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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM MAX FRANCIS FERNANDES CANCILIERI AS VOZES SOCIAS E O PODER DAS PERSONAGENS DAS NOVELAS DICKEANAS CUIABÁ 2011

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE LINGUAGENS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE

LINGUAGEM

MAX FRANCIS FERNANDES CANCILIERI

AS VOZES SOCIAS E O PODER DAS PERSONAGENS

DAS NOVELAS DICKEANAS

CUIABÁ

2011

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MAX FRANCIS FERNANDES CANCILIERI

AS VOZES SOCIAIS E O PODER DAS PERSONAGENS

DAS NOVELAS DICKEANAS

Dissertação apresentada ao

Programa de Pós-graduação em

Estudos de Linguagem da

Universidade Federal de Mato Grosso

como parte dos requisitos para

obtenção do titulo de Mestre em

Estudos de Linguagem.

Área de concentração: Estudos

Literários

Orientador: Prof. Dr. Mário

Cezar Silva Leite

CUIABÁ-MT

2011

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Para Nilson Esteves dos Reis - a

eternidade é a sua companheira.

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AGRADECIMENTOS

Para minha esposa, que me suportou em tardes tão rabujentas, e para

minha filhinha Luanda, que, por muitas vezes, rabiscou os originais deste

trabalho.

Para o Neres que nunca relutou no que achava ser correto.

Para meu orientador Mário, aquele que creditou em minhas mãos toda

seqüência de uma vida crivada de vitórias, deixando-me com a responsabilidade

de levar à frente suas conquistas.

Para minha avó Silvia: sei que um dia te perderei, mas tenho certeza que

Deus a terá para sempre.

Para meu grande Mentor Alexandre, “Coração gigante” – que seu corpo

abarque o tamanho da sua alma.

Para meus amigos de sala de aula que testemunharam minha luta sem me

esquecer especialmente do Paulo Wagner.

Para meu Senhor Deus, que me deu motivação e fortalecimento, teimosia e

vontade. Agradeço infinitamente.

A todos aqueles que, quando tive sede, deram-me água.

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A morte das mulheres é a morte das águas. A

morte do homem é a morte do fogo. Mas nem água nem

fogo fazem advinhanças. Advinha-se o tempo por meio

dos relógios, mas os relógios medem o tempo sem

advinhações. Perdoai senhor, o horror, porque as

mulheres já nascem perdoadas.

Ricardo Guilherme Dicke

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RESUMO

As qualidades literárias das obras do autor Ricardo Guilherme Dicke

servem hoje como referências de boas leituras até mesmo para os leitores mais

exigentes. Morto em 2008, Dicke deixou uma vasta obra que já foi foco de outros

trabalhos científicos anteriores a este. Dentre esses, destacamos as produções:

Toada do Esquecido e Sinfonia Eqüestre (2006), que nos promoveram uma

pesquisa inédita já que foram as últimas obras, publicadas depois de sua morte.

No escopo do nosso trabalho, essas obras serão analisadas basicamente pelo

prisma das vozes sociais, segundo o autor Mikhail Bakhtin, e pelo prisma da

formação de poder, segundo os fundamentos do autor Michel Foucault, além de

outros autores, Assim, seguindo os caminhos das “travessias humanas”, da morte,

da violência, dos ambientes inóspitos, do plano de enredo, do sertão mato-

grossense, do tempo e das reflexões levantadas em nossa análise, as vozes sociais

e o poder serão abordados a partir das considerações desses dois teóricos.

Reconhecida nacionalmente, a literatura novelística de Dicke promove uma

visitação ao estado filosófico do ser humano, confrontado com situações criticas

em que a vida e a morte sejam colocadas como caminhos recorrentes, em um

mundo mítico, cheio de representações que mexem com o leitor e fazem refletir

não só sobre a ideologia e os conceitos sociais existentes, mas também sobre a

forma com que essa ideologia e esses conceitos sociais traduzem essencialmente

poderes intra e extra-textos.

PALAVRAS CHAVE: Vozes sociais, Novelas, Dicke

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ABSTRACT

The literary qualities of the works of author Richard William Dicke now

serve as references of good reading for even the most discerning readers, who

died in 2008, Dicke left behind a vast work that had been studied also in other

scientific papers prior to this. Among these writings, productions: Chant of the

Forgotten and Equestrian Symphony (2006) reserves in an unpublished research

since the last writings were published after his death, so during the course of this

work their novels will be analyzed primarily by Dicke prism of social voices in

the author Mikhail Bakhtin, and training through the prism of power according to

the principles of the author Michel Foucault also provided with other authors that

support for this work to be conditioned. Thus, following the paths of "human

crossings, death, violence, harsh environments, the plot plan of the interior of

Mato Grosso, the weather and the considerations of this analysis, the voices and

the power should be detected and appraised in accordance with these

combinations. Nationally recognized, the novelistic literature of Dicke promotes

visitation to the state philosophy of the human being faced with critical situations

in which life and death pathways are placed as applicants, a mythical world full of

ideas that stir the reader and make us reflect not only on the ideology and the

existing social concepts, but also how this same ideology and social translate

these concepts essentially powers within and outside texts.

KEYWORDS: Social Voices, Soap, Dicke.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.....................................................................................................................

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CAPÍTULO 1: MULHER, PODER E REPRESENTAÇÃO:

APRENDENDO A FALAR..................................................................................................

13

1.1. Mulher e dominação........................................................................................... 13

1.2 . Dicke, vozes e poder.......................................................................................... 18

CAPÍTULO 2: TOADA DO ESQUECIDO ....................................................................... 46

2.1. A natureza como cenário................................................................................................. 46

2.2. Rádios à espreita: vozes femininas................................................................................. 53

2.3. El Sapo: silêncios que falam........................................................................................... 64

2.4. El Diablo: o lado de lá......................................................................................... 74

CAPÍTULO 3: SINFONIA EQUESTRE............................................................................

3.1. Janis Mohor: Liderança no Sertão.................................................................................

87

87

CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................

104

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................ 106

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INTRODUÇÃO

No ano de 1998, uma publicação a respeito de Ricardo Guilherme Dicke

preencheria os espaços culturais de um jornal do interior, nele escreviam acerca de

um autor incompreensível, um silencioso autor que, fechado em si mesmo,

gostava de prosar sobre o sertão do Mato Grosso. Aos poucos, outras notícias

foram transcorrendo, sem que ainda se fizesse uma ligação entre elas: um antigo

prêmio das mãos de Guimarães Rosa, uma peça de teatro em Portugal e o lento

reconhecimento que a literatura ainda lhe reservaria.

Mas foi através de um documentário que tive a certeira idéia do que

queria desenvolver no meu mestrado, embalado por este, inspirei-me a falar de

Dicke, li trabalhos científicos como os desenvolvidos pelos pesquisadores Juliano

Moreno Kersul de Carvalho e Everton Almeida Barbosa que já haviam alcançado

boa parte do caminho que também decidi trilhar. Inspirado e apaixonado pela

prosa dickeana, fora aos poucos contaminado pelo espaço mítico daquele sertão.

Como resultado dessa „contaminação‟, temos o presente trabalho.

A partir das novelas Toada do Esquecido e Sinfonia Equestre (2006),

nosso trabalho propõe um estudo da relação das vozes internas ao texto, sob a

perspectiva das relações de poder e submissão, que envolvem as personagens

femininas quando inseridas em situações criticas.

A fim de investigar a forma como são inseridas as protagonistas em um

referencial marcado por conflitos sociais, procuraremos ressaltar a importância

que essas figuras exercem na narrativa dickeana ao intermediarem problemas que

desencadeiam um processo cíclico de desamparo, angústia e morte. As mulheres

dickeanas constroem com suas vozes o núcleo do enredo, ao formularem as ações

que dão suporte ao desenvolvimento narrativo da produção. Transitando entre

extremos, essas vozes ganham relevo e domínio sobre os ambientes

masculinizados. Desta forma, os homens passam a ocupar um plano secundário na

narrativa.

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É em um ambiente brutalizado – o sertão do Mato Grosso, marcado por

um contexto, discurso e ideologias bastante masculinos – que o enredo ganha

características de estranhamento, fugindo do senso comum, ao dar destaque para

ao perfil feminino. Para desvelar essas tramas, organizamos nosso estudo do

seguinte modo:

O primeiro capítulo é dividido em temas internos. Nomeado de Mulher,

Poder e Representação: Aprendendo a Falar, trataremos das formas como a

mulher fora vista pela perspectiva do poder e do silêncio, ao longo de seu

contexto. O objetivo deste capítulo é tecer uma comparação entre a condição da

mulher no ambiente social, dominado pelo perfil masculino em conformidade

com sua condição histórica.

Buscaremos analisar a visão da mulher pela perspectiva do poder, ou seja,

como o arquétipo feminino é construído e utilizado socialmente como ferramenta

de submissão e imposição do poder androcêntrico. Observaremos como esse

arquétipo é desconstruído no interior da narrativa dickeana.

No segundo capítulo, dedicado à novela Toada do Esquecido (2006), as

personagens destacadas serão comparadas com sua situação histórica anterior,

sendo analisadas em conformidade com o aporte teórico selecionado, em função

dos temas: as vozes sociais e as formas de sublevação de poder, especificamente

as locutoras de rádio e as personagens El Sapo ou El Diablo são exemplos que

devem, ao longo do desenrolar da trama, serem dispostas como objeto de análise.

O terceiro capítulo, dedicado à novela Sinfonia Equestre (2006), apenas a

personagem Janis Mohor é analisada, porém, situando-a em virtude de sua

proximidade com as outras personagens estudadas. Esta personagem apresenta

características comuns, ou seja, pontos que se aproximam ou que, por vezes,

distanciam- se das personagens anteriores conforme a análise se desenvolve.

Após traçarmos um painel teórico, enfocando vozes, feminilidade e poder.

Demonstraremos, nas obras dickeanas abordadas, como essas vozes são

configuradas no discurso, como são situadas nas relações de poder e que trajetória

e desenvolvimento conquistam dentro do enredo.

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CAPÍTULO 1: MULHER, PODER E REPRESENTAÇÃO:

APRENDENDO A FALAR

1.1. Mulher e a dominação

Os primeiros contatos dos colonizadores com as tribos tupinambás

expuseram os costumes e comportamentos dos indígenas brasileiros

(RAMINELLI, 2009) em relação à Europa católica. Entretanto, o tratamento dado

a mulher pelos indígenas não era tão diferente do que os europeus estavam

acostumados, ou seja, a submissão da mulher era um ponto comum entre ambos.

A imagem da mulher nas aldeias indígenas nos primórdios do Brasil

colonial era vista, prioritariamente, pela sexualidade que representava, pois a

liberdade de seu próprio sexo ficava a cargo dos homens da aldeia, eram eles que

determinavam seus papéis. Por esta atitude de submissão, elas foram

negativamente estereotipadas pelos colonizadores, pois historicamente As

perversões sexuais marcaram as representações dos índios. Os tupinambás eram

afeiçoados ao pecado nefando, e sua prática era considerada uma conduta

normal. (RAMINELLI, 2009, p.26).

Desde o nascimento, as crianças indígenas, de acordo com seu gênero,

recebiam tratamento diferenciado: quando meninos eram submetidos aos cuidados

do pai que cortava seus cordões umbilicais com os dentes enquanto as meninas,

recebiam os primeiros cuidados da mãe mesmo. (RAMINELLI, 2009, p.12-13).

No exercício da sexualidade, existia uma relação de desigualdade, visto que A

poligamia, entre os bravos guerreiros era símbolo de prestígio (RAMINELLI,

2009, p.19), sendo a mulher indígena mero instrumento desta ação de poder. A

relação desigual de gênero praticada pelos indígenas influenciou sobremaneira a

construção de uma imagem subalterna da mulher no Brasil– colônia, pois seu

comportamento no ambiente tribal foi sempre cerceado desde a infância até a

maioridade.

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Com o advento da colonização, mulheres brancas vieram da Europa para

estabelecer seus lares em terras brasileiras. A exemplo das mulheres autóctones –

a submissão era uma marca expressiva do seu comportamento social, segundo

Vainfas: As mulheres brancas, em pequeno número no acanhado litoral do século

XVI, teriam vivido em completa sujeição, primeiro aos pais, os todo –

poderosos senhores de engenho, depois aos maridos. (RAMINELLI, 2009,

p.115). Longe da vida social, restava a essas mulheres os afazeres domésticos.

Gregório de Matos, poeta da época, assim versou sobre a condição feminina:

Irá mui poucas vezes à janela,

Mas as mais que puder irá à janela;

Ponha-se na almofada até o jantar,

E tanto há de coser como há de assar.

(Gregório de Matos apud Araújo, 2009, p.49)

Gregório de Matos, ao falar das mulheres brancas no Brasil-colônia,

produz uma aproximação da condição com que Lessa (2004) identifica nas

práticas femininas da antiguidade. Essas atividades rotineiras incluíam, pór

exemplo: a fiação, a tecelagem, a transformação dos cereais, ou seja, atividades

manuais (LESSA, 2004, p.34), a mulher, assim observada, revela uma incômoda

posição de inferioridade, já que os trabalhos manuais não exercem grande

influência sobre o pensamento intelectual e político desses s períodos históricos.

Passados mais de três séculos de submissão feminina, a condição de senhora dos

afazeres domésticos começa se transformar.

A mudança a respeito do comportamento feminino, em ocorrência nos

vários planos sociais, abriu no Brasil perspectivas para que a mulher pudesse se

aproximar das produções literárias da época. Essas produções, apesar de

inicialmente rechaçadas pelas leitoras, acabaram se tornando um refúgio de leitura

preferencial. Uma parte dessa transformação é notada pelo surgimento de

publicações literárias de autoria feminina: Em 1859, Úrsula, escrito por Maria

Firmina dos Reis, considerado o primeiro romance de uma autora brasileira

(TELLES, 2009, p.410). Essa obra venceu o preconceito que rondava o gênero,

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(pernicioso e malvisto para as moças), tornando-se um marco na história da

literatura de autoria feminina no Brasil.

Juntamente com as transformações da literatura, outras transformações

sociais estavam em franco processo, pois homens e mulheres exerciam condições

diferenciadas no espaço social; O espaço físico sempre teve uma nítida divisão: a

rua era propriedade do masculino, e o espaço doméstico, do feminino

(CARRANCHO, 2003, p.114).

Segundo Araújo (2009, p.52), para a mulher casada, a maternidade teria

de ser o ápice da vida (...). Doravante, ela se afastava de Eva e aproximava-se

de Maria. A mulher que pariu virgem o salvador do mundo. A virgindade,

símbolo de pureza e castidade, fora, durante muito tempo, condição para um

casamento seguindo todos os padrões que a sociedade estabelecia criava símbolos

a serem seguidos para que isso ocorresse, como é o caso do exemplo dado por

Araújo (2009).

Notemos que a significação ─ tanto da pecaminosa Eva, como da celestial

Maria ─ são posicionamentos paradoxais ofertados pela visão social da época,

são os poderosos homens que criavam estereótipos conforme suas conveniências.

Desta forma, o patriarcado ditava um comportamento público recatado e pudico,

como modelo do perfil feminino:

Corre a missa. De repente, uma troca de olhares, um

rápido desvio do rosto, o coração aflito, a respiração

arfante, o desejo abrasa o corpo. Que fazer?

Acompanhada dos pais, cercada de irmãos e criadas,

nada podia fazer, exceto esperar. Esperar que o belo

rapaz fosse bem– intencionado, que tomasse a iniciativa

da corte e se comportasse de acordo com as regras da

moral e dos bons costumes, sob o indispensável

consentimento paterno e aos olhos atentos de uma tia ou

de uma criada de confiança (de seu pai, naturalmente).

Esse era o estereótipo, o bom modelo, o comportamento

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que se esperava no despertar da sexualidade feminina

(ARAÚJO, 2009, p.45).

Mesmo com a ditadura comportamental masculina a impor limites e

regras, a mulher foi preenchendo espaços, cafés, bailes, teatros e certos

acontecimentos da vida social (D‟incao, 2009, p.228), a liberdade da mulher

burguesa abriu caminho para que seus primeiros vôos fossem alçados, mas a

repressão imposta à mulher ainda atrapalharia a manifestação de um maior

exercício de sua liberdade (ARAÚJO, 2009, p.53).

Dentre as barreiras que se mantinham estáveis, salientamos as oposições

consolidadas no imaginário social: “Eva e Maria” foram os primeiros

estereótipos religiosos impostos a mulher (Araújo, 2009, p.52). A igreja vai ter

um papel inquisidor no julgamento do comportamento feminino, ao estabelecer

uma visão maniqueísta desse comportamento: pecadora ou santa, Eva ou Maria.

Este era apenas o primeiro de muitos embates ideológicos arraigados de maneira

sublinear no discurso social criado pelas determinações da igreja (Araújo, 2009,

p.53).

Nos tempos atuais, a mulher, mesmo ocupando espaços similares em

campos de trabalho antes dominado pelo homem, ainda em muitas situações,

continua presa pelas barreiras dos dogmas religiosos. As mudanças trazidas pelo

processo de industrialização ─ que levou as mulheres da casa para a fábrica ─

não mudaram sua condição submissa, pois o chefe da família apresentava-se

adiante da esposa e dos filhos como a personificação da exigência dos

proprietários (...). O poder masculino centrava-se na figura do pai - marido -

patrão (Silva, 2009, p.558). A continuidade desse comportamento da mulher

como sujeito passivo e alheio às mudanças sociais persistiu desde a época da

colônia até parte da contemporaneidade. O mote iluminista de igualdade,

apregoado em tempos de revolução francesa não incluiu a fundamental questão de

gênero, ... a individualização do trabalho não provocou a igualdade nas relações

entre homens e mulheres, e nem a inversão na estrutura de poder (Silva, 2009, p.

563). Guiados pelo sistema de capital, o gênero masculino ainda determina o

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poder que rege o trabalho, independente de individualizações ou de quaisquer que

sejam suas determinações coletivas.

Telles (2009), no entanto, assevera que o contexto descrito por Silva

(2009) sofre mudanças ideológicas. Segundo esta última, a revolução não está no

sistema social, hierárquico ou trabalhista, a revolução do poder está mais

enraizada na relação de amor, respeito mútuo e preservação da voz e da auto-

estima feminina:

A difícil revolução da Mulher sem agressividade, ela que

foi tão agredida. Uma revolução sem imitar a linha

machista da ansiosa vontade de afirmação e de poder,

mas na luta com mais generosidade, digamos.

Respeitando a si mesma e nesse respeito pelo próximo, o

que quer dizer amor (TELLES, 2009, p.672).

O poder, de acordo com a autora, é produto da convivência e tolerância

mútua, é dele que emana a definição de feminilidade.

Lessa, em seu livro O feminino em Atenas (2004), utiliza da alegoria do

“tear” para explicar as relações de poder que cerceiam as vozes femininas nas

relações sociais. Nesse “tear” social, as mãos vão aprendendo o movimento dos

pontos e das amarraduras, mas são mãos equidistantes, as masculinas e as

femininas que se revezam, tecendo cada uma a seu modo um contexto histórico

cheio de retalhos, retalhos antitéticos que entrelaçados em diferentes tempos

e espaços preenchem toda uma “colcha” que insiste em encobrir as vozes

femininas.

O poder foi o que proporcionou essa mudança, pois o poder reside nas

mãos de quem tece a realidade, a mulher literalmente tecia, entretanto foram as

tendenciosas mãos masculinas que fizeram com que o contexto histórico seguisse

seu próprio e linear interesse, tendo em vista que:

A mulher não largou suas tinas de lavar roupa ou suas

foices de cortar plantações impulsionada por súbita

consciência das limitações em que vivia. Foi empurrada

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pelo motor da história, cuja engrenagem era formada por

uma classe de homens, os burgueses, com sede de

expansão (Ameno, 2001, p. 25).

1.2. Dicke, Vozes e Poder

A literatura e a tecelagem possuem conceitos próximos, foram, inclusive,

comparadas por vários escritores, formam apesar de sentidos diferentes alegorias

similares (Hansen, 1986, p.01). Na literatura, os versos horizontais são

preenchidos por palavras e entendimento, na tecelagem, as linhas horizontais são

preenchidas por fios e pontos. Da mesma forma, como a comunicação se dá pela

literatura, parte dela se concentra na formação do texto, texto vem de têxtil:

tecelagem.

Porém, o mais importante para este trabalho é o que une literatura e

tecelagem: a mulher. A tecelagem, uma das primeiras atividades femininas

(LESSA, 2004), pode ser utilizada enquanto “alegoria” de fala (HANSEN, 1986,

p.01). No momento em que a liberdade da mulher começou a germinar, ao longo

dos tempos modernos, tanto seu corpo como sua sexualidade

acompanharam,caminharam juntas. Suas mãos habituadas ao têxtil, descobriram a

literatura.

Tal qual a tessitura de uma produção, as palavras conjuntas dimensionadas

no espaço do texto literário podem, quando unidas, estabelecerem uma formação

maior, esta formação discursiva pode ser caracterizada por sua ideologia ou pela

forma de pensamento imperante ao que se propôs a ser escrito. Estes argumentos

levam a crer que linhas unidas formam um tecido e idéias unidas formam um

conjunto maior que o anterior.

Ao apresentarmos um breve painel sobre a relação histórica do perfil

feminino no primeiro capítulo, podemos somar outras constatações que interessam

ao início deste raciocínio, incluindo a formação do discurso, estabelecido sob a

perspectiva das vozes sociais.

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A atenção despertada por estes estudos fez com que o teórico Mikhail

Bakhtin se interessasse pelo romance no decorrer da década de 40, do século

passado, como tema comum, ele estudou sobre a natureza e a evolução desse

gênero, tais estudos focalizaram, além da natureza, noções sobre espaço e tempo

na história e a mudança de percepção da linguagem na evolução do gênero. Para

teorizar parte integrante das reflexões a respeito destes estudos, Bakhtin discordou

das teorias até então dominantes sobre a ficção romanesca, para ele, o romance é

um gênero que fotografa o mundo com muita perfeição, um raio X de uma visão

muito específica (CLARK & HOLQUIST, 1998, p.293), ou seja, uma

materialidade de conceitos ligados a um dado tempo e a uma condição em

determinada sociedade.

Desta feita, a Romancidade (CLARK & HOLQUIST, 1998, P.293) – nome

dado por Bakhtin para o gênero – deveria, conforme o nível do discurso, não

permitir a ocorrência do monólogo genérico ou ainda uma representação social

simbolizada apenas, ao contrário, teorizando sobre um diálogo entre os textos que

um dado sistema admite como literatura, com os que não seguem semelhante

definição, diversos outros diálogos deveriam ser revelados, tornando-se assim

representativos do meio social que coexistiam, para tanto, duas variantes foram

apontadas como fatores que auxiliam neste conceito:

Duas variantes principais são básicas na evolução do

romance e, assim, da consciência também: atitudes para

com o espaço e o tempo, e atitudes para com a linguagem.

Bakhtin estava obcecado pela interconexão de espaço e

tempo (CLARK & HOLQUIST, 1998, p.295).

Uma vez que o interesse de Bakhtin se volta para esse gênero,

conceituando-o como sendo o grande livro da vida (CLARK & HOLQUIST,

1998, p. 310), o teórico acredita que a importância dada para o romance reflete um

indicador sensível e particular de uma sociedade sobre as variantes, ou seja,

variantes sobre a natureza, o espaço e o tempo. Para Bakhtin, o romance não

deveria ser pensado como qualquer outro gênero literário, porque se tratava do

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único gênero que ainda estaria evoluindo no meio de gêneros já formados e

mortos.

Além dos estudos dedicados a esse gênero, Bakhtin (2004) também

direcionou seus esforços ao entendimento de uma parte mais particularizada e não

menos importante constituinte do romance: a palavra. Para ele [...] a palavra

penetra literalmente em todas as relações entre indivíduos, nas relações de

colaboração, nas relações de base ideológica, nos encontros fortuitos da vida

cotidiana, nas relações de caráter político, etc. (BAKHTIN/VOLOCHINOV,

2004, p. 41), De acordo com o autor, a tessitura das palavras obedecem à direção

da ideologia proposta como forma de imposição de discurso: As palavras são

tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as

relações sociais em todos os domínios (BAKHTIN/ VOLOCHINOV, 2004, p.

41). Assim, os discursos ideológicos e sociais são marcas expressivas que dão

rumo e condição de existência para as palavras, representam, sintetizadas, suas

ordenações:

a palavra não é um objeto, mas um meio constantemente

ativo, constantemente mutável de comunicação dialógica.

Ela nunca basta a uma consciência, a uma voz. Sua vida

está na passagem de boca em boca, de um contexto para

outro, de um grupo social para outro, de uma geração

para outra (BAKHTIN, 1981, p. 176).

O diálogo, portanto, entre os personagens, é também um diálogo de forças

que emergem do social e que impõe ao homem a difícil tarefa de compreensão,

tornando a atividade discursiva uma complexa relação com a palavra do outro,

em todas as esferas da cultura e da atividade [...] (BAKHTIN, 2003, p.384).

Segundo o autor, a palavra é um fenômeno ideológico por excelência, dessa

maneira, é através dela que os sujeitos se comunicam e revelam diferentes

ideologias nos confrontos de vozes sociais, ou seja, as tendências sociais do

discurso se manifestam nas formas da língua.

Como se pode perceber, os discursos que trilham uma determinada

ideologia recebem uma apreciação significativa que é seu fruto natural: “a voz”.

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As vozes sociais devem ser entendidas como a representação da fala social já que,

internamente ao texto, estas são frutos desta consideração.

Assim, as vozes sociais são sempre sócio-ideológicas, já que carregam um

ponto de vista definido, um vislumbramento formado de determinado lugar,

coexistem juntamente com o sujeito e se manifestam em diálogos constantes,

internas a esses textos e discursos, elas tipificam os enunciados do passado, do

presente e do futuro, às quais as respostas dos discursos são remetidas. Um

discurso sempre responde a outro e o fruto dessas respostas e confrontações faz

surgir o sujeito socialmente situado, fruto desta relação.

As vozes sociais que dão forma ao discurso refletem não apenas a intenção

do enunciador, mas os sentidos e valores que estruturam a sociedade, por isso, a

sociedade deve ser considerada como um conjunto de ferramentas que, apesar das

semelhanças, apresenta grandes distinções de ordem cultural e referencial, o que

se reflete nas “vozes” dos indivíduos.

A heterogeneidade das vozes sociais em um determinado texto demonstra

os comprometimentos com os objetivos direcionados aos valores que orientam as

atividades humanas. Um enunciador, de fato, ao se identificar com um valor

social, acaba por estabelecer diante deste valor o contexto que acredita ser

referência para que a sua produção textual tenha ocorrência.

Bakhtin (2004) argumenta que esse é o momento da construção de uma

consciência das vozes sociais, o que só é possível através de um engajamento

ideológico, uma vez que quanto mais forte, mais bem organizada e diferenciada

for a coletividade no interior da qual o indivíduo se orienta, mais distinto e

complexo será seu mundo interior (p.115). A esse propósito, tanto os planos de

ação quanto as esferas sociais deverão marcar as vozes sociais, uma vez marcadas,

estas deverão estar comprometidas com os interesses sociais específicos,

acarretando, para isso, um certo grau de universalismo textual:

A “voz” do discurso expressa um juízo de valor do autor,

seu horizonte conceitual (sócio-ideológico). O discurso

representa uma escolha, uma tomada de posição do autor

frente aos múltiplos discursos que pretendem se apropriar

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da realidade de uma época, num contexto sociocultural

determinado. A essa apreciação – expressão do horizonte

conceitual do autor do discurso – é que o pensador

denomina “voz” (BARROS, 1994, p.106).

A “voz” no romance é analisada por Bakhtin seguindo esta argumentação:

Todas as palavras e formas que povoam a linguagem são vozes sociais e

históricas, que lhe dão determinadas significações concretas [...] expressando a

posição sócio-ideológica diferenciada do autor no seio dos diferentes discursos

da sua época (2006, p. 106). Este pensamento reflete a posição do teórico quanto

à condição de produção do autor, para ele, o autor não meramente reproduz uma

posição “sócio-ideológica”, mas realiza uma apropriação pessoal, a voz do

discurso articula-se com seu contexto de enunciação respondendo a outros

discursos e enunciados, com os quais entra em diálogo.

As relações de sentido que nascem da diferença entre os discursos e

enunciados que entram em diálogo são chamadas de dialogismo, essas mesmas

são a síntese ou o resultado do confronto de vozes sociais travadas pelos sujeitos

nas situações em que são expostas no texto. O dialogismo bakhtiniano é próprio

do agir e do ser humano em si, portanto, a relação com a linguagem e as relações

discursivas não são únicas, funcionam como um campo de batalhas onde a

confrontação de vozes regidas por domínios culturais de uma determinada

sociedade, comunidade ou grupo social, emerge.

O dialogismo constitui um verdadeiro campo da linguagem, em cujo

diálogo o enfrentamento de vozes cria uma arena de disputa entre os conceitos

sociais, já que, na teoria enunciativo-discursiva de Bakhtin, o conceito de vozes

diz respeito à presença do outro como princípio constitutivo da produção e

funcionamento discursivo.

Desse modo, os diálogos internos ao romance permitem a ele o caráter

inacabado por meio da confrontação das vozes sociais, elas se renovam em

determinados contextos. Por meio destas vozes é possível analisar sobre o

processo de formação do homem como sujeito inacabado, próprio de suas ações,

sempre em estágio de formação e transformação. Neste embate, as vozes não se

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confundem e nem se misturam, diferentemente mantem a ideia de tempo e espaço

próprios que lhes são devidos, enriquecendo o texto literário e permitindo que

esses espaços conheçam novas idéias, novos valores, pois, para construir sentidos

nos enunciados, é preciso um processo dialógico contínuo.

Esses argumentos permitem a compreensão do texto, uma vez que os

falantes partilham de um mesmo contexto sócio-histórico, uma mesma ideologia,

um ponto comum que permite o diálogo do entendimento pretendido, uma relação

em que a sociedade e a literatura estejam próximas.

Para Antônio Cândido, a relação da sociedade com a literatura, ou com sua

representação, pode estar muito próxima, dependendo das condições de produção.

O autor defende que tal aproximação é vista, inclusive, como forma de estudo

literário para alguns críticos, ou seja, a utilização das representações sociais deve

ser ponto de partida para os referidos estudos:

Um segundo tipo poderia ser formado pelos estudos que

procuram verificar à medida em que as obras espelham

ou representam a sociedade, descrevendo os seus vários

aspectos. É a modalidade mais simples e mais comum,

consistindo basicamente em estabelecer correlações entre

os aspectos reais e os que aparecem no livro (CÂNDIDO,

2006, p.19).

Ainda sobre os estudos que aproximam sociedade e literatura, Cândido

(2006) assevera que: Os elementos individuais adquirem significado social na

medida em que as pessoas correspondem a necessidades coletivas; e estas,

agindo, permitem por sua vez que os indivíduos possam exprimir-se, encontrando

repercussão no grupo (CANDIDO, 2006, p.35). Uma conclusão importante é a de

que a obra depende estritamente do artista e das condições sociais que determinam

a sua posição, na verdade, é possível que uma obra literária represente

acontecimentos sociais ocorridos na mesma condição de produção em que fora

feita, ou seja, a leitura do mundo deve passar pelo crivo do artista.

O estudo que envolve, por exemplo, os perfis femininos e suas relações

sociais dentro do plano literário podem exemplificar a tese disposta por Cândido.

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No caso específico, a temática da mulher com comportamento guerreiro e viril na

literatura não é um tema novo, porém quase sempre polêmico. Os dois exemplos

que melhor ilustram esta ideia, segundo o Dicionário de mitos literários, de Brunel

(1988, p.744) são As Amazonas e as Valquírias.

O autor explica que a realidade história pode ter construído esta imagem

em civilizações antigas, já que

a fantasia heróica cria quase sempre figuras masculinas:

o fenômeno pode explicar-se pela superioridade física do

homem, pela situação social da mulher até uma época

recente, pelas características de sua vida sexual e por

suas maternidades (BRUNEL, 1988, p.472).

Segundo Brunel, os gregos acreditavam que as Amazonas fossem

bárbaras, no sentido literal da palavra, já que eram transgressoras das leis

vigentes, foram consideradas por eles belicosas e inimigas, tanto do homem

quanto do casamento.

De outro lado, as Valquírias, virgens com o escudo (BRUNEL, 1988,

p.745), eram encaradas como sacerdotisas sacrificantes, já que serviam à deusa da

guerra. As mulheres- homens foram, inclusive, retratadas na literatura por autores

como Homero (2001) em Ilíada VI, 186, representando assim a ambigüidade

sexual do personagem. Da antiguidade para a modernidade, essas representações

perpetuaram-se pela literatura brasileira, com exemplos como Diadorim, de João

Guimarães Rosa, ou Luzia homem, de Domingos José Olimpio.

Conceitos à parte, chegamos à conclusão de que a conseqüência de boas

leituras é a formação de bons leitores, e os motivos desta conclusão fazem com

que conheçamos a produção literária do escritor mato-grossense Ricardo

Guilherme Dicke, intitulada Toada do Esquecido e Sinfonia Equestre (2006).

De acordo com os paralelos que formam esta discussão, as presenças das

vozes teorizadas por Bakthin servem de início para um diálogo que não se esgota,

ao contrário, abre a perspectiva tanto para a presença do perfil feminino como

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para a presença do poder dentro deste plano de criação. A fala feminina ou a fala

de uma personagem feminina dentro do romance pode não representar o

pensamento feminino como temática principal, levando-se em conta que, como

representação literária, pelo contrário, pode até mesmo ser o veículo de construção

do discurso masculino. Na verdade, a fala feminina pode servir no romance como

instrumento de construção de vozes, quer seja do narrador, quer seja da própria

personagem que a utiliza durante a ação. A voz interna a um texto pode

representar uma sociedade vigente, a partir desta representação social e literária

do mundo é que percebemos a existência dessas vozes: o leitor como receptor da

produção literária pode por ela fazer a leitura da realidade, já que esta leitura

identifica-o com seu próprio ambiente.

Para Bakhtin (2004), uma produção literária pode ter muitas vozes

reunidas e a sua multiplicidade é o que torna o texto dialógico – termo criado pelo

autor. Discini (2006) reforça essa ideia: diz respeito à multiplicidade de vozes

que, orientadas para fins diversos se apresentam libertas do centro único

incorporado pela intencionalidade do autor (p.53) (SIC). Em sua tese,

dialogismo é o nome dado a uma produção literária em que as vozes interiores ao

texto sejam independentes e que, por isso, acabem impedindo a unicidade da voz

central do autor de ser a única a expor seu discurso. Isto tornaria possível, por

exemplo, que a fala de uma personagem feminina, dentro de uma produção

literária, contivesse vozes sociais que atendessem a diversos outros interesses que

não fossem o seu enquanto mulher.

No caso das novelas dickeanas, as vozes expressas pelos perfis femininos

estão não só direcionadas ao momento histórico em que se pronunciam, mas

também se relacionam com a constante preocupação filosófica existencial a que se

enquadra boa parte das obras do autor, isso é possível graças ao fato de que as

vozes representam os discursos apropriados do contexto em que as mesmas

estejam condicionadas, quer seja do contexto social, quer seja das condições

existenciais de seus personagens diante dos momentos de conflitos sociais

propostos pelo autor. As vozes são caracterizadas como representantes do poder

regente de um tempo específico, conforme representado.

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A incidência das vozes presentes nos perfis femininos, em meio aos

conflitos sociais representados, conforme as novelas exemplificam, mostra a fala

feminina ou a fala de uma personagem feminina dentro do romance,

exemplificando a maturidade, a personalidade e a certeza que possuem, diante de

sua liderança, El Diablo e El Sapo tem ciência de seu poder para representar o

pensamento feminino como temática principal, como vimos, essa ocorrência

mostra mulheres posicionadas como personagens principais dentro das novelas,

para tanto, levam em consideração os discursos que conferem vozes sociais a

esses perfis.

Esclarecemos que, na teoria de Bakhtin, nenhuma voz fala sozinha e isso

não tem ligação com o fato de que estamos influenciados, mas porque a

linguagem por si só é dupla isso justifica a multiplicidade de vozes e de

consciências independentes (BAKHTIN, 2003, p. 02). O romance dialógico,

seguindo a teoria bakhtiniana, pode abrir a perspectiva de que vozes

independentes sejam observadas. Em contraponto, o texto literário intitulado

monológico assume, em seu interior, vozes que seguem apenas um discurso, ou

seja, todas as mesmas vozes do texto monológico servem para reforçar um

pensamento dominante. Pessoa de Barros (1994, p.06) comenta sobre os textos

dialógicos:

Os textos são dialógicos porque resultam do embate de

muitas vozes sociais; podem, no entanto, produzir efeitos

de polifonia, quando essas vozes ou algumas delas

deixam– se escutar, ou de monofonia, quando o diálogo é

mascarado e uma voz, apenas, faz-se ouvir. (BARROS,

1994, p.06).

Uma vez independentes, essas vozes presentes não estão fixas em um

poder de criação central, mas dialogam com outras vozes presentes para

estabelecer significados e interações. Assim, boa parte dos elementos que se

somam a esse tipo de narrativa são diferentes entre si, esta diferença enriquece o

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texto prontificando com que várias ideias sejam evidenciadas, neste sentido, a

palavra não pode ser a finalização de uma síntese pré-concebida, mas a

ressignificação e retomada de outros sentidos, conforme o exemplo dado em

Problemas da poética de Dostoievski (1981):

A voz do herói sobre si mesmo e o mundo é tão plena

como a palavra comum do autor; não está subordinada à

imagem objetificada do herói como uma de suas

características, mas tampouco serve de intérprete da voz

do autor. Ela possui independência excepcional na

estrutura da obra, é como se soasse ao lado da palavra do

autor coadunando-se de modo especial com ela e com as

vozes plenivalentes de outros heróis (BAKHTIN, 1981,

p.03).

A fala de uma personagem feminina, dentro do plano de uma produção

literária, apesar da proximidade e aparente confusão, em nada se aproximaria da

explicação das vozes teorizadas por Bakhtin presentes em Estética da criação

verbal (2003), já que a referida não passaria de uma comunicação ou diálogo de

uma personagem feminina dentro do plano de ação de uma produção literária,

enquanto que as vozes a que Bakhtin se refere seriam um conjunto de ideias e

discursos trazidos à tona tanto pela ideia do autor quanto pela ideia do próprio

personagem, ao apoderarem-se ou reproduzirem outros discursos socialmente

impostos.

Ao pensarmos nas novelas Toada do Esquecido e Sinfonia Equestre

(2006), de Dicke, percebemos que todas as personagens femininas representadas

El Sapo, El Diablo, As Narradoras da rádio ou até mesmo Janis Mohor, utilizam-

se de um mesmo modo de dominação diante do ambiente em que estão inseridas,

ou seja, para se manterem líderes, utilizam-se da fala como forma de domínio;

todavia, a utilização da fala por estes perfis está ligada às vozes sociais que são

exprimidas por intermédio dos personagens, de fato, conforme observamos, a fala

de uma personagem feminina dentro de um romance em tudo tem a ver com o

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que ela representa enquanto discurso ideológico ou apropriação social.

Assim, a dominação proposta pelos perfis femininos em ambientes de conflitos

sociais é estabelecida pelo poder de persuasão de suas falas, enquanto que as

vozes emanadas pela condição social representada devem, através delas, serem

expostas como fruto de uma ideologia pré-estabelecida.

Para nos aprofundar em reflexões teóricas sobre essas produções e darmos

continuidade ao estudo, acrescentamos que as novelas do autor Ricardo

Guilherme Dicke podem ser exemplos da presença dessas teorias a respeito das

vozes, acrescentando ainda que, apesar de diferentes narrativas estabelecidas em

seus enredos, as duas novelas, apresentam diferenças no plano de ação, mas essas

diferenças podem não se repetir no que se refere ao estabelecimento de vozes

internas à produção.

Na primeira novela, intitulada Toada do esquecido (2006), um grupo de

garimpeiros, após um baile de máscaras no carnaval, foge dos garimpos do Peru e

da proprietária do garimpo que os quer matar devido ao furto de um “Tesouro”

pessoal. Na fuga, passando pela Amazônia e por Vila Bela da Santíssima Trindade

(Primeira capital do estado de Mato Grosso), o grupo vai se silenciando, um a um,

por ocasião de estranhas mortes, enquanto que, em contrapartida, e por último,

uma fala feminina se faz presente nas ondas do rádio AM que os acompanha. El

Diablo é a última personagem a se silenciar, já que domina seus companheiros

pela fala, porém, quando isso acontece, e diante do mutismo ensurdecedor da

morte, ouve-se a Toada do esquecido – Um rumor ou tom alto em meio ao

esquecimento de todos eles no meio do sertão de Mato Grosso.

Já na segunda novela, Sinfonia Equestre (2006), O turco Tariq Muza mata

Hildebrando Mohor aos poucos e com seu próprio consentimento. No velório de

Hildebrando, sua filha Janis jura vingança e, por efeito do prometido, já que sua

fala indica liderança, distancia-se do marido ao se juntar com Belizário. Vão até a

fazenda do turco Tariq onde trocarão tiros com seus capangas até que, após a

morte do turco e o silêncio, apazigam toda a cena de violência.

O plano narrativo é importante ferramenta para a compreensão do papel

das vozes das novelas como um todo, isso porque os enredos das obras de Dicke,

conforme observado, possuem certas aproximações em alguns temas que parecem

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recorrentes em suas narrativas. Um exemplo dessas aproximações é a utilização

de cenários amplamente violentos. A violência dos cenários se deve a diversos

fatores explicáveis dentro do plano literário. Um desses fatores é o fato de que

podem ocorrer em ambientes inóspitos, distantes das cidades, favorecendo um

ambiente nostálgico (Miguel, 2007). Além disso, Miguel classifica a violência de

Dicke como sendo generalizada dentro do plano de sua escrita:

Os personagens estão em ambientes de conflitos de

diversas naturezas: conflitos externos, localizados nas

questões circundantes em que as relações com a terra e a

natureza são determinantes, e conflitos internos (2007,

p.138),

A esse propósito, é relevante destacar que Dicke nasceu em Mato Grosso,

por isso seria amplamente possível que sua obra caminhasse nessa direção, ou

seja, seguisse a senda da história que rege este estado. Para a nossa compreensão,

a história da colonização do Brasil se confunde com a história da colonização de

Mato Grosso, no sentido de que ambas, à margem de serem pacíficas, foram

construídas pela morte de muitos dos que aqui vieram edificar fortunas ou

constituir lares.

Convém destacar que a história da colonização de Mato Grosso lembra-

nos de um sertão que reserva cenários distantes da ambiência das cidades, um

sertão cheio de terras de pouca ou nenhuma lei. Desse modo, não se pode

esquecer que os colonizadores estão inseridos nessa história e que, por tentar

refletir todo esse contexto na obra literária, o autor acaba por recriá-lo no plano

acional: As configurações ligadas à morte são as condutoras (Miguel, 2003,

p.203). A morte – produto final da violência – conduz as novelas dickeanans e no

caso delas, este mote persiste. Em Toada do Esquecido, a morte é entendida como

silenciamento; já em Sinfonia Equestre, como esboço de vitória.

A recriação do ambiente social dentro do plano literário nas novelas

dickeanas marca tal ocorrência com a presença da “morte”, ela é prêmio aos

viventes um destino do qual nenhum dos personagens pode fugir.

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Por sua vez, a recriação novelística valoriza o silêncio das coisas

mundanas e modernas, abre as perspectivas para o contato natural com as coisas

simples e o diálogo interno dos personagens (Miguel, 2003). O diálogo interno

dos personagens ilustra o fluxo de consciência presente em grande parte de suas

novelas, conforme observamos no texto a seguir:

– Fabulosos, rodopiantes mundo da ilusão! A gente vive

no mundo da sedução: revistas e jornais repletos de

insinuações, televisão com as mulheres convidando,

assim tão sem mais nem menos; pelas ruas elas andam

nuas, nas rádios vozes cinciantes que sussurram no

mundo da sedução, de manhã à noite e da noite à manhã:

vozes que cantam irresistivelmente, envolventemente a

não poder mais: este é o mundo da sedução e da ilusão em

que vivemos metido até o pescoço, mestre Gepetto, mesmo

aqui no fim do mundo: desde as criancinhas de dez anos

até as velhotas de noventa, todos indissoluvelmente

metidos até o pescoço no jogo da sedução... (DICKE,

2006, p.11).

A abordagem dickeniana da história da colonização reserva alguns itens

especiais, já que é a esta abordagem que as vozes internas aos perfis femininos

estão condicionadas. Porém, esclarecemos que precisamos ser cuidadosos ao

classificarmos Dicke apenas como um autor refletor do local, ou seja, que escreve

apenas sobre os acontecimentos históricos de uma região específica. Ao abrirmos

o pressuposto, devemos entendê-lo como escritor sem fronteiras que, por

exemplo, consegue, ao mesmo tempo em que cria suas linhas narrativas de tempos

históricos, criar os tempos psicológicos que vagueiam nos campos de suas

reflexões: A sua produção transita entre dois pólos: o local e o universal (Miguel,

2007, p.87), não aceitando para isso a classificação reducionista de autor local.

Um fato histórico mato-grossense, entre os vários ocorridos, deve aqui ser

mencionado: sabe-se que a coroa portuguesa nunca sentiu interesse maior pelas

terras interiores ao Brasil, senão pelas primeiras viagens organizadas por

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exploradores, intituladas Entradas, que tinham como intuito conhecer e mapear

as riquezas do país. O reconhecimento da existência do ouro por estas pessoas

gerou, no governo da época, a necessidade de exploração e utilização destas

riquezas, foi neste cenário que se introduziu a importância da exploração destas

novas terras, além do surgimento do próprio contexto histórico da exploração

nesta região.

Dicke, ao recriar a história de Mato Grosso, estabelece o poder monetário

– riquezas – como sendo o maior interesse dos personagens literários tanto em

uma como em outra novela, porém, em especial na Toada do Esquecido (2006), a

exploração do ouro atravessa os limites geográficos do Brasil, aproximando-se às

fronteiras políticas do Peru. Vale lembrar que a história de Mato Grosso se

confunde não só com a história do Brasil, mas se confunde também com a própria

história da América Latina, já que a exploração de matérias primas é o ponto

comum de seu princípio histórico. Eduardo Galeano (2001) demonstra a visão

materialista do colonizador diante da América recém descoberta:

Bernal Díaz del Castillo, fiel companheiro de Fernão

Cortez na conquista do México, escreve que chegaram à

América “para servir a Deus e a Sua Majestade e também

por haver riquezas (GALEANO, 2001, p.11).

Portanto, mesmo que a exploração do ouro, enquanto contexto histórico,

ultrapasse os limites históricos da nação brasileira, ainda sim o avanço desses

limites estará amparado pelo contexto histórico do princípio de formação de boa

parte dos estados latino-americanos. Por sua vez, não é só a exploração do ouro

que torna o ambiente ficcional próximo da realidade de produção literária, outros

ambientes ficcionais permeiam a produção novelística de Ricardo Guilherme

Dicke, exemplo destes ambientes são as fortes turbulências que giram em torno

dos garimpos e das disputas pela posse da terra. Somados na mistura de todos

estes fatos, despontam tanto a violência quanto a morte anteriormente citados

como conseqüências desses desajustes sociais (MAGALHÃES, 2003).

A dinâmica da construção novelística dickeana reserva as cercas pecuárias

e as matas em cinzas como limites horizontais destas narrativas: Noite caiu agora.

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Numa planície esturricada, sem dormir cansados, esperando a comida, deitados

no chão... (DICKE, 2006, p.27), a natureza agressiva e rústica circunda em um

mundo onde o domínio é dos mais fortes e o poder reside no ato de vida e de

morte (FOUCAULT, 1988, p.147) dos personagens. Uma vez brutalizados e

inseridos nesses cenários arcaicos e patriarcais, os personagens da ação dickeana

são potencializados pelo passado histórico de Mato Grosso, ou seja, influenciados

pela natureza em que residem.

A esse respeito, a linguagem literária funciona para muitos críticos e

escritores como uma nomeação da realidade ao construir os cenários do enredo,

para tanto, o autor precisa da linguagem para mostrar ao leitor a clareza de sua

construção. Darnton (2009) define a linguagem como forma de ordenação do

mundo, para ele, ela é encaixada num sistema taxonômico de classificação,

nomear é saber ((DARNTON, 2009, p.38).

Ligando o nível lingüístico de Dicke ao sertão de Mato Grosso,

Magalhães (2001) destaca a presença de uma linguagem que se impõe de forma

agressiva (p.205), então, a ordenação de mundo dickeniano, pela teoria de

Darnton (2009), classificaria sua linguagem obedecendo ao sistema que ele

mesmo revelou e que por isso usaria a linguagem para recriar o cenário

“agressivo” proposto.

Apesar da potencialidade histórica, o herói regional (COUTINHO, 2007,

p.204) não se configura nas novelas citadas, com efeito, o herói em Dicke se

universaliza... Uma vez que não está apenas passivo diante do que Bakthin chama

de ambiência social (BAKTHIN, 2003, p.129), mas serve de veículo ou canal

para que o autor-criador possa dialogar e, em contrapartida, receber respostas

pela exposição de suas vozes.

Seguindo a senda de significações que envolvem a produção dickeana,

deparamo-nos com um “estranhamento” na configuração do “herói novelístico”

dessa produção em específico. Esta condição é perceptível quando comparamos

ao cenário o perfil feminino dessas obras, o resultado da comparação torna os

heróis novelísticos dickeanos incomuns ao padrão convencional de representação

literária, já que são condensados na figura de duas grandes líderes femininas

frente a um cenário onde a costumeira feminilidade não se mostra presente.

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O perfil feminino novelístico dickeano não aceita estereótipos:

passividade, submissão e domínio, já que, apesar da imagem da costumeira

feminilidade atribuída às mulheres, essas aparecem em ambientes marcados pela

violência, ainda que isso seja o mais aceitável dentro da linha do enredo. Nesse

mesmo processo, a mulher dickeana parece reproduzir as cicatrizes da terra onde

vive, demonstra vozes sociais pertinentes a seu ambiente de circulação, parece

masculinizarse o suficiente para manter-se viva, brutalizar-se para sobreviver, ou

até mesmo matar para garantir a existência.

Se a fala feminina ou a fala de uma personagem feminina dentro do

romance pode conter vozes ou discursos independentes em seu interior, podemos

dizer que, dependendo da condição e das forças que se posicionem, o poder

exercido por ela pode ou não ser estabelecido, já que isso deve depender das

relações – que o poder não é algo que se adquira, arrebate ou compartilhe, algo

que se guarde ou deixe escapar; o poder se exerce a partir de inúmeros pontos e

em meio a relações desiguais e móveis (FOUCAULT, 1988, p.104).

Diante do que vimos expondo, podemos depreender que ter voz pode

significar ter poder. Observemos, então, que as vozes sociais presentes na fala de

uma personagem feminina podem representar subjetivamente quaisquer formas de

poder, de expressões e representações no contexto histórico de que tomam parte,

mesmo que ainda não tenhamos clareza a respeito do que o poder venha a

significar no desenrolar da trama

As vozes sociais de que vimos tratando demonstram seu poder de criação

quando, por exemplo, determinam ações do personagem ou quando determinam

as ações alheias a este personagem, quando determinam a fala de outros

personagens, quando determinam as ideias do narrador ou ainda concernente à

sociedade. Não há, para tanto, um nível de importância em relação a essas vozes,

ao contrário, é a sua quantidade e existência que fazem com que o texto obtenha

grau de riqueza literária. A exemplo, Janis Mohor, em Sinfonia Equestre, (Dicke,

2006) tem seu comportamento determinado pelas vozes sociais que carrega, ou

seja, ao sintetizar o conceito social presente, Janis acaba por simular

simbolicamente a sociedade e o poder do contexto em que está inserida. Não por

acaso, a literatura exemplifica boa parte destas considerações, isto se deve ao fato

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de que no plano literário o autor pode estabelecer parâmetros, tanto individuais

quanto coletivos, para a construção de seu plano de ação e das vozes internas que

representa. A literatura pode ser entendida como extensão da representação do

plano social em que vivemos e que de certa forma deva espelhar algumas das

vozes que imperam nos discursos que ouvimos cotidianamente. Dessa forma, a

literatura dickeana, pode usar veículos diversos para trazer à tona ideias

preconcebidas.

Os escritores, contextualizados em suas épocas e suas representatividades,

quer seja de seus espaços cronológicos, quer seja de seus espaços psicológicos

(BOSI, 2000), podem dar destino e vazão às vozes, porém os diálogos com

elementos externos ao mundo do autor, incluindo aí o diálogo com seus recém-

criados personagens, podem, ao mesmo tempo, estabelecer novos padrões ou a

reprodução de novas vozes à produção literária em si.

A personagem feminina pode ser exemplo da portabilidade das vozes

sociais na literatura em diversas obras, incluindo as novelas de Dicke. A

personagem feminina tanto pode abrir espaço para que as vozes sociais que

defendam a liberdade de seu gênero possam ser dirigidas ao grande público, como

podem se opor e até mesmo rechaçar essa ideia. Com isso, podemos perceber

que as diferenças estabelecidas por esses discursos se consolidarão não apenas

pela condição de gênero da mulher em detrimento do homem, mas também por

posicionamentos e ideias ─ variantes de uma mesma discussão. Cabe ressaltar

que as vozes sociais que falem sobre a liberdade de gênero não são as únicas

delegadas às mulheres, também podem refletir vozes da sociedade, políticas e até

mesmo institucionais.

Para Lessa (2004), a leitura interpretativa das vozes pode ser feita por

quem não possui o poder de determinar seu destino, incluindo a questão de que as

vozes são perceptíveis tanto ao leitor quanto ao escritor criador, porém estas são

estabelecidas e estruturadas por uma reflexão que tenha por base o poder. Ele

complementa dizendo que a palavra só pode ser tecida quando a costureira possui

entendimento sobre a tecelagem (LESSA, 2004).

Além de poderem ser consideradas obras dialógicas em relação a suas

vozes e a variedade de pensamentos existentes, Toada do Esquecido e Sinfonia

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Equestre (2006) reservam-nos uma certeza: possuem os perfis femininos como

regentes de boa parte dessas vozes que devem posteriormente classificá-las como

líderes, já que suas ações possam gerar poder.

Uma leitura mais precisa esclarece que o poder não é formado apenas pela

portabilidade das vozes sociais como o que acontece fora do texto literário, mas

internamente a ele, quando o poder se traduz em liderança dentro da ficção, como

é o caso das narrativas estudadas. No caso destas novelas, quando o poder é

carregado pelas mãos femininas, estas, exercem liderança diante do que

simbolicamente representam. Assim as mulheres dickeanas traduzem a vontade

daquilo que a sociedade ideologicamente acredita.

Nessa direção, observamos que a liderança é dividida em partes iguais em

Toada do Esquecido. No plano de ação, duas opositoras protagonistas vão reger as

vozes internas ao texto dividindo o poder, de um lado El Diablo, a líder dos

fugitivos do garimpo, e de outro El Sapo, a líder dos donos de garimpos que

perseguem os fugitivos. Já em Sinfonia Equestre, apenas uma protagonista vai

reger as vozes da liderança e do poder, Janis Mohor vai configurar– se naquilo

que El Diablo e El Sapo já o fizeram anteriormente: sintetizaram como a “mãe–

d‟água”, tão presente no romance Rio abaixo dos vaqueiros ou como a “mãe–

terra”, presente em Toada do Esquecido, as cicatrizes de sua história: A Moringa,

perdida no meio dos campos esturricados, oásis no coração das sangrentas

queimaduras da Mãe-terra (DICKE, 2006, p.61).

Fazendo junção entre o perfil feminino e as vozes sociais, podemos dizer

que as primeiras vozes femininas representativas de poder começaram a ser

ouvidas por vários caminhos de libertação, incluindo nestes caminhos o da

literatura, conforme citado. A literatura se constituiu como um importante meio

para que as vozes femininas pudessem representar o seu poder perante a sociedade

que as cria e escuta.

As autoras costuraram seus canais de libertação próximos da sociedade

vigente – justamente por se tratarem de obras literárias e que, por isso trazem

internamente ao texto um retrato da realidade em que viviam. Zinane (2006) nos

dá uma parte desta realidade:

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Como ocorre com as minorias, a voz da mulher sempre foi

silenciada, o que a impediu de desenvolver uma

linguagem própria. Desse modo, para poder expressar–

se, precisa utilizar a linguagem do gênero dominante,

através do desenvolvimento de uma modalidade de

articulação de sua consciência por meio de ritos e

símbolos que se configuram num espaço próprio

(ZINANE, 2006, p.25).

O perfil feminino, como falante e possuidor de vozes internas à produção,

abriu perspectivas para que outras “comunicações” pudessem ser inquiridas, o

diálogo com o mundo à sua volta, com seus semelhantes e até mesmo com seus

historicamente algozes: os homens.

O poder de interlocução das vozes, com o tempo, tornou a mulher um

instrumento responsável por essas vozes. Frutos do social, as vozes traduziram o

poder para que o gênero feminino se tornasse de renegado a um importante canal.

Pela análise dessas vozes, sabemos que a sociedade é quem designou essa

transformação, pois é dela que partem os discursos

Faraco (2003) aponta para a existência de jogos de poder entre as vozes

que circulam socialmente (Faraco, 2003, p.67). Para ele, o conjunto social dá

valor para todos os produtos ideológicos que cria, ou seja, as vozes servem para

reconhecer a criação de uma ideologia ou pensamento já constituído pela própria

sociedade.

O poder de interlocução dessas vozes está presente em El Diablo na Toada

do Esquecido (2006), isso porque ao representar os “frutos do social”, El Diablo

também representa o lado do poder social em que as vozes ideologicamente são

regidas. Assim, podemos dizer que as vozes internas aos perfis femininos tem

uma grande importância dentro da produção novelística de Dicke, já que são

formadoras do plano de ação da produção, já que compõem seu papel principal,

José Luiz Fiorin (2006) acredita que Bakhtin (2006) explica esses jogos de poder,

ao afirmar que não há neutralidade na circulação de vozes. Ao contrário, ela tem

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uma dimensão política. As vozes não circulam fora do exercício do poder; não se

diz o que se quer, quando se quer, como se quer (p.173), isso explicaria a estreita

relação que essas vozes possuem em relação ao poder, tanto no plano de ação da

narrativa, quanto no plano de estabelecimento de discursos ideológicos internos

ao texto. Esse diálogo é assim entendido da seguinte forma por Stella (2005):

O falante, ao dar vida à palavra como sua entonação,

dialoga com os valores da sociedade, expressando seu

ponto de vista em relação a esses valores. São esses

valores que devem ser entendidos, apreendidos e

confirmados ou não pelo interlocutor. A palavra dita,

expressa, enunciada, constitui-se como produto

ideológico, resultado de um processo de interação na

realidade viva. (STELLA, 2005, p.178).

Nesse sentido, os papéis relativos à utilização das vozes mudaram de

acordo com os interesses sociais que os criaram, os eixos se movimentaram e,

desse movimento e de novas formações, as vozes foram conferidas à mulher

porque os signos que representavam também sofreram mudanças: Vozes diversas

ecoam nos signos e neles coexistem contradições ideológico-sociais entre o

passado e o presente, entre as várias épocas do passado, entre os vários grupos

do presente, entre os futuros possíveis e contraditórios (MIOTELLO, 2005,

p.172).

O comportamento histórico e a portabilidade das vozes sociais não

aumentaram nem diminuíram a importância dos perfis femininos nas obras

literárias, já que estas são veículos de utilização das vozes, é preciso entender que

as ideias sociais mostram-se presentes nos textos literários, independentemente do

poder que o gênero feminino represente, ou seja, o poder diante das vozes das

personagens femininas está focalizado na formação do discurso, conforme o

trecho evidencia:

O discurso veicula e produz poder; reforça-o, mas

também o mina, expõe, debilita e permite barrá-lo. Da

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mesma forma, o silêncio e o segredo dão guarda ao poder,

fixam suas interdições; mas também, afrouxam seus laços

e dão margem a tolerância mais ou menos obscuras

(FOUCAULT, 2010, p.112).

Foucault reitera que outros discursos foram sendo criados e regidos pela

independência de ações em relação ao masculino, entre esses discursos inclusive a

formação do pensamento feminino e de sua ideia libertária, ou seja, o perfil

feminino serviu de canal de ideologias que também apontavam as vozes femininas

como eixo delineador. De acordo com o autor (1988), foi a partir desse momento

que a multiplicação desses discursos trouxe para a mulher o exercício do

verdadeiro poder:

Mas o essencial é a multiplicação dos discursos sobre o

sexo no próprio campo do exercício de poder: incitação

institucional a falar do sexo e a falar dele cada vez mais;

obstinação das instâncias do poder e a ouvir falar e fazê-

lo falar ele próprio sob a forma da articulação explicita e

do detalhe infinitamente acumulado (FOUCAULT, 1988,

p.24)

Foucault (1988) explica que a multiplicação de discursos sociais fortalece

novas formas distintas de divisão de poder, já que centralizado, o poder

monopoliza as atenções e acarreta a proliferação do discurso único e dominante.

Para Perrot (1988), a mulher soma-se aos operários e prisioneiros, ou seja,

gênero minoritário diante dos ingredientes que a constituíram sombra do homem:

o contexto, a invenção arquetípica, seu corpo, sua sexualidade – elementos de

falta de poder interligados tornaram-na excluída e silenciada (PERROT, 1988).

Esse lado obscuro agora divide posição com o perfil literário de uma mulher que

não só representa vozes diversas que se utilizem dela para serem entendidas

dentro desse plano, como também representa as vozes que a defendem e a

definem como formação do próprio discurso interno às novelas em questão.

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Neste sentido, mesmo que essa condição seja contraditória, firma-se uma

segunda problematização somada à utilização de vozes pelo perfil feminino dentro

do texto literário dickeano: O poder regido por estas vozes.

Lembramos que a sociedade é fruto próprio do poder (Foucault, 1988,

p.16) e as relações sociais são intermediadas por interesses claros ou obscuros. As

variantes que compõem essas forças tanto podem estar centradas nas ações, como

podem estar centradas no ser social produtor desta ação. O poder instituído faz

parte tanto da sociologia quanto das relações de gênero, pois a visão de sociedade,

fundamentada nas relações de poder que possuímos: Sexo e poder não são

mundos distintos um do outro, mas estão entrelaçados um no outro

(THERBORN, 2006, p.11). Como vimos, o poder está no mesmo patamar de

importância do gênero, apesar deste último não ser o foco do nosso estudo.

Segundo Foucault (1988), a disparidade entre os pólos é um fator

fundamental para que o poder se estabeleça, ou seja, são as relações desiguais e

móveis (p.104) que tornam possível o estabelecimento da dominação. Foucault

(1988) acredita que essas mesmas relações díspares mesclam as relações de poder

com sexo e prazer (p.56) e unindo o sexo, a sociedade e a soberania, encontramos

a família, que é regida por toda essa estrutura social (THERBORN, 2006). Tais

pensamentos evidenciam o surgimento de forças menores e forças maiores,

dependendo da situação e da influência como esta mesma situação se combina

com outras.

O exemplo do poder social, do poder ligado à questão de gênero e do

poder familiar não limitam ao contrário, há outras formas de poder que podem ser

observadas em outros planos de ação: O poder, de maneira geral, conceitua-se

como um mecanismo de dominação, um mecanismo apelativo no qual o prazer se

difunde (FOUCAULT, 1988, p.52).

Fora desses padrões de leitura, o poder não é um termo fechado em si

mesmo, ao contrário, abrange vários conceitos em que as características principais

para o estabelecimento do mesmo estejam configuradas. A primeira definição

histórica esteve ligada à nossa condição de seres humanos e de luta por nossa

sobrevivência: Por muito tempo, um dos privilégios característicos do poder

soberano fora o direito de vida e de morte (FOUCAULT, 1988, p.147), embora

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tivéssemos outros importantes interesses no que se refere à condição de nossa

própria existência.

Aqui se insere a condição histórica de Mato Grosso, segundo a

representação literária de Dicke, em que a sobrevivência diante de um ambiente

de violência constitui-se como forma de produção e ordenação de poder. Ao

lembrarmos estas considerações, não devemos nos esquecer de que, além da

portabilidade das vozes sociais, os perfis femininos situados nesses ambientes em

conflito exercem, as primeiras ordenações de poder, já que além da liderança,

estas se mostram sobreviventes de um sistema social que as vozes internas

representem.

De acordo com o exposto, vimos que o poder passou por diversas

transformações até atingir conceitos básicos de consolidação de seu pensamento:

Parece-me que se deve compreender o poder, primeiro,

como a multiplicidade de correlações de forças imanentes

ao domínio de onde se exercem e constitutivas de sua

organização; o jogo que, através de lutas e afrontamentos

incessantes as transforma, reforça, inverte; os apoios que

tais correlações de força encontram umas nas outras,

formando cadeias ou sistemas ou ao contrário, as

defasagens e contradições que as isolam entre sim; enfim,

as estratégias que se originam e cujo esboço geral ou

cristalização institucional tom corpo nos aparelhos

estatais, na formulação da lei, nas hegemonias sociais

(FOUCAULT, 1988, p.102-103).

Não há, de fato, uma estrutura definitiva e formada que convença o

estabelecimento do domínio como circunstância aceitável, ao contrário, o poder

não é uma instituição e nem uma estrutura, é apenas um nome dado a uma

situação estratégica e complexa dentro de uma sociedade (FOUCAULT, 1988,

p.103).

A situação estratégica de nossas ações está em todos os lugares da

sociedade, os fatores que a compõe estão em movimento: ora como costume, ora

como abominação, ora como imposição. A mudança desses eixos determina

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outras combinações e, por conseqüência, outras formas de dominação. Foucault

(1988) esclarece de onde provém o domínio:

O poder está em toda parte; não porque englobe tudo e

sim porque provém de todos os lugares. E “o” poder, no

tom que tem de permanente, de repetitivo, de inerte, de

auto– reprodutor, é apenas efeito de conjunto, esboçado a

partir de todas essas mobilidades, encadeamento que se

apóia em cada uma delas e, em troca, procura fixá-las

(p.103).

Já que manter o “domínio” em situações sociais pode ser considerado um

termo de várias significações diante da mobilidade da criação literária não é algo

que se adquira, arrebate ou compartilhe, ele é exercido a partir de inúmeras

condições e acontecimentos: os desequilíbrios, as partilhas ou os distanciamentos

(Foucault, 1988, p.104). O autor compreende que o poder seja o produto de uma

série de circunstâncias que, encadeadas, fazem com que ele seja possível:

Que as relações de poder não se encontram em posição

de exterioridade com respeito a outros tipos de relação

(processos econômicos, relações de conhecimentos,

relações sexuais), mas lhe são imanentes; são os efeitos

imediatos das partilhas, desequilíbrios e desigualdades

que produzam nas mesmas e, reciprocamente, são as

condições internas destas diferenciações; as relações

de poder não estão em posição de superestrutura, com

um simples papel de proibição ou de recondução,

possuem, lá onde atuam, um papel diretamente

produtor (FOUCAULT, 1988, p.104);

Que o poder vem de baixo; isto é, não há, no princípio

das relações de poder, e como matriz geral, uma

oposição binária e global entre os dominadores e os

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dominados, dualidade que repercuta de alto a baixo e

sobre grupos cada vez mais restritos até as

profundezas do corpo social (FOUCAULT, 1988,

p.104-105);

Que as relações de poder são, ao mesmo tempo,

intencionais e não subjetivas. Se, de fato, são

inteligíveis, não é porque sejam efeito, em termos de

casualidade, de uma outra instância que as explique

mas que atravessadas de fora a fora por um cálculo:

não há poder que se exerça sem uma série de miras e

objetivos (FOUCAULT, 1988, p.105)

Como vimos, o poder pode ser considerado uma definição social, que

muda conforme se interliga com elementos diversos ao seu convívio, há condições

em que ele é posto à prova, quando se aproxima de temas considerados

socialmente distantes. Em nosso estudo, um exemplo disso é a aproximação dos

perfis femininos e do poder, conforme observado nas novelas de Dicke – em

virtude dessa historicamente “estranha” aproximação, pode-se perceber outros

elementos que tornam este acontecimento possível: um desses elementos é a

utilização das vozes por parte dos perfis femininos.

Os perfis femininos dickeanos, dentro das novelas, podem obter poder

quando são utilizados como canais de vozes sociais, isso validaria o pensamento

de oposição binária, proposto por Michel Foucault (1988), ou seja, da oposição

entre o que representa o poder e o que representa o perfil feminino dickeano

diante do contexto histórico feminino, um conceito pode contaminar o outro e

assim valorizar não só o discurso carregado pelas vozes quanto valorizar o próprio

veiculo de estabelecimento, no caso, os perfis femininos.. Se a condição histórica

da mulher a situa por baixo da condição de gênero masculina, então o poder vem

de baixo (FOUCAULT, 1988, p.104), isso não só justificaria sua argüição como

também exemplificaria a teoria proposta.

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Essa expressão O poder vem de baixo não pode ser compreendida como

um termo solto, já que necessita de um contexto de entendimento, principalmente

quando o utilizamos no campo literário. A ficção literária, apesar da ligação que

possui com a realidade vivida, pode se configurar como ambiente artificial de

criação e estabelecimento de poder.

Dentro do campo ficcional das novelas, uma personagem pode estabelecer

poder como sendo o motivo principal da escrita daquele texto quando centra suas

ações, quando por questões econômico-sociais mostra-se superior a outros

personagens ou até mesmo porque, dentro da ação, a personagem pode ser

descrita como a articuladora de uma das cenas que configuram determinada

importância entre outras. Este grau de importância cria poderes textuais que nada

tem a ver com os poderes criados fora desse campo de criação.

No caso das novelas de Dicke, o poder que gera distanciamento em relação

à condição histórica feminina, não gera estranhamento em relação à portabilidade

das vozes sociais, isso porque o perfil feminino em Dicke é possuidor da postura

ideológica social existente, enquanto que os perfis masculinos representam o

discurso dos excluídos, dos que foram esquecidos pela mesma sociedade que

elegeu as mulheres para responder por ela. Assim comparados, ao estabelecerem

poder, os perfis femininos colocam-se contrários aos perfis masculinos nas

relações de gênero e ao contrário deles, a autonomia das atitudes femininas

deixam-se transparecer no enredo.

Além do mais, fora do campo literário, e interligando com um raciocínio já

esboçado sobre o perfil feminino, o termo O poder vem de baixo (Foucault, 1988,

p.104) desenterraria metaforicamente todo um processo histórico que, ao ser

observado enquanto contexto, reafirmaria o mundo em que vivemos.

O esboço desenterrado metaforicamente do contexto da condição

feminina mostra-nos que, no seio da família historicamente o gênero feminino tem

aparecido numa situação de subordinação ao gênero masculino (CANÔAS,

1997, p.50) e as variantes que tornam isso possível são, segundo a mesma autora,

a exploração, a desigualdade, a opressão, a repressão, o patriarcalismo, os

machismos e a discriminação.

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Para Therborn (2006), o masculino, ao dominar o feminino, fundamenta–

se no passado histórico da formação das primeiras famílias posicionadas entre o

sexo e o poder. Neri (2005) revê uma parte deste processo:

Aristóteles, com as armas da metafísica e da história

natural, da qual ele é fundador, é o primeiro a formular

um discurso filosófico sobre a superioridade do

masculino: é o masculino que transmite a humanidade, é

ele o portador do principio divino. Aristóteles remete o

masculino a forma ativa, princípio divino criador, ser que

engendra, que teria o domínio da arte, da ciência, do

saber e da razão em oposição ao feminino que seria

matéria bruta, fôrma passiva, receptáculo a ser

engendrado, natureza a ser moldada pelo artesão (NERI,

p.83).

A síntese desse poder regido e regulado pelo tempo é definida por Göran

Therborn (2006) como sendo a dominação do gênero masculino, esta dominação é

comparada a uma engrenagem a qual o poder paterno é o significado central do

patriarcalismo (THERBORN, 2006, p.22). De acordo com o autor, o patriarcado

tem duas dimensões de poder: a dominação do pai e a (...) do marido (p.29),

sendo esta primeira ainda constituída de dominações maiores como a autoridade

da igreja (p.32), do monarca (p.32) ou do Estado (p.32). Esta mesma engrenagem

é ilustrada com muita veemência por Maquiavel (2003), que é reconhecido por

sua arte de dominação universal:

(...) pois a sorte é uma mulher, sendo necessário, para

dominá-la, empregar a força; pode-se ver que ela se deixa

vencer pelos que ousam. E não pelos que agem friamente.

Como mulher, é sempre amiga dos jovens – mais bravos,

menos cuidadosos, prontos a dominá-la com maior

audácia (MAQUIAVEL, 2003, p.149)

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Se do lado de fora da criação literária há uma engrenagem que torna

“estranha” a condição social do perfil feminino relacionado ao poder dentro do

contexto histórico que vivemos, do lado de dentro da literatura este mesmo

estranhamento acontece carregado de significações e vozes que, tanto podem

ecoar esta ideia, como podem também silenciá-la em hipótese de discordância.

Porém, tanto dentro como fora do plano literário O poder vem de baixo

(Foucault, 2010, p.104) e enquadra- se de igual forma na literatura, interligado às

vozes do texto, porque o perfil feminino pode ser portador de uma

importante ideologia a ser combatida ou eferendada, no contexto histórico,

pela condição de disparidade de gênero que une boa parte das civilizações

primitivas (FRENCH, 1992).

A análise dos efeitos da mistura de todos os componentes intra-texto

citados neste esboço de ideias, dá-nos a possibilidade de encontrarmos, enquanto

leitores, romances que, classificados como polifônicos – possuidores de várias

vozes diferenciadas – destaquem não só uma personagem feminina como

elemento principal da ação, mas lhe dêem vozes que atendam aos interesses do

autor-criador ou da própria personagem, sendo estas vozes, diante do cenário em

que são criadas, definidoras de poder frente às relações do plano de enredo.

Unindo todas as problematizações em questão, pode-se concluir, todavia,

que as personagens femininas das novelas de Dicke modificaram as condições

históricas do gênero feminino durante sua ação literária, uma vez que estão fora

do ambiente estereotipado da feminilidade e são, portanto, transcendentes ao

socialmente condicionado, já que lhe são estranhas. O veículo de difusão de poder

nas personagens femininas estabelecidas pelas novelas de Dicke é imbuído no

exercício da significação de uma realidade hipotética e brutal sob o aspecto da

produção do enredo, porém, levando-se em consideração o corpo feminino, essa

situação permite-nos dizer que as vozes correspondem a uma de suas maiores

representações.

Os perfis femininos e suas vozes sociais merecem atenção detalhada

enquanto objeto de estudo. Neles, o fluxo narrativo emana e deságua, inicia e

termina, silencia e potencializa. Refletiremos sobre estas vozes nos capítulos que

se seguem.

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CAPÍTULO 2: TOADA DO ESQUECIDO

2.1. A Natureza como Cenário

Uma pausa importante se faz necessária à seqüência imediata deste

trabalho, pois acreditamos ser o cenário das novelas dickeanas uma criação

literária que deve, de alguma forma, auxiliar-nos na detecção e estudo das vozes

presentes nos perfis femininos criados pelo autor. Para tanto, este capítulo poderá

se constituir em uma forma de análise para percebermos as características ligadas

a esse cenário e a obra como um todo.

A respeito do enredo da narrativa das novelas, podemos dizer que

resgatam uma temática constante na obra dickeana que é o sentido da travessia

Miguel (2007). Conforme se pode observar em: A estrada fica para trás, e com

ela os tristes campos de árvores queimadas, tudo negro, tudo queimado, nada em

pé, só devastação e destruição (DICKE, 2006, p.55). Outras obras, como por

exemplo, Madona dos Páramos, possuem “travessias” parecidas e podem ser

fonte de inspiração para o estudo realizado. Embora o enredo, de modo geral,

distanciem as novelas dickeanas Toada do Esquecido e Sinfonia Equestre do

romance Madona dos Páramos, tanto uma como outra tem em comum a criação

de uma atmosfera de fuga em direção ao sublime, uma fuga no meio do nada em

busca da difícil realização dos sonhos, uma travessia que embarca, na mais

inóspita das regiões, e que deságua, quase sempre, em uma profunda reflexão

sobre a condição humana.

Esse cenário ajuda a intensificar a prosa poética do autor (MIGUEL, 2007,

p. 282), no sentido de que favorece a reflexão existencial dos personagens, ou

seja, ao criar um cenário opressivo e violento, conforme dissemos, o autor mato-

grossense mergulha na condição efêmera do homem para, de acordo com a

autora, compreender-se ao longo deste percurso. A prosa poética, que mistura a

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narração com uma parte da reflexão do autor sobre as coisas mundanas, é,

inclusive, emblemática no trecho transcrito abaixo:

Vozes aflautadas, vozes nervosas, vozes com respiração

desabalada, vozes que parecem que lhes deram corda,

vozes de sereias magníficas, vozes soberbas, vozes

tutaméias, vozes anasaladas, vozes atropeladas, vozes de

moles dentaduras, vozes descarriladas, vozes de gordura,

vozes que mascam, vozes musicais, vozes robôs, vozes

cavernosas, vozes negras, vozes brancas, vozes

montanhistas, vozes desparafusadas, vozes espectrais,

vozes de bochechas flácidas, vozes sexuais, vozes como

dentais, vozes palatais, vozes catarrentas, vozes

orquestrais, vozes anãs, vozes gigantes, vozes de gengivas,

vozes dentifriciais, vozes altaneiras como condores, vozes

cadavéricas, vozes como peidos, vozes rachadas, vozes

gongóricas, vozes matsulêmicas, vozes murchas, vozes

sexy, vozes juvenis, vozes patéticas, vozes, vozes – tudo

passa no amplo dial: gran teatro Del mundo e nunca

passam duas vozes iguais e para sempre para nunca mais

voltar, os reflexos de toda a vasta Terra (DICKE, 2006,

p.70- 71).

Como vimos, Mato Grosso é o cenário escolhido para a criação artística

das novelas dickeanas, no entanto, é necessário especificar que, neste aspecto, não

temos a inclusão dos elementos próximos do mundo moderno e nem a complexa

formação de elementos de urbanidade; ao contrário, o que se reproduzem são os

cenários onde o abandono do estado e o estágio primordial de sobrevivência estão

em jogo. Assim, podemos inferir que o cenário característico das novelas

configuram-se no sertão deste estado e é no sertão que a travessia dos personagens

deverá ter início, um início que consumirá a reflexão sobre esta travessia, uma

travessia humana que se reflete sobre nós mesmos: O sertão dickeniano é

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sustentado pelos conteúdos do inconsciente (...). Um sertão-angústia, um sertão-

loucura (...) um sertão- resposta, um sertão-apaziguamento. (MAGALHÃES,

2001, p.214).

Pelos buracos da viseira vê: é a trilha que segue entre bamburrais sujos e

moitas esturricadas, até agora nada, nenhum lugar para se fazer acampamento e

fazer almoço, terra do diabo, já não sei quanto tempo estamos viajando (...)

(DICKE, 2006, p.15), nesse mundo nebuloso e distante, dos esturricados sertões

às mais verdes florestas, da Amazônia ao cerrado, as narrativas novelísticas se

desenrolam, valorizando a reflexão existencial interior aos personagens.

O percurso proposto pela maioria dos enredos de Dicke, não discorre

apenas sobre a “viagem” indicada pelo mote inicial, na verdade as vozes sociais

regidas pelos personagens femininos também discorrem, de igual forma, sobre a

representação da sociedade em que se condicionam. De fato, a reprodução

desse comportamento ou desse discurso social deve eventualmente gerar

poder em quem o possuir, já que, internamente a este texto, isso possa representar

a imagem do mundo que “atravessa” durante a ação.

Percebemos assim, que duas “travessias” se fazem presentes durante a

realização da ação literária: a primeira voltada para a “travessia da reflexão”

conforme já dissemos, e a segunda, voltada para a travessia enquanto transcurso

topográfico daquela região sertaneja (MIGUEL, 2007, p.151), fato que

colaborará para a formação e estabelecimento do enredo, já que a transformação

do cenário inclui a transformação do enredo. A inserção dos personagens na

travessia “enquanto transcurso topográfico” e conseqüente reconhecimento das

vozes sociais durante essa travessia posicionam os personagens em relativa luta

pela própria vida em detrimento do ambiente brutalizado, em constante

transformação, ou seja, são posicionados em ambientes onde, em situações

críticas, seu poder de barganha pela vida e pela morte são postos à prova. Ao

refletirmos sobre esses aspectos, lembramos imediatamente da primeira condição

de estabelecimento do poder presente nos primórdios de nossa civilização, ou

seja, por muito tempo, um dos privilégios característicos do poder soberano fora

o direito de vida e de morte (Foucault, 2010, p.147). A vida constitui-se, portanto,

como prêmio para todos aqueles que obtem o poder de mantê-la.

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Miguel (2007) lembra-nos, ainda, que, uma vez conceituados,

estabelecidos e detectados, no caso das novelas, os personagens que trazem o

gênero dos perfis femininos e o cenário ambientado no sertão de Mato Grosso são

vinculados a outro eixo articulador de extrema importância: ambos se vinculam

naturalmente a uma terceira categoria nesse contexto: o tempo (p.52). Segundo a

autora, o tempo da ação é uma essencial ferramenta, que se configura de forma

parecida em quase todas as produções do autor, como vemos no excerto que

segue:

Agora são seis e meia... agora já caíram as trevas sobre

esta parte do mundo, todo o campo já mergulhado na

noite até os horizontes que rodeiam tudo com seu olfato de

narinas noturnas que cheiram o mundo que se enclausura

na escuridão(...) (DICKE, 2006, p.24).

O tempo é, de fato, uma grande complexidade na obra dickeana.

Obedecendo à convenção do tempo proposto por Miguel (2006), lembramos que,

da mesma forma como dividimos as “travessias” da obra anteriormente,

apontamos agora a existência de tempos internos ao texto, já que, por seu grau

de riqueza, reserva-nos a condição de que os tempos estejam intimamente

relacionados e internamente observados diante de suas significações.

Levados agora por essa presença temporal, comecemos trazendo à

lembrança a menção de que a “travessia” humana apresentada pela análise da

condição existencial a qual estão seres humanos sujeitos liga-se diretamente ao

tempo psicológico da obra (BAKTHIN, 2003, p. 211). O tempo psicológico é

conceituado como o tempo vivido pela personagem, de acordo com o seu estado

de espirito, diante disso, podemos perceber que se os personagens estão inseridos

numa “travessia” de questionamentos existenciais, conforme observado, a

utilização do tempo “psicológico” faria jus a esta consideração, já que, também

por intermédio desse tempo, podemos fazer parte considerável das concepções

fenomenológicas dos personagens. O trecho abaixo reune exemplarmente a

“travessia” humana da narrativa dickeana:

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As vozes da sedução no rádio... Mas quem seduz quem?

Sei lá, é alguém que seduz ou quer seduzir e alguém que é

subliminarmente seduzido: são as doces vozes das

mulheres do mundo, são as velhas companheiras do

homem, as eternas amigas do homem, são as velhas vozes

de sedução deste mundo. Rostos sedutores das mulheres

nos fitam lá dentro do rádio, lábios femininos que falam,

pronunciam palavras com doces inflexões, bocas que vão

falando: que nos quereis, eternas formas da sedução deste

mundo? Não queremos a sedução deste mundo, desejamos

sim o descanso deste mundo, nada mais... Mas as eternas

mulheres seguem falando lá das distantes e fodidas

cidades e com elas se perde todo contorno e tudo se

indefine: estamos eternamente no mundo da sedução, sem

poder fugir? E fugir para onde, acaso? Como Jerônimos

no deserto, as formas femininas nos seguem, nos

assediam, nos perseguem, como Calígulas bebemos na

taça do pecado o amavio das vozes de sedução das

mulheres que, no deserto silencioso, as nossas pobres

orelhas vão bebendo e que não sabem esquecer. Como é

teu nome, El Diablo? Se te chamas Ana Barca ou Horário

Barco? (DICKE, 2006, p.82)

Também devemos trazer à lembrança a ponderação de que os tempos e as

travessias de igual forma se unem à condição de humanidade dos personagens.

Como vimos, aneladamente os tempos se ligam a esta condição com significações

que não operam na mesma direção. Se, de um lado, o tempo psicológico aponta

para os horizontes definidos anteriormente, o tempo cronológico (BOSI, 2000)

reserva-se, de maneira simplificada, a pautar a marcação e a ordenação do tempo

dentro da ação promovida pelo autor. Esta marcação envolve os estados da

natureza, do cenário e a própria forma única que Dicke possui de dialogar com os

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acontecimentos rotineiros de sua escrita: Dez horas, mestre... – diz mestre Gepetto

olhando seu relógio de pulso (DICKE, 2006, p.45).

A partir da marcação dos índices narrativos tal qual a natureza arredia, a

narrativa se apóia na intensa vivacidade da representação literária, tal intensidade

é percebida quando ciclicamente os animais que os acompanham, quer seja na

fuga – Toada do Esquecido – quer seja na vingança – Sinfonia Equestre –

mostram-se presentes em suas entonações. As entonações dos animais são

constantes durante a narração, porém apesar de constantes, são fugazes, portanto

sua presença torna a marcação temporal uma espécie de metáfora que funciona

como “os pinos de um relógio”, ambos retratando a ação do tempo sobre a

condição de humanidade.

Constatamos, deslocando-nos ainda mais longe na reflexão, que as

entonações propostas pelos animais dentro do plano de ação não fazem parte de

uma ação isolada, mas estão inseridas num círculo maior, ou seja, o tempo

cronológico sofre suspensão causada pela presença de elementos cíclicos do

cenário da natureza. Para Ferraz (1998), a entonação é a tradução e a

representação sonora de elementos simbólicos extra-musicais e afetivos (p.31).

Ferraz acha que os sons podem ser uma extensão do raciocínio humano e, por essa

razão, significar um prosseguimento de pensamento (p.31). Tal raciocínio elucida

a idéia de que os sons do cenário da natureza para o narrador dickeano podem

significar muito mais do que mera congruência de sons; na verdade os elementos

de marcação de tempo, simbolizados por este círculo maior de Toada do

esquecido (2006) e Sinfonia Equestre (2006) podem se estabelecer como metáfora

ou alegoria de uma reflexão ainda mais profunda (HANSEN, 1986).

A metáfora ou alegoria retirada do entendimento geral da obra seria

possível se compreendêssemos estes elementos como formadores do que já

conceituamos como sendo “o relógio da condição humana”. Parte desta

compreensão seria aceitável para Eco (2003), pois todo movimento

interpretativo, segundo ele, obedece a uma abdução de sentidos interiores à

produção:

Se este movimento interpretativo se detivesse no gozo

dessa imprecisa emoção, não haveria abdução nem

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qualquer outra coisa de relevante para os fins do nosso

discurso. Mas o movimento abdutivo se cumpre quando

um novo sentido (uma nova qualidade combinatória) é

atribuído a cada som enquanto componente do significado

contextual da peça inteira (ECO, 2003, p.120).

Adotando a teoria de Eco (2003), uma vez mais “os pinos do relógio da

condição humana” seriam acionados aqui pelo motriz do cenário da natureza

enquanto círculo maior, conforme o exemplo: Aguça os ouvidos e ouve: distante

cantares de galos e ladrares de cães. Mugidos de bois e vacas (DICKE, 2006,

p.86), ou ainda pelos sons dos animais enquanto esboço desse conjunto: o

cachorro que uiva (p.86), o papagaio que reflete: “Pensa que sou idiota?” (p.86),

o galo que canta e, por último, um insistente relógio que fala das horas, marcando

o tempo. Reunidos, todos esses sons de marcação de tempo no texto, acabam por

integrar o composto verbal que capta as singularidades visuais e sonoras

(MIGUEL, 2007, p.151).

Desse modo, a importância dos tempos dickeanos dentro da produção

novelística é conferida pelo cenário histórico, já que se constitui como formador

dos “pinos do relógio”, portanto, ao interligarmos a condição histórica da

construção do texto com as vozes sociais presentes na produção, observaremos

que a reprodução dos conceitos da sociedade, acerca do tempo identificado pela

narrativa, tornam-se presentes, sendo que, o poder deve ser gerado em detrimento

do personagem que porta estas vozes sociais.

Continuamos a recuperar a idéia de que as entonações são a porta de

entrada para o sentimento de isolamento dos perfis femininos, pois O caminho de

crescimento dos habitantes ficcionais é percorrido em meio ao silêncio

(MACHADO, 2008) e, ao fazermos esta recuperação, somamos a esta, outras

ponderações que levantamos neste capítulo, ou seja, os tempos dickeanos

fortalecem a idéia de reflexão existencial, enquanto que o tempo cronológico

recria a “rotina” cotidiana, ao reproduzir o cíclico dos sons da natureza, fato este

que vai favorecer, conforme citado por Machado (2008), as condições para o

“isolamento,” já que os sons “rotineiros” desta travessia, tanto psicológica

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quanto topográfica, representam, unidos, um ponto convergente que tipifica a

condição da humanidade diante do mundo em que vivemos. O isolamento cíclico

dos personagens fora estudada pontualmente por Miguel (2007):

As idéias cíclicas correspondem à idéia do movimento

circular e aproximam as dimensões temporal e espacial

no romance dickeniano, a peregrinação do grupo se torna

circular naquele espaço desconhecido, pois, ao

percorrerem o lugar e retornarem ao mesmo ponto, estão

atando o fim ao princípio e fechando a circunferência de

um círculo (MIGUEL, 2007 p.109).

Como vimos observando, a aparente separação do tempo deságua numa

mesma direção e que os elementos sonoros constituidores do cenário, quer sejam

sons de personagens ou de animais, elaboram um plano internamente embrenhado

de significações. Podemos perceber, desse modo, que o conceito dessas

significações esclarecem a reflexão que consideramos de extrema importância já

que a representação literária torna-se próxima da realidade social da época,

Ao estudarmos o autor e compreendermos a sua construção literária,

destacamos a importância da utilização dessas ferramentas as vozes sociais e o

poder exercido por elas, já que analisaremos, sob esta perspectiva, como as vozes

ou os discursos sociais e de gênero operam o poder em relação ao plano de enredo

das novelas do autor, especificamente interessa– nos descobrir como essas vozes

perpassam os perfis femininos tão importantes nesta construção literária.

2.2. Rádios à Espreita: Vozes Femininas

Antes da análise da primeira personagem presente na novela dickeana,

gostaríamos de resgatar a idéia pertinente ao universo cíclico de Ricardo

Guilherme Dicke, conforme dissemos anteriormente, esse universo é composto de

personagens – que, somados, formam um plano de ação rotineiro que indica as

ações humanas dentro do tempo cronológico. Destacaremos mais um importante

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item neste complexo universo: as vozes das locutoras de rádio.

Como vimos, os planos de representação literária propostos pelas novelas

trazem à tona uma grande proximidade com os fatos históricos ocorridos em

meados da colonização deste estado, por isso os “fugitivos do garimpo” não

fazem apenas uma travessia topográfica conforme o enredo indica, fazem mesmo

uma travessia histórica, em que se observa o reconhecimento das vozes sociais da

época e onde, ficcionalmente, os limites se confundem com a realidade. Toada do

esquecido (2006) tem como motivação principal a reunião de um grupo de

garimpeiros em fuga, essa fuga revela alguns traços comuns aos personagens: o

furto de um tesouro pessoal que protagonizam e a rádio que escutam.

Para o educador Paulo Freire (1977), Todo ato de pensar exige um sujeito

que pensa um objeto pensado, (...), comunicação entre ambos, (...). O mundo

humano é desta forma, um mundo de comunicação (Freire, 1977, p.66). O

raciocínio de Paulo Freire se faz necessário à medida que o rádio, enquanto objeto

de projeção do enredo novelístico, é desejado pelos personagens que o escutam,

isso acontece porque o rádio – instrumento de difusão – tem importante

desempenho em relação à ação, visto que o tesouro furtado se perde durante o

caminho, enquanto o rádio os acompanha até seus silêncios posteriores; em

virtude desses acontecimentos, pelo rádio os perfis femininos, condicionados

pelas locutoras, colocarão suas falas em evidência, e, por esses canais, as vozes

sociais devam ser observadas sob a ótica do poder.

É importante Observar que o rádio – aparelho eletrônico, constitui-se

como substantivo masculino, entretanto, a rádio – estação de sintonia, constitui-se

como substantivo feminino, esta distinção nos interessa com o propósito de

ressaltarmos a importância desta análise que trabalha com as vozes das

personagens femininas, presentes na rádio, estação de sintonia.

Ao reiterarmos “o mundo da comunicação” de Paulo Freire, sintetizamos a

importância das estações musicais, na medida do que vimos estudando a respeito

da importância das entonações, criadas em torno da produção dickeana, elas

operam os limites da ação e determinando a condição de vida dos personagens. Se

“o mundo da comunicação” precisa de um veículo de divulgação e se os caminhos

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do enredo novelístico dickeniano são determinados pela “audição”, então

podemos dizer que as transmissões radiofônicas ficcionais unem esses pólos, na

medida em que não só representam uma parte da comunicação, como representam

audição dos personagens, a voz de sua própria consciência durante aquela

“travessia” topográfica e existencial. Esclarecemos que a travessia humana

pelo sertão de Mato Grosso é silenciosa, como mostrado, o silêncio desta

travessia torna os personagens suscetíveis a qualquer manifestação sonora, porém,

a produção novelística recria um ambiente propício à valorização desta

manifestação sonora como exercício das reflexões de suas próprias consciências,

ou seja, dentro dos limites dickeanos, a rádio e a consciência dos personagens se

confundem, já que o silêncio propicia a concentração destes na transmissão

radiofônica.

Ao chegarmos a essa conclusão, esclarecemos que a importância da fala

dos perfis femininos na rádio gera poder, na medida em que são condicionados

aos valores da sociedade da qual fogem os libertinos pela travessia proposta, ou

seja, as locutoras representam o social e, consequentemente, a sociedade, uma vez

que trazem em seu bojo boa parte das representações ideológicas de seu tempo

histórico: A mulher de voz suave, talvez uma índia de Tiajuanaco, que fala, fala

sempre apesar de ser meia-noite, lá deve ser às onze horas, ainda á cedo, ah o

mundo da sedução, nem no Equador, entre os índios de Tijuanaco, lá também

deve haver o mundo da sedução(...) (DICKE, 2006, p.37)

Portanto, duas formas de importância estão condicionas quando o assunto

relativo às entonações propostas pelas novelas é retomado: do lado de fora, a

comunicabilidade do mundo e que o mundo nos reserva, do lado de dentro, o

ditame das ações narrativas.

Pensando em dar maior representação literária à sua ficção, o autor de

Toada do Esquecido (2006) cria um ambiente que valoriza a audição, como

componente do plano de ação. Um exemplo dessa valorização são as

interferências radiofônicas propostas pelo enredo do texto, ou seja, algumas

estações de rádio francesas acabam se confundindo com estações de rádio

espanholas, esta ação faz-nos lembrar que, durante a sintonia de uma estação de

rádio, várias estações podem fundir-se, trazendo à tona sons que, apesar de

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aparentarem ser únicos, representam, na verdade, a junção de várias vozes em

uma só. Assim, fundem-se os idiomas com o assunto falado, faz-se uma mescla

de sintonias, idiomas e assuntos, constituindo-se, portanto, em um exemplo de

plurilinguismo:

Uma hora está falando a Rádio Nacional de Espanha com

seu impassível locutor espanhol que não gosta do ridículo

e de repente sem que ninguém lhe ponha a mão falando a

rádio Grécia. Está tudo muito bem quando de repente lá

vem a batida da vareta repetitiva e enjoativa, apesar de

que também haja velhotes que adoram essa batida de

vareta enjoativa do bendito couro distendido... Põe-se na

Rádio France e acaba ouvindo a Rádio Praga, quer ouvir

a BBC de Londres e acaba ouvindo a rádio Moscou... Isso

não será o secreto índice de alguma ameaça que passa no

mundo e paira sobre nossas cabeças? A secreta Universal

Cumplicidade... (DICKE, 2006, p.72)

No tocante às interferências radiofônicas, igualmente, as vozes das

emissoras cujo locutor seja homem ou mulher também fazem junção, ou seja,

seguem uma mesma sintonia, por vezes, locutor e narrador também se fundem,

porém a relação das vozes internas ao texto não são operadas na mesma direção.

Percebamos que o destino dos fugitivos se desenrola à medida que a transmissão

radiofônica acontece, ou seja, dentro da ficção de ação existe uma outra “ficção”

que reproduz o mundo dos personagens, esta outra ficção é o que os leva à

sintonizar a estação de rádio, porém se acreditarmos que a rádio pode significar a

“voz de suas consciências” – já que a rádio e a consciência dos personagens se

confundem – podemos concluir que os personagens das novelas dickeanas

utilizam se metaforicamente da rádio como sintonia de auto-conhecimento ao

longo da travessia “existencial”. O estabelecimento das idéias faz com que,

ficcionalmente, os personagens tentem a sintonia das estações e, ao fazê-lo,

acabam por encontrar os locutores masculinos, representando as notícias

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corriqueiras do dia a dia. Os locutores trazem informações, pregações religiosas e

repetições sobre temáticas diversas da atualidade. Assim, todo esse conjunto gera

uma idéia de visão cíclica sobre a fala masculina, porém, como estudamos, os

personagens estão inseridos num universo cíclico muito maior, um universo que

conjuga todos os assuntos observados pelo mundo moderno: globalização, ordem

econômica e política, contados e repetidos à exaustão. Dito de outro modo, a fala

masculina representa o prosseguimento do mundo em que os personagens são

inseridos pelo narrador.

As informações radiofônicas repassadas pelas falas masculinas são a

definição do papel a que se prestam as informações na sociedade atual. Para

Siqueira (1999) tais papéis são assim definidos: o papel da informação na

sociedade (...) se torna de tal forma relevante que vem à luz o termo sociedade de

informação. Nela vive-se cultural, política, cientifica e, principalmente,

economicamente em torno da circulação de informações (p.25). A esse respeito,

as vozes dos locutores masculinos, que traduzem a repetição cíclica, são

rejeitadas pelos personagens em fuga, acontecimento que é justificado porque

essas vozes fazem o papel da realidade crua da ordem social de suas consciências,

para tanto, a todo momento quer lembrá-los da condição verdadeira do que são e

da condição a que estão submetidos por causa da fuga.

Se, de um lado, os locutores masculinos apresentam vozes que reiteram o

discurso social dominante, sistema de capital, política e religiosidade; de outro, e

contrariando as vozes dos locutores masculinos, as locutoras femininas expressam

duas leituras: o discurso do gênero e o discurso de classe social. As vozes

presentes nas falas das personagens femininas representadas pelas locutoras das

estações de rádio possuem, em seu interior, vozes que apropriadas do discurso

social imperante fazem-se presentes como elemento de estabelecimento de poder,

constituem-se importante objeto de análise, já que internamente carregam em si

marcas expressivas da sociedade que as articula.

Retomando a ideia de vozes presentes na fala das locutoras das rádios,

observemos o um exemplo:

– Fabulosos, rodopiantes mundo da ilusão! A gente vive

no mundo da sedução: revistas e jornais repletos de

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insinuações, televisão com as mulheres convidando, assim

tão sem mais nem menos; pelas ruas elas andam nuas, nas

rádios vozes cinciantes que sussurram no mundo da

sedução, de manhã à noite e da noite à manhã: vozes que

cantam irresistivelmente, envolventemente a não poder

mais: este é o mundo da sedução e da ilusão em que

vivemos metido até o pescoço... (DICKE, 2006, p.11)

O primeiro questionamento suscitado é justamente a composição das vozes

que dialogam com o discurso da sexualidade feminina. Conforme observado, o

tema principal do trecho rege a importância das vozes sociais, enquanto evidência

de sexualidade.

Ao tratar da sexualidade feminina como composição de vozes regidas

pelas locutoras, o perfil feminino representado não só aceita o discurso

antropocêntrico de submissão como também reitera tal discurso, deixando que

essas vozes circulem livremente. Uma vez aceita essa submissão como imposição

do poder patriarcal, essas vozes geram uma interessante contraposição, ou seja, o

perfil feminino serve de veículo para que vozes contrárias à sua emancipação

sejam colocadas em evidência.

Dito isto, importa- nos indicar como as vozes regem a imposição da

condição que o contexto histórico propôs a esta dominação. Como sabemos, a

mulher, enquanto objeto de prazer masculino, fora descrita em sociedades

primitivas (FRENCH, 1992) como as indígenas (RAMINELLI, 2009), para tanto

as vozes, frutos deste pensamento, apenas reproduzem parte desse

cenário,enquanto que o alvo do poder neste acontecimento é regido por duas

condições essenciais: a primeira é que as locutoras de rádio apropriam-se do

discurso masculino em suas vozes e a segunda que, dentro do plano ficcional, as

vozes da locutoras representem o reconhecimento da sociedade na qual se inserem

os personagens. Conferindo as vozes que regem as locutoras das rádios, a

sexualidade feminina em condição de aparecimento convergem em uma

identidade a qual Monteiro (1998, p.55) definira: A identidade feminina ficou

plasmada pelo que a cultura patriarcal determinou. A mulher verte o sangue

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menstrual como marca de sua inferioridade Ou seja, as vozes, neste sentido,

estariam reproduzindo um conceito citado por Monteiro (1998) e, ao mesmo

tempo, destacando o corpo feminino como projeção de sexualidade.

Sobre esse assunto, Simone Beauvoir (1980) fala sobre a condição do

corpo feminino como elemento de sexualidade:

O corpo da mulher é um dos elementos essenciais da

situação que ela ocupa neste mundo. Mas não é ele

tampouco que basta para defini-la. Ele só tem realidade

vivida enquanto assumido pela consciência através das

ações e no seio de uma sociedade; a biologia não basta

para fornecer uma resposta à pergunta que nos preocupa:

por que a mulher é o Outro? Trata-se de saber como a

natureza foi nela revista através da história; trata-se de

saber o que a humanidade fez da fêmea humana

(BEAUVOIR, 1980, p. 57).

Ao citar a posição de Beauvoir (1980), O corpo da mulher é um dos

elementos essenciais da situação que ela ocupa neste mundo, a teórica esclarece o

que dissemos vimos dizendo, ou seja, na medida em que entendemos o corpo

feminino sintetizando à “mãe-terra”, podemos compreender , que esse corpo deve

incorporar as cicatrizes de sua história.

De acordo com a autora, observamos que se a mulher vive em

conformidade com as vozes que representa em um mundo onde o discurso do

poder patriarcal se faz presente, parece-nos óbvio que seu corpo, enquanto objeto

de desejo sexual, estivesse em evidência.

Olhando por este prisma, a sexualidade, presente nas vozes regidas pelas

locutoras, é uma constante durante toda a narração: nas rádios vozes cinciantes

que sussurram(...) vozes que cantam irresistivelmente (...), todos

indissoluvelmente metidos até o pescoço no jogo da sedução(...) (DICKE, 2006,

p.11). Os fragmentos mostrados são alguns exemplos, dentre muitos da presença

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dessa sexualidade e “cicatrizes” de um tempo patriarcal que tem no corpo

feminino um instrumento de utilização.

Ampliando esta idéia, podemos observar que as vozes que indicam

sexualidade, nesses discursos trazem consigo formas de criação e estabelecimento

de poderes específicos, pois... o poder fala da sexualidade e para a sexualidade...

(FOUCAULT, 1988, p.161). O poder presente nesse discurso é reafirmado pelo

pensamento centralizador da masculinidade em relação à feminilidade, prova

disso é a apoderação deste pensamento pelas locutoras – gênero feminino – para

gerar poder sobre si mesmo e sobre o que se é dito ao longo do texto. Esta forma

de dominação, como vimos, não é estranha em relação à construção histórica da

humanidade, ao contrário, representa continuação de um estado inicial de ações: O

sexo pode levar ao poder através do canal da sedução (THERBORN, 2006,

p.11).

As vozes que representam a sexualidade, presentes na fala das locutoras,

não são as únicas a serem observadas, como sabemos, outros discursos podem

mostrar-se presentes frente a um mesmo personagem, tornando-o, assim,

complexo em relação à sua ação interna. Observando o perfil feminino das

locutoras, notamos as vozes que regem o discurso social dos limites geográficos e

políticos, essa linha de raciocínio deverá delinear a trama com acontecimentos

palmilhados na geografia que conhecemos, dando aos discursos a divisão

necessária de percepção espacial.

É preciso, antes de iniciar a análise dessas vozes, algumas inferências de

grande importância e a principal delas é a conceituação do que significa uma

divisão política. Consideramos que a divisão política dentro dos limites

geográficos seja um jargão utilizado para conceituar os limites que regem as

regiões dotadas de formas diferenciadas de governo e divisão social,

simplificando o conceito de uma região geográfica e criando uma terminologia

técnica; seria em grande escala a formação de uma nação ou país, porém também

é aceitável a ideia de que possa representar regiões administrativas menores tais

como províncias, cidades ou vilas.

A narrativa dickeana possibilita o plano espacial de construção como

extensão dos limites políticos e geográficos, tal ocorrência não se resume

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apenas no que esses limites apresentam, mas sim a significação interna do

discurso junto a estas ponderações. Um exemplo destes discursos é agora exposto

à presença dos limites latinos, conforme o trecho:

A mulher de voz suave, talvez uma índia de Tiajuanaco,

que fala, fala sempre apesar de ser meia-noite, (...) ah o

mundo da sedução, nem no Equador, entre os índios de

Tijuanaco, lá também deve haver o mundo da sedução...

(DICKE, 2006, p.37)

Ainda seguindo a exemplificação anterior, apontamos outro trecho

esclarecedor, desta vez seguindo limites europeus:

Xenofobia, racismo, besteirol. Os tempos do fim já

chegaram. A mocinha, de educação francesa, lá na

distante Paris, com voz empostada e levemente gripada

sugerindo fofura e charme (DICKE, 2006, p.35).

Mostra- nos ainda suas identificações espaciais com países de limites

distantes como a Rússia: (...) mulher glamorosa falando em russo(...) (DICKE,

2006, p.45) ou ainda os limites dos orientalismos exóticos do oriente médio: (...)

uma mulher falando em árabe de onde não se sabe que país islâmico(...) (DICKE,

2006, p. 46).

Portanto, os limites geográficos internos ao texto trazem consigo um

conjunto de vozes que, ao serem estereotipadas, fortalecem idéias pré-concebidas

acerca da condição geográfica, do sistema político e da etnografia de cada região,

todos estes componentes reunidos formam o discurso empregado no texto.

Antes de continuarmos a analisar a presença das vozes que regem os

limites geográficos ou territoriais da esfera de ação dessas novelas, precisamos

considerar expressiva a reincidência das presenças, nestes trechos, tanto da figura

feminina, enquanto perfil, como a da sexualidade feminina. A presença de ambas

temáticas – a sexualidade feminina e os limites geográficos – reforça o que vimos

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observando: estabelecendo uma ponte de comunicação entre elas, já que para o

plano temático esta aproximação dá mais veracidade representativa ao cenário

criado. Sintetizando, tanto os perfis femininos como a sexualidade que este perfil

representa, são tratados enquanto temática de forma universal, independente

dos limites geográficos, ou seja, apesar de espaços diferentes, a geografia das

divisões não é suficiente para mudar a condição de subalternidade existente nas

relações de poder de gênero..

O perfil feminino ainda servirá para abarcar outra condição ligada a essas

vozes, esta condição refere-se à inspiração criada pelas vozes sociais, políticas e

geográficas, presentes na fala das locutoras das rádios, são ficcionalmente

semeadoras de “sonhos” distantes na mente dos personagens. Cada personagem

munido pelas representações nacionais e políticas traduzem parte do “sonho”

distante de cada um deles, esclarecendo, interagidos no enredo pelas locutoras que

se utilizam do plano geográfico como extensão de pensamento, os personagens se

vêem induzidos por este discurso ao criarem um plano de fuga que inclua essa

condição geográfica: El Diablo quer ir para Miami nos Estados Unidos, Gepetto

para Sidney, na Austrália, Cavaleiro para Espanha, Zabud para Hamburgo na

Holanda e Palinuro para Tókio, no Japão. Lembramos que a condição geográfica

trata-se de uma materialização do espaço em que gostariam de viver, já que

representam a paz e a tranqüilidade diante do caos e do ambiente opressivo em

que vivem.

A oposição espacial percebida entre onde estão os personagens da trama e

onde gostariam de estar representam um discurso que aponta para os limites

geográficos do mundo, na medida em que os sonhos dos personagens são

revelados durante a trama, desse modo , essas vozes sociais prestam-se a dividir o

mundo ficcional em duas opções políticas: o Primeiro Mundo e o Terceiro

Mundo (DICKE, 2006, p. 35).

É necessário explicar a utilização dessas terminologias devido à sua

utilização pelo autor, como forma de contextualizar a época da escrita das

novelas. Para o entendimento desta afirmação, é preciso considerar que muitos

desses termos já estão em desuso.

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Concebidas entre os anos de 1945 a 1990, em um contexto em que as

condições econômicas referentes às regiões representadas daquela época foram a

principal motivação para a citada classificação. A terminologia do

subdesenvolvimento ou de “países em desenvolvimento” fora a substituição da

anterior porque levam em consideração atualmente outros fatores tais quais

desenvolvimentos humanos e qualidade de vida para classificá-los. Lembramos

ainda que Terceiro Mundo fora a terminologia dada principalmente a países

latinos, africanos e asiáticos. Em contrapartida Primeiro Mundo, atualmente, os

“países desenvolvidos” são um grupo composto por países que possuam fortes

economias e altos indicadores sociais, tais como qualidade de vida.

Uma vez inseridas estas informações dentro do plano de ficção dos

personagens, as esferas nacionais femininas opositoras das vozes das locutoras

ganham destaque: o Primeiro Mundo (DICKE, 2006, p.35) traz a idéia da

qualidade de vida, como segurança de uma existência tranqüila e pacífica, já que

os personagens em fuga não a possuem, justificando assim o real interesse pela

segurança, já o Terceiro Mundo (p.35) como intempérie do tempo presente, uma

terra sem lei, onde a existência continua pautada pela luta para manter-se vivo.

Os fugitivos sentirão segurança na fala das locutoras femininas, não só

porque a fala feminina representa o linear das coisas que gostariam que

acontecessem, mas porque representam o poder econômico das vozes sociais e

dos lugares onde queriam estar, fazem parte do outro lado da geografia,

simbolizam o discurso da segurança dos “países desenvolvidos”, das vozes dos

limites da tranqüilidade que almejam.

Como vimos observando, as vozes pertinentes às locutoras da rádio,

internas à narrativa dickeniana, quer sejam vozes que se voltam à sexualidade,

quer sejam vozes que se voltam aos limites políticos da geografia, evocam, a cada

classificação, formas diferentes de estabelecimento de poder, porém não podemos

nos esquecer que outras personagens femininas ainda serão perfiladas sob o

mesmo prisma nesta análise.

Então, como numa alegoria, a procura de uma estação de rádio pelo

cavaleiro – até então líder do bando de fugitivos na ficção – pode traduzir-se pela

segurança do que a rádio representa: “procurar a rádio deve significar procurar

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segurança”, o dial serve alegoricamente de leme para um “navegar” existencial

sem direcionamento, uma fuga no escuro. Obedecendo a esses parâmetros, as

intempéries da vida, a estática e as interferências fazem com que os personagens

dialoguem com suas consciências.

As mãos femininas que outrora, na antiguidade, eram usadas para

trabalhos manuais de tecelagem e artesanato (LESSA, 2004), agora, mudam o

leme do poder acional interno ao texto o dial (DICKE, 2006, p.27). Essas mãos

sentem a liberdade representativa das existências que encontram as rádios: um

encontro entre o feminino e o masculino – uma mão feminina escolhe o dial do

vencedor, uma mão feminina escolhe a sintonia de uma rádio uma rádio, a qual ,

por intermédio de suas vozes, traça o destino dos personagens.

2.3. El Sapo: Silêncios que falam

É necessário, antes de iniciar outra abordagem deste estudo, buscarmos o

resgate da ideia do tempo cronológico que recria a “rotina” ao reproduzir o cíclico

dos sons da natureza. Essa retomada é feita no momento em que outros elementos

pertinentes ao texto, como o cenário refletido na natureza são ciclicamente

retomados, desta vez com intenções que se distanciam e se aproximam.

Como vimos, entre os elementos retomados durante a ação, situamos a

presença, até então silenciada, da personagem El Sapo. El Sapo é uma das

colaboradoras entre todos os personagens constituídos das vozes dos perfis

femininos que são apreciadas durante a narrativa, vozes que, somadas, contribuem

para uma suposta feminilidade do enredo.

Nesta perspectiva, a presença de El Sapo segue a significação sonora

(MIGUEL, 2007, p.151), tanto quanto a repetição sonora do cão que uiva, citado

anteriormente, El Sapo pode aproximar-se desses elementos, visto que reaparece

tanto quanto eles durante a ação, ciclicamente, porém pode distanciar-se desses

elementos: a todo o momento a condição de presença de El Sapo é temporalmente

fugaz e cíclica – passageira e repetitiva, aproxima– se, portanto, do cenário da

natureza porque a sensação de “perseguição” interna ao enredo pelos fugitivos

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ganha intensidade de tempo cronológico, ou seja, como se o tempo evidenciado

pelo cíclico desta aparição – El Sapo – seja determinante para a condição da fuga

e posterior perseguição.

El Sapo, enquanto objeto de análise, reserva-nos um panorama acional de

extrema importância, nas palavras de Palinuro e de Elpendor – personagens

novelísticos – a síntese dela se faz presente:

– Pois, é isso, aquela mulher horrível, foi ela que nos

contou...

– Qual o nome da mulher horrível?

– Madame El Sapo... Antes de vir, quando encetávamos

nossa viagem, naquela noite em que o barracão do

Carnaval pegou fogo, quando todos dançavam e chegou a

polícia e a turma de madame El Sapo, a peruana, nos

cercou, nos também roubamos nosso ouro, mas não deu

tempo de pegar lugar com vocês na Kombi, nós num jipe

encontramos coisas que nem acreditamos, viemos a

cavalo, enquanto dormiam nós andávamos, e viemos pela

estrada real, sob a vista de todo mundo, chegamos à

borda da cidade, mas não pudemos entrar, estava tudo em

sacolas com nosso ouro, e daí voltamos e eis agora que

estamos voltando, somos amigo, gente somos amigos,

Elpendor e Palinuro... (DICKE, 2006, p.40)

As oposições dos personagens colaboram para a construção de um perfil

comportamental que posiciona El sapo num plano passivo de ação, possivelmente

porque as qualificações das vozes sociais desta personagem só são traçadas por

outros personagens presentes ou mesmo pelo narrador. As ações relacionadas à

fuga dos garimpeiros estão no plano de ação da novela, conquanto que as ações

relacionadas à perseguição são citadas em instantes rotineiros, mas não possuem

clarividência descritiva, visto que estão, tal qual El Sapo, situadas também no

plano opositor da ação.

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Na verdade, a presença física de El Sapo durante a narração não ocorre,

mas isso se justifica por se posicionar no plano opositor da ação, além de se

justificar também pelas qualificações que são traçadas por outros personagens ou

pelo narrador em relação a ela, assim, não temos uma descrição que atenda a

cenários diferentes descritos ao mesmo tempo.

Além da ausência da presença física, outro dado que observamos é a

inexistência da fala e posterior voz social desta personagem. Importante ressaltar

que a ausência de vozes em El Sapo não é pertinente a sua existência enquanto

discurso, as vozes de El Sapo na narrativa não usam a fala de El Sapo como

veículo ou canal de comunicação. Internamente à ação, justificaríamos esta

ausência pelo fato de que a personagem se posicione no plano opositor e por essa

razão, não se apresenta a fala da personagem durante a narrativa, porém alguns

outros aspectos devem ser considerados antes de chegarmos a esta síntese. Como

exemplo, podemos citar a importância da aparição de El Sapo durante a produção

dickeana, que pode ser observada pelas condições físicas descritas, uma vez

retomadas, essas condições físicas podem verificar novos caminhos de

interpretação.

A aparição cíclica e descritiva, promovida pelo narrador, faz com que El

Sapo, durante a narrativa, obtenha descrições físicas, a disposição desta situação é

presente devido ao fato de que fora do plano de ação, El Sapo reflita uma visão

geral acerca do que representa no plano de ação para o narrador e para os

personagens. O trecho a seguir exemplifica a característica física repetitiva:

mulher horrível (DICKE, 2006, p.40). Essas repetições ocorrem três vezes na

mesma página, promovendo, então, uma ênfase a essa descrição e favorecem

os novos caminhos de interpretação, pois tanto servem para intensificar as

considerações dispostas, como servem para marcar temporalmente as ações da

perseguição que são empreendidas por El Sapo. Ainda quando falávamos das

vozes internas das locutoras das rádios, no capítulo anterior, observávamos a

presença da identificação da feminilidade naqueles trechos que tinham como

temática principal o discurso das vozes da política e dos limites geográficos

Outro dado que nos parece relevante, tanto quanto o anterior, é que a

elaboração das descrições físicas não abre mão de também evidenciar a condição

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de feminilidade da personagem. A condição de feminilidade da personagem El

Sapo causa de novo um já conhecido “estranhamento” em relação ao poder por ela

exercido, por se tratar de uma personagem que, apesar de feminina – levando em

consideração a condição de submissão histórica – represente a liderança de um

bando de homens.

O gênero feminino de El Sapo deve ser observado nos trechos que

dispomos abaixo como observação exemplar da teoria – as vozes sociais

analisadas partem de uma personagem do gênero feminino no caso El Sapo –

explicitada:

– Vamos voltar e enfrentar El Sapo.

– Aquela mulher horrível?

– Aquela mesma.

– Mas não podemos, eles têm polícia, traficantes,

missionários, garimpeiros e toda a sórdida e eterna

engrenagem, tudo a seu favor (DICKE, 2006, p.42).

Ou ainda no seguinte:

– Não, contem agora, senão não poderão ficar conosco, a

não ser que sejam da mesma laia e extração como nós.

Dêem uma prova, sei lá, qualquer coisa, qualquer coisa

que nos prove que vocês não sejam polícia nem do bando

daquela mulher horrível que nos persegue, a dona deste

ouro com toda aquela gente(...) (DICKE, 2006, p.39-40)

Tanto a descrição física direcionada a El Sapo, como a feminilidade

identitária de seu comportamento, permitem,uma terceira categoria desse

encontro: a descrição de vozes sociais de natureza econômica em relação aos

outros personagens do plano literário. Elencamos dois pequenos trechos em

conformidade com esta terceira categoria: (...) mulher horrível que nos persegue,

a dona deste ouro com toda aquela gente (...) (DICKE, 2006, p.39-40) e Madame

El Sapo evem que evem (DICKE, 2006, p.102), no primeiro trecho, quando El

Sapo é descrita como proprietária do ouro e no segundo trecho, quando é descrita

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como uma “Madame” – um título de cortesia, geralmente aplicado à filha viva

mais velha do casal real francês reinante – –a natureza econômica dessas vozes

sociais é condicionada para configurar a situação social de El Sapo em relação aos

outros personagens do texto.

Essa ramificação na condição de feminilidade se constitui não só como o

outro lado da ação, mas como o outro lado do poder econômico das vozes sociais.

A autora Benhabib (1987) reitera a importância dessa ramificação, já que há de se

questionar a existência de mulher generalizável, ou seja, identificável

coletivamente. Não se pode facilmente conceituar a mulher já que esta possui

complexa natureza de identificação de gênero (BENHABIB, 1987, p.20) e, por

essa razão, a presença da ramificação seja necessária: divide opositivamente

mulheres ricas e pobres com a intenção de especificar a natureza da ação

ficcional.

A esse propósito, o “lado de cá”, onde se posiciona El Sapo, identificada

como síntese do perfil das mulheres ricas, é ocupado por uma importante

significação,– sobre a qual ainda não discorremos – parece fazer sentido,

observando-se o excerto: – Mas não podemos, eles têm polícia, traficantes,

missionários, garimpeiros e toda a sórdida e eterna engrenagem, tudo a seu

favor. (DICKE, 2006, p.42).

Neste pequeno trecho, o sentido da sórdida e eterna engrenagem (DICKE,

2006, p.42) é esclarecido quando confrontado com o que Therborn (2006, p. 22)

definiu ser o conceito da definição do poder a dominação é geralmente comparada

a uma engrenagem (p.22) onde um mecanismo apelativo se estabelece.

Desse modo, podemos inferir que, levadas em consideração as condições

de produção das novelas dickeanas e a configuração das relações imediatas da

criação artística, El Sapo traz, no bojo da identificação de suas vozes sociais,

características que a conceituam como detentora do poder central dentro do plano

de ação, já que a engrenagem do poder gira em torno dela.

Desta forma, apesar de estar no plano passivo de ação, de possuir

características físicas cíclicas e de estar fora da convivência com outros

personagens, um poder central é configurado em sua direção e é nesse poder

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que centraremos parte de nossa discussão. Em seus estudos sobre Ricardo

Guilherme Dicke, Magalhães (2001) assim se posiciona:

Em seus textos, céu e inferno se confundem, fazendo

emergir um perturbado país transgressor para eleger o

monstruoso como forma de vida. E, desreferenciados num

mundo sem lei, os personagens dickenianos, sobreviventes

do Sistema ou de si próprios, transitam entre o divino e o

selvagem, o real e o surreal, sufocados pelo peso da

existência (MAGALHÃES, 2001, p. 208).

Magalhães (2001) tece esses comentários de maneira geral, porém como

objeto de análise, as novelas dickeanas encaixam-se a este perfil, visto que tal qual

em produções anteriores, alguns motes acionais se fazem presentes. Resgatando

mais um mote recorrente, os sobreviventes do Sistema estão à margem da

sociedade (MAGALHÃES, 2001, p. 208), não apenas porque estão fora das

engrenagens do poder (THERBORN, 2006, p.22), mas porque o poder

representado no interior do plano literário refere-se a outra engrenagem conhecida

na produção do autor: a engrenagem do Sistema social imperante.

O resgate da recorrência anterior entende que a obra Toada do Esquecido

(2006) elege El Sapo como símbolo das vozes sociais da engrenagem do Sistema

social imperante. As reflexões aqui levantadas fortalecem a idéia de que o poder

social presente na configuração das vozes do perfil feminino possam configurar

uma explicação ao silêncio da personagem. Chevalier, em sua obra Dicionário de

símbolos (1990), esclarece que o silêncio pode ser uma forma de comunicação

antecipada: O silêncio e o mutismo têm uma significação muito diferente, o

silêncio é um prelúdio de abertura à revelação, seja pela recusa de recebê-la ou

de transmiti-la (CHEVALIER, 1990, p.833-834).

Certamente, o silêncio acional e de fala em El Sapo pode não significar

apenas o outro lado da ação, nem apenas o outro lado do poder econômico, mas

também pode representar, reunindo estes conjuntos identitários, um prelúdio de

abertura a uma revelação, ou seja, El Sapo representa o próprio Sistema social

personificado, que convive com os personagens “excluídos,” e que por não se

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tratar exclusivamente de uma criação pessoal, mantém-se silenciada, como são as

regras sociais, silenciosas e impositivas diante das vozes sociais que representa.

Como vimos observando, ao contrário das locutoras das rádios, a

personagem El Sapo, feminina e dominadora, recebe, no plano literário,

considerações dos personagens internos ao texto, porém quando condicionamos a

presença de vozes em seu discurso, somente o narrador as impõe. As vozes

sociais presentes em El Sapo não passam pelos canais da comunicação ficcional,

pois não há fala, ao contrário, o narrador dialoga com a personagem apropriando-

se de sua ausência física durante a ação para gerar vozes sociais que resgatam

aquilo que a personagem El Sapo representa dentro da obra: o discurso social

dominante e por isso as condições econômicas se fazem presentes e reveladoras.

Seguindo o rumo traçado pelas vozes presentes em El Sapo, apresentamos um

trecho importante da ação ficcional interna a esta novela: El Sapo cercou tudo,

está tudo cercado por policiais, traficantes, contrabandistas, missionários, CNS,

garimpeiros, tudo o que o poder do dinheiro pode sublevarse contra nós (DICKE,

2006, p.65).

Mesmo não sendo o foco principal a respeito do excerto acima, é

importante notar que ele também reforça o que vínhamos observando: El Sapo,

atuando como participante identitária do perfil de mulher rica, representante do

sistema social ou as engrenagens do poder atendiam a seu chamado. Estas

considerações parece-nos dialogar, de uma forma ou de outra, com aquilo que o

trecho de Dicke nos fala: “O poder do dinheiro” (2006, p. 65) – O poder do

dinheiro representa o fosso que separa a rica El Sapo dos paupérrimos

personagens. É o poder do dinheiro que dita as condições sócio-econômicas diante

do sistema social imposto, além disso, esse poder do dinheiro, dentro do

contexto histórico apresentado representa o poder de sublevar-se financeiramente

sobre as outras pessoas.

Como dissemos, nosso foco principal segue o rumo traçado pelas vozes

sociais observadas em El Sapo. Embora as relações de poder sejam pertinentes,

atentamos para a presença singular de personagens caricaturais neste trecho da

novela: policiais, traficantes, contrabandistas, missionários, CNS, garimpeiros

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(DICKE, 2006, p.65). O personagem caricatural se define por comportamentos

estereotipados que quase sempre convergem no personagem-tipo, quase sempre

genéricos, por exemplo, o padre, o juiz ou o bêbado. Como o personagem

caricatural não possui profundidade no que tange a sua condição de existência no

texto, sua conceituação generalizada necessita de outros fatores potencializadores

para que sua localização textual seja suficiente; no caso da novela dickeana, dois

fatores potencializadores devem ser observados: o contexto histórico e o da

generalidade da representação literária destes personagens inseridos neste

ambiente.

A condição do contexto histórico faz-se importante porque dá estrutura às

narrativas novelísticas próximas da realidade, subvertendo assim a distância que

opera entre a ficção e o mundo real em que vivemos. Michel Foucalt (2002)

defende o aspecto histórico como componente na construção textual. Para ele, o

contexto pode ser definido como refúgio facilitador de entendimento:

A História forma, pois, para as ciências humanas, uma

esfera de acolhimento ao mesmo tempo privilegiada e

perigosa. A cada ciência do homem ela dá um fundo

básico que a estabelece, lhe fixa um solo e como que uma

pátria: ela determina a área cultural – o episódio

cronológico, a inserção geográfica – em que se pode

reconhecer, para este saber, sua validade; cerca-as,

porém, com uma fronteira que as limita e, logo de início,

arruína sua pretensão de valerem no elemento da

universalidade. Desta maneira, ela revela que se o homem

– antes mesmo de o saber – sempre esteve submetido às

determinações que a psicologia, a sociologia, a análise

das linguagens podem manifestar, nem por isso ele é o

objeto intemporal de um saber que, pelo menos ao nível

dos seus direitos, seria, ele próprio, sem idade. Ainda

quando evitam toda referência à história, as ciências

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humanas (e, a esse título, pode-se colocar a história entre

elas) não fazem mais que pôr em relação um episódio

cultural com outro [...]; e se elas se aplicam à sua própria

sincronia, é ao próprio homem que reportam o episódio

cultural donde procedem. De sorte que o homem jamais

aparece na sua positividade sem que esta seja logo

limitada pelo ilimitado da História (FOUCALT, 2002,

p.514).

As vozes sociais de El Sapo que apontam para o contexto histórico

necessitam do plano de representação literário da obra, já o plano de representação

literário da obra necessita do motivo principal da ação para testar a condição de

existência dessa representação. Uma vez que a história e os motivos são reunidos,

a representação literária ganha espaço e aproxima-se da veracidade dos fatos, por

conseguinte, aproxima-se também da poeticidade já que quanto mais verdadeiro,

mais poético (BOSI, 2000, p.162).

Quanto ao contexto, a região amazônica justificaria a presença dos

personagens caricaturais já que, inseridos nesse universo, esclarecem

acontecimentos históricos ocorridos em tempos anteriores e que, uma vez

reunidos, testemunham a ocorrência da veracidade desta representação literária

presente em Toada do Esquecido (2006). Oliveira (1999), discorrendo sobre a

fonte histórica desses conflitos sociais, assim se posiciona: Conflitos sociais no

campo, no Brasil, não são uma exclusividade de nossos tempos. São isto sim, uma

das marcas do desenvolvimento e do processo de ocupação histórica do campo no

país (OLIVEIRA, 1999, p. 11).

A história, juntamente com o mote da violência no campo, – plano de

Toada do Esquecido (2006) – não compõem um tema cânone na literatura

brasileira. Muitos outros autores escreveram sobre essas considerações, ou seja,

observaram, durante o contexto histórico que viveram, as várias sublevações de

poder, as quais buscavam denunciar:

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A história da violência no campo, como já salientamos,

não é recente: é talvez um traço da história dos vencidos

no Brasil. Contratar jagunços pistoleiros para matar não

é um expediente dos grileiros e latifundiários de nossos

tempos. A história está repleta de muitos casos, tentativas

dos vencidos em romper com a injustiça reinante no país

(OLIVEIRA, 1999, p.15).

Tal vigilância histórica converge agora na representação literária dos

personagens que estudamos. Refletindo sobre esse aspecto, vemos que a

representação histórica dos personagens, generalizados ou caricaturais, como

policiais, traficantes, contrabandistas, missionários, CNS, garimpeiros (DICKE,

2006, p.65), fazem parte tanto do plano de colonização histórica do estado de

Mato Grosso, como fazem parte do plano de colonização histórica do Brasil e, por

conseqüência, da Amazônia, enquanto região geográfica. Entendendo este fato,

observamos que seria perfeitamente aceitável que as representações referentes aos

personagens generalizáveis estivessem presentes tanto na região amazônica como

na região mato-grossense, já que, no plano da exploração econômica, essas

“histórias” se confundem com a história da exploração dos países latinos: A

literatura de R. G. Dicke não é romance histórico (Miguel, 2007, p.52). Todavia,

devemos levar em consideração que (...) a produção dickeniano dialoga com

os escritos dos viajantes, dos cronistas e dos memorialistas, com a

literatura, com a fala dos políticos e com a narrativa histórica (MIGUEL, 2007,

p.49).

Além do mais, resta-nos, além de seguir os rumos históricos que as vozes

sociais de El Sapo apontam, guiar as mesmas vozes históricas ao encontro do

reconhecimento do poder central da ação representado pela personagem. O

reconhecimento desse poder central utiliza-se da generalidade da representação

literária dos personagens inseridos neste ambiente para denominar os “dentes” ou

os componentes das “engrenagens” do poder (THERBORN, 2006, p.22).

É importante esclarecer que a colocação dos personagens caricaturais

policiais, traficantes, contrabandistas, missionários, CNS, garimpeiros (DICKE,

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2006, p. 65) não podem ser postos à deriva sem que haja uma explicação sobre

sua existência, isso porque os personagens, fora de contexto, estariam à mercê de

outras interpretações. Porém, quando observadas todas as hipóteses discorridas ao

longo deste capítulo, o contexto histórico, os caminhos das vozes internas de El

Sapo, o poder centralizador da ação e até mesmo uma parte da representação de

que faz parte a perseguidora, os personagens caricaturais citados passam a ter

ainda outra proposição.

Nessa direção, podemos refletir que, quando unimos as engrenagens do

sistema social imperante com as engrenagens do poder (THERBORN, 2006,

p.22), a generalização destes personagens pode representar, sintetizadas, as

condições sociais pertinentes ao contexto histórico da época.

Uma leitura cuidadosa a esse respeito ligaria os policiais às leis sociais

vigentes, ligaria os missionários aos dogmas da religião, ligaria a sigla CNS à

condição política imperante e ligaria os contrabandistas, garimpeiros e traficantes

à condição dos excluídos que, ao não se condicionarem ao sistema social

civilizatório, buscam, à beira das sociedades, refúgio acolhedor no interior dessas

inóspitas regiões.

O poder é singular, mas a personagem El Sapo, enquanto detentora do

poder, universaliza-o, as ordenações presentes em suas articulações tornam

possíveis os acontecimentos, para tanto, as vozes sociais que representa dialogam

com esse poder, regendo o sistema social e a apropriação de suas idéias, como

caminho do enredo da produção de Toada do Esquecido (2006).

2.4. El Diablo: O Lado de Lá

Após discorrermos sobre alguns dos perfis femininos da novela Toada do

Esquecido (2006), trataremos, nesta seção de uma das mais importantes peças

dentro desse campo de posições e de valores definidos, a personagem feminina El

Diablo, fundamental para o entendimento do texto.

A ficção Toada do Esquecido (2006) faz-nos mergulhar num mundo onde

um grupo de garimpeiros, após um baile de máscaras no carnaval, foge dos

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garimpos do Peru, para abandonar aquele país e adentrar em terras brasileiras, o

grupo de garimpeiros rouba o produto do garimpo peruano. O ouro roubado no

garimpo peruano é a ação que permite as outras ações deste plano literário,

conforme vimos, El Sapo é a líder e proprietária deste garimpo. A personagem El

Diablo está inserida no grupo dos fugitivos.

Notemos que a abordagem utilizada no transcorrer deste capítulo valoriza

o enredo da novela Toada do Esquecido (2006), esta valorização deverá

evidenciar a existência da personagem El Diablo diante do plano de escrita de

Dicke, o enredo da ficção vai conferir os papéis investigados a respeito da

personagem El Diablo enquanto presença de vozes sociais e de estabelecimento

de poder, porém não há de se estranhar esta condição, já que, como estudamos na

seção anterior, a ação ficcional não acontece do “lado de lá” onde se posiciona El

Sapo, identificada como síntese do perfil das mulheres ricas. A esse propósito, a

ação ocorre do “lado de cá,”, simbolicamente representando o espaço onde El

Diablo, opositora de El Sapo, tem presença e, portanto, deve representar o enredo

onde tudo se processa.

Ao percebermos a ação da ficção como ponto de partida da análise da

personagem El Diablo, gostaríamos de reiterar importante sentido da “travessia,”

como já dissemos no início deste estudo. Naquele momento já anunciávamos que

os personagens fariam, durante a ação, algumas “travessias”, incluindo o

reconhecimento das vozes sociais presentes em alguns personagens da narrativa,

que iriam conferir aos mesmos e, por conseguinte ao leitor, um processo de

identificação junto a eles. Especificamos para tanto que, ao contrário de El Sapo,

que representa as ações passivas, El Diablo está no bojo destas ações e, portanto,

configura a síntese destas já que lidera todo o grupo de ladrões. Em vias de que as

“travessias” estejam ocorrendo, na mesma medida, El Diablo passa pela

“travessia” existencial, já que reconsidera muitas reflexões psicológicas e

existenciais ao longo do enredo literário, passa pela “travessia” topográfica

plano do enredo literário, os campos peruanos são substituídos pelos brasileiros

tanto quanto os amazônicos pelos mato-grossenses, passa pela “travessia”

histórica pois, o que torna a ação próxima da veracidade do mundo em que

vivemos é a proximidade histórica com os limites geográficos e políticos, por

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último, passa também pelo reconhecimento das vozes sociais presentes na fala de

El Diablo, visto que em ambiente hostil esta fora a única forma de defender-se

dos poderes interiores aos perfis masculinos da narrativa.

Portanto, é o grupo dos garimpeiros fugitivos, sintetizado por El Diablo

quem vai sofrer a ação proposta pela novela, em contrapartida de estarem

localizados no bojo de boa parte das ações que regem o texto por completo.

Seguindo o enredo, na fuga passando pela Amazônia e por Vila Bela da

Santíssima Trindade, El Diablo vai testemunhando a mudança do cenário e a

“travessia” topográfica. A transformação geográfica opera no plano interno da

produção, não só como formação de cenário geográfico, mas também opera como

formação do plano do tempo cronológico, pois a transformação do cenário

obedece ao sentido da “travessia” enquanto fuga, uma vez reunidos, a mudança de

referenciais espaciais e, por , o discorrer da fuga, significam também a passagem

do tempo.

O diálogo com o cenário é também uma forma de diálogo com o tempo e,

conforme estudado, o cenário dickeano marca o tempo cronológico, promovendo

a sensação cíclica dos elementos que são pertinentes a essa transformação, um

exemplo mais específico deste acontecimento é a presença ficcional do papagaio

no ombro de El Diablo, animal que emite um discurso retinente. O papagaio, tal

como os elementos naturais estudados anteriormente, traz as mesmas

características, ou seja, repete ciclicamente tal qual a composição temporal

dickena seu mote de costume: “pensas que sou idiota?” (DICKE, 2006, p.36). A

despeito desta consideração, importante salientarmos que, retomaremos ao

princípio desta narrativa, a posição de El Diablo em relação ao grupo de fugitivos

é de aparente indiferença, não operando para isso nem fala nem poder junto aos

mesmos, ou seja, El Diablo, por não falar, não opera poder e, em conseqüência

não se é perceptível a presença das vozes sociais em seu discurso, o seu silêncio é

simbolicamente substituído pelos sons cíclicos do cenário da natureza

representado em seu ombro pelo animal de estimação, ou seja, imóvel diante do

plano acional, ainda sim, o tempo opera sobre a condição de efemeridade dos

personagens inerentes a ele.

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Após o esclarecimento da primeira, a segunda “travessia,” intitulada

histórica, marca uma El Diablo detentora de um testemunho que a interliga com

elementos pertinentes aos acontecimentos da época. Os suscitados registros

apontam que o ouro que El Diablo carrega não é debutante na condição histórica

do surgimento da América, que ela insiste em cruzar geograficamente – do Peru

ao Brasil – ao contrário da efemeridade da personagem na ação, o ouro é o

duradouro articulador de boa parte da condição histórica da geografia deste

continente. Rubel (1970) esclarece a despeito em sua obra intitulada Karl Marx:

Ensayo de Biografia Intelectual:

O descobrimento das jazidas de ouro e prata da América,

a cruzada de extermínio, escravização e sepultamento nas

minas da população aborígene, o começo da conquista e o

saqueio das Índias Orientais, a conversão do continente

africano em local de caça de escravos negros: são todos

feitos que assinalem os alvores da era de produção

capitalista. Estes processos idílicos representam outros

tantos fatores fundamentais no movimento da acumulação

original (RUBEL, 1970, p.638).

Já que a segunda “travessia”, intitulada histórica, opera com elementos

inseridos no plano integrante da ação, a última das “travessias”, a “travessia”

psicológica opera com um conjunto de reflexões existenciais que, articuladas com

a grandeza da prosa poética de Ricardo Guilherme Dicke, coincidem no plano do

enredo com a proximidade do rádio e da personagem El Diablo, uma vez que

nesta estreita relação, o rádio representa significativamente um dos “ópios” da

fuga: Pensas que sou idiota? Grita o papagaio no ombro de El Diablo que come

da marmita, enquanto o rádio fala em loteria: quem ganhou: o Cavaleiro dá uma

gargalhada, com a boca cheia de porco (DICKE, 2006, p.33)

Lembremos que, ficcionalmente, a rádio da Kombi dos libertinos mantém-

se ligada desde o início da fuga e que, na presença do som, silenciam as vozes

sociais internas a El Diablo, o silêncio dos personagens torna-os passivos acionais

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diante da transmissão radiofônica. Esta transmissão radiofônica lhes substitui a

fala, conforme o enredo, por muitas estações, já que estas representam uma parte

das vozes e do poder social a que estão acostumados a fazer reverência.

A “transmissão radiofônica” também se volta para outro plano

interpretativo, vejamos se acaso El Diablo pode se aproximar do som do rádio,

devido ao silêncio da fuga. Inferimos a este respeito que El Diablo pode se

aproximar do som do rádio também porque esta deve se aproximar daquilo que o

rádio possa efetivamente representar. Refletindo nesse sentido, a partir do que já

vimos observando: ao fazer uma “travessia” existencial, El Diablo pode se

aproximar do som do rádio não somente porque, em contraposição, o silêncio da

fuga se faz presente, mas também porque o som do rádio, dentro dos limites das

novelas dickeanas, confunde-se com a própria consciência dos personagens,

conforme vimos estudando. Para tanto, a aproximação com o rádio pode

significar a própria aproximação com a consciência. Diante dessa “travessia” de

questionamentos que condicionam a existência humana. Acrescentamos que a

“travessia” existencial não cessa a nenhum ser humano, quando a passagem por

esses “sertões” se faz presente, concomitante a isso, podemos notar que a

interlocução da rádio também não cessa diante do enredo da novela, isso inclui a

mudança na condução do automóvel dos fugitivos: da Kombi para o Jipe, tanto

quanto inclui a mudança geográfica espacial – do interior do Peru ao interior do

Brasil – no entanto, não há inclusão na mudança das vozes sociais representativas

de El Diablo e, mesmo assim, tal qual a reflexão existencial, o rádio permanecerá

ligado.

A partir dessa leitura, parece-nos ser necessário dividir nossa análise em

duas oposições referentes ao enredo da novela Toada do Esquecido (2006), essa

divisão se processará em primeiro plano na condição em que a personagem El

Diablo é silenciada e comumente confundida com outros personagens fugitivos e,

no segundo plano, em que El Diablo se torna líder, proprietária do poder do bando

e para que isso fosse possível se utilizasse das vozes sociais como projetor desta

liderança.

Para objeto de estudo, interessa-nos o segundo plano em que El Diablo se

torna líder, proprietária do poder do bando e falante o suficiente para que suas

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vozes internas se mostrem presentes, já que neste segundo plano é onde

encontraremos os ingredientes já identificados nesta análise. Ainda seguindo a

ficção novelística, observamos que a liderança de um personagem masculino,

intitulado O cavaleiro, é marca expressiva durante o início da obra, tanto quanto é

expressiva a presença do rádio que escutam, porém, ao contrário do duradouro

som do rádio, a liderança do Cavaleiro é passageira, uma vez que será substituída

pela liderança de El Diablo.

A personagem El Diablo não é declarada mulher, tão logo a narrativa se

inicia, caso acontecesse, um já conhecido “estranhamento” poderia se mostrar

presente, evidenciando a dificuldade mostrada pelo contexto histórico de que a

mulher pudesse se tornar líder de um grupo de garimpeiros, como aponta o

enredo. Entretanto, podemos observar que o “estranhamento” percebido em

El Sapo, também tem ocorrência em El Diablo, tal como El Sapo, a evidência é a

dificuldade mostrada pelo contexto histórico, que descreve a mulher como líder

dos fugitivos, como também evidencia o enredo, esse “estranhamento” em ambas

situações seria percebido na recorrência dos personagens androcêntricos inseridos

no enredo, posicionados em ambientes masculinizados e brutalizados, onde a luta

pela vida se faz presente. Nesse contexto, o perfil feminino nada mais significaria

historicamente do que fraqueza e submissão, símbolos estes que não combinariam

com a liderança exercida pela personagem. Assim, a liderança e o poder de El

sapo são estabelecidos pelo poderio econômico e não por seu gênero conforme o

que acontece com El Diablo.

Para que isso fosse possível, para que não ocorresse um “estranhamento”

em relação ao gênero feminino de El Diablo, a representação literária dickeana

refugia-se numa promessa coletiva feita por todos os fugitivos do garimpo

“Esquecido”: todos os componentes do bando, El Diablo, Zabud, Gepetto,

Palinuro e o Cavaleiro possuem a caracterísitca de não permitirem saber sobre

sua identidade antes que todo o ato de fuga e divisão de riquezas estivesse

resolvido. Dito de outro modo: não era permitido retirar as máscaras de carnaval

enquanto tudo estivesse ocorrendo. As máscaras utilizadas pelos fugitivos tinham,

no enredo, o fundamento de gerar segurança, portanto impediriam que as

verdadeiras personalidades fossem postas em evidência, mas, apesar de servirem

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como forma de justificar a organização do assalto, as máscaras trazem dubiedade

de sensações.

Uma explicação se faz necessária antes de continuarmos o eixo da ficção:

as máscaras sempre foram usadas como acessórios em diferentes manifestações

culturais, de fato, ainda conseguimos perceber o exemplo de muitas culturas que

delas se utilizam para a função mágica e ritualística utilizada, para proteger do

inimigo ou desconhecido.

A máscara serviu aos egípcios quando mumificavam seus faraós, às

civilizações antigas que personificavam seus deuses. As máscaras foram

apropriadas também pelo teatro grego, inicialmente confeccionadas com folhas,

madeira, argila e couro, possuíam diferentes funções quando em cena

dramatúrgica, entre outras, acentuavam os traços expressivos do ator para que

todo o público pudesse assimilar o caráter do personagem (JANSEN, 1952).

Assim, em Dicke, a utilização das máscaras tem significação ampliada,

quando comparada ao enredo de produção das novelas, pois a máscara teria a

indumentária ritualística de proteger contra seus inimigos, posicionados no

interior de Toada do Esquecido (2006), já, que um inimigo persegue.

Sobre as máscaras, lembramos que, por produzirem sensações paradoxais,

sentidos duplos, abrem não só a perspectiva da leitura enquanto fato histórico,

mas também enquanto interpretação simbólica de sua existência. Brecht, poeta

alemão, utilizou-se, certa feita, da palavra “gestus” para se referir às atitudes

sociais nas inter-relações dos personagens; para o autor, as relações de poder são

os grandes causadores do “gestus” brechtiano, ou da máscara social, no caso das

vozes internas à personagem. Assim, a “máscara social” de Brecht não se refere

apenas ao objeto “máscara” em si, mas traz uma referência sobre nossas atitudes

sociais, na verdade a máscara representa nossas vozes e atitudes sociais diante dos

espaços que circulamos, além do tempo e do contexto que vivemos, são estas

atitudes que podem definir socialmente o que somos.

Desse modo, a representação literária dickeniana ganha vivacidade, com a

presença das máscaras quando descobrimos que as atitudes sociais dos

personagens podem centralizar-se na idéia de representação social ou de

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“máscaras” que traduzem gestos, induzidos pelas relações de poder, encenar a

personalidade que queremos ter. No caso a personagem El Diablo, silenciosa,

inicialmente sem as vozes sociais, traz a máscara como incorporação de gênero,

transformador de atitudes e de enredo, formatadora de vozes que, incorporadas ao

sistema social vigente, trazem, à luz da representação, o poder de modificar a

ação.

O retorno à ficção reserva-nos o espaço da representação social como

sendo um terreno a ser explorado enfim, ao observarmos El Diablo e enxergarmos

a definição de sua sexualidade, percebemos que se utiliza das máscaras ficcionais

propostas à novela, ou seja, o sexo feminino presente num ambiente

masculinizado e brutalizado só conseguiria manter-se vivo se “mascarasse” sua

personalidade, reproduzindo as vozes regentes de outros personagens, ou seja, sua

vida depende exclusivamente das vozes sociais que são emanadas pela sua fala. .

De fato, as vozes sociais que ocupam o discurso de El Diablo. Trata-se de

um perfil feminino que se condiciona diante do lugar, do tempo e das proposições

sociais em que se inserem, conforme propõe Brecht, cada um em seu contexto de

produção.

No caso da novela em estudo, em que o tempo e o ambiente são

androcêntricos, observamos que as vozes do discurso patriarcal se fazem

presentes. Por sua vez, são as vozes do discurso patriarcal que fazem com que El

Diablo não morra durante a novela, levando em consideração sua

representatividade simbólica, já que no enredo, esta não só morre como mata os

outros fugitivos, pois a reprodução dos discursos por intermédio de sua

fala “mascarada” a condiciona temporalmente nos primórdios das civilizações

humanas. Embora sendo mulher, El Diablo deve aceitar as vozes patriarcais

presentes em seu ambiente e, ao reproduzi-las, mantem-se viva: (...) El Diablo

que é um rapaz imberbe e moreno de fala fina e cabelos encaracolados, que tem

algo de enfeitiçadamente feminino( ...) (DICKE, 2006, p.109), (...) Só El Diablo a

conhece, só ele a sabe cantar (DICKE, 2006, p.112).

El Diablo “teatraliza” sua fala, reproduzindo as vozes que regem o

patriarcado e o ambiente androcêntrico para que sua segurança seja evidenciada,

além de sua “máscara social” estabelecida, seu físico é disfarçado, assim como é

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disfarçada a sua sexualidade, e, por essa razão o poder lhe é possível. Depois de

sua transposição de personalidade, a liderança lhe será conferida no enredo da

ação.

Não percamos de vista que o poder central da ação está localizado em El

Sapo, porém poderes menores, internos à produção da novela são conferidos à El

Diablo, isso por que esta se configure como a líder ficcional dos “excluídos”, ou

seja, se El Sapo pode representar a “engrenagem” tanto do sistema como do poder

vigente, sua opositora, El Diablo, pode representar os seres sociais representativos

do “baile de mascarados,” que simbolizam as vozes sociais no contexto em que se

inserem.

Parece-nos pertinente, aproximarmos o que Simone Beauvoir (1980) disse

a respeito das sensações de duplicidade comportamental, proporcionadas pelas

máscaras durante o enredo: O corpo da mulher é um dos elementos essenciais da

situação que ela ocupa neste mundo (BEAUVOIR, 1980, p. 57) com o fato de que

as máscaras proporcionam a El Diablo a liderança sem questionamentos, as

cicatrizes de sua história não são suficientes para torná-la submissa. O resultado

desta relação é uma incógnita que sempre perseguiu as relações sociais do ser

humano: a essência do ser e do parecer.

Sabemos, então, que as sensações de dubiedade que as máscaras trazem

em seu conceito contaminam a ficção, estabelecendo a dicotomia do ser e do

parecer, a este limite tudo o que deve ser nem sempre o é, enquanto tudo que é

nem sempre parece ser. Vejamos, por exemplo, O Cavaleiro, além de líder, é

homem, mas finge ser mulher, já que percebe a autoridade da fala feminina em El

Diablo “mascarada” de homem, ou seja, regida pelas vozes do patriarcado e

posterior poder, a fala de El Diablo gera no Cavaleiro a inveja proporcionada pela

imitação:

– É bom para nós todos que ninguém saiba um quem é o

outro, quem é ninguém entre nós, formalidades – diz o

cavaleiro aproximando a caratonha perto dos outros três

com o dedo em riste aflautando a voz para que pensem

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que é uma mulher – para que ninguém de entre nós roube

o ouro de cada qual (DICKE, 2006, p.17).

A personagem feminina El Diablo é fugitiva, mas se tornará líder, sua

chegada ao poder necessita de uma representação social diante do ambiente e do

tempo em que acontece, por isso, engrossa a fala. Engrossa para parecer homem,

já que este é o único caminho que pode ser trilhado em direção ao poder de

liderança.

Essa mudança comportamental é resultado da dubiedade das “máscaras”,

porém as “cicatrizes” no corpo feminino parecem convergir na formação de

androgenia. O autor de Dicionário de Símbolos, Chevalier (1990) refere-se à

mescla dos sexos como formação de androgenia, Pois o andrógino é muitas vezes

representado como um ser duplo, possuindo a um só tempo os atributos dos dois

sexos, ainda unidos, mas a ponto de separar-se (CHEVALIER, 1990, p.52).

O andrógino aparece em várias culturas, mostra-se como antropomórfico

do ovo cósmico (p.52) e se estende como configuração dual em diversas regiões e

religiões do mundo. Quase sempre ligados à figura do homem, aparentam

sexualidade como primeiro tema, é visto como a união, na fusão da realidade

divina e a dualidade do desconforto do mundo em que vivemos (CHEVALIER,

1990).

A androgenia esclarecida por Chevalier (1990) é destaque na novela Toada

do Esquecido Dicke teoriza sobre esse mote narrativo anteriormente a sua

produção, quando, observando criticamente a célebre obra de João Guimarães

Rosa, declarou: A união dos contrários está em Guimarães Rosa no mito do

Andrógino, encarnado em Diadorim, o Homem/Mulher, símbolo incluinte, ora

excluente, não totalmente exclusivo” (DICKE, 1999, p. 38) Nesta direção, o autor

ainda reflete:

O tema Homem/Mulher, no “Grande Sertão: Veredas”,

está velado por um grande suspense, escondendo todo o

denso mistério, cujo desenlace é a revelação de que

Diadorim é uma mulher e aparece nas suas últimas

páginas. Durante quase todo o livro, o herói passa por

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homem, de quem Riobaldo se apaixona, empresa que leva

todo romance (DICKE, 1999, p. 39).

O texto de Dicke sobre Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa,

antecipa não só a sua futura inspiração literária, como também mostra uma das

motivações de Toada do Esquecido (2006): a androgenia reveladora do sexo

traduz a revelação do poder de liderança. Observado pelos olhos masculinos, El

Diablo aparenta masculinidade: (...) El Diablo que é um rapaz imberbe e moreno

de fala fina e cabelos encaracolados, que tem algo de enfeitiçadamente feminino

(...) (Dicke, 2006, p.109). Observado pelos olhos femininos, El Diablo aparenta

feminilidade:

El Diablo é apenas uma bonita moça que deixou suas

roupas junto à margem e se banha tranquilamente no rio,

donzela nua, dá braçadas, nada, vai e vem, lava-se com

um pedaço de sabão velho. O espanto que não é tanto

assim. Moça, moça, moça. Sobe de novo no Jipe com uma

admiração meio abortada, é verdade, porque há muito ele

vinha tal como o Cavaleiro, seu mestre, o dr. Nigrius, há

muito que imaginava ser esta a verdade: El Diablo não

era homem, não é mais que uma mulher: uma mulher que

tirou quatro da colheita da vida, desse rol de incertezas,

quem será El Diablo, madame El Sapo, a peruana?

(DICKE, 2006, p.127)

Desta forma, El Diablo, confundindo as definições de gênero do até então

líder do bando, já que a dubiedade das máscaras pode gerar, tanto a oposição de

personalidade, quanto oposição de sexualidade, consegue chegar ao poder

seguindo o caminho da mais antiga das armas veiculadas à mulher nas sociedades

primitivas: a sensualidade de seu corpo.

Aos poucos O Cavaleiro – líder dos fugitivos – vai sucumbindo silencioso

diante das prerrogativas das vozes da sensualidade do corpo feminino de El

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Diablo, permitindo assim que o poder possa ser transferido, sem que essa

transferência seja percebida:

Olha seus tênis, suas luvas amorosamente, pensa consigo

mesmo: quem vai ai dentro é uma mulher, ninguém me

tira isso da cabeça, El Diablo tem uma certa leveza de

movimentos, certos jeitos curvilíneos, uma voz quente,

que a momentos chega a ser ardente: só pode ser uma

mulher, e eu estou me apaixonando doidamente por essa

mulher (DICKE, 2006, p.48-49)

A sedução presente nas vozes de El Diablo vai, aos poucos, ruindo

a liderança do Cavaleiro conforme trecho abaixo:

Sob esse macacão ela tem cintura, acima da cintura tem

seios, sob essa máscara de diabo de carnaval dos

altiplanos de Oruro, ela é mulher, uma saborosa,

deliciosa mulher: ah aqueles cabelinhos na nuca... Aquela

pele acetinada... Aos solavancos do carro ela finge uma

maior aproximação com essa mulher, e deixar-se ir ao

encontro, batem-se aos lados dos corpos, que vontade ele

teve de apertar-lhes nas mãos aquele corpo que tem

aquela voz tão cálida... Dar-lhe um beijo... (DICKE, 2006,

p.40)

Por último, o poder é concedido a El Diablo diante da descrição

proposta pela novela:

(...) El Diablo dá a partida, seus cornos entre os meandros

castanhos de seu focinho movem-se vermelho, toda a

armação da velha Kombi treme, o motor pega sob a

pressão do seu pé direito vestido de tênis no acelerador

um pé elegante e fino, pequeno, nota- o de repente o

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Cavaleiro ao seu lado, dá a marcha à ré, faz a manobra,

voltam- se para onde vieram, agora quem manda é El

Diablo... (DICKE, 2006, p.44)

A presença constante da morte nos enredos dickeanos mostra-se mais uma

vez presente, o perfil feminino de El Diablo irá, por asfixia, silenciar um a um dos

outros personagens, incluindo o antigo líder. Assim como a efemeridade do

mundo, os símbolos efetivos da humanidade serão apagados, enquanto El Sapo,

tanto quanto o rádio, permanecerão exercendo suas funções.

Notemos, antes de finalizar, que as oposições binárias (1988, p.104) no

que se refere à utilização das vozes internas à produção, propostas por Michel

Foucault fazem-se presentes, vejamos, se de um lado El Sapo representa a

referência do mundo em que vivemos El Diablo representa os excluídos deste

mundo, portanto os desreferenciados (MAGALHÃEs, 2001, p.208). Se, de um

lado, El Sapo representa o poder social do mundo em que vivemos: polícia,

religião e política, El Diablo representa os arredores sertanejos aonde estes

poderes não chegam: traficantes, contrabandistas e garimpeiros, se, de um lado, El

Sapo é eleita como sendo a engrenagem do Sistema (DICKE, 2001, p.208) e a

engrenagem do poder, El Diablo representa os excluídos deste mundo, esmagados

por esta “engrenagem”. Se, de um lado, El Sapo identifica-se com o plano da

condição social de riqueza, El Diablo identifica-se com o plano social da pobreza.

Enfim, as contradições fortalecem o estabelecimento do poder totalitário a El

Sapo e de poderes menores guardadas as proporções à El Diablo. Não devemos

para isso, subtrair o papel das vozes sociais presentes na fala de El Diablo durante

a ação, tais quais as relações internas à produção, as vozes dão autonomia à

representação dickeana, tornando-a, por essa razão, próxima do mundo em que

vivemos.

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CAPÍTULO 3: SINFONIA EQUESTRE

3.1. Janis Mohor: Liderança no Sertão

A segunda novela, intitulada Sinfonia Equestre (2006), tanto quanto Toada

do Esquecido (2006), reserva instrumentos ora diferentes ora parecidos entre si

em relação a presença das vozes sociais nos perfis femininos.

Comecemos esta análise pelos tópicos que unem essas produções

novelísticas, palmilhando as veredas do que já tivemos oportunidade de estudar

em capítulos anteriores, inferimos que o tamanho reduzido das páginas de

Sinfonia Equestre (2006) não deve refletir, literariamente, inferioridade em

relação à Toada do Esquecido (2006), já que, conforme o ângulo estudado, não é

a repetição nem a maior incidência de quadros que tematizam o poder e as vozes

sociais que o subordinam a qualidade de um texto, ao contrário, as vozes

aleatórias podem estar no mesmo grau de importância de vozes que são

reafirmadas por diversas vezes, em diversos trechos, e em número maior dentro

do mesmo romance.

Recordamos, conforme dissemos anteriormente, as configurações ligadas

à morte (MIGUEL, 2007, p.203) referem-se a um dos motes da produção

novelística dickeniana que, ao representar literariamente uma parte da história de

Mato Grosso, confunde-se com a história de outros cantos destes “sertões”

espalhados pelo mundo afora. Como mencionamos, já que pelos “sertões” a

“morte” se alonga como motivação temática do enredo, o modelo desta motivação

temática tem, no falecimento do proprietário de terras Hildebrando Mohor, uma

prévia das mortes que a este primeiro falecimento se seguirão em Sinfonia

Equestre (2006).

Retomando a temática da morte, podemos observar que esta é condutora

da ação e sofre a marcação do tempo nessa novela, ou seja, a cada personagem

morto, por quaisquer acontecimentos no plano de ação interno à novela – a

presença cíclica do cavalo que representa a natureza e, por conseguinte, o tempo

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dickeano – inseridos neste contexto histórico estão diretamente ligados. A

tradução literária deste fato incorreria na ideia de que, com o esgotar do tempo de

vida, os seres humanos são “lembrados” por sinais que, quase sempre, avisam

sobre o exaurir de suas vitalidades, remetendo-os ao esquecimento proporcionado

pela morte. Jean Chevalier (1990) nos auxilia nessa leitura, ao aproximar

simbolicamente cavalos e morte: A valorização negativa do símbolo ctoniano faz

do cavalo, por sua vez, uma cratofania infernal, uma manifestação da morte

análoga à da ceifeira do folclore mundial (p.205).

O diálogo com o cenário é também uma forma de diálogo com o tempo e,

conforme estudado, o cenário dickeano marca o tempo, proporcionando a

sensação cíclica dos elementos que são pertinentes a essa transformação, porém

no caso de Sinfonia Equestre, conforme o titulo já evidencia, o cíclico e os

cavalos se aproximam, cada qual de sua representação, conforme podemos ver no

trecho: Depois de enterrado, ficou Belizário, o contador de histórias, amigo de

Hildebrando, que olhava na janela o cavalinho correndo em círculos no pátio

verde lá embaixo (DICKE, 2006, p.136). A evidência desta característica se

alonga no trecho: Foi o pai quem lhe contara, Janis estava rica, mas não feliz.

Desceu à cavalariça, onde estavam vários cavalos. O cavalinho corria em

círculos no pátio com gramado verde (DICKE, 2006, p.136).

Encontramos exemplos inclusive do caminhar das idéias cíclicas

(MIGUEL, 2007, p. 109), relacionadas com outros elementos da natureza

dickeana como no exemplo a seguir: Nisso encontrou uma borboleta azul enorme

pela janela, que voou em círculos pelo quarto (DICKE, 2006, p.143). De fato

estas ocorrências correspondem à idéia do movimento circular e aproximam às

dimensões temporais e espaciais (MIGUEL, 2007, p.109), desta feita, “os pinos

do relógio” do tempo dickeano estão girando e, ao girar, depreendem a

transitoriedade das coisas do mundo, a ligação dos animais e dos elementos em

círculos, lembra-nos, respectivamente, do tempo e dos sons da natureza que regem

e fazem parte deste tempo que se esgota. Tanto quanto os círculos condicionam o

efêmero do mundo, a natureza também o faz, já que estão emparelhados na

mesma síntese, nesse sentido, os cavalos, que aqui representam esta natureza, são

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posicionados durante o enredo, sempre postos junto a trechos que condicionam a

morte, conforme observaremos a seguir:

Um cavalo corre em círculos por um pátio verde (da

janela alguém olha). Um homem, gigante de dois metros,

rodeou a sala, caminhou para a cama, deitou-se nela,

cobriu-se com o cobertor até o peito, juntou as mãos sobre o

coração, pensou numa enorme cavalaria de enormes cavalos e

deu seu último suspiro. Sua filha, uma bela moça de vinte anos,

ajoelhou-se no chão perto dele e começou a chorar

abraçada ao seu cadáver. Era Janis Mohor (DICKE,

2006, p.135).

Indo além, tanto o título Toada do esquecido, quanto o título Sinfonia

Equestre representam a união dessas idéias sintetizadas. Dito de outra forma: os

títulos observados servem de conjunto para o reunir da “orquestra humana”, ou

seja, as marcações temporais simbolizadas pelas musicalidades naturais da Toada,

nos rádios, e da Sinfonia, nos currais, avisam quando o ciclo se fecha, quando

todo o acontecimento ficcional finaliza com a morte dos personagens que se

seguem. No primeiro, a morte de El Diablo; no segundo, a morte de Janis,

costuram uma importante junção, na verdade, ambas estão atando o fim ao

princípio e fechando a circunferência de um círculo (MIGUEL, 2007, p.109). O

fechamento deste círculo, proposto pelo conjunto de sons da natureza e as

marcações do tempo dickeanos sintetizam o enredo da ação proposta em Sinfonia

Equestre e, por isso mesmo, a Sinfonia da existência humana, da “orquestra” que

opera os “pinos do relógio” se feche diante da morte, porque a morte é o fim do

ciclo dos seres humanos, sufocados pelo peso da existência (MAGALHÃES,

2001, p.208).

Tendo em vista esses argumentos, ao que tudo indica, não são apenas estes

pontos de convergência que unem as análises das novelas em questão, assim, além

das abordagens desenvolvidas, observamos a natureza dos conflitos permeados

pelo ambiente ficcional dickeniano como outra importante motivação de Sinfonia

Equestre.

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Assim como em Toada do Esquecido, o cenário dickeano em Sinfonia

Equestre é condicionador de conflitos sociais no plano acional, porém, ao

contrário respectivamente do primeiro, em que a disputa se dá pelo ouro em

território de garimpo, no segundo, o conflito agrário ou a disputa pela posse da

terra se faz presente. Sem dúvida, para fins de análise, de Miguel retomaríamos

parte de sua tese anteriormente exposta: conflitos de diversas naturezas: (...)

relações com a terra, e, ao fazermos, ligaríamos à idéia do processo de ocupação

histórica do campo no país (MIGUEL, 2007, p. 11) conforme mencionado por

Oliveira (1999). Somamos as intenções literárias, a literatura obedece a sua

representação com as intenções históricas, no caso de Dicke, sua representação

literária dialoga com os escritos dos viajantes, dos cronistas e dos memorialistas,

com a literatura, com a fala dos políticos e com a narrativa histórica (MIGUEL,

2007, p.49), desse modo, as bases para a análise das primeiras vozes sociais

pertinentes a este cenário se fazem presentes. Importante salientarmos que as

vozes sociais presentes não se referem ainda ao perfil feminino da novela, mas aos

outros personagens representativos deste sistema. Aliadas a essa representação

brutal do sertão mato-grossense, as vozes sociais que depreendemos por

intermédio do que este cenário nos reserva, são as vozes que reproduzem a

condição de vida e de morte da sociedade, ou seja, os símbolos que compõe este

“jogo” humano no qual as vozes sociais ganham corpo e esclarecimento.

Portanto, as primeiras vozes perceptíveis, apesar da morte física, conferem

à Hildebrando Mohor uma subjetiva imortalidade, pois o ambiente formado no

cenário da novela é condizente com a sociedade descrita e, desta forma, apesar de

sua morte, as vozes sociais que ele representa continuam vivas.

A primeira condição de vivacidade dessas vozes é relacionada, como

vimos, ao ambiente: os componentes tempo, do espaço e do cenário, ambiente de

cercas pecuárias e a disputa pela terra mostram no personagem masculino

Hildebrando Mohor suas ramificações: a fazenda Mutum é um ambiente hostil,

onde conflitos de toda ordem estão ocorrendo, juntamente com o tempo e a

natureza arredia. A morte de Hildebrando Mohor não significa a morte do sistema

imposto a aquele ambiente, pelo contrário, todo o sistema de coisas que envolve a

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fazenda localizada no sertão de Mato Grosso terá continuidade consentida pelas

mãos de uma outra personagem.

Reunindo, o ambiente, o tempo e o cenário do enredo da novela Sinfonia

Equestre, todos os ingredientes e motivos literários para a formação das vozes

sociais do “Patriarcado” deverão estar presentes, isso fica claro porque a união

desses ingredientes aproxima-se de sociedades fora do padrão da normalidade

condicionadas pela democracia de gênero.. Devido a esses fatores que a

supremacia masculina irá marcar boa parte das relações sociais primitivas, como

as observadas internamente à fazenda Mutum, onde residem os descendentes e

signatários de Hildebrando Mohor. Dentre as regras que possibilitam as vozes

sociais patriarcais neste ambiente, destacamos a supressão das vozes femininas ou

das vozes que gerem democracia de gênero, já que esta deva ser a regra

fundamental para que este sistema tenha ocorrência. Recuperamos, como

facilitador, o que French (1992) destaca: o homem em civilizações antigas sempre

fora visto com superioridade (FRENCH, 1992, p.18), a esta superioridade,

chamamos patriarcado.

Patriarcado, tomado na acepção de um tipo de dominação, que encontrou

na mulher a primeira e maior de todas as barreiras para sua consolidação. Em A

guerra contra as mulheres (1992), Göran aponta o poder paterno como o

significado central do patriarcalismo (p.22), no seu livro: Sexo e poder: a

família no mundo, Göran Therborn aponta, além do poder do pai e da

supressão das vozes femininas, o poder da dominação do marido (THERBORN,

2006, p.29) como sendo um complemento desta razão de existência.

Descobrimos que o latifúndio e o conflito de terras deva ser o

condicionador para que as vozes sociais do patriarcado estejam presentes em

Hildebrando Mohor. Ele, enquanto personagem, compreende o poder como

extensão de seu domínio territorial e é a perda desse poder, representado por seu

domínio territorial, que causará sua morte, para tanto as marcas do latifúndio são

expressas durante a narração e podem ser percebidas no pequeno trecho: Duraria

um dia inteiro cavalgando de uma fazenda a outra (DICKE, 2006, p.136).

Indo além, poderes e vozes paralelos aos da fazenda Mutum são também

pertinentes a fazenda dos turcos, intitulada Piúva, apesar de diferenciadas pelas

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descrições dickeanas, as fazendas Piúva e Mutum sobrevivem em meio ao sistema

e são condicionadas igualmente pela mesma fusão regida pelo ambiente, pelo

tempo e pelo cenário. Já que são semelhantes em muitos aspectos, resta-nos

buscar as diferenças nas descrições que regem a simbologia do que representam,

observemos algumas antíteses. De um lado, o protagonista Hildebrando:

Hildebrando tinha muitos amigos e todos eles vieram ao seu velório, pois o fato

ocorrera por todo município. Mas como Janis sabia que fora ele, o turco Tariq

Muza, quem lhe assassinara o pai? (DICKE, 2006, p.136).

De outro lado, o antagonista, Turco Tariq:

– O fazendeiro havia criado três filhos na sua larga vida:

MIrko, Jorgo e Gael. A mãe deles havia morrido há muito

tempo, os filhos eram como cavalos, como suas rubras

crinas, cabelos vermelhos que nunca viram tesoura nesta

vida. E as terras de Jeron lindavam com os horizontes.

Haviam sido molestados pelos vizinhos do lado norte, uns

turcos mal- encarados (DICKE, 2006, p.140).

Ou ainda:

O turco Tariq Muza era baixinho, com uma cara

demoníaca (DICKE, 2006, p.148).

A contraposição entre os dois opositores convergem nas vozes do

patriarcado que, ao que consta, não os deixará órfãos, as vozes sociais do

patriarcado reviverão nas falas dos filhos de Tariq, tanto quando se mostrarão

presentes nas vozes de Janis Mohor, filha de Hildebrando, isso porque

Hildebrando morre, mas o sistema sobrevive. Sabemos que, a partir de agora, um

“estranhamento” se fará possível já que seria mais facilmente justificável que o

filho de Tariq atendesse a esse sistema, por se tratar de personagem do gênero

masculino, porém Janis, pertencente ao perfil feminino, e ao atender às vozes de

reafirmação do masculino, estabelece possibilidades surpreendentes.

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Para explicarmos a surpresa causada pela portabilidade das vozes sociais

condicionadas a Janis, lembramos que todas as vozes ouvidas no discurso da

produção literária devem ser respeitadas enquanto sociais ou históricas, pois as

mesmas portam posturas sócio ideológicas que nem sempre coincidem com as do

autor, às vezes não coincidem nem mesmo com as do personagem, porém estas

vozes podem ser orquestradas por este autor já que ele se apodera das mesmas

para a maior representação da realidade, assim concluímos que Janis pode

apropriar-se de vozes contrárias a ela enquanto gênero, desde que estas a ajudem a

atingir seus objetivos, refletindo por isso as intenções que obedecem ao cenário do

contexto histórico em que reside:

Nossas palavras não são „nossas‟ apenas; elas nascem,

vivem e morrem na fronteira do nosso mundo e do mundo

alheio; elas são respostas explícitas ou implícitas às

palavras do outro, elas só se iluminam no poderoso pano

de fundo das mil vozes que nos rodeiam (TEZZA, 1988, p.

55).

Duas heranças são deixadas por Hildebrando quando de sua morte, a

primeira trata– se de um tesouro feminizado representador de fortuna: Moedas de

ouro e prata, correntes, colares, tiaras, pedras preciosas (DICKE, 2006, p143), a

segunda, trata-se da transmissão das vozes sociais do patriarcado a sua filha Janis,

conclusão que atende aos interesses deste estudo.

A segunda herança deve contaminar a herdeira: Janis herda o tesouro, as

terras latifundiárias e as vozes sociais anteriormente percebidas no falecido pai,

por sua vez, estas heranças não a satisfazem, isso mesmo depois de conseguir

todos os seus propósitos, o que a identifica é a lacuna existencial, o vazio que a

identifica, segundo Miguel (2007), antecipa o acontecimento seguinte à morte do

patriarca quando teoriza:

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A vingança é o esteio das decisões, das reações, dos objetos

de vida, em muitos casos. Mesmo quando são frágeis, seus

personagens têm a capacidade das ações sanguinárias, têm

o poder da vingança violenta e, até, hedionda (Miguel,

2007, p.137).

A vingança de Janis será a marca expressiva deste enredo, esta

consideração é presente em diversos episódios da novela, conforme podemos

observar nos pequenos trechos a seguir: Veio-lhe ao pensamento a idéia de vingar

o pai. Vararia o mundo até achar o assassino. Ou em atravessaria todas as

fazendas em redor da sua, até achar o culpado (DICKE, 2006, p.135). A busca

pelo assassino marcará o perfil feminino com diversas considerações já

conhecidas pelas características concernentes ao escritor Ricardo Guilherme

Dicke: a morte, a violência, a vingança e a portabilidade das vozes do patriarcado.

Vejamos que a portabilidade das vozes do patriarcado por Janis interfere

no plano do enredo condicionando seu comportamento em relação ao ambiente

em que reside, uma prova disso é a relação que o matrimônio reserva a ela, pois

devido ao que o perfil feminino representa, o relacionamento amoroso proposto

pela novela deve ganhar outros consideráveis encaminhamentos.

Logo retornaremos à condição de matrimônio de Janis, enquanto isso,

outro considerável encaminhamento deve ser percebido em relação ao

comportamento dela diante da morte do pai, já que estando distante do padrão

histórico de feminilidade, ou seja, já que ela não representa a passividade histórica

feminina, esta resolve reagir contra os acontecimentos impostos, fazendo com que

o perfil feminino seja guiado pela violência e pela vingança, portanto, a

portabilidade destas ações deve ser produto da portabilidade das vozes que carrega

em si e, não por acaso seja também herdeira de outros arquétipos

comportamentais passivos de análise. French (1992) ajuda-nos a entender este

arquétipo proporcionado pela portabilidade das vozes sociais quando reitera à

orientação do comportamento feminino: a mulher é vista como parelha ao sexo

masculino, tem disposição de lutar pelas mesmas conquistas e diretrizes.

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Ao juntarmos a orientação do comportamento feminino proposto por

Marilyn French (1992) com a de Koltuv (1990), notamos uma visível proximidade

de definições, isso ocorre porque o arquétipo definido no trecho aproxima-se do

arquétipo evidenciado por Koltuv (1990) quando estuda o complexo

comportamento de Lilith conforme o trecho:

A identificada com o animus assume-se como o pai, é

como se se transformasse nele, o herói masculino. O ego

feminino incapaz de separar-se do estágio anterior

depende do herói masculino, este a liberta pela força, pela

palavra e pela ação. Normalmente resulta na perda de

contato com o self feminino e seus valores, é filha do

patriarcado – atualiza os valores negativos de Ártemis,

Atena ou Hera (KOLTUV, 1990, p.107).

Assim, ambos se referem às mesmas condições de procedimentos e podem

para tanto justificar as atitudes de Janis, todavia porque o perfil feminino de Janis

se aproxima do arquétipo de Lilith (KOLTUV, 1990, p.107), tanto quanto se

aproxima do arquétipo das antigas guerreiras Amazonas (p.107), devido a este

fato, esse papel incomum é fruto de seu comportamento desajustado diante do

ambiente e do que as vozes sociais representam, portanto, pode-se depreender

generalizadamente que, apesar de que houvesse mulheres guerreiras por toda a

história dos povos em geral, a luta sempre fora exclusividade masculina e, por

isso, a mulher impulsionada pela vingança represente um comportamento

minoritário (French, 1992). O trecho abaixo define uma parte destas

considerações comportamentais:

O tipo Amazona, por sua vez, tem uma orientação

coletiva articulada a uma atitude objetiva, não se dando

facilmente a um envolvimento pessoal. Nele, a mulher é

auto-referente e independente, é mais companheira e

competidora que esposa e amante. Embora em muitos

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povos houvesse mulheres guerreiras, aos poucos o ato de

guerrear tornou-se uma atividade predominantemente

masculina – provavelmente pelas mesmas razões que

levaram a caça a essa situação. Os conquistadores

escravizavam os povos vencidos, condenando-os a

servidão; impunham-lhes impostos e às vezes

apropriavam-se de suas terras. Assim nasceu o Estado.

Nessas primeiras organizações as mulheres pertenciam à

elite, mas, como poucas delas foram conquistadoras,

geralmente eram subordinadas aos homens. Todos os

Estados iniciais decretaram por lei que o corpo da mulher

– sua capacidade sexual e reprodutora – era propriedade

dos homens e tornaram difícil ou impossível a ela possuir

ou legar bens (KOLTUV, 1990, p.107).

Uma vez esclarecido sobre o comportamento de Janis, retornaremos à

condição de seu matrimônio e, ao fazermos, percebemos que, durante o enredo da

novela, os arquétipos entre o par que compõe este matrimônio são opositivos, na

verdade essa oposição possui ocorrência típica em casais historicamente

estereotipados, porém, em conformidade com o arquétipo “masculinizado” de

Janis tanto por Lilith como pelas guerreiras Amazonas, conforme observado, é

antagonizado com seu marido Jan, pois ele obedece ao comportamento histórico

da condição feminina operada pelo tempo. Desta feita, chegamos à conclusão de

que os arquétipos estão invertidos, historicamente Janis se comporta como

guerreira enquanto seu marido Jan se comporta como regente da passividade

feminina. Para compreendermos melhor o papel histórico da mulher, Michele

Perrot (2003) discorre sobre o tema:

Sem dúvida jamais os papéis sexuais foram definidos com

maior rigor normativo e explicativo. O poder político é

apanágio dos homens – e dos homens viris. Ademais, a

ordem patriarcal deve reinar em tudo: na família e no

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Estado. É a lei do equilíbrio histórico (PERROT (2003,

p.175).

A autora Michele Perrot (2003) reitera estas qualidades quando condiciona

o perfil histórico feminino e, ao fazê–lo internamente a Sinfonia Equestre, as

qualidades condicionadas pela teórica aproximam– se das qualidades

condicionadas de Jan, esposo de Janis, tanto quanto enxergamos Janis, esposa de

Jan, próxima das qualidades condicionadas opositivas destas. Estudaremos para

tanto o comportamento ficcional de Jan:

Seu marido Jan era um pobre coitado, medroso, que

nunca se meteria num assunto como esse. Virgem, porque

nunca dormira com ele? A sombra de alguém continuava

na janela, olhando o cavalinho dando voltas no pátio

verde. E Jan tinha amor por ela. Por que se casara

com tal tipo? Pensava ela. Jan só entendia de cavalos,

pobre. Era a única coisa que sabia fazer no mundo: tratar

cavalos (DICKE, 2006, p.136).

Ou ainda no trecho:

Jan era o marido de Janis, mas nunca dormiram juntos.

Casto, puro, medroso, pequenino, Jan vivia escondido dos

olhos da esposa. (...) olhava-se o rosto num pequeno

espelho que levava consigo. Via o rosto oval, bem feito, os

olhos azuis, os cabelos louros, e dentes perfeitos, e

demorava olhando, Narciso analisando o próprio

semblante, e se achava belo. Então, por que Janis, sua

esposa, o desprezava? (...) Onde estaria Janis Mohor? Ela

não lhe tinha amor; ele, por sua vez, lhe ofertava um

sentimento terno, profundo que só se acabaria com a

morte. Mas ela não sabia. Mas isso para ele não tinha

importância. Grande coração o seu, bom coração,

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profundamente piedoso, ele passava o tempo rezando o

seu rosário (DICKE, 2006, p.145)

O comportamento ficcional de Jan aproxima-se, pelo que lemos nos

trechos anteriores, aos primórdios do comportamento feminino, seguindo as

características propostas por Emanuel Araújo (2009). Para o autor, o

comportamento feminino é povoado de resumos conceituais, exemplo disso é o

arquétipo de Maria (Araújo, 2009, p.52), a mãe de Jesus não é apenas um

exemplo ou conceito a ser seguido, mas é também um conjunto de simbolizações

e comportamentos que fazem uma ligação entre o pensamento moral e a tradição.

Nem toda mulher é Maria, mas toda Maria serve de símbolo para que a imagem

da mulher por ela se estabeleça.

Desta feita, elencadas as oposições comportamentais, a fragilidade do

marido em relação à Janis designa nele condição de inferioridade, pois ele é quem

possui “inabilidade para a competição no mundo masculino” (Monteiro, 1998, p.

87) e, por conseqüência disso o desprezo da esposa esteja presente conforme

ainda leremos:

– Janis, sinto-me indefeso contra o mundo.

– Jan, você é um fraco, não sei o que fazia quando me

casei com você.

– Não fale assim, Janis.

– Como queres que te fale, infeliz? (Dicke, 2006, p.149)

Janis abomina o espelho do que deveria ser quando enxerga e analisa o

comportamento do marido, essa abominação é fruto das vozes sociais do

patriarcado que não permitem que ela possa usufruir da feminilidade, já que as

condições sociais imperantes estão presentes. Comparando, ao contrário do

disfarce das “máscaras” de El Diablo em Toada do Esquecido, Janis mostra-se

claramente mulher, mas condicionalmente patriarcal e masculinizada.

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Como sabemos, em busca de vingança, as “travessias,” como foco

motivador, devem iniciar- se em Sinfonia Equestre, como é costume nas

produções dickeanas, porém, para que a “travessia” de Janis seja possível, seu

companheiro de viagem não deve se tratar do esposo já que ele parece

incapacitado para tal empreitada. Então, eis que surge Belizário, um homem que

por trinta anos viveu num monastério e que, cansado da religião que exercia,

acabou por se recolher na fazenda Mutum. Belizário, ao contrário do respeito que

o esposo tem por Janis, liga-se a ela não só platonicamente como Jan o faz, mas

também porque obedece tanto quanto Jan ao tom de sua fala potenciadora e

regedora das vozes sociais.

Separadamente, todas as “travessias” vão sendo condicionadas. Com

efeito, a “travessia” histórica fortalece a representação literária dos

acontecimentos ocorridos naquela época: “Contratar jagunços pistoleiros para

matar não é um expediente dos grileiros e latifundiários de nossos tempos”

(Oliveira, 1999, p.15). Ficcionalmente, Janis reúne todos os jagunços e pistoleiros

para dar cabo do turco Tariq Muza, fazendo com que o contexto histórico

atribuído por Oliveira (1999) quando da contratação de mão de obra assassina,

tenha referência de igual forma diante do enredo desta novela.

Continua o autor com a segunda “travessia” intitulada geográfica,

conforme o trecho a seguir:

Serras e serras em redor e o horizonte zumbindo

infinitamente. E além das serras, rios e florestas. O céu

era todo um fulgor azul dos pontos cardeais. Só se ouviam

os cascos dos cavalos nas pedras do caminho. (...)

Enquanto isso ia assim pensando, começou a chover.

Eles entraram num riacho e foram acompanhando-o,

enquanto a chuva aumentava (DICKE, 2006, p.138– 139).

Já a última das “travessias,” que culminará com o desfecho do enredo tal

qual Toada do Esquecido, será a travessia existencial, assim, podemos acreditar

que a linguagem reflexiva de Dicke estará em contato com as vozes sociais que

determinam o comportamento de Janis e, ao mesmo tempo em que este contado

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se contabiliza, a linguagem reflexiva permitirá que o universo do mundo patriarcal

representado por estas vozes seja posto em análise:

Os Desertos do Tempo: vaguearei por esse deserto a pé e

sentirei todo o abrasor desse calor sob o sol mordente dos

desertos, seus milênios, nos desertos. Minha alma não via

nada a não ser areia e pedras, e comia do musgo que

nascia e renascia no fundo das cavernas onde habitava

então e bebia a água do sereno que pingava em minhas

mãos abertas para o céu nas madrugadas frias. E rezava.

No fim dos tempos todos aprenderão a rezar (os vivos e os

mortos), porque todo olho verá a Deus. E irão viver nos

desertos. Eu vim dos desertos, mas a eles voltarei. Os dias

dos desertos são plenos e férteis de beleza e

contemplação. Contemplar-se-á a cada grão de areia,

assim como a cada onda do mar e a cada folha das

árvores das florestas imensas e virgens. Olhos puros e

limpos verão em cada grão de areia a face de Deus

(DICKE, 2006, p.137).

O poder patriarcal presente nas vozes de Janis transformam o

comportamento deste perfil feminino em conformidade com aquilo que Miguel

(2007) caracterizou como sendo o comportamento violento: que se tornou marca

identitária na história mato-grossense tanto quanto marca igualmente a

identidade dos personagens dickeniamos (p.137). Sobre este aspecto, a identidade

de Janis é condicionada pelas vozes sociais, enquanto as vozes sociais são

condicionadoras do plano de enredo.

Podemos perceber, ainda, a fala do perfil feminino em Sinfonia Equestre

está a serviço das vozes sociais, funciona como um canal ou veículo para que as

vozes sociais mantenham-se presentes na personagem por esta via de acesso, a

ideologia pertinente ao ambiente é inserida no plano literário, já que, para isso,

é necessário que o plano literário venha conter este ambiente ideológico. A fala de

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Janis, potencializa diversos aspectos temáticos sob o prisma das vozes sociais do

patriarcado durante o plano literário, por exemplo, a presença simbólica da

temática religiosa:

Pássaros pelos matagais cantam e cantavam em miríades

e trançavam seus cantos com os poemas que Janis dizia. E

à frente da piscina cresciam mangueiras, goiabeiras,

ateiras, mamoeiros, coqueiros dando frutos, cujas

extensões ofereciam uma sombra doce. Constante e denso

rumor de folhas em gargalhadas espessas se

entrechocando. Aqui era um lugar onde seu pai gostava

de vir... Era tão grande a magia das águas que ela

encompridava as horas dentro do ambiente aquático,

sempre e cada vez mais feliz. Intramuros, era um lugar

que retumbava de cantos de pássaros. Sob as árvores se

estendia uma sombra enorme e profunda, espessa e terna

que endulcorava tudo o que dela se aproximava. Frutas

adocicavam as sombras. Um bentevi esburacava um

mamão e assobiava e periquitos comiam duma manga

madura.

– Paraíso... Parece o interior de um grande diamante

(DICKE, 2006, p.145)

A temática filosófica existencial também se mostra presente:

Janis: todos os sonhos que sonhamos em vida voltam

ausentes. As idades: infância, juventude e maturidade vão

em sotoposto. A vida se afundou no abismo dos abismos.

Mulheres: choram, homens: ladram, os maus são de

vidro, os bons são de carne nova. Inquestionável o dilema

que ataca as almas mortas. Os homens descem aos

abismos ou sobem aos abismos? (DICKE, 2006, p.163)

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Levado por este estudo, concluímos que Belizário – o homem que desistiu

da religião e Jan – o homem que deseja a religião, direcionam convergentes o

amor platônico à Janis, uma vez escolhida pelos dois, Janis dá-se ao luxo de

emparelhar-se a Jan em sua virgindade e a Belizário em suas reflexões, porém, há

algo que a potencializa líder e detentora do poder interno à produção enquanto

personagem principal, criadora e principiadora das ações ficcionais: para tornar-se

líder, Janis valida sua fala como instrumento de dominação e formação de poder,

já que atende às vozes sociais patriarcais que são regidas pelo sistema imposto.

Em nosso ponto de vista, a fala de Janis sinaliza formas de aproximação

do conhecimento do mundo, já que, apesar de representar simbolicamente as

vozes do patriarcado, estas estão subordinadas ao sistema criado pela existência

humana. A fala de Janis reflete, simbolicamente, a Razão: – Não, Belizário –

respondeu- lhe Janis. (...) – Você está delirando, Belizário (Dicke, 2006, p.139);

a Sabedoria: – Dostoievsky disse que a Beleza salvará o mundo (Dicke, 2006,

p.143) e até mesmo a poesia:

Mater Sallus

Água sagrada

Me Limpa me lava me sagra

Me transmuta me sagra

Água sagrada

Mater Sallus (DICKE, 2006, p.144)

Como podemos observar, a “travessia” existencial de Janis é construída

pelo eixo das vozes sociais presentes nesse perfil feminino e, por isso, a fala

dominante e representativa do conhecimento do mundo, inferioriza os homens que

a seguem fervorosamente. Os perfis masculinos são postos à prova de sua

condição histórica – restando a eles imitarem aquilo que a articuladora Janis lhes

ordena: – Que queres? – perguntou Janis. – Eu também quero meditar sobre a

Beleza (DICKE, 2006, p.143).

Como em Toada do Esquecido (2006), Sinfonia Equestre (2006) também

termina com o silenciamento de todos os personagens constituidores da ação, são

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mortos durante conflito que trazia os capangas de Janis e do patriarca Tariq. O

perfil feminino compila as ações dos homens que lhe acompanham em seu último

ato de morte: reza como Jan e reflete como Belizário – deixa para eles apenas o

horror representativo dos sons dos cavalos, denunciadores dos óbitos, não

necessitando, para isso, de perdão celestial, já que, enquanto pertencente ao

gênero feminino, o perdão já tenha sido concedido: Perdoai, Senhor, o horror,

porque as mulheres já nascem perdoadas (Dicke, 2006, p.166).

As vozes sociais e a fala de Janis, assim como as vozes e as falas dos

personagens masculinos, são substituídas e os sons da morte lembram Sinfonias

Equestres. A morte da Amazona é simbolizada por um cavalo correndo em

círculos: O mundo é redondo e anda em círculos. Tudo anda em círculos. Juntou

as mãos em oração e deu seu último suspiro (Dicke, 2006, p.164), tanto quanto os

círculos da vida deverão se fechar diante da morte.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma vez realizada a análise do corpo textual das novelas dickeanas que

acreditamos abarcar uma amostra da qualidade poética do autor, chegamos a

algumas importantes considerações, dentre elas, grande parte serve para

definirmos os resultados deste estudo. Para nos auxiliar, levamos em consideração

as produções anteriores desse exímio prosador – a exemplo de Madona dos

Páramos (1982) – para que a leitura crítica fosse posta à disposição de algumas

conclusões, uma vez que o tema levantado é confrontado com a bibliografia

estudada, para defendermos a hipótese proposta. Assim, cabe agora, neste

momento final, tecermos alguns comentários e fazermos algumas digressões, de

forma a avistar as futuras possíveis perspectivas, já que este trabalho pode inspirar

novos estudos acadêmicos.

Ricardo Guilherme Dicke é um autor apaixonante que exige uma leitura

febril, já que exige uma leitura cuidadosa. A representação social existe dentro de

sua produção, porém sabemos que seu tema principal gira, sobretudo, em torno de

suas reflexões existenciais, filosóficas que enchem o coração de qualquer leitor.

Por ser seguramente o maior prosador mato-grossense de todos os tempos, Dicke

tem sua obra revisitada por diversos pesquisadores e leitores, trazendo assim

diversas visões e pontos de vista, enriquecendo ainda mais a fortuna critica já

avolumada do autor.

Em nossa proposta de leitura, elegemos as vozes sociais e o poder como

fio condutor, realizando e tornando possível a presente análise: enxergamos a

coesão textual dickeana e sua ligação com o ambiente social, na elaboração das

duas novelas. Levando em consideração o passado histórico do estado do Mato

Grosso, Dicke permite-nos entender o ponto de partida de ambas: a mulher –

símbolo de liderança e poder – desnudando os silêncios dos sertões que queimam

silenciosos e esquecidos pelos homens, um diálogo com um mundo mítico de

onde nunca se tem volta.

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As conclusões parecem não ter fim, porém o espaço serve de combustível

para a formação muito próxima da realidade, tão próxima que o leitor chega a

acreditar na veracidade dos fatos narrados, levando-se em conta a liderança

feminina em ambas produções do autor.

Enfatizando o paradigma que rege as vozes sociais e o poder do gênero

feminino, descobrimos que ambos estão entrelaçados num texto que se explica por

estas amarras, ou seja, quem rege as vozes sociais e reproduz a fala daquilo que

o social quer dizer detém o poder, o poder é exercido por todos aqueles que se

condicionam em situações estratégicas ao exercer liderança. Surpresa mesmo é

saber que, nas obras analisadas, o gênero feminino é quem o faz, quando

descobrimos o que o gênero feminino realmente representa.

Trata-se, enfim, de uma rica representação artística proposta pela

narrativa, El Sapo é uma líder que representa a sociedade dominante, está do lado

dos opressores, El Diablo é uma líder que representa a sociedade dominada,

fugitiva, está do lado dos oprimidos, Janis Mohor é uma liderança masculinizada,

representa o discurso androcêntrico, impetrado de geração em geração, assim

como as vozes femininas do rádio, vozes que guiam as vidas humanas em

detrimento das próprias escolhas humanas.

Todos, como num turbilhão, são sugados pela efemeridade da vida,

transtornados e passageiros, comandam e são comandados, silenciados como

todos os cíclicos processos diários da representação literária, silenciados pela

eternidade.

Tudo o que o homem faz é medido pelo quadrado. Mesas

quadradas, janelas quadradas, salsa, tudo quadrado.

O mundo é redondo e anda em círculos. Tudo anda em

círculos. Juntos as mãos em oração e deu seu último

suspiro.

(Ricardo Guilherme Dicke)

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