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Lucio Kowarick VIVER EM RISCO

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Lucio Kowarick

VIVER EM RISCO

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Editora 34 Ltda.Rua Hungria, 592 ]ardim Europa CEP 01455-000Sao Paulo - SP Tel/Fax (11) 3816-6777 www.editora34.com.br

Copyright © Editora 34 Ltda., 2009Viver em risco © Lucio Kowarick, 2009Fotografias © Antonio Saggese, 2009

A FOToc6PIA DE QUALQUER FOLHA DESTE L1VRO E ILEGAL E CONFIGURA UMA

APROPRIA<;AO INDEVIDA DOS DIREITOS INTELECTUAIS E PATRIMONIAIS DO AUTOR.

Capa, projeto grafico e editora<;ao eletronica:Bracher & Malta Produ~iio Grafica,Fotografias das paginas 174-5, 192-3,206-7,236 e 276:Thomaz Farkas

Fotografias das paginas 254-5, 256 e 257:Lucio Kowarick

Revisao:Mell Brites

CIP - Brasil. Cataloga<;ao-na-Fonte(Sindicato Nacional dos Editores de Livros, R], Brasil)

Kowarick, LucioK88v Viver em risco: sobre a vulnerabilidade

socioeconomica e civil/Lucio Kowarick; fotografiasde Antonio Saggese. - Sao Paulo: Ed. 34,2009.320 p.

ISBN 978-85-7326-429-6

1. Sociologia urbana. 2. Movimentos sociais.3. Polftica urbana. 4. Sao Paulo (SP) - Condi~oessociais. I. Saggese, Antonio. II. Titulo.

Parte IOlhares cruzados:

Estados Unidos, Fran~a e Brasil

~ 1. A questao da pobreza e da marginaliza~aonas sociedades americana e francesa .

{ 2. Sobre a vulnerabilidade no Brasil urbano .~

Parte IISobre a vulnerabilidade em bairros populares:

sociologia, historia e etnografia

\3. As areas centra is e seus corti~os:

dinamismos, pobreza e politicas .(J.Autoconstru~ao de moradias em areas perifericas:

os significados da casa propria .5. Favelas: olhares internos e externos .

6. Considera~6es finais: vulnerabilidadesocioecon6mica e civil em bairros populares .

163223

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~OBRE A VULNERABILIDADE NO BRASIL URBANO

"Neste sentido ela [a pobreza] tem sim uma finalidade, qualseja, a de reproduzir a ordem social que e sua desgra<;a. Co-mo ficamos?"

Este capitulo tern por objetivo discutir a vulnerabilidade so-cioeconomica e civil. De imediato, deve ser enfatizado que, nopercurso dos anos 1980 e 1990, consolidou-se urn sistema poli-tico democratico, baseado no voto secreta e universal, competi-~ao partidaria, alternancia nos varios escal6es dos legislativos eexecutivos e controle pe!o poder judiciario do processo eleitoral.Ha muitas crfticas a serem feitas quanto a corrupc;ao, influenciada midia ou as poderosas press6es do mundo economico e doscurrais eleitorais, mas, comparando-se a anos anteriores, creioser possive! afirmar que nao hi deficit de democracia politica noBrasil (Kowarick, 2000a: 108-10).

o mesmo nao se pode dizer dos direitos civis. Em particu-lar, da igualdade perante a lei, da propria integridade ffsica daspessoas e dos direitos sociais - acesso a moradia digna, servic;osrnedico-hospitalares, assistencia social, niveis de remunerac;aoadequados. Isto para nao falar no desemprego, nas multiplas mo-dalidades arcaicas e modernas de trabalho precario, autonomo eassalariado, ou na enorme fatia das aposentadorias que produzurna velhice muitas vezes marcada por acentuados graus de po-

~b~a I" .vu nerabIildade no BrasIl urbano

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breza. Em suma: vulnerabilidade em rela<;:aoa direitos basicosna medida em que os sistemas publicos de prote<;:aosocial nao s~sempre foram restritos e precarios como tambem, em anos recen_tes, houve desmonte de servi<;:ose novas regulamenta<;:6eslegaisque se traduziram na perda de direitos adquiridos. Quanto a vul-nerabilidade civil, nao obstante alguns intentos de tornar cenosgrupos - crian<;:as,jovens, mulheres ou idosos - mais protegi_dos nos seus direitos, basta olhar as notkias e as estatfsticas es-tampadas na imprensa acerca de atos criminais perpetrados porbandidos e pela polkia, muitas vezes impunes, que revela~ a fra-gilidade do Estado em urn atributo basico, 0 monop6lio legftimo~Iencia. --.,,- Antes de enfrentar a questao da vulnerabilidade socioeco-nomica e civil da atualidade brasileira, convem apontar que aproblematica da "exclusao", sob varias nomenclaturas concei-tuais, tern larga tradi<;:aonas nossas ciencias socia is. Ret6rica eenfaticamente, sempre se falou em "capitalismo excludente", e amesma adjetiva<;:aofoi tambem usada para dinamica produtiva,industrializa<;:ao, urbaniza<;:aoou para alian<;:ase sistema polfti-co. 0 entendimento era que mudan<;:assignificativas - diversifi-ca<;:aoe crescimento economico, migra<;:aopara as cidades e asoportunidades socioeconomic as e polfticas que estes processosabriam - sempre deixavam de incorporar grandes parcelas nosbenefkios do desenvolvimento e da moderniza<;:ao. Estes eramincompletos, inacabados, elitistas ou ate predat6rios, para asvers6es interpretativas que associavam 0 crescimento a pobreza,cuja sfntese combinava os desiguais em urn conjunto tenebroso:a Belindia, mistura atrofiada de Belgica e India, especie de "orni-torrinco tupiniquim".

Urn momento aureo deste debate ocorreu em torno dos anoS1960-1970. Fruto das ebuli<;:6esda epoca - desconsolida<;:aoeexperiencias socialistas em pafses recem-independentes da Africa,os multiplos protestos e greves nacionais, Cordaba<;:ose Bogota-<;:os,que eclodiram em varios pafses do continente e, sobretudo,as esperan<;:asdepositadas na Revolu<;:aoCubana, sem falar na

, do guevarismo e seus desdobramentos guerrilheiros, ournistIca re da transi<;:aopacifica ao socialismo de Salvador AI-massacnO estes debates pensavam e agiam na supera<;:aodo subde-lende-, , d h' N A' .

I 'mento: malS 0 que nunca aVIa uma uestra menca.enVO VIs Nao pretendo mergulhar nos meandros desta discussao que

muito transcendeu 0 mundo academico. Quero apenas assi-e~ar que 0 ambiente intelectual daquela epoca induzia a feitura~: analises criticas e abria caminhos para investigar de forma en-a'ada acerca das impossibilidades de nossas sociedades se de-

~e~volvereme se emanciparem no ambito do sistema capitalistade produ<;:ao.Refiro-me ao debate que se processou em torno daquestao da marginalidade, cujo alicerce se apoiava nas teoriasmarxistas das classes sociais, seu(s) partido(s) e suas capacidadesde construir alian<;:ase, portanto, fomentar hegemonias nos pro-cessos de transforma<;:aono contexto de sociedades perifericas edependentes (Zenteno, 1973). Nos limites deste texto nao possotra<;:aros percursos desta acirrada discussao, mesmo porque a re-leitura dos textos quarenta anos depois, por nao se estar mais nocalor da hora, requer cautelas decorrentes do esfriamento dosacontecimentos: 0 sentido deste rapido desvio e levantar algunspoucos temas desta polemica que podem, eventualmente, alimen-tar 0 debate atual ou, pelo menos, alertar que ele tern uma ricatradi<;:aote6rica e polftica.

o primeiro ponto refere-se a ferrenha oposi<;:aoFernando~enrique Cardoso versus Jose Nun, que nao decorre apenas dediferentes leituras, por sinal marcadamente exegeticas dos Grun-drisse e de 0 C p' I ' I' d ,. d 'I' , a Ita, mas que e, a em e teonca, e cunho po-ItlCO (N 1969un, : 178-238' 1972· 97-128' e 2001· Cardoso1971 . ,.",

a. 99-130). Isto porque os autores apresentam concep<;:6es°POstasquanto a (dis/a)funcionalidade do exercito industrial de~:se~va,0 que nada tern de banal sobre as dinamicas e identida-in~ as classes trabalhadoras e, primus inter paris, 0 operariado

UStnal tid ' , ,dade ,', 0 por mUItos como sUJeltoque ocupava a centrali-

Polttlca n l' dforrn _ as a Ian<;:as e classes e, portanto, motor das trans-a<;:oeshist6ricas.

Sobrea vulner bTd

a I I ade no Brasil urbano

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A ebuli~ao mais ampla deste campo de discussao dava-seem torno das teorias da dependencia. Nao pretendo tra~ar as ver-tentes interpretativas que marcaram suas ramifica~oes (Dos San-tos, 2000). Simplesmente aponto para 0 fato de que no centro daquestao, novamente, esta Fernando Henrique Cardoso, acompa_nhado na epoca por Enzo Faletto na seminal e multitraduzidaobra sobre as potencialidades do desenvolvimento economico nassociedades da periferia do capitalismo (Cardoso e Faletto 1970·, ,Cardoso, 1971b, 1974 e 1980). Penso ser correta a afirma~ao deque, para esta matriz interpretativa, nao ha irredutibilidade en-tre dependencia e crescimento/diversifica~ao economica, pois 0

processo de acumula~ao do capital nao precisa - pelo menosnos paises que avan~aram na industrializa~ao como Brasil, Me-xico e Argentina - se dinamizar na redu~ao salarial e aumentoda jornada, isto e, na extra~ao de mais-valia absoluta. Tampou-co os setores "arcaicos" da economia, protagonizados de modoexemplar pelas atividades do assim chama do setor informal -ambulantes e biscateiros de toda ordem, os servi~os pessoais eas infindaveis tarefas executadas pelo imenso reservatorio demao de obra -, teriam maiores significa~oes no rebaixamentodo custo de reprodu~ao e reposi~ao da for~a de trabalho: nao ha-veri a razoes historicas e estruturais para que as leis gerais da pro-du~ao capitalista da periferia industrializada deixassem de estarassentadas no aumento do componente tecnico da composi~aoorganica do capital, impulsionado pela extra~ao relativa de ex-cedente. Tambem nao haveria tendencias a estagna~ao ou ao au-mento de desemprego, pois suas taxas seguiriam os ciclos de re-tra~ao e expansao do sistema economico; nem, em decorrenciada perversa distribui~ao de renda, haveria subconsumo de gran-de parcela da popula~ao. Nao necessaria mente ocorreria aumen-to da pobreza e da miseria e haveria avan~o nas modalidades deprodu~ao e de explora~ao do trabalho; avan~o dependente, masavan~o no crescimento economico. Em sintese: 0 desenvolvi-mento dependente mostrava-se caminho historico passive! de ser

trilhado.

penso que Ruy Mauro Marini foi 0 autor que de modo maisbrangente e radical se opos a esta versao, moldada no desenvol-

a. e<Atisrnoperiferico. Sua obra, como a de Cardoso tern urnVIm". '

urso sempre atuahzado no debate academico internacionalp~ .Sua evolu~ao nao apresenta senti do linear, mas guard a alguns fioscondutores recorrentes, tanto nas indaga~oes cientifico-metodo-logicas - e, como nao podia nem deveria deixar de ser, nas cien-cias humanas da epoca -, como nas premiss as de carater politi-co_ideologico (Marini, 1969, 1973 e 2000).1

Ao contrario das coloca~oes "desenvolvimentistas" suma-ria mente antes esbo~adas, a obra de Marini ira insistir na ocor-rencia nao virtual nem preterita do processo de superexplorafCtOdo trabalho, que combina mais-valia relativa com absoluta e fazdesta ultima urn elemento basico do processo de acumula~ao decapital. Basico porque vital na acelera~ao de extra~ao do exce-dente, ou seja, intrinseco ao proprio processo de cria~ao de ri-quezas. Suas consequencias: rebaixamento salarial, aumento dajornada de trabalho, desemprego e subemprego cronicos, con-centra~ao de renda aparentemente contraditoria em rela~ao aograu de desenvolvimento e diversifica~ao da economia. Aparen-cia que esconde 0 subconsumo das camadas trabalhadoras urba-n~s e rurais e espelha urn modelo espoliativo e predatorio de cres-Clmento baseado em bens de consumo e pouco voltado para 0

~ercado interno de massa. Em suma: estas sociedades da perife-ria do capit l' . l' . da Ismo ten am els gerais e acumula~ao inerentes aodesenvolvimento dependente periferico que reproduz antigas for-mas ao me d ._' smo tempo que pro uz novas modahdades de produ-~ao capital" t d . .'. IS a, estrutura as no paupensmo, deslgualdade e mar-gmahzarao bd ."'" , no su esenvolvlmento social e econOmico.

--I Nilo vOu' .estas b anahsar os cammhos da problematiza"ilo por que passam

o ras nem" . -conci!'" replsar as tnlhas que levam a oposl"oes argumentativas nilolavelS nos ' .de urn I d seus postulados e resultados anallticos. De modo especial

a 0 S ', erra e Cardoso (s.d.); de ourro, Marini (2000).

Sabrea vulner b'I'da 1 Jade no Brasil urbano

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For~o 0 argumento, pois penso nao distorce-Io ao afirmarque prevalece, de uma parte, a afirma~ao de que 0 desenvolvi_mento periferico nao se contrapoe a reformas sociais e economi-cas na dire~ao de ampliar direitos basicos de cidadania e consoli-dar sistemas democraticos. De outra, sublinha-se que as mazelassociais e economicas sao de carater estrutural, 0 sistema demo-cdtico e formal e ineficaz para enfrentar as crescentes desigual-dades, ao mesmo tempo em que se reafirma que a supera~ao des-tas contradi~oes esta fora do horizonte do sistema capitalista. As-sim, a ruptura radical constitui a unica forma de supera-Ias e 0

corolario desta afirma~ao e que 0 socialismo e desejavel e possi-vel (Frank, 1969a e 1969b). Seguindo certa tradi~ao marxista dopensamento socialista, 0 apartheid presente nos processos urba-no-industriais de nossas cidades so poderia ser enfrentado pelarevoluf;ClOsocial: eis a ultima frase de urn ensaio que muito mar-cou as analises dos anos 1970 e que, com sentido e significa~aodiversos da epoca em que foi formulado, pode ganhar atualida-de teorica para checar as virtualidades da expansao capitalistanas sociedades perifericas (Oliveira, 1972).

Nao estou afirmando que estes debates tiveram importan-cia decisiva no processo de transforma~ao social daqueles tem-pos. Sem sombra de duvida, houve acontecimentos que tiveramreflexos diretos no pensamento e na a~ao poHtico-partidaria. Bas-ta relembrar Che Guevara em Punta del Leste, em 1961, no ini-cio da Alian~a para 0 Progresso, referindo-se a estrategia de de-senvolvimento entao adotada por iniciativa do governo america-no na gestao Kennedy como a "revolu~ao das latrinas", aludin-

b' ' d' ca Oudo aos programas de saneamento aslCOaventa os na epo .o guevarismo simbolo de pureza e coragem revolucionaria, seu, ,

, ' d' quen-isolamento e morte na Bohvla poucos anos epOlS,as consecias para os movimentos guerrilheiros latino-americanos advin-das das interpreta<;:oesfoquistas ou 0 esmagamento do Chile so-

, d f tendascialista de Salvador Allende. Dlante estes atos, as con, d d 'f" eO de-teorico-poHticas sobre as classes nas SOClea es pen encas

F ' ssalva,senvolvimento dependente tornam-se opacas. elta esta re

-0 tenho duvida em afirmar que estes debates alavancaram de~ 'I" da teoricamente conslstente e po Itlcamente ma ura os pos-formulados e teses do reformismo versus a revolu~ao e, por conse-

t 'nte ganharam vasta visibilidade poHtica na historia do pen-gUl , , ,

enW cdtico latmo-amencano.samTalvez tivessem sido pesadamente economicistas, faltando-

-Ihesingredientes da tradi~ao - inclusive latino-americana - doensamento gramsciano. Talvez tenham sido marcadamente es-

~ruturalistas, seguindo modelos explicativos apoiados em pro-posi~oes epistemologicas da escola althousseriana e, certamente,deixaram de abordar a forma~ao das classes socia is atraves dassuas experiencias cotidianas de luta, seguindo a tradi~ao da his-toriografia marxista inglesa. Contudo, as analises nao so encara-yam os macroprocessos historic os e estruturais como entravamno merito das alternativas destes percursos, enfrentando questoesteoricas e polfticas estrategicas para 0 porvir da Nuestra Ameri-ca. Escantearam, definitivamente, as interpreta~oes etapistas domarxismo genetico-finalista ou da evolu~ao gradualista da teoriada moderniza~ao. Sobretudo, superaram as vertentes dualistas,insistindo que 0 todo continha partes desiguais, mas que estasdesigualdades se combinavam atraves de process os sociais e eco-nomicos em que os elementos "arcaicos", "tradicionais" ou "sub-desenvolvidos" nao eram pesos que entravavam a dinamiza~aodas engrenagens produtivas, mas, ao contrario, constituiam ele-mentos que davam suporte ao processo de cria~ao de riquezas.Neste sentido, vale frisar que a questiio da marginalidade nao foiequacionadora enquanto algo a parte, excluido das dinamicasbasicas da sociedade, mas como uma modalidade de inclusao in-termitente, acessoria, ocasional, marginal, porem integrante doprocesso produtivo. Nada mais oposto, portanto, da situa~ao deeXc!usao' fi - ', ' se por lSSOse entender con gura~oes de deshgamentosocial e e A,conomlCo que conformam urn mundo isolado:

"Seria util e conveniente retornar as importantese solidas 'I' I' , b 'I' bana lses atmo-amencanas e rasl elras so re

Sobrea vulner b'!'dall ade no Brasil urbano

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marginalidade social desenvolvidas nos anos 1960 e1970. [...] As pollticas economicas atuais, no Brasil eem outros paises [...] implicam a proposital inclusaoprecaria e instavel, marginal. [...] Discutimos a exclu-saDe, por isso, deixamos de discutir as formas pobres,insuficientes, e, as vezes, ate indecentes da inclusao"(Martins, 1997: 16 e 20-1).

minina e constantes redw;oes dos nlveis de remunera<;:ao- 0 queapresenta caracterfsticas altamente predat6rias, como a utiliza-"ao, na ponta da cadeia produtiva, do trabalho infantil. Trata-se,portanto, de gera<;:aode excedente apoiada fortemente na extra-"ao de mais-valia absoluta, sem mencionar que parte deste pro-cesso se assemelha ao putting out, marca genuina da assim cha-mada acumula"ao primitiva: a for"a motriz desta modalidade deexplora"ao do trabalho dinamiza-se em unidade industrial mo-derna, tecnologicamente avan<;:ada,sediada em Sao Bernardomunicipio da Grande Sao Paulo, de grande tradi<;:aode luta ope~rario-sindical; por conseguinte, tudo leva a afirmar que, em re-gioes de industrializa<;:aomais recente, estas formas de cria<;:aoderiqueza tambem ocorram, talvez ate com mais brutalidade (Lei-te,2000).

Para nao ser exaustivo, finalmente remeto a necessaria e in-completa discussao acerca da perda da centralidade economica epolltica do proletariado industrial, relacionada com 0 aumentodo ~etor terciario, da flexibiliza<;:aoe da externaliza<;:aoda pro-du<;:aofabnl e dos servi<;:os,do incremento da mao de obra auto-noma, do trabalho em domicilio infra e superadestrado da vas-ta desqualifica<;:aoda mao de obra e da retra<;:aodo em;rego re-g~la~e formal: em face destas e outras mudan<;:asradicais nas di-namlCoasde gera<;:aode excedente, cabe questionar os significadose s~ntldos das classes trabalhadoras de nossas atualidades capi-tahstas (Or . 2000) ,.. lvelra, . Por ultimo: se 0 socialismo saiu do ho-nZOntedo °d 0 d .

_ S I eals e as utopias ese, ademais, a ideia de revolu-~ao perdeu fo bOlo dn;:amo I Iza ora porque, entre Outras raz6es co-mo Saturno I d 's ' e a tern evorado seus filhos, permanece 0 vasto fos-o que cara 0 '.

ctenza 0 aparthezd sOCIal de nossas cidades.

Para melhor entender os processos que produzem a vastavulnerabilidade social e economica, talvez seja pertinente reto-mar algumas quest6es colocadas pela discussao em torno da teo-ria de marginalidade. Inicialmente, analisar de maneira interliga-da as varias formas de desinser<;:aoda mao de obra no sistemaprodutivo: a expansao de tarefas "tradicionais" centradas no tra-balho autonomo e informal, conjuntamente com as "novas" ati-vidades decorrentes da ampla terceiriza<;:aoda dinamica financei-ra, fabril, comercial e de servi~os, que se traduz na redu~ao dosassalariados permanentes e regulares, no espetacular crescimen-to da fra~ao estagnada do exercito de reserva, enquanto diminuia intermitente pela redu~ao do emprego formal, para nao men-cionar a explosao das atividades legais e ilegais que se avolumamna degrada~ao e miserabilidade do lumpen. Colada a esta ques-tao social e economica, reaparecem as multiplas modalidades derebaixamento do custo de reprodu<;:aoe reposi~ao da mao de obrae para tanto (como sera analisado a seguir), basta focalizar 0 au-mento dos moradores em favelas nos ultimos anos. Por que te-mer 0 conceito de superexplora(:iio da for(:a de trabalho, quan-do se sabe que a industria automobillstica, em seu nucleo fabrilbasico, tern alterado as formas gerenciais e produtivas apoiadasna robotiza~ao e na flexibiliza~ao, sem que haja aumento da mas-sa salarial e do nivel medio da remunera~ao, ao mesmo tempOque externaliza a fabrica~ao de pe~as atraves da montagem emcadeias produtivas regida por rigorosos controles de qualidade?

Isto faz com que nelas impere a intensifica~ao do ritmo pro-dutivo, aumento da jornada, ampla utiliza~ao de mao de obra fe-

ATDALIDADES CONCEITDAIS

Nao vou a f dtrarern pro un ar as raz6es que fizeram estes temas en-ern declinio no '0 l' 0 d ., 0cenano ana ItlCO as ClenClassociais no

Sobrea vulnerab'l'd

I I ade no Brasil urbano

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Brasil, mesmo porque este foi urn movimento que transcendeuem muito nossas fronteiras. De todo modo, a perda de for~a he-gemonica do assim chamado marxismo ocidental e suas conse-quencias na desesperan~a do ideario socialista, no descredito dasrupturas e supera~6es, violentas ou pacfficas, e nas destitui~6esda centralidade do mundo operario-fabril que ocorreram com 0

avan~o da ultima revolu~ao cientifico-tecnologica, ocasionaramprofundas mudan~as nos modos de equacionar a questiio social,na acep~ao das interroga~6es que balizam os problemas basicosda nossa sociedade: as anos 1980 foram marcados par estudossabre as lutas nas aglutina~6es de bairro que passaram, nao ra-ras vezes, a ser encaradas como principais impulsionadoras dasmudan~as socia is e politicas de cunho mais amplo (Kowarick,2000a). Por outro lado, muito esfor~o foi despendido para ad-quirir uma visao analitica mais sistematica acerca do carater doregime autoritario implantado no pais p6s-1964 e da lenta e gra-dual transi~ao politica que se acelerou na decada de 1980, enfa-tizando, de modo particular, as mudan~as institucionais do siste-ma politico (Miceli, 1999).

Do angulo deste texto convem reafirmar que os deficits nosaspectos civis, sociais e economicos da cidadania continuaramamplos nos anos 1990-2000. Nao cabe aqui detalhar as inume-ras formas de vulnerabilidade quanto ao emprego, aos servi~osde prote~ao social ou ao aumento da violencia criminal. Contu-do, cabe ressaltar que estes processos produziram urn campo deinvestiga~6es centra do na questao da fragiliza~ao da cidadania,entendida como perda ou ausencia de direitos e como precariza-~ao de servi~os coletivos que garantiam uma gama minima deprote~ao publica para grupos carentes de recursos - dinheiro,poder, influencia - para enfrentar intemperies nas assim deno-minadas metropoles do subdesenvolvimento industrializado.

Para ir ao ponto que interessa sublinhar, vale a cita~ao:

"[ ...] a questao social e 0 angulo pelo qual as so-ciedades podem ser descritas, lidas, problematizadas

em sua historia, seus dilemas e suas perspectivas de fu-ruro. [...j Essas diferencia~6es e segmenta~6es (sociais,economicas e civis) [...] podem ser tomadas [ j comoa contraface de uma destitui~ao de direitos [ j Trata--se de uma destitui~ao [...] que, ao mesmo tempo emque gera fragmenta~ao e exclusao, ocorre em urn ce-nario de encolhimento de legitimidade dos direitos so-ciais" (Silva Telles, 1996: 85 e 90).

Neste sentido, qual e nossa questiio social? Ha varias, mastalvez aquela que mais se sobressai no ambito das rela~6es entreEstado e sociedade reside na dificuldade em expandir os direitosde cidadania: depois de uma decada de lutas e reivindica~6es,num contexto em que gradualmente consolida-se urn sistema po-litico democratico, deixa de ocorrer urn enraizamento organiza-torio e reivindicativo que consolide urn conjunto de direitos ba-sicos. Eles podem estar na Carta de 1988, mas nao se traduzemno fortalecimento de urn campo institucional de negocia~ao deinteresses e na arbitragem de conflitos, nem em pol1ticas socia isde alcance massivo: nao ocorreram processos que levassem a con-solida~ao de uma condi~ao do empowerment de grupos e cate-gorias da sociedade civil (Friedman, 1992).

Contudo, esta fragiliza~ao de direitos nao pode ser vista en-quanto decorrente da crise da sociedade salarial (Castel, 1995a).Isto porque, na acep~ao forte do termo, nunca houve semelhan-te ~odalidade de sociedade no Brasil, e tampouco na AmericaLa,tlll~,nem no Chile de Allende ou na Argentina de Peron, daspnmelras epocas d - d l' ' 'bl'I

_ e expansao as po ltlcas pu lcas. Isto porquee a nao sup- foe apenas que a or~a de trabalho esteja majoritaria-mente empr d d ', I _ ega a e manelra permanente e regular quanto a le-gISa~ao vig I I' ,te id ente. mp lCa tambem urn percurso profissional pro-n~ ,0 por Contratos coletivos que levem a ascensao social e eco-omlca Ou 1tra' " ,pe 0 menos, garantam certos direitos aos que nesta

letona fa 1"Ihad rem a !Jados do mercado de trabalho. Como deta-o no capitulo anterior, os substratos hist6ricos deste longo

Sobrea vUlnerabTd

I I ade no Brasil urbano

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processo estao na sedimenta<;:aode institui<;:6espollticas, sindi-cais e comunitarias que produzem experiencias de organiza<;:aoede luta e nas constru<;:6esde valores e discursos que dinamizamas energias das identidades e oposi<;:6es.Alem de prote<;:6ese ga-rantias que transcendem em muito 0 mundo do trabalho, elaconstitui urn campo institucional de negocia<;:aoe arbitramentoque se estrutura na virtualidade de amp/iar os direitos socioecono-micos e civis. No caso frances, basta se debru<;:arsobre 0 proces-so historico que leva ao reconhecimento do desempregado paraperceber que a constru<;:aoda sociedade salarial e plena de confli-tos e negocia<;:6esque acabam por produzir 0 reconhecimento pu-blico do assalariado enquanto sujeito de direitos coletivos quan-do se encontra alijado do processo produtivo (Topalov, 1994):este certamente nao e nosso caso, pois as garantias do (nao) tra-balhador sempre foram restritas e frageis.

o mfnimo que se pode dizer e que no Brasil jamais houveinstitui<;:6espollticas sindicais ou comunitarias com for<;:asufi-ciente para garantir a efetiva<;:aode direitos basicos do mundo dotrabalho ou proteger 0 morador, transeunte e usuario de servi<;:osbasicos das intemperies do mundo urbano. Houve, sem duvida,ilhas de moderniza<;:ao economica e dinamiza<;:ao social, cujoexemp.lo mais evidente foi 0 municfpio paulista de Sao Bernardodo Campo dos anos 1970 e 1980, energizado pelos trabalhado-res das grandes empresas, pela a<;:aoreivindicatoria impulsiona-da pelo "novo sindicalismo", pelo emaranhado de bairros ope-rario-populares, onde pipocavam multi pias lutas urbanas, nasquais as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) tinham presen<;:asignificativa e, neste contexto de ebuli<;:aosocial e polltica, nas-ce 0 Partido dos Trabalhadores, ao mesmo tempo impulsionadoe impulsionador dos movimentos sociais (Sader, 1988; Singer eBrant, 1981).

Esta foi uma experiencia limitada no tempo e no espa<;:o,es-pecie de luz que iluminava as a<;:6espollticas nos seus esfor<;:osdeampliar os direitos que permaneciam restritos a urn palido e atrO'fiado Estado de Bem-Estar. Repensando os anos 1970 e 1980,

. que tfnhamos como parametro teorico - e polftico-ideolo-creW'co - os setores mais organizados da classe trabalhadora urba-

g~_industrial. Para alem de todas as iniquidades socioeconomi-n e arbitrariedades pollticas, estava se constituindo na esteiracasda acumula<;:aofordista e do modelo nacional-desenvolvimentis-ta inaugurado em 1930 e alavancado no segundo pos-guerra, ni-chos estreitos do ponto de vista quantitativo, mas com crescentevisibilidade polltica, que vislumbravam a possibilidade de umasociedade salarial: comparada aos pafses avan<;:ados,ela seria ra-quftica nao so pela estreiteza das pollticas publicas, mas porquelhe faltavam experiencias, identidades e institui<;:6esque dessemfor<;:aas lutas operirio-populares e que forjassem urn campo dedireiros que estivesse na base das reivindica<;:6ese negocia<;:6esco-letivas. Este quadro era muito tosco, mas servia como farol queiluminava a luta pela extensao e consolida<;:ao dos direitos decidadania. Os "cinquenta anos em cinco" de ]uscelino consti-tufam a metafora deste modelo desenvolvimentista, centrado naGrande Sao Paulo, cuja cidade, dizia-se na epoca com orgulho,era a que "mais crescia no mundo". Eo "momento de fusao" daslutas urbano-operarias, cujo clfmax foram as greves metalurgi-cas do final dos anos 1970 e seu espraiamento para outros seto-res no percorrer do decenio seguinte. Abre-se entao uma longaconjuntura de lutas que, nao obstante seu vigor, raramente atin-gem suas reivindica<;:6es,traduzindo-se, no mais das vezes, na-quilo que se convencionou denominar "experiencias de derrota"(Kowarick, 2000a): eo perfodo dos anos 1980, no qual configu-ra-se uma blocagem na mobilidade social ascendente, fato inedi-to na historia republicana. A movimenta<;:aooperario-sindical te-ve efeitos diminutos ou nulos do ponto de vista da expansao dosdireitos: a moderniza<;:aotecnologica, produtiva e organizacionalsignificou destrui<;:aodo trabalho assalariado permanente e re-gular, em grande parte substitufdo pelo emprego precirio, flexf-vel, instavel, irregular, autonomo, informal ou outras designa-~~es.0 resultado foi uma "terceiriza<;:aosuja e predatoria [naoso, cliria eu] na ponta da cadeia produtiva da empresa" (Rizek e

Sabre a vulnerabilidade no Brasil urbano

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Silva, 1996). Algumas cifras: em 1990, 36% dos que moraval1lou trabalhavam em Sao Paulo desenvolviam tarefas assalariadasou autonomas marcadas pela informalidade, parcela que nOVeanos depois so be para 49%, isto e, quase 2,2 milh6es de pessoasao passo que, em perfodo equivalente 0 emprego assalariado for~mal decrescia em 18%:

aumento na esperanc;:a de vida, maiar proporc;:ao de do-uente

seq, ervidos por rede de agua, esgoto e coleta de lixo, ou a'cfllOS s

rn1 tagem de crianc;:as e jovens nas escolas e a queda nas taxasPorcen Ih' , 'fl '

Ifabetismo - ocorreram me onas slgm catlvas.de ana

Tabela 1EVOLU<;:Ao DA FOR<;:A DE TRABALHO

Regiao Metropolitana de Sao Paulo, 1989 e 2001"A maio ria esta na informalidade em razao dodesemprego e a ampla maioria tern como demanda aregulamentac;:ao da atividade [... J Ela tern urn lugar nacadeia produtiva [... J Pocem, isto nao signiflca que es-ta inserc;:ao seja importante na gerac;:ao de renda. Pelocontnlrio, esta integrac;:ao e extrema mente precaria e,alem de nao garantir 0 acesso aos direitos sociais e tra-balhistas basicos [... J, ela se caracteriza par uma ren-da muito baixa" (CUT, 2000: 9).

Caracterizas;ao da fors;a de trabalho

~mento medio (indice)Contratos flexibilizados (%)1

Desemprego total (%)Mais de 12 meses procurando emprego (%)

Duras;ao media da procura de trabalho em semanas

1989

100,020,9

8,72,9

15,0

2001

70,235,417,622,348,0

1 Assalariados sem carteira, servis;os terceirizados e autonomos que traba-lham em empresa,Fonte: DIEESE/SEADE: Pesquisa Emprego e Desemprego (PED), 2003,

Vale apontar que na Regiao Metropolitana de Sao Paulo aevoluc;:ao dos dados nos anos 1990-2000 indica urn desempenhoeconomico perverso para grande parte dos trabalhadores quan-to aos nfveis de remunerac;:ao, desemprego, desassalariamento etrabalho irregular, reproduzindo uma vasta situac;:ao de pobrezae vulnerabilidade que marcou 0 decenio de 1980, a assim chama-da decada mais do que perdida (Lopes e Gottschalk, 1990). Ne-cessario se faz acrescentar que, entre 1989 e 2001, 0 rendimen-to medio dos trabalhadores cai 30% eo desemprego so be de 9%para 18% - no infcio do perfodo apenas 3% permaneciam de-sempregados por mais de doze meses, proporc;:ao que salta para22 %, momenta que 0 tempo medio de procura de trabalho e de48 semanas, conforme mostra a Tabela 1.

Dados desta natureza poderiam ser repetidos ad nauseampara todas as metropoles brasileiras. Nao yOU insistir no detalha-mento da situac;:ao economica e social da populac;:ao das grandescidades brasileiras, nem deixar de apontar que em varios aspec-tos basicos - queda na mortalidade infantil e geral, com con-

Mas ha urn componente vital na determinac;:ao do padraode vida urbana a moradia. Ele de';e- ser r;'salt~do devido a p~~-cariedade de boa parcela das habitac;:6es e porque inexistem po-lfticas habitacionais massivas voltadas para a populac;:ao de bai-xa renda (Instituto de Cidadania, 2000). Reflro-me particular-mente as avela, - entendidas como ocupac;:ao de terra alheia,publica ou privada, cujas unidades habitacionais, barracos de ma- ;J fdeira ou casas de alvenaria, estao presentes em boa parte das ci- :dades medias e grandes do Brasil, muitas situadas em zonas in-salubres ou em areas de risco.

Destaco 0 caso do municfpio de Sao Paulo por serem cO-'nhecidos aq , 1 d f I' - P' ,U1 a guns process os eave Izac;:ao. nmelramente,cabet, ,19 nsar seu ntmo de crescimento, pois, se em meados dos anos'd70 os favelados representavam apenas 1% da populac;:ao da

Cl ade198 ' cerca de 72 mil pessoas, esta parcela so be para 4,4% em

0, pouco mais de 800 mil habitantes, e atinge 11,2 % vinte---------Sob

re a vul b'l'nera 1 ldade no Brasil urbano

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anos depois, quando sac 1.610 mil os moradores ~tipo deagIc;merado.2 "" -----

Vale ressaltar que metade dos favelados chegou a este localextremamente espoliativo de moradia entre 1987 e 1993, deno_tando a acelera<;ao de uma dinamica que tern a ver com a gravecrise economica do infcio dos 1990. Mais ainda: 39% sairam decasas alugadas e 9% de residencias proprias, 0 que indica volu-mosa mobilidade socio-habitacional descendente. Esta argumen_ta<;aoe refor<;ada pelo fato de os chefes de famHia serem jovens- 47% ate 35 anos - e suporta a afirma<;ao segundo a qual serompe 0 tradicional processo de autoconstru<;ao da casa propriapor parte dos que deixam a casa paterna, dinamica extremamen-te vigorosa nos anos 1950-1970 e ja em decllnio no decenio se-guinte (Prefeitura do Munidpio de Sao Paulo, 1996b).

Nao resta duvida de que as favelas sac extremamente hete-rogeneas tanto do ponto de vista da qualidade urbanistica e ha-bitacional como das condi<;6essociais e economicas das camadasque nelas residem. Por outro lado, e tambem conhecido que emrela<;aoa decadas anteriores houve melhorias nos padr6es de ha-bitabilidade relativos a moradia e a servi<;oscomo coleta de lixoe conexao a rede de agua (Pasternak, 1997). Nao obstante taismelhorias, para a grande maioria, habitar em favelas representaviver em urn meio ambiente sujeito a altos indices de degrada<;aoe contamina<;ao. Contamina<;ao e degrada<;ao tendo em conta 0

destino dos dejetos, a baixa propor<;ao de unidades habitacio-nais ligadas a rede de esgoto, ao grande mimero de aglomeradosa margem de corregos sujeitos a inunda<;6es e a erosao ou emareas de acentuada declividade (Pasternak, 1996): neste sentido,e exemplar a favela Vila Nova ]aguare, nao longe da Universida-de de Sao Paulo, objeto do Capitulo 5 deste livro, que agrega cer-ca de 12 mil habitantes e apresenta grau razoavel de servi<;osur-

d 'I /superin-2 Estimativa realizada pelo Centro de Estudos a Metropo etendencia da Habita<;:ao Popular, SEHAB, Prefeitura de Sao Paulo,

nas suas areas mais altas, onde, nos dias de chuva toda~~ " '

de detritos e deJetos se mlstura no lama<;al de suas zonassorre , ' ,, as gerando urn odor fendo que Impregna as moradias debalX ,

seus habirantes.Mas nao e somente pelas condi<;6esflsico-ambientais ou pe-

la situa<;aoirregular quanto a propriedade do imovel que habi-rar em favela constitui, para muitos, urn processo de descenso so-cial. Alem disso, prevalece forte percep<;ao de que a favela e lo-cal de vagabundagem e desordem, tido e havido como antro de, io e criminalidade. Vou repetir texto antigo que continua a ter

atualidade em face do aumento do desemprego, do trabalho in-formal e intermitente, das famHias com chefia feminina, traficode drogas, da violencia e do destaque sensacionalista com que amidia trata 0 assim chamado "caos urbano":

"[A condi<;ao de subcidadania urbana] e impor-tante para fundamentar uma forma de controle socialpela vistoria da vida privada das pessoas: 0 mundo dadesordem, potencialmente delinquente, e jovem [...] depreferencia nao porta ou nao tern carteira de trabalhoe mora nos corti<;os das areas centra is ou nas favelasdas periferias. Sobre esta modalidade de moradia 0,imaginario social constroi urn discurso que esquadri-nha a mistura de sexos e idades, a desorganiza<;ao fa-miliar, a moralidade duvidosa, os habitos perniciosos,olhando estes locais como focos que fermentam os ger-mes da degenerescencia e da vadiagem e dai 0 passopara a criminalidade. Ou seja: a condi<;ao de subcida-dao como morador das cidades constitui forte matrizque serve para construir 0 diagnostico da periculosi-dade" (Kowarick, 2000a: 54-5).

Estas Ion d' - d 'rias d gas 19ressoes acerca as recentes sltua<;6espreca-Sen 'detrabalho e moradia em Sao Paulo objetivam caminhar no

tl 0 teo' d ' ,nco e problematlzar 0 concelto de desfiliafiio, pro-

SObrea vulne b'l'dra I I ade no Brasil urbano

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to conforme a obra seminal de Robert Castel (Castel, 1995a)pos , ,e desenvolvido no Capitulo 1: significa perda de raizes e sltua-seno universo semantico dos que foram desligados, desatados, de-samarrados, transformados em sobrantes e desabilitados para oscircuitos basicos da sociedade. Nao se trata, convem relembrar,de urn estado ou condi<;:ao,mas de urn processo que e preciso per-seguir para delinear suas transforma<;:oes, p~is a ,qu,e~tao socialso ode ser equacionada atraves da perspect!va histonca.

p Desenraizamento social e economico significa, de urn lado,enfraquecimento de la<;:osda sociabilidade prima ria - familia,

t la bal'rro vida associativa e 0 proprio mundo do traba-paren e " _,lho; de outro, desemprego de larga dura<;:aoou ,trabalh~ ,Irregu-lar informal intermitente ou ocasional, que advem de vanas mo-dalidades de'desinser<;:aono sistema produtivo. No caso brasilei-ro, a desfilia<;:aonao pode ser equacionada en,quanto decorrenteda crise da sociedade salarial, pois - como Ja apontado, - esta

- campo de conflitos negocia<;:oese conqUlstas es-pressupoe urn , " ,truturado em institui<;:oessocia is e politlCas sohdamente constl-tuidas. Contudo, parece pertinente falar em desenraizamento dacondi<;:aodo assalariado formal, cuja expressao recente e 0 ~u-mento da fatia de desempregados e a mao de obra sem cartelraassinada, a qual se soma a massa de tarefeiros de toda ordem.Em outros termos: nao foram tanto as pf<lticas de luta do mun-do fabril e sindical que se perderam, mas a experiencia de reg~-

, d b lho contl-laridade quanto a rendimentos provementes e tra anuo assalariado ou autonomo, e para boa parcela a seguran<;:a

, I -, t dona porconferida pela previsibilidade em re a<;:aoa aposen a, I fi mar quetempo de servi<;:o.Neste sentido, penso ser possive a r _

d ' t do munesta ocorrendo urn vasto processo de esenraizamen 0 , _, I t rnou-se lUdo do trabalho na medida em que, para mUltos, e e 0 _ ,

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"A sociedade capitalista desenraiza, exclui, paraI e da-incluir incluir de outro modo [...J antes, ogo que s _ .

' , ' d 'nclusao.va a exclusao, em curtissimo prazo se ava a I

os camponeses eram expulsos do campo e eram absor-vidos pela industria, logo em seguida. [...J Em outraspalavras, 0 periodo da passagem do momento de ex-clusao para 0 momento da inclusao esta se transfor-mando num modo de vida, esta se tornando mais doque urn momenta transitorio" (Martins, s.d.: 32-3).

o desenraizamento no ambito da sociabilidade primaria jae mais dificil de ser configurada. De fato, estudos apontam paramudan<;:asna sociabilidade familiar e comunitaria, mas tambemreal<;:amsua importancia para, num contexto de fraca presen<;:ada a<;:aoestatal, enfrentar os desafios decorrentes da fragilidadedos direitos sociais. E tambem para, em tempos mais recentes,enfrentar a vulnerabilidade quanto aos direitos civis basicos,cujas expressoes mais flagrantes transparecem atraves das variasformas de violencia perpetradas por bandidos e pela policia.3

E importante real<;:arque, entre 1930 e 1980, foimassivo 0

deslocamento dos habitantes das zonas rurais e dos pequenosaglomerados rumo as grandes metropoles, dentre as quais desta-cava-se a Grande Sao Paulo, 0 que implicava desenraizamentosocial e economico, tipico da dinamica migratoria que conduzaos centros urbanos. Nunca e demais recordar que mobilidadeterritorial significou muitas vezes e ate em tempos atuais escaparda miserabilidade ou mesmo da violencia perpetrada pelos po-tentados agrarios. Por outro lado, via de regra, ocorria no pon---

3 Mas hi! indica<;:6esno sentido inverso, A primeira delas refere-se aoaumento de f 'I' , h fiRMS amI las monoparentals c e adas por mulheres, que subiu naDr P de 10%, em 1988, para 14%, no final do decenio seguinte, Para os.".upos pobres f' ,rad este enomeno tern sldo apontado como elemento desestrutu-Orda vida f 'I'a p" ami lar e causa de empobrecimento, Por outro lado 0 faro derlnclpal ca " ,Perif' usa mortIs de Jovens entre 14 e 25 anos, principalrnente nasefIas da M ' Ite ind' etropo e, centrar-se no homicfdio constitui tambem urn for-

leador de desa - d ' b'!'d d '"caso d f grega<;:ao a socia I I a e pnrnana: talvez nao seja 0e alar em d' ,estao a ind' , esenralzamento social, mas, certamente, estes process os

Icar Incremento da vulnerabilidade socioeconomica e civil.

Sobrea vulnerabTd

I 1 ade no Brasil urbano

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posto conforme a obra seminal de Robert Castel (C,astel, 1995a)e desenvolvido no Capitulo 1: significa perda de ralzes e Sltua-seno universo semantico dos que foram desligados, desatados, de-samarrados, transformados em sobrantes e desabilitados para Oscircuitos basicos da sociedade. Nao se trata, convem relembrar,de urn estado ou condi~ao, mas de urn processo que e preciso per-seguir para delinear suas transforma~6es, pois a ,qu,estao socialso pode ser equacionada atraves da perspecuva hlstonca,

Desenraizamento social e econ6mico significa, de urn lado,enfraquecimento de la~os da sociabilidade primaria - familia,parentela, bairro, vida associativa e 0 proprio mundo do ,traba-lho; de outro, desemprego de larga dura~ao ou ,trabalh~ Irregu-lar informal, intermitente ou ocasional, que advem de vanas mo-dalidades de desinser~ao no sistema produtivo. No caso brasilei-ro, a desfilia~ao nao pode ser equacionada enquanto decorrenteda crise da sociedade salarial, pois - como ja apontado - estapressup6e urn campo de conflitos, nego~ia~6es,e conquistas e~-truturado em institui~6es socia is e poliucas sohdamente constl-tuidas. Contudo, parece pertinente falar em desenraizamento dacondi~ao do assalariado formal, cuja expressao recente e 0 ~u-mento da fatia de desempregados e a mao de obra sem cartelraassinada, a qual se soma a massa de tarefeiros de toda ordem,

" d I t do mun-Em outros termos: nao foram tanto as praucas e u ado fabril e sindical que se perderam, mas a experiencia de reg~-

, 'd balho contl-laridade quanto a rendlmentos prove mentes e tranuo assalariado ou aut6nomo, e para boa parcela a seguran~a

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, ' I firmar quetempo de servi~o, Neste senudo, penso ser posslve a _

d ' to do munesta ocorrendo urn vasto processo de esenralzamen , _, I nou-se Indo do trabalho, na medida em que, para mUltoS,e e tor a ao:formal, instavel e aleatorio. Nao estou sozinho nesta afirm ~

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va a exclusao, em curtlsslmo prazo se dava a III

risCOViver erJ1

OScamponeses eram expulsos do campo e eram absor-vidos pela industria, logo em seguida. [...] Em outraspalavras, 0 perfodo da passagem do momenta de ex-clusao para 0 momento da inclusao esta se transfor-mando num modo de vida, esta se tornando mais doque urn momento transitorio" (Martins, s.d.: 32-3).

o desenraizamento no ambito da sociabilidade primaria jae mais diffcil de ser configurada. De fato, estudos apontam paramudan~as na sociabilidade familiar e comunitaria, mas tambemreal~am sua importancia para, num contexte de fraca presen~ada a~ao estatal, enfrentar os desafios decorrentes da fragilidadedos direitos sociais. E tambem para, em tempos mais recentes,enfrentar a vulnerabilidade quanto aos direitos civis basicos,cujas express6es mais flagrantes transparecem atraves das variasformas de violencia perpetradas por bandidos e pela policia.3

E importante real~ar que, entre 1930 e 1980, foi massivo 0

deslocamento dos habitantes das zonas rurais e dos pequenosaglomerados fUmo as grandes metropoles, dentre as quais desta-cava-se a Grande Sao Paulo, 0 que implicava desenraizamentosocial e economico, tipico da dinamica migratoria que conduzaos centros urbanos. Nunca e demais recordar que mobilidadeterritorial significou muitas vezes e ate em tempos atuais escaparda miserabilidade ou mesmo da violencia perpetrada pelos po-tentad ' ,os agranos. Por outro lade, via de regra, ocorria no pon-

a 3 Mas h<i indica"oes no sentido inverso. A primeira delas refere-se aoumento de f T 'RMsp amllas monoparentals chefiadas por mulheres, que subiu na

grup de 10%, em 1988, para 14%, no final do decenio seguinte. Para osos pobres e t f Arado d' s e enomeno tem sido apontado como elemento desestrutu-r a vida f Ta princ' ami lar e causa de empobrecimenro, Por outro lado, 0 faro de

Ipal causa m 'd' , 'Periferl' d ortis e Jovens entre 14 e 25 anos, pCl!lclpalmente nasas aM'

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Sabre avulnerabTd

I I ade no Brasil urbano

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to de chegada, a Metropole, inser~ao nas engrenagens produ 'tl-vas que podia nao ser 0 emprego regular e frequentemente eramalremunerado, porem continuo, 0 que abria a possibilidade deuma integra~ao na cidade atraves da autoconstru~ao, resultandoem moradia propria, lentamente conectada aos servi~os urbanosbasicos. Estes process os, junto com 0 acesso a escola por partedos filhos e ao sistema de saude, por mais precarios que fossemsignificavam conquistas altamente valorizadas em rela~ao ao pas:sa do nao metropolitano. Representavam, por conseguinte, for-te assimila~ao aos valores urbanos, que se traduziam na simbo-logia de ter "vencido os assim chamados desafios da cidade",Aqueles que nao eram capazes de saltar os obstaculos da Metro-pole eram os que nao conseguiam pagar "0 pre~o do progresso":moradia propria com infraestrutura urbana, educa~ao e saudeconstituiam vigorosas alavancas integrativas que abriam espa~osvalorativos e rea is de ascensao social, nao obstante perduraremocupa~oes advindas de atividades de toda ordem, mas que com-pensavam a ausencia ou a intermitencia do emprego assalariadoregular.

Naquela situa~ao conjuntural, tudo indica ser erroneo uti-lizar a no~ao de desfilia~ao, entendida como desenraizamento so-cial e economico. Ao contra rio, parece pertinente usa-Ia em con-junturas mais recentes, quando, no processo de deslocamentossociais e economicos, 0 ponto de chegada caracteriza-se por si-tua~oes de perda e percep~oes negativas em rela~ao ao ponto departida: nao so 0 aumento do numero de favelados em Sao Pau-lo, mas, sobretudo, 0 fato de que muitos ja moravam na cidadeem melhores condi~oes de habitabilidade, em urn momento deacirramento do desemprego e de precariza~ao do trabalho, podeproduzir uma situa~ao de desenraizamento que torna pertinenteintroduzir a no~ao de desfilia~ao.

Do ponto de vista teorico, como ja sublinhado anteriormen-te, cabe salientar que os segmentos desenraizados nao devem serconfundidos com os que se encontram em uma situa~ao de eX-clusao. Esta no~ao traz consigo a ideia de nao ser admitido, re-

I'd mandado embora, enfim, designa urn grupo que se encon-

. e 1 0, ,P cerceado, confinado ou bamdo, apontando para uma condi-tra - d d" R IaO de despossessao e lreltos. essa te-se que 0 conceito de ex-~Iusao utilizado neste capitulo ganha significa~ao teorica quando~e1acionado aos direitos civis, pois, como ja mencionado, e fala-cioso pensar em camadas ou grupos desligados social e economi-camente constituindo agregados isolados da sociedade. E claro

ue e possive! falar em aparta~ao social quando se tern em miraq b"as diferen~as a IsmalS que separam os estratos de nossa pontia-guda piriimide social (Buarque, 1993; Silva Telles, 1994b). Fos-so que, ao segregar e discriminar em fun~ao do local de moradia,da vestimenta ou da cor da pele, fundamenta a prepotencia notratamento dos que sac considerados inferiores (DaMatta, 1990):esta e a vasta e complexa questao da cidadania privada, inexis-tente, confinada, de terceira classe, excludente ou hierarquizada,concedida, em suma, para nao ser exaustivo, da subcidadania ouda cidadania lumpen (respectivamente: Kowarick, 2000a; SilvaTelles, 1992; Santos, 1994; Carvalho, s.d.; Nascimento, 1994b;Sales, 1994; DaMatta, 1987; Santos, 1999).

Convem iniciar por algumas situa~oes da vida cotidiana, notransito ou nos locais de lazer, em que alguns se apropriam doespa~o publico e 0 colonizam atraves de justificativas que subs-tituem regras de carater universal pelo arbitrio pessoal, em urnmovimento de autodefesa que, ao preservar interesses privatis-t~s, ,descarta 0 reconhecimento do outro e, portanto, solapa os~I~eltos coletivos (O'Donnell, 1988). Todos nos ja vivenciamosInu,meras "microcenas" que revelam a banalidade com que 0 au-t~ntarismo se manifesta no cotidiano das rela~oes sociais. E tam-bem 0 taxista que, ao sair da Universidade de Sao Paulo levaumar ' 'do ~:e,lra fech~d,a e a~~ta a chapa do ~utro: "Tenho urn cunha-

q e da PolICla Ml1ltar e sempre aJudo ele, porque ele naopode estar em todo lugar". 0 passo seguinte e a autodefesa dasegrega - , ,rn ' ~ao SoclOespaClal em recintos fechados e protegidos. 0 le-

a e eVltar 0 d'f " , I" 'dI erente, pOlS a mlstura socia e VlvenCla a comoconfusa d '

0, esarmoma ou desordem: sac os enclaves fortificados,

Sob re a vut b't'nera 1 ldade no Brasil urbano

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organizados na "seguran<;:atotal [...] do novo conceito de mo-radia [...] a rela<;:aoque estabelecem com 0 resto da cidade e SUavida publica e de evitar;;ao" (Caldeira, 1997: 142 e 164, grifosmeus). Trata-se de uma sociabilidade enclausurada e defensiva,alicer<;:adano retraimento da vida privada - a casa -, que re-jeita as esferas publicas - a rua -, tida como espa<;:ode adver-sidade, imponderavel e imprevislvel. E por excelencia 0 espa<;:osocial do anonimato, onde tudo pode acontecer, e, portanto, 0

local de perigo e da violencia:

"Na rua nao ha, teoricamente, nem amor, nemconsidera<;:ao,nem respeito, nem amizade. E local pe-rigoso [... ] Que inseguran<;:a nos possui quando urnpeda<;:ode nosso sangue e de nossa casa vai ao encon-tro desse oceano de maldade e inseguran<;:aque e a ruabrasileira" (DaMatta, 1998: 29).

o segundo movimento assinala uma acelera<;:aoque, cimen-tada nos alicerces da inseguran<;:ae do medo, ja nao conduz maisao retraimento defensivo mas a desqualiflca<;:aoou destitui<;:aodooutro, tido como diverso e adverso, visto como potencialmenteamea<;:ador.Agora come<;:oa penetrar no amago do conceito deexclusao, ao relaciona-lo com 0 processo de estigmatiza<;:aoe dis-crimina<;:ao,repulsa ou rejei<;:ao,em ultima instancia, da nega<;:aode direitos (Nascimento, 1994b): a anula<;:aodaqueles que saopercebidos como diferentes e inferiores constitui uma questao so-cial que atravessa nossa historia e continua a ser elemento cons-titutivo das rela<;:6essociais fortemente hierarquizadas e estigma-tizadas imperantes na nossa sociedade:

"[...] 0 que mais imprime for<;:ae senti do a pro-pria ideia de exclusao tern a ver com 0 fato de sobreeles (os outras, diferentes, subalternos, amea<;:adores,perigosos) se abater urn estigma, cuja consequenciamais dramatica seria a sua expulsao da propria '6rbi-

ta de humanidade', isso na medida em que os excluI-dos [...] levam muitas vezes uma vida considerada su-bumana em rela<;:aoaos padr6es norma is de sociabili-dade [...]" (Oliveira, 1997: 51, grifos meus). /Em termos simples: acentua-se urn imaginario social que as-

socia~camadas pobres a"lim modo econdi<;:ao de vida que es-ria nas ralzes da crescente violencia que impregna 0 cenario dasta _

r~dades brasileiras. Esta associa<;:aoe uma marca das re-presenta<;:6esque sempre se flzeram acerca da pobreza, que pre-cisava ser domesticada e moralizada nos seus habitos, costumese comportamentos. Em contrapartida, havia tambem uma fortematriz discursiva que opunha "trabalhadores pobres" aos "ban-didos". A entona<;:aodestas percep<;:6esvariou no tempo e no es-pa<;:o,mas penso ser correto aflrmar que, fundamentalmente, apartir dos anos 1990, com 0 aumento do desemprego e subem-prego, da faveliza<;:aoe da propria criminalidade, estruturou-seurn conjunto de discursos e praticas que operau uma assemelha-<;:aoda situa<;:aode pauperismo com 0 comportamento delinquen-te (Valladares, 1994; Peralva, 2000; Caldeira, 2000). Neste sen-tido, e oportuno reproduzir cita<;:aode especialista na materia:

"[Distinguir trabalhadores de bandidos] pode serfeito com usa de born senso. Mesmo porque, 0 ban-dido tupiniquim, 0 nosso bandidao [...] tern tipologiadefinida, esta sempre abaixo da media. E subnutrido,malvestido, subempregado, enflm, tern psicossomciti-ca definida. A aparencia geral dos bandidos e identi-ca" (Dias, 1976: 6, grifos meus).4--40 coronel Erasmo Dias era na epoca Secretario da Seguran<;a Publi-

~~ do Governo do Estado de Sao Paulo. Vale citar outro depoimento maisIreto e atual: "Vagabundo e caixao", diz 0 tenente-coronel da PM a seus

~ornFandados, "nao tern chance! [... J Vai pro inferno, nao tern chance" (Bue-o Iiho, 1999).

SObre a v I ..u nerabIildade no Brasil urbano

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Insegudm~a, medo, amea~a, perigo e crime tornaram-se as-- -- --~suntos dominantes das falas, no mais das vezes acusativas, do- -:--nosso cotidiano urbano. Como sed. detalhado nos capitulos sub-

, sequentes, transformaram-se em elementos que est~am rnul-tiplas prat~as socia is de carater defensivo, repulsivo ou repressi_

,vo que, para ~ais' ~ para menos, perpassam todas as camadasda sociedade brasileira, tornando-se tema recorrente e espetacular

, de ~ticiarios e reportagens da grande midia: a violencia consti-I tui urn elemento estruturador, ao mesmo tempo banal e assusta-\ dor, nas a~6es e pensamentos do dia a dia de nossas metr6poles., Este cenario sociocultural de acirramento dos imaginarios queolham os outros, os despojados de humanidade, como amea~a-dores, acaba por acentuar 0 que tern sido denominado mentali-dade exterminatoria (Oliveira, 1997; Nascimento, 1994a). Nes-te ponto, chego ao amago central do que estou denominandoprincipia de exclusao social, pois nao se trata apenas de isolar,confinar ou banir mas, seguindo as trilhas de Hannah Arendt, denegar ao out~o direito de ter dire' as: e 0 instante extrema emque representa~6es e praticas levam a exclusao do ourro, tido ehavido como encarna~ao da periculosidade e, portanto, passivelde ser eliminado.

Nao estou me referindo apenas a a~ao de justiceiros ou daPolicia Militar que, na Regiao Metropolitana de Sao Paulo, en-tre 1981 e 2002, matou 12.640 pessoas, a maioria jovens e ne-gros, meros transeuntes, sem antecedentes crimina is ou pratican-tes de delitos leves (Oliveira Jr., 2003); nem ao fato de 0 crimeorganizado desenvolver verdadeiro "poder paralelo" em certasareas pobres das periferias de Sao Paulo, Rio de Janeiro ou ou-tro grande aglomerado urbano, atraves de amea~as de morte, to-que de recolher, interdi~ao de predios publicos ou enviando car-tas nas quais avisam aos moradores para nao sair de casa em cer-tos dias e horarios (Folha de S. Paulo, 2000: C1). Ou mandandorecados a diretores de escolas para que dispensem os alunos: "[...]

lh nes-eles ficam assustados e os professores nao querem traba ar"tas areas de risco [...] Todos os lideres e funcionarios dessas Ins-

. . - es - oito centros comunitarios que atendem de 10 a 20tJtUI~O

'1 eSSoaspor mes - relataram ter feito algum pacto com tra-~:a:tes para conseguir trabalhar" (Folha de S. Paulo, 2000: C3).Tudo indica que pactos com criminosos sac expedientes frequen-

noS bairros pobres. Vao desde a "lei do silencio" dos mora-res _~ erian~as, jovens, adultos e idosos, de ambos os sexos -

ue sabem ou assistem a homicidios e precisam proteger suas vi-~as, ate acordos feitos por empresas que, para realizar seus lucros,fazem contribui~ao mensal em dinheiro. "A partir dai 0 'movi-mento' garante a obra" (Folha de S. Paulo, 2000: C3).5

Algumas cenas podem ser importantes para ilustrar casosextremos de destitui~ao ou anula~ao de direitos. Primeira cena:urn menino de dez anos foi trancafiado em camara frigorifica dosupermercado Pao de A~ucar, localizado em "bairro nobre", porurn policial militar com" ficha limpa", que fazia "bico" em suashoras de folga. 0 garoto diz: "Eu nao pe~o esmolas. Eu olho oscarros la e todo mundo me conhece [00'] Eu fiquei com muito frio[...] Dentro tinha luz e as carnes pareciam pedras ['00] gritei e ba-ti na porta [...] Fiquei com medo de morrer la dentro". "Colocaele no freezer", teria dito urn funcionario ao policial, "['00] pormeia hora porque ele e fortinho" (Folha de S. Paulo, 1999: A3).Outra cena: Geni Barbosa foi flagrada por vigilantes furtandofrascos de protetor solar no Carrefour de Jacarepagua e foi en-tregue aos traficantes da regiao a fim de receber a devida puni-~ao. Segundo urn ex-delinquente, em dep9imento prestado a po-licia, ha varios niveis de condena~ao para quem nao respeita aempresa protegida: "tiro na mao, pauladas, expulsao da comu-

-=--5 "I

rn SStna 0 que a taxa de homicfdios, apesar de decrescente nos ulti-os anos " b

M." ' COntmua astante elevada: 37 para cada 100 mil habitantes noUnlcipio de S· PI· ,

reg"· ao au 0 em 2004. Sua I(aria\=ao e significativa conforme alao d "d \cort" a Cl ade: 46 no Bom Retiro e 53 no Pari, distritos onde se situam os

I\=OSque s· ]"perit " erao ana Isados no capitulo seguinte, 59 nos sete distritos da

erta suI d M "." . A

Os lOt 0 UnIClPIO e 65 no Jardim Angela, local onde se encontramearnentos d d •estu a os no Capitulo 4.

Sobrea vulner b"l"da I I ade no Brasil urbano

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nidade, dependendo da gravidade do caso" (Folha de S. Paulo2001: C3). Mais duas cenas: Galdino dos Santos, indio patax~ha-ha-hae, queimado vivo por jovens de c1asse media em Brasi_lia: "Pensavamos que Fosse urn mendigo", disse urn deles (Folh

ade S. Paulo, 1997: C2). Finalmente 0 epilogo, pois inumeros re-latos poderiam ser transcritos: 0 exterminio de 111 detentos nopresidio Carandiru em Sao Paulo, realizado pela PM com anuen_cia de autoridades de primeiro escalao do Governo do Estado.Este acontecimento assume sua plena significac;:ao quando se Sa-be que 33%, segundo a Folha de S. Paulo, e 44%, segundo pes-quisa realizada pelo jornal 0 Estado de S. Paulo, dos habitantesda cidade apoiaram 0 massacre, cujas fotos foram estampadasna imprensa escrita e televisionada (Caldeira, 2000: 176).

Estes sac casos extremos, mas ja nao mais excepcionais. Tal-vez seja demasiado falar em mentalidade exterminat6ria, na me-dida em que nao desponta como principio constitutivo dominan-te nos pensamentos individuais e nas formulac;:6es coletivas. Masa desconfianc;:a e 0 medo tern se constituido em elementos esE£Y-turantes dos modos de vida, fazendo com que as ~o~s ~i-zem seu cotidiano tendo em Conta sua vulnerabilidade diante daviolencia: inseguranc;:a, cautela e prevenc;:ao tornaram-se fenfulle.:nos massivos, originando processos sociais que conduzem a umasituac;:ao de autodefesa e se traduzem no retraimento ou reclusaoem ambientes protegidos. A Contra partida desta dinamica so po-=-de levar ao evitamento do Outro, percebido como diverso e ad-verso e, a partir de urn certo momento e em certas ocasi6es, 0 ou-tro passa a ser visto como ameac;:ador, perigoso e violento: nestepercurso crescente estariam se forjando atitudes, valores, discur-sos e comportamentos que alimentam 0 que estou denominandoprincipio de exclusCio.

Para retomar a epigrafe deste capitulo: como ficamos?

CONCLUSOES

anha sua significac;:ao quando se tern em con-A ergunta g '" I' ' d

P formar6es SOClOeconomlcas e po ItIcas ass vastas trans .,. ,ta que a d - foram capazes de atenuar a masslva pobre-, deca as nao ,u!tun

as'edade brasileira. Em outros termos, quaIs, erante na SOCI . _ ' ,

za unp - d- conteudo as questoes socials de nossa atua-, s e ac;:oes ao " ,dlscurs

oem tornO da problematica da desIgualdade e lI1Jus-

I'd de urbana bl ' _ ,I ad' claro que semelhante pro ematlzac;:ao so po-. ~Quero elxar , ,

tlc;:a. "ndo-se mais no campo que Wnght MIlls de-tentatlva, sItua ,d.eser d "imagina~CiosocioI6gica", do que em resultados teo-slgnou e " '. mpiricos SlstematIcos.f1COS e e ,

N-o se trata de retomar as multiplas pesqUlsas que procura-a '" tblematizar nossa "maldic;:ao de ongem , que encon ra

ram pro , II 1994' ais profundas na escravidao (SJlva Te es, a:suas ralzes m d46). Tampouco entrarei na polemica acer.ca da abordagem ,e

hit ralista - urn ethos, elemento lI1erente a nossas ral-cun 0 cu u ,,_ ' , ,S· tristeza cordialidade, miscigenac;:ao e conClhac;:ao, ou 0 JeltI-ze . , d '

nho e sua negac;:ao, a prepotencia (Lavalle, 2001). Contu 0, e t~o-rica mente falacioso equacionar estes atributos enquanto essen-cias que explicariam a sociabilidade tupiniquim, esp~ci~ de DNAsociocultural, cuja mutac;:ao requereria uma permanenCia seculare que evoluiria atraves de seus atributos constitutivos. A consta-tac;:aode compromissos de estilo patrimonialista e paternalista --:-o favor e a dadiva - no Brasil urbano capitalista e uma combl-nac;:aocomplexa, diversa e sempre renovada, e nao urn conju~tode essencias que sobrevive a partir de urn passado remoto, Im-pregnado em nossas raizes (Sales, 1994).

Aponre-se que nao obstante varias investigac;:6es e preciseainda muito esforc;:o para aprimorar as interpretac;:6es acerca deuma questao que baliza nossa formac;:ao historica pos-1888: co-mo estender e consolidar os direitos de cidadania em uma socie-dade onde 0 sistema escravista sedimentou as relac;:6es socioeco-n6micas ate epocas tardias do seculo XIX, ao mesmo tempo emqUe a populac;:ao livre e pobre era tida e havida como vadia, car-

Sabre a vulnerabilidade no Brasil urbano

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inutil, imprestavel para 0 trabalho disciplinado e regular, ver-~:deira rale que perambulou por seculos as margens das dina-

icas produtivas basicas da Colonia e do Imperio? (Carvalho~anco, 1969; Kowarick, 1994). Na visao dos potentados da epo-ca essa massa de desclassificados constitula "uma outra huma-nidade", expressao aplicada a pobreza mineira do seculo XVIIIe como ja assinalado, diz respeito ao processo de exclusao naa~ep<;:aoplena do termo: 0 nao reconhecimento do outro, tidocomo subaltemo e inferior, diverso e adverso (Mello e Souza,1983: 219).

Sem cair na tenta<;:ao explicativa de nossas "ralzes colo-niais", nem fundamentar a argumenta<;:ao em abordagens que pri-vilegiam os tra<;:os de nossa brasilidade, parece ser posslvel falar- seguindo as trilhas de Roberto Schwarz - em desfar;atez declasse. Trata-se de ingredientes mutaveis da sociabilidade entrepessoas e grupos hierarquicamente desiguais, nos quais os de ci-ma saD capazes de conviver sem culpabilizar os de baixo, mas,tambem, vivenciar sem remorsos sua condi<;:ao de superioridade.Trata-se, em suma, de saber lidar com polaridades extremas, poisos mais pobres, atraves de muitas atividades, estao a servi<;:odosmais ricos que, diga-se de passagem, muito se beneficiam destaaguda piramide social e economica.

Tomar as polaridades opacas atraves de particularismos efavores significa urn vasto processo de destitui<;:ao de direitos, 0

que implica eficiente exercfeio de domina<;:ao, pela persuasao ouviolencia: no Rio de Janeiro de Machado de Assis a convivenciatida e havida como natural entre liberalismo e escravidao por par-t~ da elite da epoca. Necessario afirmar que, para se desobrigardlante da pob . f . . - . - breza e tornar a III enonza<;:ao vantaJosa, nao asta~nxerga-Ia como inerente a fundamenta<;:ao de nossa sociedade:e tamb' .

em preClSOcontrola-Ia atraves de discursos e a<;:6esque le-vern a S 'fi

ua pacI ca<;:ao (Schwarz, 1990: 99 ss.).

dad Nb0 que ha de essencial, a matriz da desigualdade da socie-e rasI!' _ .

ape elra nao reSIde em culpar os pobres por sua pobreza,Sar do d'

ISCurso sobre a vadiagem ter estado muito presente

Sabrea vUlnerabTd

I I ade no Brasil urbano

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em varios momentos da nossa historia colonial, imperial e repu_blicana.6 Contudo, a magnitude do pauperismo na atualidade denossas cidades aparece de forma tao evidente que se tornou cres-centemente dificil afirmar que estamos em uma sociedade abertae competitiva e quem trabalha duro e arduamente la conseguechegar. Mesmo porque 0 desemprego, 0 subemprego e a precari-za~ao do trabalho tornaram-se fenomenos massivos, que atingemtambem parcelas importantes das camadas medias. 0 mito da as-censao social pelo esfor~o e perseveran~a nao encontra mais rai-zes para fund amen tar 0 ideario da escalada social. Ao contrario,o trabalhador honesto, cumpridor de seus deveres - em face dosganhos provenientes das atividades illcitas e ilegais -, e visto co-mo "[ ...J 0 orario que labora cada vez mais pa!a ganhar ca~ ve:menos'" (ValG"dares, i994: 107). -,-----0 problema da pobreza passa tambem a ser menos atribui-"do como de responsabilidade do Estado, mesmo porque a a~aopublica de prote~ao sempre foi de pequena envergadura.7 Alemdisso nos tempos chamados de neoliberais, ganha corpo a per-cep~;o de que ele e inoperante, ineficaz, corrupto, esta falido, eque suas fun~6es devem ser reduzidas e substituidas por a~entesprivados, mais capacitados para enfrentar as varias malll!es~a-~6es da marginaliza~ao social e economica.~e..9.UenCl:,tern ocorrido amplo e diverso processo de desre§ponsablltza~ao

6 Como foi detalhado no Capitulo 1, "blaming or not blaming the vic-tim" constitui a base da poH~mica americana acerca da underclass. Polem1

-

I" . - '- d aaliberal naca abettamente politico-ideo oglca, opoe a visao conserva or ,

acep<;ao de progressista.- I'd 'Ih da tradi-

7 Convem reafirmar que, no Capltu 0 1, seguin 0 as tn as ," d b f 'd erda a dl-<;aorepublicana e jacobina, enfatlzel que 0 e ate rances, a esqu _d d' -' ostas enfareita do espectro politico, varian 0 nos lagnostlcos e nas prop b,'rdade

tiza a necessidade de forte presen<;a estatal, que tern como responsa 1 1 __

Prom over a (re)inser<;ao dos grupos marginalizados. 0 fundamento da proI'd 'd de quepria democracia residiria na dinamiza<;ao de formas de so I ane a

nao deixassem aqueles que estivessem fora hi permanecerem.

Estado em rela~ao aos direitos de cidadania, e em seu lugardo aroes de cunho humanitario que tend em a equacionar asurgem .,.s -es da pobreza em termos de atendimento focalizado e 10-

uestOq 1 DesSa forma, passam a ocorrer atua~6es no mais das vezesca· adas pela boa vontade do espirito assistencial, no senti do demarcesolver problemas emergenciais, descapacitando os grupos de

:nfrentar seuS escanteios sociais e economicos, po is essas vul-nerabilidades deixam de aparecer como process os coletivos denega~ao de direitos. A questao social e traduzida em termos decornisera~jjo:

"[ ... J a questao social parece, assim, deixar de serpropria mente uma 'questao' - questiio polltica, ques-tao nacional, questao publica - que diz respeito aosdireitos como princfpios reguladores da economia e dasociedade, para se fixar como problema a ser adminis-trado tecnicamente ou entao como problema humani-tario que interpela a consciencia moral de cada urn.Nao por acaso, onde antes algum discurso da cidada-nia e dos direitos tinha algum lugar ou pertinencia nocenario publico, e hoje ocupado pelo discurso huma-nitario da filantropia" (Silva Telles, 2000: 16).

Sem duvida, as potencialidades de novas arenas podem vira estruturar campos de prote~ao e de lutas por direitos socioeco-nomicos e civis. Promissores sao os estatutos legais de defesa dascrian~as e dos adolescentes, das mulheres, dos consumidores oua recente legisla~ao que procura enfrentar os graves problemasurbanos de nossas cidades. Mas todos esses esfor~os, nao obstan-te abrirem canais de defesa e reivindica~ao, continuam bastante~mbrionarios, 0 que permite continuar enfatizando a ocorrenciae amplo e variado processo de destitui~jjo de direitos.

Ele parece ter pelo menos duas matrizes de atua~6es diver-Sasmas articuladas entre si. A primeira e a c1assica atua~ao quePOdeser chamada de controle e acomoda~ao social pela natura-

Sabre a v I ' ,u nerabdldade no Brasil urbano

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lizar,;iiodos acontecimentos. Ao conwirio de culpabilizar os po-bres, os mecanismos residem justamente no seu oposto, qual se-ja, em desresponsabiliza-Ios da situa\=ao em que foram lan\=ados,pois ela depende do acaso, de sorte ou de azar que despenca alea-toriamente sobre uns e nao sobre outros. Sao os discursos da im-ponderabilidade que seguem as leis incontrolaveis da natureza aua inevitabilidade daquilo que e assim porque assim sempre foi. Aatualiza\=ao desses equacionamentos proclama as leis inescapa_veis do mercado, da globaliza\=ao, do avan\=o tecnologico ou dahierarquiza\=ao social e, dessa forma, acaba por levar a indivi-dualiza\=ao da questao do pauperismo: estar desempregado, mo-rar em favela ou ser assassinado pela policia ou por bandidos eequacionado como uma sina que cai sobre os deserdados da Sor-te: trata-se, enfim, de urn "coitado". 8 A consequencia e que aatua\=ao de quem esta na polaridade de comando da rela\=ao so-cial nao so se desobriga dos que estao em posi\=ao de subalterni-dade, mas a propria dinamica que produz a marginaliza\=ao ga-nha a nebulosidade do descompromisso, pois ela e tambem tidae havida como inelutavelmente natural: "[ ... ] tornando 0 pobreurn 'nao sujeito', a pobreza e como que 'naturalizada' e as rela-\=oes sociais tornam-se 'naturalmente' excludentes" (Nascimen-to, 1994a: 301).9

A outra matriz de controle e acomoda\=ao social pode serchamada de neutralizafao. Baseia-se tanto em ardilosos artificios

. uasao como em escancarados metodos de constrangimen-de pers . .arao que conformam vIgorosos mecamsmos para refor\=arto e co .,. . _ ".

dinamicas de subaltermza\=oes. Come\=o pelo ObVlO,aludlOdoas d' d - - 1radicional Ita 0, nao tao popu ar, que constantemente lem-aD tbra que as pessoas devem permanecer nos seus devidos lugares:"cada macaco no seu galho" e uma formula de discrimina\=ao es-crachadamente marginalizadora e certamente de diffeil aplica\=ao,pdo menos na atualidade dos grandes centros urbanos. Mas haoutros meios que servem para demarcar a localiza\=ao social dospobres. Neste sentido, basta recordar que nos predios das cama-das remediadas e abastadas ha urn roteiro que indica os percur-sos dos elevadores "sociais" e "de servi\=o", que nao se prestamapenas para a entrega de mercadorias e san reveladores das nos-sas adocicadas formas de escanteamento: afinal, nenhum de nose preconceituoso, mas temos amigos intimos ou parentes proxi-mos que manifestam restri\=oes refletidas ou explosivas aos quesao diferentes de sua e nos sa cor ou condi\=ao social (Schwarcz,2001: 39).

Nesta dire\=ao encontram-se os mecanismos de evita\=ao eaparta\=ao apontados em paginas anteriores. Humilha\=oes, extor-soes, agressoes, espancamentos e outras formas de violencia, queP?dem chegar ao homicfdio, praticadas pel a polfeia e pelos ban-~Id~s, constituem atos cotidianos que nao fazem parte das esta-tIstIcas, pois as pessoas, por medo de represalias, se calam. Estesatos so podem se tornar poderosas formas de controle e acomo-da\ao social, po is acabam fazendo com que os subalternos co-nhe~am . d .

os nscos e salr de seus lugares: "[ ... ] este brasileiro fazparte da com 'd d l' . . 1S . um a e po Itlca naClOna apenas nominalmente.eus dlreito '. - d . .d SCIVISsan esrespeltados slstematicamente. Ele e cul-

Pa a ate pr ,. 'C ova em contrano. As vezes mesmo apos provar emOnt ' .

rano" (Carvalho, s.d.: 92).

de I No mesmo sentido teorico encontram-se as analises de Wan-r ey GUilherme d S l' . ._

do a os antos em po emlCa categonza\=ao, segun-qual em n . l' b 'esp' . osso tropIC a lsmo exu erante ha apenas natureza

eele de h bb . . 'o estamsmo social, pois as pessoas encontram-se

8 0 termo vem de "coito", isto e, "coitado" e aquele que foi subme-tido a copula carnal. Devo esta observa<;:ao a Adrian Gurza Lavalle. Ela n~ose distancia da feita por Roberto DaMatta: "[ ...] criamos ate uma expressao

. . . te rodasgrosseira para esse tipo de gente que tern que segUlr tmperatlvamenas leis: sac os 'fodidos' do nosso sistema" (DaMatta, 1990: 199).

9 Vale insistir no argumento: "[ ... ] nossas elites pod em ficar satisfeitas

com sua modernidade e dizer candida mente que a pobreza e lamentavel, po'b d turezarem inevitavel [... ] Nessa pobreza transformada em fato ruto a na . _

, . d f - ,. d - d' Idade e JUsha tambem 0 esvaZlamento a un<;:aocntlca as no<;:oes e 19uati<;:a"(Silva Telles, 1999: 87-8).

Sobrea vulne b'l'ra 1ldade no Brasil urbano

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isoladas, enredadas em sociabilidades fragilizadas, tememvivencia, desconfiam e desacreditam das institui<;:6esjurid~c:on-policiais e, em consequencia, negam e sonegam os conflitos es evariadas modalidades de vitimiza<;:aoa que frequentemente Se ascontram submetidas: trata-se da cultura civica da dissimula e~_

fao(Santos, 1994: 100 ss.). E nesta mesma linha de argumenta ~<;aoque Francisco de Oliveira, em ensaio empolgante por sua radl'Ca-lidade, refere-se a destitui{:iio, roubo ou anula<;iio de fala, isto ea desclassifica<;:aodos conflitos e das reivindica<;:6esdas classe~dominadas (Oliveira, 1999). Penso que e tambem nesta trilhainterpretativa que se encaixam os argumentos de Jose de SouzaMartins, quando indica a existencia de do is mundos crescente_mente irredutiveis, onde as pessoas se encontram "separadas emestamentos": a modernidade brasileira estaria produzindo "[...]uma especie de sociedade de tipo feudal" (Martins, 1997: 36, gri-fos meus).

As afirma<;:6escontidas neste ensaio nao ignoram que asgrupos, as categorias e as classes socia is se movimentam na acep-<;:aode se mobilizarem e lutarem pela conquista de seus direitos.Elas simplesmente enfatizam que, no cenario atual de nossas ci-dades, estao em curso massivos processos de vulnerabilidade so-cioeconomica e civil.

Parte II

SOBRE A VULNERABILIDADEEM BAIRROS POPULARES:

SOCIOLOGIA, HISTORIA E ETNOGRAFIA