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Fundação Friedrich Ebert Stiftung
Versão Preliminar
Austeridade e impactos no Brasil:
Ajuste fiscal, teto de gastos e o financiamento da educação pública
Pedro Rossi1
Ana Luiza Matos de Oliveira2
Flávio Arantes3
Apresentação
Nos últimos anos, o debate público brasileiro tem sido dominado pelo discurso e pela
prática da austeridade econômica, que pode ser definida como uma política de ajuste da
economia fundada na redução dos gastos públicos e do papel do Estado em suas funções de
indutor do crescimento econômico e promotor do bem estar social. Em contextos de crise
econômica e aumento da dívida pública, a austeridade é vendida como remédio necessário e
fundamenta a defesa de reformas estruturais para reformular a atuação dos Estados
Nacionais. Apesar do impacto transformador, a austeridade se sustenta em argumentos
frágeis e estudos controversos. Ao contrário do suposto, as experiências históricas têm
mostrado que a austeridade é contraproducente e produz exatamente o contrário do que busca
remediar: uma queda do crescimento econômico e um aumento da dívida pública. Ademais, a
austeridade é seletiva, pois prejudica principalmente os mais vulneráveis.
No Brasil, as políticas de austeridade assumiram protagonismo a partir de 2015 como
um plano de ajuste de curto prazo da economia brasileira após um processo de desaceleração
econômica e deterioração das contas públicas. Mas a partir de 2016, com a Emenda
Constitucional 95, os princípios da austeridade passam a nortear o setor público de forma
estrutural. Em vez de um ajuste temporário das contas públicas, a nova regra fiscal impõe
uma redução do tamanho do Estado para os próximos vinte anos. Trata-se de outro projeto de
país, diferente daquele almejado pela Constituição de 1988.
1 Professor do Instituto de Economia da Unicamp, Diretor da Sociedade de Economia Política e membro da
equipe editorial do Brasil Debate (www.brasildebate.com) 2 Doutoranda do Instituto de Economia da Unicamp e membro da equipe editorial do Brasil Debate
(www.brasildebate.com) 3 Doutorando do Instituto de Economia da Unicamp.
2
Nesse contexto, esse artigo busca avaliar os primeiros impactos da austeridade no
Brasil, assim como projetar seus efeitos futuros sobre o gasto público federal e, em particular,
o gasto com educação pública. Para isso, a seção 1 traz uma análise crítica da retórica que
sustenta a austeridade. Já a seção 2 avalia a literatura sobre o tema e as evidências empíricas
decorrentes das experiências históricas. Os impactos da austeridade no Brasil são analisados
na seção 3, que trata brevemente tanto dos efeitos do ajuste de 2015 quanto da Emenda
Constitucional 95 que, como se argumenta, institui a austeridade como um novo pacto social
no Brasil. Por fim, a seção 4, discute como a austeridade impacta na educação.
1. Desconstruindo a retórica da austeridade
A defesa da austeridade sustenta que, diante de uma desaceleração econômica e de um
aumento da dívida pública, o governo deve realizar um forte ajuste fiscal, preferencialmente
com corte de gastos públicos em detrimento de aumento de impostos. Esse ajuste teria efeitos
positivos sobre o crescimento econômico ao melhorar a confiança dos agentes na economia.
Ou seja, ao mostrar “responsabilidade” em relação às contas públicas, o governo ganha
credibilidade junto aos agentes econômicos e, diante da melhora nas expectativas, a economia
passa por uma recuperação decorrente do aumento do investimento dos empresários, do
consumo das famílias e da atração de capitais externos. A austeridade teria, portanto, a
capacidade de reequilibrar a economia, reduzir a dívida pública e retomar o crescimento
econômico. No plano da teoria econômica, esse efeito decorre do pressuposto de que o setor
público e o setor privado disputam recursos, ou poupança, e que uma redução do gasto
público abre espaço para o investimento privado e, para alguns, dada a maior eficiência do
gasto privado, a contração do gasto público gera um aumento ainda maior do gasto privado4.
Por vezes esse discurso é acompanhado da metáfora que compara o orçamento
público com o orçamento doméstico na qual o governo, assim como uma família, não deve
gastar mais do que ganha. Logo, diante de uma crise e de um aumento das dívidas, deve-se
passar por sacrifícios e por um esforço de poupança. Nesse sentido, há um argumento moral
de que os anos de excessos devem ser remediados com abstinência e sacrifícios e a
austeridade é o remédio. No caso brasileiro é comum a análise de que os excessos (de gastos
sociais, de aumento de salário mínimo, de intervencionismo estatal, etc.) nos governos do
4 O que ficou conhecido como a tese da contração fiscal expansionista.
3
Partido dos Trabalhadores estão cobrando os sacrifícios necessários5. Como na fábula da
cigarra e da formiga, os excessos serão punidos e os sacrifícios, recompensados.
Esse discurso tem inúmeras fragilidades. A primeira delas está na mediação entre o
ajuste fiscal e o crescimento econômico. Argumenta-se que o ajuste fiscal melhora a
confiança nos agentes que, por sua vez, passam a investir e consumir. Contudo, um
empresário não investe porque o governo fez ajuste fiscal, e sim quando há demanda por seus
produtos e perspectivas de lucro. E, nesse ponto, a contração do gasto público não aumenta a
demanda no sistema, ao contrário, essa contração, por definição, reduz a demanda no sistema.
Em uma grave crise econômica, quando todos os elementos da demanda privada (o consumo
das famílias, o investimento e a demanda externa) estão desacelerando, se o governo contrair
a demanda pública, a crise se agrava.
Os efeitos da austeridade podem ser entendidos de forma intuitiva. O gasto de alguém
é a renda de outra pessoa: quando alguém gasta, alguém recebe. Quando o governo contrai o
seu gasto, são milhões de pessoas que passam a receber menos, o que tem impactos negativos
na renda privada. É uma verdade contábil dizer que o gasto público é receita do setor privado,
assim como a dívida pública é ativo privado e o déficit público é superávit do setor privado.
Quando o governo corta gastos com um investimento destinado a uma obra pública, por
exemplo, o efeito é direto sobre a renda e o emprego, uma vez que a empresa que seria
contratada via licitação deixa de contratar empregados e comprar materiais. Da mesma forma,
o corte de gastos em transferências sociais reduz a demanda dos que recebem os benefícios e
desacelera o circuito da renda. Nesse sentido, em uma economia em crise, a austeridade gera
um ciclo vicioso onde o corte de gastos reduz o crescimento, o que deteriora a arrecadação e
piora o resultado fiscal, o que leva a novos cortes de gastos. Ou seja, em um contexto de crise
econômica, a austeridade é contraproducente e tende a provocar queda no crescimento e
aumento da dívida pública, resultado contrário ao que se propõe.
Isso quer dizer que o governo nunca deve cortar gastos? Não. Quando a economia
está aquecida, o corte do investimento na obra pública, por exemplo, pode não ter um efeito
negativo na economia, uma vez que a empresa que seria contratada pelo governo
provavelmente será contratada por outra pessoa ou empresa. Da mesma forma, a redução das
transferências sociais pode ter impactos distributivos, mas não necessariamente
5 Por exemplo, o presidente do banco central, Ilan Goldfajn, afirmou em entrevista que “a atual recessão foi
provocada por anos de excessos” http://www.josenildomelo.com.br/news/desta-vez-e-diferente-cristiano-
romero/.
4
contracionistas. Em tempos de alto crescimento econômico, a demanda pública por produtos
privados pode gerar inflação se os fornecedores desses produtos utilizam plenamente a sua
capacidade produtiva, pois, ao se defrontar com um excesso de demanda, os produtores que
no curto prazo não tem capacidade de aumentar a produção, ajustam o preço. Já o mesmo não
ocorre quando há escassez de demanda, desemprego e excesso de capacidade ociosa na
economia: nesse caso, a demanda pública não só não gera inflação como aumenta renda e
emprego. Ou seja, a demanda pública pode e deve ser mantida e ampliada em períodos de
crise.
Isso implica dizer que a administração do orçamento do governo não somente não
deve seguir a lógica do orçamento doméstico, mas deve seguir a lógica oposta. Quando as
famílias e empresas contraem o gasto, o governo deve ampliar o gasto de forma a contrapor o
efeito contracionista do setor privado. Além disso, a comparação entre o orçamento público e
o familiar é incoerente, pois desconsidera três fatores essenciais. O primeiro é que o governo,
diferentemente das famílias, tem a capacidade de definir o seu orçamento. Isso porque a
arrecadação de impostos decorre de uma decisão política, e está ao alcance do governo, por
exemplo, tributar pessoas ricas ou importações de bens de luxo, para não fechar hospitais. Ou
seja, diferente do orçamento familiar, o orçamento público decorre de uma decisão coletiva
sobre quem paga e quem recebe, quanto paga e quanto recebe. O segundo fator que diferencia
o governo das famílias é que, quando o governo gasta, parte dessa renda retorna sob a forma
de impostos. Ou seja, ao acelerar o crescimento econômico com políticas de estímulo, o
governo está aumentando também a sua receita. Por fim, o terceiro fator não é menos
importante: as famílias não emitem moeda, não tem capacidade de emitir títulos em sua
própria moeda e não definem a taxa de juros das dívidas que pagam. Já o governo faz tudo
isso. Portanto, a metáfora que compara os orçamentos público e familiar é dissimulada e
desvirtua as responsabilidades que a política fiscal tem na economia, em suas tarefas de
induzir o crescimento e amortecer os impactos dos ciclos econômicos na vida das pessoas.
2. Experiência histórica com a austeridade
Muitos dos argumentos favoráveis à ideia de austeridade fiscal vem da discussão dos
anos 1990, originada dos trabalhos de economistas como Alberto Alesina, Francesco
Giavazzi, Guido Tabellini, Marco Pagano, Silvia Ardagna e Roberto Perotti. Esses autores
estudaram casos de alguns países europeus que, ao reduzir o tamanho do setor público na
economia, teriam conseguido retomar uma trajetória de crescimento econômico e acabaram
5
servindo de justificativa para a defesa da austeridade fiscal nos países em desenvolvimento,
inclusive o Brasil.
Giavazzi e Pagano (1990) testaram o argumento de que cortes nos gastos públicos
poderiam gerar crescimento econômico porque aumentariam as expectativas dos empresários
e das famílias, levando os primeiros a investir e os últimos a consumir. Os autores
encontraram dois casos em que essa teoria poderia valer na prática: a Dinamarca e a Irlanda.
A situação fiscal dos dois países era avaliada como preocupante para os governos da
época. Na Dinamarca o gasto público (consumo do governo) crescia a 4% ao ano e a dívida
pública cresceu a uma média de 10% ao ano entre 1979-82, chegando a 65% em 1982
(Quadro 1). Já o PIB dinamarquês crescia em média 1,3% ao ano no mesmo período. Na
Irlanda a dívida chegava a 87% do PIB em 1981, influenciada por uma taxa média de
crescimento do consumo do governo também de 4% ao ano e uma taxa média de crescimento
do PIB de 2,7% ao ano entre 1979-1981.
Quadro 1 – Estatísticas dos casos de recuperação das economias da Dinamarca e Irlanda
Dinamarca Irlanda
Taxas médias de crescimento: 1979-82 1983-86 1979-81 1982-84 1987-89
Consumo do Governo 4,0 0,9 4,0 0,7 -3,7
Investimento do Governo -9,4 -1,1 6,5 -6,0 -13,3
Dívida Pública 10,2 0,0 4,0 6,8 -0,8
Renda Privada Disponível 2,6 -0,3 1,0 -1,2 3,1
Consumo Privado -0,8 3,7 2,2 -1,2 3,6
Investimento Privado -2,9 12,7 7,2 -4,7 6,7
Exportações 6,0 3,2 4,9 10,8 11,0
PIB 1,3 3,6 2,7 0,0 3,7 Fonte: Giavazzi e Pagano (1990). Estatísticas selecionadas e livre tradução para o português.
Após um grande corte dos gastos públicos e aumento da tributação em 1982, a
Dinamarca cresceu por quatro anos consecutivos a uma média de 3,6% ao ano e a Irlanda
teve comportamento similar durante o ajuste fiscal promovido entre os anos de 1987-1989.
No entanto, em ambos os casos as medidas de austeridade fiscal foram acompanhadas
de mudanças significativas na política monetária, na política cambial e nas condições
econômicas internacionais, o que torna difícil isolar o efeito da política fiscal sobre a
economia. Do lado monetário, houve redução da inflação acompanhada de uma queda das
taxas de juros reais. Já a recuperação da economia internacional foi um fator determinante
para o aumento das exportações desses países.
6
De acordo com Jayadev e Konczal (2010) e Blyth (2013), esses fatores contribuíram
muito mais para o crescimento econômico da Dinamarca e da Irlanda do que o ajuste fiscal
em si. Segundo os autores, as medidas de austeridade não melhoraram as expectativas dos
empresários e das famílias, contrariando a teoria. Houve, de fato, uma queda do crescimento
econômico logo após a austeridade fiscal, mas a retomada do crescimento não esteve
diretamente relacionada a essas medidas.
Em defesa da ideia de que a austeridade gera crescimento, Alberto Alesina e Silvia
Ardagna revisam periodicamente seus trabalhos tanto para aumentar o número de casos
analisados quanto para determinar se é o corte de gastos ou o aumento da tributação que tem
maior efeito no crescimento (Alesina e Ardagna, 1998; Alesina e Ardagna, 2013). Em
trabalho recente com grande repercussão na Europa e nos EUA, Alesina e Ardagna (2010)
argumentam que medidas de austeridade fiscal deveriam ser tomadas para que os países
saíssem da recessão causada pela crise econômica mundial de 2008. O estudo analisa 21
países da OCDE e identifica que em 107 momentos da história econômica desses países
foram aplicadas medidas de ajuste fiscal. Desse total, Alesina e Ardagna (2010) mostram que
em 26 episódios, sintetizados no Quadro 2 por Jayadev e Konczal (2010), os anos posteriores
ao ajuste fiscal apresentaram crescimento econômico, o que justificaria o uso da austeridade
fiscal.
Quadro 2 – Casos de Contração fiscal Expansionista de Alesina e Ardagna (2010).
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Espanha 1986 3,3 2,3 2,0 4,6 2,7 Não Sim
Espanha 1987 5,5 3,3 2,5 5,1 2,7 Não Sim
Finlândia 1973* 7,0 7,7 5,1 4,0 -1,1 Não Não
Finlândia 1996 3,7 3,9 2,2 5,0 2,8 Não Sim
Finlândia 1998 5,2 6,2 4,6 4,7 0,1 Não Sim
Finlândia 2000 5,1 3,9 5,1 3,1 -2,0 Sim Não
Grécia 1976 6,9 6,4 2,7 5,7 3,0 Não Sim
Grécia 2005 2,2 4,6 4,6 3,7 -0,9 Sim Não
Grécia 2006 4,5 2,2 4,2 3,7 -0,6 Sim Não
Irlanda 1976 1,4 5,7 4,9 5,6 0,7 Não Sim
Irlanda 1987 4,7 -0,4 2,4 5,2 2,9 Sim Sim
Irlanda 1988 5,2 4,7 2,5 6,5 4,0 Não Sim
Irlanda 1989 5,8 5,2 3,2 5,4 2,2 Não Sim
Irlanda 2000 9,4 10,7 10,2 7,2 -3,0 Não Não
7
Holanda 1996 3,4 3,1 2,5 3,9 1,4 Não Sim
Noruega 1979 4,4 3,9 4,6 3,5 -1,1 Sim Não
Noruega 1980 4,5 4,4 4,1 2,0 -2,1 Não Não
Noruega 1983 3,9 0,1 2,0 5,1 3,0 Sim Sim
Noruega 1996 5,1 4,2 4,0 4,4 0,4 Não Sim
Nova Zelândia 1993** 6,4 1,1 0,1 5,3 5,2 Não Sim
Nova Zelândia 1994 5,3 6,4 2,1 4,3 2,3 Não Sim
Nova Zelândia 2000 2,4 5,3 2,5 3,6 1,1 Não Sim
Portugal 1986 4,1 2,8 0,2 6,0 5,8 Não Sim
Portugal 1988 7,5 6,4 4,4 6,0 1,5 Não Sim
Portugal 1995 4,3 1,0 0,0 4,0 4,0 Não Sim
Suécia 2004 4,1 1,9 1,8 3,9 2,1 Não Sim * O crescimento real do PIB não estava disponível em 1970 para a Finlândia e, portanto, a taxa média de
crescimento de 1970 a 1972 é a taxa de crescimento média para 1971 e 1972.
** O crescimento real do PIB não estava disponível para 1990 para a Nova Zelândia e, portanto, a taxa média de
crescimento de 1990 a 1992 é a taxa média de crescimento para 1989, 1991 e 1992.
Fonte: Jayadev e Konczal (2010). Livre tradução para o português.
Ao analisarem esses episódios, Jayadev e Konczal (2010) questionam a coerência dos
resultados frente à proposição inicial de Alesina e Ardagna (2010), de que ajustes fiscais
deveriam ser tomados em períodos de desaceleração econômica. Como é possível notar pelo
Quadro 2, Jayadev e Konczal (2010) mostram que, dos 26 episódios, em apenas 6 (Finlândia
em 2000; Grécia em 2005 e 2006; Irlanda em 1987; Noruega em 1979 e 1983) a austeridade
foi aplicada em uma fase de desaceleração econômica do país em questão. Assim, além de
representar uma parcela relativamente pequena dos casos analisados, a maior parte das
medidas de austeridade fiscal que resultaram em crescimento posterior não foi tomada
quando as economias estavam em recessão ou em baixo crescimento econômico.
Para enfraquecer ainda mais o argumento em defesa da austeridade, em 4 desses casos
(Finlândia em 2000; Grécia em 2005 e 2006; Noruega em 1979) o crescimento econômico
posterior ao ajuste fiscal foi menor do que o do período prévio ao ajuste. Ou seja, a
austeridade gerou um crescimento econômico menor do que o que havia antes dela.
Assim, somente nos dois casos já discutidos o ajuste fiscal ocorreu na fase de
desaceleração da economia e esteve relacionado a um crescimento econômico maior após o
ajuste (Noruega em 1983 e Irlanda em 1987). Além disso, apenas na Irlanda em 1987 a dívida
pública não aumentou após o ajuste fiscal. Ou seja, o argumento de que o ajuste fiscal numa
fase de desaceleração econômica leva a um crescimento econômico posterior e a uma redução
da dívida pública vale apenas para 1 dos 107 casos históricos analisados por Alesina e
Ardagna (2010).
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Com as novas experiências com a austeridade após a crise de 2008, os autores, que
defendiam os benefícios dessa política, passaram a revisar seus trabalhos e a relativizar os
argumentos em prol da austeridade. Perotti (2013), por exemplo, admitiu que as contrações
fiscais devem ser tomadas com precauções porque os efeitos diferem de acordo com as
especificidades de cada país e que os sucessos de alguns episódios podem não se repetir em
ambientes econômicos diferentes. O autor reconhece que os casos de ajuste fiscal com
crescimento econômico posterior estão mais relacionados a um boom das exportações e não a
um aumento da confiança por parte das firmas e das famílias, que levaria a um aumento do
consumo e do investimento, como os teóricos do ajuste afirmam.
O próprio Fundo Monetário Internacional (FMI, 2010) reviu sua posição com relação
às propostas de adoção de programas de austeridade nas recessões econômicas. O trabalho,
assim como Romer e Romer (2010), apresenta evidências históricas de que a austeridade
fiscal, ao ser implementada logo após um período que houve grande estímulo fiscal (como foi
durante a crise de 2008, por exemplo), pode comprometer o crescimento e piorar a situação
econômica, uma vez que a austeridade reduz o PIB e aumenta as taxas de desemprego no
curto prazo. Contrações fiscais são, portanto, contracionistas.
Alesina et al. (2017) também chegam em conclusões semelhantes e, embora defendam
que ajustes fiscais baseados em aumentos de impostos sejam mais prejudiciais do que o corte
de gastos, argumentam que ambas medidas tem efeitos negativos sobre o crescimento do PIB.
Enquanto isso, Jayadev e Konczal (2010) são mais enfáticos ao afirmarem que o momento
certo para realizar algum tipo de ajuste é nos períodos de crescimento econômico e não de
desaceleração. De forma semelhante, trabalhos do FMI desde 2010 (FMI, 2010; 2016)
recomendam que cada país encontre seu próprio caminho ideal para ajustar as contas
públicas, evitando um ajuste fiscal enquanto a economia está se recuperando, mas se
comprometendo a fazer algum equilíbrio no futuro.
3. A austeridade no Brasil
3.1 O ajuste desastrado
No início de 2015, diante da desaceleração econômica, o governo Dilma optou por
um choque recessivo ou, em outras palavras, lançou mão de um conjunto de políticas de
austeridade econômica, que visavam a “ajustar” a economia por meio de uma redução do
gasto público e da participação do Estado na economia. Como argumentam Rossi e Mello
9
(2017), esse choque recessivo foi composto de: i) um choque fiscal (com a queda das
despesas públicas em termos reais), ii) um choque de preços administrados (em especial
combustíveis e energia), iii) um choque cambial (com desvalorização de 50% da moeda
brasileira em relação ao dólar ao longo de 2015) e iv) um choque monetário, com o aumento
da taxas de juros para operações de crédito.
Gráfico1: Consumo das famílias (variação trimestral - %)
Fonte: IBGE. Rossi e Mello (2017)
Esse choque recessivo foi determinante para uma mudança profunda no mercado de
trabalho, com rápido aumento da taxa de desemprego, e para a forte contração do consumo
das famílias, que foi o símbolo do padrão de crescimento dos governos Lula, no qual o
dinamismo do mercado interno tinha um importante papel indutor do investimento e do
crescimento. Como mostrado no gráfico 1, entre 2004 e 2010 o consumo das famílias cresceu
em média 5,3% ao ano. Já no primeiro governo Dilma, o consumo das famílias cresce em
média 3,5%, mas em um claro movimento de desaceleração.
No primeiro trimestre de 2015 há uma quebra estrutural no comportamento dessa
última variável, encerrando um longo ciclo de crescimento no qual o consumo das famílias e
o mercado interno assumiram um papel de destaque. A desaceleração de 2014 não explica a
quebra estrutural observada nessa série. Tampouco parece razoável atribuir essa quebra aos
efeitos defasados de políticas anteriores. Há claramente fatores exógenos ao ciclo econômico
que ajudam a explicar essa quebra estrutural; nesse caso, o fator explicativo é a austeridade.
10
Dessa forma, a austeridade fiscal é causa e não solução da crise e constitui um entrave que
dificulta a retomada do crescimento brasileiro (Bastos, Welle e Oliveira, 2017).
3.2 A Emenda Constitucional 95: austeridade como novo pacto social no Brasil
Ao longo da década de 1980, o Brasil presenciou uma efervescência política com
grandes mobilizações populares, greves, conflitos e extensos debates públicos que
culminaram em um amplo acordo político, a Constituição Federal de 1988 (CF88). A
chamada constituição cidadã sela um pacto social no Brasil que oferece uma ampla garantia
dos direitos individuais e coletivos e o mais completo conjunto de direitos sociais que o país
conheceu, além de uma ampla cobertura da seguridade social que se tornou um dos maiores
programas de proteção social de todo o mundo.
Na área de educação, por exemplo, a CF88 estabelece mecanismos de financiamento a
partir de vinculação de um percentual mínimo de recursos tributários, um mínimo de 18% da
receita de impostos por parte da União e 25% para estados e municípios. Rezende e Adrião
(2006) apontam que, da Constituição Federal (CF) de 1934 até hoje, apesar de interrupções
nos períodos ditatoriais (marcados pelas CF de 1937 e 1967), o principal mecanismo de
financiamento da educação é a vinculação de um percentual mínimo de recursos tributários.
A esse respeito, é importante frisar que o golpe militar de 1964 suprimiu a vinculação
constitucional de recursos para a educação, ou seja, diminuiu os investimentos
governamentais em educação. Em outras palavras, a supressão das vinculações
constitucionais para a educação, na história brasileira recente, está ligada a períodos
ditatoriais. Com a redemocratização, a sociedade escolhe reverter o descaso com o gasto em
educação e define a área como prioridade. E não só a educação é reconhecida pela primeira
vez como direito, tal como se lê no artigo 6º da CF88, mas também a “saúde, a alimentação, o
trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à
maternidade e à infância, a assistência aos desamparados”6.
A CF88 também representa um compromisso importante na área de saúde e o Brasil
passa a ser o único país com mais de 100 milhões de habitantes que incorporou em sua
Magna Carta o compromisso de ter um Sistema Universal de Saúde (SUS). Em grande parte,
isso é fruto da “Oitava”, a 8ª Conferência Nacional de Saúde, que reuniu no ano de 1986 em
Brasília mais de quatro mil delegados de todas as regiões e classes sociais e ficou conhecida
6 Redação atual do Artigo 6º da CF 1988
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como a “pré-Constituinte da Saúde”: uma das grandes contribuições da Oitava foi o consenso
obtido em torno da criação do Sistema Único Descentralizado de Saúde (Suds) (1987), que se
transformaria no SUS na CF88. A CF88 define ainda, em seu artigo 196º, que “a saúde é
direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que
visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às
ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Tal modelo contrasta com o
vigente durante a ditadura militar, baseado no INAMPS, que prestava assistência de saúde
aos que contribuíam com a previdência social e com grande embricamento do setor privado
no público. O SUS faz uma defesa do direito universal à saúde e não somente dos que
contribuem com a previdência ou que podem pagar. Assim como com a educação, a
importância dada à saúde pública e ao SUS na CF88 mostram uma priorização da área
acordada pela sociedade brasileira à época da redemocratização e que, obviamente, demanda
priorização de recursos.
Pois esse pacto social que estabelece direitos sociais ao cidadão e deveres ao Estado,
está sendo refeito. O marco dessa mudança de orientação no papel do Estado é a emenda
constitucional 95 decorrente da PEC 241 ou PEC 55: uma repactuação antidemocrática, que
transforma estruturalmente os princípios e as possibilidades de atuação do Estado, sem o
amparo e a legitimidade das mobilizações populares, tampouco de um amplo debate público.
A proposta de novo regime fiscal da EC 95, institui uma regra para as despesas
primárias do Governo Federal com duração para 20 anos e possibilidade de revisão – restrita
ao índice de correção – em 10 anos. Nessa regra, o gasto primário do governo federal fica
limitado por um teto definido pelo montante gasto do ano anterior reajustados pela inflação
acumulada, medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Em
síntese, o novo regime fiscal institui uma austeridade permanente, pois implica um
congelamento real das despesas totais do Governo Federal, que pressupõe uma redução do
gasto público relativamente ao PIB e ao número de habitantes (devido ao crescimento da
população ao longo dos anos). Ou seja, de acordo com a regra proposta, os gastos públicos
não vão acompanhar o crescimento da renda e da população.
O gráfico 2 mostra o gasto primário do Governo Central em porcentagem do PIB
desde 1997 e uma projeção para o mesmo a partir de 2017 até 2037. Em 20 anos, no período
de 1997 a 2017, o gasto primário do governo central cresceu de 14% para 19% do PIB. Esse
crescimento reflete a regulamentação dos direitos sociais conforme foi pactuado na CF88. Já
nos próximos 20 anos, de 2017 a 2037, considerando uma taxa média de crescimento do PIB
12
de 2 pontos percentuais ao ano, espera-se que o gasto primário do governo federal retorne
para a casa de 14% do PIB. Ou seja, a EC 95 propõe retroceder nos próximos 20 anos o que o
país avançou nos últimos 20 anos em termos de consolidação dos direitos sociais no Brasil.
Gráfico 2: Gasto primário do Governo Federal em porcentagem do PIB (1997 – 2037)
Fonte: Tesouro Nacional. Elaboração própria.
Essa drástica redução da participação do Estado na economia é representativa de outro
projeto de país, outro pacto social, que reduz substancialmente os recursos públicos para
garantia dos direitos sociais, como saúde, educação, previdência e assistência social. Nesse
novo pacto social, transfere-se responsabilidade para o mercado no fornecimento de bens
sociais, como discutiremos a seguir. Trata-se de um processo que transforma direitos sociais
em mercadorias.
4. Impacto da austeridade no Brasil: o caso da educação
4.1 Efeitos da EC 95 na educação
Cordes, et al. (2015), em um texto para discussão publicado pelo FMI, mostra que
nenhum país do mundo estabeleceu uma regra para gasto público tal como a brasileira, por
meio de uma emenda na Constituição. No caso do Brasil, também não havia necessidade de
constitucionalizar a regra fiscal, a não ser para alterar os gastos especificamente em saúde e
educação. Rossi e Dweck (2016) consideram que a instituição do novo regime fiscal por
13
emenda constitucional só faz sentido para desvincular as receitas destinadas à saúde e
educação (2016), ou seja, não fosse o objetivo de desvincular esses gastos da arrecadação,
não teria sido necessário que a mudança tramitasse como emenda constitucional.
No Brasil, o mínimo para os gastos públicos com educação, estabelecido pelo Artigo
212 da Constituição Federal, é de 18% da Receita Líquida de Impostos (RLI). Já a EC95
prevê que em 2017 o gasto mínimo com educação será 18% da RLI e, a partir de então, terá
como piso o gasto em 2017 reajustado pela inflação. Ou seja, o gasto federal real mínimo
com saúde e educação será congelado no patamar de 2017. Comparando a regra antiga com o
mínimo estipulado pela EC95, percebe-se que o piso previsto por ela é, na verdade, um piso
deslizante (Gráfico 3). Isto é, ao longo do tempo o valor mínimo destinado à educação e
saúde cai em proporção das receitas e do PIB.
Na simulação apresentada no Gráfico3com a EC95, o mínimo para educação seria de
14,4% da RLI em 2026 e 11,3% em 2036. No entanto, apesar do “piso deslizante”, existe a
possibilidade de aumentos nos gastos para saúde e educação acima do mínimo, a partir da
redução de outros gastos. Mas essa possibilidade é limitada pela redução dos gastos totais e
pelo crescimento de alguns outros gastos. Ou seja, ao estabelecer um teto que reduz o gasto
público em proporção ao PIB, haverá uma compressão dos gastos sociais. De acordo com a
simulação de Rossi e Dweck (2016):
“(...) .os outros gastos federais (excluindo previdência e juros) que eram 7% do PIB em 2015
serão de 0,6% do PIB em 2036, o que não parece tecnicamente, tampouco politicamente,
factível. Considerando uma improvável estabilização do gasto com a previdência em 8,5% do
PIB, com um exercício aritmético simples e um crescimento econômico médio de 2,5%
mostra-se que é impossível – matematicamente impossível – o Brasil chegar em 2036 com um
maior nível de gasto com saúde e educação em proporção ao PIB, mesmo na hipótese
anarcocapitalista de se eliminar todos os outros gastos públicos, executivo, judiciário,
legislativo, exército, infraestrutura, investimentos etc. Isso porque, de acordo com a
simulação, em 2036 o gasto primário do governo total será de 12,3% do PIB; se os gastos
como previdência somarem 8,5% do PIB, sobram apenas 3,8% do PIB, número inferior aos
atuais gastos com educação e saúde, em torno de 4% do PIB em 2016. Nesse sentido, é
demagogia defender simultaneamente a PEC e a educação e saúde públicas.” (Rossi e Dweck,
2016: 4).
14
Gráfico 3– Gasto mínimo com educação na regra antiga (Artigo 212 -CF 88) e na regra nova
(EC 95)*
Fonte: Adaptação livre de Rossi e Dweck (2016). * A simulação parte da hipótese de que o PIB cresce 2% ao ano no período e que a receita líquida acompanha o
crescimento do PIB.
Os diversos cenários mostram a redução dos gastos em educação por causa da
austeridade fiscal e, em especial, com a EC 95, o que suscitou que diversas entidades se
posicionassem contra a emenda por ser uma afronta ao Plano Nacional de Educacão (PNE)7.
Nota da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e da Associação Nacional de Pesquisa
em Financiamento da Educação (FINEDUCA) que o teto de gastos estrangula a educação
pública brasileira e tornar letra morta o PNE (Campanha Nacional pelo Direito à Educação e
FINEDUCA, 2017). A nota é enfática em afirmar que faltam recursos para a educação no
Brasil para cumprir o PNE. Segundo a nota, o teto de gastos vai corroer a maior conquista da
educação brasileira, que foi a vinculação de um percentual da receita de impostos para a
educação, definidos em um mínimo de 18% para a União. Lembra a nota ainda que esse
7 O Plano Nacional de Educação (PNE 2014 – 2024) foi fruto de amplo processo de negociação no parlamento e
na sociedade brasileira e aprovado em 25 de junho de 2014 com claro caráter expansionista dos direitos
educacionais para garantir o acesso desde a creche até a pós-graduação (Araújo, 2017a). A principal inovação
do PNE é sua Meta 20, que prevê “ampliar o investimento público em educação pública de forma a atingir, no
mínimo, o patamar de 7% (sete por cento) do Produto Interno Bruto – PIB do País no 5o (quinto) ano de
vigência desta Lei e, no mínimo, o equivalente a 10% (dez por cento) do PIB ao final do decênio” (Lei
13.005/2016).
15
mínimo foi introduzido na CF de 1934 e revogados apenas durante o Estado Novo e com o
Golpe Militar de 1964.
Também, segundo o relator especial da ONU para extrema pobreza e direitos
humanos, Philip Alston, o teto de gastos é uma medida “radical” e sem “compaixão”, que vai
atar as mãos dos futuros governantes e que terá impactos severos sobre os brasileiros mais
vulneráveis, além de constituir uma violação de obrigações internacionais do Brasil,
colocando em risco gerações futuras. O apelo do relator especial às autoridades brasileiras foi
endossado também pela relatora especial sobre o Direito à Educação, Koumbou Boly Barry
(Nações Unidas, 2016; United Nations Human Rights, 2016).
4.2 Impactos da austeridade no orçamento federal com Educação
Mesmo antes de entrar em vigor a EC95, a austeridade já vem penalizando as áreas
sociais, dentre essas a educação. Uma maneira de analisar o corte dos gastos públicos federais
destinados à educação é por meio da execução orçamentária da “Função Educação”: que
considera todos os gastos federais destinados a pagamento de pessoal e encargos, despesas de
custeio e investimentos que se relacionam a programas da educação, independentemente do
órgão a que se refere8.
Como é possível perceber no gráfico 4, o governo federal interrompe a trajetória de
aumentos das dotações autorizadas para os gastos com educação em termos reais9. O
orçamento autorizado para gastos com a função educação é de R$ 111,2 bilhões em 2016
contra os R$124,2 bilhões de 2015 – o ano com a maior dotação da série histórica que se
inicia em 200010
. Ou seja, na Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2016 já está clara a decisão
de se gastar menos com Educação.
8 A Função Educação é uma forma de enxergar todos os gastos do Orçamento Fiscal e da Seguridade Social da
União. Neles estão tanto os gastos diretos do governo federal em educação quanto as transferências
governamentais por repartição de receita. Nos anos recentes, os gastos da função educação estão concentrados
no Ministério da Educação e no Tesouro Nacional, que é responsável pelas Operações Oficiais de Crédito, mas,
no início da série, o Ministério das Cidades e o Ministério do Planejamento também destinavam recursos a essa
função. 9 Corrigidos pela inflação oficial (IPCA) de junho de 2017.
10 Série consolidada e de acesso público no Painel do Orçamento Federal, na base de dados do Sistema
Integrado de Planejamento e Orçamento (SIOP) http://www1.siop.planejamento.gov.br/acessopublico/
16
Gráfico 4 – Gastos Reais do Orçamento da União com a Função Educação (preços de
junho/2017)
Fonte: Ministério do Planejamento. Elaboração própria
O Gráfico 4 ainda mostra que os empenhos11
caem em termos reais de R$ 111,6
bilhões em 2015 para R$ 108,0 bilhões em 2016 e os gastos liquidados12
permanecem no
mesmo patamar (na média de R$96,9 bi) nos últimos três anos. De maneira agregada, o
confronto dos gastos liquidados frente aos empenhados indica que o governo não cria
nenhuma obrigação orçamentária nova. Isso pode ser percebido pelo Gráfico 5, que mostra
que, enquanto os gastos liquidados com pessoal e encargos crescem ao longo da série,
principalmente devido ao crescimento vegetativo dessas despesas, os gastos com
investimento caem a partir de 2012 e os gastos com custeio (outras despesas correntes)
começam a cair a partir de 2014.
11
Grosso modo o empenho de recursos corresponde àquela fase da execução orçamentária em que se destinam,
de fato, recursos para as dotações autorizadas na LOA. Em outros termos, trata-se do reconhecimento por parte
do governo de que possui o dinheiro separado para ser gasto em determinada área. 12
Já a liquidação é a fase da execução orçamentária em que o governo contrata determinado serviço, verifica
que o serviço foi executado conforme o contratado e reconhece que deve recursos financeiros ao prestador de
serviços. Em outros termos, quando o governo liquida uma obra, por exemplo, ele atesta que a obra foi feita e
que só falta transferir o dinheiro dos cofres públicos para o prestador de serviços.
17
Gráfico 5 – Gastos Reais Liquidados do Orçamento da União (preços de junho/2017)
Fonte: Ministério do Planejamento. Elaboração própria.
Por serem gastos obrigatórios, os cortes na educação ainda não pesam sobre os gastos
com pessoal e encargos, mas sobre os gastos discricionários: custeio e investimento. Isso
significa que mesmo com recursos destinados (empenhados) para gastos com custeio e
investimento, o governo deixa de comprar os bens e contratar os serviços previstos nos
orçamentos.
Como se observa no gráfico 5, os investimentos em educação retrocederam ao mesmo
patamar de 2005 e 2006, antes de um substantivo aumento nesses gastos, que atingiram R$
7,6 bilhões em 2012 e agora caem para a ordem dos R$ 1,7 bilhão anuais em 2015 e 2016. O
dado é ainda mais preocupante quando se coloca em perspectiva a taxa de liquidação dos
investimentos em educação frente aos montantes empenhados. Pelo Gráfico 6 é possível
perceber que a taxa dos investimentos liquidados sobre os empenhados era em média 45% no
período de 2007 a 2012, quando os investimentos estavam aumentando, e caem para a média
de 31% entre 2013 e 2016, na fase de redução dos investimentos. Isso significa que, o
governo destina cada vez menos recursos aos investimentos em educação e que cada vez
menos recursos são, de fato, investidos nos programas previstos no orçamento.
18
Gráfico 6 – Evolução dos Investimentos Reais na Função Educação do Governo Federal
(preços de junho/2017)
Fonte: Ministério do Planejamento. Elaboração própria. Taxa de investimento liquidado/empenhado no eixo da
direita.
4.3 Quem ganha com o subfinanciamento da educação pública?
Ao impedir a ampliação da oferta educacional, a austeridade representada pela EC 95
impede o cumprimento das metas e estratégias previstas no PNE. Somado a isso, a
composição atual do governo, com mais peso para representantes do setor privado que com
espaço para movimentos defensores da educação pública, “por si só, anuncia maiores
dificuldades de se implementar e monitorar medidas de crescimento da oferta pública”
(Araújo, 2017a). A saída com o novo cenário pode ser o aumento da privatização em suas
diversas formas (da oferta educacional, do currículo e da gestão da educação), a fim de
buscar formas mais baratas de oferecer os serviços educacionais. Tais formas de prover o
serviço podem vir a ser não mais uma exceção, mas a alternativa amplamente majoritária.
Adrião (2017) aponta a influência de instituições filantrópicas como o Instituto
Ayrton Senna, a Fundação Pitágoras e a Fundação Lemann na elaboração de políticas
públicas e na formação de gestores educacionais no Brasil. Na verdade, a autora afirma que o
que se observa hoje no Brasil é a prática do filocapitalismo, em que “a filantropia se alinha,
sem pudor, ao mundo dos negócios e se apresenta como possibilidade de ampliação dos
lucros para investidores privados” (Adrião, 2017:31). Segundo Adrião et. al. (2015) as
corporações que atuam no setor têm incursionado na agenda pública educacional brasileira
19
por meio de “braços sociais” de empresas que integram o grupo e entidades sem fins
lucrativos. O estudo identificou ainda que os muitos grupos empresariais são duplamente
favorecidos pela destinação de recursos públicos: são os que mais recebem recursos do
governo federal, ao mesmo tempo em que, por vezes criticando implícita ou explicitamente
este programa, vendem seus serviços aos governos subnacionais.
Diversos especialistas apontam abertura à privatização dos direitos sociais com a EC
95. Segundo Araújo (2017b), se não ocorrerem mudanças bruscas no presente rumo, a
próxima década poderá consolidar um novo modelo muito mais compartilhado de “prestação
de serviço”, tornando ainda mais frágil a principal conquista constitucional: o conceito de
educação como direito. Portanto, o novo regime fiscal atende também a interesses específicos
que vendem a educação como mercadoria.
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