da tradição no revivalismo gótico à modernidade na ... xix/pdf/autores e artigos... · texto...
TRANSCRIPT
Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP-USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.
1
Representações da arquitetura inglesa e do urbanismo austríaco no século XIX:
da tradição no revivalismo gótico à modernidade na formação da Ringstrasse
Introdução
Dentro do processo de modernização econômica e social sem precedentes no século XIX -
decorrente das transformações provocadas pela Revolução Industrial, juntamente com a
formação de um nacionalismo crescente, em consonância com as culturas do passado histórico,
Carl Schorske afirma que a arquitetura urbana teria se apropriado “dos estilos de tempos
passados para dar peso e linhagem simbólicos às construções modernas, de estações
ferroviárias e bancos, a parlamentos e prefeituras.”1 Ao buscar os laços que mantinha com o
seu passado, fornecendo uma “roupagem decente para vestir a nudez da utilidade moderna”, a
cultura arquitetônica vitoriana se viu dividida entre o avanço da engenharia e da consolidação da
arquitetura do ferro, em contraposição ao pudor dos costumes burgueses. Do debate estilístico à
idealização de uma sociedade ideal, a transposição de uma infinidade de estilos históricos
“correspondia plenamente à intolerância em relação à rude e vergonhosa nudez estrutural das
construções (colunas e vigas) que, de fato, deviam ser completamente escondidas e revestidas
por motivo de decoro.”2 A consolidação do poder burguês, em meio ao discurso progressista da
civilização industrial, levou a um entrelaçamento da cultura romântica com os ideais nacionais,
em que o dilema artístico e a qualidade da produção em série tornou ainda mais difícil eleger,
classificar ou mesmo julgar os estilos dentro da rica experiência lingüística do ecletismo
historicista.
Ao procurar compreender o ecletismo tão proeminente na arquitetura européia da segunda
metade do século XIX, Schorske observa a ausência de um estilo autônomo como um reflexo
da força arcaizante da burguesia e dos ricos industriais – patrocinadores daquela arquitetura,
questionando por que as pontes e as fábricas eram construídas em estilos utilitários novos,
enquanto os edifícios públicos e as residências eram concebidos em estilos históricos anteriores
ao século XVIII. Patetta, por sua vez, reforça uma mudança na tradicional relação entre
utilidade e beleza, quando os novos elementos construtivos em ferro deveriam (ou não) se
adaptar às formas e às proporções das ordens arquitetônicas, sobretudo na arquitetura
neoclássica. Além disso, a inexistência de uma corrente estética predominante (como ocorreu
nos séculos anteriores) tornou evidente a inquietação dos arquitetos quanto ao “caos” das
1 SCHORSKE, Carl E. Pensando com a História: indagações na passagem para o Modernismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p.15 2 PATETTA, Luciano. “Considerações sobre o Ecletismo na Europa”. In: FABRIS, Annateresa (org.) Ecletismo na Arquitetura Brasileira. São Paulo: Nobel, 1987. p.15
Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP-USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.
2
múltiplas vertentes estilísticas, as combinações por vezes grotescas, a simultaneidade de
revivals, e que a busca por um estilo autêntico seguia em direção anacrônica, pois “não viam
que o século XIX já encontrara o próprio estilo, e que este era o Ecletismo.”3
Ainda na Inglaterra, Schorske aponta que o “historicismo vitoriano expressava a incapacidade
dos habitantes da cidade em aceitar o presente ou de conceber o futuro senão como
ressurreição do passado. Os construtores da nova cidade relutavam em encarar diretamente a
realidade de sua própria criação, não encontrando formas estéticas para afirmá-la.”4Cabe
lembrar que, entre as conseqüências da industrialização, os intelectuais ingleses trouxeram à
tona, já em meados do século XIX, descrições do crescimento dos centros ingleses marcados por
construções de tijolos e fuligens das fábricas, além da imundície e do crime social da época.
Essa imagem negativa da paisagem social e urbana seria o contraponto do cenário idílico e
familiar almejado pelas classes médias enriquecidas, que começavam a se deslocar dos centros
urbanos para os subúrbios ajardinados e tranqüilos – um retorno ao culto da natureza,
característico do cenário pitoresco inglês do final do século XVIII. Por outro lado, a experiência
estética do sublime, como afirma Bresciani, é identificada claramente nessa arquitetura fabril e
utilitária urbana, na monotonia das extensas séries de casas destinadas à classe operária e na
infinitude das gares metálicas das estações, enfatizada ainda pelo aspecto majestoso e eloqüente
dos edifícios públicos, símbolo do poder alcançado pela burguesia.5
Sob essa ótica, Frampton avalia que a formação das vanguardas modernas na arquitetura teria se
dividido entre aqueles que idealizaram as primeiras comunidades utópicas (como a cidade
fisiocrática de Ledoux, em 1804) em oposição aos referenciais anti-classicistas, anti-racionais e
anti-utilitários da reforma cristã (esboçados pela primeira vez nos Contrastes, de Pugin, em
1836). Diante disso, a cultura burguesa, na tentativa de encontrar alternativas à exploração na
divisão do trabalho, às condições precárias e alarmantes da produção industrial (tanto do ponto
de vista social, como na qualidade estética dos produtos), oscilou entre as utopias totalmente
planejadas (enquanto sociedades ideais e “futuristas”) e àquelas que propunham uma negação da
realidade histórica efetiva da produção mecânica.6
O revivalismo gótico como representação simbólica da tradição arquitetônica inglesa
Schorske aborda a trajetória de três intelectuais ingleses – Coleridge, Pugin e Disraeli, que
tinham como principal convicção a exaltação da Idade Média – fundamentada essencialmente na
3 Id., ibid., p.13 4 SCHORSKE, Carl. Op. Cit., p.62 5 BRESCIANI, Maria Stella M. Metrópoles: as faces do monstro urbano (as cidades do século XIX). Revista Brasileira de História. São Paulo. Vol.05, nº 8/9, 1985. p. 42 6 FRAMPTON, Kenneth. História Crítica da Arquitetura Moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. X
Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP-USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.
3
religião, visto que a destruição da autonomia do poder religioso pela dinastia Tudor e pela
aristocracia Whig (no século XVIII), teria causado um rompimento daquilo que seria o passado
ideal da Inglaterra. Dentro desse espírito medieval e como bons defensores do gótico, além do
gosto pelo exótico, o grotesco e o sublime, a concepção da civilização medieval inglesa era tida
como uma cultura integrada e um símbolo da boa sociedade, representando, portanto, uma
antítese da era industrial vitoriana. Dessa forma, ao tratar as virtudes da cultura medievalista
como um “paraíso perdido”, os críticos ingleses ampliaram ainda mais o abismo entre o passado
e o presente que pretendiam transcender.7
Na crítica cultural de Augustus Welby Pugin8, o ato de construir refletia a ética dos construtores,
assim como o belo deveria manifestar o bem. A serviço de sua fé católica, Pugin utilizava
imagens representativas do desenho das cidades no século XV, afirmando que a arquitetura
gótica - ao contrário do classicismo pagão, “apontava para Deus e saltava para o céu” e,
portanto, era cristã. A utilização da linguagem clássica dos templos gregos, por sua vez, embora
estivesse intimamente ligada aos ritos religiosos, não deixava de ser uma adaptação dos cânones
da arquitetura pagã no seio de uma sociedade cristã, sobretudo a partir do Renascimento, o que
Pugin caracterizou como “uma falsa idolatria e como um sintoma de uma impotência
arquitetônica e cultural particular.”9Acreditava, portanto, que o gótico era a forma
arquitetônica que correspondia ao “verdadeiro sentimento cristão”,10propondo a retomada de
um ideal de arquitetura, tal como nos século XIII e XIV, em harmonia com os ideais religiosos e
sociais. Sua representação de uma cidade fabril de 1840, por exemplo, nos mostra uma dura
condenação à industrialização inglesa, quando ele substitui as altivas agulhas das torres e as
árvores de uma “cidade católica”, de 1440, por chaminés fumacentas e fábricas grotescas.
Adotando um princípio universal para a cultura arquitetônica da época, como reforça Schorske,
e “fiel ao seu princípio muito secular de que a história da arquitetura é a história do mundo,
Pugin examinou os objetivos e os valores que as formas de construção medieval
encarnavam.”11
Embora estivesse imbuído de um sentido religioso e nostálgico sobre a cidade medieval, o
arquiteto propôs a volta de uma estética arquitetônica em consonância com os princípios do
funcionalismo moderno, uma vez que o estilo neogótico estava em perfeita simbiose com a
arquitetura do ferro. Diferentemente da cultura neoclássica, onde a engenharia quase sempre
desempenhava um papel secundário nas edificações, na cultura neogótica “a forma 7 SCHORSKE, Carl. Op. Cit., p.89 8 No manifesto intitulado: “Contrastes ou, um paralelo entre os nobres edifícios da Idade Média e os prédios correspondentes do presente, mostrando a decadência atual do gosto”. Pugin se converteu ao catolicismo em 1834. 9 SCHÜTZE, Petra L.(org.) Teoria da Arquitectura: do Renascimento aos nossos dias. Köln: Taschen, 2003. p.456 10 CHOAY, Françoise. O Urbanismo: utopias e realidades. 4.ed. São Paulo: Perspectiva, 1997. p.117 11 SCHORSKE, Carl. Op. Cit., p.101
Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP-USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.
4
arquitetônica podia ser essencialmente uma forma estrutural (...) revelando uma coincidência
formal entre as estruturas metálicas e as modenaturas dos edifícios góticos.”12 Considerando
também as construções enquanto “organismos vivos”13, a finalidade deveria determinar a forma
do edifício, enquanto a estrutura combinaria a forma, os ornamentos e os materiais utilizados de
acordo com as necessidades do projeto. Entretanto, para Pugin o edifício gótico não era apenas
mais um estilo alternativo à miscelânea estética e historicista à disposição dos arquitetos do
século XIX, mas representava principalmente “a verdade da fé que fizera da Inglaterra uma
comunidade na Idade Média.”14
John Ruskin, em sua obra As Pedras de Veneza,15 sedimentou a base teórica do medievalismo
romântico tardio para Morris ao mostrar, como Pugin, a superioridade do gótico sobre a estética
da antiguidade greco-romana e a busca por um autêntico estilo moderno. Como outros
intelectuais ingleses, Ruskin também teria idealizado a Idade Média como um refúgio de
inspiração sentimental e nacionalista em meios às inquietações culturais da era vitoriana. No seu
universo de trabalho, buscava a unidade entre artista e artesão, arte e ofício, beleza e utilidade.
Assim como Pugin, a religiosidade estava presente num sistema que tratava a arquitetura como
uma expressão moral e onde o esteticismo era “concebido como remédio para os problemas
sociais”. Atento ao ornamento, às minúcias e aos detalhes construtivos, Ruskin afirmava ainda
que “uma escola é superior à outra quando seu trabalho torna seus produtores mais felizes.”16
Apresentando também grande domínio sobre as artes decorativas, Morris promoveu um intenso
retorno da atividade artesanal abrindo, inclusive, uma sociedade comercial destinada à criação
diferenciada de tais artefatos, em 1861.17 Foi um autêntico renovador artístico e, diferentemente
de seus conterrâneos, ele compreendeu que a produção mecânica apontou novos problemas para
a arte, mas que a simples melhoria do desenho não resultaria num objeto esteticamente bem
produzido. Pevsner explica que, longe de ser um inventor de formas decorativas, Morris teria se
inspirado em modelos e padrões antigos utilizados em tapeçarias, no desenho de móveis, pisos,
tetos e paredes, promovendo uma originalidade em seu trabalho justamente na escolha dos
ornamentos ou formas que lhe interessavam, mas não fazendo simplesmente uma cópia ou
12 PATETTA, Luciano. Op. Cit., p.19 13 Conforme a interpretação de Viollet-le-Duc, ao analisar o “esqueleto” de uma catedral gótica como um conjunto de nervos e juntas, descrevendo nos Entretièns, de 1863, o sistema de abóbadas como uma estrutura de painéis sustentados por costelas, similar a uma estrutura com painéis de vidro sustentados por um esqueleto metálico. 14 SCHORSKE, Carl. Op. Cit., p.102 15 Publicada originalmente em 1853, Ruskin faz uma crítica à divisão do trabalho capitalista e à degradação do operário no maquinário industrial, comparando o artesanato tradicional ao trabalho mecânico da produção em massa. 16 RUSKIN, John. As Pedras de Veneza. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p.XV 17 A firma Morris, Marshall & Faulkner - operários de Belas-Artes em Pintura, Gravura, Móveis e Metais, preconizava, literalmente, fazer com as próprias mãos uma arquitetura e objetos artísticos correspondentes aos seus ideais
Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP-USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.
5
imitação. A clareza e a sobriedade visíveis em seus desenhos demonstram uma fidelidade aos
estilos decorativos, mais do que simplesmente um retorno superficial ao passado histórico. Com
uma unidade lógica de composição e um estudo detalhado dos movimentos da natureza –
aspecto que seria marcante na Art Nouveau – Morris foi capaz de influenciar jovens artistas,
arquitetos e amadores que passaram a se dedicar inteiramente ao artesanato.18Desenhando e
produzindo uma infinidade de papéis de parede, cortinados e tapeçarias, suas preocupações,
entretanto, “tornaram-se gradativamente mais públicas e menos poéticas e artesanais (...) era
seu dever encarregar-se publicamente das causas socialistas e preservacionistas de Ruskin.”19
Vale lembrar ainda que, na construção de sua residência – a Red House20, sob encomenda de
Philip Webb, adotou-se o ideal medieval de uma casa simples, mas com uma linguagem estética
unificadora, do desenho de mobiliário aos materiais utilizados nas fachadas – uma opção oposta
ao modelo de casa tipicamente eclético. Interiormente, seguindo à risca seus preceitos, além da
mobília, as paredes foram pintadas com ilustrações de romances clássicos e medievais mas,
como bem destaca Schorske, a casa já era moderna em sua concepção: “uma precursora
audaciosa de projeto unificado – da planta ao cinzeiro, uma única concepção harmoniosa e
quase tirânica de beleza residencial.”21
Cultura urbana em Viena: o ideal nacional e o esteticismo histórico no desenho da
Ringstrasse
Como em outros centros europeus, Viena se preparava para implantar uma arquitetura pública
monumental dentro dos modelos historicistas adotando, além da funcionalidade tipológica nos
edifícios públicos, uma exibição dos valores de seus patronos.
Após a revolução de 1848, a determinação de um novo espaço, com a substituição da muralha
central por um anel viário contemplativo, se apresentava dentro da capital austríaca dividida em
duas frentes: de um lado, a Corte restaurada e recém-fortalecida, juntamente com as forças
aristocráticas, eclesiásticas e militares; de outro lado, a ascensão de uma burguesia liberal, cheia
de aspirações e que, através de manobras políticas, buscava conseguir espaço e poder na capital
austríaca. Como bem ressalta Schorske, junto à elite cultural vienense, com sua rara mescla de
provincianismo e cosmopolitismo, tradicionalismo e modernismo, tornou-se desejável que a
sede do poder imperial se transformasse no “centro irradiador de uma consciência moderna, 18 PEVSNER, Nikolaus. Os Pioneiros do Desenho Moderno: de William Morris a Walter Gropius. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p.41 19 FRAMPTON, Kenneth. Op. Cit., p. 45. Em 1877, Morris fundou a primeira Society for the Protection of Ancient Building (SPAB), com a premissa de adotar uma conservação histórico-documental dos monumentos ingleses. 20Ao contrário das referências da Itália renascentista ou da França Barroca, a inserção de detalhes góticos – como arcos ogivais, tetos altos, irregularidade das formas, além do tijolo à vista nas fachadas, poderia ser vista como um descaso decorativo, uma vez que o estuque trabalhado e pintado foi um requinte decorativo do Neoclassicismo. 21 SCHORSKE, Carl. Op. Cit., p.111
Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP-USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.
6
transnacional e pan-austríaca. As instituições da Corte – teatros, museus, óperas – deveriam
chegar ao público de todo o Império para criar uma cultura uniforme.”22
A partir de 1860, as instituições do Estado passaram por um processo de transição que, além de
atenderem às exigências da Constituição e aos valores culturais da classe média23, deram início
à remodelação da cidade à sua própria imagem. O ponto de partida dessa reconstrução foi
justamente a Ringstrasse – vasto cinturão aberto onde seria levantado um complexo de edifícios
públicos e residências particulares, separando a antiga cidade interna (ainda amuralhada) das
áreas suburbanas. A transposição de uma “cidade-dentro-da-cidade ideal”24 foi ocorrendo
lentamente. Até meados do século XIX, a antiga esplanada, que representava o local de defesa e
poderio militar, passaria a ser o símbolo da representação política e cultural de Viena, assim
como a era Vitoriana remetia às transformações sociais inglesas e o Segundo Império às
reformas urbanas de Haussmann, em Paris.
Ao contrário do centro da cidade – marcado por elegantes palácios aristocráticos e pelas igrejas,
ao cenário da Ringstrasse seriam incorporados os órgãos do governo constitucional e os
edifícios da alta cultura – prédios monumentais dispostos ao longo de seu trajeto. Com isso, a
linguagem eclética passou a ter um sentido não apenas estético, mas sócio-cultural, pois se
anteriormente a produção arquitetônica procurava apenas “exprimir a grandeza aristocrática e
a pompa eclesiástica, agora se tornava propriedade comum aos cidadãos, exprimindo os vários
aspectos do ideal cultural burguês.”25
De qualquer maneira, a cultura permaneceu como uma extensão do poder monárquico, uma vez
que na proposta de Gottfried Semper, a unificação das áreas da Corte e do museu, com os arcos
triunfais pontuados no grande projeto, representavam plenamente o domínio simbólico do
império sobre o espaço cívico da capital.26
Como referência estética desse espaço, “as culturas históricas do passado – clássica, medieval,
renascentista e barroca – forneceram o vocabulário arquitetônico simbólico no qual se
expressou a disputa pela representação no espaço.”27
Schorske ainda considera uma atitude moderna o uso da história e seus elementos de maneira
eclética dentro da produção arquitetônica – embora não pudesse ser chamada de modernista por
não fazer um ruptura histórica. Entretanto, os críticos já apontavam as principais contradições
na concepção da Ringstrasse: primava-se pela representação estilística histórica ou pela
22 Id., ibid., p.128 23 Intelectuais como arquitetos, historiadores e historiadores da arte foram chamados para serem consultores dos conselhos do governo. 24 SCHORSKE, Carl. Op. Cit., p.131 25 SCHORSKE, Carl. Viena fin-de-siècle: política e cultura. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p.50 26 Id., Pensando com a História..., p.133 27 Id., ibid., p.21
Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP-USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.
7
utilidade funcional? Esta nova proposta urbanística deveria se apresentar como um produto
orgulhoso de uma cultura histórica ou como uma capital destinada a um novo homem?
Dois arquitetos exerceram papel de destaque na discussão dos projetos para a Ringstrasse:
Camillo Sitte – defensor do historicismo e da concepção clássica de cidade, e Otto Wagner,
partidário de um futurismo funcional e do racionalismo da vida moderna.
Embora Sitte levasse em conta os aspectos técnicos e racionais da construção urbana, a
concepção moderna de eficiência e praticidade se opunha ao emocionalmente tocante, ao
traçado pitoresco, enfim, à espacialidade marcada pelas formas livres do tecido urbano
medieval, com suas ruas e praças irregulares e que, segundo ele, não deveria surgir na
prancheta, mas “in natura”. Assim, o traçado da cidade para Sitte não deveria ser tratado apenas
como uma questão técnica, mas prevendo a valorização essencial dos aspectos estéticos. Para
ele, o urbanismo era, acima de tudo, uma criação artística, um todo orgânico, uma “obra de arte”
nas suas três dimensões, assim como a arquitetura.28
Otto Wagner, entretanto, construiu sua trajetória praticamente na vertente oposta: concentrando-
se nos fatores não estéticos do desenvolvimento urbano e nos ideais da vida moderna, ele
procurou enfatizar as formas de comunicação na cidade, propondo um controle social e sanitário
(visíveis nas principais reformas urbanas do período), além da hierarquia no uso dos terrenos.
Sua proposta para Viena priorizava uma expansão ilimitada, com cinturões concêntricos
rodoviários e ferroviários, atravessados por artérias radiais.
Com isso, os conceitos de representação e embelezamento urbano já não teriam significado
algum no planejamento da Ringstrasse, na década de 1890, uma vez que a necessidade tornou-se
“a única senhora da arte”. Wagner também acreditava que as grandes transformações sociais
sempre resultavam em novos estilos, mas Schorske explica que, inevitavelmente, a partir de
meados do século XIX, este processo fora interrompido: “o ritmo de transformação social se
acelerara tanto que o desenvolvimento da arte não conseguiu acompanhá-lo. Incapazes de
elaborar um estilo que expressasse as necessidades e as perspectivas do homem moderno, os
arquitetos desenterraram todos os estilos históricos passados para preencher esse vazio.”29
Como resultado, o espírito historicista e a concepção social de cidade, tão valorizados por Sitte,
na década de 1870 deram lugar aos projetos de “engenharia urbana” e, futuramente, à
consolidação do movimento da Secessão Vienense30 – uma ramificação do estilo Art Nouveau,
que já começava a despontar por toda a Europa. Foi nesse período de transição cultural que 28 SCHÜTZE, Petra L.(org.) Op. Cit., p.660 29 SCHORSKE, Carl E. Viena fin-de-siècle...,p. 88-89 30 A Secessão iniciou-se em 1897, quando um grupo de artistas e intelectuais formaram uma associação que pretendia romper com os cânones tradicionais da Academia, despontando a Áustria para as vanguardas européias, especialmente nas artes plásticas. Seu lema – “à época sua arte, à arte sua liberdade”, dentro de uma ideologia nitidamente anti-histórica, buscou novos rumos para a introdução de um estilo moderno.
Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP-USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.
8
Wagner executou os primeiros projetos de estações, viadutos, pontes e túneis, além dos edifícios
residenciais e comerciais. Entre 1868 e 1873, a diferenciação das fachadas e da espacialidade
interna tornou evidente o desejo pela diversidade social entre os membros da alta burguesia
vienense – formada por integrantes da aristocracia, burocratas, comerciantes e profissionais
liberais. Os industriais têxteis também representavam o grupo com maior número de
proprietários e inquilinos da Ringstrasse. Logo, essa mescla dos conjuntos residenciais com os
imponentes edifícios públicos formou uma ambientação urbana única e afirmativa na Viena
liberal do final do século XIX.
Quanto à função da arquitetura nessa passagem para o século XX, além do movimento da
Secessão, imbuída pelo desejo de manifestar uma personalidade individual e sensorial, mas
ainda vinculada à cultura aristocrática; um segundo movimento, liderado por Adolf Loos,
propôs um funcionalismo ético racionalista, com a casa sem adornos e a simplicidade estética
das fachadas (em oposição ao desenho ornamental), além da modéstia do homem privado.
Assim como Wagner, embora fosse partidário da racionalidade da vida moderna (sobretudo por
ter morado nos Estados Unidos, familiarizando-se com as primeiras conquistas da Escola de
Chicago), Loos afirmava que toda cultura apresentava certa continuidade com seu passado.
Portanto, seria inaceitável para ele a idéia romântica de que mesmo um indivíduo muito
talentoso pudesse transcender os limites históricos de sua própria época. 31
Finalmente, as críticas à Ringstrasse logo viriam à tona: considerando a concepção do seu
traçado como essencialmente barroco, sem um ponto de destaque ou um foco principal, o
cinturão edificado tornou-se uma área de isolamento social, onde as árvores alinhadas ao longo
do Anel favoreceram ainda mais a supremacia da rua, reforçando o aspecto “ilhado”dos
edifícios - projetados dentro de uma pluralidade de estilos arquitetônicos.32
Entre outros aspectos, a ostentação dos majestosos edifícios públicos encobriu facilmente os
grandes prédios residenciais, que ocupavam a maior parte da área e estavam distribuídos
conforme os interesses econômicos e os valores culturais da elite vienense.
Considerações finais
Através das transformações culturais e políticas na Inglaterra e na Áustria durante o século XIX,
foi possível observar como o ecletismo arquitetônico, ancorado num passado historicista, e uma
nova estética urbana estiveram intimamente ligados às reivindicações sociais, à legitimação do
31 FRAMPTON, Kenneth. Op. Cit., p. 105 32 Como a inspiração grega no edifício do Parlamento, de Hansen; gótica, na Rathaus, de Schmidt; renascentista na Universidade, de Ferstel; e barroca no Burgtheater, de Gottfried Semper.
Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP-USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.
9
poder de classes e, principalmente, às inquietações trazidas pelo desejo de modernidade, dentro
de um panorama que ainda privilegiava os valores da tradição artística.
Enquanto a Inglaterra representava o desejo de progresso – estruturado na produção industrial,
valorizando as virtudes morais e as inovações alcançadas pelas técnicas de engenharia, apesar
das manifestações contrárias que buscavam justamente reavivar a produção artesanal e a
glorificação da arte medieval – através do estilo neogótico; em Viena, a produção urbanística e
arquitetônica se dividiu entre os adeptos da praticidade moderna – evidente no posicionamento
de Wagner e Loos, e aqueles que se utilizaram do valor dos estilos históricos como forma de dar
status à burguesia e legitimar o poder monárquico, identificado na concepção da Ringstrasse.
No panorama inglês, vale ressaltar que o desprezo estético de Ruskin pela produção industrial e
as preocupações sociais de Morris impossibilitavam-lhes de apreciar as características positivas
dos novos materiais. Recalcados pela perda do prazer no trabalho artesanal, eram capazes de
enxergar apenas o que a Revolução Industrial conseguiu destruir, embora Morris tenha
percebido algumas vantagens na produção em série.
Por outro lado, os engenheiros estavam demasiadamente ocupados com suas “emocionantes
descobertas”, como novas soluções estruturais e de infra-estrutura urbana, tornando-os
incapazes de perceber as disputas e os problemas sociais. Com isso, engenharia e arquitetura não
puderam unir forças até o final do século XIX, enfrentando desafios completamente diferentes.
Com os desdobramentos da Art Nouveau e da Art Déco, nas primeiras décadas do século XX, é
que estes dois campos de atuação - juntamente com as vanguardas artísticas – chegarão a uma
nova síntese que resultará no Movimento Moderno. Embora a inspiração do movimento Arts &
Crafts estivesse presente na Secessão Vienense, o revivalismo gótico, o valor do trabalho
artesanal e o impulso reformista social não foram ideais compartilhados pelos artistas austríacos.
Schorske sintetiza: “não estavam alienados de sua sociedade – como suas almas irmãs na
França, nem se engajavam nela, como na Inglaterra. Eles careciam do amargo espírito anti-
burguês dos franceses e do caloroso impulso melhorista dos ingleses (...) Dessa forma, o jardim
da beleza da jovem Áustria [estava] estranhamente suspenso entre a realidade e a utopia.”33
Sob o aspecto moral, tanto a alta burguesia vienense como as classes médias vitorianas
caracterizavam-se pela convicção, a virtuosidade, a repressão e, no âmbito político,
importavam-se com o “império da lei”. Ambas as culturas estavam em sintonia com a
valorização do progresso social através da ciência, da educação e do trabalho diário.
No entanto, dois fatores distinguiram a burguesia austríaca da inglesa e francesa: a elite
vienense não destruiu, mas também não se fundiu com a aristocracia mantendo, inclusive, uma
33 SCHORSKE, Carl. Viena fin-de-siècle...,p. 285-286
Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP-USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.
1
profunda lealdade ao imperador – como um “protetor paterno” distante, mas indispensável.
Somado a isso, cultura, arte e religiosidade se entrelaçavam também no âmbito da produção
arquitetônica: “profundamente católica, era uma cultura plástica, sensual (...) A cultura
austríaca tradicional, ao contrário da alemã, não era moral, filosófica ou científica, mas
basicamente estética. Suas maiores realizações estavam nas artes aplicadas e de espetáculo:
arquitetura, teatro e música.”34
Como descreve Schorske, Camillo Sitte considerava que a “fria cidade moderna de régua e
cálculo e dos bairros miseráveis, dominada pelo tráfego, a praça pinturesca – psicologicamente
reconfortante, pode redespertar memórias do passado do burgo desaparecido.”35Essa idéia,
apesar de estar vinculada à herança artística de um passado já ausente, também não poderia ser
considerada uma mera nostalgia romântica. Diferentemente da Inglaterra, onde Ruskin e Morris
procuravam reavivar a importância do trabalho artesanal em plena Revolução Industrial, na
Áustria, o panorama social referente ao final do século XVIII ainda estava totalmente presente
em meados do século XIX.Portanto, se a questão primordial para Sitte era a preservação de uma
sociedade artesanal que, de fato, ainda estava viva, mas mortalmente ameaçada, por outro lado,
sob os aspectos da funcionalidade de projeto, com a separação entre estrutura e estilo, os
materiais passaram a determinar o desenho e a forma dos edifícios, embora às vezes tivessem
uma função ornamental, apresentando-se como uma “pele”, um revestimento estético que
deveria simbolizar a elegância e a glorificação da vida moderna.
Mesmo assim, a simplificação geométrica, o uso do concreto e de materiais leves (geralmente
trabalhados em ferro), a modulação das esquadrias e o rigor espacial marcaram não apenas uma
nova tecnologia, mas uma concepção artística original adotada por Otto Wagner. Destituída da
natureza romântica preconizada por Sitte, com seus espaços contidos e a valorização das praças,
privilegiou-se a primazia da rua e a movimentação urbana - sedimentada no homem burguês
com pouco tempo, muito dinheiro e gosto pelo monumental.
Como aspecto em comum, podemos destacar que ambos buscavam expressar a
monumentalidade urbana da nova Viena, que poderia ser alcançada através de uma beleza
historicista ou da arte funcional e utilitária da vida moderna.
Enfim, Adolf Loos, ao ser questionado se haveria alguma civilização na virada do século XX
que adotasse o sentido prático e belo da cultura grega, afirma: “os ingleses e os engenheiros
são nossos gregos. É deles que adquirimos nossa cultura; deles, ela se espalha pelo globo
todo.”36
34 Id. ibid., p.29 35 Id., Viena fin-de-siècle..., p.88 36 Id., Pensando com a História..., p. 188
Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP-USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.
1
Iconografia
1. Augustus Welby Pugin – comparação de uma cidade católica em 1440 (abaixo) e como estaria a mesma cidade em 1840. Extraído de Contrasts. Fonte: SCHORSKE,
Carl E. Pensando com a História: indagações na
passagem para o Modernismo. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000. p.99
2. John Ruskin – Estudo comparativo de arcadas e janelas ogivais das catedrais de Caen, Bayeux, Rouen e Beauvais. Londres, 1894. Fonte: SCHÜTZE, Petra L.(org.) Teoria da
Arquitectura: do Renascimento aos nossos dias.
Köln: Taschen, 2003. p.465
Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP-USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.
1
3. Camillo Sitte - projeto de praça em frente à Votivkirch, seguida de trecho da Ringstrasse, em Viena. À esquerda, uma praça fechada, em forma de átrio e rodeada por arcadas, representando um acesso monumental. À direita, implantação dos edifícios monumentais: Universidade, Parlamento, Câmara Municipal e o Burgtheater. Fonte: SCHÜTZE, Petra L.(org.) Teoria da Arquitectura: do Renascimento aos nossos dias. Köln: Taschen, 2003. p.667
4. Vista da Ringstrasse, marcada pela imponência do Parlamento, a Prefeitura, a Universidade e o Teatro Municipal. Fonte: SCHORSKE, Carl E. Pensando com a História: indagações na passagem para o Modernismo. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000. p.138