tradição e ruptura em autores brasileiros contemporâneos · obra de certos autores da literatura...

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Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, n o 34, p. 265-284, 2008 265 TRADIÇÃO E RUPTURA EM AUTORES BRASILEIROS CONTEMPORÂNEOS Vera Lúcia Ramos de Azevedo RESUMO O artigo analisa as relações entre tradição e ruptura em Raduan Nassar, Lya Luft e Moacyr Scliar. Visto ser a obra dos mesmos assentada sobre a tradição – práticas culturais libanesas, germânicas e judaicas -, busca-se acompanhar o movimento de ruptura do personagem imigrante em sua reinscrição no espaço social, investigando a feição própria que em cada um dos autores o enraizamento (ou desenraizamento) aí assume. PALAVRAS-CHAVE: Tradição; ruptura; literatura. A aderência a práticas culturais singularizadoras parece informar a obra de certos autores da literatura brasileira contemporânea. Tematizando a tradição, dobram-se tais autores sobre o campo de tensões vividas por personagens que, provenientes da experiência da migração, se vêem diante de uma contingência: a problemática trajetória de isolamento e/ou assimilação que sua nova condição lhes impõe. Reinscrever-se no novo espaço, sempre uma situação de exceção, sig- nifica deparar-se com questões que envolvem um enfrentamento de si mesmo e do outro, identidade e descentramento, assimilação e ruptura. Nada mais precário ou provisório que deslocar-se: na travessia, perde-se uma referência que, passando a ser realocada, instaura cisões, fissuras, pas- sando também a temporalidade a ser pautada por outras possibilidades de relação. Aqui, a questão talvez possa ser pensada com Homi Bhabha 1 (1998), quando assim reenquadra a nação moderna: 1 BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. p. 201.

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Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, no 34, p. 265-284, 2008 265

TRADIÇÃO E RUPTURA EM AUTORESBRASILEIROS CONTEMPORÂNEOS

Vera Lúcia Ramos de Azevedo

RESUMO

O artigo analisa as relações entre tradição e rupturaem Raduan Nassar, Lya Luft e Moacyr Scliar. Vistoser a obra dos mesmos assentada sobre a tradição –práticas culturais libanesas, germânicas e judaicas -,busca-se acompanhar o movimento de ruptura dopersonagem imigrante em sua reinscrição no espaçosocial, investigando a feição própria que em cada umdos autores o enraizamento (ou desenraizamento) aíassume.

PALAVRAS-CHAVE: Tradição; ruptura; literatura.

A aderência a práticas culturais singularizadoras parece informar aobra de certos autores da literatura brasileira contemporânea.Tematizando a tradição, dobram-se tais autores sobre o campo

de tensões vividas por personagens que, provenientes da experiência damigração, se vêem diante de uma contingência: a problemática trajetóriade isolamento e/ou assimilação que sua nova condição lhes impõe.

Reinscrever-se no novo espaço, sempre uma situação de exceção, sig-nifica deparar-se com questões que envolvem um enfrentamento de simesmo e do outro, identidade e descentramento, assimilação e ruptura.Nada mais precário ou provisório que deslocar-se: na travessia, perde-seuma referência que, passando a ser realocada, instaura cisões, fissuras, pas-sando também a temporalidade a ser pautada por outras possibilidades derelação. Aqui, a questão talvez possa ser pensada com Homi Bhabha1

(1998), quando assim reenquadra a nação moderna:

1 BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. p. 201.

266 Azevedo, Vera Lúcia Ramos de. Tradição e ruptura em autores brasileiros contemporâneos

Se, em nossa teoria itinerante, estamos conscientes dametaforicidade dos povos de comunidades imaginadas –migrantes ou metropolitanos - então veremos que o espaçodo povo-nação moderno nunca é simplesmente horizontal.Seu movimento metafórico requer um tipo de “duplicidade”de escrita, uma temporalidade de representação que se moveentre formações culturais e processos sociais sem uma lógicacausal centrada. E tais movimentos culturais dispersam otempo homogêneo, visual, da sociedade horizontal. Alinguagem secular da interpretação necessita então ir alémda presença do olhar crítico horizontal se formos atribuirautoridade narrativa adequada à “energia não-seqüencialproveniente da memória histórica vivenciada e dasubjetividade”. Precisamos de um outro tempo de escrita queseja capaz de inscrever as interseções ambivalentes equiasmáticas de tempo e lugar que constituem a problemáticaexperiência “moderna” da nação ocidental.2

Ora, as ambivalências que reconfiguram as nações modernas pare-cem balizar também a cartografia temporal e espacial dessa ficção contem-porânea que articula tradição e ruptura. Em Lavoura arcaica (Raduan Nassar)3,A asa esquerda do anjo (Lya Luft)4 e Os deuses de Raquel (Moacyr Scliar)5 - são asobras aqui selecionadas para análise - as articulações entre os termos tam-bém parecem apontar para atritos e dissoluções no processo de ruptura:seja a tradição dissolvendo-se a si mesma, seja a tradição dissolvendo identi-dades, seja a dissolução da própria memória da tradição.

O solo minado da tradição

“Toda ordem traz uma semente de desordem, a clareza, uma semen-te de obscuridade” (NASSAR, op. cit., p.141): este enunciado, proferidopelo narrador do romance Lavoura arcaica (Ibid.), metaforiza o modo peloqual tradição e ruptura aí se articulam. A chave sendo a da reciprocidadeentre os termos, fica instituído, de maneira implícita no romance, que a

2 BORNHEIM, Gerd A. O conceito de tradição. In: BORNHEIM, Gerd A. et al. Culturabrasileira: tradição / contradição. RJ: Zahar / Funarte, 1987. p. 29.

3 NASSAR, Raduam. Lavoura arcaica. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.4 LUFT, Lia. A asa esquerda do anjo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.5 SCLIAR, Moacyr. Os deuses de Raquel. Porto Alegre: L&P, 1978.

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tradição, espaço da ordem, existe para ser rompida, fazendo aflorar a pró-pria desordem nela latente.

Tal formulação, que impregna o tecido ficcional do romance deRaduan, parece aproximar-se das considerações de Gerd Bornheim (1987)6,quando este afirma que “se tornou impossível a abordagem do conceitode tradição, independentemente desse seu corolário atual que é a ruptu-ra”, uma vez que “tradição e ruptura se espelham reciprocamente, e adialética dos dois termos esclarece a quantas andamos nessa grande esqui-na que é a história de nosso tempo”7.

É precisamente aí, “nessa grande esquina que é a história de nossotempo”, que me situo para fazer o mapeamento das relações entre tradi-ção e ruptura, considerando a questão, agora com Bhabha, a partir darelevância da própria experiência da migração na nação moderna. Interes-sa-me o encaminhamento dado por Bhabha, quando, tratando da naçãomoderna como DissemiNação, alude à visão de Hobsbawm no enfoque daquestão, ressaltando que já este historiador “escreve a história da naçãoocidental moderna sob a perspectiva da margem da nação e do exílio demigrantes”.8

Lavoura arcaica ficcionaliza essa modelização da nação moderna,espacializada que está numa lavoura de imigrantes libaneses, mas que,aqui, tenta fazer do arcaico seu modo de sustentação dos valores datradição/nação como garantia de isolamento e defesa contra as ten-sões a que a própria migração está exposta entre as margens da naçãomoderna. A tradição vê-se, então, configurada tanto pelo peso confe-rido à ancestralidade quanto pelo poder disseminador das práticasculturais libanesas entranhadas nas vivências do cotidiano de seus per-sonagens. Pai, tio, avô (pólos de sedimentação do saber ancestral) im-pregnam a casa (móveis, utensílios, ritos, gestos) das matrizes arcaicasda cultura mediterrânea. Emblemas de uma tradição que se volta so-bre si mesma, avessa aos contágios, perfazem a condição do imigranteàs avessas, cuja migração se descaracteriza como deslocamento oudeambulação, investida que é da condição de resistência.

6 Op. cit.7 Ibidem, p. 29.8 BHABA, op. cit, p. 199.

268 Azevedo, Vera Lúcia Ramos de. Tradição e ruptura em autores brasileiros contemporâneos

Aqui, pode-se relacionar essa experiência dos personagens de Raduanà própria experiência de migração, conforme atestada por H. Bhabha:

Vivi aquele momento de dispersão de povos que, em outrostempos e em outros lugares, nas nações de outros,transforma-se num tempo de reunião. Reuniões de exilados,émigrés e refugiados, reunindo-se às margens de culturas“estrangeiras”, reunindo-se nas fronteiras; reuniões nosguetos ou cafés de centros de cidade; reunião na meia-vida,meia-luz de línguas estrangeiras ou na estranha fluência dalíngua do outro; reunindo os signos de aprovação eaceitação, títulos, discursos, disciplinas; reunindo asmemórias de subdesenvolvimento, de outros mundosvividos retroativamente; reunindo o passado num ritualde revivescência; reunindo o presente.9

Os imigrantes no romance de Raduan parecem representar nesse“tempo de reunião” sua própria experiência da tradição: pautando-se pe-los signos da permanência e do imobilismo, transformam o procedimen-to migratório de reinscrição no local da cultura no seu oposto, ou seja, nainscrição definitiva no local da tradição, “reescrevendo” Bhabha.

A tradição, lida pelo romance como representação do uno e escritacomo lugar simbólico das identificações com o mesmo, traduz-se como for-ma também simbólica de nação, configurada nas práticas religiosas - “ossermões do pai”; o avô e o “Maktub” – (NASSAR, p. 78) e nos códigos deconduta - “o excesso proibido, o zelo uma exigência, e, condenado comovício, a prédica constante contra o desperdício” (NASSAR, p. 65) - eis o“ritual de austeridade” (NASSAR, p. 66), que faz da casa da família o espaçoimune aos contatos e às diferenças. Carregada do sentido pleno daancestralidade, a casa e a família erigem-se como fortaleza/nação cujos mu-ros altos atenuam a própria vivência da migração.

A nação preenche o vazio deixado pelo desenraizamentode comunidades e parentescos, transformando esta perdana linguagem da metáfora. A metáfora, como sugere aetimologia da palavra, transporta o significado de casa e desentir-se em casa através da meia-passagem ou das estepes

9 Ibidem, p. 198.

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da Europa Central, através daquelas distâncias e diferençasculturais, que transpõem a comunidade imaginada do povo-nação.10

A tradição, ainda que imaginada como nação, por sua coesão ehomogeneidade, não impede, entretanto, sua própria dissolução: no ro-mance, essa dissolução está a cargo do personagem-narrador, André, cujo“berro tresmalhado” resulta na resposta dissonante à palavra da lei conti-da nos sermões do pai. Se a marca da diferença que vai macular a integri-dade do uno é dada por este personagem, o tecido da casa e da família,entretanto, já é apontado pelo próprio André como predisposto aoesgarçamento, haja vista a representação da cena familiar como conten-ção que possa frear quaisquer ebulições latentes em sua estrutura.

Eram esses os nossos lugares à mesa na hora das refeições,ou na hora dos sermões: o pai à cabeceira; à sua direita,por ordem de idade,vinha primeiro Pedro, seguido de Rosa,Zuleika, e Huda; à sua esquerda, vinha a mãe, em seguidaeu, Ana e Lula, o caçula. O galho da direita era umdesenvolvimento espontâneo do tronco, desde as raízes;já o da esquerda trazia o estigma de uma cicatriz, como sea mãe, que era por onde começava o segundo galho, fosseuma anomalia, uma protuberância mórbida, um enxertojunto ao tronco talvez funesto, pela carga de afeto; podia-se quem sabe dizer que a distribuição dos lugares na mesa(eram caprichos do tempo) definia as duas linhas da família11.

Seu projeto de ruptura, deste modo, não é determinado como exte-rior à tradição, ao contrário, é do próprio solo minado dessa tradição,através do enraizamento definitivo, que o “delírio” do personagem – atransgressão do interdito – adquire maior tônus de dissolução e ruptura.E, em resposta ao Alcorão (“Vos são interditadas: vossas mães, vossasfilhas, vossas irmãs” – Surata IV, 23), conforme epígrafe na última partedo romance (NASSAR, p. 127), a explosão do delírio de André:

Era Ana, era Ana, Pedro, era Ana a minha fome” explodide repente num momento alto, expelindo num só jato

10 Ibidem, p. 199.11 NASSAR, op. cit, p. 137-138.

270 Azevedo, Vera Lúcia Ramos de. Tradição e ruptura em autores brasileiros contemporâneos

violento meu carnegão maduro e pestilento,”era Ana aminha enfermidade, ela a minha loucura, ela o meurespiro, a minha lâmina, meu arrepio, meu sopro, o assédioimpertinente dos meus testículos” eu gritei de bocaescancarada, expondo a textura da minha línguaexuberante [...]12

Aqui, pode-se pensar nas considerações tecidas por H. Bhabha, quan-do polemiza com a idéia de nação como representação de um todo homo-gêneo e uno. Considerando o social como uma “temporalidade disjuntiva”,propõe que a ênfase comumente atribuída à historicidade sejaredirecionada, privilegiando-se uma outra dimensão, calcada natemporalidade, responsável pela ruptura da sucessividade e homogeneidade,base de sustentação da visão historicista.

É essa temporalidade disjuntiva que parece definir as relações entretradição e ruptura no romance de Raduan. A trajetória do personagem-narrador, ainda que estruturalmente marcada por movimentos sucessi-vos – “a partida” e “o retorno” –, problematiza a natureza seqüencial aípressuposta - a sucessividade é mera aparência -, deixando vir à tona acomplexidade de temporalidades ambivalentes que aí se entrecruzam.

A partida não é divisória entre etapas evolutivas. Pelo contrário.Quando André parte, a temporalidade vinculada à tradição é já uma “cons-trução” do personagem que, internalizando vivências dessa tradição, fazque as mesmas se representem como fendas que põem em risco a ilusão decontinuidade; e, quando retorna, seu enraizamento definitivo não se dácomo etapa posterior.

Simplesmente por que a vivência do personagem opera por desloca-mentos não sucessivos, mas divergentes: absorver a tradição é construí-lacomo ambivalência. Deste modo, o romance de Raduan parece articulartradição e ruptura como categorias que se pressupõem e que, por issomesmo, num espaço assim predisposto aos atritos, fazem irromper umadivergência: trata-se de uma ruptura que dissolve uma tradição que sedissolve a si mesma como ruptura.

12 Ibidem, p. 94.

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Se a tradição no romance de Raduan, por um lado, absorvesubstitutivamente a condição estruturadora de nação, por outro, apontanessa mesma coesão e/ou homogeneidade a irrupção da dissonância,fissuras, dissolução

O problema não é simplesmente a “individualidade” danação em oposição à alteridade de outras nações. Estamosdiante da nação dividida no interior dela própria,articulando a heterogeneidade de sua população. A naçãobarrada Ela/Própria [It/Self], alienada de sua eternaautogeração, torna-se um espaço liminar de significação,que é marcado internamente pelos discursos de minorias,pelas histórias heterogêneas de povos em disputa, porautoridades antagônicas e por locais tensos de diferençacultural.13

Essa divisão interna da nação, segundo Bhabha, se pensada para oromance em questão, vai articular a heterogeneidade numa modelizaçãosimbólica bastante peculiar: o antagonismo não se dá a partir de relações deexclusão, mas de pertença. André, motor da cisão no interior da nação/tradição, e ainda que ator da diferença cultural, não se qualifica como o outronessa relação antagônica, já que a dissonância que provoca é gerada no inte-rior do local da tradição. E, mesmo que sua trajetória o caracterize como ofilho pródigo, no percurso de um duplo deslocamento de ida e volta, suadissonância, se o levou a se auto-excluir do local da nação, se complementapelo seu reingresso ao mesmo local de onde, é mais provável, talvez nuncatenha saído.

Se o processo de desestruturação da nação/tradição foi desencadea-do por André, cabe ao pai e à mãe fazer desmoronar de vez aquela lavouraarcaica, reduto da tradição que julgavam inviolável, protegida de si mesmae de seu delírio contido e aprisionado. O “berro tresmalhado” de Andrévai encontrar eco no corpo da família, fendida pelas tensões de suas pró-prias margens:

[...] mas era o próprio patriarca, ferido nos seus preceitos,que fora possuído de cólera divina (pobre pai!), era o guia,era a tábua solene, era a lei que se incendiava – essa matéria

13 Ibidem, p. 209-210.

272 Azevedo, Vera Lúcia Ramos de. Tradição e ruptura em autores brasileiros contemporâneos

fibrosa, palpável, tão concreta, não era descarnada comoeu pensava, tinha substância, corria nela um vinho tinto,era sanguínea, resinosa, reinava drasticamente as nossasdores (pobre família nossa, prisioneira de fantasmas tãoconsistentes!), e do silêncio fúnebre que desabara atrásdaquele gesto, surgiu primeiro, como de um parto, umvagido primitivo [...] Pai! Pai! onde a nossa segurança? ondea nossa proteção? [...] Pai! Pai! onde a união da família? [...]e vi a mãe, perdida no seu juízo, arrancando punhados decabelo, descobrindo grotescamente as coxas, expondo ascordas roxas das varizes, batendo a pedra do punho contrao peito Iohána! Iohána! Iohána! e foram inúteis todos ossocorros, e recusando qualquer consolo, andando entreaqueles grupos comprimidos em murmúrio como se vagassepor entre escombros, a mãe passou a carpir em sua próprialíngua, puxando um lamento milenar que corre ainda hojea costa pobre do Mediterrâneo: tinha cal, tinha sal, tinhanaquele verbo áspero a dor arenosa do deserto14.

Em Lavoura arcaica, a dissolução das estruturas de poder dá-se comocorrosão interna, expondo as feridas do solo minado de uma tradição emprocesso de ruptura: “quanto mais estruturada, mais violento o baque, aforça e a alegria de uma família assim podem desaparecer com um únicogolpe” (NASSAR, p. 24) - diz o narrador. Ou melhor, retificando o pró-prio texto de Raduan: “com tantos golpes” quantas forem as formasdisjuntivas de representação, segundo Bhabha.

A identidade desfocada

A asa esquerda do anjo, romance de Lya Luft (1980), tematiza uma tra-dição que se quer impermeável aos contatos culturais diferenciadores, bus-cando erigir-se como unidade. Reduto da tradição germânica, “FamíliaWolf” impõe-se como representação metonímica de uma idéia de naçãocom feição una, homogênea, totalizadora.

Tal concepção de nação, que visa à obtenção da condição de hegemonia,parece informar o próprio papel que o espaço nuclear do romance, repre-sentado pela família, tenciona conquistar: “Numa cidade cujos habitantes

14 Ibidem, p. 169-171.

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eram na maioria descendentes de alemães, o grupo dos “brasileiros”, comoos chamávamos, era pequeno, perdia-se entre louras e rechonchudas crian-ças de pinturas flamengas” (LUFT, p.25) – informa-nos a narradora.

É dentro dessa estratégia que se vai construir o projeto de sobera-nia dessa família-nação, representada pela figura da matriarca: a imposi-ção do idioma alemão como garantia de permanência das práticas cul-turais ligadas à tradição, ao mesmo tempo garantia de manutenção desua unidade e coesão.

“Todos falávamos alemão na casa de minha avó, embora, à exceçãodela, todos tivéssemos nascido no Brasil”(LUFT, p.20) ou então “minhamãe falava alemão, devagar porque essa não é a sua língua” (LUFT, p.18)– comprovam a eficácia do projeto.

O papel hegemônico da tradição, assim baseado no princípio decoerção e de neutralização das diferenças, homogeneizando-as, explicariatambém a ótica distorcida dessa família-nação representada pela matriarcaque, por não considerar as diferenças, ignora o outro e a si própria, atri-buindo à nora a condição de estrangeira, procedimento este resultante deum processo de especularidade historicamente equivocado.

Quem na verdade detém a condição de estrangeira?

Maria da Graça Moreira Wolf, que deixou o sol de seu estado deorigem e encontrou o exílio em seu próprio país? Ou Frau Ursula, amatriarca que “criara para si a sua pátria, carregava-a consigo” (LUFT,p.29) e cujo verdadeiro exílio não era habitar um país que não era o seu,mas exilar-se na memória de uma tradição? Ou ainda a neta – Guísela ouGisela? – “no seu exílio particular, na sua guerra secreta” (LUFT, p. 28),na sua busca de identidade?

O exílio nos compele estranhamente a pensar sobre ele, masé terrível de experienciar. Ele é uma fratura incurável entreum ser humano e um lugar natal, entre o eu e seu verdadeirolar: sua tristeza essencial jamais pode ser superada. [...] Asrealizações do exílio são permanentemente minadas pelaperda de algo deixado para trás para sempre.15

15 SAID, Edward W. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras,2003.

274 Azevedo, Vera Lúcia Ramos de. Tradição e ruptura em autores brasileiros contemporâneos

Três personagens, três modalidades de exílio, certamente.

O de Frau Ursula, em sua construção de uma nação cuja existênciaimaginada passa a necessitar do ritual e da encenação como forma de preen-chimento de sua carência. Sua pátria/nação, deslocada e desfuncionalizada,passando também a valer como um negativo irrecuperável, imagem opacae nebulosa que só existe internalizada, atada a uma memória de um tempocomo rasura, ruína. A “fratura incurável” (expressão de Said) da matriarcaem sua representação da dor e da solidão, por carregar, sozinha, a família-nação que imaginou para si; no entanto, “por mais que Frau Wolf lutasse,seu mundo acabaria por desmoronar; era impossível agüentar o temposem nenhuma corrosão” (LUFT, p. 120).

O de Maria da Graça e o de Gisela, como vivência do “estrangeirismo”a elas imposto em seu lugar natal:

Minha mãe: Maria da Graça Moreira Wolf, único nomeestrangeiro que um dia inscreveriam na parede do Jazigo.Dela herdei os olhos pretos, que em mim ficavam deslocados,não combinavam com o cabelo desbotado, a pele branca.Não me transmitiu o que eu mais desejava ter: a alegria, acapacidade de adaptação. Mas era possível que partilhássemos,sem comentar, a sensação de estarmos no lugar errado. Mariada Graça, numa família de Helgas e Heidis. E eu, Guísela ouGisela? minha mãe pronunciava Gisela; o resto da famíliadizia Guísela, à maneira alemã, que eu achava horrenda16.

“No fim das contas, o exílio não é uma questão de escolha: nasce-mos nele, ou ele nos acontece”17 – também para Maria da Graça “aconte-ceu-lhe” como imposição de códigos culturais que não lhe pertenciam eaos quais teve de submeter-se ou adaptar-se, anulando-se ou perdendo-senuma identidade desfocada, estrangeira para si mesma.

Já em relação à Gisela, caberia tanto a generalização de que “os exi-lados são sempre excêntricos que sentem sua diferença”18, bem como a con-sideração dessa experiência como passível de subversão:”O exílio é a vidalevada fora da ordem habitual. É nômade, descentrada, contrapontística,

16 LUFT, op. cit., p. 21.17 SAID, Edward W., op.cit., p. 57.18 Ibidem, p. 55.

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mas, assim que nos acostumamos a ela, sua força desestabilizadora entraem erupção novamente”.19

No romance de Lya Luft, a condição de estrangeira (ou “estrangei-ras”?), vinculada à experiência do exílio, faz ressaltar processos informa-dos por uma pressuposição que instaura atritos e diversidades: o processode dissolução irrompendo por dentro do próprio processo de construçãoda unidade da tradição.

Deste modo, a própria dissolução, impregnando uma memória quese vai dissipando – “os Natais alegres eram tristes” (LUFT, p.74); “meusprimos já não falam alemão”, “depois de tia Marta, quem executará suasreceitas?”20, vai deixando vir à tona os mecanismos empregados pelamatriarca na construção de seu modelo de tradição: “gestos, expressões,linguagem, tudo falsificado na montagem daquele teatro em que se frauda-va, até o menor resquício, a nossa identidade”21 – segundo a narradora.

Indagar sobre sua identidade é o que move a trajetória de Gisela,ou seja, indagar sobre sua diferença dentro da identidade construída porsua família-nação.

Gisela parece mesmo perfazer o caminho próprio das contranarrativasque, rasurando os limites da nação, a partir de uma “liminaridade interna”,colocam em risco a identidade forjada no uno ou no homogêneo, pelairrupção da diferença no interior dessa unidade, conforme nos diz Bhabha:

As contranarrativas da nação que continuamente evocam erasuram suas fronteiras totalizadoras – tanto reais quantoconceituais – perturbam aquelas manobras ideológicasatravés das quais “comunidades imaginadas” recebemidentidades essencialistas. Isto porque a unidade política danação consiste em um deslocamento contínuo da ansiedadedo espaço moderno irremediavelmente plural – a repre-sentação da territorialidade moderna da nação se transformana temporalidade arcaica, atávica, do Tradicionalismo. Adiferença do espaço retorna como a Mesmice do tempo,

19 Ibidem, p. 60.20 LUFT, op.cit, p. 77.21 Ibidem, p. 45.

276 Azevedo, Vera Lúcia Ramos de. Tradição e ruptura em autores brasileiros contemporâneos

convertendo Território em Tradição, convertendo o Povoem Um. O ponto liminar desse deslocamento ideológico éa transformação da fronteira espacial diferenciada, o“exterior”, no tempo “interior” [inward] legitimador daTradição.22

Assim, invertendo o percurso totalizador e essencialista de FrauUrsula, responsável por circunscrever sua família-nação nos limites rígi-dos de uma tradição que se quer inviolável, Gisela é fator dedesestabilização dos códigos preservados pela avó, desmontando a cenateatral representada pela família e, expondo as fendas de um mundo des-moronado, expõe também as fissuras que a impediram de reconhecer-seem seu próprio nome:

Sabemos hoje que as identidades culturais não são rígidasnem, muito menos, imutáveis. São resultados sempretransitórios e fugazes de processos de identificação. Mesmoas identidades aparentemente mais sólidas, como a demulher, homem, país africano, país latino-americano ou paíseuropeu, escondem negociações de sentido, jogos depolissemia, choques de temporalidades em constanteprocesso de transformação, responsáveis em última instânciapela sucessão de configurações hermenêuticas que de épocapara época dão corpo e vida a tais identidades. Identidadessão, pois, identificações em curso.23

Guísela ou Gisela? Gisela ou Guísela? – esta é a indagação queacompanha a personagem durante todo o processo narrativo e que dá amedida de uma impossibilidade: nem Guísela nem Gisela, nem sol nemneve, nenhum indício de qualquer identificação, embora temporária,que pudesse resolver o enigma que ela mesma se coloca, na chave daexclusão. A resposta não sendo dada por um dos termos, em que umexcluiria o outro, aponta por isso mesmo para um impasse no processode identificação: nem rigidez, nem transitoriedade, nem “identificaçõesem curso”, conforme Boaventura Santos. Sem assumir a identidade cul-tural pelo lado materno – a mãe tem sua identidade desfeita, modelada

22 BHABHA, op. cit., p. 211.23 SANTOS, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade.

11. ed. São Paulo: Cortez, 2006. p. 135.

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por Frau Ursula – também não se vê identificada à cultura germânica,permanecendo desterritorializada, portanto. A pergunta que obstinada-mente se faz sobre sua identidade não encontra resposta, pelo fato mes-mo de Gisela, como ser excêntrico, estar excluída do processo de identi-ficação cultural em sua condição de exílio, em sua falta de pertença.

Se a narrativa de Gisela resulta num fracasso, entendendo-se aí suaimpotência de construção da identidade, não se pode deixar de consideraruma outra narrativa que, desenvolvida paralelamente à linha central doromance, vai tentando construir não mais a identidade cultural, mas umaresposta de Gisela ao mundo fechado representado pela Família Wolf, àsua experiência de exílio e à impossibilidade de construção da identidade.

Refiro-me à narrativa paralela que trata de uma outra “criação”: aexpulsão do estranho ser que habita Gisela. Tal narrativa paralela, entreparênteses e em itálico, iniciando cada capítulo do romance, parece ter aíuma função estrutural marcada pela dissonância, por deixar em suspenso,como numa situação de latência, os germes de uma transgressão que, ain-da que só completada no capítulo final (O Parto), já vai indiciando umadivergência em relação ao código cultural representado pela família Wolfe um processo gradativo de privação de referências identitárias por partede Gisela, haja vista o capítulo inicial (O Exílio), ainda que as marcas detemporalidade entre o que denomino narrativa paralela e narrativa cen-tral também se dêem divergentemente, sem quaisquer correspondênciasentre si: na primeira, o tempo subversivo do parto; na segunda, o tempoda memória; e, entre elas, Gisela e seu exílio. “Respiro fundo. A criaturase contorce dentro de mim. Vou aguardar mais um pouco. Reunir cora-gem; desta vez não adiantam fuga nem evasivas. Nem sonho. Enquantoisso, lembro”24.

As páginas finais do romance, que narram a consumação do parto,libertas dos parênteses e do itálico (num processo de inversão, se conside-rarmos a última frase, que se reporta ao plano da memória, grafada comitálico/parênteses), podem ser tomadas como a narrativa de “criação” deGisela: se a aridez da avó – “terra tão seca”25 – também lhe secara o ventre(sua sexualidade abortada, conduzindo-a ao ritual do “horrendo parto”), a

24 LUFT, op. cit., p. 13.25 Ibidem, p. 43.

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geração desse estranho habitante, ainda que aludindo a enigmas indecifrados– “Como se deve amar? Neve ou fogo?”26, qualifica sua narrativa comoruptura dos códigos da Família Wolf.

Devolvendo a Frau Wolf o sujo, o repelente – o proibido –, compro-metia a nitidez da imagem limpa e irretocável com a qual a avó ordenaraseu mundo; assim, expulsando seu “inquilino”, buscava sua forma de liber-tação. Gisela e sua “criatura”. Confronto decisivo entre duas identidadesdesfocadas: “somos a única criatura viva neste quarto”27 – termina Gisela.

Memória e tradição

Em Os deuses de Raquel, novela de Moacyr Scliar, a relação entre tradi-ção e ruptura não pode ser dissociada da feição peculiar que caracteriza aquestão da imigração judaica.

Pode-se pensar, aqui, na questão da migração em massa, circunstân-cia na qual o imigrante perde a referência da nação ligada ao território,passando a desenvolver, conforme expressão de Hobsbawm28, “uma defi-nição alternativa de nacionalidade”. Em relação aos judeus (da diáspora),prossegue o historiador:

A nacionalidade era aqui considerada inerente, não a umtrecho especial do mapa ao qual estaria ligado um conjuntode habitantes, mas aos membros desse conjunto, aos homense mulheres que se considerassem pertencentes a umanacionalidade, onde quer que por acaso estivessem29.

As dificuldades do processo de reinscrição do judeu na nova reali-dade, que parecem estar irremediavelmente contaminadas pelo processode marginalização que lhe vem sendo imposto ao longo de sua história,parecem vir informando também a imagem construída por ele para deli-near sua identidade.

26 Ibidem, p. 141.27 Ibidem, p. 141.27 HOSBAWM, Eric J. A era dos impérios. Trad. Sieni Maria Campos e Yolanda Steidel de

Toledo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.28 Ibidem, p. 210.29 SZKLO, Gilda Salem. O bom fim do shtetl: Moacyr Scliar. São Paulo: Perspectiva, 1990. p. 40.

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Desse modo, a imagem que tenta construir para si mesmo transcen-de os limites do indivíduo judeu e passa a configurar-se como imagem daprópria condição judaica. “Mas talvez o fato mais significativo é que ela(cultura judaica) se tornou má consciência; um peso: o peso da culturaétnica é sua própria fonte de culpa”30 – afirma Gilda Salem Szklo em estu-do sobre a obra de Scliar.

Trazendo a questão para Os deuses de Raquel, parece ser exatamenteesse o eixo em torno do qual se move a protagonista da novela. Assumin-do para si uma culpa que não é apenas sua, mas que lhe pertence extensi-vamente como marca dessa condição judaica, Raquel faz de sua trajetóriaum processo permanente de expiação, através de um ritual de dores eautoflagelação; carrearia ela para si, de modo irreversível, o sentidodilemático do processo migratório, vivenciando os efeitos da assimilaçãoem suas formas incongruentes de atração e repulsa, apaziguamento einstabilidade.

A novela de Scliar procura refletir exatamente sobre essa área tensae nebulosa que marca a redefinição do imigrante judeu e de seus descen-dentes no espaço da nova realidade, a partir da articulação que os mesmosvenham estabelecer entre tradição e ruptura, considerando que a tradiçãoinsinua-se como imagem modelar a ser buscada pelo imigrante, impedin-do que as referências de seu passado cultural se percam diante das novasrelações que passam a se estabelecer na realidade presente.

Na novela, a escassa referência a práticas culturais judaicas é com-pensada pelo peso conferido a essa imagem modelar, o que pode serdepreendido do questionamento ou da reflexão acerca da condição ju-daica, através da menção a categorias que tenderiam a especificar ouhierarquizar o que é “ser judeu” ou, inversamente, o que deve ser exclu-ído por não pertencer a essa tradição. A sucinta galeria de “tipos huma-nos” estaria representada, desse modo, por personagens assim distribu-ídos na escala “social”: de um lado, Beatriz (o pai, judeu sefaradi, des-cendente de espanhóis) e Débora (judia de gueto); de outro, Francisco(um gói).

30 LE GOFF, Jacques. História e memória. 5. ed. Campinas, São Paulo: Ed. UNICAMP,2003. p. 438.

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A memória, inevitavelmente, parece ser o fio condutor dessas ima-gens do passado, através da qual a tradição faz-se presente na história.Conforme Jacques Le Goff 31 destaca, “o livro sagrado, por um lado, atradição histórica, por outro, insistem, em alguns aspectos essenciais, nanecessidade da lembrança como tarefa religiosa fundamental.”

Em Os deuses de Raquel, Scliar parece fazer dessa memória – “O povohebreu é o povo da memória por excelência”32 o eixo também fundamen-tal de sua ficção, através de uma narrativa que se bifurca.

De um lado, enunciados proferidos por uma voz que traz ressonân-cia dos textos sagrados da tradição judaica, responsável por fazer a narra-tiva nutrir-se da memória da tradição: “Sou o que tudo vê”33 ; “Sou o que nãoesquece”34; “Minha é a vingança”35; “Permito milagres, alguns”36, conforme enuncia-dos do texto. Nela parece imiscuir-se Miguel, misto de narrador e perso-nagem, cuja fala profética (em itálico, conforme exemplos acima) quer-serepresentação dessa memória, impedindo Raquel de ser levada ao esqueci-mento da culpa milenar. Miguel seria, assim, investido de um duplo pa-pel: ao mesmo tempo que guardião do Templo (sua missão é a construçãoda sinagoga), guardião da narrativa de Raquel.

A narrativa move-se num jogo de especularidades distorcidas: Miguelespia Raquel que expia sua culpa. Entre os dois, um pacto indissolúvel.Precisando do olhar de Miguel para manter viva a memória da culpa,Raquel outorga-lhe uma função aproximada à do mnemon da mitologia eda lenda, conforme referido por Le Goff: “o servidor de um herói” (aqui,Raquel) “que o acompanha sem cessar para lhe lembrar uma ordem divi-na cujo esquecimento traria a morte.”37

Em relação à Raquel, talvez pudéssemos redimensionar a memóriada culpa que, transcendendo o plano individual, encontraria sustentação

31 Ibidem, p. 439.32 SCLIAR, op. cit, p. 9.33 Ibidem, p. 88.34 Ibidem,p. 97.35 Ibidem, p. 79.36 LE GOFF, op. cit., p. 433.37 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006. p. 109.

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no plano da coletividade, da mesma maneira que o ponto de vista da his-tória e das mudanças seria rearticulado a favor da memória coletiva, con-forme Halbwachs38:

A história é um painel de mudanças, é natural que estejaconvencida de que as sociedades estão sempre mudando [...].Aparentemente, a série de acontecimentos históricos édescontínua, cada fato está separado do que o precede ou osegue por um intervalo [...]. Esse é o ponto de vista dahistória, porque ela examina os grupos de fora e abrangeum período bastante longo. A memória coletiva, aocontrário, é o grupo visto de dentro [...]. Ela apresenta aogrupo um quadro de si mesma que certamente se desenrolano tempo, já que se trata de seu passado, mas de tal maneiraque ele sempre se reconheça nessas imagens sucessivas.

Se essa memória coletiva, representada pela fala profética de Miguel,informava por um lado a narrativa, de outro, é ela conduzida por umnarrador que parece pertencer a outro contexto, uma vez que, despido dotom profético e religioso da voz que o antecede, parece gravitar não maisna esfera da tradição, mas no âmbito da realidade mais imediata. Essa voz,que faz um recorte no seu campo de visão – o olho do narrador da histó-ria de Raquel –, cumpre seu papel, entretanto, a partir do jogo de recipro-cidades que passa a estabelecer com a voz anterior.

Contaminando-se também do olhar narrativo de Miguel, guardiãoda tradição, a história de Raquel confunde-se com a narrativa do seu pro-cesso de expiação. Se a introjeção da culpa, contraditoriamente, foi o quelevou Raquel a romper com os valores de sua tradição (a conversão aocristianismo), buscando a assimilação aos valores da realidade social, de-verá por isso mesmo ser essa culpa permanentemente a ela assinalada poressa voz narrativa como memória.

Concebe para si um cristianismo peculiar, que inclui o cultoà Virgem e a Cristo – mas não as orações, nem a missa, nema confissão, nem a comunhão, nada que torne a religiãovisível. E mantém em segredo a sua fé, à semelhança dosprimeiros cristãos que se reuniam no interior da terra, em

38 SCLIAR, op. cit, p. 40.

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catacumbas, para orar diante dos ossos dos mártires e dosímbolo de Cristo: o peixe, o animal que se move em silênciono vento frio e escuro das águas. Assim operará estaguerrilheira da fé, esta agente secreta, esta cavaleira andantedisfarçada: por dentro cristã; por fora, judia, negando achegada do Messias e se recusando a fazer o sinal da cruz39.

A novela de Scliar tematiza a condição judaica às voltas com oenfrentamento de seus próprios demônios, materializados no pressenti-mento da ameaça constante de “olhares” que vigiam o judeu no espaçosocial, impondo-lhe barreiras a sua assimilação por outras culturas. Comoem: “De súbito, a sensação de que alguém a espia de trás, do portão. Vol-ta-se. Ninguém”, que se repete em: “ E de novo a sensação, a de que al-guém a espia pela porta aberta. Volta-se: através da porta, vê o corredor, opátio, as árvores. Ninguém ali”40.

No caso de Raquel, esses demônios traduzindo-se pela introjeçãodo mal e da hostilidade que encontra no real, passando a estabelecer umadivisória intransponível entre ela e o mundo, entre ela e os seres a suavolta. É neste ponto em que o real se torna insuportável, impossibilitan-do o judeu de reconhecer-se como judeu e ao mesmo tempo de assimilar-se, que a novela de Scliar faz acionar a fantasia.

Por um lado, a saída para o fantástico e para o absurdo como únicodesdobramento plausível do real, como única forma de libertação em quea suspensão das referências da realidade se dá através de ocorrências inusi-tadas ou de cortes mais abruptos que desautomatizam o encadeamentodos fatos:

Raquel parou de chorar. Com olhos secos compartia comos pais a comida, a casa. Os móveis. A mesa. Antes, era amesa que os unia. À mesa se agarravam, como a uma tábuade salvação, nas noites de inverno. [...]. E as camas? As camasantes eram barcos: um barco grande e um barco menor,quase uma flotilha, navegando toda a noite num mar desonhos. De madrugada, a tripulante do barco pequeno corriaa abordar o grande, cujo comandante resistia quanto podia.Capitulava, por fim, e confraternizavam todos, assaltante e

39 Ibidem, p. 26-27.40 Ibidem, p. 53-55.

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assaltados, debaixo dos cobertores. As camas agora eramcasulos frios. Ficavam ali quietos. Mexiam-se o mínimopossível; enrolavam-se nos cobertores, fingiam dormir. Masnão dormiam. Salmodiavam baixinho suas queixas. Filhaingrata. Pai desnaturado. Mãe insensível. Filha perversa.Assim estava a casa do Partenon. Terreno minado41.

Por outro lado, através da incorporação de narrativas que, ainda queremetam ao patrimônio da tradição ou ao circuito da culpa/expiação –aqui, dos deuses e demônios de Raquel –, possam vincular a fantasialibertária à própria memória, como alusão ao fabular:

Outra fantasia. O diabo do Partenon. Ela, no inferno, deitadade pernas abertas, junto ao lago de fogo. Vem o diabo eenterra-lhe o tridente. Outra. O pescador [...]. Outra. A coluna.Ela está de novo deitada, de novo com as pernas abertas.Desce do alto, lentamente, a coluna da eternidade. [...].Outra. O pequeno pássaro cinzento. Deitada, sempre de pernasabertas. Vem o pequeno pássaro cinzento, o pássaro de vôorápido, vem direto, penetra-a sem erro. [...]. Pássaro louco.O que quer, afinal? Alpiste? Ou a coluna da eternidade? Seé a coluna da eternidade que busca, que a raspe com a pontada asa, que tire quanto pó de aço quiser, mas que a deixe empaz, que se vá, que não volte antes de mil anos. Pássarolouco42.

“Antes de mil anos”, quem vem é Miguel, o olho que a espia,catalisador de todos os olhares que a ameaçaram e a perseguiram no seupercurso de culpa/expiação, tradição/ruptura, realidade/fantasia, deuses/demônios. Se Miguel é quem a impede de esquecer sua culpa milenar, étambém quem, na ambivalência do movimento final de ascensão, a salva ea faz perder-se, como forma de dissolução da tradição:

Ponho os dedos nos lábios: - Não sou Miguel. Sou aquelecujo nome não pode ser pronunciado. Sorrio. – Chama-me Jeová - Me olha, os olhos muito abertos. [...] Cambaleia.Amparo-a, antes que caia, tomo-a em meus braços, e

41 Ibidem, p. 66-67.42 Ibidem, p . 124-125.

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iniciamos a ascensão. Vou mostrar-lhe o Templo,finalmente concluído. Quero que veja o Livro, o Livro queagora termino de escrever e que conta tudo destes dias Osdias de Raquel. Destes deuses: os deuses de Raquel43.

Para Raquel, nesses deuses, seus demônios, sua única forma de liber-tação.

ABSTRACT

This article analyses the relations between traditionand rupture in tree authors: Raduan Nassar, Lya Luft,and Moacyr Scliar. As their fiction is settled ontradition – Lebanese, German and Jewish culture -,one seeks to accompany the immigrant’s disruptivemovement towards his reinscription in social space,investigating the particular way the process of rooting(or rooting out) takes place in each author’s work.

KEY-WORDS: Tradition; rupture; literature.

43 Ibidem, p . 124-125.