autores a literatura do nosso tempo

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VERGÍLIO FERREIRA

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  • VERGLIO FERREIRA

  • Um presencista? Um Neo-realista?

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    Depois da leitura/anlise deste conto , responde s questes apresentadas.

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  • DAVID MOURO FERREIRA

    Escritor e professor universitrio portugus, natural de Lisboa. Licenciou-se em Filologia

    Romnica em 1951. Foi professor do ensino tcnico e do ensino liceal e, em 1957, iniciou a sua carreira

    de professor universitrio na Faculdade de Letras de Lisboa. Afastado desta actividade entre 1963 e

    1970, por motivos polticos, foi professor catedrtico convidado da mesma instituio a partir de 1990.

    Entretanto, mantivera nos anos 60 programas culturais de rdio e televiso. Em 1963 foi eleito

    secretrio-geral da Sociedade Portuguesa de Autores e, j nos anos 80, presidente da Associao

    Portuguesa de Escritores. Logo aps o 25 de Abril de 1974, foi director do jornal A Capital. Secretrio de

    Estado da Cultura em vrios governos entre 1976 e 1978, foi tambm director-adjunto do jornal O Dia

    entre 1975 e 1976. Responsvel pelo Servio de Bibliotecas Itinerantes e Fixas da Fundao Calouste

    Gulbenkian a partir de 1981, dirigiu, desde 1984, a revista Colquio/Letras, da mesma instituio.

    A sua carreira literria teve incio em 1945, com a publicao de alguns poemas na revista Seara Nova.

    Trs anos mais tarde, ingressou no Teatro-Estdio do Salitre e no Teatro da Rua da F. Publicou as peas

    Isolda (1948), Contrabando (1950) e O Irmo (1965). Em 1950, foi um dos co-fundadores da revista

    literria Tvola Redonda, que se assumiu como veculo de uma alternativa literatura empenhada, de

    realismo social, que ento dominava o panorama cultural portugus, defendendo uma arte autnoma.

    Em 1950, publicou o seu primeiro volume de poesia Secreta Viagem. David Mouro-Ferreira colaborou

    ainda nas revistas Graal (1956-1957) e Vrtice e em vrios jornais, como o Dirio Popular e O Primeiro

    de Janeiro.

    Foi poeta, romancista, crtico e ensasta. A sua poesia caracteriza-se pelas presenas constantes da figura

    da mulher e do amor, e pela busca deste como forma de conhecimento, sendo considerado como um dos

    poetas do erotismo na literatura portuguesa. A vivncia do tempo e da memria so tambm constantes

    na sua obra, marcada, a nvel do estilo, por uma demanda permanente de equilbrio, de que resulta uma

    escrita tensa, e pela conteno da fora lrica e sensvel do poeta numa linguagem rigorosa, trabalhada,

    de grande riqueza rtmica, meldica e imagstica, que fazem dele um clssico da modernidade.

    Entre os seus livros de poesia encontram-se Tempestade de Vero (1954, Prmio Delfim Guimares), Os

    Quatro Cantos do Tempo (1958), In Memoriam Memoriae (1962), Infinito Pessoal ou A Arte de Amar

    (1962), Do Tempo ao Corao (1966), A Arte de Amar (1967, reunio de obras anteriores), Lira de Bolso

    (1969), Cancioneiro de Natal (1971, Prmio Nacional de Poesia), Matura Idade (1973), Sonetos do Cativo

    (1974), As Lies do Fogo (1976), Obra Potica (1980, inclui as obras Guitarra e Viola e rfico

    Ofcio), Os Ramos e os Remos (1985), Obra Potica, 1948-1988 (1988) e Msica de Cama (1994,

    antologia ertica com um livro indito).

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    Ensasta notvel, escreveu Vinte Poetas Contemporneos (1960), Motim Literrio (1962), Hospital das

    Letras (1966), Discurso Directo (1969), Tpicos de Crtica e de Histria Literria (1969), Sobre Viventes

    (1976), Presena da Presena (1977), Lmpadas no Escuro (1979), O Essencial Sobre Vitorino

    Nemsio (1987), Nos Passos de Pessoa (1988, Prmio Jacinto do Prado Coelho), Marguerite Yourcenar:

    Retrato de Uma Voz (1988), Sob o Mesmo Tecto: Estudos Sobre Autores de Lngua Portuguesa (1989),

    Tpicos Recuperados (1992), Jogo de Espelhos (1993) e Magia, Palavra, Corpo: Perspectiva da Cultura

    de Lngua Portuguesa (1989).

    Na fico narrativa, estreou-se em 1959 com as novelas de Gaivotas em Terra (Prmio Ricardo

    Malheiros), os contos de Os Amantes (1968), e ainda As Quatro Estaes (1980, Prmio da Crtica da

    Associao Internacional dos Crticos Literrios), Um Amor Feliz, romance que o consagrou como

    ficcionista em 1986 e que lhe valeu vrios prmios, entre os quais o Grande Prmio de Romance da APE

    e o Prmio de Narrativa do Pen Clube Portugus, e Duas Histrias de Lisboa (1987).

    Deixou ainda tradues e uma gravao discogrfica de poemas seus intitulada Um Monumento de

    Palavras (1996). Alguns dos seus textos foram adaptados televiso e ao cinema, como, por exemplo,

    Aos Costumes Disse Nada, em que se baseou Jos Fonseca e Costa para filmar, em 1983, Sem Sombra

    de Pecado. David Mouro-Ferreira foi ainda autor de poemas para fados, muitos deles celebrizados por

    Amlia Rodrigues, tal como Madrugada de Alfama.

    Recebeu, em 1996, o Prmio de Consagrao de Carreira da Sociedade Portuguesa de Autores.

    Bibliografia: A Secreta Viagem, Lisboa, 1950; Tempestade de Vero, Lisboa, 1954; Os Quatro Cantos

    do Tempo, Rio de Janeiro, 1958; In Memoriam Memoriae, Lisboa, 1962; Infinito Pessoal ou a Arte de

    Amar, Lisboa, 1962; Do Tempo ao Corao, Lisboa, 1966; A Arte de Amar (reunio das cinco primeiras

    obras editadas), Lisboa, 1967; Lira de Bolso (antologia), Lisboa, 1969; Cancioneiro de Natal, Lisboa,

    1971, Matura Idade, Lisboa, 1973; Sonetos do Cativo, Lisboa, 1974; As Lies do Fogo (antologia),

    Lisboa, 1976; Obra Potica (inclui Guitarra e Viola e rfico Ofcio), 2 vols. Lisboa, 1980; Entre a

    Sombra e o Corpo, Lisboa, 1980; Os Ramos e os Remos, Lisboa, 1985; Obra Potica (1948-1988), Lisboa,

    1988; Jogo de Espelhos: Reflexos para um Auto-Retrato, Lisboa, 1993; Msica de Cama: Antologia

    Ertica com um Livro Indito, Lisboa, 1994; Gaivotas em Terra, novelas, Lisboa, 1959; Os Amantes,

    contos, Lisboa, 1968; Os Amantes e Outros Contos, Lisboa, 1974, Maria Antnia e Outras Mulheres:

    Contos Escolhidos, Lisboa, 1978; As Quatro Estaes, Lisboa, 1980; Um Amor Feliz, Lisboa, 1986; Duas

    Histrias de Lisboa, Lisboa, 1987; O Irmo, Lisboa, 1965; Vinte Poetas Contemporneos, Lisboa, 1960;

    Motim Literrio, Lisboa, 1962; Hospital das Letras, Lisboa, 1966; Discurso Directo, Lisboa, 1969; Tpicos

    de Crtica e de Histria Literria, Lisboa, 1969; Sobre Viventes, Lisboa, 1976; Presena da "Presena",

    Porto, 1977; A Aco Cultural de Afonso Lopes Vieira, Lisboa, 1978; Lmpadas no Escuro, Lisboa, 1979;

    Portugal, a Terra e o Homem. Antologia de textos de escritores do sculo XX (co-aut. com Maria Alzira

  • Seixo), Lisboa, 1980; A Ilha dos Amores e o Lirismo Ertico de Cames, Lisboa, 1980; Larbaud, Pessoa,

    Antero: o Recurso Ode como Forma de Modernidade, Paris, 1983; Reflexos da Literatura Francesa em

    Portugal (1920-1984), Paris, 1984; O Essencial sobre Vitorino Nemsio, Lisboa, 1987; Nos Passos de

    Pessoa, Lisboa, 1988; Marguerite Yourcenar: Retrato de uma Voz, Lisboa, 1988; Sob o Mesmo Tecto.

    Estudos sobre Autores de Lngua Portuguesa, Lisboa, 1989; Os cios do Ofcio: Crnicas e Ensaios,

    Lisboa, 1989; Tpicos Recuperados sobre Crtica e Outros Ensaios, Lisboa, 1992; Magia, Palavra, Corpo:

    Perspectiva da Cultura de Lngua Portuguesa, Lisboa, 1993

    Faz a anlise dos seguintes poemas:

    LIBERTAO

    Fui praia, e vi nos limos

    a nossa vida enredada:

    meu amor, se fugimos,

    ningum saber de nada.

    Na esquina de cada rua,

    uma sombra nos espreita,

    e nos olhares se insinua,

    de repente uma suspeita.

    Fui ao campo, e vi os ramos

    decepados e torcidos:

    meu amor, se ficamos,

    pobres dos nossos sentidos.

    Ho-de transformar o mar

    deste amor numa lagoa:

    e de lodo ho-de a cercar,

    porque o mundo no perdoa.

    Em tudo vejo fronteiras,

    fronteiras ao nosso amor.

    Longe daqui, onde queiras,

    a vida ser maior.

    Nem as esp'ranas do cu

    me conseguem demover

    Este amor teu e meu:

    s na terra o queremos ter.

    INSCRIO SOBRE AS ONDAS

    Mal fora iniciada a secreta viagem

    um deus me segredou que eu no iria s.

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    Por isso a cada vulto os sentidos reagem,

    supondo ser a luz que deus me segredou.

    PRELDIO DE NATAL

    Tudo principiava

    pela cmplice neblina

    que vinha perfumada

    de lenha e tangerinas

    S depois se rasgava

    a primeira cortina

    E dispersa e dourada

    no palco das vitrinas

    a festa comeava

    entre odor a resina

    e gosto a noz-moscada

    e vozes femininas

    A cidade ficava

    sob a luz vespertina

    pelas montras cercada

    de paisagens alpinas

    Anlise do poema Libertao De todos os poemas de David Mouro-Ferreira, aquele que atende pelo mais belo ttulo o Libertao. Palavra derivada de Liberdade, que a palavra que mais caracteriza a revista Seara Nova, que por tantos anos circulou em Portugal.

  • Fui praia, e vi nos limos a nossa vida enredada:

    meu amor, se fugimos, ningum saber de nada. Libertao um poema caracterizado pela presena da empatia simptica, pela existncia de um amor aparentemente to puro e ingnuo de duas pessoas, pela existncia de respostas entre o autor-personagem, em que, com os dois juntos, e ningum mais, podem constituir uma vida feliz e LIVRE. Quando o sujeito lrico diz sobre a vida dos dois estarem enredada, ele quer dizer sobre a sintonia dos

    dois, sobre uma relao volitivo-emocional que vive dinmica em um cenrio livre e em paz, onde ele o representa por uma praia. E quando David fala sofre fugirem, s uma troca de lugar, de cenrio, pois os dois j esto em um mesmo plano volitivo-emocional, mudar de lugar apenas uma tentativa de achar um lugar onde possam ficar mais livres, livres para se amarem, axiologicamente conferindo significados de almas, culminando, poeticamente ao todo da obra, dinamicamente aos passos do ritmo. A resposta que o autor d personagem, essa contemplao que o autor faz, podendo tambm ser chamada de empatia, uma resposta personagem baseada no contexto em que est a personagem,

    que chamada pelo autor como um todo, tanto na parte interna quanto na parte externa da personagem. A resposta que o sujeito lrico d ao outro rene as definies tico-cognitivas e d o acabamento a personagem, ou seja, o que Bakhtin chama de um todo concreto-conceitual personagem, nico e tambm semntico. Vejamos mais um fragmento desse poema. Na esquina de cada rua, uma sombra nos espreita, e nos olhares se insinua, de repente uma suspeita. O sujeito lrico, ao longo do poema, demonstra preocupaes no somente com a relao volitivo-emocional com a sua personagem, com a contemplao, dinmica prpria do seu amor, mas, muito mais, demonstra preocupaes com os lugares onde esto ou onde estaro, que, segundo ele, influi em uma relao, pois cruel o mundo e as pessoas dentro dele. O autor teme o julgamento dos homens que apenas julgam pela Imagem Externa, e no pelo vivenciamento interno, com o corao, sendo que, para David, esses homens no so livres. Bakhtin (2006, p. 82) diz: A forma esttica no pode ser fundamentada de dentro da personagem, de dentro do seu propsito semntico, material, ou seja, de dentro da significao puramente vital, a forma fundamentada do interior do outro (...) criando valores e mantendo uma relao essencial. e nos olhares se insinua, de repente uma suspeita. Fui ao campo, e vi os ramos decepados e torcidos:

    meu amor, se ficamos, pobres dos nossos sentidos. Ho-de transformar o mar deste amor numa lagoa: e de lodo ho-de a cercar, porque o mundo no perdoa. O que preocupa o sujeito lrico o julgamento do mundo, pois, para ele, o amor deve existir em um lugar sem opresso, sem maldade, sem inveja, um lugar livre, longe de qualquer escravido dos homens que no perdoam. Em tudo vejo fronteiras, fronteiras ao nosso amor.

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    Longe daqui, onde queiras, a vida ser maior.

    Em busca de um lugar maior vivncia do seu amor, o sujeito busca ultrapassar as fronteiras, que podemos entender por muitas coisas, como a maldade das pessoas, os lugares que no trazem paz, e quaisquer outras coisas que fazem um amor no soar, pois vive na escravido. O que o sujeito lrico chama de vida, que ser maior, pode ser caracterizada como o seu amor, sua relao tico-cognitiva e volitivo-emocional com a sua personagem, o seu outro. Em um lugar livre, o amor pode ser maior, e infinito, o que brada o autor.

    Nem as esp'ranas do cu me conseguem demover Este amor teu e meu: s na terra o queremos ter. Este amor teu e meu:

    Verso clssico da relao autor-heri, e da empatia-simptica. Mostra o amor do sujeito lrico com um outro, em uma relao volitivo-emocional em dinamismo, viva e verdadeira na contemplao desse amor. Anlise do poema inscrio sob as ondas Nesse poema, o sujeito lrico cita a existncia de um outro, de uma fora, de uma luz em algum, que, por ser de tamanha importncia para a viagem (de sua vida), ele diz que essa presena o far no sentir-se s. algo que, segundo o sujeito lrico, em poesia nem parece ser humano, mas que retira a solido e d um acabamento esttico, o complementa, estando esse outro com ele na viagem de sua vida. Essa reao de sentidos que o sujeito lrico cita uma resposta de um outro para ele, que faz com que ele perceba a evidncia dos seus sentidos conferidos resposta axiolgica que ele (o sujeito lrico) conferiu a esse outro, que correspondeu com uma presena (em luz), fornecendo uma resposta que propiciou a manifestao dos sentidos a ele. Um termo discutido no livro Esttica da Criao Verbal por Bakhtin o destino. D pra perceber a presena do destino nesse poema de David Mouro. A viagem, a predestinao dessa viagem e da luz (um outro algum) que o vai seguir nessa estrada o que o sujeito lrico sonha como o seu destino certo, aquele que o far chegar at o fim da jornada completa (esteticamente, segundo Bakhtin). Bakhtin define destino por uma determinidade abrangente do ser do indivduo e lhe predetermina necessariamente todos os acontecimentos da vida; desse modo, a vida somente a realizao (o cumprimento) daquilo que desde o incio jazia na determinidade do ser.

    Faz o resumo do seguinte conto :Nem tudo histria

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  • DINIS MACHADO

    Morreu autor de O Que Diz Molero

    O escritor e jornalista Dinis Machado, que morreu ontem, aos 78 anos, vtima de cancro do pulmo,

    lanou apenas seis livros durante a sua vida alguns originais que deixou vo chegar s livrarias nos

    prximos meses mas bastou- -lhe uma obra para conquistar lugar de destaque na literatura

    portuguesa.

    Tinha 47 anos, passagens por muitos jornais e trs livros policiais quando, em 1977, escreveu O Que Diz

    Molero, onde Mister DeLuxe e Austin lem o relatrio elaborado por Molero sobre a vida (e as figuras

    pitorescas que nela aparecem, como o Peida Gadocha) de algum referido apenas como 'o rapaz'.

    'Foi o primeiro best-seller do ps-25 de Abril, apesar de ele ter aparecido com aquilo sem saber que era

    um grande livro', disse ontem ao CM o escritor e editor Francisco Jos Viegas, que conviveu com um

    autor que 'nunca largou as cigarrilhas' e foi um escritor 'da rua'. 'Ainda hoje no h oralidade na

    literatura portuguesa como em O Que Diz Molero', acrescenta Viegas.

    Tambm recordada por Nuno Artur Silva, que em 1994 adaptou para o teatro o livro de Machado, a

    modstia do autor. 'Disse at ao ltimo momento para no nos metermos naquilo. Vejam l... Isso

    capaz de no ser bom para vocs. Vo perder dinheiro.', insistia antes da estreia. Depois ficou

    emocionado e foi contrariado pela bilheteira.

    O corpo do escritor ficou ontem em cmara ardente na Igreja da Encarnao, no Chiado, e o funeral

    segue hoje, s 16h00, para o cemitrio do Alto de S. Joo.

    POLICIAIS SOB PSEUDNIMO

    Entre as obras que Dinis Machado deixou inditas uma delas aparecer nas livrarias com outro nome na

    capa. Blackpot, que a Assrio & Alvim prev editar em 2009, mais um dos livros policiais em que o

    portugus recorreu ao pseudnimo Dennis McShade, autor de Mo Direita do Diabo, Requiem para D.

    Quixote e Mulher e Arma com Guitarra Espanhola, todos escritos em 1967 e 1968.

    PERFIL

    Dinis machado nasceu em Lisboa h 78 anos e ao longo de toda a vida foi um homem da cidade. Em

    especial do Bairro Alto, onde recolheu as memrias que deram origem a O Que Diz Molero. Fez carreira

    como jornalista desportivo e crtico de cinema.

  • "UM GRANDE ESCRITOR E EXCELENTE CONVERSADOR" (Mrio Zambujal, Escritor e amigo de

    Dinis Machado)

    Correio da Manh O que se diz e se sente ao perder um grande amigo como o escritor Dinis

    Machado?

    Mrio Zambujal Alm do sofrimento automtico que se sente ao receber uma notcia destas, tende-se a

    dizer coisas bonitas sobre o amigo que perdemos.

    Como recorda a sua obra?

    Era um grande escritor, com uma produo relativamente pequena, mas que fica gravado como um

    grande nome da Literatura Portuguesa, em especial por O Que Diz Molero. H uns anos fiz uma

    apresentao de um livro dele Reduto Quase Final (1989) que era muito amargo, escrito numa fase

    quase de desistncia em que ele parecia estar at a despedir-se dos seus leitores...

    Esse acabou mesmo por ser o seu ltimo livro...

    E eu disse mesmo na apresentao que ele no tinha o direito de desistir, que tinha quase a obrigao

    de continuar a brindar os portugueses com a sua prosa extraordinria.

    Como homem e amigo, como o lembrar?

    Como um homem de Lisboa, do Bairro Alto, conhecedor da Lisboa profunda e castia. Era um grande

    senhor e um excelente conversador. Passvamos horas conversa. Era um grande prazer falar com ele.

    De que assuntos conversavam em especial?

    Sobre cinema, muito. Livros, banda desenhada, pela qual ele era um total apaixonado... Futebol e

    mulheres, claro.

    Como se conheceram?

    Nos anos 70 fomos apresentados pelo fotgrafo Augusto Cabrita, que j no est entre ns. E samos

    muito, a bares, beber copos, tambm com o Cardoso Pires, que j faleceu. Mas nos ltimos tempos no

    me tinha cruzado com o Dinis Machado; a vida leva-nos para caminhos diferentes... Mas muito amargo

    receber a notcia da morte dele.

    cm04 Outubro 2008

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    O que diz Molero

    Obra de Dinis Machado, a narrativa desenvolve-se a partir do dilogo entre duas personagens, Mister

    Deluxe e Austin, sobre o que diz uma outra personagem ausente, Molero, num relatrio sobre um rapaz.

    A anlise feita pelos dois interlocutores do relatrio de Molero sobre a vida e sobre o livro escrito pelo

    rapaz, Angel Face, o ponto de partida para a multiplicao de comentrios, digresses, histrias

    contadas pelos interlocutores, por Molero ou pelo rapaz, numa estrutura em mise en abme, que implica,

    ao longo dos trs nveis locutrios, o contnuo diferido sobre o que dito, contado, pensado ou feito, por

    uma multiplicidade de outras personagens fixadas no imaginrio do rapaz. Nesta estrutura

    mirabolante, O Que Diz Molero um livro sobre o que duas personagens dizem sobre o que diz Molero

    num livro sobre um rapaz, na verdade, menos sobre o rapaz do que sobre o que disseram ou fizeram

    personagens que marcaram a infncia e existncia do rapaz: os pais do rapaz, uma tia louca, o Vampiro

    Humano, o Descoiso, o Zuca, Evaristo, Leduc, o Eremita das Mos Frias, Cludio, etc.

    Apesar do encaixe dos discursos, cada um dos nveis desenvolve a sua autonomia e liberta-se do

    hipotexto que o gera: assim que o relatrio de Molero se encontra anotado a lpis pelo prprio Molero

    e constitui, para alm do seu esforo mimtico de registo, reconstituio, explicao da obra do rapaz, a

    oportunidade de tecer consideraes pessoais de vria ordem, de se divertir com pormenores

    subsidirios, de compor alguns trechos que acusam uma "forma sofisticada de nause (p. 64); ao mesmo

    tempo, os dois interlocutores que recebem a avalancha de mitos culturais, de dvidas, de pensamentos,

    vo sendo possudos por um sentimento de saturao das aquisies humanas e tomando, a pouco e

    pouco, conscincia, como as personagens de Beckett, de uma condio humana absurda ("a gente nem

    sabe do que as pessoas so capazes para iludirem a ausncia de um sentido para a vida, para escaparem

    misria ou ao peso dos outros", p. 61).Adaptada ao teatro por Nuno Artur Silva, em 1996, tudo nesta

    narrativa apontava com efeito para a sua encenao: a indeterminao do tempo histrico, remetido

    para momentos da vida e da infncia do rapaz, impunha como balizas temporais precisas um tempo do

    discurso que coincide com o incio e o fim do dilogo entre Austin e Deluxe; a reduo do espao a um

    cenrio onde se situam os interlocutores, mesmo se evocador de outros espaos por onde passou o

    rapaz; o alucinante encaixe de narradores (um narrador conta o que duas personagens contam sobre o

    que Molero conta sobre o que o rapaz conta), que em ltima anlise pe em causa a existncia de uma

    voz narrativa em benefcio de mltiplas interpretaes e mediaes no acesso realidade; a ausncia de

    uma intriga, reduzida ao "enigma" sobre o rapaz constitudo por Molero ou s vrias histrias contadas; a

    eliminao de captulos, substitudos por espaos brancos que marcam as pausas da conversa, antes de

  • ser relanada por uma associao de ideias, de palavras, ou pelo desfolhar do relatrio; o facto de todas

    as personagens s existirem enquanto suportes de um discurso, que versa sobre personagens que se

    encontram fora do discurso, porque as suas histrias so diferidas por outro discurso; e, em suma, o

    facto eminentemente teatral de o contedo de O Que Diz Molero se resumir a palavras ditas, fixadas

    oralmente num tempo presente ou reportadas a um tempo passado, em discurso direto ou indireto.

    A narrao comunga, com efeito, das caractersticas estilsticas usadas por Molero no relatrio,

    nomeadamente, "o fascnio da oralidade, a linguagem solta, pretensamente ferica, elaboradamente

    descuidada, a cantata do vocbulo popular, a envolvncia rtmica, a construo sincopada, musical, [...]

    a prosa festiva, galopante de frases que geram frases e que repescam outras, abrindo ou fechando

    janelas sobre a narrativa" (p. 144). Por esse triunfo da oralidade e por "uma imagstica ligada ao mundo

    da marginalidade cultural do Ocidente", pelo reflexo de uma "mitologia vivida da conotao

    cinematogrfica [...], uma poesia do quotidiano ferico de uma capital de segunda mo em matria de

    imaginrio onde todas as "imagens" dos outros se volvem em mitos caseiros de prodigiosa dinmica

    pcara", e pelo xito com que foi recebida, Eduardo Loureno v nesta obra um indcio das novas

    relaes entre texto contemporneo e cultura, ou, pelo menos, um exemplo representativo do relevo

    assumido por "uma nova cultura" que j no recebe da modelao escolar os seus tpicos decisivos" (cf.

    LOURENO, Eduardo - O Canto do Signo, Lisboa, 1994, p. 281).

    Ao mesmo tempo, O Que Diz Molero compe, integrando uma tendncia da novelstica contempornea

    para a reviso das coordenadas culturais e ideolgicas do mundo ocidental, a histria do Homem

    contemporneo, situado num tempo posterior rutura entre linguagem e realidade (operada por

    "Erculano", quando inaugurou a espera da "palavra-resumo, tambm palavra-origem, ou palavra-

    madrugada, [...] a palavra-espelho de um Narciso feito de negaes sucessivas, ignorando tudo o que

    estivesse alm de si mesmo" (p. 89), submerso por todos os discursos recebidos ao longo da histria e

    para quem a palavra, carregada com tantos sentidos, parece j no ter sentido nenhum que no o da

    sua impotncia. Nesta medida, o relatrio fala no do rapaz mas "da outra parte da verdade que se

    escapa [...], fala da vida que se esconde em cada ser, do fluido em que essa vida continuamente se

    perde e reencontra, esse universo privado de sensaes subtis que perseguimos e que nos perseguem

    [...], o relatrio omite tudo o que ele, Molero, no sabe, apenas entrev s vezes no seu emaranhado de

    notas, de observaes, de ideias, de associaes de ideias, ficando, de qualquer modo, e para sempre, a

    certeza de que falta uma parte vital dessa vida, a sua substncia mais alada [...], o relatrio apenas um

    esforo orientado numa linha eminentemente superficial (...)", p. 65). Austin, Mister Deluxe, Molero ou

    Rapaz; O Que Diz Molero, Relatrio, ou Angel Face, o eu o outro e o mesmo, estilhaado, igual e

    diferente do que cria, igual e diferente da imagem construda pelos outros, real e ficcional: "Em caixa

    alta", disse Austin, "tambm a lpis, Molero escreveu: como diz

    Flaubert, Madame Bovary sou eu [...] Houve uma pausa. "Angel

    Face sou eu", disse Austin, olhando para Mister Deluxe" (cf. 31).

    EXCERTO ()Chegou uma esquadra, disse Austin, e aqueles a

    quem chamavam os camones invadiram a cidade, tingindo-a com a

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    brancura das suas fardas. Meia dzia deles enfiou pela rua acima, passou pelos Vai ou Racha, estes

  • cuspiram para o cho em sinal de desprezo, o Zuca foi atrs deles de brao estendido, esfregando o

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    dedo polegar no indicador, eh, camone, money, money, um camone atirou um monte de moedas ao ar e

  • a miudagem lutou bravamente para apanhar o dinheiro. essas excurses a bairros desconhecidos

  • 53/119

    desvendam mundos novos, interrompeu Mister DeLuxe. fiz duas ou trs desse gnero e tirei excelentes

  • fotografias.Austin sorriu. bem, disse ele, os camones continuaram a subir a rua, pararam junto ao

    ngelo, que estava sentado no seu banco de madeira a experimentar a harmnica, um deles aproximou-

    se e disse girls, e fez com o brao o

    movimento respectivo, we want

    girls, o ngelo disse girl a tua

    mezinha, ests a perceber ou

    precisas de explicador?, sim, a tua

    mezinha, o camone riu-se para os

    outros, um deles avanou e fez uma

    espcie de passe Fred Astaire,

    conta quem sabe, e de repente o

    ngelo j tinha guardado os culos

    e a harmnica no bolso, comeou a

    despachar os camones, enfiou um

    pela loja de mveis do Ventura, outro foi cair numa das cadeiras da Barbearia Hollywood, exactamente

    em cima do Pimentel, que estava a ser escanhoado pelo Joaquim Navalhinhas, um terceiro mergulhou no

    tanque de roupa da Miquelina Fortes, outro ainda foi tambm remetido para a loja do Ventura, encontrou

    o primeiro no caminho, vinha de regresso, e estatelaram-se os dois numa cama de casal, o ngelo com

    os ps, com as mos, com a cabea, vai disto, os camones enfiavam por tudo quanto era porta,

    positivamente distribudos ao domiclio, o Zuca diria mais tarde que Ricardito entre Chamas e Bandidos, a

    sua fita nmero um, ao p daquilo no era nada. A certa altura, com os camones, estoicos a irem e a

    virem, os Vai ou Racha comearam a subir a rua, meteram-se no vespeiro, foi o P de Cabra que disse

    chegou a hora, o Padeirinha ouviu a frase histrica e havia de transmiti-la mais tarde, nunca se chegou a

    saber a que hora se referia ele, tambm no se chegou a saber se tencionavam ajudar o ngelo que de

    resto, segundo Molero, conta quem sabe, se havia alguma coisa de que ele precisasse no era com

    certeza de ajuda, ou ajudar os camones, ou apart-los, simplesmente o ngelo comeou tambm a

    despachar os Vai ou Racha, o Gil Penteadinho deu duas voltas no ar e foi aterrar na carroa das couves

    do Hiplito, o Tonecas Arenas ficou sentado no primeiro andar do andaime de um prdio que estava a

    ser pintado, entornando uma lata de tinta cor de rosa sobre o prncipe-de-gales novo do Joca Farpelas ,

    isto depois de passar pela banca de peixe do Zeca Trampa, espadanando carapaus e lulas por todos os

    lados, o sombrero, esse, voou e entrou pela janela do segundo andar da Dona Ermelinda, o Bexigas

    Doidas, que quase tinha sido atado pelo ngelo a um camone, conta quem sabe que fez n com o brao

    direito de um e a perna esquerda do outro, entrou com ele sem pedir licena pelo s de Espadas, Lda.,

    levaram ambos consigo o Rufino, o Aranhio, o Roque Sacristo e o Vov Resmungas, que estavam a

    jogar sueca, saram todos um pouco balda pela porta do fundo, acrescentados do Douglas Fazbancos

    e do Chico Domin, que estavam ali a discutir o Sporting-Benfica do domingo anterior, o P de Cabra foi

    de cabea contra a parede e at fez eco, abriram-me a cabea, dizia ele, abriram-me a cabea, o que,

    segundo Molero, devia ser por demais evidente, o Peito Rente foi chutado com efeito para a tipografia do

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    Celestino , deu duas voltas l dentro fazendo parar mquinas que estavam a trabalhar e pondo a

    funcionar mquinas que estavam paradas, algum tinha espetado uma faca na barriga do Lucas Pireza,

    talvez um camone, de certeza que foi um camone, diria mais tarde o Zuca, os camones so uns naifistas

    do caneco, garantia ele, o Lucas Pireza segurava os intestinos com as mos, falava baixinho para eles,

    parecia rezar, os camones iam e vinham, espartanos, segundo Molero, at medula, a certa altura,

    numa ressaca, levaram com eles, pelo ar, o Metro e Meio, o ngelo tinha-os juntado a todos num

    molhinho, enfeitou-os com o metro e meio, e vai disto, tudo pelo ar, rumo ao Marocas Papa-Milhas, que

    tinha uma motocicleta cheia de cromados, e a mania das curvas rpidas, j tinha atropelado trs gatos e

    duas pessoas, ia a fazer uma bela curva naquele momento, foi contemplado com a coleco de camones

    coroada com o Metro e Meio, despistou-se, disse foda-se, foda-se, subiu o passeio, virou de pantanas o

    mostrurio do Ral Pechisbeque, choveram colares de vidro, pulseiras, broches e anis, o Marocas

    continuou em prova descontrolado e tudo, devolveu para dentro de casa o bero que a Gertrudes tinha

    colocado porta com o bb, atravessou a rua aos ziguezagues, embateu na caixa da criao da Mafalda

    Capoeira e terminou a prova contra o balco da carvoaria do Galego, lanando o pnico nos elementos

    do Grupo Excursionista Moscatel, que estavam a beber o meio litro da praxe, enquanto as pessoas

    assomavam alvoroadamente s janelas, as mulheres gritavam, o beb da Gertrudes, que era o melhor

    pulmo l do bairro, berrava como nunca, o papagaio do Pimentel, que tinha cado do poleiro e danava

    suspenso na correia de metal, esganiava a sua expresso preferida, da guarda, da guarda,

    muitssimo apropriada, segundo Molero, s circunstncias, o Fox Terrier do Silva Farmacutico filava um

    camone pelo fundilho das calas e fazia questo de no o largar, as galinhas da Mafalda Capoeira

    corriam espavoridas num cacarejar infernal e num dilvio de penas, o burro do Hiplito zurrava, os gatos

    da dona Maria Bicharoco miavam e pulavam, o Alscia do T Peneiras ladrava com aquela fria s dele,

    camones entravam por aqui, ex- Malhoas saam por acol, s vezes dava certo, parecia que o ngelo

    tinha controle sobre a confuso, distncia, o Zuca diria mais tarde que, tirando algumas partes cmicas

    que pareciam Charlot, aquilo tinha sido uma coisa iglantnica, o ngelo era igualzinho a um tal Lone

    Ranger, s lhe faltava a mascarilha. Houve uma pausa. o rapaz assistiu a tudo isto dentro da mercearia

    do Joo Azeiteiro, atrs de um saco de feijo, atnito perante aquilo que Molero denomina o maior fogo

    de artifcio de que h memria em matria de pancadaria, a balbrdia plena, o filme de trinta e uma

    partes em carne viva, o real que se sobrepe ao mtico, sonhar pouco, entra rapaziada, entrar, eis a

    maior zaragata de todos os tempos, resolvida numa s sesso e sem ser preciso comprar bilhete, sem

    cenrios de carto, sem trucagens, sem intervalo segue imediatamente, cabeas, pernas e braos

    indiscutivelmente partidos, a cara do P de Cabra tapada pelo sangue que lhe escorria da cabea, o

    Lucas Pireza transportado para o hospital na carripana do Bigodes Piaaba, os intestinos enfiados outra

    vez na barriga um pouco pressa, os camones espalhados pela rua, as mulheres a trazerem bacias de

    gua e toalhas para limpar os feridos, as acusaes mtuas, camone porque que no vais jogar

    porrada para as tuas streets ? ...no foram os camones, foi o ngelo, o ngelo que comeou logo a

    enfardar, isto foi coisa dos Vai ou Racha, os Vai ou Racha e os camones juntos so a lepra e a diarreia,

    as lgrimas e os gemidos, Vov Resmungas de bengala no ar a despontar esquina ao colo do Roque

  • Sacristo,a Mafalda capoeira a correr atrs das galinhas, o Zeca Trampa a procurar lulas e carapaus nas

    couves do Hiplito, o Metro e Meio a vomitar coisas de cores esquisitas, esverdeadas e lilases, o Celestino

    a dizer ao Peito Rente mas tu no podias foder o material a outro?, o Tonecas Arenas a pedir para o

    ajudarem a sair do andaime, o Joca Farpelas de casaco na mo a chamar de filho da puta para cima a

    toda a gente, o Gil Penteadinho procura do dente de oiro, se virem um dente de oiro meu, o Pimentel

    porta da barbearia com meia barba por fazer e o guardanapo ao pescoo, a Gertrudes com o beb ao

    colo, alternando, num tom de voz claramente diferenciado, o papo vai-te embora, deixa dormir o

    menino, com o cambada de malandros, cambada de malandros, o Raul Pechisbeque a recolher, de nariz

    no cho e no bon de um dos camones, pedrinhas coloridas, colares, broches e anis, o Silva

    Farmacutico a tentar tirar da boca do fox-terrier os fundilhos das calas do camone, os Moscatis a

    perguntarem ao Marocas se a carvoaria era uma pista de corridas, o Marocas a coxear e a dizer foda-se,

    foda-se, no mexam na mota, no mexam na mota, o T Peneiras rua abaixo em grande velocidade

    agarrado trela do Alscia que perseguia um dos gatos da Dona Maria Bicharoco, o Ventura dos mveis

    a explicar a um camone que a bed estava partida, o camone a contar com os dedos os galos que tinha

    na cabea, o Zeferino Torro de Alicante a dizer que desta vez ainda tinha sido melhor do que com os

    ciganos, o Chins a dizer que sim com a cabea, o carro da policia a chegar, o Joaquim Navalhinhas a

    perguntar mas o que que a policia vem fazer agora?, vem contar os mortos?, o ngelo a por os culos

    e a desaparecer, o Zuca havia de dizer mais tarde, que ele desaparecera no ar como o Mandrake, a Dona

    Ermelinda a devolver o sombrero do Tonecas Arenas pela janela por onde tinha entrado, o sombrero a

    descrever uma curva larga, planando e caindo suavemente aos ps do Dick Tracy, que era o policia

    paisana l da rea, e o Dick Tracy, segundo Molero, conta quem sabe, de sombrero na mo, a perguntar

    a toda a gente e a ningum: o que que se passou?, o que que se passou?, o que que se passou?..."

    'O que diz Molero' a duas vozes, 30 anos depois

    In Jornal de Notcias ( artigo parcial)Maro 2007

    "s vezes h obras..." Mas raro. "Daquelas que nos sentimos filhos", diz o mais novo, sentado numa

    cadeira a dar para a janela onde o escritor lhe surge recortado no contraluz de fim de tarde. ", e com

    esta capa o livro ficou lindo... D a ideia de que as coisas continuam a acontecer", atira o escritor sem

    olhar o mais novo, mas fixando a capa, entrando nela com os olhos pequenos mas sem a tocar com as

    mos que se cruzam, entretanto, debaixo do queixo. Repete: "Lindo." E no papel, h um vulto que sobe,

    corre, vai cidade acima. Cidade de tinta, iluso desenhada. Ser Molero quem corre? Dinis Machado, o

    escritor, no quer saber, at porque essas coisas no se dizem e muito menos se sabem. Conversa-se,

    "conversa boa", classifica-a Antnio Jorge Gonalves, o mais novo, ilustrador da edio comemorativa

    dos 30 anos de O Que diz Molero, agarrado aos olhos do autor da obra que, desde um dia de 1994, na

    primeira vez que a leu, sonhou ser sua.

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    A matria a palavra. E foi pela palavra que Antnio Jorge Gonalves conduziu uma viagem esttica para

    transformar esta edio do texto de Dinis Machado num objecto guardvel. "No havia um livro objecto,

    uma edio de jeito, desta obra to emblemtica." E o lamento levou-o tentao. A de ser ele a tentar,

    apesar de achar "que Molero no precisava das suas ilustraes, nem das de mais ningum". Agarrou-se

    ento palavra e quis que o seu trabalho funcionasse como uma moldura, "como aquelas molduras

    douradas que se pem volta dos quadros impressionistas para que quando as pessoas cheguem se

    curvem e olhem o nome que est em baixo".

    Que funcionasse como uma porta de entrada. Traos para acondicionar o primeiro pargrafo de um livro

    considerado revolucionrio para a literatura, no ano em que saiu. 1977. Livro difcil de arrumar nas

    prateleiras dos gneros. Qual gnero? Fernando Assis Pacheco, o escritor jornalista, chamou-lhe, j l

    vo 30 anos, o reduto do "universo machadiano".

    "Estou cheio de cinema"

    Mas que universo esse? Antnio Jorge Gonalves v a um filme. Cinema. Ilustrou-o a pensar nisso.

    Enaltecer a obra sem interferir nela. Usando folhas de papel diferente , vegetal, transparente, pintado a

    vermelho e branco onde esto frases a preto escritas com a sua prpria grafia. So o primeiro e ltimo

    pargrafos, entrada e fecho do livro. Uma espcie de separador. Quis que fosse "homenagem ao esprito

    cinematogrfico" ali presente, "um zoom-in e um zoom-out e a ideia de continuidade. Este livro remete-

    me muito para o 8 1/5, do Fellini. Concorda?" O rosto de Antnio Jorge vira-se para o de Dinis. "Tambm

    acho que sim... "Estou cheio de cinema na minha vida." Dinis diz e volta ao papel de ouvinte: "H uma

    deambulao permanente da cmara que vai atravessando tudo..." E o cinema passa para a literatura,

    contagia Molero porque "no h compartimentos estanques", volta a falar Dinis.

    E Antnio Jorge, que j fizera a cenografia da adaptao teatral do livro, assinada por Nuno Artur Silva e

    representada por Antnio Feio e Jos Pedro Gomes (1994) garante que nunca falou destas ideias ao

    autor de Molero. "Ainda pensei nisso, mas depois desisti."

    "J tem confuso suficiente", sorri Dinis Machado, sem descruzar as mos pousadas sobre as pernas. E

    quando as viu, s ilustraes? "Lindo, lindo..." O adjectivo repete-se mas agora com justificao. "Acho

    que era uma ideia que estava a pedir para ser feita. Criou um corpo de ilustraes que justificou o livro."

    E isto veio a propsito do tal "universo machadiano", de que falara Assis Pacheco, mas a conversa

    derivou. No para o lado errado. cinema, afinal, esse mundo. "De deambulao", precisa o ilustrador,

    "um comboio de pensamentos de uma fora incrvel". E mais. "Reconheo aqui a mesma genialidade de

    Fellini, uma capacidade permanente de associao de ideias e de registos diferentes de uma

    inventividade impressionante." Um plano e a seguir outro e outro... e nem sequer um corte. "Estamos

    num raciocnio quase analtico e sociolgico sobre qualquer coisa mas que uma palavrinha faz descambar

    no burlesco outra vez para ir parar de repente a um registo potico e acabar s cambalhotas num

    comentrio qualquer burocrata do burocrtico DeLuxe..."

    A regra da impossibilidade

  • As palavras saem em catadupa da boca de Antnio Jorge e Dinis ouve e assente em silncio, olhos no

    cho, sorriso indisfarado. " um ptimo leitor, ele." E quando a expresso muda, se abre, e continua a

    ouvir. "Para mim, a liberdade isso, o mito da liberdade artstica que parece comprometido com esta

    poca em que a conceptualidade impera... O Dinis neste livro no podia ser mais livre. Ningum podia

    ser mais livre..." e no h fronteiras nem de registo nem de nada. O tempo tratado de forma livre.

    Cortado, entrecortado, "ao mesmo tempo um solilquio e uma enunciao de qualquer coisa". So

    consideraes de leitura. "Quando algum pega num livro, altera-o", sentencia, por sua vez, o autor. "E

    consegue dar-lhe uma sequncia prpria que at a no tinha." Outra vez o autor.

    " Dinis, eu senti nesta leitura que no h uma busca desesperada de algo, de um sentido, a que

    sucedesse depois uma frustrao ou decepo. E uma procura que aceita desde o incio a regra da

    impossibilidade..." E teoria Dinis responde: "Percebo, percebo. Acho que isso, est a dizer bem. As

    pessoas metem-se nestes textos porque lhe dizem muitas coisas e com essa ideia de aproximao esto

    sempre a reformul-lo. A questo da obra de arte entrar na vida das pessoas..." E no fim o que fica

    podem ser s vozes, vozes que escolheram Dinis para seu canal. Labirinto narrativo, tocata e fuga, "e

    andamos sempre numa espiral". Espiral de vozes. E todas as personagens so Dinis. E Dinis concorda.

    Mas Dinis ler ainda este livro? "s vezes ainda releio, porque me est sempre a ser sugerido." E ainda

    se perde nessa leitura. "Continuo a perder-me e a encontrar-me." Na obra que o marcou para sempre

    como um peso, um fardo. Bno e maldio por apagar as que se lhe seguiram. A partir do dia em que

    deixou os policiais que assinava Dennis McShade e decidiu criar um texto seu, pessoal, no qual estivesse

    a marca no do pseudnimo mas do homem com grafia que quis original, a romper cnones. Lembra-se

    desse momento que Antnio Jorge Gonalves associa ao da inspirao que encontra o criador a

    trabalhar? Dinis Machado pra o olhar como se tentasse reter o tempo, o de se sentar a inventar Molero

    e todas as vozes que o rodeiam. "Agarrei-me quilo. Foi uma espcie de exigncia que me fiz." E as

    vozes, como chegou a elas? Antnio Jorge pergunta e ouve, mas sabe que no h respostas para todas

    as perguntas que queria fazer. Por isso, algumas, nem as faz. Esta tem retorno. "Foi duro porque nada

    to efectivo quanto parece. Depois a nossa experincia que trabalha isso." Dinis era esse canal por

    onde passou a inspirao quando tinha uma vontade enorme de liberdade, de alterar a ideia das coisas.

    "Achava que se deviam fazer coisas novas, diferentes. E talvez me tenha metido nesse caminho para

    responder a isso."

    O gozo

    No se lembra quanto tempo demorou entre o princpio e o fim mas recorda-se que partiu para o texto

    "e aquilo nunca mais acabava". Ri. Riem os dois e no se olham quando riem. "Acabou por acaso",

    remata Dinis entre o "entulho e a limpeza, ou o entulho a que era preciso dar corpo. Talvez tenha

    conseguido", diz. Talvez? "Sim, tudo na vida relativo."

    E a inteno era esbater fronteiras. Esbateu. O livro revolucionou, j se disse. Antnio Jorge insiste e traz

    uma palavra nova. Gozo. A escrita como exerccio de gozo. "Se no fosse tanto o gozo..." E no termina

    a frase porque h palavras que se dispensam entre tantas. "Este livro tem todas as palavras l dentro,

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    em ltima anlise tem a vida toda l dentro. um livro com L grande. das palavras." Estas, so do

    ilustrador que fala ainda da possibilidade de atravs da "associao das palavras construir coisas dentro

    da cabea". Pausa na sala. "Isso da associao das palavras bem observado." Agora o escritor. E

    tudo para justificar a obrigatoriedade de "trazer" a palavra para a ilustrao.

    Explica a importncia desta pea de teatro .

  • LDIA JORGE

    Ldia Jorge nasceu em Boliqueime, Algarve, em 1946. Licenciou-se em Filologia

    Romnica pela Universidade de Lisboa, tendo sido professora do Ensino Secundrio. Foi nessa condio

    que passou alguns anos decisivos em Angola e Moambique, durante o ltimo perodo da Guerra

    Colonial. A publicao do seu primeiro romance, O Dia dos Prodgios (1980) constituiu um acontecimento

    num perodo em que se inaugurava uma nova fase da Literatura Portuguesa. Seguiram-se os romances O

    Cais das Merendas (1982) e Notcia da Cidade Silvestre (1984), ambos distinguidos com o Prmio

    Literrio Cidade de Lisboa. Mas foi com A Costa dos Murmrios (1988), livro que reflecte a experincia

    colonial passada em frica, que a autora confirmou o seu destacado lugar no panorama das Letras

    portuguesas. Entre outros romances, conta-se O Vale da Paixo (1998) galardoado com o Prmio Dom

    Dinis da Fundao da Casa de Mateus, o Prmio Bordallo de Literatura da Casa da Imprensa, o Prmio

    Mxima de Literatura, o Prmio de Fico do P.E.N. Clube, e em 2000, o Prmio Jean Monet de Literatura

    Europeia, Escritor Europeu do Ano. Passados quatro anos, Ldia Jorge publicou O Vento Assobiando nas

    Gruas (2002), romance que mereceu o Grande Prmio da Associao Portuguesa de Escritores e o

    Prmio Correntes dEscritas.

    A autora publicou ainda duas antologias de contos, Marido e Outros Contos (1997) e O Belo Adormecido

    (2003), para alm das publicaes separadas de A Instrumentalina (1992) e O Conto do Nadador (1992).

    A pea de teatro A Maon foi levada cena no Teatro Nacional Dona Maria II, em 1997. O romance A

    Costa dos Murmrios foi recentemente adaptado ao Cinema por Margarida Cardoso. Os romances de

    Ldia Jorge encontram-se traduzidos em diversas lnguas. Em 2006, a autora foi distinguida na Alemanha,

    com a primeira edio do Albatroz, Prmio Internacional de Literatura da Fundao Gnter Grass,

    atribudo pelo conjunto da sua obra. Combateremos a Sombra, apresentado no dia 22 de Maro, na Casa

    Fernando Pessoa, em Lisboa, o seu mais recente romance, e o Grande Prmio SPA-Millennium a sua

    mais recente distino.

    Em Portugal todos os seus livros tm a chancela das Publicaes Dom Quixote

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    No proponho que se leia este livro de Ldia Jorge como um simples exemplo da arte de escrever, mas que se releia e decifre uma das mais ricas partituras da literatura portuguesa contempornea.

    Jorge Listopad (sobre O Dia dos Prodgios)

    in Colquio-Letras

    Ldia Jorge o maior prodgio das letras ptrias neste ltimo quartel do sculo.

    Joo Gaspar Simes

    in Dirio de Notcias, 24/1/ 85

    Profeta no manejo da prosa, puxa-nos pela gravata do real e arrasta-nos ao hemisfrio da Ficcionalidade. A Costa dos Murmrios prdiga nesta florescncia de evocaes. Dir-se-ia que um sto de memrias, ao despegar cores, sons e aromas, cria atmosferas susceptveis de desenroscar a capacidade que o leitor tem de, segundo Barthes, re-escrever o texto.

    Joo de Mancelos http://www.ipn.pt/opsis/litera/letras/crit011.htm

    Que espao habita Ldia Jorge, nesta estante de consagradas? O de um miglior fabro, creio. Melhor porque se arriscou a ser lapidada pelo cnone com O Dia dos Prodgios (1980), ousando inovar e recordo que a experimentao trao e marca da escrita feminina: Virginia Woolf na prosa e Plath na

    poesia so dois claros exemplos. Melhor porque na crtica alegrica de O Cais das Merendas (1982), transborda da arte pela arte, para a arte como facto social e relembro a concluso de E. Portella: o fazer literrio uma realizao ideolgica plena.

    Melhor porque tem conscincia dos espaos internos da mulher na sensibilidade de contos como A Instrumentalina ou do misgino Antnio. Melhor porque logra perceber as contradies e o imaginrio da esposa tradicional, educada para servir e nunca para ser. Tal aparece intimamente traado na personagem de Lcia, da histria Marido, que se configura como topos da mulher domstica e domesticada, apenas voz na litania da humilhao, sempre credora no matrimnio. Melhor, enfim, porque com A Costa dos Murmrios (1988), da capo al fine, d razo s autoras e crticas essencialistas, na sua viso da mulher como arquitecto construtivo, anti-blico, e de olhar atento e mgico sobre a natureza humana.

  • Joo de Mancelos, Maio de 1998 in Letras & Letras: O sexo da escrita

    http://www.ipn.pt/literatura/letras/ensaio21.htm

    Porque esta questo da colonizao cultural muito mais do que a da aculturao a verdadeira ferida que Ldia Jorge lanceta em O Cais das Merendas. Cruel retrato em miniatura de um pas que vem tentando "vir a ser" e no de hoje por interposta pessoa. Por importao de modelos de comportamento ou de pensamento que nada ou muito pouco tm a ver com as suas razes culturais profundas.

    Maria Lcia Lepecki

    in Expresso

    Unter den Frauen, die derzeit in Europa schreiben, drfte jedoch die Portugiesin Lidia Jorge einer der aufregendsten, wagemutigsten Knstlerinnen sein, von der wir noch viel mehr erwanten drfen.

    Wolfram Schtte

    in Frankfurter Rundschau, 7/ 4/ 90

    Ldia Jorge ha escrito su novela mas lograda. Sin perder sus orgenes en un realismo mgico de procedncia diversa, ha elaborado un relato que por su estructura discursiva y por su originalidad temtica, la situn en las primeras filas de la renovacin narrativa que est sufriendo el ms profundo sur de Europa.

    Cesar Antonio Molina

    in Diario 16, 11/ 5/ 1989

    On ne peut pas manquer d'tre tonn par ce registre qui va de Maupassant Virginia Woolf, par ces motifs qui reviennent l'envers du tapis avec une si parfaite sret de dessin. ...La Fret dans le fleuve se lit avec un plaisir constant.

    Jacques Fressard in La Quinzaine Littraire, 1/12/ 88

    Un livre, ce n'est pas que des tableaux, des couleurs, c'est entendu. Mais c'est aussi a, tout de mme: des images fortes, qui renvoient d'autres images, passes ou venir, issues de diffrentes rgions de l'art, et qui tout ensemble tissent un rseau imaginaire alatoire. Au demeurant, Le Rivage des murmures n'est pas qu'un foyer d'images, c'est aussi et d'abord une rflexion sur la fascination guerrire, l'attraction, la gravit trange qui capture les mes des hommes, les dvie de leur destine apparente pour les mettre en orbite autour de la mort.

    Olivier Rolin in Le Figaro Littraire, 3/4/1989

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    Lidia Jorge s'est garde des interminables rcits de bataille dont les hommes ont le secret sans en avoir toujours le talent. Elle a su retrouver la nudit d'une parole de femme, presque nave l'poque de son mariage au Mozambique, pour voquer, avec une violence d'autant plus forte qu'elle est plus sourde et plus impuissante, une "trs salle" guerre.

    Josyane Savigneau in Le Monde, 12/5/ 89

    Faz a anlise dos seguintes poemas:

    Sou de vidro

    Meus amigos sou de vidro

    Sou de vidro escurecido

    Encubro a luz que me habita

    No por ser feia ou bonita

    Mas por ter assim nascido

    Sou de vidro escurecido

    Mas por ter assim nascido

    No me atinjam no me toquem

    Meus amigos sou de vidro

    Sou de vidro escurecido

    Tenho fumo por vestido

    E um cinto de escurido

    Mas trago a transparncia

    Envolvida no que digo

    Meus amigos sou de vidro

    Por isso no me maltratem

    No me quebrem no me partam

    Sou de vidro escurecido

    Tenho fumo por vestido

    Mas por assim ter nascido

    No por ser feia ou bonita

    Envolvida no que digo

    Encubro a luz que me habita

    Fado do retorno

    Amor, muito cedo E tarde uma palavra A noite uma lembrana Que no escurece nada Voltaste, j voltaste J entras como sempre Abrandas os teus passos E pras no tapete Ento que uma luz arda E assim o fogo aquea Os dedos bem unidos Movidos pela pressa

  • Amor, muito cedo E tarde uma palavra A noite uma lembrana Que no escurece nada Voltaste, j voltei Tambm cheia de pressa De dar-te, na parede O beijo que me peas Ento que a sombra agite E assim a imagem faa Os rostos de ns dois Tocados pela graa. Amor, muito cedo E tarde uma palavra A noite uma lembrana Que no escurece nada Amor, o que ser Mais certo que o futuro Se nele para habitar A escolha do mais puro J fuma o nosso fumo J sobra a nossa manta J veio o nosso sono Fechar-nos a garganta Ento que os clios olhem E assim a casa seja A rvore do Outono Coberta de cereja.

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    JOS SARAMAGO

    Jos de Sousa Saramago (Azinhaga, Goleg, 16 de Novembro de 1922 Tas, Lanzarote, 18 de

    Junho de 2010) foi um escritor, argumentista, jornalista, dramaturgo, contista, romancista e poeta

    portugus.

    Foi galardoado com o Nobel de Literatura de 1998. Tambm ganhou o Prmio Cames, o mais

    importante prmio literrio da lngua portuguesa. Saramago foi considerado o responsvel pelo

    efectivo reconhecimento internacional da prosa em lngua portuguesa.[1]

    O seu livro Ensaio Sobre a Cegueira foi adaptado para o cinema e lanado em 2008, produzido no

    Japo, Brasil, Uruguai e Canad, dirigido por Fernando Meirelles (realizador de O Fiel Jardineiro e

    Cidade de Deus). Em 2010 o realizador portugus Antnio Ferreira adapta um conto retirado do livro

    Objecto Quase, conto esse que viria dar nome ao filme Embargo, uma produo portuguesa em co-

    produo com o Brasil e Espanha.

    Nasceu no distrito de Santarm, na provncia geogrfica do Ribatejo, no dia 16 de Novembro, embora

    o registo oficial apresente o dia 18 como o do seu nascimento. Saramago, conhecido pelo seu atesmo

    e iberismo, foi membro do Partido Comunista Portugus e foi director-adjunto do Dirio de Notcias.

    Juntamente com Luiz Francisco Rebello, Armindo Magalhes, Manuel da Fonseca e Urbano Tavares

    Rodrigues foi, em 1992, um dos fundadores da Frente Nacional para a Defesa da Cultura (FNDC).

    Casado, em segundas npcias, com a espanhola Pilar del Ro, Saramago viveu na ilha espanhola de

    Lanzarote, nas Ilhas Canrias.

    L e interpreta a seguinte crnica.

    Interessantssima crnica de Jos Saramago

    Contei noutro lugar como e porqu me chamo Saramago. Que esse Saramago no era um

    apelido do lado paterno, mas sim a alcunha por que a famlia era conhecida na aldeia. Que indo meu

    pai a declarar no Registro Civil da Goleg o nascimento do seu segundo filho, sucedeu que o

    funcionrio (chamava-se ele Silvino) estava bbado (por despeito, disso o acusaria sempre meu pai),

    e que, sob os efeitos do lcool e sem que ningum tivesse apercebido da onomstica fraude, decidiu,

    por sua conta e risco, acrescentar Saramago ao lacnico Jos de Sousa que meu pai pretendia que eu

    fosse. E que, desta maneira, finalmente, graas a uma interveno por todas as mostras divina,

    refiro-me, claro est, a Baco, deus do vinho e daqueles que se excedem a beb-lo, no precisei de

    inventar um pseudnimo para, futuro havendo, assinar os meus livros. Sorte, grande sorte minha, foi

    no ter nascido em qualquer das famlias da Azinhaga que, naquele tempo e por muitos anos mais,

  • tiveram de arrastar as obscenas alcunhas de Pichatada, Curroto e Caralhana. Entrei na vida marcado

    com este apelido de Saramago sem que a famlia o suspeitasse, e foi s aos sete anos, quando, para

    me matricular na instruo primria, foi necessrio apresentar certido de nascimento, que a verdade

    saiu nua do poo burocrtico, com grande indignao de meu pai, a quem, desde que se tinha

    mudado para Lisboa, a alcunha desgostava. Mas o pior de tudo foi quando, chamando-se ele

    unicamente Jos de Sousa, como ver se podia nos seus papis, a Lei, severa, desconfiada, quis saber

    por que bulas tinha ele ento um filho cujo nome completo era Jos de Sousa Saramago. Assim

    intimado, e para que tudo ficasse no prprio, no so e no honesto, meu pai no teve outro remdio

    que proceder a uma nova inscrio do seu nome, passando a chamar-se, ele tambm, Jos de Sousa

    Saramago. Suponho que dever ter sido este o nico caso, na histria da humanidade, em que foi o

    filho a dar o nome ao pai. No nos serviu de muito, nem a ns nem a ela, porque meu pai, firme nas

    suas antipatias, sempre quis e conseguiu que o tratassem unicamente de Sousa.

    De: As pequenas memrias. Companhia das Letras, 2006.

    A ESCRITA DE Saramago em :

    O mundo literrio nunca esteve to conectado como atualmente. Reflexo, naturalmente, da era da

    globalizao em que vivemos. Nessa era globalizada, so cada vez mais raros os momentos de

    solido, crucial para a prtica da leitura, e essa, por sua vez, relegada a um segundo plano. como

    se vivssemos na Londres futurista de Admirvel Mundo Novo, na qual qualquer atividade individual

    era proibida e punida rigidamente pelo estado. Uma espcie de verso (antecipao) do que veio a

    ser o stalinismo no ps-guerra.

  • 67/119

    Enquanto grandes livros de grandes autores so esquecidos ou apenas lidos dentro dos meios

    acadmicos, outros vendem como qualquer material artstico pop. Temos a o exemplo de Paulo

    Coelho, Sidney Sheldon, Danielle Steel e outros. Normalmente o que vende muito no muito bem

    visto por acadmicos, salvo excees. Jos Saramago um desses casos, que alm de vender muito

    bem, pois sempre que publica um novo livro, j entra diretamente para a lista de mais vendidos, um

    grande escritor.

    Caso raro na literatura, Saramago agrada tanto acadmicos quanto leigos, fato que se torna um

    impasse muitas vezes, pois, ao passo em que o escritor torna-se cada vez mais conhecido e popular, a

    academia passa e rejeit-lo. H uma relao de amor e dio entre Saramago e a academia, fato muito

    interessante, um fenmeno inusitado. Portanto, discorrerei aqui sobre dois livros seus que chamam a

    ateno. O primeiro Levantado do Cho (1979), seu primeiro grande romance, e A Viagem do

    Elefante(2008), seu mais recente trabalho publicado.

    Levantado do Cho narra a trajetria, repleta de percalos, da famlia Mau-Tempo, durante um

    sculo. Desde o final do sculo XIX at os conturbados acontecimentos pr e ps o 25 de abril. O

    romance apresenta um enredo linear, sem grandes complicaes formais, com a exceo de que

    nesse livro que Saramago, pela primeira vez, descarta o uso de pontos, travesses e outras indicaes

    de dilogos. Saramago pratica frequentemente em Levantado do Cho o discurso indireto livre.

    Saramago pratica nessa obra uma espcie de Neo-Realismo tardio, pois escreve sobre trabalhadores

    rurais do Alentejo que lutam contra um sistema capitalista opressor. Tardio porque o movimento neo-

    realista teve seu auge nas dcadas de 40 e 50, e depois deu espao a outros movimentos no

    necessariamente engajados como era o Neo-Realismo. Saramago recupera esse engajamento nessa

    obra, porm, atravs da forma que Levantado do Cho se diferencia das outras, da fora das

    imagens rurais, da violncia descrita de forma to real e potica.

    Conforme os anos vo passando, os membros da famlia Mau-Tempo vo se mostrando incapazes de

    mudarem a situao de famlia oprimida de trabalhadores rurais. Eles so representantes de todas as

    famlias do Alentejo, miserveis e oprimidos pela ditadura e pelo trabalho em condies sub-humanas.

    Esse livro um grito de liberdade contra o abuso do poder. O ttulo muito significativo, pois

    representa a situao do trabalhador alentejano, que ao mesmo tempo em que encontra o seu

    sustento na terra, essa seu algoz, cruel e impiedosa. O levantado tanto pode significar o homem

    que surge da terra, ou seja, sobrevive atravs dela (a terra como apoio), quanto a sociedade que o

    oprime, pois o homem levantado fora e jogado terra novamente quando chega sua hora. um

  • ttulo muito bem construido, como o todo o romance. Suas imagens das montanhas, dos temporais

    que devastam as plantaes, das vilas e dos curiosos tipos que surgem no decorrer de um sculo

    fazem de Levantado do Cho um grande romance sobre o Alentejo, no qual no h personagens

    principais, um drama coletivo, ao tipo de Alves Redol. um hino vida.

    O ltimo romance de Saramago, A Viagem do Elefante (2008) narra o priplo de Salomo, um

    elefante que oferecido como presente de Dom Joo III a Maximiliano II, Arquiduque da ustria. E

    para executar tal tarefa, montada uma caravana com mais de 30 soldados do reino de D. Joo, um

    cornaca, um secretrio de Estado e claro, Salomo.

    Nesse livro Saramago mostra bem os bastidores do poder dos reinos do sculo XVI, seus caprichos e

    o descaso com o povo, fazendo prevalecer sua vontade custe o que custar. Ao passo em que a

    caravana portuguesa se dirige para Valladolid na Espanha, pois Maximiliano estava l de frias, vrios

    personagens vo aparecendo e sumindo, sem retornar narrativa, como em uma pea de teatro.

    Sendo assim, o principal personagem o prprio elefante, Salomo, que depois que dado

    oficialmente ao Arquiduque, passa a se chamar Solimo.

    No decorrer da narrativa, Saramago em vrios momentos ironiza o papel da igreja catlica e da

    beatice, to peculiar, de Portugal. Atravs de um narrador onisciente que no participou dos

    acontecimentos narrados, Saramago aponta algumas das mazelas da condio humana, como a

    vaidade, sede pelo poder, autoritarismo, enfim, vrias caractersticas da realeza. Um fato muito

    interessante na construo da narrativa, a metalinguagem, que aqui algo claramente assumido

    pelo narrador, que em vrias passagens admite estar escrevendo um livro, ou estar produzindo um

    relato e se denomina como romancista. Saramago ainda consegue, aos 86 anos de idade, inovar seu

    estilo.

    Mesmo A Viagem do Elefante no tendo a mesma fora narrativa, imagtica e mimtica de Levantado

    do Cho, um livro forte, digno do velho Saramago de Memorial do Convento e de A Jangada de

    Pedra. Um dos nomes mais expressivos da literatura portuguesa contempornea, com certeza. Um

    escritor que est muito acima de falsos esteretipos e de premiaes que ainda , mesmo na

    repetio de um estilo que o consagrou, capaz de ser inovador.

    Postado por Daniel Osiecki em

    http://poesiatavolaredonda.blogspot.com/2008/12/escritores-portugueses-contemporneos-i.html

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    L o seguinte texto

    Ensaio sobre a cegueira ( excertos)

    O disco amarelo iluminou-se. Dois dos automveis da frente aceleraram antes que o sinal vermelho

    aparecesse. Na passadeira de pees surgiu o desenho do homem verde. A gente que esperava

    comeou a atravessar a rua pisando as faixas brancas pintadas na capa negra do asfalto, no h nada

    que menos se parea com uma zebra, porm assim lhe chamam. Os automobilistas, impacientes, com

    o p no pedal da embreagem, mantinham em tenso os carros, avanando, recuando, como cavalos

    nervosos que sentissem vir no ar a chibata. Os pees j acabaram de passar, mas o sinal de caminho

    livre para os carros vai tardar ainda alguns segundos, h quem sustente que esta demora,

    aparentemente to insignificante, se a multiplicarmos pelos milhares de semforos existentes na

    cidade e pelas mudanas sucessivas das trs cores de cada um, uma das causas mais considerveis

    dos engorgitamentos da circulao automvel, ou engarrafamentos, se quisermos usar o termo

    correnteO sinal verde acendeu-se enfim, bruscamente os carros arrancaram, mas logo se notou que

    no tinham arrancado todos por igual. O primeiro da fila do meio est parado, deve haver ali um

    problema mecanico qualquer, o acelerador solto, a alavanca da caixa de velocidades que se encravou,

    ou uma avaria do sistema hidrulico, blocagem dos traves, falha do circuito elctrico, se que no

    se lhe acabou simplesmente a gasolina, no seria a primeira vez que se dava o caso. O novo

    ajuntamento de pees que est a formar-se nos passeios v o condutor do automvel imobilizado a

    esbracejar por trs do pra-brisas, enquanto os carros atrs dele buzinam frenticos. Alguns

    condutores j saltaram para a rua, dispostos a empurrar o automvel empanado para onde no fique

    a estorvar o transito, batem furiosamente nos vidros fechados, o homem que est l dentro vira a

    cabea para eles, a um lado, a outro, v-se que grita qualquer coisa, pelos movimentos da boca

    percebe-se que repete uma palavra, uma no, duas, assim realmente, consoante se vai ficar a saber

    quando algum, enfim, conseguir abrir uma porta, Estou cego.

    Ningum o diria. Apreciados como neste momento possvel, apenas de relance, os olhos do homem

    parecem sos, a ris apresenta-se ntida, luminosa, a esclertica branca, compacta como porcelana. As

    plpebras arregaladas, a pele crispada da cara, as sobrancelhas de repente revoltas, tudo isso,

    qualquer o pode verificar, que se descomps pela angstia. Num movimento rpido, o que estava

    vista desapareceu atrs dos punhos fechados do homem, como se ele ainda quisesse reter no interior

    do crebro a ltima imagem recolhida, uma luz vermelha, redonda, num semforo. Estou cego, estou

    cego, repetia com desespero enquanto o ajudavam a sair do carro, e as lgrimas, rompendo,

    tornaram mais brilhantes os olhos que ele dizia estarem mortos. Isso passa, vai ver que isso passa, s

    vezes so nervos, disse uma mulher. O semforo j tinha mudado de cor, alguns transeuntes curiosos

    aproximavam-se do grupo, e os condutores l de trs, que no sabiam o que estava a acontecer,

    protestavam contra o que julgavam ser um acidente de transito vulgar, farol partido, guarda-lamas

  • amolgado, nada que justificasse a confuso, Chamem a polcia, gritavam, tirem da essa lata. O cego

    implorava, Por favor, algum que me leve a casa. A mulher que falara de nervos foi de opinio que se

    devia chamar uma ambulancia, transportar o pobrezinho ao hospital, mas 0 cego disse que isso no,

    no queria tanto, s pedia que 0 encaminhassem at porta do prdio onde morava, Fica aqui muito

    perto, seria um grande favor que me faziam. E o carro, perguntou uma voz. Outra voz respondeu, A

    chave est no stio, pe-se em cima do passeio. No preciso, interveio uma terceira voz, eu tomo

    conta do carro e acompanho este senhor a casa. Ouviram-se murmrios de aprovao. O cego sentiu

    que o tomavam pelo brao, Venha, venha comigo, dizialhe a mesma voz. Ajudaram-no a sentar-se no

    lugar ao lado do condutor, puseramlhe o cinto de segurana, No vejo, no vejo, murmurava entre o

    choro, Diga-me onde mora, pediu o outro. Pelas janelas do carro espreitavam caras vorazes, gulosas

    da novidade. O cego ergueu as mos diante dos olhos, moveu-as, Nada, como se estivesse no meio

    de um nevoeiro, como se tivesse cado num mar de

    Mas a cegueira no assim, disse o outro, a cegueira dizem que negra, Pois eu vejo tudo branco,

    Se calhar a mulherzinha tinha razo, pode ser coisa de nervos, os nervos so o diabo, Eu bem sei o

    que , uma desgraa, sim, uma desgraa, Diga-me onde mora, por favor, ao mesmo tempo ouviu-se

    o arranque do motor. Balbuciando, como se a falta de viso lhe tivesse enfraquecido a memria, o

    cego deu uma direco, depois disse, No sei como lhe hei-de agradecer, e o outro respondeu, Ora,

    no tem importancia, hoje por si, amanh por mim, no sabemos para o que estamos guardados,

    Tem razo, quem me diria, quando sa de casa esta manh, que estava para me acontecer uma

    fatalidade como esta. Estranhou que continuassem parados, Por que que no andamos, perguntou,

    O sinal est no vermelho, respondeu o outro, Ah, fez o cego, e ps-se a chorar outra vez. A partir de

    agora deixara de poder saber quando o sinal estava vermelho.

    Tal como o cego havia dito, a casa ficava perto. Mas os passeios estavam todos ocupados por

    automveis, no encontraram espao para arrumar o carro, por isso foram obrigados a ir procurar

    stio numa das ruas transversais. Ali, como por causa da estreiteza do passeio a porta do assento ao

    lado do condutor ia ficar a pouco mais de um palmo da parede. o cego, para no passar pela angstia

    de arrastar-se de um assento ao outro, com a alavanca da caixa de velocidades e o volante a

    atrapalh-lo, teve de sair primeiro. Desamparado, no meio da rua, sentindo que o cho lhe fugia

    debaixo dos ps, tentou conter a aflio que lhe subia pela garganta.

    Agitava as mos frente da cara, nervosamente, como se nadasse naquilo a que chamara um mar de

    leite, mas a boca j se lhe abria para lanar um grito de socorro, foi no ltimo momento que a mo

    do outro lhe tocou de leve no brao, Acalme-se, eu levo-o. Foram andando muito devagar, com o

    medo de cair o cego arrastava os ps, mas isso fazia-o tropear nas irregularidades da calada, Tenha

    pacincia, j estamos quase a chegar, murmurava o outro, e um pouco mais adiante perguntou, Est

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    algum em sua casa que possa tomar conta de si, e o cego respondeu, No sei, a minha mulher ainda

    no deve ter vindo do trabalho, eu hoje que calhei sair mais cedo, e logo me sucede isto, Ver que

    no vai ser nada, nunca ouvi dizer que algum tivesse fica do cego assim de repente, Que eu at me

    gabava de no usar culos, nunca precisei, Ento, j v. Tinham chegado porta do prdio, duas

    mulheres da vizinhana olharam curiosas a cena, vai ali aquele vizinho levado pelo brao, mas

    nenhuma delas teve a ideia de perguntar, Entroulhe alguma coisa para os olhos, no lhes ocorreu, e

    to-pouco ele lhes poderia responder, Sim, entrou-me um mar de leite. J dentro do prdio, o cego

    disse, Muito obrigado, desculpe o transtorno que lhe causei, agora eu c me arranjo, Ora essa, eu

    subo consigo, no ficaria descansado se o deixasse aqui. Entraram dificilmente no elevador apertado,

    Em que andar mora, No terceiro, no imagina quanto lhe estou agradecido, No me agradea, hoje

    por si, Sim, tem razo, amanh por si. O elevador parou, saram para o patamar, Quer que o ajude a

    abrir a porta, Obrigado, isso eu acho que posso fazer. Tirou do bolso um pequeno molho de chaves,

    tacteou-as, uma por uma, ao longo do denteado, disse, Esta deve de ser. e, apalpando a fechadura

    com as pontas dos dedos da mo esquerda, tentou abrir a porta, No esta, Deixe-me c ver,

    euajudo-o. A porta abriu-se terceira tentativa. Ento o cegoperguntou para dentro, Ests a.

    Ningum respondeu, e ele,Era o que eu dizia, ainda no veio. Levando as mos adiante, s

    apalpadelas, passou para o corredor, depois voltou-se cautelosamente, orientando a cara na direco

    em que calculava encontrar-se o outro, Como poderei agradecer-lhe, disse, No fiz mais que o meu

    dever, justificou o bom samaritano, no me agradea, e acrescentou, Quer que o ajude a instalar-se,

    que lhe faa companhia enquanto a sua mulher no chega. O zelo pareceu de repente suspeito ao

    cego, evidentemente no iria deixar entrar em casa uma pessoa desconhecida que, no fim de contas,

    bem poderia estar a tramar, naquele preciso momento, como haveria de reduzir, atar e amordaar o

    infeliz cego sem defesa, para depois deitar a mo ao que encontrasse de valor.

    No preciso, no se incomode, disse, eu fico bem, e repetiu enquanto ia fechando a porta

    lentamente, No preciso, no preciso.

    Suspirou de alvio ao ouvir o rudo do elevador descendo. Num gesto maquinal, sem se lembrar do

    estado em que se encontrava, afastou a tampa do ralo da porta e espreitou para fora. Era como se

    houvesse um muro branco do outro lado. Sentia o contacto do aro metlico na arcada supraciliar,

    roava com as pestanas a minscula lente, mas no os podia ver, a insondvel brancura cobria tudo.

    Sabia que estava na sua casa, reconhecia-a pelo odor, pela atmosfera, pelo silncio, distinguia os

    mveis e os objectos s de tocar-lhes, passar-lhes os dedos por cima, ao de leve, mas era tambm

    como se tudo isto estivesse j a diluir-se numa espcie de estranha dimenso, sem direces nem

    referncias, sem norte nem sul, sem baixo nem alto. Como toda a gente provavelmente o fez, jogara

    algumas vezes consigo mesmo, na adolescncia, ao jogo do E se eu fosse cego, e chegara

  • concluso, ao cabo de cinco minutos com os olhos fechados, de que a cegueira, sem dvida alguma

    uma terrvel desgraa, poderia, ainda assim, ser relativamente suportvel se a vtima de tal

    infelicidade tivesse conservado uma lembrana suficiente, no s das cores, mas tambm das formas

    e dos planos, das superfcies e dos contornos, supondo, claro est, que a dita cegueira no fosse de

    nascena. Chegara mesmo ao ponto de pensar que a escurido em que os cegos viviam no era,

    afinal, seno a simples ausncia da luz, que o que chamamos cegueira era algo que se limitava a

    cobrir a aparncia dos seres e das coisas, deixando-os intactos por trs do seu vu negro. Agora, pelo

    contrrio, ei-lo que se encontrava mergulhado numa brancura to luminosa, to total, que devorava,

    mais do que absorvia, no s as cores, mas as prprias coisas e seres, tornandoos, por essa maneira,

    duplamente invisveis

    Explica o ttulo deste ensaio e justifica-o. Aplica as caractersticas da narrativa a

    este ensaio.

  • ANTNIO LOBO ANTUNES

    Comentrio - Crnicas

    A impresso que ressoa das crnicas de Lobo Antunes a falta de espao. O autor v-se emparedado

    por um mnimo e um mximo de caracteres e no se pode espraiar como o faz nos seus romances. A

    extenso limitad(ssim)a ditada pelo condicionalismo tcnico de uma crnica de revista de jornal de

    Domingo soa a uma espcie de tentativa de concentrado de quem j publicou uma obra de quase

    setecentas pginas ("Fado Alexandrino", 1983), no passando quase sempre do ensejo, acabando por

    saber a pouco, sobretudo aos que j percorreram pelo menos uma das suas obras.

    As crnicas abordam os mesmos temas, apresentam as mesmas personagens, narram as mesmas aces

    e descrevem os mesmos factos que livros como "A Morte de Carlos Gardel", deparando-se-nos

    recorrentemente nas palavras do cronista a vida numa multiplicidade de situaes, as gentes, ele prprio,

    objecto tomado autobiograficamente de forma continuada.

    , alis, notria a invaso dos livros nas crnicas (e no o contrrio), de que "Os Pobrezinhos" um

    excelente exemplo (confronte-se com "Manual dos Inquisidores").

    Em jeito de remate, fica a ideia de que Antnio Lobo Antunes no parece talhado a estas crnicas de

    Domingo mas que ainda assim, apesar de no ferrar, consegue com elas, e quando foca sobretudo a

    solido, incomodar (sendo que destacamos: "A Solido das Mulheres Divorciadas", "A Propsito de Ti" ou

    "O Fim do Mundo") ou fazer-nos sorrir, ainda que acabemos a troar de ns ( como em: "A Consequncia

    dos Semforos").

    L e analisa as seguintes crnicas

    A Solido Das Mulheres Divorciadas

    "Aos fins-de-semana, quando no saio com a minha prima B, fico em casa a ver televiso. Ver televiso

    quer dizer regar as plantas da marquise, ler o meu horscopo nas revistas, desfazer o tricot do domingo

    anterior, mudar de canal de vinte em vinte segundos a pensar em matar-me. O problema que assim

    que me levanto para tomar os lexotans todos de uma vez a minha me telefona-me de Alcobaa a saber

  • como estou, oio-lhe os gritos no atendedor de chamadas (a minha me, que tem um medo danado dos

    telefones, sempre falou aos gritos) e como no possvel a gente suicidar-se e conversar com a me ao

    mesmo tempo desisto das pastilhas e garanto-lhe que estou ptima, que no tenho febre, que fumo no

    mximo trs cigarros por dia, que como bem, que no emagreci

    (- De certeza que no emagreceste?)

    que para a semana a visito em Alcobaa sem falta e que qualquer dia, palavra, encontro um rapaz como

    deve ser

    (- No acredito que no haja um rapaz como deve ser no teu emprego, filha)

    e me torno a casar, e desligo o telefone com um tal cansao e uma tal dor de cabea que a nica coisa

    de que tenho vontade de um aspegic e silncio, e deixei de ter ganas de me suicidar visto que uma

    pessoa no consegue matar-se se estiver maldisposta.

    Nos fins-de-semana em que saio com a minha prima B, vamos Loja das Meias e Escada sonhar com

    blazers de cachemira

    (- Pode ser que com o subsdio de Natal l chegue)

    e casacos compridos, chateamo-nos como nos peruas nos filmes de que os jornais gostam, encontramo-

    nos num bar com colegas da escola dela que descobriram na semana passada, um restaurante italiano

    baratssimo em Alcntara, e j me sucedeu acordar, aos domingos de manh num apartamento de

    Campo de Ourique ou do Beato ao lado de professores de Matemtica com iogurtes fora do prazo no

    congelador, um chinelo esquecido no bid e um cinzeiro de folha a transbordar beatas no soalho, junto

    de uma chvena de caf quebrada. Incapaz de tomar banho num chuveiro em que faltam sabonete e a

    gua para alm de se achar ocupado por um monto de jornais velhos, volto a toque de caixa para o

    Lumiar sem me despedir do barbudo que ressona de queixo na almofada

    (- No acredito que a B no conhea um rapaz como deve ser)

    com um ombro fora do pijama descosido, e adormeo at que os gritos de Alcobaa me acordam, de

    corao aos pulos para inquirirem, ansiosos, no atendedor de chamadas, se tenho abusado dos fritos.

    No abuso dos fritos, no abuso do tabaco, no abuso do lcool, no abuso do sexo, no abuso de nada,

    me: oio crescer o plo da alcatifa, mudo de vinte em vinte segundos de canal e leio o meu horscopo

    na penltima pgina dos magazines femininos, a seguir ao caderno da moda e a um artigo que explica

    como um cinto de ligas e uns sapatos vermelhos poderiam mudar a minha vida afectiva. Com um cinto

    de ligas os iogurtes fora do prazo desapareceriam do congelador? Com sapatos vermelhos encontraria

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    chuveiros sem jornais? O meu horscopo para esta semana, dividido como sempre em trs partes, Sade

    (cuidado com o fgado!), Finanas (ateno s despesas excessivas!) e Amor, prev para quarta-feira, no

    que respeita s paixes, um encontro inesperado que me alterar para sempre a existncia. Quarta-feira

    foi ontem e o encontro inesperado que tive consistiu em esbarrar com o meu ex-marido no

    metropolitano: deixou crescer o bigode, vinha acompanhado por uma mulata com metade da idade dele

    e nem sequer me viu. Ter-me- visto alguma vez? Em todos os canais de televiso s passam novelas

    brasileiras. Oio a chuva de Outubro contra os vidros e o casal do andar de cima a gemer ao ritmo da

    cama. Se me levantar para tomar os lexotans todos a minha me vai desatar aos gritos no atendedor de

    chamadas, de modo que o melhor ficar quietinha no sof a olhar as plantas e o retrato do meu

    sobrinho beb sem pensar no suicdio. Para qu? Durante seis meses poupo nos almoos (uma bica, um

    croissant e um pastel de bacalhau comidos em p ali no Centro) compro o blazer da Escada e uns

    sapatos vermelhos, a colega que vende ouro no escritrio prometeu baixar-me as prestaes do anel, e

    passo o sero sozinha, de blazer, sapatos e cachucho, lindssima, a mudar de canal e a ouvir o plo da

    alcatifa crescer."

    (Viso, 18 a 24 Maro 2004, p. 15)

    Um terrvel, desesperado e feliz silncio

    No princpio de maro acabo o meu romance, comeado em junho de 2002. devia estar contente:

    melhor, sozinho, que tudo o que publiquei at agora, somado e multiplicado por dez. durante vinte

    meses gastei nele praticamente as vinte e quatro horas de cada dia desses meses, escrevi-o

    desencantado, com vontade constante de destruir o que ia fazendo, sem saber bem para onde dirigis,

    limitando-me a seguir a minha mo, num estado prximo dos sonhos, e ao comear a rev-lo,

    surpreendido, pareceu-me composto.

    no composto, ditado por um anjo, por uma entidade misteriosa que me guiava a esferogrfica.

    Foram vinte meses num estado de sonambulismo estranho, descobrindo-lhe, durante as correces, uma

    coerncia interna que me havia escapado, uma energia subterrnea, vulcnica, de que me no julgava

    capaz. Devia estar contente: no estou. Em primeiro lugar porque nem um cisco de vaidade existe em

    mim. Sou demasiado consciente da minha finitude para isso, e muitas vezes recordo o que o advogado

    Howard Hughes, o milionrio americano, respondeu ao jornalista, que logo aps a morte do seu cliente,

    lhe perguntou quanto que Hughes tinha deixado. O que o advogado disse foi

    - Deixou tudo

    e eu deixarei apenas, alm de tudo, uns livros e, espero, alguma saudade nas poucas pessoas

    que me conheceram e fizeram o favor de gostar de mim. Nada mais. Em regra chegamos demasiado

  • tarde a algum conhecimento da vida que de pouco nos serve. Uns livros. Este, que me devia deixar

    contente e no deixa. O que sinto agora, a uma ou duas semanas de acab-lo, um enorme enjoo

    fsico do acto de escrever. At junho ou julho no comearei outro romance porque me sinto

    exausto. E no entanto

    (e por isso que no estou contente)

    aborrece-me ter, com sorte, talvez tempo para mais dois ou trs livros antes que as guas se

    fechem definitivamente sobre a minha cabea: eis a verdade. E esse facto aborrece-me. Acho

    injusto, dado que sinto em mim, com ganas de subirem tona, no dois ou trs livros mas uma mo

    cheia deles. Comeo a ter uma ideia do que escrever, comeo a entender um pouco o que se pode

    construir com as palavras, comeo, muito difusamente, a distinguir algumas luzitas tnues no

    profundo escuro da alma humana. E agora, que deveria comear, sinto e sei, na carne, o limitado

    espao que me resta. Meu Deus, isto frustrante: eu pronto a principiar e o tempo a fugir-me. No

    fao a menor ideia qual ser o livro seguinte, os livros seguinte e, no entanto, sinto-os vivos, dentro

    de mim, como o salmo deve sentir os ovos. Resta-me tentar que me saia do corpo o maior nmero

    possvel. E penso em Maria Antonieta, j no estrado para o carrasco:

    - S mais um minuto, senhor carrasco.

    A est: s mais um minuto senhor carrasco, s mais uns minutinhos senhor carrasco.

    O destino de um artista tremendo: ao vencer o tempo acabamos derrotados por ele, ou

    talvez seja mais certo ao contrrio: apesar de derrotados pelo tempo vencemos? Ignoro a resposta.

    Sei que fiz o melhor que pude, que fao o melhor que posso, que tenho uma confiana cega na

    minha mo e na minha parte de trevas que aquela que escreve. No se escreve com ideias, no se

    escreve com a cabea: o livro que tem de ter as ideias, que tem de ter a cabea. Eduardo Loureno

    chamava-me a ateno de um verso do meu no caro Pessoa, emissrio de um rei desconhecido/eu

    cumpre informes instrues dAlm, isto o contrrio do patetinha iluminado. E quem no entende

    que outra coisa nada entende de literatura, e pior, nada entende da Vida. Entender dar f da

    unidade sobre a diversidade, do que existe de comum entre factos contraditrios. No quero contar

    histrias, no quero explicar, no quero demonstrar nada. Quando escrevo quero apenas libertar-me

    do que escrevo e, se quisesse alguma coisa, seria apenas, se a isso fosse obrigado, dar a ver. No

    mais do que esse to modesto, to ambicioso objectivo: dar a ver. Um livro so muitos livros, tantos

    quantos os seus leitores, um pacto de sangue. Desconheo o que me trouxe a ele, no alcano o

    menor vislumbre acerca do que me obriga a faz-los. Se me perguntam

    - O que que quis dizer com este romance?

    a resposta sincera

  • 77/119

    - No quis dizer nada

    e no quis dizer nada porque me foi ditado. Isso tero de pergunt-lo a quem mo ditou. O meu

    trabalho consiste apenas em conseguir ouvir, e para conseguir ouvir dar-lhe tudo o que tenho. Sobra

    pouco para mim? No tenho essa opinio. Tenho, antes, a de viver rodeado de pessoas vivas que se

    misturam com as pessoas vivas e quando no estou a escrever.

    E se advertem

    - Devias trabalhar menos

    no entendo tambm: ser isto trabalho? No lhe chamaria trabalho. Honestamente no

    saberia o que chamar-lhe. D-me a sensao de ser a minha prpria carne, as portas dos meus

    quartos fechados

    (tantos quartos fechados)

    dos meus quartos que nunca antes abri e me segam, de supeto, com excesso de luz das suas

    janelas, d-me a sensao, nos momentos felizes, de caminhar sobra as guas. Disse numa

    entrevista que m aconteceu com este livro o que antes nunca me tinha acontecido: eu, que sou um

    homem de olhos secos, escrevi a chorar. No de tristeza, nada que se parea com tristeza: uma

    espcie de jbilo, de exaltao absoluta, como, nunca antes, me sucedera, feita de ter tocado, ainda

    que durante segundos, a prpria essncia das coisas. Sem o haver merecido. Sem qualquer mrito

    meu. Somente porque o tal rei desconhecido do soneto de Pessoa, meu pouco amado escritor,

    resolveu dar-me essa esmola. Escrevi esmola e, depois de haver escrito hesitei: esmola no me soa

    bem e contudo verdade. Despe-te no da vaidade que no tens, mas do orgulho a que ferozmente

    te agarras, porque uma esmola de facto, e enche os teus livros, custa de muito viveres com eles,

    de um terrvel, desesperado e feliz silncio.

    ________________________________________________________

    Aqui se deixa (com a devida vnia e laia de publicidade) a crnica que, em 7 de Outubro, Antnio Lobo

    Antunes publicou na revista Viso. Uma iluminadora leitura das gengivas desmobiladas de todos ns.

    O Cabo Ferrador

    Duzentos euros por ms no do para muita coisa: uma sopinha e uma ma ao almoo, uma sopinha e

    uma ma ao jantar. Nos intervalos pede-me cigarros

  • - No h por a um cigarrinho a mais, doutor?

    ou senta-se nas esplanadas at o mandarem embora, tratando-o por tu

    - Pe-te a andar

    e ele l segue para o caf prximo a arrastar um sapato sem atacadores. No aceita esmolas, no aceita

    dinheiro, s pede cigarros aos amigos

    - S peo cigarros aos amigos

    de acordo com o seu cdigo aristocrtico de misria. Quando quis oferecer-lhe uma camisola recusou

    ultrajado

    - Sou algum infeliz, eu?

    e levou uma semana a perdoar a minha incompreenso da sua dignidade Voc pode ser doutor e

    escrever livros mas no percebe nada da vida e tem razo, no percebo nada da vida. O seu maior

    orgulho ter feito a tropa em Chaves

    - Em Chaves, senhor

    e eu, que nunca fui a Chaves, esmagado de respeito por Chaves pela maneira como ele fala

    - Quem no conhece Chaves conhece pouco do mundo

    e tem razo outra vez, conheo pouco do mundo. Pergunto-lhe

    - Como Chaves, senhor Ismael?

    e em vez de resposta olha-me, durante uma eternidade, com pena sincera, at erguer ao alto, por fim, a

    mo de unhas duvidosas, unidas em cacho para dar nfase maravilha da cidade. A mo acaba por

    descer a fim de aceitar um cigarro

    (um cigarrinho)

    e o senhor Ismael a estender-se para a labaredazita do isqueiro

    - Tem montanhas perto

    e o

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    - Tem montanhas perto

    deixado cair como uma moeda fora da circulao, pequena condescendncia a um ignorante que no

    merece que se gaste tempo em explicaes. Depois de tossir o fumo acrescenta

    - E outras coisas

    submerso em inesquecveis lembranas militares, paisagsticas, amorosas

    - Gajas boas no faltam

    gajas boas a inundarem, s para ele, as ruas de Chaves, sorrindo-lhe, piscando-lhe o olho, chamando-o

    num sussurro prometedor

    - Ismael

    e o senhor Ismael, claro, a dar conta do recado

    - Sempre dei conta do recado, doutor fossem dez, vinte ou cinquenta

    - Pelos osso