tradiÇÃo ou nÃo: as relaÇÕes entre tradiÇÃo musical

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1 TRADIÇÃO OU NÃO: AS RELAÇÕES ENTRE TRADIÇÃO MUSICAL E MERCADO MUSICAL A PARTIR DE DOIS DISCOS DE DANIEL Victor Creti Bruzadelli 1 RESUMO: Em tempode de internet e pulverização de conteúdos via web, discutir o conceito de indústria cultural se tornou cada vez mais um terreno pantanoso, sobretudo quando nos referimos à indústria fonográfica. A possível crise do mercado musical se inicia em meados da década de 1990 e faz com que todas as formas clássicas de acumulação de capital vinculadas ao mercado de bens simbólicos tenham de ser repensadas procurando-se outras maneiras de se lucrar. É justamente nesse contexto que o cantor Daniel se torna figura cativa para o mercado da música. Sua carreira nos permite nos permite perceber todo um complexo de relações musicais, econômicas e simbólicas que se encontravam em xeque no final da década de 1990. De cantor sertanejo (com seu parceiro falecido João Paulo) à cantor romântico, Daniel sempre esteve nas mass media com uma maneira bastante expressiva. Várias foram as táticas mercadológicas utilizadas pela indústria para que os números de vendagens não caíssem. Esse artigo se propõe a pensar uma dessas estratégias de vendagem: a retomada da tradição musical sertaneja em sua obra. PALAVRAS-CHAVE: Indústria fonográfica; tradição; cantor Daniel; música sertaneja e música popular. Dinheiro a gente perde; tradição não!” (Inezita Barroso) “Quando comecei a dupla com João Paulo, meus modelos eram Chitãozinho e Xororó. Hoje, procuro me espelhar em Roberto Carlos.” (Daniel) “Sabemos que o Brasil é um país de grande tradição musical”, enuncia Renato Ortiz na primeira linha do prefácio da obra de Márcia Tosta Dias dedicada à compreensão da indústria fonográfica brasileira (ORTIZ apud DIAS, 2008, p. 11). Parafraseando-a, afirmo que o Brasil é um país de grandes tradições musicais. Se a autora se refere à importância do Brasil enquanto produtor e divulgador de gêneros, estilos e canções populares, afirmo que muitos desses gêneros populares foram elencados ao status de tradição musical ao longo da formação e consolidação da indústria fonográfica brasileira no século XX. Essa noção de tradição musical brasileira sempre foi um elemento presente nos discursos de críticos, artistas, empresários do ramo e nas conversas “de botequim” de indivíduos que discutem apaixonadamente o tema da música popular brasileira. No entanto, só na última década do século passado passados quase 100 anos das primeiras 1 Vinculado ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás, campus Goiânia, nível mestrado. Professor de história da rede particular de Goiânia. Email: [email protected].

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Page 1: TRADIÇÃO OU NÃO: AS RELAÇÕES ENTRE TRADIÇÃO MUSICAL

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TRADIÇÃO OU NÃO: AS RELAÇÕES ENTRE TRADIÇÃO MUSICAL E

MERCADO MUSICAL A PARTIR DE DOIS DISCOS DE DANIEL

Victor Creti Bruzadelli1

RESUMO: Em tempode de internet e pulverização de conteúdos via web, discutir o

conceito de indústria cultural se tornou cada vez mais um terreno pantanoso, sobretudo

quando nos referimos à indústria fonográfica. A possível crise do mercado musical se

inicia em meados da década de 1990 e faz com que todas as formas clássicas de

acumulação de capital vinculadas ao mercado de bens simbólicos tenham de ser

repensadas procurando-se outras maneiras de se lucrar. É justamente nesse contexto que

o cantor Daniel se torna figura cativa para o mercado da música. Sua carreira nos

permite nos permite perceber todo um complexo de relações musicais, econômicas e

simbólicas que se encontravam em xeque no final da década de 1990. De cantor

sertanejo (com seu parceiro falecido João Paulo) à cantor romântico, Daniel sempre

esteve nas mass media com uma maneira bastante expressiva. Várias foram as táticas

mercadológicas utilizadas pela indústria para que os números de vendagens não

caíssem. Esse artigo se propõe a pensar uma dessas estratégias de vendagem: a

retomada da tradição musical sertaneja em sua obra.

PALAVRAS-CHAVE: Indústria fonográfica; tradição; cantor Daniel; música sertaneja

e música popular.

“Dinheiro a gente perde; tradição não!”

(Inezita Barroso)

“Quando comecei a dupla com João Paulo, meus modelos eram Chitãozinho

e Xororó. Hoje, procuro me espelhar em Roberto Carlos.”

(Daniel)

“Sabemos que o Brasil é um país de grande tradição musical”, enuncia Renato

Ortiz na primeira linha do prefácio da obra de Márcia Tosta Dias dedicada à

compreensão da indústria fonográfica brasileira (ORTIZ apud DIAS, 2008, p. 11).

Parafraseando-a, afirmo que o Brasil é um país de grandes tradições musicais. Se a

autora se refere à importância do Brasil enquanto produtor e divulgador de gêneros,

estilos e canções populares, afirmo que muitos desses gêneros populares foram

elencados ao status de tradição musical ao longo da formação e consolidação da

indústria fonográfica brasileira no século XX.

Essa noção de tradição musical brasileira sempre foi um elemento presente nos

discursos de críticos, artistas, empresários do ramo e nas conversas “de botequim” de

indivíduos que discutem apaixonadamente o tema da música popular brasileira. No

entanto, só na última década do século passado – passados quase 100 anos das primeiras

1 Vinculado ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás, campus

Goiânia, nível mestrado. Professor de história da rede particular de Goiânia. Email: [email protected].

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gravações musicais no Brasil2 – é que esse tema tem sido incluído nas discussões

acadêmicas3 e, sobretudo, na historiografia brasileira. O conceito de tradição será

“reinventado” através dos escritos de Eric Hobsbawn e Terence Ranger na obra “A

invenção das tradições” organizado por ambos no publicado originalmente na décade de

1980, chegando no Brasil só na segunda metade da década de 1990. Como se percebe, a

obra se propõe a discutir as questões relativas ao processo de formação e invenção das

tradições.

Ainda no início do livro, Hobsbawn defende que

Por ‘tradição inventada’ entende-se um conjunto de práticas, normalmente

reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza

ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de

comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma

continuidade em relação ao passado (HOBSBAWN, 2002, p. 9).

A tradição, quando inventada, necessita de algo que a dote de veracidade e que a

justifique enquanto realidade acontecida, para que seja reconhecida enquanto tal

(PESAVENTO, 2003, p. 95), daí a necessidade da história e/ou do Estado corroborarem

tais modelos. Esse processo de invenção das tradições é “essencialmente um processo

de formalização e ritualização, caracterizado por referir-se ao passado, mesmo que

apenas pela imposição da repetição” (HOBSBAWN, 2002, p. 12).

Ao analisar a “tradição” da música popular brasileira, o historiador Marcos

Napolitano, compreende que ela está sedimentada sobre um eixo que se inicia com o

samba, perpassa a bossa nova e finda com a MPB (NAPOLITANO, 2007, p. 6), três

gêneros considerados autenticamente nacionais. É claro que este constructo intelectual

exclui uma infinidade de outros gêneros e estilos que podem fazer parte da tradição

musical brasileira, como a moda de viola, o xote, o lundu, entre outros. Desta forma,

compreendemos que, para que algum projeto estético alcançasse o status de tradição

musical, outros tiveram que ser colocados em lugar de menor importância, evidenciando

que “a história da música popular no século XX revela um rico processo de luta e

conflito ideológico” (NAPOLITANO, 2005, p. 18). Desta forma, em consonância com

Napolitano e Wasserman, compreendo “a categoria da autenticidade, não como um

2 “O esperto [Frederico] Figner logo percebeu o potencial da novidade, sobretudo para o mercado

musical, incrementado pela invenção do disco de cera, e passou a fazer gravações de música brasileira a

partir de janeiro de 1902, num estúdio improvisado na rua do Ouvidor, 105.” (NAPOLITANO, 2007,

p.14). 3 Uma feliz exceção a esse hiato na produção acadêmica brasileira, antes da última década do século XX e

no início do próximo, pode ser encontrada na obra de Ortiz (1988).

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traço inerente ao objeto ou ao evento ‘original’, mas uma reconstituição social, uma

convenção que deforma parcialmente o passado, mas que nem por isso deve ser pensada

sob o signo da falsidade” (2000, p. 168).

Esses gêneros musicais que estão “excluídos” dessa tríade musical proposta por

Napolitano, no entanto, são constantemente lembrados como gêneros musicais regionais

(tradição regional) e muitas vezes são retomados por músicos, críticos e pesquisadores

que se dedicam a tentar compreender a música brasileira de maneira mais ampla. Mas,

no geral, o que se considera a tradição musical brasileira é efetivamente esses três

gêneros.

Como exposto anteriormente, para que o samba, a Bossa Nova e a MPB

alcançassem a condição de receptáculos da tradição musical brasileira, tornando-se

referenciais simbólicos do Brasil e do próprio brasileiro, foi necessário um processo

lento de afirmação e constante reafirmação destes gêneros4 como “coisas nossas”, como

diria Noel Rosa, excluindo ou suprimindo uma infinidade de “outras bossas”. Para

Peter Burke, este é, inclusive, um dos mais fundamentais problemas com que nos

deparamos ao problematizar as tradições: pensar “o que” e “como” foi escolhido para

fazer parte da tradição e “o que” e “como” outras informações foram excluídas

(BURKE, 2005). Neste sentido, é necessário que se perceba que o

processo de invenção e consagração dessa tradição [musical brasileira] não se

deu sem conflitos, contradições e mediações das mais diversas, que, em

linhas gerais, acompanham a própria formação da nossa moderna identidade

nacional. Como toda identidade historicamente criada, muitos elementos

foram excluídos, muitos projetos foram agregados, formando um mosaico

complexo que dispõe lado a lado diversos fatores culturais: o local e o

universal, o nacional e o estrangeiro, o oral e o letrado, a tradição e

modernidade (NAPOLITANO, 2007, p. 6).

A noção de tradição, segundo Burke (2005) está diretamente relacionada à ideia

de cultura, já que pressupõe um conjunto de práticas e valores passados de uma geração

à outra. Ou seja, quando pensamos as tradições de determinado povo, temos que

4 As discussões a respeito da categoria “gêneros musicais” estão distantes da alçada do historiador, sendo

mais próxima das discussões dos musicólogos, ainda que sempre busquemos nos certificar de tais leituras.

Entretanto, entendemos que tanto o samba (e suas várias vertentes) quanto a bossa nova estão mais

próximos de tal classificação do que a chamada MPB. Amparamo-nos na conceituação de Napolitano,

segundo o qual: “A MPB passou a ser vista [a partir da década de 1970] cada vez menos como um gênero

musical específico e mais como um complexo cultural plural, e se consagrou como uma sigla que

funcionava como um filtro e organização do próprio mercado, propondo uma curiosa e problemática

simbiose entre valorização estética e sucesso mercantil” (NAPOLITANO, 2005, p. 72, grifos meus).

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problematizar a própria cultura em que este está inserido e (re)produz. Entretanto, este

mesmo historiador afirma que a transmissão de uma tradição de uma geração à outra

significa, necessariamente, uma “criação contínua” (BURKE, 2005, p. 130) ou uma

recriação desta. “Neste sentido, a tradição é compreendida como atividade de seleção,

valoração, interpretação e afirmação do acervo cultural legado pelo passado”

(COUTINHO, s/d, p. 2).

Desta forma, acreditamos que toda a constituição de uma tradição é um projeto

que se vincula muito mais ao futuro que ao passado, já que ela definirá, num momento

posterior, todo um conjunto de referências a serem seguidas, discutidas e reverenciadas.

Assim sendo, a ideia de tradição coloca em contato as três distintas noções de tempo:

passado, presente e futuro. O passado seria o produtor daquela tradição, ainda que visto

de maneira mitificada e idealizada – por isso mais distante, do ponto de vista do uso

pragmático, que o presente e futuro, onde a tradição seria instrumentalizada. O presente

seria o momento em que se elevaria aquele conjunto de referências passadas (ou

inventadas) aos status de tradição e se reproduziria este constructo; todavia, essa

tradição constituída visaria um futuro produzido a partir dela e problematizado por

elementos vindos daquela matriz. Ou seja, a tradição, enquanto projeto, inventa um

passado, um presente e um futuro, mas sempre tendendo a criar de forma mais definitiva

esta última temporalidade. Essa noção de tradição encontra ainda mais espaço num

mundo “em processo acelerado de transformações políticas, econômicas e sociais como

é o mundo deste último quartel do século XX, [tornando] indispensável identificar os

contornos temporais e estruturais da consciência pessoal e coletiva que embasa o

discurso e a ação dos homens de hoje” (MARTINS, 1992, p. 60). Desta forma, já que a

tradição vincula as três temporalidades, pensá-la é buscar conhecer as ações dos

homens. “A ideia de ‘passado’, ‘presente’ e ‘futuro’ referencia a experiência da

construção social humana na noção de tempo, e o futuro, ou, os futuros, projetam as

inquietações que habitam o imaginário de homens e mulheres quanto às transformações

do corpus social do qual fazem parte” (MARTINS, 2004, p. 251).

Da maneira que compreendo aqui o conceito de tradição, ele se aproxima de

outros dois que nos são fundamentais: memória e história. Isso fica muito claro nos

dizeres de Jörn Rüsen,

“A memória torna o passado significativo, o mantém vivo e o torna uma parte

essencial da orientação cultural da vida presente. Essa orientação inclui uma

perspectiva futura e uma direção que molde todas as atividades e sofrimentos

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humanos. A história é uma forma elaborada de memória, ela vai além dos

limites de uma vida individual. Ela trama as peças do passado rememorado

em uma unidade temporal aberta para o futuro, oferecendo às pessoas uma

interpretação da mudança temporal. Elas precisam dessa interpretação para

ajustar os movimentos temporais de suas próprias vidas.” (RÜSEN, 2009,

p.164, grifo meu)

Neste sentido, buscamos refutar a postura apresentada por Eduardo Granja

Coutinho, segundo o qual, há uma divisão no campo de estudo das tradições culturais

em dois grandes grupos: aqueles que apresentam uma postura “objetivista” da tradição –

a tradição vista como algo inerte e “intacta” no tempo – e aqueles que optam por uma

visão “subjetivista” do conceito – visto somente como constructo social elaborado no

presente com fins hegemônicos e nunca contra-hegemônicos. Segundo o autor,

As concepções metafísicas da cultura, sejam elas objetivistas ou subjetivistas,

enfatizam, cada qual, uma dessas dimensões da tradição, tendo em comum o

fato de desconsiderarem a articulação entre elas, isto é, o processo pelo qual

o homem através de sua práxis criadora transforma ativamente a realidade

sócio-cultural (s/d, p. 1).

Para o autor, as pesquisas em ciências humanas que buscam compreender o uso

do passado no presente, excluem de suas compreensões o caráter ativo do indivíduo que

problematiza essa tradição. Entretanto, muitos são os trabalhos que apresentam a

tradição como algo vivo, dinâmico e não “fossilisado”5. Nesse sentido, acredito que a

melhor forma de compreender o conceito de tradição e de seu uso é a partir da relação

estabelecida entre as concepções “objetivistas” e as “subjetivistas”.

Em geral, as obras de arte – dentre elas a música, nascem da tensão entre

inovação e tradição. É da fricção destes dois termos que surgirá um objeto artístico

novo. A inovação é a parte em que o artista põe em funcionamento seu “gênio criador”,

sua inspiração e seu projeto artístico. Entretanto, a inovação é perpassada por aspectos

da tradição, como os processos de formação do artista (por exemplo, se frequentou ou

não cursos regulares de música, no caso da canção), os meios de difusão de sua arte (se

a música é ou não gravada; se sim, em qual tipo de mídia), o conjunto de técnicas e

objetos que ele utilizará para produzi-la (procedimentos de gravação, instrumentação,

gênero em que irá compor), entre outros. Neste sentido, afirma Greenblatt que “a obra é

o produto de uma negociação entre um criador ou uma classe de criadores e as

5 A titulo de exemplo, podemos citar, Napolitano (2007), Paranhos (2003), Vianna (2007), Napolitano;

Wasserman (2000), Sousa (2008), entre diversos outros trabalhos que apresentam esta perspectiva de uso

do passado.

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instituições e práticas da sociedade” (GREENBLATT apud FALCON, 2002, p. 88).

Desta forma, quaisquer canções que façam parte de uma determinada tradição podem

ser ressignificadas e recriadas ao dialogarem com artistas de outros tempos. Neste

mesmo sentido, Paranhos nos alerta que

canção alguma é uma ilha, mantida em regime de clausura, como se fosse

possível cortar os fios que a ligam a outras canções e a mil e um discursos e

referências sociais. Sem que se perca de vista sua singularidade, quando

ampliamos a escala de observação de um artefato cultural, pode-se verificar

que, dialeticamente, tudo está em interconexão universal, como que

dialogando entre si. No caso específico de uma canção, ela, para dizer o

mínimo, está permanentemente grávida de outras canções, com as quais

entretém um constante diálogo, seja ele implícito ou explícito, consciente ou

inconsciente (PARANHOS, 2007, p. 1-2).

No sentido apontado por Paranhos, vamos percebendo, assim como afirma

Greenblatt, que o universo artístico, com ênfase no musical, se afirma sempre a partir de

um dialogismo muitas das vezes vinculado à tradição. Esta fato se torna ainda mais

interessante quando percebemos a onipresença da indústria cultural no ambiente musical

brasileiro a partir da década de 1970.

Indústria cultural é um conceito elaborado pelos sociólogos alemães Theodor W.

Adorno e Max Horkheimer, na obra “Dialética do esclarecimento”, que busca

compreender o fenômeno da mercantilização da arte e, mais especificamente, a música

popular. Ao se referir especificamente a Adorno, Napolitano afirma que ele

“vislumbrava a música popular como a realização mais perfeita da ideologia do

capitalismo monopolista: indústria travestida em arte” (NAPOLITANO, 2005, p. 21).

Com uma visão um tanto aristocrática e romântica da arte, dividindo-a em erudita e

folclórica de uma lado e a música industrial de outro, Adorno vê a canção popular –

intimamente ligada à indústria fonográfica – como algo que deturpa tanto a qualidade

artística da música erudita quanto a autenticidade da folclórica, domesticando-a

(ADORNO, 1986, p. 92-93).

Para Adorno, o termo indústria cultural diz, basicamente, respeito a duas coisas:

a inserção das tecnologias no processo de “fabricação” da música (técnicas de gravação,

gestão financeira, maneiras de distribuição), bem como, e mais importante, a

organização da produção cultural segundo a lógica do capital e do lucro. Ou seja, a

indústria cultural seria a responsável por ordenar o mercado de canções segundo uma

ótica financeira, dando mais centralidade ao valor de troca de uma obra, minimizando

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seu valor de uso. Para que a venda de canções se torne mais eficaz, a indústria cultural

se utiliza das técnicas mais avançadas de organização da indústria, como a divisão do

trabalho, a racionalização e a inserção de tecnologias na produção e, sobretudo, um

poderoso esquema de marketing e distribuição do produto.

Segundo Adorno, este cenário de construção artística leva, no limite, à

estandardização da música, diminuindo a parcela de criação individual do artista – ainda

que ela exista –, tornando a arte algo esvaziado de sentido e dos demais aspectos

subjetivos relacionados à produção artística. Numa postura diferente, Edgar Morin

afirmará que a

indústria cultural deve constantemente suplantar uma contradição

fundamental entre suas estruturas burocratizadas-padronizadas e a

originalidade do produto que ela fornece. Seu fundamento se fundamenta

nesses dois antitéticos: burocracia-invenção, padrão-individualidade

(MORIN apud ORTIZ, 1999, p. 147).

A indústria cultural, a todo instante, busca definir-se e valorizar apenas como um

instrumento artístico construindo, dialeticamente, uma obra de arte marcada pela

ideologia do consumo, pelos modismos, por uma passividade alienada frente ao mundo

da arte. Nos dizeres de Dias,

O esquematismo da produção na indústria cultural e sua subordinação ao

planejamento econômico promovem a fabricação de mercadorias culturais

idênticas; pequenos detalhes atuam sempre no sentido de conferir-lhes uma

ilusória aura de distinção. A obra de arte, que era anteriormente veículo da

ideia, foi completamente dominada pelo detalhe técnico, pelo efeito,

substituída pela fórmula (DIAS, 2008, p. 31).

Como havia alertado Renato Ortiz anteriormente, a indústria cultural precisa

promover o “novo”, ainda que essa novidade seja elaborada seguindo os mesmos

parâmetros e princípios estéticos e políticos anteriores. Ao criar a novidade, a indústria

promove o consumo daquele produto. Ao não se distanciar muito das fórmulas

consagradas pelos lucros das grandes vendagens as gravadoras impedem um possível

estranhamento frente ao inusitado, que poderia ameaçar o sucesso monetário da

gravação. A base de reprodução econômica e ideológica dessas empresas é, portanto,

(re)criação do mesmo através de novas roupagens – moda – que em quase nada se

afastam do original. Nesta perspectiva, naturalizam um discurso liberal para que possam

efetivar seus lucros. “Os promotores da diversão comercializada lavam as mãos ao

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afirmarem que estão dando às massas o que elas querem” (ADORNO; HORKHEIMER

apud DIAS, 2008, p.33).

Nessa lógica de mercado, a produção cultural ficaria pressionada por uma

necessidade de se reinventar, mas a ruptura com o passado não poderia ser muito radical

ou profunda. Isso gera um fato interessante no mercado musical brasileiro: alguns

músicos utilizam gêneros musicais anteriores para criar um clima de “autenticidade” em

músicas que muito se distanciam do anterior. Esse fenômeno fica evidente quando

analisamos a chamada “música sertaneja romântica” da década de 1990, que em vários

momentos tenta se aproximar da música caipira.

A música caipira e suas variações perpassam todo o século XX e as elas são

atribuídas, de maneira muito constante uma certa autenticidade. Esse fator pode estar

vinculado à própria história de formação e afirmação dos diversos gêneros caipiras. Um

dos motivos da sua pretensa autenticidade seria talvez o fato de que o caipira – assim

como a primeira proposta identidade nacional brasileira, elaborada ainda nos primeiros

anos do IHGB – teria uma natureza miscigenada e, consequentemente, forte. Como

atesta Nepomuceno “A mistura do sangue do índio com o do colonizador e dos negros

escravos resultou num homem forte, que se achava capaz de amoldar-se a outras fôrmas

culturais” (1999, p. 33). Outro elemento que talvez ateste essa autenticidade é o fato de

essas músicas terem se associado aos festejos católicos populares, permitindo uma

grande capilaridade na sociedade e cultura brasileira, sendo presente em praticamente

todo centro sul do país. Essa presença ubíqua tem também o dado de a viola – principal

instrumento caipira – ter estado presente, segundo Nepomuceno, tanto nas rotas

bandeirantes quanto nas rotas tropeiras e, posteriormente entre os boiadeiros, que

interligaram o Brasil nos séculos XVIII, XIX e XX (NEPOMUCENO, 1999, p. 80).

No Brasil, o amplo e diversificado repertório musical produzido

especialmente a partir da entrada da indústria fonográfica no país, no início

do século XX, revela múltiplas configurações identitárias. Especialmente o

segmento reconhecido como música caipira ou sertaneja, composto por

produções que se remetem às tradições e à vida do homem do campo do

interior da região sudeste do Brasil (ZAN, 2008, p. 3).

O principal instrumento caipira, inclusive, daria nome à “expressão musical mais

típica do caipira”: a moda de viola, que “caiu no gosto popular” e tornou-se “o cartão-

de-visita da música rural na cidade” (NEPOMUCENO, 1999, p. 68). As primeiras

gravações deste gênero datam de 1929 e são, na verdade, um conjunto de compilações

de letras e músicas anônimas encontradas, sobretudo, no interior de São Paulo. Essas

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modas de viola se caracterizariam por serem cantadas em duos, com andamentos lentos,

versos longos, bastante narrativos e tom recitativo que são entremeados por refrãos ao

longo da canção. A partir de então, um sem número de duplas sertanejas passam a

gravar o que a crítica, os artistas e os produtores musicais convencionaram chamar de

“música sertaneja de raiz”, evidenciando um possível apelo à uma tradição original.

A indústria cultural, ao longo do século XX, foi se apropriando dessa produção

artística sertaneja – de raiz ou não – das maneiras mais diferenciadas. De Catulo da

Paixão Cearense, por volta de 1910, à Gusttavo Lima, um século depois, a música

sertaneja esteve presente como produto viável ao consumidor, seja na era das partituras

ou das gravações em cera, LP’s, festivais da canção, telenovelas, cinema, CD’s e MP3.

Este caminho, obviamente não foi homogêneo, mas o que se percebe constantemente é

que essa música se reinventou e se adaptou aos mais diferentes contextos históricos e

meios de difusão do objeto artístico, atraindo um variado público apreciador dessas

canções. Essas canções compõe, apesar de o nome nos dar uma impressão integradora,

um corpus documental bastante heterogêneo, tanto nos aspectos propriamente musicais

(não-verbais) quanto nos poéticos.

Esta percepção nos leva a uma outra indagação: É possível perceber algum

elemento comum a todas essas manifestações musicais que se (auto)intitulam

sertanejas? Uma resposta propriamente estético-musical nos parece impensável, no

entanto, um caminho pode ser encontrado nos discursos elaborados pelos agentes

musicais e pelo público consumidor deste tipo de canções: todas essas canções

acreditam ser portadoras de elementos “autênticos”, por mais que pareçam distantes das

matrizes culturais do sertão.

Segundo o psiquiatra Richard Peterson, ao refletir sobre a música country dos

EUA, afirma que “a autenticidade [ou raiz] não é um traço inerente ao objeto ou ao

acontecimento que se declara autêntico; trata-se de fato de uma construção social que

deforma parcialmente o passado” (PETERSON apud VIANNA, 2007, p. 35). Na

verdade, a ideia de “autenticidade” deforma uma construção feita sobre o passado

(história ou memória) que nem sempre condiz com uma história numenal (história

acontecida). Nesse sentido, a autenticidade pode ser encarada também como um apelo à

tradição e à raiz.

Por mais que este apelo seja corrente em discursos dos mais variados, ao

observarmos as mais distintas produções musicais este argumento não se sustenta, como

reforça José Roberto Zan, a respeito da interferência das questões técnicas de gravação

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no produto final das canções, “quando se transformaram em artistas urbanos [os

sertanejos] não puderam gravar as mesmas músicas que cantavam na fazenda. O

próprio disco de 78 rpm impunha uma limitação de tempo à música, pois comportava

aproximadamente 3 minutos de gravação em cada lado” (ZAN, 2008, p.4). Neste

sentido, a música do sertão, ao ser apropriada pelo mercado de bens simbólicos, já

estaria desterritorializada e, portanto, em processo de ruptura com aquele mundo onde

originalmente eram produzidas.

Nas décadas de 1980 e, principalmente 1990, as transformações sociais oriundas

do recrudescimento cada vez maior do regime militar no decênio anterior e o

desenvolvimento rápido da indústria fonográfica no Brasil – com sua crescente

segmentação – fez surgir um novo gênero de origem rural: o “sertanejo romântico”,

também denominado de “sertanejo pop” ou “neo sertanejo”. Duplas como Zezé di

Camargo e Luciano, Leandro e Leonardo, Chitãozinho e Xororó, Jean e Giovani, João

Paulo e Daniel, entre diversas outras começam a disputar o mercado nacional de

música, não estando mais restritos ao universo do interior do centro-sul do país. E nem

poderiam amis estar restritos a este ambiente, vinham com um fôlego de modernização

bastante grande. O chapéu de palha e a viola, dos antigos caipiras, foram sendo

substituídos por cabelos bem penteados e aparados e instrumentos elétricos como

guitarras e contrabaixos. Os artistas vão buscar referências musicais em outros estilos

musicais que não propriamente a moda de viola, o country music americano e a Jovem

Guarda da década de 1960 são diluídos no meio de uma música híbrida, marcadamente

romântica, e com cada vez menos elementos próximos da música caipira.

Estes sertanejos românticos encontram um ambiente propício para difusão de

seus novos produtos: a indústria fonográfica, sobretudo as majors, buscavam

avidamente novidades que pudessem se tornar atraentes ao grande público consumidor.

Isso pode ser expressado pela análise dos números de vendagem dos chamados gêneros

sertanejos no mercado musical brasileiro: entre os anos de 1965 e 1989, entre os 50

discos brasileiros mais vendidos anualmente nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo,

figuram apenas 7 LP’s sertanejos; enquanto que entre os anos de 1990 e 1999, na

mesma pesquisa, temos 34 discos do mesmo gênero (tendo o ápice o ano de 1996, com

10% do mercado musical, de acordo com o índice NOPEM)6. O crescimento é

6 Estes números se apoiam no índice NOPEM (Nelson Oliveira Pesquisas de Mercado), criado em 1965

para pesquisar a vendagem de discos nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. Por mais problemática

que seja este índice, ele é o único que se estende do período de sua criação até o fim do século XX. No

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impressionante e se se torna ainda mais fantástico quando percebemos que a pesquisa de

mercado é feita somente nas duas principais cidades do país. Possivelmente, apesar de

não podermos afirmar com certeza, o consumo dos discos caipiras e sertanejos era

imensamente maior nos sertões e interiores do país. Estes discos, segundo Vicente, eram

comercializados no

formato dos ‘discos populares’, de preços bastante inferiores àqueles

adotados na comercialização de discos de MPB e música internacional. Na

minha opinião, as empresas internacionais parecem não haver demonstrado,

antes dos anos 1990, capacidade de explorar adequadamente os mercados

vinculados a segmentos regionais, tanto que sua inserção mais vigorosa se

deu, nessa época, especialmente após a venda de gravadoras tradicionais do

setor, como a Continental, adquirida pela Warner em 1994, e a Copacabana,

absorvida pela EMI em 1992 (VICENTE, 2008, p. p.118).

Compondo essa lista em 1997 aparece a dupla João Paulo & Daniel, com o

álbum João Paulo & Daniel volume 8 – com vendagem estimada em mais de 750 mil

cópias7. A dupla que havia se formado na cidade de Brotas, no interior de São Paulo, no

ano de 1985, só conseguiu alcançar o sucesso somente no ano de falecimento de João

Paulo (num acidente de carro entre São Paulo e sua cidade natal). A carreira solo de

Daniel foi rapidamente engatilhada através da Warner que, segundo Nepomuceno,

acreditava que ele “estava a destinado a se tornar [seu] menino de ouro”

(NEPOMUCENO, 1999, p. 213). No ano seguinte já estava sendo lançado o primeiro

disco do cantor que receberia o seu próprio nome (imagem 1).

O disco receberá o prêmio da ABPD (Associação Brasileira dos Produtores de

Discos) com o “Disco de Diamante”, premiação máxima do órgão que representava na

época uma vendagem acima 1 milhão de cópias vendidas. Neste disco, um conjunto de

canções do universo romântico com levadas pop são gravadas, contando com solos de

guitarras, presença de baixo e bateria. As composições são assinadas por músicos como

Peninha, famoso por um sentimentalismo exagerado, e Lulu Santos, ícone do pop rock

brasileiro. A análise da capa do disco já nos remete a um universo moderno, com uma

foto do cantor, num fundo que parece ser uma tela abstrata. O pouco que é possível

que se refere ao pequeno recorte espacial da pesquisa, vale ressalvar que estes dois estados eram os

responsáveis por cerca de dois terços do mercado nacional de discos, além do fato que lojas de discos de

regiões mais afastadas compravam LP’s de lojas nas duas capitais para revenderem em suas regiões. Estes

dados encontram-se disponíveis em VICENTE (2008). 7 Estas informações foram retiradas de quatro fontes distintas: 1) o site do cantor Daniel

<http://www.daniel.art.br/>, acesso em 15/03/2014; 2) na obra de NEPOMUCENO (1999); 3) no artigo

de VICENTE (2008); e 4) no site coletivo Wikipédia <http://pt.wikipedia.org/wiki/>, acesso em

15/03/2014.

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12

perceber das vestimentas do cantor mostram um paletó e camisas pretas, muito distante

dos costumeiros chapelões e camisas xadrez dos antigos caipiras. O olhar do cantor na

foto busca reforçar o tom romântico presente em canções como Adoro amar você e

Peão apaixonado, que compõe o repertório do disco. Segundo Nepomuceno, com este

disco, o cachê de shows do cantor mais que duplicou.

O hit8 Adoro amar você, inclusive, tornou-se sucesso imediato e impulsionou

ainda mais a carreira já solidificada do cantor. Analisemos a canção:

Adoro amar você

(Peninha/ Elias Muniz)

Tá no meu paladar

Tá no meu olhar, olhando

Seu amor, meu amor

Fica latejando em mim

Tá no meu coração

Na luz do luar, “luando”

Fui me entregando

Dessa vez me pegou

Nunca foi tão bom assim

Quando não “tô” legal

Se estou mal eu te chamo

Quando me sinto em paz

Eu te amo, te amo

“Tô” afim de ficar com você

Mais uns 200 anos

Venha cá, menina

Vem dizer que me ama

Na vida, na morte

Na dor e na cama

O meu corpo precisa do seu

E a minha alma te chama

Ah! Eu adoro amar você

Como eu te quero

Eu jamais quis

Você me faz sonhar

Me faz realizar

Me faz crescer

Me faz feliz

O amor que existe

Entre nós dois

8 A presença do hit, segundo Márcia Tosta Dias, é algo é contínuo e persistente na história da música

popular a partir da indústria cultural. Isso se deve, entre outras coisas, ao “esquematismo da produção na

indústria cultural e sua subordinação ao planejamento econômico [que] promovem a fabricação de

mercadorias culturais idênticas; pequenos detalhes atuam sempre no sentido de conferir-lhes uma ilusória

aura de distinção. A obra de arte, que era anteriormente veículo da ideia, foi completamente dominada

pelo detalhe técnico, pelo efeito, substituída pela fórmula. Estes atingem igualmente o todo e a parte,

fazendo com que não exista nenhuma conexão entre eles, além da harmonia artificial. Essa mesmice, no

entanto, acaba sendo o motivo de regozijo: ao ser apresentado [...] o sempre mesmo ponto alto da canção,

surge o contentamento por meio do reconhecimento” (DIAS, 2008, p. 31)

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É tudo que eu sonhei

Pra mim

É mais do que paixão

É mais do que prazer

Amor que não tem fim!

A canção inicia com um solo de guitarra que rapidamente será entrecortado por

um riff de teclado, os dois instrumentos vão criando uma sensação de gradação

preparando o ambiente para a introdução da canção. As primeiras estrofes são cantadas

de maneira com uma voz que revelam um dramático que é ainda aumentado nos refrãos,

fato que acompanhado pela intensidade sonoro dos solos de guitarra, com o intuito de

teatralizar de maneira bastante evidente o sofrimento do eu-lírico da canção. Nestes

mesmos refrãos aparecem a voz de backing vocals femininas que reforçam verbalmente

a ideia e os sentimentos expressos pela canção. Os instrumentos musicais tipicamente

sertanejos, como a viola, não aparecem; os andamentos e ritmos tradicionais são

deixados de lado, bem como a estrutura de canto em vozes em terça maior. Como se

pode perceber, o sertanejo Daniel não apresenta nada de sertanejo.

Para esta canção, inclusive, foi gravado um videoclipe no mesmo ano. A

maneira como ele é elaborado também busca modernizar a figura do músico, tal qual

um ícone pop da cultura do cinema. O vídeo apresenta apenas o cantor em um ambiente

fechado decorado por uma pintura similar ao background da capa disco, com closes em

seu rosto e olhar em diversos instantes. Alguns efeitos visuais são utilizados tanto para

reforçar o caráter melodramático da música e intimista do videoclipe quanto para

demonstrar a atualidade daquele produto. O principal deles é o fato de o artista, em

alguns momentos do clipe, aparecer em preto e branco enquanto o fundo mantem-se

colorido; outro seriam os jogos de luz que destacariam o olhar do cantor em momentos

em que essa palavra era citada no canto.

Para Márcia Tosta Dias, na aceitação de um produto-canção, é necessário que o

público se reconheça nele. Quando se trata de um hit, este fator se torna ainda mais

imprescindível (DIAS, 2008). O videoclipe utiliza-se de alguns clichês para acelerar e

facilitar esse reconhecimento, como o close do olhar quando de sua aparição na letra,

como supra citado; ou o sentimentalismo exagerado e forçado através do gestual do

cantor que, a cada vez que inicia o canto do refrão, fecha uma das mãos atraindo-a em

direção ao peito (coração?) como forma de expressar o quanto adora amar o seu objeto

de desejo.

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No entanto, esta postura de extremo romantismo é rompida em outro projeto

musical de Daniel. No ano 2000, o cantor lança outro disco, que também terá uma

vendagem bastante expressiva – “Disco de Platina”, segundo a ABPD, ou seja, com

mais de 250 mil cópias vendidas –, intitulado Meu reino encantado (imagem 2). Neste

álbum, Daniel gravará músicas consideradas clássicas do universo sertanejo, como

Moreninha linda e Cuitelinho. Todas as canções do disco são gravadas contando com

parcerias, algumas delas com músicos de grande renome e credibilidade no universo

caipira, como Tinoco (da dupla Tonico & Tinoco), Pedro Bento e Zé da Estrada,

Milionário e José Rico, entre outros9. O sucesso do disco junto ao público e à crítica

alavancou a produção de mais dois discos vinculados ao mesmo projeto: Meu reino

encantado II, em 2004, e Meu reino encantado III, no ano seguinte.

A capa do álbum também nos permite perceber a busca de ressignificação de si

mesmo e de seu projeto artístico. A arte gráfica mostra o cantor abraçado a uma viola

caipira – é possível perceber as seis cordas duplas – tendo ao fundo uma belíssima foto

de alguns cavaleiros montados ao pôr do sol. O instrumento fundamental da música

caipira é ali retomado, desde a capa às canções, como que tutelando seu retorno às

“raízes” do gênero musical. Tal concepção é ainda mais reforçada pela contracapa do

disco (figura 3), que traz uma imensa boiada sendo guiada por um peão de boiadeiro

tocando um berrante. A busca das raízes, no entanto, não representa uma ruptura total,

já que a roupa trajada pelo músico na capa do disco parece-nos contemporânea ao

período da gravação e não efetivamente um retorno à tradição caipira.

A canção que dá título ao disco é gravada como a primeira faixa do álbum e se

tornou o principal single do cantor naquele ano. Segue a letra da canção:

Meu reino encantado

(Valdemar Reis/ Vicente F. Machado)

Eu nasci num recanto feliz

Bem distante da povoação

Foi ali que eu vivi muitos anos

Com papai mamãe e os irmãos

Nossa casa era uma casa grande

Na encosta de um espigão

Um cercado pra apartar bezerro

E ao lado um grande mangueirão

9 O cantor regionalista Almir Sater também fará participação especial no disco cantando a sua Tocando

em frente (em parceria com Renato Teixeira), gerando uma espécie de tutela ao disco, como algo de

qualidade para além do universo sertanejo. O disco ainda traz uma homenagem póstuma à seu parceiro

João Paulo, com a canção Poeira da estrada.

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No quintal tinha um forno de lenha

E um pomar onde as aves “cantava”

Um coberto pra guardar o pilão

E as traias que papai usava

De manhã eu “ia no” paiol

Um espiga de milho eu pegava

Debulhava e jogava no chão

Num instante as galinhas juntava

Nosso carro de boi conservado

Quatro juntas de bois de primeira

Quatro cangas, dezesseis canzis

Encostados no pé da figueira

Todo sábado eu “ia na” vila

Fazer compras para semana inteira

O papai ia gritando com os bois

Eu na frente ia abrindo as porteiras

Nosso sítio que era pequeno

Pelas grandes fazendas cercado

Precisamos vender a propriedade

Para um grande criador de gado

E partimos pra a cidade grande

A saudade partiu ao meu lado

A lavoura virou colonião

E acabou-se meu reino encantado

Hoje ali só existem três coisas

Que o tempo ainda não deu fim

A tapera velha desabada

E a figueira acenando pra mim

E por último marcou saudade

De um tempo bom que já se foi

Esquecido em baixo da figueira

Nosso velho carro de boi

Como se pode perceber, canção conta a história das lembranças de infância do

eu-lírico, no seu pequeno sítio em algum canto do sertão do Brasil e elabora uma

narrativa a respeito das atividades do menino sertanejo junto a seu pai. A canção é

interpretada por Daniel e seu pai, José Camilo, o que reforça ainda mais o caráter idílico

dos fatos que a canção narra. Ao lembrar da infância e do sertão da infância, Valdemar

Reis e Vicente F. Machado provavelmente lembram-se não de um sertão como ele de

fato era (“sertão-coisa”), mas sim um sertão imaginado e elaborado segundo os critérios

nostálgicos (“sertão-ideia”)10.

10 Para o antropólogo Sidney Valadares Pimentel existem duas categorias para se entender o sertão nas

ciências sociais. A primeira, já encontrada em escritos desde início da colonização é a mais difundida e o

vê como um lugar distante de centros urbanos, espaço não-civilizado, onde há um vácuo de moral e

inteligência, categoria denominada “sertão-coisa”. Uma segunda, não o vê com algo concreto ou palpável,

aqui ele é uma “ideia ou um conjunto de ideias sobre que se fala de fora, mas como se o dono da fala se

expressasse de dentro”, este é o “sertão-ideia”. Nessa última perspectiva o sertão “assume uma

diversidade que não possuía antes” (Pimentel, 2006: p. 11-12). Ainda na última acepção, ele pode ser

considerado um conjunto de símbolos, de costumes, de modos de falar, entre outros.

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Neste sentido, temos um sertão imaginário descrito através de imagens

bucólicas, modelo típico da canção caipira, sobretudo a moda de viola. Nísia Trindade

Lima, ao retomar a etnografia sertaneja construída por Roquette Pinto, lembra que a

relação com a natureza parece ser o aspecto mais valorizado do sertanejo (LIMA, 1999,

p. 130-131). Esse fator simbólico é ainda mais marcante, quando notamos que o mundo

encantado é, na verdade, a terra natal do eu-lírico (Eu nasci num recanto feliz/ Bem

distante da povoação/Foi ali que eu vivi muitos anos). Segundo Mircea Eliade os

simbolismos ligados à terra natal relacionam-se, nas diversas religiões pré-cristãs, à

ideia de “centro do mundo” e lugar de equilíbrio e perfeição do mundo (ELIADE, 1992,

p. 38-39).

No entanto, esse lugar idílico é rompido devido a presença do desenvolvimento

capitalista da região que acaba expulsando os pequenos proprietários para outro lugar,

provavelmente a cidade. A canção é uma espécie de retorno àquele ambiente, por parte

de um caipira desterritorializado que sofre com um banzo peculiar por estar longe de

seu “reino encantado”. Quando dizemos encantamento, lembramos efetivamente das

teorias de Max Weber a respeito do desencantamento de mundo na modernidade,

processo esse que o eu-lírico é obrigado a passar ainda que sentindo saudade de seu

lugar de origem. “Por sermos seres de memória, por lembrarmos, mantemos com o

tempo uma relação particular, uma relação não apenas racional, mas sensível, não

apenas objetiva, mas subjetiva, uma relação marcada pela aceitação e pela repulsa”

(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2006, p. 117-118) e é justamente essas duas últimas

forças que impelem o eu-lírico a cantar, para fixar aquelas memórias no tempo.

Daniel, ao interpretá-la ao lado de seu pai, “respeita” o tom saudosista da canção

mantendo os mesmos aspectos musicais das gravações consagradas dessa canção feitas

por Tião Carreiro & Pardinho e João Mulato & Douradinho. A viola é o principal

instrumento e é tocado à maneira dos antigos violeiros enquanto que a impostação vocal

busca se aproximar das gravações originais. Ao gravar essa canção Daniel não rompe

com os desígnios da indústria cultural que busca sempre a “falsa novidade” dos hits, ele

na verdade, atende a uma outra exigência dessa indústria: a necessidade de legitimação

externa dos discursos por ela proferidos. Daniel torna-se novamente sertanejo por gravar

música caipira: “mata-se” a saudade do sertão e vende-se mais discos, objetivo final

dessa indústria.

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ANEXOS:

Imagem 1: Capa do disco Daniel, do cantor homônimo, lançado em 1998.

Imagem 2: Capa do disco Meu reino encantado, de Daniel, lançado em 2000.

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Imagem 3: Capa do disco Meu reino encantado, de Daniel, lançado em 2000.