racionalidade técnico científica

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IV 1 O Conhecimento e a Racionalidade Científico-Tecnológica ______________________________________________________________

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A Ratio na era da Techne

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IV – 1 – O Conhecimento e a Racionalidade Científico-Tecnológica

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O Conhecimento e a Racionalidade Científica e Tecnológica

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Parte I O Conhecimento

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1ªSecção: Descrição e interpretação da actividade cognoscitiva

[corresponde ao ponto 1.1 do programa: A estrutura do acto de conhecer] 1. Que é Conhecer? 1.1 Sentido Comum Texto nº01

«A origem da nossa noção de conhecimento – Apanhei esta explicação na rua ao ouvir um homem do povo dizer-me: “Ele reconheceu-me”; perante estas palavras, perguntei-me o que é que o povo entende no fundo por conhecimento, o que procura ele no fundo quando o pede? Apenas isto: reduzir qualquer

coisa de estranho a qualquer coisa de conhecido. Nós filósofos, que pomos mais nesta palavra? O conhecido, que dizer, as coisas a que nos habituámos, de tal modo que já deixamos de nos espantar; aí incluímos o nosso movimento quotidiano, uma regra qualquer que nos conduz, tudo o que nos é familiar… Pois quê? A nossa necessidade de conhecer não é justamente a

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nossa necessidade familiar? O de encontrar, no meio de tudo o que nos é estranho, inabitual, enigmático, alguma coisa que nos deixe de inquietar? Não será o instinto do medo que nos força a conhecer? O encanto que acompanha a aquisição do conhecimento não será a volúpia da segurança recuperada?...»

(Nietzsche, A Gaia Ciência, Ed. Guimarães, p.241) 1.2 Vários tipos de Conhecimento: Saber por Contacto; Saber Fazer e Saber Proposicional. A essência Filosófica da Questão do Conhecimento. Texto nº02

«Sócrates: Diz então, bem e com nobreza: o que te parece que seja o saber?

Teeteto: É pois necessário fazê-lo, Sócrates, visto que me exortam. De qualquer maneira, se eu errar, vocês corrigem-me.

Sócrates: Naturalmente, se formos capazes. Teeteto: Pois então parece-me que os assuntos que se

aprendem com Teodoro são saberes – geometria e as que tu ainda agora enunciaste –; por outro lado, também as artes do sapateiro e

dos outros artesãos, todas e cada uma delas não são outra coisa, a não ser saber.

Sócrates: É-te pedida apenas uma coisa, e tu, meu amigo, com nobreza e generosidade, dás muitas e variadas, em vez de uma simples. Teeteto: Que queres dizer com isso, Sócrates?

Sócrates: Talvez nada. Mas vou dizer o que penso. Quando te referes à arte do sapateiro, estás a falar de outra coisa que não seja

o saber do ofício de fazer sapatos? Teeteto: Não.

Sócrates: E, quando te referes à arte da carpintaria? Queres dizer outra coisa que não seja um saber do trabalho em objectos de madeira?

Teeteto: Também não.

Sócrates: Portanto, em ambas as situações, defines do que é cada saber.

Teeteto: Sim. Sócrates: Mas o que tinha sido perguntado, Teeteto, não era

isso, um saber “de quê”, nem a sua quantidade; pois não queremos enumerá-los, já que estávamos a querer conhecer o que é o saber

em si. Ou será que não estou a dizer nada?

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Teeteto: Estás a falar até muito correctamente.

Sócrates: Repara, então. Se alguém nos interrogasse sobre coisas simples que estão à mão, tal como o que é o barro, e lhe respondêssemos – o barro dos oleiros, o barro dos ceramistas e o barro dos fabricantes de tijolos –, não estaríamos a ser ridículos?

Teeteto: Talvez. Sócrates: Posto que, suponho, em primeiro lugar, se pensa que

quem pergunta percebe a nossa resposta, quando falamos de barro, quer acrescentemos “do modelista” ou de qualquer outro artesão. Ou pensas que alguém compreende o nome de uma coisa que não sabe o que é?

Teeteto: De modo nenhum. Sócrates: Portanto, não compreende “o saber dos sapatos”

quem não sabe o que seja “saber”. Teeteto: Pois não. Sócrates: Então quem ignora o que é o saber não compreende

o que é arte do sapateiro ou qualquer outra arte. Teeteto: É isso mesmo. Sócrates: Então a resposta à pergunta “o que é o saber?” é

ridícula, quando se responde com o nome de uma arte, pois se está a responder “o saber de alguma coisa”, não sendo isso que se

questiona. Teeteto: Assim parece.»

(Platão, Teeteto, Cotas 146c-147c, Ed. FCG, pp195-196)

1.3 O Conhecimento como Representação Texto nº03

Sócrates: Tenta definir o que possa ser o saber: do que não fores capaz, não digas nada. Mas decerto serás, se o deus quiser e te fizer homem.

Teeteto: Bem, Sócrates, exortado de tal maneira por ti, seria uma vergonha alguém não pôr todo o empenho neste assunto, para dizer o que tem dentro de si. De facto parece-me que o que sabe algo apercebe aquilo que sabe e, tal como agora parece, saber não é outra coisa que não percepção.

Sócrates: Respondeste bem e com nobreza, meu jovem, pois é necessário que as opiniões sejam ditas assim claramente. Mas vamos analisar a resposta em conjunto, se é, na realidade, fecunda ou vazia. Percepção, dizes, é saber?

Teeteto: Sim.

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Sócrates: Contudo, arriscas-te a não ter emitido uma definição trivial sobre o saber, mas sim aquela que diz também Protágoras. O modo é algo diferente, mas diz a mesma coisa, pois afirma que “a medida de todas as coisas” é o homem, “das que são enquanto que são, das que não são enquanto não são”. Leste isto em algum lado?

Teeteto: Li, e muitas vezes. Sócrates: De certa maneira, o que diz é isto: que cada

coisa é para mim do modo que a mim me parece; por outro lado, é para ti do modo que a ti te parece. E tu e eu somos homens, não é assim?

Teeteto: É de facto assim que ele diz. Sócrates: No entanto, é provável que um homem sábio

não fale ao acaso: sigamo-lo, então. Não acontece, por vezes, um de nós sentir um mesmo sopro de vento frio e outro não? E um sentir pouco frio e outro muito?

Teeteto: Muitas vezes. Sócrates: Então, como dizemos que é o sopro de vento em

si mesmo? Que é frio ou que não é frio? Ou, persuadidos por Protágoras, diremos que é frio, para quem sente frio, e não é frio, para quem não sente frio?

Teeteto: Assim parece. Sócrates: Então aparece assim a cada um? Teeteto: Sim. Sócrates: E este “aparece” é aperceber-se? Teeteto: É, pois. Sócrates: Então aparência e percepção são o mesmo, no

que respeita ao calor e em todos os outros casos, pois tal como cada um se apercebe, assim é provável que seja para cada um.

Teeteto: Parece. Sócrates: Então a percepção é sempre daquilo que é e não

pode ser falsa, sendo saber. Teeteto: Assim parece.»

(Platão, Teeteto, Cotas 151d-152c, Ed. FCG, pp.204-206)

Texto nº04 «O mundo é a minha representação. – Esta proposição é

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uma verdade para todo o ser vivo e pensante, embora só no homem chegue a transformar-se em conhecimento abstracto e reflectido. A partir do momento em que é capaz de a levar a este estado, pode dizer-se que nasceu nele o espírito filosófico. Possui então a inteira certeza de não conhecer nem um sol nem uma terra, mas apenas olhos que vêem este sol, mais, que tocam esta terra; numa palavra, ele sabe que o mundo que o cerca existe apenas como representação, na sua relação com um ser que percebe, que é o próprio homem. (…) Tudo o que existe, existe para o pensamento, isto é, o universo inteiro apenas é objecto em relação ao sujeito, percepção apenas, em relação a um espírito que percebe, nume palavra, é pura representação. Esta lei aplica-se naturalmente a todo o presente, a todo o passado e a todo o futuro, àquilo que está longe, tal como àquilo que está perto de nós visto que ela é verdadeira para todo o tempo e o próprio espaço, graças aos quais as representações particulares se distinguem umas das outras. Tudo o que o mundo encerra ou pode encerrar está nesta dependência necessária frente ao sujeito, e apenas existe para o sujeito. O mundo é pois representação. […] O mundo, considerado como representação, único ponto de vista que aqui nos ocupa, compreende duas metades essenciais, necessárias e inseparáveis. A primeira é o objecto, que tem por forma o espaço e o tempo, e por conseguinte, a pluralidade; a segunda, é o sujeito, que escapa à dupla lei do tempo e do espaço, sendo sempre uno e indivisível em cada ser que percebe. (…) se este único sujeito que percebe desaparecer, ao mesmo tempo, o mundo concebido como representação desaparecerá também. Estas duas metades são, pois, inseparáveis, mesmo em pensamento; cada uma delas apenas é real e inteligível pela outra e para a outra; elas existem e deixam de existir em conjunto. Elas limitam-se reciprocamente: o sujeito acaba onde começa o objecto.»

(Schopenhauer, O Mundo como Vontade e Representação, Ed. Rés, pp.7-8/10-11)

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1.4 Realismo Ingénuo

Texto nº05 «Como pode o conhecimento estar certo da sua

consonância com as coisas que existem em si, de as “atingir”? Qual a preocupação das coisas em si pelos movimentos do nosso pensamento e pelas leis lógicas que os regem?

Ao reflectir-se naturalmente sobre o conhecimento e ao ordená-lo justamente com a sua afectação, no sistema do pensamento natural das coisas, cai-se logo em teorias atractivas que, no entanto, terminam sempre em contradição ou no contra-senso.»

(Husserl, A Ideia de Fenomenologia, Ed.70, p.21) 1.5 Redução Fenomenológica

Texto nº06 «Se a teoria do conhecimento quiser concentrar-se na

possibilidade do conhecimento, tem de ter conhecimentos sobre possibilidades cognitivas que, como tais, são indubitáveis e, claro está, conhecimentos no sentido mais estrito, a que cabe a apreensibilidade, e acerca da sua própria possibilidade cognitiva, cuja apreensibilidade é absolutamente indubitável. Se se tornou pouco claro e duvidoso como é possível a apreensibilidade do conhecimento, e se nos inclinarmos a duvidar de que isso seja possível, devemos então, em primeiro lugar, ter diante dos olhos casos indubitáveis de conhecimento ou de conhecimentos possíveis, que atingem ou atingiram realmente os seus objectos. De início, não nos é permitido admitir conhecimento algum como conhecimento; de outro modo, não teríamos nenhuma outra meta possível ou, o que é a mesma coisa, uma meta com sentido.»

(Husserl, A Ideia de Fenomenologia, Ed.70, pp.22-23)

Texto nº07 «(…) o olhar em si indescritível e indiferenciado, mostra-

se, porém, que efectivamente não tem sentido falar de coisas que simplesmente existem e apenas precisam de ser vistas; mas que esse “meramente existir” são certas vivências da

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estrutura específica mutável; que existem a percepção, a fantasia, a recordação, a predicação, etc., e que as coisas não estão nelas como num invólucro ou num recipiente, mas se

constituem nelas as coisas, as quais não podem de modo algum encontrar-se como ingredientes naquelas vivências. O “entre dado das coisas” é exibir-se (ser representadas) de tal e tal modo em tais fenómenos. E aí as coisas não existem para si mesmas e “enviam para dentro da consciência” os seus representantes. Algo deste género não nos pode ocorrer no interior da esfera da redução Fenomenológica, mas as coisas são e estão dadas em si mesmas no fenómeno e em virtude do fenómeno. São dele inseparáveis.»

(Husserl, A Ideia de Fenomenologia, Ed.70, p.32-33) Texto nº08 «O conhecimento é, em todas as suas configurações, uma

vivência psíquica: é conhecimento do sujeito que conhece. Perante ele estão os objectos conhecidos. Mas, como pode o conhecimento estar certo da sua consonância com os objectos conhecidos, como pode ir além de si e atingir fidedignamente os objectos? O dado dos objectos cognitivos no conhecimento, óbvio para o pensamento natural, torna-se um enigma. Na percepção, a coisa percebida deve ser imediatamente dada. Aí está a coisa diante dos meus olhos que a percepcionam; vejo-a, agarro-a. Mas a percepção é simples vivência do meu sujeito, do sujeito que percepciona. Igualmente são vivências subjectivas a recordação e a expectativa, todos os actos intelectuais sobre eles edificados em virtude dos quais se chega à posição mediata de um ser real e ao estabelecimento de quaisquer verdades sobre o ser. De onde sei eu, o cognoscente, e como posso eu saber confiadamente que não só existem as minhas vivências, estes actos cognitivos, mas também que existem o que elas conhecem, mais ainda, que, em geral, existe algo que haveria que pôr frente ao conhecimento como seu objecto?»

(Husserl, A Ideia de Fenomenologia, Ed.70, pp.42-43) 1.6 Conhecimento e Saber Texto nº09

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«Sócrates: Sabes, Teodoro, o que me espanta no teu amigo Protágoras? Teodoro: O que é? Sócrates: Por um lado, agrada-me o que disse, que aquilo

que parece a cada um, também é; mas admirei-me com o

princípio do argumento, pois não disse no início de A Verdade, que “o porco é a medida de todas as coisas” ou “o babuíno” ou qualquer outro animal mais estranho, de entre os que têm percepção, para que começasse a falar-nos em grande estilo e com arrogância, demonstrando que o admirávamos como a um deus pela sua sabedoria, enquanto ele estava, quanto a inteligência, não melhor que um girino, ou qualquer outro ser humano. Ou como devemos falar, Teodoro? Pois, se a verdade é para cada um o que opina através da percepção e ninguém pode julgar a experiência de outro melhor do que ele, nem ninguém será melhor a examinar a opinião de um outro, se é correcta ou falsa. E, se o que muitos dizem é que cada um, sozinho, terá as suas próprias opiniões, correctas e verdadeiras, então, meu amigo, como é que Protágoras é sábio, a ponto de também ser considerado mestre de outros, justamente, com um grande salário, enquanto nós somos muito ignorantes e devemos ser seus alunos, se cada um é a medida da sua própria sabedoria? Como não diremos que Protágoras procura o favor popular, ao dizer estas coisas? No que se refere a mim e à minha arte de ajudar aos partos, calo-me, na medida em que estamos condenados ao ridículo, tal como também, penso eu, toda a prática dialéctica. Pois, examinar e tentar refutar as aparências e as opiniões uns dos outros, correctas, porque pertença de cada um, não anda longe

de uma imensa frivolidade, se A Verdade de Protágoras é verdadeira e não uma brincadeira fabricada a partir daquele livro, como que sagrado?»

(Platão, Teeteto, Cotas 161c-162a, Ed. FCG, pp.224-225)

Texto nº10 «Sócrates: Então que nome dás àquilo: ao ver, ao ouvir, ao

cheirar, a ter frio e a ter calor? Teeteto: Chamo ter uma percepção. Que outra coisa

poderia ser?

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Sócrates: Chamas ao conjunto percepção? Teeteto: Necessariamente. Sócrates: À qual, dissemos, não corresponde alcançar a

verdade, nem a entidade. Teeteto: Pois não. Sócrates: Nem o saber. Teeteto: Também não. Sócrates: Portanto, Teeteto, percepção e saber não seriam

o mesmo. Teeteto: Parece que não, Sócrates. Agora parece bastante

evidente que saber é algo diferente de percepção. Sócrates: Todavia, não há dúvida de que não começámos

a nossa conversa para descobrir o que não é o saber, mas para descobrir o que é. Mesmo assim, avançámos o bastante para o não buscar de modo algum na sensação, mas naquilo – chame-se-lhe como se quiser – em que a alma em si e por si se ocupa das coisas que são.

Teeteto: Sócrates, por mim desde logo creio que a isso se chama opinar.

Sócrates: Sim, querido amigo, sem dúvida tens razão. Apaga da tua memória tudo o que dissemos atrás e considera melhor a questão, de novo agora e desde o princípio, já que chegaste a este ponto. Torna a dizer-me o que é saber.

Teeteto: Sócrates, é impossível chamar saber a toda a opinião, porque também há a opinião falsa. Contudo parece que a opinião verdadeira é saber; essa é a minha resposta. Decerto que, se, ao avançarmos, não nos parece que é como agora digo, procuraremos responder de outra maneira.

(Platão, Teeteto, Cotas 186d-187b, Ed. FCG, pp.271-272)

Texto nº11

«Sócrates: Ora bem, meu rapaz, será que este nosso argumento faz bem em castigar-nos, mostrando-nos que estamos a investigar incorrectamente a opinião falsa antes do saber, tendo-o deixado de lado? É impossível conhecê-la antes de termos aprendido adequadamente o que é o saber.

Teeteto: Sócrates, neste momento há que pensar como dizes.

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Sócrates: Então, se retomarmos o assunto desde o começo, que haverá que dizer que é o saber? Pois não vamos render-nos agora, não?

Teeteto: De modo nenhum, a menos que estejamos a pensar em renunciar…

Sócrates: Diz-me, então, que mais poderemos propor, para nos contradizermos o menos possível?

Teeteto: Precisamente aquilo que estávamos a tentar dizer na resposta anterior. Eu pelo menos não posso pensar mais nada.

Sócrates: O quê? Teeteto: Que saber é a opinião verdadeira; pelo menos,

opinar a verdade não tem erro e tudo o que ocorre em consequência torna-se nobre e bom.

Sócrates: Teeteto, aquele que ajuda a atravessar o curso do rio dizia: ”ele mesmo há-de mostrá-lo”. E, se avançarmos nesta direcção e seguirmos com a nossa indagação, provavelmente o próprio objecto da investigação se nos tornará claro debaixo dos pés, mas, se o não fizermos, nada se há-de aclarar.

Teeteto: Tens razão. Sigamos adiante e examinemo-lo. Sócrates: Por certo que a questão requer um breve exame,

pois há toda uma arte que te indica que o saber não é o que estás a dizer que é.

Teeteto: Qual? Que arte é? Sócrates: A maior, no que concerne à sabedoria. E aos

que a praticam chamam-lhes, não duvides, “oradores” e “litigantes”. Pois estes, embora não ensinem, com a sua própria arte persuadem e levam a gente a opinar o que querem. Ou crês tu que há alguns mestres tão hábeis que, no breve tempo que lhes permite a clepsidra, são capazes de ensinar adequadamente a verdade do sucedido a pessoas cujo dinheiro foi roubado, ou que de alguma maneira foram violentadas, sem haver testemunhas?

Teeteto: Não, creio apenas que persuadem. Sócrates: Estás então a dizer que persuadir é fazer com

que alguém opine? Teeteto: Sem dúvida. Sócrates: Então quando os juízes foram justamente

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persuadidos acerca de assuntos dos quais apenas pode saber aquele que viu e não outro, nesse momento, ao decidir sobre esses assuntos por ouvir dizer e ao adquirir uma opinião verdadeira, ainda que tenham sido correctamente persuadidos, tomaram a sua decisão, sem saber se na realidade julgaram bem, não?

Teeteto: Certamente. Sócrates: Se a opinião verdadeira e o saber fossem o

mesmo, nem sequer o juiz mais competente poderia emitir uma opinião correcta sem saber. E, contudo, neste momento cada uma delas parece ser diferente.

Teeteto: Sócrates, fiquei agora a pensar numa coisa que tinha esquecido e que ouvi alguém dizer: que o saber é opinião verdadeira acompanhada de explicação e que a opinião carente de explicação se encontra à margem do saber. E aquilo de que não há explicação não é susceptível de se saber – é assim que se referia a isto –, sendo, pelo contrário, cognoscível aquilo de que há explicação.

Sócrates: Sem dúvida, dizes bem. Mas diz-me como distinguir cognoscíveis de não cognoscíveis e se tu e eu ouvimos falar deles da mesma maneira?

Teeteto: Não sei se poderei averiguá-lo, mas se outra pessoa o dissesse, seria capaz de a seguir.

Sócrates: Escuta então um sonho em troca de outro. Com efeito, pareceu-me escutar de alguns que os elementos primeiros, por assim dizer, a partir dos quais somos compostos, nós e as demais coisas, não teriam explicação, pois cada um deles somente poderia ser nomeado, em si e por si, não sendo possível dizer nada mais deles, nem que são, nem que não são. Pois haveria que agregar-lhes o ser e o não ser, mas não que acrescentar nada, se é que vamos acrescentar algo em si mesmo. Pois nem sequer há que acrescentar expressões como “o mesmo”, “aquilo mesmo”, “cada um”, “só”, “isto”, nem muitas outras destas. Estas expressões correm por aí, juntando-se a tudo, embora sejam diferentes das coisas a que se acrescentam. Se fosse possível designar o elemento e este ter uma explicação própria em si mesmo, teria de ser nomeado independentemente de tudo o mais. Mas, de facto, é impossível que qualquer deles seja dito com uma explicação,

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pois não há que dar-lhes mais que um nome apenas. Por sua vez, os compostos que deles derivam, tanto por se encontrarem entrelaçados, como por os seus nomes também se terem entrelaçado, deram lugar à explicação. Pois o entrelaçamento dos nomes é aquilo que a explicação é. É por isso que os elementos carecem de explicação e são incognoscíveis, embora sejam sensíveis. Por sua vez, as sílabas são cognoscíveis, podem nomear-se e são opináveis por opinião verdadeira. Ora bem, quando alguém chega à opinião verdadeira sobre alguma coisa, sem explicação, a sua alma encontra-se na verdade a respeito disso, mas não a conhece. Com efeito, aquele que não for capaz de dar e receber uma explicação sobre algo ignora-o. Por sua vez, se chegou a uma explicação, não só tudo isto lhe veio a ser possível, como além disso tem completamente o saber. Ouviste o sonho assim ou de outro modo?

Teeteto: Assim mesmo, exactamente.»

(Platão, Teeteto, Cotas 200d-202d, Ed. FCG, pp.300-304)

2ªSecção: Posicionamento do questionar ontológico pela

coisalidade da coisa (O Ser da Coisa) 1. Introdução

Nota introdutória: A problemática gnoseológica será enquadrada numa problemática mais envolvente: a problemática ontológica, ou seja aquela que se movimenta em

torno das questões: “Porque é afinal ente e não antes Nada?” e “Qual a posição do Ser?” A perspectiva do conhecimento, só por si, não é capaz de equacionar estas questões, uma vez que ela

está, no processo historial do Ser, delimitada à época em que, justamente, se obscurecem as referidas questões, ao ponto de

se consumar com esse obscurecimento o “esquecimento do Ser”. Paralelamente a este sentido oculto à história, assistimos, especialmente a partir da época moderna, ao despontar da tão falada e aclamada problemática gnoseológica. Segundo esta, o que importa das coisas não é a pura presencialidade das

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coisas, mas o que é conhecido das coisas pelo sujeito do conhecimento, sujeito esse que é o homem. (*) No fundo, este ente particular, que é o homem, institui-se (instala-se) no domínio dos poderes originários do Ser como sujeito conhecedor da totalidade das coisas, e é só a partir dessa órbita de visão que as coisas passarão a ter relevância como coisas. A partir de então, o que uma coisa é decorre da sua determinação dentro das possibilidades da natureza das faculdades cognoscitivas do homem. O ser do homem, segundo esta órbita de visão, consiste num sujeito dotado de faculdades; a realidade do que é está inteiramente vinculada à natureza dessas faculdades. Todos os grandes filósofos da modernidade movimentaram-se no seu questionar em torno da questão das faculdades cognoscitivas do sujeito que conhece. Uma apreciação superficial, que apenas se atém ao título de algumas obras filosóficas da modernidade, comprova isso mesmo:

Descartes: Discurso do Método; Regras para a Direcção do Espírito; Spinoza: Tratado da Reforma do Entendimento Humano; Leibniz: Novos Ensaios sobre o Entendimento Humano; Locke: Ensaio sobre o Entendimento Humano; Hobbes: A Natureza Humana; Berkeley: Tratado do Conhecimento Humano; Hume: Tratado da Natureza Humana; Investigações sobre o Entendimento Humano; Kant: Crítica da Razão Pura; Acerca das Formas dos Princípios do Mundo Sensível e do Mundo Inteligível ________________________ (*) Como a gnoseologia não é nem nunca foi a única órbita de visão do dirigir-se às coisas:

«O homem não pode abandonar por si próprio este destino [Geschik] da sua essência moderna, nem quebrá-lo por uma sentença soberana. Mas o homem pode pensar, pensando antecipadamente, que o ser-sujeito da humanidade nem jamais foi a única possibilidade da essência inicial do homem histórico, nem alguma vez o será. Uma sombra de nuvem fugaz sobre uma terra encoberta, tal é o obscurecimento que aquela verdade, enquanto certeza da subjectividade, preparada pela certeza de

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salvação do cristianismo, estende sobre um acontecimento de apropriação [Ereignis] cuja experiência lhe permanece recusada.»

(Heidegger, O Tempo da Imagem do Mundo, in caminhos de Floresta, Ed. FCG., pp.136-137)

Texto nº12 «Com a ascensão da consciência, cuja essência é, para a

metafísica moderna, a representação, ascende a posição e a oposição dos objectos. Quanto mais elevada for a consciência, tanto mais excluído do mundo estará o ser consciente. Assim se encontra o homem (…) “diante do mundo”. Ele não se insere no aberto. O homem encontra-se em frente do mundo. Ele não habita directamente na corrente e no vento da conexão completa. A Natureza é trazida para diante do homem através da representação do homem. O homem põe o mundo diante de si como objectualidade na sua totalidade e põe-se a si diante do mundo. O homem coloca a Natureza à sua beira e levanta o mundo de tal modo que este o enfrenta. Este colocar à beira, este elaborar, devemos entendê-lo na sua essência lata e multíplice. O homem cultiva a Natureza, quando ela não basta para corresponder às suas expectativas representativas. O homem elabora coisas novas, quando elas lhe fazem falta. O homem muda as coisas de lugar, quando elas o incomodam. O homem remove as coisas, quando elas se desviam do seu propósito. O homem expõe as coisas, quando as recomenda para compra ou para utilização. O homem expõe, quando exibe as suas próprias capacidades e quando faz propaganda do seu ofício. Em toda estas formas multifacetadas do produzir, o mundo é posto de pé e trazido a uma posição. O aberto torna-se objecto e, assim, é rodado para enfrentar o homem. Enfrentando o mundo como objecto oposto, o homem expõe-se a si mesmo, e levanta-se como aquele que consegue impor propositadamente todo este elaborar. (…) o homem moderno, expõe-se como aquele que se revolta, em todas as relações, com tudo o que existe, e portanto também na relação consigo próprio, como o que se impõe como produtor, organizando este levantar-se em revolta com vista à

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dominação incondicional. A totalidade da existência objectiva, que é como o mundo aparece, é dependente do parecer e da ordem da elaboração impositiva, sendo assim submetida ao mando desta. O querer contém em si a forma do mando, pois o impor-se propositado é um modo no qual a situatividade do elaborar e a objectividade do mundo contém um ao outro, numa unidade incondicionada e, por isso, completa. Nele, no conter-se, anuncia-se o carácter do mando da vontade. Com este, é revelada, no decurso da metafísica moderna, a essência há muito encoberta da vontade, que se essencia desde há muito enquanto ser do ente. Em conformidade com isto, também o querer humano apenas pode existir à maneira do impor-se, se forçar tendo de antemão, antes mesmo de tudo dominar, a entrar no seu domínio. Para este querer, tudo se torna, à partida, e em seguida de uma forma irresistível, material da elaboração que se impõe. A terra e a atmosfera tornam-se matéria-prima. O homem torna-se material humano que é colocado ao serviço dos objectivos propostos. A instalação incondicionada do impor-se incondicional da elaboração propositada do mundo vai-se configurando necessariamente nos moldes do mando humano, num processo que surge da essência oculta da técnica. É apenas a partir da era moderna que esta essência começa a desenrolar-se como destino da verdade do ente na totalidade, ao passo que, até agora, as manifestações dispersas e as tentativas pontuais se mantinham integradas no extenso domínio da cultura e da civilização.

(Heidegger, E Para Quê Poetas?, in Caminhos de Floresta, Ed. FCG., pp.329/330-331/332-333)

2. A questão pela coisalidade da coisa

Texto nº13 «Podemos prescindir da questão acerca do nosso saber

sobre as coisas e pensar que ela, um dia, se resolverá por si mesma. Podemos admirar e utilizar os progressos das

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modernas ciências da natureza e da técnica, sem saber como tal aconteceu – por exemplo, sem saber que a ciência moderna só se tornou possível num confronto, que partiu do primeiro entusiasmo do questionar, realizado com o saber antigo, com os seus conceitos e princípios. Não precisamos saber nada sobre isso e podemos pensar que somos homens com um tal poder de dominação, que esse domínio nos poderá ter sido dado pelo Senhor, enquanto dormíamos.»

(Heidegger, Que é uma Coisa?, Ed.70, p.48)

Texto nº14 «Colocamos, neste curso, uma questão de entre as que

pertencem ao domínio das questões fundamentais da metafísica. Ela tem o seguinte teor: “Que é uma coisa?” a questão é já antiga. O que nela é sempre novo é o facto de ter de ser continuamente posta.

[…] (…) Imediatamente uma dúvida nos assalta. Dir-se-á que

faz sentido utilizar e consumir as coisas disponíveis, pôr de lado as coisas que estorvam, arranjar as que são necessárias, mas com a questão “Que é uma coisa?” não se pode, propriamente começar nada. Assim é. Com ela não se pode começar nada.»

(Heidegger, Que é uma Coisa?, Ed.70, pp.13-14)

Texto nº15 «Com a nossa questão “Que é uma coisa?” não queremos

saber, evidentemente, o que é um granito, um sílex, um calcário ou um grão de areia, mas o que é uma pedra enquanto coisa. Não queremos saber como se diferenciam e como são os musgos, os fetos, as ervas, os arbustos e as árvores, mas o que é a planta enquanto coisa – e o mesmo acontece com os animais. Também não queremos saber o que é um alicate, na sua diferença em relação ao martelo, nem o que é um relógio, na sua diferença em relação à chave, mas o que são estes instrumentos de uso e de trabalho, enquanto coisas (…).

Na medida em que questionamos deste modo procuramos

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aquilo que faz a coisa ser coisa, enquanto tal, não enquanto pedra ou madeira, aquilo que torna-coisa a coisa. Não questionamos acerca de uma coisa de uma determinada espécie, mas acerca da coisalidade da coisa. Essa coisalidade, que torna-coisa uma coisa já não pode ser uma coisa, quer dizer, um condicionado. A coisalidade deve ser qualquer coisa incondicionada.»

(Heidegger, Que é uma Coisa?, Ed.70, pp.19-20)

3. Determinação vulgar do ser da coisa 3.1 A coisa como suporte de propriedades que nela

permanecem e mudam

Texto nº16 «Questionamos de novo “Que é uma coisa?” que aspecto

tem uma coisa? Se bem que tenhamos em vista a coisalidade da coisa, lancemo-nos agora cautelosamente ao trabalho, permaneçamos, para começar, perto das coisas individuais, vejamo-las e detenhamo-nos no que vemos. Uma pedra – é dura, de cor cinzenta, de superfície rugosa; tem uma forma irregular, é pesada e consiste numa determinada matéria. Uma planta – tem uma raiz, caule, folhas; estas são verdes, com entalhos; o pé das folhas é curto, etc., Um animal tem olhos e ouvidos; pode deslocar-se de um sítio para o outro; tem, além dos órgãos dos sentidos, um aparelho digestivo e um aparelho reprodutor, que utiliza, desenvolve e, de certo modo, renova. Chamamos a coisas como estas – tal como as plantas que também possuem órgãos – um organismo. Um relógio tem uma engrenagem, corda e um mostrador, etc.

Poderíamos prosseguir deste modo, indefinidamente. O que afirmamos deste modo é correcto. Os elementos que constituímos correspondem com fidelidade, àquilo que as próprias coisas nos mostram. Perguntamos agora, de um modo mais determinado, as coisas mostram-se-nos como sendo o quê? Abstraímos do facto delas serem pedra, rosa, cão, relógio ou qualquer outra coisa. Olhamos somente para aquilo que as coisas são sem excepção: sempre qualquer coisa com tais e tais

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propriedades, sempre qualquer coisa que é constituída desta ou daquela maneira. Este qualquer coisa é o suporte de propriedades; do mesmo modo, é o que permanece, é o mesmo a que sempre regressamos quando queremos afixar as propriedades. Assim, são agora, as próprias coisas. O que é, portanto, uma coisa? Um centro, à volta do qual giram propriedades mutáveis, ou um suporte em que estas propriedades se apoiam, qualquer coisa que tem em si outras coisa.»

(Heidegger, Que é uma Coisa?, Ed.70, p.40) 3.2 A noção de verdade no âmbito da determinação vulgar do Ser da coisa: A verdade como correcção da proposição

(Veritas est adaequatio intellectus et rei)

Texto nº17 «Onde é que reside esta fundamentação da verdade da

determinação corrente da coisa? Resposta: nada menos que na própria essência da verdade. Verdade: que quer isto dizer? É verdadeiro aquilo que tem validade. Vale aquilo que concorda com os factos. Qualquer coisa concorda quando se dirige aos factos, quer dizer, quando toma a medida “tendo por base o que as coisas são”. A verdade é, portanto, conformidade com as coisas. Certamente, não são apenas as verdades particulares que se devem conformar com as coisas particulares, mas a própria essência da verdade. Quando a verdade é conformidade, dirigir-se para…, isto, sem dúvida, deve, em primeiro lugar, valer para a determinação da verdade: ele deve conformar-se com a essência das coisas (a coisalidade). A partir da essência da verdade como conformidade, torna-se necessário que a estrutura da verdade seja o reflexo da estrutura da coisa.

Quando entramos, deste modo, na estrutura essencial da verdade, a mesma estrutura que na estrutura essencial das coisas, prova-se, então, a partir da própria essência da verdade, a verdade da determinação corrente da estrutura essencial da coisa.

Verdade é correspondência com as coisas. Mas de que

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modo é aquilo que se conforma? Que é a correspondência? O que é isso, que dizemos ser verdadeiro ou falso? Com a mesma “naturalidade” com que se compreende a verdade como correspondência com as coisas, resulta também a verificação daquilo que é verdadeiro ou falso. O verdadeiro que encontramos, afirmamos, divulgamos e defendemos, concebemo-lo por meio de palavras. Mas uma palavra isolada – porta, giz, grande, mais, e – não é nem verdadeira nem falsa. Verdadeira ou falsa é sempre a ligação entre palavras; a porta está fechada; o giz é branco. A uma tal ligação chamamos um simples enunciado. Ele é verdadeiro ou falso. O enunciado é portanto o lugar e o sítio da verdade.»

(Heidegger, Que é uma Coisa?, Ed.70, pp.42-43)

Texto nº18 «Enunciar significa (…) tomar daquilo de que se fala, por

exemplo, de uma casa, qualquer coisa que lhe pertença e atribuir-lho como pertencendo-lhe verdadeiramente, quer dizer, que é dela. Ao que é enunciado desta forma chamamos o predicado. O enunciado, neste sentido, é predicativo, é a proposição.

(…) O enunciado tem um carácter triplo: uma proposição que dá uma informação, a qual, realizada expressamente diante de outra pessoa, se torna comunicação. A comunicação é exacta quando a informação é correcta, quer dizer, quando a proposição é verdadeira. O enunciado como proposição, como o

enunciar a ou b acerca de X, é o sítio da verdade. Na construção de uma proposição, quer dizer, uma verdade simples, distinguimos o Sujeito, o Predicado e a Cópula; o objecto-da-proposição, o enunciado-da-proposição e a palavra de ligação. A verdade reside no facto do Predicado convir ao Sujeito e, sendo aquilo que lhe convém, ser posto e dito na proposição. A construção da verdade e os elementos dessa construção, quer dizer, da proposição verdadeira, estão em conformidade com aquilo por que a verdade, enquanto tal, se guia, ou seja, a coisa enquanto suporte e as suas propriedades.»

(Heidegger, Que é uma Coisa?, Ed.70, pp.43-44)

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3.3 Delimitação do Ser da coisa no âmbito da doutrina das categorias como modos de enunciabilidade

Texto nº19 «Sobre uma coisa podem colocar-se várias, ou podem

dizer-se várias coisas acerca dela. “A casa é vermelha”; “A casa é alta”; “A casa é mais pequena (do que aquela que está ao lado)”; “A casa está perto do ribeiro”; “A casa é do século XVIII”.

Tendo como fio condutor esses diversos enunciados, podemos seguir de perto o modo como a própria coisa é, em cada caso, determinada. Ao fazer isto, não prestamos agora atenção a esta coisa particular que tomamos como exemplo – a casa – mas àquilo que, em cada enunciado do mesmo género, caracteriza, em geral, qualquer coisa deste tipo, ou seja, prestamos atenção à coisalidade. “Vermelho” diz, de um determinado ponto de vista, a saber, relativamente à cor, o modo como a coisa é constituída. De um modo geral, é

atribuída à coisa uma característica, uma qualidade. No atributo “grande”, é enunciada a grandeza, a extensão, a

quantidade; no “mais pequeno que”, diz-se o que é a casa em comparação com outra, a relação; “perto do ribeiro”, atribui o lugar, o espaço; “do século XVIII”, atribui o tempo.

Característica, extensão, comparação, lugar, tempo, são determinações que, em geral, são ditas da coisa. Estas determinações indicam em que perspectiva as coisas se nos mostram, quando, no enunciado, nos dirigimos a elas, indicam os caminhos-do-olhar nos quais olhamos as coisas e a partir dos quais elas se nos mostram. Mas, na medida em que essas determinações são sempre colocadas sobre a coisa, a coisa é, de um modo geral e sempre, ditas com ela, como aquilo que já está presente.»

(Heidegger, Que é uma Coisa?, Ed.70, pp.69-70)

4. Questionando a determinação do Ser da coisa como suporte de propriedades e a Verdade como correcção da proposição

Texto nº20

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«(…) e se esta determinação da coisa, que nos dá a impressão de ser natural (embora não seja de modo algum evidente), não fosse “natural”? Deveria ter havido, por isso, um tempo em que a essência da coisa ainda não era determinada deste modo. Em consequência, deve ter havido, mais tarde, um tempo em que, pela primeira vez, esta determinação da essência da coisa se formou. A formação desta determinação da essência da coisa não teria, de forma nenhuma, caído do céu, mas fundar-se-ia, ela própria, com pressupostos totalmente determinados.

(…) a questão parece agora, pela primeira vez, determinar-se de modo mais aproximado. A própria questão tornou-se histórica, na medida em que, segundo parece, com ligeireza e desprevenidamente, nos dirigimos às coisas e dizemos que elas são um suporte de propriedades, não somos nós que vemos ou falamos, mas uma antiga tradição histórica.»

(Heidegger, Que é uma Coisa?, Ed.70, pp.46-47) Texto nº21 «(…) a estrutura essencial da verdade e da proposição

mediu-se pela estrutura da coisa? Ou passou-se o contrário: a estrutura essencial da coisa, considerada um suporte de propriedades, foi interpretada a partir da estrutura da proposição, como unidade de “Sujeito” e “Predicado”? Será que o homem leu a estrutura da proposição na estrutura da coisa, ou terá transportado para a estrutura das coisas a estrutura da proposição?

Se se desse este último caso, então surgiria imediatamente a questão seguinte: de que modo a proposição e o enunciado chegaram ao ponto de fornecer o padrão de unidade e o modelo para o modo como as coisas devem ser determinadas na sua coisalidade? Dado que a proposição, o pôr e o dizer, são acções do homem, resultaria daqui que não é o homem que se dirige às coisas, mas as coisas que se dirigem ao homem e ao sujeito humano, que é a forma como o “Eu” é habitualmente concebido.»

(Heidegger, Que é uma Coisa?, Ed.70, pp.51-52)

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3ª Secção: Determinação da coisalidade da coisa no âmbito da filosofia moderna. Fundamentação do Ser das coisas nas faculdades do sujeito que conhece

1. Categorias, - Ratio - Razão

Texto nº22

«O enunciado é um modo de -dirigir-se a qualquer coisa, enquanto qualquer coisa. Isto significa: acolher qualquer coisa como tal. Ter qualquer coisa como qualquer coisa e entregá-la como tal, diz-se em latim, reor, ratio; daí ratio se ter

tornado a tradução de . O simples enunciado dá, ao mesmo tempo, a forma fundamental em que visamos a coisa e pensamos algo acerca dela. A forma fundamental do pensamento e, em consequência, o pensar, é o fio condutor da determinação da coisalidade da coisa. As categorias determinam, em geral, o Ser dos entes. (…)

(…) , ratio, é o fio condutor para a determinação do Ser do ente, quer dizer, para a determinação da coisalidade da coisa.»

(Heidegger, Que é uma Coisa?, Ed.70, p.71) 2. Característica essencial da Moderna Ciência da Natureza: O Matemático

Texto nº23

«O , o matemático, é “aquele” acerca das coisas que já conhecemos verdadeiramente, de modo antecipado; aquilo que, em consequência, não começamos por ir buscar às coisas, mas que, de certo modo, levamos connosco até elas. A partir daqui, podemos já compreender por que motivo o número, por exemplo, é qualquer coisa de matemático. Vemos três cadeiras e dizemos: são três. O que é o “três” não nos é dito pelas três cadeiras, nem sequer por três maçãs, três gatos, nem por quaisquer outras três coisas. Pelo contrário, podemos contar as coisas até três porque já sabemos o que é o “três”. Assim, na medida em que conhecemos o número três enquanto

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tal, tomamos expressamente, de qualquer coisa, um conhecimento que, de certo modo, já possuíamos. (…) Aquilo de que já tomamos conhecimento, não o tiramos de quaisquer coisas. Tomamos aquilo que, de certo modo, nós próprios já temos.

O matemático é aquilo que há de manifesto nas coisas, em que sempre nos movimentamos e de acordo com o qual as experimentamos como coisas e como coisas de tal género. O matemático é a posição-de-fundo em relação às coisas na qual as coisas se nos pro-põem a partir do modo como já nos foram dadas, têm de ser dadas e devem ser dadas. O matemático é, portanto, o pressuposto fundamental do saber acerca das coisas.»

(Heidegger, Que é uma Coisa?, Ed.70, pp.80-82)

Texto nº24 «O modo de questionamento da natureza e da sua

determinação pelo conhecimento já não é mais regulado pelas opiniões e conceitos tradicionais. Os corpos não têm propriedades, forças e poderes escondidos. Os corpos da

natureza são apenas como se mostram no domínio do projecto. Agora as coisas mostram-se somente nas relações de lugar e de tempo, de quantidade, de massa e de actividade das forças. O modo como se mostram é pré-indicado pelo projecto, deste modo, ele determina também a forma do tomar e do reconhecer

aquilo que se mostra por si mesmo, a experiência, o expiriri. Mas, na medida em que agora o reconhecimento está pré-determinado pelo esboço do projecto, o questionar pode ser determinado de tal modo que põe antecipadamente as condições a partir das quais a natureza deve responder de tal e

tal modo. Com base no matemático, a experientia, tornou-se em experimentação em sentido moderno.»

(Heidegger, Que é uma Coisa?, Ed.70, pp.96-97)

Texto nº25 «Quando Galileu fez rolar no plano inclinado as esferas,

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com a aceleração que ele próprio escolhera, quando Toricelli fez suportar pelo ar um peso, que antecipadamente sabia idêntico ao peso conhecido de uma coluna de água, ou quando, mais recentemente, Stahl transformou metais em cal e esta, por sua vez, em metal, tirou-lhes e restitui-lhes algo, foi uma iluminação para todos os físicos. Compreenderam que a razão só entende aquilo que produz segundo os seus planos; que ela tem de tomar a dianteira com princípios que determinam os seus juízos segundo leis constantes e deve forçar a natureza a responder às suas interrogações em vez de se deixar guiar por esta; de outro modo, as observações feitas ao acaso, realizadas sem plano prévio, não se ordenam segundo a lei necessária, que a razão procura e de que necessita. A razão, tendo por um lado os seus princípios, únicos a poderem dar aos fenómenos concordantes a autoridade da lei, por outro lado, a experimentação, que imaginou segundo esses princípios, deve ir ao encontro da natureza, para ser por ela ensinada, é certo, mas não na qualidade de aluno que aceita tudo o que o mestre afirma, antes na de juiz investido nas suas funções, que obriga as testemunhas a responder aos quesitos que lhe apresenta. Assim, a própria física tem de agradecer a revolução, tão proveitosa, do seu modo de pensar, unicamente à ideia de procurar na natureza (e não imaginar) de acordo com o que a razão nela pôs, o que nela deverá aprender e que por si só não alcançaria saber, só assim a física enveredou pelo trilho certo da ciência, após tantos séculos em que foi apenas simples tacteio.»

(Kant, Crítica da Razão Pura, Ed. FCG., p.18)

3. O traço essencial da filosofia moderna: o matemático.

Cogito ergo sum = o Eu (subjectividade) que se assegura antecipadamente de si mesmo e daquilo que é conhecível a partir

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de si mesmo

Texto nº26 «(…) para a posição de fundo absolutamente matemática

não pode haver uma doação das coisas que seja anterior a ela. A própria proposição – e sobretudo ela – deve ser posta a partir do seu fundamento. Deve ser uma proposição-de-fundo, a proposição-de-fundo absoluta. Trata-se, portanto, de encontrar um tal princípio de todo o pôr, quer dizer, uma proposição em

que aquilo de que ela diz qualquer coisa, o subjectum

( ) não é tomado de qualquer outro lado. “O-que-subjaz” enquanto tal deve surgir e estabelecer-se na própria

proposição originária. Somente assim o subjectum é um fundamentum absolutum, qualquer coisa puramente posta a partir da proposição enquanto tal, do matemático enquanto tal,

uma fundação, uma base e, como tal, fundamentum absolutum e, ao mesmo tempo, inconcussum, indubitável, absolutamente certo. Porque o matemático se institui agora a si mesmo como princípio de todo o saber, todo o saber aceite até ao presente deve ser posto necessariamente em questão, independentemente de ser ou não um saber resistente.»

(Heidegger, Que é uma Coisa?, Ed.70, p.106)

Texto nº27 «Somente onde, pela primeira vez, o pensamento se pensa

a si mesmo é que ele é absolutamente matemático, quer dizer, um tomar conhecimento do que já temos. Na medida em que o pensar e o colocar se dirigem, deste modo, para si mesmos, encontram o seguinte. Todo o enunciar, todo o pensar, é um “eu penso” sobre o que pode ser enunciado e sobre o sentido em que o pode ser. Enquanto “eu penso”, o pensar é sempre

um ego cogito. Resulta daqui que eu sou, sum; cogito, sum, é a certeza imediata mais elevada que está presente na proposição enquanto tal. No “eu ponho”, o “eu”, enquanto aquele que põe, é antecipadamente e ao mesmo tempo posto como o que já está aí, como ente. O Ser do ente determina-se a partir do “eu sou”, como certeza do pôr.»

(Heidegger, Que é uma Coisa?, Ed.70, pp.106-107)

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3.1 O Eu (Subjectividade) como determinação absolutamente indubitável. A Dúvida Metódica contra os Cépticos Texto nº28 «Desde há muito notara eu que, no tocante aos costumes, é necessário às vezes seguir como se fossem indubitáveis opiniões que sabemos serem muito incertas, como já atrás foi dito. Mas, porque agora desejava dedicar-me apenas à procura da verdade, pensei que era forçoso que eu fizesse exactamente ao contrário e rejeitasse, como absolutamente falso, tudo aquilo em que pudesse imaginar a menor dúvida, a fim de ver se, depois disso não ficaria alguma coisa na minha crença, que fosse inteiramente indubitável. Assim, porque os nossos sentidos nos enganam algumas vezes, quis supor que não existe coisa alguma que seja tal como eles a fazem imaginar. E porque há homens que se enganam ao raciocinar, mesmo a propósito dos mais simples temas da geometria, e neles cometem paralogismos, ao considerar que eu estava sujeito enganar-me, como qualquer outro, rejeitei como falsas todas as razões de que anteriormente me servira nas demonstrações. Finalmente, considerando que todos os pensamentos que temos no estado de vigília nos podem também ocorrer quando dormimos, sem que, neste caso, alguma seja verdadeira, resolvi supor que todas as coisas que até então tinham entrado no meu espírito não eram mais verdadeiras do que as ilusões dos meus sonhos. Mas, logo a seguir, notei que, enquanto assim queria pensar que tudo era falso, era de todo necessário que

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eu, que o pensava fosse alguma coisa. E notando que esta

verdade: penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as extravagantes suposições dos cépticos não eram capazes de a abalar, julguei que a podia aceitar, sem escrúpulo, para primeiro princípio da filosofia que procurava.

Depois, examinado atentamente o que era e vendo que podia supor que não tinha corpo algum e que não havia nenhum mundo, nem qualquer lugar onde eu existisse; mas que não podia fingir, para isso, que eu não existia; e que, pelo contrário, justamente porque pensava ao duvidar da verdade das outras coisas, seguia-se muito evidentemente e muito certamente que eu existia; ao passe que se eu deixasse somente de pensar, ainda que tudo o que tinha imaginado fosse verdadeiro, não teria razão alguma para crer que eu existisse: por isso, compreendi que era uma substância, cuja natureza ou essência é unicamente pensar e que, para existir, não precisa de nenhum lugar nem depende de coisa alguma material. De maneira que esse eu, isto é, a alma pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo, e até mais fácil de conhecer do que ele, e ainda que este não existisse, ela não deixaria de ser tudo que é.»

(Descartes, Discurso do Método, Ed.70, pp.73-75)

3.2 Critério para distinguir o que é certo do que não é Texto nº29 «Depois disso, considerei em geral o que é indispensável

para ser verdadeira e certa; porque, como acabava de achar uma que conhecia como tal, pensei que devia saber também

em que consiste essa natureza. E tendo notado que no, eu penso, logo existo, não há nada que me garanta que digo a

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verdade a não ser que vejo muito claramente que, para pensar, é preciso existir, julguei que podia tomar como regra geral que as coisas que concebemos muito clara e distintamente são todas verdadeiras, havendo apenas alguma dificuldade em notar bem quais são as que concebemos distintamente.»

(Descartes, Discurso do Método, Ed.70, p.75)

3.3 Hesitações nos primeiros passos para a subjectividade. A busca do fundamento “no outro”: Deus. O argumento ontológico

Texto nº30 Depois disto, tendo reflectido sobre o que duvidava e que,

por consequência, o meu ser não era inteiramente perfeito, pois via claramente que conhecer é uma maior perfeição do que duvidar, lembrei-me de procurar de onde me tinha vindo o pensamento de alguma coisa de mais perfeito do que eu; e conheci, com evidência, que se devia a alguma natureza que fosse, efectivamente, mais perfeita. Quanto aos pensamentos que tinha de muitas outras coisas a mim exteriores, como do céu, da terra, da luz, do calor e de muitíssimas outras, não me preocupava tanto em saber de onde me vinham, porque, não notando nelas algo que me parecesse torná-las superiores a mim, podia crer que, caso fossem verdadeiras, dependiam da minha natureza, na medida em que tinha alguma perfeição; e se não fossem, que as extraía do nada, isto é, existiam em mim, porque eu tinha defeito. Mas isso já não podia acontecer com a ideia de um ser mais perfeito do que o meu, pois tê-la formado do nada era uma coisa manifestamente impossível; e porque não repugna menos admitir que o mais perfeito seja uma consequência e uma dependência do menos perfeito do que admitir que do nada procede alguma coisa, não a podia também receber de mim próprio. De maneira que restava apenas que ela tivesse sido posta em mim por uma natureza que fosse verdadeiramente mais perfeita do que eu, e que até tivesse em si todas as perfeições de que podia ter alguma ideia, isto é, para me explicar com uma só palavra, que fosse Deus. A isto acrescentei que, visto eu conhecer algumas perfeições que

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não possuía, não era o único ser que existia (utilizarei aqui, se vos aprouver, livremente termos da Escola), mas que necessariamente devia existir algum outro mais perfeito, do qual eu dependesse e de quem tivesse recebido tudo o que tinha. Pois, se eu fosse o único ser e independente de qualquer outro, de modo que houvesse recebido de mim próprio todo esse pouco pelo qual eu participava do ser perfeito, poderia, pela mesma razão, ter tido de mim próprio todo o excelente que reconhecia faltar-me, e ser assim infinito, imutável, omnisciente, omnipresente, em suma, ter todas as perfeições que em Deus podia descobrir. Com efeito, segundo os raciocínios que acabo de fazer para conhecer a natureza de Deus, tanto quanto disso a minha é capaz, bastava-me considerar, acerca de todas as coisas de que em mim encontrava alguma coisa, se era ou não perfeição possuí-las, e estava certo de que as que contêm alguma imperfeição não estavam nele, mas estavam, sim, todas as outras. Via que a dúvida, a inconstância, a tristeza e coisas semelhantes não podiam nele existir, uma vez que a mim próprio seria muito agradável estar delas isento. Além disso, tinha ideias de muitas coisas sensíveis e corporais; pois, embora eu supusesse que sonhava e que tudo o que via ou imaginava era falso, não podia negar, contudo, que as suas ideias existiam verdadeiramente no meu pensamento; mas como tinha já reconhecido em mim próprio claramente que a natureza inteligente é distinta da corporal, considerando que toda a composição implica dependência, e que a dependência é manifestamente um defeito, julguei, por isso, que em Deus não podia constituir uma perfeição o ser composto dessas duas naturezas e que, por consequência, não o era; mas que, se existem no mundo alguns corpos, inteligências ou outras naturezas que não sejam completamente perfeitas, o seu ser devia depender do seu poder, de tal modo que sem ele não poderiam subsistir um só momento.

Quis procurar, depois disso, outras verdades e, tendo escolhido o objecto dos geómetras, que concebia como um corpo contínuo ou um espaço indefinidamente extenso em comprimento, largura e altura ou profundidade, divisível em muitas partes, que podiam ter diversas figurar e grandezas e

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ser movidas ou transpostas de todas as maneiras, pois os geómetras supõem tudo isto no seu objecto, revi algumas das suas demonstrações mais simples. E, tendo notado que a grande certeza, que todos lhe atribuem, se funda apenas em serem concebidas com evidência, segundo a regra por mim há pouco indicada, notei também que não existia nelas absolutamente nada que me assegurasse da existência do seu objecto. Pois, por exemplo, via bem que, ao supor um triângulo, era necessário que os seus três ângulos fossem iguais e dois rectos; mas, apesar disso, nada via que me garantisse que no mundo exterior existisse algum triângulo. Ao passo que voltando a examinar a ideia que eu tinha de um ser perfeito, descobria que a existência estava nela contida, do mesmo modo, ou mais evidentemente ainda, que na de um triângulo está compreendido que os seus três ângulos são iguais a dois rectos, ou na de uma esfera, que todos os seus pontos são equidistantes do centro; e que, por conseguinte, é pelo menos tão certo como o pode ser qualquer demonstração de geometria que Deus, que é o ser perfeito, é ou existe.»

(Descartes, Discurso do Método, Ed.70, pp.75-79)

Texto nº31 «(…) fecharei os olhos, taparei os ouvidos, porei de parte

todos os sentidos, apagarei também do meu pensamento todas as coisas corpóreas, ou pelo menos, porque isto é quase impossível, não as tomarei em conta por imunes e falsas, e, dialogando, só comigo próprio e inspeccionando-me mais intimamente, procurarei tornar-me o meu próprio eu progressivamente mais conhecido e familiar. Eu sou uma coisa que pensa, quer dizer, que duvida, que afirma, que nega, que conhece poucas coisas, que ignora muitas, que quer, que não quer, que também imagina, e que sente. Porque, como atrás notei, embora as coisas que sinto ou que imagino não sejam possivelmente nada fora de mim, todavia aqueles modos de pensar que chamo sensações e imaginações existem em mim de facto, enquanto são certos modos de pensar.»

(Descartes, Meditações sobre a Filosofia Primeira, Ed. Almedina, pp.135-136)

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4. Subjectum e Objectum: Como a transformação do sentido destas palavras revela a modificação da relação com o Ser

Texto nº32 «Até Descartes, tinha o valor de “Sujeito” qualquer coisa

que subsistisse por si mesma; mas agora o “eu” torna-se um sujeito peculiar, um sujeito em relação ao qual todas as outras coisas se determinam como tais. Porque elas recebem, de modo matemático, pela primeira vez, a sua coisalidade, de uma relação fundante com os princípios mais elevados e com o seu “sujeito” (o eu) tais como são essencialmente aquilo que, em relação ao “sujeito” permanece como um outro, que está em

face dele como objectum. As próprias coisas tornam-se “objectos”.

A palavra objectum sofre agora uma mudança correspondente de sentido; porque, até então, objectum designava “o que vinha ao encontro” no puro representar-se; represento-me uma montanha dourada. A coisa representada

deste modo – um objectum, na linguagem da Idade Média – é, de acordo com o uso moderno da língua, algo puramente “subjectivo”, porque no sentido do uso modificado da língua, uma “montanha dourada” não existe “objectivamente”. Esta

inversão nos sentidos das palavras subjectum e objectum não é uma mera questão de uso da língua, mas uma modificação fundamental do estar-aí, quer dizer, da clareira do Ser do ente,

que tem por base o predomínio do matemático. Trata-se de uma porção do caminho necessariamente escondido ao olhar quotidiano, da história autêntica que é sempre história da manifestação do Ser, ou não é nada.»

(Heidegger, Que é uma Coisa?, Ed.70, p.108)

5 A Razão Pura como princípio de determinação da coisalidade da coisa (O Ser da coisa)

Texto nº33

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«O eu, enquanto “eu penso” é, de ora em diante, o fundamento em que repousa toda a certeza da verdade. Mas,

ao mesmo tempo, o pensamento, o enunciado, o logos, é o fio condutor das determinações do Ser, das categorias. Estas encontram-se tendo como fio condutor o “eu penso”, tendo em vista o eu. Deste modo, o eu, devido a este significado fundamental para a fundamentação da totalidade do saber, torna-se a determinação acentuada e essencial do homem. Até

então, e daí em diante, ele é concebido como animale rationale, como ser-vivo pensante. Com a particular acentuação do eu, quer dizer, com o “eu penso”, a determinação do racional e da razão adquire um peculiar predomínio. Porque o pensar é o

acto fundamental da razão. Com o Cogito sum, a razão é agora posta expressamente e de acordo com a sua exigência própria, como primeiro fundamento de todo o saber e como fio condutor de determinação da coisa em geral.»

(Heidegger, Que é uma Coisa?, Ed.70, pp.108-109)

Texto nº34 «(…) o facto decisivo é que, através do desenvolvimento e

da autoclarificação do pensamento matemático, a reivindicação da razão pura adquiriu a predominância. Isto quer dizer que é tendo como base e fio condutor todos os princípios mais universais da razão pura que se devem projectar as determinações mais universais do Ser do ente. Mas, ao mesmo tempo, a totalidade do saber sobre o mundo, a alma e Deus deve ser derivada destes conceitos mais universais, numa articulação e dedução racionais desses conceitos.

Assim, a pura legalidade interna da pura razão decide, de acordo com os seus princípios e conceitos fundamentais, acerca do ser do ente, acerca da coisalidade da coisa.»

(Heidegger, Que é uma Coisa?, Ed.70, p.109)

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4ªSecção: Determinação dos limites e extensão da Razão Pura enquanto domínio a partir do qual a coisas são coisas: o

projecto de uma Crítica da Razão Pura em Kant [Corresponde ao ponto do programa IV.1.2- Análise

comparativa de duas teorias explicativas do conhecimento]

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1. A Origem do Conhecimento: Conhecimento Puro e

Conhecimento Empírico 1.1 O Empirismo de D. Hume:

1.1.1 Que todo o conhecimento factual tem a sua origem nos sentidos

Texto nº35 «Todos admitirão prontamente que existe uma diferença

considerável entre percepções da mente, quando o homem sente a dor de um calor excessivo ou o prazer de um ardor moderado, e quando ele depois traz à memória a sua sensação ou a antecipa mediante a sua imaginação. Estas faculdades podem mimar ou copiar as percepções dos sentidos, mas nunca podem inteiramente atingir a força e vivacidade do sentimento original. O máximo que delas afirmamos, mesmo quando actuam com o maior vigor, é que representam o seu objecto de uma maneira tão viva que poderíamos quase dizer que o sentimos ou vemos. Mas a não ser que a mente esteja desarranjada pela doença ou pela loucura, elas nunca podem chegar a tal nível de vivacidade que tornem totalmente indistinguíveis as percepções. Todas as cores da poesia, por esplêndidas que sejam, jamais podem pintar os objectos naturais de uma maneira tal que levem a descrição a ser tomada por uma paisagem real. O mais vivo pensamento é ainda inferior à mais baça sensação.

[…] Podemos, pois, dividir aqui todas as percepções da mente

em duas classes ou tipos, que se distinguem pelos seus diferentes graus de força e vivacidade. As menos intensas e

vivas são comummente designadas Pensamentos ou Ideias. O outro tipo carece de um nome na nossa língua e em muitas outras; assim suponho, porque não havia quaisquer requisitos, a não ser filosóficos, para os classificar sob um termo ou designação geral. Usemos, pois, de um pouco de liberdade e

chamemos-lhe Impressões, empregando esta palavra num sentido tão diverso do habitual. Pelo termo impressão significo todas as nossas percepções mais vivas, quando ouvimos,

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vemos, sentimos, amamos, odiamos, desejamos ou queremos. E as impressões distinguem-se das ideias, que são as impressões menos intensas, das quais somos conscientes quando reflectimos sobre qualquer das sensações ou movimentos acima mencionados.

[…] Mas, embora o nosso pensamento pareça possuir esta

liberdade irrestrita, veremos, num exame mais pormenorizado, que se encontra realmente confinado a limites muito estritos e que todo este poder criador da mente nada mais vem a ser do que a faculdade de compor, transpor, aumentar ou diminuir os materiais que nos são fornecidos pelos sentidos e pela experiência. Quando pensamos numa montanha de oiro,

juntamos unicamente duas ideias consistentes, oiro e montanha, com as quais já antes estávamos familiarizados. Podemos conceber um cavalo virtuoso porque, a partir do nosso próprio sentimento, podemos conceber a virtude; e esta agregámo-la à figura e à forma de um cavalo, que é um animal para nós familiar. Em suma, todos os materiais do pensamento são derivados da sensibilidade externa ou interna: a mistura e composição destes pertencem apenas à mente e à vontade. Ora, para me expressar em linguagem filosófica, todas as nossas ideias, ou percepções mais fracas, são cópias das nossas impressões ou percepções mais intensas.

(David Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano, Secção II, §11; §12; §13, Ed. 70, pp.23-24)

1.1.2 Questões de Facto e Relações de Ideias Texto nº36 «Todos os objectos da razão ou da investigação humanas

podem naturalmente dividir-se em duas classes, a saber,

Relações de Ideias e Questões de Facto. Do primeiro tipo são as ciências da Geometria, Álgebra e Aritmética e, em suma, toda a

afirmação que é intuitiva ou demonstrativamente certa. Que o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos dois lados, é uma proposição que exprime uma relação entre estas figuras. Que três vezes cinco é igual à metade de trinta, expressa uma relação entre estes números. Proposições deste

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tipo podem descobrir-se pela simples operação do pensamento, sem dependência do que existe em alguma parte do universo. Ainda que nunca tivesse havido um círculo ou um triângulo na natureza, as verdades demonstradas por Euclides conservariam para sempre a sua certeza e evidência.

As questões de facto, que constituem os segundos objectos da razão humana, não são indagadas da mesma maneira, nem a nossa evidência da sua verdade, por maior que seja, é de natureza semelhante à precedente. O contrário de toda a questão de facto é ainda possível, porque jamais pode implicar uma contradição, e é concebido pela mente com a mesma facilidade e nitidez, como se fosse idêntico à realidade.

Que o sol não se há-de levantar amanhã, não é uma proposição menos inteligível e não implica maior contradição do que a

afirmação de que ele se levantará. Por conseguinte, em vão tentaríamos demonstrar a sua falsidade. Se fosse demonstrativamente falsa, implicaria uma contradição e nunca poderia ser distintamente concebida pela mente.»

(David Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano, Secção IV, §20; §21, Ed. 70, pp.31-32)

1.2 O Idealismo Transcendental de Kant 1.2.1 O significado de “Crítica” em Kant

Texto nº37

«A Crítica da Razão Pura, se crítica tem o seu sentido positivo já caracterizado, não quer, simplesmente, recusar e censurar a razão pura, “criticar”, mas, pelo contrário, delimitar a sua essência decisiva, particular e, por isso, própria. Este traçar dos limites não é, em primeiro lugar, uma delimitação perante…, mas um circunscrever, no sentido de uma apresentação da articulação interna da razão pura. Realçar os elementos constitutivos e articulação entre os elementos da razão pura e das regras que correspondem a esse uso. Como Kant uma vez acentuou, a crítica fornece um cálculo completo

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do poder total da razão pura, desenha e esboça, de acordo com uma expressão de Kant, o “contorno” da razão pura. A crítica torna-se, deste modo, a medição que traça os limites do domínio total da razão pura. Esta medição realiza-se, como Kant expressamente e repetidas vezes acentuou, não por meio de uma relação com “factos”, mas a partir de princípios; não pela fixação de propriedades encontradas algures, mas pela determinação da totalidade da essência da razão pura, a partir dos seus próprios princípios. Crítica é o projecto que avalia e traça os limites da razão pura.»

(Heidegger, Que é uma Coisa?, Ed.70, pp.122-123)

1.2.2 Crítica de Kant às teses de David Hume quanto à origem do conhecimento: Diferença entre origem e derivação

Texto nº38 «Não resta dúvida que todo o nosso conhecimento começa

pela experiência; efectivamente, que outra coisa poderia despertar e pôr em acção a nossa capacidade de conhecer senão os objectos que afectam os sentidos e que, por um lado, originam por si mesmos as representações e, por outro lado, põem em movimento a nossa capacidade intelectual e levam-na a compará-las, ligá-las ou separá-las, transformando assim a matéria bruta das impressões sensíveis em conhecimento que

se denomina experiência. Assim, na ordem do tempo, nenhum conhecimento precede em nós a experiência e é com esta que todo o conhecimento tem o seu início.

Se, porém, todo o conhecimento se inicia com a experiência, isso não prova que todo ele derive da experiência, pois bem poderia o nosso próprio conhecimento por experiência ser um composto do que recebemos através das impressões sensíveis e daquilo que a nossa própria capacidade de conhecer (apenas posta em acção por impressões sensíveis) produz por si mesma, acréscimo esse que não distinguimos dessa matéria-prima, enquanto a nossa atenção não despertar por um longo exercício que nos torne aptos a separá-los.»

(Kant, Crítica da Razão Pura, Ed. FCG., p.36)

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1.2.3. A Revolução Coperniciana

Texto nº39 «Até hoje admitia-se que o nosso conhecimento se devia

regular pelos objectos; porém, todas as tentativas para

descobrir a priori, mediante conceitos, algo que ampliasse o nosso conhecimento, malogravam-se com este pressuposto. Tentemos, pois, uma vez, experimentar se não se resolverão melhor as tarefas da metafísica, admitindo que os objectos se deveriam regular pelo nosso conhecimento, o que assim já concorda melhor com o que desejamos, a saber, a possibilidade

de um conhecimento a priori dos objectos, que estabeleça algo sobre eles antes de nos serem dados. Trata-se aqui de uma semelhança com a primeira ideia de Copérnico; não podendo prosseguir na explicação dos movimentos celestes enquanto admitia que toda a multidão de estrelas se movia em torno do espectador, tentou se não daria melhor resultado fazer girar o espectador e deixar os astros imóveis. Ora, na metafísica, pode-

se tentar o mesmo, no que diz respeito à intuição dos objectos. Se a intuição se tivesse de guiar pela natureza dos objectos,

não vejo como deles se poderia conhecer algo a priori; se, pelo contrário, o objecto (enquanto objecto dos sentidos) se guiar pela natureza da nossa faculdade de intuição, posso perfeitamente representar essa possibilidade.»

(Kant, Crítica da Razão Pura, Ed. FCG., pp.19-20)

1.2.4. Conhecimento a priori e a posteriori. Critério de distinção: Necessidade e Universalidade

Texto nº40 «Há pois, pelo menos uma questão que carece de um

estudo mais atento e que não se resolve á primeira vista; vem a ser esta: se haverá um conhecimento assim, independente da experiência e de todas as impressões dos sentidos. Denomina-

se a priori esse conhecimento e distingue-se do empírico, cuja origem é a posteriori, ou seja, na experiência.

Esta expressão não é, contudo, ainda suficientemente

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definida para designar de um modo conveniente todo o sentido da questão apresentada. Na verdade, costuma dizer-se de alguns conhecimentos, provenientes de fontes da experiência,

que deles somos capazes ou os possuímos a priori, porque os não derivamos imediatamente da experiência, mas de uma regra geral, que todavia fomos buscar à experiência. Assim, diz-se de alguém que minou os alicerces da sua casa, que podia

saber a priori que ela havia de ruir, isto é, que não deveria esperar, para saber pela experiência, o real desmoronamento.

Contudo, não poderia sabê-lo totalmente a priori, pois era necessário ter-lhe sido revelado anteriormente, pela experiência, que os corpos são pesados e caem quando lhes é retirado o sustentáculo.

Por essa razão, designaremos doravante por juízos a priori, não aqueles que não dependem desta ou daquela experiência, mas aqueles em que se verifica absoluta independência de toda e qualquer experiência. Dos

conhecimentos a priori, são puros aqueles que nada de empírico se mistura. Assim, por exemplo, a proposição segundo

a qual toda a mudança tem uma causa, é uma proposição a priori, mas não é pura, porque a mudança é um conceito que só pode extrair-se da experiência.»

(Kant, Crítica da Razão Pura, Ed. FCG., pp.36-37) Texto nº41

«Em primeiro lugar se encontrarmos uma proposição que apenas se possa pensar como necessária, estamos em presença de um juízo a priori; se, além disso, essa proposição não for derivada de nenhuma outra, que por seu turno tenha o valor

de uma proposição necessária, então é absolutamente a priori. Em segundo lugar, a experiência não concede nunca aos seus juízos uma universalidade verdadeira e rigorosa, apenas uma universalidade suposta e comparativa (por indução), de tal modo que, em verdade, antes se deveria dizer: tanto quanto até agora nos foi dado verificar, não se encontram excepções a esta ou aquela regra. Portanto, se um juízo é pensado com rigorosa

universalidade, quer dizer, de tal modo que nenhuma excepção se admite como possível, não é derivado da experiência, mas é

absolutamente válido a priori.» (Kant, Crítica da Razão Pura, Ed. FCG., p.38)

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Texto nº42 «É fácil mostrar que há realmente no conhecimento

humano juízos universais e necessários, no mais rigoroso

sentido, ou seja, juízos puros a priori. Se quisermos um exemplo, extraído das ciências, basta volver os olhos para todos os juízos da matemática; se quisermos um exemplo, tirado de um uso mais comum do entendimento, pode servir-nos a proposição, segundo a qual todas as mudanças têm de ter uma causa. Neste último, o conceito de uma causa contém, tão manifestamente, o conceito de uma ligação necessária com um efeito e uma rigorosa universalidade da regra, que esse conceito de causa totalmente se poderia, se quiséssemos derivá-lo, como Hume o fez, de uma associação frequente do facto actual com o facto precedente e de um hábito daí resultante (de uma necessidade, portanto, apenas subjectiva) de ligar entre si representações. Poder-se-ia também demonstrar, sem haver necessidade de recorrer a exemplos

semelhantes, a realidade de princípios puros a priori no nosso conhecimento, que estes princípios são imprescindíveis para a própria possibilidade da experiência, por conseguinte, expor a sua necessidade a priori.»

(Kant, Crítica da Razão Pura, Ed. FCG., pp.38-39)

1.2.5. Conhecimentos Analíticos, Sintéticos e Sintéticos a priori

Texto º43 «Em todos os juízos, nos quais se pensa a relação entre

um sujeito e um predicado (apenas considero os juízos afirmativos, porque é fácil depois a aplicação aos negativos), esta relação é possível de dois modos. Ou o predicado B pertence ao Sujeito A como algo que está contido (implicitamente) nesse conceito A, ou B está totalmente fora do conceito A, embora em ligação com ele. No primeiro caso,

chamo analítico ao juízo, no segundo, sintético. Portanto, os juízos (os afirmativos) são analíticos, quando a ligação do

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sujeito com o predicado é pensada por identidade; aqueles, porém, em que essa ligação é pensada sem identidade, deverão chamar-se juízos sintéticos. Os primeiros, poderiam igualmente

denominar-se juízos explicativos; os segundos, juízos extensivos; porque naqueles o predicado nada acrescenta ao conceito do sujeito e apenas pela análise o decompõe nos conceitos parciais, que já nele estavam pensados (embora confusamente); ao passo que os outros juízos, pelo contrário, acrescentam ao conceito do sujeito um predicado que nele não estava pensado e dele não podia ser extraído por qualquer decomposição. Quando digo, por exemplo, que todos os corpos são extensos, enuncio um juízo analítico, pois não preciso ultrapassar o conceito que ligo à palavra corpo para encontrar a extensão que lhe está unida; basta-me decompor o conceito, isto é, tomar consciência do diverso que sempre penso nele, para encontrar este predicado; é pois um juízo analítico. Em contrapartida, quando digo que todos os corpos são pesados, aqui o predicado é algo de completamente diferente do que penso no simples conceito de um corpo em geral. A adjunção de tal predicado produz, pois, um juízo sintético. […].

Nos juízos sintéticos a priori falta, porém de toda essa ajuda. Se ultrapassei o conceito A para conhecer outro conceito B, como ligado ao primeiro, em que me apoio, o que é que tornará a síntese possível, já que não tenho, neste caso, a vantagem de a procurar no campo da experiência? Tomemos a proposição: Tudo o que acontece tem uma causa. No conceito de algo que acontece concebo, é certo, uma existência precedida de um tempo que a antecede, etc. e daí se pode extrair conceitos analíticos. Mas o conceito de causa está totalmente fora desse conceito e mostra algo de distinto do que acontece; não está, pois, contido nesta última representação. Como posso chegar a dizer daquilo que acontece em geral algo completamente distinto e reconhecer que o conceito de causa, embora não contido no conceito do que acontece, todavia lhe pertence e até necessariamente? Qual é aqui a incógnita X em que se apoia o entendimento quando crê encontrar fora do conceito A um predicado B, que lhe é estranho, mas todavia considera ligado a esse conceito? Não pode ser a experiência, porque o princípio em questão acrescenta esta segunda

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representação à primeira, não só com generalidade maior do que a que a experiência pode conceder, mas também com a

expressão da necessidade, ou seja, totalmente a priori e por simples conceitos. Ora, é sobre estes princípios sintéticos, isto é, extensivos, que assenta toda a finalidade última do nosso

conhecimento especulativo a priori, pois os princípios analíticos sem dúvida que são importantes e necessários, mas apenas servem para alcançar aquela clareza de conceitos que é requerida para uma síntese segura e vasta que seja uma aquisição verdadeiramente nova.»

(Kant, Crítica da Razão Pura, Ed. FCG., pp.43-45)

1.2.6. O problema geral da Razão Pura: Como são

possíveis juízos sintéticos a priori? a) Tese de David Hume quanto à origem do princípio de causalidade

Texto nº44 «Todos os raciocínios relativos à questão de facto parecem

fundar-se na relação de Causa e Efeito. Só mediante esta relação podemos ir além do testemunho da nossa memória e dos nossos sentidos. Se perguntássemos a um homem porque acredita ele em alguma questão de facto, que está ausente, por exemplo, que o seu amigo está no campo ou na França, fornecer-nos-ia uma razão e esta razão seria algum outro facto, como uma carta dele recebida ou o conhecimento das suas antigas relações ou promessas. Um homem que encontrasse um relógio ou qualquer outra máquina numa ilha deserta concluiria que noutros tempos estiveram homens nessa ilha. Todos os nossos raciocínios acerca dos factos são uma conexão entre o facto presente e aquele que dele é inferido. Se nada houvesse a ligá-los, a inferência seria inteiramente precária. (…)

Se, por conseguinte, nos convencermos a nós mesmos quanto à natureza desta evidência, que nos assegura das questões de facto, devemos indagar como chegamos ao conhecimento da causa e do efeito.

Atrever-me-ei a afirmar, como uma proposição geral que não admite excepção, que o conhecimento desta relação não é,

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em circunstância alguma, obtido por raciocínios a priori, mas deriva inteiramente da experiência, ao descobrirmos que alguns objectos particulares se combinam constantemente uns com os outros. Apresente-se um objecto a um homem de razão e capacidades naturais muito fortes, se esse objecto for para ele inteiramente novo, não será capaz, mediante o mais rigoroso exame das suas qualidades sensíveis, de descobrir qualquer das suas causas e efeitos. (…)

Esta proposição, que as causas e os efeitos se podem descobrir, não pela razão, mas pela experiência, será prontamente admitida em relação a tais objectos, segundo nos lembramos de uma vez nos terem sido totalmente desconhecidos, visto que devemos ser conscientes da extrema incapacidade, a que então estávamos sujeitos, de predizer o que deles derivaria. Apresentai dois pedaços lisos de mármore a um homem que não tem nenhuma tintura de filosofia natural; nunca descobrirá que eles hão-de aderir um ao outro de tal maneira que exigirão grande força para os separar numa linha directa, enquanto oferecem tão pequena resistência a uma pressão lateral. Tais acontecimentos, visto que têm tão pouca analogia com o curso comum da natureza, também se reconhece sem demora que são conhecidos apenas pela experiência; nem homem algum imagina que a explosão da pólvora ou a atracção de uma pedra-íman poderia alguma vez ser descoberta por argumentos a priori. De modo semelhante, quando se supõe que um efeito depende de um maquinismo intrincado ou estrutura secreta das partes, não temos dificuldades em atribuir todo o nosso conhecimento dele à experiência. (…)

[…] (…) Inclinamo-nos a imaginar que poderíamos descobrir

os efeitos pela mera operação da nossa razão. Sem a experiência. Supomos que, se fôssemos subitamente trazidos a este mundo, poderíamos, a princípio, ter inferido que uma bola de bilhar comunicava o movimento a outra após impulso; e que não precisávamos de ter esperado pelo acontecimento para nos pronunciarmos com certeza a seu respeito. Tal é a influência do costume, o qual, onde ele é mais forte, não só protege a nossa ignorância natural, unicamente porque se encontra no

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mais alto grau. Mas para nos convencermos de que todas as leis da

natureza e todas as operações dos corpos sem excepção se conhecem apenas por experiência, talvez possa bastar as seguintes reflexões. Se um objecto qualquer nos fosse apresentado e se nos fosse pedido para nos pronunciarmos acerca do efeito que dele derivará, sem consultar a observação passada, de que maneira, vos suplico eu, deve a mente proceder nesta operação? Deve inventar ou imaginar algum evento que atribui ao objecto como seu efeito; e é evidente que esta invenção deve ser inteiramente arbitrária. A mente, possivelmente, nunca pode encontrar o efeito na suposta causa através do mais rigoroso escrutínio e exame, porque o efeito é totalmente diferente da causa e, por conseguinte, jamais pode nela ser descoberto. O movimento na segunda bola de bilhar é um movimento inteiramente distinto do movimento na primeira, nem coisa alguma existe na primeira para sugerir a mínima sombra da outra. Uma pedra ou um pedaço de metal atirado ao ar e deixado sem qualquer apoio, imediatamente cai;

mas, para considerarmos o assunto a priori, existe aí alguma coisa que descobrimos nesta situação que possa produzir a ideia de um movimento descendente, mais do que ascendente, ou outro movimento qualquer, na pedra ou no metal?

E visto que a primeira imaginação ou invenção de um efeito particular é arbitrária em todas as operações naturais, em que não consultamos a experiência, então, devemos considerar o presumível vínculo ou conexão entre a causa e o efeito que os liga a ambos e torna impossível que algum outro efeito possa derivar da operação dessa causa. Ao ver, por exemplo, uma bola de bilhar a mover-se em linha recta na direcção de outra e ao supor mesmo que o movimento na segunda bola me é sugerido acidentalmente como o resultado do seu contacto ou impulso, não posso eu conceber que uma centena de eventos diferentes poderia igualmente seguir-se dessa causa? Não poderiam ambas as bolas permanecer em repouso absoluto? Não poderia a primeira bola rebater em linha recta ou guinar a partir da segunda em qualquer sentido ou direcção? Todas estas suposições são consistentes e concebíveis. Porque havemos então de dar a preferência a uma,

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que não é mais consistente ou concebível do que as restantes?

Todos os nossos raciocínios a priori nunca serão capazes de nos mostrar qualquer fundamento para esta preferência.

Em suma, todo o efeito é, pois, um evento distinto da sua causa. Não podia, por conseguinte, descobrir-se na causa, e a

primeira invenção ou concepção dele a priori, deve ser inteiramente arbitrária. E mesmo depois de ter sido sugerida, a conjunção dele com a causa deve surgir igualmente arbitrária, visto que há sempre muitos outros efeitos que, para a razão, devem parecer tão plenamente consistentes. Em vão, pois, pretenderemos determinar qualquer evento singular ou inferir qualquer causa ou efeito, sem a ajuda da observação e da experiência.

Por esse motivo, podemos descobrir a razão porque é que nenhum filósofo, que seja sensato e modesto, alguma vez pretendeu assinalar a última causa de uma operação natural, ou mostrar distintamente a acção do poder que produz algum efeito singular no universo. Admite-se que o máximo esforço da razão humana é reduzir os princípios, geradores dos fenómenos naturais, a uma maior simplicidade, e resolver os muitos efeitos particulares numas quantas causas gerais, mediante raciocínios de analogia, experiência e observação. Mas, relativamente às causas destas causas gerais, em vão tentaremos a sua descoberta, nem alguma vez conseguiremos satisfazer-nos mediante qualquer explicação particular delas. As últimas fontes e princípios estão totalmente encerrados à humana curiosidade e investigação.

[…] Qual é então, a conclusão de todo este assunto? Uma e

simples, embora, há que dizer, muito afastada das comuns teorias da filosofia. Toda a crença acerca de uma questão de facto ou de uma existência real é derivada unicamente de algum objecto presente à memória ou aos sentidos de uma conjunção habitual entre ele e algum outro objecto. Ou, por outras palavras, tendo achado, em muitos casos, que quaisquer duas espécies de objectos – chama e calor, neve e frio – estiveram sempre combinados, se a chama ou a neve se apresentarem de novo aos sentidos, a mente é levada pelo

costume a esperar o calor ou o frio e a crer que uma tal

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qualidade existe e se descobrirá após uma abordagem mais directa. Esta crença é o resultado necessário de se colocar a mente em tais circunstâncias.»

(David Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano, Secção IV, Ed. 70, pp.32-35/50-51)

b)Tese de Kant à quanto à derivação dos princípios Texto nº45 «Ora, o verdadeiro problema da razão pura está contido na

seguinte pergunta: como são possíveis juízos sintéticos a priori? O facto da metafísica até hoje se ter mantido em estado

tão vacilante entre incertezas e contradições é simplesmente devido a não se ter pensado mais cedo este problema, nem

talvez mesmo na distinção entre juízos analíticos e juízos sintéticos. A salvação ou a ruína da metafísica assenta na solução deste problema ou na demonstração satisfatória de que não há realmente possibilidade de resolver o que ela pretende ver esclarecido. David Hume, o filósofo que, entre todos, mais se aproximou deste problema, embora estivesse longe de o determinar com suficiente rigor e de o conceber na sua universalidade, pois se deteve apenas na proposição sintética

da relação do efeito com as suas causas (principium causalitatis); julgou ter demonstrado que tal proposição a priori era totalmente impossível; segundo o seu raciocínio, tudo o que denominamos metafísica mais não seria do que simples ilusão de um pretenso conhecimento racional daquilo que, de facto, era extraído da experiência e adquirira pelo hábito a aparência da necessidade; afirmação esta que destrói toda a filosofia pura e que nunca lhe teria ocorrido se tivesse tido em mente o nosso problema em toda a generalidade, pois então seria levado a reconhecer que, pelo seu raciocínio, também não poderia haver matemática pura, visto esta conter, certamente, proposições

sintéticas a priori; o seu bom-senso, por certo, tê-lo-ia preservado dessa afirmação.

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Na solução do problema, está, simultaneamente, inclusa a possibilidade do uso puro da razão na fundamentação e desenvolvimento de todas as ciências que contêm um

conhecimento teórico a priori dos objectos, isto é, a resposta às seguintes perguntas:

Como é possível a matemática pura? Como é possível a física pura?»

(Kant, Crítica da Razão Pura, Ed. FCG., pp.49-50) 2. O que é conhecido no conhecimento: 2.1 Tese de Hume:

- A crença na uniformidade da natureza é racionalmente injustificada;

- A crença na realidade do mundo exterior é racionalmente injustificada

Texto nº46 «Parece evidente que os homens são levados, por um

instinto ou uma predisposição natural, a depositar fé nos sentidos; e que sem qualquer raciocínio ou mesmo quase antes do uso da razão, supomos sempre um universo externo, que não depende da nossa percepção, mas existiria, ainda que nós e todas as criaturas sensíveis estivessem ausentes ou fossem aniquiladas. Até mesmo o mundo animal é governado por uma opinião semelhante e preserva a crença dos objectos externos em todos os seus pensamentos, intenções e acções.

Parece também evidente que, ao seguirem este cego e poderoso instinto da natureza, os homens supõem sempre que as próprias imagens, apresentadas pelos sentidos, são os objectos externos e nunca alimentam qualquer suspeita de que umas nada são excepto representações dos outros. Pensa-se que esta mesa aqui, que vemos ser branca e cuja dureza sentimos, existe independentemente da nossa percepção e é algo de externo à nossa mente, que a percebe. A nossa presença não lhe confere o ser; a nossa ausência não a aniquila. Ela salvaguarda a sua existência uniforme e inteira, independentemente da situação dos seres inteligentes, que a percebem ou contemplam.

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Esta opinião universal e primitiva de todos os homens, porém, cedo é destruída pela filosofia, mais trivial, a qual nos ensina que nada pode estar presente à mente a não ser uma imagem ou percepção, e que os sentidos são apenas as estradas por onde as imagens são transportadas, sem conseguirem suscitar uma comunicação imediata entre a mente e o objecto. A mesa, que vemos, parece diminuir, à medida que dela mais nos afastamos, mas a mesa real, que existe independentemente de nós, não sofre nenhuma alteração; não passava, pois, da sua imagem, que estava presente à mente. Eis os óbvios dictames da razão; e nenhum homem que reflicta, alguma vez duvidou que as existências,

por nós consideradas ao dizermos esta casa e aquela árvore, são unicamente percepções na mente e cópias ou representações fugidias de outras existências, que permanecem uniformes e independentes.

Até agora, pois, somos forçados pelo raciocínio a contradizer ou a apartar-nos dos instintos primitivos da natureza a adoptar um novo sistema em relação à evidência dos sentidos. Mas a filosofia encontra-se aqui extremamente embaraçada, ao ter de justificar este novo sistema e neutralizar as cavilhações e as objecções dos cépticos. Não mais pode defender o instinto infalível e irresistível da natureza, porque isso nos levou a um sistema completamente diferente, que se reconhece ser falível e até erróneo. E justificar o pretenso sistema filosófico por meio de uma cadeia de argumentos claros e convincentes, ou mesmo mediante uma aparência de argumentação, excede o poder de toda a capacidade humana.

Mediante que argumento se pode demonstrar que as percepções da mente devem ser causadas por objectos externos, totalmente diferentes delas embora com elas se parecendo (se isso é possível) e que não poderiam surgir ou da energia da própria mente, ou da sugestão de algum espírito invisível e desconhecido, ou de uma outra causa ainda mais incógnita para nós? Sabe-se que, de facto, muitas das percepções não brotam de algo esterno, como nos sonhos, na loucura noutras doenças. E nada pode ser mais inexplicável do que a maneira como o corpo tem de agir sobre a mente, a fim de transmitir uma imagem de si mesmo a uma substância de

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natureza supostamente tão diversa e mesmo contrária. É uma questão de facto se as percepções dos sentidos são

produzidas por objectos externos, a elas semelhantes: como irá decidir-se tal questão? Pela experiência, certamente, como todas as outras questões de natureza similar. Mas, aqui, a experiência é e deve ser inteiramente muda. A mente nunca tem algo presente a si a não ser as percepções e, possivelmente, não pode obter qualquer experiência da sua conexão com os objectos. Por conseguinte, a suposição de uma tal conexão é desprovida de todo o fundamento no raciocínio.»

(David Hume, Investigação sobre o Entendimento Humano, Secção XII, Ed.70, pp.145-146)

2.2 Tese de Kant: Coisa em Si e Fenómeno. Forma e Matéria. Puro e Empírico

Texto nº47 «(…) toda a nossa intuição nada mais é do que

representação do fenómeno; que as coisas que intuímos não são em si mesmas constituídas como nos aparecem, e que, se fizermos abstracção do nosso sujeito, ou mesmo apenas da constituição subjectiva dos sentidos em geral, toda a maneira de ser, todas as relações dos objectos no espaço e no tempo e ainda o espaço e o tempo desapareceriam; pois, como fenómeno, não podem existir em si, mas unicamente em nós. É-nos desconhecida a natureza dos objectos em si mesma e independentemente de toda esta receptividade da nossa sensibilidade. Conhecemos somente o nosso modo de os perceber, modo que nos é peculiar, mas pode muito bem não ser necessariamente o de todos os seres, embora seja o de todos os homens. É deste modo apenas que nos temos de ocupar. O espaço e o tempo são as formas puras desse modo de perceber; a sensação em geral a sua matéria. Aquelas

formas, só podemos conhecê-las a priori, isto é, antes de qualquer percepção real e, por isso, se denominam intuições puras; a sensação, pelo contrário, é aquilo que, no nosso

conhecimento, faz com que este se chame conhecimento a

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posteriori, ou seja, intuição empírica. As formas referidas são absoluta e necessariamente inerentes à nossa sensibilidade, seja qual for a espécie das nossas sensações, que podem ser muito diversas. Mesmo que pudéssemos elevar esta nossa intuição ao mais alto grau de clareza, nem por isso nos aproximaríamos mais da natureza dos objectos em si. Porque, de qualquer modo, só conheceríamos perfeitamente o nosso modo de intuição, ou seja, a nossa sensibilidade, e esta sempre submetida às condições do espaço e do tempo, originariamente inerentes ao sujeito; nem o mais claro conhecimento dos fenómenos, único que nos é dado, nos proporcionaria o conhecimento do que os objectos podem ser em si mesmos.»

(Kant, Crítica da Razão Pura, Ed. FCG., pp.78-79)

3. O papel da Sensibilidade e do Entendimento na constituição do conhecimento. Perspectiva Empirista versus Idealista Transcendental

Texto nº48 «Todo o homem tem consciência de que pensa e que o seu

espírito se aplica, quando pensa, a ideias que tem em si; está, pois, fora de dúvida que os homens tenham no espírito ideias como as de branco, dureza, suavidade, doce, pensamento, homem, elefante, embriaguês e outras ideias; devemo-nos primeiramente perguntar como é que o espírito as obtém.

Suponhamos, pois, que o espírito é, como afirmámos, uma folha branca de papel, virgem de qualquer sinal, sem nenhuma ideia: como é que vem depois a recebê-las? De onde lhe vem esse vasto equipamento que a imaginação humana, sempre a trabalhar e

sem limites, nela pintou com uma variedade quase infinita? Respondo com uma palavra: a experiência. É nela que se funda todo

o nosso conhecimento, é dela que em definitivo ele deriva. A nossa observação aplicada, quer aos objectos sensíveis externos, quer às operações internas, por nós percepcionadas e reflectidas sobre nós, eis o que fornece ao nosso entendimento todos os materiais do pensamento. Eis as duas fontes do conhecimento de onde brota todas as ideias que temos, ou que naturalmente podemos ter.»

(John Locke, Ensaio sobre o Entendimento Humano) Texto nº49

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«O nosso conhecimento provém de duas fontes fundamentais do espírito, das quais a primeira consiste em receber as representações (receptividade das impressões) e a segunda é a capacidade de conhecer um objecto mediante estas representações (espontaneidade dos conceitos); pela

primeira é-nos dado um objecto; pela segunda, é pensado em relação com aquela representação (como simples determinação do espírito). Intuição e conceitos constituem, pois, os elementos de todo o nosso conhecimento, de tal modo que nem conceitos sem intuição que de qualquer modo lhes corresponda, nem uma intuição sem conceitos podem dar um conhecimento (…).

Se chamarmos sensibilidade à receptividade do nosso espírito em receber representações na medida em que de algum

modo é afectado, o entendimento é, em contrapartida, a capacidade de produzir representações ou a espontaneidade do conhecimento. Pelas condições da nossa natureza, a intuição

nunca pode ser senão sensível, isto é, contém apenas a maneira pela qual somos afectados pelos objectos, ao passo

que o entendimento é a capacidade de pensar o objecto da intuição sensível. Nenhuma destas qualidades tem a primazia sobre a outra. Sem a sensibilidade, nenhum objecto seria dado; sem o entendimento, nenhum seria pensado. Pensamentos sem conteúdo são vazios, intuições sem conceitos são cegas. Pelo que é tão necessário tornar sensíveis os conceitos (isto é, acrescentar-lhes o objecto da intuição) como tornar compreensíveis as intuições (isto é, submetê-las a conceitos). Estas duas capacidades ou faculdades não podem permutar as suas funções. O entendimento nada pode intuir e os sentidos nada podem pensar. Só pela sua reunião se obtém conhecimento.»

(Kant, Crítica da Razão Pura, Ed. FCG., pp.88-89)

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5ªSecção: A essência da modernidade: O Homem como Subjectum e o Mundo como Objectum (Imagem)

1. O poder oculto que rege a modernidade: O Principium Reddendae Rationis Sufficientis

Texto nº50

«(…) o principium rationis é o principium reddendae rationis. O redendum, a reivindicação à entrega do fundamento é aquilo que no princípio do fundamento adquire poder no

princípio magno. O reddendum, a reivindicação à entrega do fundamento, expressa-se agora imprescindível e incessantemente através dos tempos modernos, pairando sobre

nós, contemporâneos. O reddendum, a reivindicação à entrega do fundamento, deslocou-se agora para se pôr entre o homem pensante e o seu mundo, para se apossar do representar humano de uma nova maneira.

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Será que nós, que nos encontramos agora aqui, já sentimos aquilo que faz o poderoso princípio do fundamento, ou já o experimentámos expressamente ou já ponderámos sobre ele de uma maneira inteiramente satisfatória? Se não nos quisermos iludir, teremos todos de admitir que: não. Todos, digo eu, também aqueles que uma ou outra vez se formularam pensamentos sobre a “essência do fundamento”.

Em que ponto nos encontramos? Nós empreendemos o estudo das Ciências com o maior fervor. Nós aprendemos a conhecer as suas regiões até aos pontos mais remotos e aos ângulos mais ínfimos. Nós exercitamo-nos nas metodologias das Ciências. Nós aprendemos até sobre as várias disciplinas individuais e prestamos atenção à totalidade das Ciências. Nós escutamos com gosto que os reinos da Natureza e da História não estão separados entre si de um modo tão longínquo e rígido conforme isso poderia parecer pela institucionalização de faculdades diversas. Por toda a parte se encontra em movimento, no estudo das Ciências, um espírito dinâmico e alegre. Mas quando nós, por um momento, meditamos sobre a questão anteriormente levantada, teremos que afirmar que nunca nem em qualquer lugar, com todos os esforços em torno das Ciências, nos encontrámos com o princípio do fundamento. E contudo – sem este magno princípio não existiria qualquer ciência moderna, e sem uma tal ciência não existiria a Universidade actual. Estas fundamentam-se sobre o princípio do fundamento.»

(Heidegger, O Princípio do Fundamento, Ed. I. Piaget, pp.47-48)

2. O Homem como Sujeito e o Mundo como Imagem

Texto nº51 «Pode-se ver a essência da modernidade em o homem se

libertar dos vínculos medievais, na medida em que se liberta para si mesmo. Mas esta caracterização correcta não deixa de ser superficial. Ela tem como consequências aqueles erros que

impedem captar o fundamento essencial da modernidade e, só a partir daí, medir também a essência do seu alcance. (…)

O decisivo não é que o homem liberta-se para si mesmo

dos vínculos que tinha até agora, mas que a essência do

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homem em geral se transforma, na medida em que o homem se torna sujeito. Temos de compreender, na verdade, esta palavra

subjectum como a tradução do grego . A palavra menciona o subjacente que, enquanto fundamento, reúne tudo sobre si. Este significado metafísico do conceito de sujeito não tem, à partida, nenhuma referência especial ao homem, nem de modo nenhum ao eu.

Mas se o homem se torna no primeiro e autêntico

subjectum então isto quer dizer que o homem se torna naquele ente no qual todo o ente, no modo do seu ser e da sua verdade, se funda. O homem torna-se centro de referência do ente enquanto tal. Mas isso só é possível quando se transforma a concepção do ente na totalidade. Em que se mostra esta transformação? Qual é, de acordo com ela, a essência da modernidade? Quando meditamos sobre a modernidade, perguntamo-nos pela imagem do mundo moderna. Caracterizamo-la através de uma demarcação contra a imagem do mundo medieval e antiga. Mas porque perguntamos, na interpretação de uma era histórica, pela imagem do mundo? Terá cada era da história a sua imagem do mundo, e isso no sentido de que, em cada caso, se esforçou pela sua imagem do mundo? Ou perguntar pela imagem do mundo é, já e apenas o modo moderno de representar?

[…] (…) Imagem do mundo, compreendida essencialmente,

não quer, por isso, dizer uma imagem que se faz do mundo,

mas o mundo concebido como imagem. O ente na totalidade é agora tomado de tal modo que apenas só é algo que é, na

medida em que é posto pelo homem representador-elaborador. Onde se chega à imagem do mundo, cumpre-se uma decisão essencial sobre o ente na totalidade. O ser do ente é procurado e encontrado no estar-representado do ente.

Contudo, onde quer que o ente não seja interpretado neste sentido, o mundo também não poderá surgir na imagem, não poderá haver nenhuma imagem do mundo. Que o ente se torne algo que é no estar-representado, torna a era na qual lá se chega numa nova era em relação à precedente. As expressões “imagem do mundo da modernidade” e “imagem do mundo

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moderna” dizem duas vezes o mesmo e insinuam algo que nunca antes podia haver, isto é, uma imagem do mundo medieval e antiga. O que distingue a essência da modernidade não é que se transite de uma precedente imagem do mundo medieval para uma imagem do mundo moderna, mas sim que o mundo se torne, em geral, imagem. (…)

[…] Mas o que é novo neste processo não está de modo

nenhum em que agora a posição do homem no meio do ente seja apenas diferente da do homem medieval e antigo. O decisivo é que o homem ocupa esta posição expressamente como a posição constituída por ele mesmo, mantém-na voluntariamente como a posição ocupada por ele e assegura-a como o solo de um possível desenrolar-se da humanidade. Só agora pode haver algo como uma posição do homem. O homem põe, com base em si mesmo, o modo como ele se tem de pôr em relação ao ente, enquanto algo objectivo. Começa aquele modo de ser homem que ocupa o âmbito das faculdades humanas como espaço de medida e de consumação da dominação do ente na totalidade. A era que se determina a partir deste acontecimento, não é nova apenas numa consideração retrospectiva relativamente ao passado, mas é ela que se coloca a si mesma propriamente como nova. Ser novo faz parte do mundo que se torna imagem.

Se, deste modo o carácter de imagem do mundo é esclarecido como o re-presentar do ente, então, para captar completamente a essência moderna do estar-representar, temos de extrair, a partir da palavra e do conceito deteriorados “representar”, a força da denominação originária: o pôr diante de si e para si. É através disto que o ente vem parar em objecto, e só assim recebe o selo do ser. Que o mundo se torne

imagem e que o homem, dentro do ente, se torne subjectum, é um e mesmo processo.

[...] O processo fundamental da modernidade é a conquista do

mundo como imagem. A palavra imagem significa agora o delineamento elaborador que representa. Neste, o homem combate pela posição na qual pode ser aquele ente que dá a medida e estende a bitola a todo o ente. É porque esta posição

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se assegura, articula e se enuncia como mundividência que a relação moderna ao ente, no seu desdobramento decisivo, se torna uma confrontação de mundividência, e isso não de quaisquer mundividência, mas só daquelas que já ocuparam as posições fundamentais mais extremas do homem como o estar-aí decidido último. Para este combate das mundividência, e de acordo com o sentido deste combate, o homem põe em jogo a violência ilimitada do cálculo, da planificação e do cultivo selectivo de todas as coisas. A ciência enquanto investigação é uma forma indispensável deste instalar-se no mundo, uma das vias nas quais a modernidade corre para o preenchimento da sua essência com uma velocidade desconhecida dos participantes. É só com este combate das mundividência que a modernidade entra na parte decisiva, e provavelmente mais duradoura, da sua história. […]

O homem torna-se subjectum. Daí que ele possa determinar e preencher a essência da subjectividade, sempre de acordo com o modo como ele se concebe e quer a si mesmo. O homem enquanto ser racional do tempo do iluminismo não é menos sujeito que o homem que se concebe como nação, que se quer como povo, que se cultiva selectivamente como raça e, finalmente, que se autoriza como senhor do globo terrestre. Em todas estas posições fundamentais da subjectividade é também possível um tipo diferente de egoidade e de egoísmo, porque o homem permanece determinado constantemente como eu e tu, como nós e vós. O egoísmo subjectivo, no qual, na maioria das vezes sem o saber, o eu é determinado de antemão como sujeito, pode ser derrubado através do alinhamento do egóico ao nós. Através disso, a subjectividade só ganha poder. No imperialismo planetário do homem organizado tecnicamente, o subjectivismo do homem atinge o seu mais elevado cume, a partir do qual ele se estabelecerá na planície da homogeneidade organizada, e aí se instalará. Esta homogeneidade torna-se o mais seguro instrumento do domínio completo, isto é, do domínio técnico sobre a terra.»

(Heidegger, O Tempo da Imagem do Mundo, Ed. FCG., pp.110-118/136)

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3. O Ser em retirada: o “esquecimento do Ser” e a

predominância da interpretação objectual-instrumental (técnica) do Ser pela Vontade de Querer

Texto nº52 «Antes que possa ocorrer propriamente na sua verdade

inaugural, o ser deve romper-se como vontade, o mundo deve conhecer a derrocada, a terra, a desolação e o homem deve ser forçado ao mero trabalho. Somente após este crepúsculo há de acontecer propriamente e, num espaço longo de tempo, a demora repentina do começo. No crepúsculo, tudo, isto é, o ente na totalidade da verdade da metafísica, encaminha-se para o fim.

O crepúsculo já aconteceu propriamente. As consequências deste acontecimento apropriador são os factos da história mundial deste século. São apenas o transcurso do que acabou. A história e a técnica ordenam o seu curso no sentido do último estágio da metafísica. Esse ordenamento é a derradeira instalação do que acabou na aparência de uma realidade cuja operatividade opera de forma irresistível, pois

pretende prescindir de qualquer descobrimento do vigor de ser e isso de maneira tão decidida que já não carece pressentir nada de um tal descobrimento.

A verdade do ser ainda encoberta resiste à humanidade da metafísica. O animal trabalhador abandona-se à vertigem dos seus poderes e feitos a fim de se descarnar e aniquilar-se no nada aniquilador.»

(Heidegger, Superação da Metafísica, Ed. Vozes, p.63)

Texto nº53 «A era da metafísica acabada encontra-se no seu início. Apenas para assegurar a si mesma, de modo contínuo e

incondicional, a vontade de querer obriga para si mesma o cálculo e a institucionalização de tudo como formas fundamentais de manifestação. Pode-se chamar, numa única palavra, de “técnica” a forma fundamental de manifestação em que a vontade de querer se

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institucionaliza e calcula no mundo não-histórico da metafísica acabada. Este nome engloba todos os sectores dos entes que equipam a totalidade dos entes: natureza objectivada, cultura activada, política produzida, superestrutura dos ideais. A “técnica” não significa aqui os sectores isolados da fabricação e aparelhamento de máquinas. Estas possuem, sem dúvida, uma posição privilegiada, a se determinar mais de perto, fundada na primazia do material que se assume como o pretenso elementar e o objecto em sentido eminente.

Compreende-se aqui o nome “técnica “ de um modo tão essencial que, no seu significado, chega a coincidir com a expressão – acabamento da metafísica. Este nome guarda

lembrança da que constitui uma condição fundamental do desdobramento essencial da metafísica. Este nome também possibilita pensar o carácter planetário do acabamento da metafísica e do seu domínio, sem que se necessite considerar as derivações historicamente demonstráveis nos povos e continentes.»

(Heidegger, Superação da Metafísica, Ed. Vozes, pp.69-70)

Texto nº54

«O método que destina o ser na objectualidade dos entes, mas que se retira na sua essência como ser, define uma nova época da retirada. Esta época caracteriza a essência mais interior da Era, que nós chamamos Moderna.

Assim deveríamos então dizer: com o final do período de incubação do princípio do fundamento através do pensamento leibniziano, interrompe-se decerto a incubação do, daqui para o futuro conhecido princípio do fundamento, mas de modo algum o princípio do fundamento como um princípio do ser. Pelo contrário, a incubação do princípio, pelo facto de o princípio do

fundamento como princípio fundamental, como principium reddendae rationis sufficientis atingir o domínio, devolve um sono ainda mais profundo por assim dizer e de uma retirada ainda mais decidida do ser enquanto tal. Hoje parece acabar-se a retirada do Ser. Hoje dizemos nós, e queremos significar a despontante Era Atómica, através da qual provavelmente se

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acaba a Modernidade, na medida em que a característica fundamental inicial desta época se desenvolve no último e no ilimitado [consiste no afluxo e disponibilização de uma fonte energética inesgotável, que garante o essencial visado pela modernidade: a garantia última, definitiva de auto-asseguramento do representar elaborador]»

(Heidegger, O Princípio do Fundamento, Ed. I. Piaget, p.87) 4. Uma outra possibilidade de experimentar o

acontecimento-apropriador [Ereignis] no horizonte da filosofia transcendental de Kant: Finitude do ponto de vista humano e

abertura ao Ser. O Homem como o Ser-o-aí [Dasein] e Clareira do Ser [Lichtung]

Texto nº55 «A interrogação kantiana acerca da coisa pergunta pelo

intuir e pelo pensar, pela experiência e pelos seus princípios, quer dizer, pergunta pelo homem. A questão “Que é uma Coisa?” é a questão “Que é o Homem?” Isto não significa que as coisas se reduzam a um resultado da actividade humana, mas, pelo contrário, quer dizer que o homem deve conceber-se como aquele que, desde sempre ultrapassa as coisas, mas de tal modo que este ultrapassar somente é possível na medida em

que as coisas vêm ao encontro e, deste modo, permanecem justamente elas próprias, na medida em que nos remetem para aquém de nós mesmos e da nossa superfície. Na questão

kantiana acerca da coisa, abre-se uma dimensão que se encontra entre a coisa e o homem e cujo domínio se estende para além das coisas e aquém do homem.»

(Heidegger, Que é uma Coisa?, Ed.70, p.231)

Parte I: O Conhecimento

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1ªSecção: Descrição e interpretação da actividade cognoscitiva

[corresponde ao ponto 1.1 do programa: A estrutura do acto de conhecer]

1. Que é Conhecer? ..................................................................... 2 1.1 Sentido Comum ..................................................................... 2 1.2 Vários tipos de Conhecimento: Saber por Contacto; Saber Fazer e Saber Proposicional. A essência Filosófica da Questão do Conhecimento ........................................................................ 3 1.3 O Conhecimento como Representação ................................... 4 1.4 Realismo Ingénuo .................................................................. 5 1.5 Redução Fenomenológica ...................................................... 6 1.6 Conhecimento e Saber ........................................................... 7

2ªSecção: Posicionamento do questionar ontológico pela coisalidade da

coisa (O Ser da Coisa) 1. Introdução ............................................................................. 10 2. A questão pela coisalidade da coisa ....................................... 12 3. Determinação vulgar do ser da coisa ..................................... 13 3.1 A coisa como suporte de propriedades que nela permanecem e mudam .............................................................. 13 3.2 A noção de verdade no âmbito da determinação vulgar do

Ser da coisa: A verdade como correcção da proposição (Veritas est adaequatio intellectus et rei) .................................................... 13 3.3 Delimitação do Ser da coisa no âmbito da doutrina das categorias como modos de enunciabilidade ............................... 14 4. Questionando a determinação do Ser da coisa como suporte de propriedades e a Verdade como correcção da proposição ...... 15

3ª Secção: Determinação da coisalidade da coisa no âmbito da filosofia

moderna. Fundamentação do Ser das coisas nas faculdades do sujeito que conhece

1. Categorias, - Ratio – Razão ........................................... 16 2. Característica essencial da Moderna Ciência da Natureza: O Matemático ............................................................................... 16

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3. O traço essencial da filosofia moderna: o matemático. Cogito ergo sum = o Eu (subjectividade) que se assegura antecipadamente de si mesmo e daquilo que é conhecível a partir de si mesmo ................................................................................... 18 3.1 O Eu como determinação absolutamente indubitável. A Dúvida Metódica contra os Cépticos .......................................... 19 3.2 Critério para distinguir o que é certo do que não é .............. 20 3.3 Hesitações nos primeiros passos para a subjectividade. A busca do fundamento “no outro”: Deus. O argumento ontológico .................................................................................. 20

4. Subjectum e Objectum: Como a transformação do sentido destas palavras revela a modificação da relação com o Ser ........ 22

A Razão Pura como princípio de determinação da coisalidade da coisa (O Ser da coisa) ............................................................ 22

4ªSecção: Determinação dos limites e extensão da razão pura enquanto

domínio a partir do qual a coisas são coisas: o projecto de uma

Crítica da Razão Pura em Kant [Corresponde ao ponto do programa IV.1.2- Análise

comparativa de duas teorias explicativas do conhecimento] 1. A Origem do Conhecimento: Conhecimento Puro e Conhecimento Empírico ............................................................ 24 1.1 O Empirismo de D. Hume: ................................................... 24 1.1.1 Que todo o conhecimento factual tem a sua origem nos sentidos .................................................................................... 24 1.1.2 Questões de Facto e Relações de Ideias ............................ 25 1.2 O Idealismo Transcendental de Kant ................................... 26 1.2.1 O significado de “Crítica” em Kant .................................... 26 1.2.2 Crítica de Kant às teses de David Hume quanto à origem do conhecimento: Diferença entre origem e derivação ................ 26 1.2.3. A Revolução Coperniciana ............................................... 27

1.2.4. Conhecimento a priori e a posteriori. Critério de distinção: Necessidade e Universalidade .................................... 27

1.2.5. Conhecimentos Analíticos, Sintéticos e Sintéticos a priori 28 1.2.6. O problema geral da Razão Pura: Como são possíveis

juízos sintéticos a priori? ........................................................... 29 a) Tese de David Hume quanto à origem do princípio de

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causalidade ............................................................................... 29 b) Tese de Kant à quanto à derivação dos princípios .................. 32 2. O que é conhecido no conhecimento: ..................................... 32 2.1 Tese de Hume: a crença na uniformidade da natureza é racionalmente injustificada; a crença na realidade do mundo exterior é racionalmente injustificada ........................................ 32 2.2 Tese de Kant: Coisa em Si e Fenómeno. Forma e Matéria. Puro e Empírico ......................................................................... 34 3. O papel da Sensibilidade e do Entendimento na constituição do conhecimento. Perspectiva Empirista versus Idealista Transcendental ......................................................................... 34

5ªSecção:

A essência da modernidade: O Homem como Subjectum e o Mundo como Objectum (Imagem)

1. O poder oculto que rege a modernidade: O Principium Reddendae Rationis Sufficientis ................................................. 36 2. O Homem como Sujeito e o Mundo como Imagem .................. 37 3. O Ser em retirada: o “esquecimento do Ser” e a predominância da interpretação objectual-instrumental (técnica) do Ser pela Vontade de Querer .................................... 39 4. Uma outra possibilidade de experimentar o acontecimento-

apropriador [Ereignis] no horizonte da filosofia transcendental de Kant: Finitude do ponto de vista humano e abertura ao Ser.

O Homem como o Ser-o-aí [Dasein] e Clareira do Ser [Lichtung].. 40 Índice ............................................................................................ 42