anita abed protagonismo infantil

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Protagonismo Infantil

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  • Anita Lilian Zuppo Abed

    O DESENVOLVIMENTO DAS HABILIDADES

    SOCIOEMOCIONAIS

    COMO CAMINHO PARA A APRENDIZAGEM

    E O SUCESSO ESCOLAR

    DE ALUNOS DA EDUCAO BSICA

    So Paulo

    Abril de 2014

  • 2

    Resumo

    ABED, Anita Lilian Zuppo. O desenvolvimento das habilidades socioemocionais como

    caminho para a aprendizagem e o sucesso escolar de alunos da educao bsica. So

    Paulo: 2014.

    O presente estudo tem o objetivo de oferecer subsdios filosficos e tericos para a elaborao

    de polticas pblicas voltadas ao desenvolvimento das habilidades socioemocionais nas

    instituies escolares. O paradigma da Ps-modernidade apresentado e discutido, com base

    principalmente nas ideias de Edgar Morin, para situar as bases filosficas que sustentaram a

    educao ps-iluminista, fragmentada e focada nos estoques cognitivos, e ancorar a

    transformao da escola na direo da construo do pensamento complexo e do

    desenvolvimento integral dos estudantes, caminhos fundamentais para a promoo da

    aprendizagem, sucesso escolar e progresso social na atualidade. As contribuies tericas dos

    principais autores interacionistas Piaget, Vygotsky e Wallon lanam luzes para a

    compreenso do processo ensino-aprendizagem, enriquecida pela tica da Psicopedagogia,

    representada por Alicia Fernndez. As caractersticas de uma ao mediadora de qualidade

    (Feuerstein), a utilizao de mltiplas linguagens para atingir as diferentes inteligncias

    (Gardner) e os diferentes estilos cognitivo-afetivos (Fagali), bem como o potencial do jogo e

    da metfora (Abed), explicitam caminhos concretos para o professor incluir, com

    intencionalidade, o desenvolvimento socioemocional na sua prtica pedaggica. O Frum

    Internacional de Polticas Pblicas, ocorrido em maro de 2014, serve como linha condutora

    para vislumbrar as tendncias atuais acerca do tema. Nas consideraes finais, reflete-se sobre

    as implicaes da transformao do olhar em relao ao desenvolvimento humano e processo

    ensino-aprendizagem na prtica do professor, principal protagonista na mudana do cenrio

    educacional.

    Palavras-chave: habilidades socioemocionais, interacionismo, mediao da aprendizagem,

    Ps-modernidade

  • 3

    Abstract

    Abed, Anita Lilian Zuppo. The development of socio-emotional skills as a means to foster

    learning and the academic attainment of students in basic education. So Paulo: 2014.

    The present study aims to provide philosophical and theoretical support for the creation of a

    public policy focused on the development of socio-emotional skills in public schools. The

    paradigm of postmodernity is presented and discussed principally through the ideas of Edgar

    Morin in order to situate the philosophical basis that has sustained post-Enlightenment

    education, which was fragmented and focused on cognitive aspects, and support the

    transformation of schools toward the construction of complex thinking and the holistic

    development of students - important ways to promote learning, academic attainment and

    social progress nowadays. The theoretical contributions from leading interactionist authors

    such as Piaget, Vygotsky, and Wallon shed light on our understanding of the teaching-

    learning process. The discussion is also enriched by a number of aspects from Educational

    Psychology presented by Alicia Fernndez. The characteristics of good mediating actions

    (Feuerstein), the use of multiple languages in order to approach different intelligences

    (Gardner), and the different cognitive-affective styles (Fagali), as well as the potential of the

    game and the use of metaphors (Abed), present concrete ways in which teachers can

    intentionally include socio-emotional development in their teaching practices. The

    International Forum for Public Policies, held in March 2014, serves as a guiding principle for

    a glimpse of the current trends on the subject. Finally, we reflect on the implications of this

    change of perspective in teaching practices in relation to human development and the

    teaching-learning process for the teacher, the main protagonist in the educational scenario.

    Keywords: socio-emotional skills, interactionism, mediated learning, Postmodernism

  • 4

    Sumrio

    1. Introduo 05

    2. Contextualizao histrico-filosfica 14

    3. Desenvolvimento e aprendizagem 25

    3.1. Jean Piaget (1896-1980) 25

    3.2. Alicia Fernndez (1944- ) 30

    3.3. Lev Vygotsky (1896-1934) 41

    3.4. Henri Wallon (1879-1962) 46

    3.5. Integrando os autores 54

    4. Caminhos para a transformao da prtica de sala de aula 58

    4.1. O professor como mediador da aprendizagem e do desenvolvimento 58

    4.2. As mltiplas inteligncias do ser humano 71

    4.3. Os estilos cognitivo-afetivos 75

    4.4. Implicaes para a sala de aula anlise de uma sequncia didtica 80

    4.5. Os jogos como recursos mediadores 92

    4.6. Recursos metafricos no processo ensino-aprendizagem 99

    5. Tendncias atuais: as habilidades socioemocionais em foco 105

    6. Consideraes Finais 125

    Referncias Bibliogrficas 133

  • 5

    1. Introduo

    Dai-me Senhor, a perseverana das ondas do mar, que fazem de cada recuo, um ponto de partida para

    um novo avanar. Ceclia Meirelles1

    As ltimas dcadas do sculo XX e o incio do sculo XXI vm sendo marcados por um

    processo cada vez mais acelerado de mudanas na sociedade, nas relaes do trabalho, no

    cotidiano das pessoas, na infncia de nossas crianas...

    O acesso ao universo digital est cada vez mais democrtico. Desde a mais tenra idade,

    podemos observar a nova gerao manipulando as telas touch scream de videogames

    portteis, smartphones e tablets com uma desenvoltura impressionante.

    A universalizao dos meios de comunicao digitais altera substancialmente a relao com a

    informao e com os conhecimentos. Em tempo real, uma foto tirada em um jantar entre

    amigos pode ser disponibilizada a um sem nmero de pessoas, potencialmente em qualquer

    canto do planeta. Um pensamento postado em uma rede social pode ser alvo de infinitos

    comentrios, crticas, complementaes, questionamentos.

    Informaes propagam-se velocidade da luz.

    Infelizmente, as instituies de educao formal, no Brasil e no mundo, no vm

    acompanhando esse ritmo alucinado de transformaes. A escola como a instituio

    responsvel por transmitir contedos no cabe nesse contexto, os paradigmas que sustentam

    a ao educativa precisam se adequar aos novos tempos e aos novos estudantes que as escolas

    recebem dentro de seus muros. Hoje, h vrios empregos que no existiam h 10 anos, como

    estrategista de mdias sociais ou gerente de sustentabilidade e, com certeza, daqui a 5 ou

    1 Fonte: http://www.frasescurtas.net/frases-bonitas.html

  • 6

    10 anos, quando nossos alunos de hoje ingressarem no mundo do trabalho, inmeras sero as

    opes de carreiras que ainda no foram criadas, que provavelmente utilizaro tecnologias

    com as quais nem sonhamos... Concluso: no h como preparar as crianas e jovens para

    enfrentar os desafios do sculo XXI sem investir no desenvolvimento de habilidades para

    selecionar e processar informaes, tomar decises, trabalhar em equipe, resolver problemas,

    lidar com as emoes...

    Com o intuito de sustentar reflexes e debates que possam subsidiar propostas de polticas

    pblicas, diretrizes curriculares e projetos poltico-pedaggicos voltados para o

    desenvolvimento integral dos alunos, o presente estudo se debrua em referenciais filosficos

    e tericos que podem servir como inspirao e pontos de partida para a construo da

    Educao do Terceiro Milnio.

    Calcado no pressuposto de que o aprender envolve no s os aspectos cognitivos, mas

    tambm os emocionais e os sociais, este estudo foca a compreenso das interrelaes entre o

    desenvolvimento das habilidades socioemocionais e o processo de ensino e de aprendizagem.

    Compreender como tais habilidades podem contribuir com a melhoria do desempenho escolar

    e vida futura dos estudantes permite construir caminhos que promovam o desenvolvimento,

    aprimoramento e consolidao de uma educao de qualidade. Nesse sentido, sero discutidos

    alguns indicadores que podem servir como inspirao para as aes dos professores nessa

    rdua - mas gratificante - tarefa de formar os cidados responsveis por determinar os rumos

    da civilizao humana.

    Historicamente, o espao escolar, no Ocidente, nasceu e se estruturou em torno da

    transmisso dos contedos consagrados pela sociedade e privilegiou o pensamento lgico.

    Essa configurao da educao formal que prioriza apenas os aspectos cognitivos e os

    contedos programticos sustenta-se, segundo Morin (2000a), em concepes que marcaram

  • 7

    a cultura ps-iluminista: a separabilidade; a neutralidade dos conhecimentos cientficos; o

    universo ordenado e imutvel; a supremacia da razo. Penso, logo existo, dizia Descartes,

    supervalorizando a faceta racional do ser humano.

    Esta viso moderna do conhecimento, esta epistemologia da verdade nica

    afetou todos os aspectos da vida ocidental, todas as instituies. (...) As

    escolas da era ps-iluminista enfatizaram no a produo do conhecimento,

    mas a aprendizagem daquilo que j havia sido definido como conhecimento.

    (KINCHELOE, 1997:13)

    As polticas educacionais, no Brasil e no mundo, no poderiam ter sido diferentes: foi dada

    uma importncia maior aos estoques cognitivos, ou seja, aos conhecimentos programticos

    transmitidos em cada uma das disciplinas do currculo escolar. Coerentes com tal abordagem,

    as polticas de avaliao e as mtricas produzidas por meio delas permaneceram voltadas para

    esses aspectos, no abrangendo as facetas emocionais e sociais dos estudantes.

    Nas ltimas dcadas, vivemos uma realidade marcada por muitas e velozes transformaes. O

    desenvolvimento dos meios de transporte e de comunicaes encurtou o planeta (MORIN,

    2000b), alterando o dia a dia da sociedade, instituindo novas demandas e necessidades,

    provocando um movimento de repensar as crenas que subjazem as prticas nas instituies

    sociais. No campo acadmico, alteraes paradigmticas produziram novos alicerces tericos

    que, por sua vez, vm promovendo novas alteraes tecnolgicas e mais mudanas na vida

    das pessoas - um movimento de circularidade causal.

    Transformar o espao escolar no uma opo: uma consequncia inevitvel desse efeito

    domin em que estamos inseridos. Parece indiscutvel que os contedos que compem as

    grades curriculares das disciplinas escolares so, e sero sempre, muito importantes; afinal,

    marca da espcie humana a busca pelo conhecimento e a transmisso dos saberes s prximas

    geraes. A questo que se coloca cada vez mais, no meio acadmico, a necessidade de

  • 8

    recolocar o ser humano na sua condio inerente de totalidade - voltar a integrar as facetas do

    ser humano, que foram cindidas pela Modernidade.

    Integrar "tornar inteiro, completar", re-unir (unir de novo) o que na

    realidade nunca foi separado, foi apenas pensado em separado. Tornar

    inteiro resgatar a unicidade, recompor as clulas, restituir o ser. (ABED,

    1996: 6)

    No mais possvel conceber que apenas a cognio comparece sala de aula: os estudantes

    tm emoes, estabelecem vnculos com os objetos do conhecimento, com os colegas, com os

    professores, com a famlia, com os amigos, com o mundo. Os professores tambm. Todos ns

    rimos, choramos, sofremos, nos encantamos, desejamos, fantasiamos, teorizamos... Somos

    seres de relao, repletos de vida, h infinitos universos dentro e fora de ns - no h como

    fugir disso.

    O presente estudo terico sobre o desenvolvimento das habilidades socioemocionais com

    vistas melhoria da qualidade da Educao Bsica, da aprendizagem e do desempenho e

    sucesso escolar dos estudantes, uma iniciativa do Conselho Nacional de Educao (CNE),

    objetiva oferecer subsdios consistentes e abrangentes que possam colaborar na necessria

    (re)construo do espao escolar.

    O cho da escola precisa se transformar, mas certo que nenhuma mudana ser vivel se

    os professores no tiverem o suporte necessrio para assumir o papel de protagonistas

    privilegiados deste enredo, o que no tarefa fcil, nem simples. Afinal, somos seres do

    nosso tempo, a maior parte dos educadores de hoje vivenciou uma escolarizao tradicional,

    muitas vezes mecnica e esvaziada de sentidos. Ser autor de mudanas exige dos

    professores o desenvolvimento de suas prprias habilidades. Estes, para tanto, precisam que

    os gestores da escola cumpram seu papel na valorizao, formao e apoio da equipe docente,

    ancorados por polticas pblicas claras, consistentes e eficazes.

  • 9

    Para embasar as reflexes sobre a conjuntura atual, o captulo 1, Contextualizao histrico-

    filosfica, traz um pequeno histrico dos pressupostos gnosiolgicos que marcaram a relao

    do Homem com o conhecimento, sua produo e transmisso s novas geraes. A

    perspectiva da Ps-modernidade e do pensamento complexo, proposta por Edgar Morin,

    grande pensador francs da atualidade, ser analisada como um terreno frtil para a

    compreenso das relaes do Homem com o conhecimento e das direes a seguir para

    construir a Educao do terceiro milnio.

    A mudana nas concepes do que ensinar e do que aprender realoca as posies e as

    responsabilidades dentro da sala de aula. No possvel pensar o aprender como algo isolado

    do ensinar. No captulo 2, Desenvolvimento humano e aprendizagem, a abordagem

    interacionista ser apresentada e defendida por meio de alguns dos seus mais importantes

    tericos: Jean Piaget, Lev Vygotsky e Henri Walon. As contribuies de Alicia Fernndez

    iro fundamentar a apresentao de uma abordagem psicopedaggica que busca resgatar a

    complexidade do processo ensino-aprendizagem, ou seja, apreender a trama de interrelaes e

    interdependncia entre os inmeros fatores envolvidos no aprendizado.

    A opo por apresentar o olhar psicopedaggico coerente com o tema proposto neste estudo:

    os impactos do desenvolvimento de habilidades socioemocionais na aprendizagem e no

    sucesso escolar. A Psicopedagogia uma rea do conhecimento e um campo de atuao que

    lana mo das contribuies de vrias reas do conhecimento (Psicologia, Pedagogia,

    Sociologia, Antropologia, Lingustica, Neurologia, Filosofia, Histria etc.) na busca de

    integrar os mltiplos aspectos da aprendizagem humana: os fatores envolvidos no processo;

    seus padres normais e patolgicos; a influncia do meio (famlia, escola, sociedade); a

    construo e configurao da cena pedaggica, a elaborao e otimizao de recursos e

  • 10

    projetos pedaggicos com vistas melhoria da aprendizagem e desenvolvimento integral dos

    estudantes (ABED, 2006).

    Cada um dos autores escolhidos traz subsdios para refletir sobre algum ou alguns dos

    aspectos da problemtica da integrao entre as habilidades cognitivas, sociais e emocionais.

    Embora Jean Piaget no tenha se debruado diretamente nas questes emocionais e sociais,

    encontramos nesse autor elementos para refletir sobre o desenvolvimento cognitivo e suas

    implicaes para a estruturao do currculo escolar. As contribuies tericas da abordagem

    psicopedaggica argentina, representada por Alicia Fernndez, sero utilizadas para nos

    aprofundaremos nas relaes entre o desenvolvimento emocional (sob a tica da Psicanlise)

    e o cognitivo (epistemologia gentica de Piaget) e suas implicaes para a compreenso do

    processo ensino-aprendizagem, seu padres normais e seus desvios.

    As ideias de Lev Vygotsky iro colaborar na compreenso do papel da mediao da cultura e

    das interaes sociais na constituio do ser humano. As noes de desenvolvimento das

    Funes Psicolgicas Superiores humanas em processos intersubjetivos e intrasubjetivos, a

    distino entre significado e sentido e o conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal

    lanam luzes significativas sobre a promoo do desenvolvimento humano pelo processo de

    aprendizagem.

    As contribuies de Henri Wallon nos do subsdios para pensar o desenvolvimento do ser

    humano nas instncias biolgica, psquica e social. O autor prope um modelo de

    desenvolvimento humano que transita e integra a dimenso motora, a afetividade e a

    inteligncia humana na constituio dos sujeitos.

  • 11

    No captulo 3, Caminhos para a transformao da prtica de sala de aula, sero apresentadas

    algumas contribuies que colaboram nas reflexes sobre o como colocar em prtica os

    novos paradigmas de ensino, ou seja, como transformar em aes a concepo de

    aprendizagem que est sendo defendida.

    Em primeiro lugar, preciso transformar o papel do professor: no mais um dador de aulas,

    mas um mediador cuidadoso que, com suas aes, configura a cena pedaggica de modo a

    promover situaes de verdadeira e significativa aprendizagem, colaborando com o

    desenvolvimento global dos estudantes. Para refletir sobre as caractersticas que fazem de um

    ensinante2 um mediador de qualidade, visitaremos os Critrios de Mediao, propostos por

    Reuven Feuerstein, a partir da releitura que Marcos Meier e Sandra Garcia (2007) realizaram,

    transportando-os para a sala de aula.

    Para ancorar a abordagem que salienta a existncia de mltiplas inteligncias e de diferentes

    formas de aprender, o que implica em diferentes linguagens e recursos para o ensinar, sero

    apresentados os referenciais de Howard Gardner, pesquisador americano, e Elosa Fagali,

    autora brasileira de inspirao junguiana.

    As pesquisas desenvolvidas em meu trabalho monogrfico e na Dissertao de Mestrado

    delinearo o valor e o potencial da utilizao de recursos metafricos e de jogos de regras

    como instrumentos mediadores privilegiados para promover o desenvolvimento das

    habilidades socioemocionais associadas construo do conhecimento.

    Sistematizar um slido arcabouo filosfico e terico fundamental, mas no suficiente

    para garantir a transposio dos conceitos para a prtica, para a ao do professor no cotidiano

    2 Adotaremos os termos propostos por Alicia Fernndez: ensinante e aprendente.

  • 12

    escolar, nem tampouco para estruturar formas de monitoramento e avaliao dos resultados

    dessas aes. O captulo 4, Tendncias atuais: as habilidades socioemocionais em foco, ir

    apresentar e discutir algumas perspectivas atuais, em busca de elementos que possam

    subsidiar alternativas de soluo para efetivar a urgente transformao da escola.

    Inmeras questes se colocam no movimento de transposio da teoria para a prtica:

    Em relao aos estudantes: Como promover o desenvolvimento pleno e integral dos alunos?

    Como garantir a aprendizagem efetiva e ampliar as chances de construo de projetos de vida

    saudveis e de sucesso? Como investir no fortalecimento das competncias de todas as

    crianas e jovens, para que possam se tornar adultos que continuam aprendendo e produzindo

    conhecimento ao longo de suas vidas? Como tornar o ambiente escolar dinmico, envolvente,

    interessante, uma verdadeira academia do conhecimento? Como resgatar o desejo de

    aprender, o prazer e a paixo pelo saber? Como motiv-los para comparecer escola de

    corpo, alma e corao?

    Em relao aos professores: Como o professor pode transformar as referncias tericas em

    aes prticas? Como preparar o professor para mediar as situaes de aprendizagem de

    maneira eficiente? Como ultrapassar seus modelos pessoais e construir novos saberes e novos

    contornos de aes pedaggicas? Como transitar entre as exigncias do currculo, da

    sociedade, dos familiares? Como conciliar as condies concretas de trabalho com as novas

    concepes de ensino? Como desenvolver as habilidades dos educadores para que eles

    possam transformar a sala de aula em direo a um espao para o desenvolvimento integral?

    Como resgatar o prazer e o orgulho de ser professor?

  • 13

    Em relao s mtricas: Como mensurar o desenvolvimento de habilidades emocionais e

    sociais e seus impactos na aprendizagem e na vida futura dos estudantes? Como estabelecer

    mtricas que orientem polticas pblicas que, a partir de diagnsticos da conjuntura, possam

    oferecer diretrizes para a elaborao de programas para o avano e modernizao da educao

    no pas?

    Em suma, esse estudo espera contribuir na construo de prticas inovadoras, consistentes e

    bem embasadas, que privilegiam no s a cognio, mas tambm os aspectos socioemocionais

    dos alunos como caminhos para a aprendizagem e sucesso escolar.

  • 14

    2. Contextualizao histrico-filosfica

    O paradigma desempenha um papel ao mesmo tempo subterrneo e soberano em qualquer teoria, doutrina ou

    ideologia. O paradigma inconsciente, mas irriga o

    pensamento consciente, controla-o e, neste sentido,

    tambm supraconsciente. Edgar Morin3

    Este captulo tem o objetivo de contextualizar o momento histrico que estamos vivendo. Do

    ponto de vista paradigmtico, a Ps-modernidade ser discutida a partir das contribuies de

    Edgar Morin, filsofo francs, Joe Kinchloe, educador americano, e Laerthe Abreu Jnior,

    pesquisador brasileiro. As contribuies da Psicopedagogia sero pontuadas como

    reverberaes tericas coerentes com os pressupostos da Ps-modernidade que, por sua vez,

    sugerem e amparam transformaes no fazer pedaggico, no espao escolar, em direo ao

    resgate da subjetividade na construo do conhecimento.

    Desde meados do sculo XX, a velocidade e intensidade das transformaes que o mundo

    vem sofrendo ocorrem de maneira cada vez mais acentuada. A cada dia, bilhes de

    informaes so processadas, aparatos tecnolgicos cada vez mais sofisticados so criados, o

    conhecimento se multiplica de maneira exponencial.

    As transformaes na maneira como o ser humano se insere no mundo e se relaciona com

    seus elementos implicam no nascimento de novas necessidades sociais que, dessa forma,

    provocam mudanas no papel da escola, que deve preparar a criana e o jovem para a sua

    insero nessa sociedade em movimento.

    Nas cincias, e especialmente nas cincias humanas, o paradigma cientfico da Ps-

    modernidade vem questionando o modelo da chamada cincia moderna, nico considerado

    vlido durante muitos sculos. Segundo Kinchloe (1997), o nascimento da cincia moderna,

    3 (MORIN, 2000b: 26)

  • 15

    no final da Idade Mdia, relacionou-se com a ruptura da rgida organizao feudal da

    sociedade medieval, em que o saber estava instalado no divino. A Verdade de Deus,

    representada pela Igreja, era absoluta e incontestvel, de modo que o movimento cientfico

    nasceu imbudo da necessidade de garantir verdades absolutas e de ser, tambm,

    incontestvel.

    Nos ltimos sculos, a sociedade ocidental viveu o apogeu da dominao da cultura europeia,

    justificada pela excelncia de sua Cincia. O sculo XX, talvez o mais veloz em

    transformaes j vividas pelo Homem, assistiu ao pice das conquistas cientfico-

    tecnolgicas, conquistas essas que tanto podem salvar a humanidade de muitos males como

    podem levar a sociedade barbrie da destruio de povos, naes, valores, culturas - da

    prpria espcie humana.

    A tese que gostaria de discutir a de que desbarbarizar tornou-se a questo

    mais urgente da educao (...). Entendo por barbrie algo muito simples, ou

    seja, que, estando na civilizao do mais alto desenvolvimento tecnolgico,

    as pessoas se encontrem atrasadas de um modo peculiarmente disforme em

    relao a sua prpria civilizao (...) que contribui para aumentar ainda mais

    o perigo de que toda esta civilizao venha a implodir (...). Considero to

    urgente impedir isto que eu reordenaria todos os outros objetivos

    educacionais por esta prioridade. (ADORNO, 2010: 155)

    Os avanos tecnolgicos dos meios de comunicao e de transporte diminuram as dimenses

    do planeta, colocando a diversidade humana em contato. As concepes de neutralidade

    cientfica, de universo ordenado e imutvel, de verdade nica e de supremacia da razo,

    pilares da cincia moderna, segundo Morin (2000a), no se sustentam diante da velocidade

    das transformaes sociais, da pluralidade da produo cultural humana, do reconhecimento

    da condio histrica do Homem.

    A tenso entre o encanto e o desencanto, aquilo que une e o que separa e

    desagrega, o que rene e o que sobra dessa re-unio, o que cenrio,

    representao do real e o cotidiano fragmentrio de nossas aes, constitui

    hoje questo que abala e desafia nossa tradio de compreender

    modelarmente o mundo e nossa crena nas grandes solues para os

  • 16

    problemas da humanidade. A Histria pe em questo as utopias

    iluminadoras/salvadoras e as fronteiras do conhecimento desafiam nossos

    modelos. (GATTI, 1995: 13)

    A crtica ps-moderna ao reducionismo da cincia moderna se faz presente em vrios mbitos

    do discurso acadmico, na filosofia e tambm nas artes, em busca de novas possibilidades de

    construes tericas e culturais. No paradigma ps-moderno da complexidade, pensa-se

    sempre em um interjogo de fatores que nunca podem ser compreendidos descontextualizados,

    uma vez que so constitudos nesse inter-jogo, simultaneamente formam e so formados

    nele, em processos incessantemente dinmicos, histricos, inacabados.

    Segundo Kincheloe (1997), a escola da cincia moderna tinha como funo transmitir, aos

    mais jovens, aquilo que j havia sido consagrado como conhecimento, (...) em nome da

    neutralidade, uma viso particular do propsito educacional, que afirma que as escolas

    existem para transmitir cultura sem comentrios. (KINCHELOE, 1997: 21). Na mudana

    paradigmtica que vivemos, a ao educacional deixa de ser apenas informativa e de objetivar

    a manuteno da organizao social j existente. A sociedade ps-moderna clama por

    originalidade, flexibilidade e criatividade para enfrentar as novas situaes e os novos

    desafios que vo se apresentando, a todo o momento, em uma sociedade em veloz

    transformao. Cabe educao resgatar o desenvolvimento do ser humano em toda a sua

    complexidade e diversidade, para que sejam ampliadas as suas possibilidades de criao de

    novos saberes e de novos caminhos. Cabe educao do terceiro milnio, segundo Morin,

    desenvolver o pensamento complexo, que

    (....) no absolutamente um pensamento que elimina a certeza pela

    incerteza, que elimina a separao pela inseparabilidade, que elimina a

    lgica para permitir todas as transgresses. A caminhada consiste, ao

    contrrio, em fazer um ir e vir incessante entre as certezas e as incertezas,

    entre o elementar e o global, entre o separvel e o inseparvel. (....) No se

    trata de opor um holismo global e vazio ao reducionismo mutilante; trata-se

    de ligar as partes totalidade. (MORIN, 2000a: 212)

  • 17

    Nas ltimas dcadas, vrias pesquisas e projetos vm se debruando na construo de

    abordagens pedaggicas que, ancoradas nos pressupostos da Ps-modernidade, buscam

    responder a essa realidade. O grande desafio promover uma prtica pedaggica que resgate

    o desenvolvimento do ser humano em toda sua complexidade e diversidade, reintegrando

    facetas que foram cindidas pela sociedade moderna.

    Tradicionalmente, de acordo com uma viso racionalista e dualista do ser

    humano, considerou-se a aprendizagem exclusivamente como um processo

    consciente e produto da inteligncia, deixando o corpo e os afetos fora; mas

    se houve humanos que aprenderam porque no fizeram caso de tal teoria e

    fugiram dos mtodos educativos sistematizados. (FERNNDEZ, 1990: 47)

    As polticas pblicas e os projetos poltico-pedaggicos precisam priorizar aes que

    (re)integrem, no processo de ensino e de aprendizagem, a construo do conhecimento e o

    desenvolvimento de habilidades no s cognitivas, mas tambm socioemocionais. Para tanto,

    imprescindvel investir na formao dos professores, que precisam se preparar para

    organizar e orquestrar a cena pedaggica de maneira a contemplar o desenvolvimento integral

    dos estudantes.

    A questo que se coloca no mudar drasticamente a realidade da sala de aula, mas sim

    ampliar a ao pedaggica para alm da mera transmisso de contedos. A postura, a escuta,

    o olhar, a qualidade do vnculo que o professor estabelece com a situao de ensino-

    aprendizagem precisam impregnar-se das ncoras do paradigma da Ps-modernidade, de

    modo a considerar e contemplar as diferentes dimenses do ser humano e os mltiplos

    aspectos do aprender.

    A Psicopedagogia contribui para essa transformao no espao educacional ao propor um

    tipo de olhar especial que busca, intencionalmente, abarcar a complexidade da situao de

    ensino-aprendizagem e da constituio, amadurecimento e desenvolvimento do sujeito

    humano.

  • 18

    Ao integrar as contribuies tericas advindas dos vrios campos das

    cincias em torno do processo de aprendizagem humana, a Psicopedagogia

    cria uma forma peculiar de olhar este processo. O olhar psicopedaggico se reveste de uma preocupao em resgatar o interjogo dinmico e complexo de

    aspectos envolvidos na situao de aprendizagem: a particularidade dos

    indivduos que ali comparecem (o aprendente e o ensinante); a relao que

    se estabelece entre eles e entre eles e o objeto de conhecimento; as estruturas

    sociais s quais eles fazem parte (famlia, escola, sociedade). (ABED, 1996:

    11)

    O cenrio da complexidade, portanto, no uma reforma programtica, mas uma

    transformao no olhar, na forma de ver, entender, processar e atuar na realidade. Segundo

    Abreu Jr. (1996), a Ps-modernidade uma ruptura ideolgica e poltica, pois implica em um

    movimento de sada da dominao da cultura europeia, sustentada pelo cientificismo da

    verdade nica, em direo ao dilogo democrtico entre os diversos pontos de vista, entre as

    diversas culturas. Transcendendo para o tema discutido neste livro, podemos refletir sobre o

    movimento de se ultrapassar a hipervalorizao das habilidades cognitivas e do tratamento

    lgico do conhecimento para uma interlocuo entre as diferentes dimenses do ser humano

    na sua relao consigo mesmo, com a aprendizagem e com o mundo.

    Est subjacente pretenso de verdade nica da cincia moderna uma ideologia de excluso:

    excluso de outras formas de se conceber o mundo, de se apreender e de atribuir significado

    aos fenmenos, de expressar e de processar conhecimento. Complexidade no tem a ver com

    complicao e sim com o problema de se pensar monoliticamente sobre um tema cheio de

    imbricaes e interpretaes multifacetrias... (ABREU JR., 1996: 80).

    O paradigma ps-moderno se reveste de uma tica da diversidade, de uma perspectiva

    inclusiva no convvio entre as culturas em que o respeito, a solidariedade e a cooperao

    mtuos resgatam e valorizam o poder criativo da humanidade, expresso pela sua diversidade

    cultural. Conclama a dialtica, o dilogo das oposies: a ordem e o caos; o uno e o mltiplo;

    a razo e a emoo; a cincia, a filosofia e a arte; o homem, a sociedade e a natureza... O

    reconhecimento da pluralidade recoloca o Homem em sua dimenso de humanidade.

  • 19

    Para Morin (1999), o pensamento complexo resgata a duplicidade do pensamento e do

    conhecimento. Segundo o autor, os dois modos de pensamento humano, embora sejam

    antagnicos, devem ser dialeticamente complementares entre si: o pensamento

    emprico/tcnico/racional e o pensamento simblico/mitolgico/mgico.

    O primeiro dissocia, analisa, busca o isolamento e o uso tcnico-instrumental

    das coisas, a objetividade, as leis gerais, atravs de um forte controle lgico

    e do emprico exterior. Seu objetivo a explicao. O segundo associa,

    relaciona, sintetiza, busca a dimenso humana, a subjetividade, a

    singularidade, atravs de um forte controle analgico (metafrico) e da

    vivncia interior. Seu objetivo a compreenso. Explicao e compreenso

    esto dialeticamente interligadas numa relao complexa, ou seja, so

    simultaneamente complementares, concorrentes e antagnicas. (ABED,

    2002: 16)

    O pensamento complexo da Ps-modernidade traz, portanto, uma ruptura paradigmtica que

    tem implicaes no s nas cincias, mas em vrios mbitos da sociedade atual, inclusive na

    educao: a escola deve transformar-se em direo complexidade do conhecimento,

    abrindo-se para ir alm do j estabelecido.

    Sentir e fazer so a linguagem da educao, do conhecimento

    transdisciplinar: aquele conhecimento ativo que possibilita estabelecer

    contato com o mundo sem precisar de passaporte para navegar entre

    Cincia, Filosofia e a Arte. atravs da ao cognitiva que nos chegamos a

    ns mesmos, aos outro e ao mundo. O sentido da educao a perspectiva

    do encontro do homem consigo mesmo, com a Natureza e com a

    Sociedade: um ato de afeto e ternura (...). Promover o encontro verdadeiro

    entre Homem, Sociedade e Natureza o desafio da complexidade do

    conhecimento. Compartilhar esse conhecimento entre as pessoas o

    desafio da educao. (ABREU JR., 1996: 187)

    Se o conhecimento vlido no se restringe mais ao cientificamente consagrado como tal,

    no cabe escola apenas garantir que as novas geraes no percam o patrimnio conceitual

    j construdo pela humanidade em sua trajetria histrica. no espao educacional que as

    novas ideias devem ser cultivadas, que devem ser formados cidados aptos a dar continuidade

    construo do saber humano, ampliando-o em mltiplas e infinitas direes, abarcando a

    riqueza e a diversidade da produo cultural humana.

  • 20

    O professor deve assumir seu papel de mediador no s das relaes dos alunos com os

    objetos do conhecimento como tambm da sua constituio enquanto ser humano. Em uma

    sociedade em que as crianas e jovens passam um tempo considervel na escola,

    imprescindvel que as instituies de ensino assumam a responsabilidade pela formao

    global e integral dos estudantes - desde o Ministrio da Educao at cada um dos

    professores, a cada minuto de cada hora que est diante de seus alunos, dia aps dia.

    no espao educacional que, na sociedade atual, os valores de igualdade de direitos, de

    justia, de respeito pelas diferenas e de incluso devem ser cultivados a partir de uma ao

    educativa democrtica e igualitria. Mais uma vez: Ps-modernidade no apenas uma

    mudana programtica e paradigmtica, mas poltica e ideolgica.

    A escola um local privilegiado de encontro, de interlocuo, de

    questionamento, de construo e transformao do conhecimento.

    Conhecimento no s nos livros, mas nas experincias de cada um. Encontro

    no s de saberes, mas principalmente de pessoas, nas suas diversidades e

    nas suas riquezas pessoais e culturais. Um contato amoroso entre seres que

    preenchem a vida. (ABED, 2002: 23)

    O paradigma da Ps-modernidade sustenta-se na concepo de complexidade. A palavra

    complexus significa, originalmente, aquilo que tecido junto - preciso cerzir os rasgos

    do tecido dos fenmenos que haviam sido cindidos pela cincia moderna, recompondo sua

    constituio, reintegrando as mltiplas facetas da compreenso humana: o pensamento e a

    emoo, o abstrato e o concreto, o conhecimento vivencial e o formal, o ldico e o srio, a

    cincia e a arte, o discurso e a ao... O pensamento complexo um pensamento que procura

    ao mesmo tempo distinguir (mas no disjuntar) e reunir (MORIN, 2000a: 209). No se trata

    de negar a ordem e a lgica formal, mas de resgatar o tecido dinmico constitudo e

    constituinte de certezas com incertezas, de identidades com contradies, apreendidas atravs

    do raciocnio lgico formal integrado a outras formas de se processar conhecimento.

  • 21

    Da mesma forma, ressaltar o desenvolvimento das habilidades socioemocionais como

    objetivo da educao escolar no implica em desconsiderar os aspectos cognitivos, a

    construo de conhecimento e a transmisso de informaes. Resgatar o emocional e o social

    na prtica pedaggica significa, na verdade, realocar subjetividade e objetividade como

    duas facetas de um mesmo processo: o aprendizado.

    Alguns setores da sociedade vm se referindo s habilidades socioemocionais como no

    cognitivas, como se os aspectos emocionais e sociais do humano pudessem ocorrer sem a

    cognio, sem o pensamento (e o oposto: como se a cognio pudesse ocorrer de maneira

    independente das condies afetivas). uma mentira da Modernidade a ideia de que o ser

    humano cindido, dividido em pedaos independentes. A realidade multifacetada por

    natureza; a aprendizagem, aspecto fundante da realidade humana, tambm.

    Muitas so as habilidades de qualidade emocional que esto intrinsicamente envolvidas na

    aprendizagem: o interesse, engajamento e motivao para construir o vnculo com os

    ensinantes e com os objetos do conhecimento; a carga emocional que precisa ser investida na

    relao com o conhecimento, para que os aprendentes atribuam sentido pessoal e se

    posicionem criticamente em relao ao saber; a disponibilidade interna para persistir, para

    atravessar o caminho do aprender, que muitas vezes envolve dores e lutos; a resistncia

    frustrao para suportar o processo de amadurecimento ao longo da vida e tantas outras.

    Seria surpreendente que no experimentssemos alguma dor (...) mas a

    disposio de atravessar cada uma das passagens equivale disposio de

    viver abundantemente. Se no mudamos, no crescemos. Se no crescemos,

    no estamos realmente vivendo. (SHEEHY, 1988: 482)

    A aprendizagem humana , acima de tudo, relacional ocorre no seio de interaes entre as

    pessoas. Portanto, as habilidades de qualidade social tambm so inerentes ao processo de

    ensino-aprendizagem. Para aprender, necessrio estabelecer vnculos saudveis entre o

    ensinante, o aprendente e os objetos do conhecimento. necessrio inserir-se nos grupos

  • 22

    sociais, acatar as regras estabelecidas para o convvio em sociedade, respeitar os direitos e

    deveres dos cidados. Saber expressar-se com clareza, preocupando-se com a compreenso do

    outro, fundamental. preciso saber trabalhar em equipe, estabelecer metas em comum,

    postergar a satisfao das necessidades individuais em prol dos objetivos grupais, e muitas

    outras habilidades de convivncia, cooperao e colaborao.

    No s os alunos, mas tambm, e principalmente, os professores devem desenvolver suas

    habilidades socioemocionais. No grupo-classe, composto pelo docente e seus alunos, o

    professor um protagonista diferenciado: cabe a ele configurar os contornos e as matizes das

    relaes pessoais para promover aprendizagens significativas e duradouras em seus

    estudantes. O professor deve ser um mediador que, intencionalmente, observa, avalia, planeja

    e atua em prol da aprendizagem do outro.

    Para Freire (1970), a reflexo crtica componente essencial do processo educativo. Refletir

    criticamente no significa perder de vista os parmetros consagrados de conhecimento,

    acumulados por sculos e sculos de construo de saberes ao longo da histria da

    humanidade. A questo que se coloca tomar conscincia do sentido histrico, social e

    cultural dos conhecimentos, oportunizando outras representaes, diferentes anlises e pontos

    de vista, desde que bem fundamentados e nas esferas em que sejam possveis. Situar a

    verdade no tempo e no espao permite respeitar e valorizar a diversidade cultural humana,

    resgatando o poder criativo e intelectual do ser humano. Citando Morin (2000b: 86): o

    conhecimento a navegao em um oceano de incertezas, entre arquiplagos de certezas.

    H uma orao que traduz muito bem a essncia dessa ideia:

    Senhor, D-me serenidade para aceitar tudo aquilo que no pode e no deve ser

    mudado.

    D-me fora para mudar tudo o que pode e deve ser mudado.

    Mas, acima de tudo, d-me sabedoria para distinguir uma coisa da outra.

  • 23

    Cabe ao professor mediar a construo de um ambiente de ensino-aprendizagem democrtico,

    responsvel, coerente e participativo, onde se cultive o verdadeiro di-logo, ou seja, onde o

    logos (o conhecimento, o saber) possa ser compartilhado a dois o eu e o outro. O

    verdadeiro dilogo, em oposio ao solitrio mono-logo da aula expositiva e bancria

    (FREIRE, 1970), pressupe dois lados - o docente e o discente - que se aventuram na

    construo conjunta dos saberes: observam e pensam, expressam suas ideias e escutam outros

    pontos de vista, sentem e vibram, fantasiam e criam, enriquecendo-se mutuamente nesse

    encontro.

    fundamental que a prtica pedaggica, nas instituies de ensino, resgate o prazer de

    dialogar, de pensar, de posicionar-se, de aprender e de ensinar. preciso revestir os atos

    mentais de emoo, de vibrao, de sentidos pessoais, de significados. Apenas resgatando a

    subjetividade no processo de ensino e de aprendizagem que ser possvel garantir a

    verdadeira apropriao do conhecimento e sua transformao em saber. Segundo Fernndez, o

    saber supe a originalidade do desejo pessoal e a universalidade da inteligncia:

    (...) ao educador no deveria bastar-lhe que seu aluno faa bem as

    multiplicaes e divises, ou responda a uma avaliao. Existe um sinal

    inconfundvel para diferenciar a ortopedia da aprendizagem: o prazer do

    aluno quando consegue uma resposta. A apropriao do conhecimento

    implica no domnio do objeto, sua corporizao prtica em aes ou em

    imagens que necessariamente resultam em prazer corporal. Somente ao

    integrar-se ao saber, o conhecimento apreendido e pode ser utilizado.

    (FERNNDEZ,1990: 59)

    Em sntese, resgatar os aspectos socioemocionais na prtica pedaggica implica em

    transformar, na escola, as interaes sociais e as relaes com o conhecimento. Sustentar

    essas mudanas nos pressupostos da Ps-modernidade no significa um vale tudo, mas sim

    uma costura cuidadosamente elaborada entre as partes, que foram historicamente cindidas

    pela Modernidade, para a reconstruo de um todo coerente e em constante movimento. Esta

    nova etapa da construo do conhecimento exige arcabouos tericos que lhe confiram

  • 24

    coerncia e sustentabilidade. o que veremos no prximo captulo. Antes, porm, vale

    esquematizar algumas das principais caractersticas que marcam o pensamento moderno

    cujas limitaes estamos lutando por ultrapassar e as ampliaes advindas do paradigma da

    Ps-modernidade que estamos batalhando por conquistar.

    MODERNIDADE PS-MODERNIDADE

    Cultura da ciso, da fragmentao, Cultura do diferenciar e integrar.

    Busca pelo saber absoluto, pela certeza, pela

    tica da verdade nica: certo ou

    errado.

    Flexibilizao, mltiplas dimenses do

    saber, articulao entre diferentes

    perspectivas.

    Supremacia apenas da razo, da inteligncia

    lgica.

    Valorizao e desenvolvimento das

    mltiplas inteligncias do ser humano,

    inclusive a lgica.

    nfase apenas nas habilidades cognitivas e

    nos contedos programticos.

    Foco no s nos contedos e habilidades

    cognitivas, mas tambm na construo de

    novos saberes e no desenvolvimento

    socioemocionais.

    Supremacia do pensamento ocidental. Convivncia pacfica e respeito mtuo entre

    as diferentes culturas.

    Autoritarismo, poder do saber absoluto. Democracia do saber.

    Busca da hegemonia (o certo). Aproveitamento da diversidade humana.

    Domnio. Troca.

    Educao para a intelectualidade. Educao para a intelectualidade e o amor.

  • 25

    3. Desenvolvimento humano e aprendizagem

    "Estude o passado, se quiseres decifrar o presente. Confcio

    4 A alegria que se tem em pensar e aprender faz-nos pensar e aprender ainda mais. Aristteles5

    Este captulo tem o objetivo de apresentar, de maneira panormica, alguns referenciais

    tericos que possam sustentar a conexo e interrelao entre os aspectos sociais, emocionais e

    cognitivos no processo de ensino e aprendizagem.

    Vrios so os autores que oferecem sustentao para a construo de caminhos pedaggicos

    que promovam as transformaes na configurao do espao educacional e o

    desenvolvimento do pensamento complexo. No se pretende realizar uma varredura sobre o

    tema, nem tampouco um estudo aprofundado dos tericos escolhidos, mas sim pontuar alguns

    conceitos que podem apoiar esta caminhada.

    3.1. Jean Piaget (1896-1980)

    Segundo Kincheloe (1997), Piaget inaugura o interacionismo ao propor que o conhecimento

    uma construo que se d na interao de um sujeito ativo com o meio, em constantes

    processos de desequilbrio e busca de novo equilbrio. A viso interacionista quebra a

    dicotomia sujeito/objeto, colocando nfase na relao dinmica, na interdependncia entre os

    aspectos ligados ao sujeito que conhece e aos estmulos e condies do ambiente que o cerca.

    Assim, fica sem sentido a pergunta: o aprender determinado por fatores inatos ou

    ambientais? Nem uma coisa, nem outra, mas sim a histria de relaes entre o orgnico e o

    social.

    4 Fonte: http://www.rh.com.br/Portal/frases.php

    5 Idem

  • 26

    Na abordagem interacionista de inspirao piagetiana, a escola deixa de ser o transmissor do

    conhecimento j consagrado, mas o local em que esta interao sujeito / objeto do

    conhecimento cuidada no sentido de se promover, nos alunos, a construo de estruturas

    cognoscentes cada vez mais complexas e adaptativas. O professor deixa de ser o detentor e o

    transmissor do saber para ser um organizador de situaes significativas de desequilbrios que

    levem os alunos busca ativa da construo dos saberes.

    Wadsworth (1997) ressalta que Piaget prope quatro fatores importantes para o

    desenvolvimento cognitivo do ser humano: a maturao, a experincia ativa, a interao

    social e o processo de equilibrao.

    A maturao est relacionada aos fatores orgnicos, hereditariedade, s caractersticas de

    desenvolvimento biolgico da espcie humana. Os aspectos maturacionais indicam se a

    construo de determinadas estruturas possvel em um dado momento do desenvolvimento

    da criana.

    (...) a maturao (fatores herdados) coloca amplas restries ao

    desenvolvimento cognitivo. Estas restries mudam medida que a

    maturao progride. A realizao do potencial subentendido por estas restries, a qualquer ponto do desenvolvimento, depende as aes da

    criana sobre o seu meio. (WADSWORTH, 1997: 20)

    Um aspecto da obra de Piaget que no to conhecido diz respeito aos trs tipos de

    conhecimento: o social, o fsico e o lgico-matemtico. Cada tipo de conhecimento requer

    uma qualidade diferente de experincia ativa na interao com os objetos e com as pessoas.

    O conhecimento fsico refere-se apropriao das caractersticas fsicas dos objetos. A fonte

    deste conhecimento est localizada nos objetos e o processo de aprendizagem se d atravs do

    contato direto, corpreo, com esses objetos. So exemplos de conhecimento fsico as noes

    de cor, textura, tamanho, forma, gosto, cheiro etc. O conhecimento social liga-se aos

    contedos construdos pela cultura, pela sociedade em que o sujeito vive; sua fonte est nas

  • 27

    pessoas, exigindo, portanto, transmisso cultural. So exemplos: os fatos histricos, os signos

    lingusticos, as normas sociais de conduta etc. Finalmente, o conhecimento lgico-

    matemtico tem a sua fonte no nos objetos nem no social, mas na mente humana que capaz

    de construir relaes lgicas entre os objetos, classificando, ordenando e organizando os

    dados da realidade. Esse conhecimento tem que ser construdo ativamente pelo sujeito, pois

    ele s possvel a partir da construo de estruturas lgicas de pensamento.

    Em geral, os objetos do conhecimento apresentam, de maneira interligada, caractersticas

    fsicas, sociais e lgicas. Um exemplo bastante simples: a noo de que um objeto maior

    que outro, um elefante maior do que uma formiga. A dimenso de tamanho caracterstica

    que pertence aos objetos (um conhecimento fsico), mas a mente humana que coloca um

    objeto ao lado do outro e os compara, criando uma relao lgica entre eles. J o termo

    maior, utilizado para nomear essa relao, cultural, portanto um conhecimento social.

    A interao social concebida como o intercmbio e confronto de ideias entre as pessoas.

    Particularmente importante para o desenvolvimento dos conhecimentos sociais, que por sua

    natureza so arbitrrios e socialmente definidos e validados, a interao social fundamental

    para criar os desequilbrios que promovem o desenvolvimento das estruturas cognoscentes.

    Na teoria de Piaget, o fator da equilibrao coordena e integra os trs fatores anteriormente

    citados (maturao, experincia ativa e interao social). A equilibrao o processo de

    autorregulao das interaes da criana com o meio, o que permite que as experincias

    sejam incorporadas s estruturas internas do sujeito. Diz respeito constante busca de

    restaurar o equilbrio pelos processos de assimilao e acomodao: a assimilao a face do

    processo cognitivo pelo qual um novo dado ou uma nova experincia integrado a um

    esquema ou padro j existente no sujeito; a acomodao a face do processo cognitivo pelo

  • 28

    qual os esquemas pr-existentes so modificados ou um novo esquema criado para ampliar a

    estrutura atual e possibilitar a assimilao de algum elemento que no cabia nas estruturas

    do sujeito.

    Na acomodao, h uma alterao no sujeito em funo de imposies de realidade, enquanto

    que na assimilao h uma transformao do objeto para que este se ajuste ao sujeito.

    Movimentos dialticos, assimilao e acomodao so os componentes do esforo ativo do

    sujeito em se adaptar ao seu ambiente e manter-se em equilbrio com ele. Pela assimilao, os

    esquemas internos se fortalecem; pela acomodao, os esquemas internos se ampliam.

    Piaget prope uma sequncia de desenvolvimento em que as idades cronolgicas so um

    pouco variveis, porm a ordem das aquisies constante. Estas aquisies dependem da

    idade da criana tanto no que diz respeito ao seu amadurecimento neurofisiolgico, como

    tambm ao repertrio de aquisies que j esto escritas em sua histria pessoal. Por outro

    lado, dependem do meio ambiente no sentido do alimento que ele esteja oferecendo a esta

    criana, possibilitando a ela exercitar e vivenciar experincias com os objetos e promover

    condies de intercmbio social e de linguagem.

    Na troca com o ambiente, o desenvolvimento intelectual se d em um processo de

    restabelecimento do equilbrio perturbado, ou seja, algo novo que deve se encaixar na

    estrutura j existente. Tanto o algo novo como a estrutura j existente precisam se ajustar

    (assimilao e acomodao) para que este encaixe possa ocorrer. Ou seja, uma experincia s

    passvel de ser aprendida na medida em que ela seja assimilvel. A experincia tem que

    estar dentro de certos limites (faixa de desequilbrio): de um lado, suficientemente nova

    para provocar o desequilbrio e, de outro, no nova demais para que possa ser digerida. Se a

  • 29

    experincia estiver muito alm das possibilidades da criana, esta no ter recursos

    necessrios para aproximar-se, acomodar-se a ela e assimil-la.

    A construo do conhecimento lgico foi o foco principal das pesquisas de Piaget e o aspecto

    mais conhecido de sua obra. Talvez por isso a prtica pedaggica de inspirao piagetiana

    tenha se limitado, muitas vezes, construo do conhecimento lgico. Ou pior, por vezes

    confundiram-se os tipos de conhecimentos, esperando que a criana construsse conhecimento

    social, eximindo-se de seu papel de transmissor deste tipo de conhecimento. Na alfabetizao,

    por exemplo, as estruturas de pensamento para compreender o funcionamento lgico da

    lngua devem ser construdas pela mente da criana (como nos aponta a obra de Emlia

    Ferrero6), pois um conhecimento lgico, mas a correta ortografia das palavras deve ser

    transmitida criana pelo adulto, pois um conhecimento social, portanto arbitrrio.

    Piaget considerava o desenvolvimento psicolgico como uno, ou seja, um processo que

    engloba tanto aspectos cognitivos como afetivos. Entretanto, suas pesquisas focaram

    amplamente a construo das estruturas cognitivas que permitem ao ser humano conquistar o

    pensamento lgico. A dimenso afetiva inclui a motivao, os sentimentos, os interesses, os

    valores, que se constituem como fatores energticos das interaes entre sujeito e objeto

    que promovem o desenvolvimento cognitivo e a construo do conhecimento. (PIAGET,

    2005). Pouco antes de sua morte, em 1980, Piaget afirmou em uma entrevista que deixava

    aos seus seguidores a tarefa de pesquisar como os aspectos emocionais e sociais interferem

    no desenvolvimento cognitivo e na construo do conhecimento.

    Encontramos, na Psicopedagogia, estudiosos que atenderam ao seu desejo...

    6 Ver a respeito: FERREIRO &TEBEROSKY, 1999.

  • 30

    3.2. Alicia Ferndndez (1944 - )

    Piaget estudou o sujeito epistmico, seu interesse cientfico era como o ser da espcie

    humana constri estruturas lgicas de pensamento. A Psicopedagogia deu continuidade

    estudando sujeitos psicolgicos, pessoas encarnadas que vivem inseridos em experincias

    altamente emocionais, interagindo socialmente com outros sujeitos, situados em uma cultura,

    em um meio social, em um ambiente familiar. Teorias psicopedaggicas vm se debruando

    na compreenso de como as relaes vinculares, especialmente as primeiras relaes do beb,

    influenciam os rumos da construo das estruturas cognitivas, ou seja, impactam nos

    processos de assimilao e acomodao.

    Autores da Psicopedagogia vm se dedicando a pesquisas e construes tericas que focam as

    interaes entre os mltiplos aspectos da aprendizagem humana, buscando cerzir as

    contribuies parciais de vrias reas do conhecimento - Psicologia, Pedagogia, Sociologia,

    Antropologia, Neurologia, Lingustica etc - em um corpo terico coerente e dinmico.

    Segundo Ramos (2009), h controvrsias sobre o incio da Psicopedagogia. Para Bossa

    (2007), possvel identificar os primrdios da Psicopedagogia com a criao dos primeiros

    Centros Psicopedaggicos fundados na Frana, em 1946, por Juliette Boutonier e George

    Mauco. Os mdicos desses centros contavam com uma equipe multidisciplinar, das reas da

    Psicologia, Psicanlise e Pedagogia, para auxiliar no diagnstico e tratamento de crianas e

    jovens com problemas de comportamento e de aprendizagem. Com enfoque mdico-

    pedaggico, a chamada reeducao consistia em identificar e tratar as dificuldades

    apresentadas por meio de classificao dos desvios, medicao e planos de interveno com o

    intuito de readaptar o doente ao seu meio familiar, social e escolar.

  • 31

    Nos anos subsequentes, comeou a crescer a preocupao com crianas e adolescentes que,

    embora no apresentassem deficincias fsicas, mentais ou sociais, apresentavam baixo

    rendimento escolar. Ainda em um vis mdico, acreditava-se que os problemas de

    aprendizagem eram causados por disfunes neurolgicas to pequenas que no eram

    detectveis pelos exames. O termo Disfuno Cerebral Mnima DCM generalizou-se,

    principalmente na dcada de 70, como explicao para a ocorrncia desse fenmeno. A

    principal preocupao passou a ser o diagnstico diferencial e a elaborao de aes

    reeducadoras que contribussem para o desaparecimento dos sintomas e a readaptao

    pedaggica do aluno. A esse tipo de atuao deu-se o nome de Pedagogia Curativa.

    Janine Mery, em 1978, lanou o livro Pedagogie Curative Scolaire Et Psychanalyse. Nele,

    a autora apresenta e discute o papel do psicopedagogo enquanto um professor-terapeuta: de

    fato, o psicopedagogo um professor, mas um professor de um tipo especial: ele deve

    realizar sua tarefa de pedagogo sem perder de vista os propsitos teraputicos de suas

    aes. (MERY, 1985: 16)

    A autora utiliza conceitos advindos da Psicanlise como base para uma mudana de postura

    que ultrapassa a viso patologizante do no aprender: necessrio compreender a relao

    educativa psicopedagogo/paciente e propor intervenes teraputicas nessa relao. A atuao

    do profissional no se restringe, portanto, reeducao com o objetivo de adequar uma

    criana com distrbio ao processo de escolarizao. O psicopedagogo deve, ao invs disso,

    equilibrar duas polaridades do seu papel: por um lado, manter o foco nos processos de

    construo do conhecimento e sucesso escolar; por outro, promover a compreenso da

    dinmica da criana nas suas relaes pessoais com o prprio terapeuta, que desvelam a sua

    maneira peculiar de ser e de estar no seu meio familiar, escolar e social (noo de

    transferncia, em Psicanlise) e do sentido ao sintoma.

  • 32

    Essa corrente francesa influenciou significativamente o nascimento da Psicopedagogia na

    Argentina e, posteriormente, no Brasil. Na dcada de 70, em Buenos Aires, surgiu o primeiro

    curso de Psicopedagogia e, em Porto Alegre, foram criados os primeiros cursos em

    Aconselhamento Psicopedaggico. Em 1979, aps vrios anos de prticas de cunho

    psicopedaggico, um grupo de educadores paulistas, formados sob a influncia da abordagem

    argentina, fundou o primeiro curso de especializao em Psicopedagogia no Brasil, no

    Instituto Sedes Sapientiae, em So Paulo.

    Desde a publicao de A Inteligncia Aprisionada, em 1987, a argentina Alicia Fernndez

    vem aprofundando os estudos, iniciados por Sara Pain, e construindo uma slida teoria

    psicopedaggica interrelacionando o desenvolvimento cognitivo, segundo a epistemologia

    gentica de Jean Piaget, e as contribuies da Psicanlise, especialmente Lacan e Winnicott,

    sobre o desenvolvimento emocional humano.

    O ser humano nasce muito frgil e depende totalmente do meio ambiente para sobreviver. Do

    ponto de vista orgnico, o beb precisa de algum que o alimente, o limpe, o proteja. Do

    ponto de vista psquico, o beb humano precisa das relaes que estabelece com outros seres

    humanos para se constituir enquanto sujeito (WINNICOTT, 1975) e para desenvolver as

    Funes Psicolgicas Superiores prprias da raa humana (VYTOTSKY, 1991). Ou seja, ns

    nos constitumos enquanto seres humanos nas e pelas aprendizagens promovidas pelas

    interaes com o entorno social. O Homem torna-se humano porque aprende. um ser

    histrico e social, cada gerao acumula e amplia os conhecimentos das geraes anteriores.

    As situaes sociais de aprendizagem envolvem dois protagonistas, o ensinante e o

    aprendente, uma relao que se estabelece entre eles e entre eles e os objetos do

    conhecimento, ou seja, envolve uma triangulao:

  • 33

    Objetos do conhecimento

    Ensinante Aprendente

    Segundo Fernndez (1990), h quatro aspectos, interdependentes e indissociveis, que

    constituem cada um dos protagonistas que comparecem situao de ensino-aprendizagem: o

    organismo, o corpo, a inteligncia e o desejo.

    A distino entre organismo e corpo fundamental para ultrapassar o dualismo organismo-

    psiquismo. O organismo diz respeito aos processos biolgicos, carga gentica herdada, aos

    potenciais e delimitadores fsico-qumicos do funcionamento orgnico. Um organismo

    saudvel e bem estruturado base para uma boa aprendizagem, mas no suficiente; da

    mesma forma, um organismo com algum distrbio ou deficincia pode dificultar a

    aprendizagem, mas no o determinante do problema de aprendizagem.

    O corpo construdo de maneira especular, ou seja, nas relaes com um Outro7 que serve

    como um espelho para que o ser humano possa ver a si mesmo e tomar posse, apropriar-se

    do seu organismo. O corpo construdo e reconstrudo dia a dia pela forma particular com

    que cada um usa o organismo herdado, de acordo com os ditames de seus desejos e de sua

    inteligncia. A inteligncia refere-se ao nvel cognitivo e autoconstruda nas interaes com

    o ambiente, por meio da construo e reconstruo contnua de estruturas cognoscentes pelo

    processo de equilibrao entre assimilao e acomodao; o desejo diz respeito aos processos

    subjetivantes, ao investimento de energia, atribuio de sentido, tanto consciente como

    inconsciente.

    7 Em Psicanlise, utiliza-se Outro, com letra maiscula, para se referir ao no-eu.

  • 34

    Assim como a inteligncia tende a objetivar, a buscar generalidades, a

    classificar, a ordenar, a procurar o que semelhante, o comum, ao contrrio,

    o movimento do desejo subjetivante, tende individualizao,

    diferenciao, ao surgimento do original de cada ser humano nico em

    relao ao outro. (FERNNDEZ, 1990: 73)

    O organismo, transversalizado pela inteligncia e pelo desejo, constri e reconstri o corpo ao

    longo de toda a vida. Aprender incorporar, incorporar significa colocar no corpo, tornar

    parte de si mesmo algo que no o era antes do aprendizado. no corpo que a aprendizagem se

    inscreve: o corpo coordena e a coordenao resulta em prazer, prazer de domnio

    (FERNNDEZ, 1990: 59).

    Fonte: Inteligncia Aprisionada, Alicia Fernndez, pgina 53

    O ensinante no transmite o conhecimento, como se entregasse um pacote ao outro; no se

    aprende simplesmente pegando um contedo transmitido e colocando-o no bolso. Se o

    conhecimento no passar a fazer parte das entranhas do aprendente, ele no aprendeu de fato,

    no tornou seu um conhecimento que do Outro o conhecimento, portanto, permanece

    externo. Quantas vezes o aluno consegue apenas reproduzir um conhecimento, sem dominar o

    contedo, sem operar com ele... Quantas vezes sabe apenas o suficiente para passar na prova e

    depois, esquece...

  • 35

    Ao invs de transmitir o conhecimento como se fosse uma mercadoria para o aluno adquirir, o

    ensinante, com o seu corpo, apresenta ao aprendente os sinais desse conhecimento para que

    este, ao interagir ativamente com o conhecimento, com seu organismo, seu corpo, seu desejo

    e sua inteligncia, possa constru-lo em si mesmo. Ao revestir o conhecimento de prazer e de

    sentido, o ensinante oferece ao aprendente o seu prprio prazer para que o aprendente possa

    destruir o conhecimento que recebe e reconstru-lo a partir da sua prpria subjetividade,

    atribuindo-lhe sentido e valor. Incorporando-o, tomando-o como parte de si.

    (...) atravs do olhar, as modulaes da voz e a veemncia do gesto,

    canalizam-se o interesse e a paixo que o conhecimento significa para o

    outro (...). Consequentemente, a descorporificao da transmisso despoja o

    transmitido de todo interesse e garante seu esquecimento. (FERNNDEZ,

    1990: 60)

    Para que a aprendizagem acontea, necessrio que se construa um espao de confiana entre

    aquele que ensina e aquele que aprende. No aprendemos de qualquer um, aprendemos

    daquele a quem outorgamos confiana e o direito de ensinar. (FERNNDEZ, 1990: 52)

    Um professor no um ensinante, na vida do aluno, a no ser que seja instalado por ele nesse

    lugar. Quem autoriza o outro a ensinar-lhe o aprendente, mas o ensinante que, por meio do

    seu amor e interesse, do seu corpo e do seu prazer pelo conhecimento, desperta no aprendente

    o desejo de aprender.

    O conceito de modalidade de aprendizagem central nessa abordagem. Com base em

    pressupostos advindos da Psicanlise, as modalidades de aprendizagem dizem respeito ao

    molde relacional que cada um utiliza para organizar um conjunto de aspectos, tanto

    conscientes quanto inconscientes, da relao pessoal com o conhecimento: aspectos lgicos,

    de significao, simblicos, corpreos, estticos.

    A modalidade de aprendizagem marcar uma forma particular de relacionar-

    se, buscar e construir conhecimentos, um posicionamento de sujeito diante de

  • 36

    si mesmo como autor de seu pensamento, um modo de descobrir-construir o

    novo e um modo de fazer prprio o alheio. (FERNNDEZ, 2001: 88)

    No seu livro Os idiomas do aprendente, de 2001, Alicia Fernndez prope uma modalidade

    saudvel, em que h equilbrio e alternncia entre assimilao e acomodao, e trs

    modalidades que perturbam o aprender. Para compreend-las, necessrio visitarmos,

    rapidamente, alguns fundamentos sobre o desenvolvimento emocional humano.

    Donald Winnicott, pediatra e psicanalista ingls, estudou a fundo o nascimento do psiquismo

    humano, as primeiras relaes vinculares e suas influncias na constituio do sujeito.

    Segundo Winnicott (1975), ao nascer, o beb humano vive uma primeira fase de simbiose,

    como se a realidade fosse um prolongamento de si mesmo. Uma me suficientemente boa 8

    e um ambiente suficientemente bom oferecem a ele a sustentao necessria, o holding

    para que possa viver essa iluso de continuidade do ser que lhe d condies de se instalar

    em seu psiquismo. Aos poucos, conforme o beb se fortalece emocionalmente e se torna mais

    capaz de suportar frustraes, amplia-se cada vez mais a funo de apresentao do mundo

    em pequenas doses, promovendo aos poucos a desiluso que faz com que o beb se

    diferencie. A condio inicial de unicidade (1) evolui para o dual (2) em um processo de

    diferenciao que vai, aos poucos, construindo a noo de eu e de no-eu.

    O autor prope uma rea intermediria entre o eu (realidade subjetiva) e o no eu

    (realidade externa): o espao transicional ou potencial. Esta uma regio paradoxal, pois

    composta por objetos e fenmenos que, apesar de pertencentes ao no eu, so fortemente

    impregnados pelo mundo subjetivo.

    (...) este paradoxo (eu/no-eu) necessita ser permitido, e permitido no

    cuidado de cada beb (...) No para ser resolvido. possvel resolver o

    8 Os termos entre aspas so os utilizados por Winnicott para descrever o desenvolvimento emocional do beb.

    A palavra holding foi mantida em ingls, por se considerar que no h uma traduo que mantenha o sentido original.

  • 37

    paradoxo por meio de uma fuga para um funcionamento intelectual

    dissociado, mas o preo a pagar por isto a perda do valor do prprio

    paradoxo. (WINNICOTT, apud DAVIS & WALLBRIDGE, 1982: 75)

    Para Fernndez (1990), o conhecimento o terceiro elemento, que promove a passagem do

    vnculo a 2, me-beb para a constituio da triangulao a 3, ensinante-aprendente-objeto

    do conhecimento:

    Tudo comea na triangulao do primeiro olhar. No primeiro momento, a

    me ou seu equivalente busca os olhos da criana e a criana busca seus

    olhos; aqui h um encontro necessrio para que haja aprendizagem, mas logo

    a me olha para outro lado, objeto ou pessoa, e seu filho tambm desvia o

    olhar para esse mesmo lado. Seus olhares encontram-se em um objeto

    comum, um objeto de reencontro, quer dizer, desse olhos nos olhos vai haver

    um deslocamento at outros objetos do conhecimento. (SARA PAN apud

    FERNNDEZ, 1990: 28)

    As modalidades de aprendizagem que perturbam a aprendizagem so resultantes de desajustes

    nos processos de assimilao e acomodao em funo de excesso, falta ou inadequao

    desses cuidados primrios: o holding e a apresentao de mundo em pequenas doses.

    Retomando os conceitos piagetianos. Pela assimilao, o sujeito utiliza esquemas j existentes

    em sua estrutura cognoscente para incorporar a nova experincia. Isso implica em adequar a

    realidade s condies dos recursos internos do sujeito, ou seja, a estrutura do sujeito que

    dita os contornos, o colorido da interao. Essa face da adaptao fortalece os esquemas j

    existentes. Pela acomodao, os esquemas so modificados ou novos esquemas so

    construdos para atender a uma exigncia da nova experincia, que no cabe nas estruturas

    prvias. Na acomodao, o objeto do conhecimento que se impe na interao; essa a

    face do processo que amplia os recursos internos disponveis ao sujeito.

    Refletindo sobre os processos de assimilao e acomodao, Sara Pain (1985) props e

    descreveu quatro tipos de desajustes nos processos representativos, sintetizados rapidamente

    abaixo:

  • 38

    - hipoassimilao: processos de assimilao insuficientes; esquemas empobrecidos e dficit

    ldico.

    - hiperassimilao: processos de assimilao exagerados e inadequados; predomnio ldico e

    excesso de subjetivao; o pensamento se afasta da realidade.

    - hipoacomodao: processos de acomodao insuficientes; desrespeito ao tempo da criana

    para acomodar.

    - hiperacomodao: processos de acomodao exagerados e inadequados, com

    superestimulao da imitao, sem que a criana possa dispor de suas prprias expectativas e

    experincias.

    A partir da prtica clnica e aprofundamento terico em relao s interrelaes entre a

    construo da inteligncia e a constituio do sujeito desejante, Alicia Fernndez

    sistematizou, em 2001, as quatro modalidades de aprendizagens que, a seu ver, funcionam

    como moldes relacionais, como matrizes que organizam a forma como uma pessoa se

    relaciona consigo mesma como aprendente, com o outro como ensinante e com o

    conhecimento como um terceiro elemento da triangulao. Esse molde relacional mantm a

    tenso entre o que se impe como repetio/permanncia de um modo anterior de relacionar-

    se e o que precisa mudar nesse mesmo modo de relacionar-se. (FERNANDEZ, 2001b: 78)

    Na construo desse molde, fundamental a forma como a famlia atribui significado ao

    conhecer, o quanto autoriza a criana a ser autora de sua aprendizagem e como equilibra essas

    duas funes: de um lado, a permisso para a criana viver suas prprias experincias, repeti-

    las, process-las, um espao para perguntar, brincar e jogar com o conhecimento (relacionado

    ao holding winnicottiano); de outro lado, a interdio, a apresentao dos limites e das

    imposies da realidade (apresentar o mundo em pequenas doses). A primeira funo

    propicia a assimilao; a segunda, a acomodao.

  • 39

    Quando o ambiente suficiente bom, as exigncias da realidade e as demandas da

    subjetividade da criana encontram-se em um certo equilbrio dinmico. Como resultado, a

    modalidade de aprendizagem saudvel, ou seja, tanto o processo de assimilao como de

    acomodao ocorrem de maneira suficientemente adequada para promover a construo da

    inteligncia e o desenvolvimento do ser como aprendente.

    S O

    O termo suficientemente bom proposital na teoria winnicottiana: no h um certo e um

    errado, um valor exato e perfeito. Cada par me-beb nico, o que suficiente para um

    pode no ser para outro (WINNICOTT, 1975). O processo de constituio do sujeito

    dinmico, interminvel, h construes e reconstrues constantes que envolvem um sem

    nmero de emoes, de significaes, de representaes, tanto pessoais como culturais.

    As modalidades no saudveis de aprendizagem revelam algum tipo de desvio para alm da

    faixa do suficientemente bom. So elas:

    Hiperassimilao-hipoacomodao: um ambiente com dificuldade em impor os

    limites da realidade criana amplia demais o processo de subjetivao na relao

    com o conhecimento. Resultado: o desequilbrio que a realidade deveria impor no

    vivido, a criana acaba por assimilar experincias s suas estruturas pr-existentes

    de maneira inadequada. O novo no vivido como novo e no gera acomodao; ao

    contrrio, gera assimilaes distorcidas - a criana no amplia seus esquemas (no

    acomoda) e os esquemas existentes ficam confusos, hiperinclusivos, bagunados. a

    criana que faz do seu jeito, mesmo que esse jeito no atenda s necessidades da

    interao.

  • 40

    S O

    Hipoassimilao-hiperacomodao: no extremo oposto, um ambiente

    exageradamente controlador, que impe restries de maneira arbitrria e

    excessivamente autoritria, sem permitir criana a experimentao e a repetio de

    vivncias significativas, restringe demais o processo de subjetivao na relao com o

    conhecimento. Resultado: a criana imita, obedece, procurando acomodar-se s

    exigncias do meio, mas a verdadeira acomodao no acontece, as referncias

    permanecem externas, no transformam de fato as estruturas internas do sujeito que,

    assim, no pode assimilar as experincias. So as crianas copistas, que no

    conseguem incorporar o conhecimento pela precariedade do processo de subjetivao,

    que no lhe permitido.

    S O

    Hipoassimilao-hipoacomodao: nas modalidades anteriores, algo do movimento

    da adaptao estava de certa forma preservado, mesmo que com desvios. A

    modalidade hipo-hipo ocorre quando tanto a funo de holding com a de

    apresentao do mundo em pequenas doses ocorrem de forma deficitria,

    dificultando o contato tanto com a subjetividade como com os objetos. Os esquemas

  • 41

    so poucos e pobres, a criana parece que no estabelece o vnculo com o

    conhecimento. Parece esvaziada.

    S O

    Ao integrar a compreenso sobre o desenvolvimento cognitivo, segundo a epistemologia

    gentica de Piaget, e sobre o desenvolvimento emocional, pela tica da Psicanlise, fica muito

    evidente a importncia da escola desenvolver as habilidades socioemocionais, tanto no aluno

    como no professor. Implica em fortalecer os protagonistas da cena pedaggica para que

    possam estabelecer vnculos saudveis entre si e com os objetos do conhecimento,

    construindo de maneira eficiente e prazerosa essas relaes. Elementos essenciais para

    acomodar e assimilar, ou seja, para promover o desenvolvimento cognitivo e a aprendizagem.

    3.3. Lev Vygotsky (1896-1934)

    Mais um autor que merece destaque Vygostky, psiclogo russo que viveu os tempos de

    profundas transformaes sociais, culturais e polticas em seu pas, no incio do sculo XX.

    Com uma viso interacionista de ser humano, de desenvolvimento e de aprendizagem, esse

    autor aprofunda-se, em sua obra, nas questes culturais, nas mediaes sociais e no papel da

    linguagem na constituio humana.

    Apoiado nos pressupostos tericos do materialismo histrico e da dialtica marxista,

    Vygotsky aprofundou-se no estudo das funes psicolgicas superiores, que caracterizam e

    diferenciam a espcie humana. As funes tipicamente humanas referem-se aos processos

    voluntrios, s aes conscientemente controladas e mecanismos intencionais: a linguagem, a

    ateno, a lembrana voluntria, a memorizao ativa, o pensamento abstrato, o raciocnio

  • 42

    dedutivo, a capacidade de planejamento, a imaginao, entre outras. Segundo o autor, as

    formas superiores de comportamento consciente tm sua origem nas contnuas interaes

    entre os aspectos biolgicos/maturacionais e as relaes sociais que o sujeito estabelece no

    contexto cultural e histrico do qual faz parte.

    A partir das estruturas orgnicas elementares, determinadas basicamente pela

    maturao, formam-se novas e mais complexas funes mentais, dependendo

    da natureza das experincias sociais a que as crianas se acham expostas. Os

    fatores fisiolgicos preponderam sobre os sociais apenas no incio da vida.

    Aos poucos, o desenvolvimento do pensamento e o comportamento da criana

    passam a ser orientados pelas interaes que ela estabelece com pessoas mais

    experientes. (GARCIA, 2003: 19)

    A cultura compreende as forma pelas quais a sociedade organiza e expressa os conhecimentos

    disponveis, os instrumentos simblicos e fsicos que permeiam a forma de vida das pessoas

    em um determinado contexto social. Os sistemas simblicos, de origem sociocultural,

    medeiam as relaes dos seres humanos com o entorno e consigo mesmo. Dentre eles,

    Vygotsky destaca o papel da linguagem na organizao e desenvolvimento dos processos de

    pensamento e de aprendizagem. A inveno dos signos como mediadores simblicos

    anloga inveno dos instrumentos de trabalho, por meio dos quais o Homem relaciona-se

    com a realidade objetiva na luta pela subsistncia. Pela linguagem, o Homem toma

    conscincia da realizao de suas atividades, tanto fsicas como simblicas.

    Segundo Vygostky (1987), o ser humano se constitui nas e pelas relaes que estabelece com

    o meio social. Embora o autor tenha atribudo grande nfase aos fatores externos, o Homem

    no considerado como um mero produto dessas influncias socioculturais, uma vez que

    tambm cria, com suas aes, os patrimnios culturais. Em um processo histrico e dialtico,

    o ser humano vai sendo construdo e vai construindo seu meio circundante.

    (...) o reflexo psquico consciente ou imagem psquica (entendida enquanto

    contedo da conscincia formado a partir da apreenso do real) algo vivo,

    produzido pela atividade humana concreta, caracterizada pelo movimento

    dialtico permanente por meio do qual o objetivo se transforma em subjetivo.

  • 43

    Atravs da atividade prtica, a imagem psquica ou contedo da conscincia

    passa do sujeito ao objeto. O contedo objetivo da atividade prtica dos

    homens cristaliza-se no seu produto, podendo assim ser transmitido pela

    linguagem em toda a sua riqueza. Uma vez objetivado, o contedo da

    atividade torna-se socialmente disponvel e, ao ser internalizado pelos

    indivduos, cria nestes a imagem psquica ou a representao da realidade.

    (GARCIA, 2003: 41)

    Para Vygotsky, a capacidade humana de fazer relaes, planejar, comparar, lembrar supe um

    processo de representao mental que substitui o real e possibilita ao homem libertar-se das

    limitaes do aqui e agora. Essas representaes so mediadas pelos signos internalizados,

    que sustentam a relao social por permitir os significados compartilhados e, portanto, a

    comunicao entre as pessoas. Ao longo da histria da humanidade, as representaes da

    realidade se constituem em sistemas simblicos transgeracionais, em constante

    transformao.

    Pelo processo de interiorizao, as Funes Psicolgicas Superiores que se constroem no

    plano intersubjetivo (interaes sociais, atividades externas) so internalizadas para constituir

    o funcionamento intrapsicolgico, intrasubjetivo de cada um. Essa reconstruo interna no

    uma mera cpia do externo, mas uma apropriao pessoal das referncias socioculturais. A

    autorregulao, fundamento do ato voluntrio, nasce na internalizao dos processos que as

    crianas vivem com os limites e interpretaes que os representantes do seu meio

    sociocultural (os pais, os professores...) colocam nas suas interaes. Ou seja, o

    funcionamento no plano intersubjeitovo permite criar o funcionamento interno, pessoal.

    De acordo com Vygostky (1987), os adultos que cuidam de um beb no lhe

    proporcionam apenas cuidados fsicos, mas colocam sobre ele certas

    representaes sociais (imagens, ideias, expectativas) que o introduzem no

    mundo da cultura. Se o beb nasce num mundo simblico, em que os

    significados vo sendo usados pelos indivduos para controlar seu meio

    ambiente e a si prprios, na interao com os outros membros da sua

    cultura e com os meios de comunicao que ele, posteriormente, pode

    escolher entre diferentes modos de comportamento, construindo novos

    modos de ao. Paulatinamente, a criana vai construindo significados,

    conhecimentos, valores, num dilogo com ela mesma, com o outro e com o

    mundo... (MEIER & GARCIA, 2007: 59)

  • 44

    A linguagem humana fundamental nesse processo de constituio do sujeito, tendo duas

    funes bsicas: o intercmbio social e a organizao do pensamento: ... a linguagem

    simplifica e generaliza a experincia, ordenando as instncias do mundo real em categorias

    conceituais cujo significado compartilhado pelos usurios dessa linguagem. (OLIVEIRA,

    1992a: 27). Os conceitos refletem os atributos - necessrios e suficientes - selecionados pelos

    diferentes grupos sociais para defini-los. So, portanto, objetos da cultura.

    Os conceitos cotidianos ou espontneos so internalizados no decorrer das atividades da

    pessoa no seu dia a dia, em suas relaes sociais. J os conceitos cientficos so parte de

    sistemas organizados de conhecimentos, adquiridos por meio de situaes formais de ensino.

    O conceito cotidiano impregnado de experincias, de situaes vividas pelo sujeito que no

    tem, necessariamente, conscincia desse conceito a ponto de defini-lo por meio de palavras.

    Dessa forma, os conceitos cientficos devem implicar em processos metacognitivos, na

    organizao dos pensamentos em sistemas conscientes e controle deliberado que possam

    explicar os conceitos espontneos.

    Ao forar sua trajetria para cima, um conceito cotidiano abre o caminho

    para um conceito cientfico e seu desenvolvimento descendente. Cria uma

    srie de estruturas necessrias para a evoluo dos aspectos mais primitivos

    e elementares de um conceito, que lhe do corpo e vitalidade. Os conceitos

    cientficos, por sua vez, fornecem estruturas para o desenvolvimento

    ascendente dos conceitos espontneos da criana em relao conscincia e

    ao uso deliberado. (VYGOTSKY, 1987: 93-94)

    Vygotsky distingue dois aspectos das palavras que compem a linguagem: o significado

    propriamente dito e o sentido. O significado diz respeito ao uso compartilhado da palavra,

    que lhe concerne um ncleo relativamente estvel para que as pessoas que compartilham a

    lngua possam compreend-la. J o sentido refere-se ao que a palavra significa para cada

    indivduo, diz respeito ao contexto pessoal de uso da palavra e s vivncias afetivas que a

  • 45

    envolvem. O sentido da palavra liga seu significado objetivo ao contexto de uso da lngua e

    aos motivos afetivos e pessoais dos seus usurios. (OLIVEIRA, 1992b: 81)

    Assim, o autor relaciona o pensamento e a linguagem com as emoes e os valores, expressos

    na maneira como cada um atribui sentido pessoal aos elementos da cultura. Ou seja, o

    sentimento e a emoo so instrumentos mediadores para que o indivduo possa interagir no

    mundo externo, a caminho da construo seu mundo interno.

    Segundo Vygostky (1991), o brincar uma atividade rica em momentos emocionais.

    Brincando, a criana cria situaes de forma a atribuir sentidos aos objetos, presentes em seu

    dia a dia, com o propsito de favorecer seus desejos e necessidades de forma imediata. A

    emoo, no plano imaginrio do brincar, uma experincia que propicia criana

    compreender aquilo que caracteriza os personagens, as relaes sociais e as regras de

    comportamento, ou seja, colabora para que a criana possa elaborar os contedos, recebidos

    do grupo social, sobre a cultura que a cerca. O sentimento e a emoo, para Vygotsky,

    fornecem a motivao, so a mola propulsora do desenvolvimento das funes psicolgicas

    superiores e da aprendizagem.

    Para compreender como o ser humano aprende, o conceito de Zona de Desenvolvimento

    Proximal (ZDP) central na teoria do autor. A ZDP diz respeito a funes ainda emergentes

    no sujeito, a capacidades e habilidades que ainda precisam do apoio de um outro mais

    experiente. definida como a distncia entre aquilo que j constitui o funcionamento interno

    (nvel de desenvolvimento real) e aquilo que a pessoa j tem condies de fazer desde que

    conte com a ajuda de algum mais experiente, antes que o desenvolvimento se consolide e o

    sujeito adquira a independncia (nvel de desenvolvimento potencial).

    H duas implicaes desse conceito que concernem ao tema que estamos desenvolvendo: a

    avaliao das condies atuais cognitivas e socioemocionais com que o aluno comparece

  • 46

    relao de ensino-aprendizagem e as aes que o educador deveria realizar para atuar na

    ZDP e promover o desenvolvimento do aprendiz. Segundo o autor, uma ao educativa s

    boa quando faz progredir o estado atual do desenvolvimento para um patamar superior, ou

    seja, quando desperta e pe em marcha as funes que esto em processo de maturao, na

    ZDP.

    3.4. Henri Wallon (1879-1962)

    Wallon, psiclogo, mdico e filsofo francs, tem uma contribuio fundamental ao tema das

    habilidades socioemocionais: em sua obra, este autor aprofunda-se nas interrelaes entre os

    campos funcionais da motricidade, da inteligncia e da afetividade.

    Em 1947, Wallon coordenou o projeto Reforma do Ensino Francs, conhecido como

    Langevin-Wallon, calcado na concepo de que a escola deve proporcionar a formao

    integral dos estudantes: intelectual, afetiva e social. Na poca, era absolutamente

    revolucionria a ideia de que no s o cognitivo, mas tambm o corpo e as emoes das

    crianas comparecem sala de aula e devem ser consideradas.

    Para Wallon, o sujeito constri-se nas suas interaes com o meio, de modo que deve ser

    compreendido, em cada fase do desenvolvimento, no sistema complexo de relaes que

    estabelece com o seu ambiente. Contra simplificaes, aponta a importncia de se estudar a

    criana a partir de uma perspectiva global e dinmica, multifacetada e original, que possa

    apreender sua real complexidade. Coerente com seu embasamento epistemolgico no

    materialismo dialtico, o autor ope-se aos reducionismos e encara as contradies como

    inerentes realidade.

    (...) o materialismo dialtico, ao coordenar pontos de vista apresentados sob forma

    exclusiva e absoluta pelas diferentes doutrinas filosficas, a nica abordagem que

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    permite a superao das antinomias que entravam a objetiva compreenso da

    realidade. Buscando a compreenso dos fenmenos a partir dos vrios conjuntos dos

    quais participa e admitindo a contradio como constitutiva do sujeito e do objeto,

    este referencial apresenta-se como particularmente fecundo para o estudo de uma