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IV CONGRESSO SERGIPANO DE HISTÓRIA & IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DA ANPUH/SE O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64 AS PRIMEIRAS COMEMORAÇÕES EM HONRA DE SÃO JOÃO BATISTA NA CIDADE DE AREIA BRANCA/SE: FESTA E MEMÓRIA Liana Matos Araújo 1 O Batalhão 1º de São João As celebrações em honra a São João geralmente aconteciam na véspera do seu dia, 23 de junho, com preparação de fogueiras, mastros e fogos, com o propósito de acordá-lo e avisá-lo de que seu dia estava chegando 2 . Entretanto, de acordo com a tradição católica, o santo dorme profundamente durante o dia que lhe é consagrado, e assim deve ser, caso contrário, atraído pelo clarão da fogueira e dos fogos, desceria do céu e o mundo acabaria pelo fogo (CASCUDO, s/d, p.477). Uma vez que o santo deve permanecer dormindo, o objetivo do ritual é, então, acordar os devotos para a festa (AMORIM, 2002, p.126). Em Areia Branca, as celebrações iniciavam-se no dia 31 de maio à meia-noite. O santo era saudado por meio de cantoria e louvor, que anunciavam a chegada de seu mês. Nessa noite realizava-se o ritual festivo denominado Batalhão 1º de São João. Esta seção abordará as primeiras manifestações dessa expressão cultural, no município de Areia Branca/SE, a partir da década de 50, com base nos relatos orais recolhidos entre os moradores do município. Tem-se como objetivo analisar a relação 1 Graduada em Ciências Sociais Licenciatura/Bacharelado pela Universidade Federal de Sergipe; especialização em Didática do Ensino Superior e Mestranda em Antropologia pela UFS com participação no Grupo de estudos Culturais, Identidades e Relações Interétnicas. E-mail: [email protected] 2 Num passado recente, os preparativos e as celebrações características do ciclo junino concentravam-se na véspera. Sobre a importância da véspera nesse ciclo, ver MORAES FILHO, 1999.

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IV CONGRESSO SERGIPANO DE HISTÓRIA & IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DA ANPUH/SE

O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64

AS PRIMEIRAS COMEMORAÇÕES EM HONRA DE SÃO JOÃO

BATISTA NA CIDADE DE AREIA BRANCA/SE: FESTA E

MEMÓRIA

Liana Matos Araújo1

O Batalhão 1º de São João

As celebrações em honra a São João geralmente aconteciam na véspera do seu

dia, 23 de junho, com preparação de fogueiras, mastros e fogos, com o propósito de

acordá-lo e avisá-lo de que seu dia estava chegando2. Entretanto, de acordo com a

tradição católica, o santo dorme profundamente durante o dia que lhe é consagrado, e

assim deve ser, caso contrário, atraído pelo clarão da fogueira e dos fogos, desceria do

céu e o mundo acabaria pelo fogo (CASCUDO, s/d, p.477). Uma vez que o santo deve

permanecer dormindo, o objetivo do ritual é, então, acordar os devotos para a festa

(AMORIM, 2002, p.126). Em Areia Branca, as celebrações iniciavam-se no dia 31 de

maio à meia-noite. O santo era saudado por meio de cantoria e louvor, que anunciavam

a chegada de seu mês. Nessa noite realizava-se o ritual festivo denominado Batalhão 1º

de São João.

Esta seção abordará as primeiras manifestações dessa expressão cultural, no

município de Areia Branca/SE, a partir da década de 50, com base nos relatos orais

recolhidos entre os moradores do município. Tem-se como objetivo analisar a relação

1 Graduada em Ciências Sociais Licenciatura/Bacharelado pela Universidade Federal de Sergipe;

especialização em Didática do Ensino Superior e Mestranda em Antropologia pela UFS com participação

no Grupo de estudos Culturais, Identidades e Relações Interétnicas. E-mail: [email protected] 2 Num passado recente, os preparativos e as celebrações características do ciclo junino concentravam-se

na véspera. Sobre a importância da véspera nesse ciclo, ver MORAES FILHO, 1999.

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entre o processo de folclorização dessa manifestação e o processo de modernização das

festas juninas na cidade. Trabalha-se com a hipótese de que a construção do novo

modelo festivo que ficou conhecido, na cidade e fora dela, como “São João de Paz e

Amor”, preservou elementos dessa tradição e assumiu características de uma tradição

inventada.

Nas primeiras décadas do século XX, o Batalhão 1º de São João era organizado

na noite do dia 31 de maio e assumia a forma de cortejo que percorria a cidade. A

concentração das pessoas ocorria na casa de Dona Filhinha3, no povoado hoje chamado

Ponto Chique, que ficava a alguns quilômetros da Igreja São João Batista. A fundação

do Batalhão é atribuída a ela e ao senhor Manoel Preto4. Tratava-se de uma senhora

carismática e muito respeitada entre os participantes e simpatizantes do festejo, grande

devota do santo padroeiro da cidade.

De acordo com Alba Zaluar (1983), nas festas de santo, a figura que mais se

destaca tanto na autoridade, no controle da multidão, quanto na legitimidade que o povo

concede à festa, é o festeiro. Sua função é de coordenar as ações do grupo e estabelecer

não somente a sequência ritual, mas também a ordem. Dona Filhinha comandava a

comunidade na organização do Batalhão e cedia a própria casa como ponto de encontro

para iniciar o cortejo, aspecto ressaltado no depoimento de um ex-integrante:

[O Batalhão] Saía do sítio de Dona Filhinha, da fundadora; ela

era uma pessoa doce, que vivia isolada nesse sítio, mas ela era devota

do senhor São João e tinha essa devoção de abrir os festejos de São

João, então se fazia isso (Zé Dil, 71 anos)5.

3 O nome original dessa senhora não era conhecido dos entrevistados, nem foi localizado em estudos

sobre a região. 4 O nome completo desse senhor também não era conhecido dos entrevistados, nem foi encontrado em

estudos sobre a região. 5 Entrevista realizada em 14 de julho de 2007.

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Fig. 1: Dona Filhinha ao centro, com xale e candeeiro na cabeça, cercada de companheiros.

Foto: Acervo de Zé Dil, década de 50.

Nesse contexto, a festa de São João, enquanto festa do interior, assim como os

ritos festivos e comemorativos das populações australianas estudados por Durkheim

(1989), favorece a criação de vínculos sociais, fortalece os laços sociais existentes e

contribui para afirmar tradições. A população acredita na eficácia do rito. No caso de

Areia Branca, acreditava-se que o ritual de acordar São João anualmente, na passagem

do dia 31 de maio para o dia 1o de junho, garantia a proteção do padroeiro durante todo

o ano.

A festa também era o momento de agradecer a chuva que garantia boa colheita.

No Brasil, mais especificamente no Nordeste, o milho é plantado no mês de março,

quando começam as primeiras chuvas, ou seja, três meses antes de colhê-lo. Por isso, os

componentes do cortejo do Batalhão traziam consigo ramos de diversos tipos de planta,

como a cana-de-açúcar e o milho, para agradecer o início da colheita. Alba Zaluar

(1983), em estudo sobre as festas do catolicismo popular, considera que as festas de

santo podem ser vistas como ritos de passagem associados às fases de produção

agrícola:

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A festa era vista como tempo de exceção; de alegria, de

fartura, de movimento de pagar promessa ao santo e ajustar as contas

com ele. As festas de santo marcavam fases de transição do ciclo de

produção agrícola. Eram “ritos de passagem” nos quais apareciam

ressaltados os aspectos opostos à vida diária comum e em que era

simbolicamente enfatizada a comunidade rural de devotos do santo.

A memória coletiva dos moradores mais antigos da cidade de Areia Branca

revela a realização desse ritual desde a época em que o atual município era uma

localidade rural sem infraestrutura, povoado de Riachuelo. Como a energia elétrica não

havia chegado, eram os candeeiros que iluminavam a cidade e as casas. Os participantes

do cortejo começavam a se aglomerar, a se organizar embalados pelos versos que

trovadores declamavam em louvor a São João. Assim o Batalhão percorria as ruas da

cidade parcamente iluminadas e sem pavimentação. Geralmente chovia na noite do dia

31 de maio e o cortejo enfrentava a chuva e a lama.

Os participantes, de pés descalços, usavam roupas simples do cotidiano, o que

mostra o caráter interiorano e regional do Batalhão 1º de São João, como descreveu Dil

Calazans, mais conhecido na cidade como Zé Dil. Ele nasceu em Areia Branca em

1937, participou do festejo desde a época de Dona Filhinha e ficou à frente do Batalhão

por alguns anos. É um senhor respeitado pelos moradores por ser conhecedor da cultura

local, e muito requisitado quando se fala de folclore no município de Areia Branca. Diz

ele:

Só ia pra lá mesmo quem gostava, e eu me lembro,

chegava em casa e jogava a roupa no mato, era um negócio

assim, a noite toda, chuva com tudo, com suor, é um negócio

de louco, só pra quem gosta e tem espírito.

Os fogos anunciavam a saída do cortejo, que fazia sempre o mesmo trajeto a

partir da casa de Dona Filhinha.

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À medida que o Batalhão percorria as vias da cidade, várias pessoas que o

esperavam se juntavam a ele e o acompanhavam até a Igreja São João Batista. Esse

percurso durava cerca de uma hora e trinta minutos, porque à meia-noite tinha-se que

estar em frente à Igreja matriz. A chegada do cortejo era saudada com fogos em clima

de contentamento. Abria-se a Igreja e muitos louvavam a São João. Como lembra Zé

Dil:

Às vezes nós soltávamos lá três ou quatro foguetes

anunciando que já estávamos lá. Nós saíamos de lá, dez a dez e meia,

precisamente, aquilo era que a gente sabia que gastava uma hora até a

Igreja, e não era de se correr, era de andar e parar. Então o percurso

era mais ou menos uma hora e meia, porque meia-noite, cinco pra

meia-noite, nós tínhamos que estar na Igreja.

O cortejo saía, a animação tomava conta de todos. Iam cantando, dançando,

não corriam, caminhavam. No final, ele chegava a reunir 200 a 300 pessoas. O percurso

era feito com tranquilidade, ninguém se comportava de maneira violenta, todos se

respeitavam, brincavam de forma harmoniosa.

O cortejo, que tinha a finalidade de celebrar São João, possuía igualmente uma

dimensão lúdica. Essa combinação de aspectos religiosos e profanos era um dos fatores

que motivava a existência do Batalhão. Nele as pessoas se desligavam de suas

atribuições cotidianas e, por meio das diversas manifestações no cortejo, a exemplo da

cantoria representada nos versos improvisados, elas vivenciavam o caráter sagrado e o

profano simultaneamente.

É por isso que a própria idéia de cerimônia religiosa de

alguma importância desperta naturalmente a idéia de festa.

Inversamente, toda festa, quando, por suas origens, é puramente leiga,

apresenta determinadas características de cerimônia religiosa, pois, em

todos os casos, tem como efeito aproximar os indivíduos, colocar em

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movimento as massas e suscitar assim estado de efervescência, às

vezes até de delírio que não deixa de ter parentesco com o estado

religioso. O homem é transportado fora de si mesmo, distraído de suas

ocupações e de suas preocupações ordinárias. Assim, de ambas as

partes, observam-se as mesmas manifestações: gritos, cantos, música,

movimentos violentos, danças, procura de excitantes que restaurem o

nível vital etc. (DURKHEIM, 1989, p. 456).

O grande cortejo passava e parava em várias casas, embalado pelos versos que

pediam entrada na residência para cantar e comer. Quando entravam na casa de algum

morador, este, se tivesse condições econômicas, oferecia às pessoas um banquete, para

que pudessem degustar algumas iguarias locais ou quaisquer alimentos como, por

exemplo, bolacha, bolo, pé-de-moleque. Para acompanhar a comida, a bebida mais

presente era batida de maracujá e de jenipapo. Em seguida, tiravam-se versos em

retribuição ao banquete doado.

A festa é um momento de exaltação máxima de um sentimento, da vida social

(CALLOIS, s/d). É ela que possibilita ao social uma renovação. O Batalhão

proporcionava aos brincantes um elemento rejuvenescedor para celebrar o São João.

Dessa maneira a população de Areia Branca vivia durante o ciclo junino um período de

comunhão, de consagração de sentimentos, trocas e reciprocidades, reconhecendo na

partilha de alimentos sua principal expressão, por meio da qual eram criadas e

reforçadas novas e antigas redes de sociabilidades. Todos encontravam uma forma de

participar direta ou indiretamente do cortejo, como relata a senhora Maria da Graça

Andrade Costa6, a Dona Dadaça, de 70 anos, moradora da cidade desde o ano de 1937.

Ela particularmente nunca integrou o Batalhão, porque seus pais a educaram de maneira

rígida e a proibiram de participar. Porém o acompanhava de dentro de casa:

6 Entrevista realizada em 03 de julho de 2007.

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Eles saíam de lá, chegava na casa de seu Nilo, seu Nilo abria a

porta e servia eles com o que tinha ali, então serviam o que tinham e

ali iam reunindo, a cada rua que passava ia chegando mais gente,

então rodava a pequena Areia Branca toda.

Era uma manifestação comunitária marcada pelo compromisso dos participantes

de se organizar pelo prazer de fazer parte do evento e andar espontaneamente no

cortejo. Como não havia patrocinadores da festa, cada pessoa oferecia o possível; não

havia arrecadação de fundos para realizá-la. Não se tinha uma definição das casas em

que se iria parar; algumas recepcionavam o Batalhão com comidas típicas, outras

ofereciam bebidas e um espaço para brincar o famoso brinquedo de roda, que eram

versos criados e recitados espontaneamente à medida que os participantes iam entrando

nas casas e degustando as comidas.

As bodegas7 eram paradas obrigatórias, como, por exemplo, a de Pedro Elias, no

povoado Ponto Chique. Lenici Barbosa Santos8, conhecida como Dona Santinha,

residente em Areia Branca desde seu nascimento e participante de presença garantida

para cantar o brinquedo de roda, disse que cantava assim: “Iaiá, é hoje que a palha da

cana voa, Iaiá, é hoje que ela tem de avoá”. Em seguida, trovava outro verso: “Eu me

chamo é Santinha, que vocês ouvem falar, arranca pau pela seca (?), no céu não deixa

sinal”. E assim seguia a cantoria em cada casa em que paravam. Em todo o cortejo as

músicas sempre tinham como base o seguinte refrão:

“Primeiro de São João

Morena, venha ver,

Nós hoje aqui vadeia até o dia amanhecer.”

7 Pequena venda de secos e molhados muito comum nas cidades do interior. 8 Entrevista realizada em 14 de maio de 2008.

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Esses versos foram muito relembrados por ela e todos os outros entrevistados.

Eles ditavam a melodia a ser seguida por todas as outras criações espontâneas. Assim,

depois de percorrer todas as ruas, de trovar em cada casa visitada, o Batalhão chegava

então à frente da Igreja. As portas se abriam e se fazia a louvação ao santo padroeiro.

Nesse momento, os fogos eram mais uma vez parte integrante do cenário ao marcar a

chegada da comunidade ao seu destino. Nem todo mundo participava do louvor,

somente quem era devoto ou se dispunha a orar. Houve atuações do Batalhão em que,

além de instrumentos como porca, mais conhecida como cuíca, e violão, utilizava-se

uma zabumba para louvar o santo dentro da Igreja.

E assim continuaram durante anos essas comemorações com a liderança de Dona

Filhinha. Segundo o informante Zé Dil, na década de 70 a fundadora do Batalhão falece,

porém as comemorações não param e quem fica à sua frente é Dona Maria Isabel

Barbosa, conhecida como Maria de Zé de Sabino. Com a ajuda de Zé Dil e moradores

da cidade, ela continua a obra iniciada por Dona Filhinha, com o cortejo a sair de sua

própria casa, nas proximidades do povoado de que saía antes, o Ponto Chique. Alguns

entrevistados, como Dona Dadaça, enfatizam o período da transição como um momento

crítico devido à mudança da liderança.

[A nova líder] não tinha aquela devoção de pelejar com aquele

povo, sempre tinha aqueles atritos entre eles de noite, bebiam demais,

e com Dona Filhinha o povo respeitava e não tinha esse negócio de se

embebedar, não. Todo mundo tomava, todo mundo comia, mas não

tinha esse negócio de bebedeira demais.

Em toda tradição firmada existem normas que determinam a posição e o grau de

autoridade do seu líder, festeiro. Se essas regras e posições não forem respeitadas, ou

até lembradas, a tradição corre o risco de entrar em processo de declínio. A figura do

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festeiro ou daquele que exerce a liderança do grupo é de fundamental importância para a

organização e o sucesso da festa. Ressalta Zaluar (1983, p.72):

Ao festeiro cabia controlar a multidão que acorresse às festas,

tendo o direito de censurar, admoestar quem não tivesse um

comportamento adequado para a ocasião e resolver as questões

surgidas entre os devotos.

Anos depois, Dona Maria deixa o Estado e o senhor Zé Dil assume a

organização. Em entrevista, ele fala sobre as questões financeiras, como ele e outros

integrantes ajudavam na compra e na preparação de alimentos:

Eu comprava 2 kg de milho, dez cocos, 5 kg de açúcar e

mandava pra casa de Lero e Dona Santinha (esposa de seu Lero) com

outras pessoas que gostavam. Comadre Bai, uma série de senhoras

faziam duas panelas de mugunzá, mugunzá eram pras mulheres,

porque nós ia passar o quê, de sete, oito horas a gente começava a

dançar brinquedo de roda, brinquedo de roda, nada de baile, era

brinquedo de roda, cordão do mioró, ói era um inferno, era a coisa

mais gostosa do mundo, eu não gosto nem de tá vendo isso, porque é

uma recordação, e saber que hoje não se tem condição de, mesmo que

eu queira, a gente não encontra.

Mais tarde, já no final dos anos 80 e início dos anos 90, a participação da

comunidade no Batalhão começa a decrescer. Em 1982, o então prefeito José Franco,

que fica no poder até 1986, implementa um novo modelo festivo de caráter mais urbano,

comercial e massivo, o “São João de Paz e Amor”. A nova festividade se realizou entre

os dias 23 e 29 de junho, ainda sem grandes repercussões, concentrada num único

espaço. Para esse empreendimento, ele contou com o auxílio de Ascendino Sousa Filho,

que se tornou, posteriormente, prefeito local, por meio da promoção da festa. Essa

gestão representou o processo de urbanização dos festejos juninos na cidade de Areia

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Branca. Em 1990, foi criada a abertura dos festejos juninos no dia 31 de maio,

justamente no mesmo dia em que acontecia, num passado recente, o cortejo do Batalhão

1º de São João. Tem início um complexo jogo de permanências e mudanças capitaneado

pela prefeitura da cidade em parceria com o governo do Estado.

A implantação do novo modelo festivo não foi ignorada pela população da

cidade, em especial pelos antigos participantes do 1º de São João, que questionavam as

novas iniciativas. Mudanças dessa natureza são acompanhadas por um sentimento de

perda, a exemplo da interpretação de Dona Josefa Inocência9:

Como se tivesse dois eventos na cidade. Não conseguiram

fazer uma junção da coisa pra seguir, sabe. Cada um ficou fazendo

uma coisa separada da outra, sabe, porque geralmente quando chegou,

começou o forró, começou aquele negócio todo e o povo não dava

mais valor ao brinquedo de roda.

A administração pública passa a ver Areia Branca e sua celebração ao padroeiro

como uma fonte de lucro. Há momentos em que o Batalhão não consegue um número

suficiente de participantes, numa comunidade já desmotivada para tal celebração e

empolgada com as novas formas de comemoração. Segundo Zé Dil, esse novo quadro

sociocultural tem como consequência o esvaziamento seguido de suspensão das

atividades do Batalhão por alguns anos, mais precisamente entre 1990 a 1994.

Em 1992 verifica-se um uso político do ritual: o Batalhão passa a ser chamado

“Batalhão da minhoca”. A mudança na denominação se deu porque o prefeito

Ascendino Sousa Filho, durante um comício em 1992, identificou-se como “filho da

terra”, sublinhando estrategicamente suas raízes e seu compromisso com a cidade. Seus

opositores, para enfraquecer o impacto do discurso, passaram a se referir ao prefeito

9 Entrevista realizada em 02 de julho de 2007.

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como “minhoca”. Em resposta, ele mandou confeccionar e distribuir, durante os festejos

juninos, camisetas com a logomarca da prefeitura e o nome “Batalhão da minhoca”.

O Batalhão foi introduzindo novas normas de organização, novo padrão de

diversão, nova forma de louvar o santo padroeiro, com local específico e trajes

diferentes. Em 2007, ele foi organizado por Ará, um marcador de quadrilha local, que

tenta manter viva essa tradição. O Batalhão ainda atua, mas com uma quantidade de

pessoas bem menor, sem os batuques à base da cuíca, da sanfona e do violão.

Na visão dos moradores que vivenciaram essa celebração a partir da década de

50, o Batalhão está presente tanto na memória dos participantes quanto na memória da

cidade. Para Zé Dil, o Batalhão é uma lembrança:

Vou morrer e vou levar, sei o quanto isso me traz recordação

o 1º de São João, o São João todo. Significa tudo e vejo quanto isso

seria proveitoso se revitalizar um folclore desse de maneira diferente e

lógico.

Para Dona Dadaça, que foi privada de participar do cortejo, mas que assistia a

tudo com muito entusiasmo, aquela brincadeira “significava alegria, vontade de viver,

vontade de brincar”. Mesmo sem entender os significados devocionais relativos ao

louvor do santo, para ela o Batalhão representava alegria.

Dona Santinha afirma ter “saudades daquele tempo.” Já Dona Josefa Inocência,

que dele não participava, sublinha o compromisso com a tradição que a população

expressava:

Era assim bem interessante, você via, vamos supor, o

compromisso que cada um tinha com a coisa. Com aquilo ali e a gente

via a organização também que eu gostava de ver, aquele povo que

espontaneamente ia andando atrás um do outro e fazendo a caminhada

deles.

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Diante do exposto, pode-se afirmar que o Batalhão faz parte da história cultural

de Areia Branca, está vivo na memória de muitas pessoas que de algum modo

vivenciaram essa forma de celebração. A memória da festa permite que a população

local tome consciência de sua identidade, das suas formas características de celebrar

através do tempo (SOUZA, 1994). Quem viveu essa época sabe identificar a

importância do evento para a cultura local.

Os arraiais e as quadrilhas10

Antes da criação do novo modelo de festa junina, prosseguiam os preparativos

para o dia 23 de junho, o momento de festejar a véspera do dia padroeiro. Tudo

começava pelos ensaios das quadrilhas no mês de maio, ou seja, um mês antes do dia

tão esperado. Eles se realizavam no mercado, onde hoje é o centro cultural. As

apresentações das quadrilhas nos arraiais da cidade iam desde a véspera de São João até

o dia 29 de junho, quando se comemora São Pedro.

Depois de iniciados os ensaios e passado o 1º de São João, o foco das

comemorações se voltava para as noites reservadas ao louvor e à adoração desse santo,

ou seja, às novenas. A Igreja se responsabilizava pelos nove dias que antecediam o dia

do padroeiro. Assim, designava-se para cada noite um grupo de pessoas que cuidava de

organizar o ritual, ornamentar o local do culto e recepcionar os simpatizantes. Uma

noite da novena ficava a cargo de alguns moradores e setores do município como, por

exemplo, as escolas municipais, que organizavam as atividades e eram também os

10 A análise dessas comemorações em Areia Branca compreende as décadas de 60,70 e 80, período de

transição de povoado para município. Será apresentada uma noção geral com base nas entrevistas para se

compreender como a população celebrava o padroeiro antes da apropriação dos festejos juninos da cidade

pela prefeitura.

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homenageados da noite. A prefeitura comandava outra noite financiando fogos, flores e

compondo também a sequência do ritual da missa. Dessa maneira, fazia-se uma

programação das nove noites com seus respectivos organizadores e homenageados.

Chegado o dia 23 de junho, desde cedo os moradores se mobilizavam para

arrumar os arraiais, enfeitar a cidade, produzir as comidas típicas, preparar as fogueiras

e se prepararem para celebrar o nascimento de João Batista na passagem para o dia 24.

Como não havia financiamento da prefeitura, a festa era realizada pela comunidade, era

compromisso assumido pelos simpatizantes. No dia 24 de junho, ápice da festa,

geralmente se realizava uma quermesse para arrecadar fundos para a Igreja. Havia

diferentes tipos de barracas como a de comidas típicas e a de brincadeiras infantis.

O binômio casa-rua abordado por Roberto da Matta (1997) ajuda a compreender

tanto a divisão dos papéis sociais de homens e mulheres como a divisão sexual do

trabalho que se processavam nesses espaços. Na casa, iniciava-se a reunião familiar com

orações e preparação das comidas típicas. As atividades se estendiam pelas ruas, que se

transformavam em grandes arraiais, com dança e animação. No Brasil, a rua é, por

excelência, o espaço das grandes festas populares. A seguir, passa-se a descrever a

dinâmica dessas comemorações.

O primeiro passo era recolher matéria-prima para erguer os arraiais e arrumar a

cidade. Para isso, homens e mulheres, em especial os que participavam das quadrilhas,

adentravam a mata, geralmente de carroça, para retirar taboca, pedaços de madeira para

construir os arraiais. Outro material de grande importância era a palha de coqueiro,

utilizada para cobrir o local em que as quadrilhas iriam se apresentar e também para

enfeitar a cidade, fazendo portais de entrada para recepcionar os brincantes da festa e os

turistas.

Ainda pela manhã, à medida que os arraiais eram montados, a ornamentação

para eles também ia sendo confeccionada. Cortavam-se papéis coloridos em forma de

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bandeirolas. Estendia-se um cordão de um lado a outro da pequena e única rua calçada,

a rua Heráclito Diniz, para que outras pessoas pudessem materializar o enfeite do

arraial, ou seja, pregar as bandeirolas no cordão. Quando já estava pronto, não somente

o arraial era enfeitado, mas também a rua referida acima. E com essa divisão de tarefas

a festa começava a se concretizar.

Entretanto, como já se mencionou, a festa iniciava em casa com a preparação de

comidas típicas como a pamonha, a canjica, o pé-de-moleque. Logo ao cair da noite as

fogueiras eram acesas, alguns mastros fincados nas portas das casas e toda família se

reunia para soltar fogos e brincar.

As adivinhações e simpatias estavam sempre presentes no ritual de acordar São

João naquela noite de véspera. Segundo a informante Zoraide Mota de Oliveira11, de 51

anos, uma das pessoas que estavam à frente da organização e ocupou função de noiva na

quadrilha, as simpatias eram um dos momentos mais esperados. Ela revela em sua fala

que uma dessas simpatias, por coincidência ou não, deu certo.

Tinham as fogueiras, as simpatias a gente colocava as bacias

de água com as letras enroladinhas de A a Z, pra ver qual era a letra

que abria. Uma vez eu fiz, por coincidência foi um G que abriu

mesmo, eu casei com Givaldo. Tinha também a faca virgem na

bananeira. A gente fazia essas simpatias, mas no meu nunca apareceu

letra nenhuma não na faca.

A cada fogueira acesa, a cada mastro erguido e todos os fogos anunciando a São

João que estava chegando o seu dia, a cidade se tornava um verdadeiro arraial ao ar

livre. Assim, depois do momento familiar, as pessoas já estavam preparadas e ansiosas

11 Entrevista realizada em 28 de maio de 2009.

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para dançar quadrilha nos arraiais, como descreve um participante da quadrilha, José

Aldemir de Almeida12, de 45 anos, que também esteve à frente da organização:

Quando era a noite de São João mesmo, que era o dia 23 e 24,

que era o dia-chave mesmo, aí pegava fogo a cidade. Todo mundo

botava sua fogueirinha na porta, foguetes, bombas, coisas de crianças.

De noite tinha as apresentações de quadrilha, um namoro como a pega

que tinha.

A partir desse momento a movimentação se concentrava nos arraiais, que

desenhavam o mapa da festa. Segundo Chianca (2006, p.104), o arraial tem um

significado maior do que um espaço erguido e provisório para se dançar forró e brincar

quadrilha. Ele engloba um conceito mais simbólico, representado pelas dinâmicas

ocorridas no momento da festa, ou seja, é “a experiência festiva em si”. O termo

possibilita a criação de uma rede de sociabilidades. Uma dinâmica perceptível nos

arraiais da cidade de Areia Branca. Era nesse local físico e simbólico que os brincantes

teciam suas relações sociais e se reuniam para celebrar São João por meio da música e

da dança.

De acordo com os informantes, existiam três arraiais e cada um possuía suas

respectivas quadrilhas. É importante mencionar que sua existência e criação não foram

bem esclarecidas pelos informantes, e, de acordo com eles, esses arraiais atuaram

simultaneamente em alguns anos. O mais antigo era organizado pelo senhor José Reis,

conhecido por Zé Reis, erguido na rua Heráclito Diniz. Outro estava localizado onde

hoje é o centro da cidade, onde está a Paróquia São João Batista, na praça Joviniano

Freire de Oliveira. E um terceiro se erguia na casa do senhor Fausto, localizada na rua

Heráclito Diniz, onde se situa a praça da Capela Nossa Senhora da Conceição.

12 Entrevista realizada em 07 de junho de 2009.

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Assim, segundo os entrevistados, com a estrutura já montada a animação ficava

por conta das quadrilhas e do sanfoneiro. À noite começava a programação. Conforme a

informante e também organizadora das quadrilhas do arraial do centro, Adalci Almeida

Melo13, de 52 anos, existiam três quadrilhas nesse arraial: a das crianças, nomeada de

xodó, a dos adultos, Flor de Lis, e a dos adolescentes, de cuja denominação ela não se

recorda, mas lembra que era o nome de uma novela da época. As quadrilhas ensaiavam

e se apresentavam com o auxílio da sanfona tocada por uma moradora da cidade

chamada Nadja.

Fig. 2 - Arraial do centro da cidade: participantes da quadrilha. Da esquerda para a direita, José Araújo

dos Santos Filho; esquerda da noiva, Otávio Santos Cunha; direita da noiva, Zoraide Oliveira Mota e

Genival Araújo dos Santos.

Foto: Acervo de Luzimary Dias dos Santos

Logo após as apresentações, o público se deleitava com as músicas nordestinas.

Contratava-se um sanfoneiro, às vezes pago pelo prefeito, única ajuda recebida, para

divertir os brincantes e o forró ia até o outro dia pela manhã, como descreve o

participante dessa quadrilha, José Aldemir de Almeida:

13 Entrevista realizada em 17 de maio de 2009.

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Depois que acabava a quadrilha dos adultos aí o forró quebrava.

Aí tinha o sanfoneiro, ficava até onde ele aguentava, até onde ele

suportava, na hora que ele não suportava mais, parava e aí botava som

de radiola, pegava os discos Luiz Gonzaga, Trio Nordestino e botava

pra tocar e aí ia; daqui a pouco o sanfoneiro tava descansado,

desligava a radiola e botava o sanfoneiro pra tocar de novo até onde

ele aguentar.

Assim os cidadãos de Areia Branca celebravam seu padroeiro, por meio de

confraternizações iniciadas em casa, de arraiais nas ruas e da dança marcada pela

sanfona nas quadrilhas.

Recém-chegado à cidade na década de 60, o Sr. Fausto começa a organizar,

juntamente com sua esposa, Dona Neném, um arraial e respectivas quadrilhas nas

proximidades da Capela Nossa Senhora da Conceição. O arraial era montado em sua

própria casa, onde também ensaiavam as quadrilhas. Uma informante, Maria da

Conceição Mendonça Costa14, de 45 anos, que brincava nessa quadrilha, descreve a

alegria de participar de um evento passado a cada geração e dá exemplo de possíveis

namoros que surgiram na época desses ensaios. Um deles, da filha do Sr. Fausto, Ana,

com Valdemir, que resultou em casamento:

Eu era criança ainda. Como eu gostava muito dos festejos

juninos, a tradição dos meus pais, aí a gente começou a organizar

essas quadrilhas. Foi na época que chegou aqui o pai de Ana de

Valdemir, e organizaram uma quadrilha e me chamaram pra

participar. Comecei brincando, comecei como participante da

quadrilha, eu participava da quadrilha da mãe de Ana, de dona

Neném. Tinha uma tradição, era uma quadrilha famosa em Areia

Branca, na época quem marcava era Vieira Matos, eu sempre brincava

com ele. Mas assim, começou sempre de criança, no arraial do finado

Fausto e de dona Neném, aí brincava Ana com Valdemir, começaram

a namorar na quadrilha.

14 Entrevista realizada em 17 de maio de 2009.

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Fig. 3 - O Sr. Fausto (de pé) em sua residência (s/d)

Foto: Acervo de José Oswaldo Pereira

Cada arraial possuía sua especificidade, cada um ensaiava suas próprias

quadrilhas e as apresentações aconteciam nos próprios arraiais. Existia, segundo os

participantes, uma concorrência, mas não havia prêmio. Era concorrência por amor à

quadrilha, a seu arraial, mas sem discussão ou comissão julgadora para escolher a

melhor quadrilha, somente uma brincadeira.

De acordo com o relato dessas atividades, percebe-se o grau de solidariedade e

aliança presentes nessas comemorações em honra do padroeiro. O São João, vivido de

maneira tão singular, com particularidades e características tão interessantes, revela ser

uma que festa funciona como um canal de comunicação, uma ocasião privilegiada para

expressar valores, crenças, sentimentos e emoções da comunidade. Uma festa que

guarda consigo até os dias atuais a condição de fato social total, nos termos de Marcel

Mauss (1974), na medida em que, por seu intermédio, a totalidade da sociedade e de

suas instituições é acionada.

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Os festejos juninos em Areia Branca estabeleciam uma grande rede de

solidariedade que evidenciava não somente a troca material entre as pessoas, mas

também o valor simbólico contido nos bens trocados.

O casamento caipira

A segunda parte desse ciclo de festas ocorria no dia de São Pedro, 29 de junho.

Em Areia Branca, festejava-se esse santo com uma cavalgada seguida do casamento

caipira. Tudo começava cedo no dia 29, com a ornamentação das carroças e dos

cavalos. Era quase o dia inteiro dedicado a isso e, por volta das quinze horas, saíam

cavaleiros e personagens em cortejo pelas ruas e povoados circunvizinhos. Cada arraial

possuía seu casamento caipira. O cortejo do arraial do centro saía do mercado, do local

de ensaio das quadrilhas, em direção ao Ponto Chique e a Manilha15.

No percurso iam as carroças acompanhadas das vozes das damas e cavaleiros.

Como descreve um participante da quadrilha, Everaldo José de Souza16, que também

exerceu o papel de padre:

Dia 29 carroças enfeitadas, cavalos e meio mundo de gente

nas ruas. Saía da praça Joviniano, do arraial, quando era do período de

Zé Reis, saía da casa de Zé Reis, rodava a cidade e voltava pra lá,

continuava a festa. Aqui, a gente saía da praça aqui, ia pro Ponto

Chique, voltava a Lagoa Seca e voltava pro arraial e quando chegava

ia pro forró, forró até de manhã no outro dia.

Alguns usavam alto-falante, megafone. Fazia-se o percurso e na volta acontecia

o casamento caipira, na praça Joviniano Freire de Oliveira. Na época não havia palco.

Sobre um caminhão grande fazia-se o palco, abria-se um lado da carroceria para as

15 Povoados circunvizinhos da cidade de Areia Branca. 16 Entrevista realizada em 04 de junho de 2009.

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pessoas assistirem. Os integrantes da encenação do casamento, que também

participavam das quadrilhas, subiam ao palco improvisado: eram os pais da noiva, o

porta-aliança, o noivo, a noiva (geralmente estava grávida) e o padre. Segundo o

informante José Aldemir dos Santos, o coronel, pai da noiva, estava sempre com a

espingarda e o cachimbo na boca para mostrar a rudeza e o domínio de uma figura

importante no sertão.

Fig. 4 – Casamento em cima do caminhão (s/d) Fig. 5 - A hora do sim dos noivos (s/d)

Fotos: Acervo de Genival Araújo dos Santos

Um detalhe interessante citado por Everaldo José de Souza foi a descrição da

hóstia utilizada no ritual encenado. Ele descreve ainda a indumentária do padre e

comenta sobre a bebida presente na celebração:

Tinha o casamento. Entre os quadrilheiros a gente já tinha o

noivo, a noiva, o padre, eu fui padre algumas vezes. A hóstia que a

gente celebrava era um bolachão deste tamanho, dava mais de meio

metro de diâmetro. A roupa do padre era uma roupa colonial que

existia antigamente, que parecia com a roupa do padre mesmo, a gente

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colocava uma corda amarrada cheia de nó e amarrava pra dizer que

era o padre, e meio mundo de cachaça.

Dessa forma acontecia o casamento em meio a muita diversão. Depois de

encenado o casamento caipira, as quadrilhas se apresentavam e o forró se tornava o

centro das atenções. E assim também ocorria no arraial do Sr. Fausto. Só mudava o

cortejo. As pessoas saíam da casa dele e também circulavam pelas pequenas ruas da

cidade e os povoados circunvizinhos; ao retornarem, encenavam o casamento na frente

da casa de onde saíram.

Fig. 6 - Maria da Conceição Mendonça Costa, integrante da quadrilha do Sr. Fausto e noiva do casamento

caipira. (s/d)

Foto: Acervo de José Oswaldo Pereira

O casamento caipira se realizava também em meio a muita risada e bagunça. Um

relato da informante Gicelma Dias17, de 50 anos, que não participava das quadrilhas,

somente assistia, descreve a encenação:

Era uma bagaçada só. Eles saíam enfeitados, enfeitavam os

cavalos. Saía daqui de seu Fausto, o casamento tinha o padre, naquela

17 Entrevista realizada em 06 de junho de 2009.

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época era mais enfeitado do que agora. O casamento fazia em cima de

um carro, no meio da rua. Faziam o casamento. Aquelas palavras

engraçadas.

Era uma festa sem maldade, muito gostosa, como muitos a descrevem. E para

cada pessoa um sentimento de recordação diferenciado. Para uns saudades, para outros

uma evolução cultural. Para Aldaci Almeida Melo18, que esteve à frente da organização

das quadrilhas, “era um tempo assim, pra gente era maravilhoso, mulher, porque vinha o

pessoal e o forró amanhecia, amanhecia o dia, vinha o pessoal de Itabaiana e aqui ficava

cheio de carro e dançando a gente amanhecia o dia”.

Relata Maria da Conceição Mendonça Costa, que começou a brincar quando

criança a convite da esposa do Sr. Fausto:

Dá uma lembrança muito boa, era assim, vir pra aqui pra

ensaiar quadrilha era como você hoje ir pro shopping. Era meio que

uma emoção que você tinha na época, uma emoção de você paquerar,

de você dançar, de você se divertir, mesmo porque a dança é legal pra

o espírito, pra mente, pro corpo e aí, sim, era tudo muito legal. E o

legal também quando terminava a quadrilha, a gente já se reunia pra

marcar o próximo ensaio mesmo que a gente passava assim dois

meses antes pra ensaiar a quadrilha, era um ensaio que pra gente era

uma festa, já se arrumava pra ensaiar.

As frases eram ditas, na entrevista, com muita emoção, também por Everaldo

José de Souza, que a todo o tempo gesticulava e se comovia ao recordar esse período da

vida:

Eu sinto muita saudade porque ao longo dos meus 53 anos eu

presenciei festa em Areia Branca desde os dez, então eu tenho 43 anos

de forró em Areia Branca, conheço um pouco do passado e do

presente, dos dois eu conheço bem.

18 Entrevista realizada em 17 de maio de 2009.

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As poucas palavras de José Ademilton de Almeida19, participante do arraial do

centro, e Gicelma Dias, espectadora do arraial do Sr. Fausto, apresentam as atividades

como tradição da cidade, “uma festa em que todo mundo fica animado pra chegar o dia,

é a tradição da cidade”.

Percebe-se a emoção dos entrevistados como o José Aldemir de Almeida. Ao

acionar a memória e relatar suas lembranças, ele registra de que sente falta. Emoção

percebida a cada olhar cheio de lágrimas, de sentimento, ao recordar a indumentária, as

cores e alegrias:

Do colorido da época, todo mundo de chapéu, chapéu de

palha, camisa estampada, aquela calça que a gente enchia de remendo,

remendo vermelho, botava aqui, botava ali, eu lembro bem disso,

dessa coisa toda, da fantasia do ser humano vestido de caipira. Sinto

muita saudade da quadrilha, do forró, daquele forró pé-de-serra,

gostoso mesmo, da zoada da zabumba no ouvido a gente lembra, a

gente sente ainda aquela zoada da zabumba.

Outra entrevista muito emocionante foi a de Maria Suzana dos Santos Sá20 que,

ao encerrá-la, culpou este pesquisador por estar chorando, por lembrar toda uma história

da cidade que é parte integrante da sua própria história; com os olhos cheios de água,

ela diz que tem “vontade de voltar tudo de novo” e relata a época em que viveu o

personagem da noiva. Por um desentendimento com o namorado da vida real, no

momento da quadrilha o personagem do noivo a beijou e, por esse motivo, o namorado

a procurou para reatar o compromisso.

Para José Araújo dos Santos Filho21, a recordação é do caráter da festa: “Uma

festa familiar, era um encontro de todo mundo de Areia Branca porque todo mundo se

19 Entrevista realizada em 06 de junho de 2009. 20 Entrevista realizada em 07 de junho de 2009. 21 Entrevista realizada em 06 de junho de 2009.

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conhecia”. Para sua esposa, Luzimary Dias dos Santos22, era “uma farra, uma folia”. O

sentimento de Zoraide Oliveira Mota, em suas palavras e gestos, é surpreendente:

Sinto muita falta, muita saudade, eu não entendo porque os

jovens não fazem além dessa festa que conhecemos, porque o São

João fica mais humanizado quando se faz com as pessoas do seu

grupo. Eu sinto muita falta desse São João.

Companheiro de Zoraide no elenco do casamento, Otávio Santos Cunha23,

geralmente o padre, relembra as festividades observando que “são muitas lembranças

boas que vêm assim, claro que a gente sente porque era uma brincadeira espontânea, as

pessoas brincavam por amor”.

Assim, a festa é uma solenidade comemorativa, um momento de celebração de

pessoas, imagens ou fatos importantes. É um instante de ruptura com a vida social, com

o cotidiano, que movimenta diversos setores de uma sociedade. Modifica o setor

econômico e possibilita a afirmação de trocas de riquezas ao aproximar diferentes

classes sociais (CAILLOIS, s/d). Ao interromper o cotidiano, ela delimita o momento

de festejar e de burlar as normas da sociedade.

Além disso, ela proporciona aos indivíduos participantes a criação de redes de

sociabilidades ao restabelecer laços (BRANDÃO, 1989). Diversos autores a concebem

como um ato coletivo que permite inversões e subversões, possibilita a produção

coletiva de imagens e objetos e proporciona a construção da vida social de uma

comunidade.

Enquanto ela acontece e se reinventa, produz uma memória mediante a

linguagem e a comunicação. Essa memória faz com que o passado vivenciado perdure

no presente. Dessa maneira, a festa produz uma memória que não é somente aquela que

22 Entrevista realizada em 06 de junho de 2009. 23 Entrevista realizada em 28 de junho de 2009.

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se tem do evento, uma visão pessoal, individual, mas também aquela que é social e

histórica, uma memória coletiva (SOUZA, 1994). Essas duas memórias mantêm relação

significativa. Com seu auxílio torna-se mais completa a análise de uma festa tida como

tradicional.

Depreende-se do que foi exposto que a festa é um espaço em que a memória

individual encontra-se com a memória coletiva (SOUZA, 1994). A memória individual

é insuficiente para o resgate de lembranças e vivências, sendo necessário ligá-la à

memória coletiva, à evocação dos fatos vividos na coletividade.

As narrativas apresentadas revelam ainda que, para um mesmo evento

vivenciado coletivamente, as pessoas têm recordações diferenciadas, a depender das

suas referências. Percebe-se a importância de se analisar o fenômeno com grupos de

pessoas, pois, ao se reunirem, elas podem lembrar um determinado fato, até sua

sequência e estrutura, à medida que conversam (HALBWACHES, 2006). Dessa forma,

tenta-se resgatar a construção e o significado desses festejos no cenário cultural da

cidade.

Durante as entrevistas, foi comum as pessoas recorrerem às experiências que

partilharam com amigos. Ao falarem sobre momentos do ciclo festivo da cidade,

incluíam a própria participação junto a um grupo de amigos na quadrilha, por exemplo.

Muito comum também nos relatos foi a presença da imagem, sob a forma de fotografias

antigas, para suscitar recordações de acontecimentos e pessoas, levando a descrições e

narrações de grande interesse para o estudo da memória coletiva das festividades. A

evocação dessa memória permite ao indivíduo resgatar no tempo suas raízes e

conscientizar-se de sua identidade.

No decorrer da pesquisa, desde os primeiros contatos até a elaboração deste

artigo, foi possível perceber quanto a manifestação cultural de Areia Branca, o São João

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de Paz e Amor, é importante não apenas para a comunidade local, senão também para a

história dos festejos juninos do Estado.

O resgate da memória coletiva do Batalhão 1º de São João possibilitou conhecer

um período dessa história em que as festas tinham caráter mais religioso e comunitário.

Além disso, pôde-se constatar o processo de folclorização do Batalhão à medida que um

novo modelo festivo ia sendo criado: um modelo mais moderno, urbano e comercial,

voltado para o turismo, que assume a forma de um grande espetáculo. Nesse contexto,

os órgãos públicos, a prefeitura municipal e o Governo do Estado investiram

maciçamente na estrutura dos festejos, transformando o forródromo no grande ícone

dessa forma de celebração.

É possível, portanto, concluir que o São João de Paz e Amor de Areia Branca faz

parte da história cultural do Estado de Sergipe. Sua linguagem, seus símbolos, suas

práticas são expressões de um modo de celebrar os santo e a vida. Apresentam aspectos

comuns a outras formas de celebração existentes em várias cidades e municípios da

região Nordeste, e também sinais diacríticos responsáveis pela afirmação de uma

identidade festiva amplamente conhecida como São João de Paz e Amor.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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