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1 AS MULTIFACES DA RELAÇÃO UNIVERSIDADE-SOCIEDADE: DIMENSÕES DA TERCEIRA MISSÃO ANA MARIA NUNES GIMENEZ 1 MARIA BEATRIZ MACHADO BONACELLI 2 Resumo: O estudo da história da universidade permite concluir que esta possuiu três missões básicas, que são: o ensino, a pesquisa e toda uma gama de relacionamentos e interações que promovem a articulação das duas primeiras missões com o mundo exterior. Alguns estudiosos têm chamado esse último conjunto de atividades de terceira missão, outros de extensão, entre outros termos. Nota-se, portanto, que ainda não existe um entendimento consolidado a respeito do nome que deve ser atribuído a esses envolvimentos e compromissos da universidade com as suas comunidades ou com a sociedade em geral, nem quanto às atividades que devem ser eleitas como suas representantes. Assim sendo, o artigo apresenta uma reflexão sobre a missão universitária que liga a universidade à sociedade, para além das missões clássicas que são o ensino e a pesquisa. Além da revisão de literatura, o estudo também apresenta os resultados parciais de um levantamento que identificou algumas das iniciativas que têm contribuído para o aperfeiçoamento da compreensão de aspectos mais específicos dessa temática. Conclui-se que as concepções e o alcance da terceira missão devem ser compreendidos a partir de uma visão holística para que não se reduza o escopo de atuação da universidade na sociedade. Palavras-chave: Missões da Universidade; Transmissão de Conhecimento; Extensão; Sistema de Inovação. INTRODUÇÃO Estudos provenientes de diferentes áreas do conhecimento têm discutido reiteradamente o papel do ensino superior, especialmente da universidade, sob os mais variados enfoques, ora com ênfase no ensino, ora na pesquisa ou em ambos, ora cobrando uma atuação mais ativa nos Sistemas Nacionais de Inovação (SNI) e ressaltando a necessidade de envolvimento com a sociedade, com a prestação de serviços, inovação, empreendedorismo e outros aspectos relacionados com a terceira missão, em suas diversas manifestações. Pesquisas realizadas em diferentes países têm revelado um aumento crescente da demanda por atividades da terceira missão, especialmente no que diz respeito à transferência de tecnologia, mas também quanto ao apoio à sociedade civil, em termos mais amplos de (GÖRANSSON; MAHARAJH; SCHMOCH, 2009). Nesse sentido, Inzelt et al. (2006) afirmam que terceira missão e universidade empreendedora não são expressões sinônimas, pelo contrário, pois a 1 Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT). Campinas (SP), Brasil. E-mail: [email protected] . 2 Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT). Campinas (SP), Brasil. E-mail: [email protected] .

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AS MULTIFACES DA RELAÇÃO UNIVERSIDADE-SOCIEDADE: DIMENSÕES DA

TERCEIRA MISSÃO

ANA MARIA NUNES GIMENEZ1

MARIA BEATRIZ MACHADO BONACELLI2

Resumo: O estudo da história da universidade permite concluir que esta possuiu três missões

básicas, que são: o ensino, a pesquisa e toda uma gama de relacionamentos e interações que

promovem a articulação das duas primeiras missões com o mundo exterior. Alguns estudiosos têm

chamado esse último conjunto de atividades de terceira missão, outros de extensão, entre outros

termos. Nota-se, portanto, que ainda não existe um entendimento consolidado a respeito do nome

que deve ser atribuído a esses envolvimentos e compromissos da universidade com as suas

comunidades ou com a sociedade em geral, nem quanto às atividades que devem ser eleitas como

suas representantes. Assim sendo, o artigo apresenta uma reflexão sobre a missão universitária que

liga a universidade à sociedade, para além das missões clássicas que são o ensino e a pesquisa. Além

da revisão de literatura, o estudo também apresenta os resultados parciais de um levantamento que

identificou algumas das iniciativas que têm contribuído para o aperfeiçoamento da compreensão de

aspectos mais específicos dessa temática. Conclui-se que as concepções e o alcance da terceira

missão devem ser compreendidos a partir de uma visão holística para que não se reduza o escopo de

atuação da universidade na sociedade.

Palavras-chave: Missões da Universidade; Transmissão de Conhecimento; Extensão; Sistema de

Inovação.

INTRODUÇÃO

Estudos provenientes de diferentes áreas do conhecimento têm discutido reiteradamente o

papel do ensino superior, especialmente da universidade, sob os mais variados enfoques, ora com

ênfase no ensino, ora na pesquisa ou em ambos, ora cobrando uma atuação mais ativa nos

Sistemas Nacionais de Inovação (SNI) e ressaltando a necessidade de envolvimento com a

sociedade, com a prestação de serviços, inovação, empreendedorismo e outros aspectos

relacionados com a terceira missão, em suas diversas manifestações.

Pesquisas realizadas em diferentes países têm revelado um aumento crescente da demanda

por atividades da terceira missão, especialmente no que diz respeito à transferência de tecnologia,

mas também quanto ao apoio à sociedade civil, em termos mais amplos de (GÖRANSSON;

MAHARAJH; SCHMOCH, 2009). Nesse sentido, Inzelt et al. (2006) afirmam que terceira

missão e universidade empreendedora não são expressões sinônimas, pelo contrário, pois a

1Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT).

Campinas (SP), Brasil. E-mail: [email protected]. 2Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT).

Campinas (SP), Brasil. E-mail: [email protected].

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primeira visão é muito mais ampla e envolve dimensões sociais e econômicas. A universidade

empreendedora expressa apenas a dimensão econômica, embora grande parte da literatura

concentre-se exclusivamente nessa dimensão.

Venditti, Reale e Leydesdorff (2013) sustentam que a grande maioria das pesquisas e

estudos se concentram em exemplos de “boas-práticas” de instituições norte-americanas, como o

MIT e Stanford e em algumas universidades europeias, mas essa postura somente serve para

estreitar o entendimento da real contribuição da terceira missão à sociedade. Isso talvez explique a

afirmação de Göransson, Maharajh e Schmoch (2009, p. 158, tradução nossa), que chamam

atenção para o seguinte: “o debate internacional sobre a terceira missão tem sido amplamente

dominado pelo modelo norte-americano, mas é preciso averiguar se tal modelo pode ser

transportado para outros países, especialmente para os em desenvolvimento”. Portanto, é

necessário considerar que a discussão sobre as atividades que devem ser incluídas na definição da

terceira missão variam consideravelmente entre os países, e em diferentes contextos.

A importância da terceira missão reside na possibilidade de estimular e orientar “a

aplicação e exploração de conhecimentos para o desenvolvimento social, cultural e econômico”,

beneficiando assim, a sociedade como um todo (HEFCW, 2004, p. 2, tradução nossa). No

entanto, considera-se que este é um assunto que gera muitas confusões, especialmente devido ao

desconhecimento, às abordagens restritivas, aos diversos entendimentos e nomes atribuídos3. Para

Lebeau e Cochrane (2015), debates em torno da terceira missão são importantes, pois permitem

pensar a universidade como um agente social ativo. Além disso, e compreensão das formas como

realiza essa missão, do seu nível de “imersão” nas demandas e necessidades das suas

comunidades, pode auxiliar na definição de estratégias e políticas institucionais que comportem a

vasta gama de possibilidades de ação.

Diante dessas evidências, o artigo representa uma tentativa de abordagem da terceira

missão que não esteja exclusivamente focada na relação universidade-empresa, como comumente

acontece, mas que parte de uma perspectiva mais ampla, para que se possa considerar as diversas

possibilidades de interação da universidade com o resto da sociedade, para a além das atividades

de transferência de tecnologia, sem, no entanto, desconsiderá-las. Apresenta-se, portanto, um

recorte conceitual que destacou, especialmente, os entendimentos que têm contribuído para

construção de abordagens holísticas. Trata-se de uma pesquisa qualitativa que utilizou o método

da revisão bibliográfica, cumulado com o da pesquisa documental. Os resultados permitiram

3 Identificou-se os seguintes termos: Third mission, third stream, viculación, extensão, community engagement,

civic engagement, outreach. Neste trabalho não foram abordadas as diferenças ou semelhanças entre os referidos

termos, questão a ser desenvolvida em trabalhos futuros.

3

concluir que os esforços encetados desde o início dos anos 2000, para a construção de abordagens

holísticas, foram essenciais para a evolução dos debates em torno da terceira missão. Entretanto,

constata-se que é necessário aprimorar o entendimento dessa temática, que ainda tem sido

fortemente relacionada com as atividades de capitalização de conhecimento e congêneres, para

que não se reduza o escopo de atuação da universidade na sociedade. Em vista disso, é possível

afirmar que se trata de um conceito em construção.

MISSÕES DA UNIVERSIDADE: ORIGEM E EVOLUÇÃO

Afirma-se que a universidade surgiu espontaneamente na Idade Média, no final do século

XI e mais intensivamente a partir do século XIII, pois foi somente a partir desse período é que se

pode falar num tipo de ensino muito próximo daquilo que se conhece hoje. Entre as heranças que

as primeiras universidades nos deixaram estão: faculdades, currículos (com definição de assuntos,

programas e tempo de estudos), exames, graus acadêmicos (defesas públicas, qualificação),

escolha de reitores, etc. Isso tudo é uma herança direta, não de Atenas ou de Alexandria, mas de

Paris e Bolonha (HASKINS, 2004).

A Figura 1 apresenta as universidades pioneiras e as missões que inauguraram:

Figura 1 - Missões Primordiais da Universidade

Fonte: elaborado pelas autoras com base em Le Goff (2014); Haskins (2004); Humboldt (2003); Jones e

Garforth (1997); Durkheim (1995).

A primeira universidade do mundo ocidental surgiu em Bolonha (1088) e representou um

marco essencial para o desenvolvimento do Direito no Ocidente. A segunda desenvolveu-se em

Paris (entre 1150 e 1170) e notabilizou-se pelos estudos teológicos. O modelo inaugurado

inspirou a criação de instituições semelhantes ao redor do mundo. Foi somente no início do século

XIX, em Berlim, na Alemanha (1810), que surgiu um novo modelo, a universidade de pesquisa,

proposta que fazia parte de um plano mais amplo que envolvia questões políticas, econômicas e

culturais, e cujos traços dominantes eram “a afirmação do nacionalismo e a identificação com a

Missão Inicial

• Itália (1088): Universidade de Bolonha

• França (1150-1170): Universidade de Paris

• Conservação e transmissão do conhecimento: ensino

Segunda Missão

• Alemanda (1810): Universidade de Berlim

• Desenvolvimento máximo da ciência: busca da

verdade

• Ensino e pesquisa se completam, são

interdependentes

Terceira Missão

• Inglaterra (a partir de 1850) Universidade de Oxford

Universidade de Cambridge

• Extensionismo

• Ensino, pesquisa e extensão

4

política prussiana de unificação da Alemanha, bem como a valorização da ciência e da

investigação empírico-indutiva como instrumentos de autossuperação” (RIBEIRO, 1982, p. 60).

A ideia de organizar uma terceira missão, por outro lado, data do século XIX, mesmo

século do surgimento da missão pesquisa e oito séculos após o surgimento da primeira

universidade. Suas primeiras manifestações e seu desenvolvimento ao longo do tempo

conformaram o que hoje conhecemos por extensão universitária. O uso da expressão “extensão

universitária” surgiu na Universidade de Oxford, durante as discussões sobre a necessidade da

realização de reformas, por volta dos anos 1850 e tornou-se corrente nos anos subsequentes

(MACKINDER; SADLER, 1891).

No entanto, as discussões a respeito de estender o ensino universitário a terceiros, não

estudantes, já ocorriam desde o ano de 1945, sendo que em 1950 o Conselho de Administração da

Universidade solicitou a um grupo de docentes que colaborassem com a ideia de tornar o ensino

superior acessível aos menos privilegiados. A primeira experiência de extensão em Oxford

ocorreu em setembro de 1878, com o oferecimento de uma palestra sobre a história da Inglaterra

no século XVII, ministrada pelo Reverendo Arthur Johnson numa escola da cidade de

Birmingham (GOLDMAN, 1995). Em Cambridge, o grande entusiasta do movimento

extensionista foi o escocês James Stuart, professor de matemática aplicada do Trinity College, que

encetou esforços para levar o ensino superior às mulheres, para a formação de engenheiros e para

o estabelecimento da educação de adultos. Stuart ansiava levar a universidade para além dos seus

muros, o que alguns acabaram por denominar de “Universidade Peripatética”, partindo da

convicção que professores itinerantes poderiam circular pelas localidades oferecendo cursos e

palestras, ampliando assim, as oportunidades de acesso à instrução. Entre os anos de 1867 e 1873

foram aprovadas diversas propostas de cursos e palestras para serem levados a institutos de

mecânica, cooperativas, escolas e outras agremiações, especialmente no norte da Inglaterra,

criando as bases para futuras escolas ou departamentos de extensão universitária e de educação de

adultos, não somente na Grã-Bretanha, mas no mundo todo (WELCH, 1973).

Nos EUA, a criação das universidades de concessão de terras foi o principal marco da

relação universidade-sociedade. A extensão universitária, na modalidade prestação de serviços,

surgiu com os Land-Grant Colleges4 para prestar assistência técnica aos agricultores. A expressão

extensão agrícola apareceu pela primeira em 1914, no Smith Lever Act (Lei Smith-Lever), que criou o

serviço de extensão cooperativa, associado às universidades de concessão de terras.

4 Nos EUA o grande impulso para a expansão das universidades se deu com a aprovação do Morrill Act (Lei

Morrill), de 1862 e de 1890, que instituíram a doação de terras, por parte da União, para que os estados

desenvolvessem universidades e faculdades voltadas à tecnologia e à agricultura. Um dos resultados foi o

surgimento de diversos programas de extensão, especialmente a agrícola (KERR, 2005).

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Embora a extensão tenha surgido nas duas mais elitistas universidades do Reino Unido,

considera-se que foram as universidades cívicas que promoveram um envolvimento mais ativo e

direto com o seu exterior, além de representarem uma alternativa àqueles que estavam fora do

“eixo” Oxford-Cambridge, ao oferecem cursos noturnos e estabelecerem contatos com o setor

produtivo etc. Na Inglaterra, foram criadas as primeiras universidades cívicas (também chamadas

de Redbricks)5 em seis importantes cidades industriais: Manchester (1824), Birmingham (1825),

Leeds (1831), Sheffield (1828), Bristol (1876) e Liverpool (1881) para aliar o ensino e a pesquisa

ao desenvolvimento socioeconômico local. Eram vistas como uma alternativa ao modelo

Oxbridge6, tradicional, elitista e fechado (BARNES, 1996). Essas e outras universidades cívicas,

criadas ao longo dos anos, além de oferecerem apoio à indústria (aconselhamento científico e mão

de obra qualificada) também mantinham algum tipo de serviço à população (GODDARD;

VALLANCE, 2011). Afirma-se que as Redbricks Universities, juntamente com a Universidade de

Londres (1836), constituem o berço do moderno sistema universitário Britânico (WHYTE, 2015).

A construção do pensamento extensionista latino-americano teve a sua origem no

Movimento de Córdoba, com o anseio pela abertura definitiva do “claustro”, para levar além-

murros os saberes acumulados e desenvolvidos internamente, ampliando o número de

beneficiados. Embora as questões levantadas em Córdoba e o próprio movimento tenham sido

extremamente importantes para a visão Latino-americana de uma universidade mais aberta à

sociedade, o conceito de extensão que predominou durante várias décadas, salvo exceções, foi o

da “entrega”, de difusão cultural, que vê a comunidade apenas como uma receptora, num

movimento unidirecional e acrítico. Além disso, não foram estruturados programas, com

objetivos bem definidos; a extensão praticamente ficou à margem das outras missões da

universidade, sem quase nenhuma ou nenhuma relação com o ensino e a pesquisa; os docentes

não demonstraram interesse no seu desenvolvimento; teve pouca projeção nas comunidades. Essa

visão assistencialista-paternalista somente iria mudar em 1972, com a Segunda Conferência

Latino-americana de Extensão, realizada no México, pela União de Universidades da América

Latina (UDUAL) (BERNHEIM, 1978).

5 O termo 'Redbrick' foi utilizado Professor de Estudos Hispânicos da Universidade de Liverpool, Edgar Allison

Peers (sob o pseudônimo de Bruce Trustcot), no livro Redbrick University, para descrever as modernas

universidades Britânicas. Essas instituições foram fundadas no século XIX em cidades emergentes da Inglaterra,

particularmente em locais de indústria e manufatura, a maioria dos quais podem ser identificadas pela arquitetura

similar, ou seja, pelos tijolos vermelhos (WHYTE, 2015). 6 O termo Oxbrigde é a aglutinação dos nomes das duas mais antigas prestigiosas universidades do Reino Unido

(Oxford e Cambridge), cujos modelos são muito parecidos (tradicional e elitista) e utilizado para contrastar com

as outras universidades do Reino Unido.

6

A visão da universidade como um agente da inovação é fruto da construção teórica

iniciada a partir dos anos 1980, com os trabalhos de Lundvall, Freeman, Nelson e outros, que

defenderam a importância da criação de um quadro favorável à inovação e ao aproveitamento da

ciência acadêmica para a promoção de desenvolvimento econômico e social. Para a abordagem do

SNI, em decorrência do seu caráter sistêmico e da complexidade do processo de inovação,

especialmente devido à relevância crescente do conhecimento, são necessárias interações e trocas

que promovam aprendizado constante (LUNDVALL, 1992; FREEMAN, 1987; NELSON, 1993).

A abordagem da Hélice Tripla (ETZKOWITZ; LEYDESDORFF, 1997), por outro lado,

encara a universidade como um ator-chave da inovação, devendo assumir um papel de

protagonista nesse processo, uma vez que o ambiente universitário é um criadouro em potencial

de inovações Etzkowitz (2003). O envolvimento de universidades norte-americanas com a

indústria, e com a capitalização do conhecimento são os casos paradigmáticos que subsidiam essa

abordagem. Finalmente, a expressão universidade empreendedora é aquela que se reinventa para

enfrentar novas realidades e novas demandas, revisa valores e crenças, promove inovações

curriculares, diversifica as fontes de financiamento, entre outros (CLARK, 1998; 1998b).

ABORDAGENS HOLÍSTICAS: DIMENSÕES DA TERCEIRA MISSÃO

O estudo possibilitou identificar cinco iniciativas que contribuíram para a evolução das

discussões sobre a terceira missão de um ponto de vista que englobe as múltiplas possibilidades

de interações da universidade com a sociedade. Nesta seção, aborda-se sucintamente as

abordagens desenvolvidas nos cinco estudos. O Quadro 1 apresenta, em ordem cronológica, os

principais estudos desenvolvidos, desde o início dos anos 2000, a respeito dessa temática.

Quadro 1 – Abordagens Holísticas da Terceira Missão

Fonte: elaborado pelas autoras com base em dados da pesquisa (2016).

Autores/Ano Título do Estudo

Molas-Gallart et al. (2002) Final Report to the Russell Group of Universities

Schoen et al. (2006) Strategic Management of University Research Activities, Methodological

Guide

E3M (2009- 2012) European Indicators and Ranking Methodology for University Third

Mission

D’este, Castro-Martínez e

Molas-Gallart (2009-2014)

Manual de Indicadores de Vinculación de la universidad con el entorno

socioeconómico: Manual de Valência

Mora e Vieira (2014) Documento de recomendaciones. El fomento de la «Tercera Misión» en

las Instituciones de Educación Superior en América Latina. Conclusiones

y recomendaciones para los distintos actores.

7

O primeiro estudo foi encomendado pelo Grupo Russell ao Science and Technology

Policy Research (SPRU) da Universidade de Sussex. O Grupo é composto pelas 24 principais

universidades intensivas em pesquisa do Reino Unido e consideradas de classe mundial. Trata-se

do Final Report to the Russell Group of Universities, de Molas-Gallart et al. (2002), relatório que

tem servido de referência para diversos estudos que foram realizados nos anos subsequentes à sua

publicação, pois foi a primeira tentativa de realização de um quadro analítico-conceitual e

elaboração de um conjunto de indicadores para o rastreamento e gerenciamento das atividades da

terceira missão. Afirmou-se que o estabelecimento apenas de indicadores voltados às atividades

de comercialização é uma forma enviesada e pobre de captar as efetivas contribuições da

universidade, já que essas atividades representam apenas uma pequena parte das muitas relações

que podem ser estabelecidas entre as universidades e a sociedade, além de comumente estarem

concentradas num grupo restrito de disciplinas (MOLAS-GALLART et al., 2002).

No contexto da European Network of Excellence on Policies for Research and Innovation

in Europe (PRIME) realizou-se um projeto denominado “Observatório da Universidade

Europeia” (OUE), na tentativa de desenvolver instrumentos (dados quantitativos de IES, guias

etc.) que possibilitassem às universidades da região o monitoramento das suas atividades e

performances. Para tanto, foi elaborado o Strategic Management of University Research

Activities, Methodological Guide, resultado da primeira conferência de indicadores da Rede

Prima, realizada em Lugano (Suíça), em novembro de 2006. No Guia sustenta-se que, embora

mantenha forte relação com as outras duas missões, a terceira missão é multifacetada e determina

a forma como os recursos ou capacidades da universidade integram-se à economia e à sociedade

(SCHOEN; THÈVES, 2006; INZELT et al., 2006). As multifaces da terceira missão podem ser

agrupadas em duas dimensões e cada uma apresenta quatro subdimensões: (i) dimensão

econômica - 1) recursos humanos; 2) propriedade intelectual; 3) spin-offs; 4) contratos com a

indústria; (ii) dimensão social - 1) compreensão pública da ciência; 2) participação na vida social

e cultural; 3) participação na elaboração de políticas; 4) contratos com órgãos públicos (INZELT

et al., 2006).

O Projeto E3M - European Indicators and Ranking Methodology for University Third

Mission, cofinanciado pela Comissão Europeia, no âmbito do seu Programa de Aprendizagem ao

Longo da Vida, foi realizado entre os anos de 2009 e 2012. Nesse estudo afirmou-se que a terceira

missão diz respeito às atividades de produção, utilização, aplicação e exploração de

conhecimentos e de outras capacidades da universidade que alcançam o público externo. Sendo

assim, a terceira missão é constituída por três dimensões: (i) educação continuada; (ii)

transferência de tecnologia e inovação; e (iii) compromisso social, em consonância com o

8

desenvolvimento regional/nacional. Entretanto, a grande variedade de atividades que pode

integrar as três dimensões da terceira missão abrange diferentes tipos de atores, diferentes

estruturas e mecanismos, entre outros fatores, o que torna complexa e difícil a sua identificação e

monitoramento (E3M, 2012).

O Manual de Valência7 é um projeto iniciado em 2009 e destinado à criação de

indicadores de vinculação da universidade com o ambiente socioeconômico, a partir do encontro

de especialistas realizado em Valência, na Espanha. Na ocasião foi elaborada a primeira versão do

Documento de base para un “Manual de Indicadores de Vinculación de la universidad con el

entorno socioeconómico” (revisado duas vezes; a primeira em 2011 e a segunda em 2014).

Inspirado principalmente nas definições e classificações estabelecidas por Molas-Gallart et al.,

(2002) (Final Report to the Russell Group of Universities), mas também em e Schoen et al.,

(2006) (Strategic Management of University Research Activities, Methodological Guide) e outras,

o Manual não apresenta inovações conceituais, pois adotou os conceitos desenvolvidos nos

estudos citados. Da mesma forma que as iniciativas apresentadas nos itens anteriores,

recomendou-se a utilização de uma abordagem holística para evitar uma cobertura parcial da

terceira missão. Definiu-se que a terceira missão representa o conjunto de atividades universitárias

relacionadas com a geração, utilização, aplicação e exploração das capacidades de conhecimento

e outras capacidades da universidade fora do ambiente acadêmico (D’ESTE, CASTRO-

MARTÍNEZ; MOLAS-GALLART).

A última iniciativa selecionada contou com a participação de universidades brasileiras, a

Unicamp, como sócia, a Universidade Estadual Paulista (UNESP) e a Universidade Federal de

Viçosa (UFV), como colaboradoras. Trata-se do Projeto Vincula Entorno, cofinanciado pela

Comissão Europeia8 e pelas universidades participantes, iniciado em 2012 e finalizado em 2014,

teve como temática a terceira missão da universidade. O objetivo principal do Projeto foi o

seguinte: “Potenciar lãs relaciones de las universidades con el entorno socioeconómico mediante

la promoción de la 3ª misión y el desarrollo de estructuras específicas que permitan el desarrollo

sostenible a favor de los sectores más vulnerables” (MORA; VIEIRA, 2014, p. 3). Para o

Projeto, a terceira missão representa um amplo conjunto de atividades que estão ligadas à geração,

uso, aplicação e exploração do conhecimento e de outras capacidades geradas na universidade e

7 Uma das principais diferenças entre o projeto Manual de Valência e as outras iniciativas apresentadas é a

participação de universidades da América Latina. Os países envolvidos são: Argentina, Uruguai, Brasil, México

e Espanha. 8 O Programa ALFA da Comissão Europeia é voltado à cooperação entre instituições de ensino superior da

União Europeia e da América Latina, com o intuito de promover o intercâmbio acadêmico entre as duas regiões,

para aprimorar capacidades dos indivíduos e das instituições (universidades e outras organizações relevantes).

9

direcionadas a públicos não acadêmicos. Estabeleceu-se que terceira missão envolve atividades

ligadas à pesquisa: transferência de tecnologia e inovação, entre outras; ao ensino: aprendizagem

ao longo da vida/educação continuada etc.; e compromisso social: acesso público a museus,

concertos, conferências/palestras e outras abertas ao público, trabalho voluntário, entre outras.

Entende-se que atualmente existe um entrelaçamento dos conceitos de extensão e de terceira

missão na América Latina, em que pese a resistência de alguns grupos ao envolvimento da

universidade com o setor produtivo (MORA; VIEIRA, 2014).

Finalmente, é importante observar que em todos os estudos/projetos foi possível

identificar diversos aspectos comuns, tais como: abordagens ampliativas da terceira missão; a

identificação dos elementos que concorrem para o seu sucesso (institucionalização,

estabelecimento de estruturas de apoio, engajamento da comunidade acadêmica, valorização dos

docentes, comunicação e outras); o estabelecimento de indicadores para a identificação e

mensuração das atividades da terceira missão e de seus impactos (somente no âmbito do Projeto

VINCULAENTORNO não foram apresentadas), entre outros.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os papeis da universidade e a compreensão da sua função social tem sido repensados,

especialmente devido às mudanças que se processaram na sociedade. Se antes esperava-se que

realizasse ensino e pesquisa de excelência, no século XXI espera-se que também se envolva mais

ativamente com o seu entorno, que interaja com diferentes públicos, coproduza, compartilhe e

difunda conhecimento; que contribua para o desenvolvimento social e econômico, especialmente

o local; promova inclusão; que se autofinancie etc. São muitas as cobranças e as responsabilidades

que a instituição universitária vem sendo premida a assumir, tanto para justificar o financiamento

público, como também para fazer-se mais visível e manter ou aumentar a sua reputação.

Sabe-se que ainda não existe um entendimento consolidado a respeito do nome que deve

ser atribuído a esse envolvimento da universidade com as suas comunidades ou com a sociedade

em geral, nem quanto às atividades que devem ser eleitas como representantes desse

envolvimento. Em vista dessas constatações, desde os anos 2000 vem sendo conduzidas

iniciativas para o estabelecimento de uma conceituação ampliativa da terceira missão, na tentativa

de alcançar o amplo conjunto de possibilidades de relacionamentos que não conseguem ser

captados pelas abordagens restritivas.

A terceira missão deve ser abordada de uma forma ampla, que abarque as inúmeras

possibilidades de atuação da universidade na sociedade, cabendo a cada instituição realizar as

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adaptações que forem necessárias. Portanto, conclui-se que a terceira missão envolve a

transferência de tecnologia, mas não somente; a terceira missão também engloba as atividades da

extensão universitária, em todas as suas manifestações e todos os possíveis envolvimentos que

possam ser pensados e efetivados no futuro, pois trata-se de um conceito em construção. É uma

expressão que a princípio denota amplitude, como afirmaram alguns estudiosos, mas somente será

genérica se não houver um esforço para a identificação das suas dimensões, e dentro destas, das

diversas possibilidades de ação. Sob essa perspectiva, pode ser vista como um grande “guarda-

chuva” sob o qual é possível agregar todos os tipos de relacionamentos da universidade com o seu

entorno e com sociedade em geral.

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