a cidade das mulheres: o poder feminino no...

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1 A CIDADE DAS MULHERES: O PODER FEMININO NO CANDOMBLÉ DA CIDADE DE EUNÁPOLIS (1970 2013) 1 André de Jesus Lima 2 1. INTRODUÇÃO O candomblé, enquanto religião brasileira criada a partir de uma matriz religiosa e política já existente em África tinha em seus primórdios o objetivo principal reconstruir os modelos culturais a partir das novas influências e da assimilação entre as diferentes etnias africanas presentes dentro de um mesmo território em solo brasileiro. Isso se deu devido à assimilação entre as diferentes etnias africanas importadas para o Brasil em contato com as influências culturais brasileiras, que acabaram por gerar um novo modelo religioso denominado de afro-brasileiro. O Candomblé Baiano é conhecido dentro e fora do país por conta de seu pioneirismo e de sua riqueza cultural. As cores, as vestes, as danças e o toque ritmado dos atabaques atraem pessoas de vários locais do Brasil e do mundo para adentrarem as portas dos Ilês, o que dá à religião o seu caráter acolhedor, recebendo todas as pessoas dentro de seus domínios, independente de sua cor, orientação sexual e poder aquisitivo. Entretanto, não é apenas o teor mítico e alegre com que o Candomblé Baiano se apresenta que atrai olhares curiosos. As características ímpares da religião afro-baiana despertam o interesse e gosto pela pesquisa científica do Candomblé por parte de muitos historiadores, antropólogos, sociólogos e outros. A produção científica acerca do Candomblé é vasta, e quando se fala em Candomblé da Bahia um dos pontos que mais chama a atenção é o poderio das mulheres enquanto líderes dessas instâncias religiosas. Entretanto, os estudos acerca do poder feminino do Candomblé e suas implicações no meio social, ideológico e político centram-se na capital baiana, Salvador, e as cidades que compõe a região do Recôncavo Baiano. Com isso é plausível induzir que a religião afro- baiana é uniforme, que o Candomblé se apresenta em outras partes do estado tal qual é visto 1 Artigo extraído do Trabalho de Conclusão de Curso que leva o mesmo tema. 2 Acadêmico do curso de Licenciatura em História pela Universidade do Estado da Bahia Departamento de Ciências Humanas e Tecnologias / Campus XVIII Eunápolis.

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A CIDADE DAS MULHERES: O PODER FEMININO NO

CANDOMBLÉ DA CIDADE DE EUNÁPOLIS (1970 – 2013)1

André de Jesus Lima2

1. INTRODUÇÃO

O candomblé, enquanto religião brasileira criada a partir de uma matriz religiosa e

política já existente em África tinha em seus primórdios o objetivo principal reconstruir os

modelos culturais a partir das novas influências e da assimilação entre as diferentes etnias

africanas presentes dentro de um mesmo território em solo brasileiro. Isso se deu devido à

assimilação entre as diferentes etnias africanas importadas para o Brasil em contato com as

influências culturais brasileiras, que acabaram por gerar um novo modelo religioso

denominado de afro-brasileiro.

O Candomblé Baiano é conhecido dentro e fora do país por conta de seu pioneirismo e

de sua riqueza cultural. As cores, as vestes, as danças e o toque ritmado dos atabaques atraem

pessoas de vários locais do Brasil e do mundo para adentrarem as portas dos Ilês, o que dá à

religião o seu caráter acolhedor, recebendo todas as pessoas dentro de seus domínios,

independente de sua cor, orientação sexual e poder aquisitivo. Entretanto, não é apenas o teor

mítico e alegre com que o Candomblé Baiano se apresenta que atrai olhares curiosos. As

características ímpares da religião afro-baiana despertam o interesse e gosto pela pesquisa

científica do Candomblé por parte de muitos historiadores, antropólogos, sociólogos e outros.

A produção científica acerca do Candomblé é vasta, e quando se fala em Candomblé da Bahia

um dos pontos que mais chama a atenção é o poderio das mulheres enquanto líderes dessas

instâncias religiosas.

Entretanto, os estudos acerca do poder feminino do Candomblé e suas implicações no

meio social, ideológico e político centram-se na capital baiana, Salvador, e as cidades que

compõe a região do Recôncavo Baiano. Com isso é plausível induzir que a religião afro-

baiana é uniforme, que o Candomblé se apresenta em outras partes do estado tal qual é visto

1 Artigo extraído do Trabalho de Conclusão de Curso que leva o mesmo tema. 2 Acadêmico do curso de Licenciatura em História pela Universidade do Estado da Bahia – Departamento de

Ciências Humanas e Tecnologias / Campus XVIII – Eunápolis.

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na capital. Porém, não é isto o que ocorre na realidade. A massiva produção antropológica e

historiográfica sobre a religião afro do recôncavo relega a segundo plano as características

afro religiosas particulares a outras regiões do estado, onde estas deixam de ser observadas em

sua cosmologia e passam a fazer parte do todo. Ao trazer à tona a história e a tradição dos

candomblés baianos de outras localidades baianas, a saber, da região extremo sul mais

precisamente na cidade de Eunápolis, abre-se uma porta para que estudos acerca de outras

cidades baianas apareçam no intuito de evidenciar a pluralidade dentro do universo já plural

do Candomblé Baiano.

Os terreiros de Candomblé da cidade de Eunápolis são, em sua maioria, liderados por

forças femininas. Foi observado desta forma que estas forças de liderança constituem um rico

objeto de análise, uma vez que a imagem da sacerdotisa faz parte da história local, uma vez

que as mesmas viram a cidade se expandir e se desenvolver. As Mães de Santo na cidade

foram selecionadas segundo seu tempo de instalação na Cidade e reconhecimento no

município e nas localidades em que atuam como sacerdotisas. São elas: Mãe Luziene de

Logunedé, Yalorixá3 do Terreiro Logunedé, e Mãe Nancy de Iemanjá, Yalorixá do Tereiro

Kaiari Junçara.

2. PODER FEMININO: A ÁFRICA E AS AFICANIDADES NO BRASIL

Ao longo da história as sociedades humanas foram centradas no ideal masculino de

detenção do poder, seja ele nas mais diversas áreas: social, político, econômico e também

religioso. No que tange à África, Pierre Verger em seu artigo intitulado A contribuição

especial das mulheres ao candomblé do Brasil traz o estatuto das mulheres em África que,

atendo-se às características dos povos iorubás, mostra que as famílias eram polígamas, e que

como progenitoras de descendência, as mulheres eram valorizadas. Dividindo o espaço com

as outras esposas de seu marido, cada mulher angariava sua independência por buscar outras

fontes de renda, e assim não ater-se somente ao que recebia de seu esposo. Excelentes

mercantes que eram, iam a povos vizinhos ou até mesmo em terras mais longínquas

comercializar produtos fabricados por elas mesmas.

3 Liderança feminina do culto religioso afro brasileiro. O mesmo que “mãe de santo”.

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Esta prática, segundo Verger, fez com que muitas mulheres possuíssem maior poder

aquisitivo que seus maridos, o que, todavia, não extinguia a obrigação do mesmo em prover o

sustento delas e de seus filhos. Neste modelo de família, os filhos vivam em torno da mãe,

sendo ela, para eles, a figura central do convívio familiar, uma vez que o pai dividia a atenção

entre as várias esposas e os vários filhos que possuía. Como não existiam boas relações entre

filhos de mesmo pai e de mães diferentes, cada subfamília era concentrada em torno de sua

progenitora, ou seja, a mulher.

Este modelo de mulher ativa e independente africana também é enfatizado no artigo de

Teresinha Bernardo intitulado “O Candomblé e o poder feminino” quando fala que o espaço

das feiras era predominantemente feminino, e era de lá, da prática mercante que essas

mulheres conseguiam sua independência e estabilidade financeira. Segundo a autora:

Evidencia-se que essas trocas realizadas nas feiras tanto podem ser para a

subsistência como para alguma acumulação. Neste último caso, é importante

sublinhar, a mulher não está trabalhando para o cônjuje. Ela compra a colheita do

marido, a revende na feira e fica com o lucro. Nessa perspectiva, pode-se avaliar a

autonomia da mulher iorubá: deixa a própria família, se embrenha em caminhos

distantes para chegar às feiras; compra a produção de seu próprio marido, revende e

permanece com o lucro; é, enfim, uma ótima comerciante. (BERNARDO, 2005, p.

02)

A autora pontua a feira enquanto local propício ao enriquecimento não somente

material, mas principalmente o enriquecimento cultural dessas mulheres, uma vez que ao

estabelecer o contato comercial, estreita as relações sociais e ocorre a troca de bens

simbólicos. Neste aspecto, é perceptível o papel da mulher africana, que atua como mediadora

de bens econômicos e culturais, detendo assim o poder e o controle sobre o seu núcleo

familiar e financeiro. Sobre o núcleo familiar, Bernardo enfatiza o modelo poligâmico de

casamento como ponto fundamental para a ascensão da mulher neste espaço, atestando assim

a afirmação de Verger. Segundo a autora:

Se, para algumas interpretações, o casamento de um homem com várias mulheres

indica a submissão feminina, pode-se interpretar esse fato preliminarmente como

Verger, ao mostrar que a dominação masculina dilui-se entre várias mulheres. Essa

versão, aliada ao dado das “mulheres no mercado”, das “ótimas comerciantes” que

conseguem amealhar fortunas consideráveis – o que as torna, muitas vezes, mais

ricas que seus próprios maridos (mesmo porque é da competência masculina a

subsistência das mulheres e filhos) – faz com que a versão vergeriana sobre a

poliginia e a autonomia feminina ganhe muito mais sentido. (BERNARDO, 2005, p.

03)

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Este modelo de mulher ativa e independente africana teve sua ressignificação em

território brasileiro. A figura materna, batalhadora e – porque não – dominadora feminina se

fez visível nos primórdios da fundação das primeiras casas de candomblé de Salvador. As

figuras femininas presentes na obra de Ruth Landes intitulada “A Cidade das Mulheres”

atestam essa afirmação, pois, de forma clara e direta coloca a mulher, mais especificamente as

figuras autoritárias femininas do candomblé, dentro de uma análise de que tudo dentro do ilê

girava em torno da figura da mãe de santo, e que esta, era independente de homens para

garantir o sustento de sua casa e de seus filhos, sejam eles carnais ou espirituais, uma vez que

a figura materna, segundo Landes, muitas vezes não fazia distinção.

O que se pode assimilar entre as obras de Teresinha Bernardo, Pierre Verger e Ruth

Landes no que tange à figura feminina no poder é que foi graça à força e emprenho feminino

que as tradições das religiões afro-brasileiras se mantiveram firmes e praticamente intactas ao

longo dos séculos. É importante lembrar que o candomblé é uma religião concebida no Brasil

e que os modelos e tradições africanos serviram como base para sua construção. Estes

modelos de alguma forma foram resinificados e adaptados em solo brasileiro. Isto também se

enquadra nas relações de gênero à frente das instâncias de poder religioso. A importância da

mulher em África é inegável, como aponta Verger, e essa importância foi deveras essencial

para a construção das instâncias afro-religiosas no Brasil.

A partir desses modelos a construção do poder feminino nos cultos afro-religiosos

ganhou espaço e se tornou o principal ponto de tradição de muitos terreiros. Obviamente as

escravas também angariavam recursos financeiros para libertar seus esposos, filhos, e outros

homens do seu círculo familiar, porém a iniciativa e liderança destas práticas permaneceram

sob a égide feminina. Assim sendo, a figura feminina permaneceu intrínseca às relações de

poder afro-religioso, tornando as Yalorixás verdadeiros alicerces em muitas casas de tradição

da Bahia, pois assumiam o papel não apenas de força e poder religioso mas principalmente

como chefes mantenedoras de um grande contingente familiar, seja ele sanguíneo ou

espiritual.

3. A CIDADE DE EUNÁPOLIS: HISTÓRICO ECONÔMICO E RELIGIOSO DA

CIDADE E AS RELAÇÕES COM AS YALORIXÁS

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As duas Mães de Santo pesquisadas possuem um histórico de vida em comum: não são

nascidas na cidade e desde muito jovens estabeleceram contato com o as religiões afro-

brasileiras. Tanto Mãe Luziene quanto Mãe Nancy são baianas, porém não nascidas em

território eunapolitano. Moradoras da cidade de Eunápolis desde um tempo que antecede a

emancipação política, as três entrevistadas vivenciaram o desenvolvimento social, político e

econômico do local ao longo das décadas. Falam do povoado simples e pacato que era o Km

64 até a Eunápolis da madeira e dos pistoleiros que aqui praticavam seus crimes por conta da

grilagem. Falam também da Eunápolis das festas populares e das tradições religiosas que

giravam em torno do catolicismo e, mesmo que de forma camuflada, da Umbanda.

Sobre a história de Eunápolis, o jornalista Teoney Araújo Guerra em revista publicada

no ano de 2010 pela Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura Municipal intitulada

Eunápolis: passado, presente e futuro afirma que “a ocupação na área onde hoje é o

município deu-se a partir do final do século XIX, com a criação de uma pequena povoação

denominada de Córrego Grande, hoje Gabiarra” (GUERRA, 2010, p. 05). Segundo o autor, a

ocupação foi feita por posseiros oriundos do estado de Minas Gerais, que aqui chegando se

instalaram no vale do Rio Buranhém.

Guerra afirma que a construção da BR 101 foi de grande importância para o

desenvolvimento da região, sendo assim a veia que ligava a região cacaueira do sul baiano à

divisa com o estado do Espírito Santo. Um pouco antes, nos idos de 1946 a 1948 no local

onde atualmente é o centro urbano da cidade nasceu um acampamento de trabalhadores que

atuavam na construção da estrada que hoje é a BR 367 ligando Eunápolis a Porto Seguro, na

época chamada de “ramal”. Neste tempo, o nome que o povoado recebeu foi o de Km 64 em

referência à distância do município de Porto Seguro (GUERRA, 2010, p. 05). As

entrevistadas começam a narrar suas histórias com a cidade de Eunápolis deste período em

diante, momento em que as rodovias já estão em pleno funcionamento e que a cidade começa

a desenvolver o seu maior e mais rentável ciclo econômico: a madeira.

Com base nos relatos das depoentes, é possível perceber que a principal atividade

econômica da cidade nas décadas de 1970 e 1980 era a extração e comercialização de

madeira. Segundo Mãe Nancy no início da década de 1980:

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“Tinha não sei quantas cerrarias aqui de móveis, de vender pau de vender isso,

vender aquilo. Eu acho que o que movimentava aqui era mamão e esse negócio de

serraria.” (SILVA, Nelci Gomes da. Entrevista cedida a André de Jesus Lima no dia

01/04/2014).

Mãe Luziene vai mais longe, e quando indagada sobre a principal atividade econômica

da cidade na década de 1970, é enfática em responder que a madeira era o grande potencial da

cidade. (SILVA, Luziene Almeida. Entrevista cedida no dia 05/06/2014).

Segundo os depoimentos, é possível perceber o cenário político e econômico da cidade

em seu apogeu do ciclo madeireiro. Teoney Araújo Guerra em revista publicada no ano de

2010 pela Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura Municipal intitulada Eunápolis:

passado, presente e futuro afirma que o ciclo madeireiro em todo o extremo sul se deu após a

construção da BR 101 no ano de 1973. Segundo o autor:

A conclusão da BR 101 em abril de 73, deu início a um período de grande

crescimento e prosperidade em todo o extremo sul baiano, com a exploração da

madeira, que se deu com a instalação de centenas de serrarias, que fizeram surgir

diversas pequenas povoações que logo viraram povoados e depois cidades.

(GUERRA, 2010, p. 20)

Guerra pontua – segundo dados da Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais

da Bahia – um número estimado de 60 serrarias instaladas na Eunápolis da década de 1970, o

que gerava um volume aproximado em 200 caminhões de madeira por semana, o que atesta a

fala de Mãe Luziene ao afirmar que a madeira era o grande negócio de Eunápolis na década

de 1970 e que a grande geradora de emprego na região era a madeira. Segundo Guerra “cada

serraria empregava quarenta, cinquenta ou mais pessoas” (GUERRA, 2010, p. 23).

No que tange ao ciclo madeireiro das décadas de 70 e 80 em Eunápolis Guerra

enfatiza o ar de riqueza e prosperidade, o que também é perceptível nos diálogos com as

depoentes, uma vez que alguns dos grandes madeireiros4 que aqui possuíam suas empresas

frequentavam os espaços familiares e, consequentemente, religiosos dessas Mães de Santo, o

que lhes dá proximidade com as informações e assim enfatiza o teor dos dados colhidos nas

entrevistas. Este momento próspero da cidade entre a segunda metade da década de 1970 e

diante está descrito na obra de Guerra:

Com as serrarias, vieram também as empresas de assistência técnica de tratores,

veículos e máquinas, lojas de autopeças, postos de combustíveis, entre muitos outros

4 Por motivos de sigilo, as entrevistadas não citaram os nomes dessas pessoas, e quando citam, não os mencionam como clientes diretos.

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negócios de setores afins. A atividade promoveu uma verdadeira transformação na

economia do povoado: gerou milhares de empregos diretos e indiretos, atraiu novos

empreendimentos, empreendedores e milhares de novos moradores. (...) Assim, a

“indústria madeireira” revigorou o comércio e criou condições para o crescimento

do setor de serviços. (GUERRA, 2010, p. 23)

No entanto, junto com o desenvolvimento econômico, veio também a criminalidade. A

disputa por áreas de terra era constantemente a causa da maioria dos assassinatos na região.

Quando indagada sobre a sua primeira impressão sobre Eunápolis, Mãe Nancy cita que na

década de 1980 a cidade era uma local muito violento por conta principalmente da grilagem

que era comum na região. Ela diz:

“Hi, era muita morte, era muitos crimes, era muito... era muita invasão de terras dos

outros, por isso que a gente veio pra cá (...).Muito violenta... matava 10 hoje e

guardava 20 pra amanhã, era isso (...).Por causa de terras dos outros.Umas terras de

uma gringa que tinha aí que todo mundo queria tomar as terras da mulher... foi isso.”

(SILVA, Nelci Gomes da. Entrevista cedida no dia 01/04/2014).

Estes dados também estão na obra de Guerra quando diz:

O desenvolvimento trouxe também a violência, que se estabeleceu no povoado,

especialmente em razão das disputas por áreas de matas, que disseminaram os

crimes de mando e a ação de quadrilhas que roubavam madeira ou que simulavam a

venda para matar e roubar empresários. Foi a era dos pistoleiros; de temidas

organizações criminosas, que foram denominadas de “sindicato do crime”.

(GUERRA, 2010, p. 23)

A chegada de Mãe Nancy na cidade se deu em meio a este momento de turbulência

social e política da cidade. Seu esposo, conhecido como Escrivão Pinha, era escrivão da

polícia civil em Salvador, local onde se conheceram e se casaram e, segundo a mesma, foi

transferido para a localidade de Eunápolis para a instalação do primeiro posto policial

conforme diz:

“Mas meu marido veio porque ele era escrivão. Ele veio com mais de 50 policiais

pra cá... botaram uma delegacia especial ali na rua Espírito Santo. Que vinda essa,

meu pai morando aqui chamou ele pra ficar aqui, morando aqui. (...)Antônio Carlos

Magalhães deu carta branca pra Dr. Torres vir botar essa delegacia aqui pra acabar

com a pistolagem.” (SILVA, Nelci Gomes da. Entrevista cedida a André de Jesus

Lima no dia 01/04/2014).

Numa época em que os limites territoriais estavam em expansão e a economia estava

em seu apogeu, a truculência com que ocorria as tomadas de terra por parte dos posseiros

afetava diretamente a população que, segundo uma das entrevistadas, vivia com medo de tanta

violência.

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A população da Eunápolis das décadas de 1970 e 1980 era composta de pessoas

humildes, em sua grande maioria, trabalhadores rurais e funcionários das grandes serrarias

existentes na localidade. As casas, segundo Guerra a povoação era formada por casas em sua

maioria de taipa e cobertas por “taubilhas” (GUERRA, 2010, p. 13). Em momento de

conversa informal não gravada, Mãe Luziene conta que quando chega em Eunápolis, mais

precisamente no bairro Juca Rosa, onde reside e atua como Sacerdotisa até a atualidade,

existia ali não mais que algumas casas simples, de taipa ou madeira, cobertas de taubilhas e

com moradores bastante humildes, o que atesta as afirmações de Guerra citadas

anteriormente. A entrevistada fala sobre o bairro Juca Rosa quando ela chega na cidade:

“Aqui tinha a minha casa, tinha... em sim, aqui no bairro tinha treza casas – aqueles

casebrezinhos, cobertos de taubilha. A primeira casa coberta de telha aqui neste

bairro foi a minha. Porque as outras que tinham aqui eram tudo de talbilha... aqueles

casebrezinhos. (...) Aí o pessoal foi comprando terreno e foi construindo... e aquelas

casinhas humildes foram se acabando.” (Maria Luziene Almeida Silva . Entrevista

cedida a André de Jesus Lima em 27/02/2014)

No que diz respeito ao cenário religioso, no momento da chegada das Yalorixás à

cidade, o Catolicismo, o Protestantismo e a Umbanda eram as religiões atuantes. A cultura e a

tradição local, entretanto girava majoritariamente em torno do catolicismo por conta das

festividades religiosas como procissões e quermesses. No entanto, a Umbanda possuía um

grande numero de adeptos e, segundo os relatos, templos religiosos em um significativo

número. Mãe Luziene, em sua fala explica que no momento de sua chegada na cidade, na

década de 1970, existiam no bairro Juca Rosa a Igreja Católica de São José e uma igreja

Assembleia de Deus e vários terreiros de Umbanda. A entrevistada afirma:

“Aqui tinha... quando eu cheguei pra aqui não tinha casa de Angola – aqui no bairro

Juca Rosa – tinha Seu Feliciano, aqui do lado – que foi de que eu comprei essa área

de terra, que ele trabalhava na Umbanda – Tinha Dona Nenê, Dona Sinhá – que era

mãe de Dona Natalina, que ela deu... Deus levou ela e ela deu continuidade aos

trabalhos... continuou com essa casa aberta – E tinha Seu Zé Roco lá na cidade, e

outras pessoas mais aqui que eram Umbanda. Depois com o correr do tempo veio

Dona Maria Sindoyá, veio Dona Valdice, veio o Gum, veio o Cristiano, veio o

(pensativa) Pai Lucas, e daí por diante.” (Maria Luziene Almeida Silva. Entrevista

cedida a André de Jesus Lima em 13/02/2014)

Segundo a fala supracitada, é possível perceber que eram muitos os terreiros de

Umbanda não apenas no bairro Juca Rosa, mas em toda a cidade. Mãe Nancy, que chega na

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cidade no final da década de 1980 e fala que no bairro do Pequi existia apenas a Paróquia São

Francisco de Assis e duas igrejas evangélicas às quais não se recorda quais especificamente.

Neste momento, Segundo Mãe Nancy, já existiam terreiros de Angola na cidade, citando

inclusive Mãe Pequena e Mãe Luziene como já instaladas na cidade e com seus terreiros em

funcionamento.

Nenhuma das Yalorixás relata perseguições a seus terreiros no momento em que

chegaram. Pelo contrário, afirmaram ter uma boa relação com os padres da época, uma delas

afirmando até que uma missa foi celebrada em seu terreiro no dia da inauguração. Sobre a

relação com líderes de religiões protestantes Mãe Nancy afirma:

“São todos meus amigos. Pelo menos os evangélicos que eu conheço são todos meus

amigos. Falam comigo, me tratam bem, eu trato eles bem... tenho nada a ver com

eles e eles comigo não... Nunca, nunca buliram comigo.” (Nelci Gomes da Silva.

Entrevista cedida a André de Jesus Lima em 01/04/2014)

Mas nem todas as opiniões são iguais no que tange à relação com as religiões

protestantes. Mãe Luziene afirma que inicialmente não teve problemas com nenhuma igreja

protestante. Entretanto, não haviam relações, sejam elas boas ou ruins, o que denota certo

afastamento entre o Candomblé de Mãe Luziene e o Protestantismo do bairro Juca Rosa. Esta

relação passou a ser conturbada nos últimos anos da atualidade pois, segundo a depoente:

“Há uns 3 anos passados foi que um pessoal da Igreja Evangélica5 – aqui no bairro

Juca Rosa – começaram a me perseguir... rodando a minha casa toda de sal, jogando

sal na minha casa, botando crianças pra me xingar... mas o meu marido foi até ao

pastor e conversou com ele e a partir desse dia ninguém mais me aborreceu.” (Maria

Luziene Almeida Silva. Entrevista cedida a André de Jesus Lima em 13/02/2014)

Apesar dos infortúnios, Mãe Luziene afirma não haver mais nenhum tipo de

perseguição direta a seu terreiro. Mãe Nancy, como já informado, não relata nenhum tipo de

abuso a seu templo por parte de outras religiões. No entanto, segundo Mãe Luziene, o quadro

de disputa por fiéis entre as diversas religiões presentes na cidade tem afetado o contingente

humano de seu terreiro, onde é possível analisar que este é possivelmente um processo

desencadeado não apenas no terreiro de Mãe Luziene, mas também em vários outros terreiros

da cidade. Segundo ela:

5 O nome da instituição religiosa foi preservado a fim de evitar conflitos posteriores entre os dois segmentos

religiosos.

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“Quando eu inaugurei tinha muito mais gente do que hoje. Porque antigamente não

existia tanta igreja evangélica – não estou criticando... que cada um que pegue a sua

cruz e siga, e respeitem a Deus e se rejuntem pra falar de Deus da maneira deles, eu

não sou contra religião nenhuma – então eu... aqui as pessoas me tratam muito bem

porque eu não aborreço pessoas nenhuma. E antigamente dava muita gente, dava

muito mais gente do que hoje, porque não existia tanta igreja evangélica, porque

muita gente do candomblé hoje passou pra igreja evangélica. Então diminuiu

muito.” (Maria Luziene Almeida Silva. Entrevista cedida a André de Jesus Lima em

13/02/2014)

Com isso, é possível observar que o cenário religioso da cidade é um espaço de intensa

disputa. No entanto, não é perceptível na fala de Mãe Luziene raiva ou pesar pelo fato de que

as pessoas têm migrado do Candomblé para a religião protestante, pois segundo uma fala da

própria entrevistada, “Cada qual que pegue a sua cruz e carregue”. Com isso, deixa claro

que cada indivíduo possui suas aptidões e desejos religiosos, por isso deve permanecer no

local em que se agrada. O mesmo não pode ser dito por parte de algumas denominações

neopentecostais. O episódio em que Mãe Luziene vê sua casa cercada de sal denota como os

discursos ideológicos dentro dos templos neopentecostais continuam a colocar as religiões

afro brasileiras como inferiores às cristãs.

As três Yalorixás entrevistadas mostraram lidar muito bom com essas questões, pois

demonstram fé e confiança em sua crença e pregam que o Candomblé não é uma religião de

conversão, ou seja, as pessoas por si só buscam os templos e neles adentram, seja para

consulta, iniciação ou outros fins. Através da história de vida dessas mulheres será possível

observar como esse ideal religioso inabalável foi construído ao longo de suas vidas.

4. BIOGRAFIAS: DO NASCIMENTO À ASCENÇÃO DO PODER

SACERDOTAL

Maria Luziene Almeida Silva, conhecida como Mãe Luziene, nasceu no dia 15 de

agosto do ano de 1953, na cidade de Itapetinga, oeste baiano. Criada na mesma cidade de seu

nascimento, Luziene pertencia a uma família simples, composta por sua mãe Josefa, seu pai

Eudócio e seus 27 irmãos, sendo 13 de sangue e 14 por adoção. Dona Josefa possuía um

terreiro de Umbanda, chamado Terreiro de Umbanda Ogum de Ronda, onde Luziene, a partir

de certa idade, ajudava nas funções. Segundo ela:

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“Eu já trabalhava junto com minha mão aos 9 anos, antes de ser raspada6, abiã7, eu

já trabalhava na Umbanda. Eu já ajudava a minha mãe a tirar as limpezas8,

obrigação na água, dar um banho9, minha mãe mexia muito com pessoas loucas,

pessoas precisavam antigamente, não era fácil hospital e daí eu fui me dedicando já,

junto com a minha mãe biológica.” (Maria Luziene Almeida Silva. Entrevista cedida

no dia 13 de fevereiro de 2014 a André de Jesus Lima)

Segundo Mãe Luziene, sua mãe procurava doutrinar todos os filhos dentro dos

princípios da Umbanda, sendo que ao passo que as crianças iam crescendo, iam aprendendo

os ritos e fundamentos da religião.

“A casa era muito grande. Era como essa minha. Então tinha muito espaço. Então

tinha onde as crianças brincar... nos horários de trabalho – por que não permitia

presença de criança – quando era noite, os mais novos iam dormir, e os mais velhos

participavam já das obrigações de minha mãe – como ela dava Flor segunda-feira,

sexta-feira ela dava a sessão de mesa branca – e aí os mais velhos começavam a

assistir e já começavam a ajudar.” (Maria Luziene Almeida Silva. Entrevista cedida

a André de Jesus Lima em 13/02/2014)

Crescida dentro da religião da Umbanda e acostumada com os ritos e preceitos

exigidos, Luziene desde cedo aprende no seio familiar o dia a dia da cultura afro religiosa, o

que desperta sua aptidão para a vida religiosa. No ano de 1962, com nove anos de idade,

Luziene é iniciada por Mãe Bela Baiana, Yalorixá de um terreiro da Nação Jeje situado na

cidade de Ilhéus. Quando iniciada, Luziene já ajudava sua mãe biológica com os trabalhos e

rituais de sua casa, como atesta sua fala:

“Eu não tive infância... ela reclamava muito, ela falava que eu tinha me dedicado

muito cedo à vida espiritual; porque com 9 anos – quando eu fui raspar meu santo –

eu já ajudava a minha mãe – bater ebó, as vezes tomar conta de uma pessoa doente

pra dar água, pra dar um remédio – então aí eu já fui crescendo naquele ritmo dentro

de casa.” (Maria Luziene Almeida Silva. Entrevista cedida a André de Jesus Lima

em 27/02/2014)

Depois de iniciada, a mãe biológica de Luziene, Dona Josefa, foi convidada a fazer um

trabalho, para um casal que vivia em Eunápolis e liderava um terreiro de Umbanda na cidade.

6 No Candomblé o termo “raspar o santo” significa “ser iniciado no Orixá”, uma vez que nas feituras os neófitos têm sua cabeça raspada, simbolizando o nascimento para uma nova vida. Dessa forma, quando a entrevistada diz “fui rapada” ela na verdade quer dizer “fui iniciada no Candomblé”. 7 Pessoa que frequenta determinado terreiro, ajuda nos afazeres que lhe é permitido mas que no entanto não é iniciada. 8 O termo “tirar limpeza” no Candomblé se refere aos ritos de purificação do corpo e do espírito por meio de oferendas que são passadas no corpo de quem a solicita. A nomenclatura correta seria “ebó”. 9 Banho de ervas, que no Candomblé possui o poder de purificar o corpo e descarregar as energias negativas.

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Segundo Mãe Luziene, a fama do terreiro de Umbanda de sua mãe era grande, sendo

conhecida dentro e fora de Itapetinga. Sabendo da fama de Dona Josefa, este casal resolve

convidá-la para cumprir estas obrigações. Dona Josefa traz consigo o esposo, dois filhos

biológicos, entre eles Luziene, Dedé, que futuramente viria a ser o esposo de Mãe Luziene

além alguns filhos de santo de sua casa. Esta foi a primeira vez que Luziene teve contato com

a cidade de Eunápolis, na época um povoado. Neste momento, Luziene e Dedé já recebem a

proposta de comprarem um terreno e morarem na cidade, terreno este que atualmente situa-se

a casa de morada e o Terreiro Logunedé. No entanto, não foi desta vez que Luziene se instala

na cidade. A instalação se dá alguns anos depois, quando Luziene e Dedé voltm a Eunápolis

no intuito de se estabelecer na cidade. Eunápolis havia crescido, e com ela a oportunidade de

trabalho com o Candomblé.

Apesar de iniciada no Jeje, quando chega em Eunápolis Mãe Luziene percebe que os

adeptos das religiões afro brasileiras da cidade estavam acostumados ao ritmo da Umbanda e

do Angola. Por isso, abre seu terreiro e passa a realizar seus cultos tais como da nação

Angola. Ela explica:

“Porque aqui no início, o pessoal daqui de Eunápolis em si, conta as pessoas que

gostam do Ketu e que gostam do Jeje. O pessoal gosta muito de caboclo e eu iniciei

a minha casa com caboclo, que foi o Velho Boiadeiro, quem consultava as pessoas,

que passava o banho, que passava tudo isso, era o Velho Boiadeiro, então eu não

quis deixar ele fora, porque o início da minha vida quem deu o caminho à minha

casa foi ele. Então eu não quis abandonar, então eu fui... botei o Angola na minha

vida.” (Maria Luziene Almeida Silva. Entrevista cedida a André de Jesus Lima em

27/03/2014)

Mãe Luziene viu no Candomblé de Angola uma forma de agregar dentro de um único

espaço os ensinamentos apreendidos na casa de sua Mãe de Santo junto com as tradições da

Umbanda praticadas desde criança na casa de sua mãe biológica. Segundo Mãe Luziene, esta

decisão foi acordada com sua Yalorixá Bela Baiana:

“Conversei com a minha mãe e ela concordou comigo, que o meu santo comia na

nação que ele foi raspado, tomava os rum10 – quando precisasse – e eu começasse a

minha casa da maneira que eu comecei. Que ela não ia ser contra.” (Maria Luziene

Almeida Silva. Entrevista cedida a André de Jesus Lima em 27/03/2014)

10 Momento da festa de Candomblé em que os Orixás incorporados em seus filhos, vestidos com suas roupas características e paramentados com seus adereços ritualísticos, dançam no barracão para a plateia que os reverencia.

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Após alguns anos da perda de sua mãe biológica, Mãe Luziene também perde sua Mãe

espiritual. Ela procura assim uma outra Yalorixá da mesma família de santo com quem

permanece até os dias atuais. Mãe Luziene é uma Yalorixá de grande prestígio e nome dentro

da cidade de Eunápolis, atendendo, segundo a mesma, pessoas importantes não apenas da

cidade e região, mas também de outros estados.

Nelci Gomes da Silva, conhecida na cidade como Mãe Nanci de Yemanjá nasceu no

ano de 1951 no município de Olivença, distrito da cidade de Ilhéus, na região cacaueira do sul

baiano. Filha de uma índia com um fazendeiro, Nanci viveu os primeiros anos de sua vida em

meio à zona rural, onde adorava brincar pelos pastos da fazenda de seu pai, por nome Fazenda

São João. Seus pais eram católicos, no entanto, segundo Mãe Nanci, nenhum filho era

obrigado a frequentar a igreja.

Após o divórcio de seus pais, Nanci, nesta época com cinco anos de idade, passa por

problemas de saúde. Ela explica:

“Eu tinha um problema de saúde... todo canto que eu ia tinha cobra – cobra em cima

da cama, cobra embaixo da cama e eu via aqueles negão botando fogo pela boca – aí

mandaram ele me levar na casa dessa mãe de santo. Mas não... assim... pra ela ver o

que é que eu tinha. Aí ela pediu que ele desse eu pra ela. E eu fiquei lá com ela.

Fiquei até os 16 anos.” (Nelci Gomes da Silva. Entrevista cedida a André de Jesus

Lima em 05/04/2014)

Naquela época, segundo a mesma, seu pai a levou na casa de uma Mãe de Santo

também ilheense, por nome de Benzinha. Dona Benzinha detectou que o problema de saúde

da então menina Nanci era de cunho espiritual. Solicita então ao pai de Nanci que a deixasse

com ela para que assim ela pudesse ser cuidada e criada por ela. Com este consentimento,

Nanci passa a morar na casa de Dona Benzinha, e seu pai vai morar na cidade de Eunápolis.

Nanci vive neste ambiente religioso até os 14 anos de idade. No entanto, segundo Mãe

Nanci, na época ela não acreditava em Candomblé. Não participava das funções da casa, pois

devido sua pouca idade e o fato de não ser iniciada não podia participar dos rituais secretos.

Aos 16 anos, Nanci sai da casa de Dona Benzinha e se muda para Salvador. Lá conhece o

Escrivão Pinha, um agente escrivão da polícia com quem se casou e permaneceu casada por

40 anos.

A iniciação ocorre após o casamento e em uma situação de doença. Ela explica:

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“Eu fiquei doente e fui desenganada pela junta médica lá no hospital das clínicas...

fiquei pesando 35 quilos. Aí um amigo dele convidou ele pra me levar numa festa de

caboclo – Trovezeiro – me levou e eu saí de lá 9 meses depois pesando 90 quilos.”

(Nelci Gomes da Silva. Entrevista cedida a André de Jesus Lima em 05/04/2014)

Mãe Nanci foi iniciada em 1980 no terreiro Awzidi Junçara, situado em Cosme de

Farias, bairro da capital baiana. O Axé Awzidi Junçara pertente à raiz do Axé Tumba Junçara,

tradicional raiz de Axé da nação Angola no Brasil, com casas filiais espalhadas por toda a

Bahia e outros estados. A Mãe de Santo que iniciou Mãe Nanci se chamava Maria Bernadete

dos Santos. Após a morte de sua Mãe de Santo, Mãe Nanci passa a ser filha de Valdeci Santos

Hora, Yalorixá que assumiu o terreiro Awzidi Junçara. Com um ano de feitura, Nanci sai de

Salvador e vem para Eunápolis. Seu esposo é transferido do distrito policial de Salvador para

a primeira delegacia de Eunápolis. Dessa forma, passa a morar no bairro do Pequi e depois de

receber seus direitos com a obrigação do Deká, inaugura o seu terreiro por nome Terreiro

Kaiari Junçara ao qual lidera até os dias atuais.

Mãe Nanci possui influências além dos limites nacionais. Possui filhos espalhados por

diversos estados do Brasil e também no exterior. A sua fama se dá por meio de seu trabalho

com os búzios na cabana de praia Barramares, situada na cidade turística de Porto Seguro, que

recebe centenas de milhares de turistas todos os anos. O grande fluxo de pessoas interessadas

em saber as previsões do oráculo decifrado por Mãe Nanci fez com que a mesma conseguisse

conquistar a confiança de muitas pessoas, o que a fez possuir filhos e filhas de diversas

nacionalidades.

5. O FEMININO NO PODER: AS YALORIXÁS DA CIDADE DE EUNÁPOLIS E

SUAS INFLUÊNCIAS

As duas Yalorixás pesquisadas possuem terreiros que são vistos como importantes

dentro da cidade de Eunápolis. De um lado da cidade, Mãe Luziene e o Terreiro Logunedé

conhecido pela tradicional festa do caruru de São Cosme. Do outro lado, Mãe Nanci e o

Terreiro Kaiari Junçara com a festa do Caboclo Boiadeiro. Ambas possuem suas

peculiaridades, suas influências e seus domínios. Porém um elemento as coloca em um único

patamar: Exercem grande influência e poderio dentro e fora de suas casas.

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Mãe Luziene possui vários filhos em sua casa. Os laços hierárquicos são fielmente

respeitados, de modo que o terreiro funciona como uma família unida que se une em prol de

um bem comum. O espaço físico do terreiro divide espaço com a casa de morada. E esta não é

uma característica apenas do terreiro de Mãe Luziene. Vários – se não todos – os terreiros

eunapolitanos possuem este aspecto. No caso do Terreiro Logunedé, os espaços físicos são

próximos. Este aspecto torna o Ilê uma espécie de “casa de mãe” onde todo o espaço físico

acaba sendo ideologicamente um só. Segundo Mãe Luziene:

“Os meus filhos entram no meu quarto, se tiver que tomar banho no meu banheiro,

toma, no segundo quarto que tem lá... se aqui no barracão não tem lugar mais pra

dormir, no quarto que tem, bota um colchão lá dentro da minha casa, todo mundo

gira em torno da roça mesmo. Tanto faz a casa de morada, como a casa de

Candomblé é a mesma coisa pra os meus filhos.” (Maria Luziene Almeida Silva.

Entrevista cedida a André de Jesus Lima em 27/02/2014)

Esta afirmação mostra não apenas o sentimento de afeto, mas principalmente a

proximidade que Mãe Luziene busca ter com seus filhos. O fato de trazer os filhos para perto

de si estreita os laços e facilita as relações de poder. Dessa forma, a autoridade dentro do Ilê

ocorre de forma natural, tal qual ocorre no seio de qualquer família.

A liderança da casa de Candomblé também é refletida no lar. Dentro da casa de

morada, Mãe Luziene se coloca como a chefe da casa. Ela quem ordena, quem dirige e quem

controla a casa, inclusive no que tange à esfera financeira. Segundo ela, a criação das dua

filhas ficou sob sua responsabilidade, assim como é a responsabilidades com os filhos de

santo. Neste contexto, a relação de Mãe Luziene com o esposo é tranquila. Todos os membros

da família aceita de forma natural a sua posição de chefe e mantenedora da família.

Mãe Luziene possui influências importantes na cidade. Pessoas de várias partes da

cidade, de diferentes níveis sociais frequentam sua casa. Até mesmo líderes religiosos de

outras denominações frequentam seu terreiro em dias festivos. Segundo Mãe Luziene, isto

para ela é normal, uma vez que também não vê problemas em visitar e ser visitada por

pessoas de outras religiões desde que seja respeitada – e aqui ela é enfática – como Yalorixá.

O fato de Mãe Luziene enfatizar o “ser respeitada enquanto Yalorixá” indica que sua

posição não deve ser negligenciada. Ao longo de sua trajetória construiu em torno de si a

imagem de Mãe de Santo e assim quer ser reconhecida. Policiais também frequentam sua casa

,inicialmente, por conta de seu esposo, Sr. Dedé, que possuía amizades dentro da polícia local.

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No entanto, segundo a depoente, algumas dessas autoridades também a procuravam para

outros fins de ordem religiosa, o que demonstra a influência e respeito que Mãe Luziene

exerce sobre essas autoridades.

O Terreiro Logunedé possui um calendário de festas baseado em duas festas

principais. A primeira delas refere-se ao dia 13 de maio, onde é celebrada a festa dos Pretos

Velhos, onde Mãe Luziene mescla várias comemorações em um único evento: a data em que

chega na cidade, o aniversário do esposo, a libertação dos escravos por meio da Lei Áurea, e a

rememoração e culto das entidades pertencentes ao terreiro de Umbanda de sua mãe

biológica, ao qual sempre se emociona ao se recordar. A segunda é o Caruru de São Cosme,

como é conhecido na cidade principalmente por conta da procissão que Mãe Luziene tira

durante o dia na data da festa (29 de outubro), porém, Mãe Luziene explica que na verdade a

festa do caruru é em honra a Dr. Crispin, ao qual fez uma promessa:

“A procissão foi uma promessa que eu fiz com Cosme e Damião e Dr. Crispin – os 6

irmãos – porque eu tive um problema, eu fui ajudar uma menina que foi ganhar

nenê, muito humilde, na época era muito difícil, e ela incomodou pra ganhar o filho.

A situação naquele tempo, quem tinha dinheiro ia pro hospital, quem não tinha,

ganhava em casa com parteira. Então tinha uma enfermeira aqui que era muito boa

que se chamava Guiomar. E essa menina deu a dor pra ganhar nenê e eu fui e

chamei Guiomar. E a menina fez tanto laboro na hora de ganhar nenê que foi

obrigado eu ajudar a expulsar o nenê pra poder ela a ganhar porque ela11 não queria

ficar na posição. Eu estava menstruada, então eu senti um problema... e fiz a

promessa – eu fui pro médico e tudo – e eu fiquei com medo, porque foi uma

inflamação que me deu. Então eu fiquei com muito medo porque a minha família

tem problema de câncer. Então eu fiquei com medo. Fui no médico e tudo, mas eu

estava tomando as injeções – Bezotacil, isso e aquilo – e não estava melhorando o

problema. Aí eu fui, bati o joelho no chão e pedi aos 6 mabaços que me ajudassem –

a Santa Bárbara, a São Jorge – que ajudasse – Nossa senhora da Conceição – que

esse problema sarasse, que aparecesse um remédio e eu ficasse boa... que enquanto

Deus me desse vida e saúde, na festa do Caruru de Dr. Crispin eu sairia com a

procissão com São Cosme, São Jorge, Santa Bárbara e Nossa senhora da Conceição.

Então é a origem da procissão do Terreiro Logunedé.” (Maria Luziene Almeida

Silva. Entrevista cedida a André de Jesus Lima em 27/02/2014).

Essa forte ligação com santos católicos, explica a própria entrevistada, são oriundos da

Umbanda apreendida nos laços familiares qua não foram desvinculados com o advento do

candomblé Jeje e posteriormente o Angola:

11 Quando diz “ela”, na verdade a entrevistada se refere ao bebê, apesar de não especificar o sexo da criança.

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“Eu vim de uma família que era muito católica, meu pai era católico... muito...

acreditava muito em Deus e a minha mãe também. E devido à Umbanda – porque

todo pessoal de Umbanda adora imagem – então eu já me criei com essa tradição da

imagem. Então eu não quis – porque eu raspei meu orixá – eu abrir mão de tudo isso

– eu disse à minha mãe: “raspo meu Orixá, agora a tradição, que o meu cargo é ser

Yalorixá eu não abro mão do meu altar” – porque eu me criei vendo, pedindo e

adorando. Então por isso que eu tenho as imagens aqui na roça, porque eu gosto.”

(Maria Luziene Almeida Silva. Entrevista cedida a André de Jesus Lima em

27/02/2014).

Esses laços sincréticos podem ser observados principalmente como maneira de que as

tradições familiares resistissem ao tempo e assim não perdessem a força e os seus aspectos

peculiares. Esta é uma característica do Candomblé da Bahia como um todo, e na cidade de

Eunápolis não é diferente. Um aspecto interessante ao se observado no Candomblé de Angola

eunapolitano diz respeito à mistura de aspectos das diferentes nações do Candomblé dentro de

um mesmo espaço: a Angola Milongada.

Este termo, utilizado por Sergio Paulo Adolfo em seu livro intitulado Nkissi Tata Dia

Ngunzu: estudos sobre o candomblé Congo-Angola, busca denominar e diferenciar um estilo

ritualístico do Candomblé de Angola em que internamente os rituais contnuam a ser

praticados tais quais os próprios da nação Bantu, porém esteticamente os festejos se mostram

como um mistura de elementos que envolvem as nações de Ketu, Fon, Jeje e até mesmo a

Umbanda.. Segundo o autor:

Chama-se angola milongada aquela casa que usa uma linguagem misturada com a de

outras nações, nomeando as suas divindades e qualificando-as como Orixás. Usam

muitos termos em iroubá sem preocupação com a linguagem ritual, entoam cantigas

de qualquer nação, inclusive cantigas de umbanda e procuram vestir suas

divindades, quando vêm ao barracão, o mais próximo do modelo queto. (ADOLFO,

2010, p. 51-52)

O termo “milongada” vêm de milonga, palavra bantu que significa mistura e assim é

utilizado pois neste modelo de Candomblé de Angola não há preocupação com a identidade

puramente angoleira. Este fenômeno ocorre ao longo dos anos em diversos candomblés de

Angola do Brasil. E assim também é no Candomblé eunapolitano. Por isso, Mãe Luziene

intitula-se Yalorixá, palavra iroubá, pertencente à nação Ketu, e não Mameta, ou Nengua

D’Nkissi, denominações em bantu que significam a mesma coisa, ou seja, mãe de santo.

Porém, esta foi a forma que Mãe Luziene encontrou para poder seguir com seu culto, sua

tradição, sem perder a oportunidade de angariar filhos e clientes.

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O Terreiro Kaiari Junçara liderado por Mãe Nanci é visto como mais conservador na

tradição do Candomblé de Angola. Apesar de nomear seus Nkissis com as nomenclaturas dos

Orixás, o terreiro possui a tradição de manter os toques, as danças, e a estética bantu. Mãe

Nanci é enfática em se intitular “Mameta”, e não Yalorixá. A linguagem utilizada por Mãe

Nanci ao designar objetos, carogs ou funções dentro de seu espaço religioso é o dialeto bantu.

Segundo Mãe Nanci, esta é forma com que aprendeu, e assim ela ensina a seus filhos. Sobre

essa transmissão de conhecimentos por meio da linguagem, Adolfo afirma:

A linguagem, desde que o homem tornou-se “humano”, tem sido o grande veículo

de comunicação entre elese seus pares. Cada grupo humano desenvolveu sua própria

língua e a língua tem Sid, no correr dos tempos, repositário de cultura, de

conhecimentos e de identidade. (ADOLFO, 2010, p. 53)

Este modelo tradicional seguido por Mãe Nanci não denota apenas o linguajar e o

caráter estético de seu terreiro. Denota também a sua forma firme e decidida de lidar com os

próximos à ela e com a vida. Sua casa recebe pessoas de diversos lugares do mundo e,

segundo ela, é necessário que se mantenha um nome, que se mantenha uma postura, a fim de

que seu reconhecimento e seu status de Mameta D’Nkissi não seja maculado.

O trabalho com búzios de Mãe Nanci na cabana Barramares abriu as portas para que a

mesma tivesse acesso a pessoas influentes na política e também no meio artístico. Segundo a

mesma, alguns turistas estrangeiros chegam na cidade de Porto Seguro recomendados a

procurá-la a fim de marcar uma consulta, ou fazer qualquer outro trabalho. Essas

recomendações são de pessoas que já se valeram dos serviços da mãe de santo e que indicam

seus préstimos a outras pessoas.

Foi através destra trabalho que Mãe Nanci conseguiu, junto com seu esposo, a criar os

filhos. A entrevistada afirma que o pai era presente, no entanto a sua figura materna era o

centro das relações dentro de casa. Segundo a entrevistada, o sustento da casa provinha quase

que exclusivamente de seu trabalho. A construção do terreiro também foi gerida por Mãe

Nanci, assim como sua manutenção e suprimentos em dias de festividades até os dias atuais. É

perceptível a satisfação e o orgulho na fala da depoente quando descreve sua independência

do marido no que tange ao aspecto financeiro:

“A Mãe de Santo era eu, por exemplo, eu fazia as minhas festas, eu não pedia nada

ao meu marido. Eu não ia botar, como vem 50 pessoas aqui pra dentro, eu não ia

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deixar ele – com a mixaria que ele ganhava – fazer nada. Por exemplo, a festa minha

é em outubro – do boiadeiro – em setembro eu já encho aí de coisa, compro bicho,

compro tudo. No tempo que podia matar boi na porta eu matava logo dois bois.

Então eu não dependia do meu marido pra nada.” (Nelci Gomes da Silva. Entrevista

cedida a André de Jesus Lima em 01/04/2014)

A relação da Mãe de Santo com os filhos, segundo dados da entrevista é boa. Existe o

respeito e a compreensão, bem como o pulso firme quando necessário. Todos os filhos são

tratados com igualdade e dignidade, como ela mesma explica:

“O lema da minha casa é “amor, paz e respeito”. Não gosto de fofoca, não gosto de

falsidade... quando eu vejo que algum filho de santo tá com falsidade eu vou lá na

cabana peço a boiadeiro pra tirar ele, ele sai... sem briga, sem nada... porque uma

coisa que eu quero filho é paz. Mas o lema do meu terreiro e de Iemanjá é amor...

muito amor pra ele, pra aqueles que me procuraram, aqueles que já passaram por

aqui só encontram amor.” (Nelci Gomes da Silva. Entrevista cedida a André de

Jesus Lima em 01/04/2014)

Segundo Mãe Nanci, a maioria de seus filhos são de fora da cidade, por isso sua casa

não possui calendário de festas. A única festa “fixa”, como assim pode ser chamada, é a festa

do Caboclo Boiadeiro, feita no mês de outubro. Sobre a ordem e respeito na sua casa de

Candomblé, Mãe Nanci explica:

“Não tem negócio de homem ficar agarrado com mulher, não tem negócio de você

ver coisa errada aqui dentro... tem o lado dos homens, tem o lado das mulheres – pra

não ficar agarrados – então... não tem negócio de homem tá beijando mulher aqui

dentro... então aqui o que eu quero é respeito.” (Nelci Gomes da Silva. Entrevista

cedida a André de Jesus Lima em 01/04/2014)

Como é possível notar na fala acima, a ordem e o respeito a seu Ilê são levados de

forma rígida e todos os preceitos devem ser seguidos à risca, sob a pena de deixar o terreiro

em caso de negligência. Dessa forma é observar a abrangência do poder e influência de Mãe

Nanci, que de forma amistosa e ao mesmo tempo firme lidera seu terreiro e seus filhos. Seu

trabalho com o jogo de búzios em Porto Seguro a deu visibilidade e notoriedade, sendo

conhecida assim dentro e fora do país como a Mãe Nanci de Yemanjá.

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6. ALGUMAS CONCLUSÕES

O poder e a influência das mulheres contidas nesta pesquisa se equiparam com as

descrições de Ruth Landes ao versar sobre seus deslumbramentos com as casas tradicionais da

Salvador do final dos anos de 1930. O status que as mulheres de Landes alcançam em meio à

uma sociedade machista onde todas as esferas de poder eram regidas por homens, causava

estranheza ao mesmo tempo admiração. E foi justamente esse fascínio pelo poder exercido

por estas mulheres que impulsionou o interesse da autora pela Cidade da Bahia. Da mesma

forma, o interesse pelo poderio das mulheres do Candomblé eunapolitano se deu em meio a

uma inquietação acadêmica, onde a produção acerca dessas mulheres era nula ou praticamente

inexistente.

Foi observado que as duas Mães de Santo entrevistadas exercem seus papéis não

somente de chefes religiosas, mas também chefes de família: gerenciam seus filhos carnais,

filhos espirituais, casa de Candomblé, casa de morada, e dessa forma vão agregando em torno

de si esferas de poder e dominação. Suas influências no cenário local são compreendidas

como vertentes de uma ancestralidade africana onde a independência da mulher no cenário

familiar lhe conferia notoriedade e autoridade, sendo o seio familiar gerido por ela.

Igualmente, vemos nas duas entrevistadas mulheres independentes, seguras de suas ações e

dispostas a manter suas tradições apreendias desde muito jovens tanto no ambiente de suas

famílias como no ambiente afro religioso ao qual foram inseridas. Essas mulheres buscam na

família espiritual uma forma de expressar não apenas a autoridade da Mãe de Santo, mas

também ramificar um sentimento materno que agrega filhos dentro de um espaço religioso

que há muito é tido também como espaço familiar.

O poder dentro do ilê gira em torno da figura que o lidera, estando acima deste apenas

a força e o poder sobrenatural das divindades. A Yalorixá é a principal figura feminina de

destaque e poder dentro dos terreiros estudados, por isso designa subpoderes a outras pessoas

de sua confiança e respeito dentro da casa de candomblé, dando responsabilidades e

obrigações a estas pessoas que agora passam a incorporar o quadro hierárquico da

comunidade.

O poderio das mulheres no Candomblé em meio a uma sociedade em que o homem é

sempre visto como o líder, como chefe, mostra que a religião possui a capacidade de influir

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sobre as percepções culturais dos indivíduos criando aberturas e resistências a certas temáticas

da vida social. Assim, a religião se configurou como elemento capaz de perpetuar tradições e

reconstruir culturas. Desde o aparecimento das sociedades primitivas, a religião oferece a

chave fundamental para a organização e o funcionamento da comunidade.

Os indivíduos inseridos dentro do Candomblé percebem-no não apenas como uma

doutrina, um conjunto de manifestações, mas principalmente uma filosofia de vida que possui

certa relevância e significado social para o indivíduo que a segue. Assim sendo, os terreiros de

candomblé observados são constituídos como a união de várias pessoas com condições

sociais, políticas e econômicas diferentes em uma única família, família esta liderada por

mulheres que de forma firme e pulsante exercem seu poder e influência dentro e fora de seus

domínios familiares e religiosos.

REFERÊNCIAS

ADOLFO, Sergio Paulo. Nkissi Tata Dia Nguzu: estudo dobre candomblé Congo-Angola.

Londrina, EDUEL, 2010.

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