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1 As representações do Nordeste e dos nordestinos nos folhetos de cordéis Mariane Nascimento dos Santos Resumo: O artigo ora apresentado é parte da avaliação proposta pela disciplina optativa Identidade Cultural do curso de Mestrado em História pela UFS. Este tem por objetivo apresentar parte do projeto de pesquisa que tenho desenvolvido e onde pretendo discutir a importância e contribuição da literatura de cordel na década de 50 para a consolidação da identidade nordestina, que fora forja por cordelistas nordestinos locais e também por aqueles que se encontravam deslocados no sudeste do país. O trabalho propõe pensar as representações transcritas nos cordéis que contribuíram para a formação e reafirmação da identidade do nordestino. Para concretização deste projeto foram realizadas pesquisas dos principais cordelistas naturais do nordeste e que produziram entre a década de 50 a 80 do século XX. Desses artistas selecionados tomamos para este artigo a figura de Apolônio Alves dos Santos para analisar alguns dos seus cordéis que tem como temática a nordestinidade. Assim pretendemos mostrar como as narrativas da literatura de cordel foram importantes e a forma como esta contribuiu na formação da identidade nordestina. Palavras chaves: Literatura popular, cordel, identidade, representação, Nordeste. Este artigo tem por objetivo expor a proposta de projeto de pesquisa e algumas análises que já estão sendo elaboradas, e que a serão concretizados na dissertação a ser apresentada pelo Programa de Pós-Graduação no curso de Mestrado em História. Esta pesquisa propõe um estudo historiográfico e regionalista partindo de um objeto de estudo literário, a Literatura de Cordel. A idéia neste trabalho não é de realizar uma analise textual do gênero poético, pois não sou habilitada para tal, mas sim, enquanto historiadora, de me debruçar na produção literária popular como uma fonte de pesquisa histórica para compreensão das representações que formam uma identidade. Esta proposta de projeto tem como finalidade pesquisar e analisar os mecanismos que contribuíram para a formação da identidade do homem nordestino, este que, segundo a imagem Mestranda em História pela Universidade Federal de Sergipe. E-mail: [email protected]

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As representações do Nordeste e dos nordestinos nos folhetos de cordéis

Mariane Nascimento dos Santos

Resumo: O artigo ora apresentado é parte da avaliação proposta pela disciplina optativa

Identidade Cultural do curso de Mestrado em História pela UFS. Este tem por objetivo apresentar

parte do projeto de pesquisa que tenho desenvolvido e onde pretendo discutir a importância e

contribuição da literatura de cordel na década de 50 para a consolidação da identidade nordestina,

que fora forja por cordelistas nordestinos locais e também por aqueles que se encontravam

deslocados no sudeste do país. O trabalho propõe pensar as representações transcritas nos cordéis

que contribuíram para a formação e reafirmação da identidade do nordestino. Para concretização

deste projeto foram realizadas pesquisas dos principais cordelistas naturais do nordeste e que

produziram entre a década de 50 a 80 do século XX. Desses artistas selecionados tomamos para

este artigo a figura de Apolônio Alves dos Santos para analisar alguns dos seus cordéis que tem

como temática a nordestinidade. Assim pretendemos mostrar como as narrativas da literatura de

cordel foram importantes e a forma como esta contribuiu na formação da identidade nordestina.

Palavras chaves: Literatura popular, cordel, identidade, representação, Nordeste.

Este artigo tem por objetivo expor a proposta de projeto de pesquisa e algumas análises

que já estão sendo elaboradas, e que a serão concretizados na dissertação a ser apresentada pelo

Programa de Pós-Graduação no curso de Mestrado em História. Esta pesquisa propõe um estudo

historiográfico e regionalista partindo de um objeto de estudo literário, a Literatura de Cordel. A

idéia neste trabalho não é de realizar uma analise textual do gênero poético, pois não sou

habilitada para tal, mas sim, enquanto historiadora, de me debruçar na produção literária popular

como uma fonte de pesquisa histórica para compreensão das representações que formam uma

identidade.

Esta proposta de projeto tem como finalidade pesquisar e analisar os mecanismos que

contribuíram para a formação da identidade do homem nordestino, este que, segundo a imagem

Mestranda em História pela Universidade Federal de Sergipe. E-mail: [email protected]

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que lhe foi historicamente atribuída, é a representação do ser pobre e desgraçado, vitima da seca e

submetido às mazelas como a fome, a sede, a pobreza, o "atraso" e o coronelismo.

O objetivo deste projeto é analisar e identificar as representações culturais e identitárias

do Nordeste e do nordestino, através dos cordéis produzidos na década de 50, na região Nordeste

e Sudeste com autoria de poetas de raízes nordestinas. Consequentemente pretendo evidenciar a

importância da literatura popular como fonte historiográfica, perceber através de versos e

ilustrações a imagem sociocultural da região, entender a contribuição do cordel para a formação

da identidade nordestina e analisar as semelhanças e disparidades dos cordéis produzidos na

própria região nordeste com os da região Sudeste.

Esta produção visa ainda refletir sobre a formação da região não apenas como um espaço

físico determinado pela natureza, mas sim, e prioritariamente, como uma construção identitária

idealizada pelos sujeitos oriundos da região que habitam nela e os que estão deslocados.

Indivíduos estes que independente de onde estejam, seja aqui ou acolá, mantém um olhar

debruçado para as demandas seu local de origem e transformam estas em versos poéticos. E para

compreensão destes olhares não se fará necessário entrar no mérito se estes são verídicos ou não,

pois são estas vislumbrações que tornaram a região real, concreta (ALBUQUERQUE, 1996).

Um dos sujeitos que faz parte deste estudo e que sua literatura fora convocada para

dialogar, foi Apolônio Alves dos Santos. Ele foi um dos muitos nordestinos a deixar sua terra em

busca de uma vida melhor no Sul do país, no seu caso Rio de Janeiro, onde foi empregado como

pedreiro. Ele é nascido de Serraria cidade da Paraíba, porém foi criado em Guarabira. Desde

vinte anos ele já escrevia cordéis, em 1950 foi para o Rio de Janeiro, onde mesmo trabalhando na

construção civil não deixou de lado a produção da literatura de cordel.

A relação conflituosa entre o Norte e o Sul está tão fortemente alicerçada na cultura

brasileira que dificilmente se consegue imaginar o período em que essa divisão política-

geográficaainda não existia. Para discutir a respeito do inicio dessas novas demarcações que

dividiram o Norte em Norte/Nordeste Albuquerque Jr. apresenta um Nordeste “inventado”

intencionalmente pelas pessoas, ele temo seguinte ponto de vista sobre essa questão:

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O Nordeste não é um fato inerte na natureza. Não está dado desde

sempre. Os recortes geográficos, as regiões são fatos humanos, são

pedaços de história, magma de enfrentamentos que se cristalizaram, são

ilusórios ancoradouros da lava da luta social que um dia veio à tona e

escorreu sobre este território. O Nordeste é uma espacialidade fundada

historicamente, originada por uma tradição de pensamento, uma

imagística e textos que lhe deram realidade e presença.

(ALBUQUERQUE Jr., 2011, p. 66)

O cenário escolhido para essa discussão foi à década de 50. Período em que o Nordeste

vive suas duas maiores secas 1952 e 1958. Em que sua população encontra-se em estado

desesperança devido às dificuldades encontradas, de desemprego, fome, miséria, alto índice de

mortalidade infantil e ainda a mercê uma oligarquia que ignora tudo isso. Essas demandas ficam

bastante explicitas nos versos dos cordéis, onde o cordelista, sujeito narrador justifica os motivos

que o levaram a sair de seu Nordeste. Vejamos aspectos em alguns dos versos do cordel “Os

Nordestinos no Rio e o Nordeste Abandonado” escrito por Apolônio:

(...)

Não vou falar do Nordeste

pois o seu clima é sadio.

mas o motivo ou razão

eu quero contar a fio

porque é que os nordestinos

se acham todos no Rio.

No Nordeste antigamente

a gente vivia bem

todo mundo trabalhava

sem se sujeito a ninguém

ao passo que hoje em dia

liberdade ninguém tem.

Pois geralmente no Norte

é somente o fazendeiro

que quer ser dono de tudo

com ambição no dinheiro

e assim vive oprimido

o pobre no cativeiro.

E o malvado usineiro

vive batendo de peia

obrigando os moradores

a trabalha de “meia”

e se algum vacilar

ainda vai pra cadeia.

Daqueles pobres sujeitos

o sofrimento é precário

porque vive escravizado

pelo latifundiário

que não fornece ao pobre

nem terreno nem salário.

Há muitos pais de família

que vive do alugado

trabalha passando fome

doente e sacrificado

para dar ao seu filho

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um pão amargo e mirrado.

(...)

Assim passa toda vida

o pobre na quebradeira

com fome e sacrificado

trabalha semana inteira

por fim o saldo que tira

não dar para ir a feira.

Eis ai qual o motivo

que obriga o nordestino

deixar se torrão amado

e sair sem ter destino

pelo mundo foragido

feito mesmo um peregrino.

Torturado pela fome

num cativeiro infeliz

depois de tanto sofre

chama mulher e diz

vamos escapar a vida

lá pelo Sul do país.

(...)

Apesar do cordel não está datado, há indícios que ele foi escrito entra as décadas de 50 e

80, essa é uma das questões que muitas vezes dificulta a pesquisa realizada através dos cordéis

para os historiadores, pois se tratando dos cordéis do século XX grande parte dos cordelistas e as

tipografias que publicavam seus folhetos não tinham a preocupação de registrar o ano de

publicação, as informações mais comuns são referentes ao local onde foi produzido e na contra

capa os dados da tipografia e o endereço pessoal do autor. No entanto esse não se torna um

obstáculo impossível de ser vencido, visto que pelo teor do texto é possível identificar

aproximadamente o período o qual foi escrito o cordel. Normalmente pelas citações de fatos,

referência à autoridade, descrição de locais e momentos, ou por expressões e/ou vocábulos é

possível situar os anos que fazem baliza do período.

A primeira consideração a ser feita sobre os versos ora citado diz respeito a escolha da

temática. Apolônio ao escrever sobre a vida dura que o nordestino leva e ao detalhas as

motivações que o levaram seu personagem a migra para o Rio de Janeiro, ele fez uma distinção

entre tantos conteúdos a serem discutidos e elegeu as dificuldades vividas pelos nordestinos como

sue preterido. As motivações que levam o autor a escolher determinado tema e não outros são

variados.

Nas três primeiras sextilhas percebemos que as palavras “Norte” e “Nordeste” são colocas

nos versos enquanto sinônimos. Isso nos remete ao discurso de Albuquerque Jr. onde afirma que

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mesmo após mudanças na divisão geográfica do Brasil, em que o país passa a reconhecer os

estados que antes faziam parte de uma única região Norte, agora passaria a ser configurada em

Nordeste. No entanto, a Bahia continuou sendo compreendida como um território a parte da

região Nordeste, não necessariamente na sua geografia institucional, pois neste sentido ela faz

parte, mas na sua imagem e na construção de uma identidade singular.

Nesse trecho acima se pode ver a descrição que o narrador faz para se justificar o fato do

seu deslocamento para o Sul do país, onde ele vai falar da escassez, do monopólio, da fome e

sofrimento que o sujeito nordestino passava em sua terra. Mas também irá relatar a expectativa

criada com o que ira encontrar no Sul, onde o nordestino tinha a imagem do lugar civilizado, que

oferece emprego, salário, moradia e alimento, ou seja, a oportunidade de uma vida melhor.

O próximo trecho de cordel citado tem por título “A Discussão do Carioca com o Pau-de-

Arara”, que trata de um diálogo entre dois personagens que defendem sua terra e a identidade que

carrega dela, tendo uma ação de autodefesa. Mas não apenas os personagens se defendem, na

verdade existe por trás deles o narrador. Apolônio nesse diálogo também vai se defender dos

estereótipos já difundidos sobre o Norte/Nordeste, e vai também expor a sua percepção da

identidade construída do individuo carioca que também é carregada de símbolos. Vejamos:

N. — Disse o nortista é porque

nosso Rio de Janeiro

precisa do nordestino

pois é um povo ordeiro

pra quem derrama suor

aqui no Rio é melhor

para se ganhar dinheiro

C. — Mas no Rio de Janeiro

tem operário de sobra

não precisa nordestino

vir aqui fazer manobra

nordestino é atrevido

aqui já é conhecido

por camondonga de obra

N. — Você me diz isso tudo

pra me desclassificar

mas aqui as companhias

preferem mais empregar

os nordestinos que vem

pois carioca não tem

coragem de trabalhar

Para Benjamin a fonte que inspira cada narrador são suas experiências pessoais, ele chega

a dizer que “[...] entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das

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histórias orais.” (BENJAMIN, 1993, p. 198). Não obstate desse conceito estão os cordelistas, que

com base nas suas histórias de vida, suas trajetória e no cotidiano de onde vivem e/ou viveram

narraram suas histórias e constroem seus personagens.

Percebemos que nos cordéis de Apolônio a sua trajetória esta diretamente associada às

narrativas dos cordéis. Quando ele se refere ao nordestino que saiu do Norte/Nordeste devido às

mazelas sofridas e foi para o Rio de Janeiro em busca de uma vida melhor, onde conseguiu

emprego na construção civil, na mais é do que o relato do caminho que ele trilhou. Ou seja, o

narrador se revela através dos seus personagens fazendo uma delimitação tênue entre ficção e

realidade.

Observemos um terceiro cordel de Apolônio que tem por título “A Briga de Zé do Norte

no Morro da Mangueira”:

(...)

Um certo dia no morro

ele viu uma morena

roxinha cor de canela

formosa qual a Açucena

pra conquistar a pequena.

A morena tinha o corpo

do tipo de um violão

mas gostava dum malandro

por nome Bernadão

mas Zé do Norte queria

pegar aquele peixão.

O Zé chegou-se pra ela

cheio de filosofia

sorrindo falou pra ela:

Desculpe minha ousadia

antes de hoje, parece

que eu já lhe conhecia!

Ela disse: Não senhor

a gente as vezes se engana

há pessoas parecidas

não sou daqui, sou baiana

que cheguei da Bahia

não faz nem uma semana.

(...)

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Na segunda sextilha desse cordel apresentado encontramos a descrição de um

personagem feminino que esta em volta de características que nos remetem ao que

Vasconcelos (2012) chamou de baianidade. Uma mulher de corpo bonito, quadril largo,

cor “morena”. Ainda é possível perceber que o autor coloca sua personagem para se

apresentar como baiana que acabará de chegar da Bahia, e nenhum momento do cordel

essa personagem é identificada ou se reconhece como nordestina ou mesmo “do Norte”

como é o caso de Zé, o personagem principal que se nomeia como “Zé do Norte”. A

mulher está relacionada diretamente à Bahia que não é percebida como parte do

Nordeste, nem pelos narradores dos cordéis, tão pouco pelos suldistas, tem

características próprias. Assim para Vasconcelos:

As imagens da Bahia, associadas principalmente à mestiçagem, à

alegria, à sensualidade e à religiosidade, marcada pela origem

africana, foram construídas e organizadas, sobretudo, a partir da

literatura [...], da música [...] e de todo um aparato acadêmico,

artístico e televisivo reunido em torno deles. Esse conjunto de

referencias produzira um forte referencial imagético-discursivo no

qual a Bahia é vista para o Brasil e para o mundo, até os dias de hoje,

como um lugar emblemático de felicidade. (VASCONCELOS, 2012,

p. 87)

Os cordelistas apresentam um discurso sobre sua região de duas maneiras, ora de

forma positiva enaltecendo a força do nordestino, a honestidade, o empenho no

trabalho, o desejo de superação, a valentia, ora o Norte/Nordeste é contemplado de

forma negativa referindo-se ao espaço como lugar de fome, mazelas, falta de trabalho,

lugar de dominação e esquecimento. Para Vasconcelos (2012, p. 75) isso configura-se

uma dicotomia quanto a configuração da construção da identidade brasileira, e que

abandona a idéia de homogeneidade de cultura e identidade nacional.

Em contra partida o Sudeste está no seu auge de desenvolvimento industrial e

expansão de sua economia. Os anos 50 foram de grandes e importantes mudanças

socioeconômicas para o Brasil. Do desenvolvimento industrial incentivo pelos governos

de Getúlio Vargas e dado continuidade com a presidência de Juscelino Kubitschek. Por

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consequência é neste mesmo período que teremos um significativo aumento no êxodo

rural.

Ainda na década de 50 iniciou as transmissões de televisão, que mudou

consideravelmente a forma de acesso a informação para a sociedade. Segundo Walter

a informação que chega a sociedade acompanhada de explicações sobre os fatos

relatados é responsável pela diminuição da "arte da narrativa" (BENJAMIN, 1993).

Assim essa pesquisa objetiva perceber como a produção de narrativa dos cordéis se

afirmou diante nos novos avanços tecnológicos.

Os folhetos de cordel será o principal objeto de estudo neste projeto, é uma

literatura que nasceu das tradições populares dos trovadores o que imprescindível

afirmar que o cordel torna-se assim uma literatura popular originalmente oral. É na

Europa que ganha corpo e densidade, saindo da oralidade e passando a ser registrada

através dos versos nos folhetos. Recebeu o nome de cordel pelo fato de ser expostas em

barbantes; assim, os trovadores atraiam o público e divulgava suas histórias e

acontecimentos em feiras e quermesses.

O cordel chega ao Brasil no século XVIII através dos portugueses, apesar de sua

origem na Península Ibérica medieval, é na região Nordeste que vai encontrar o seu

melhor espaço e maior receptividade. Aliando as tradições culturais do nordestino, às

suas histórias, lendas e crenças o cordel torna-se um meio de comunicação entre as

comunidades do sertão brasileiro.

Por muito tempo os cordelistas fizeram o papel dos jornalistas na região

Norte/Nordeste; contavam os acontecimentos dos vilarejos vizinhos, divulgavam as

últimas notícias e fortaleciam a fé e a esperança da população. Era, portanto, um eficaz

meio de comunicação em regiões geograficamente, socialmente e materialmente

separadas.

Torna-se importante perceber que neste trabalho as poesias dos cordéis estão

sendo observadas enquanto narrativas, sejam elas de fatos ocorridos ou não. Isso

significa que ainda que a história relatada por um poeta em seu cordel não tenha de fato

ocorrido, essa história não deixará de ter importância para analise de elementos que

caracterizam a identidade local. Afinal estas histórias originam das memórias dos

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cordelistas, são criações inspiradas diretamente nas suas memórias coletivas e

individuais que são preenchidas pelos acontecimentos. Para tanto Novais afirma que:

[...] à necessidade da narrativa do acontecimento para a constituição

da memória social e configuração de nossa própria identidade, e isto

independe da veracidade da narrativa; o que é necessário é que seja

narrativa do acontecimento, o “acontecer no tempo”. (NOVAIS E

SILVA, 2011, p. 18)

A ampliação dos horizontes do historiador em busca de novas abordagens o

levou a fazer contato com as ciências sociais o que possibilitou a história novos

diálogos para a produção historiográfica moderna. A narrativa histórica esta atrelada ao

tempo de acontecimento, sendo assim os cordéis utilizados num estudo historiográfico

precisam estar contextualizados, o fato de serem narrativas populares com base em

lendas ou acontecimentos reais não os isentam de situar no tempo, até mesmo para uma

melhor compreensão e dialogo (NOVAIS E SILVA, 2011).

Quando nos deparamos com a história de um cordel, uma das indagações feitas

é: seria está história real ou apenas uma lenda? Porém é preciso perceber além do que

vem a ser ficção ou realidade, pois ainda que a narrativa não tenha ocorrido de alguma

forma existe veracidade no que foi relatado, existe o empenho do narrador de fazer uso

da sua imaginação para relatar um fato ou mesmo partes dele. Nesse sentido Kramer

escreve que:

A dimensão fictícia e imaginária de todos os relatos de

acontecimentos não significa que eles não tenham realmente

acontecido, mas, sim, que qualquer tentativa de descrever os

acontecimentos (mesmo enquanto estão ocorrendo) deve levar em

conta diferentes formas de imaginação. (KRAMER, 1992, p. 136)

O cordel enquanto produção literária é a materialização de uma narrativa oral. E

o cordelista no momento de sua criação torna-se um narrador que trás, através de suas

histórias e lendas, informação ao povo. Essa reflexão nos remete ao que Khoury diz:

“Ao narra, as pessoas expressam elementos próprios de sua cultura e lidar com

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narrativas orais significa aprender os significados do que é narrado e lembrado no

próprio movimento da realidade social vivida”. (KHOURY, 2006, p. 37) Grifo meu.

Para Benjamin "O grande narrador tem sempre suas raízes no povo,

principalmente nas camadas artesanais". Assim é imprescindível pensar no sujeito

cordelista enquanto narrador, já que este tem suas histórias baseadas em seu cotidiano.

Os versos escritos nos folhetos de um cordel podem muitas vezes aparentar apenas a

narrativas de uma história ficcional, porém trás em sua estrutura as vivências,

experiências, identidades, representações, valores e tradições vividas individualmente

e/ou compartilhadas em família e no meio social.

Pensar no cordel como literatura popular deve estar longe de entendê-lo como

uma literatura de menor valor, apesar de seu estudo ainda não ser plenamente

reconhecido e valorizado como das outras literaturas tradicionais na academia. Cordel

como literatura popular deve ser pensado como uma literatura oriunda do social que

alcançou e porque não dizer alcança as diversas camadas da sociedade (HALL, 2008).

Entendemos que o cordelista viajante que por alguma motivação se deslocou de

sua terra natal, continuou ligado ao seu povo às suas tradições, transcrevendo a

saudades e lembranças nos versos que agora também são acrescidos de informação e

fatos de uma sociedade que difere muito da sua original. Mas ao mesmo tempo

precisamos criar um diálogo desses cordelistas com os cordelistas que não deixaram sua

terra mesmo com todas as suas mazelas (BENJAMIN, 1993).

Neste trabalho faremos uso das memórias de homens artistas que vivem/viveram

um presente particular que os marcaram e serviram de inspiração para o registro de suas

vivências culturais nos versos de sues cordéis. Pierre Nora afirma "(...) tudo que hoje é

chamado de memória não, portanto, memória, mas já história (...) o dever da história faz

de cada um o historiador de si" (NORA, 1993). Por tanto analisaremos uma história

construída pela memória popular de pessoas que deixaram de ser apenas artistas da

poesia para também tornarem-se sujeitos históricos.

Dialogar com a memória dos sujeitos é perceber como estes constroem e

reconstroem suas experiências, é ter a possibilidade de ler no silêncio, nos gestos, na

respiração pausada as informações não verbalizadas e que muitas vezes torna-se, como

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disse Portelli "a informação mais preciosa" (PORTELLI, 1997). Ao contrario das

fontes escritas tão utilizadas pela história tradicional onde as informações são diretas, as

fontes orais estão suscetíveis a interpretação do pesquisador.

Através da literatura popular acreditamos ser possível a compreensão das

particularidades características de uma região, pois os poetas exprimem de forma

natural seus valores, seu cotidiano, suas crenças. Sendo assim o estudo dos cordéis

tornou-se neste trabalho imprescindível já que nosso objetivo é perceber as construções

da identidade nordestina.

Estamos cientes que este projeto ainda há muito a ser amadurecido,

principalmente no decorrer das pesquisas em que seus caminhos podem se alterar,

porém não queremos perder de vista o centro dessa discussão, que são os estudos da

literatura de cordel. Entendemos que está literatura é de fundamental importância para

os estudos culturais e idetitários da região nordeste, e que está deve ser reconhecida pela

academia como uma literatura de valor igual a qualquer outra literatura considerada

erudita.

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