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IV CONGRESSO SERGIPANO DE HISTÓRIA & IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DA ANPUH/SE O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64 A Ditadura Militar no Brasil e o campo cultural: os espaços de consagração Marcelo Santos 1 O desencadeamento de golpes de Estado e a entrada de militares no cenário político são características que marcam a história de diversos países latino americanos entre as décadas de 1960 a 1970. No Brasil, com o golpe de 1964, os militares assumiram funções políticas e administrativas e passaram a controlar esses campos até 1985. É necessário frisar que ao longo da história brasileira, nos momentos de crise institucional, as forças armadas surgiram como agente político atuante. Corrigir os desvios dos meios políticos e os resultados eleitorais fazem parte de um habitus dos militares instituído após a Proclamação da República. A novidade, conforme apontou o cientista político Nilson Borges Filho (2007), é que 1964 pode ser entendido como um divisor de águas da ação militar no campo político. Antes deste marco, os militares agiam no sentido do restabelecimento da ordem institucional para, em seguida, entregar o poder aos civis. Porém, após 1964 as Forças Armadas assumiram o poder e estabeleceram os limites da ação civil. Nesta nova fase, a Doutrina de Segurança Nacional 2 , ou seja, a sobreposição dos interesses da pátria 1 Graduado em História, Mestre em Sociologia e Professor da SEED-SE. [email protected] 2 Criada nos Estados Unidos no momento da Guerra Fria, a Doutrina de Segurança Nacional tem na sua base o pressuposto da existência de uma guerra total e permanente entre os países ocidentais e o comunismo. Contra esse inimigo, não existe espaço para negociação. Persegui-lo é uma tarefa que o governo norte-americano procura realizar para além fronteiras. Nesta operação, no Brasil, os aparelhos de segurança e de informação são instituídos para exercerem controles físicos e psicológicos sobre os considerados “inimigos da nação”. A implantação do terror para intimidar o inimigo e dissuadir os indecisos, as prisões arbitrárias, os assassinatos e o exílio são práticas que se sustentam a partir da adoção do Estado da Doutrina da Segurança Nacional. Além de justificar a ação dos militares sobre o “inimigo”,

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IV CONGRESSO SERGIPANO DE HISTÓRIA & IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DA ANPUH/SE

O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64

A Ditadura Militar no Brasil e o campo cultural: os espaços de

consagração

Marcelo Santos1

O desencadeamento de golpes de Estado e a entrada de militares no cenário

político são características que marcam a história de diversos países latino americanos

entre as décadas de 1960 a 1970. No Brasil, com o golpe de 1964, os militares

assumiram funções políticas e administrativas e passaram a controlar esses campos até

1985. É necessário frisar que ao longo da história brasileira, nos momentos de crise

institucional, as forças armadas surgiram como agente político atuante. Corrigir os

desvios dos meios políticos e os resultados eleitorais fazem parte de um habitus dos

militares instituído após a Proclamação da República.

A novidade, conforme apontou o cientista político Nilson Borges Filho (2007), é

que 1964 pode ser entendido como um divisor de águas da ação militar no campo

político. Antes deste marco, os militares agiam no sentido do restabelecimento da

ordem institucional para, em seguida, entregar o poder aos civis. Porém, após 1964 as

Forças Armadas assumiram o poder e estabeleceram os limites da ação civil. Nesta nova

fase, a Doutrina de Segurança Nacional2, ou seja, a sobreposição dos interesses da pátria

1 Graduado em História, Mestre em Sociologia e Professor da SEED-SE.

[email protected] 2 Criada nos Estados Unidos no momento da Guerra Fria, a Doutrina de Segurança Nacional tem na sua

base o pressuposto da existência de uma guerra total e permanente entre os países ocidentais e o

comunismo. Contra esse inimigo, não existe espaço para negociação. Persegui-lo é uma tarefa que o

governo norte-americano procura realizar para além fronteiras. Nesta operação, no Brasil, os aparelhos de

segurança e de informação são instituídos para exercerem controles físicos e psicológicos sobre os

considerados “inimigos da nação”. A implantação do terror para intimidar o inimigo e dissuadir os

indecisos, as prisões arbitrárias, os assassinatos e o exílio são práticas que se sustentam a partir da adoção

do Estado da Doutrina da Segurança Nacional. Além de justificar a ação dos militares sobre o “inimigo”,

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sobre os indivíduos e seus agrupamentos sociais, fornecia subsídios teóricos aos

militares para justificar o controle sobre as “mentes e os corpos” dos brasileiros. No

campo do aparelho de informação estatal, foi criado, em 1969, o Serviço Nacional de

Informações (SNI). Este órgão integrava a rede de espionagem, composta por agentes e

instituições civis e militares, sendo o principal elemento do Sistema Nacional de

Informações (Sisni). Tratava-se de um produtor de informações que contribuía para a

identificação dos “inimigos” do regime. Subordinados diretamente aos militares, e na

condição de reprimir e interrogar, estavam O Conselho de Defesa Interna (Codi) e o

Departamento de Operações e Informações (DOI), o Centro de Informações do Exército

(CIE), o Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (Cisa) e o Centro de

Informações da Marinha (Cenimar).

A censura aos meios de comunicação não é uma novidade na história brasileira.

Durante o Estado Novo, Getúlio Vargas criou o Departamento de Imprensa e

Propaganda para cuidar da propaganda oficial do governo e censurar os meios de

comunicação. Os militares adequaram a censura à nova configuração política,

principalmente com a implantação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em 13 de dezembro

de 1968. Por um lado a imprensa é trazida pela pena de pesquisadores e intelectuais

como defensora da democracia e vítima da censura; por outro, como aponta o

historiador Carlos Fico (2007: 188), não deve ser esquecido o fato de que “donos de

jornais, jornalistas, produtores de cinema e de televisão” também colaboram com o

regime não apenas por interesses materiais, mas também por convicção política. Não

menos relevante é a constatação de que profissionais de agências de publicidade

comercial e agentes do campo da cultura mantinham relações com órgãos culturais

estatais responsáveis por fornecer verbas para financiamentos neste campo. Isto não

a Doutrina permite a coesão do grupo que se mantém no poder. Com a existência da Doutrina da

Segurança Nacional, os pressupostos mínimos da cidadania são excluídos. (BORGES, 1997: 28-30).

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significa minimizarmos os efeitos negativos da censura imposta à peças teatrais, livros,

novelas, shows humorísticos, dentre outras expressões culturais. Mas, esta situação

demonstra quão complexa foi a relação entre artistas, censura e financiamento público e

os interesses dos agentes envolvidos nesta teia e que é uma análise simplista

percebermos essa relação apenas como um fenômeno cuja força é exercida de cima para

baixo. Nem a imprensa, nem os intelectuais e artistas, na sua totalidade, apoiaram o

golpe de 1964, ao menos uma parte destes agentes compactuou com a manutenção do

regime, ou talvez tenha até integrado os segmentos civis que contribuíram para

instituírem a ditadura dos militares no Brasil. Portanto, à sombra da ditadura, muitos

agentes e grupos sociais “deitaram em berço esplêndido”, são alguns dos “vagalumes”

da ditadura.

Com os partidos e os movimentos de esquerda perseguidos e inviabilizados, os

intelectuais e artistas utilizavam suas produções, no campo cultural, para expressar suas

insatisfações com o regime ditatorial implantado. Peças, como O Rei da Vela, de autoria

de Oswald de Andrade, eram encenadas pelo Teatro Oficina, e mostravam a realidade

do Brasil que deveria ser mudada radicalmente (RIDENTI, 2007: 145). Nessas

produções além das preocupações com o subdesenvolvimento e com o ‘caráter do povo

brasileiro’, a ‘identidade nacional’ era objeto de reflexão.

No caso da música, o movimento conhecido como tropicalismo, de 1967-8, se

destacava na música popular trazendo elementos modernos e arcaicos. Era um

movimento que procurava articular as contribuições das ocorrências culturais

internacionais daquele momento com as reflexões nacionais produzidas pelos partidos,

movimentos e intelectuais da esquerda brasileira, no final dos anos de 1950. Entretanto,

o AI-5 impôs uma pesada censura a todos os meios de comunicação.

Neste sentido, a agitação política e cultural que sobreviveu ao ano de 1964, se

findava com prisões, mortes e exílios (RIDENTI, 2007: 152). Paralelo à censura e à

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perseguição aos seus críticos, a ditadura empenhou-se num projeto modernizador da

sociedade em diversas áreas da cultura, atuando diretamente através de instituições e

órgãos criados para tal fim ou incentivando a iniciativa privada, principalmente no que

se refere aos meios de comunicação. Foram criados o Ministério das Comunicações, a

Embrafilme, o Instituto Nacional do Livro, a Funarte, a Rede Globo de Televisão3,

dentre outros. De acordo com Marcelo Ridenti:

criou-se uma indústria cultural, não só televisiva, mas também

fotográfica, editorial (de livros, revistas, jornais, fascículos e outros

produtos comercializáveis até em bancas de jornal), de agências de

publicidade etc. Tornou-se comum, por exemplo, o emprego de

artistas (cineastas, poetas, músicos, atores, artistas gráficos e

plásticos) e intelectuais (sociólogos, psicólogos e outros cientistas

sociais) nas agências de publicidade, que cresceram em ritmo

alucinante a partir dos anos 1970, quando o governo também passou

a ser um dos principais anunciantes na florescente industria dos

meios de comunicação de massa. (2007: 155)

Percebe-se que as intervenções do Estado autoritário promoveram uma nova

configuração do campo cultural, com a ampliação de instâncias de consagração para os

intelectuais da época. A intelectualidade, inclusive a de esquerda que combatia a

ditadura, paulatinamente foi se adaptando à nova situação e ocupando espaços em

3O Livro de Impressões do visitantes do Museu de Arte Sacra de São Cristóvã-SE (MASC) registra, em

1975, a visita de um dos diretores da Rede Globo. Em 1980, a mesma rede de televisão patrocina a

publicação de 1000 exemplares do catálogo do MASC. Naquela oportunidade o diretor percebia o acervo

do museu como um “vivo depoimento da Riqueza espiritual desta terra”. Cf: MASC/Livro de

Impressões (1974-2010); Jornal UFS Notícias, Ed. Especial, São Cristóvão, 1981. Devemos acrescentar

ainda, que um dos presidentes da Empresa Sergipana de Turismo (EMSETUR) órgão estadual ao qual o

MASC estabelecia relações-, na segunda metade da década de 1970, era também diretor da TV Sergipe.

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universidades, “jornais, rádios, televisões, agências de publicidade, empresas públicas e

privadas” que forneciam “ótimas oportunidades a profissionais qualificados”. Tal

situação, mesmo com o processo de redemocratização em 1985, pouco se alterou

(RIDENTI, 2007: 157). A partir da década de 1980, a intelectualidade que ganhava

projeção, mesmo ocupando uma posição secundária no campo, era a que procurava, em

contato com ‘a realidade imediata das vidas cotidianas’, renovar parâmetros de esquerda

como a questão da democracia e das lutas das minorias.

O Estado tomou como um dos objetivos a construção da identidade da nação,

mais especificamente, no campo do patrimônio, tem-se, dentre outras iniciativas, em

1973, o lançamento do Programa Integrado de Reconstrução das cidades Históricas. Em

1975 surge o Centro Nacional de Referência Cultural. Após a aposentadoria de Rodrigo

Melo Franco de Andrade, em 1969, assumiu a direção do Serviço do Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) o arquiteto Renato Soeiro, cuja gestão não

conseguiu minimizar os problemas financeiros da instituição4. É neste momento que

novos atores, com novos projetos entraram em cena, com uma nova conceituação de

patrimônio cultural que vai além da ‘pedra e cal’.

Em substituição à Renato Soeiro, assumiu, em 1979, o Instituto de Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional, o artista plástico e designer Aloísio Magalhães

(BITTERCOURT, 2002). Na sua perspectiva, um bem cultural, termo que ele concebe

no campo do patrimônio e que até hoje é adotado, se constitui em uma expressão

material ou imaterial de um grupo social que diz respeito à sua memória, história e

identidade. Para este intelectual a percepção da existência de diferentes grupos étnicos-

raciais no Brasil leva à conclusão que os bens culturais de todos os grupos devem ser

4 Foi na gestão de Renato Soeiro que o Arcebispo de Aracaju, e principal idealizador do Museu de Arte

Sacra de São Cristóvão (MASC), Dom Luciano Cabral Duarte, expôs sua insatisfação com a ação do

Iphan com relação à preservação do patrimônio sergipano.

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considerados, respeitados, incentivados e preservados por uma política de patrimônio

adequada.

Nesta direção, uma das alternativas seria “a criação de uma ação ao nível de

serviços ou secretarias especiais, junto ao mais alto centro de decisões”

(MAGALHÃES, 1994: 43). Portanto, a proposta de Aloísio Magalhães se direciona

para a constituição de uma política cultural no Brasil próxima a pensada por Mário de

Andrade, na década de 1930. Porém antes de ver concretizado seu projeto, Aloísio

Magalhães faleceu, em 1982. De qualquer forma, a configuração política do regime não

permitiu as condições para tornar exequível a proposta de preservação do patrimônio

cultural brasileiro.

Levando em consideração a homologia entre os campos cultural e político, na

qual o campo do patrimônio cultural mantém relações de interdependência, o peso

exercido por este último sobre o primeiro, durante a Ditadura Militar, foi

consideravelmente maior. Os limites impostos pelo Estado, com sua política econômica

de modernização e sua política cultural orgânica, forneceram poucas chances para as

práticas de agentes cujo discurso pretendeu reorganizar o campo do patrimônio,

redistribuir as posições dos agentes e equilibrar a distribuição do poder. Mesmo que

num processo já adiantado de abertura política “lenta e gradual”. Esta constatação fica

evidente quando lembramos que neste período o Estado concebeu uma política cultural

voltada para o mercado, incentivando, por exemplo, a exploração comercial da cultura

através do turismo, que muitas das vezes se dava de forma desastrosa para o patrimônio

cultural.5

Neste sentido, esta política cultural atingiu o próprio Aloísio Magalhães ao se

referi à FUNARTE da seguinte forma:

5 Esta política, como veremos, atingiu o MASC, ora de forma negativa ora positiva. Esta relação entre

turismo e patrimônio, e seus efeitos, foi um dos pontos em que os agentes envolvidos com a criação e

manutenção do MASC tiveram que se posicionar, conforme o capítulo seguinte.

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Um dos objetivos (da Fundação) será o de transformar os bens da

União em bens rentáveis, logicamente quando isso for possível e não

oferecer risco ao imóvel. Assim, faremos o levantamento para saber

quais os imóveis que poderão ser transformados em albergues

turísticos e entregues, por contrato, às companhias hoteleiras para

exploração comercial e que deverão ser conservados. (Apud:ORTIZ,

1986: 118)6.

Dentre as instituições criadas no período da Ditadura estava o Conselho Federal

de Cultura (CFC). A criação do CFC revela-se como um indício do projeto do Estado

para a construção de uma política cultural para o país. Logo, sua instalação pode ser lida

como uma tentativa do Estado sistematizar e controlar a produção cultural. Fazia parte

do Conselho intelectuais tradicionais oriundas, por exemplo, dos institutos históricos e

das academias de letras, que se autodefiniam como representativos da sociedade

brasileira. Inclusive, dirigentes, idealizadores e colaboradores de museus fizeram parte

do Conselho. Para alguns de seus membros o Brasil é identificado como um país

mestiço. Visitando o Museu de Arte Sacra de São Cristóvão, em 1981, o presidente da

Câmara de Artes do Conselho Federal de Cultura, Clarival do Prado Valadares, se

manifestou nos seguintes termos:

O que julga e decide o destino de um museu é a presença da

sensibilidade e da inteligência, permitindo aos objetos falarem da sua

6 Como pretendemos discutir no próximo capítulo, as relações entre o MASC (e seus representantes) e as

instituições inseridas no campo do patrimônio sergipano gira em torno da cooperação, mas também da

disputa. Existem documentos de Dom Luciano questionando a atitude do Presidente da EMSETUR no

que se refere à reformas e aproveitamento dos templos religiosos (Cf: Documentos do IDLC). Da mesma

forma há indícios de atritos entre a direção do MASC e a EMSETUR no que diz respeito à intervenção

deste junto ao Museu (Cf: ARQUIVO UFS/ Dossiê Museu)

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natureza cultural e sociológico, como o deste exemplo, permitimos

{?} aos nossos contemporâneos e aos pósteros acreditarem na

grandeza de sua origem, no Brasil que se liberta e se afirma graças ao

talento de sua raça mestiça, sejam nominados ou anônimos e {é com}

memória desses que o Museu de Arte Sacra da Irmã Wilma é lição

para cada um de nós7.

Este mestiço representaria a unidade da diversidade brasileira. Esta concepção

de mestiço aproxima-se da ideologia da harmonia racial, seguindo assim, o rastro de

Gilberto Freyre, já definido em sua obra Casa Grande & Senzala. De acordo com

Renato Ortiz, esta ideia engloba outras que transveste termos como ‘democracia’ e

‘liberdade’, sendo, portanto, alvo de críticas dos movimentos negros contrários ao

conceito de “democracia racial”8.

Percebe-se, ainda, no discurso do CFC o culto à tradição. O Conselho Federal

de Cultura deu especial atenção ao apoio financeiro às entidades envolvidas com a

guarda e conservação do patrimônio nacional, provavelmente por ter nos seus quadros

intelectuais ligados às instituições da construção e preservação de “memórias”. Há uma

preocupação de manter viva a memória nacional. Neste sentido, recebe atenção especial

atividades como o “Museu Histórico”, o “Pró-memória”, o “projeto de memória do

teatro brasileiro”, o “dia do folclore”. O CFC estimula e legitima a ação do Estado

nessas áreas. Neste aspecto, o princípio orientador é a recuperação da “memória

nacional e a identidade brasileira reificadas no tempo”.

A presença dos intelectuais tradicionais opera uma questão interessante, qual

seja, a defesa do patrimônio nacional aliado a doutrina da Segurança Nacional e ao

7MASC/ Livro de Impressões (1974-2010). 8 Interessante percebermos que Dom Luciano reconhece os males do racismo, entretanto, afirma que no

Brasil, diferentemente da África do Sul e dos Estados Unidos, ele é “mais suave”. CF: DUARTE,

Luciano Cabral. Estrada de Emaú. Rio de Janeiro: Vozes, 1971, p.58.

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desenvolvimento do Estado. (ORTIZ, 1986). O Conselho Federal de Cultura integrava a

rede de instituições responsáveis pela manutenção do MASC, na medida em que com a

sua intervenção era possível realizar obras, como reformas em museus.

Apesar dos indícios, até a década de 1980 não existia uma política cultural

adequada para absorver as novas demandas dos grupos sociais brasileiro, ao menos de

forma ampla, como fora pensado por intelectuais como Mário de Andrade e Aloísio

Magalhães. A preservação do patrimônio estava associada à ideia de criatividade. A

necessidade de um Ministério da Cultura, que estruturasse e desenvolvesse essa política

já era discutida no início da década de 1970. Naquela oportunidade, o ministro da

Educação e Cultura, Jarbas Passarinho, já desenvolvia debates com governadores,

secretários de estados, prefeitos e representantes de instituições culturais. Tal

preocupação foi registrada em documentos como o Compromisso de Brasília e o

Compromisso de Salvador, em 1971. Foi na Gestão deste Ministro (1969-1973) que se

desenvolveu a institucionalização da cultura no âmbito federal e concretizado o projeto

de institucionalização do MASC, que culminou com a sua inauguração em 1973.

Durante a Ditadura Militar foram criados a Empresa Brasileiras de Filmes S.A

(Embrafilme), o Conselho Nacional de Direito Autoral (CNDA), o Departamento de

Assuntos Culturais (DAC) e o SPHAN foi elevado à categoria de Instituto do

Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Tal desenvolvimento prosseguiu

na administração seguinte, do paranaense Ney Braga. Neste período, do governo Geisel.

Foi aprovado um documento denominado de Política Nacional de Cultura, foi realizado

o I Encontro de Secretários Estaduais de cultura, criada a Secretaria de Assuntos

Culturais, o Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC) e a Fundação Nacional de

Arte (Funarte), que congregava o Museu Nacional de Belas Artes, o Serviço Nacional

do Teatro, a Comissão Nacional de Belas Artes e a Companhia de Defesa do Folclore

Brasileiro. ( POENER, 2000: 38)

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Em linhas gerais, na década de 1970 o discurso dos museus se veicula ao ideal

do regime político autoritário, como ocorreu até então, mesmo com a inserção de novas

propostas de concepções sobre os bens culturais, a exemplo do projeto de Aloísio

Magalhães. Porém neste período, no campo internacional, já surgem outras discussões

que podem ser sentidas no Brasil - paulatinamente - sugerindo rompimento ou

fragilização dos modelos de museu e de profissional, da relação do museu com o

público, das exposições. Acentua-se não mais uma identidade do país, enfatiza-se as

“identidades de grupos e categorias sociais.” (GONÇALVES, 2005: 268). Mas, esse

novo pensamento museal no Brasil só vai se estabelecer com o processo de

“redemocratização dos anos 80”.

O ideal de museu em países norte-americanos e europeus, a partir da

década de 1970, se aliava ao respeito à diversidade cultural, à defesa

do patrimônio cultural das minorias étnicas e de povos carentes e à

integração dos museus às diversas realidades locais..,(MACHADO,

2005: 147)

A diversidade presente na configuração atual do campo do patrimônio está

ligada com processos mais amplos, como o debate sobre a democracia e participação da

sociedade civil no que diz respeito aos direitos dos grupos sociais de identificar,

selecionar, conservar e expor os bens culturais relativos às suas memórias, identidades e

histórias (BRUNO, 1995: 57). De acordo com Márcia Sant’Anna foi após a Segunda

Guerra Mundial (1939-1945) que as práticas e os processos culturais foram sendo

incorporados ao campo do patrimônio cultural, que até então, enfatizava os bens

materiais (2004: 49). Para a socióloga Maria Cecília, esta ampliação é um dos efeitos da

globalização, pois países africanos e asiáticos questionaram a perspectiva que via seus

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patrimônios como exóticos, toscos e primitivos e reivindicaram o reconhecimento

mundial de seus bens, buscando, portanto, usufruir de benefícios políticos e econômicos

que tal reconhecimento promove (2003: 70-71).

É neste contexto de discussões em torno da identidade nacional, da ampliação das

instituições voltadas para a cultura, bem como da perseguição à construção de uma

política cultural voltada aos interesses do Estado e à doutrina da Segurança Nacional,

que o campo do patrimônio em Sergipe é configurado.

A presença do Estado Autoritário no campo cultural brasileiro é inegável. Em

Sergipe, nos chama atenção essa ação governamental no âmbito do incentivo da criação

de instituições culturais, mais precisamente de museus. Na década de 1970 foram

criadas as seguintes instituições: Museu da Polícia Militar(Aracaju, 1970), Casa da

Cultura João Ribeiro (Laranjeiras, 1973), Museu de Arte Sacra de Arte Sacra de São

Cristóvão (São Cristóvão, 1973), Museu AfroBrasileiro (Laranjeiras, 1973), Museu de

Antropologia (Aracaju, 1978) e o Museu de Arte Sacra de Laranjeiras (Laranjeiras,

1978).9 Os questionamentos que se colocam são os seguintes: quais os grupos de

intelectuais que foram inseridos nessas instituições? Quais as suas relações com o

Regime Militar? Foram construtores do discurso da identidade nacional forjada pelo

Regime?

9 CARVALHO, Ana Conceição Sobral de. A Museologia em Sergipe. Perfil histórico (1973-1980). Aracaju,

1996.p.6 (digitado); NUNES, Verônica Maria M (org.). Do IHGS à UFS: construção de fazeres museológicos em

Sergipe. IN: O despertar do conhecimento na colina azulada, Aracaju: UFS (campus Laranjeiras), 2007.

RESENDE, Mário dos Santos, GUIMARÃES, Joselita Maria dos Santos. O Curso de museologia da UFS e o Museu

Afro-brasileiro de Sergipe: desafios promissores para a cultura sergipana. Revista Candeeiro. São Cristóvão. Ano

IX-vols. 13 e 14- Novembro de 2006, p.66; SAMPAIO, Roberta Barreto. O Museu do Homem Sergipano: Uma

realidade em Construção. São Cristóvão. Departamento de História, Universidade Federal de Sergipe, 2000, p. 28.

(monografia)

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DOCUMENTOS

ARQUIVO UFS/PROEX/Dossiê MASC/

Jornal UFS Notícias, Ed. Especial, São Cristóvão, 1981

DUARTE, Luciano Cabral. Estrada de Emaú. Rio de Janeiro: Vozes, 1971

MASC/ Livro de Impressões (1974-2010)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BITTERCOURT, José. Invenção do passado: ascensos e descensos da política de

preservação do patrimônio cultural (1935-1990). IN: MENEZES, Lená Medeiros de et

al (orgs). Olhares sobre o político: novos ângulos, novas perspectivas. Rio de Janeiro:

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