um terço de profissionais de nível superior; um técnico para cada 85 famílias; um técnico da área agrária para cada 125 famílias; um técnico das áreas social, ambiental ou econômica para cada 250 famílias; no mínimo um terço de profissionais com experiência comprovada de mais de dois anos em trabalhos técnicos com agricultura familiar, preferencialmente em projetos de assen-tamento de reforma agrária.

Quanto à base física do núcleo, o manual fixa alguns parâmetros mínimos, tais como: existência de uma sede com salas de trabalho, reunião e recepção dos assentados; um com-putador fixo para cada dois técnicos; um telefone/fax; uma impressora; acesso a internet banda larga; um automóvel para cada dois a quatro técnicos; a distância máxima de deslo-camento da sede aos assentamentos não deve ultrapassar 250 quilômetros.

Vale frisar que as atribuições dadas aos núcleos operacionais de Ates, bem como as proporções mínimas estabelecidas pela norma de execução, só podem servir como referência caso se parta do pressuposto de que a atual estrutura operacional e de re-cursos humanos é suficiente para garantir o regular funcionamento de toda a estrutura burocrática. Como não é este o caso – e talvez isto se repita em todo o país –, mesmo que a superintendência preencha todos os requisitos previstos, a capacidade instalada não seria suficiente para atender a toda a demanda. Em todas as regiões visitadas pela equipe de campo, notou-se uma evidente sobreposição de tarefas de assistência técnica e procedimentos burocráticos, com jornadas de trabalho extensas e estrutura de trabalho distante das condições ideais.

O serviço de Ates sofre também com problemas de descontinuidade da prestação de serviços, resultado da instabilidade quanto ao repasse dos recursos orçamentários. Apenas a título de exemplo, segundo uma auditoria feita pelo Tribunal de Contas da União (TCU) nos convênios de Ates realizados pela superintendência, no exercício de 2008, os recursos

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63Avaliação da Situação de Assentamentos da Reforma Agrária no Estado de São Paulo

destinados ao Incra-SP representavam cerca de 16% do total alocado ao Incra nacional em 2008. Em 2009, contudo, esta porcentagem caiu para 9% do total alocado, o que demons-tra certa instabilidade quanto à garantia de continuidade dos serviços prestados.

Por fim, cumpre ressaltar que um dos vetores dos problemas com os serviços de Ates está no regime precário de contratação. Em virtude dos vínculos precários e do número insuficiente de técnicos ante a demanda de trabalho, o pessoal de Ates não tem condições de prestar serviço e orientação adequados à necessidade e à tempestividade dos assentados. A mudança frequente de técnicos nos assentamentos e a variação frequente do número de técnicos por assentamento são os pontos negativos mais citados pelos assentados quando questionados sobre o serviço de Ates.

3.2.7 Criminalização dos movimentos sociais e utilização da máquina do Estado para deslegitimar a reforma agrária: o caso Cutrale

Os movimentos sociais rurais têm tido cada vez menos espaço na mídia e na agenda gover-namental, exceto quando um acontecimento excepcional tem potencial para, narrado de forma oblíqua e parcial, desqualificar sua atuação. Este parece ter sido o caso da ocupação da fazenda sob posse da Cutrale, em São Paulo.

Em outubro de 2009, um grupo de manifestantes ligado ao MST ocupou a fazenda Capivara, com cerca de 200 mil pés de laranja, localizada no município de Iaras, São Paulo, em área com grande concentração de remanescentes de terras públicas federais, tendo a empresa Cutrale, maior produtora de sucos de laranjas do mundo, reivindicado sua pro-priedade. A fazenda integra o núcleo colonial Monção, área de mais de 40 mil ha com re-gistros originários de 1909. Fazem parte do núcleo quatro fazendas adjudicadas por dívida em processo movido pela União em face da Companhia Colonial São Paulo Paraná, além de nove fazendas adquiridas mediante compra pelo mesmo ente a partir de 1910. Como apenas parte da área foi reservada a assentamentos de colonos, a maior parte dela, hoje em litígio, mantém a condição de patrimônio público, devendo, de acordo com o Artigo 188 da Constituição, ser prioritariamente destinada à reforma agrária.

Nos títulos dos imóveis rurais dessa região, o Incra, por meio do estudo de cadeia dominial, constatou a existência de diversos vícios juridicamente insanáveis nos registros cartorários, deslegitimando a posse e a propriedade da empresa, que, mesmo sabendo da fragilidade da situação fundiária dos imóveis da região, resolveu plantar milhares de mu-das de laranja na fazenda reivindicada pelos movimentos sociais e pelos órgãos públicos federais. Diante das evidências, o Tribunal Regional Federal de São Paulo (TRF-SP) imitiu o Incra na posse do imóvel, motivo pelo qual a Cutrale iniciou tratativas com os órgãos públicos e os trabalhadores para realizar uma permuta da área em disputa por outra de propriedade da empresa.

Após obter na Justiça, em grau de recurso, a cassação da imissão na posse, a empre-sa abandonou as conversações, causando revolta em milhares de trabalhadores sem-terra organizados em um acampamento na cidade de Iaras. Após a ocupação da fazenda pelos acampados, o Estado organizou uma operação policial totalmente desproporcional à “gravidade” e “lesividade” dos fatos ocorridos, resultando no indiciamento de 51 pes-soas por suposta participação na ocupação da fazenda e na prisão ilegal de 22 pessoas, todas espalhadas por diversas delegacias do interior do estado, numa tentativa de obs-truir a defesa dos acusados.

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64 Relatório de Pesquisa

Um ponto central exaustivamente alardeado contra o MST foi a destruição de cerca de 7 mil pés de laranja. Mas o processo de concentração daquelas áreas pelo laranjal foi escamoteado. A região passou em anos recentes pela compra e ocupação de terras para instalação de grandes laranjais, como forma de construção de uma base da produção em escala suficiente para a fixação de preços, o que prejudicou pequenos e médios produtores que antes produziam para um mercado concorrencial. Como consequência, milhares de pequenos e médios agricultores tiveram de abandonar a produção de laranja. Entre 1996 e 2006, desapareceram, segundo o Censo Agropecuário do IBGE, somente em São Paulo, cerca de 240 mil ha de laranjal e, dos 33 mil produtores, restaram apenas 13 mil.

Além dos efeitos sociais constantes para os milhares de pequenos produtores, o re-sultado político mais imediato foi a instalação de uma nova CPI para investigar suposto crime de desvio de dinheiro público por entidades ligadas ao MST, prestadoras de serviços junto aos assentados da reforma agrária. Foi a terceira CPI criada com o mesmo objetivo nos últimos sete anos.

O “caso Cutrale” reacendeu em setores da sociedade brasileira a visão policialesca da luta pela terra, estigmatizando setores organizados da sociedade legitimamente constituí-dos para reivindicar o cumprimento da função social da terra, tal como estabelecido pela Constituição Federal de 1988. Para o MST, a instalação de mais uma CPI seria uma repre-sália pela luta em torno da atualização dos índices de produtividade.

3.2.8 Novos rumos do controle sobre a terra em São Paulo e as fusões e aquisições de usinas

A apropriação de terras por estrangeiros não é um fenômeno novo, mas acelerou-se nos últimos anos em decorrência da elevação do preço dos alimentos e da crise de produção que afetou alguns países. Já há algumas décadas, o preço dos produtos alimentares tem apresen-tado quedas constantes, mas, segundo a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), de janeiro a dezembro de 2007, o preço dos alimentos aumentou em 40% no mundo.27 As causas do fenômeno são diversas: aumento da demanda impul-sionada pelo crescimento econômico de Índia e China; queda da produção relacionada a eventos climáticos; elevação do preço internacional do petróleo com reflexo nos custos do transporte; avanço dos biocombustíveis sobre áreas de cultivo alimentar; baixos estoques alimentícios; uso de cereais para produção de ração animal; e outros fatores. No início de 2008, já havia escassez de arroz, trigo e milho em alguns países.

A utilização de toda a área agricultável disponível em países cuja demanda está em forte expansão – China e países árabes – e a dependência destes países em relação aos países produtores de commodities agrícolas geraram uma grande demanda por terra de países em desenvolvimento com área agricultável disponível. A FAO estima que existam 4,2 bilhões de ha de terras agricultáveis no mundo, dos quais são utilizados apenas 1,6 bilhão. A maior porcentagem de desuso das terras está na África Subsaariana e na América Latina, alvo pre-ferencial dos investidores estrangeiros.

De acordo com a ONU, enquanto em 1960 o mundo possuía pouco mais de 1 ha de área agricultável per capita, em 2030 este valor atingirá 0,3 ha per capita. Nesta conjuntura, o Brasil emerge como um campo fértil para interesses externos, uma vez que possui nada

27. Em janeiro de 2008, o preço do trigo já estava 83% acima do preço de janeiro de 2007. Os países que mais sofrem com a alta dos alimentos são aqueles em que as famílias gastam no consumo alimentar a maior parte do seu orçamento (Graziano e Tavares, 2008).

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menos que 15% das terras agricultáveis não exploradas no mundo; a maior biodiversidade concentrada em um bioma do planeta (Amazônia); porcentagem elevada de terras im-produtivas apropriadas por poucos especuladores; enorme potencial mineral ainda inex-plorado; políticas públicas voltadas ao fortalecimento do agronegócio; e, até o momento, ausência de controle público sobre a aquisição de terras por estrangeiros.

Até este ano, estrangeiros já haviam adquirido 46,6 milhões de ha de terras em países em desenvolvimento. No Brasil, os dados do Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNCR) só permitem identificar um total de 4 milhões de ha em mãos estrangeiras. O dado, con-tudo, está longe de refletir a situação real da apropriação estrangeira de terras brasileiras, reflexo da inexistência de um aparato fiscalizatório eficiente. Uma das estratégias utilizadas pelo capital internacional para a compra de terras no país tem sido a criação de empresas brasileiras em nome de “laranjas”. Dados do SNCR mostram que o número de imóveis sob o domínio de empresas nacionais passou de 31 mil em 1998 para 67 mil em 2008. A área registrada sob domínio empresarial passou de 80 milhões para 177,2 milhões de ha em dez anos. Em contrapartida, apenas 34.371 imóveis rurais estão registrados em nome de estrangeiros em 2010.

Ainda de acordo com os dados do SNCR, 23% das terras compradas por estrangeiros são de propriedade de japoneses; 7% são de italianos; argentinos, americanos e chineses controlam, pelas estatísticas oficiais, 1% das terras compradas por estrangeiros no Brasil. De acordo com o Incra, o volume de terras estrangeiras em território nacional deve ser três vezes superior ao identificado pelo cadastro.

Embora o descontrole seja evidente, é necessário ressaltar que nem sempre a existên-cia de um controle deste tipo foi desejada.28 Além do mais, coube ao próprio Estado o papel de induzir a ocupação do território por capitais externos em algumas regiões do país. Foi o caso do processo de ocupação da Amazônia nas décadas de 1960 e 1970. Para atrair capitais produtivos, a União ofereceu vantagens e incentivos fiscais para ocupação de terras a grandes grupos econômicos, alguns estrangeiros, que desejassem criar empreendimentos na região.

A aquisição de terras por estrangeiros no país é regulada pela Lei no 5.709/1971, regu-lamentada pelo Decreto no 74.965/1974. Além deste dispositivo, o Decreto no 85.064/80 regula a aquisição de terras em faixa de fronteira. Posteriormente, a Constituição previu, em seu Artigo 190, que “a lei regulará e limitará a aquisição ou o arrendamento de propriedade rural por pessoa física ou jurídica estrangeira e estabelecerá os casos que dependerão de autorização do Congresso Nacional”. Atendendo a esta previsão, a Lei no 8.629/1993, que regulamenta os dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária, instituiu restrições ao arrendamento de imóveis rurais por estrangeiros, como previsto na Lei no 5.709/1971.

Contudo, a Emenda Constitucional no 06/1995, promulgada no contexto de inten-sificação da abertura econômica do país e de entrada de capital estrangeiro no processo de privatização, revogou o Artigo 171 da Constituição, que disciplinava a distinção entre em-

28. Nos anos 1920, o governo brasileiro concedeu 1,2 milhão de ha de terra no Pará a Henry Ford para plantio de seringueiras, a fim de abastecer a indústria automobilística. Nos anos 1950, a Icomi, empresa de capital nacional e norte-americano, foi autorizada a explorar reservas de manganês no Amapá – até seu esgotamento; nos anos 1970, um milionário norte-americano adquiriu cerca de 4 milhões de ha na fronteira entre o Pará e o Amapá para a implantação do Projeto Jari, que previa o desmatamento da área para a instalação de uma fábrica de celulose. Na ditadura militar, a Operação Amazônia ofereceu incentivos fiscais a multinacionais que se instalassem na região, inclusive para a extração de madeira: algumas, como a Volkswagen e a Coca-Cola, obtiveram milhões de hectares. Na era FHC, o governo montou o Serviço de Vigilância da Amazônia (Sivam), a ser operado por uma empresa norte-americana, com a responsabilidade de mapear a Amazônia.

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presas brasileiras de capital nacional e empresas estrangeiras, dispensando a estas tratamen-to diferenciado e disposições especiais. Com isso, a Advocacia-Geral da União (AGU), com o Parecer GQ-181 de 1997, ratificou o entendimento de que o parágrafo 1o do Artigo 1o da Lei no 5.709/1971 – que submetia à forma desta lei a aquisição de terra por estrangeiro residente no país e por pessoa jurídica estrangeira autorizada a funcionar no Brasil – estava revogado. Aprovado pelo presidente da República e publicado no Diário Oficial da União, o parecer adquiriu efeito vinculante para todos os órgãos da administração pública federal.

Diante do crescimento da participação estrangeira na propriedade de terras e da au-sência de controle nos últimos anos, a AGU firmou em 2008 parecer favorável à revisão da orientação anterior. Mas, em vista da pressão da Associação Brasileira de Papel e Celulose (Bracelpa) e da crise econômica de 2008, a nova decisão teve de ser adiada.

O Ministério Público Federal (MPF) instruiu o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a tomar providências quanto à normatização dos registros imobiliários da compra de terras por estrangeiros no país, e emitiu recomendação formal ao advogado-geral da União para revisar o Parecer AGU/GQ-181. Sustentou o MPF que na matéria em causa deveriam prevalecer as disposições da Lei no 5.709/1971. O CNJ, em atenção a esta norma, indicou que os cartórios deveriam promover a lavratura dos atos de aquisição de terras por empre-sas brasileiras controladas por estrangeiros, e determinou o envio da relação das aquisições anteriormente cadastradas aos tribunais de Justiça e às corregedorias locais ou regionais. Mesmo ante a pressão de setores do agronegócio, um novo parecer da AGU em 2010 restaurou a vigência da Lei no 5.709/1971. Publicada no Diário Oficial da União, a nova interpretação passou a valer para toda a administração pública direta e indireta.

O atual parecer da AGU atesta que a ausência de controle do território gerou inú-meros efeitos ao país: expansão da fronteira agrícola com avanço do cultivo em áreas de proteção ambiental; valorização desarrazoada do preço da terra e incidência da especulação imobiliária, com consequente aumento do custo de desapropriações para a reforma agrária e redução do estoque de terras disponíveis para tal fim; crescimento da venda ilegal de ter-ras públicas; utilização de recursos oriundos da lavagem de dinheiro, do tráfico de drogas e da prostituição na aquisição destas terras; incremento da biopirataria na região amazônica; ampliação, sem devida regulação, da produção de etanol e biodiesel; aquisição de terras em faixa de fronteira, pondo em risco a segurança nacional etc.

Esse parecer destaca que a imposição de limites legais à aquisição de terras por estrangei-ros em comum em outros países. Nos Estados Unidos, por exemplo, devem ser elaborados re-latórios das aquisições à Secretaria de Agricultura. Alguns estados possuem regulação própria: em Nova York, só o estrangeiro naturalizado está apto a adquirir terras rurais. Na Virgínia, é permitida a posse apenas ao estrangeiro residente por mais de cinco anos. Em Iowa, terras destinadas à agricultura não podem pertencer a não residentes; e no Missouri, elas não podem ser de estrangeiros. O México, por sua vez, proíbe o domínio estrangeiro de terras em faixa de fronteira e à beira-mar. Empresas mexicanas com participação de capital estrangeiro sujeitam-se a outras restrições, como o limite máximo de propriedade.

Ainda não é possível saber ao certo quais são os efeitos do processo de aquisição de terras por estrangeiros em São Paulo. Contudo, uma das portas de entrada do capital estran-geiro nos campos paulistas tem sido o setor sucroalcooleiro. Com a extinção do Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA) na década de 1990 e o processo de desregulamentação das ativida-des do setor, um novo ambiente institucional provocou alterações profundas nas estratégias

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de sobrevivência e expansão do complexo sucroalcooleiro. Este, tanto no Brasil como em São Paulo, vem passando por um processo intenso de concentração produtiva e de centralização de capital, com a participação cada vez mais pujante do capital estrangeiro no processo de fusão e aquisição de empresas (tabela 13).

TABELA 13 Participação do capital estrangeiro na indústria sucroenergética em São Paulo

Grupo Usinas

Louis Dreyfus (França)São Carlos

Cresciumal

Tereos (França)

Guarani

Cruz Alta

Guarani Tanabi

Andrade

Companhia Enérgetica São José

Cardoso

Anbegoa (Espanha)São Luiz

São João da Boa Vista

Goldman Sachs (Estados Unidos) Santelisa Vale

Kuok (China) Cosan

Cargill Cevasa

Noble (China)Petribu Paulista

Meridiano

Sucden (França)Cosan

Guarani

Sojitz Corporation (Japão)

Alcídia

Conquista do Pontal

Euclides da Cunha

Presidente Epitácio

UMOE (Noruega) Destilaria Paranapanema

Free Float

Cosan

São Martinho

Guarani

Fonte: Sindicato da Indústria de Fabricação do Álcool no Estado de Minas Gerais (SIAMIG)/Sindicato da Indústria do Açúcar (Sindaçúcar) (2009).

Mais da metade da expansão do cultivo da cana-de-açúcar na safra 2007-2008 ocorreu em de São Paulo, que contabilizou 53,8% das novas áreas plantadas naquele ano-safra sob o impulso das grandes usinas instaladas em seu território, cuja capacidade de moagem está entre as maiores do país.29 Entre os maiores produtores de cana-de-açúcar estão grandes gru-pos com forte participação de capital internacional, como a Cosan, a Louis Dreyfus, a Tereos Guarani, a Santelisa Vale e a São Martinho. Juntas, estas usinas são responsáveis por 50% da cana-de-açúcar produzida pelos catorze maiores grupos produtores do país.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este relatório foi elaborado, na sua maior parte, ao longo do ano de 2011, e traz informa-ções e dados referentes ao biênio 2010-2011, período em que foram realizadas as visitas de campo que instruem as análises.

29. Neves e Conejero (2010).

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68 Relatório de Pesquisa

O propósito que norteou a preparação deste estudo foi o de levantar questões que per-mitissem compreender quais os principais entraves e dificuldades que se opõem, hoje, em de São Paulo, ao avanço da política de reforma agrária. Para tanto, foi importante conhecer as principais estratégias de execução desta política, empreendidas pela SR-8, considerando, de outra parte, as determinações específicas do contexto socioeconômico e fundiário que caracterizam São Paulo e oferecem, à atuação do Incra, os seus limites e meios de ação.

Alguns fatores podem ser evocados para explicar por que a política de reforma agrária em São Paulo apresenta contornos tão marcadamente conflituosos, que fazem dela um caso emblemático para o entendimento da atual questão agrária brasileira. Em primeiro lugar, está o fato de este estado ser, sob muitos aspectos, o mais desenvolvido do país, um título com base no qual se poderia apressadamente concluir que problemas sociais históricos, como segurança alimentar, pobreza e acesso à agua, não existem em suas terras. Em segun-do lugar, o fato de a área rural de São Paulo ser de ocupação antiga tende a fazer imaginar que sua estrutura fundiária é estável, isenta de conflitos e, portanto, insuscetível de gerar uma forte demanda social por terra. A pesquisa de campo demonstrou que estas duas pre-missas são falsas, e que ações do Estado em favor da reversão das desigualdades sociais – de acesso à terra, a serviços, à renda – e da efetivação dos direitos básicos da cidadania seguem sendo, em São Paulo como em todo o país, essenciais.

É nesse contexto que se insere a atuação do Incra-SP. Se por um lado, como pôde ser visto neste relatório, grande parte dos fatores de sucesso da política de reforma agrária se deve às estratégias adotadas pela SR-8 – mas, sobretudo, à luta de acampados e assentados, à pressão social organizada que, reivindicando junto aos órgãos de Estado o atendimento a suas demandas, reforça a necessidade e legitimidade da reforma agrária –, por outro a maior parte dos fatores de insucesso aqui apresentados envolve circunstâncias externas ao espaço de ação política do Incra – embora não do Estado brasileiro como um todo. As questões tratadas neste relatório são aquelas que, do ponto de vista da equipe de pesquisadores e dos atores políticos entrevistados, sintetizam com mais rigor a realidade dos assentamentos de reforma agrária em São Paulo.

O problema do acesso à terra no Brasil envolve componentes estruturais, históricos, que perduram, e elementos relativamente novos, conjunturais, que dizem respeito ao está-gio presente do avanço do capital no campo e às suas novas estratégias de apropriação do espaço físico, exploração dos recursos naturais e expropriação dos trabalhadores rurais. Do conjunto de informações tratadas neste relatório, podem ser extraídas algumas proposições de trabalho que, desenvolvidas em pesquisas futuras, ajudarão a compreender e a precisar a dinâmica atual da questão agrária brasileira.

É preciso, em primeiro lugar, ressaltar o significado da reforma agrária para a seguran-ça e soberania alimentar e nutricional, tanto no que tange a um alcance mais restrito, das famílias beneficiárias da política e dos grupos populacionais em situação de insegurança alimentar, como também do ponto de vista da população em geral, na medida em que os assentamentos são, fundamentalmente, áreas de produção de alimentos. Em muitos municípios de São Paulo, conforme visto, os assentamentos respondem já pela maioria dos estabelecimentos agrícolas familiares, e se configuram, portanto, como o instrumento por meio do qual o Estado pode conservar e reproduzir o modelo de agricultura familiar, estratégico para a produção de alimentos. O reconhecimento desta função importante dos assentamentos, especialmente em um contexto de assédio agressivo do agronegócio e da monocultura nas áreas rurais, poderia dar ensejo a políticas de zoneamento espacial que conferissem aos projetos de reforma agrária o estatuto de áreas protegidas.

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69Avaliação da Situação de Assentamentos da Reforma Agrária no Estado de São Paulo

Além disso, a reforma agrária funciona como meio de garantia da soberania territo-rial, e diz respeito não apenas à propriedade das terras, mas também ao controle dos usos da terra. A terra é um bem público finito, e constitui a base comum de subsistência de toda a população. Sua “oferta”, restrita aos limites do território do país, não pode ser “ampliada” pelo mercado. A reforma agrária assegura a propriedade pública da terra e funciona como instrumento de regulação do mercado fundiário: na medida em que retira do circuito mer-cantil grande estoque de terra, ela impõe limites à expansão do mercado fundiário e ajuda a estabelecer uma política de aproveitamento do espaço agrário mais conforme aos princípios da função social da terra.

A reforma agrária tem-se mostrado uma importante política de combate à pobreza, na medida em que, ao mesmo tempo que garante às famílias moradia e trabalho, franqueia-lhes o acesso a um rol de políticas públicas e de acesso a direitos básicos de cidadania.

A fonte principal das conclusões deste estudo é a palavra dos assentados. Espera-se que este relatório tenha cumprido o compromisso de seus elaboradores, assumido em cam-po e renovado a cada entrevista, de se manterem fiéis a ela.

REFERÊNCIAS

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70 Relatório de Pesquisa

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APÊNDICES

APÊNDICE A

PESQUISA IPEA – AVALIAÇÃO DA SITUAÇÃO DE ASSENTAMENTOS DA REFORMA AGRÁRIA: FATORES DE SUCESSO OU INSUCESSO

José Juliano de Carvalho Filho

1 NOTA INTRODUTÓRIA

Este presente documento retrata parte do trabalho desenvolvido pela equipe do Ipea com-posta por Brancolina Ferreira, Fábio Alves, Alexandre Arbex Valadares, Antonio Teixeira Lima Junior e José Juliano de Carvalho Filho.

Trata-se de versão preliminar, devendo ainda ser colocada em discussão com toda a equipe do Ipea e com o conjunto de técnicos da Superintendência Regional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) de São Paulo (SR-8). Esta perspecti-va, certamente, implicará a adição de novas informações e análises.

Este relatório refere-se à pesquisa no estado de São Paulo, escolhido como área de estudo por duas razões: é região com forte expansão do agronegócio da cana-de-açúcar e do eucalipto em áreas com número significativo de assentamentos de reforma agrária; e foi palco de atuação agressiva da Superintendência Regional. Este fato implicou recolocar o Incra, órgão público federal, como o principal agente da implantação da política agrária no estado, alterando claramente a situação anterior, na qual prevalecia a atuação do Instituto de Terras do Estado de São Paulo (ITESP).

Como é do conhecimento do Ipea, a pesquisa prevê estudar outros casos importantes em diferentes realidades regionais.1 Nesta parte, ateve-se à experiência paulista, dada a sua relevância para os objetivos do estudo.

O relatório esta dividido em três partes, incluindo esta nota introdutória. A segunda parte relembra os objetivos da pesquisa. Por sua vez, a terceira parte apresenta uma aná-lise comparativa entre duas pesquisas com objetivos semelhantes para a mesma realidade paulista. Ou seja, comparam-se as evidências obtidas em 2010 pela pesquisa do Ipea com os resultados de outro estudo levado a efeito em 2006. Tal procedimento possibilita acom-panhamento temporal da política agrária em São Paulo durante os últimos dois mandatos presidenciais e destaca a atuação da Superintendência Regional do Incra. A quarta parte consolida as observações da equipe do Ipea sobre os fatores de sucesso e insucesso dos as-sentamentos de reforma agrária em São Paulo, atendendo aos objetivos que constam dos termos de referência da pesquisa.

1. A equipe de pesquisa já discute outras áreas para investigação. A esse respeito, ver em Alves (2010) o documento da pesquisa que relata a viagem com visitas a assentamentos e contatos institucionais no estado do Pará.

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72 Relatório de Pesquisa

2 OBJETIVOS DA PESQUISA

2.1 Objetivo geral

Identificar as variáveis e as condições essenciais ao sucesso de assentamentos de reforma agrária, bem como a responsabilidade por cada uma delas, com vistas a subsidiar a proposi-ção de políticas públicas voltadas para a viabilização econômica e social dos assentamentos rurais, em particular, e da produção familiar, em geral.

2.2 Objetivos específicosa) Analisar os atuais modelos de implementação de assentamentos rurais.

b) Avaliar as condições dos assentamentos com relação à sua infraestrutura e aos serviços públicos fornecidos, inclusive outras políticas públicas existentes na área que possam interferir nas condições vigentes nos assentamentos.

c) Identificar possíveis impasses legais e institucionais que estejam dificultando o desen-volvimento dos assentamentos rurais.

d) Analisar aspectos referentes às atividades econômicas predominantes nos assentamentos.

e) Avaliar as condições socioeconômicas das famílias assentadas nos respectivos projetos de assentamento.

f ) Identificar os principais fatores que levam à permanência ou ao abandono dos lotes.

g) Avaliar a dinâmica socioeconômica da região, os efeitos de outras políticas públicas incidentes e seus impactos para o sucesso ou o insucesso dos assentamentos.

3 COMPARAÇÃO DE SITUAÇÕES: PESQUISA DE 2006 VERSUS PESQUISA DE 2010

3.1 Objetivos das pesquisas, dos procedimentos, dos contatos e das viagens

1. A pesquisa de 2006 visou levantar e discutir o desempenho da gestão da SR-8 junto aos assentados e suas lideranças. Ou seja, a pesquisa apresentou avaliação do desempenho da política agrária do ponto de vista do público da reforma agrária em São Paulo. Por sua vez, a pesquisa de 2010 também procurou avaliar este desempenho focalizando, es-pecificamente, os fatores de sucesso e insucesso dos assentamentos de reforma agrária.

2. Em ambas as pesquisas, os levantamentos de informações foram concretizados via contato direto com os assentados da reforma agrária, suas lideranças e suas organi-zações – movimentos e sindicatos. A coleta de informações junto aos técnicos do Incra-SP foi relativamente mais importante na pesquisa de 2010.

Em ambas as pesquisas, antes do contato direto com os assentados e suas lideran-ças regionais e locais, foram efetuadas reuniões com a superintendência do Incra de São Paulo e seu pessoal técnico com responsabilidade na execução da política. A pesquisa de 2006 também entrevistou previamente as lideranças das organiza-ções dos trabalhadores. As organizações então contatadas, indicadas pela superin-tendência, foram: Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Fede-ração dos Empregados Rurais Assalariados do Estado de São Paulo (FERAESP), Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de São Paulo (FETAESP) e Federação da Agricultura Familiar do Estado de São Paulo (FAF). A pesquisa de

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73Avaliação da Situação de Assentamentos da Reforma Agrária no Estado de São Paulo

2010 manteve mais contato com as organizações dos trabalhadores durante a coleta de informações. Dada a importância que têm nas áreas visitadas, a FERAESP e o MST foram as principais organizações contatadas.

3. Na pesquisa de 2006, os contatos locais foram definidos de acordo com cada uma das organizações dos trabalhadores rurais. A pesquisa de 2010 procurou definir estes contatos ouvindo os técnicos do Incra – na sede da superintendência e nas áreas visi-tadas – e as lideranças das organizações.

4. Em ambas as pesquisas, foram efetuadas, registradas em resumos e/ou gravadas grande número de reuniões. Sempre que possível estas reuniões tiveram caráter coletivo. Estes encontros, na pesquisa de 2006, ocorreram nas regiões visitadas – Vale do Ribeira, Ita-peva, Ribeirão Preto/Araraquara, Andradina, Pontal do Paranapanema e Promissão –, nas sedes das organizações e nos assentamentos. A pesquisa de 2010 deu ênfase especial à região de Ribeirão Preto/Araraquara e à região centralizada por Andradina. A primei-ra abrange os seguintes municípios: Ribeirão Preto, Serrana e Serra Azul; Araraquara, Colômbia, São Carlos Descalvado, Bocaina, Caconde. Por sua vez, a região centraliza-da por Andradina – sede de uma Unidade Avançada do Incra – compreende os seguin-tes municípios com assentamentos: Andradina, Ilha Solteira, Suzanápolis, Itapura, Pe-reira Barreto, Araçatuba, Castilho, Pauliceia, Nova Independência, Murutinga do Sul, Guaraçaí, Mirandópolis, Birigui, Brejo Alegre, Turmalina e Araçatuba. É importante realçar que na região de Andradina e demais municípios o número de assentamentos anteriores a 2003 era de 14, enquanto o número de assentamentos novos, posteriores a 2003, chegou a 30, totalizando 44 assentamentos de reforma agrária até agosto de 2010, data dos levantamentos efetuados pela pesquisa do Ipea.

5. A ênfase dada a essas duas regiões não significou falta de atenção para as demais. Antes da pesquisa de campo realizada na região de Ribeirão Preto/Araraquara e na região de Andradina, foram concretizados três outros trabalhos de campo:2 Fabio Alves visitou a região do Pontal do Paranapanema; Antonio Teixeira Lima Junior visitou assentamen-tos situados nos municípios de Bauru, Pederneira, Iaras e Promissão; Alexandre Arbex Valadares levou a efeito o mesmo tipo de visita em Apiaí, Itapetininga, Iperó, America-na, Limeira, Cajamar, Pirituba e Sumaré. Cada visita gerou um documento assinado pe-los técnicos citados. Os três relatórios foram apresentados e discutidos com dirigentes e técnicos do Incra em evento ocorrido no Centro Universitário de Araraquara (Uniara), em Araraquara. As apresentações e os respectivos debates contaram com participação de Brancolina Ferreira, que atuou como coordenadora e debatedora.

3.2 Evidências por tópico de política

Esta parte do relatório é dedicada à comparação entre os resultados das duas pesquisas – pesquisa de 20063 e pesquisa de 20104 – segundo os instrumentos de política agrária à disposição do Incra e que constam dos relatórios desta instituição.

3.2.1 Reestruturação do Incra no interior de São Paulo

As evidências da pesquisa de 2010, na sua maior parte, coincidem com aquelas obtidas na pesquisa de 2006. O período entre pesquisas foi caracterizado pelo avanço significativo da reestruturação do Incra no interior do estado de São Paulo, com destaque para a região de Andradina. Esta medida foi prioritária para a SR-8.

2. Ver relatórios de viagens da pesquisa Ipea/Disoc: Alves (2010), Valadares (2010) e Lima Júnior (2010). Os três documentos referem-se a trabalhos de campo ocorridos no período de 18 a 27 de fevereiro de 2010.3. Carvalho-Filho e Saraiva (2006).4. Ipea (2010).

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74 Relatório de Pesquisa

A pesquisa de 2006 evidenciou que, em geral, esta iniciativa (a reestruturação) é tida como positiva, mas é também alvo de muita crítica. A implantação dos núcleos de apoio regio-nais, além de apresentar deficiências – pessoal em número insuficiente e com diversos tipos de tarefas, somado a problemas de infraestrutura – desperta a demanda reprimida dos assentados e acampados da reforma agrária, o que gera insatisfações. Em vários casos – regiões – o Incra praticamente não existia. Em contraste, agora mostra presença como órgão público responsável pela política agrária.

As opiniões emitidas variaram segundo as organizações e a posição do entrevistado na sequência que vai do dirigente nacional/regional até o assentado. A crítica é muito mais forte quando se chega aos interessados diretos, ou seja, assentados e suas lideranças locais.

Em resumo, as principais observações foram as seguintes:

Aspectos positivos

(1) Pesquisa 2006 – a reestruturação mostra a presença do Incra, cria alternativas, leva à descentralização de serviços, tem papel de intermediação com outros órgãos públicos; e aproxima os diversos agentes da política. Cumpre realçar que as opiniões a respeito destes aspectos variam por região – Pontal, com dois escritórios; Araraquara e Andradina como escritórios que receberam mais atenção da SR-8.

(2) Pesquisa 2010 – confirmou o esforço da SR-8 em afirmar a presença do Incra nas duas últimas regiões citadas. Especialmente em Andradina, a pesquisa teve a oportunidade de avaliar este esforço. Foi estabelecida uma unidade avançada em Andradina, e consequen-temente houve: ampliação da área física do escritório, significativo aumento de pessoal e especialidades, integração com a prefeitura atendimento de interessados no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) na mesma área da unidade avançada –, maior número de veículos para os trabalhos de assistência técnica e extensão rural (Ater), muita procura por parte do público. Quanto a Araraquara, verificou-se que o escritório local foi reforçado.

Críticas

(1) Pesquisa de 2006 – os escritórios apresentaram deficiência de pessoal e insuficiente po-der de decisão; a falta de autonomia dos escritórios provoca atrasos nos processos e dificulta o contato com o Incra-SP; o pessoal dos escritórios está voltado para ações de implantação de programas e/ou de interesse dos bancos ou outras instituições; consequentemente não há tempo para a assistência/extensão propriamente dita, na área agronômica. Este último ponto foi motivo para muitas críticas, e o sistema de Ates adotado não mostrou capacidade de resolver esta questão.

(2) Pesquisa 2010 – o que foi apontado anteriormente a respeito das melhorias verificadas pela pesquisa, especialmente no que se refere ao aumento de pessoal e veículos ficou, em várias ocasiões, bastante prejudicado devido à precariedade das contratações de técnicos – via Fundação de Estudos e Pesquisas Agrícolas e Florestais (FEPAF) –, bem como à des-continuidade e timidez da política do Incra de Brasília no confronto com os interesses dos ruralistas – Comissões Parlamentares Mistas de Inquérito (CPMIs) da terra, atuação do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) – e às pressões dos órgãos de controle de gastos públicos. Quanto a estes últimos, que fique bem claro, são bem-vindos e importantes para que não ocorra a malversação do dinheiro público. Todavia, quando se compara esta ação com áreas de interesses de ruralistas, o que se observa permite a hipótese,

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por assim dizer, de que há um claro desequilíbrio de trato a favor destes últimos e em pre-juízo do público objeto da reforma agrária. A mesma hipótese ocorre quando se analisa o que, em geral, ocorre no campo da justiça. A intermitência e insegurança que marcaram a implementação da política, em contraste com os elogios, implicaram a reafirmação de mui-tas críticas quanto ao atendimento do público. Uma delas refere-se ao atendimento de Ater.

3.2.2 A visão do público quanto à presença do Incra

(1) Pesquisa de 2006 – verificou-se variedade de visões (percepções) segundo as regiões pesquisadas. No Vale do Ribeira, a presença do Incra foi considerada praticamente inexis-tente – presença apenas aparente via técnicos de Ates Incra/FETAESP. Em Andradina, ao contrário, o Incra já era tido como bastante atuante, mas houve críticas relativas à ineficácia nos processos e na assistência técnica agronômica. Em Araraquara, a presença aumentou, mas houve forte crítica à atuação da superintendência. Várias opiniões apontaram para a ineficiência do esquema montado – a “falta de agilidade provoca demora dos processos”. Verificaram-se queixas também quanto a promessas não cumpridas, atrasos na concretização das políticas etc. No Pontal do Paranapanema, ouviram-se as mesmas críticas: “os técnicos não têm tempo para a extensão. Atuam principalmente como agentes de segmentos de po-líticas junto aos bancos”. A atividade propriamente agronômica foi tida como muito fraca. Verificou-se também crítica quanto à capacidade técnica dos agentes de Ates. No Pontal do Paranapanema, houve destaque para críticas e insatisfações provocadas pela atuação con-trastante dos dois escritórios locais. Com a reestruturação, aumentou o confronto com o ITESP e mesmo com a Coordenadoria de Assistência Técnica Integral (Cati) – Programa de Microbacias. Houve queixas quanto a orientações diferentes e deficiência de atuação. O ano eleitoral parece ter influenciado as posturas das instituições, pois acirrou a disputa entre elas.

Outra crítica constante, neste e em outros itens, referia-se à suposta preferência da superintendência pelo MST. Esta é a visão de outras organizações. No Pontal Paranapema a situação era mais grave porque esta concepção era aceita por facção do movimento dos sem-terra e outras organizações.

Concluindo o tópico, a pesquisa de 2006 destacou para reflexão e debate a questão – tão conhecida na literatura – da ineficácia do poder público em beneficiar as populações mais carentes, vítimas do chamado processo de modernização da agricultura brasileira. Também apontou para discussão a questão da inconsistência das políticas públicas e a revi-são dos procedimentos adotados.

(2) Pesquisa de 2010 – em ambas as regiões, Araraquara e Andradina, se reconhece como positiva a atuação do Incra. Pode-se afirmar que há um reconhecimento da melhoria desta atuação. Todavia, as críticas permanecem existindo. Algumas delas podem ser explicadas pela demanda por serviços, reprimidas na situação anterior, passam a se tornar explícita com a maior presença do Estado. Outras, porém, são explicadas, como já foi dito ante-riormente, pela intermitência e insegurança que marcaram a implementação da política agrária em São Paulo. É o caso das críticas referentes à Ater, das queixas quanto ao tamanho dos lotes nos projetos situados nos antigos hortos da Ferrovia Paulista S.A. (Fepasa), falta de acesso à água e outras mais. Para usar uma imagem ilustrativa, a SR-8 teve andar em uma “corda bamba”, o que, em parte, frustrou as expectativas tanto do público como dos técnicos e responsáveis pela política. Como decorrência da pesquisa de 2010, permanecem válidas as sugestões para reflexão e debate já feitas para a pesquisa de 2006.

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76 Relatório de Pesquisa

3.2.3 Ações de obtenção

(1) Pesquisa de 2006 – na ocasião, quando comparada com a situação anterior, a atua-ção da SR-8 recebeu elogios por parte de algumas das organizações mormente na região de Andradina; as dificuldades encontradas eram reconhecidas, principalmente os limites impostos pelo Judiciário; mesmo assim a pesquisa verificou que as ações de obtenção fo-ram avaliadas muito aquém das expectativas. “A atuação da superintendência foi boa, mas parou na justiça”, diziam alguns. O registro de alguns depoimentos é ilustrativo a respeito: “A atuação do governo federal (Incra) foi muito tímida frente às necessidades, não atuou como deveria” – “nem sequer houve a atualização dos índices de produtividade”.

Grande parte das áreas obtidas dependeu de operações de compra – acordos, compras diretas ou indiretas – e não foi resultado de desapropriação. Houve queixas quanto à demora, lentidão etc. Mais frequente na região do Pontal do Paranapanema, foi relatada uma estraté-gia por parte dos proprietários de terras que buscavam parcerias com acampados objetivando forçar a ocupação para posterior venda das suas terras ao ITESP. Esta ação, cinicamente dita como de “apoio aos sem-terra”, enfraquecia as estratégias das organizações dos trabalhadores e tornou-se fator de divisão entre eles. Por sua vez, a pesquisa ouviu alguns elogios, como foi o caso da visita ao acampamento Mário Lago, em Ribeirão Preto.

Considerando as áreas visitadas, o Vale do Ribeira se destacou quanto às críticas de-correntes da não solução do problema da regularização fundiária, que se estende há anos. Nesta região não houve menção à questão da regularização de áreas de quilombo.

Os esforços da superintendência para a obtenção de terras ficam prejudicados pela ocorrência de várias dificuldades – trâmites na justiça etc. A demora decorrente cria in-satisfação no público. A demanda por terra não é atendida e isto provoca críticas. Esta insatisfação foi expressa em várias entrevistas e em diferentes regiões, especialmente no Pontal do Paranapanema.

O destaque para reflexão e debate então apresentado referia-se aos entraves legais existentes para a concretização da obtenção e a agilização dos processos de desapropriação. Esta questão, evidentemente, depende da postura política e da ação do governo federal.

(2) Pesquisa de 2010 – a pesquisa encontrou situação bastante parecida no que diz respei-to à obtenção. Reconheceu o esforço da SR-8, mas encontrou soluções bastante criticáveis quanto ao tamanho dos lotes distribuídos – ou seja, há uma tendência à minifundização. O tamanho diminuto dos lotes – sem critério técnico convincente – é decorrente da di-ficuldade na obtenção de terras e motivado pelo objetivo de assentar maior número de famílias. Em vários dos projetos de assentamento (PAs) visitados, a pesquisa verificou que o tamanho dos lotes era menor que o módulo fiscal do município, sobretudo nos projetos de desenvolvimento sustentável (PDS) emergenciais; incentiva-se a horticultura, nestes ca-sos, mas não se fornecem meios de irrigação; incentiva-se ou se impõe agroecologia, mas o assentamento é rodeado por monocultura (de cana), cujas práticas culturais contaminam a produção dos assentados com agrotóxicos, maturadores etc. Muitas vezes, os projetos de produção propostos, para serem efetivos, parecem supor a ocorrência de uma confluência de fatores, todos em nível ótimo, hipótese muito pouco provável na produção agrícola. Segundo o testemunhado por mulheres assentadas, o tamanho exíguo do lote implica a não absorção da mão de obra familiar – “para um hectare e meio não preciso de ajuda de marido, dou conta sozinha”. Foram encontradas outras situações consequentes da ação po-lítica, no mínimo inconsistente, que atinge o assentado. A pesquisa encontrou em áreas dos

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77Avaliação da Situação de Assentamentos da Reforma Agrária no Estado de São Paulo

antigos hortos florestais da Fepasa áreas diminutas, antigas áreas de eucalipto em que houve o corte das árvores, mas não ocorreu o destoque – prática de alto custo para a realidade do assentado. Em geral, as áreas visitadas haviam passado por ação anterior do ITESP. Para ilustrar, registra-se neste relatório um caso emblemático de situações plenamente desfavorá-veis para o assentado de reforma agrária. É o caso do PA Guarani. Neste PA, encontraram-se lotes distribuídos pelo ITESP. Estes lotes eram situados ao redor de uma lagoa – ex-área com plantio de eucalipto. Todos os lotes visitados, segundo informações dos moradores, mantinham distância da margem da lagoa e respeitavam a área de preservação permanente (APP). Colhido o eucalipto pela empresa que o explorava, em consequência, a lagoa come-çou a crescer, aproximando-se das casas dos moradores e de outras benfeitorias. Além deste fato, um canal que dava alguma vazão para a água que se acumulava foi obstruído pela empresa responsável pela plantação de cana situada em área limítrofe ao assentamento. O resultado deste círculo vicioso foi que os assentados, além de perderem o direito ao cré-dito de habitação, foram denunciados pelo ITESP por crime ambiental – desrespeito a área de preservação permanente. A equipe do Ipea teve contato com outros casos que chegam a ser inacreditáveis. O PA Monte Alegre, de responsabilidade do ITESP, é palco de um destes casos. Em resumo: o assentado teve acesso ao lote, via Portaria no 50 – esta portaria, de fato, camufla uma compra de direito ao lote –, que possibilita o acesso à terra, mas o in-teressado deve pagar pelas benfeitorias sem chances de interferir nos preços determinados. Além deste gasto, o interessado teve de assumir as dívidas do antigo ocupante. Para concre-tizar a entrada no lote, o agricultor interessado vendeu seus bens – máquinas e ferramentas agrícolas – e tomou recursos emprestados. Uma vez na terra, procurou adotar um plano de produção apropriado para a sua situação de pequeno agricultor – conjunto de atividades envolvendo plantios e criações que lhes asseguram menor risco. Todavia, seguindo orien-tação do ITESP, passou a plantar cana, subordinado a uma usina da região. Em suma, foi explorado – custos dos insumos impostos pela usina etc. –, ficou inadimplente, os agrotóxi-cos prejudicaram outras atividades, teve uma sequência de prejuízos, resolveu sair da cana, pediu quebra de contrato, teve gastos para obter esta quebra, suas dívidas aumentaram, até que ficou doente. A doença obrigou-o a submeter-se a uma operação cardíaca. Houve erro médico, que implicou paralisação de um dos seus pulmões. Este fato, contraditoriamente, implicou sua sobrevivência econômica. Recebeu uma indenização, a qual foi usada para, minimamente, viabilizar seu lote. Voltou à criação de gado leiteiro. Teve que “integrar-se” à companhia Nilsa, de processamento de leite, que faliu e não retirou o leite armazenado em tanques. Hoje é explorado pela Nestlé, que segue as práticas de sempre: quando entra na região oferece maior preço e menos exigências ao produtor; conquistados os fornecedores, reduz os preços e aumenta as exigências. Impõe um sistema de pontos ligados a exigências que acabam por aumentar a exploração dos produtores. Quando a equipe da pesquisa lá esteve, o assentado se via obrigado a trocar o seu plantel (às suas custas), atendendo aos interesses da indústria.

O destaque para reflexão e debate apresentado na pesquisa de 2006 continua válido – reflexão sobre entraves legais existentes para a concretização da obtenção e agilização dos processos de desapropriação. A estes, a pesquisa de 2010 soma a tendência à minifundi-zação, a inviabilidade de planos de produção divulgados – ou determinados – pela Ates, a inconsistência das políticas impostas por agentes públicos e a exploração levada a efeito pela agroindústria. Tais fatos recolocam a questão da necessidade de regulação das ativi-dades do agronegócio como condição para a eficácia da política agrária, pelo menos, em áreas de assentamentos de reforma agrária. Adicionalmente, lembra-se aqui a questão do licenciamento ambiental, muitas vezes utilizado em São Paulo como instrumento antirre-forma agrária. Esta última afirmativa não significa crítica à tentativa de estabelecer termos

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78 Relatório de Pesquisa

de ajuste de conduta (TACs) para determinadas áreas e atividades econômicas. O que cabe criticar é que os TACs parecem visar apenas à população pobre, enquanto as atividades do agronegócio, livremente, usam e abusam do meio ambiente.

3.2.4 Investimentos em infraestrutura

(1) Pesquisa de 2006 – as entrevistas mostraram que, em geral, esses investimentos foram considerados insuficientes, dispersos e fracionados – por exemplo, rede d’água sem poço e poço sem rede – além de descontinuados, causando degradação do patrimônio público.

As observações sobre programas de luz, água e estradas constaram outro item do rela-tório – “Ações estruturantes para consolidação de projetos produtivos (água, equipamentos comunitários, calcário etc.)”.

(2) Pesquisa de 2010 – as entrevistas efetuadas em 2010 chegaram às mesmas indicações, ou seja, investimentos foram considerados insuficientes, dispersos e fracionados. Reconhece-se o esforço do Incra, mas a crítica permanece, principalmente no que diz respeito à questão de acesso à água. Tudo indica a inexistência de política específica e eficaz para este fim. É eviden-te que questões como esta repercutem negativamente na eficácia de outros instrumentos de política, como é o caso da Ates e do PAA, da agricultura familiar, e influem negativamente na possibilidade de incrementos de renda.

3.2.5 Agroindústria

(1) Pesquisa de 2006 – a pesquisa já antecipava que o contato com a agroindústria da cana-de-açúcar prejudica severamente o assentamento. As relações que se estabelecem são nocivas à organização dos assentados.

Verificaram-se na época algumas iniciativas de instalação de agroindústria, inclusive casa de farinha, para existir contraposição a essa influência. Todavia houve críticas, princi-palmente devido à pouca expressão das ações então existentes, promessas não concretizadas e demora na efetivação do prometido. O fato é que os instrumentos e medidas propostas não tinham e continuam não tendo em 2010 a potencialidade necessária para o enfrenta-mento com o agronegócio.

Na região do Pontal, o insucesso em resolver a questão da Cooperativa de Comercializa-ção e Prestação de Serviços dos Assentados de Reforma Agrária do Pontal Ltda. (COCAMP) fundamentava a opinião vigente sobre o insucesso do Incra na questão da agroindústria. Esta situação da cooperativa, segundo as entrevistas realizadas com as lideranças locais, causava um grande desgaste político ao MST e ao Incra.

Um aspecto que foi considerado muito importante para reflexão e debate referia-se ao relacionamento do governo federal com o chamado agronegócio. A ação do Incra foi consi-derada tímida e desprovida de eficácia nesta questão. O não enfrentamento ou regulação da agricultura patronal prejudicava e continua a prejudicar – em 2010 – a política agrária como um todo. Não havia – continua não havendo – regulação do agronegócio. Constatava-se a desconsideração do conceito da atuação via “área reformada”, e as políticas territoriais da Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT/MDA) mostraram-se inócuas frente a esta questão. Os casos da cana-de-açúcar, eucalipto, pinus e leite foram considerados emblemá-ticos. Os “acertos” com a indústria – usinas – evidenciaram o alto poder de degradação dos assentamentos e expuseram a ineficácia da política pública. Foi antecipado que o Programa

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79Avaliação da Situação de Assentamentos da Reforma Agrária no Estado de São Paulo

do Biodiesel, se não regulado para proteger as áreas de reforma agrária, certamente repetiria o mesmo fato. A pesquisa de 2006 teve a oportunidade de visitar assentamento já vítima deste processo e também áreas de avanço da cana no Oeste paulista. Ficou muito claro e evidente o risco altíssimo de repetição do mesmo processo. O tema do enfrentamento e con-sequente regulação da agricultura patronal (“agronegócio”) foi então destacado para análise e discussão da política. Com a finalidade de ilustrar este tema, a pesquisa de 2006 apresentou uma síntese dos problemas relatados pelos assentados do PA Bela Vista do Chibarro:

1. Estão sendo “engolidos” pela cana e as estratégias da usina.

2. O uso do veneno na cultura da cana compromete a produção de outras culturas (não se consegue mais colher arroz, feijão etc.).

3. Observa-se a favelização da comunidade (barracos em área comunitária e na área de reserva, e instalação de ponto de droga).

4. Os assentados fazem luta cidadã por coleta de lixo, telefone etc.

5. Existe fábrica de cachaça instalada no assentamento.

6. Venda de lote por altos preços, arrendamento para usina.

7. Ocupação da reserva (inclusive com cana).

8. A autorização de plantio de 30% do lote com cana sem fiscalização/controle gerou aumento da cana e enfraquecimento dos assentados que resistem ao processo.

9. Há desgaste do solo pela presença da cana – “não conseguem mais dar feijão”.

(2) Pesquisa de 2010 – como já ficou evidenciado em itens anteriores, de modo geral, a mesma situação de 2006 foi constatada em 2010. A região centralizada por Araraquara sofre a influência da monocultura da cana-de-açúcar, o que prejudica os assentamentos (emprego na cana, agrotóxicos, impossibilidade de produzir cultivos orgânicos devido a contaminações, maturadores aplicados à cana atingindo as culturas de lotes da reforma agrária, poluição da água e das várzeas etc. Todos estes efeitos podem ser constatados, apesar da ação do Incra em conjunto com a FERAESP. Esta ação implica acertos com as usinas de açúcar e álcool e restrição ao plantio da cana nos assentamentos. O sucesso ou não desta estratégia precisa ser mais bem avaliado. Há exemplos de sucesso, como a rever-são da situação do PA Bela Vista do Chibarro, mas também há indicações contrárias, tanto na região de Araraquara como na região centralizada por Andradina. Nesta última, cabe realçar a contiguidade de assentamentos como fator importante para a preservação dos PAs de reforma agrária. A ação do Incra procurando, de alguma forma, limitar o agronegócio, é importante e deve ser elogiada. Todavia permanece a questão da incompatibilidade entre os dois modelos – assentamentos de reforma agrária versus monoculturas do agronegócio. A preservação do primeiro depende da regulação do segundo. É obvio que aqui se trata de uma questão relevante e de natureza política.

Por fim, a respeito do efeito do agronegócio sobre os assentamentos, cabe citar o caso da Fazenda Primavera, primeiro assentamento emancipado de São Paulo. O antigo assentamento está coalhado de áreas com plantio de cana-de-açúcar subordinadas a usinas de açúcar e álcool. Durante a visita ficou evidente a descaracterização progressiva pela qual passa o projeto de assentamento de reforma agrária ali instalado na década de 1980.

3.2.6 Ates

(1) Pesquisa de 2006 – em 2006, a pesquisa apresentou a seguinte apreciação: trata-se de ação importante, reconhecida nas diversas regiões visitadas. Era tida como fundamental. Contudo, foram apontadas deficiências na atuação, em geral, explicadas pela escassez de pessoal, pelo nível de preparo dos técnicos, pelas diversas funções que estes técnicos exer-cem, pelo atendimento preferencial e/ou exclusivo à sua organização de origem, e também pela existência de conflito entre orientações divergentes. Cabe destaque à relação Incra-ITESP. A atuação simultânea e contraditória destas duas instituições foi alvo de críticas

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80 Relatório de Pesquisa

e queixas quanto à indefinição de responsabilidades, disputas políticas e transferência de responsabilidade. É um caso de inconsistência de ação do Estado. Outro aspecto relevante deste assunto refere-se ao papel do Estado e das organizações dos trabalhadores para o exercício da função de Ates. Constatou-se divergência de opiniões. Houve casos de acei-tação via repasse de recursos para as entidades dos trabalhadores (Unicampo, FETAESP e Cooperativa Central de Reforma Agrária do Estado de São Paulo (CCASP), com poucas críticas. Houve casos de atuação de técnicos subordinados a instituições diferentes na mes-ma área – ITESP, FEPAF e outras organizações. Com a contratação de técnicos ligados aos movimentos sociais, o Incra ganhava em capilaridade, todavia enfrentou problemas. A integração entre os técnicos precisa ser discutida ou rediscutida, pois se notaram con-tradições de informações quanto à coordenação das ações. Verificou-se também o caso no qual a entidade dos trabalhadores desistiu das funções de Ates, devolvendo-a ao Incra. O exercício destas funções provocou identificação do movimento social com o próprio Estado – cumprir a função típica de Estado –, o que foi considerado prejudicial ao movimento, descaracterizando-o.

A questão do papel do Estado e das organizações é muito importante para a análise da política. A pesquisa chegou a ouvir declarações de dirigentes afirmando: “agora estamos mais fracos do que antes”.

(2) Pesquisa de 2010 – a situação encontrada diferiu radicalmente daquela contatada em 2006. O Incra assumiu integralmente a função de Ates nos assentamentos sob sua respon-sabilidade. O número de assentamentos sob responsabilidade do ITESP ficou bastante reduzido e tende a zerar. Cresceu o número de técnicos e de veículos disponíveis. Houve re-forço de escritórios e criação de uma Unidade Avançada em Andradina. Estas medidas tor-naram mais ágeis as ações dirigidas aos assentados e melhorou a eficácia do Estado. Como já escrito neste relatório foram registradas críticas, mas, principalmente em Andradina, os elogios foram muitos (melhora de atendimento, maior presença e coordenação entre Incra, Prefeituras e CONAB, maior rapidez na efetivação dos recursos de fomentos, habitação e PRONAF A). A equipe do Ipea constatou todos estes fatos, mas também presenciou o quase desmonte deste avanço. Esta política foi vítima, como já foi dito, da intermitência e insegurança que marcaram a implementação da política. Os vínculos empregatícios fo-ram de natureza precária via uma fundação ligada à Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), a Fundação de Estudos e Pesquisas Agrícolas e Florestais (FEPAF). A pesquisa do Ipea testemunhou, de um lado, o envolvimento e entusiasmo dos técnicos, de outro, a repentina redução de pessoal e equipamentos de transporte, inclusive com várias idas e vindas. A SR-8 lutou pela manutenção do pessoal e equipamentos, toda-via não contou com o apoio de Brasília. Por ocasião da última viagem a campo, a situação era esta e antecipava a possível frustração quanto ao que fora construído. O que ficou claro foi a fragilidade da estrutura de Ates, duramente construída.

Para reflexão, é importante a análise crítica sobre as grandes dificuldades enfrentadas por um gestor público empenhado em cumprir sua função, ou seja, concretizar a reforma agrária na região sob sua responsabilidade.

3.2.7 Fomento e habitação

(1) Pesquisa de 2006 – durante o período de viagens a campo a pesquisa testemunhou a ação do Incra visando a implantação do programa habitacional via Caixa Econômica Federal. O programa foi bem aceito, mas também apresentou defeitos e foi alvo de crítica

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nas entrevistas. A falta de opção quanto ao modelo das habitações, a imposição quanto às compras do material de construção, que devem ser feitas de um determinado fornecedor, o atraso na entrega do material foram algumas das críticas externadas.

Verificou-se também a dificuldade em ter acesso às duas fontes de recursos para habi-tação. O mesmo ocorreu com a relação entre fomento I, habitação e fomento II. A demo-ra no recebimento destes recursos muitas vezes implicou endividamento antecipado dos assentados, comprometendo o futuro PRONAF A. Quando o agricultor vem a ter acesso a este recurso, já está endividado com fornecedores. O caso mais frequente encontrado se refere à compra de gado pelos assentados junto a comerciantes que se especializam em explorar o novo assentado de reforma agrária. O gado vendido é caro e de baixa produtivi-dade devido à idade e/ou a doenças.

Essa constatação coloca em questão a eficácia da política que visa criar as condições mínimas para a viabilização da família assentada como produtora rural.

(2) Pesquisa de 2010 – a pesquisa de 2006, comentando a situação dos assentamentos novos – criados no tempo da atual gestão do Incra-SP –, afirmou: “com base em evidências colhidas junto a lideranças, verificou-se que nos assentamentos mais novos a implantação tem ocorrido relativamente mais rápida e eficaz – este desempenho foi especialmente nota-do na região de Andradina e pode ser atribuído ao esforço de criar dois escritórios regionais e à atuação dos movimentos sociais na região”. Em 2010, a equipe do Ipea confirmou esta qualidade da política e notou que esta prática estava muito mais generalizada. O aprofun-damento e a aceleração das políticas existentes, ainda que seus instrumentos sejam falhos e insuficientes, têm gerado efeitos positivos do ponto de vista do desenvolvimento social e econômico dos assentamentos, além de reduzir o índice de evasão.

3.2.8 Renegociação do Procera, dos créditos do Pronaf e acesso a novos financiamentos

(1) Pesquisa de 2006 – na época, a pesquisa assim definiu a situação encontrada:

“O endividamento foi constatado em, praticamente, todas as áreas visitadas. Nas diversas entrevistas, prevaleceu a informação de que predomina a inadimplência, a impossibilidade de acesso a crédito oficial e dependência do crédito informal sob diversas formas – fornecedores de insumos, vendedores de gado, acertos com as agroindústrias etc. Em algumas entrevistas, foi reconhecida a ação do Incra no encaminhamento de negociações. No caso do Banco Nossa Caixa, as dificuldades foram consideradas mais graves (maiores). O PA Pirituba II em Itapeva é exemplo claro dos impasses causados pela situação de inadimplência. As demais ações lá leva-das e efetivadas pelo Incra perderam em eficácia e, em decorrência, frustraram expectativas”.5

Outra constante referência ao crédito foi a ocorrência de atraso nas liberações, com evi-dentes consequências negativas para o processo produtivo e aumento do risco de inadimplência.

A questão da inadimplência generalizada e a consequente falta de acesso ao cré-dito formal, bem como a dependência, muitas vezes observada, de estabelecimentos subordinados via crédito informal, indicam a necessidade de formulação de políticas de crédito específicas para o público da reforma agrária. É preciso reconstruir um sistema de financiamento que independa da chamada “lógica bancária”. Esta, sabidamente, está

5. Esse caso é relatado no item Ações de reforço e apoio ao desenvolvimento dos assentados deste relatório.

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82 Relatório de Pesquisa

voltada para os interesses dos bancos e dos grandes produtores. Em algumas entrevistas aventou-se a necessidade de restabelecimento de linha de crédito específica para assen-tados – aos moldes do antigo Procera.

(2) Pesquisa de 2010 – a situação encontrada em 2010 não invalida as conclusões da pes-quisa de 2006. Pelo contrário, as reafirma. Existe inadimplência em vários PAs de reforma agrária. Não obstante, cabe uma importante ressalva: a pesquisa verificou que houve grande empenho do Incra no encaminhamento de negociações para resolver difíceis situações de inadimplência coletiva, e que em várias ocasiões esta atuação resultou exitosa –6 casos de Promissão (PAs Fazendas Reunidas e Dandara) e Itapeva (PAs Pirituba) foram citados. Ou-tra ressalva importante refere-se à maior celeridade da política para os assentamentos novos. Uma das consequências positivas deste fato é evitar o crédito informal, que comprometeria o PRONAF A e a viabilidade econômica do lote.

3.2.9 Programa de Compras da Agricultura Familiar

(1) Pesquisa de 2006 – na ocasião, foi verificado que essas formas de atuação experimen-taram crescimento expressivo, com destaque para as operações via CONAB. Em geral, constatou-se o reconhecimento da importância da atuação do Incra como instituição que faz a intermediação ou provoca o contato com a CONAB, prefeituras e outras instituições. Evidentemente, os escritórios locais, bem como a equipe baseada em São Paulo, exerceram papel importante nestes encaminhamentos. Tal participação é fundamental também para a execução de outras ações, como foi o caso dos financiamentos para habitação.

Todavia, da mesma forma que em outros segmentos de política aqui relatados, ve-rificou-se em vários lugares a existência de críticas. A descontinuidade do Programa de Compra Antecipada da Agricultura Familiar (CAAF), a inadimplência ocorrida em várias operações do programa, o desacerto ocorrido quanto às exigências da CONAB no que diz respeito ao produto – caso da mandioca no Pontal, dificuldade com a farinheira, problema com a variedade da mandioca aceita pela processadora e CONAB – são algumas das ques-tões e críticas externadas nas entrevistas. Estas constatações levam boa parte dos entrevista-dos a considerarem o programa como mais um insucesso da política.

Foram poucas as menções da existência de operações via Programa de Compra Direta. Por sua vez, foram muitas as queixas quanto à dificuldade de estabelecer operações com as prefeituras locais. A falta do reconhecimento oficial da garantia sanitária dos produtos de pequenas indústrias ou “coletivos” e a incapacidade de manter fluxo regular de produto explicam, em parte, esta situação. Houve algumas citações positivas para o programa de distribuição de sementes de feijão.

Durante a pesquisa, verificou-se o possível crescimento de outra modalidade de operação envolvendo a CONAB e as prefeituras, sem risco de inadimplência. Trata-se da Compra e Do-ação Simultâneas. O programa é interessante porque atende ao agricultor de forma adaptada à sua realidade.

Todas essas experiências, oriundas dos princípios que motivaram o chamado Plano Safra e o PAA para os agricultores familiares e assentados de reforma agrária, merecem aprofun-damento de avaliação. Elas estão contextualizadas nas políticas específicas para este tipo de público. O assunto é de grande relevância para o desempenho da política de reforma agrária.

6. A pesquisa Ipea tratará dos casos mais importantes na próxima versão deste relatório.

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(2) Pesquisa de 2010 – a pesquisa constatou que houve significativo avanço nos progra-mas de compra da agricultura familiar e de assentados. As lideranças das organizações dos trabalhadores reconhecem o fato. Nas duas principais regiões visitadas, verificou-se: intensi-ficação das garantias de compra, aumento significativo do uso do instrumento de compra e doação simultâneas, operações conjuntas com as prefeituras locais – Andradina e São Carlos foram os melhores exemplos encontrados –, efeitos positivos da Lei da Merenda Escolar – as prefeituras são obrigadas a comprar da agricultura familiar 30% da merenda –, e efeitos positivos nos planos de plantio dos produtores. A crítica mais ouvida explicitou o descon-tentamento com os limites de valor do instrumento de Compra e Doação Simultânea e a impossibilidade da utilização plena do programa devido às frustrações de safra decorrentes da escassez de água nos lotes.

3.2.10 Ações “estruturantes” para consolidação de projetos produtivos (água, equipamentos comunitários, calcário etc.)

(1) Pesquisa de 2006 – na época, os programas mais citados foram os relativos à água, à luz e às estradas. Com base nas entrevistas, notou-se que o sucesso foi relativo e localizado. Foram externadas muitas críticas indicando que este é mais um caso de falta de concatenação da ação pública. A reclamação a respeito de perfuração de poços, sem a correspondente rede de distri-buição de água, foi bastante frequente. A má qualidade de redes de distribuição de águas – ca-nos quebrados a céu aberto –, impossibilitando a possível ou potencial distribuição, também foi apontada. Além disso, houve queixas quanto a problemas para a rede de água provocados por erros e baixa qualidade da abertura de estradas.

Tendo em vista que a pesquisa teve acesso ao levantamento em planilha do andamen-to dos trabalhos por PA, aventou-se a hipótese de inconsistência entre a informação da planilha e a implantação “na ponta”.

Especificamente quanto ao programa Luz para Todos, as reclamações foram mínimas. A sua extensão e abrangência mostraram-se, em geral, reconhecidas. Foram registradas queixas com relação ao tipo de ligação – bifásico, monofásico –, impropriedade do tipo de ligação frente às necessidades do agricultor, e comparação com programa anterior que implicava dispêndio por parte do assentado.

No que diz respeito à questão da luz, cabe lembrar o impasse que ocorre em Promissão – Fazendas Reunidas. As tentativas frustradas para resolver o problema geraram descrença e insatisfação quanto à atuação do Incra. As lideranças locais, entrevistadas em conjunto, foram muito críticas sobre diversos aspectos da política.

Outro programa bastante presente nas entrevistas refere-se à distribuição do calcário. Tal qual ocorreu em outros programas, este também recebeu elogios e críticas. Os elogios foram feitos em função do recebimento do calcário e da análise de solos que condicionava o benefício. As críticas, em geral, foram devido à quantidade recebida, problemas no sis-tema de distribuição do calcário e também aplicação. Neste último caso, houve relatos de calcário não utilizado no lote e abandonado no terreno, o que provoca a sua degradação por exposição às intempéries.

Outras obras de infraestrutura também foram apontadas, tais como: construção de agroindústrias – algumas iniciativas –; construção de armazéns (especialmente o caso de Pirituba) – em Promissão também houve referência ao armazém; reforma de centros co-munitários e escolas. Embora importantes, estas ações não foram citadas com frequência.

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84 Relatório de Pesquisa

Como indicação para debate, a pesquisa de 2006 ressaltou a questão da coordenação e consistência das diversas intervenções do poder público.

(2) Pesquisa de 2010 – repetiram-se as críticas referentes a água e estradas. Como já mencionado neste relatório, a questão do abastecimento da água mostrou-se muito gra-ve. Em vários assentamentos os pesquisadores do Ipea se depararam com situações dra-máticas causadas pela falta de água e/ou inexistência de programa específico para resolver esta questão.7 Tal situação já foi destacada neste relatório no item obtenção. A pesquisa verificou o sucesso do Programa Luz para Todos. A este respeito, quando comparadas as duas pesquisas, pelo menos nas regiões de Araraquara e Andradina, verifica-se que as queixas foram poucas8 e que a maioria dos lotes visitados possuíam luz elétrica.

3.2.11 Projetos ambientais

(1) Pesquisa de 2006 – a pesquisa destacou a questão dos PDS, na época visitados. No Vale do Ribeira, foi constatada situação privilegiada para a iniciativa. O histórico do PDS Guapiruvu, suas atividades já em desenvolvimento e sua localização implicaram condições bastante propícias para a iniciativa. Na época, o problema destacado foi a falta da licença ambiental.

Já no caso do Sepé Tiaraju (região de Ribeirão Preto) ficou evidente que não havia con-senso entre os assentados no que diz respeito ao modelo escolhido para a área. A estratégia do Incra tinha como objetivo principal o enfrentamento do agronegócio da cana-de-açúcar, predominante na região. Este enfrentamento ocorreria pela presença de PDS exemplar no respeito ao meio ambiente e a organização interna. Nesta ocasião, discutia-se a assinatura do TAC. Além destes dois casos, a pesquisa teve contato com outra iniciativa interessante, qual seja, o programa de recolhimento de embalagens de agrotóxicos em Itapeva.

A pesquisa de 2006 também registrou várias queixas externadas nas entrevistas e re-ferentes à questão ambiental: relatos de atividade do tipo pesque-pague, inclusive com o estabelecimento de áreas cercadas de rio no interior do assentamento, atividade de caça e inoperância da política ambiental.

A pesquisa considerou importante registrar o caso do Pacto Ambiental assinado no PA Pirituba II como um dos resultados do Plano de Recuperação de Assentamentos (PAR). A sua relevância é especialmente importante por ser resultante de uma ação coletiva dos assentados em parceria com o poder público.9 Em outro item deste relatório se fará mais referências a este caso.

Em 2006, as recomendações foram as seguintes: aprofundamento da análise do que ocorreu no Pirituba II e acompanhamento do processo de implantação do Sepé Tiaraju, ambos importantes na análise das políticas.

(2) Pesquisa de 2010 – a pesquisa visitou diversos PDS. As entrevistas efetuadas leva-ram às seguintes evidências: i) a área dos lotes é insuficiente; a redução dos lotes – sem critério técnico convincente – parece ter sido motivada pelo objetivo de assentar maior número de famílias. Na grande maioria dos assentamentos, o tamanho dos lotes é menor que o módulo fiscal do município, sobretudo nos PDS. Incentiva-se a horticultura, nestes

7. A questão que envolve o abastecimento de água já foi destacada neste relatório no item obtenção.8. Cabe o registro de que houve críticas quanto à deficiência de carga elétrica para o uso de máquinas. 9. Esse caso voltou a ser mencionado em outras partes do relatório de 2006.

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85Avaliação da Situação de Assentamentos da Reforma Agrária no Estado de São Paulo

casos, mas não são fornecidos meios de irrigação. Incentiva-se – ou se impõe – a agroecolo-gia, mas o assentamento é rodeado por monocultura (cana), cujas práticas culturais conta-minam a produção dos assentados com agrotóxicos, maturadores etc.; ii) a falta de acesso à água – pouca disponibilidade – é grave e prejudica fortemente os assentados, frustrando seus projetos de produção e obtenção dos benefícios das políticas de garantia de compra; iii) a ocorrência de conflito entre órgãos públicos envolvidos no processo de assentamento – caso da implantação do TAC na Fazenda da Barra,10 em Ribeirão Preto – envolvendo o Incra e o Ministério Público do município. O conflito não se ateve à área do poder público e incluiu as organizações dos trabalhadores. Estas disputas atrasam e/ou paralisam a implementação de ações, sobretudo as de infraestrutura – no caso em questão, o abastecimento de água aos assentados. Há outros conflitos.

Em visita à área do PDS Sepé Tiaraju, verificou-se que os conflitos a respeito do mo-delo foram superados. Os principais problemas encontrados foram os seguintes: dificulda-de de acesso à água, restrições do TAC quanto ao meio ambiente e proximidade com a área urbana. O assentamento praticamente situa-se em área urbana. Esta localização implica, consequentemente, problemas e pressões que precisam ser melhor investigados.

3.2.12 Educação

(1) Pesquisa de 2006 – quanto à educação nos projetos de assentamento, a pesquisa de 2006 preocupou-se em avaliar, do ponto de vista dos assentados, a percepção e o acesso desse públi-co a programas educacionais especialmente desenhados para a reforma agrária. Os programas objeto desta avaliação foram: o Programa Nacional de Educação para a Reforma Agrária (Pronera), um programa de treinamento de um ano para jovens assentados junto ao Instituto Agronômico de Campinas (IAC) e programas de educação superior junto às universidades. A avaliação chegou às seguintes conclusões:

De forma geral, na base, ou seja, entre os assentados, essas ações são desconhecidas. As lideranças têm consciência das ações, mas existem divergências a respeito. Foram encontrados casos de parti-cipação no programa do IAC e algumas referências, advindas de dirigentes, para o curso de geogra-fia em implantação na UNESP de Presidente Prudente. A questão da difusão para a base das ações de educação deve ser alvo de discussão. O acesso aos programas também precisa ser considerado, pois há insatisfações a respeito.

(2) Pesquisa de 2010 (educação e saúde) – a pesquisa de 2010 não abordou as iniciativas go-vernamentais de 2006 de forma específica e os programas citados não foram mencionados nas entrevistas. O objetivo da pesquisa atual foi avaliar a questão do acesso – incluindo as condições de acesso – à educação e à saúde. Em resumo, as evidências encontradas foram as seguintes: i) no PA Bela Vista do Chibarro, a visita foi surpreendentemente positiva, dada a qualidade de escola lá situada, incluindo direção, professores e postura dos alunos; ii) assentamento Primavera (emancipado), foi visitada uma escola de porte, multisseriada e bem equipada, em vias de perda de diretor e até de fechamento, dada a redução do número de alunos, aparentemente, devido ao processo de municipalização da educação; discriminação contra os alunos filhos de assentados nas escolas municipais ou estaduais situadas na área urbana; deficiências do transporte para os alunos – percurso do assentamento à escola urbana.

A questão do transporte é relevante. Foi constatada queda da qualidade dos servi-ços de transporte – redução do número de viagens, horários evidentemente impróprios para as crianças, roteiros inapropriados nos assentamentos, baixa qualidade do veículo.

10. A esse respeito, ver Matiuzo (2010).

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86 Relatório de Pesquisa

Muitas vezes as crianças chegam às escolas bastante cansadas e sujas pela poeira com que têm contato durante a viagem. Tais fatos levam a mais discriminação contra elas. Não foram visitadas escolas urbanas, mas os fatos comprovam o preconceito contra os assentados no interior destas escolas públicas. Contra a discriminação, a SR-8 implantou um importante programa cujo lema é “Orgulho de ser assentado”.

A questão da saúde também foi abordada nas entrevistas. Dificuldade de acesso, lon-gas distâncias a serem percorridas pelos assentados até os postos de saúde e hospitais – há o caso de uma cidade em que não existe atendimento hospitalar público nem para partos – e má qualidade de atendimento e dificuldades para obter remédios, em virtude dos custos e da deficiência de fornecimento por agentes públicos, foram as queixas mais frequentes.

3.2.13 Ações de reforço e apoio ao desenvolvimento dos assentados

(1) Pesquisa de 2006 – a pesquisa fez destaque especial para a atuação do Incra-SP de-nominada Plano de Recuperação de Assentamentos (PRA). As observações então escritas foram as que se seguem:

A pesquisa teve contato com duas áreas que foram objeto da elaboração de Planos de Recuperação da Renda. Em uma dessas áreas, PA Pirituba II, o resultado apresentou sucesso. As entrevistas mantidas no local, antes e durante a pesquisa, mostraram a ocorrência de um processo comunitário em parceria com o Estado. Este atuou de várias formas providenciando pessoal técnico a recursos. Houve a recuperação da cooperativa, estabelecimento de armazém, constituição do fórum dos assentados, elaboração conjunta e assinatura de Pacto Ambiental etc.

Para resumir o ocorrido, utiliza-se aqui a conclusão de artigo que descreve o referido processo. O artigo11 registra uma ação de política pública que está apresen-tando resultados promissores. A atuação do Incra ocorre em parceria decisiva com a organização social dos assentados – no PA Pirituba II, o MST é o parceiro funda-mental. Esta atuação conjunta possibilita ao Estado exercer função catalisadora que, como consequência, leva ao envolvimento de outros atores sociais, como é o caso das prefeituras locais, universidades e organizações da sociedade civil. Contudo, é im-portante afirmar que a ação catalisadora, por si só, é insuficiente. A própria experiên-cia no Pirituba II assim o demonstra. É preciso que o Estado disponha de instrumen-tos de atuação, ou seja, atue por meio de políticas públicas efetivas e consistentes. A “história recente da política agrária no Brasil continua a mostrar fraco desempe-nho e inconsistências”.

Os assentados mostraram-se capazes de diagnosticar a realidade que os cerca. Identificaram a gravi-dade dos problemas relativos á produção, ao acesso ao crédito, ao sistema de produção e à composi-ção da renda. E foram além, apresentaram linhas de solução. Evidentemente terá que haver resposta às demandas oriundas do processo. Do contrário, todo o esforço poderá ser frustrado. A ação pública não poderá ser interrompida. Terá que persistir e ser aprofundada.

Como já se afirmou anteriormente, esses resultados positivos podem ser frustrados pelo impasse na questão do crédito. “Há um condicionante para o êxito das ações públicas no PA Pirituba II”.

Se de um lado, a pesquisa verificou o sucesso relativo antes registrado, de outro, no PA Fazendas Reunidas, encontrou-se o inverso. A reunião com as lideranças locais foi marcada por muitas reclamações e críticas fortes. Entre outras, registram-se aqui: insuficiência da

11. Ver Botta e Aly Júnior (2005).

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ação pública; frustração com o processo de elaboração do Plano de Recuperação do assen-tamento; crítica generalizada quanto às ações do Incra – “o que chegou, chegou mal” –, com exceção do calcário; inconsistência na atuação dos órgãos públicos – contradições ITESP/Incra; insuficiência de ações de Ater; falta de disponibilidade para extensão propria-mente agrícola; críticas para a atuação do escritório; demora na chegada dos recursos para a reforma das casas; queixas quanto à forma de pagamento da mão de obra de pedreiro; críti-cas com referência ao Programa de Moralização (também verificadas em outras entrevistas e regiões) – “é um programa de desmoralização”; reclamações de assentados do PA Dandara com referência às condições iniciais”.

Desse modo, coloca-se “para o debate tanto as possíveis precondições necessárias” à “eficácia da ação pública, como a questão da ineficácia do Estado para beneficiar o público da reforma agrária”.

(2) Pesquisa 2010 – em 2010, a pesquisa não teve como objetivo avaliar o que ocorreu com os dois casos antes descritos, contudo, como tem por meta discutir fatores de sucesso e insucesso dos assentamentos de reforma agrária em São Paulo, considera relevante a consideração das ações levadas a efeito em 2006. Muito embora este assunto ainda precise ser aprofundado junto à SR-8, cabem algumas poucas considerações: a detecção, pela pesquisa de 2006, de alguns estrangulamentos importantes em assentamentos – exemplos: PA Pirituba e PA Fazendas Reunidas – parece ter provocado ações de política – por parte da superintendência – para superá-las e assim criar condições para colocar em prática os PRAs; o conjunto de medidas e atuações do Incra em algumas áreas, especialmente em Andradina, parece ser consequência lógica das tentativas de elaboração dos PRAs nos primeiros anos da gestão e são, em parte, avaliadas pela pesquisa de 2010; para o estudo da eficácia das ações de política concretizadas pela SR-8, é imprescindível aprofundar a investigação sobre as dificuldades – muitas e de várias origens – enfrentadas pelo gestor da política agrária em São Paulo.

3.2.14 Papel de outras entidades

(1) Pesquisa de 2006 – a pesquisa procurou detectar a participação de outras entidades além daquelas já consideradas. Foram registradas dificuldades com os bancos, participação limitada em colegiados, descrédito quanto ao CONSAD, insatisfação com outros colegia-dos e prefeituras. No que se refere à política territorial da SDT, as informações obtidas mos-tram a quase nula potencialidade desta intervenção. Faltam-lhe recursos e outros meios. Não tem potencialidade para estabelecer uma política territorial. Reduz-se a pequenos e dispersos investimentos.

A pesquisa indicou para discussão o questionamento sobre a realidade dos colegiados e suas reais funções, bem como a análise crítica da política territorial da SDT.

(2) Pesquisa de 2010 – durante as entrevistas a pesquisa não recebeu comentários a respeito desses colegiados. É de se supor que são desprovidos de qualquer importância para os assentados. As indicações para discussão apresentadas em 2006 permanecem válidas para 2010.12

12. Essa sugestão deve incluir os Territórios da Cidadania. As duas principais regiões visitadas não se enquadram neste tipo de território; mesmo assim, a sugestão é válida, dado o que ocorre em regiões como o Vale do Ribeira em São Paulo e no Alto Sertão Sergipano.

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88 Relatório de Pesquisa

3.2.15 Pesquisas de 2006 e 2010: conclusões gerais1) Em 2006, os levantamentos e as viagens de campo verificaram, um grande esforço do

Incra-SP em concretizar ações de política agrária. A maioria dos entrevistados reco-nhece este esforço. A pesquisa de 2010 confirma esta conclusão quanto ao empenho e reconhecimento. Ou seja, reconhece que o período interpesquisas foi marcado pela intensificação da atuação do Incra. Houve renovação deste esforço.

2) A pesquisa de 2006 concluiu que, o público diretamente interessado, apesar do reco-nhecimento, explicitou muitas críticas – problemas de implantação, desarticulação da ação pública, inconsistências de política etc. A pesquisa de 2010 repete esta conclu-são – reconhecimento e crítica – e realça que a questão do acesso à água e a mudança constante – e redução – do pessoal de Ater foram os principais – mais frequentes – motivos das críticas.

3) A pesquisa de 2006 registrou que as opiniões emitidas variaram segundo as organizações e a posição do entrevistado na sequência que vai do dirigente nacional/regional até o as-sentado. A crítica mostrou-se muito mais forte quando se chega aos interessados diretos, ou seja, assentados, acampados e suas lideranças locais. A Pesquisa de 2010 não adotou a metodologia de definir entrevistados por meio das organizações, contudo confirma que a crítica mais forte é feita pelos interessados diretos – pela base.

4) Ambas as pesquisas validam as seguintes afirmativas: as evidências encontradas repe-tem resultados semelhantes de outras avaliações de políticas públicas e constam da literatura especializada. Elas estão relacionadas com o desmonte sofrido pelo Estado e com as contradições e inconsistências da ação deste mesmo Estado. Esta realidade é especialmente evidente no caso de políticas que têm como objetivo beneficiar as populações vítimas do chamado processo de modernização da agricultura brasileira, o atual agronegócio. Há uma clara tendência em beneficiar as relações sociais predo-minantes – interesses de classe. Este fato é importante fator explicativo da fraqueza e ineficácia dos instrumentos de política.

5) Esta constatação realça o fato de que, além das necessárias medidas corretivas que visem recuperar a capacidade de atuação do Estado – correção de procedimentos e instrumentos –, é preciso entender que se trata de uma disputa política no interior do próprio Estado e na sociedade. Há disputa entre classes sociais. A atuação do Incra-SP deve ser analisada neste contexto, por sua vez, caracterizado por uma nova conflituosidade13 consequente do embate entre o “agronegócio” – grandes proprietá-rios, empresários do agronegócio e seus porta-vozes – e os trabalhadores (sem-terra, camponeses, agricultores familiares e seus mediadores. As dificuldades encontradas por esta gestão necessitam de análise aprofundada em busca de suas origens e causas.

6) Ambas as pesquisas colocaram à vista a contradição do próprio Estado. O que limi-tou em muito as ações de política agrária em São Paulo foi a existência de condi-cionamentos oriundos da área federal que, durante ambos os períodos, implantou política agrária tímida, conformista e inócua ou a favor do latifúndio e dos interesses do agronegócio.

7) A pesquisa de 2006 realçou a importância da estratégia da gestão da superinten-dência em formular políticas e agir em consonância com os movimentos sociais. A respeito desta estratégia, este pesquisador afirma que ela poderia ser mais efetiva, pois há depoimentos de algumas lideranças que, apesar de críticas quanto ao suposto beneficiamento de uma das entidades de trabalhadores, reconhece que houve aber-tura de espaço político por parte da superintendência, espaço todavia não ocupado

13. Ver Regina Bruno (2008).

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por suas entidades. O MST e a FERAESP foram apontadas como as entidades que apresentaram as posições mais claras quanto a esta estratégia de atuar em parceria. Na época, o apoio foi considerado crítico. A pesquisa de 2010 não se ocupou deste assunto, todavia detectou que o caminho percorrido foi conflituoso. Por seu turno, testemunhou que esta parceria teve êxito com a FERAESP em Araraquara – princi-palmente – e com o MST em Andradina – principalmente. O assunto é relevante e merece mais investigação.

8) Para o caso, a temática principal para a discussão com as organizações dos trabalhadores deverá abranger os itens: Estado e movimentos sociais/sindicatos, enfatizando a função e limites do Estado versus a atuação dos movimentos e sindicatos; consistência versus inconsistência entre as ações do Estado; inserção da questão na nova conflituosidade.

4 FATORES DE SUCESSO E INSUCESSO

Esta parte do relatório apresenta uma primeira consolidação dos fatores de sucesso e insucesso, até o momento, identificados pela pesquisa do Ipea. Trata-se de uma síntese das inferências de todos os componentes da equipe. As considerações que se seguem são ordenadas segundo o seu caráter – do geral para o específico.14

4.1 Fatores de sucesso1) O maior fator de sucesso dos assentamentos não está nas instituições públicas, nas políticas

e nos programas, mas na insistência dos assentados. É a disposição de continuar que faz as coisas acontecerem. Aqui a formação política e a experiência de acampado são fundamentais.

2) A atual gestão do Incra São Paulo veste a camisa da reforma agrária. Não há nenhuma dúvida da capacidade deste grupo de implementar o projeto em que acredita e de brigar por ele em todas as instâncias político-administrativas.

3) A origem da maior parte dos técnicos de campo, filhos de assentados que passaram pela experiência de ser acampado, despejado e assentado tem uma força simbólica muito grande. Isto transforma a atuação técnica em uma atividade política por excelência.

4) O aprofundamento e a aceleração das políticas existentes, ainda que seus instrumen-tos sejam falhos e insuficientes, têm gerado efeitos positivos do ponto de vista do desenvolvimento social e econômico dos assentamentos, além de reduzir o índice de evasão. Segundo informações do Incra, este índice varia entre 20% e 30% para o país, ao passo que em São Paulo está em torno de 8%.

5) Ações de “radicalização” de políticas públicas: melhorar a eficácia do Estado na reali-zação das ações de política agrária – agilização e tempestividade –, sobretudo com relação aos créditos iniciais; permitir o desenvolvimento de projetos produtivos e condições de moradia dignas; evitar evasões.

6) Experiências como o PAA e o Merenda Escolar são um alento no deserto da política agrária. Estimulam a organização coletiva, não endividam, induzem a melhoria dos cultivos e garantem segurança e renda monetária. Estas ações testemunham a impor-tância das políticas que garantem a comercialização.

7) A saída do governo do estado de São Paulo – ITESP – dos assentamentos é fator positivo para o sucesso dos assentamentos, por reduzir a inconsistência da ação do Estado.

14. Essa consolidação tem caráter preliminar. O material colhido em campo ainda será objeto de estudo.

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90 Relatório de Pesquisa

8) O combate do Incra às “integrações” do agronegócio com os assentamentos explicita a impossibilidade de justapor os dois modelos e resgata a independência dos assen-tados; esta questão precisa ser mais bem investigada em relação à atuação Incra/FERAESP frente às usinas.

9) A criação de assentamentos contíguos no Oeste paulista significa para a SR-8 uma ten-tativa de constituir no local uma “área reformada”. Ressalte-se que a contiguidade au-menta a capacidade de resistência dos assentamentos, todavia, por si só, não garante que o objetivo seja atingido.

10) A interiorização de escritórios do Incra nos assentamentos implica: i) maior presença do Estado nos assentamentos; ii) ações de extensão, regularização documental, resolução de conflitos; iii) orientação na elaboração e implementação de projetos junto aos assentados; iv) incentivo à organização; v) orientação e agilização no atendimento de ações do governo; e vi) orientação técnica de qualidade. O Incra funciona como catalisador das atividades de outros agentes públicos envolvidos na implantação da política agrária – mais eficácia. O caso da Unidade Avançada de Andradina é exem-plo destas implicações, apesar das dificuldades e da vulnerabilidade da iniciativa – ver fatores de insucesso.

11) Três etapas da política têm-se mostrado fundamentais: a etapa de fixação das famílias na terra e demarcação dos lotes; a etapa de liberação dos créditos, em especial os dois primeiros fomentos e o fomento para habitação; e o processo de inclusão dos assentados em políticas públicas de aquisição da produção, como o PAA e Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).

12) Os fomentos iniciais praticamente se esgotam no processo de demarcação e cercamento dos lotes – que custa algo em torno de R$ 4 mil para uma área de 10 ha – e de aquisição dos primeiros bens, instrumentos ou insumos para a produção. Além disso, muitas famílias, em virtude da deficiência da política, são obrigadas a gastar os fomentos na abertura de poços ou cacimbas e no processo de correção da acidez do solo.

13) A inclusão dos assentados em políticas de aquisição pública da produção tem efeito estruturante do ponto de vista do planejamento da exploração, da preocupação com os métodos de produção – em virtude dos padrões de qualidade exigidos –, e, além disso, da participação de outros membros da unidade familiar, sobretudo os filhos, na divisão de tarefas do lote. É importante que a renda gerada por estes programas rivalize, em termos de custo de oportunidade, com a renda que possa ser obtida por meio de um emprego formal na cidade (isto é, ao menos 1 salário mínimo), o que ainda não acontece. No entanto, a estruturação produtiva dos lotes – com a diversificação da produção que ela envolve – permite ao agricultor ampliar suas alternativas de comercialização. Neste quesito, as feiras de assentados apresentam-se como uma importante solução. Além delas, podem ser pensadas estratégias de intermediação do Incra junto a redes locais de supermercados, uma vez que alguns assentados já recorrem, com sucesso, a esta via de comercialização.

14) O Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar – especialmente o instru-mento Compra e Doação Simultânea, Lei da Merenda Escolar e Formação de Estoques –, leva à diversificação da produção, melhoria de preços, incremento da renda e organização dos assentados em associações e cooperativas. Este instrumento é exemplo de mais intera-ção entre agentes públicos provocada pela ação do Incra junto à CONAB.

15) O crédito, quando tempestivo e bem orientado, é fator relevante para a diversificação da produção e o desenvolvimento do assentamento.

16) A SR-8 concretizou medidas para resolver situações de inadimplência, detectadas na pesquisa de 2006.

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91Avaliação da Situação de Assentamentos da Reforma Agrária no Estado de São Paulo

17) Feiras – durante a pesquisa foram observadas algumas feiras de produtos da reforma agrária. Trata-se de iniciativa efetiva para: diversificação da produção; incremento de renda; incentivo à atividade de comercialização.

18) O acesso à água, onde existe.

19) Acesso à energia elétrica.

20) A política de reforma agrária tem revelado uma dimensão secundária que é – do ponto de vista da permanência dos assentados na terra – extraordinariamente exitosa: a política habitacional. A despeito das complicações burocráticas que envolvem a compra dos materiais de construção e o trânsito de notas e recibos fiscais – um ponto que me-rece atenção especial do grupo encarregado de elaborar as normativas do Incra –, o fomento destinado à construção das casas, quando liberado tempestivamente, ajuda a enraizar a família no lote; é, de fato, preciso que as famílias o recebam logo após a entrada na terra. Uma vez construída, a casa torna-se patrimônio da família, e esta, confrontada com a possibilidade de abandonar a terra para abrigar-se em uma mo-radia precária na periferia da cidade, não hesitará em permanecer no assentamento, ainda que seja apenas em função da qualidade da moradia.

21) Outro grande benefício que pode advir da participação dos agricultores nos programas públicos de aquisição de alimentos diz respeito à sua auto-organização coletiva. Trata-se de uma exigência, por exemplo, da modalidade “compra e doação simultânea” do PAA, mas também da necessidade, colocada pelo PNAE, de garantir fornecimento contínuo e regular – e em quantidade suficiente – de alimentos aos estudantes da rede pública. É importante frisar que os benefícios trazidos pela auto-organização dos assentados transcendem aos ganhos econômicos.

22) Além de promover uma união e uma coesão social mais forte nos assentamentos – essencial para o êxito do PA – a auto-organização é fundamental para a obtenção de ganhos polí-ticos que dependam da capacidade de mobilização dos assentados: ocupações de agências bancárias – em virtude da não liberação dos créditos do PRONAF – , de prefeituras e secretarias – em virtude da falta de prestação de serviços públicos, como o transporte escolar –, das sedes e dos escritórios do Incra são alguns dos recursos utilizados pelos assentados para fazer valer os seus direitos. Ademais, a experiência anterior de luta pela terra e o desafio de reconstruir a vida nos assentamentos conferem aos assentados uma cultura política valiosa, do ponto de vista do reconhecimento dos seus direitos, dos canais de reivindicação e das estratégias de luta.

23) O sentido de auto-organização deve transcender o momento de luta pela terra e se enrai-zar na realidade dos assentamentos. Embora ainda recentes, as cooperativas constru-ídas sobre as bases do movimento social têm mostrado que esta transição é possível e benéfica. Após a posse na terra, a pauta de reivindicações se modifica, mas a pre-servação da ação coletiva e a construção de instrumentos de articulação entre vários PAs podem ser muito úteis à promoção do progresso social e do desenvolvimento econômico dos assentamentos.

24) Outro ponto de grande relevância para o sucesso dos assentamentos diz respeito à presta-ção local de serviços públicos de educação e saúde.

25) É importante observar a tendência de fechamento das escolas rurais, com transferência de alunos para escolas urbanas. Com isso, a prefeitura substitui a manutenção da escola no campo pela prestação de serviço de transporte aos alunos. Isto acarreta os seguintes efeitos: os alunos são obrigados a acordar cedo e a percorrer, às escuras, grandes distâncias até o ponto de passagem da condução; perde-se a oportunidade de trabalhar um currículo escolar que valorize a realidade social dos alunos assenta-dos, retirados do seu ambiente. O melhor seria conciliar, a certa altura do processo

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92 Relatório de Pesquisa

de aprendizado, a frequência dos alunos a escolas urbanas e rurais: isto é, alunos da cidade poderiam, em certos meses, assistir a aulas nas escolas rurais, e vice-versa. É fundamental que se planeje, em parceria com os movimentos e as entidades repre-sentativas dos assentados, a distribuição das escolas rurais, de modo a evitar que se criem duas unidades muito próximas umas das outras e se disputem mutuamente os alunos da região. A despeito dos problemas que ainda persistem – esvaziamento das escolas rurais, turmas multisseriadas e unidocentes –, cumpre reconhecer que o índice de matrícula e de frequência dos estudantes assentados é altíssimo, seguindo os atuais padrões nacionais.

26) Muitos assentamentos contam com atendimento de saúde em postos locais, algumas vezes por semana; outros relatam receber a visita dos médicos do Programa Saúde da Família (PSF), a intervalos de vinte a trinta dias; e em todos os assentamentos visitados foram ouvidos relatos de atendimento de urgência prestados pelas ambulâncias do Seviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu); mas a rede de saúde dos assentamentos está longe de ser compatível com a demanda. Muitos assentados reclamam dos longos in-tervalos entre os atendimentos e dizem que, nas situações mais sérias, são obrigados a se deslocar, de maneira precária, até as cidades. Seria importante pensar em uma política de saúde que, para assentamentos que reúnem grande número de famílias – a partir de cem pessoas, por exemplo –, providenciasse a instalação de unidades de saúde perma-nente, com plantonista e aparelhagem básica.

27) O acesso a serviços de saúde e educação constitui estímulo à permanência dos assentados na terra.

28) A prestação de serviço de Ater constitui outro fator de sucesso dos assentamentos. É importan-te assinalar que o trabalho dos técnicos de campo do Incra não se resume apenas à indi-cação técnica de estratégias produtivas, mas envolve, especialmente, a garantia de acesso a direitos, por exemplo, à moradia, à documentação, à aposentadoria e outras questões. Isto significa que a reforma agrária, para além da sua dimensão socioeconômica, promo-ve, antes disso, a cidadania. É esta a primeira mudança positiva vivida pelos assentados: de sem-terra a cidadãos.

29) Fatores de insucesso.

30) A burocratização da política pública dirigida à reforma agrária, de rigidez excessiva, incomparável com o que se vê com as políticas agrícolas aplicadas nas cercas vizinhas.

31) A ausência de estrutura pública capaz de dar o suporte necessário aos enfrentamentos cotidianos obriga o Incra a alargar o braço do Estado mediante a proliferação de vínculos precários. Isto ameaça todos os avanços conseguidos com um pessoal de campo real-mente comprometido com a reforma agrária.

32) Ausência de pacto (“pactuação”) federativo entre Estado e União quanto aos rumos das políticas agrárias e agrícolas aplicadas nos territórios. Políticas aparentemente con-traditórias se sintonizam em pelo menos um aspecto: o Estado brasileiro acena para a promoção da agricultura familiar no país por meio da inserção subordinada numa estrutura de poder no campo.

33) Por vezes, o Estado simplesmente omite conscientemente o seu poder disciplinador, per-mitindo que o capital exerça economicamente a sua “capacidade de convencimento”. Resta apenas a oposição dos movimentos sociais.

34) Criminalização dos movimentos sociais e utilização da máquina do Estado para deslegitimar a reforma agrária e seus defensores diante da sociedade – caso emblemático de Iaras.

35) Fracionamento fratricida dos movimentos sociais, que às vezes leva a uma disputa irra-cional por espaço e enfraquece o embate contra o agronegócio.

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93Avaliação da Situação de Assentamentos da Reforma Agrária no Estado de São Paulo

36) Perda de legitimidade dos movimentos organizados nos assentamentos de reforma agrá-ria. As estruturas verticais das organizações, as modificações materiais das condições de vida, os novos desafios dos assentados e, sobretudo, o viés individualizante dos desenhos dos programas direcionados aos assentamentos contribuem para o afasta-mento paulatino dos assentados da luta política.

37) As estruturas de governo estão fracionadas no que diz respeito à política de reforma agrária. O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e o Ministério do Desenvolvimento agrário (MDA) expressam a contradição existente no governo. Por sua vez, o MDA marginaliza o Incra, que marginaliza as superintendências, as quais vivem se chocando com os movimentos sociais na base. Porém, isto é apenas o sintoma de uma política de governo que relegou a reforma agrária aos porões da administração pública. Trata-se de uma pequena política, no sentido de Gramsci.15 Outras esferas, consideradas prioritárias, têm os seus dirigentes escolhidos de for-ma verticalizada pela cúpula do governo.

38) Não há, conjugados com o já exíguo acesso à terra, políticas ou programas que garantam o acesso aos recursos naturais, principalmente à água.

39) As instituições públicas legitimadas para atuar localmente são presentes quando se trata de regular e fiscalizar a agricultura comercial. Neste aspecto, não se pode deixar de consi-derar que a reforma agrária perdeu espaço na sociedade, principalmente depois do gover-no Lula, em que as disputas e os conflitos político-ideológicos foram abandonados em prol de uma política de conciliação de classes que deu como resultado óbvio o rebaixamento programático dos grupos de esquerda no país.

40) Ausência de projeto de assentamento que compreenda, de maneira adequada, as limi-tações e necessidades dos assentados idosos e dos solteiros. A mera destinação de lotes menores foi uma falsa solução.

41) Migração da juventude. A ausência de perspectiva futura, a falta de acesso a deter-minados bens e serviços e a necessidade de deslocar-se para as zonas urbanas para garantir um curso técnico ou de nível superior induz às migrações sem retorno. Isto compromete a reprodução do modelo para as gerações futuras.

42) Ainda que se considere este um problema marginal no estado atual das coisas, existem problemas na execução da política de assentamentos. Embora se saiba que toda política é um processo que exige criatividade e um aprendizado que só se adquire fazendo, o Incra, às vezes, exagera no experimentalismo, tornando mais difíceis as condições de desenvolvimento de alguns projetos. A indução à minifundização pareceu à equipe, ao menos em parte, fruto deste modus operandi. Isto é preocupante, na medida em que se trata com vidas cansadas.

43) O agronegócio talvez seja o fator mais importante para o insucesso dos assentamentos, pois o cerco da monocultura está sufocando as possibilidades de implementação de um novo modelo de produção nos campos paulistas. Ao mesmo tempo, o pesquisador teve nítida sensação de que a população local não levanta grandes objeções às transformações na estrutura agrária e no meio ambiente local. Em todos os dias em que comprou ou leu algum jornal impresso ou assistiu a noticiários locais, não conseguiu observar uma única matéria dando conta dos reflexos deste processo na vida das pessoas. Registre-se que o autor esteve em São Paulo num período de seca severa, e que as queimadas nos canaviais eram tão sufocantes que nem um simples almoço podia ser degustado sem a companhia de alguns resquícios de fuligem passarinhando pelo ar.

15. Ver Oliveira (2011).

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94 Relatório de Pesquisa

44) O atraso na implementação de ações – evidência da pesquisa de campo: grande atraso quanto ao abastecimento de água – impede o desenvolvimento econômico dos assen-tados, precariza condições de moradia e aumenta evasões.

45) Ausência ou má qualidade do serviço de Ater: projetos mal orientados e inadimplência, que inviabilizam novos créditos e, por consequência, a realização de novos projetos; emperra-se o desenvolvimento dos assentados; o pessoal de Ater com contratação precária; mudança frequente de técnicos nos assentamentos; variação frequente do número de técnicos por assentamento.

46) Conflitos entre órgãos públicos envolvidos no processo de assentamento – um caso referencial é o processo de implantação do TAC: Incra versus Ministério Público em Ribeirão Preto. O conflito ultrapassa a área do poder público e inclui as organizações dos trabalhadores. Estas disputas atrasam/paralisam a concretização das ações, sobretudo as de infraestru-tura – no caso em questão, o abastecimento de água aos assentados. Há outros conflitos.

47) Tamanho diminuto dos lotes: diminuição dos lotes – sem critério técnico convincente –, motivada pelo objetivo de assentar maior número de famílias. Na grande maioria dos assentamentos, o tamanho dos lotes é menor que o módulo fiscal do município, sobretudo nos PDS emergenciais; incentiva-se a horticultura, nestes casos, mas não se fornecem meio de irrigação; incentiva-se/impõe-se a agroecologia, mas o assenta-mento é rodeado pela monocultura da cana, cujas práticas culturais contaminam a produção dos assentados com agrotóxicos, maturadores etc.

48) Durante a pesquisa de campo, realizada em período de estiagem, ficou evidente que um importantíssimo fator de insucesso dos assentamentos é a falta de acesso à água, espe-cialmente para a produção. O Incra tem conseguido perfurar poços semiartesianos em alguns PAs – sem conseguir fazer o mesmo em outros, seja por escassez de recursos, seja pelas dificuldades de obter licenciamento ambiental –, mas o número de poços é relativamente pequeno ao número de famílias que devem ser atendidas – um poço para cada vinte ou 25 famílias, quando o ideal seria um poço para cada cinco ou dez famílias –, e, haja vista a distância dos lotes, os custos de instalação da rede de distribuição acabam por onerar demais os projetos. Seria absolutamente necessário criar um programa para garantir, pelo menos, 1 ha irrigado por lote. Não se pode exigir que os assentados se estruturem de maneira produtiva, a fim de fazer frente às demandas do PAA e do Merenda Escolar, e, ao mesmo tempo, cercear o seu acesso à água para irrigação. Em alguns assentamentos, este problema tem sido resolvido por iniciativa isolada de grupos de assentados, que se cotizam para arcar com os custos de instalação de uma rede de distribuição – em geral, por mangueiras e canos, à super-fície. Sobre este assunto, o caso da Fazenda da Barra, em Ribeirão Preto, é bastante ilustrativo – ver suplemento com reportagem.

49) Outro problema importante, cuja solução mereceria a criação de um programa espe-cífico, é a qualidade do solo. Muitos assentados reclamam da qualidade da terra e do fato de terem de arcar com as despesas necessárias à sua correção. Programas amplos de correção do solo, com distribuição de calcário aos assentados, já foram tentados, mas com pouco sucesso. Esta deveria ser uma linha de ação permanente do Incra.

50) A relação com os aparelhos e representantes do Estado é ponto-chave para o sucesso ou o insucesso dos assentamentos. Quando esta relação é boa, há empenho de prefeitos e secretários em fazer chegar as políticas públicas aos assentados, contando com a in-termediação do Incra. Os casos em que esta relação é ruim dizem respeito, sobretudo, à atuação de órgãos estaduais ou federais, especialmente ligados ao meio ambiente. Os assentados reportam que a fiscalização sobre eles é mais rigorosa que sobre os fa-zendeiros da região; além disso, os recorrentes atrasos na liberação de licenciamento ambiental impedem a abertura de estradas e a instalação das redes elétricas e de água.

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95Avaliação da Situação de Assentamentos da Reforma Agrária no Estado de São Paulo

51) Um ponto fundamental, que pode gerar o insucesso de um PA, é sua proximidade com grandes áreas de exploração do agronegócio e a falta de regulação deste último. Esta pro-ximidade acarreta prejuízos diretos à produção dos assentados, com a disseminação de pragas (como as que derivam da vinhaça da cana – caso das moscas que afetam o gado) e com a pulverização aérea de agrotóxicos – como os antimaturadores, usados para reter a sacarose da cana, que afetam o crescimento de outras espécies vegetais e frutíferas. Além disso, a vizinhança com o agronegócio acarreta amiúde uma pressão fundiária sobre o PAs, que resulta, não raro, em arrendamentos de lote – em preju-ízo do assentado –, e na subordinação dos assentados à atividade do agronegócio. A regulação do agronegócio deveria levar em consideração a distribuição geográfica dos assentamentos. A iniciativa do Incra de instalar PAs contíguos, abarcando gran-des áreas, como em Andradina e Castilho, por exemplo, tem-se mostrado bastante exitosa como estratégia de resistência à pressão fundiária exercida pelo agronegócio. Outras providências, como ações judiciais por reparação de danos e ressarcimento de prejuízos causados pela atividade do agronegócio sobre os assentamentos, poderiam ser estudadas pela procuradoria do Incra.

52) A rotatividade dos técnicos de Ater e a precarização do quadro funcional como um todo constituem dois fatores de insucesso dos assentamentos. Em alguns PAs, houve seis mudanças de técnicos em seis meses. Isto compromete a continuidade da política, em sentido amplo, e a relação dos assentados com o Incra em sentido estrito. Seria importante que o Incra nacional adotasse mecanismos mais eficientes de recomposi-ção dos quadros técnicos, seja por meio da promoção de concursos com salários mais atraentes – o que é preferível –, seja por meio de estabelecimentos de contratos mais longos com as entidades prestadoras de serviço de Ater.

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96 Relatório de Pesquisa

SUPLEMENTO

Quinta, 29 de julho de 2010 - 20h59 Assentamento depende de caminhão-pipa para ter água

Adriana Matiuzo

Sem infraestrutura, moradores recebem menos da metade do abastecimento de água pedi-do pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

As 268 famílias assentadas na Fazenda da Barra, na zona Leste de Ribeirão Preto, sofrem com o abastecimento precário de água, feito atualmente por um caminhão-pipa e por apenas um poço artesiano. Em média, cada assentado tem recebido 16,66 litros de água ao dia, me-tade dos 40 litros diários preconizados por indivíduo pela OMS.

Segundo o diretor regional do Movimento dos Sem Terra (MST), Vitor Donizeti Ribeiro, de 54 anos, o único poço do assentamento produz pouca água e, ainda assim, es-taria contaminado. Já o caminhão-pipa, que pertence ao Departamento de Água Esgoto de Ribeirão de Preto (DAERP), tem capacidade para apenas seis mil litros de água e abastece reservatórios colocados na frente das casas pelas famílias.

“O caminhão demora até 30 dias para retornar a cada casa”, disse Ribeiro.

A assentada Laurene Almeida da Silva, 44, estava ontem com duas caixas d’água e alguns tambores praticamente vazios, na porta da casa dela. Ela afirmou que o caminhão-pipa passou pelo local há 18 dias. Ela diz que, no desespero, chega às vezes a comprar água na cidade, mas que já passou por situações difíceis, como a de comer arroz meio duro por falta de água para cozinhar. “Também vivo com o cabelo preso, de boné, para evitar ao máximo de sujar com essa poeira toda. Porque não dá pra lavar sempre.”

Os assentados também reclamam que o projeto do assentamento é completamente prejudicado pela falta d’água. Sem água nem para beber e tomar banho, eles não podem investir na produção de alimentos, nem construir residências.

Carmem Aparecida dos Santos, 53, ainda vive em um barraco e diz que não pode construir uma casa de alvenaria porque não tem água suficiente para isto. De acordo com ela, o problema causa um efeito dominó. Sem poder produzir, os assentados perdem o principal meio de sobrevivência.

“A gente tem vários projetos. Pensamos em fazer uma granja, em plantar uma horta medi-cinal, mas, sem água, não dá”, disse Carmem.

DAEE e Incra

O diretor regional do Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE), Carlos Alencastre, disse que aguarda pedido do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para fazer um projeto de perfuração de poços de abastecimento. Um segundo projeto poderá ser feito para captar água do rio Pardo para a irrigação. O promotor Marcelo Goulart disse que um acordo para tanto está em negociação. O Incra foi procurado, mas não se pronunciou sobre o assunto.

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97Avaliação da Situação de Assentamentos da Reforma Agrária no Estado de São Paulo

RELATÓRIO II

PESQUISA IPEA – AVALIAÇÃO DA SITUAÇÃO DE ASSENTAMENTOS DA REFORMA AGRÁRIA: FATORES DE SUCESSO OU INSUCESSO(versão preliminar)

José Juliano de Carvalho Filho

1. COMPARAÇÃO DE SITUAÇÕES: PESQUISA DE 2006 VERSUS PESQUISA DE 2010

1.1 Objetivos das pesquisas, dos procedimentos, dos contatos e das viagens

1.2 Evidências por tópico de política

1.2.1 Reestruturação do Incra no interior do estado

Aspectos positivos: (1) Pesquisa de 2006

Críticas: (1) Pesquisa de 2006

1.2.2 A visão do público quanto à presença do Incra

(1) Pesquisa de 2006

(2) Pesquisa de 2010

1.2.3 Ações de obtenção

(1) Pesquisa de 2006

(2) Pesquisa de 2010

1.2.4 Investimentos em infraestrutura

(1) Pesquisa de 2006

(2) Pesquisa de 2010

1.2.5 Agroindústria

(1) Pesquisa de 2006

(2) Pesquisa de 2010

1.2.6 Ates

(1) Pesquisa de 2006

(2) Pesquisa de 2010

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98 Relatório de Pesquisa

1.2.7 Fomento e habitação

(1) Pesquisa de 2006

(2) Pesquisa de 2010

1.2.8 Renegociação do Procera, dos créditos do PRONAF e acesso a novos financiamentos

(1) Pesquisa de 2006

(2) Pesquisa de 2010

1.2.9 Programa de Compras da Agricultura Familiar

(1) Pesquisa de 2006

(2) Pesquisa de 2010

1.2.10 Ações “estruturantes” para consolidação de projetos produtivos (água, equipamentos comunitários, calcário etc.)

(1) Pesquisa de 2006

(2) Pesquisa de 2010

1.2.11 Projetos ambientais

(1) Pesquisa de 2006

(2) Pesquisa de 2010

1.2.12 Educação

(1) Pesquisa de 2006

(2) Pesquisa de 2010 (educação e saúde)

1.2.13 Ações de reforço e apoio ao desenvolvimento dos assentados

(1) Pesquisa de 2006

(2) Pesquisa de 2010

1.2.14 Papel de outras entidades

(1) Pesquisa de 2006

(2) Pesquisa de 2010

1.3 Pesquisas de 2006 e 2010: conclusões gerais

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99Avaliação da Situação de Assentamentos da Reforma Agrária no Estado de São Paulo

2. FATORES DE SUCESSO E INSUCESSO

2.1 Fatores de sucesso 1) O maior fator de sucesso dos assentamentos não está nas instituições públicas, nas

políticas e nos programas, mas na insistência dos assentados.

2) A atual gestão do Incra de São Paulo “veste a camisa” da reforma agrária.

3) A origem da maior parte dos técnicos de campo é de filhos de assentados.

4) O aprofundamento e a aceleração das políticas existentes.

5) Ações de “radicalização” de políticas públicas: experiências como o PAA e a Merenda Escolar são um alento no deserto da política agrária.

6) A saída do governo do estado de São Paulo – ITESP – dos assentamentos.

7) O combate do Incra às “integrações” do agronegócio; a criação de assentamentos contíguos no Oeste paulista.

8) A interiorização de escritórios do Incra nos assentamentos.

9) Três etapas da política têm-se mostrado fundamentais: as etapas de fixação das famí-lias na terra e de demarcação dos lotes, e a etapa de liberação dos créditos.

10) Os fomentos iniciais praticamente se esgotam no processo de demarcação e de cer-camento dos lotes.

11) A inclusão dos assentados em políticas de aquisição pública da produção tem efeito estruturante do ponto de vista do planejamento da exploração.

12) Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).

13) O crédito.

14) A SR-8 concretizou medidas para resolver situações de inadimplência.

15) Feiras.

16) O acesso à água.

17) Acesso à energia elétrica.

18) A política de reforma agrária tem revelado uma dimensão secundária que é – do ponto de vista da permanência dos assentados na terra – extraordinariamente exitosa: a política habitacional.

19) Outro grande benefício que pode advir da participação dos agricultores nos progra-mas públicos de aquisição de alimentos diz respeito à sua auto-organização coletiva.

20) Além de promover uma união e uma coesão social mais forte nos assentamentos – essencial para o êxito do PA – a auto-organização é fundamental para a obtenção de ganhos políticos que dependam da capacidade de mobilização dos assentados.

21) O sentido de auto-organização deve transcender o momento de luta pela terra e se enraizar na realidade dos assentamentos.

22) Outro ponto de grande relevância para o sucesso dos assentamentos diz respeito à prestação local de serviços públicos de educação e saúde.

23) É importante observar a tendência de fechamento das escolas rurais, com transferência de alunos para escolas urbanas.

24) Muitos assentamentos contam com atendimento de saúde em postos locais.

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100 Relatório de Pesquisa

25) O acesso a serviços de saúde e educação constitui estímulo à permanência dos assentados na terra.

26) A prestação de serviço de Ater constitui outro fator de sucesso dos assentamentos.

2.2 Fatores de insucesso 1) Burocratização da política pública dirigida à reforma agrária.

2) Ausência de estrutura pública capaz de dar o suporte necessário aos enfrenta-mentos cotidianos.

3) Ausência de pacto (“pactuação”) federativo entre Estado e União.

4) O Estado simplesmente omite, de forma consciente, o seu poder disciplinador.

5) Criminalização dos movimentos sociais e utilização da máquina do Estado para deslegitimar a reforma agrária.

6) Fracionamento fratricida dos movimentos sociais.

7) Perda de legitimidade dos movimentos organizados nos assentamentos de reforma agrária.

8) As estruturas de governo estão fracionadas no que diz respeito à política de reforma agrária. O Mapa e MDA expressam a contradição existente no governo.

9) Não há, conjugados com o já exíguo acesso à terra, políticas ou programas que garantam o acesso aos recursos naturais.

10) As instituições públicas legitimadas para atuar localmente são presentes quando se trata de regular e fiscalizar a agricultura comercial. Neste aspecto, não se pode deixar de considerar que a reforma agrária perdeu espaço na sociedade, principalmente de-pois do governo Lula.

11) Ausência de projeto de assentamento que compreenda de maneira adequada as limi-tações e necessidades dos assentados idosos e dos solteiros.

12) Migração da juventude.

13) Ainda que se considere este um problema marginal no estado atual das coisas, existem problemas na execução da política de assentamentos.

14) O agronegócio talvez seja o fator mais importante para o insucesso dos assentamentos; o cerco da monocultura está sufocando as possibilidades de implementação de um novo modelo de produção nos campos paulistas.

15) Atraso na implementação de ações.

16) Ausência ou má qualidade do serviço de Ater.

17) Conflitos entre órgãos públicos envolvidos no processo de assentamento.

18) Tamanho diminuto dos lotes: diminuição dos lotes.

19) Outro problema importante, cuja solução mereceria a criação de um programa específico, é a qualidade do solo.

20) A relação com os aparelhos e representantes do Estado é ponto-chave para o sucesso ou o insucesso dos assentamentos.

21) Um ponto fundamental, que pode gerar o insucesso de um programa de assentamento, é sua proximidade com grandes áreas de exploração do agronegócio e a falta de regulação deste último.

22) A rotatividade dos técnicos de Ater e a precarização do quadro funcional como um todo constituem dois fatores de insucesso dos assentamentos.

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101Avaliação da Situação de Assentamentos da Reforma Agrária no Estado de São Paulo

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102 Relatório de Pesquisa

APÊNDICE B

RELATÓRIO DA PESQUISA DE CAMPO FATORES DE SUCESSO E INSUCESSO NOS ASSENTAMENTOS RURAIS NO ESTADO DE SÃO PAULO

Antonio Teixeira Lima Júnior

1 INTRODUÇÃO

Entre os dias 18 e 27 de fevereiro, a equipe se dirigiu ao estado de São Paulo numa primei-ra fase da pesquisa de campo que pretende, até o presente momento, avaliar os fatores de sucesso e insucesso dos assentamentos rurais. Foram visitados ao todo seis assentamentos: Zumbi dos Palmares (Iaras), Horto Aymorés (Bauru/Pederneiras), Reunidas, Dandara, São Francisco II e Simon Bolívar (Promissão e região). Foram entrevistados doze assentados, oito técnicos de campo, três coordenadores dos escritórios regionais, uma secretária muni-cipal de meio ambiente, um gerente do Banco do Brasil e três lideranças dos assentamen-tos, além de haver sido realizada reunião com a Superintendência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Não foi possível obter informações uniformes sobre os assentamentos das regiões visitadas em virtude da organização heterogênea dos escritórios regionais, do número variável de técnicos disponíveis e da ausência de dados sobre alguns assentamentos, especialmente os mais antigos.

2 O ESTADO DESMONTADO E A ASSISTÊNCIA TÉCNICA

Oito anos de política de desmonte do Estado foram suficientes para desarticular todo o aparato executor da política de reforma agrária em São Paulo. De acordo com a superin-tendência, em 2003, o Incra-SP possuía apenas 70 funcionários e uma participação insig-nificante na execução da reforma agrária. Diante da enorme demanda que a reforma agrária agrega, o órgão estava sendo preparado silenciosamente para a extinção por esvaziamento e inanição.

Nos três escritórios regionais visitados, havia apenas um servidor concursado, ou seja, a po-lítica de reestruturação do Estado conduzida pelo atual governo ainda não chegou como deveria ao órgão responsável pela condução da política de reforma agrária. Isto fica ainda mais evidente quanto à necessidade de incremento do quadro de pessoal responsável pela assistência técnica.

A assistência técnica é prestada por pessoal terceirizado contratado por meio de convê-nio estabelecido entre o Incra-SP e a Fundação de Estudos e Pesquisas Agrícolas e Florestais (FEPAF), uma fundação de direito privado vinculada à Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Em todos os escritórios visitados, constataram-se as características comumente associadas à terceirização: relações de trabalho precárias, baixos salários, instabilidade quanto à continuação no emprego, ausência de condições para reali-zação do trabalho, jornadas extensas e desvios de função. Em um dos escritórios regionais, a estrutura do escritório era totalmente incompatível com a dinâmica de trabalho dos téc-nicos: não havia telefone, internet nem carros suficientes. Em entrevistas realizadas com os técnicos de campo, alguns alegaram haver pouca transparência na relação com a fundação.

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103Avaliação da Situação de Assentamentos da Reforma Agrária no Estado de São Paulo

A maior parte destes são filhos de assentados, com formação de nível técnico e superior. Isto garante um certo grau de comprometimento dos técnicos, mesmo diante da ausência de condições de trabalho e das relações laborais precárias.

Em alguns escritórios, constatou-se uma rotatividade considerável dos técnicos de cam-po, além da ocorrência recente de demissões sem reposição de pessoal. Isto aumenta o clima de instabilidade e insegurança, bem como desorganiza o processo de trabalho. Registre-se, contudo, que, a despeito das inadequadas condições de trabalho, em geral os assentados de-monstraram grande apreço pelo trabalho da equipe de campo, embora seja quase unânime a necessidade de incremento da assistência técnica. Ficou evidente ainda que nem sempre a prestação de serviços se traduzia em reconhecimento pelo tomador do serviço – o Incra. Ademais, a atividade cotidiana de assessoramento técnico tinha de passar por um grande obstáculo: a quantidade de tempo despendida com a realização de trabalhos burocráticos, problema alegado pelo pessoal de campo e reconhecido até mesmo pelos assentados.

3 A REFORMA AGRÁRIA E O CERCO DO AGRONEGÓCIO

A escolha de São Paulo como primeiro ponto de partida é estratégica, pois ela só não é a região mais industrializada e urbanizada do país como também o território em que os agro-combustíveis se alastram sobre o território, produzindo alterações políticas e econômicas que interferem nas condições de vida local.

São Paulo é uma síntese das políticas contraditórias do governo atual. Para os agro-combustíveis, não há limites para as porteiras e os recursos são abundantes; nos assenta-mentos, sobram dificuldades de implantação, problemas de infraestrutura, de acesso à água etc. Não foram poucos os relatos em que as propostas de arrendamento foram fornecidas por usinas bondosas, prometendo as maravilhas de um lote rico em produção sem a neces-sidade de trabalho. Com a atuação do Incra, contudo, as tentativas não prosperaram. Mas o problema permanece “morando ao lado”.

O deslocamento entre as cidades de Iaras, Pederneiras e Promissão revelou uma pai-sagem que se repetia com insistência em grandes extensões de terras: canavial-eucalipto-laranjal-pedágio-canavial-pedágio-eucalipto-canavial-pedágio-canavial... o “samba de uma nota” só do agronegócio paulista era entrecortado pela voz desafinada das praças de pedágio anunciando a “presença privada” do Estado enxuto.

Na cidade de Pederneiras, local onde se encontram 95% do Horto Aymorés, existem dois bairros inteiros habitados por cortadores de cana, normalmente imigrantes nordesti-nos. De acordo com a prefeitura, a monocultura tem trazido uma série de problemas am-bientais e riscos à saúde da população. O arrendamento das terras de posseiros e sitiantes no município tem incrementado o adensamento urbano. Por sua vez, entre os cortadores de cana, a prefeitura relatou a ocorrência de problemas como o alcoolismo e o consumo de drogas, “recurso” utilizado para suportar as condições degradantes de trabalho e as famige-radas metas de produção que precisam atingir.

Com exceção do Horto Aymorés, todos os assentamentos visitados tiveram alguma relação conflituosa com a atividade monocultora. Mesmo no Reunidas, assentamento mui-to bem desenvolvido, quatro assentados arrendaram suas terras para o plantio de cana. No assentamento São Francisco II, todos os 28 assentados receberam proposta de arrendamento pela usina que fica bem ao lado do assentamento. Esta mesma usina

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104 Relatório de Pesquisa

despejou os dejetos industriais de sua produção poluindo o poço e as nascentes de um rio que corta o assentamento, além de danificar com seus pesados caminhões a estrada de terra que a Companhia de Desenvolvimento Agrícola de São Paulo (CODASP) construiu, imprescindível para garantir a mobilidade dos assentados.

Até 2005, a cidade de Promissão era mais conhecida pela produção de leite, gado para corte e grãos. Agora, a cana domina 70% da produção agrícola do município. Na época da colheita ocorre um incremento populacional temporário: migrantes nordes-tinos se amontoam em casas alugadas na área urbana da cidade. Parte dos recursos gerados pela monocultura canavieira, portanto, são depositados na conta de especuladores imobili-ários, e o que sobra da superexploração, parte fica na cidade, parte migra para as cidades de origem dos trabalhadores. Por sua vez, ao assentamento a prefeitura reserva um tratamento hostil. Poucos dias antes da visita, os assentados protestavam contra a prefeitura, em razão do fechamento de escolas rurais e a alocação provisória em um ambiente inapropriado para a prática educacional. Por ironia, de acordo com o gerente do Banco do Brasil, nos últimos três anos foram investidos nos assentamentos Dandara e Reunidas pelo menos R$ 21 mi-lhões, recurso que fica na cidade e dinamiza a economia local.

4 OS GRANDES CONFLITOS INTERNOS

Iaras é uma pequena cidade cravada no Centro-Sul de São Paulo, cortada por poucas ruas e com uma pequena população que nem de longe lembra o estado superpopuloso em que se situa. Andando pelas ruas asfaltadas que não chegam às portas da sede do Incra, tem-se a im-pressão de que o local serve apenas como um abrigo de quatro casas de acolhimento do me-nor e uma penitenciária. A população de aproximadamente 6 mil habitantes, segundo dados do IBGE, vive de um incipiente comércio local, dos órgãos públicos existentes, de um posto de gasolina e de uma praça de pedágio – ele de novo. Tomando-se em consideração as cidades vizinhas, a simpática cidade de Iaras bem que poderia ser um distrito municipal. Porém, Iaras, com sua “desimportância” aparente, virou notícia de destaque no país, em fins de 2009.

Como se estivesse em uma operação de guerra, a polícia estadual organizou uma operação cinematográfica com a utilização de 180 policiais e a prisão de acampados e assentados ligados ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Todo o procedimento policial foi ilegal e desproporcional, com a utilização de táticas terroristas. Durante todo o período em que este pesquisador esteve no interior do estado, as TVs lo-cais reprisavam as imagens de três lideranças presas e algemadas, funcionando como uma espécie de condenação diária construída para dar exemplo.

O que surpreendeu nesta pesquisa, contudo, não foi tanto a atitude do governo estadual, mas um longo imbróglio que envolve equívocos na atuação passada do Incra, ins-trumentalização eleitoral do assentamento, cupulismo do movimento social, paternalismo da cooperativa local etc. O resultado disto não poderia ser pior: o naufrágio do desenvolvi-mento do assentamento abriu espaço para o surgimento de uma política local de cooptação da prefeitura, isolando politicamente o MST. Em suma, o caso coloca em evidência o velho dilema sobre a relação conflituosa entre Estado, movimentos sociais e assentados.

Problemas graves também foram detectados no Horto Aymorés, entre os municí-pios de Bauru e de Pederneiras. A transferência da administração da retirada da madeira para cooperativas e associações controladas por pequenos grupos de assentados resultou num evidente caso de desvio de recursos, criando um clima de guerra no assentamento.

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105Avaliação da Situação de Assentamentos da Reforma Agrária no Estado de São Paulo

O dinheiro da venda seria arrecadado pelas associações e cooperativas, que repassariam aos assentados em investimento na estruturação dos lotes e na produção. Porém, os as-sentados não receberam os recursos e as associações não prestaram contas do montante recebido e sua destinação.

Disso resultou uma alta desigualdade interna: enquanto alguns assentados vivem em bar-racos improvisados, outros possuem lotes com casa de alvenaria e carros zero km, mesmo sem produzir. O autor deste anexo tentou entrevistar os dirigentes da associação e da cooperativa envolvidos no episódio e foi hostilizado. Em entrevista, um assentado declarou que pagava cerca de R$ 80 por hora pelo uso de um trator de propriedade da associação que integra. O trator fica no lote do presidente da associação, que tem como tesoureira sua própria esposa. Ou seja, há um esquema de exploração de assentados por um grupo restrito de assentados.

O Incra vem tentando contornar o problema controlando diretamente a retirada da madeira em conjunto com os assentados, que decidem onde irão investir. Alguns optam pelo investimento na produção, outros investem na construção das casas. Muitos estão adquirindo estufas, animados com a perspectiva de comercialização de parte da produção pela Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) via Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).

Portanto, apesar da gravidade dos conflitos, há uma percepção generalizada nos assentamentos visitados de que o Incra tem sido um importante parceiro para impulsio-nar o desenvolvimento e a produção. O órgão tem sido encarado como a “presença do Estado” nos assentamentos.

5 OS ASSENTAMENTOS E OS PROCESSOS DESIGUAIS DE DESENVOLVIMENTO

A dinâmica de desenvolvimento dos assentamentos é complexa, na medida em que não resulta da aplicação mecânica de uma política pública, nem ocorre de forma linear e ho-mogênea no conjunto heterogêneo de beneficiários da reforma agrária. Em sua trajetória, o processo de desenvolvimento dos assentamentos é contraditório, pois a distribuição de patrimônio não elimina numa só canetada as desigualdades internas. As desigualdades, portanto, não são oriundas apenas das condições de acesso às políticas públicas, mas tam-bém da capacidade que os assentados possuem de trazer suas experiências passadas para a construção do presente, e das oportunidades pretéritas de cada história de vida. O acesso à educação, à saúde e as experiências passadas com o trabalho no campo, entre outros fatores, são relevantes ativos que influenciam o sucesso da política de reforma agrária.

As visitas e entrevistas mostraram que as dificuldades já inerentes ao início da implan-tação dos projetos tendem a se exacerbar para os assentados de origem urbana sem qualquer vínculo passado com a terra, e os idosos. Ficou, pois, ainda mais evidente a necessidade de uma política de educação rural, de fixação do homem no campo. Paradoxalmente, enquan-to em parte dos assentamentos novos a maioria dos beneficiários nunca tiveram contato com o trabalho agropecuário, as políticas de qualificação profissional financiadas com re-cursos públicos possuem um corte predominantemente urbano, formando um exército de mão de obra favelizada nas periferias das grandes cidades.

Além disso, em todos os assentamentos visitados os “para-rurais” eram os assentados que apresentavam a maior incidência de irregularidades. No assentamento Dandara, por exemplo, de 34 “para-rurais”, 21 venderam seus lotes. No Zumbi dos Palmares quase não

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106 Relatório de Pesquisa

há produção, sendo recorrentes os problemas de alcoolismo. Ou seja, apesar de os pro-blemas burocráticos atingirem a todos indistintamente, alguns assentados possuem uma altíssima capacidade de suplantar as adversidades e produzir. Em contrapartida, muitos assentados, em sua maioria de origem urbana, são extremamente dependentes de uma assistência técnica permanente.

Nos escritórios visitados, era comum a ideia de que, em geral, os assentamentos antigos apresentam mais problemas e entraves. De fato, é grande o contingente de assentados antigos endividados e sem acesso a crédito por mais de dez anos. Como alternativa de sobrevivência, muitos acabam vendendo sua força de trabalho nos latifúndios dedicados à monocultura. Contudo, há uma exceção que confirma a regra: nos hortos, a presença maciça de madeira en-carece e posterga a implantação de elementos infraestruturais básicos. O programa Luz para Todos, por exemplo, não conseguiu chegar a todas as glebas em virtude da grande quantidade de árvores que impedem o cabeamento dos fios de alta tensão.

A grande maioria dos assentamentos possuía problemas ambientais: reserva legal não averbada, sem cerca ou já devastada; rios poluídos; ausência de certificação am-biental. Em um dos assentamentos, foi relatado o loteamento de área de preservação permanente. A maioria, porém, preserva a área de reserva legal.

Em quase todos os escritórios regionais visitados, os técnicos, coordenadores e assen-tados foram unânimes em apontar a falta de água como uma das maiores dificuldades na vida dentro dos assentamentos, especialmente para consumo humano. Exceção seja feita apenas aos dois assentamentos da região de Promissão – Reunidas e Dandara. O assenta-mento Santo Antônio, no município de Piratininga, está sem água para consumo desde a sua implantação, nos idos de 2003.

Há experiências bastante positivas e alentadoras, contudo. Aregião de Promissão pos-sui experiências bem distintas das verificadas em Iaras e Bauru, com ao menos dois assenta-mentos em estágio avançado de desenvolvimento. Em quase todos os lotes visitados, havia mais de uma casa de alvenaria, produção diversificada e maquinário, além da presença de agrovilas com equipamentos comunitários, acesso à internet, energia etc. Com a comer-cialização da produção via cooperativas, os assentados conseguem auferir ganhos maiores e aumentam seu poder de barganha com os compradores. Aqui a ideia de que o assentamen-to é um princípio de constituição de um bairro agrícola ganha concretude, mostrando uma reforma agrária possível e viável.

Em apenas um local visitado, foi mencionada a questão da emancipação dos assen-tamentos, especialmente porque o envelhecimento dos assentados originários tem desper-tado a atenção para um importante problema contemporâneo no campo: a migração da juventude rural para os centros urbanos. Este fato põe em risco a reprodução social da experiência. Não há, contudo, posição tomada pelos assentados em defesa da emancipação, pois a grande maioria ainda prefere manter-se identificado enquanto assentado.

Em todos os assentamentos pesquisados, a CONAB era uma das mais importantes parceiras dos assentamentos, viabilizando a diversificação da produção. Registre-se, con-tudo, que todos os assentados da região de Promissão apresentaram ressalvas à atuação do órgão. Segundo eles, os preços pagos estavam defasados e o pagamento dos produtos fornecidos estava atrasado em até seis meses. Com isso, alguns assentados estavam optando pela venda aos atravessadores.

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107Avaliação da Situação de Assentamentos da Reforma Agrária no Estado de São Paulo

6 CONCLUSÃO

Na cruzada pelo interior paulista, este pesquisador entrou em contato muito mais com os conflitos dos assentamentos e a sua inserção local do que com a sua cotidianidade inter-na. Os conflitos identificados foram inúmeros e exaustivos: assentados versus assentados, movimentos sociais versus assentados, cooperativas e associações versus assentados, Incra versus cooperativas e assentados, assentamentos versus prefeitura, assentados versus técnicos de campo, técnicos de campo versus FEPAF/Incra, Incra versus usinas, movimentos sociais versus polícia estadual, governo estadual versus todos os citados anteriormente, exceto as usinas. As dificuldades da política de reforma agrária são evidentes e não há fórmulas pron-tas ou modelos acabados que consigam satisfazer o universo de envolvidos.

O tempo acelerado da produção das monoculturas convive com a sensação de que os anos passaram muito lentamente em alguns assentamentos. O endividamento de assenta-dos antigos, as condições impróprias para o cultivo nos terrenos alagados, a ausência de conhecimento de uma maioria de origem urbana e, principalmente, um longo período de ausência do Estado explicam por que assentamentos de mais de dez anos ainda possuem uma fraquíssima estrutura produtiva. Somente agora, com a presença maior do Incra e a atuação da CONAB, o Estado passa a se tornar uma referência em alguns locais.

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108 Relatório de Pesquisa

APÊNDICE C

RELATÓRIO DE EXPERIÊNCIA: VIAGEM A ASSENTAMENTOS RURAIS NO ESTADO DE SÃO PAULO

Alexandre Arbex Valadares([email protected])

Entre os dias 18 e 27 de fevereiro, o pesquisador visitou, em companhia dos técnicos de campo do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrágria (Incra), os seguintes assentamentos: Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Professor Luís de David Macedo, em Apiaí; 23 de Maio e Carlos Lamarca, em Itapetininga; Ipanema, em Iperó; PDS Comuna da Terra Milton Santos, em Americana; Elizabeth Teixeira, em Limeira; e PDS São Luís, em Cajamar. Fez ainda duas breves incursões a Pirituba, especificamente à sede da Copava (Agrovila III), e ao assentamento Sumaré, em Sumaré.

Não obstante as frequentes solicitações, nas entrevistas com os assentados e com téc-nicos do Incra, de informações relativas à produção dos lotes e à renda auferida pelas famí-lias, e, antes da viagem, tenha sido feito um levantamento de dados numéricos acerca dos assentamentos – número de famílias, área total, área média dos lotes etc. –, não se pretende, neste relatório, proceder a uma análise quantitativa das informações obtidas em campo nem tampouco traçar diagnósticos econômicos a partir delas. O pesquisador limitou-se, nesta etapa inicial, a colher depoimentos e relatos informais, sem a excessiva preocupação em conduzir interrogatórios ou extrair indicações rigorosamente precisas.

Trabalhando com uma base empírica insuficiente para dar a essas investigações um caráter amostral estatisticamente relevante – foram percorridos, em média, apenas quatro lotes por assentamento – e verificando, no decurso das visitas, que certas questões a que o pesquisador dera pouca ou nenhuma atenção em seus estudos preparatórios eram amiúde citadas, tanto nos diálogos com os técnicos de campo quanto com as famílias assentadas. Desse modo, este autor empenhou-se preferencialmente em fixar e compreender estes te-mas recorrentes, a fim de, noutra etapa, trabalhar mais detidamente sobre eles. Por esta razão, também não serão fornecidos, neste exercício, dados pessoais dos assentados entre-vistados, nem serão feitas alusões às suas histórias de vida; de resto, todas as sucintas bio-grafias relatadas por homens e mulheres, do penoso dia a dia nos acampamentos às longas marchas, convergem para a história de luta por terra e trabalho.

1. Chegando a São Paulo, na manhã do dia 18 de fevereiro, os pesquisadores foram condu-zidos do aeroporto à sede da Superintendência do Incra, onde encontraram, por volta de 9h, Oswaldo, Juca e, pouco depois, a professora Sônia. As conversações que dominaram a primeira metade do dia traçaram um panorama das mais importantes modificações estru-turais promovidas pela superintendência na política de assentamentos realizada no estado, e puseram os pesquisadores em contato com os obstáculos políticos e administrativos en-contrados neste processo.

Oswaldo assinalou de início que uma sucessão de impasses burocráticos, um emaranhado aracnídeo de exigências normativas e o problema da compartimentação das decisões nos ór-gãos executores comprometem frequentemente a tempestividade da política de reforma agrária.

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109Avaliação da Situação de Assentamentos da Reforma Agrária no Estado de São Paulo

A superintendência concentrou boa parte de seus esforços no ataque a este problema, buscando soluções políticas, no sentido prático do termo, para questões a que não era possível dar, opor-tunamente, encaminhamentos administrativos.

A preocupação com o tempo de execução da política decorre das próprias dificuldades inerentes ao trabalho de instalação das famílias assentadas e de fomento à produção: como as terras das áreas desapropriadas são, na maioria das vezes, desgastadas e erodidas, as fases subsequentes à criação do assentamento são marcadas pela necessidade de promover, via produção, a recuperação do solo, uma etapa que requer investimentos expressivos e per-manentes. A queda da evasão, de 20% para 4% em média, e a redução de cinco para dois anos no tempo de execução das políticas, considerando o percurso do assentado a partir da imissão na posse até o acesso ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF A), mostram que, no cômputo geral, o objetivo foi alcançado.

Em seguida, foram referidas algumas medidas, tomadas pela superintendência, que fizeram avançar as ações de assistência técnica e extensão rural nos assentamentos, como: a presença dos técnicos, em regime de plantão, uma vez por semana na sede dos assen-tamentos, e a criação de núcleos ou escritórios regionais para integrarem, com outras iniciativas, uma estratégia de acompanhamento mais intensiva no processo de desen-volvimento dos assentamentos e de captação de demandas dos assentados. Nas visitas, posteriormente, foi possível confirmar, a partir de conversas e observações de trato geral entre assentados e técnicos de campo, que a autarquia tem-se feito bastante presente nos assentamentos e é frequentemente identificada, de fato, como representante do Estado, isto é, como um órgão capaz de absorver solicitações e questionamentos que excedem por vezes sua atribuição institucional.

Segundo informação dada por Oswaldo, a organização dos processos de desapropriação, iniciada em 2003, e a retomada do trabalho de obtenção de terras permitiram ampliar para 110 o número de assentamentos em São Paulo e para 7 mil o contingente de famílias beneficiadas.

BOX 1

Aqui, há uma discrepância com dados do Sistema de Informações de Projetos da Reforma Agrária (Sipra). O Relatório Geral de 25 de fevereiro de 2010 aponta, para o estado de São Paulo:

Número de projetos: 244

Área total dos projetos: 321.028,5215 ha

Capacidade (número de famílias): 16.690

Número de famílias assentadas: 15.744

A radicalização dessa política contestou a opinião dominante segundo a qual o estado mais rico do país, polo agrícola de extraordinária prosperidade, disporia já de uma estru-tura fundiária cristalizada, insuscetível, portanto, a projetos de reforma agrária e de reor-denamento territorial: a SR-8 considerou que, longe de constituir exemplo de estabilidade em matéria fundiária, o estado de São Paulo é ainda marcado por conflitos de terra, que envolvem posseiros, ocupações ilegais de terras públicas federais por grandes empreendi-mentos agropecuários, grupos quilombolas e desapropriações litigiosas. Existe na região uma grande demanda potencial por terra, formada basicamente de desempregados das lavouras de cana e laranja; além disso, os assentamentos criados no estado encontram já uma infraestrutura consolidada de estradas, mercados etc. – a maior distância de um assen-tamento em relação a uma estrada asfaltada é de apenas 8 quilômetros –, o que lhes garante condições mais favoráveis à produção e à comercialização.

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110 Relatório de Pesquisa

A luta pela terra coincide com a luta pelo trabalho rural: é a perspectiva do desempre-go que impele os trabalhadores a lutarem pela terra. O público do assentamento, no en-tanto, é heterogêneo, abrangendo desde pessoas com grande experiência agrícola até outras com um histórico recente de vida predominantemente urbano, mas desejosas de voltar a viver no campo, apesar da origem rural remota, e com as quais é preciso fazer um trabalho específico de capacitação.

A política de reforma agrária não é exclusivamente produtivista: ela envolve a garantia de moradia, acesso à luz elétrica, à saúde (Programa Saúde da Família – PSF/Sistema Único de Saúde – SUS) e ao emprego. A título de comparação, o índice de desenvolvimento hu-mano (IDH) dos assentamentos de Ribeirão Preto é, segundo levantamento recente, maior que o IDH da periferia da cidade.

Oswaldo informou que, em recente pesquisa do governo de São Paulo, 90% dos prefeitos se declararam favoráveis à reforma agrária. Esta aprovação majoritária contraba-lança o forte preconceito ainda existente contra os assentados – preconceito que a campanha Orgulho de Ser Assentado busca mitigar –, e reflete os impactos socioeconômicos positivos que os assentamentos trazem aos municípios, no que diz respeito à diversificação do comér-cio e da produção. Por sua vez, Sônia observou que ainda está por se construir uma reflexão que proponha relação mais orgânica entre o Estatuto da Terra e o Estatuto da Cidade.

Oswaldo e Sônia advertiram que os assentamentos não podem ser tratados como prisões agrícolas, onde é estritamente proibido desempenhar outra atividade que não seja rural; eles devem, antes, transformar-se em verdadeiros bairros rurais, municiados de um conjunto de serviços compatível com esta condição. O aparecimento de pequenos comér-cios e a eventual presença de profissionais de ocupação não agrícola, como professores e agentes de saúde, ampliam muitas vezes, a despeito das alegações em contrário dos órgãos de controle – Controladoria Geral da União (CGU), por exemplo –, as formas de geração de renda e a oferta de serviços nos assentamentos, e, assim, colaboram para favorecer a permanência dos assentados na terra.

A ideia segundo a qual o assentamento não é uma obra acabada, mas um processo que se vai constituindo por etapas de superação de problemas, foi muitas vezes evocada na reunião; e, em campo, não foram raras as ocasiões em que ela se fez lembrar. Esta reflexão influiu decisivamente sobre o modo de o pesquisador ver os assentamentos e lançou luz, para além da discussão conceitual relativa à diferença entre a reforma agrária e política de assentamentos, sobre o caráter de política pública e social assumido pela atuação do Incra.

2. A segunda parte da reunião teve participação dos técnicos de campo do Incra que ci-ceroneariam os pesquisadores nos dias subsequentes em suas visitas aos assentamentos. Eles apresentaram um quadro geral de suas respectivas áreas de trabalho, e adiantaram em parte os problemas que os pesquisadores iriam encontrar em campo. A servidora Elizaide, também presente, destacou os métodos de cadastramento e seleção dos assentados e os pro-cedimentos normativos referentes à regularização dos lotes; apontou também que é vedado ao assentado, pela regulação, vender ou arrendar seu lote. O Incra, conforme observou Oswaldo, tem buscado promover um modelo de reforma agrária de fixação, e não de titu-lação, precisamente com o objetivo de evitar que os lotes sejam vendidos e reincorporados à agricultura patronal ou ao estoque fundiário do mercado de terras.

Convém assinalar que, à falta de um órgão regulador da comercialização de terras, à semelhança, por exemplo, do que existe na França, ou, ainda, com finalidade equivalente à

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111Avaliação da Situação de Assentamentos da Reforma Agrária no Estado de São Paulo

desempenhada pelos instrumentos de inibição à formação de monopólio nas indústrias, a reforma agrária, ao garantir acesso à terra aos pequenos agricultores, sem entretanto alienar em definitivo, em favor deles, a propriedade da área, tem funcionado como instrumento indireto de controle do mercado de terras. Em outros termos, as terras destinadas à reforma agrária estão resguardadas contra a apropriação privada e impõem limites à expansão de um mercado fundiário cujo padrão de funcionamento tem gerado estruturas fortemente con-centradoras. A condição dos assentados é, por assim dizer, similar à de rendeiros de terras do Estado e à de proprietários dos bens produzidos pelo seu trabalho. Entre os assentados com quem o pesquisador conversou a respeito, nenhum deles manifestou-se preocupado em obter a titulação; alguns afirmaram preferir manter-se em tal condição, a fim de seguir tendo acesso a políticas públicas atreladas ao assentamento – assistência técnica, créditos diferenciados etc. Com a morte do titular do contrato, a terra retorna ao Incra, que, con-sultando a comunidade dos assentados, decide pela sua destinação posterior, em regra em favor dos descendentes que já moravam e trabalhavam na terra: o pesquisador tomou nota destas particularidades ao presenciar as instruções dadas pelo técnico do Incra a uma assen-tada no Carlos Lamarca.

Em linhas gerais, quando se cria um novo assentamento, a seleção das famílias que ali irão instalar-se beneficia, em primeiro lugar, aquelas que estavam acampadas e, em caso de desapropriação, as famílias dos empregados que trabalhavam na propriedade. O candi-dato não pode ter renda superior a 3 salários mínimos, não pode ser servidor público nem aposentado por invalidez, não pode ter antecedentes criminais nem vínculo empregatício. Critérios como origem, ocupação pregressa, composição familiar – mão de obra – também são levados em consideração. Assentados e técnicos entrevistados, porém, observam que a experiência anterior do candidato com trabalho agrícola deve ter um peso decisivo sobre a seleção. Não se trata de impedir a entrada de trabalhadores urbanos ou de “excluir os excluídos” – foi constatada pelos pesquisadores a existência de casos de ex-trabalhadores de origem urbana ou de remotas raízes rurais relativamente bem adaptados à atividade agríco-la, graças em boa parte à assistência técnica –, mas de ponderar esta circunstância anterior no processo de distribuição dos lotes, cedendo, por exemplo, áreas menores aos assentados que não têm experiência prática com agricultura. Este pesquisador crê importante registrar que visitou, no PDS São Luís, em Cajamar, uma assentada que relatou ter chegado a pedir esmolas na rua enquanto vivia na cidade, uma situação que, comparada ao seu estado atual, e a despeito das dificuldades presentes no trabalho com a terra, faz sobressair a importância da reforma agrária como política pública de garantia de moradia e trabalho.

A decisão acerca do tipo de produção que será realizada no lote é do próprio assenta-do, mas a aplicação dos créditos deve obedecer a finalidades predeterminadas: ao assentado não é permitido, por exemplo, empregar os créditos de habitação na compra de insumo para a produção. Segundo se pôde concluir, a partir de conversas com os técnicos de cam-po, a política de liberação de créditos e sua aplicação por parte dos assentados envolve um conjunto de problemas importantes. Embora eles tenham sido mencionados durante a visitação aos assentamentos, parece oportuno tratá-los em bloco.

3. O Incra tem procurado acelerar a liberação dos créditos em assentamentos mais novos. Tal política, se por um lado favorece a permanência do assentado na terra, por outro, pode acarretar desperdício ou investimentos inadequados. Havia casos de assentados que, por influência de outros exemplos e exagerada expectativa, aplicavam seu crédito de produção em culturas ou criações com as quais jamais haviam tido a experiência de trabalhar, e, ao cabo de algum tempo, com o dinheiro já empenhado, se davam conta de que a escolha

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112 Relatório de Pesquisa

não fora a mais acertada. Por sua vez, assentados que recebiam parte de um crédito cujas parcelas se distribuíam por um intervalo maior podiam, caso chegassem à conclusão de que suas primeiras decisões sobre a produção não eram adequadas, dispor ainda de parte dos recursos para reinvestir no lote. Encontrar a fórmula exata, em cada assentamento, de organizar esta concessão de créditos é certamente um exercício contínuo de experimenta-ção. Além disso, alguns assentados observaram que a escala de liberação dos créditos nem sempre acompanha as fases e estações da produção; às vezes, o recurso não chega em prazo oportuno. Em todo caso, dados os constrangimentos orçamentários a que está sujeita a au-tarquia, a política do Incra de acelerar a liberação dos créditos, buscando, com os recursos assegurados, administrar, já na ponta, e na medida do possível, a aplicação deles por parte dos assentados, parece ser a estratégia correta.

Outros pontos relativos ao uso dos créditos pelos assentados – construção das casas e compra de maquinário – podem ser abordados de duas perspectivas mais amplas: a infraes-trutura interna dos assentamentos e a organização produtiva dos assentados.

Os técnicos do Incra procuram, por ocasião da liberação do recurso para habitação, instruir os assentados a fazer casas de tamanho razoável, nem grandes nem pequenas, mas há casos em que eles decidem erguer moradias mais espaçosas. Ao fim de algum tempo, o crédito revela-se insuficiente para concluir tais obras, e as construções passam por avançar muito lentamente, quando não são abandonadas. É importante observar que a política habitacional é, em larga medida, muito bem-sucedida, e que casos como este são excep-cionais: todos os lotes visitados apresentavam casa de alvenaria já construída ou em cons-trução, e em muitos deles pôde-se perceber melhorias notáveis no interior das moradias – cozinhas aparelhadas, piso revestido, eletrodomésticos, móveis etc. Em assentamentos mais antigos – Ipanema, em Iperó, e Carlos Lamarca, em Itapetininga, por exemplo –, construções em alvenaria, de bom aspecto, são predominantes. O pesquisador teve co-nhecimento das complicações burocráticas envolvidas na liberação dos créditos de habita-ção aos assentados e nos subsequentes procedimentos necessários à compra de material de construção – negociação junto aos comerciantes, agendamento das entregas etc. Notou-se que as exigências colocadas à realização deste trabalho obrigam os técnicos do Incra a arcar com um desgastante trabalho de intermediação, com idas e vindas de faturas e recibos, que lhes usurpa precioso tempo. Tais exigências são exteriores à gestão do Incra, e decorrem, na maioria das vezes, de normativas baixadas por órgãos federais de controle. Convém pergun-tar se não seria mais apropriado criar, para efeito de utilização dos créditos de habitação, um sistema de cartões magnéticos vinculados a uma “conta conjunta” do Incra com cada família beneficiada, com o valor correspondente ao total do crédito disponível, e da qual os beneficiários não poderiam efetuar saques em dinheiro, mas apenas realizar operações de débito junto a lojas de material de construção da região, previamente cadastradas.

Quanto à infraestrutura dos assentamentos, são três os elementos principais que devem ser examinados: estrada, luz elétrica e água. As fortes chuvas que caíram na região nas semanas que precederam a viagem tornaram patente o estado precário das estradas. O acúmulo de água, pro-vocado em parte pela ausência de pontos de escoamento em veredas às vezes improvisadas, trans-formou alguns trechos em atoleiros, por onde até mesmo o carro oficial do Incra tem dificuldade de transitar. Esta situação pareceu mais grave em Apiaí, onde, pelo que o pesquisador inferiu, ainda não houve licenciamento ambiental para fazer passar uma estrada mais regular; a falta do licenciamento nesta região embarga ainda a instalação de iluminação elétrica no assentamento. A não concessão deste licenciamento parece ter o caráter de uma retaliação política por parte do governo do estado, cujo secretário de meio ambiente, à época da fundação do PDS na cidade,

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113Avaliação da Situação de Assentamentos da Reforma Agrária no Estado de São Paulo

escreveu diversos artigos na imprensa manifestando sua preocupação com a preservação ecológica da área, em que subsistem 21% do total de 8% da cobertura original de Mata Atlântica.

É curioso, no entanto, que no interior do assentamento, isto é, em área de preser-vação, se encontre um lixão da prefeitura municipal, e que, mais acima, uma fábrica de cimento da Camargo Correa esteja em pleno funcionamento. Algumas lideranças sociais do assentamento intentam promover, em abril de 2012, uma paralisação na estrada para denunciar a existência do lixão, mas o caráter oportuno deste protesto, em ano eleitoral e em ambiente de forte polarização política, é objeto de dúvida. Vale observar que, na área onde hoje está o PDS, funcionava uma fazenda dedicada à exploração de madeira – a existência de uma antiga serralheria comprova este uso – e que, após a criação do assenta-mento, parte da cobertura de Mata Atlântica se regenerou, a ponto de ter sido necessário reduzir o número dos lotes.

O mau estado de conservação das estradas, no entanto, além de dificultar o trans-porte da produção, impede a entrada do ônibus escolar nos assentamentos. Em Apiaí e no 23 de Maio, este problema foi relatado; neste último assentamento, um grande grupo de assentados havia ido à prefeitura municipal para protestar contra a falta de condução: as crianças estavam havia dois dias sem ir à escola. Alguns assentados, em Apiaí, tomaram a iniciativa de deitar uma camada de pedras nos pontos mais encharcados das estradas, e esta providência chamou a atenção para certas diferenças entre os trechos e as margens do ca-minho, alguns bem cuidados, com mato aparado, e outros nem tanto; esta particularidade reflete as variações entre o grau de comprometimento dos assentados com o assentamento. No assentamento 23 de Maio, um assentado afirmou hesitar em cobrir de pedras os trechos lamacentos da estrada porque o cascalho a ser usado para este fim estava em área de reserva legal. A iluminação elétrica neste assentamento ainda é feita por ligações improvisadas. Tanto no assentamento de Apiaí quanto no 23 de Maio, este pesquisador presenciou o empenho dos técnicos de campo do Incra em resolver estas pendências, e presume-se que elas deverão ter bom encaminhamento em futuro próximo.

Os problemas mais sérios, com relação ao acesso à água, foram encontrados no assen-tamento de Americana, mas casos semelhantes, envolvendo por vezes desconfianças entre os assentados quanto a desvios de canalização ou outras formas de autofavorecimento, são mais ou menos presentes nos demais assentamentos onde o abastecimento de água nos lo-tes não é um problema resolvido. Estas suspeitas recíprocas, mais frequentes ainda quando se trata da administração de recursos pelas associações e cooperativas nos assentamentos, expressam menos a realidade que, de fato, a questão da ausência de uma sólida composição coletiva entre os assentados.

Não obstante a fórmula a seguir nem sempre ter funcionado em todos os assentamentos, parece não haver dúvidas de que a organização por sistema de agrovilas, em lugar da disposição dispersa dos lotes das famílias, favorece imensamente a instalação das infraestruturas de luz e água, além de promover a troca de experiências e conhecimentos entre os assentados e lhes tornar mais presente a ideia de que o assentamento é uma propriedade comum. O exemplo do assentamento de Sumaré, onde prevalece um forte senso de comunidade, extensivo às decisões relacionadas à produção e à comercialização, parece confirmar esta ideia.

4. A organização produtiva dos lotes, em particular, e dos assentamentos, como um todo, parece ter uma relação fundamental com o modo de organização político-social dos as-sentados em cada projeto de assentamento (PA) ou PDS. Cite-se um exemplo que ajudou

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114 Relatório de Pesquisa

a ilustrar esta relação. De posse dos créditos para produção, alguns assentados investem na compra de tratores; tempos depois, sem poder arcar com os gastos de manutenção e combustível, e ocupando em geral lotes pequenos que não justificariam economicamente a aquisição e os custos permanentes deste veículo, acabam por subutilizá-lo. Em um dos assentamentos de Itapetininga, em uma área total que poderia ser servida por dois tratores caso se tratasse de uma única propriedade, há oito ou nove. Por seu turno, alguns assenta-dos optam por contratar serviço particular de tratorista, em lugar de recorrer ao trator da associação, como em Apiaí, julgando que o trabalho realizado pelo tratorista do assenta-mento não é de boa qualidade. Supõe-se que seria importante, nos casos em que os serviços de tratorista são oferecidos pela associação, que o assentado que os realizasse recebesse uma remuneração por isso, o que nem sempre acontece, segundo informações.

Por sua vez, as políticas públicas de garantia de compra da produção (Programa de Aquisição de Alimentos – PAA e Merenda Escolar) têm, conforme relataram os técnicos do Incra, induzido os assentados a estabelecer uma estruturação coletiva da produção ou da comercialização, em cada lote e nos assentamentos de modo geral. Dessa forma, a or-ganização coletiva dos assentados se realiza de fora para dentro, a partir de um incentivo exterior que os beneficia em igual medida, uma vez que as cotas de compra fixadas são as mesmas para todos. Em certos lugares, como em Iperó, as associações de produtores unem os assentados aos agricultores familiares. É unânime, entre todos estes, o reconhecimento dos benefícios gerados, à sua produção, pelas políticas de compra pública; e é igualmente generalizado, entre os consumidores dos alimentos produzidos nos assentamentos, o reco-nhecimento de que as refeições servidas nas escolas, nos hospitais e em outras entidades se tornaram melhores e mais diversificadas desde a instituição do sistema de doação simul-tânea. Alguns problemas têm começado a aparecer – e o principal deles talvez seja a en-trada de intermediários que, aproveitando-se do atraso com que a Compahia Nacional de Abastecimento (CONAB) efetua os pagamentos, vêm comprando as cotas dos produtores diretos –, mas, a despeito disto, esta política vem ajudando a especializar os assentados na produção de alimentos saudáveis.

Para esse último aspecto, tem contribuído fortemente a atuação dos técnicos de cam-po do Incra. Tendo em vista a extensão pequena dos lotes, a limitada força de trabalho de que as famílias dispõem e as possibilidades e alternativas de produção mais suscetíveis de gerar renda, os técnicos do Incra recomendam aos assentados investir na produção de frutas e hortaliças e na criação de animais de pequeno e médio porte. De modo geral, habituados a lidar com culturas típicas da agricultura patronal, nem sempre adaptáveis às condições de produção dos lotes, os assentados são advertidos da necessidade de trabalhar com culturas cuja produção possa encontrar comercialização certa e de alto valor relativo por unidade de produto. Esta mudança do tipo de produto cultivado tem ensejado, pouco a pouco, uma transição em direção a outros métodos de cultivo, mais próximos da agricultura orgânica e agroecológica, e menos dependentes de insumos químicos. Ainda que seja acompanhada de uma mudança de concepção, por parte dos assentados, da relação entre o trabalho e a natureza – como em Apiaí, por exemplo, onde o método agroecológico, que se impôs aos assentados em virtude da localização do PDS, tem deixado de ser visto como uma limi-tação para ser afirmado como uma opção –, ela tem-se mostrado como uma estratégia de ampliação da margem de autonomia do trabalho – isto é, da mão de obra das famílias – em relação ao capital – as firmas fornecedoras de insumos.

Não se trata de uma destecnização da produção, mas da adoção, em substituição à tecnologia estritamente química, de uma tecnologia por assim dizer orgânica, baseada na

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115Avaliação da Situação de Assentamentos da Reforma Agrária no Estado de São Paulo

composição de culturas, em formas alternativas de aproveitamento da área, no uso de adubação orgânica e outros processos que, por serem menos nocivos ao trabalhador e ao solo, agregam valor aos produtos. Este modelo de produção – cultivo de alimentos de alto valor por unidade, mais intensivo em trabalho e, por isso, adaptável em estabelecimentos menores – não pode, entretanto, expandir-se sem um crescimento dos serviços de assis-tência técnica e extensão rural e sem uma política pública de certificação que diferencie os produtos deste tipo de agricultura dos da convencional. O último Censo Agropecuário mostrou que, dos cerca de 90 mil estabelecimentos que praticam agricultura orgânica, apenas 5 mil são certificados.

Dadas as suas condições específicas de instalação – processo contencioso de obtenção das terras, tamanho reduzido dos lotes, proximidade em relação aos centros urbanos, e vizi-nhança com grandes explorações monocultoras –, os assentamentos de Americana, Limeira e Cajamar oferecem um quadro de análise bastante diverso do que é encontrado em assenta-mentos mais antigos, como o Lamarca e o Ipanema, onde os lotes apresentam uma estrutura produtiva mais consolidada, ainda que em anos anteriores tenham registrado momentos de crise e de relativo abandono do Estado. Em Americana e Limeira, fundamentalmente, a pres-são por parte dos movimentos sociais por aumentar o número de famílias assentadas deter-minou a redução do tamanho médio dos lotes, e as pendências relativas à aquisição definitiva da área acabaram por retardar o ritmo da concessão de créditos para a produção; apesar disso, é possível encontrar, em ambos os assentamentos, lotes cultivados e outros em condições de constituir em tempo próximo um regime mais regular de produção. Há, todavia, lotes ocio-sos, onde se acumula lixo e cuja área os residentes parecem ocupar apenas provisoriamente. Alguns dos assentados alegam, com certa razão, que, em virtude da sequência de liberação dos créditos, precisaram optar entre investir na moradia e investir na produção, e tiveram, portanto, de abdicar de uma ou outra coisa parcialmente.

Essa transição acelerada parece ser a marca dos assentamentos mais novos em Limeira e Americana, como também no 23 de Maio, em Itapetininga, mas os inconvenientes que ela provoca tendem a ser superados em uma etapa seguinte. Em sua forma, o processo faz pensar em um esforço de guerra, de arranque inicial; em seus efeitos, é comparável a uma espécie de seleção natural. À medida que vão iniciando os trabalhos, a rotina dura da lida com a terra, e conhecendo as obrigações que, juntamente com os direitos e a posse da terra, assumem ao se tornarem assentados, alguns entre estes podem encetar um movimento de evasão. Do ponto de vista do assentamento, considerado como processo em construção e como totalidade, este movimento não é algo intrinsecamente ruim, uma vez que outras fa-mílias inscritas podem ocupar os lotes abandonados. Convém salientar que os técnicos do Incra não intervêm diretamente nem oficialmente sobre a decisão de uma família de deixar o assentamento; eles buscam conciliar, em suas ações, os limites normativos e a percepção política das relações internas ao assentamento; pôde-se testemunhar que os técnicos usam de grande habilidade para administrar as tensões decorrentes desta situação de precarieda-de, e que, no tratamento dos casos mais complicados, evitam adotar uma abordagem assis-tencialista em relação ao assentado em particular para pensar no assentamento como um todo e no sucesso do projeto. Pode-se reconhecer que não é uma atitude fácil de assumir.

Por sua vez, o tamanho reduzido dos lotes, cuja área média é de 1 ha, coloca algumas questões importantes. Esta estrutura parece adequar-se a uma concepção diferenciada de um assentamento cuja população não é de origem rigorosamente agrícola e onde, por esta razão, é possível que coexistam atividades agrícolas e não agrícolas, sem destituir o espaço de seu caráter rural. Um técnico do Incra informou que o espaço de 1 ha, sobretudo nas

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116 Relatório de Pesquisa

técnicas de produção mais intensivas em trabalho, é compatível com a capacidade labora-tiva de um homem adulto, e este juízo pôde ser confirmado quando, em conversas com alguns assentados, estes se queixaram da diminuta extensão de seus lotes para, em seguida, admitirem que não teriam força suficiente para cultivar área muito maior. É, aliás, notável como alguns assentados mantêm uma relação patrimonial com a terra, supondo que a ampliação da área sob seu domínio lhes renderia uma imediata melhora de status. Além disso, o pesquisador percebeu como é possível, mediante orientação, tornar viáveis eco-nomicamente os lotes pequenos: esta orientação consiste em advertir os assentados para a necessidade de evitar culturas e métodos de cultivo característicos da grande propriedade e investir em produtos de maior valor comercial por unidade, capaz de lhes propiciar uma renda regular, sobretudo em função da crescente demanda pública por alimentos. Este pesquisador não está certo, todavia, se este modelo de assentamento com lotes de pequenas dimensões pode ser generalizado; isto conferiria à política de assentamentos um caráter estritamente residual, de impacto ainda mais limitado que o atual, do ponto de vista da sua capacidade de produzir modificação na estrutura fundiária de uma dada região.

Por fim, cumpre fazer referência ao papel dos movimentos sociais nos assentamentos. Segundo se observou, os movimentos têm importância fundamental na fase de luta pela terra, que envolve a organização de acampamentos e ocupações, bem como a formação po-lítica dos trabalhadores, mas, uma vez constituídos os assentamentos, a ação deles pode ter impacto diverso. Foram relatados casos de militantes que não cultivam seus respectivos lo-tes. O pesquisador conversou com Oswaldo Callodiano Leite, do MST, a propósito disso, e houve convergência na opinião de que a produção dos lotes poderia ser vista também como uma forma de militância nos assentamentos, capaz de ampliar o lastro de legitimidade da política de reforma agrária. De fato, no debate público, seria oportuno reforçar a ideia de que os movimentos têm uma cultura de produção, que completa a luta política. À parte isto, o grau de identificação dos assentados com o movimento pareceu bastante expressivo, e o pesquisador notou que as demandas e os problemas gerais dos assentados são, de uma maneira ou de outra, absorvidas pelas lideranças do movimento nos assentamentos.

***

Encerra-se este relatório, ainda suscetível de uma revisão mais apurada, com um agra-decimento a todos os técnicos de campo do Incra que acompanharam o pesquisador nas vi-sitas: Luis Roberto (Timbalada), Mateus, Raimundo e Júlia. Embora esta manifestação não seja condizente com a formalidade de um relatório, o autor quer expressar sua admiração pela dedicação, pela inteligência, pelo saber técnico, pelo respeito e pela generosidade que estes técnicos demonstram no tratamento com os assentados. Pelas conversas, pela amizade e pelas centenas de quilômetros rodados, o autor expressa aqui a sua gratidão.

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APÊNDICE D

VIAGEM DE PROSPECÇÃO AOS ASSENTAMENTOS DO INCRA NO PONTAL DO PANAPANEMA – SP

Fábio Alves

1 INTRODUÇÃO

O trabalho de prospecção foi realizado entre os dias 18 e 26 de fevereiro de 2010. O primeiro dia foi reservado para reunião com a direção da Superintendência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária de São Paulo (Incra-SP) e com os coordenadores dos escri-tórios locais. Nos dias seguintes, foram realizadas as visitas de campo nos assentamentos, conforme explicitado a seguir.

1.1 Escritório de Presidente Epitácio: 19, 20 e 22 de fevereiro de 2011

1.1.1 Assentamentos visitados

• Engenho (município de Caiuá)

• Lagoinha

• Porto Velho

1.1.2 Atividades realizadas

• Entrevista com coordenador do escritório

• Conversas com técnicos do escritório

• Visita a lotes de assentados

• Entrevistas com presidentes de associações de assentados

• Entrevistas com assentados

• Visita à feira do produtor assentado em Presidente Epitácio

1.2 Escritório de Teodoro Sampaio: de 22 a 24 de fevereiro de 2011

1.2.1 Assentamentos visitados

• Dona Carmen (Mirante do Paranapanema)

• Margarida Alves (Mirante do Paranapanema)

• Paulo Freire (Mirante do Paranapanema)

• Antônio Conselheiro (Mirante do Paranapanema)

• Nova Esperança (Euclides da Cunha)

• Gleba XV (Rosana)

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118 Relatório de Pesquisa

1.2.2 Atividades realizadas• Entrevista com coordenador do escritório

• Conversas com técnicos do escritório

• Visita a lotes de assentados

• Entrevistas com presidentes de associações de assentados

• Entrevistas com lideranças de movimentos sociais

• Entrevistas com assentados

• Entrevistas com técnicos do Instituto de Terras do Estado de São Paulo (ITESP)

• Visita à feira do produtor assentado em Euclides da Cunha

1.3 Escritório de Rancharia: 25 e 26 de fevereiro de 2011

1.3.1 Assentamentos visitados• Projeto de Desenvolvimentp Sustentável (PDS) Boa Esperança (João Ramalho)

• Projeto de Assentamento(PA) São Pedro

1.3.2 Atividades realizadas• Entrevista com coordenador do escritório

• Visita a lotes de assentados

• Entrevista com presidente de associação de assentados

• Entrevistas com assentados

• Visita a Laticínio da ETE Deputado Francisco Franco

2 CARACTERIZAÇÃO DA REGIÃO

O Pontal do Paranapanema é a região de São Paulo localizada na parte Sudoeste do estado, nas divisas com os estados do Paraná e do Mato Grosso do Sul. Historicamen-te marcada por explorações monoculturas, até a década de 1970, passaram-se ciclos sucessivos de café, algodão, amendoim e gado. O processo de construção de represas para usinas hidrelétricas durante o período militar foi fator de atração de mão de obra advinda de vários pontos do país, sobretudo dos estados vizinhos antes citados. Pro-cesso que, ao se extinguir, gerou contingente de desempregados que daria força para a luta pela terra na região. Por seu turno, predominavam nesta região grandes fazendas constituídas em terras públicas pertencentes ao estado de São Paulo, que se tornaram o principal foco de reivindicação dos movimentos sociais. Arma-se, assim, um cenário de conflitos que perdura até os dias de hoje, mas que tiveram seu ápice na década de 1990. Atualmente, a criação de gado nas grandes fazendas vem cedendo lugar à produção de cana-de-açúcar e, em menor escala, à soja. Em contraste, as cerca de 6 mil famílias distribuídas em 108 projetos de assentamentos – dos quais dezessete são de responsabi-lidade do Incra – criados a partir da década de 1980 proporcionam maior diversificação econômica e quebram a monotonia da paisagem das grandes fazendas.

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119Avaliação da Situação de Assentamentos da Reforma Agrária no Estado de São Paulo

3 PRINCIPAIS PONTOS LEVANTADOS NAS VISITAS

3.1 Atuação do IncraNos últimos oito anos, a Superintendência do Incra-SP implementa o processo de interio-rização de sua atuação na área de desenvolvimento de assentamentos, instalando escritórios locais de assistência técnica e extensão rural (Ater). Estas unidades são responsáveis por uma série de atividades, entre as quais: regularização documental dos assentados, elabora-ção de projetos para concessão de créditos, fiscalização, mediação de conflitos, organização produtiva, orientação técnica. Juntamente com o processo de interiorização, a superinten-dência realiza o que chama de radicalização das políticas públicas, que consiste, basicamen-te, em agilizar a implementação de ações para que os serviços cheguem mais rapidamente aos assentados.

3.2 CréditoDe acordo com informações colhidas entre técnicos e assentados entrevistados, a conces-são de créditos tem sido prestada com razoável tempestividade. Nos assentamentos mais antigos – com cerca de oito anos de criação –, a maioria dos assentados já recebeu os cré-ditos de instalação, fomento, e já estava acessando os custeios do Programa Nacional de Fortalecimento da agricultura Familiar (PRONAF). Foi observado que a grande maioria dos projetos de diversificação da produção dos assentamentos é viabilizada por esta linha de financiamento.

Ainda há casos consideráveis de inadimplência, sobretudo nos assentamentos mais antigos. Segundo conversas com o gerente de agronegócios do Banco do Brasil de Rancharia, o índice de inadimplência do PRONAF é de cerca de 5%, sendo que, des-tes, em torno de 90% são assentados. O principal fator de inadimplência constatado está relacionado à má orientação na elaboração dos projetos produtivos. Nos assenta-mentos mais antigos, era comum a prática de repetir ou copiar o mesmo projeto para todos os assentados, sem levar em consideração as condições do lote e o perfil de cada assentado. Dá-se muita ênfase para a produção de leite, com a alegação de que fornece uma renda mensal e imediata ao início da exploração econômica do lote. Tampouco se leva em conta a questão da garantia de preço. Assim, ao incentivar que todos produzam mandioca, por exemplo, há aumento de oferta no período de safra, baixando consi-deravelmente o preço. Isto funciona também com o leite – empresas laticínias ditam os preços para os produtores. Atualmente, o Incra vem articulando com os bancos a renegociação destas dívidas.

3.3 Evasão/regularização de lotes Segundo informações da Superintendência Regional (SR-8) do Incra-SP, o índice de evasão foi reduzido de 20% para 4% nos últimos anos. Atribui-se como causa a política de radicalização das ações do Incra, que faz com que as etapas de implantação do PA ocorram com mais rapidez. De fato, observou-se que os assentamentos visitados, no ge-ral, estavam servidos de estradas, energia elétrica e água para abastecimento – quanto ao fornecimento da água, ainda com diversas queixas da parte dos assentados. Há poucos lotes em situação irregular nos assentamentos do Incra. Em Presidente Epitácio, por exemplo, das 373 famílias assentadas, 22 foram identificadas em situação irregular – compra de lote. A grande maioria das famílias está em processo de regularização, uma vez que apresentam perfil para assentamento.

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120 Relatório de Pesquisa

3.4 Organização produtiva

Foram observadas iniciativas do Incra com objetivo de organizar os assentados em torno de associações e cooperativas. Há casos de criação de novas organizações dos assentados ou de recomposição da direção de organizações já existentes, além da regularização docu-mental e financeira. O fator que tem dado força para a organização dos assentados é o Pro-grama de Aquisição de Alimentos (PAA), gerido pela Companhia Nacional de CONAB. Além da organização dos assentados, o PAA vem promovendo a diversificação da atividade produtiva. Predomina nos assentamentos do Pontal a produção de leite. Com o advento do PAA, estão se implantando a horticultura e a produção de frutíferas.

Outra ação importante do Incra é a organização de feiras do produtor. No Pontal, há duas feiras em fase incipiente, em Presidente Epitácio e em Euclides da Cunha. Além de promover a diversificação, observou-se que estas iniciativas despertam o interesse do assen-tado pela comercialização de seus produtos.

É importante ressaltar o caso da associação do PA São Pedro, em Rancharia. Após a recomposição da direção, esta associação tomou a iniciativa de fazer cotações de preços junto aos laticínios, conseguindo um ganho no preço do litro do leite de em torno de R$ 0,45 para R$ 0,75. Além disso, os assentados entraram no PAA, mediante uma parceria com o laticínio de uma escola técnica local, conseguindo um preço de R$ 1,10 para o litro de leite.

3.5 Orientação técnica

Não obstante a presença do Incra nos assentamentos, a ação de orientação técnica ainda apresenta-se insuficiente. O corpo técnico dos escritórios é composto basicamente por técni-cos em agropecuária “generalistas” – que sabem “um pouco de tudo” – e por profissionais de nível superior especializados – veterinários, agrônomos, engenheiros florestais, entre outros. Porém, a divisão do trabalho é feita com base no assentamento: cada técnico é responsável por um PA, devendo realizar desde atividades burocráticas a orientações técnicas. O desenho mais adequado seria um técnico agropecuário para cada assentamento, em combinação com profissionais especializados que desenvolvessem atividades específicas com os assentados.

Essa carência na orientação técnica vem sendo suprida com uma série de parcerias articu-ladas pelo Incra. Destacam-se as ações de capacitação desenvolvidas pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar) e pela Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios (Apta).

3.6 Problemas identificados

Nas conversas com os assentados, foram citados como problemas pendentes nos assenta-mentos: a melhoria de estradas, a correção do solo, as cotas do PAA, as carências da orien-tação técnica. No entanto, a questão da água foi o problema citado com mais frequência pelos assentados, o que foi corroborado pelos técnicos. O fornecimento de água é feito a partir de poços artesianos construídos em determinados pontos do assentamento e distri-buídos para os lotes. Por regra, a água destes poços é destinada para uso doméstico e para os animais. No entanto, o número de poços é insuficiente para atender plenamente os lotes e/ou a rede de distribuição não está plenamente implantada. Observou-se casos de conflitos entre os assentados pela água, pelo consumo desigual, pela não participação no rateio das despesas e pelo uso para irrigação, que, a princípio, estaria proibida, e deveria ser realizada pela construção de cacimbas individuais. Existe uma parceria Incra/Fundação Nacional de Saúde (Funasa) para melhorar o fornecimento de água nos assentamentos.

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3.7 Condição dos assentados

No geral, pode-se dizer que os assentados do Incra no Pontal do Paranapanema apresentam boas condições socioeconômicas. Não foi observada situação de miserabilidade nos assen-tamentos visitados. Pelo contrário, a maioria dos assentados possui casa de alvenaria e car-ro. No mínimo, produzem para o autoconsumo e têm no leite a fonte de renda monetária. Verifica-se, no entanto, um processo de diferenciação no próprio assentamento, onde se encontra, por exemplo, um assentado com uma produção altamente diversificada e renda anual de cerca 100 mil reais, enquanto seu vizinho tem apenas algumas vacas para produ-ção de leite e arrenda parte de sua terra para terceiros. São casos extremos, mas demonstram que uma mesma política, provida em igualdade e com igual tempestividade, produz resul-tados individuais diversos. Nem sempre a origem explica o resultado. Há casos de pessoas com experiência agrícola que não apresentam resultados satisfatórios e casos de assentados com experiência de trabalho “urbano” que apresentam uma produção diversificada e ren-tável. A visão comercial ainda é pouco difundida entre os assentados. Mesmo assentados com boa produção de frutas, ao serem perguntados o que faziam com a produção, respon-diam que era para consumo próprio e para dar aos amigos. As ações do PAA e das feiras de produtores demonstraram potencial de despertar o interesse comercial entre os assentados.

3.8 Os projetos de desenvolvimento sustentável

O escritório do Incra de Rancharia é responsável por dois PDS: o Bom Jesus, em Iepê, e o Boa Esperança, em João Ramalho. O primeiro tem 27 famílias assentadas, cada uma com uma área média de 2,5 ha. O segundo tem 29 famílias, com área média de 1,4 ha. Ambos são chamados de PDS emergenciais. São pequenas áreas de terra adquiridas pelo Incra destinadas para retirar um contingente de famílias dos acampamentos da região. A categoria PDS foi a solução encontrada para se poder acomodar estas famílias em uma área diminuta de terra, com incentivos à exploração coletiva e ao desenvolvimento da agro-ecologia. Foi visitado o PDS Boa Esperança, o qual está sendo palco de conflitos entre grupos de assentados. Havia um processo de oligarquização dentro do assentamento, em que a líder dos acampados conseguiu cinco lotes contíguos para a família, formou uma associação “seletiva” para firmar contratos do PAA, preterindo os demais acampados e co-locando um de seus filhos como presidente da associação. Outro de seus filhos tornou-se coordenador do escritório do Incra em Rancharia. Houve ingerência da SR-8 para resolver a situação, substituindo o coordenador. Com a substituição, foi articulada uma cooperativa de assentados – aqueles preteridos da associação – para exploração de uma horta comuni-tária que integrará o PAA.

3.9 Outras questões• Tamanho dos lotes: em geral, os assentados estão satisfeitos. Porém, na Gleba XV, os

assentados mais desenvolvidos são aqueles do setor com os maiores lotes, de 40 ha.

• Demanda atual: em torno de 2 mil famílias acampadas.

• PDA: não é levado em conta. Técnicos desconhecem.

• Papel dos movimentos: acampamento/luta política versus assentamento/produção.

• Arrendamentos: “vista grossa” quando ocorre entre assentados. Notificado quando externo.

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Ipea – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

EDITORIAL

CoordenaçãoCláudio Passos de Oliveira

SupervisãoEverson da Silva MouraReginaldo da Silva Domingos

RevisãoAndressa Vieira BuenoClícia Silveira RodriguesIdalina Barbara de CastroLaeticia Jensen EbleLeonardo Moreira de SouzaLuciana DiasOlavo Mesquita de CarvalhoMarco Aurélio Dias PiresCelma Tavares de Oliveira (estagiária)Patrícia Firmina de Oliveira Figueiredo (estagiária)

EditoraçãoAline Rodrigues LimaBernar José VieiraDaniella Silva NogueiraDanilo Leite de Macedo TavaresJeovah Herculano Szervinsk JuniorLeonardo Hideki Higa

CapaAndrey Tomimatsu

LivrariaSBS – Quadra 1 − Bloco J − Ed. BNDES, Térreo 70076-900 − Brasília – DFTel.: (61) 3315 5336Correio eletrônico: [email protected]

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Composto em adobe garamond pro 11,5/13,8 (texto)Frutiger 67 bold condensed (títulos, gráficos e tabelas)

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Cartão supremo 250g/m2 (capa)Brasília-DF

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Relatório de Pesquisa

Avaliação da Situação de Assentamentos da Reforma Agrária no Estado de São Paulo Fatores de sucesso ou insucesso

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PrMissão do Ipea

oduzir, articular e disseminar conhecimento paraaperfeiçoar as políticas públicas e contribuir para o planejamento do desenvolvimento brasileiro.