autoprecedente como regra de razÃo …cio mosena.pdf · lógica jurídica como espécie de...

151
COMPLEXO DE ENSINO SUPERIOR MERIDIONAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM DIREITO PPGD CURSO DE MESTRADO EM DIREITO AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO PRÁTICA PARTICULAR DE RACIONALIDADE JURÍDICA MAURÍCIO MOSENA Passo Fundo, outubro de 2015

Upload: lexuyen

Post on 28-Sep-2018

217 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

COMPLEXO DE ENSINO SUPERIOR MERIDIONAL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM DIREITO – PPGD

CURSO DE MESTRADO EM DIREITO

AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO PRÁTICA

PARTICULAR DE RACIONALIDADE JURÍDICA

MAURÍCIO MOSENA

Passo Fundo, outubro de 2015

Page 2: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

COMPLEXO DE ENSINO SUPERIOR MERIDIONAL - IMED

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM DIREITO – PPGD

CURSO DE MESTRADO EM DIREITO

AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO PRÁTICA

PARTICULAR DE RACIONALIDADE JURÍDICA

MAURÍCIO MOSENA

Dissertação submetida ao Curso

de Mestrado em Direito do

Complexo de Ensino Superior

Meridional - IMED, como

requisito parcial à obtenção do

Título de Mestre em Direito.

Orientador: Professor Doutor José Renato Gaziero Cella

Passo Fundo, outubro de 2015

Page 3: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

CIP – Catalogação na Publicação

M898a Mosena, Maurício

Autoprecedente como regra de razão prática particular de racionalidade jurídica / Maurício Mosena. – 2015.

151 f. : il. ; 30 cm.

Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade Meridional – IMED, Passo Fundo, 2015.

Orientador: Professor Doutor José Renato Gaziero Cella.

1. Direito civil. 2. Decisão judicial. 3. Poder judiciário. I.Cella, José Renato Gaziero, orientador. II. Título.

CDU: 347.955(81)

Catalogação: Bibliotecária Angela Saadi Machado - CRB 10/1857

Page 4: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua
Page 5: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

3

Page 6: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

4

DEDICATÓRIA

À minha família, que preenche o sentido da minha existência.

Page 7: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

AGRADECIMENTOS

A gratidão é um comportamento que valorizo muito. Por essa razão, se por acaso

alguém for esquecido, desde já peço desculpas. Mas saiba que se de alguma

forma colaboraste para o presente trabalho, sinta-se agraciado.

Primeiramente, agradeço à Deus, em quem creio, não da mesma forma que

ontem, mas sempre de uma forma sincera.

Em segundo lugar, quero agradecer à minha esposa, Patrícia, pela paciência e

ajuda nessa empresa que resulta no presente trabalho. Seu apoio foi uma das

maiores motivações para a conclusão dessa pesquisa.

Do mesmo modo, mas com ar de pedido de desculpas, aos meus filhos, Teodoro

e Rebeca, pela ausência nesses últimos dois anos, anos que nunca mais voltarão

na vida de vocês. Mas compensarei.

No âmbito acadêmico, meu agradecimento especial é direcionado ao meu

orientador, Dr. José Renato Gaziero Cella, quem rompeu os horizontes do meu

entendimento sobre o direito e a racionalidade.

Do mesmo modo, não poderia deixar de agradecer à Faculdade Meridional –

IMED pela oportunidade de fazer esse Mestrado “em casa”, agradecimento que

também é estendido aos demais professores do PPGD e aos colegas de Curso,

em especial Cassiano.

Também gostaria de agradecer aos meus colegas de escritório e da Escola de

Direito pelos ouvidos para os discursos em defesa da ideia dessa dissertação, e

que sempre reverberaram em acréscimos de significado relevante.

Por fim, agradeço ao colega de IMED Fahad pelas explicações de lógica

computacional.

Page 8: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

EPÍGRAFE

[...] quanto maior a sabedoria,

maior o sofrimento;

e quanto maior o conhecimento,

maior o desgosto.

[Eclesiastes]

Page 9: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

RESUMO

No âmbito da Linha de Pesquisa “Fundamentos do Direito e da Democracia”, a

presente dissertação, a partir do método hipotético-dedutivo, investiga a

racionalidade jurídica das decisões judiciais em contraste com a

discricionariedade dos órgãos julgadores, largamente debatida pela Teoria do

direito. Em razão das diferenças filosóficas e conceituais do direito, a sua

aplicação e, consequentemente da discricionariedade nos casos em que o

sistema normativo não provê solução segura, é inviável definir um critério

universal de racionalidade para aferição da correção das decisões judiciais.

Entretanto, se consideradas as razões de um órgão julgador a partir da estrutura

formal do seu raciocínio em determinado caso, pode-se cogitar uma regra de

razão prática particular desse julgador a esses casos. Essa regra seria capaz de

aferir, de forma descritiva e analítica, a coerência das decisões desse mesmo

julgador em casos análogos. Desse modo, a discricionariedade das decisões, que

debilitam preceitos fundamentais de segurança jurídica e de igualdade, pode ser

controlada, ou ao menos identificada em um determinado conjunto de decisões,

pela técnica do autoprecedente. Com o incremento das Tecnologias de

Informação e de Comunicação, e diante da possibilidade de criação de uma regra

de razão prática particular a um órgão julgador para casos determinados, um

sistema eletrônico informático, que se utiliza de programação lógica, pode ser

capaz de aferir a racionalidade do órgão julgador a partir da sua própria regra de

razão prática. Essa possibilidade seria uma ferramenta útil na garantia dos

valores democráticos da separação das funções e da imparcialidade dos juízes e

tribunais na aplicação do direito a casos análogos, o que contribui no

aprimoramento do Estado democrático de direito.

Palavras-chave: Decisão Judicial. Racionalidade. Lógica Jurídica.

Autoprecedente. Regra de Razão Prática Particular. Sistema Eletrônico de

Aferição.

Page 10: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

ABSTRACT

Inside the Research Line “Fundaments of Law in Democracy”, this essay, through

the hypothetical-deductive method, investigates the juridical rationality of the

decisions in contrast with the discretion from judging institutions, largely debated

by Law’s Theory. Because of the philosophical and conceptual differences in Law,

its application, and, consequently, its discretion in cases in which its normative

system has no solution, it is impracticable to define a universal criteria of rationality

in order to check the accuracy of juridical decisions. However, if the reasons are

considered in a judging institution from a formal structure of its reasoning in a

case, a practical reasoning rule can be thought in particular to this specific judge in

these cases. This rule would be able to check, analytically, the coherence of

decisions from this specific judge in analog cases. In this way, the discretion from

decisions, which hurt these fundamental norms of juridical security and equality,

can be controlled, or, at least, identified in a determined group of decisions, its

autoprecedent. With the technological increase of Information and Communication

Technologies, and facing the possibility of the creation of a rule to particular

practical reasoning to a specific judging institution for a certain fact, an informatics

system, which uses logical programming, may be able to check the rationality from

the judging institution from its own rule of practical reasoning. This possibility

would be a useful tool in granting democratic values of the separation of powers

and the impartiality of judges and courts in the application of the law to analog

cases, what praises the Democratic State of Law itself.

Key-words: Juridical Decision. Rationality. Juridical Logic. Autoprecedent. Rule of

Practical Reasoning. Electronic System of Checking.

Page 11: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

LISTA DE FIGURAS

FIGURA Nº 1 Habeas Corpus nº 75.338/RJ

FIGURA Nº 2 Habeas Corpus nº 80.949/RJ

FIGURA Nº 3 Recurso Extraordinário nº 390.840/MG

FIGURA Nº 4 Recurso Extraordinário nº 363.852/MG

......

Page 12: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO......................................................................................1

CAPÍTULO 1.........................................................................................4

TEORIA DO DIREITO E DECISÃO JUDICIAL...................................4

1.1 POSITIVISMO, DEBATE HART-DWORKIN E DECISÃO JUDICIAL...............8 1.2 A TESE DA "ÚNICA DECISÃO CERTA" DE DWORKIN.................................18 1.3 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA E DECISÃO JUDICIAL..................................23 1.4 REALISMO JURÍDICO NORTE AMERICANO E DECISÃO JUDICIAL.........33

CAPÍTULO 2.......................................................................................45

LÓGICA JURÍDICA E PRECEDENTES............................................45

2.1 LÓGICA JURÍDICA.........................................................................................46 2.1.1 LÓGICAS ANALÍTICA E DIALÉTICA ....................................................................46 2.1.2 LÓGICA JURÍDICA ANALÍTICA ...........................................................................48 2.1.3 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA..............................................................................61 2.2 PRECEDENTES..............................................................................................72 2.2.1 PRECEDENTES, "COMMON LAW" E "STARE DECISIS" .......................................72 2.2.2 PRECEDENTES, SEGURANÇA JURÍDICA E IGUALDADE........................................79

CAPÍTULO 3.......................................................................................89

AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO PRÁTICA PARTICULAR DE RACIONALIDADE JURÍDICA.............................89

3.1 DECISÕES COERENTES...............................................................................91 3.2 AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO PRATICA........................96 3.2.1 CASOS DE INCOERÊNCIA ANALISADOS PELA TÉCNICA DO AUTOPRECEDENTE102 3.3 SISTEMA ELETRÔNICO DE AFERIÇÃO DO AUTOPRECEDENTE.........117

CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................125

REFERÊNCIAS................................................................................131

Page 13: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

INTRODUÇÃO

A presente pesquisa teve como objeto a investigação da racionalidade

jurídica utilizada pelos órgãos julgadores nas decisões proferidas na práxis

cotidiana dos tribunais. Essa proposta adere à Linha de Pesquisa nº 1 do

Programa de Pós-Graduação “Stricto Sensu” em Direito do Complexo de Ensino

Superior Meridional, denominada “Fundamentos do Direito e da Democracia”.

Justifica-se no fato de as decisões judicias exercerem papel relevante no

contexto democrático brasileiro, por vezes como ferramenta propícia para a

manutenção dos ideais democráticos expressos na Carta Política Constitucional

brasileira, mas também como instrumentos de ofensa do princípio da separação

das funções, da segurança jurídica e da igualdade. Pretende-se, portanto,

investigar a racionalidade desse instrumento democrático pela perspectiva de

tais axiomas, conquistados nas revoluções liberais a grande custo, e que são

fundantes do Contrato Social que estrutura a sociedade moderna.

Como objetivo, partindo de uma visão positivista do direito, a pesquisa

buscou resgatar a racionalidade jurídica como regra prática da decisão judicial, e

isso para minimizar a discricionariedade visível das decisões judiciais. Não de

uma forma generalista, como as teorias lógicas já tentaram fazê-lo, mas uma

racionalidade aplicada de uma forma particular, considerada a regra de razão

declarada na argumentação jurídica de cada julgador.

Para tanto, objetiva-se, especificamente, a) demonstrar que a teoria do

direito não foi capaz de conter a discricionariedade exercida pelos órgãos

julgadores ao proferirem as decisões judiciais; b) investigar os fundamentos da

racionalidade que deu origem ao estudo da lógica jurídica, tanto do prisma

analítico quanto dialético, além de sua conexão com a teoria dos precedentes e,

enfim; c) propor a possibilidade de utilização de uma regra de razão prática, que

utilize lógica formal, para aferição da racionalidade das decisões, e se isso

poderia ser realizado por um sistema eletrônico computacional.

A atuação dos órgãos jurisdicionais brasileiros não tem encontrado na

sua prestação jurisdicional a legitimidade que o Estado necessita para o exercício

dessa função essencial. O grande volume de processos e a falta de infraestrutura

Page 14: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

2

organizacional e pessoal tem sido alvo de críticas, tanto no seu aspecto

quantitativo quanto qualitativo. Além disso, a doutrina de “favores” que caracteriza

as relações de poder no território brasileiro, somada à influência do poder

econômico nas decisões judiciais, justifica a preocupação de controlar as

decisões judiciais naquilo que não feriria a própria autonomia que essa função

estatal exige. Daí por que a lógica jurídica fornece conceitos e métodos capazes

de aferir essa racionalidade. A racionalidade jurídica, portanto, combate a

discricionariedade judicial, por sua vez ofensora da segurança jurídica e da

igualdade de tratamento dos indivíduos, problemática essa que acaba

potencializada pelo assustador número de decisões que são proferidas

diariamente.

A partir desse contexto, poderia existir uma regra de razão prática

formal para aferir a racionalidade das decisões de um órgão julgador?

Utilizando a coerência como parâmetro aferidor de racionalidade, cria-

se uma hipótese de utilização de uma regra de razão prática baseada no

precedente horizontal historicamente desenvolvido pelo próprio órgão julgador,

portanto, uma regra formal de aferição de coerência e racionalidade a partir do

autoprecedente de quem profere essas decisões judiciais.

Principia–se, no Capítulo 1, investigando quais foram os contornos do

debate dentro da teoria do direito envolvendo a aplicação do direito por meio das

decisões judiciais a partir do positivismo e perpassando pelo debate entre Hart e

Dworkin, pela correlação entre a argumentação jurídica e a decisão judicial e, ao

fim, a visão do realismo norte-americano na formação da convicção do julgador

ao proferir a decisão judicial.

No Capítulo 2, observam-se quais são as considerações que definem a

lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da

lógica tradicional aristotélica, e sua diferenciação em analítica e dialética, analisa-

se quais são as considerações de racionalidade jurídica apresentadas pelos

lógicos do direito já tendo a lógica clássica como subjacente, e especialmente sua

correlação com os precedentes. Por essa razão, também são observados alguns

institutos jurídicos básicos da teoria dos precedentes.

Page 15: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

3

O Capítulo 3, por sua vez, dedica-se à apresentação da técnica do

autoprecedente como regra de razão prática para aferição da racionalidade das

decisões judiciais de um mesmo órgão. A fim de demonstrar a incoerência entre

decisões de um mesmo órgão julgador, são analisados alguns casos da Suprema

Corte brasileira, cujos raciocínios jurídicos são estruturados para aferição da

racionalidade a partir da utilização de lógica clássica. Por fim, mencionam-se

alguns projetos que cogitam a utilização de sistemas eletrônicos computacionais

lógicos para prescrever decisões judiciais, razão por que se cogita a utilização de

um sistema para aferição do autoprecedente como da regra de razão prática,

especialmente diante do volume de processos que incham os cartórios dos

tribunais brasileiros.

A abordagem metodológica ocorrerá de forma indutiva e hipotético-

dedutiva, cuja hipótese de utilização de uma regra de razão prática da técnica do

autoprecedente será suportada por referencial teórico, mas também utilizará de

forma empírica um conjunto de decisões para demonstração da justificativa da

hipótese. Para tanto, a técnica de pesquisa para a fundamentação filosófica e

teórica dos dois primeiros capítulos será bibliográfica. Já quanto ao terceiro

capítulo, em que será proposta a regra de razão prática do autoprecedente, a

estratégia técnica pode ser considerada experimental.

Page 16: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

CAPÍTULO 1

1 TEORIA DO DIREITO E DECISÃO JUDICIAL

A relação entre a razão e as decisões judiciais já despertou muitos

debates dentro da teoria do direito. Sem dúvida, isso encontra justificativa na

forma como definimos o direito, ou, ao menos, como o identificamos em dado

momento histórico e em um determinado lugar.

Pode-se afirmar que o direito vigente em países modernos funda-se em

um sistema de normas jurídicas, cujo conteúdo é todo aquele que coordena e

regula a complexidade social, sendo o papel daquelas dispor de forma geral e

abstrata quais as condutas socialmente esperadas, sob pena de o seu

descumprimento gerar consequências também previstas nesse sistema de

normas. Por óbvio, essa é uma visão positivista do direito, mas que não pode ser

entendida de forma incompleta, pois se admite dentro do conceito de normas

jurídicas a existência das espécies regras e princípios, conceito amplo este

geralmente aceito pela teoria do direito, como dotadas de força normativa.

Se então o direito pré-determina as condutas socialmente aceitas, o

descumprimento de alguma dessas condutas dispostas nas normas pode gerar,

de um lado, resistência por parte de alguém e, de outro lado, pretensão por parte

de outrem. É possível, ainda, que duas partes tenham pretensão sobre um

mesmo objeto, o que gerará pretensão e resistência recíprocas.

A administração da justiça foi monopolizada pelo Estado. Essa

administração deve ser vista a responsável pela aplicação do direito vigente. Em

sendo o Estado uma ficção jurídica e social que não se representa de per si no

mundo natural, os conflitos sociais exigem dos juízes, órgãos e prepostos

investidos de poder pelo próprio Estado (constituinte), soluções que digam de

quem pertence o direito objeto do impasse, função a qual chamamos de

jurisdição.

Diante da constatação de que o direito detém a responsabilidade por

atribuir razão a uma das partes em conflito, ou qualificar como verdadeiras as

Page 17: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

5

suas alegações, pergunta-se: como saber se a decisão proferida pelo juiz está

correta, ou conforme o direito vigente?

Esse questionamento nada mais é que uma das facetas

representativas do tormento humano de prever o futuro e escapar do inesperado,

aflição essa constatada por Aristóteles, o que, no caso das decisões judiciais,

está na tentativa de obter antevisão da postura dos juízes, ou como esse

fenômeno jurídico pode ser controlado1.

Tal insegurança justifica o porquê de as decisões judiciais sempre

gerarem debates na teoria do direito. A atividade de julgar envolve um ato

humano de decidir conflitos. Por essa razão, grande parte da discussão sobre o

acerto ou o erro das decisões judiciais envolve a subjetividade dos protagonistas,

daqueles que proferem tais decisões. No caso, os juízes e os tribunais2.

Entretanto, como já referido nas linhas introdutórias, não é o estudo

dessa subjetividade, antes própria da psicanálise, que se passará a discorrer.

Enquanto essa área se debruça às questões motivacionais e intrínsecas que

justificariam a tomada de decisões pelos juízes, e que já se afirmou impossíveis

de afastar dos sentimentos afetivos e paixões daqueles que as proferem3, a

investigação que se inicia no presente capítulo tem como desafio demonstrar que

as empreitadas das teorias do direito na sua aplicação aos casos concretos não

conseguiram evitar aquilo que se conhece como discricionariedade judicial ou

voluntarismo dos julgadores, seja na justificação interna na passagem das

premissas ao dispositivo de uma sentença, seja na escolha das premissas maior

e menor que integrarão essa dedução na forma de silogismo, portanto, na

justificação externa.

Essa discricionariedade, presente nos dias atuais em razão da atuação

pró-ativa dos tribunais e da relativização das leis positivadas pelos princípios não

1 Cf. CELLA, José R. G. Auto-precedente e argumentação racional. In: Curso de Extensão

Razão x violência: o espaço da racionalidade num mundo intolerante. Curitiba: PUC, 2001. 2 Cf. MONTEIRO, Cláudia Sevilha. Fundamentos para uma Teoria da Decisão Judicial. In:

Anais do XVI Congresso Nacional do CONPEDI/PUC Minas Gerais. Belo Horizonte: 2007, p, 6105-6107.

3 PERELMAN, Chaïn. Considerações sobre uma lógica jurídica. Tradução de Cássio Scarpinella Bueno. In: PERELMAN, Chïn. Ethique et Droit. Editions de l’Universite de Bruxelles, 1990, p. 09.

Page 18: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

6

escritos, não é consequência do acaso, mas, sim, de uma tentativa histórica de

racionalizar logicamente a decisão judicial a partir de uma perspectiva analítica,

ou ao menos, de aplicar uma razão prática à racionalidade judiciária das

decisões, mas que, no fim das contas, acabou recebendo a culpa pelas tragédias

experimentadas na Segunda Grande Guerra.

Muitos são os motivos que justificam o fenômeno da discricionariedade

judicial. A omissão judiciária pós-revolucionária nos oitocentos, em que os juízes

eram entendidos como bocas-da-lei e nas hipóteses de omissão normativa que

tinham o legislativo como órgão consultivo. O positivismo imperativista, em que já

não se podia optar pelo non liquet anterior e a aplicação do direito se equiparou a

uma dedução mecânica, em sua fase mais agressiva, graças ao formalismo,

autorizou o cometimento dos crimes pelo Estado nacional-socialista alemão. E o

momento posterior às grandes guerras, em que a norma positivada passa a ser

relativizada pelo reconhecimento de valores que devem ser considerados,

buscados e encontrados no direito vigente por meio das decisões judiciais, como

liberdade e justiça, os quais acabam tendo a força necessária para relativizar a

força do texto normativo e do precedente histórico.4

Assim, a questão envolvendo a atuação dos juízes na efetivação dos

direitos pleiteados pelos indivíduos mostra-se, no mínimo, fundamental para o

equilíbrio democrático do Estado, dado o papel basilar que o direito exerce sobre

a legitimação das instituições públicas. Negar a importância das decisões dos

juízes à democracia, ou mesmo minimizá-la, seria o mesmo que negar vigência

às normas legiferadas aos casos concretos, deixando-as apenas no limbo da

metafísica ou da hipótese normativa.

Mais que isso, a decisão dos juízes mostra-se fundamental para a

legitimação do próprio sistema jurídico então sustentado por normas positivadas,

4 Cf. PERELMAN, Chaïn. Lógica jurídica. Nova Retórica. Tradução de Vergínia K. Pupi. São

Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 185.

Page 19: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

7

vez que sua eficácia no plano material está intimamente ligada ao plano de

concretização de seus enunciados.5

O fato é que a teoria do direito ainda não possui dentro de sua

comunidade científica um consenso quanto às razões que devem ser utilizadas

para determinar o acerto de uma decisão judicial. Isso, entretanto, não significa

que as decisões não obedeçam a uma logicidade.

Por exemplo, diferentemente da posição do positivismo, que relegava

em grande parte a escolha das premissas a ser utilizadas em uma decisão judicial

ao próprio julgador, os adeptos das teorias da argumentação, apesar de terem

buscado restringir o espectro de discricionariedade para justificar decisões

coerentes, não obtiveram sucesso que esperavam na determinação do caminho

argumentativo que uma decisão deve perpassar para ser considerada justa

(Perelman), correta (Dworkin) ou razoável (Maccormick).

Diante dessa problemática e buscando organizar as próximas linhas,

visitar-se-á alguns dos autores fundamentais do positivismo, da argumentação

jurídica e do realismo jurídico a fim de demonstrar que, inevitavelmente, mesmo

após a evolução do pensamento jurídico, ainda assim há espaço para o exercício

de discricionariedade, ou voluntarismo, pelos juízes ao proferir suas decisões,

espaço esse que a teoria do direito ainda não conseguiu preencher.

Essa discricionariedade, diferentemente da divisão realizada por

Dworkin em forte ou fraca, para os fins aqui propostos será vista de uma forma

muito mais simples. A discricionariedade que será debatida no presente capítulo,

frise-se, para os fins deste estudo, será considerada como toda a possibilidade de

o julgador escolher entre duas ou mais hipóteses jurídicas para a solução de um

caso, e isso pela forma particular com que vê e qualifica os fatos que lhe são

levados à apreciação e as normas que invoca para a sua resolução. E como se

demonstrará, desde Hart e Dworkin, até a utilização de estruturas formais

complexas, como, por exemplo, aquelas sugeridas por Alexy e Atienza, a teoria

5 Cf. MACCORMICK, Neil. Argumentação jurídica e teoria do direito. Tradução de Waldéa

Barcellos. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. X.

Page 20: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

8

do direito ainda não foi capaz de controlar essa discricionariedade do julgador, no

sentido aqui proposto, de independência na escolha do resultado.

O pano de fundo dessa discussão, ao menos na realidade brasileira,

pode ser claramente visto naquilo que MacCormick denominou de “razões

ostensivamente justificatórias” das decisões, ou seja, razões que mesmo que não

sejam sinceras são “aceitas como boas razões para a sustentação de

reivindicações [...] nos termos do sistema”.6

Antes, porém, de discorrer sobre essas teorias atualmente localizadas

na seara da argumentação jurídica, e demonstrar como a teoria do direito ainda

não foi capaz de racionalizar as decisões de uma forma completa, faz-se

necessário demonstrar a origem da discussão envolvendo essa discricionariedade

judicial, que também é motivadora do presente trabalho, e que apesar de já ter

sido objeto de exaustiva discussão em publicações internacionais, não parece ter

sido adequadamente esmiuçada no Brasil, dado os equívocos conceituais que

permeiam o estudo do direito em nossa realidade jurídica.

1.1 POSITIVISMO, DEBATE HART-DWORKIN E DECISÃO JUDICIAL

Acredita-se que para compreender de uma forma satisfatória as

questões envolvendo a discricionariedade judicial, o debate entre Herbert L. A.

Hart e Ronald Dworkin, um dos mais relevantes da teoria do direito no século XX7,

é um bom começo.

Conforme o desafio que se propõe nesse capítulo, as ideias

apresentadas por ambos os autores nas décadas de 1960 e 1970 ainda

continuam inquietando o pensamento jurídico no que tange ao que se pode

denominar de uma teoria da decisão judicial.

Assim, em que pese o embate teórico estabelecido entre Hart e

Dworkin perpassar desde a influência e limite da moral no direito até qual seria a

6 Cf. Ibidem, p. 19-21. 7 Cf. SHAPIRO, Scott J. The “Hart-Dworkin” debate: a short guide for the perplexed. Michigan:

Public Law and Legal Theory Working Paper Series, 2007; CELLA, José R. G. Legalidade e discricionariedade: o debate entre Hart e Dworkin. Curitiba: s/e, s/a; e FONSECA, Tania S. O debate entre Herbert L. A. Hart e Ronald Dworkin. In: Seara Filosófica nº 4, Verão, 2011, p-45-64.

Page 21: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

9

melhor descrição científica da obrigação jurídica, o estudo aqui proposto atentará

tão-somente às razões e às justificativas que os citados autores defenderam

quanto ao caminho trilhado pelo juiz na aplicação do direito a casos concretos, o

que restringe, nas duas obras responsáveis pela criação de tal arena

argumentativa, o capítulo 07 de O conceito de direito de Hart, e os capítulos 04 e

13 de Levando os direitos a sério de Dworkin, ambos das décadas de 1960 e

1970 do século passado, respectivamente.

Ressalte-se, entretanto, que em razão de muitos conceitos

apresentados pelos autores terem seu melhor entendimento em outros trechos de

suas obras, o estudo também se valerá de alguns conceitos operacionais

presentes nos textos referidos, razão por que a argumentação quanto aos

capítulos mencionados não será exclusivista.

Essa escolha se dá por uma razão: seja em Hart, seja em Dworkin, tais

capítulos contêm as fórmulas que ambos os filósofos apresentam como

solucionadoras das contradições, imprecisões, incoerências e omissões que o

direito, tanto pela ótica das legislações quanto dos precedentes (commom law),

apresenta em qualquer forma de ordem jurídica. E para ambos os autores, tais

deficiências ou incertezas na aplicação do direito ao caso concreto estão

geralmente presentes nas situações levadas à apreciação do julgador, mas cuja

hipótese de incidência normativa, seja a partir do ordenamento, seja a partir dos

precedentes já existentes, não é capaz de apresentar uma solução prima facie8.

Observe-se que o objetivo da presente investigação não é dissecar a

teoria de cada um dos autores, mas somente aproveitar e comparar o que cada

um deles afirmou acerca da individualização da norma jurídica no caso concreto,

e com isso poder cogitar uma regra de racionalidade jurídica capaz de aferir a

coerência do conteúdo da argumentação das decisões judiciais proferidas por um

mesmo órgão, hipótese que será explorada no terceiro capítulo da dissertação.

8 Trata-se de casos em que a subsunção do fato à norma não gera maiores problemas teóricos,

dada a concordância, ainda que relativa, quanto às qualificações jurídicas dos fatos e à interpretação da norma aplicável pela comunidade jurídica de uma forma consensual.

Page 22: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

10

Outrossim, a pesquisa proposta não restringirá seu objeto somente aos

dois autores protagonistas do debate já referido, mas também a outros que,

especialmente no que diz respeito à tese positivista de Hart, também

corroboraram seu ponto de vista quanto ao direito e o papel do juiz na sua

aplicação, da mesma forma como referido autor propõe e Dworkin critica.

Pois bem, na atribuição de competências dos poderes institucionais,

cabe ao poder judiciário dizer o direito (jurisdicio). Essa função de determinar por

meio de declaração com força coercitiva consiste na atribuição de sentido jurídico

a fatos pré-estabelecidos no sistema jurídico, seja pelo poder legislativo por meio

da redação de normas textuais, seja pela rotina de comportamentos sociais

expressos por decisões judiciais que criam os chamados precedentes, e que, em

ambos os casos, justamente em razão da fonte produtora desse direito estar

legitimada pela ordem constitucional, passam a ter relevância e obrigatoriedade

jurídica. Logo, o direito a ser aplicado na solução dos casos é aquele

representado pelas leis e precedentes decorrentes das autoridades

democraticamente legitimadas, inclusive após o processo de interpretação

realizado pela jurisdição.

Não se negligencia a existência de uma diferença substancial na

tradição jurídica dos países; se for a civil law, estará fundada em estatutos; se

commom law, fundada em tradição histórica e comportamentos reiterados.

Entretanto, a função tipicamente legislativa pertence ao poder legislativo. E a

justificativa disso é simples, como Dworkin sintetiza: o argumento da legitimidade

do poder legislativo na criação de leis é que “uma comunidade deve ser

governada por homens e mulheres eleitos pela maioria e responsáveis perante

ela”9.

O ponto é que, apesar de a legislação querer fazer direito, esse

somente é perceptível, verificável e aplicável, guardadas todas as problemáticas

envolvendo as teorias das normas e dos sistemas jurídicos, após a interpretação

do órgão judiciário. Esse movimento interpretativo é o que torna a norma geral

9 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo:

Martins Fontes, 2002, p. 132.

Page 23: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

11

abstrata em uma norma individual concreta, sendo este o direito reconhecido no

caso. Nesse caminho entre o direito em abstrato e sua aplicação em concreto, há

a argumentação jurídica, que justifica, em um âmbito externo, a escolha de certas

premissas, e num âmbito interno, a coerências dessas premissas pré-

estabelecidas na justificação da solução dada ao caso.10

Mas nem sempre foi assim. Quando Hart propôs sua visão sobre o

conceito de direito, combateu o chamado imperativismo que existia em sua época

(década de 1960). Sua defesa foi contra a teoria capitaneada por Austin, de que

seria a coerção fundada na ameaça elemento fundamental e inarredável do

conceito de direito e da efetividade de sua aplicação. Este, pois, seria o “modo

imperativo” austiniano de compreender o direito.11

O modo imperativo do direito também pode ser percebido em Kelsen,

para quem o direito é:

[...] uma ordem ‘normativa’ que procura produzir uma conduta humana determinada pelo fato de ela prescrever que, no caso de uma conduta oposta, da chamada antijurídica, do ‘antijurídico’, deve realizar-se um ato de coerção como conseqüência do antijurídico, como chamada sanção. Nesse sentido é o direito um ordenamento de coerção normativo.12

Hart, apesar de não negar a necessidade do uso da força na eficácia

do direito, afirmou que o direto também pode ser compreendido a partir de

“poderes jurídicos para julgar e legislar (poderes públicos) ou para constituir ou

alterar relações jurídicas (poderes privados)”13, hipóteses que não restringiriam o

direito somente a normas coercitivas. E para tanto, propôs uma definição de

direito em regras primárias, outorgantes de direitos e obrigações, e secundárias,

estas subdividas em regras de reconhecimento, regras de alteração e regras de

julgamento. Dessa forma, Hart teria demonstrado que a proposta de Austin não se

sustentava na aplicação do direito à realidade.

10 Cf. CELLA, José R. G., 2001, op. cit, p. 24. 11 Cf. HART, Henry L. A. O conceito de direito. Tradução de A. Ribeiro Mendes. Lisboa:

Fundação Calouste Gulbenkian, 1994, 3ª ed, p. 23. 12 KELSEN, Hans. O que é o positivismo? Tradução de Luís Afonso Heck. Título original: Was ist

juristischer Positivismus? In: HOLLERBACH, Alexander [et al.]. Direito natural, direito positivo, direito discursivo. Luís Afonso Hech, org. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 85.

13 HART, Herbert, op. cit, p. 89.

Page 24: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

12

O que nos interessa, entretanto, diz respeito ao que Hart denominou de

textura aberta do direito. O autor afirma que a sociedade, considerada no seu

aspecto de uma multidão de indivíduos, somente pode ser controlada, ainda que

não exclusivamente, a partir de normas gerais, diferenciando-se estas das

diretivas dadas individualmente a cada indivíduo.

Tais padrões de condutas gerais, segundo Hart, são comunicados aos

indivíduos, ou com um uso de uma linguagem geral, capaz de proporcionar

relativa certeza às classificações apresentadas pelo comando, ou com um uso da

linguagem em exemplos que, de certa forma, pode proporcionar dúvidas quanto à

exata intenção do comando. Essa seria a diferença entre, respectivamente, a

legislação, como “comunicação através da linguagem geral dotada de

autoridade”, e os precedentes, como “comunicação por exemplos dotados de

autoridade”.14

Entretanto, quanto às comunicações que utilizam de linguagem geral,

afirmará Hart que em casos simples a aplicação das comunicações é fácil e clara,

mas noutros o comando não é capaz de determinar se a regra jurídica se aplica

ou não ao caso proposto, e isso em parte pela própria limitação da linguagem da

regra como produto humano. Para ele, o resultado é que:

Aqui surge um fenómeno que se reveste da natureza de uma crise na comunicação: há razões, quer a favor, quer contra o uso de um termo geral e nenhuma convenção firme ou acordo geral dita o seu uso, ou, por outro lado, estabelece a sua rejeição pela pessoa ocupada na classificação. Se em tais casos as dúvidas hão de ser resolvidas, algo que apresente a natureza de uma escolha entre alternativas abertas tem de ser feito por aquele que tem de as resolver.15

Em outras palavras, Hart afirma que pertence ao investido de autoridade na

função de decidir essa escolha da classificação jurídica que será dada ao

fenômeno fático, o qual estabelecerá uma regra individual de reconhecimento.

Essa posição também é verificada na teoria do direito de Kelsen, em que pese

este ser considerado por Hart um dos precursores do positivismo imperativo.16

14 Ibid, p. 137-139. 15 Ibid, p. 140. 16 Cf. Ibid, p. 06.

Page 25: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

13

Kelsen, diante daquilo que denomina de lacuna no direito positivo, afirmaria

que diante dessa omissão de previsão de uma regra de reconhecimento geral, o

julgador estaria autorizado a criar um direito de forma individual, o que equivaleria

a uma regra de reconhecimento individual hartiana:

Mas também é possível que a ordem jurídica confira ao tribunal o poder de, no caso de não poder determinar qualquer norma jurídica geral que imponha ao demandado ou acusado o dever cuja violação o demandante privado ou o acusador público alegam, não rejeitar a demanda ou não absolver o acusado mas, no caso de ter por injusta ou não equitativa, quer dizer, como não satisfatória, a ausência de uma tal norma geral dar provimento à demanda ou condenar o acusado. Isto significa que o tribunal recebe poder ou competência para produzir, para o caso perante si, uma norma jurídica individual cujo conteúdo não é de nenhum modo predeterminado por uma norma geral de direito material criada pela via legislativa ou consuetudinária.17

No mesmo sentido é a conclusão de Ross. Ao discorrer sobre o que

denominou de método jurídico, ou seja, a interpretação do direito, Ross defende

que há uma correlação estreita entre uma teoria das fontes e uma teoria da

interpretação do direito. As ideias lançadas por Ross também tinham motivação

no imperativismo defendido pelos positivistas imperativistas, anteriores à sua

época (sua obra é da década de 1960), os quais acreditavam que a interpretação

e aplicação do direito consistia na obtenção da vontade imanente do legislador,

sem nenhuma possibilidade criativa, constatação que se assemelhava muito a de

Hart. Ross condenou a ideia de que a decisão judicial seria uma dedução lógica

da classificação do caso concreto em um dos conceitos pressupostos no

ordenamento “de acordo com os efeitos jurídicos contidos por aquele conceito“18.

Para Ross, a lógica imanente dos imperativistas, que reduziam a decisão

judicial a um simples silogismo, não passava de ilusão, razão por que afirma o

seguinte:

Por trás da aparência dogmático-normativa há uma compreensão correta do fato de que a administração da justiça não se reduz a uma derivação lógica a partir de normas positivas. As teorias positivistas ocultam a atividade político-jurídica do juiz. Da mesma maneira que o jogador de xadrez é motivado não só pelas normas

17 Cf. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo:

Martins Fontes, 1985, 1ª ed, p. 271. 18 Cf. ROSS, Alf. Direito e justiça. Tradução de Edson Bini. Bauru/SP: Edipro, 2000, p. 185.

Page 26: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

14

do xadrez, como também pelo propósito do jogo e pelo conhecimento de sua teoria, também o juiz é motivado por exigências sociais e por considerações sociológico-jurídicas.19

Depreende-se que Ross não estava tão preocupado com a realidade

de que o juiz motiva-se em razões extrajurídicas. Dentro do seu ponto de vista de

uma teoria da interpretação, entendia que, apesar de as máximas jurídicas de

interpretação geralmente manifestadas por brocardos atraentes serem

expressões imprecisas, sem sistemática contextual e passível de distorções que

provavelmente resultariam em resoluções contraditórias, isso não seria de todo

ruim no contexto social. Sua indiferença a essa aparente insegurança jurídica

estaria sustentada, paradoxalmente, na realidade de que tais máximas seriam

nada mais que técnicas de decisão que permitem que o juiz atinja “a conclusão

que julga desejável nas circunstâncias e, ao mesmo tempo, preserva a ficção de

que só está obedecendo à lei”20.

Tais teóricos positivistas, portanto, consideravam o juiz, aqui entendido

como qualquer órgão dotado de autoridade para julgar litígios a si submetidos,

investido de poder discricionário quanto à aplicação do direito a casos não

juridicamente previstos nas hipóteses pré-concebidas pelo ordenamento

positivado, os quais também poderiam se valer de razões morais e políticas na

tomada dessas decisões.

Essa constatação demonstra que, na ótica positivista, a decisão

judicial, como o modo pelo qual os juízes interpretam e aplicam as normas

jurídicas, não dialoga com a ciência do direito, entendida essa como a

possibilidade de fazer juízos de verdade ou falsidade sobre a existência dessa ou

daquela norma jurídica, e cuja obra precursora seria A teoria pura do direito de

Kelsen. Nela o autor buscou descrever o direito positivo e avaliá-lo sem a

interferência de ordens subjetivas e paixões capazes de prejudicar ou tornar

inconsistentes as conclusões alcançadas, ou seja, sem que preferências e valores

19 Ibid, p. 186. 20 Ibid, p. 184

Page 27: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

15

sem unanimidade de sua universalização pudessem influenciar uma descrição

científica do direito como sistema de normas hierarquicamente organizadas.21

Hart identificará essa crise de aplicação da norma no caso concreto,

diante da inexistência de parâmetros anteriores de aplicação, tanto no âmbito da

legislação quanto no dos precedentes, como casos importantes, que produzem

perplexidade nos tribunais, pois “nem as leis, nem os precedentes em que as

regras estão alegadamente contidas admitem apenas um resultado”. E nesses,

afirmará, “há sempre uma escolha”22.

Dessa forma, para tais herdeiros do positivismo, o juiz é um ator

político, e que por essa razão suas decisões possuem nítida carga moral e

política. Ressalte-se, entretanto, que essa posição não se aplica ao estudo que

realizam sobre direito como ciência, em que consideraram cientificamente as

normas e os sistemas compostos por elas, buscando descrevê-los sem nenhuma

influência moral e política.

A construção teórica até aqui realizada tem como objetivo comparar os

argumentos que Dworkin desferiu contra o positivismo por ele entendido como

dominante de seu tempo, qual seja o positivismo capitaneado por Hart.23

Ora, se a hipótese da presente pesquisa, ao menos em um de seus

objetivos específicos, é a de demonstrar que a teoria do direito ainda não foi

capaz de enclausurar a decisão judicial no adjetivo correta, imprescindível que se

analise justamente a teoria da unidade da solução correta proposta por Dworkin, a

qual tentou demonstrar a existência de parâmetros capazes de justificar um juízo

de acerto sobre determinada decisão judicial, especialmente quando não se

verificam soluções prima facie.

Pois bem, o texto em que Dworkin desenvolve de forma mais apurada

a tese de aplicação do direito diante das hipóteses não previstas na legislação, ou

sem um precedente anterior que justifique a decisão que será tomada, está no

capítulo 04 de Levando os direitos a sério, cuja tradução aqui utilizada é de 2002.

21 KELSEN, Hans, 1985, op. cit, p. XII. 22 HART, Herbert L. A., op. cit, p. 16. 23 Cf. DWORKIN, Ronald, op. cit, p. 35.

Page 28: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

16

Tais proposições equivalem-se àquelas apresentadas por Hart para a aplicação

das regras de textura aberta referidas anteriormente.

Mas antes de adentrar na sua teoria, cabe ressaltar algo por vezes

despercebido no capítulo introdutório da presente obra, mas que é lembrado por

André Luiz Souza Coelho, de que um dos objetivos de Dworkin é apresentar uma

teoria do direito fundada no liberalismo político, razão por que suas ideias devem

ser vistas a partir da referida lente. E nessa forma de ver as relações sociais,

como se verá adiante, os interesses individuais prevalecem sobre os gerais,

portanto, o liberalismo sobre o comunitarismo.24

Apesar da constatação de Coelho, não se pode deixar de registrar

algumas posições contrárias, não no sentido de que a tese dworkiana tenha um

espírito liberal, mas sim de que ele nunca declarou essa intenção. Nesse sentido,

são Coleman e Leiter, para quem Dworkin nunca teria de declarado precursor de

uma doutrina jurídica liberal.25 Entretanto, parece inegável que a teoria da

resposta certa, com a técnica de resolução de conflito aparente de direitos ou

hipóteses de solução de casos difíceis, é nitidamente liberal, até mesmo em razão

do reconhecimento disso pelo próprio Dworkin.26

Para Dworkin, a teoria que os positivistas apresentam para a resolução

dos casos difíceis, a saber, os casos concretos em que a aplicação silogística da

norma pré-estabelecida na legislação ou no histórico de precedentes não se

mostra segura, seja em razão da ausência de previsão da hipótese na regra legal,

seja em razão do não enquadramento do caso a outro análogo capaz de lhe servir

de precedente, reside na utilização do poder discricionário.

Essa discricionariedade afirmada pelo autor, entretanto, precisa ser

mais bem entendida se de fato se quiser compreender sua crítica ao positivismo,

entendido este como o hartiano. Para Dworkin, há tipos de discricionariedade, vez

24 COELHO, André. Palestra: “Levando os direitos a sério” e “Uma questão de princípios”: a

primeira fase do pensamento de Ronald Dworkin. In: II Jornada de teoria do direito: as contribuições de Dworkin para o pensamento jurídico contemporâneo. Belém do Pará: 2013.

25 COLEMAN, Jules L.; LEITER, Brian. Determinação, objetividade e autoridade. In: MARMOR, Andrei. Direito e interpretação: ensaios de filosofia do direito. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 308.

26 Cf. DWORKIN, Ronald, op. cit. p. 127.

Page 29: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

17

que o poder discricionário diferencia-se pelo contexto, pelo ponto de vista e pela

sua relação com a autoridade que lhe outorga referido poder.27

Dworkin afirma que a discricionariedade em sentido fraco pode ser

entendida em dois sentidos. O primeiro consiste nos padrões que uma autoridade

deverá utilizar para decidir. O segundo refere-se à decisão que, dada a partir de

alguém que ocupa uma posição hierárquica, esta vincula àqueles a quem a ordem

foi dirigida, pois não podem revisá-la ou cancelá-la.

Mas Dworkin também afirma que a discricionariedade pode ser

entendida em um sentido forte. Nela, que é o que interessa aqui, o funcionário

público não tem padrões a ser observados em sua decisão, ou seja, o âmbito de

sua atuação permite-lhe realizar uma escolha sem a necessidade de observar

qualquer limitação pré-estabelecida, mesmo que isso não seja equivalente à

licenciosidade e à crítica.28

Assim sendo, quando o autor afirma que o positivismo autoriza a

discricionariedade judicial na resolução de casos difíceis, está se referindo ao

poder discricionário no sentido forte da expressão. E não seria necessária

nenhuma elucubração para entender por quê. Quando se demonstrou que, diante

da inexistência de uma previsão normativa geral (legislação) ou por exemplos

(precedentes) que se aplique a um caso concreto, o positivismo autoriza que o

órgão julgador decida a partir de critérios políticos e morais, está claro que essa

discricionariedade somente existe porque o direito, para aquele caso específico,

não apresentou padrões de solução ou contornos capazes de gerar

silogisticamente uma subsunção do fato à norma.

Disso resulta que, em razão da falta de uma solução prevista

normativamente para esses casos difíceis, seja pela inexistência da hipótese que

se assemelhe ao caso, seja pela inexistência ou existência de mais de uma

solução prevista normativamente, o órgão julgador efetuará uma escolha, cujos

parâmetros que utilizará, e o positivismo de Hart, Kelsen e Ross confessam isso,

serão morais e políticos, dada a posição política que tal órgão ocupa no contexto

27 Cf. Ibid, p. 51. 28 Cf. Ibid, p. 52-53.

Page 30: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

18

social. A discricionariedade forte de Dworkin, portanto, é aquele que o positivismo

entende como necessária para as decisões judiciais de casos cuja previsão

normativa não existe ou existe de forma contraditória.

1.2 A TESE DA ÚNICA DECISÃO CERTA DE DWORKIN

Criticando essa discricionariedade forte, Dworkin propõe uma solução

que parte de um pressuposto radicalmente diferente. Para o autor, “quando

nenhuma regra regula o caso, uma das partes pode, ainda assim, ter o direito de

ganhar a causa”29. Para tanto, inicia sua defesa contra-atacando a ideia de que o

juiz, ao decidir, cria direito e, portanto, aplica-o retroativamente. Inicialmente,

apresenta dois tipos de argumentos que fundamentam a justificação de sua tese:

argumentos de princípios e argumentos de política.

A diferença entre ambos estaria no objetivo-fim que cada um deles

quer justificar. Por se tratarem de argumentos, nada mais são que razões e

considerações exteriorizadas em uma decisão para defender uma posição

subjetiva que pode querer descrever algo como pensa que ele realmente é, ou

ainda prescrever como pensa que algo deveria ser.

Para Dworkin, o argumento de princípio “justifica uma decisão política,

mostrando que a decisão respeita ou garante um direito” de um ou de muitos,

enquanto que o argumento de política, também justificador de uma decisão

política, mostra “que a decisão fomenta ou protege algum objetivo da coletividade

como um todo”. A diferença entre ambos pode ser simplificada, portanto, em que

os argumentos de princípio são aqueles que justificam a aplicação dos direitos,

enquanto que os de política são aqueles que justificam a adoção de políticas

públicas. Entretanto, ambos os argumentos são utilizados na adoção de

programas legislativos, e uma decisão pode chegar à mesma conclusão tanto a

partir de argumentos de política quanto de princípio.30

A tese de Dworkin no que diz respeito à decisão de casos difíceis,

entretanto, afirmará que as decisões judiciais sempre e somente devem se utilizar

29 Ibid, p. 127. 30 Cf. Ibid, p. 129-130.

Page 31: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

19

de argumentos de princípio, e não de argumentos de política, pois estes seriam

próprios da atividade legislativa. E para defender sua posição, inicialmente, rebate

a ideia de que a originalidade de uma decisão ofenderia o princípio democrático

da separação das funções ou o princípio de irretroatividade da aplicação da lei,

pois se o direito que a decisão busca já existe, sendo o julgador somente aquele

que identificará esse direito não claramente previsto, a competência do judiciário

é justamente dizer o direito (jurisdicio), o que refuta a ideia de criação normativa.31

Veja-se, pois, que Dworkin, ainda que não declaradamente, utiliza

argumentos assemelhados aos jusnaturalistas para defender sua posição teórica,

especialmente a existência de direitos até então não declarados. Isso porque, a

fim de rebater os argumentos daqueles que objetam o juiz como criador de

direitos, algo pacífico para os positivistas da década de 1970, afirma que o direito

já está ali, somente ainda não foi reconhecido.

A fim de demonstrar sua teoria do direito para a solução dos casos

difíceis, Dworkin faz uma alegoria a partir de um juiz-filósofo de capacidades

sobre-humanas chamado Hércules. Para o autor, esse seria o juiz ideal, mas

também o responsável pela teorização da filosofia do direito que respaldará a

jurisdição de determinada comunidade.32 Logo, nessa comunidade hipotética,

Hércules é tanto quem teoriza o direito vigente quanto quem o aplica aos litígios

sociais.

Assim, a decisão dos casos considerados difíceis terá de Hércules as

seguintes considerações: em relação à constituição de seu fictício Estado, os

casos que não são previstos sofrerão um raciocínio que considerará “um conjunto

complexo de princípios e políticas que justifiquem o sistema de governo [...]

referindo-se alternadamente à filosofia política e ao pormenor institucional”, o que

faz lembrar os fundamentos que regem a carta política de um Estado (inclusive o

art. 4º da Constituição da República Brasileira de 1988), e que para Dworkin

afirmam uma história institucional.33

31 Cf. Ibid, p. 134-135. 32 Cf. Ibid, p. 165. 33 Ibid, p. 167.

Page 32: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

20

Já quanto à aplicação das leis aos casos difíceis desse Estado, diante

da omissão legislativa Hércules tentaria extrair da legislação mais próxima ao

caso as intenções do legislador, construindo uma “teoria política como um

argumento sobre o que o poder legislativo fez naquela ocasião”, e isso a fim de

apreender o alcance da política querida pelo poder legislativo “até os limites

permitidos pela linguagem”.34

Em relação aos precedentes, para que eles pudessem ser usados na

solução de casos difíceis, Hércules afirmará que o precedente cria uma “força

gravitacional”, não no sentido de sua força de promulgação, mas sim a partir de

uma “teoria de equidade que está em tratar os casos semelhantes do mesmo

modo”. Essa equidade, entretanto, possui essa força normativa porque se utiliza

de “argumentos de princípio que lhe dão sustentação”, ou seja, os argumentos de

princípio justificam a consideração da equidade e esta é a força gravitacional dos

precedentes.35

Os argumentos de princípios, por sua vez, não somente justificam a

força gravitacional dos precedentes, mas também os próprios direitos, pois estes

também são fruto de argumentos de princípios, e se assim o são acabam criando

uma aplicação comum de forma a criar um “esquema de princípios abstratos e

concretos que forneça uma justificação concreta a todos os precedentes e [...] que

justifique as disposições constitucionais e legislativas”.36

É, pois, sobre esse constructo teórico que Dworkin fundamenta a tese

da única resposta correta disposta no capítulo 13 de Levando os direitos a sério,

que agora será objeto de análise. Para essa pesquisa, portanto, considerou-se

incompleto captar qual era a intenção do autor ao afirmar a existência de uma

resposta correta somente através da observação do capítulo próprio da tese, vez

que toda sustentação teórica necessária para compreender o capítulo 13

necessita da compreensão do capítulo 04, o que ficará claro nas próximas linhas.

34 Cf. Ibid, p. 168-171. 35 Cf, Ibid, p. 174-176. 36 Cf. Ibid, p. 182.

Page 33: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

21

Pois bem, adentrando na argumentação apresentada por Dworkin para

a defesa da existência de uma resposta correta para todo o caso que é submetido

à apreciação jurisdicional, ele edifica seu argumento rebatendo as potenciais

objeções à sua afirmação. Inicia sua defesa combatendo uma potencial objeção

de ordem prática, sintetizada no seguinte argumento: “cada um pode ter apenas

sua própria opinião, e a opinião do juiz não oferece mais garantias de verdade do

que a de qualquer outra pessoa”. Contra esse possível questionamento, cria três

hipóteses-problema: primeira, se alguns juízes são unânimes quanto à

classificação dos fatos de um caso difícil, se estes poderiam divergir quanto ao

direito aplicável; segunda, se seria possível que a uma parte tenha o direito de

ganhar mesmo se os juízes, unânimes quanto à classificação dos fatos, sejam

divergentes quanto ao direito aplicável ao caso; e, terceira, se seria “sensato e

justo” que a decisão de juízes criteriosos seja considerada válida mesmo existindo

outros juízes criteriosos que entendam de modo diverso.37

A fim de defender sua tese, Dworkin adota uma metodologia descritiva

da coerência entre as respostas positivas ou negativas aos questionamentos que

formulara, para após declarar que:

Se os litigantes em um caso difícil não podem ter nenhum direito a uma decisão específica, é inutil e injusto deixar que o litígio seja resolvido por uma decisão controversa (ou incontroversa quanto ao caso) sobre os direitos que eles têm. [...] Tudo depende de alternativas. No capítulo 4, descrevi essas alternativas e as considerei sem atrativos.38

Como se pode ver, o sustentáculo teórico de sua teoria está no capítulo

que já foi objeto de análise anteriormente. Sendo assim, pode-se compreender,

ao menos até certo ponto, qual é a intenção de Dworkin ao afirmar que há sim

uma resposta correta, ainda que nem todos possam com ela concordar, o que

parece soar de forma paradoxal. Para ele, a resposta correta seria encontrada a

partir de argumentos teleológicos do sistema e da história institucional do Estado,

da extração da gênese da ideia do legislador em relação às normas, do campo

gravitacional identificado nos precedentes, aplicando-se a eles um pouco de

analogia, argumentos esses já ventilados nesse capítulo.

37 Cf. Ibid, p. 431. 38 Ibid, 432.

Page 34: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

22

Mas em toda a sua construção teórica mostra-se presente, ainda que

nas entrelinhas, aquilo que se referiu inicialmente acerca da teoria do direito de

Dworkin: são os argumentos de princípio, que justificam os direitos individuais, as

chamadas liberdades negativas conquistadas nos setecentos, que devem

proporcionar o alcance da resposta correta, vez que tais argumentos de princípio,

opondo-se aos argumentos de política, é que são próprios das decisões judiciais.

Ocorre que tais argumentos nada mais são que o resultado da

classificação da justificação de decisões políticas feita pelo próprio autor.39 E

sendo assim, não diferem necessariamente da posição de Hart, Kelsen e Ross.

Estes, como já dito anteriormente, afirmam que diante de casos complexos,

difíceis segundo Dworkin, que não possuem previsão na legislação ou que não

apresentem um exemplo (precedente) a ser analogicamente utilizado como razão

de decidir, o órgão julgador utilizar-se-ia de uma decisão política para resolver o

caso. Em que pese a teoria de Dworkin querer descrever e classificar as razões

dessa decisão, argumentos de princípio e de política, e afirmar que os primeiros é

que devem prevalecer sobre os segundos, ainda assim a decisão dos casos

difíceis será uma decisão política, ou seja, uma decisão que foge de contornos

jurídicos e, portanto, de um binômio jurídico-antijurídico para ostentar um caráter

discricionário, no sentido dado ao presente estudo – liberdade do julgador em

escolher uma dentre duas decisões, especialmente quando ambas admitam

argumentos justificadores razoavelmente aceitos pela própria comunidade

jurídica (o que será debatido no próximo capítulo dessa pesquisa). Assim,

adentram na seara da discricionariedade tão criticada pelo próprio Dworkin.

Ademais, a própria objeção que Dworkin se utiliza para criticar a

hipótese de solução dos positivistas aos casos difíceis sem previsão no direito

(leis e precedentes) de uma solução específica, de que a decisão de um juiz

hartiano diante de um caso difícil retroagirá no tempo para regular uma relação

passada, e que por essa razão haveria uma afronta a um princípio de que

ninguém pode ter uma conduta exigida sem ter conhecimento desse padrão,

também não é vencida pela própria tese de direitos dworkiana.

39 Cf. Ibid, 129.

Page 35: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

23

Isso porque, se cabe a Hércules ultrapassar as barreiras objetivas da

linguagem existente na legislação e nos precedentes, e revisitar os fundamentos

da história institucional, dos argumentos de princípio e de política que motivaram

os legisladores na confecção da legislação e, ainda, em uma força gravitacional

existente nos precedentes de casos análogos, parece que, semelhantemente aos

positivistas, a proposta de Dworkin, que parte da ideia de que o direito somente é

direito após sua interpretação, também tem uma aplicação retroativa a fatos

anteriores ao direito encontrado por Hércules. Isso porque o direito apreendido

por este somente é qualificado como direito após um processo interpretativo, e

não antes. E, portanto, se esse processo é posterior ao fato que quer regular, a

teoria dos direitos dworkiana também apresenta uma característica ex post facto.

Entretanto, mesmo se se partir da premissa de que a teoria que

Dworkin defende é de fato uma teoria racionalizante ou interpretativa da forma de

decidir os casos concretos levados à solução judicial40, evitando a tese positivista

de que nos casos não previstos nas fontes de direito usuais, legislação e

precedentes, os julgadores têm discricionariedade no sentido forte, além de

Dworkin não enumerar os princípios e argumentos de princípios que

prevaleceriam sobre outros princípios e outros argumentos de princípios, parece

que sua teoria cria uma hierarquia de princípios. E toda hierarquia, como razão de

existir, envolve a colocação de uns princípios acima de outros, o que Dworkin não

esclarece em seu texto, nem sequer cogitando critérios dessa classificação.

1.3 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA E DECISÃO JUDICIAL

A crítica que supôs a criação de uma hierarquia de princípios pela

teoria dworkiana, pois não afastaria a discricionariedade do julgador na

sobreposição de um argumento de princípio em relação a outro argumento de

princípio, sustenta-se em grande parte no posfácio ao Conceito de Direito de

Hart41. Entretanto, foi Joseph Raz quem parece ter demonstrado isso de uma

forma mais completa. Para esse autor, não há como definir que uma decisão está

certa, pois mesmo que duas pessoas compartilhem das mesmas concepções

40 MARMOR, Andrei. Direito e interpretação: ensaios de filosofia do direito. Tradução de Luís

Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. X. 41 Cf. HART, Herbert, op. cit, p. 299-339.

Page 36: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

24

morais não se pode garantir que encontrem uma mesma decisão para que esta

seja considerada correta.42

Para Raz, essa realidade justifica-se no fato de as decisões judiciais

possuírem, diferentemente do ofício do legislador, um grau de obrigatoriedade

diferente, em que sua atuação consiste justamente em integrar lacunas deixadas

pela legislação ou a modificar diante da necessidade de estender os sentidos

dados pela regra positivada, especialmente nos casos considerados não

regulados pelo sistema normativo.43

É por essa razão que o autor afirma que:

[...] é irracional atribuir grande peso à formulação real da norma nas mãos do tribunal. A interpretação das leis em ocasiões acaba no emprego de uma palavra em vez de outra. Não é assim na interpretação do precedente. Outro resultado consiste em que é razoável melhor interpretar a norma em seu contexto (i. e. considerando os fatos tal e qual se encontram assentados) que de forma abstrata como se faz com uma lei ou um regramento. A faculdade de distinguir reflete esta dependência do contexto. A “ratio” é obrigatória em suas razões (racionais) fundamentais tal e qual se aplica em seu contexto original. Os tribunais podem, sem dúvida, modificar sua aplicação a diferentes contextos sempre que preservem suas razões (racionais) fundamentais.44

A teoria de Raz tem como pressuposto geral e base de discussão o

commom law inglês45, tal qual Dworkin. E por essa razão, pode-se afirmar que os

dois autores discutem teoria do direito a partir de um lugar comum.

MacCormick também faz uma crítica contundente à teoria doworkiana.

Apesar de referido autor ter manifestado no preâmbulo de sua obra, em 1994, que

42 Cf. RAZ, Joseph. La autoridad del derecho. Ensayos sobre derecho e moral. Tradução de

Rolando Tamayo e Salmorán. México, D.F.: Universidad nacional Autónoma de México, 1985, p. 250.

43 Cf. Ibid, p. 243. 44 [...] es irracional atribuir gran pesa a la formulación real de la norma en manos del tribunal. La

interpretación de las leyes em ocasiones estriba em el empleo de una palabra em vez de outra. No así en la interpretación de precedentes. Outro resultado consiste en que es razonable interpretar la norma más bien em su contexto (i.e. considerando los hechos del caso tal y como se encientran asentados) más que de forma absctracta como lo hace uno con una ley o reglamento. La faculdad de distinguir refleja esta dependencia al contexto. La ratio es obligatoria en sus razones (rationale) fundamentales tal y como se aplica a su contexto original. Los tribunales pueden, sin embargo, modificar su aplicación a diferentes contextos siempre que preservem sus razones (rationale) fundamentales.” Ibid, p. 23.

45 Cf. Ibid, p. 228.

Page 37: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

25

as críticas feitas ao Levando os direitos a sério de Dworkin nas décadas de 1960

e 1970 foram de certa forma exageradas46, diante de sua fala ser aderente ao

objeto do presente estudo, algumas das suas considerações mostram-se

necessárias de enfrentamento.

O argumento do autor contra a teoria da solução correta parte do

argumento de autenticidade do desacordo, que consiste no reconhecimento de

que um desacordo pode existir desde que os argumentos utilizados tenham

padrões comuns, e não diferentes. Essa divergência de padrões seria uma

divergência especulativa. Entretanto, as decisões jurídicas não estariam nessa

categoria de divergência, mas sim numa divergência prática que surge “porque –

ou quando – a decisão favorável a um lado ou a outro não pode ser evitada e

deve ser tomada por pessoas [...] que precisam [...] conviver com a decisão”47.

Partindo dessa ideia, MacCormick afirma que:

[...] os juízes em nosso sistema são, e em todos os bons sistemas seriam, tolhidos, enclausurados e confinados no exercício dos enormes poderes a sua disposição. Não diz que eles não possam agir, nem que eventualmente não ajam, talvez até com frequência, de modo contrário às normas de justificação [...]. As provas existentes sugerem que, se realmente agem assim, pelo menos procuram despistar, revestindo as decisões que tiverem outros motivos com justificações engendradas da forma correta.48

Segundo esse autor, as justificações dos argumentos não têm como

objetivo e fim apresentar uma decisão “’completamente’ justificada”, mas sim

fornecer “modalidades de argumentação” que vão justificar uma decisão, a qual,

apesar de poder conciliar divergências especulativas, deixa “uma área residual de

pura divergência prática”. E nesses casos, afirmará MacCormick, ainda que se

chame o “semideus ‘ex machina’ de Dworkin [...]”, Hércules, a divergência prática

não poderá ser vencida49.

A teoria argumentativa de Atienza também reflete, ainda que de uma

forma diferente, essa realidade. Isso porque considera que a argumentação

46 Cf. MACCORMICK, Neil. Argumentação jurídica e teoria do direito. Tradução de Waldéa

Barcellos. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. XIX. 47 Ibid, p. 324 48 Ibid, p. 327 49 Cf. Ibid, p. 328-329.

Page 38: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

26

jurídica também é uma argumentação de fatos. E se é necessário também

argumentar sobre fatos, isso englobaria também questões que escapam do

ambiente jurídico e normativo, adentrando em searas da sociologia e da moral50.

Assim, adentrando nessas searas em que não se pode afirmar o que é correto ou

errado sem filiação ideológica, também se verificaria a impossibilidade de afastar-

se da discricionariedade. Logo, diferentes juízes, com parâmetros morais

diferentes, ou contextos sociais de desenvolvimento humano díspar, teriam sem

sombra de dúvida, na proposta argumentativa de Atienza, discrepância quanto à

argumentação que utilizariam em suas decisões judiciais.

Para exemplificar essa realidade, MacCormick apresenta um caso

paradigma. Trata-se de caso envolvendo a responsabilização do fabricante em

razão de um dano decorrente de consumo (Donoghue v. Stevenson), em que dois

juízes, Lord Atkin e Lord Buckmaster, divergiram veementemente quanto à

existência de tal responsabilidade. O autor demonstra que, apesar de a decisão

ter seguido o argumento de Lorde Atkin, que responsabilizou o fornecedor, havia

diversos argumentos legítimos e coerentes que justificavam a sua não

responsabilização, como o interesse público de que os bens de consumo tenham

preços baixos, ou de que, em razão da natureza contratual da relação, os

indivíduos poderiam considerar a questão proporcional envolvendo o preço e a

segurança, mais caro mais seguro, menos caro menos seguro. Por essa razão,

diante de tais argumentos também razoavelmente justificáveis, afirma:

Chegamos àquele ponto da pura divergência prática no qual precisamos nos esforçar além daquilo que já está estabelecido entre nós e decidir como queremos viver, como nossa sociedade há de se organizar. Entre duas possíveis extrapolações racionais de nossa tradição jurídica e política, uma escolha tem que ser feita, e não são só as partes que serão forçadas a acatar a decisão específica, mas os juízes e todos nós que vivemos na sociedade teremos que conviver (temporariamente, pelo menos) com a deliberação e seus múltiplos efeitos práticos sobre a vida social e comercial.51

Logo, a divergência apresentada pelo autor revitaliza aquilo que já era

defendido por Hart, Kelsen e Ross, de que em determinadas situações,

50 ATIENZA, Manuel. As Razões do Direito. Teorias da Argumentação Jurídica. Tradução de

Maria Cristina Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy, 2003, 3ª ed. p. 213 51 MACCORMICK, op. cit., p. 331.

Page 39: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

27

considerando o contexto fático, político, social ou econômico em que o conflito

está inserido, o julgador fará uma escolha baseada em justificações e argumentos

que entender juridicamente válidos, sem que estes sejam jurídicos. São válidos

porque são utilizados em um contexto jurídico, mas não são em sua essência

jurídicos, mas políticos, morais e sociológicos.

Pois bem, as considerações até aqui apresentadas demonstram que a

pretensão dworkiana de que a decisão poderia ter um único teor correto, ou seja,

que cada caso submetido à apreciação pelos juízes teria uma resposta correta,

ainda que as regras de reconhecimento geral ou através de exemplos, legislação

e precedentes, não previssem tal conduta abstrata ou ainda se essa previsão

estivesse duplicada, resultando em duas possíveis incidências normativas, não

encontra correspondência na ordem prática, ou seja, na realidade da vida, o que

se acredita ter sido demonstrado a partir de Raz e MacCormick.

Isso porque Dworkin, ao afirmar que, diante de casos sem previsão

normativa na legislação ou nos precedentes, os juízes deveriam justificar a

decisão a partir de uma decisão política fundada em argumentos de princípios, os

quais têm como pressuposto a proteção dos direitos individuais, esquece de

considerar que, ao não definir uma hierarquia entre esses argumentos acaba por

confessar, ainda que tacitamente, poderá haver preferência pessoal por quem

decide em favor de uns argumentos sobre outros. E como tais argumentos,

conforme a tese dworkiana, nada mais são que decisões políticas que buscam

proteger direitos individuais, por decorrência lógica estar-se-ia escolhendo entre

dois direitos individuais colidentes.

Logo, a problemática da discricionariedade judicial ainda se mantém, o

que coloca em xeque a tese da “única” resposta correta.

Utilizando o juiz dworkiano como exemplo, a ideia de existir essa

discricionariedade nas decisões judiciais, e como visto não se pode negar que

não há, permitiria que o juiz pudesse elevar um desses argumentos de princípios

acima de outro argumento de princípios. Em fala simples, Hércules poderia eleger

um direito individual (direito X) como acima de outro direito individual (direito Y)

diante de determinado caso. Entretanto, há a real e inegável possibilidade de, no

Page 40: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

28

mesmo caso, outro juiz, talvez Tarúcio52, para quem a importância de tais direitos

individuais e, portanto, dos argumentos de princípios que lhe são mais

convincentes, é justamente o contrário (direito Y prevalecendo sobre o direito X).

Um exemplo dessa colisão de direitos que estariam protegidos por uma

decisão política fundada em argumentos de princípios pode ser verificada na

liberdade de ir e vir e na propriedade, baluartes da Revolução Liberal Americana.

Se diante da falta de uma norma que regulasse uma aparente tensão entre o

direito de liberdade e o de propriedade, e Hércules tivesse que decidir sobre qual

prevaleceria, e para tanto utilizasse argumentos de princípios que nada mais são

que representações da proteção de direitos individuais53, tal julgador

necessariamente teria que escolher um dentre eles para justificar sua decisão. E

se ele tem que escolher, há, pois, discricionariedade.

Com isso, quer-se demonstrar que, apesar de Dworkin ter criticado de

forma contumaz o positivismo, sua teoria não proporciona nenhuma diferença

com o que Hart, Kelsen e Ross defenderam na aplicação do direito por meio da

decisão judicial. A única diferença que possivelmente se pode perceber é que,

enquanto os positivistas afirmam que ao juiz cabe prover essa decisão conforme

lhe parecer justo e correto, fundado em questões morais e políticas, Dworkin

afirmará que essa escolha, que reconhece também ser política e moral, deverá

privilegiar argumentos de princípios, por sua vez fundados em direitos individuais

fundamentais54.

Logo, parece que Dworkin aperfeiçoa a percepção do que se pode

argumentar nesse caminho interpretativo entre o direito declarado através de uma

regra de reconhecimento individualizada e o caso concreto. E nessa percepção se

confirma a carga moral e política indissociáveis da subjetividade humana. Mas

que o autor exclui a discricionariedade do julgador, já prevista pelos positivistas,

52 Na mitologia romana, Tarúcio era marido de Aca Larência, amante de Hércules. 53 V. item 1.2, supra. 54 Nesse sentido verifica-se evidente paradoxo entre a efetivação dos direitos fundamentais sociais

e, portanto, liberdades positivas, a partir do reconhecimento de auto-aplicabilidade dos chamados princípios que àqueles remetem (direito à previdência, direito à saúde), e a forma que Dworkin defende o desequilíbrio no momento da ponderação entre “argumentos de princípios” (direitos individuais) e “argumentos de política” (direitos sociais), em que, dada a sua declarada visão liberal do direito, levaria à conclusão de que prevaleceriam os interesses individuais sobre os sociais.

Page 41: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

29

isso não se pode afirmar, mas até mesmo o contrário: confirma que a decisão dos

juízes diante de casos cuja aplicação do direito não seja simplória, se dará por

uma decisão política, ainda que esta se baseie em argumentos de princípios e

não de políticas, estritamente falando.

Com isso, pode-se concluir que a crítica perpetrada por Dworkin à

discricionariedade judicial descrita pelo positivismo de origem hartiana,

especialmente quando a subsunção do fato à norma não se mostra clara o

bastante para afastar dúvidas em relação à sua aplicação. Em suma, não

convence, pois também em sua proposta há um traço significativo de

discricionariedade judicial pelo julgador, especificamente na escolha entre os

argumentos de princípios, que podem ser mais que um, a ser aplicados ao caso

concreto que solicita uma decisão, permitindo, ainda, a utilização de argumentos

de política. Tudo isso acaba tornando a decisão passível de diversos

fundamentos de igual ou muito semelhante carga normativa, não afastando a

hipótese de que a escolha e o peso que cada julgador dá a esses argumentos

não seja uma questão de discricionariedade.

As teorias de argumentação jurídica, por sua vez, também não são

diferentes. O problema da discricionariedade observado por Robert Alexy parece

ter um núcleo semelhante, conforme se verifica na justificava de sua Teoria da

Argumentação Jurídica, em que cita o seguinte trecho de acórdão proferido pela

Corte Constitucional alemã:

[...] exigir em particular que esses julgamentos de valor inerentes à ordem constitucional mas que não têm nenhuma expressão ou apenas expressão imperfeita nos textos recentes de lei, devem ser revelados e realizados nas decisões atuais por um ato de cognição que inevitavelmente envolve um elemento discricionário. Os juízes devem se precaver contra a arbitrariedade nesse processo: suas decisões têm de ser fundadas na 'argumentação racional'. Deve ficar evidente que a lei escrita não cumpre a tarefa de prover uma justa resolução dos problemas legais. Nesses casos, a decisão judicial fecha a brecha de acordo com os padrões da razão prática e dos conceitos de justiça bem fundamentados da comunidade.55

55 ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schid Silva.

São Paulo: Landy, 2001, p. 34.

Page 42: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

30

Assim, Alexy propõe a existência de uma metodologia na utilização da

argumentação para alcançar aquilo que denominou de racionalidade justificável, o

que afastaria, em tese, a discricionariedade do julgador.

Ao compreender o discurso jurídico como um caso especial do discurso

prático geral, devido ao objetivo de correção das afirmações normativas e porque

tais argumentos estariam limitados pela lei, pelos precedentes e pela dogmática

jurídica, Alexy propõe a criação de regras de racionalidade e formas de

argumentação capazes de equiparar decisões judiciais a um discurso prático

geral56.

Entretanto, quanto à existência dessa discricionariedade, sua teoria

não a refuta, mas até mesmo se coaduna com a dos positivistas. Isso porque o

próprio Alexy confessa, ao falar da justificação externa do raciocínio lógico,

responsável pela justificação das premissas utilizadas na justificação interna da

decisão judicial, que o papel da argumentação jurídica seria a justificação das

premissas que não são direito positivo e também não se enquadram em

premissas empíricas57. Isso quer dizer que, justamente diante da indeterminação

dos critérios (premissas maior e menor) é que a argumentação ganha papel

relevante na teoria do direito, mesmos sem possuir nenhuma forma de

delimitação das escolhas dessas premissas, somente a própria lógica em si, mas

já no âmbito interno, de dedução lógica das premissas postas.

Esse problema pode ser verificado na teoria alexyana, por exemplo, na

chamada argumentação dogmática, responsável pela descrição da lei em vigor.

Afirma que ela está sujeita a uma “análise conceitual e sistemática” e pela

elaboração de proposições solucionadoras do problema jurídico, processos esses

que, segundo o autor, ocorrem em três dimensões: descritiva-analítica, lógica-

analítica e normativa-prática.58

Nessa proposta de dogmática jurídica, o intérprete do direito se utiliza

de conceitos para descrever o sentido que o texto da lei propõe (descritiva-

56 Cf. Ibid, p. 26-27 57 Cf. Ibid, p. 224. 58 Cf. Ibid, p. 241.

Page 43: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

31

analítica), para depois encontrar a repercussão desses conceitos dentro do

sistema jurídico como um todo por meio da correlação de conceitos (lógica-

analítica), a fim de aplicar a regulação que o caso exige (normativa-prática). Logo,

se dois juízes discordarem da descrição conceitual de um texto de lei, ainda que a

justificação interna de ambas as decisões sejam uma decorrência lógica do

argumento dogmático, ambos chegarão a conclusões diferentes.

Por essa razão, ainda que a teoria argumentativa de Alexy seja

consistente, ela não impede que o preenchimento dos conceitos das premissas a

ser utilizadas pelos argumentos dogmáticos, por exemplo, seja realizado, dado o

caráter descritivo e conceitual que exige esse procedimento interpretativo que

caminha da hipótese ao caso concreto exige, de forma discricionária pelo

julgador.

Isso porque, como o próprio Alexy declara:

[...] a decisão é o resultado de um cálculo no qual os conceitos jurídicos são os fatores; quanto mais determinante o valor desses fatores, tanto mais certos os resultados dos cálculos serão. É imediatamente óbvio que o verdadeiros sistema de direitos, a interligação de suas proposições, só pode ser revelada por um completo entendimento dos conceitos jurídicos.59

Dentre outros argumentos da teoria de Alexy que servem para

racionalizar a justificação externa do raciocínio jurídico, o uso dos precedentes

não será agora ventilado, pois, quanto ao princípio da universalizabilidade, será

referido no terceiro capítulo desta dissertação. Mas, se o argumento do uso dos

precedentes na justificação externa do raciocínio jurídico fosse analisado a partir

do espectro da discricionariedade, ainda aqui se poderia verificar a existência de

discricionariedade, dada a maioria do pensamento jurídico de que dois casos

nunca serão completamente idênticos.

A Teoria da Argumentação proposta por Atienza também não

consegue vencer a discricionariedade da decisão judicial. Esse autor, após criticar

Alexy e MacCormick60 quanto à falta de aproximação entre suas teorias

argumentativas e os fatos que inclusive justificam as discussões jurídicas,

59 Ibid, p. 243. 60 ATIENZA, Manuel, op. cit, p. 213

Page 44: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

32

apresenta aquilo que denominou de Projeto de uma Teoria de Argumentação

Jurídica, o qual defende a utilização de um “modelo complexo de racionalidade

prática”, que se utiliza de racionalidades discursivas, estratégicas e legislativas

(no sentido de legislação como fonte do direito)61.

Entretanto, apesar de apresentar proposta metodológica de

organização dos argumentos via fluxograma, o que, observe-se, Alexy faz com

um rigor formal muito maior, Atienza não se livra da questão envolvendo a

discricionariedade da escolha das premissas externas do raciocínio de uma

decisão judicial, como se pode depreender da seguinte passagem, em que

justifica o que denomina de função política ou moral da teoria da argumentação

jurídica, que:

[...] se relaciona com a questão de qual é o tipo de ideologia jurídica que está sempre, inevitavelmente, na base de uma determinada concepção de argumentação. [...] na minha opinião, a teoria da argumentação jurídica teria de se comprometer com uma concepção – uma ideologia política e moral – [...]. Quem tem de resolver um determinado problema jurídico, inclusive na posição de juiz, não parte necessariamente da ideia de que o sistema jurídico oferece uma solução correta – política e moralmente correta – desse problema. Pode muito bem ocorrer o caso de que o jurista – o juiz – tenha de resolver uma questão e argumentar a favor de uma decisão que é a que ele julga correta, embora, ao mesmo tempo, tenha plena consciência de que essa não é a solução que o direito positivo leva.62

Dessa forma, conclui-se que as teorias de argumentação jurídica,

apesar de apresentarem fórmulas, métodos e raciocínios que demonstram

significativos avanços na observação analítica da decisão judicial, não foram

capazes de afastar a discricionariedade de uma decisão judicial, ao menos, da

escolha externa das premissas que integrarão as proposições de uma decisão. O

que, por conseguinte, também fulmina a afirmação dworkiana da existência de

respostas corretas para os casos submetidos à apreciação dos órgãos judiciais,

ou ainda quanto às afirmações alexyanas e maccormickanas de que uma decisão

pode ser correta, aproximação esta também deflagrada por Atienza.63

61 Ibid, p. 214. 62 Ibid, p. 225-226. 63 Idem.

Page 45: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

33

Essas afirmações envolvendo a discricionariedade da decisão judicial,

apesar das diversas tentativas de controle formal de sua estrutura e material de

seu conteúdo, são tão convincentes e reverberantes no âmbito da teoria do direito

que há uma corrente teórica denominada de realismo jurídico, construída sob

essa atuação judicial, a qual se passa a expor em seguida.

Observe-se, entretanto, que o modelo que será objeto de nossa análise

é o norte-americano. Haveria ainda o realismo escandinavo, onde Alf Ross pode

ser posicionado, e o mais atual, de Gênova, onde Riccardo Guastini pode ser

considerado um dos representantes. Apesar de sua origem ser anterior às ideias

debatidas até aqui, a abordagem da discricionariedade sem uma breve inserção

no realismo norte-americano não permitiria compreender satisfatoriamente a

decisão judicia e a Teoria do direito.

1.4 REALISMO JURÍDICO NORTE-AMERICANO E DECISÃO JUDICIAL

Analisando-se a história do direito dos últimos dois séculos, pode-se

perceber que esse cenário da teoria do direito que discute, ora concebendo, ora

refutando a discricionariedade da decisão judicial, encontra íntima correlação com

a ousada proposta de um juiz da Suprema Corte estadunidense do final do século

XIX, Oliver Wendel Holmes Júnior. Considerado a maior celebridade jurídica

americana por muitos, Holmes seria o maior influente da cultura jurídica do

common law com duas obras. A primeira, The Path of Law, apresentada na

Revista de Direito de Harvard de 1897, é o ato inaugural do realismo jurídico.64

A proposta de Holmes consistia, seguindo uma tendência teórica

antijusnauralista e antipositivista (essa no sentido de crítica da exegese e do

formalismo a partir de Savigny, ou seja, o normativismo do século XIX e não o

positivismo analítico do século XX, posterior ao próprio texto de Holmes) daqueles

que buscavam uma descrição mais sociológica do direito, um olhar para a

realidade do direito, refutando visões até então predominantes das fontes do

direito, sejam elas abstratas e metafísicas, sejam elas formalistas e institucionais.

64 GODOY, Arnaldo S. M. O realismo jurídico em Oliver Wendel Holmes Jr. Brasília: [s/n], 2006,

, nº 171, p. 92.

Page 46: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

34

O realismo jurídico iniciado por Holmes, continuado por Roscoe Pound

e aperfeiçoado por Jerome Frank consiste na consideração de que o direito não

pode ser apreendido de forma objetiva. O juiz, ao decidir os casos que lhe são

submetidos, cria direito aplicando a solução que entende correta em cada um

desses casos. Assim, o realismo afronta de forma direta e veemente alguns

institutos jurídicos caros à teoria do direito, como a chamada certeza jurídica, pois

a concebe, por exemplo, como “um mito a ser derrubado para se elevar sobre as

suas ruínas o direito como contínua e imprevisível criação.”65

A proposta da presente seção não é esgotar a discussão sobre o

realismo, mas somente verificar dentro da sua teoria qual teria sido o papel do juiz

nas decisões judiciais que profere. E, de fato, o que antes chamávamos de

discricionariedade, com uma nítida intenção de demonstrar que as teorias

positivistas hartianas e a tese da resposta correta de Dworkin não conseguiam

dela se desvencilhar, aqui no realismo americano a discricionariedade é regra de

julgamento, ou seja, modus operandi dos órgãos jurisdicionais.

Por essa razão, Holmes diria que os precedentes nada mais são que

profecias:

O processo é um, partindo da fala de um advogado de um caso, eliminando como faz com todos os elementos com os quais a história de seu cliente o vestiu [o caso], e mantendo somente os fatos de importância legal, até a análise final e abstração universal de jurisprudência teórica. A razão pela qual um advogado não menciona que o seu cliente vestiu um chapéu branco quando nós fizemos um contrato, enquanto o Sr. Malandro teria certeza de residir sob a partícula de cálice parcialmente dourado e fogo de carvão do mar, que ele prevê que a força pública vai agir da mesma forma independentemente do que seu cliente tinha sobre a cabeça. É para fazer com que as profecias sejam mais fáceis de serem lembradas e para que sejam entendidas que o ensino das decisões do passado são colocados em proposições gerais e compilados em livros, ou que os estatutos são passadas de forma geral. Os direitos e deveres primários com os quais a jurisprudência se ocupa não são nada além de profecias.66

65 BOBBIO, Norberto, Teoria da Norma jurídica, op. cit., p. 66. 66 ”The process is one, from a lawyer’s statement of a case, eliminating as it does all the dramatic

elements with which his client’s story has clothed it, and retaining only the facts of legal import, up to the final analyses and abstract universals of theoretic jurisprudence. The reason why a lawyer does not mention that his client wore a white hat when we made a contract, while Mrs. Quickly would be sure to dwell upon it along whit de parcel gilt goblet and the sea-coal fire, is that he

Page 47: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

35

Como se pode observar, segurança jurídica, coisa julgada e direito

adquirido são institutos jurídicos praticamente desconsiderados para o realismo

jurídico estadunidense, o que demonstra que uma atuação jurisdicional com esse

respaldo teórico tem alta carga de discricionariedade.

Por óbvio que também se deve considerar que a tradição jurídica em

que o realismo jurídico é desenvolvido destoa da tradição continental europeia,

em que a norma jurídica é positivada através de signos textuais em documentos

publicados e institucionalizados pelo Estado. Mas isso não quer dizer que é

completamente diferente. Como se verá no item “2.2” do próximo capítulo, a ratio

decidendi que justifica a aplicação dos precedentes no common law também é

conhecida a partir de signos textuais, capazes de, por analogia, autorizar a

verificação da racionalidade jurídica das decisões.

O realismo jurídico, portanto, mostra-se como o fim da linha da teoria

do direito na tentativa de conter a discricionariedade dos juízes na prolação de

suas sentenças. Seu viés sociológico, que beira o psicológico na forma como a

decisão judicial é descrita por Jerome Frank, chega a caçoar das teorias

tradicionais do direito. Este autor, talvez o que com mais incisão tenha defendido

a posição do realismo norte-americano, afirma que a ideia de que as normas

jurídicas sempre podem ser predicadas não passa de uma ilusão, a qual teria

como pressuposto um desejo de que o universo pudesse ser controlado, e de que

o homem, em suas relações interpessoais, nunca pecaria contra a confiança

mútua que estabelece as relações de confiança.67

A descrença de Frank é tão enfática quanto à possibilidade de prever

os julgamentos judiciais, e de controlar, assim, as decisões que serão proferidas

pelos juízes e tribunais, que afirma:

Consequentemente o mito que julga não tem poder de mudar o direito existente ou fazer novo direito: é um engrandecimento

foresees that the public force will act in the same way whatever his client had upon his head. It is to make the prophecies easier to be remembered and to be understood that the teaching of the decisions of the past are put into a general propositions and gathered into textbooks, or that statutes are passed in a general form. The primary rights and duties with which jurisprudence busies itself again are nothing but prophecies.” HOLMES, Oliver W. The Path of the Law. Harvard Law Review, 1897, [s.p.].

67 FRANK, Jerome. Law and the Modern Mind: chapter IV – Judicial Law-Making, [s.a.] p. 34.

Page 48: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

36

exacerbado direto de uma necessidade subjetiva para acreditar em um mundo legal estável e aproximadamente inalterável – em efeito, o mundo de uma criança.68

Sendo assim, seja no positivismo hartiano, seja em Dworkin, seja nas

teorias argumentativas, não se pode evitar a discricionariedade por parte dos

tribunais e juízes na qualificação jurídica dos fatos, especialmente se a legislação,

os precedentes verticais – vinculação que as decisões de tribunais superiores

exigem quanto às decisões dos tribunais inferiores e dos juízes singulares – ou as

técnicas de hermenêutica não se mostram capazes de apresentar uma única

solução prima facie69, muito menos uma forma de afirmar com certa segurança e

previsibilidade como é que os julgadores irão qualificar fatos e interpretar normas

de uma forma universalizável e geral.

Essa realidade, como se pode observar pelas noções que o realismo

apresenta, torna inevitável a consideração de que a Teoria do direito até os dias

de hoje não foi capaz de criar técnicas formais de controle das decisões judiciais,

tanto quanto ao seu resultado quanto em relação ao raciocínio empreendido pelo

julgador para justificar a decisão que está tomando. Ora, isso, de per si, afasta

qualquer pretensão de consideração de racionalidade da uma decisão, salvo no

âmbito interno onde as premissas lançadas pelo julgador já são apresentadas

como validamente corretas. Se se mostra difícil considerar qual será o resultado

da apreciação de um caso por um órgão judicial, quanto mais adentrar nos

meandros que o conduziram, a partir da própria racionalidade desse órgão, a

alcançar a solução proferida.

Observe-se que a proposta de Frank não considera que os juízes são

sabedores dessa realidade jurídica, e que por essa razão decidem sem nenhum

grau de responsabilidade ou dever de observação à aceitação pública. Para o

autor, a questão reside no fato de as decisões judiciais sempre serem, na prática,

ex post facto, ou seja, a aplicação da norma pelo julgador sempre ocorrerá após o

fato que justifica a aplicação da norma jurídica, sendo esta conhecida somente

naquele momento da história, na hora do julgamento. Logo, a ideia de que as

68 “Hence the myth that the judges have no power to change existing law or make new law: it is a

direct outgrowth of a subjective need for believing in a stable, approximately unalterable legal world – in effect, a child’s world.” Ibid, p. 35.

69 CELLA, op. cit., p. 22.

Page 49: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

37

pessoas se encontram protegidas pelas leis não passa de uma ilusão, uma ilusão

preventiva que o mito das normas produz.70

A aceitação dessa realidade fragiliza alguns dos fundamentos

democráticos mais caros para os direitos fundamentais, como por exemplo a

separação das funções. Talvez, o realismo propalado por Holmes e Frank esteja

muito mais ligado às características da Revolução Americana, de característica

muito mais historicista que rompedora como a da realidade francesa, em que os

juízes protegiam a monarquia e os aristocratas, e buscavam manter o status quo

ante no momento pré-revolucionário.71

Frank tem consciência disso, já que, após apresentar sua ideia

estritamente pragmática, passa a refutar eventuais argumentos que contestariam

a legitimidade e autoridade dos juízes de ocuparem seus cargos públicos e de

decidirem sobre tais questões. A resposta que o autor propõe é a de que nem

sequer os juízes sabem que estão criando direito. Afirma que, diferentemente de

enganar e de mentir acerca das decisões que proferem, os juízes são eles

mesmos enganados pela ideia de que o direito é pré-existentes às decisões que

proferem.72

Kelsen já teria, de certa forma, criado essa hipótese ao falar da

interpretação e da aplicação do direito na sua teoria distingui-se da própria teoria,

cuja serventia afirmada pelo autor é declaradamente descritiva:

Daí resulta que todo o ato jurídico em que o Direito é aplicado, quer seja um ato de criação jurídica quer seja um ato de pura execução, é, em parte, determinado pelo Direito e, em parte, indeterminado. A indeterminação pode respeitar tanto ao fato (pressuposto) condicionante com à conseqüência condicionada. A indeterminação pode mesmo ser intencional, quer dizer, estar na intenção do órgão que estabeleceu a norma a aplicar.73

Entretanto, em que pese parecer haver diálogo, no sentido de que há

uma espécie de espaço criativo para o intérprete e, portanto, de

70 FRANK, Jerome, op. cit, p. 37. 71 FIORAVANTI, Maurizio. Los derechos fondamentales. Apuntes de historia de las

constituciones. Tradução de Manuel Martinez Neira. Madrid: Ed. Trotta, 1996, p. 27. 72 FRANK, Jerome, op. cit, p. 38. 73 KELSEN, Hans, 1985, op. cit, p. 393.

Page 50: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

38

discricionariedade, não se verifica nada em comum além dessa margem de

escolha. A teoria kelseniana parte do pressuposto de existência de determinação

legal, ainda que indeterminada na forma da aplicação desse direito, concebendo

ainda a possibilidade de essa característica ser intencional. O realismo judicial,

por sua vez, tem outro pressuposto, diametralmente diferente. Considera a

tomada de uma decisão, ou seja, a formação de uma convicção para, somente

após, passar-se a fundamentar e escolher quais seriam os fundamentos racionais

explícitos responsáveis pela carga de legitimidade e – talvez nem sequer possa

se afirmar isso nesse tipo de teoria – racionalidade da decisão judicial.

A visão do direito no realismo jurídico norte-americano concentra-se na

prática dos tribunais e na consideração de que o juiz é aquele que detém o poder

de utilizar a força do Estado para fazer suas decisões serem efetivadas.74 Por

essa razão, na perspectiva do julgador, o direito deve ser entendido tal qual um

bad man o enxerga: como uma profecia do que pode lhe acontecer quando não o

respeita. Logo, “profecias do que de fato farão os tribunais”75, pois o bad man

somente cumpre com as normas jurídicas em razão das consequências que elas

preveem, e não por questões morais.76

A justificativa do bad man de Holmes seria de que o consumidor do

direito é o “fora da lei”, o “bandido”, e que por essa razão os juízes deveriam em

suas decisões raciocinar que o direito está no topo do poder estatal, estando a

eles submetido tanto os cidadãos como os próprios governantes, todos podendo

ser responsabilizados pela sua não observância. Isso teria origem na ótica

federalista que justificava a posição do juiz como superior a qualquer poder.

Assim, Holmes afastava a moral do direito, não no sentido de que ambas não se

correlacionavam, mas que o direito é simples aplicação das consequências fáticas

que o direito prevê.77

74 GODOY, Arnaldo S.M. Introdução ao Realismo Jurídico Norte-Americano. Brasília: edição do autor, 2013.p. 66. 75 Cf. HOLMES, Oliver W. Path of the Law. Tradução de Lauro Frederico Barbosa da Silveira e de Vinício C. Martinez. Campo Mourão: Rev. Discurso Jurídico, 2008, v. 4, n. 1, p. 270. 76 Cf. Idem. 77 GODOY, Arnaldo, 2013, p. 64.

Page 51: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

39

Tal é também parte do pensamento positivista, mas que, apesar de

também ter a consequência jurídica como sanção na estrutura de seu conceito,

diferentemente do realismo, considera a aplicação do direito dependente da

existência da previsibilidade que as normas jurídicas fornecem.

Justamente em razão dessas diferenças é que Bobbio afirma que o

realismo se confronta com o direito natural e o direito positivo, para desmantelar

qualquer pedra sobre pedra na consideração prévia do direito que é aplicado,

como se fosse capaz de proporcionar certa segurança aos súditos da ordem

jurídica. O centro do realismo, assim, estaria dentro da eficácia do direito, na sua

efetiva repercussão nos litígios que são levados à apreciação dos juízes e das

cortes.78

Mas não se pode negar que a contribuição que o realismo fornece é

inegável quanto à dose de realidade que se testemunha na prática forense

cotidiana. No Brasil, por exemplo, assiste-se a um fenômeno em que os juízes e

tribunais, a fim de justificarem decisões que não encontram respaldo legislativo,

ou o possuindo esquivam-se dele por considerar seus efeitos injustos. O

problema, entretanto, é que essa injustiça não parte de uma conceituação jurídica

pautada pelo direito vigente e positivo – o que poderia ser uma visão “jurídica“ de

justiça – mas de conceitos de justiça pertencentes a outras searas, como a

sociologia, a filosofia e a política, as quais justamente em razão da diferença de

seus referenciais teóricos não permitem uma unanimidade na formulação de seu

conceito.

Já em outras ocasiões, sob influência da teoria dworkiana de

princípios, em que já foi demonstrada nas linhas anteriores sua concepção de

certa forma equivocada, os órgãos julgadores brasileiros, na falta de fundamentos

jurídicos por vezes os criam, dando a eles uma roupagem jurídica, mas que na

essência nem sequer correspondem ao direito.

Nesse sentido, a crítica de Lênio Streck mostra-se pertinente, para

quem:

78 Cf. BOBBIO, Norberto, op. cit, p. 62.

Page 52: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

40

[...] deslocar o problema da atribuição de sentido para a consciência é apostar, em plena era do predomínio da linguagem, no individualismo do sujeito que ‘constrói’ o seu próprio objeto de conhecimento. Pensar assim é acreditar que o conhecimento deve estar fundado em estados de experiência interiores e pessoais, não se conseguindo estabelecer uma relação direta entre esses estados e o conhecimento objetivo [...]. Isso, aliás, tornou-se lugar comum no âmbito do imaginário dos juristas. [...] Por vezes, em artigos, livros, entrevistas ou julgamentos, os juízes [...] deixam ‘claro’ que estão julgando ‘de acordo com a consciência’ ou ‘seu entendimento pessoal sobre o sentido da lei’, Em outras circinstâncias, essa questão aparece devidamente teorizada sob o manto do poder discricionário dos juízes.79

Como se procurou demonstrar até aqui, e nesse aspecto deve-se

torcer o braço aos realistas, a teoria do direito, apesar de criticar e teorizar a

discricionariedade diuturnamente testemunhada nas decisões judiciais, ainda não

foi capaz de apresentar um modelo ou forma que controle essa questão. As

decisões judiciais, especialmente nos casos em que a subsunção da norma ao

fato não se mostra de fácil acoplamento, ou ainda em que aquela norma que

naturalmente se aplicaria não ser aquela que o julgador decide usar, a opção

pessoal ou consciência particular prevalece sobre qualquer delimitação de

racionalidade e coerência com o direito vigente.

Essa realidade também pode ser encarada de outra forma.

José Rodrigo Rodrigues, em pesquisa envolvendo a racionalidade das

decisões judiciais brasileiras – o que será propriamente explorado no segundo

capítulo dessa dissertação – identifica que o modelo de racionalidade jurídica

adotado pelos órgãos judiciais brasileiros é caracterizado pela invocação de

autoridades (nesse modelo de argumento desinteressa o porquê da decisão, mas

somente quem a profere, sendo o objetivo de sua utilização o resultado da

decisão) e por uma jurisdição opinativa (nesse modelo de decisão, a força

gravitacional que sustenta os argumentos não é a melhor decisão para o caso,

mas sim a opinião personalíssima do julgador).80

79 STRECK, Lenio. O que é isto – decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria

do Advogado, 2012, 3.ed., p. 20. 80 RODRIGUES, José. R. Como decidem as cortes? Para uma crítica do direito (brasileiro).

Rio de Janeiro: FGV, 2013, p. 82.

Page 53: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

41

Conforme o autor, especialmente nos órgãos colegiados (tribunais), as

decisões são tomadas sem nenhuma organização dos argumentos que decidirão

o caso. Isso torna a decisão uma jurisprudência de resultado, vez que a ratio

decindi não se mostra importante ou relevante para o julgamento da questão. Os

integrantes dos colegiados, especialmente no caso dos Tribunais Superiores, e

especialmente quando os casos são de repercussão social, apresentam suas

opiniões quanto aos fundamentos que entendem devidos para a solução da

disputa. Rodrigues, assim, descreve que uma mesma decisão favorável (ou

desfavorável) à parte recorrente poderá possuir diversos argumentos para

sustentar a sua racionalidade jurídica, mas isso não será em momento nenhum

levado em consideração.

Ocorre que as decisões proferidas por essa jurisprudência de resultado

acabam sendo, sob a ótica da discricionariedade, uma realidade tangível nos

órgãos judiciais brasileiros. Rodrigues demonstra em sua obra que em decisões

proferidas por alguns Tribunais Superiores (Tribunal Superior do Trabalho,

Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça, respectivamente), ora o

fundamento de uma decisão está nas opiniões pessoais dos julgadores, sem

nenhuma racionalidade ou deliberação justificadora dos argumentos da decisão81;

ora os fundamentos da decisão são as próprias opiniões pessoais dos julgadores

já manifestadas em outras decisões82 e; ora são utilizados diversos argumentos

justapostos sem nenhuma correlação, e que ao fim e ao cabo, sequer são

exteriorizados na transcrição do julgamento83.

Disso tudo, pode-se concluir que a jurisdição brasileira admite e

institucionaliza a discricionariedade nas decisões judiciais. Essa

discricionariedade, apesar de não utilizar nenhuma espécie de argumentação –

apesar de muitas vezes passar perto disso – autoriza que os julgadores (juízes e

tribunais) decidam conforme seu livre convencimento, a partir de razões

particulares (jurídicas ou não jurídicas), sem nenhuma sistematização ou

organização. Isso acaba permitindo uma discricionariedade na utilização dos

81 Ibid, p. 86-89. 82 Ibid, p. 90-97. 83 Ibid, p. 98-102.

Page 54: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

42

argumentos, sem que eles necessariamente sejam racionalmente construídos ou

consoantes entre si.

Como demonstrado por Rodrigues, os argumentos utilizados nas

decisões são, em sua grande maioria, de autoridade, o que afasta a necessidade

de demonstrar a racionalidade da aplicação do direito utilizando tão-somente a

autoridade do órgão prolator ou do doutrinador citado como justificativa para o

acatamento da tese. Além disso, esses argumentos de autoridade nem sequer

são demonstrados como correlacionados com o julgamento da causa, ou seja, a

pertinência fática em relação aos argumentos externados não e demonstrada, o

que torna, não poucas vezes, a realidade do caso e os argumentos que

justificaram as decisões discrepantes entre si.

Mas “o direito não é (não pode ser) aquilo que o intérprete quer que ele

seja”84. Apesar do dilema85 que essa forma de aplicação do direito envolve,

acredita-se que a racionalidade jurídica sob uma forma analítica, com a aplicação

de uma lógica subjacente86, pode contribuir para o resgate, ao menos em parte,

para a coerência das decisões judicias. Esse ressurgir, muito mais tímido e

particular que se imagina, apesar de se equivaler de alguns conceitos lógico-

matemáticos de alguns ensaios de teoria do direito nos séculos XIX e XX, não

tenta fazer ressurgir essas questões de certa forma já superadas pelas teorias da

argumentação jurídica e do positivismo jurídico pós-hartiano.

84 STRECK, Lenio, op. cit, p. 25. 85 ATIENZA, Manuel, op. cit, p. 226. 86 Em razão da brevidade da presente dissertação, o que torna impossível a especificação e

descrição daquilo que seria uma lógica analítica apropriada para o desenvolvimento da regra de razão prática particular do autoprecedente, e sua aplicação por meio de um sistema eletrônico experto, utilizar-se-á a expressão “lógica subjacente” no sentido de que o raciocínio da decisão judicial, se analisado a partir de uma lente analítica, pode depreender a existência de uma estrutura formal dedutiva lógica. A opção por não defender uma espécie de lógica dentre as diversas existentes justifica-se, além do espaço dessa dissertação, na complexidade filosófica que ostentam, o que pode ser inferido pela seguinte afirmação de Susan Haack:” Uma coisa pelo menos deve estar inteiramente clara por ora: que a questão se um sistema formal deve ser considerado como uma lógica ou não é, ela própria, uma questão que envolve problemas filosóficos bastante profundos e difíceis. O melhor é que a presença universal dos problemas filosóficos na lógica esteja evidente desde o princípio. Pois o próprio rigor, que é a principal virtude da lógica formal, também tende a lhe dar um ar de autoridade, como se ela estivesse acima do exame filosófico. E esta é também uma razão pela qual enfatizo a pluralidade dos sistemas lógicos; pois, ao se decidir sobre alternativas, frequentemente se é obrigado a reconhecer preconcepções metafísicas ou epistemológicas que, de outra maneira, permaneceriam implícitas.” HAACK, Susan. Filosofia das lógicas. Tradução de Cezar Augusto Mortari e Luiz Henrique de Araújo Dutra. São Paulo: UNESP, 2002, p. 36.

Page 55: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

43

Apesar de se reconhecer que a discricionariedade judicial é uma

realidade inevitável nas decisões judiciais e, especialmente, nas decisões dos

juízes brasileiros, as linhas precedentes tiveram como objetivo demonstrar que a

teoria do direito não possui de maneira unânime e universal uma fórmula ou

método capaz de determinar o acerto de uma decisão. Como se pode ver, os

julgadores, sejam singulares ou colegiados, ainda transitam triunfantes pela

discricionariedade judicial, respaldados, inclusive, por parte da teoria do direito.

Essa postura, que justifica este estudo, afronta, entre outros, o princípio

democrático da separação das funções, e, portanto, o próprio Estado democrático

de direito, trazendo uma confusão de papeis já há muito tempo denunciada por

Waldron, que, ao comentar a teoria positivista de Hart, assim tratou dessa

questão:

Em uma sociedade ‘pré-jurídica’, isto é, uma sociedade governada por um conjunto de práticas morais e convencionais, todos conhecem as regras. A transição para a governança jurídica, porém, e o estabelecimento de regras de reconhecimento inevitavelmente implicam o surgimento de um exército de detectores de leis especializados, que conhecem as marcas da legislação e sabem como dizer quais regras receberam deliberadamente autoridade e quais não receberam.87

E mais:

Os juízes erguem-se acima de nós no seu solitário esplendor, com seus livros, seu saber e seu isolamento das condições da vida comum. Se não estão sozinhos na banca, estão rodeados por um número bem pequeno de íntimos de distinção similar, com os quais podem cultivar relações de espírito acadêmico, erudição e virtude exclusiva. Um parlamento, em contraste, é um corpo rebelde, muitas vezes maior que esse número – talvez até centena de vezes maior.88

Portanto, a discricionariedade judicial repercute na questão da

legitimidade dos juízes e tribunais, no princípio democrático da separação das

funções e, por fim, na teoria das fontes do direito.

87 WALDRON, Jeremy. A dignidade da legislação. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo:

Martins Fontes, 2003, p. 16. 88 Idib, p. 37.

Page 56: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

44

Entretanto, a fim de justificar a proposta dessa pesquisa –

autoprecedente como regra de razão prática das decisões judiciais – melhor

explicitada no terceiro capítulo desse trabalho, mostra-se imprescindível adentrar

em duas searas, objeto do próximo capítulo, que servirão como fundamentos para

a proposta que se apresenta ao fim: a lógica jurídica e a teoria dos precedentes.

Page 57: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

45

CAPÍTULO 2

LÓGICA JURÍDICA E PRECEDENTES

De um ponto de vista filosófico, a decisão judicial consiste em um

empreendimento intelectual manifestado por um discurso argumentativo. De um

ponto de vista sociológico, é uma forma de resolução de conflitos sociais entre

reivindicantes de direitos contrapostos. Desse modo, como o discurso da decisão

precisa demonstrar quem é o reivindicante que tem direito, e isso ocorre por meio

de argumentos, inegável que a decisão judicial deva ser racional.

A racionalidade representa a característica típica dos homens de

abstrair por meio de ideias o sentido do mundo e das coisas que o preenchem, o

que se faz a partir do pensamento. Este, por sua vez, traduz-se na imaginação

que correlaciona tudo aquilo que faz parte da experiência humana e que, através

de uma atividade cerebral, permite que o conhecimento sobre as coisas, quando

interrelacionadas entre si, seja renovado por meio de descobertas de coisas e

realidades até então desconhecidas.

Pela sua característica imaterial, o pensamento somente pode ser

conhecido quando manifestado por meio da linguagem, seja qual for a sua forma.

Entretanto, como é possível verificar se um pensamento exteriorizado através da

linguagem está correto ou apresenta-se verdadeiro? Aqui surge a lógica como

ferramenta tecnológica capaz de aferir a validade ou a correção de uma

expressão linguística externada por alguém.

Na seara do direito, essa possibilidade de verificação de validade e

correção é conhecida como lógica jurídica, vez que, como já visto no capítulo

anterior, o raciocínio jurídico e a consideração do que é racional, correto ou válido

para a ciência do direito não é unânime entre os seus teóricos.

Segundo Perelman, a lógica jurídica deve ser vista de uma forma

particular e específica, não da forma como a filosofia a compreende e a utiliza

para responder perguntas gerais a partir do uso de estruturas formais do

pensamento. Para referido autor, a racionalidade jurídica, na formação do

Page 58: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

46

pensamento, organiza as ideias a partir de exemplos e de analogias a outras

decisões judiciais consideradas racionais pela comunidade jurídica.89 Quer-se

chegar em uma conclusão diversa com esta dissertação

A ideia perelmeniana, como já demonstrado no capítulo anterior, parte

do pressuposto de que a lógica jurídica teria nas formas dialética e retórica sua

racionalidade. Entretanto, especialmente diante dos avanços que as tecnologias

da informação e comunicação promoveram desde meados do século XX90,

acredita-se que cogitar uma nova forma de ver o direito através do uso dessas

tecnologias, perpasse por uma revisitação nos fundamentos básicos da lógica

analítica e matemática a fim de identificar quais seriam algumas das razões que

frustraram os projetos nesse sentido, especialmente após as Grandes Guerras.

Por essa razão, partindo da hipótese de que a lógica dialética não

proporciona controle à decisão judicial, e a fim de falsear a premissa

perelmaniana de que a racionalidade jurídica está intimamente ligada aos

precedentes dos órgãos judiciais, tentar-se-á nesse capítulo correlacionar

algumas teorias analíticas da racionalidade jurídica, para compreender quais são

as características que delimitam e justificam a racionalidade jurídica analítica, com

os chamados precedentes, buscando entender as características dos exemplos e

analogias, supostamente essenciais ao pensamento jurídico racional.

2.1 LÓGICA JURÍDICA

2.1.1 Lógicas Analítica e Dialética Antigas

Aristóteles, em sua obra Primeiros Analíticos, apresentou ao mundo

método capaz de conhecer, pelo raciocínio dedutivo, a veracidade de uma

demonstração externada a partir de uma afirmação linguística, ao que se

denomina de lógica silogística. Afirmava que toda estrutura de raciocínio dedutivo

é composto por proposições que afirmam ou negam uma coisa de outra. As

proposições, por sua vez, são constituídas por termos, elementos que são

89 PERELMAN, Chaïn, 1998, op. cit, p. 07. 90 Nesse sentido, ver: LÉVY, Pierre. Cibercultura. Tradução de Carlos Irineu da Costa. São Paulo:

Ed. 33, 1999; CASTELLS, Manuel. A Era da Informação: economia, sociedade e cultura, vol. 3, São Paulo: Paz e terra, 1999.

Page 59: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

47

atributos ou sujeitos a quem os atributos são atribuídos. E, por fim, o próprio

silogismo, que consiste no estabelecimento de duas proposições que levam a

uma conclusão necessária expressa por uma terceira proposição.91

O objetivo do filósofo era demonstrar uma estrutura formal para o

raciocínio, ou seja, qual é o caminho que se percorre para se chegar a uma

conclusão, e a observância desse caminho determinaria a sua veracidade ou

validade. Assim, quando o raciocínio mostrar-se correto ou válido, ter-se-ia então

um raciocínio lógico, o qual, por meio da linguagem, foi capaz de justificar, através

das proposições iniciais, conhecidas como premissas, a veracidade ou validade

da proposição final, ou seja, da conclusão. Isso caracterizaria o raciocínio lógico

analítico.

Tal raciocínio lógico silogístico ainda foi diferenciado por outra forma de

justificação do pensamento, o raciocínio lógico dialético, também proposto por

Aristóteles e objeto de suas as obras Tópicos, Retórica e Refutações Sofísiticas.

Nessas, Aristóteles diferencia o raciocínio dialético do analítico pelo fato de o

primeiro não se utilizar de premissas (proposições iniciais) irrefutáveis, mas sim

de proposições contendo elementos cujo conceito ou conteúdo são

presumidamente reconhecidos pelos ouvintes do discurso, ainda que não de

forma unânime, não sendo o objetivo dessa forma de raciocínio verificar a

veracidade ou validade da conclusão, mas simplesmente persuadir e convencer

àqueles a quem é dirigido o discurso.92

A conclusão que decorre do raciocínio dialético, apesar de usar a

mesma estrutura (três proposições, duas premissas iniciais, maior e menor, e

uma conclusiva), não se encerra em uma conclusão necessária, como ocorre no

raciocínio analítico, mas sim em uma provável ou plausível conclusão, aceitável

àqueles que participam do discurso.

Conforme já visto no primeiro capítulo desta dissertação, a decisão

judicial pretensiosamente correta e justa não admite um raciocínio puramente

91 ARISTÓTELES. Tratados de Lógica (El Organon). Tradução de Francisco Larroyo. México

D.F.: Editorial Porrúa, 1993, p. 71. 92 Cf. PERELMAN, Chaïn, 1998, op. cit, p. 02.

Page 60: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

48

analítico e formal, estando mais próxima de um raciocínio dialético, construído a

partir da concatenação de argumentos.93 Isso, entretanto, pode ser revisto a partir

de lógicas formais contemporâneas.

Ocorre que a história, outrora, testemunhou tentativas de fazer da

decisão judicial um raciocínio analítico. Havia, no passado, uma investida em

caracterizar a lógica jurídica como decorrente do raciocínio analítico. E para

compreender quando e como se pospôs essa tentativa, apresentar-se-á adiante

um esboço de tal empreendimento racional-analítico.

2.1.2 Lógica Jurídica Analítica.

Enquanto na Idade Média Deus era a fonte produtora do direito

manifestado pelo empreendimento interpretativo da Igreja, a libertação promovida

pela razão, que também deu azo às Revoluções Liberais dos setencentos,

acabou reposicionando a racionalidade como fonte de onde se deriva a

organização social e, consequentemente, as normas jurídicas também foram

influenciadas.

Nesse momento, de substituição do místico pela razão, que ressurgem

algumas ideias aristotélicas da estrutura do raciocínio. Até então, enquanto as

premissas pra encontrar a verdade e o justo eram determinadas pelo

sobrenatural, não era possível, pelo raciocínio lógico, atribuir equívocos ou

contestar à correção das decisões judiciais. Aliás, nem sequer se cogitava, em um

sentido geral, discutir a racionalidade das decisões. Ora, as premissas

determinadas pelos textos sagrados eram inacessíveis à maioria das pessoas em

razão da barreira linguística dos idiomas grego e latim. Nesse contexto, sendo a

igreja investida da primazia na interpretação dos textos e detendo o poder de

influenciar o julgamento, inexistiam argumentos para justificar qualquer afirmação

de falta de racionalidade.

Com a modernidade, elegeu-se a razão como fonte criadora do direito,

o que veio proporcionar a constatação lógica das decisões proferidas pelos

julgadores. Entretanto, sob a influência das matemáticas e disciplinas empiristas,

93 Cf. MACCORMICK, Neil, op. cit, p. 05-08.

Page 61: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

49

a comunidade científica desse período somente caracterizava como científico o

que fosse aferível no plano cartesiano, ou seja, somente se atribuía cientificidade

àquilo que fosse passível de racionalização formal e confirmação pela

experiência, e isso a partir de evidências.94

Nessa toada, a teoria do direito passou a ensaiar a aplicação da lógica

analítica ao emprego do direito pelas normas positivadas. Constituindo, essa

aplicação, nada mais que a subsunção do fato à norma, o juiz e sua decisão

passaram a exercer papel fundamental na organização do Estado.

A discussão de Chevalier sobre o poder no Estado de direito no

período pós-revolucionário demonstra, de forma cabal, especialmente na França,

essa realidade de resgate da lógica silogística à racionalidade jurídica:

[...] personagem-chave do Estado de Direito, o juiz se vê atribuído com a função de garantir o respeito às leis; mas essa função é percebida como uma função ‘objetiva’, excluindo toda margem de livre determinação. Se o controle jurisdicional não degenera em ‘governo de juízes’, isso é porque o trabalho jurisdicional deve ser de natureza puramente dedutiva; o juiz estaria somente ‘aplicando’ a lei, tirando as consequencias da hierarquia das normas; a serviço exclusivo da norma, ele mesmo não exerceria ‘poder’. E a sua independência apenas testemunharia a transcendência do direito em relação ao político. Os constituintes perceberão dessa forma a função exercida pelos juízes como uma função de aplicação puramente mecânica da lei: julgar consiste, ao termo de um raciocínio silogístico, em fazer aplicação de lei às situações particulares.95

A crença de que o direito se resumia à aplicação da lei por meio de um

empreendimento silogístico, nada mais que isso, revela-se, portanto, como

herança das Revoluções Liberais que apregoaram o exercício do poder pelo povo

e para o povo e do princípio da separação das funções, de Montesquieu, como

demonstrado.

A decisão judicial, portanto, era formalmente estruturada em um

simples silogismo, agora judiciário: enquanto a premissa maior consistia na regra

94 PERELMAN, Chaïn; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação. A Nova

Retórica. Tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 03

95 CHEVALIER, Jacques. O Estado de Direito. Tradução de Antonio Araldo Ferraz Dal Pozzo. Belo Horizonte: Fórum, 2013, p. 56,

Page 62: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

50

de direito apropriada ao caso que exigia a solução judicial, a premissa menor era

caracterizada pelo preenchimento das hipóteses previstas na regra (sendo este o

verdadeiro trabalho racional do juiz, subsumir o fato à norma), consistindo, pois, a

proposição conclusiva a própria decisão judicial.

Para tal desiderato, era necessário que a doutrina jurídica criasse um

sistema de direito a partir da legislação vigente que englobasse a totalidade dos

fatos da vida passíveis de regulamentação. Além disso, era preciso que o objeto

de ditas previsões normativas não estivesse assentado sobre duas ou mais

regras distintas umas das outras, impossíveis de serem aplicadas

concomitantemente. Situação tal impediria o juiz de distinguir, diante do caso

concreto, a norma a ser devidamente aplicada.

Tampouco poderiam coexistir normas contraditórias entre si; ora,

ordenando, ora permitindo, ora proibindo (e assim por diante) uma mesma

conduta ou situação. Logo, a aplicação de uma jurisprudência mecânica

dependeria da perfeição do sistema de leis criadas pelo Estado de direito.96

Todavia, a exigência de um sistema normativo completo, conforme o

propunha o período pós-revolucionário, não passou de uma ilusão. Não há que se

confundir a pretensão de que um sistema jurídico seja efetivamente completo,

conforme “o chamado postulado da plenitude hermética do direito”, com a

pretensão de que todo sistema deva ser completo97, mesmo por que a função da

lógica jurídica, ao menos quanto à análise das normas jurídicas, passa a ser

prescritiva: “não diz como os homens pensam ou raciocinam de fato, apenas

como deveriam fazê-lo”98.

Justamente em razão de não ser raro falhar a completude do sistema,

os juízes franceses eram levados a utilizar uma regra prevista na Lei nº 1.624 de

agosto de 1790, que os obrigava a realizar expediente consultivo perante o

legislativo acerca da solução de casos que não tinham previsão nas leis vigentes.

96 Cf. PERELMAN, Chaïn, op. cit, p. 33-34. 97 “[...] el llamado postulado de la plenitud hermética del derecho.” Cf. ALCHOURRÓN, Carlos;

BULYGIN, Eugenio. Introdución a la metodologia de las ciencias juridicas e sociales. Buenos Aires: Astrea, 1998, p. 25.

98 ATIENZA, Manuel, op. cit, p. 30.

Page 63: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

51

Referida situação, conforme relata Perelman, teria conduzido a uma enxurrada de

procedimentos consultivos que inviabilizaram o julgamento dos casos, o que teria

promovido verdadeira indignação social. A solução para o problema gerado por

essa herança da Revolução teria vindo com o Código de Napoleão, em que se

passou a obrigar que os juízes decidissem os casos, mesmo diante de lacunas e

antinomias normativas, sob pena de punição por denegação da justiça, conforme

o art. 4º Código Napoleônico.99

Mas essa liberdade para julgar, semelhantemente ao período pré-

Revolução, acaba sendo novamente utilizada para o cometimento de abusos. A

Escola da Exegese (1804-1899) surge justamente para reduzir o âmbito da

deliberação judicial à previsão do Código de Napoleão. A função do juiz era,

conforme propagação da referida escola, estabelecer os fatos, a repercussão

normativa, motivando e fundamentando sua decisão a partir da qualificação

jurídica desses fatos.

Nesse aspecto, Perelman expõe quão grandes e radicais foram as

mudanças, geralmente marcadas por topois, que determinavam, por exemplo,

como deveria ser considerada a prova no tempo exegético. Na realidade, a

limitação da atividade decisional nesse momento histórico, então consistente na

qualificação jurídica dos fatos alegados pelas partes, demonstrou as decisões

como pré-determinadas na consideração das provas apresentadas pelas partes.

Mas, como essa consideração jurídica das provas haveria de estar definida na lei,

até aqui, não havia espaço para discricionariedade.

Assim, se uma regra prescrevesse que a prova testemunhal prevalecia

sobre a documental, o teor do testemunho determinava a decisão. Caso a norma

fosse alterada, dando maior peso à prova documental que ao testemunho, o teor

do documento mostrava-se determinante para o resultado da decisão.

Tais considerações denotam o engessamento da denominada livre

convicção do julgador. Segundo o autor, somente a partir da influência do direito

99 Cf. PERELMAN, Chaïn, op. cit, p. 24.

Page 64: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

52

penal se passou a admitir que a avaliação das provas dependesse também de um

esforço íntimo de convicção do juiz.100

Dessa forma, segundo a teoria exegética, que exigia que a obtenção

de uma conclusão se desse por um silogismo (judiciário), mesmo diante de

sistemas normativos incompletos caracterizados por lacunas e antinomias, a

decisão judicial passou a adotar, para tornar aquilo possível, técnicas próprias

que passaram a definir o raciocínio judiciário.

Ainda como consequência do resgate da razão como determinante da

vida em sociedade pelo iluminismo, surgiu o positivismo filosófico, o qual apesar

de repercutir na teoria do direito, não pode ser confundido com o positivismo

jurídico. Por positivismo filosófico considera-se:

[...] cada direção da filosofia e ciência que parte do positivo, dado, compreensível, somente nisso ou nessa descrição exata vê o objeto da investigação, rejeita cada metafísica de tipo transcendental e quer eliminar todos os conceitos do supra-sensível, de forças , casusas, sim, até, muitas vezes, as formas do pensar apriorístico (categorias) da ciência.101

Desse modo, se o positivismo filosófico somente considera como

objeto da ciência aquilo que é compreensível, portanto, fatos, essa corrente

filosófica não é capaz de investigar o direito, entendido esse como um sistema de

normas. Isso porque as normas jurídicas são, conforme ensina Kelsen, “sentidos

de fatos, ou seja, o sentido de atos de vontade dirigidos à conduta humana”.

Ocorre que a validez dessa norma depende de fatos. Nesse sentido, válida é a

norma que deve ser cumprida, e se não é cumprida gera uma sanção, prevista na

própria norma. Pois bem, seriam justamente esses fatos envolvendo o dever de

cumprir e a aplicação de sanções, ou seja, que condicionam a validade do direito,

o objeto do positivismo jurídico. E se esses fatos são atos humanos, para o

positivismo somente é direito àquilo que provem de uma conduta humana.102

100 Cf. Ibid, p. 31-37. 101 EISLER, Rudolf. Wörterbuch der philosophischen Begriffe, 4. Aufl., 2. Bd., 1929, S. 474, apud KELSEN, Hanz, 2010, op. cit, p. 85. 102 KELSEN, Hanz, 2010,op. cit, p. 86.

Page 65: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

53

Conforme relata Bobbio, o positivismo jurídico tinha como precursor

Kelsen, para quem “aquilo que constitui o direito como direito é a validade”, e não

a justiça, conforme preconizavam os defensores do direito natural103.

Mas a teoria de Kelsen consiste em método de descrever o direito,

visto como sistema de normas, considerando essas como fatos. Tratava-se de

uma teoria para o estudo científico do direito, razão por que as diferenças na

definição do que era moral, ético ou político precisavam ficar de fora. Essa teoria

do direito, apesar receber o legado de ter contribuído à posição jurídica do

nazismo, e de injustamente ser equiparada às posições jurídicas de Schmitt, um

dos pensadores do Estado nacional-socialista alemão dos meados do século XX,

afastava considerações filosóficas do estudo do direito por uma questão

pureza104.

Conforme relata Neumann, apesar de Schmitt ter sido enfático ao

afirmar que o Estado nacional-socialista não era um Estado de direito, mas sim

um Estado verdadeiramente justo, os discursos ideológicos constantemente

perpetrados pelo movimento nacional-socialista levaram referido filósofo a ceder

em sua posição, vez que um Estado justo sem ser um Estado de direito mostrava-

se sem sentido.

A liberdade dos juízes, existente antes da tomada do poder pelo

Partido dos Trabalhadores, declarada pelo próprio Hitler em discurso no

Reichstag em 23 de março de 1933, e que teria, inclusive, garantido os tempos

democráticos na República de Weimar, agora passava a ter nova significação.

Além de a decisão ser serva absoluta da lei, equiparando-se ao líder do Estado,

deixou de ser instrumento de proteção contra a turbação dos direitos estatais,

para se tornar mecanismo de ataque à hostilidade contra a ideologia nacional-

socialista.

A “forma legal” utilizada por Hitler foi a de rejeitar axiomas elementares

do direito. O primeiro axioma afastado relacionava-se à técnica de produzir leis

103 BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. Tradução de Fernando Pavan Baptista e Ariani

Bueno Sudatti. Bauru/SP: Edipro, 2001, p. 50 104 TORRANO, Bruno, op. cit, p. 158.

Page 66: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

54

particulares e não gerais. As normas particulares combatiam pontualmente todos

os inimigos do Partido Nacional Socialista.105

O segundo axioma atingido, da irretroatividade das normas no tempo,

também foi abolido. Tudo aquilo que era contrário à reconstrução do Reich, ainda

que por suspeita, era alcançada pela lei posterior. Não bastasse, como terceiro

axioma vituperado, a separação das funções também foi extirpada, tendo Hitler

assumido tanto a função executiva quanto a função legislativa. Por fim, a

independência dos juízes é fulminada com a incorporação pelo líder de todos os

poderes jurisdicionais, ao que se seguiu, exemplificadamente, a aplicação da

pena de morte aos revoltados de Roehm.106

Em que pese a realidade alemã ser caótica naquele período – dívida

resultante da 1ª guerra, desemprego, fome, ingovernabilidade, elevado número de

partidos políticos – a lei plenipotenciária de março de 1933 contrariava a própria

hierarquia de normas defendida pelo positivismo ao dispor em seu artigo segundo

que ”[...] ‘as leis do Reich aprovadas pelo governo podem desviar-se da

Constituição, desde que não incidam sobre a organização do ‘Reichstag’ e do

‘Reichsrat’ [...]”107.

A experiência alemã das décadas de 1930 e 1940 tratava a aplicação

do direito de forma exegética e formal. Mas isso não quer dizer que o positivismo

analítico do século XX tinha parte na empresa do partido nacional-socialista. Não

foi o positivismo, de per si, responsável pelos horrores vivenciados na experiência

do nazismo. Tratou-se, muito mais, de uma desconsideração de diversos axiomas

consolidados pelo direito, inclusive por autores positivistas, mas que naquele

momento restaram asfixiados pelos titulares do governo na época.

Como demonstra Bruno Torrano, ao contrário do que o senso comum

jurídico há tempos afirma, uma das metas do positivismo jurídico sempre foi o de

libertar os discursos em teoria do direito das frágeis e românticas afirmações que

105 Cf. NEUMANN, Frank. O Império do Direito. Teoria política e sistema jurídico na sociedade

moderna. Tradução de Rúrion Soares Melo. São Paulo: Quartier Latin, 2013, p. 477-482. 106 Cf. Idem. 107 CAENEGEM, R. C. van. Uma introdução histórica ao direito constitucional ocidental.

Tradução de Alexandre Vaz Pereira. Lisboa: Fundação Caloute Gulbenkian, 2009, p. 331.

Page 67: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

55

os defensores do direito natural afirmam, acreditando na benevolência natural e

intrínseca do ser humano. Por óbvio que isso não significava a aceitação das

maldades e iniquidades praticadas sob o argumento da legitimidade. Segundo o

autor:

Kelsen, como os demais positivistas, estava ciente de que a existência de sistemas jurídicos extremamente injustos é uma razão ainda mais forte para que o teórico coloque em suspenso as suas reações emotivas mais imediatas, a fim de que possa descrever e compreender a realidade iníqua tal como ela se apresenta, para, após, propor soluções razoáveis para que ela nunca mais se repita.108

Desse modo, quer-se cogitar que a experiência nazista não justifica o

afastamento da racionalidade analítica do direito, propagada por parte da teoria

do direito posterior a essa experiência, responsável pela integração da moral ao

estudo científico das normas jurídicas. Veja-se que tanto Kelsen quanto Hart eram

ressonantes na possibilidade de o juiz utilizar nas suas decisões, especialmente

quando o sistema de normas não dispusesse de hipótese específica, juízos

morais e políticos em sua decisão.109 Tal constatação prova que o próprio

positivismo do século XX solapou a exegese.

Mas ao se falar de lógica analítica não se pode mais concebê-la a partir

da lógica tradicional aristotélica. Nesse aspecto, Susan Haack afirmará que:

[...] é bom ter em mente que a própria ‘lógica clássica’ de hoje foi uma ‘inovação lógica’. Kant, afinal de contas, insistia (1800) que a lógica era uma ciência completa, em suas bases, na obra de Aristóteles. O século seguinte viu, contudo, o desenvolvimento de novas técnicas lógicas, mais fortes e mais rigorosas, com o trabalho de Boole, Peirce, Frege e Russell. Lembremos também que Frege supunha firmemente que os princípios de seu sistema lógico fossem auto-evidentes, até que Russell mostrou que eles eram inconsistentes.110

Assim, diante das diversas lógicas existentes, não se quer ousar

defender a utilização de um modelo de lógica em razão de outro. O que se pode

compreender, e que adiante tentar-se-á demonstrar, é que existe uma lógica

subjacente à racionalidade jurídica, nas decisões judicias, que se sustenta em

108 TORRANO, Bruno. Do fato à legalidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 157. 109 Nesse sentido, ver item “1.1” retro. 110 HAACK, Susan, op. cit, p. 208.

Page 68: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

56

deduções silogísticas expressadas por um discurso que pode ser formalmente

estruturado.

Um importante referencial da lógica jurídica analítica no século XX foi

Georges Kalinowski. Parece essencial, antes de aprofundar as questões

envolvendo os precedentes, para os fins propostos neste estudo, relatar a teoria

lógico-jurídica de referido autor.

A partir da ideia de que os raciocínios são atos discursivos que

consideram que uma proposição, com condições bem definidas, possui um valor

lógico determinado em razão da atribuição de proposições anteriores que

possuíam, igualmente, condições bem definidas e, portanto, valores lógicos

também determinados, Kalinowski afirma que o raciocínio que se utiliza de

operações discursivas “produzem encadeamento de juízos, e, portanto, como

cada juízo é significado por uma proposição, produzem encadeamentos de

proposições.”111.

De outro modo, as proposições do raciocínio são justificadas por

conclusões obtidas a partir de outras proposições, as quais seguem o mesmo

caminho regressivo. Assim, toda proposição em um raciocínio formal adviria de

uma conclusão decorrente de proposições anteriores, e assim por diante.

Estruturando esse raciocínio, as proposições caracterizarão como

autêntico um raciocínio quando forem admitidas como dotadas de um valor lógico

determinado, e a proposição que delas surgir, a nova proposição, também possua

um valor lógico determinado. Essa última proposição será a conclusão, enquanto

que as proposições que justificam a conclusão serão as premissas, termos que

não são novidades no presente capítulo.

Assim, continua Kalinowski, o motivo pelo qual a conclusão se

desprende das premissas iniciais é o fundamento do raciocínio, sendo, pois,

qualificado como jurídico aquele raciocínio exigido pela vida jurídica, ou seja,

111 “[...] producen encadenamientos de juicios, y, por lo tanto, como cada juicio es significado por

una proposición, producen encadenamientos de proposiciones.” Cf. KALINOWSKI, Georges. Introdución a la Logica Jurídica. Tradução de Juan A. Casaubon. Buenos Aires: EUDEBA, 1973, p. 145-146.

Page 69: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

57

efetuado por qualquer um que exerce uma atividade jurídica. Tal raciocínio, por

sua vez, é dividido em a) raciocínio jurídico de coação intelectual (puramente

lógicos), b) raciocínio jurídico de persuasão (retóricos) e c) raciocínios de

argumentação puramente jurídicos (extra-lógicos). 112

Para Kalinowski, somente os primeiros – raciocínios jurídicos de

coação intelectual – devem ser considerados na estrutura formal da lógica

jurídica. Esses se dividem, por sua vez, em a.1) normativos e a.2) não-

normativos.

Não-normativos seriam os raciocínios efetuados dentro dos casos

práticos e que visam verificar se os fatos alegados ocorreram ou não ocorreram, o

que dependerá sempre da análise da prova do direito invocado. Já o raciocínio

jurídico de coação intelectual normativo é aquele em que a proposição contém

uma norma jurídica que será utilizada como uma (ou várias, se existirem) das

premissas, mas também na conclusão. Assim, para Kalinowski, a atuação do juiz

sempre envolverá raciocínios jurídicos para comprovar fatos e inferir normas.113

Assim, para a lógica jurídica formal e, portanto, analítica, depurada

acima, a decisão judicial se utiliza de um raciocínio para encontrar a norma que

melhor se ajusta ou se aplica ao caso sob exame, considerada, essa execução,

como um raciocínio jurídico normativo; além deste, outro raciocínio que busca

concluir quais dos fatos narrados pelas partes envolvidas é o que será verdadeiro,

considerado este um raciocínio jurídico não-normativo.

Ocorre que, se o raciocínio é composto por proposições externadas por

discursos, e estes contém expressões linguísticas, como se pode afirmar que um

raciocínio está correto se não existir uma convenção dos signos utilizados nas

proposições? Consoante exemplifica Sampaio Júnior, “mesa” tanto pode significar

onde as pessoas se sentam, como o órgão responsável pela organização das

112 Cf. Ibid, p. 147-149. 113 Cf. Idem.

Page 70: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

58

deliberações legislativas e das manifestações de seus integrantes nas casas do

Congresso Nacional.114

Por essa razão é que Kalinowski, ao tratar do sistema jurídico como um

conjunto de proposições, entende que ele se comporta como a matemática e a

lógica, mas não de maneira uniformizada esses sistemas. Assevera que a

descrição do que é a lógica jurídica depende do estudo das propriedades que

compõem o sistema jurídico presentes e expressas nas proposições das

premissas, que apesar de não estarem formalmente delimitadas, são "sem dúvida

análogas às dos sistemas formalizados".

Mas, segundo ele, isso levaria à imprescindibilidade de se estudar os

axiomas (normas primeiras) do sistema do direito, ou seja, as primeiras

proposições com valores lógicos validamente considerados. Por outro lado,

geraria um segundo problema, agora de natureza filosófica, pois os axiomas

serão validamente considerados conforme, e dependendo, da corrente filosófica

dos participantes do discurso. Acontece que, se visto do prisma do direito natural,

os axiomas são impossíveis de serem conhecidos, porque intermináveis.

Entretanto, pelo prisma positivista, somente há um axioma, a norma hipotético-

fundamental de Kelsen115, ou a regra de reconhecimento de Hart.

Sob essa perspectiva, fica demonstrado que a possibilidade de se

compreender a decisão judicial como um silogismo formal, em que o julgador, a

partir de raciocínios jurídicos normativos e não-normativos que decorrem do

encadeamento de proposições com valores logicamente determinados, encontra,

além da própria barreira da pretensão de correção, o problema da semiótica

jurídica quanto aos elementos que serão utilizados nas próprias proposições.

Essa teria sido a constatação de Perelman, ao tratar das justificativas

apresentadas pelos juristas lógicos do século XX, em especial Klug e Kalinowski,

os quais consideravam como lógica jurídica somente aquela formal, equiparada à

aplicada na matemática:

114 SAMPAIO JUNIOR, Tércio Ferraz. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Atlas, 2003,

4ª ed, p. 258. 115 KALINOWSKI, Georges, op. cit., p. 59-60.

Page 71: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

59

[...] não é tarefa difícil a demonstração de que estes argumentos não são estruturas de pensamento puramente formais. Se assim fossem, seriam invariavelmente válidos e aplicados universalmente, em quaisquer situações. A aplicação simultânea dos argumentos ‘a simili’ e ‘a contrario’, todavia, leva a conclusões diametralmente opostas, donde decorre a necessidade de escolha entre uma e outra resposta, caso se deseje evitar qualquer contradição. Se, por exemplo, uma lei submete todos os jovens de uma certa idade ao serviço militar obrigatório, a inevitável conclusão, por aplicação do argumento ’a simili’, é a de que também estão submetidas ao mesmo dever as jovens do sexo feminino da mesma idade. De sua parte, mediante o argumento ‘a contrario’, elas estarão isentas desde mesmo dever.116

Talvez em virtude da constatação de Perelman, se olhado por uma

perspectiva prática, um "[...] sistema de direito é completo, se suas normas

permitem resolver qualquer problema jurídico consistente em determinar as

consequências jurídicas de um fato qualquer"117, pois o estudo dos signos da

linguagem e da comunicação (semiótica) no direito já comprovou que a decisão

judicial, por um lado, está permeada pelas diversas "ciências" do direito, como a

história do direito, a sociologia do direito, a psicologia do direito, mas por outro

prisma, de diversos caminhos desconhecidos, justamente em razão dos

"problemas eternos da filosofia do direito"118.

Dessa forma, apesar da contribuição que a lógica jurídica, aqui

caracterizada como analítica, proporcionou, e ainda proporciona à teoria do

direito, verifica-se que a universalização de qualquer estrutura formal esbarra nas

discrepâncias de sentidos e na aplicação de uma razão prática plenamente

aceitável. São problemas semânticos e filosóficos.

Prova disso é a doutrina dos conceitos, “que fixava de uma vez por

todas o sentido dos termos jurídicos, de modo que permitisse, a partir dos textos

116 PERELMAN, Chïn. Considerações sobre um lógica jurídica. Tradução de Cássio Scarpinella

Bueno. In: PERELMAN, Chïn. Ethique et Droit. Editions de l’Universite de Bruxelles, 1990, p. 03. 117“[...] sistema de derecho es completo, si sus normas permiten resolver cualquier problema

jurídico consistente en determinar las consecuencias jurídicas de um hecho cualquiera.” WRÓBLEWSKI, Jerzy. O tak swanym sylogizmie prawniczym, Zagadnienia prawa kamego i teorii prawa, Ksiega pamiatkowa ku czci prof. Wladyslawa Woltera, Warszawa, Wydawnictwo Prawnicze, 1959, págs. 227-241, apud KALINOWSKI, Georges, op. cit, p. 62.

118 KALINOWSKI, Georges, op, cit, p. 63.

Page 72: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

60

legais, um raciocínio tão estrito quanto dentro de um sistema matemático”119, ao

procurar sanar o problema semiótico da teoria do direito.

Não se nega que as decisões judiciais obedecem a uma estrutura

formal silogística, cuja premissa maior, decorrente do raciocínio jurídico

normativo, ou seja, da norma geral e abstrata, e a premissa menor, decorrente de

um raciocínio jurídico não-normativo, ou seja, da verificação de existência do

suporte fático da norma, permitem encontrar uma conclusão que aplica a norma

interpretativamente reconhecida ao fato processualmente provado.

O problema, na verdade, está na aceitação e na correção das

premissas maior e menor utilizadas, ou melhor, da correção ou aceitação do

raciocínio que justifica a utilização dessas premissas a partir de suas proposições.

Em outras palavras, o motivo por que não são utilizadas diferentes premissas,

fundamentadas em proposições diversas.

Consequentemente, as proposições utilizadas também são premissas

com proposições anteriores, que também dependem de sua aceitação e de sua

correção, o que pode tornar infinito o regresso da anuência e exatidão das

proposições utilizadas nas premissas anteriores.

Atribuindo-se a nomenclatura a Wroblewski, a justificação da decisão

judicial será denominada em seu âmbito imediato, ou seja, no silogismo que se

vale da premissa de direito identificada no sistema jurídico e da premissa de fato

processualmente provada, como justificação interna, enquanto que o raciocínio

que fundamentou a utilização de tais premissas em vez de outras possíveis – em

Kalinowski, raciocínio jurídico normativo para a obtenção da premissa de direito, e

raciocínio jurídico não-normativo para a obtenção da premissa de fato - será

conhecida como justificação externa.120

Assim, enquanto que no âmbito da justificação interna o raciocínio da

decisão judicial é silogístico, o caminho percorrido pelo julgador na justificação

119 PERELMAN, Chaïn, 1998, op. cit, p. 69-70. 120 WRÓBLEWSKI, Jerzy. legal decision and its justification. In: Le raisonnement juridique;

actas del Congreso Mundial de Filosofia Jurídico y Social. HUBIEN, H, org. Bruxelas: 1971, p. 409-419; WRÓBLEWSKI, Jerzy. Legal syllogism and rationality of judicial decision. Rechtstheorie, num. 5, 1974, p. 33-46, apud ATIENZA, Manuel, op. cit, p. 39-40.

Page 73: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

61

externa, dado as diferenças genéticas e conceituais dos juristas, se dará pela

argumentação jurídica.121

Isso torna sustentável a consideração da possibilidade de colaboração

de uma lógica jurídica analítica cujas premissas da justificação interna da decisão

judicial são consequências da argumentação jurídica nas considerações da

justificação externa das propriedades utilizadas no raciocínio lógico. As próximas

linhas propõem de forma breve e superficial a relação da argumentação com a

lógica jurídica.

2.1.3 Argumentação Jurídica.

A utilização de uma lógica dedutiva formal exige, na escolha de suas

premissas e, portanto, na justificação dos raciocínios utilizados no âmbito externo,

a argumentação jurídica do julgador. Entretanto, a análise lógica da linguagem

não se faz por meio de silogismos, mas a partir dos axiomas que a lógica

subjacente empregada os admite. Logo, admitir que a decisão judicial deva

observar um silogismo judicial mecânico não passa de uma ideia exegética, há

décadas ultrapassada.

As proposições empregadas no discurso dialético são probabilidades,

diferentemente das utilizadas em um âmbito analítico, que se importa com a

verdade. O discurso dialético tem como função convencer e persuadir os

receptores da mensagem, geralmente conhecidos como o auditório de todos e de

qualquer um, e não encontrar uma proposição conclusiva de uma verdade até

então desconhecida. O objetivo, então, do raciocínio dialético é, “quando

argumentamos em uma discussão, não adiantaria nada se nossas próprias

asserções fossem contraditórias”122.

A nova retórica, proposta por Perelman apresentou o silogismo

dialético como a única forma de tratamento lógico-racional das decisões judiciais.

121 ATIENZA, Manuel, idem. 122“[...] cuando sostenemos una discussión, a no adelantar nada que sea contradictorio a nuestras

propias aserciones.” ARISTÓTELES. op. cit, p. 223.

Page 74: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

62

No primeiro capítulo dessa dissertação, viu-se que a intenção do

positivismo como teoria do direito nunca foi a de impedir a consideração da moral

e da política nas decisões judiciais, mas justamente o inverso. O que os

positivistas pós-imperativistas defenderam é que a separação entre normas e

valores deveria se dar no campo da “ciência do Direito”; enquanto que, nos casos

de aplicação do direito, dada a subjetividade inerente do julgador, este se

equivaleria, sem dúvida nenhuma, de questões valorativas tais como

considerações morais e políticas. Trata-se do voluntarismo combatido por

Dworkin, que afirmava que na falta de previsão normativa, a decisão correta

deveria considerar argumentos de princípio.

A questão central da proposta perelmaniana, porém, é apresentar,

calcada na ideia aristotélica da lógica dialética, uma proposta de racionalidade

prática quanto aos juízos de valor utilizados na aplicação do direito, incluindo,

portanto, as decisões judiciais, o que seria possível a partir da utilização da

argumentação:

[...] quando estamos em desacordo sobre o justo e o injusto, o belo e o feio, o bem e o mal [...] se se quer evitar que em tais casos o desacordo degenere em conflito e seja resolvido pela violência, não há outro meio senão recorrer a uma discussão racional. A dialética, arte da discussão, se mostra o método apropriado à solução dos problemas práticos, os que concernem aos fins da ação, que envolvem valores [...] na ausência de técnicas unanimemente admitidas é que se impõe o recurso aos raciocínios ‘dialéticos’ e ‘retóricos’, raciocínios que visam estabelecer um ‘acordo’ sobre os valores e sua aplicação, quando estes são objeto de uma controvérsia.123

Como observa Oliveira, o centro da nova retórica de Perelman está na

necessidade de adesão dos ouvintes aos argumentos lançados, mas, além disso,

o próprio caminho entre as premissas defendidas pelos argumentos até as

proposições expostas na conclusão. Referido autor resume a ideia dessa forma: a

“argumentação, nesse caso, representa uma espécie de mecanismo discursivo

passível de transportar a anuências das justificativas à conclusão e vice-versa”124.

123 PERELMAN, Chaïn, 1990, op. cit, p. 130. 124 OLIVEIRA, Eduardo C. Chaïn Perelman e a Questão da Argumentação. Salvador: Revista

Cientefico, 2007, Ano VII, v. II, p. 286.

Page 75: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

63

Ocorre que a decisão judicial não se assemelha a um discurso que

pretende cativar sua audiência, ou seja, as partes e os seus representantes no

processo. O juiz é chamado para decidir o caso conflituoso e a imprescindível

obrigação legal atualmente existente em todos os sistemas judiciários ocidentais

de proferir uma decisão, ofício que ainda mostra-se pressionado pelo tempo,

parece colocar a questão da adesão do discurso, ao menos sob um olhar

bastante realista, em dúvida.

Prova disso são as críticas apresentadas à nova retórica por Atienza.

Afirma ele que a força de alguns argumentos utilizados no discurso, que em

certas oportunidades se sobressaem no choque entre si, pois direcionam a

soluções contrárias ou opostas, além de não ter sido fornecido por Perelman uma

regra de hierarquização deles, não considera que o auditório poderá diferenciar-

se na aceitação dos argumentos, ou seja, que parte dos ouvintes poderá entender

como forte o argumento X, enquanto a outra parte poderá entender como forte o

argumento Y. A crítica de Atienza é, assim, que “não parece que a nova retórica

perelmaniana forneça critérios eficientes para distinguir os argumentos fortes dos

fracos”125.

Observa-se que referida crítica parte do pressuposto de que a

argumentação busca a aderência dos ouvintes ao discurso. Além de demonstrar

que referida nova retórica não é capaz de apresentar como se solucionará a

contradição entre argumentos e, portanto, entre discursos aparentemente

incoerentes, também demonstra incapacidade de se sustentar diante da hipótese,

bem lógica por sinal, de que os diversos sujeitos passivos da argumentação

podem dividir-se em um, dois ou mais grupos de aderência a argumentos e

discursos específicos.

Com isso, pode-se afirmar que o silogismo dialético aristotélico

utilizado na argumentação jurídica de Perelman, e que busca validar as premissas

e proporcionar aderência a essas e à sua conclusão, não parece sustentar-se

logicamente. Isso porque, paradoxalmente, o próprio discurso de Perelman não

produz uma aderência universalizante, pois parece não convencer acerca da

125 ATIENZA, Manuel, op. cit, p. 80.

Page 76: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

64

aplicação de sua própria regra de justiça126, seja na questão envolvendo a força

dos argumentos, seja na que envolve a inviabilidade da aceitação in totum do

discurso por uma plateia sabidamente heterogênea como é de fato o “auditório”

que suscita decisões judiciais para resolver seus conflitos.

Atienza deixa esta questão ainda mais clara ao afirmar que a posição

perelmaniana é criticável sobre o prisma ideológico, especialmente ao defender

uma filosofia do pluralismo que intenta, pela cooperação dos esforços da

sociedade, dirimir suas diferenças e conflitos alcançando uma solução razoável.

Nesse aspecto, afirma:

O problema, naturalmente, reside na questão de se o equilíbrio entre opiniões contrapostas, que se associa à noção de racionabilidade, pode sempre ser conseguido. Evidentemente há muitas razões para duvidar disso. Os casos difíceis, por definição, são aqueles com relação aos quais a opinião pública (esclarecida ou não) está dividida de maneira tal que não é possível tomar uma decisão capaz de satisfazer a uns e a outros. Serve de exemplo a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos (no famoso caso Roe versus Wade, de 1973), reconhecendo um direito ao aborto que se apoiaria no direito fundamental à privacy. O caso dividiu em duas partes quase iguais não apenas os membros do tribunal, como também os juristas profissionais e a sociedade em geral. Qual seria, num caso como esse, a decisão razoável?127

Sendo assim, a possibilidade de utilizar a argumentação jurídica para a

construção de um ideal plural de decisão judicial, o que também lembra em parte

a teoria comunicativa habermasiana128, não parece proporcionar um critério lógico

à decisão judicial. A argumentação jurídica, portanto, que a tópica e retórica

aristotélica, ao menos na forma apresentada por Perelman, não se mostra apta a

determinar a racionalidade de uma decisão judicial que pretende estar correta, ou

ainda provavelmente correta (nessa última hipótese, utilizando o próprio

argumento dialético).

Essa constatação já teria sido efetivada por Taruffo. Apesar de

considerar que a justificação de uma decisão judicial possui nuances de retórica,

126 PERELMAN, Chaïn, 1998, op. cit, p. 137. 127 ATIENZA, Manuel, op. cit, p. 83. 128 Cf. OLIVEIRA, Eduardo, op. cit, p. 268.

Page 77: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

65

o autor afasta por completo a utilização da retórica como técnica de racionalidade

da decisão judicial, pois:

[...] na fase heurística de seu raciocínio, na qual passa a individualizar a solução justa da controvérsia, o juiz não tem que persuadir ninguém; ele está buscando resolver um problema servindo-se de métodos e critérios racionais, sem dúvida, com esta atividade, a persuasão retórica não tem nada que ver. Se poderá dizer que nesta, o juiz leva em consideração elementos (como provas e argumentações), de cujos fundamentos e inconsistências é persuadido, sem dúvida, isto não implica que sua racionalidade tenha propriamente uma dimensão retórica, tem ao contrário, como se tem tentado demonstrar no precedente, uma forte estrutura lógica. Isso que determina a racionalidade do juiz, na realidade não é uma mera persuasão de alguma coisa, mas sim uma valoração racional das provas e uma justificação logicamente fundada na escolha do significado da norma que assume como regra de julgamento. O juiz está, por assim dizer, em uma posição de ‘sujeito passivo’ da persuasão, enquanto são os advogados quem se servem de argumentos, e usam as provas, como instrumentos retóricos utilizados para condicionar seu convencimento, mas isto não implica que o raciocínio do juiz tenha uma dimensão retórica. Ao contrário, ele deveria evitar deixar-se persuadir pela retórica da advocacia, servindo-se do antídoto representado pelo controle racional de sua própria racionalidade.129

Como visto, o autor italiano é contrário à ideia de utilização da lógica

retórica na decisão judicial, mas não afasta a existência de uma dimensão

dialética, o que até parece, ao menos em uma análise superficial, uma afirmação

de certo modo contraditória. Afirma que a dialética utilizada como uma das

dimensões que juiz perpassa para decidir é divida em dois momentos.

129“[...] en la fase heurística de su razonamiento, en la cual apunta a individualizar la solución justa

de la controversia, el juez no tiende a persuadir a nadie: él está buscando resolver un problema sirviéndose de métodos y criterios racionales, sin embargo, con esta actividad, la persuasión retórica no tiene nada que ver. Se podrá decir que en esta, el juez tiene en cuenta elementos (como pruebas o argumentaciones), de cuyos fundamentoso inconsistencias es “persuadido”, sin embargo, esto no implica que su razonamiento tenga propiamente una dimensión retórica, teniendo en cambio, como se ha tratado de aclarar en lo precedente, una fuerte estructura lógica. Eso que determina el razonamiento del juez, en realidad no es una mera persuasión de alguna cosa, sino más bien una valoración racional de las pruebas y una justificación lógicamente fundada de la escogencia del significado de la norma que asume como regla de juicio. El juez está, por así decirlo, en la posición de “sujeto pasivo” de la persuasión, en cuanto son los abogados quienes se sirvende argumentos, y usan las pruebas, como instrumentos retóricos encaminados a condicionar su convencimientopero esto no implica que el razonamiento del juez tenga una dimensión retórica. Al contrario, él debería evitar dejarse persuadir de la retórica de la abogacía, sirviéndose del antídoto representado por el control racional sobre su propio razonamiento.” TARUFFO, Michele. Sobre la complejidad de la decisión judicial. Tradução de Carlos Mondragón. Cali/COL: Precedente, 2012, vol. I, p. 197-198.

Page 78: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

66

Um diacrônico, que nada mais seria que o exercício do contraditório

processual, em que os atores processuais buscam estabelecer a veracidade de

seus argumentos e peso de suas provas. Porém, propõe que, diferentemente da

forma usual como se vê esse momento, entende que há três partes que

participam dessa dialética diacrônica, em que o juiz é uma delas. Isso porque

todos reagem e determinam-se conforme as provas e atos processuais durante o

desenvolvimento do iter processual.

Já o segundo momento da dialética da decisão judicial seria sincrônico,

consistente na estrutura motivacional da decisão. Aqui, afasta-se ou acata-se um

ou alguns dos argumentos tecidos pelas partes, ou ainda considera-se ou rejeita-

se uma ou algumas das provas produzidas durante o desenvolvimento do

procedimento processual.130

Mas, se há dialética, e se as partes e o juiz participam dessa dimensão,

não parece muito claro onde ocorre o afastamento da persuasão (própria da

retórica) nessa dimensão dialética de dois momentos – diacrônica e sincrônica –

proposta por Taruffo, pois a prática judicial demonstra justamente que cada uma

das partes interessadas tenta convencer o juiz acerca de sua versão fática, a fim

de que seus argumentos sejam aqueles a ser considerados na justificação

externa da premissa de fato que será utilizada na justificação interna da decisão

judicial.

E não somente nesse âmbito fático: as partes também buscam

influenciar o raciocínio do juiz quanto à aplicação da premissa normativa que

pretendem ver reconhecida, apresentando argumentos quanto à interpretação

adequada e, ainda, quanto ao regime jurídico que deve ser adotado.

De outro modo, como as partes efetivamente utilizam de argumentos

retóricos para convencer o juiz, este, inevitavelmente, ao decidir conforme os

argumentos que uma delas apresentou, estará, por conseguinte, valendo-se da

retórica antes alegada para justificar sua decisão, momento em que escolherá o

argumento retórico que se mostre mais próximo à sua convicção.

130 Cf. Ibid, p. 186-187..

Page 79: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

67

Portanto, parece difícil compreender essa proposta de utilização de

dialética sem retórica, pois, como disse Aristóteles, o estudo dos topois se dá

“com relação a inferências dialéticas e retóricas”, ou seja, a dialética consiste

justamente em argumentos retóricos.131

Taruffo ainda afirma que a decisão judicial é um empreendimento

racional complexo, no qual o julgador se utiliza de diversas dimensões para

chegar a uma conclusão lógica e racional para apreciar os fatos que lhe são

submetidos. Defende que são seis as dimensões sobre as quais o juiz se debruça

para decidir. A primeira delas é a dimensão dialética já mencionada, existindo

ainda as dimensões epistemológica, jurídica, lógica, axiológica e em sentido

comum, todas consideradas de forma concomitante.132

Pois bem, é interessante notar que a dimensão lógica apresentada por

Taruffo, em que cita em grande parte Chiassoni, mostra-se muito parecida com o

raciocínio lógico-jurídico apresentado por Kalinowski, ideias que diferenciam

somente no plano metodológico, pois o autor polonês propõe uma teoria mais

criteriosa do ponto de vista analítico.

Na dimensão lógica, Taruffo afirma que a decisão deverá justificar os

argumentos que serão utilizados no estabelecimento das premissas de direito e

nas premissas de fato. Mas que também há a necessidade de justificar os

argumentos que justificam a utilização das premissas de fato como premissas de

fato e as premissas de direito como premissas de direito. Ora, aparentemente não

há diferença à estruturação lógico-analítica de Kalonowski, a não ser a afirmação

de que os argumentos que são utilizados sejam, tanto na justificação interna

quanto na justificação externa, obedientes a critérios de racionalidade heurística.

Tais critérios, por sua vez, consistem na hipotetização e falseabilidade dos fatos

reputados provavelmente existentes a partir de indícios, ou seja, pelo método trial

and error, somente encerrando tal esquema com a confirmação da hipótese a

partir das provas produzidas.133

131 “[…] con relación a inferências dialécticas e retóricas”. Cf. ARISTÓTELES, op. cit, p. 220. 132 Cf. TARUFFO, Michele, op. cit, p. 83 133 Cf. Ibid, p. 191-192.

Page 80: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

68

De fato, quanto a isso não há observações a ser feitas. Parece

inegável que o juiz, ao tomar uma decisão, considera os argumentos alegados

pelas partes falseando-os pelas provas produzidas através do procedimento

processual.

Mas o que realmente incomoda na fala de Taruffo é a constante

necessidade de os argumentos utilizados pelo juiz serem racionalmente

controlados, em qualquer que seja a dimensão em que transitarem. Isso porque o

autor não propõe nenhum critério para verificar esse controle ou ferramenta capaz

de aferir essa racionalidade.

Uma proposta da racionalidade consiste justamente na existência de

uma forma de aferição do correto, da verdade, de uma pretensão de correção. Ao

se afirmar que uma decisão judicial deve ser racionalmente controlada,

depreende-se, inicialmente, que há ferramentas e métodos para o exercício desse

controle.

Seja em qual for a dimensão em que a decisão judicial irá aderir para

se justificar, não são indicados mecanismos de falseabilidade dessa decisão. O

âmbito de aplicação das ditas dimensões sem delimitação, o que torna qualquer

argumento passível de sustentação como justificativa de uma decisão, torna o juiz

limitado somente a sua autotutela.

Do mesmo modo, não parece estar justificada a utilização

concomitante dos argumentos das dimensões, se em conjunto ou separados,

portanto, não há nenhum limitador às possibilidades de agrupamento ou exclusão

de argumentos de diferentes dimensões, pois a cláusula geral de controle racional

da utilização dos argumentos já se mostra.

Se o objetivo de uma lógica analítica aplicada à decisão judicial é

formalizar um procedimento para conhecer o acerto de uma proposição jurídica,

ainda que afastada de uma pretensão de correção universal, por sua vez já vista

como inatingível no capítulo primeiro desta dissertação, as ideias até aqui

apresentadas não acrescentam ao problema posto a existência de um critério

Page 81: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

69

com especificidades de controle racional, ou seja, quais seriam os elementos

dessa estrutura controladora.

Portanto, apesar da dura crítica de Taruffo à retórica, crê-se que a

assertiva de Perelman traduz de forma objetiva que as atuais balizas que

justificam a decisão judicial, o que também foi objeto de algumas linhas do

capítulo antecedente, não excluem a retórica na aplicação do direito:

Em conclusão, considerando o direito como uma técnica de proteção simultânea de diversos valores, às vezes incompatíveis entre si, a lógica jurídica apresenta-se, essencialmente, como uma forma de argumentação destinada a motivar as decisões de justiça, para que possam usufruir de um ‘consensus’ das partes, das instâncias judiciárias superiores e, enfim, da opinião pública esclarecida.134

E mais:

[...] a lógica judiciária centra-se inteiramente não na ideia de verdade, mas de adesão. O que o advogado procura conquistar com seu arrazoado é a adesão do juiz. Só pode obtê-la mostrando-lhe que tal adesão é justificada, pois será aprovada pelas instâncias superiores bem como pela opinião pública. Para atingir seus fins o advogado não procederá das verdades iniciais (os axiomas) para as verdades demonstradas (os teoremas), mas de acordos ‘preliminares’ para a adesão que deseja obter.135

Soma a esse debate argumentos favoráveis à utilização da retórica

pelo raciocínio jurídico a análise tópica realizada por Theodor Viehweg. Para ele,

a efetividade da retórica, como forma de tornar uma argumentação compreensível

e, portanto, convencível por meio de um discurso, depende da semiótica. Esta,

por sua vez, resume-se nas conexões linguísticas existentes entre os signos entre

si (sintaxe), entre signos e objetos (semântica) e entre signos e o lugar em que o

discurso é proferido (pragmática ou práxis). Para Viehweg, a jurisprudência (no

sentido de aplicação do direito) transita no campo pragmático, pois "corrige,

regressivamente, imprecisões que de certo modo permanecem" na consideração

sintático-semântica da vida. Mas afirma que estes sentidos sintáticos-semânticos

são alterados e renovados quando vistos a partir de uma nova práxis, o que torna

134 PERELMAN, Chaïn, 1990, p. 09. 135 Ibid, p. 189.

Page 82: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

70

a semiótica completamente dependente do lugar em que é usada, portanto,

situacional.136

O que Viehweg quis afirmar é que a consideração da argumentação

lógica silogística no discurso jurídico mostra-se problemática em razão dos

diferentes sentidos sintáticos e semânticos que os fatos da vida são qualificados,

os quais dependem da práxis em que eles são considerados. Não seria por acaso

que diversas disposições normativas sempre remetem aos usos e costumes dos

locais em que as relações jurídicas se estabelecem, como seria o caso da

utilização da lex mercatoria como fonte de direito.

O prefácio da tradução ao português da obra dá conta dessa ideia:

[...] se pensarmos na correlação que existe entre as doutrinas jurídicas e a práxis a que a que elas se referem [...] a hipótese de que a doutrina seja, ela própria, fonte do direito, já revela a composição ambígua das teorias jurídicas. De um lado, elas têm elementos cognoscitivos (descrição e explicação de fenômenos jurídicos), mas, de outro, sua função primordial é ‘não cognoscitiva’. Ou seja, elas contêm proposições ideológicas (em sentido funcional), de natureza cripto-normativa, das quais decorreriam consequencias pragmáticas, no sentido político e social.137

Não se pode afirmar, portanto, que a decisão judicial é formalmente

lógica de um ponto de vista universal. Os autores divergem quanto às espécies de

lógica aplicáveis. E todas as posições possuem críticas substanciais quanto aos

critérios de justificação dessa lógica. O verdadeiro problema, assim, está na

justificação externa do raciocínio jurídico, conclusão esta parecida com aquela

debatida no primeiro capítulo dessa dissertação, apesar de a análise nesse

momento ter ocorrido por outro prisma.

Entretanto, a prática jurídica depara-se com diversas demandas

similares que são expostas a juízos diferentes. Por vezes, como alguns trabalhos

já demonstraram138, as decisões judiciais não guardam a isonomia de tratamento

136 Cf. VIEHWIG, Theodor. Tópica e Jurisprudência. [s.t.] Brasília: Ed. UnB, 1979, 5ª ed, p. 101-

102. 137 SAMPAIO JÚNIOR, Tércio Ferraz. Prefácio do tradutor. In: VIEHWIG, Theodor. Tópica e

Jurisprudência, 5ª ed. Brasília: Ed. UnB, 1979, p. 05. 138 Cf. RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como decidem as cortes? Para um crítica do direito

(brasileiro). Rio de Janeiro: FGV, 2013; MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Processo Legislativo e

Page 83: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

71

entre os litigantes. Tal fato acaba por proporcionar certa insegurança jurídica

perante as instituições judiciárias. Por conseguinte, ao afastar a igualdade de

tratamento e a segurança jurídica, as decisões judicias mostram-se ofensoras do

Estado democrático de direito.

A Lei Federal nº 13.105, de 16 de março de 2015, que instituiu o Novo

Código de Processo Civil brasileiro, inovou ao elencar de forma expressa, no art.

927139, que as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em sede de

controle concentrado de constitucionalidade, os enunciados de súmula vinculante

editados pela mesma Corte, as decisões proferidas em sede de incidentes de

assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas, os

enunciados das súmulas (não vinculantes) do Supremo Tribunal Federal e dos

demais Tribunais Superiores e as orientações dos Órgãos Plenos de todos os

Tribunais, Superiores e Regionais, passam a ostentar qualidade de fontes formais

do direito brasileiro. Imediatamente, passou-se a encarar a inovação como a regra

de precedentes brasileira, mesmo tendo-se em conta que o sistema jurídico

brasileiro se suporta na tradição romano-germânica do civil law.

Essa inovação tem como pressuposto justamente a necessidade de

uniformizar as decisões proferidas no território brasileiro, mas pode ser entendida

como um topoi da teoria do direito, em que em um mesmo território sob o domínio

de uma mesma legislação positivada as decisões devem ser isonômicas e

previsíveis. Estes são pressupostos do Estado democrático de direito, que

refletem no dever de igualdade das decisões e de manutenção da segurança

jurídica no ambiente social. Por essa razão, passa-se a discorrer sobre eles sob a

ótica da regra dos precedentes, tentando apreender o papel e a influência dos

precedentes na construção daquilo que se pode chamar de decisão jurídica

coerente.

Controle de Constitucionalidade: as fronteiras entre direito e política. São Paulo: Projeto Pensando o Direito/Núcleo Direito e Demcracia do CEBRAP, Coordenação de Marcos Nobre e José Rodrigo Rodrigues; STRECK, Lenio. O que é isto – decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, 3.ed.

139 BRASIL. Código de Processo Civil. Lei Federal n. 13.105, de 16 de março de 2015. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13105.htm#art1046>. Acesso em 20 mar.2015.

Page 84: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

72

2.2 PRECEDENTES

Chaïn Perelman apresenta a seguinte justificativa para a utilização da

dialética na busca daquilo que afirmava ser a decisão justa, e de como essa

justificativa acaba por depender da utilização de decisões judiciais passadas:

Era bem raro que o raciocínio jurídico pudesse redundar, como nas demonstrações matemáticas, numa conclusão impositiva. As razões apresentadas visavam antes de tudo, como nos diálogos platônicos, a colocar o adversário em má situação, a mostrar que os argumentos que usou eram irrelevantes, arbitrários ou inoportunos, que a solução preconizada por ele era injusta ou, ao menos, despropositada. [...] Para chegar à decisão buscada era necessário inserir o problema controvertido em uma tradição, atestada por uma autoridade [...], pôr em evidência a similitude do caso a ser julgado com uma decisão anterior aceita, ou subsumi-lo em um texto legal que tratava de caso da mesma espécie: [...] admitia-se como justa uma decisão conforme à regra de justiça que exige tratamento igual de casos essencialmente semelhantes.140

Longe de esgotar o conteúdo existente sobre o vasto tema dos

precedentes, a seção que agora se inicia tem como objetivo investigar a

correlação entre a lógica jurídica, vista aqui como o emprego de argumentos

quase-lógicos utilizados em um procedimento judicial de analogia, visto ser essa a

espécie de raciocínio dedutivo que mais se aproxima dos precedentes, e a

importância desses nas decisões judiciais. Desse modo, limitar-se-á a verificar o

que se afirma como um precedente, qual o seu lugar e papel na lógica jurídica –

ou lógica judiciária – e, por fim, as questões envolvendo os direitos fundamentais

da igualdade e da segurança jurídica, os grandes prejudicados pela falta de

observância da regra dos precedentes pelos órgãos judiciários brasileiros, pois

quando inobservados revelam a incoerência das decisões judiciais.

2.1 Precedentes, Common Law e Stare Decisis

Como visto, a realidade judiciária brasileira caminha, ainda que de

forma tortuosa141, à aproximação de sua tradição jurídica – civil law, romano-

140 PERELMAN, Chaïn, 1998, op. cit, p. 10. 141 RAMIRES, Maurício. A invocação de precedente jurisprudencial como fundamentação de

decisão judicial: uma crítica ao sincretismo improvisado entre os sistemas de ‘civil’ e ‘common law’ no Brasil e uma proposta para sua superação hermenêutica. Dissertação de Mestrado. São Leopoldo: UNISINOS, 2009.

Page 85: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

73

germânica ou continental – àquela praticada pelos sistemas jurídicos anglo-

saxões, o common law, especificamente quanto a aplicação dos chamados

precedentes, o que parece agora ter sido institucionalizado pelo Novo Código de

Processo Civil.

O objetivo aqui não é o de emitir juízo de valor sobre o acerto ou erro

desse empreendimento, mas sim abordar essa questão, como desde as primeiras

linhas já se afirmou, para definir o que seria a técnica de decisão judicial que

aplica a regra de precedentes.

Contudo, faz-se necessário demonstrar no que consiste, ainda que de

forma simplificada, a diferença histórica, e que acaba repercutindo de forma direta

na própria conceituação dos modelos jurídicos acima mencionados.

Duas são as revoluções denominadas liberais que podem ser utilizadas

para resgatar historicamente essa diferença, conforme descrito por Maurizio

Fioravanti: a Revolução Francesa (a partir de 1788), que simboliza a tradição civil

law; e a Revolução Americana (1776 em diante), por óbvio, representativa no

contexto deste estudo do sistema common law. Observe-se que, apesar de o

princípio da representação política e de legalidade serem repercussões da Magna

Charta de 1215, mantendo-se common law graças à atuação de Sir. Edward

Coke142, a comparação que aqui se faz entre as Revoluções Americana e

Francesa tem como objetivo somente justificar a diferença da tradição jurídica que

ambas legaram.

Segundo o Fioravanti, enquanto que a Revolução Francesa buscou

uma ruptura com a tradição jurídica existente na França pré-revolucionária, em

razão de não existir confiabilidade nos juízes, geralmente ligados à nobreza, à

aristocracia e aos estamentos sociais superiores, a realidade da Revolução

Americana não tinha esse condão rompedor de paradigma com a ordem jurídica

anterior, pois já adotava o sistema inglês. Tanto isso é verdade que a razão da

libertação revolucionária americana foi a majoração dos tributos estabelecidos

pela Coroa Inglesa sobre as colônias americanas, e que, após a invocação pelos

142 FIORAVANTI, Maurizio. Los derechos fundamentales. Madrid: Trotta, 2000, 3ª ed, p. 33.

Page 86: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

74

súditos continentais da tradição jurídica consolidada na realidade inglesa pelo

brocardo no taxation without representation, redundou na própria reconsideração

da sobretaxa fiscal exigida.143

Assim, enquanto na França se decapitava os juízes sob o pretexto da

ameaça anti-revolucionária, violência essa que alcançou a também a nobreza e o

clero, no contexto americano o argumento revolucionário teria sido justamente a

invocação de uma posição jurídica já tomada pela própria Corte Inglesa. Por essa

razão, enquanto que a tradição continental do direito – civil law – sempre liga-se

historicamente a uma ruptura ideológico-jurídica, a tradição jurídica do common

law liga-se historicamente à tradição e, portanto, à manutenção do direito.

Essa realidade, de continuidade de sistema jurídico histórico pode ser

depreendida no seguinte relato de Nicola Matteucci acerca dos anos seiscentos

na recém colonizada América do Norte, em que fica claro que os colonizadores

ingleses tentavam implementar nas colônias americanas a realidade social e

organizacional inglesa, o que refletia a constituição de seus sistemas análogos

até os dias de hoje:

[...] nos seiscentos, entre as diversas iniciativas que conduziram a colonização da Norte-América, tem um posto e um peso próprio a que obedecia não a motivos religiosos ou interesses comerciais senão às ambições de uma aristocracia rural, que esperava estender e aplicar aos vastos espaços desabitados da América o sistema social inglês [...] encontrou rapidamente um firme e válido interlocutor, o colono, que se demonstrou desde o início consciente de seus próprios direitos de cidadão inglês, direitos que lhe eram garantidos pela Carta.144

O claro entendimento do que seriam os precedentes, originalmente do

sistema commom law, exige a observação de quais são as suas origens

históricas. A ruptura que a Revolução Francesa promoveu no seu contexto

143 FIORAVANTI, Maurizio. Los derechos fondamentales. Apuntes de historia de las

constituciones. Tradução de Manuel Martinez Neira. Madrid: Ed. Trotta, 1996, p. 79. 144“[...] en el seiscientos, entre las diversas iniciativos que condujeron a la colonización de

Norteamérica, tiene un puesto e un peso proprio la que obedecía no a motivos religiosos o intereses comerciales, sino a las ambiciones de un aristrocia rural, que esperaba extender y aplicar a los vastos espacios deshabitados de América el sistema social inglés. [...] encontró rápidamente un firme y válido interlocutor, el colono, que se demonstró desde el inicio consciente de sus proprios derechos de ciudadano inglés, derechos que le eran garantizados por la Carta.” MATTEUCCI, Nicola. Organización del poder y libertad. Historia del constitucionalismo moderno. Tradução de Francisco J. A. Roig e Manuel M. Neira. Madrid: Trotta, 1998, p. 173-174.

Page 87: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

75

jurídico, observado por Marinoni como a razão por que Montesquieu e o

parlamento francês afirmavam ser o juiz naquele momento simplesmente a boca

da lei, não encontra respaldo histórico na realidade norte americana, que por sua

vez reflete a tradição jurídica inglesa de conservação dos costumes, portanto, em

um direito consuetudinário conservador.145

Mas além dessa diferença histórica, há ainda uma questão de

conteúdo que deve ser observada. Essa, por sua vez, merece importante atenção

para diferenciar o precedente do sistema anglo-saxão da conhecida

jurisprudência do sistema continental, especialmente quanto aquela praticada no

Brasil.

As decisões que se utilizam da regra de precedentes, portanto, nas

realidades jurídicas inglesas e estadunidenses, não consideram a relevância do

julgamento anterior sendo relevante para o julgamento posterior. Esse é o modelo

especificamente brasileiro. A realidade do precedente no common law leva em

conta a chamada ratio decidendi das decisões proferidas pelos juízes, em que a

relevância está na fundamentação que foi utilizada em uma decisão considerada

paradigmática. Desse desejo de manutenção da ordem social como o melhor a

ser observado surge a doutrina do stare decisis (essa doutrina não está presente

no sistema inglês, apenas no norte-americano), esta sim podendo ser

considerada a regra dos precedentes dentro do sistema do common law.146

Segundo o stare decisis, as decisões proferidas pelos juízes e tribunais

em sistemas do common law devem manter-se no tempo, sendo aplicadas aos

casos análogos que são submetidos à apreciação judicial. Trata-se de princípio

que busca promover a segurança jurídica, a manutenção do sistema common law.

Nesse aspecto, David René afirma a que função das cortes, especialmente na

Inglaterra, era a de destacar as regras de direito aplicáveis. Daí que a:

[...] obrigação de recorrer às regras que foram estabelecidas pelos juízes (‘stare decisis’) [...] só depois da primeira metade do século XIX é que a ‘regra do precedente’ (‘rule of precedent’), impondo

145 MARINONI, Luiz G. Precedentes Obrigatórios. Curitiba: Congresso de Direito Processual

Civil, 2010. 146 RAMIRES, Maurício, op. cit, p. 44.

Page 88: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

76

aos juízes ingleses o recurso às regras criadas pelos seus predecessores, rigorosamente se estabeleceu.147

Entretanto, mesmo nesse sistema, nem todas as decisões proferidas

pelos órgãos julgadores são “precedentes” propriamente ditos. René informa que

os precedentes obrigatórios somente seriam aqueles proferidos pela Câmara dos

Lordes e pela Suprem Court of Judicature na realidade inglesa, enquanto as

decisões de outros órgãos somente poderiam ser levadas em conta para fins de

persuasão e argumentação.148

Mas essa ideia de engessamento do direito, restrita aos ideiais

pretéritos não parece ser coerente. Ocorre que a prática judicial demonstra

historicamente que o direito se altera. É fato notório que as normas vigentes, por

vezes, ao ser aplicadas, acabam exigindo inovações judiciais, o que parece já ter

sido suficientemente explorado no primeiro capítulo dessa dissertação. Mesmo

assim a ideia de estagnação do direito, própria de um common law conservador,

driblava o argumento da evolução do direito de outra forma. Afirma que quando

ocorre aquilo que se conhece por overruling, não se trata de uma evolução

propriamente dita do direito, mas sim de uma mera correção.

Assim, adaptar-se e moldar-se conforme a cultura de seu tempo por

meio overruling, na tradição do common law, era considerado como uma correção

histórica do entendimento do direito, mas nunca como transformação da norma

jurídica. Esse, pois, teria sido um dos pontos que daria fôlego à doutrina do

realismo jurídico.149

Desse modo, verifica-se que a simples aplicação do rule of precedents

em uma realidade civil law, como a brasileira, não se mostra tarefa simples. Esse

acoplamento dos institutos jurídicos de tradições diversas, entretanto, tem sido

um movimento observado na Suprema Corte Brasileira, como constata Rodriguez.

Para o autor, mesmo diante de tantas diferenças entre as formas de se pensar

essa aplicação “por comparação”, há alguns casos brasileiros que têm sido vistos

como constituintes de precedentes. Nesse sentido, afirma que:

147 DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâno. São Paulo: Martins Fontes,

2002, p. 428. 148 Ibid, p. 429. 149 FRANK, Jerome, op. cit, p. 32-33.

Page 89: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

77

Diante de nossa tradição, não argumentativa, opinativa e personalista, a referência aos casos anteriores tende, ainda hoje, a ser feita apenas em função de seu resultado, e não em função de seus fundamentos, ou seja, dos argumentos utilizados pelos juízes para justificar suas decisões.150

Assim, há uma nítida diferença quanto à forma com que as decisões

passadas influenciam as futuras nos diferentes sistemas jurídicos. Enquanto que

na tradição common law são pertinentes os argumentos utilizados, a realidade

civil law brasileira considera somente o resultado alcançado pelo julgamento.

Essa questão, por óbvio, torna sensível ao sistema a aplicação dos precedentes

como fontes de direito.

Priscila de Jesus afirma que no Brasil há atualmente três correntes

sobre a aplicação à brasileira do rule of precedents. Todas debatem a

possibilidade de considerá-lo como fonte de direito no sistema jurídico. A autora

divide tais correntes em três grupos.

No primeiro, capitaneado por Streck, entende-se que no Brasil não

cabe a consideração da teoria dos precedentes como fonte de direito e, portanto,

fundamento para novas decisões, eis que o precedente em sua concepção

considera a casuística, enquanto que o ordenamento jurídico como sistema de

normas de índole geral e paritária – próprio do sistema civil law – não comportaria

essa espécie de fonte de direito.

No segundo, defendido por Ramires, somente se pode reconhecer o

precedente se a norma assim considerá-lo, o que ocorreria, por exemplo, com a

regra das Súmulas Vinculantes e, possivelmente, com o Novo Código de

Processo Civil.

E no terceiro, por sua vez, qualquer decisão seria apta a tornar-se um

precedente, hipótese que para se sustentar afasta a diferença genética entre as

teorias da decisão no civil law e no common law, adotando, assim, uma posição

ousada ao considerar o próprio precedente como um fato histórico.151

150 RODRIGUES, Jóse R, op. cit, p. 15. 151 JESUS, Priscila S. Teoria do Precedente Judicial e o Novo Código de Processo Civil.

Page 90: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

78

Francisco Rosito, por sua vez, afirma que, apesar dessa realidade de

utilização de decisões pretéritas na justificativa de novas decisões, “seria um erro

metodológico adotar simplesmente a teoria dos precedentes da ‘Common law’,

que é estranha ao direito do ‘Civil law’, para abordar o fenômeno da referência às

decisões judiciais anteriores”152.

Além do overruling, também se pode mencionar outro instituto jurídico

da teoria dos precedentes que afasta a aplicação do stare decisis. Trata-se do

denominado distinguished. Nessa técnica, o julgador compara os fatos do caso a

ser decidido e os fatos levados em consideração na formação do precedente.

Priscila de Jesus afirma que no distinguished o juiz também analisa a ratio

decidendi entre o caso a ser apreciado e aquela utilizada no precedente.153

Contudo, parece que se também será considerada, a título de comparação, a ratio

decidendi, não se estaria mais tratando de comparação de casos, mas sim das

razões jurídicas utilizadas, as quais, identificadas entre os casos, tornaria

obrigatória a utilização da mesma razão de decidir.

Para Rosito, entretanto, apesar de entender pela aplicação da regra

dos precedentes somente nos casos em que a ratio decindendi se mostre

equivalente em sua substância, a consideração do distinguished somente teria

suporte fático quando os casos mostrarem-se relevantemente diferentes, não

sendo qualquer diferença não elementar capaz de justificar a utilização do

instituto. A forma como isso é demonstrado, afirma ele, está na argumentação do

julgador, a quem cabe explicitar a relevância da distinção que faz do precedente e

do caso a ser decidido.154

Entretanto, conforme já referido anteriormente, como se poderia fazer a

aplicação desse instituto quando a realidade da utilização da jurisprudência como

fundamento e argumentação nas decisões proferidas pelos julgadores brasileiros

ocorre pelo resultado da decisão, constante no dispositivo sentencial, e não nas

razões que fundamentaram o convencimento do juiz?

152 ROSITO, Francisco. Teoria dos Precedentes Judiciais. Racionalidade da Tutela

Jurisdicional. Curitiba: Juruá, 2012, p. 15. 153 JESUS, Priscila, o. cit, p. 11. 154 ROSITO, Francisco, op. cit, p. 302-303.

Page 91: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

79

Apesar de Priscila de Jesus afirmar que “todos os conceitos

fundamentais da teoria do precedente judicial [...] foram incorporados”155 no novo

sistema processual brasileiro, a diferença de como as decisões pretéritas já são

utilizadas e de como a teoria dos precedentes na sua origem – common law – foi

construída conduzem, no mínimo, à necessidade de utilizar a rule of precedentes

de forma cautelosa, ou, como afirma Rodriguez, sem levar em conta o modelo de

“racionalidade jurídica” que existe no Brasil.156

Disso tudo, portanto, pode-se extrair que a aplicação dos precedentes,

entendido este como regra de decisão adotada pela tradição jurídica do common

law, nos sistemas de civil law, e especilmente no sistema brasileiro, não pode

ocorrer de forma automática.

Entretanto, e nesse ponto parece existir verdadeiro ganho para a

racionalidade das decisões judiciais, a observância dos precedentes enaltece os

princípios da igualdade e da segurança jurídica, axiomas que agem em favor da

sustentabilidade democrática do Estado de direito, o que se passa a expor na

próxima seção.

2.2 Precedentes, Segurança Jurídica e Igualdade.

A proposta de correlacionar o tema envolvendo os precedentes aos

direitos fundamentais da segurança jurídica e da igualdade justifica-se na

necessidade de democratização da atuação dos juízes e tribunais na atividade

jurisdicional157. Esta seção da dissertação tentará abordar, ainda que brevemente,

os contornos dessa correlação.

Enquanto a ordem jurídica rege as relações sociais, e estas estão

fundadas em sistemas jurídicos caracterizados por normas jurídicas (em sentido

amplo), pode-se verificar que a existência de ordem social depende da eficácia do

sistema jurídico. O direito, como instrumento de regulação da vida da sociedade,

155 JESUS, Priscila, op. cit, p. 28. 156 RODRIGUEZ, José R, op. cit, p. 69. 157 Nesse sentido, ver: CELLA, José R. G. Auto-precedente e argumentação racional. In: Curso

de Extensão Razão x violência: o espaço da racionalidade num mundo intolerante. Curitiba: PUC, 2001; MARINONI, Luis G. Precedentes Obrigatórios. Curitiba: Congresso de Direito Processual Civil, 2010.

Page 92: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

80

e a democracia, como modelo político de organização adotado pelos Estados,

somente se sustentam se estiverem fundados em um de seus axiomas mais

elementares: a de que todos os homens são iguais, e essa igualdade, que

independe da raça, do credo ou da cor de cada um, efetiva-se na aplicação das

leis que regulam suas relações, daí, pois, “iguais perante a lei”.

A importância dessa igualdade nas relações de poder e, portanto, a

própria sustentabilidade democrática do Estado pode ser demonstrada na

seguinte afirmação de Guastini:

Na linguagem das fontes, um juízo de igualdade expressa obviamente uma norma: eventualmente atribui-se a uma dessas normas o valor de ‘princípio’. [...] estamos ante uma metanorma ou, como também se diz, uma norma de ‘segunda grau’: isto é, uma norma que não regula diretamente a conduta dos cidadãos mas versa, ao contrário, sobra (a produção e aplicação de) outras normas. No caso, a norma de igualdade constitui uma metanorma sobre a legislação: estabelece igualdade ‘na’ lei.158

Logo, falar em Estado de direito sem igualdade e, como consequência,

sem segurança jurídica, é o mesmo que negar as próprias liberdades alcançadas

pelos movimentos revolucionários, que são estruturantes do próprio Contrato

Social que já vige há centenas de anos:

No coração do Estado de Direito, há, portanto, fundamentalmente, a ideia de ‘limitação do poder’, pelo tríplice jogo da proteção das liberdades individuais, da sujeição à Nação e da assimilação de uma área restrita de competências: a estruturação da ordem jurídica é só um meio de assegurar e de garantir essa limitação, através dos mecanismos de produção do direito. Assim, o Estado de Direito abrange uma concepção, na realidade, das liberdades públicas, da democracia e do papel do Estado, que constitui o fundamento subjacente da ordem jurídica.159

Conforme Humberto Ávila, a segurança jurídica pode ser vista como

um elemento estruturante da definição do direito, como uma “realidade fática”

158“En el lengaje de las fuentes, um juicio de igualdad expressa obviamente uma norma:

eventualmente uma de esas normas a las que se suele atribuir el valor de ‘principio’. [...] estamos ante uma metanorma o, como también suele decirse, uma norma de ‘segundo grado’: esto es, una norma que no regula directamente la conducta de los ciudadanos sino que versa, en cambio, sobre (la produción o la aplicación de) otras normas. En un caso, la norma de igualdad constituye uma metanorma sobre la legislación: establece igualdad ‘en’ la ley.” GUASTINI, Riccardo. Distinguiendo. Estudioes de teoria y mateteoría del derecho. Tradução de Jordi Ferrer i Beltran. Barcelona: Gedisa, 1999, p. 194.

159 CHAVALIER, Jacques, op. cit, 46.

Page 93: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

81

reconhecidamente existente dentro de uma ordem jurídica (dimensão fática),

como um axioma substancial a ser perseguido pela vida em sociedade (dimensão

axiológica), ou, enfim, como uma norma jurídico-imperativa, portanto, de natureza

prescritiva “daquilo que deve ser buscado de acordo com ‘determinado

ordenamento jurídico’” (dimensão normativa). Nessa última hipótese, o autor

afirma que a segurança jurídica é uma norma-princípio de direito.160

As concepções de segurança jurídica que servem para a presente

dissertação serão, a fim de responder à hipótese lançada nas linhas introdutórias,

as equivalentes à fática e à normativa. Apesar de, como o próprio Ávila afirma,

não ser recomendável cindir as concepções para compreender a amplitude de

seu significado, pois elas se correlacionam161, crê-se que dentro da proposta de

descrever a relevância dos precedentes insertos na teorização da racionalidade

jurídica das decisões judiciais, a fim de apresentar uma regra de razão prática de

aferição dessa racionalidade, as questões axiomáticas, como se demonstrou no

primeiro capítulo dessa dissertação, são questões adstritas a cada julgador dentro

da sua livre convicção de julgar. Ao menos essa é a justificativa do realismo norte-

americano, na aplicação do direito, e a constatação da jurisprudência de

resultado, na realidade brasileira.

A segurança jurídica, por sua vez, e no âmbito dos precedentes, acaba

tendo por Marinoni uma divisão que se mostra pertinente a esse trabalho.

Segundo o autor, para haver segurança jurídica, no sentido próprio da aplicação

das normas aos fatos da vida, dois são os seus pressupostos.

O primeiro diz respeito à univocidade na qualificação das situações

jurídicas, o que quer dizer que a forma de conceituar uma conduta dentro de um

território específico e sob o domínio de uma mesma lei deve ser idêntica em todas

as oportunidades que aquela conduta for verificada.

Além disso, entende o autor, em segundo lugar, que a segurança

jurídica também depende da previsibilidade em relação às consequências que as

160 ÁVILA, Humberto B. Segurança jurídica. Entre permanência, mudança e realização no

direito tributário. São Paulo: Malheiros, p. 106-108. 161 Ibid, p. 110.

Page 94: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

82

condutas sociais possuem a partir dos efeitos previstos na norma jurídica. Assim,

conclui o autor que a segurança jurídica para a teoria do direito corresponde à

previsibilidade de consequências jurídicas das condutas e à qualificação jurídica

unívoca dos fatos.162

Tais requisitos parecem ser indissociáveis entre si. Isso porque seria

impossível conceber em um Estado de direito que uma mesma conduta seja para

alguém lícita e para outrem ilícita, ao menos de uma forma geral.

Igualmente, sem sentido admitir que alguém seja responsabilizado por

uma conduta sem que possa ter ciência inequívoca anterior de que a mesma era

uma conduta reprovável.

Logo, as condutas que as normas jurídicas dispõem como condizentes

à escolha da sociedade como corpo político, portanto aprováveis, além de

somente terem sentido se puderem ser assim entendidas (qualificação jurídica

unívoca), somente serão praticadas se tal qualificação também for de

conhecimento de seus cidadãos, permitindo a escolha de praticar ou não a

conduta prevista na regra (previsibilidade das consequências jurídicas).

Observando essas duas características a partir de uma lente lógico-

jurídico-analítica, pode-se perceber que a qualificação jurídica unívoca nada mais

é que a justificação externa da premissa de fato (raciocínio jurídico não-normativo

de Kalinowski) que integra a justificação interna do silogismo de uma decisão

judicial. Semelhantemente, a outra característica, previsibilidade das

consequências jurídicas, também guarda semelhança com a justificação externa

da premissa de direito (raciocínio jurídico normativo de Kalinowski) que será

utilizada na justificação interna do silogismo da decisão judicial.

Desse modo, na racionalidade de uma decisão judicial, as premissas

utilizadas na justificação interna, dependentes da racionalidade das proposições

anteriores (justificação externa), devem observar, quanto à premissa maior

(premissa de direito), a previsibilidade das consequências jurídicas dispostas no

162 MARINONI, Luiz G. Os Precedentes na Dimensão da Segurança Jurídica. [s.l]: [s.e], [s.a], p.

02.

Page 95: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

83

direito vigente, e em relação à premissa menor (premissa de fato), a qualificação

jurídica unívoca de certo fato.

Portanto, as condições teóricas da segurança jurídica em relação a

uma conduta – qualificação jurídica unívoca e previsibilidade das consequências

jurídicas – equivalem às proposições/premissas da justificação externa que dão

origem às premissas utilizadas na justificação interna de uma decisão judicial.

A justificativa desses pressupostos para que se assegure segurança

jurídica nos precedentes é assim verificada:

[...] a segurança jurídica reflete a necessidade de a ordem jurídica ser estável. Esta deve ter um mínimo de continuidade. E isso se aplica tanto à legislação quanto à produção judicial, embora ainda não haja, na prática dos tribunais brasileiros, qualquer preocupação com a estabilidade das decisões. Frise-se que a uniformidade na interpretação e aplicação do direito é um requisito indispensável ao Estado de Direito. Há de se perceber o quanto antes que há um grave problema num direito variável de acordo com o caso.163

A ordem do Estado de direito depende, portanto, da segurança jurídica

que suas instituições transmitem a seus súditos. E a previsibilidade das

consequências jurídicas do direito vigente em um território permite que as

condutas sejam condicionadas a essas consequências. Se essas condutas não

são previsíveis, o critério da segurança jurídica a partir desses pressupostos

acaba se esvaindo.

Rosito apresenta a questão da segurança jurídica nos precedentes em

tensão com a necessidade de desenvolvimento do direito. Apesar de reconhecer

a necessidade de respeito da segurança jurídica, aponta em diversos momentos

para a necessidade de evoluir e alterar os entendimentos jurídicos. Defende que

para resolver essa tensão deve-se identificar aquilo que denominou de limites

orientadores, obtidos por meio de uma reflexão racional164, afirmação essa

compatível com o tema proposto nesse capítulo, de lógica jurídica e precedentes.

163 MARINONI, Luiz G, op. cit, p. 03. 164 ROSITO, Francisco, op. cit, p. 282-284.

Page 96: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

84

Ocorre que nesse aspecto a realidade prática da aplicação do direito

pelos juízes brasileiros por meio de suas decisões tem gerado um clima de

insegurança jurídica social a partir das instituições judiciárias. Isso porque não se

pode hoje afirmar com segurança como os julgadores se determinarão, ou seja,

não existe nenhuma previsibilidade segura acerca dos pronunciamentos judiciais.

Como já mencionado no início dessa seção, enquanto que o civil law,

ou sistema romano-germânico, tem como premissa maior o texto de lei positivado

e institucionalizado, o common law funda-se na história dos costumes de sua

população, que é desvelada pelas decisões judiciais. Nessa tradição jurídica as

premissas maiores (premissas de direito, segundo Kalinowski) utilizadas para

solucionar o caso concreto consistem na história das decisões já proferidas, na

rule of precedents.

Sendo assim, na tradição anglo-saxônica, a previsibilidade das

consequências jurídicas das condutas pode ser conhecida a partir da qualificação

jurídica reconhecida nos processos judiciais. A história das decisões –

precedentes – de um órgão judicial permite que os sujeitos saibam como os juízes

“enxergam” determinados comportamentos, e assim quais as consequências

jurídicas que são atribuídas a eles, pois o fazem com fulcro no common law.

Já no modelo continental, ou civil law, tenta-se dispor no texto

positivado todas as hipóteses fáticas e suas respectivas consequências jurídicas.

Entretanto, como se viu no primeiro capítulo dessa dissertação, é unânime na

teoria do direito a inexistência de um sistema jurídico (de normas) que alcance

todos os fatos da vida. Como também se disse, há problemas nos sistemas

jurídicos, quando analisados de um prisma analítico, consistente em lacunas,

antinomias e incompletudes. Logo, as decisões que resolverão o caso concreto

diante desses problemas de lacuna, antinomia e incompletude estão

necessariamente eivadas de discricionariedade.

Fato que merece registro nesse aspecto consiste na “mudança de

paradigma decorrente da passagem do normativismo legalista para o direito

Page 97: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

85

fundamental principiológico”, o que seria responsável por uma maior

imprevisibilidade das consequências jurídicas.165

Rosito, apesar de esforçar-se, parece tentar conciliar as antíteses –

segurança jurídica e atualização do direito – que somente subsistem se se

admitir, ainda que veladamente, a possibilidade de um discurso argumentativo

promover, a partir de certo grau de discricionariedade, uma nova interpretação da

realidade jurídica.

O que mais preocupa nessa abertura à discricionariedade é o fato de o

próprio autor defender que parte dessa vanguarda da alteração da jurisprudência

ser protagonizada pelos próprios juízes de primeiro grau, o que parece ser a

coroa da ofensa da isonomia entre as partes, se consideradas aquelas com

causas semelhantes, mas expostas a juízes diferentes:

Com efeito, os juízos de primeiro e segundo graus de jurisdição são importantes para a evolução de jurisprudência. Classicamente, qualificam-se os juízes de primeiro grau como ‘motores’ da jurisprudência, propiciando evolução mediante o aporte de novos elementos valorativos, embora sua atividade, historicamente, seja vista em um ambiente de desconfiança, o que não deixa de ser contraditório,166

É por esse motivo que Marinoni afirma que é o modelo jurídico do civil

law (continental ou romano-germânica), diante desses problemas de

interpretação da norma jurídica, que autoriza a existência de tanta discrepância

entre as decisões proferidas pelos órgãos jurisdicionais em casos semelhantes.

Nesse modelo, portanto, a previsibilidade das consequências jurídicas,

pressuposto da segurança jurídica, e também da igualdade, fica prejudicada pela

constatação empírica dessa inconsistência entre as instituições judiciais na

determinação das consequências jurídicas das condutas.167

Mas essa posição não se mostra unânime. Há movimentos que

justamente discordam dessa previsibilidade, e que, assim o fazendo, negam-na

como pressuposto da segurança jurídica.

165 ROSITO, Francisco, op. cit, p. 288. 166 Ibid, p. 285. 167 MARINONI, 2015a, op. cit, p. 05.

Page 98: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

86

Natalia Bernal-Cano, no artigo intitulado El poder creador del juez em la

combinación o mezcla de los procedimientos constitucionales, defende a

possibilidade de os juízes utilizarem sua criatividade, de forma moderada, para

solucionar questões que não possuem previsão nos textos escritos ou que exigem

uma mudança na posição dos tribunais superiores.

Afirma a autora que, em prol da eficácia concreta dos direitos

fundamentais, os juízes podem “ modificar os critérios das Cortes Constitucionais

e Admitir novas soluções”, bem como “combinar os raciocínios, como os métodos

de interpretação legal e constitucional, para resolver se os casos são livres”.168

Sua posição parece ainda mais polêmica quando sustenta em sua tese

o que denomina de “autonomia judicial abaixo dos limites do ordenamento jurídico

escrito”, a qual consiste em:

[...] um tipo de racionalidade que permite a criatividade do juiz cinstitucional sob os limites constitucionais e legais, com o propósito de assegurar à pessoa uma maior proteção em sua situação concreta. [...] se permite a autonomia judicial no uso adequado e proporcional das fontes de direito, as quais não são excludentes mas complementares; é dizer, podem combinar-se os raciocínios, como nos métodos de interpretação legal e Constitucional, para resolver se os casos são livres.169

Assim, veja-se que enquanto parte do pensamento jurídico fala em

segurança jurídica através da previsibilidade das consequências jurídicas das

condutas, há quem defenda um poder criativo do juiz para sopesar as fontes do

direito, ainda que não sejam consideradas fontes primárias, e alcançar soluções

para proteger a casuística da demanda que in concreto se apresenta.

Percebe-se, portanto, que essa previsibilidade não é uma questão

unânime, pois há quem pense em favor da discricionariedade “racional” do juiz.

168“[...] modificar los criterios de las Cortes Constitucionalres y admitir nuevas soluciones [...]

combinarse los razonamientos, al igual que los métodos de interpretación legal o Constitucional, para resolver si los casos son libres”. BERNAL-CANO, op. cit, p. 15.

169“[…] autonomía judicial bajo los límites del ordenamiento jurídico escrito [...]un tipo de razonamiento que permite la creatiidad del juez constitucional bajo los límites constitucionales y legales, con el propósito de asegurar a la persona una mayor protección em su situación concreta. [...] se permite la autonomía judicial en el uso adecuado y proporcional de las fuentes del derecho, las cuales no son excluyentes sino complementarias; es decir, pueden combinarse los razonamientos, al igual que los métodos de interpretación legal o Constitucional, para resolver si los casos son libres”. Ibid, p. 16.

Page 99: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

87

Quanto ao outro requisito da segurança jurídica, qualificação jurídica

unívoca das condutas processualmente apreciáveis, ele já foi em parte observado

na pesquisa da lógica jurídica analítica de Kalinowski, especificamente naquilo

que o autor denominou de semiologia jurídica (item “2.1.2”, supra). Trata-se da

justificação externa da chamada premissa fática utilizada na justificação interna

da decisão judicial.

Entretanto, esse pressuposto de qualificação unívoca guarda uma

correlação estreita com a regra de justiça de Perelman, para quem:

[...] uma noção de justiça formal que corresponde à regra de justiça, segundo a qual é justo tratar do mesmo modo situações essencialmente semelhantes. Esta regra, que é central em toda aplicação de uma norma em situações particulares, é indispensável em qualquer concepção positivista do direito.170

A igualdade também se mostra como um direito fundamental de

aplicação prática nas decisões judiciais e, portanto, de incidência reflexa na

disciplina dos precedentes. Entretanto, apesar de ela se aplicar a qualquer um

dos poderes estatais, Marinoni constata que ela não se aplica à realidade

jurisdicional brasileira em um sentido material.

O princípio da igualdade analisado a partir do embate processual

apresenta-se como regra formal cujo reflexo é a conhecida paridade de armas.

Nesse aspecto, o processo judicial desenvolve-se sempre observando a

igualdade em um sentido formal, que também pode ser observado no

contraditório e no acesso à justiça gratuita aos economicamente desprestigiados.

Como se vê, a ênfase está no procedimento.

Dworkin, por sua vez, afirma que o precedente exerce uma função

gravitacional, fundada na “equidade que está em tratar os casos semelhantes do

mesmo modo”171.

Por essa razão, verificando que a igualdade nunca é objeto de

observação nas decisões judiciais, Marinoni afirma que toda a igualdade

170 PERELMAN, 1990, op. cit, p. 137. 171 DWORKIN, Ronald, op. cit, p. 176.

Page 100: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

88

processual ou de procedimento que se verifica no processo somente terá sentido

se também repercutir na prolação da decisão:

Afinal, esta (sic) é o objetivo daquele que busca o Poder Judiciário e, apenas por isso, tem necessidade de participar do processo. Em outros termos, a igualdade de acesso, a igualdade à técnica processual e a igualdade de tratamento no processo são valores imprescindíveis para a obtenção de uma decisão racional e justa.172

Se a igualdade entre as partes no processo não tem merecido a

atenção necessária pelos julgadores, o que se poderia dizer quanto à igualdade

de tratamento jurídico quanto a parte que, apesar de estarem em processos

distintos, possuem semelhantes objetos e causas de pedir?

Como já dito por Rodriguez, a realidade brasileira, sob o aspecto da

seriedade de suas instituições, tem um elemento essencial na mediação dos

conflitos sociais:

[...] o ‘favor’ é o conceito-chave para compreender relações sociais no Brasil: a cidadania não é considerada um conceito de todos, mas sim um privilégio concedido e controlado pela classe dominante. [...] O Estado é encarado como uma agência promotora de lucros privados, compartilhada por um pequeno grupo de brasileiros, que estabelecem entre si uma complexa rede de relações, organizada para a manutenção da posição dominante.173

É a partir dessa provocação que será abordada no próximo capítulo a

questão central desse estudo: o autoprecedente como regra de razão prática

particular, ou singularizada, da racionalidade das decisões judiciais proferidas por

um mesmo órgão, a partir das premissas estabelecidas pelo próprio juízo em

casos pretéritos análogos, regra essa que se pode denominar de regra do

autoprecedente.

172 MARINONI, Luís G., 2015b, op. cit,, p. 05. 173 RODRIGUEZ, José R, op. cit, p. 37.

Page 101: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

89

CAPÍTULO 3

AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO PRÁTICA

PARTICULAR DE RACIONALIDADE JURÍDICA

As considerações aportadas nos dois primeiros capítulos da

dissertação são fundamentais para as ideias que serão agora desenvolvidas. O

objetivo com que se dividiu a primeira parte do estudo deve ficar claro ao leitor,

especialmente para poder compreender a proposta presente nas últimas linhas.

Este trabalho parte de uma visão positivista da compreensão do direito,

e, tendo como um de seus objetivos gerais a possibilidade de criar uma regra de

razão de aferição da racionalidade na aplicação do direito a partir das Tecnologias

da Informação e Comunicação (TIC), no primeiro capítulo foi observado o debate

delineado no final do século XX sobre a aplicação do direito pelos juízes,

considerados estes tanto a título singular quanto como órgãos colegiados.

Diferentemente do que um senso comum jurídico brasileiro geralmente

defende, viu-se que o positivismo jurídico do século XX, além de nunca ter sido

fundamento para a promoção das barbáries experimentadas no Estado nacional-

socialista alemão, nem sequer restringiu a aplicação do direito à simples dedução

silogística do fato ao consequente normativo, geralmente cunhada de

normativismo ou de processo de subsunção fato-norma. Nesse sentido, tanto

Kelsen, a quem se atribuía certa influência de Austin e Benthan, precursores do

positivismo imperativista, quanto Hart e Ross, nunca negaram que a decisão

judicial está permeada de considerações morais e políticas, especialmente diante

dos casos em que as normas positivadas não apresentam solução, portanto,

longe de ser um empreendimento lógico formal caracterizado por uma lógica

quase matemática.

Mostrou-se, ainda, que a crítica a esse voluntarismo autorizado aos

juízes realizada por Dworkin tem como mote uma tese que defende a

possibilidade de em todos os casos existir uma decisão judicial correta, certa.

Nesse ponto, a análise do sopesamento entre argumentos de princípio e

Page 102: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

90

argumentos de política pelo juiz Hércules dworkiano mostrou-se também em parte

discricionária.

Ainda, constatou-se que as verificações empíricas do realismo jurídico

estadunidense não seriam qualificadas assim à toa, pois defendem que o

julgador, realmente, tem plena discricionariedade na qualificação jurídica dos

fatos que lhe são submetidos. Mesmo diante da inserção pela teoria do direito da

argumentação como elemento essencial na prolação de decisões judiciais, viu-se

que os teóricos argumentativistas admitem a existência de certo grau de

discricionariedade nas decisões judiciais, seja na qualificação jurídica dos fatos –

em especial quando as normas classificadoras possuem conceitos

indeterminados ou molduras jurídicas que dependem do ânimo interpretativo do

julgador – seja na determinação da norma aplicável ao caso concreto,

principalmente após a ruptura do paradigma da estrita legalidade das normas

para a flexibilização da aplicação destas pela sua relativização por meio de

princípios, o que permite a coexistência de normas aparentemente conflituosas.174

No segundo capítulo, desenvolveu-se breve análise sobre a lógica e

sua repercussão na seara jurídica, desde os modelos antigos até o que se pode

nominar de lógica analítica judiciária. Observou-se que o espaço desta

dissertação impede uma investigação profunda sobre o tipo de lógica adequada

para subsidiar uma regra de razão prática particular do autoprecedente.

Entretanto, demonstrou-se a possibilidade de utilização de uma lógica subjacente

nas decisões judiciais, que autoriza a formalização dos argumentos em uma

estrutura de raciocínio.

Além disso, dissertou-se sobre a teoria dos precedentes, momento em

que se diferenciou a realidade brasileira dos julgamentos e o stare decisis do

commom law. Além disso, abordou-se o diálogo dos precedentes nos axiomas da

segurança jurídica e da igualdade dos sujeitos perante as decisões judiciais.

Como reflexo dessa realidade, concebeu-se uma ideia de decisão

judicial cuja racionalidade, principalmente na realidade judiciária brasileira, funda-

174 ROSITO, op. cit, p. 287.

Page 103: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

91

se em argumentos de autoridade sem necessariamente consistir num raciocínio

lógico efetivo. Nesse prisma, acabam em xeque direitos fundamentais básicos do

Estado de direito e do modelo democrático, como a segurança jurídica e a

isonomia entre os indivíduos, cuja salvaguarda seria justamente papel das

decisões judiciais que aplicam direitos aos conflitos sociais. Pior que isso, o

problema potencializa-se diante da doutrina do “favor” existente nos bastidores do

poder social e político, como aquele inferido na realidade brasileira.175

3.1 DECISÕES COERENTES

Entretanto, com a promulgação do novo diploma processual civil

brasileiro no dia 16 de março de 2015, o legislador trouxe à arena normativa uma

inovação no que tange à racionalidade das decisões judiciais. Conforme o artigo

926 da Lei 13.305, os tribunais deverão, além de uniformizar sua jurisprudência,

mantê-la estável, íntegra e coerente. Nessa nova tarefa do aplicador do direito, a

norma também exigiu que fossem editados enunciados sumulares quanto à

“jurisprudência dominante” dos tribunais (parágrafo primeiro), bem como que tais

súmulas atentassem “às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram

sua criação” (parágrafo segundo).176

O Novo Código de Processo Civil também dispõe que as sentenças

deverão, conforme disposto no parágrafo 1º do art. 489, “explicar sua relação com

a causa” (inciso I), “explicar o motivo concreto” da incidência de um conceito

jurídico indeterminado ao caso (inciso II) e não utilizar outros “motivos que se

prestariam a justificar outra decisão” (inciso III).177 Parece, assim, que a

racionalidade jurídica das decisões ganha uma nova chance na aplicação do

direito brasileiro.

Além disso, a inovação também exige o enfrentamento de “todos os

argumentos deduzidos no processo “capazes de infirmar a conclusão” da decisão

(IV), a identificação dos “fundamentos determinantes” da utilização de

precedentes e enunciados sumulares”, o que parece remeter à ratio decidendi do

175 RODRIGUEZ, José R, op. cit, p. 50. 176 BRASIL, Lei 13.305/2015, op. cit. 177 Idem.

Page 104: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

92

sistema commom law (V), e, ainda, a necessidade de justificar racionalmente a

“ponderação” realizada em caso de colisão de normas, apontando as “premissas

fáticas que fundamentam a conclusão” que negou aplicação a norma relegada (§

2º).

A recepção da referida redação pela comunidade jurídica faz ressurgir

o debate sobre lógica jurídica, vez que a coerência exigida pelos julgadores

brasileiros somente pode ser aferida por meio de uma regra de racionalidade

jurídica prática.

Essa coerência também deverá, declaradamente, observar os

precedentes e sua ratio decidendi, o que se depreende do parágrafo segundo do

art. 926, que por sua vez torna evidente a influência da teoria dos precedentes na

aplicação do direito na nova sistemática processual civil.

Por outro lado, exigiu-se que as decisões expliquem a correlação das

normas aos fatos, campo este próprio da argumentação jurídica. Logo, pode-se

afirmar que a inovação legislativa em comento exigirá do julgador brasileiro a

observação de uma racionalidade jurídica e dos precedentes, por sua vez

coerentes.

As alterações propostas pelo Novo Código de Processo Civil brasileiro

não repercutirão somente nos processos civis. Conforme já é tradição no sistema

jurídico do Brasil, somado à previsão expressa do art. 15 do diploma processual

referido, este pode ser considerado regra geral de aplicação supletiva e

subsidiária diante da falta de outras normas processuais em matérias que

possuem procedimentos processuais específicos, como o direito eleitoral, o

trabalhista e o administrativo.

Apesar dessa aplicação indireta a todo o sistema processual brasileiro,

não é o objetivo deste trabalho investigar se essas alterações repercutirão de uma

forma direta, obrigando as decisões judiciais a possuir uma racionalidade lógica,

uma argumentação coerente e a manutenção de uma ratio decidendi. Contudo, o

novo diploma normativo parece ter ido mais longe que qualquer outro vigente, o

que permite inferir uma possível repercussão imediata a toda a decisão judicial.

Page 105: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

93

Porém, a demonstração dessa hipótese dependeria de um trabalho específico,

não sendo aqui o lugar para a sua investigação.

A correlação existente entre racionalidade e precedentes, agora

positivada pelas novas regras processuais aplicadas às decisões judiciais dos

juízes brasileiros, não é algo novo na teoria do direito. A aproximação da

coerência das decisões de um órgão julgador e os precedentes desse órgão pode

ser inicialmente compreendida a partir de Tércio Ferraz Sampaio Júnior, para

quem:

Razão (reason, raisson, Vernuft, ratio, logos) é um substantivo cuja origem está no verbo “reri”, que em seu sentido primitivo significava ‘tomar algo por algo’, portanto ligar ‘coisas’ entre si, donde estabelecer relações e, daí, calcular, pensar. Quando os romanos traduziram por ‘ratio’ a relação matemática pensaram em ‘logos’, na cultura grega, como uma palavra que originariamente significara ‘juntar’, ‘unir’, ‘pôr em conjunto’, de onde surgiu a ideia de ‘logos’ como ‘palavra’, isto é, como signo que sintetiza, num som (fonema), vários significados.178

A racionalidade, portanto, liga-se à comparação, à analogia, à

correlação existente entre dois objetos. Sendo uma decisão judicial um

empreendimento racional, tal característica de racionalidade permite que se

determine uma decisão racionalmente válida quando, por exemplo, a sua

correlação com outras decisões mostrar-se coerente. Essa, pois, é a proposta dos

precedentes, a partir da ratio decidendi de casos anteriores aplicados a

posteriores.

Entretanto, dado que a decisão jurídica manifesta-se por argumentos, a

formalização de uma estrutura de raciocínio fica prejudicada, ou no mínimo

mostra-se de difícil aceitação. Isso foi objeto do segundo capítulo dessa

dissertação, em que se viu que, apesar de algumas tentativas de equiparar de

uma forma universal, como no caso de Kalinowski, as propriedades da norma

jurídica e dos fatos litigiosos com proposições potencialmente capazes de integrar

uma estrutura lógico-analítica de raciocínio, surgiria um problema da semiótica. A

tentativa de solucionar essa discrepância na determinação semântica das

178 SAMPAIO JUNIOR, Tércio Ferraz. A Pragmática da Justiça na Interpretação Jurídica. In:

SCHOUERI, Luiz Eduardo (coord.). Direito Tributário. Homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 146.

Page 106: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

94

propriedades das normas e da qualificação jurídica dos fatos pela jurisprudência

dos conceitos teria justamente essa pretensão.

Contudo, a tradição jurídica brasileira de aplicação de decisões

anteriores a casos presentes sempre esteve ligada ao resultado, ou seja,

historicamente nunca se deu importância à ratio decidendi dos casos, mas

somente ao dispositivo sentencial. Prova disso é que os órgãos julgadores

colegiados brasileiros podem unanimemente resolver com um mesmo resultado

um caso levado a julgamento sem, contudo, concordarem quanto às razões que

levaram a conclusão.179 Essa, pois, é uma realidade que contrariaria uma

exigência normativa de coerência das decisões proferidas nesses órgãos, se

analisado cada julgador individualmente. Sendo diferentes as razões, como se

poderá considerar racionalmente coerente a justificação realizada em uma

decisão colegiada com diversas ratios?

Apesar de a tentativa de formalizar analiticamente o raciocínio de uma

decisão judicial ter se frustrado por problemas na conceituação das propriedades

utilizadas, não se pode negar que a racionalidade da aplicação do direito ainda

observa uma lógica subjacente.

Quando o julgador considera que um fato preencheu a hipótese

normativa, ele realiza uma construção lógica dedutiva. Se esse mesmo julgador

se depara com um caso de aparente conflito normativo, sejam essas normas

disposições textuais expressas, sejam princípios normativos sem, contudo,

expressão e aplicação definidas (aqui ele vai eleger as premissas pela justificação

externa antes de aplicar a lógica), ao decidir o caso pratica um raciocínio dedutivo

entre a norma identificada, independentemente do seu modelo ou natureza, ao

caso juridicamente qualificado que está julgando. Isso quer dizer que a

justificação interna da decisão sempre utiliza alguma lógica dedutiva subjacente

ao raciocínio empregado para a decisão. Entretanto, dado os problemas de

subjetividade dos órgãos julgadores na interpretação das normas e na

qualificação jurídica dos fatos, é evidente ser impossível, ao menos até então,

criar uma estrutura universal dessa lógica jurídica.

179 RODRIGUEZ, José R, op. cit, p. 108.

Page 107: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

95

Além disso, uma decisão judicial também precisa de legitimação social.

Se a sociedade não admitir uma decisão como minimamente racional, a

autoridade que ela expressa poderá ser refutada, assim como ocorre com as

normas jurídicas que não alcançam efeito no plano da eficácia. Trata-se, em

outras palavras, da falta de legitimidade pela prática:

Um projeto de lei não se torna lei simplesmente sendo decretado, ocupando seu lugar no Halsbury ou no livro de estatutos. Torna-se lei apenas quando começa a desempenhar um papel na vida da comunidade, não podemos dizer qual papel será – e, portanto, não podemos dizer ‘qual lei’ foi criada -, até que ela comece a ser administrada e interpretada pelos tribunais. Considerado como um pedaço de papel com selo de aprovação do parlamento, um estatuto não é direito, mas apenas uma possível ‘fonte de direito’.180

A partir disso, pode-se dizer que uma decisão judicial que não se

mostra logicamente justificável não possuirá uma aceitação social satisfatória.

Apesar de o direito fazer necessariamente o uso da força181, a sociedade como

um todo respeita as decisões judiciais por crerem, em parte, que o órgão julgador

no seu ofício age com racionalidade. Habermas ilustra bem essa realidade:

[...] no caso da fundamentação e aplicação de normas do direito, entra em jogo tal relação com bens e fins coletivos [...]. Por isso, os discursos de fundamentação e de aplicação precisam abrir-se também para o uso ‘pragmático’ e, especialmente, para o uso ‘ético-político da razão prática’. Tão logo uma fundamentação racional coletiva da vontade passa a visar programas jurídicos concretos, ela precisa ultrapassar as fronteira do discurso da justiça e incluir problemas do auto-entendimento e da compensação de interesses.182

Essa necessidade de respaldo legitimador social justifica o afastamento

da aplicação de lógicas complexas existentes183 à realidade da decisão judicial.

Isso, pois, seria a justificativa para que, na hipótese lançada no presente trabalho,

e diante da limitação que será exposta adiante, a utilização de uma lógica

subjacente para a aferição da racionalidade jurídica de uma decisão pode ser

uma regra de razão prática.

180 WALDRON, Jeremy, op. cit, p. 11-12. 181 Cf. KELSEN, Hans, 1985, op. cit, p. 35; HART, Herbert, op. cit, p. 26-31; 182 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Tradução de Flávio

Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 191-192. 183 Nesse sentido, ver CELLA, José R. G, 2008, op. cit, p. 120-122.

Page 108: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

96

O ponto de partida dessa racionalidade inovadora surge há pouco mais

de uma década e apresenta uma possibilidade de estruturar de forma lógica e

analítica um raciocínio com uma pretensão de correção da decisão judicial. Este

propõe a retomada das proposições que dão origem às premissas utilizadas no

raciocínio de uma decisão judicial – vista como a conclusão de um raciocínio – a

fim de verificar se esse mesmo órgão judicial profere uma decisão observando as

próprias proposições e premissas lançadas na sua história de decisões. Trata-se

de uma regra de razão prática particular denominada de “autoprecedente”.

Observe-se que a utilização do termo não pode ser confundida com o

precedente vertical, considerado aquele que considera as decisões proferidas por

um órgão judicial superior e que exerce influência e autoridade sobre as decisões

dos órgãos judiciais inferiores, melhor explanado no item “2.2” do capítulo

precedente. A concepção que aqui se quer apresentar considera a existência de

um precedente horizontal, já mencionado por autores que pesquisam o tema dos

precedentes.184

3.2 AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RACIONALIDADE PRÁTICA

A autoria da tese de autoprecedente como regra de racionalidade

prática pertence a José Renato Gaziero Cella, exposta no artigo Auto-

precedente185 e argumentação racional de 2001, e de sua Tese de Doutorado

intitulada Controle das decisões jurídicas pela técnica do auto-precedente: lógica

deôntica paraconsistente aplicada em sistemas especialistas legais, defendida em

2008, na Universidade Federal de Santa Catarina.

Partindo da tese da única resposta certa de Dworkin, Cella defende

que a racionalidade da decisão judicial pode ser aferida, “ser aproveitada num

sentido particular”, não como a possibilidade de se encontrar efetivamente uma

solução correta para toda e qualquer disputa levada a juízo, no sentido de uma

184 ROSITO, Francisco, op. cit, p. 287. 185 O vocábulo sofreu alteração morfológica após a promulgação, pelo Decreto 6.583/2008, do

Acordo Ortográfico assinado pelos países cuja língua portuguesa é o idioma oficial, em 16 de dezembro de 1990, em Lisboa, Portugal. No acordo, a utilização do prefixo “auto”, sucedido por expressão que iniciasse com letra diferente de “o”, teve a utilização do hífen suprimida, conforme Base XVI, parágrafo 2º, alínea “b”.

Page 109: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

97

pretensão de correção universal, mas sim como uma “aspiração postulada por

todo raciocínio jurídico que se pretenda correto e sem contradições”186.

Para o autor:

[...] sem embargo da assertiva de que o Direito não oferece sempre uma única resposta correta para mais de um intérprete, deve-se supor que existe sim uma resposta correta para cada intérprete individualmente considerado, ou seja, que a ideia de correção absoluta não é válida para o conjunto da comunidade linguístico-jurídica, mas é aplicável a cada um de seus membros.187

A tentativa de universalizar a racionalidade e a coerência de toda e

qualquer decisão judicial a um método único fracassa no momento em que o

processo interpretativo é inerentemente subjetivo e não consensual. Assim, a

ideia dworkiana de resposta correta pode ser entendida não em um universo geral

das decisões de todo um sistema jurídico, mas sim de uma forma particular,

considerando o universo das decisões de um mesmo órgão. É dessa forma que

se poderia admitir existir uma resposta correta, a partir da observância, pelo órgão

julgador, da coerência de sua decisão a partir do seu próprio autoprecedente:

Consequentemente, quando as circunstâncias de fato e as hipóteses normativas são as mesmas – ou se mantêm constantes – pode-se afirmar que o intérprete, a partir de uma exigência de argumentação racional, deva sempre formular uma única resposta quando estiver na presença das mesmas hipóteses. Tal assertiva é uma exigência da argumentação racional, pois o que está em jogo aqui não é um resultado obtido após um debate intersubjetivo, mas sim uma das regras fundamentais que todos os participantes do discurso prático geral devem observar, a saber: ‘Todo orador que aplique um predicado F a um objeto A tem de estar preparado para aplicar F a todo outro objeto que seja semelhante a A em todos os aspectos relevantes’.188

Essa tese encontra plena aderência aos direitos fundamentais da

segurança jurídica e da igualdade de tratamento dos indivíduos nas decisões

judiciais. Isso porque permite, quanto à segurança jurídica, que se tenha

previsibilidade das consequências jurídicas dos comportamentos sociais e que

186 CELLA, José R. G, 2001, op.cit, p. 18. 187 Idem, p. 20. 188 Ibid, 2008, op. cit, p. 110.

Page 110: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

98

estes sejam qualificados de forma unívoca pelos órgãos julgadores, ainda que se

considerados dessa forma particular.

O cumprimento de tais pressupostos permite, ao mesmo tempo, que os

casos levados à apreciação pelo mesmo órgão julgador sejam considerados de

forma igualitária, sem importar quem são as partes envolvidas, mas somente

quais são os fatos e qual é o direito aplicável. Dado os “favores” que permeiam a

justiça brasileira, já referidos a partir de Rodrigues, o autoprecedente pode

representar a retomada de um caminho de seriedade nos julgamentos brasileiros.

Inicialmente, a tese do autoprecedente, como última ratio do controle

da racionalidade das decisões judiciais, fundamentava-se em duas regras formais

da argumentação: a da universalização, decorrente do imperativo kantiano, de

modo que o individuo na sua liberdade de agir coadune-se com a liberdade de

todos; e a da inércia, delineada por Perelman, que consiste na reiteração dos

comportamentos, presente na justificação dos precedentes como fontes do

direito.189 Posteriormente, apesar de afastar a inércia perelmaniana, Cella

mantém a universalização, mas com fundamento na argumentação de Alexy.190

A técnica do autoprecedente como regra formal de racionalidade

propõe a utilização da lógica paraconsistente, de autoria de Newton Carneiro

Affonso da Costa, para a aferição da racionalidade das decisões judiciais através

de um sistema de informática (software):

[...] uma lógica é paraconsistente se pode fundamentar sistemas dedutivos inconsistentes (ou seja, que admitam teses contraditórias, e em particular um contradição) mas que não sejam triviais, no sentido de que nem todas as fórmulas (expressões bem formadas de sua linguagem) sejam teoremas do sistema.

Além da utilização de lógica paraconsistente proposta por Cella, Cesar

Antonio Serbena propôs em recente artigo a utilização da lógica fuzzi e de redes

neurais às decisões judiciais. São sistemas lógicos complexos, baseados em

proposições parcialmente verdadeiras e parcialmente falsas – no caso da fuzzi –

e que podem inclusive aprender pelo input de novas informações – no caso das

189 Ibid, 2001, p. 22. 190 Ibid, 2008, p. 108.

Page 111: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

99

redes neurais. O objetivo do artigo de Serbena aproxima-se no propósito dessa

dissertação quanto ao objetivo de que “a decisão judicial que desejamos do

sistema jurídico deva ser uma decisão coerente e igualitária, que leve em

consideração todos os jurisdicionados em uma mesma medida”191. Contudo, sua

proposta consiste na possibilidade de o julgador, ao tomar uma decisão, ou seja,

em um sentido prescritivo, fazer uso de uma dessas lógicas complexas para lhe

subsidiar na decisão futura, aquela que vai proferir ao caso concreto. Logo, uma

função prescritiva.

O presente estudo, entretanto, tem uma pretensão muito mais tímida.

Isso porque o objetivo da utilização da técnica do autoprecedente que se propõe

nessa dissertação é operado em uma função descritiva. Acredita-se que se for

possível preencher uma estrutura lógico-dedutiva formal (premissa maior,

premissa menor e conclusão) com os argumentos da racionalidade que uma

decisão judicial utilizou, tanto na justificação interna da decisão, como na

justificação externa, todas as decisões em situações análogas ao modelo em que

for suscitado esse mesmo julgador, por as proposições que justificam as

premissas já serem conhecidas nos casos passados, poder-se-á verificar se a

última decisão está coerente com o autoprecedente criado pela ratio decidendi já

utilizada e, portanto, concluir-se se a mesma é racional nesse sentido particular.

Se pensada a partir de uma lógica modal, o autoprecedente de um

órgão julgador tornar-se-ia sua verdade necessária192, pois a qualificação jurídica

que ele dá aos fatos e a interpretação que infere das normas jurídicas válidas

seria seu universo possível.

191 SERBENA, Cesar A. Aplicação da informática decisória ao direito: lógica “fuzzi” e redes

neurais. In: LASALA CALLEJA, Pilar (ed.). Derecho e tecnologias avanzadas. Zaragoza: Prensas de la Universidad de Zaragoza, 2013, p. 30.

192 V. HAACK, Susan, op. cit, p. 229-230: “A lógica modal tem por intenção representar argumentos que envolvem essencialmente os conceitos de necessidade e possibilidade. [...] Há uma longa tradição filosófica de distinguir entre verdades ‘necessárias’ e verdades ‘contingentes’. A distinção é freqüentemente explicada da seguinte maneira: uma verdade necessária é uma verdade que não poderia ser de outra forma, uma verdade contingente, uma que poderia; ou, a negação de uma verdade necessária é impossível ou contraditória, a negação de uma verdade contingente é possível ou consistente; ou, uma verdade necessária é verdadeira em todos os mundos possíveis (p.250ss), uma verdade contingente é verdadeira no mundo real, mas não em todos os mundos possíveis.”

Page 112: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

100

Na investigação da lógica jurídica analítica, viu-se que, dentro dos

chamados raciocínios jurídicos de coação intelectual, a justificação interna de

uma decisão consiste na premissa de fato, obtida por meio da prova e

convencimento resultante do procedimento processual, e na premissa de direito,

identificada no sistema jurídico como a norma vigente a ser aplicada ao caso.193

Do mesmo modo a justificação externa desses raciocínios, ou seja, a

obtenção das premissas de fato e de direito também dependem de raciocínio

anteriores justificados.

A fim de obter a premissa de fato, afirma Kalinowski, o raciocínio

realizado é jurídico não-normativo,194 o qual consiste na verificação da existência

dos fatos alegados pelas partes. A conclusão desse raciocínio jurídico não-

normativo será positiva ou negativa, acatará a versão de uma ou de outra parte.

Isso ocorrerá a partir das alegações e das provas produzidas durante o

procedimento processual. A fixação dessa premissa de fato equivale à

univocidade na qualificação das situações jurídicas proposta por Marinoni,195

pressuposto da segurança jurídica na aplicação dos precedentes.

Quanto à premissa de direito, o raciocínio será jurídico normativo.

Neste, o juiz identificará e individualizará qual será a norma jurídica que se aplica

à premissa de fato verificada. Nesse caso, fará uma inferência da norma geral

abstrata sobre o caso particular. Exatamente aquilo que Hart denomina de “regra

individual de reconhecimento”.196 Aqui, pois, pode-se verificar a existência do

outro pressuposto da segurança jurídica, a previsibilidade das consequenciais

jurídicas.

Como se pode verificar, caso a conclusão dos raciocínios jurídicos

normativos e não-normativos (que suportam as proposições da justificação

externa) forem diferentes entre órgãos julgadores sobre casos análogos, tanto

conjunta quanto individualmente, as premissas utilizadas na justificação interna

serão alteradas e, logicamente, a conclusão/decisão judicial será alterada.

193 KALINOWSKI, Georges, op. cit, p. 146-150. 194 V. item “2.1.2”, retro. 195 V. item “2.2.2”, retro. 196 V. item “1.1”, retro.

Page 113: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

101

Pois bem, uma das constatações da presente pesquisa foi de que a

teoria do direito, dadas as suas invencíveis divergência filosóficas, não possui um

catálogo de proposições semanticamente unânimes para tornar unívoco o

raciocínio jurídico normativo em um sentido universal. Do mesmo modo, outra

constatação alcançada foi de que a subjetividade dos julgadores é influência

inequívoca no ato de decidir, o que também impede uma unanimidade no

raciocínio jurídico não-normativo dos fatos levados a sua apreciação, ou seja, a

qualificação jurídica dos fatos, especialmente aqueles em que essa adjetivação

jurídica se trata de um conceito indeterminado, é ato eminentemente subjetivo.

Mas no momento em que são conhecidos os argumentos utilizados por

um julgador para determinado caso, sua ratio decidendi pode ser enclausurada

em uma estrutura formal, o que justifica a exigência de que tal julgador, em prol

da racionalidade de suas decisões, aferidas pela coerência de seus raciocínios

jurídicos normativos e não-normativos, chegue a conclusões semelhantes em

casos análogos, ou seja, que envolvam fatos provados análogos ou regras

individuais de reconhecimento semelhantemente aplicáveis. Isso nada mais é que

a proposta do autoprecedente como regra particular de razão prática.

Admitindo-se essa hipótese, pode-se sugerir que, para a aferição da

racionalidade de um conjunto de decisões de um mesmo julgador, crie-se uma

estrutura formal de racionalidade lógico-dedutiva, preenchida pelas conclusões

dos raciocínios jurídicos normativos e não-normativos de um mesmo julgador, o

que permitiria verificar analiticamente, do ponto de vista da coerência, a

racionalidade das decisões desse mesmo órgão julgador.

Assim, ao se poder obter os raciocínios jurídicos normativos e não-

normativos de determinado órgão judicial, através do discurso argumentativo de

sua decisão, em relação aos fatos da vida por si qualificados e às normas

jurídicas inferidas, poder-se-ia inferir uma regra formal particular de razão prática

a esse julgador quanto a esse fato. Essa regra, aplicada a um conjunto de

decisões desse órgão em casos análogos, permitiria verificar a coerência e,

portanto, a racionalidade jurídica desse órgão julgador. A manutenção do

entendimento já reiteradamente exposto pelo julgador demonstraria a

Page 114: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

102

racionalidade de suas decisões, enaltecendo, assim, os primados fundamentais

da segurança jurídica e da igualdade das decisões judiciais perante casos

análogos.

Por óbvio que, indiretamente, a aferição da coerência e da

racionalidade das decisões judiciais de um determinado órgão representa a

observância de princípios democráticos, no sentido de controle e fiscalização do

poder do Estado, além da potencialização das garantias fundamentais e da

possibilidade de responsabilização pela prática de inconsistências injustificadas

em decisões judiciais. Como se pode imaginar, o âmbito de aplicação dessa regra

de racionalidade prática particular é extenso. Desde o combate à corrupção

também presente nos órgãos judiciários, até a efetivação de direitos

fundamentais, como o já tratado da igualdade de tratamento entre indivíduos.

Nesse sentido, a legitimação dessa discricionariedade judicial também

acaba ofendendo o princípio da separação das funções do Estado, atualmente

criticado como protagonismo judicial.197

Para demonstrar a falta de coerência das decisões judiciais na

realidade brasileira, analisada a partir da regra formal particular de razão prática

de autoprecedente, serão tomadas algumas decisões proferidas pelo Supremo

Tribunal Federal, o que se passa a expor adiante.

3.2.1 Casos de Incoerência Analisados pela Técnica do Autoprecedente

Inicialmente, deve-se observar que a análise e discriminação do

raciocínio da decisão considerará, para os fins aqui pretendidos, o entendimento

vitorioso, ou seja, aquele expresso no dispositivo da decisão. Como referido

anteriormente, no caso dos tribunais brasileiros, um mesmo resultado do

julgamento pode se dar por diversos motivos.198 Nos casos que serão

apresentados adiante, considerar-se-á a decisão a partir do momento em que os

argumentos são inequívocos para o resultado da decisão. Ou seja, serão

consideradas as justificações externas imediatamente anteriores à justificação

197 Cf. STRECK, Lenio, op. cit, p. 93-97; 198 V. item “2.1”, retro.

Page 115: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

103

interna do resultado da decisão. Desse modo, serão identificadas as proposições

que justificam a justificação externa das premissas que serão utilizadas na

justificação interna.

Pois bem, a 1º Turma do Supremo Tribunal Federal, no Habeas Corpus

nº 75.338199, em julgamento ocorrido em 11/03/1998, ao apreciar caso de

recebimento de denúncia fundada em gravação telefônica não autorizada por um

dos interlocutores, entendeu que o direito fundamental à inviolabilidade da

conversa telefônica, disposto artigo 5º, XII, da Constituição Federal Brasileira,

pode ser relativizado quando a gravação telefônica é utilizada para provar o

cometimento de um ilícito penal. Nesse caso, portanto, a 1ª Turma do Supremo

Tribunal Federal considerou a referida gravação lícita, autorizando sua utilização

como prova no procedimento processual.

O caso, por ironia ao tema dessa dissertação, diz respeito à suposta

tentativa de extorsão por Juiz de Direito em face de Tabelião Substituto de Notas

que respondia a processo disciplinar junto à Corregedoria-Geral do Tribunal de

Justiça do Estado do Rio de Janeiro, órgão competente para apreciar e julgar

administrativamente irregularidades dos auxiliares da justiça, grupo em que os

Tabeliões estão inseridos.

A comunicação do crime realizada pelo Tabelião fundava-se em

gravação telefônica em que o Juiz de Direito solicitava cem mil dólares

americanos para “liberá-lo” do referido processo administrativo instaurado, no

sentido de fazê-lo cessar ou arquivá-lo. A notícia crime resultou em processo

crime, cuja discussão sobre a utilização da referida gravação como prova chegou

à Corte Constitucional em razão da alegação de ofensa ao direito à inviolabilidade

da conversa telefônica sem autorização do Juiz de Direito.

Se o raciocínio jurídico do órgão julgador fosse colocado em uma

estrutura formal de raciocínio, sua representação seria equivalente à figura nº 1

(abaixo).

199 BRASIL., Supremo Tribunal Federal. Disponível em:

http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=75912. Acesso em 27 set.2015.

Page 116: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

104

Note-se que o raciocínio da justificação interna possui, como premissa

de direito, a possibilidade de “relativização do direito fundamental” à privacidade.

Essa conclusão, por sua vez, decorre de raciocínio anterior, em que o órgão

julgador considerou que o direito à privacidade não pode ser invocado quando se

está diante do cometimento de um ilícito. Nesse raciocínio, duas são, portanto, as

premissas, o cometimento de um “ato ilícito” e o “direito fundamental” à

inviolabilidade das comunicações telefônicas. Cada uma dessas proposições

também possui um raciocínio próprio anterior.

Figura nº 01 – Habeas Corpus nº 75.338/RJ

No caso da premissa “direito fundamental” à inviolabilidade das

comunicações telefônicas, tal proposição, na decisão analisada, decorre de um

raciocínio que considera a existência do “art. 5º, XII” da Constituição da República

Brasileira de 1988 como possuidor de previsão do direito fundamental à

inviolabilidade das comunicações telefônicas, bem como de que uma conversa

telefônica está abarcada por essa inviolabilidade em razão de sua característica

privativa, o que também poderia ser expresso em uma nova estrutura anterior,

cuja justificação teria como base o art. 5º, X, da Carta Constitucional brasileira,

mas que para demonstrar a hipótese dessa pesquisa mostra desnecessária.

Sendo assim, consideradas as premissas “art. 5º, XII da CRFB/88” e

“conversa telefônica é privativa”, concluiu-se que a conversa telefônica está

protegida pelo “direito fundamental” à inviolabilidade das comunicações

telefônicas. Essa, portanto, seria a estrutura formal do raciocínio que considera

aplicável ao caso o “direito fundamental” em exame.

Page 117: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

105

Já a premissa “ato ilícito” é resultado do raciocínio envolvendo outras

proposições. A primeira, que a conversa telefônica gravada envolvia uma

“proposta” realizada pelo Juiz de Direito, e a segunda, que essa conduta seria

tipificada como crime de extorsão, previsto no “art. 158” do Código Penal

brasileiro. A conclusão dessas premissas é de que haveria um “ato ilícito” sendo

cometido na gravação telefônica cuja utilização como prova estava sendo

debatida.

Assim, reconstruindo o raciocínio da premissa de direito a partir das

justificações externas demonstradas acima, a 1º Turma do Supremo Tribunal

Federal considerou a “relativização do direito fundamental” à inviolabilidade das

comunicações telefônicas, cuja força normativa decorre do “art. 5º, XII da

CRFB/88” e do fato “a conversa telefônica ser privativa”, em razão de a mesma

demonstrar o cometimento de um “ato ilícito” tipificado como crime pelo “art. 158

do CP” em razão do teor da “proposta” comunicada pela conversa telefônica.

Já em relação à premissa fática da “utilização da conversa telefônica

como prova”, a construção do raciocínio não se mostra difícil. Pode-se afirmar que

a justificação externa da premissa “utilização da gravação telefônica como prova”

consiste simplesmente no fato de ter existido uma “conversa entre duas pessoas”,

por telefone, e que ela foi objeto de “gravação por um interlocutor” que dela

participava.

A decisão expressa pelo órgão julgador analisado, portanto, utilizando

a premissa de direito da “relativização do direito fundamental” à inviolabilidade

das conversas telefônicas, e a premissa de fato acerca da “utilização de gravação

telefônica como prova”, conclui que a gravação telefônica da conversa entre o

Juiz de Direito e o Tabelião, gravada por este sem o conhecimento daquele, seria

lícita para fins de prova em persecução penal.

Desse modo, o raciocínio jurídico da decisão em comento, formalmente

organizado em uma estrutura lógica clássica, demonstra a tese proposta por

Kalinowski, de que a decisão compõe-se de um raciocínio jurídico normativo, que

resulta na premissa de direito, e de um raciocínio jurídico não-normativo, que

resulta na premissa fática, ambas, por sua vez, fundadas em premissas

Page 118: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

106

anteriores, por sua vez justificadas em proposições oriundas de outras premissas

e assim por diante.

Entretanto, diante da inexistência de uma regra de razão prática de

racionalidade jurídica, a realidade do sistema jurídico brasileiro acaba admitindo a

existência de decisões sobre casos análogos, cuja qualificação jurídica dos fatos

ou a consideração da norma aplicável são incoerentes entre si, e pior, pelo

mesmo órgão julgador. Tal realidade, como já manifestado nas linhas anteriores,

prova a violação à segurança jurídica e à isonomia das decisões judiciais perante

as partes participantes de processos análogos. Nesse sentido, comparar-se-á à

decisão anterior a proferida no Habeas Corpus nº 80.949/RJ200, julgado em

30/10/2001.

Este segundo caso também diz respeito à possibilidade de utilização

de gravação telefônica realizada com o conhecimento de um dos interlocutores

como prova em persecução penal. O caso diz respeito a sujeito que, ao ser

interrogado perante a autoridade policial, confessa sua participação em esquema

de venda internacional de armas. Contudo, atribui a terceiro o comando da

organização, provando este fato a partir de gravação telefônica.

Ocorre que nesse caso, a 1º Turma do Supremo Tribunal Federal

considerou que a referida prova era ilícita, sob o argumento – em sede de

premissa de direito – de que o direito fundamental à inviolabilidade das

comunicações telefônicas seria absoluto.

A justificação do raciocínio jurídico manifestado pelo órgão julgador

poderia ser estrutura da seguinte forma (figura nº 2):

200 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em :

http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=78579. Acesso 27 set.2015.

Page 119: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

107

Figura nº 2 – Habeas Corpus nº 80.949/RJ

Nesse segundo caso, verifica-se que a justificação interna da decisão

considerou como premissa de direito a proposição de que a inviolabilidade das

comunicações telefônicas se trata de um “direito fundamental absoluto”, enquanto

que a premissa de fato é a mesma do caso anterior, ou seja, “utilização de

gravação telefônica como prova” em processo penal. Contudo, e decisão é

diametralmente oposta: a gravação é considerada prova ilícita.

Analisando a justificação externa da decisão, verifica-se que os

raciocínios que justificam a consideração da inviolabilidade das comunicações

telefônicas como “direito fundamental absoluto” estão constituídos pelas mesmas

proposições que justificaram o raciocínio que conclui pela “relativização do direito

fundamental”, como premissa de direito, no primeiro caso analisado (figura nº 1).

Decompondo o raciocínio dessa premissa de direito usada na decisão

da figura nº 2, verifica-se que o raciocínio também utiliza, como premissas

anteriores, as proposições de que a inviolabilidade das comunicações é um

“direito fundamental” e que a referida gravação foi utilizada para demonstrar o

cometimento de suposto “ato ilícito”.

O raciocínio que considera a proposição “ato ilícito” válida tem como

premissas a previsão legal do “art. 18 da Lei 10.826” de 2003, que proíbe a

comercialização de armas sem autorização, e a suposta prática desse comércio

(“compra/venda sem autorização”).

Page 120: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

108

Por sua vez, a conclusão que resulta na premissa “direito fundamental”

à inviolabilidade da gravação telefônica, semelhantemente ao caso da figura nº 1

supra, também tem como premissas do raciocínio a proposição da regra

constitucional disposta no “art. 5º, XII da CRFB/88” e de que a “conversa

telefônica é privativa”, por essa razão inviolável.

Por fim, a premissa fática “utilização de gravação telefônica como

prova” possui as mesmas proposições do caso da figura nº 1: a existência de uma

“conversa entre duas pessoas”, por telefone, e o fato de ter ocorrido a “gravação

por um interlocutor” da conversa.

Observe-se, portanto, que as proposições utilizadas pela 1ª Turma do

Supremo Tribunal Federal no raciocínio da justificação externa do caso

representado pela figura nº 1 e as proposições utilizadas pelo mesmo órgão

julgador no raciocínio da justificação externa no caso representado pela figura nº

2 são extremamente semelhantes, somente não sendo idênticas no tipo penal que

justificava a consideração do “ato ilícito” como uma das premissas – enquanto no

caso da figura nº 1 o suposto crime é de extorsão, no caso da figura nº 2 é de

comércio de armas sem autorização.

Essa diferença, contudo, a partir das razões externadas nos

julgamentos, não alteram o peso da premissa “ato ilícito” nos dois casos. Isso

porque em ambos tal premissa “ato ilícito”, ao considerá-la como proposição na

justificação do raciocínio posterior, a saber, se o direito fundamental em comento

era relativo ou absoluto, foi correlacionada com o próprio preceito constitucional

(nas figuras, premissas nominadas de “direito fundamental”), sendo que em

ambas as justificações externas a carga normativa atribuída ao “direito

fundamental” foi idêntica.

A observação desses casos demonstra que, mesmo diante da

igualdade das proposições utilizadas em um raciocínio jurídico, a consideração do

direito fundamental à inviolabilidade das conversas telefônicas foi considerada no

primeiro caso como um direito fundamental relativo (figura nº 1) e no segundo

como direito fundamental absoluto (figura nº 2). Ora, nítida é a incoerência das

decisões proferidas pelo órgão julgador.

Page 121: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

109

Tal constatação também confirma as afirmações apresentadas no

capítulo 1 dessa dissertação, em que se demonstrou que há discricionariedade

nas decisões judiciais, independentemente se a escolha realizada pelo julgador

ocorre pela inexistência de previsão normativa (Kelsen e Hart), pela apresentação

de justificativas que não são motivações reais e efetivas (MacCormick), pela

argumentação racional que utiliza conceitos de justiça admitidos socialmente ou

uma dogmática jurídica particular (Alexy), ou, ainda, pela utilização de uma

argumentação comprometida com um ideal político e moral (Atienza).

Como se comprovou nos casos suprarreferidos, as premissas de direito

utilizadas na justificação interna divergem. Enquanto no primeiro (figura nº 1) o

direito fundamental à inviolabilidade das conversas telefônicas foi relativizado, no

segundo (figura nº 2), o mesmo direito, com a mesma estrutura de justificação

externa, foi considerado um direito fundamental absoluto. A conclusão dessa

análise é de que a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal interpretou o direito

fundamental disposto no inciso X do artigo 5º como lhe aprouve, logo, de forma

discricionária.

Note-se que as premissas fáticas de ambos os casos são idênticas.

Logo, a previsibilidade da qualificação jurídica de certo comportamento acaba

inexistindo no sistema jurídico brasileiro, e a segurança jurídica que se espera dos

órgãos jurisdicionais, ainda mais o Tribunal constitucional, responsável pela

uniformização da interpretação das normas constitucionais, torna-se uma utopia.

Essa discricionariedade, entretanto, também pode se dar na premissa

fática (raciocínio não-normativo) da justificação interna. A fim de demonstrar a

existência dessa incoerência na qualificação jurídica inequívoca dos fatos,

apresentar-se-á mais dois casos da Suprema Corte brasileira. Observe-se,

incialmente, que ambos os casos discutem situações fáticas anteriores à Emenda

Constitucional nº 20 de 15 de dezembro de 1998, razão por que a redação do art.

195 da Constituição Federal que será analisada é anterior à alteração do texto

constitucional promovido pela referida emenda.

Pois bem, os terceiro e o quarto casos que serão objeto de análise pela

lente da coerência do autoprecedente dizem respeito à discussão envolvendo a

Page 122: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

110

conceituação semântica do termo “faturamento” como equivalente ou não ao

sentido de “receita bruta” da comercialização como base de cálculo de

contribuições sociais, tributos esses com matriz normativa no art. 195 da

Constituição da República Federativa do Brasil, que para melhor entendimento do

leitor será abaixo transcrito:

[...] Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: I – dos empregadores, incidente sobre a folha de salários, o faturamento e o lucro; [...]

No Recurso Extraordinário nº 390.840/MG201, julgado em 09/11/2005, o

Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal, discutiu a constitucionalidade do

alargamento do conceito de “faturamento” que a Lei 9.718, de 27 de novembro de

1998, estendia até o conceito de “receita bruta”, manifestou-se no sentido de que

“faturamento” e “receita bruta da comercialização” eram expressões

semanticamente equivalentes. Por essa razão, a “receita bruta” da

comercialização seria base de cálculo para a exigência de contribuições sociais.

O resultado dessa interpretação considerou constitucional a referida lei

ordinária, pois ela havia aumentado a base de cálculo das contribuições sociais

para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do

Servidor Público (PIS/PASEP) e da Contribuição para o Financiamento da

Seguridade Social (COFINS), pois do contrário seria necessária sua instituição

por meio de lei complementar (art. 195, § 4º, que remete ao art. 154, I, ambos da

Carta Constitucional).

Uma representação das proposições e, consequentemente, da

racionalidade da decisão nesse ponto específico poderia ser representada pela

estrutura formal da figura nº 3 (abaixo).

201 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em:

http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=261694. Acesso em 03 out.2015.

Page 123: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

111

A justificação interna da decisão considerou, como premissa de direito,

que o “faturamento é base de cálculo” das contribuições sociais ao PIS/PASEP e

à COFINS, premissa essa resultado da conclusão advinda da correlação racional

entre a proposição considerada válida de que uma lei ordinária pode dispor sobre

contribuição social que utilize como base de cálculo o faturamento - “Art. 195, I,

da CRFB/88” – e lei que dispõe essa contribuição – “Art. 3, § 1 da Lei 9.718/98”.

Figura nº 3 – Recurso Extraordinário nº 390.840/MG

Já como premissa fática, o órgão julgador utiliza na justificação interna

a premissa “’faturamento’ equivale a ‘receita da comercialização’”, que por sua

vez é uma conclusão que advém do raciocínio não-normativo na justificação

externa de duas proposições anteriores. Nestas, são correlacionados os conceitos

de “faturamento” e de “receita bruta da comercialização”, os quais, pelas razões

argumentativas apresentadas pelo Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal,

foram considerados conceitos equivalentes.

Frise-se, novamente, que o presente trabalho não se atém ao conteúdo

dos argumentos, no sentido retórico, mas sim no resultado desses argumentos,

que acabam dando sustentáculo às premissas da estrutura formal do raciocínio

do caso.

Portanto, utilizando a decisão do órgão julgador no RE 390.840/MG,

que conclui pela constitucionalidade da utilização da “receita bruta” da

comercialização como base de cálculo das contribuições sociais PIS/PASEP e

COFINS.

Page 124: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

112

Entretanto, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 363.852/MG202,

ocorrido em 03/02/2010, o mesmo Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal,

ao decidir sobre a constitucionalidade de contribuição social incidente sobre a

“receita bruta da comercialização” da produção dos agricultores, prevista no artigo

25 da Lei 8.212 de 24 de julho de 1991, entendeu que o conceito de “receita bruta

da comercialização” não era equivalente a “faturamento”.

A estrutura do raciocínio da decisão desse quarto caso está

representada na figura nº 4 (abaixo).

Figura nº 4 – Recurso Extraordinário nº 363.852/MG

Como se pode perceber, tão somente comparando a estrutura disposta

na figura desse quarto caso à figura nº 3, a diferença entre as premissas

utilizadas na justificação interna dos julgamentos reside na qualificação jurídica da

“receita bruta da comercialização”, portanto, na premissa fática.

Outra observação que também é reparável de pronto diz respeito,

semelhantemente à comparação entre o primeiro e o segundo caso, ao fato de as

premissas da justificação externa ser exatamente as mesmas no terceiro e no

quarto caso. Entretanto, não se verifica nestes uma qualificação jurídica unívoca

quanto ao conceito de “receita bruta da comercialização”.

202 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em:

http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=610212. Acesso em: 03 out.2015

Page 125: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

113

Depurando as proposições utilizadas no raciocínio, a premissa de

direito, que considera que o “faturamento é base de cálculo” para apuração da

contribuição social da Lei 8.212 advém do raciocínio normativo de duas

proposições anteriores, cujas premissas são validamente aceitas em razão da

previsão constitucional disposta no “art. 195, I, da CRFB/88”, que autoriza a

instituição de contribuição social sobre faturamento, e da previsão legal do “art. 25

da Lei 8.212/91”, que a estipula sobre a “receita da comercialização”.

Nos casos terceiro e quarto, portanto, as decisões proferidas pelo

Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal mostram-se incoerentes se

analisadas a partir das estruturas dos seus raciocínios. No caso terceiro, a

premissa fática utilizada na justificação interna da decisão considera a “receita

bruta da comercialização” equivalente a “faturamento”, o que, por conseguinte,

tornou a parte qualificada como contribuinte sujeito passivo da obrigação

tributária. Mas no caso representado pela figura nº 4, justamente o contrário: a

conclusão da justificação externa da premissa fática foi de que a “receita bruta da

comercialização” não se equiparava ao conceito de “faturamento”, razão por que

a parte contribuinte não foi considerada sujeito passivo de obrigação tributária

quanto a esse tributo em especial.

Essa constatação demonstra de forma clara e precisa a incoerência

que o sistema jurídico brasileiro possui na qualificação jurídica dos fatos que lhe

são levados a julgamento.

Ora, se a Suprema Corte, que de certo modo é vigiada pelas atuais

Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC), o que acaba proporcionando

maior cuidado pelos próprios integrantes da Corte Suprema quanto à exposição

pública de incoerências, e que também tem em seu sítio eletrônico bancos de

dados com acesso público a todas as decisões publicadas na imprensa oficial203,

o que permite realizar as comparações do raciocínio jurídico realizado acima, o

que se pode cogitar quanto às decisões dos juízes de primeiro grau, os quais são

203 www.stf.jus.br. Observe-se que os tribunais brasileiros em geral – superiores e de segunda

instância – possuem motores de busca satisfatórios, permitindo várias formas de filtros quanto à obtenção das decisões proferidas pelos seus órgãos.

Page 126: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

114

somam um número de 14.518204 magistrados, cujas decisões não abastecem um

banco dados para poderem ser comparadas205?

As estruturas da racionalidade das decisões apresentadas acima não

esgotaram os argumentos utilizados pelos órgãos julgadores nas decisões

proferidas. Uma análise de todos os argumentos não comportaria as páginas de

uma dissertação como esta. Nesse sentido, assumindo a insignificância dessa

pesquisa perto da complexidade que envolve a argumentação das decisões

judiciais, o que se quis demonstrar com os exemplos supracitados é que uma

regra de racionalidade prática fundada no autoprecedente é capaz de aferir a

incoerência com que as premissas de direito – resultado dos raciocínios

normativos responsáveis pela individualização da norma aplicável ao caso – e as

premissas de fato – resultado dos raciocínios não-normativos responsáveis pela

qualificação jurídica dos fatos que sofrem a incidência das normas – são

utilizadas por mesmo órgão julgador em casos extremamente semelhantes.

Observe-se também que a comparação da estrutura da racionalidade

de todos os casos permitiu verificar que nos dois grupos as premissas utilizadas

na justificação externa eram idênticas, salvo nas previsões legais dos tipos penais

e das bases de cálculo dos tributos, premissas essas que não promoveram

nenhuma influência nas escolhas que tornaram as decisões incoerentes.

Desse modo, pode-se arriscar que uma regra de racionalidade prática

apoiada na técnica do autoprecedente verificaria as premissas adotadas pelo

mesmo julgador na justificação externa e, uma vez que as mesmas

demonstrassem identidade – exceto quanto à norma aplicável na premissa de

direito, se ela não se mostrar o centro da discussão – obrigaria que as premissas

utilizadas na justificação interna fossem semelhantes. Essa semelhança, por sua

vez, teria por referencial teórico os pressupostos da segurança jurídica: quanto à

204 BRASIL. Conselho Nacional da Justiça. Relatório Justiça em Números 2015. Disponível em:

http://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/pj-justica-em-numeros. Acesso em 03 out.2015. 205 A maioria dos sítios eletrônicos dos tribunais que estão vinculados os juízes singulares

permitem o acesso às decisões destes, mas dentro do ambiente (página da internet) específico de cada processo. O que ser afirma com a inexistência de “banco de dados” das suas decisões é que não existe um motor de busca para acessar decisões de primeiro grau, ainda que de um mesmo órgão, por pertinência temática, o que já ocorre em relação às decisões proferidas em segundo grau, nos tribunais.

Page 127: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

115

premissa de direito, previsibilidade das consequências à mesma conduta; e

quanto à premissa fática, univocidade na qualificação jurídica.

Esse seria um ensaio da descrição da regra de racionalidade prática

particular do autoprecedente, capaz de estabelecer um padrão de aferição da

racionalidade jurídica das decisões de um mesmo órgão, decisões essas

consideradas como que no próprio microssistema desse julgador.

Por essa razão é que a proposta da presente dissertação,

diferentemente da utilização de lógica paraconsistente que propõe Cella ou da

utilização de lógica fuzzi e de redes neurais que propõe Serbena, não possui uma

pretensão prescritiva, no sentido de subsidiar o órgão julgador na prolação de

uma decisão judicial futura. A proposta aqui, mais contida por sinal, acredita na

possibilidade de utilização de uma lógica subjacente, dentre as diversas

atualmente existentes206, para fins de descrição da ratio decidendi de um órgão

julgador, e da possibilidade de comparação dessa ratio com as decisões

passadas proferidas por esse mesmo órgão.

As inovações legislativas trazidas pelo Novo Código de Processo Civil

tornam a exigência de coerência nas decisões judiciais requisito de legitimação da

própria função jurisdicional dos órgãos julgadores. Ao mesmo tempo, revitaliza a

importância do estudo do papel da lógica jurídica no direito, aplicado à

argumentação existente nas decisões judiciais.

Como dito nos capítulos anteriores, não se trata da utilização de uma

regra de racionalidade aplicável a toda e qualquer decisão. Como se mostrou em

Hart, Kelsen e Ross, e como também está implícito no juiz Hércules de Dworkin,

as decisões judiciais estão permeadas de escolhas morais e políticas. A

coerência das decisões judiciais a partir de uma técnica de autoprecedente

resgata uma ideia de racionalidade jurídica que exige observância da tradição

206 Segundo Susan Haack, uma classificação dos tipos de lógica formais existentes, dadas algumas reservas que a própria autora faz durante sua obra, a lógica tradicional (representada pelo silogismo aristotélico), a lógica clássica (dividida pelo cálculo sentencial bivalente e cálculo de predicados), as lógicas ampliadas (que se dividem em lógicas modais, as lógicas temporais, lógicas deônticas, lógicas epistêmicas, lógicas de preferência, lógicas imperativas e lógicas erotéricas ou interrogativas), as lógicas alternativas (divididas em lógica polivalente, lógica intuicionista, lógica quântica e lógica livre) e lógicas indutivas. HAACK, Susan, op. cit, p. 28-29.

Page 128: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

116

decisional do próprio julgador, seja por uma questão de segurança jurídica, seja

por uma questão de aplicação isonômica do direito.

Por essa razão é que Cella afirma que a tese da resposta certa de

Dworkin poderia se aplicada de uma forma diferente daquela defendida pelo

autor. Não em um sentido universal, pelo juiz Hércules, mas sim entendida a partir

da própria história de julgamentos desse juiz.

Não seria por acaso que Dworkin, no posfácio do Levando os direitos a

sério, declara que a sua tese da resposta correta é própria para questões

particulares, razão por que admite que em alguns casos não haverá nenhuma

resposta correta em um sentido universal. Além disso, ao responder a crítica de

Munzer, declara que a resposta correta somente teria sucesso se considerada

dentro da justificação interna de uma decisão207, o que, por um lado, afasta sua

tese no sentido universal e que muitos autores ainda acreditam ser possível, mas

por outro, justifica a regra de razão prática particular do autoprecedente. Como

visto nas decisões das figuras nos 1 a 4 acima, foi na formação das premissas que

integram a justificação interna que residiu o movimento de incoerência, pois as

premissas existentes na justificação externa mostraram-se estáveis.

Diante dessa hipótese de utilização de uma lógica subjacente para

aferição da racionalidade das decisões de um mesmo órgão julgador a partir de

seu autoprecedente – e, portanto, seu próprio critério de racionalidade, sua

própria regra particular de racionalidade – a realização dessa aferição de forma

da forma manual, como realizada nos casos da Suprema Corte Brasileira acima,

não condizem com as necessidades de celeridade, presteza e eficiência exigida

pela prestação jurisdicional atualmente. Como referido linhas acima, os exemplos

anteriormente utilizados somente consideraram uma conclusão que justificou a

decisão final, sendo que em todos eles os órgãos julgadores utilizaram mais de

uma justificação interna para julgarem o caso.

Há tempos o Poder Judiciário encontra-se em verdadeiro colapso

quanto à prestação de seu serviço público típico: a jurisdição. A morosidade dos

207 DWORKIN, Ronald, op. cit, p. 509.

Page 129: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

117

processos, que se justifica na falta de capacidade estrutural e de pessoal para

dar, e a vazão às demandas, que exigem decisões judicias, foram os motivadores

da utilização das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) na gestão do

trabalho judicial, o que deu origem ao Processo Eletrônico.208 Este já se encontra

totalmente integrado na realidade brasileira, como se verá na próxima seção.

Por esse motivo, considerando a atual inserção da sociedade na era

informacional, questão essa que já não comporta mais retrocesso, e considerando

que os sistemas eletrônicos computacionais são programações lógicas capazes

de assimilar informações e processá-las a partir de parâmetros previamente

estabelecidos em uma velocidade muito maior que o raciocínio humano, pode-se

lançar a hipótese de que a aferição do autoprecedente de um órgão seja realizada

por um programa computacional (software).

É nesse sentido que serão as últimas linhas dessa dissertação.

3.3 SISTEMA ELETRÔNICO DE AFERIÇÃO DO AUTOPRECEDENTE

Os conceitos de tempo e espaço foram relativizados de uma forma

surpreendente pelas Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC) após as

Grandes Guerras do século XX. A evolução das micro-engenharias eletrônicas e

as inovações na seara das telecomunicações tornaram o dia a dia do homem uma

experiência sem precedentes no que tange à sua relação com o lugar e o

tempo,209 não sendo esta uma experiência restrita aos países tecnologicamente

desenvolvidos, mas uma realidade percebida em todos os lugares globo.210

Essa realidade acabou transformando a própria morfologia social, em

que os modelos organizacionais constituem-se em redes de relacionamento e de

troca de informações na velocidade da luz, mesmo milhares de quilômetros

208 TENÓRIO, Caio T; MEZZAROBA, Orides. Polêmicas envolvendo o processo eletrônico. In:

ROVER, Aires J. Democracia Digital e Governo Eletrônico. Florianópolis: FUNJAB, 2013, p. 37.

209 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução de Plínio Dentzen. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. Título do original: Liquid Modernity, p. 132-149.

210 LEMOS, André; LEVY, Pierre. O Futuro da internet: em direção a uma ciberdemocracia planetária. São Paulo: Paulus, 2010, p. 10.

Page 130: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

118

distantes. Tal realidade, obviamente, repercutiu de forma direta nos processos

burocráticos211, cujo processo judicial também é exemplo.

Por outro lado, essa realidade informacional também exige uma

releitura dos direitos fundamentais que se suportam em liberdades negativas, pois

as novas tecnologias não só proporcionaram um acesso maior dos cidadãos às

informações, dentre elas o teor das decisões judiciais, mas também permitiram

uma atualização do controle panóptico sobre a sociedade pelo Estado, inclusive

restringindo e triando informações prejudiciais aos detentores do poder, mas

necessárias para transformações democráticas e controle do poder pela própria

sociedade.212

Assim, as novas tecnologias da informação proporcionam o acesso às

informações de uma forma quantitativamente relevante, mas isso não representa

uma informação qualificada. Ao mesmo tempo, a burocratização do Estado torna-

se digital, sendo que a grande maioria dos processos de relacionamento entre

Estado e cidadão passam para o ambiente virtual, o que do ponto de vista de

acesso à informação como direito fundamental é potencializado.

A repercussão dessa transformação de ambiente do Estado ocorreu

também dentro do Poder Judiciário, que foi drasticamente alterado pelas

Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC), inclusive na realidade

brasileira.

Prova disso é a utilização de ferramentas informáticas para aferição de

estatísticas judiciárias pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão corregedor

e administrativo do Poder Judiciário brasileiro. Essa contagem e comparação dos

211 PIANA, Ricardo Sebastián. Democracia y tecnologia: la necesidad de politizar la Sociedad

de la Información. In: GALINDO, Fernando. Gobierno, derecho y tecnología: las actividades de los poderes públicos. Navarra/ESP: Aranzadi, 2006, Capítulo V, p. 120.

212 FUEYO, Maria C. L. Libertades públicas y nuevas tecnologias. In: In: GALINDO, Fernando. Gobierno, derecho y tecnología: las actividades de los poderes públicos. Navarra/ESP: Aranzadi, 2006, Capítulo XIII, p. 317-318.

Page 131: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

119

dados preenche a necessidade de jurimetrização213, campo de pesquisa empírico

dentro do direito.

Atualmente, através do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Poder

Judiciário Brasileiro emite relatórios anuais denominado Justiça em Números214.

Nesse, além de informações acerca da gestão orçamentária e da força efetiva de

trabalho, também são apresentados os números envolvendo os novos casos e o

número de decisões judiciais proferidas pelos juízes. E aqui, pois, o tema dessa

dissertação ganha relevância.

Segundo o relatório, o Poder Judiciário brasileiro conta com 70,8

milhões de processos em tramitação no ano de 2014, com uma perspectiva de

aumento em razão de os processos iniciados serem em maior número que os

encerrados. Mas o dado assombroso está no número de decisões proferidas: o

total chega a 27 milhões de sentenças e decisões terminativas no ano de 2014.215

Sendo, pois, um total de 16.927 magistrados216, pode-se inferir de uma forma

aproximada (não de forma certa, pois há decisões que são proferidas por órgãos

colegiados, nos casos dos tribunais) uma média de mais de 1.500 decisões

proferidas por um magistrado em um ano de trabalho.

Esse dado demonstra, à primeira vista, como uma aferição do

autoprecedente de cada julgador realizada in loco somente teria serventia para

fins acadêmicos, tal qual realizado nos casos utilizados na seção anterior desse

capítulo. Entretanto, se fosse possível a utilização de um sistema informático

eletrônico de aferição do autoprecedente, ou seja, um software, se fosse possível

o acesso a um banco de dados catalogado por assunto das decisões proferidas,

poder-se-ia admitir a utilização de tal tecnologia para aferir a coerência das

decisões de um mesmo julgador.

213 V. RICHARD, Mulder D; KESS, Noortwijk; COMBRINK-KUITERS, Lia. Jurimetrics Please! In:

PALIWALA, Abdul. A history of a legal informatics. Zaragoza: Prensas Universitárias de Zaragoza, 2010. p. 148-178.

214 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Justiça em Números 2015. Disponível em http://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/pj-justica-em-numeros. Acesso em 03 out.2015.

215 Ibid, p. 35. 216 Ibid, p. 32.

Page 132: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

120

O presente trabalho, contudo, não tem o fôlego necessário para

demonstrar esse sistema de aferição de autoprecedente sendo aplicado. Aqui

somente cogita-se essa hipótese, tentando fornecer através da possibilidade de

utilização de uma lógica subjacente um parâmetro viável de utilização da regra de

razão prática particular do autoprecedente para aferição da racionalidade das

decisões.

Como visto nas linhas anteriores desse trabalho, o autoprecedente tem

como uma de suas justificativas a garantia da segurança jurídica e da igualdade

das partes que participam de um processo quanto às decisões proferidas em

casos análogos. Viu-se também que o atendimento desses postulados necessita,

no mínimo, de dois pressupostos: que exista univocidade na qualificação jurídica

dos fatos e que exista previsibilidade jurídicas quanto às consequências das

condutas.

Um dos méritos do positivismo foi a criação de institutos jurídicos que

permitem a simplificação de um conjunto de ideias jurídicas relacionados a certas

coisas da vida. Nesse sentido, um exemplo se encontra na obra Tû-Tû, de Alf

Ross217. Essa criação de institutos é organizada conforme categorias e essas, por

sua vez, são alocadas em sub-ramos específicos do direito, que depois integram

ramos maiores e assim por diante. Especialmente no que tange à realidade

brasileira, fundada em uma tradição jurídica de civil law ou romano-germânica, os

direitos estão divididos em classificações a partir dos ramos do direito ou dos

tribunais que possuem competência em razão da matéria.

A Resolução/CNJ nº 76, de 12 de maio de 2009, responsável pela

regulamentação do Sistema de Estatísticas do Poder Judiciário, dispõe no seu

artigo 3º que todos os “dados estatísticos dos Tribunais serão informados [...], por

meio de transmissão eletrônica”, especificamente “pelo sistema on-line, por meio

do sítio na internet”.218

217 ROSS, Alf. “Tû-Tû”. Traducción de Genaro R. Carrió. [s.l.]: Abeledo Perrot, 1951. 218 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 76. Brasília: 2009. Disponível em

http://www.cnj.jus.br///images/atos_normativos/resolucao/resolucao_76_12052009_10102012220048.pdf. Acesso em 23 mar.2015.

Page 133: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

121

O uso de classificações dos tipos de ações, que acabam refletindo o

direito nelas discutido, foi disciplinado pelo CNJ na Resolução nº 46, de 18 de

dezembro de 2007. A partir da consideração de que os dados estatísticos acerca

do desempenho administrativo dos tribunais brasileiros deveriam ser mais

precisos, foram estabelecidas “Tabelas Processuais Unificadas do Poder

Judiciário, objetivando a padronização e uniformização taxonômica e

terminológica das classes, assuntos e movimentações processuais” em todos os

órgãos do Poder Judiciário brasileiro (art. 1º). As classificações, por sua vez,

estão armazenadas no denominado Sistema de Gestão de Tabelas Processuais

Unificadas, sendo alimentada e gerida por um comitê responsável. Além disso, é

fornecido aos diversos órgãos um manual de utilização, em que se demonstra,

passo a passo, como classificar as ações. Estas, por sua vez, consistem em

classes e subclasses processuais envolvendo desde as espécies de ações até os

seus assuntos principais.219

Como se pode verificar, há um movimento dentro da gestão judicial

brasileira para qualificar juridicamente, de forma unívoca, os assuntos que são

objetos das ações. Contudo, o retorno das informações somente se dá no aspecto

quantitativo, nunca no âmbito qualitativo. Dessa forma, percebe-se que a

utilização da informática nos processos judiciais brasileiros serve para fins de

juremetrização quantitativa, subsidiando estratégias na seara das políticas

públicas através do retorno de informações do tipo classe de ação, espécie de

recurso e número de processos.

Entretanto, nenhuma dessas estratégias tem verificado de forma

qualitativa aquilo que é mais importante para todos aqueles que procuram o

Poder Judiciário, que é a própria razão de ser desse braço do Estado: a decisão

judicial.

A técnica do autoprecedente como técnica de aferição da racionalidade

jurídica vem dar um passo a mais na utilização das novas tecnologias de

informação. Utilizando a classificação de Serbena, a utilização do autoprecedente

219 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 46. Brasília: 2007. Disponível em

http://www.cnj.jus.br///images/atos_normativos/resolucao/resolucao_46_18122007_29042014165333.pdf. Acesso em 23 mar.2015.

Page 134: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

122

seria uma das categorias dentro do “terceiro grau de informatização, a informática

decisória”220, mas não no sentido da tomada das decisões, mas sim na aferição

de sua racionalidade a partir dos parâmetros estabelecidos no passado.

Aguilera Garcia, ao falar da inteligência artificial aplicado à decisão

judicial, afirma que:

[...] não devemos perder de vista que esta tecnologia possui um assombroso potencial para modificar, revisar e reorganizar práticas e processos sociais (entre os quais se pode encontrar os de caráter jurídico), que não dependem necessariamente de uma automatização dos mesmos, mas sim encontrar a melhor fórmula para combinar a contribuições do homem e das máquinas na execução de tarefas específicas. Se levarmos essa ideia à particular área da informática decisional [...], é claro que a substituição do julgador não é o destino que desejam chegar quem desenvolve essa classe de aplicações [...].221

Para tanto, acredita-se que a construção de um programa

computacional capaz de extrair as premissas da justificação externa e interna de

uma decisão judicial, estruturá-las na forma em que realizado nas figuras de nos 1

a 4 da seção anterior, e comparar essas estruturas formais com outras decisões

de casos análogos, tornaria possível realizar a verificação da racionalidade das

decisões a partir do critério do autoprecedente.

Para Colin Tapper, o grande problema na utilização de um programa

de computador estaria na real motivação ou nas escolhas morais e políticas que

preenchem uma decisão judicial. Em razão de seu estudo se dar em país de

tradição commom law, portanto, grandemente influenciado pelo realismo jurídico

estadunidense, o fato de os juízes se valerem de razões muitas vezes não

externadas, ou ainda justificarem uma decisão já tomada antes sequer do seu

220 SERBENA, Cesar, op. cit, p. 16. 221 “[...] debemos perder de vista que esta tecnologia posee un asombroso potencial para

modificar, replantear o reorganizar prácticas y procesos sociales (entre los cuales pueden encontrarse los de caráter jurídico), el cual no depende necesariamente de la automatización de los mismo, sino de hallar da mejor fórmula para combinar las aportaciones del hombre y de la máquina en la ejecución de tareas específicas. Se trasladarmos esta idea al área particular de la informática decisional [...], resulta claro que la sustitución del juzgador no es el destino al que desean arribar quienes desarrollan esta classe de aplicaciones [...]”. AGUILERA GARCIA, Edgar Ramón. Inteligencia artificial aplicada al derecho. México, D.F.: Universidad Nacional Autónoma de México, 2007, p. 04.

Page 135: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

123

desenvolvimento argumentativo, seria um problema para a utilização de sistemas

computacionais para uma “prediction of judicial decision”.222

Entretanto, essa preocupação não existiria na utilização da técnica do

autoprecedente, pois as razões utilizadas pelo programa computacional, ou seja,

as bases da regra de aferição da racionalidade pela técnica do autoprecedente

das decisões tomaria por parâmetro as próprias razões (raciocínios normativos e

não-normativos) utilizados pelo julgador para chegar a decisão de um caso

análogo, anterior, ou de diversos casos análogos anteriores.

Assim, depois que fixadas as premissas, decorrentes da justificação

externa, onde são utilizados raciocínios quase-lógicos (por analogia),

posicionamentos e valorações morais, entendimentos políticos, ou anda

argumentos retóricos, a dedução das premissas à conclusão pode ser controlada

racionalmente por meio de uma lógica subjacente.

Nesse sentido, o papel humano restringir-se-ia em alimentar as

estruturas do raciocínio do programa computacional para que ele, analisando as

decisões sobre a mesma matéria e em casos análogos, demonstrasse se esse

órgão julgador observou uma moldura de racionalidade criada por si mesmo.

Apesar de o presente trabalho não adentrar na seara da teoria da

decisão em um sentido de defender a utilização de programas computacionais

para a realização de decisões judiciais, crê-se que a existência de um parâmetro

de racionalidade jurídica na argumentação traz benefício à teoria do direito,

especialmente às garantias da segurança jurídica e à igualdade de tratamento

dos indivíduos que utilizam o Estado para solucionar seus litígios, corolários

esses característicos e basilares de um modelo de organização social e política

democrática.

Do contrário, o Estado de direito, ideologicamente construído como

limitação de poder pelas normas jurídicas torna-se, paradoxalmente, um

mecanismo de revestimento dos detentores do poder e da regra de direito de uma

222 TAPPER, Colin. Computers and the Law. London: Weidenfeld and Nicolson, 1973, p. 233-

235.

Page 136: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

124

força privativa e simbólica, que na visão de Chevalier, trata-se da reativação da

mítica do direito outorgado pelos deuses, em que o exercício da função

jurisdicional ganha ares de "passaporte do sagrado"223, hipótese inconcebível em

pleno século XXI.

223 CHAVALIER, Jacques, op. cit, p. 52.

Page 137: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

125

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A decisão judicial também pode ser vista como a busca pelo

conhecimento da verdade. A verdade quanto aos fatos alegados pelas partes.

Também, a verdade sobre o direito a ser aplicado. Enquanto as ciências naturais

objetivam conhecer a verdade sobre os fenômenos existentes no mundo natural,

e a teoria do direito procura compreender a origem e o ideal conceito deste, a

decisão judicial, ao aplicar o direito, pretende estar correta quanto à percepção

dos fatos narrados pelas partes e ao direito que está sendo aplicado.

Entretanto, depois de diversas teorizações sobre a natureza do direito,

sua origem e sua razão de ser, a teoria do direito não foi capaz de apresentar de

forma unânime entre os seus teóricos um padrão de racionalidade para as

decisões que aplicam o direito vigente, entendido este como o sistema de normas

positivadas em um determinado território.

A busca por uma resposta correta já foi objeto da tese de Dworkin. Sua

proposta, entretanto, não tinha como objetivo prescrever como deveria ser

verificada a correção de uma decisão. Na verdade, a tese da única resposta certa

se tratava de antítese ao positivismo de Hart, que juntamente com Ross, Kelsen e

Raz, defendia que em dadas circunstâncias cabia ao julgador, a partir de suas

convicções políticas e morais, tomar uma decisão que a sociedade deveria por fim

conviver.

Ocorre que esse positivismo voluntarista, conforme qualificação de

Dworkin, na realidade brasileira confundiu-se com os ditames da Escola

Exegética. Esse equívoco considerou o positivismo um dos responsáveis pelas

barbáries praticadas pelo Estado nacional-socialista alemão em meados do

século XX.

A justificativa que o positivismo hartiano dava à possibilidade de o

julgador decidir de forma quase que arbitrária estaria na incompletude do sistema

normativo, em especial nas normas de textura aberta. A tese da única decisão

certa de Dworkin também admite a existência da falta de previsibilidade jurídica

de certas situações fáticas. Entretanto, ao contrário das motivações ideológicas e

Page 138: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

126

políticas dos positivistas hartianos, Dworkin defende a utilização nesses vácuos

normativos de argumentos de princípio, os quais são fundados, por sua vez, em

liberdades liberais negativas, ou noutra nomenclatura, direitos individuais.

Desse modo, verificou-se que, seja na resposta certa de Dworkin, seja

na escolha do juiz positivista, há discricionariedade na qualificação jurídica dos

fatos e/ou na individualização da norma aplicável ao caso.

A teoria da argumentação jurídica também não preenche o âmbito de

discricionariedade da decisão judicial. Apesar de as teorias argumentativistas de

Alexy e de Atienza apresentarem estruturas formais de raciocínio capazes de

fornecer certo engessamento, ambos concordam que a necessidade de

argumentação existe justamente para preencher a lacuna normativa ou estender

o sentido que o caso prático exige. E sendo assim, a justificação externa do

raciocínio jurídico da decisão será sempre preenchido por uma escolha pessoal e

subjetiva de quem julga, ainda que sua argumentação invoque os axiomas mais

altruístas possíveis.

Tudo isso seria justamente a conclusão do realismo norte-americano.

Esse, apesar de idealizado em outra cultura jurídica, mostra uma percepção

chocante da realidade brasileira, em que órgãos julgadores, mesmo em uma

tradição romano-germânica, utilizando princípios equivocadamente e

incorporados por mutação conceitual, afastam a aplicação do direito positivado

sob o pretexto de injustiça.

Essa realidade torna aqueles que buscam a jurisdição para resolver

seus conflitos reféns da discricionariedade judicial das decisões, tema que já foi

largamente debatido durante a história do direito moderno. Tal discricionariedade,

entendida nessa pesquisa como a possibilidade de um órgão julgador escolher a

qualificação de um fato e a regra aplicável ao mesmo, justifica uma

reconsideração quanto à utilização da lógica formal na aferição da racionalidade

das decisões judiciais.

A lógica formal tem como pretensão validar um discurso, tanto pelo

modelo analítico como pelo dialético que, respectivamente, pretendem uma

Page 139: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

127

correção de verdade e de probabilidade no raciocínio. Por o discurso jurídico ser

linguístico, sua estruturação depende da identificação dos argumentos e pré-

conclusões utilizados para a decisão final. Essa estruturação, a partir da lógica

dedutiva clássica de matriz aristotélica, dá-se pela proposição de premissas que

justificam racionalmente uma conclusão. O discurso jurídico, muito mais próximo

de um formato dialético, ainda que não permita a afirmação de uma verdade

inquestionável, se estruturado de forma racional, permite entender a racionalidade

utilizada por um julgador.

Do ponto de vista analítico, a decisão judicial é uma conclusão dedutiva

tomada a partir de duas premissas, uma de direito e uma fática. Considera-se o

raciocínio entre a proposição da premissa de direto e a proposição da premissa

fática a justificação interna do raciocínio. A conclusão da justificação interna é a

decisão judicial. Entretanto, as premissas de direito e fática utilizadas na

justificação interna do raciocínio da decisão decorrem de raciocínios anteriores,

os quais ocorrem no âmbito da chamada justificação externa. A divergência entre

os teóricos do direito, pois, quase sempre reside nas conclusões da justificação

externa das proposições que serão utilizadas na justificação interna das decisões.

A formalização dos raciocínios normativos, que terá como resultado a

premissa de direito, e a dos raciocínios não-normativos, que resultará na

premissa fática, permite a verificação dos argumentos e proposições

considerados num discurso jurídico racional. Esses raciocínios que compõem a

justificação externa de uma decisão, e que determinam as premissas de direito e

fática da justificação interna da decisão judicial, são quase sempre coerentes em

relação às premissas escolhidas. Uma pretensão de correção esbarra na

característica dialética desse tipo de raciocínio.

Sendo assim, em razão dos problemas de ordem filosófica até então

insolúveis pela teoria do direito, a questão central envolvendo a utilização da

lógica formal na verificação da racionalidade das decisões judicias está na

impossibilidade de se ter uma previsibilidade das consequências jurídicas para

uma premissa de direito universal, e um entendimento unívoco sobre a

qualificação jurídica dos fatos, portanto, da premissa fática também universal. O

Page 140: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

128

resultado disso é que a comunidade científico-jurídica não possui um padrão de

racionalidade para justificar de forma universal a correção de uma decisão

judicial.

Apesar de os precedentes serem considerados como ferramentas de

aferição da racionalidade jurídica das decisões, em razão da rotinização de suas

decisões sobre determinada matéria e contexto fático, as mudanças sociais e

culturais não estancam a necessidade de novas soluções. Apesar de

considerados guias dessa lógica jurídica, os precedentes por si só não são

capazes de estruturar uma regra formal de racionalidade das decisões. Como se

demonstrou nos casos analisados, um mesmo órgão julgador pode possuir uma

previsibilidade de consequências diferentes para uma mesma regra jurídica, ou

ainda uma qualificação jurídica diferente para fatos análogos.

Tal realidade acaba afrontando a segurança jurídica e a igualdade que

se espera de um Estado democrático de direito. Por essa razão, utilizando uma

técnica de precedente horizontal denominada autoprecedente, pode-se considerar

como critério de racionalidade das decisões de um mesmo órgão, e somente para

este, as premissas utilizadas pelo mesmo nos raciocínios normativos e não-

normativos que justificaram a decisão proferida. Assim, a estruturação desses

raciocínios torna-se uma regra formal de razão prática para a aferição da

racionalidade das decisões proferidas pelo próprio órgão julgador. E a existência

dessa regra de razão prática permite o exercício de uma pretensão de correção

de suas decisões.

Isso não significa, por outro lado, que o julgador ficaria preso às suas

ratio decidendi anteriores. Aqui, pois, a argumentação mostra sua importância,

desde que a alteração do entendimento e o afastamento do autoprecedente seja

racionalmente justificado, seja em razão da mudança do entendimento, seja em

razão da peculiaridade do caso concreto, seja ainda em decorrência da mudança

do cenário social.

A inovação legislativa promovida pelo Novo Código de Processo Civil

brasileiro dispõe sobre a necessidade de as decisões judiciais serem coerentes e

racionalmente justificadas. Nesse sentido, pode-se utilizar a regra de razão

Page 141: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

129

prática do autoprecedente para aferir essa coerência nas decisões de um mesmo

órgão julgador, o que acaba se tornado um critério de racionalidade para ele

particularmente considerado.

Nesse ínterim, em razão de os sistemas de gestão dos documentos

nos tribunais brasileiros serem todos eletrônicos, com grande parte adotando o

Processo Eletrônico como meio de solucionar as disputas judiciais, a utilização de

um sistema eletrônico computacional capaz de aferir a racionalidade das decisões

proferidas por um mesmo órgão, a partir da regra do autoprecedente, permitiria

garantir o respeito dos princípios da segurança jurídica e da igualdade entre as

partes que possuem casos análogos em disputa.

Se considerado o terceiro grau da informatização dos procedimentos

judiciais, a regra de razão prática do autoprecedente não tem uma pretensão

prescritiva, no sentido de subsidiar uma decisão judicial futura, mas somente

descritiva. Isto é, sua função seria olhar o passado das decisões de um órgão,

permitindo encontrar a regra de racionalidade aplicável a esse órgão, ou ainda,

delineada a estrutura de racionalidade já utilizada, verificar se ela se repete nos

casos análogos julgados pelo mesmo órgão.

Veja-se que aqui não há importância quanto à consideração do

raciocínio como analítico ou dialético, ou se os raciocínios normativos e não-

normativos do julgador são efetivamente racionais. A regra de razão prática do

autoprecedente considera como racionais os raciocínios já utilizados e justificados

por determinado órgão como sua racionalidade particular, e a partir dessa

permite-se exercer uma pretensão de correção sobre as suas próprias decisões,

enaltecendo a segurança jurídica e a igualdade de tratamento das partes,

garantias essas próprias de um juízo imparcial.

Portanto, a utilização dessa regra particular de racionalidade nas

decisões judiciais constrange a discricionariedade dos órgãos julgadores, por

vezes praticada para o atendimento de “favores”. A consequência dessa forma

particular de aferição de racionalidade dos julgamentos exalta os valores

democráticos mais fundamentais, somente possíveis de serem exercidos em um

Page 142: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

130

ambiente em que a separação das funções ainda se apresenta como sustentáculo

importante do Estado de direito.

Page 143: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

REFERÊNCIAS

AGUILERA GARCIA, Edgar Ramón. Inteligencia artificial aplicada al derecho.

México, D.F.: Universidad Nacional Autónoma de México, 2007.

ALCHOURRÓN, Carlos; BULYGIN, Eugenio. Introdución a la metodologia de

las ciencias juridicas e sociales. Buenos Aires: Astrea, 1998.

ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica. Tradução de Zilda

Hutchinson Schid Silva. São Paulo: Landy, 2001. Título do original: Theorie der

Juristischen Argumentation.

ARISTÓTELES. Tratados de Lógica (El Organon). Tradução de Francisco

Larroyo. México D.F.: Editorial Porrúa, 1993.

ATIENZA, Manuel. As Razões do Direito. Teorias da Argumentação Jurídica.

Tradução de Maria Cristina Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy, 2003, 3ª ed.

BATRES, Eduardo Jaime Quirós et al. Uso de ontologias para a extração de

informações em atos jurídicos em uma instituição pública. In: Encontros

Bibli: revista eletrônica de biblioteconomia e ciência da informação, [S.l.], v.

10, n. 19, p. 73-88, abr. 2005. ISSN 1518-2924. Disponível em

<https://periodicos.ufsc.br/index.php/eb/article/view/1518-

2924.2005v10n19p73/5501>, acesso em 23 mar.2015.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução de Plínio Dentzen. Rio de

Janeiro: Zahar, 2001. Título do original: Liquid Modernity.

BOBBIO, Norberto. Legalidade. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola.

PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Tradução de Carmen C.

Varriale, Gaetano Lo Mônaco, João Ferreira, Luís Guerreiro Pinto Cacais e Renzo

Dini. Brasília: Ed. UNB, 1998, 11ª ed. Título do original: Dizionario di política.

BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. Tradução de Fernando Pavan

Baptista e Ariani Bueno Sudatti. Bauru/SP: Edipro, 2001. Título original: teoria

della norma giuridica.

Page 144: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

132

BRASIL. Ministério da Justiça. Processo Legislativo e Controle de

Constitucionalidade: as fronteiras entre direito e política. São Paulo: Projeto

Pensando o Direito/Núcleo Direito e Demcracia do CEBRAP, Coordenação de

Marcos Nobre e José Rodrigo Rodrigues. Disponível em <

http://docplayer.com.br/2308931-Processo-legislativo-e-controle-de-

constitucionalidade-as-fronteiras-entre-direito-e-politica-relatorio-final.html> .

Acesso em 20.set.2015.

. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 46. Brasília: 2007.

Disponível em

http://www.cnj.jus.br///images/atos_normativos/resolucao/resolucao_46_18122007

_29042014165333.pdf. Acesso em 23 mar.2015.

. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 76. Brasília: 2009.

Disponível em

http://www.cnj.jus.br///images/atos_normativos/resolucao/resolucao_76_12052009

_10102012220048.pdf. Acesso em 23 mar.2015.

. Conselho Nacional de Justiça. Manual de utilização das tabelas

processuais unificadas do Poder Judiciário. Brasília: 2014. Disponível em <

http://www.cnj.jus.br/sgt/versoes_tabelas/manual/Manual%20de%20utiliza%C3%

A7%C3%A3o%20das%20Tabelas%20Processuais%20Unificadas.pdf>. Acesso

em 23 mar.2015.

. Conselho Nacional de Justiça. Justiça em Números 2015.

Brasília: 2015. Disponível em http://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/pj-justica-

em-numeros. Acesso em 03 out.2015.

Código de Processo Civil. Lei 13.105, de 16 de março de 2015.

Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-

2018/2015/Lei/L13105.htm#art1046>. Acesso em 20 mar.2015.

. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 75.338. Diário da

Justiça de 25 set. 1998. Disponível em:

Page 145: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

133

http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=75912.

Acesso em 27 set.2015.

. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 80.949/RJ. Diário da

Justiça de 14 dez. 2001. Disponível em :

http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=78579.

Acesso 27 set.2015.

. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 390.840/MG.

Diário da Justiça de 15 ago.2006. Disponível em:

http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=261694.

Acesso em 03 out.2015.

. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 363.852/MG.

Diário da Justiça de 22 abr.2010. Disponível em:

http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=610212.

Acesso em: 03 out.2015.

CAENEGEM, R. C. van. Uma introdução histórica ao direito constitucional

ocidental. Tradução de Alexandre Vaz Pereira. Lisboa: Fundação Caloute

Gulbenkian, 2009.

CELLA, José R. G. Auto-precedente e argumentação racional. In: Curso de

Extensão Razão x violência: o espaço da racionalidade num mundo intolerante.

Curitiba: PUC, 2001.

. Controle das decisões jurídicas pela técnica do auto-

precedente: lógica deôntica paraconsistente aplicada em sistemas

especialistas legais. Tese de Doutorado. Florianópolis: UFSC, 2008.

. Legalidade e discricionariedade: o debate entre Hart e

Dworkin. In: XIX Jornadas Argentinas e Primeras Jornadas Argentino-Brasileñas

de Filosofia Jurídica e Social. San Carlos de Bariloche, Rio Negro, Argentina: s/e,

2005.

Page 146: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

134

CHEVALIER, Jacques. O Estado de Direito. Tradução de Antonio Araldo Ferraz

Dal Pozzo. Belo Horizonte: Fórum, 2013. Título original: L’État de droit.

COELHO, André. Palestra: “Levando os direitos a sério” e “Uma questão de

princípios”: a primeira fase do pensamento de Ronald Dworkin. In: II Jornada

de teoria do direito: as contribuições de Dworkin para o pensamento jurídico

contemporâneo. Belém do Pará: 2013. Disponível em

https://www.youtube.com/watch?v=5AGAGSdsVVE, acesso em 03 fev.2015.

COLEMAN, Jules L.; LEITER, Brian. Determinação, objetividade e autoridade.

In: MARMOR, Andrei. Direito e interpretação: ensaios de filosofia do direito.

Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâno. São Paulo:

Martins Fontes, 2002, p. 428.

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira.

São Paulo: Martins Fontes, 2002. Título original: Taking rights seriously.

FIORAVANTI, Maurizio. Los derechos fondamentales. Apuntes de historia de

las constituciones. Tradução de Manuel Martinez Neira. Madrid: Ed. Trotta, 1996.

. FIORAVANTI, Maurizio. Los derechos fundamentales. Madrid:

Trotta, 2000, 3ª ed.

FONSECA, Tania S. O debate entre Herbert L. A. Hart e Ronald Dworkin. In:

Seara Filosófica nº 4, Verão, 2011, p-45-64. Disponível em

http://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/searafilosofica/article/viewFile/541/57

7, acesso em 28 fev.2015.

FRANK, Jerome. Law and the Modern Mind: chapter IV – Judicial Law-

Making. Tilidar Publishing. Disponível em <

http://www.mjswm.com/JPM/Torts2/files/Law%20and%20the%20Modern%20Mind

%20by%20Jerome%20Frank.pdf >. Acesso em 20.set.2015.

Page 147: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

135

FUEYO, Maria C. L. Libertades públicas y nuevas tecnologias. In: In:

GALINDO, Fernando. Gobierno, derecho y tecnología: las actividades de los

poderes públicos. Navarra/ESP: Aranzadi, 2006, Capítulo XIII.

GODOY, Arnaldo S. M. O realismo jurídico em Oliver Wendel Holmes Jr.

Brasília: [s/n], 2006, nº 171, p. 91-105.

. Introdução ao Realismo Jurídico Norte-Americano. Brasília:

edição do autor, 2013.

GÓMEZ, M.ª Isabel G. Disponível em

http://dspace.uah.es/dspace/bitstream/handle/10017/9851/valor_garrido_AFDUA_

2011.pdf?sequence=1. Acesso em 05 set.2015.

GUASTINI, Riccardo. Distinguiendo. Estudioes de teoria y mateteoría del

derecho. Tradução de Jordi Ferrer i Beltran. Barcelona: Gedisa, 1999.

HAACK, Susan. Filosofia das lógicas. Tradução de Cezar Augusto Mortari e

Luiz Henrique de Araújo Dutra. São Paulo: UNESP, 2002.

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade.

Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

HART, Henry L. A. O conceito de direito. Tradução de A. Ribeiro Mendes.

Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994, 3ª ed. Título original: The concept

of law.

HOLMES, Oliver W. The Path of the Law. Harvard Law Review, 1897. Project

Gutemberg. Disponível em: < http://www.gutenberg.org/files/2373/2373-h/2373-

h.htm >. Acesso em 19 set.2015.

. Veredas do Direito: “Path of the Law”. Tradução de Lauro

Frederico Barbosa da Silveira e de Vinício C. Martinez. Campo Mourão: Rev.

Disc. Jur., 2008, v. 4, n. 1, p. 266-280.

Page 148: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

136

JESUS, Damásio. Os olhos abertos de Themis, a deusa da justiça. Disponível

em: http://www.unescnet.br/revistaeletronica/Page%20Direito/links/02.asp. Acesso

em 03 out.2015.

KALINOWSKI, Georges. Introdución a la Logica Jurídica. Tradução de Juan A.

Casaubon. Buenos Aires: EUDEBA, 1973.

KELSEN, Hans. O que é o positivismo? Tradução de Luís Afonso Heck. Título

original: Was ist juristischer Positivismus? In: HOLLERBACH, Alexander [et al.].

Direito natural, direito positivo, direito discursivo. Luís Afonso Hech, org.

Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.

. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. São

Paulo: Martins Fontes, 1985, 1ª ed. Título original: Reine reci-itslhere.

LEMOS, André; LEVY, Pierre. O Futuro da internet: em direção a uma

ciberdemocracia planetária. São Paulo: Paulus, 2010.

MACCORMICK, Neil. Argumentação jurídica e teoria do direito. Tradução de

Waldéa Barcellos. São Paulo: Martins Fontes, 2006. Título original: Legal

reasoning and legal theory.

MARINONI, Luiz G. Precedentes Obrigatórios. Curitiba: Congresso de Direito

Processual Civil, 2010. Disponível em:

http://marinoni.adv.br/baixar.php?arquivo=files_/Confer%C3%AAncia_IAP2.pdf.

Acesso em 12 set.2015.

. Os Precedentes na Dimensão da Segurança Jurídica.

Disponível em

https://www.academia.edu/218491/Os_Precedentes_na_Dimens%C3%A3o_da_S

eguran%C3%A7a_Jur%C3%ADdica. Acesso em 12 set.2015.

MARMOR, Andrei. Direito e interpretação: ensaios de filosofia do direito.

Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000. Título original:

Law and interpretation.

Page 149: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

137

MATTEUCCI, Nicola. Organización del poder y libertad. Historia del

constitucionalismo moderno. Tradução de Francisco J. A. Roig e Manuel M.

Neira. Madrid: Trotta, 1998. Título do original: Organizzazione del potere e libertà.

Storia del costituzionalismo moderno.

MONTEIRO, Cláudia Sevilha. Fundamentos para uma Teoria da Decisão

Judicial. In: Anais do XVI Congresso Nacional do CONPEDI/PUC Minas Gerais.

Belo Horizonte: 2007. Disponível em:

http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/bh/claudia_servilha_monteiro.pd

f. ISBN: 978-85-7840-007-1. Acesso em: 19 ago.2015.

NEUMANN, Frank. O Império do Direito. Teoria política e sistema jurídico na

sociedade moderna. Tradução de Rúrion Soares Melo. São Paulo: Quartier Latin,

2013. Título original: Law’s empire.

OLIVEIRA, Eduardo C. Chaïn Perelman e a Questão da Argumentação.

Salvador: Revista Cientefico, 2007, Ano VII, v. II, p. 314.

PERELMAN, Chaïn. Lógica jurídica. Nova Retórica. Tradução de Vergínia K.

Pupi. São Paulo: Martins Fontes, 1998. Título do original: Logique juridique.

. Considerações sobre uma lógica jurídica. Tradução de Cássio

Scarpinella Bueno. In: PERELMAN, Chïn. Ethique et Droit. Editions de

l’Universite de Bruxelles, 1990, p.636-648.

PERELMAN, Chaïn; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação.

A Nova Retórica. Tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo:

Martins Fontes, 1996. Título original: Traité de L’argumentation: la nouvelle

rhetorique.

PIANA, Ricardo Sebastián. Democracia y tecnologia: la necesidad de politizar

la Sociedad de la Información. In: GALINDO, Fernando. Gobierno, derecho y

tecnología: las actividades de los poderes públicos. Navarra/ESP: Aranzadi,

2006, Capítulo V.

Page 150: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

138

RAMIRES, Maurício. A invocação de precedente jurisprudencial como

fundamentação de decisão judicial: uma crítica ao sincretismo improvisado

entre os sistemas de ‘civil’ e ‘common law’ no Brasil e uma proposta para

sua superação hermenêutica. Dissertação de Mestrado. São Leopoldo:

UNISINOS, 2009. Disponível em

biblioteca.asav.org.br/vinculos/tede/MauricioRamiresDireito.pdf. Acesso em 13

set.2015.

RAZ, Joseph. La autoridad del derecho. Ensayos sobre derecho e moral.

Tradução de Rolando Tamayo e Salmorán. México, D.F.: Universidad nacional

Autónoma de México, 1985. Título original: The autority of law. Essays on law and

morality.

RODRIGUES, José. R. Como decidem as cortes? Para um crítica do direito

(brasileiro). Rio de Janeiro: FGV, 2013.

ROSITO, Francisco. Teoria dos Precedentes Judiciais. Racionalidade da

Tutela Jurisdicional. Curitiba: Juruá, 2012, p. 15.

ROSS, Alf. Direito e justiça. Tradução de Edson Bini. Bauru/SP: Edipro, 2000.

Título original: On Law and justice.

. “Tû-Tû”. Traducción de Genaro R. Carrió. [s.l.]: Abeledo Perrot,

1951.

SAMPAIO JUNIOR, Tércio Ferraz. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo:

Atlas, 2003, 4ª ed.

. A Pragmática da Justiça na Interpretação Jurídica. In:

SCHOUERI, Luiz Eduardo (coord.). Direito Tributário. Homenagem a Paulo de

Barros Carvalho. São Paulo: Quartier Latin, 2008.

.. Prefácio do tradutor. In: VIEHWIG, Theodor. Tópica e

Jurisprudência, 5ª ed. Brasília: Ed. UnB, 1979.

SERBENA, Cesar A. Aplicação da informática decisória ao direito: lógica

“fuzzi” e redes neurais. In: LASALA CALLEJA, Pilar (ed.). Derecho e

Page 151: AUTOPRECEDENTE COMO REGRA DE RAZÃO …CIO MOSENA.pdf · lógica jurídica como espécie de racionalidade especial. Para tanto, partindo da lógica tradicional aristotélica, e sua

139

tecnologias avanzadas. Zaragoza: Prensas de la Universidad de Zaragoza,

2013.

SHAPIRO, Scott J. The “Hart-Dworkin” debate: a short guide for the

perplexed. Michigan: Public Law and Legal Theory Working Paper Series, 2007.

Disponível em: http://www.pf.upol.cz/fileadmin/user_upload/PF-katedry/teorie-

prava/Hart_-_Dworkin_Debate.pdf, acesso em 28 fev.2015, às 14h53min.

SOBERANES DÍEZ, José María. La igualdad ante la jurisprudencia. Cuestiones

Constitucionales [online] 2013, (Julio-Diciembre) : [Date of reference: 12 /

septiembre / 2015] Available

in:<http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=88531578010> ISSN 1405-9193. Acesso

em 13 set. 2015

STRECK, Lenio. O que é isto – decido conforme minha consciência? Porto

Alegre: Livraria do Advogado, 2012, 3.ed.

TAPPER, Colin. Computers and the Law. London: Weidenfeld and Nicolson,

1973.

TARUFFO, Michele. Sobre la complejidad de la decisión judicial. Tradução de

Carlos Mondragón. Cali/COL: Precedente, 2012, vol. I, Julio-Deciembre, p. 181-

200.

TENÓRIO, Caio T; MEZZAROBA, Orides. Polêmicas envolvendo o processo

eletrônico. In: ROVER, Aires J. democracia Digital e Governo Eletrônico.

Florianópolis: FUNJAB, 2013.

TORRANO, Bruno. Do fato à legalidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.

WALDRON, Jeremy. A dignidade da legislação. Tradução de Luís Carlos

Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Título original: The dignity of legislation.

VIEHWIG, Theodor. Tópica e Jurisprudência. [s.t.] Brasília: Ed. UnB, 1979, 5ª

ed.