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1 Autores: Sílvia MONTEIRO; Júlio PACHECO, Lúcio MIRANDA e George S. FREIRE Riscos naturais e planejamento – Casos de Cabo Verde e Moçambique junho de 2014 RESUMO: Desequilíbrios impostos pelas relações Ser Humano/Natureza criam fragilidades que potencializam manifestações de riscos e vulnerabilidade em comunidades urbanas das cidades da Praia, em Cabo Verde, e da Beira, em Moçambique, cada vez mais expostas, à medida que crescem desvinculadas de políticas que contemplem o desenvolvimento integrado dos espaços, por meio do planejamento e do ordenamento do território. Como base em pensamento geossistemico, articulado com a análise bibliográfica e documental, análise de dados estatísticos e visitas de campo, tornou-se possível distinguir as manifestações dos fenômenos e impactos ambientais relativos a ocupação de áreas de riscos naturais nestas cidades, destacando o planejamento urbano como resposta eficaz e necessária para a sua gestão. Palavras-Chave: Riscos naturais; Vulnerabilidade Ambiental; Planejamento; Cabo Verde; Moçambique. ABSTRACT Imbalances imposed by relations Human / Nature creates weaknesses that leverage manifestations of risk and vulnerability in urban communities in the cities of Praia in Cape Verde and Beira in Mozambique, increasingly exposed, as they grow unrelated policies that address the development of integrated spaces, through planning and land use planning. As a basis for geosystemic thinking articulated the literature review and documentary analysis of statistical data and field visits it became possible to distinguish the manifestations of the phenomena and environmental impacts related to occupation of areas of natural hazards in these towns, highlighting the urban planning and effective response and necessary for management. Keywords: Natural hazards; Environmental Vulnerability; Planning, Cape Verde, Mozambique.

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Page 1: Autores: Sílvia MONTEIRO; Júlio PACHECO, Lúcio MIRANDA e ... · diretamente relacionado com o aumento da magnitude e intensida de dos fenômen os ... as quais produzem modificações

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Autores: Sílvia MONTEIRO; Júlio PACHECO, Lúcio MIRANDA e George S. FREIRE

Riscos naturais e planejamento – Casos de Cabo Verde e Moçambique

junho de 2014

RESUMO:

Desequilíbrios impostos pelas relações Ser Humano/Natureza criam fragilidades

que potencializam manifestações de riscos e vulnerabilidade em comunidades urbanas

das cidades da Praia, em Cabo Verde, e da Beira, em Moçambique, cada vez mais

expostas, à medida que crescem desvinculadas de políticas que contemplem o

desenvolvimento integrado dos espaços, por meio do planejamento e do ordenamento

do território. Como base em pensamento geossistemico, articulado com a análise

bibliográfica e documental, análise de dados estatísticos e visitas de campo, tornou-se

possível distinguir as manifestações dos fenômenos e impactos ambientais relativos a

ocupação de áreas de riscos naturais nestas cidades, destacando o planejamento urbano

como resposta eficaz e necessária para a sua gestão.

Palavras-Chave: Riscos naturais; Vulnerabilidade Ambiental; Planejamento; Cabo

Verde; Moçambique.

ABSTRACT

Imbalances imposed by relations Human / Nature creates weaknesses that

leverage manifestations of risk and vulnerability in urban communities in the cities of

Praia in Cape Verde and Beira in Mozambique, increasingly exposed, as they grow

unrelated policies that address the development of integrated spaces, through planning

and land use planning. As a basis for geosystemic thinking articulated the literature

review and documentary analysis of statistical data and field visits it became possible to

distinguish the manifestations of the phenomena and environmental impacts related to

occupation of areas of natural hazards in these towns, highlighting the urban planning

and effective response and necessary for management.

Keywords: Natural hazards; Environmental Vulnerability; Planning, Cape Verde,

Mozambique.

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1. INTRODUÇÃO

O desenvolvimento das sociedades e as relações entre o Ser Humano e a Natureza

sempre foram marcadas por desequilíbrios acentuados, sobretudo no tempo

contemporâneo. Estas observações são referenciadas na teoria dos sistemas

apresentada por Santos (2011, p.19) ao afirmar que “a sociedade, ao se apropriar do

território e dos recursos ambientais, interfere significativamente nos fluxos energéticos

e, consequentemente, na funcionalidade dos sistemas naturais”, desconsiderando as

fragilidades destes sistemas.

Estas intervenções humanas provocaram modificações nos ambientes naturais

promovendo desequilíbrios, que resultaram em problemas ambientais. Observam-se,

tanto na dimensão empírica, como com base na produção científica, em que, de maneira

gradativa e acentuada, o Ser Humano vai ocupando e intervindo em espaços naturais de

grande fragilidade, desencadeando, assim aumento da vulnerabilidade1 das sociedades

diante de fenômenos perigosos, ocasionando, por vezes, perdas consideráveis.

A problemática dos riscos naturais e ambientais2 ao se tornarem cada vez mais

preocupantes desencadeou o interesse de estudiosos e pesquisadores em compreender

melhor ambos os fenômenos e a sua relação com as sociedades.

A literatura consultada sugere o entendimento de que nos países em

desenvolvimento, as manifestações de riscos naturais têm aumentado e afetado

negativamente as sociedades, sendo que esse processo parece não se encontrar

diretamente relacionado com o aumento da magnitude e intensidade dos fenômenos

1 Vulnerabilidade - Grau de perda de um elemento ou conjunto de elementos expostos, em resultado da ocorrência de um processo (ou acção) natural, tecnológico ou misto de determinada severidade (ZÊZERE et al. 2009).

2 Risco natural é entendido como a probabilidade de ocorrência de um fenômeno potencialmente danoso, de origem natural, capaz de pôr em causa a vida humana e/ou as suas atividades e bens (MONTEIRO, 2007). Segundo Zousa e Zanella (2010), a expressão risco natural, apesar da sua forte vinculação com os fenomenos extremos da natureza, deve ser compreendida sob um ponto de vista mais abrangente, remetendo à noção de risco ambiental, em que os riscos passam a ser tratados também como fenómenos sociais, já que atingem populações socialmente vulneraveis.

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perigosos, mas sim, com a crescente vulnerabilidade das sociedades, entre as quais a

ocupação de áreas consideradas de risco3.

Na perspectiva dos estudos e pesquisas produzidos, a crescente vulnerabilidade é

mais preocupante nas áreas urbanas, devido à intensa urbanização (fenômeno que se

verifica em escala global, com mais de 50% da população mundial concentrada nas

cidades4), as quais produzem modificações de forma acelerada nos ambientes naturais,

proporcionando um aumento dos riscos nos territórios respectivos. Assim,

“Quando se investiga o risco ambiental e os impactos negativos decorrentes da sua concretização, fica evidenciado que as cidades de países menos desenvolvidos são mais atingidas, dado o maior grau de vulnerabilidade de suas populações, principalmente as que ocupam áreas com frágeis condições ambientais” (SOUZA e ZANELLA, 2010, p.152).

Por outro lado, os estudos e a percepção da realidade empírica levam à

constatação que, na maioria das cidades dos países em processo de desenvolvimento,

considerando seus problemas intrínsecos, há indicadores de crescimento não

compatíveis com os indicadores de desenvolvimento5.

Todavia, estes problemas podem ser minimizados recorrendo ao planejamento e

ao ordenamento do território, de forma a alcançar um desenvolvimento sustentável que

denote equilíbrio entre o ambiente e a economia, com perspectiva de promover

integração social e cultural, sobretudo com a dimensão intrageracional.

Há necessidade de integrar o conceito de sustentabilidade tanto nas teorias como

nas técnicas de planejamento. Anterior à integração do conceito, as técnicas de

planejamento derivavam de uma visão exclusivamente empresarial e econômica,

baseada numa perspectiva orçamental e tendo em vista os lucros, não permitindo

visualizar necessidades em médio e longo prazo.

3 Área de risco – Áreas susceptíveis de serem afectadas por algum evento perigoso quer seja de origem natural, tecnológica ou mista, consideradas, portanto, impróprias à ocupação humana.

4 Segundo o WWF (2012).

5 Nascimento (2011), diferencia estes dois conceitos, referindo que o crescimento urbano como um processo quantitativo, demográfico e espacial, tratando-se de uma concentração demográfica crescente, enquanto que o desenvolvimento urbano é entendido como um estado superior do crescimento urbano, em que existe um equilíbrio entre o crescimento físico e o uso racional do ambiente natural, o desenvolvimento dos serviços de saúde e a urbanidade dos residentes da cidade.

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Em desenvolvimento sustentável onde se espera controlar, reduzir e evitar riscos

futuros é imperativo uma abordagem de gestão mais ampla, de mais longo prazo e com

perspectiva estratégica.

2. METODOLOGIA

O presente trabalho pretende abordar a problemática dos riscos naturais,

tomando como realidade empírica duas cidades de países localizados na África,

demarcadamente Cabo Verde e Moçambique, apresentando objetivamente alguns

elementos de manifestação de riscos ambientais nas áreas urbanas, especificamente nas

cidades da Praia e da Beira, destacando como o planejamento urbano poderia

corresponder a uma resposta eficaz e necessária para gestão.

Para materialização dos objetivos mencionados foram necessárias análises sobre

inter-relação dos componentes geoambientais, com base em pensamento

geossistêmico, enquanto possibilidade para compreender os fluxos interativos, internos

e externos dos processos atuantes, que resultam da inter-relação dos componentes

geoambientais e das atividades e processos desenvolvidos pelas comunidades em seus

assentamentos.

Nesse campo há um amplo e consistente debate no qual se buscou apoio,

sobretudo em Bertrand (2004), na obra Paisagem e Geografia Física Global. Este autor

conceituou geossistema como um tipo de sistema aberto, hierarquicamente organizado,

que resulta da combinação dinâmica e dialética, portanto instável, de fatores físicos,

biológicos e antrópicos. Para ele, geossistema é a combinação dinâmica que integra

potencial ecológico, representado pela geomorfologia, clima e hidrologia; a exploração

biológica natural que inclui vegetação, solo e fauna, bem como, as atividades antrópicas.

Além das contribuições de Bertrand, simultaneamente desenvolveu-se uma

revisão bibliográfica ampliada sobre o tema, destacando-se contribuições teóricas como

resultado de estudos e pesquisas desenvolvidas por RODRIGUEZ, (2010); SANTOS,

(2011); SOUZA, e ZANELLA, (2010); TAVARES, (2011); ARAÚJO, (2003); WWF, (2012),

dentre outros. Outra dimensão aplicada nas análises contidas no texto foram registros

sistematizados em observações de campo, desenvolvidos em áreas susceptíveis às

manifestações e a experiências/vivências dos autores.

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Com propósito de estabelecer diálogo entre a literatura especializada, informações

contidas em documentos oficiais, registros, mapas temáticos, percepções, registros das

observações diretas, a preocupação principal foi visualizar as manifestações e impactos

de riscos ambientais, bem como, as diretrizes bases para o planejamento territorial das

cidades da Praia e da Beira.

3. RESULTADOS E DISCUSSÕES

3.1 Caracterizando os territórios: Cabo Verde e Moçambique

O arquipélago de Cabo Verde localiza-se no setor oriental do Atlântico Norte, a

cerca de 450 km da costa ocidental africana, entre os paralelos 17º 13´ e 14º 48´ N e os

meridianos de 22º 42´ e 25º 22´ W. Possui uma superfície de 4 033 km2 e dispõe de um

espaço marítimo exclusivo que excede 600 000 km2, sendo formado por dez ilhas e cinco

principais ilhéus (Figura-1).

Figura 1: Enquadramento Geográfico do Arquipélago de Cabo Verde. Fonte: DIVA-GIS, 2012.

Segundo Amaral (2007), em função dos ventos alísios, o arquipélago foi dividido

em dois grupos: barlavento (constituído pelas ilhas de Santo Antão, São Vicente, Santa

Luzia, S. Nicolau, Sal, Boa Vista) e o de Sotavento (Maio, Santiago, Fogo e Brava). A sul

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do arquipélago se localiza a ilha de Santiago e a sudeste desta, a capital do país, cidade

da Praia.

Constatam-se ao longo do arquipélago uma grande variedade de manifestações de

natureza ameaçadora e riscos relacionados à seca, desertificação, erosão acelerada,

cheias e/ou inundações de chuvas torrenciais frequentes na época chuvosa, intrínsecos

à posição do País no contexto climático global, assim como, pela sua localização na faixa

do Sahel, abalada pelas tempestades de areia e clima do deserto de Sahara. Outros

riscos relacionam-se a atividade tectogênica, com a origem na formação vulcânica, ainda

ativa, das ilhas do Fogo e registro de vários sismos de fraca magnitude, frequentemente

nas ilhas de São Antão, Brava e Fogo.

Moçambique localiza-se na África Austral, entre os paralelos de 10° 27' e 26º 52'

de latitude Sul e os meridianos de 30° 12' e 40° 51' de longitude este, ocupando uma

área de 801.590 km², banhado pelo Oceano Índico. Com uma extensão de costa

aproximada de 2.500 km, faz fronteira com a Tanzânia, Malawi, Zimbabwe, Zâmbia,

República da África do Sul e Suazilândia. Na região central do País encontra-se a cidade

portuária da Beira, capital política e administrativa da província de Sofala (figura 2).

Figura 2 – Enquadramento geográfico de Moçambique e da Beira

Fonte: DNTF, Moçambique, 2012.

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A localização geográfica de Moçambique nos trópicos e subtrópicos condiciona o

clima tropical, caracterizado por duas estações nitidamente diferenciadas, a estação fria

e seca, entre Maio a Setembro, e a estação quente e úmida entre Outubro e Abril, cuja

precipitação varia entre 800 a 1600 mm ao ano.

O País está susceptível a vários tipos de riscos naturais associados a grande

variabilidade climática, sendo os eventos relacionados com paroxismos climáticos mais

frequentes: cheias, secas, erosão, tempestades originadas por ciclones, incêndios

florestais e epidemias. Como consequência destes tipos de riscos há outros de origem

antropogênica, que acabam por agravar os já citados, como por exemplo, as queimadas

descontroladas, exploração excessiva de caça e pesca e, mais recentemente, a poluição

industrial e a mineração, que constituem problemas ambientais nacionais.

Considerando que Cabo Verde e Moçambique são países que, nos últimos anos,

têm conhecido um desenvolvimento acelerado, sobretudo em áreas urbanas, torna-se

necessário a adequação das políticas de ordenamento do território com vista a suavizar

os impactos e constrangimentos decorrentes dos riscos e vulnerabilidade naturais

produzidos no dia a dia dos citadinos.

3.2. Crescimento urbano e riscos associados

Na análise do crescimento urbano identificado sobre as cidades cabo-verdianas,

Nascimento (2011) afirma que o crescimento urbano é desproporcional ao

desenvolvimento urbano. A mesma autora considera ainda haver vários outros aspectos,

que contribuem para antecipação dos desequilíbrios e impactos ambientais urbanos

como a morfologia do espaço, elevada densidade demográfica, ocupação espacial

espontânea, composição física e química dos resíduos, impermeabilidade do solo que

normalmente se apresenta pavimentado provocando formação de poças de água

estagnada, foco de insetos e outros vetores transmissores de doenças.

A falta de políticas de ajuste territorial adequadas às necessidades humanas e de

organização urbana produzem ainda mau cheiro proveniente do deficiente sistema de

recolha e tratamento do lixo ou pela utilização indevida do espaço público para a

satisfação de necessidades fisiológicas. Ambas as situações evidenciam pouca civilidade,

demanda por serviços, equipamentos e infraestruturas públicas urbanas em decorrência

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do êxodo rural e da incapacidade de melhoramento das condições básicas urbanas

(NASCIMENTO, 2011).

A maior cidade de Cabo Verde, cidade da Praia, tem evidenciado um crescimento

acelerado da sua população, albergando, atualmente, cerca de 27% da população

nacional que foi de 491.683 habitantes, em 2010. (ver gráfico 1).

Em vinte anos, a sua população dobrou, passou de 61.644 em 1990 para 127.832

habitantes em 2010. O aumento populacional tem sido promovido por fluxos

migratórios internos (êxodo rural) e por imigração de cidadãos provenientes dos países

vizinhos da África Ocidental, em decorrência de inúmeros problemas, conflitos e tensões

de diferentes naturezas: política, econômica, cultural, étnica, ética e social.

Gráfico 1: Evolução da população da Cidade da Praia e de Cabo Verde

Fonte: INE - Instituto Nacional de Estatísticas de Cabo Verde.

Pela incapacidade de respostas efetivas das autoridades na provisão de meios e

estratégias adequadas à resolução dos problemas econômicos, sociais e ambientais, os

responsáveis políticos designam este tipo de crescimento de “incongruente” (TAVARES,

2011).

O arquipélago de Cabo Verde sempre foi vulnerável a manifestação de inúmeros

riscos naturais. Todavia, alguns dos riscos se destacam como: cheias/inundação e

movimentos de materiais em vertenes , fenômenos intensificados pela ocupação

sistemática de áreas inapropriadas para habitação como: vertentes declivosas de

encostas e leitos de cheia e valas de drenagem. Ambos os processos foram motivados

pelo crescimento urbano acelerado, principalmente na cidade da Praia, onde não foram

observados acompanhamento de políticas públicas de ordenamento territorial, como

respostas às demandas apresentadas.

1990 2000 2010

Praia 61.644 94.161 127.832

C. Verde 341.491 434.625 491.575

de

hab

itan

tes

Evolução da população, Praia e C. Verde -1990-2010

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Assiste-se, assim, à proliferação de bairros espontâneos em áreas inadequadas à

ocupação humana, devido à inexistência de qualquer tipo de planejamento, infra-

estrutura básica de saneamento, eletricidade e água para consumo. As ocupações nas

vertentes declivosas e nos fundos de vale são, em parte, decorrentes da precaridade dos

serviços da fiscalização do cumprimento da postura autarquica pelo órgao competente

na administração pública do País.

Na cidade existe um grande deficit de habitação, principalmente de tipo social,

ocorrendo, simultaneamente, uma grande especulação imobiliária, gestando

especulação em relação aos preços dos terrenos para construção e/ou as habitações,

traduzindo-se em dificuldade de acesso a terrenos para construção, mesmo sob o efeito

de intervenções da autarquia local.

As inundações e os movimentos em massa, principalmente fluxos e quedas de

blocos são frequentes, contribuindo quer para a degradação ambiental, quer para a

degradação da qualidade de vida dos citadinos. A vulnerabilidade é ainda maior em

zonas de elevada perigosidade, ocupadas pela população de baixa renda, sem grande

capacidade de resposta e de resiliência diante a manifestação de riscos. Estudos e

observações6 revelam que, a construção das habitações não segue nenhuma regra ou

diretrizes de engenharia da construção civil, assim como os materiais usados são

precários e/ou de baixo custo.

Em Moçambique, a crescente ocupação dos espaços urbanos resulta de um

complexo processo de origem alógena, que se implantou em território urbano,

reproduzindo formas de ocupação do espaço e de organização espaciais estranhas ao

ambiente local. Com a independência nacional, esses espaços têm sofrido profundas

alterações e reajustamentos que, apesar da configuração primária de políticas de

reorganização territorial, não têm eliminado o caráter segregador que os caracteriza

(ARAÚJO, 2003).

A cidade portuária da Beira encontra-se instalada na margem esquerda da foz do

rio Pungue, sendo uma área de planície aluvial de baixas altitudes cobertas por dunas de

areia e pântanos de alagamento. Registros sinalizam a chegada dos primeiros habitantes

nos finais do século XIX. Atualmente, a cidade representa um importante centro

6 Judite Nascimento, Carlos Tavares e Outros, são exemplos de investigadores que têm

dedicado a estudos do tipo.

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econômico que liga o litoral, a partir do porto, a vários países vizinhos do interior do

continente Africano.

Segundo o Instituto Nacional de Estatística de Moçambique (2007), a população da

Cidade da Beira é de cerca de 436.240 habitantes, a maioria dos quais habitando em

bairros suburbanos. Nos últimos anos houve um crescimento populacional significativo,

elevando numericamente os indicadores de 46.293, em 1970, para 451.749 habitantes,

em 2010, portanto um crescimento aproximado de dez vezes mais no período de trinta

anos. Dentre as causas do crescimento consideram-se o maciço êxodo rural ocorrido,

simultaneamente, nos períodos da descolonização em 1975, da guerra civil 1976-1992,

bem como pelas altas taxas de natalidade (gráfico 2).

Gráfico 2 – Evolução da população da cidade da Beira, 1970 – 2007.

Fonte: INE- Instituto nacional de Estatística de Moçambique.

O crescimento populacional não tem sido acompanhado pela instalação de

infraestrutura de suporte urbano como rede sanitária, hospitalar, acessibilidade e

drenagem pluvial. A carência desses elementos gera vários problemas ambientais,

comprometendo a qualidade de vida dos citadinos.

Fatores de ordem natural também contribuem para o agravamento da situação, a

exemplo, as crises provocadas pelas cheias e inundações na cidade. Nesse cenário, são

vários constrangimentos produzidos aos cidadãos da Beira, como a dificuldade de

acessibilidade com problemas de trânsito, algumas vezes pondo em perigo a vida e os

bens da população.

O fato da cidade ter sido erguida em campos de dunas e pântanos, associado à

ausência de gestão e planejamento na ocupação do espaço urbano, sistemas de

saneamento deficientes e obsoletos, construções precárias e irregulares, degradação

1970 1980 1991 1997 2007 2010

poulação 46293 214613 294197 397368 436240 451749

de

Hab

itan

tes

Evolução da População da cidade da Beira

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das valas de drenagem pluviomarinhas criaram facilidades para a ocorrência de

problemas relacionados ao saneamento do meio, como acesso e recolha de resíduos

sólidos domésticos, coleta e canalização de esgotos, inundações pluviais e

pluviomarinhas.

Recentemente foram registrados na cidade alguns trabalhos de reconstrução de

infra-estrutura de tratamento de águas residuais, com substituição de condutas

primárias e/ou secundárias, reformas de postos de bombeamento, estações elevatórias

e saídas para o mar; entretanto em alguns bairros superpovoados, ocupados, sobretudo

pelas classes sociais desfavorecidas, como Munhava, Vaz, Chipangara, Goto e

Inhamudima, ainda são muito afetados pelas inundações, que, por sua vez, trazem

doenças infecciosas e parasitárias como malária, bilharziose, cólera, dentre outras.

Segundo o relatório de Política Nacional de População (MOÇAMBIQUE, 1998), as

principais consequências dos problemas ambientais urbanos existentes condicionam a

deterioração da qualidade de vida de uma população, cujas condições já são bastante

comprometidas por outros fatores como o desemprego, baixos rendimentos dos

agregados familiares, insegurança alimentar e insuficiência dos serviços básicos de

saneamento. No seu conjunto, todos estes problemas de natureza socioeconômica e

demográfica afetam, de maneira decisiva, a qualidade de vida dos citadinos.

É possível finalizar estas observações considerando: a elevada susceptibilidade a

eventos perigosos como as cheias e inundações propiciadas pela localização da

população em áreas de risco da cidade da Beira, elevada vulnerabilidade da população

pelas suas características socioeconômicas e demográficas, que são fatores de aumento

dos riscos existentes nos territórios, situação semelhante ao que acontece em Praia,

Cabo Verde.

3.3. Planejamento e ordenamento do território na gestão de riscos

A crescente preocupação pela massiva extração, exploração e consumo dos

recursos naturais, as variadas formas de poluição e os impactos sócio-ambientais

verificados nos últimos tempos desencadearam o surgimento de movimentos em defesa

da conservação e preservação ambientais que, associados aos avanços científicos e

tecnológicos em diferentes campos do saber, contribuíram para pressionar e determinar

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novos paradigmas sobre questões ambientais compatíveis com a evolução das

sociedades.

O planejamento e ordenamento do território constituem-se uma resposta

necessária e urgente a estes movimentos, de forma a assegurar apropriada gestão dos

riscos. Neste sentido queo plaanejamento assume-se como um processo, que procura

fundamentalmente intervir definidamente na realidade sobre a qual se projeta um

território, um município e/ou uma organização com intuito de modificar e orientar rumo

a uma situação diferente e substancialmente melhor que à inicial.

Em sentido amplo, o planejamento consiste na determinação de metas orientadas

por objetivos a médio e longo prazo, com previsão dos meios e formas para que os

objetivos tenham amplas probabilidades de serem alcançados, possibilitando, assim,

controle sobre as fragilidades e ameaças, desenvolvimento de atividade por meio da

definição de estratégias que oportunizem melhor aproveitamento dos recursos.

Estudos e pesquisas desenvolvidos por Rodriguez (2010), abordando experiências

de Planejamento Ambiental no Brasil, usando concepções sobre Geoecologia de

Paisagens, consideram o planejamento da paisagem como um conjunto de métodos e

procedimentos usados para criar uma organização espacial das atividades humanas em

paisagens particulares, visando assegurar a gestão da vida, a gestão sustentável e a

preservação das características básicas das paisagens que sustentam a existência

humana.

Assim, a gestão ambiental objetiva visa, por meio do planejamento, garantir o

ordenamento do território e das atividades humanas, para que estas

provoquem/produzam o menor impacto possível sobre o meio.

Considera-se por ordenamento do território o processo mediante o qual se orienta

a ocupação e utilização do território e se dispõe para melhorar a fixação no espaço

geográfico dos assentamentos (população e habitação), das infraestruturas físicas (as

vias, serviços públicos, as construções) e das atividades socioeconômicas.

Na perspectiva deste conceito, os termos gerir ou gerenciar, articulados ao

planejamento ambiental significam saber manejar as ferramentas existentes da melhor

forma possível, não necessariamente desenvolver técnicas ou pesquisas ambientais

(RODRIGUEZ et al., 2010).

Nesse contexto, a fixação de assentamentos urbanos sobre a Natureza quando

não planejados podem desequilibrar a estrutura determinada pela combinação de

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fatores ambientais e socioeconômicos. O conceito de planejamento, no cenário da

gestão ambiental e dos impactos produzidos pela ação humana, estabelece-se como

elemento mediador e regulador de conflitos entre interesses socioeconômicos, limites

de tolerância e capacidade de suporte dos geossistemas ocupados.

Nas cidades de Praia – Cabo Verde e Beira – Moçambique, o planejamento não

tem sido uma prática integrada ao desenvolvimento sustentável. Tavares (2011), afirma

que, na cidade da Praia, não foi desenvolvido o hábito de planejar de forma coerente e

sistemática, com uma visão inclusiva na gestão do solo.

Torna-se importante destacar que só recentemente, no decorrer do ano 2012, foi

apresentado o Plano Director Municipal (PDM) da Praia.

Assim, a mitigação dos problemas territoriais passará pela elaboração de planos e

pela execução de políticas, apostando na prevenção como forma de melhorar a

qualidade de vida das populações.

Ainda neste contexto, Tavares (2011), sugere uma série de medidas para mitigação

de problemas, como um Sistema de Cadastro Predial confiável. Dados desse Sistema de

Cadastro Profissional subsidiará transparência relativamente à propriedade que servirá

de suporte, entre outros aspectos, para a gestão do território e para o estabelecimento

de políticas de solos e de habitação, como forma a minimizar os riscos de exclusão social

e urbanística de grande parte da população residente, que podem comprometer a

sustentabilidade urbana.

Alternativa complementar apresentada vai à direção de organizar e implantar

políticas de ordenamento do território, que deem atenção à necessidade de criação de

condições nos centros secundários, como forma de aliviar a pressão demográfica nos

centros urbanos e preservar as áreas rurais como espaços atrativos, de modo a

contrariar a tendência atual do êxodo rural.

Uma política urbana integrada ao uso e ocupação dos solos e a necessidade

urgente de repensar nos bairros espontâneos para enquadra-los em planos de

recuperação/requalificação e/ou reordenamento, de modo a assegurar o crescimento

integrado (TAVARES, 2011).

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4. CONCLUSÕES

A temática dos riscos assume cada vez mais destaque na atualidade e as suas

manifestações são uma das maiores evidências dos desequilíbrios causadas pelas ações

humanas ao meio ambiente. O crescimento desordenado das áreas urbanas, produzido

sem o acompanhamento de infraestrutura básica, ocupação das áreas de riscos e a falta

de políticas que visem um desenvolvimento sustentável integrado criam fragilidades

ambientais que, por vezes, potencializam grandes desastres.

Verifica-se um aumento dos riscos urbanos potencializados, não exclusivamente

pelo aumento dos fenômenos perigosos, mas também pelo aumento da vulnerabilidade.

Observa-se ainda que territórios com maior fragilidade ambiental foram ocupados por

grupos e/ou comunidade de população mais carente, com baixos rendimentos, o que faz

com que essa população tenha uma precária capacidade de resistência e resiliência

frente aos eventos perigosos, cenários mais evidentes nos países em desenvolvimento,

onde a vulnerabilidade da população é acentuada.

Este estudo avalia os casos da cidade de Praia em Cabo Verde e Beira em

Moçambique, territórios susceptíveis a vários riscos naturais, sociais e ambientais

potenciados pelas ações antropogênicas. As cheias, inundações e deficiente sistema de

drenagem e saneamento do meio são destacados como fenômenos perigosos muito

frequentes nestas cidades, criando vários constrangimentos principalmente às

populações urbanas, acentuando o estado de exclusão e abandono a que são

submetidas.

O planejamento e o ordenamento do território constituem-se como resposta para

minimização dos riscos, sendo, no entanto, ainda pouco presente nas práticas de gestão

dos territórios em análise. Desta forma, os dados analisados evidenciam necessidade

urgente de criação de rotinas de planejar e fiscalizar a ocupação de territórios para

acompanhar a dinâmica acelerada do seu crescimento, por forma a atingir um

desenvolvimento integrado e sustentável.

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