as medicinas

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Terceiro livro de poemas de Sebastião Edson Macedo, publicado em 2010 no Rio de Janeiro, Brasil.

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© Sebastião Edson Macedo, 2010© Oficina Raquel, 2010

Produção, projeto e artesanatoOficina Raquel

Ilustração de capaSebastião Edson Macedo

RevisãoClarissa Penna

Sebastião Edson Macedo. As Medicinas. . Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2010. 84 p.

ISBN 978-85-61129-18-7

I. Poesia Brasileira 2. Sebastião Edson Macedo

Oficina Raquelwww.oficinaraquel.com

“que este livro dure até antes do fim do mundo”

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of

naiRaquelC

as medicinas

Sebastião Edson Macedo

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índice

arruda rosa dá-me um punhado de cavalosuma abóbada importanteceluta de pedratapera taperinhao que não se guardacosta dos abrigos umde dezembro a janeirovirgínia e a tempestadedos alimentos la antiquissimaexcelência dos simplesdilassundingauma brechapequeno da silvaraptoich habe genugdiferença entre dois gamosinício de um sonho literalcosta dos abrigos doisdois acasos trêso título que essas coisas levammíris dirige-se a iuno por ocasião de sua mais

|completa orfandade ano de dois mil e noveo lincepara o lado aronda diplomáticatestemunho sobre a poesia no brasilacordar com chuva

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as visitas repentinasnenhuns oloresmiguel considera margaretepoema para partircomentário à quentura dos diasa montantea boca januáriasumiê para a mãe de gabrielo chá verdecosta dos abrigos três a cigarrarecesso de pentecostes e frente fria no rio de

| janeiro horto da conceiçãooutra visitaas obséquiaso pintor amarelodo restoportão das sete e trintamanuela e o orvalhoo futuro outroracosta dos abrigos quatroo solbastante jaconéwidescreenuma foto na arrumaçãoum cômodo recém desocupadoo que não se escolhena areia onde principia

Posfácio: As medicinas do outro, por André Dick

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arruda rosa

vaqueirinho sebastião encomendou rezasá donana põe a veia no lugar o sol se aguçando no ombro dele chega nome de bicho eu lembro de mansode assustado e esquecido no medoque nunca tiveram fim na mata cheia as histórias do meu corpo negroe grosso e encarnadono corte do meu cabelo feito de fogo e reses

vaqueirinho sebastião que peço lumesá menina é boa gorda de coragem a vereda mudando pro sossego no joelho delechega nome de estrela eu sei de pontade rabeca e besouro na testaque valei-me deram fim na areia arruda rosa do tempo feito de véspera e figas

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dá-me um punhado de cavalos para que eu atravesse a| fronte do mundo

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uma abóbada importante

para quem tinha enormes montanhas postas em movimentoe zelava os contrafortes do amoré estranho que abrevie na boca a imensidão do tempoesse tempo roxo sem tamanho algum

porque já habitam árvores de páginas muito incertasas difusas velocidades da dore é provável que vocês nunca mais façam os olhosdesses olhos queridos ao longo do céu

para quem tinha acabado de perceber o atrevimento da mortehora de atrelar um carro ao boi

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celuta de pedra

faço o mesmo barulho de panelascom as minhas avós que faziam lá em casasempre de cadeira para tirar o nódar uma garapa na beiça que fadiga

o dia claro segue sem tréguae não é inútil silêncio o de cada coisaque agora me vigia dona purificação

amparo que todas elas se chamavam marianas panelas a fábrica de voltarpara o sertão da vó funda ainda o fimdos meninos menino diabo sem mundo

não tenho medo masca ela tem um século de peito e vive só

conversa besta deus é uma espingarda

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tapera taperinhaque eu assentei por cima da idadetão encontrada na lasca de minha andançana eira a lâmpada que forna uma voztua súbita voz sobre o rio da cura

atendo que a madeira fazia minhafamília toda de sintaxe e azulpodia bater palma pedir informação barbante

tapera que era de se esperar chuvamarcada para tinir dentro em quanto da gente com o queixo no tempochega a estrada se larga em rima terçãtapera taperinha

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o que não se guarda

não temos amparo para o pequeno anjo neste mundo definitivo

porque não há anjo que seja pequeno nem mundo que nos possa definir

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costa dos abrigos um

inhazinha pretaquando só o chinel

mas onde o chinel dodôdodô nem repara agachado no pote

o tempo fuma mozifio

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de dezembro a janeiro

finíssima branca infantila minuciosa língua da chuva sussurra em cima da minha casa ao redordos meus anos crescem árvores nobrese discretas alegrias que não sei fixar

a noite foi aconselhada pela voz das tiase dos primos galhosuma corola de sangue desabrochoufiníssima rubra sem as rimas os freios

falo a língua que desce sobre o meu corpominério com todas as crianças sossegadas de manhãno sofájunto ao imenso ombro com que reparo o mundodentro do mundo um minúsculo lagar

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virgínia e a tempestade

para amaciar a carne rubra do coraçãoa sós e alagado o sangue exige uma atenção de zinco e um cuidadocom os excessos da fauna e do açúcar

embora seja importante ter a língua pequenae dócil nos comandos de uma pauta já invisívelalardada quando menos se espera um fim

e só os rescaldos de uma tempestadeou os poemas de uma pessoa amiga receio podem bater por nós as pedras do mundosem os abrigos da nossa condição o mínimo fasto a cabeça sem eira em nada nos alvejar

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dos alimentos

uma memória comburente fóssil de inamovível peixe abissal deveras o é pros pulmões nas mansardas agora hamamélia que vou brotando a ópera que tem santo músculo em suas ruínas

se respiro o joio que há ázimo na fiação do amor essa palavra ateada de rastros e feras nos baraços nossos os matagais e não há outro oxigênio sem comover quem áspide

a gente sabe depende dele para içara pequena eternidade das estrelas conseguir alimentos alusões estros que migram de debalde e brasa quando soem nos baixios essas águasquando nesses furdunços movediçosdecantamos

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la antiquissima

vozde um mosto perdido de vozesde uma só vozque varre os ouvidos de todas as vozesa este pátio alarido mister e veladoa estes brinquedos de leite estes brinquedos de cedrosombreando de meu o coração crisântemo firme ao largo líquido das vozes bojuda vozque torna em vozes humanas tão amontoadas e nuas ó descompassadas todas as orlas da tarde súmula e rosa sem ardência ou recesso do mundo minimamente comigo e daquilo que sounos ósculos redondos livres nas oiças rente às mesuras da voz essa voz úbere à minha romba renitentee ainda confim e ainda voz do presente profundo farto pigmentopor onde cresce o ouro aro lazúli que ouço assim eu sem medo voz do meu apelo voz novíssima ráfide confissão

em vós eu sei inteiro onde está a minha vida

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excelência dos simples

feição que faz parte do gestoesse que tu queres à beira do mundocaptarestando somente no julgotu o que desse mosto se pode incluirna prosana ceia

acaso teu pomo maduroacaso centenas de velas

deus te guie as quantas garrafasque a chuva delgada colhe da noite pálpebras de contorno confissão

deus te crie o juízo azeite odre que o pensamento enche sem chãonestas carnes de ciência baldia

acaso uma cantiga nodosaacaso teu pirão primeiro

feição que faz parte do linhoesse que tu temes aos brocados cornosvestirestando apenas mais roxotu o que desse mundo se deve deixarna podana veia

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dilassundinga

a lumeeira seguiu pela garganta do matoe lá no fim do mundo incendiou tudo que era gritofez escuro grosso deu pancada de chuva depois

quando se acabou eu peguei as crianças e sumio cão é que fica para invocar braseiro desse de graça

duvido que nunca nunquinha foi doido

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uma brecha

eu podia falar nua a minha língua de lagartos e rojõeseu podia me embrenhar pelo sertão das califórnias na largura

|de outro milênioeu não precisava cumprir o instinto de sede ou demoraeu estava de sangue presente eu via a cabeça do mato se

|coçando para ateareu podia ficar um santo ladrando o meu nome e jamais

|abandonar o breueu podia muito bem eu podia fácil e o salgueiro eu podia até

|os ossos

mas acontece que a pomba escafedeu merda quê que eu | faço agora

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pequeno da silva

os dias me deram sinais de chumbo no peito peço aos amigos desculpa pelo que fui de refém das nuvens

não estou no esforço das sacudidelas de poeira só mas uma geral no coração que além tive um digamos acometimento uma paixão devastadora e etéreanão durou mais que o ruído das esperas e nelas esboroou

pungido é mais difícil se proteger e desacreditar do solpondo vida na água e destino nos dentes

que me concede recuperar certos demovimentosartérias para esta cidade este fúlgido tempo de sinais?

suturas?

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rapto

enamoro-te táctil romã

em teu barro poente o ouro rebocoque se movem telhas potes ripasaté as gamelas latas de minha mãetudo misturado num pilão de cor

trago teu saborà tinta ponta da palavra prove

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ich habe genug

as lavandeiras de meninocomum a vário contento e tanque

com elas as goiabas descem baciasmergulham os olhos nos cardos dizemcomo é fino o teu cabelo

claros e recentes estão os lavores da canção que não existee o fundo que eu piso com o amorde um barro vizinho ao nome da mãemeu bem

dá teu aniversário ao meninosegura com ele as lavandeirasbem na tua bastura a ablução

o vário dia em nosso regaço como quem passarinho na poça

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diferença entre dois gamos

eu me chamo do teu paísés a montanha onde estanco o meu coração o horizonte aberto por cima dos erros

quero de tuas colinas amarelas a mulher argilosa e lentaque me asseia os olhos e os firmes genitaisna pegada certeira teu pulso de puro homem e baobáa me sustentar a voz num rápido animal

tu te chamas da minha idadesou a planta que cresce em teu pensamentoo oxigênio querido para esse pulmão

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início de um sonho literal

não sei mais a diferençaa valia que importa seres tudeus é o outro da minha face

se te vejo no jeito de alguém no meu pela casa rezo

mas não sei aonde és eua simetria que me ancora ao senhoras tuas laranjas na sestao talco do sono sobre a cidade

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costa dos abrigos dois

terreiro de casa eu desenho engraçadocom meia tarde num balde de maracujá

amarelo da fala deitando madeiras por dentroe o claro encharco do sol pelas paredes

por onde se abismam os condimentospor onde gabrielinha preta passa

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dois acasos três

esperei muitas folhas caírem pela tua aparição em meu |correio

diminuí os olhos risquei ofertas de quarto e sala e foram |ruas

com pessoas de toda sorte desaparecendo em teu nome |tão pequeno

não sou capaz de precisar o que escapou das iscas na |minha sede

nem mesmo o meu cabelo cortado ou não e a alameda |esta tarde

que tomei sem acaso para evitar o desconto dos teus |compromissos

posto como uma vida real entre outras vidas num |recomeço decerto

sei que fica repleta a hipótese da alegria remota a próxima |estação

por isso persiste diante de mim a árvore da tua serena |mensagem

simples como conviria a uma última caminhada junto até |a condução

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o título que essas coisas levam

tu nunca serás meu e decerto quando te soltaste em minha boca nunca o foramas daqueles dias de escassas e salteadas histórias que podíamos recortar do que podíamos ser e tão intensamente quiséramos

eu não pude agarrar outra compensaçãopara a falta que me fizeste um amora não ser a sondar onde começava o teu nomee onde ias acabar aquela conversa que tiveste comigo

naqueles dias eu fui teu tão absurdamente que quando alquebraste depois teu destino em mim eu ficarae com esta memória que só te guardou as falas que não posso entender porque não as quero largar mas copiosamente tento

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míris dirige-se a iuno por ocasião de sua mais completa orfandade ano de dois mil e nove

o cristal que não quebraiunorecusa

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o lince

finalmente sonhei com o linceque era o pedreiro da casa que me acolhiae eu queria ser depois do jovemdepois do telhado até a chuva que o lince esperava rarearcom as orelhas livres comigo heráldico elão lince

vai passeia no mercado da gentecheira os portões a louca

eu esqueço-oimbuído do céu que se emborca no lagoimbuído do quase da noiteque acolhe a nossa casa no nada

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para o lado a

posso irera o sinal da minha soltura à porta do abraço e vindo novas derivas perguntando se para casahavia o que fazer havia intenção riso qualquer

cola era o sinal da tua agenda providenciada num relâmpago rascunhoe em segundos o elevador querido

não era para segurar a minha bocatampouco ocupar o juízo com outro desejo menos desolado era o sinal que tinha apenas a minha soltura ao apagamento dos prédios e algum precipício legível no aperto de mão apertado deveras um dia se eu quiser ligar possocom propósitos e fitas

a minha casa vai houve a minha casade ira certa altura você pôs os olhos no empuxo das ruas nos demais

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ronda diplomática

nós ficamos realmente felizes quando os pensamentos desaparecem e já não temos nada para dizer nos instantes que nos restam como notícias de nós mesmos pelas esplanadas?

nossos pensamentos realmente desaparecemquando não temos nada para dizer nas esplanadas e sónos resta a víscera de uma felicidade tão deslizanteque trama sem nós o que seríamos mais tarde?

não teríamos realmente nada para dizerquando deslizamos pela tarde sem o nosso futuro e pron-too que somos aparece para nós como a realidade?

nós sabemos realmente quem somosquando as aparências nos calam e nada ousamos senãonos dar conta de que a gente é apenas feliz?

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testemunho sobre a poesia no brasil

depois da guerra chegou a mim um firmamentodaqueles que não diziam o menor estilhaço

era no campo de falas a cachorrada contra os metais

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acordar com chuva

acordar com chuva não hoje os dias que rumorejam minhas amarras meus dedos emporcalhados de uma fiança em riste acordarcom chuva quando há sol no vão dos prédiose a semana não desabou sobre a inclinação das pendências

carregavas a fala no céu veementee enquanto dormias distraído da conspiração de tuas águas mais escuras arrebentou-se o silêncio fosco dos receios disparadosem tudo e eram urgências encharcando o ouvido do mais espesso passado acordar com chuva em pleno sol acordar seco sólido acordar a manhã limpa o coração tão estrondo

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as visitas repentinas

sonhei que eu me perdia das visitase ia parar dentro de uma favela

a miséria carcomia as casas e as notícias das criançaseram um buraco nos panos os objetos cortantes padeciamde doenças negras fétidas as ruas eram perfuratrizespara as mulheres vedadas eram bares reduzidosà freqüentação do sucesso a favela emendava com outracujos cachorros se coçavam à beira de latas de tintausadas como panela e tevê os ônibus pachorrentosbufando no semáforo em carne viva não era um sonhoera um buraco embaixo do viaduto por onde eu saíasujo de todo tipo de asneira bate boca arrogância

lembrei desse sonho quando a cobradorame olhou com a cara emperrada

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nenhuns olores

meus olhos de um pretume animal verdadeirocontra o calmo acendimento dos flamboiãs no mundocontra o pescoço do mundo rente ao envergado tempo que háem tudo cheirando já às crinas plenas do verão

a quimera magenta do bosque eu cresci longe de casa

ouço a minha história no sossego dos matagaisaté a pauta dos grilos na lívida boca da flor onde se imanta o fundo deste diaonde o dia dum boato solto nos calendáriosvira nenhum dos homens e a estância vai sabendo não ter verbenas nem destinos

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miguel considera margarete

reparaé para a perda que tudo fluié na ausência que tudo floresce

claro claroo coração dele se enche de alívio

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poema para partir

volto para casa diferente do relâmpago entretanto o luzeiro são ruídos que façona atmosfera embaraçada no destino da fala encosta os teus gestos flexíveis na paredevê se o resto do edifício desaba a escrita é uma visitação abandonada

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comentário à quentura dos dias

o amor rende na gente um equinócio e seu enlacenos campos açulados do afetoque crescem e são muitos de fazer inteiramente próximo um vaso cheio de paciência em seu hálitobalido por nossa conversação isso como uma espécie um feitio de renda

e tu te vais também um bocado haver como vão longes quentes dias de trabalho e pássarodesde muito cedo se se conhece com a morada e o torpor uma alegria assim tão qual o campoe a água num pedaço de sossego num amigo como vai ficando bonito de ser

vem naturalmente límpido então seu galgar uma sílaba que sejamos de barro se nos faça o arrebol do crescermos muitos porque o amor rende na gente vários banhos e o refrigério desde muito cedo de seu descanso vem sua saúde

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a montante

a lontra que torna a minha bocarápida de graçapara o gosto lado desse riopara deitar hidrodinâmico nunas patas avantajadas do solsó um pouco maise fendapara a maravilha sorte do matosenhor que a minha boca novamentede longe verga fora

a lontra

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a boca januária

eu sou largo mesmo quando tardao movimento da chuva embaixo do sol por sobre a brandura com que vou dando acabamento aos anos muito feitos dentro das convulsões do firmamento com o que se há de entender e vôopara quem possa legar um faminto à vigainteira e benigna da pressa por assomarnossa lavoura e nossa límpida sortesem saber dos verbos quando tivermosos cabelos uns dos outros para beijar

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sumiê para a mãe de gabriel

trago a nossa vida para junto da cerejeira que deste agora em flor

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o chá verde

o chá verde é pleno de maravilhas há muitas palavras para descrever seu aroma e seu sabor

eu posso dizer-lhe da temperatura do chá enquanto o sorvo à xícara do olor que enche minhas narinas bem na hora em que minha língua prova das primeiras gotas

eu posso explicar-lhe as serventias do chá

mas enquanto não tiver a experiência do chá terá apenas um rude conceito do que pode ele ser

a menos que o sorva por si à xícara jamais estará tendo a experiência verdadeira

o chá verde é pleno de verdadese nisto está a verdade de maior verdade

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costa dos abrigos três

chora o imbondeiro bola

chongaque da machimbomba se vê

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a cigarra

o claro do dia apraz à minha escuridãomas a seiva da minha voz noturna faz de mim um povoamento                                                           uma luz

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recesso de pentecostes e frente fria no rio de janeiro

benquisto és tu iuno domador de avenidas e estrelas benquisto entre os peixes mansos as madeiras iuno os costadosbenquisto fiando o teu rumo nos apitos hialinos das barcas benquisto no prumo das deidades de teu equinócio natal

eu saúdo os trinta e nove anos que te guardaram a sortepois recebo nos teus traços o meu destino outra vez

tu iuno sobranceiro ao meu concentrado alvoroçotu nos banhos tu no tempo tu nas sílabas de algodãobenquisto quão benquistas são as verdades mais líricascontigo iuno caminhando pelas quinas de são pauloa renovar benquerenças e pulmões com as nuvens montreaisbenquisto cada vez mais naquela niterói ainda criançapois na tua clave desabotôo eu a chuva feliz e o sol e ressalvo a louça o leito a boca que tu plantaste na minha

benquisto és tu iuno siderado pela libertação do rostobenquisto a comer o trivial e a ter regatos riquíssimos iuno nos sobressaltos do pensamento ao retornar para o serviço benquisto tu e os teus cães sábado bem de manhã sem o peso do mundo nos indícios do recesso outra vezbenquisto com o musgo que cresce sobre o teu coraçãoe nos teus sonhos eu assunto fundo o suficiente para a vida

porque eu estava roubado iuno e tu pensaste num cafée me devolveste aos arroubos inteiramente lisos cetáceos

benquisto és tu iuno seja lá quem fores no horto que me dás

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horto da conceição

abotoadura que se vai amansandopois eu vi essa alegria na flor do quiaboenvergado meu pensamento sob o sol

assim volto para a aba do amorde tão descansados caminhos por mostrar

aquiescência quando menos se crêpois reconheci o seu coração pela brisaacordada minha existência nesse dia

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outra visita

repara o besouro meu bem

não tens que temer o vôo que se prepara com ele tu como ele um mato em que não repara ninguém

sim repara és tu que existes na fala meu bem

não tens que fundar o outro que pousa o besouro em ti ele como tu uma sala em que nunca existe alguém

não existe sou eu

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as obséquias

era real e doce e era novamentereal e doce o teu passoe era dentro da minha vida de voltae de lábaro todo o tamanho do ar ao redor da nossa beira

|novamente

eu não tocaria mais em desespero nem amontoadas as flores|à venda

eu não deixaria livros a mais casas e coisas cheias de conseqüênciasno mais das obséquias

era sábado e imaculado do tamanho do tempo ao redor da vida|novamente

era novamente e clássico de frescor a minha boca semiaberta para a concórdia que era colada à tua inteira alegria e rosasganhando novamente os panos das pessoas no tamanho do redor

|ao ar da gente

e é conseqüente e grato e é real

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o pintor amarelo

o coração andauma enormidade pelas beiradas de um sossego tão arisco

foi aí que as ataduras do sono desfizeram seu laçotosco sobre todos os pinos que uniam o solnuma idéia de travessia

e sem perceber o que estava sendo ditoele tomou uma cadeirae compreendeu

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do resto

a estúpida simplicidade das roupas de cama depois

do sol sobre o cestodo alpendre prazer em viver a casaboquiaberta para a dissipação do resto do mundo sustentado à beira de cada longe e ruído

a rua que aqui vai dar numa folhinha amarela lábios

hão de plantar um sono hão de guardar os batentes do amorjusto sob a firme luminosidade das ilhas que desaparecem em algum lugar nos pensamentos

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portão das sete e trinta

riscar fósforos foi no contorno de minha mãequando os anos eu tinha o tio geminado no mato alto fazia seu silêncio em mim as letras do nome dela quem tem água e sabe como é se perder no cemitério

quanto dos panos para irmos agoraquanto do carrapicho para voltar com a canela vermelha a bola

foi riscar fósforos no minério de minha mãeonde as cabras eu junto a gabrielinha a carlinha vamborana ponta esquerda do coração na gargantaagora acima do mato se acendi eu sei como ése acender fósforos

basta riscar assim de frentee de uma só vez eliminar o medo no silêncio do tioo caçulagerminei a força de ter sido eu a dar a luz

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manuela e o orvalho

não é dezembro desenvolvendo suas águassobre a tenra envergadura desta manhã

é outro bem que se chama manuelae o resumo da noite que se chama orvalho

evidências graciosas plenas repousadasnas longas hastes da minha única história

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o futuro outrora

desenganos há em que o telefone tocae uma certa metragem você vai concordar que ruiu

afinal é assim o confinamento do mundonossos enormes remendos para viver sem desvão

ventilava o meu nome em seu juízo outro dia mas dessa vez foi a nua cidade que tudo alentou

eu bem entendo o desembaraço de sua anuênciaafinal tem recesso a valia das mães e dos operários

e a grata alegria se você duvidar é concreta desapegos há em que o sol aparece

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costa dos abrigos quatro

meço quantos palmos de alegria a gente precisa para trepar as caieras

durante as enchentes a largura do leito vematé a barra da nossa mesa e conta tudo que é tronco bate o pé três vezes avexado

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o sol

o sol é invariavelmente simplesele nasce na nossa cabeça de manhã e põe a noiteem nossos olhos depois do entardecer ele sobeas pedras negras e desce pelos ribeiros das cantigas

quando está nublado dentro de casa o sol espera a comida esquentar dias há em que o sol nos lembra a limonadao papagaio a china mas nunca estivemos na chinae o bico dourado do sol entre as mangueiras sóde longe um hino vai remedar

a revoada sim qualquer uma ao sol advém em seus alvores esquecemos um nome para dar às fadigas ao azo de tanto tanto dia

porque de dia a gente toma o sol nas penugens do bebê

assíduo distinto e simples de rosto

o sol é invariavelmente conosco nossa cabeçasua cabeça seu ombro moço nosso puro tendão

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bastante jaconé

no peito do mar um palmo de nada eu seidos caminhos e das palavras sob o sol de ver setembro em tuas roupas livres ao colorido da ondulação a colina que ultrapassamos ouvindo canções estrangeiras bem ali dos que pescam a pé

os pensamentos não vão muito longe agora

dá os olhos aqui minha foto preferidalivre de toda fotografia de fato nessa areia roliça e cruanesse entendimento de como viemos a nos amar

talvez pensemos devagar nos sabores nítidos do céuquando a noitinha encostar sua nudez na nossa porque tanto litoral tem raras liberdades

os anos passam dentro da tardee nem um pouco nós nos importamos da hora

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widescreen

não sei destes plátanos quantos hei de guardar o bastante para tornar a entrar de bicicleta o poente adentro cathedral oaks sentido fairview em silêncioacompanhado pelo que sou com luvas de malha negra e a discreta inquietude de um poema que não tem a menor pressa

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uma foto na arrumação

acho que é burbank meadows um arredor norte muito depois de oxnard num meio de tarde em que choveu e eu não desci do ônibus para esticar as pernas desci a consciência sobre estar realmente longe da minha noção de mundo dentro dum ônibus um pouco mais caro chamado shuttle que deixa os passageiros de porta em porta e eu era certamente o cheio de olhos o do endereço mais longe ali eu vi a minha ferida sarando em família eu vi a minha alegria mais modesta se cumprindo

hoje das minhas presas do passado eu sou digno por ter conseguido ser apenas o que desceu do shuttle sem dar a gorjeta certa o cheio de propósitos esquecidos na densidade o que voltou para o lugar aonde sonha ainda mais longe agora

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um cômodo recém desocupado

mudar de vida pequenasem deixar exatamente as motocasbem no meio do banho

não se vai nem haver quem ficanos livros existidos estivaisda conversa espaçosa ali apaziguada

quem é meu um suave oboéque ondula nas águas esquecidas de deus?

sei o que é bom pra vocêcom o lado de dentro cheio de sim sol

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o que não se escolhe

mora nos meus cabelose nisto consiste o seu esporte

a mesma seta a furar o santovôo até o regaço da cajazeiravestida de sangüíneo e fruto

o mesmo sirgo a fechar o gestotalhado para a obra da voragemencharcada de prece e birra

desce pelos meus braçose eis no que resulta o seu bocado

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na areia onde principia

seja deixado em branco o avançar da manhãque do ardor se soltarão as mínimas florestas da luz um passeio que seja deitado na pouca palavra no princípio amistoso de uma sugestão com a voz

assim está bem quem veio do outono e quer ficare na terra miscigenada mora sem rigores ou teoria

seja dada essa alegria ao repontar confidente de tal súbita simencarnação

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as medicinas do outro, por André Dick

Nascido em Floriano, no interior do Piauí, em 1974, o poeta Sebastião Edson Macedo é um estudioso da poesia, com ensaios dedicados sobretudo à Literatura Portuguesa, além de tradutor exímio de poetas como Lee Harwood. No entanto, mais do que en-saísta ou tradutor, Sebastião consegue adentrar, como poucos, no próprio território poético, o que faz com especial desenvoltura em seu novo livro, que o leitor tem em mãos, intitulado As medicinas.

Diante desse título, que abre possibilidades para uma interpre-tação baseada na cientificidade do mundo moderno, em que o triste hospital de Mallarmé se reproduz com a intromissão da máquina no organismo humano, Sebastião nos adverte que as medicinas podem ser muito mais corriqueiras do que imaginamos, e estão inseridas nas ausências que existem em relacionamentos puramente humanos. Desse modo, o encontro com o Outro se dá por meio do poema, da página – e este tem o mesmo segredo que guarda a medicina. Mas o segredo, em Sebastião, não é científico. Cada poe-ma seu, além de representar uma medicina anticientífica, sob certo ponto de vista, guarda certa correspondência com a infância, pois, antes de preservar a certa ingenuidade própria de certo discurso modernista, adota uma visão que se amplia para fora, por meio da linguagem como experiência única do sujeito.

Vemos essas características num poema como “o chá verde”, em que a fala do cotidiano se reproduz numa “verdade”, mas não exatamente científica e sim “plena de maravilhas”:

o chá verde é pleno de maravilhashá muitas palavras para descrever seu aroma e seu sabor

eu posso dizer-lheda temperatura do chá enquanto o sorvo à xícara

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do olor que enche minhas narinasbem na hora em que minha língua provadas primeiras gotas

eu posso explicar-lhe as serventias do chá

mas enquanto não tiver a experiência do cháterá apenas um rude conceito do que ele pode ser

a menos que o sorva por si à xícarajamais estará tendo a experiência verdadeira

o chá verde é pleno de verdadese nisto está a verdade de maior verdade

O sujeito fala da experiência de sorver o chá da xícara, tratando do olor que enche as narinas, no momento em que a língua prova das gotas. Enxerga-se serventias no chá, mas a principal parece ser que, através dele, existe um afastamento do “rude conceito”, aproximando-se não de uma noção exatamente pura (não era este o objetivo, também, de Mallarmé), mas da “experiência verdadeira” que é sentir seu sabor – e nisto se baseia boa parte da poética de Se-bastião. Para descrever o “aroma” e o “sabor” das coisas, Sebastião não investe numa tentativa de cientificismo, nem transforma seus versos numa estrutura radicalmente simétrica e sem espaços. Ele sabe, como afirma em outro poema, que há uma “súbita voz” sobre o “rio da cura” – há uma voz humana sobre um “rio” que cancela a doença. Tudo é feito sob a “andança” que costura uma voz, como “dona purificação” (“celuta de pedra”). Porque, obviamente, ele é, ao mesmo tempo, um moderno e um humanista, no sentido em que esses termos não se contrapõem (muito já se disse sobre uma modernidade desumanizada, a partir de Hugo Friedrich e sua con-cepção sobre lírica moderna um tanto desestruturada), mas, sim, se complementam a partir de um olhar que se baseia em imagens

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que remetem à infância e esta significa, ao mesmo tempo, o Outro que está tanto dentro quanto fora da página. Mas de que infância exatamente Sebastião trata em sua poesia? Sob o ponto de vista do filósofo italiano Giorgio Agamben,

A ideia de uma infância como uma “substância psíquica” pré-subjetiva revela-se [...] um mito, como aquela de um sujeito pré-linguístico, e infância e linguagem parecem assim remeter uma à outra em um círculo no qual a infância é a origem da linguagem e a linguagem a origem da infância. Mas talvez seja justamente neste círculo que devemos procurar o lugar da experiência enquanto infância do homem. Pois a experiência, a infância que aqui está em questão, não pode ser simplesmente algo que precede cronologicamente a linguagem e que, a uma certa altura, cessa de existir para versar-se na palavra, não é um paraíso que, em um determinado momento, abandonamos para sempre a fim de falar, mas coexiste originalmente com a linguagem, constitui-se aliás ela mesma na expropriação que a linguagem dele efetua, produzindo a cada vez o homem como sujeito.1

No trabalho poético de Sebastião, temos a nítida impressão de que a infância coexiste com a descoberta constante da linguagem, em que “a infância é a origem da linguagem e a linguagem a origem da infância”, e o “lugar da experiência” é a “infância do homem”. Ele recupera a ideia de que o poeta é uma espécie de filósofo que vai realizando associações desautomatizadas, ligando signos a concei-tos deslocados de seu sentido original, produzindo o homem como sujeito, a exemplo do que vemos no poema “de dezembro a janeiro”:

finíssima branca infantila minuciosa língua da chuva sussurra em cimada minha casa ao redordos meus anos crescem árvores nobres

1. agamben, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e ori-gem da história. Belo Horizonte: Ed. ufmg, 2005, p. 59.

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e discretas alegrias que não sei fixar

a noite foi aconselhada pela voz das tiase dos primos galhos

(...)

falo a língua que desce sobre o meu corpominério com todas as crianças sossegadas de manhã

Sebastião se aproxima da consideração, feita por Walter Benjamin,2 de que o primeiro filósofo da humanidade foi não Pla-tão, mas Adão, por meio “de um processo em que na contemplação filosófica a ideia se libera, enquanto palavra, do âmago da realidade, reivindicando seus direitos de nomeação”. Esta nomeação adâmica “está tão longe de ser jogo e arbítrio, que somente nela se confir-ma a condição paradisíaca, que não precisava lutar ainda contra a dimensão significativa das palavras. As ideias se dão, de forma não-intencional, no ato nomeador, e têm de ser renovadas pela contemplação filosófica. Nessa renovação, a percepção original das palavras é restaurada”. Nos poemas de As medicinas, essa in-termediação com o sentido original de cada palavra é retomado de forma a gerar exatamente o ato de nomear, renovando-se por meio de uma contemplação filosófica particular, diante dos elementos da natureza, como se, no momento da construção do texto, cada palavra fosse utilizada pela primeira vez, associando-a a sentidos deslocados da realidade – não apenas através da simples metáfora, mas por um controle semântico e sintático deslocado do lugar-comum. Não por acaso, o poeta imagina uma chuva que sussurra, árvores nobres crescendo do seu passar de ano, e discretas alegrias não fixadas. A noite é aconselhada pela voz das tias e dos “primos

2. benjamin, Walter. A palavra como ideia. In: ______. Origem do dra-ma barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984. p.59.

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galhos” – numa analogia que crescem “dos seus anos”. A língua desce sobre seu corpo – numa constante renomeação do que o cerca – e as crianças estão sossegadas pela manhã, como minério à espera da descoberta.

Por isso, assim como em sua estreia com puro cego sol (lançado na antologia 8 poetas, em 2004), que revelou poemas curtos, frag-mentados, e de para apascentar o tamanho do mundo (Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2006), munido de uma mistura entre sonoridades que, para alguns, à primeira vista, podem soar neoparnasianas ou neobarrocas, Sebastião vai desenhando, em As medicinas, um espaço no qual a poesia se constrói por meio de analogias e ditos po-pulares, com um corte límpido e imagens dispostas e estruturadas como se fossem quadros. Os volteios dessa linguagem primordial estão ligados, com certeza, à fala popular, influência direta na linguagem literária, valorizando a linguagem cotidiana, as gírias, criadas sob medida para que uma frase soe mais musical, “como quem passarinho na poça”, entre lavandeiras, cardos e bacias de goiaba, como vemos no poema “ich habe genug”. Em poemas como “costa dos abrigos” (que formam uma série de quatro unidades), “arruda rosa”, “excelência do simples”, esse elemento é explícito.

vaqueirinho sebastião que peço lumesá menina é boa gorda de coragem a veredamudando pro sossego no joelho delechega nome de estrela eu sei de ponta de rabeca de besouro na testaque valei-me deram fim na areia arrudarosa do tempo feito de véspera e figas

(“arruda rosa”)

deus te guie as quantas garrafasque a chuva delgada colhe da noitepálpebras de contorno confissão

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deus te crie o juízo azeite odreque o pensamento enche sem chãonestas carnes de ciência baldia

(“excelência do simples”)

Eis a “ciência baldia” de Sebastião: a busca pela linguagem – no “deus te guie”, que dialoga com o fluxo da linguagem popular de certos trechos das Galáxias haroldianas. Por isso, refere-se a uma “memória que só te guardou [ao Outro visto pelo sujeito] as falas” (“o título que essas coisas levam”), e as vozes do sujeito estão es-palhadas e reunidas como seres dispersos na natureza, ao mesmo tempo em que desenha uma ligação direta com a vida: “ voz / de um mosto perdido de vozes / de uma só voz / que varre os ouvidos de todas as vozes / [...] / úbere à minha romba e renitente / e ainda confim e ainda voz / [...] / voz do meu apelo voz novíssima ráfide confissão // em vós eu sei inteiro onde está a minha vida” – voz e vida, aqui, em conciliação direta.

A fala do cotidiano, subvertida pelo sujeito, entretanto, não constitui-se no fonocentrismo prenunciado pelo filósofo Jacques Derrida na metafísica ocidental, sobretudo no ensaio A farmácia de Platão, uma vez que ela, na obra de Sebastião, só se realiza plena-mente na escritura. O teórico francês Roland Barthes já destacava que a escrita é “simbólica, introvertida, voltada ostensivamente para o lado de uma vertente secreta da linguagem”,3 “sempre enraizada num mais além da linguagem”, sendo “uma contracomunicação [que] intimida”.4 Sebastião representa uma quebra da realidade, em

3. barthes, Roland. Escritas políticas. In: ______. O grau zero da escri-ta: seguido de novos ensaios críticos. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p.18.4. idem, p.19.

5. ribas, Ranieri. “Desassossego dos sentidos: anotações à margem de

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busca de novos significados para a literatura, por meio da renome-ação dela própria. Para Ranieri Ribas, numa análise muito atenta de para apascentar o tamanho do mundo, na poesia de Macedo,

[...] a pesquisa com as palavras coloquiais da fala piauiense – ou expres-sões coloquiais do brasileiro em geral – assume a função de um registro escrito do que não é jamais redigido, mas apenas falado. Expressões como “trepeça”, “eu cato folhas na rua”, “escapole”, “sacolejo”, “sungo”, entre outras, compõe um esforço de imprimir na palavra escrita expressões que são apenas faladas. Estas falas, uma vez redigidas, mais do que memórias, constituem o gene do poeta, sua matriz, seu sangue arcaico e teimoso que vez por outra vem à tona e se manifesta quase como um ato falho.5

No caso dos poemas de Sebastião em questão, a lingua-gem – apesar de parecer distante da realidade em certos momentos por causa de algumas expressões raras – é produzida, em todos os aspectos por meio da incorporação de elementos do cotidiano, da memória fonocêntrica e de uma construção de imagens em que se fazem presentes com destaque símbolos da natureza: chuva, ani-mais, rios, sol, frutas, céu, nuvens. Fala-se, também, em matagais, flamboiãs, grilos “na boca da flor”, besouros, laranjas, cigarras, flores, no sol e na “pequena eternidade das estrelas” (em “dos ali-mentos”) e, em todos esses registros, é construída uma “língua de lagartos e rojões”. Por isso, como afirma ainda Agamben, a infância “realmente instaura na linguagem aquela cisão entre língua e discur-so que caracteriza de modo exclusivo e fundamental a linguagem do homem. Pois o fato de existir uma diferença entre língua e fala, e de que seja possível passar de uma a outra – que todo homem falante seja o lugar desta diferença e desta passagem –, não é algo natural e, por assim dizer, evidente, mas é o fenômeno central da

para apascentar o tamanho do mundo”. In: Revista Amálgama, n. 7. Tere-sina, out. 2008, p. 48-65.

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linguagem humana”.6 Desse modo, há algo, ao mesmo tempo, não exatamente ingê-

nuo, mas anticientífico, em sua descoberta da linguagem. Tudo parece ser habilmente pensado e refletido antes da execução verbal, muitas vezes elíptica e que, por isso, parece sintetizar a língua e a fala. Ele subverte a sintaxe de modo que a sua poética se torna estranha e com um preciosismo de vocabulário inusitado – desta-cando, com isso, a própria redescoberta da linguagem como “lugar da infância”.

Nesse sentido, no plano das referências humanas, seu trabalho poético se encadeia de modo até comum: há figuras que remetem ao cotidiano, a conversas com familiares – a “família toda de sintaxe e azul” (em “tapera taperinha”), sobretudo os tios e a mãe, sempre situando essa relação entre o barulho – ligado a determinados objetos – e o silêncio, não só da figura humana, mas de fagulhas circunstanciais de relacionamento: “faço o mesmo barulho de panelas / com as minhas avós que faziam lá em casa / [...] / para o sertão da vó funda ainda o fim / dos meninos menino diabo sem mundo” (“celuta de pedra”); “latas de minha mãe” (“rapto”); “riscar fósforos foi no contorno de minha mãe / quando os anos eu tinha o tio geminado / [...] / e de uma só vez eliminar o medo no silêncio do tio” (“portão das sete e trinta”).

Por sua vez, em um extremo voltado à inserção feminina, a figura da amada, em sua descrição minuciosa, é recuperada no poema “diferença entre dois gamos”: “quero de tuas colinas amarelas / a mulher argilosa e lenta / que me asseia os olhos e os firmes genitais”. Poemas como “o título que essas coisas levam”, “para o lado a”, “ron-da diplomática” e “comentário à quentura dos dias” mostram essa associação de imagens à presença feminina e do amor – o encontro com o Outro que anuncia a saúde. No entanto, os poemas parecem se dar mais como desencontros, em ruas, avenidas, apartamentos, elevadores, lugares do dia a dia em que o poeta desenrola sua trama

6. agamben, op. cit, p. 63.

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de observações: “esperei muitas folhas caírem pela tua aparição em meu correio / diminuí os olhos risquei ofertas de quartos e salas e foram ruas / com pessoas de toda sorte desaparecendo em teu nome tão pequeno”. São poemas autenticamente melancólicos, pois, embora pareçam alegres, acentuam um tom mais acidioso, em que o sujeito se interroga permanentemente sobre o objeto amado e o associa a vozes do cotidiano e a “brinquedos de cedro” e “de leite” – aqui o “brinquedo” sendo uma radiografia da infância e da própria convivência, em comunidade, com o Outro, como já percebia Walter Benjamin. Veja-se o seguinte poema:

o amor rende na gente um equinócio e seu enlacenos campos açulados do afetoque crescem e são muitosde fazer inteiramente próximoum vaso cheio de paciência em seu hálitobalido por nossa conversação

[...] o amor rende na gente vários banhos e o refrigério desde muito cedode seu descanso vem sua saúde

Além de representar o descanso depois do banho, o corpo traz a saúde, como um “vaso cheio de paciência em seu hálito”. Por isso, no excelente “miguel considera margarete”, Sebastião reúne perda e ausência, vendo nesta o “lugar” em que tudo floresce e na qual o coração se enche de alívio, pois a paixão é “devastadora e etérea”, e não dura mais do que “o ruído das esperas” (“pequeno da silva”). O próprio poeta se vê como provedor da saúde alheia: “sou a planta que cresce em teu pensamento / o oxigênio querido para esse pulmão” (“diferença entre dois gamos”). Nesse sentido, nada melhor do que a figura do sol para representar essa tentativa de localizar no Outro a saúde pessoal. Há um “sol no vão dos pré-

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dios” (“acordar com chuva”), um “movimento de chuva embaixo do sol” (“a boca januária”). Como destaca Ranieri Ribas, a “metáfora da percepção mais utilizada por Macedo é a figura do sol, agente clarificador, o que ilumina o mundo e permite a visão das cousas. Mais do que isso, o sol aparece sempre como metáfora de expo-sição ao mundo, dar-se à vivência do mundo”.7 O sol, sob nossas cabeças dia a dia, também significa a renovação e a permanência: como a linguagem, em que se descobre continuamente a infância. Isso se alarga para a visão de cada objeto que Sebastião enfoca. Veja-se um poema como “esta acácia dura”, de para apascentar o tamanho do mundo, em que o poeta relembra a infância por meio da “acácia”: “esta acácia concebe / canta lava / faz a chuva mais renitente que almejas / a toalha o colar mais presente de família / / porque passam os carros sopram velas telegrafam / esta acácia hoje mais contigo / a semana que soletraste nas pétalas / este zelo confeitado de candura e véspera / porque declaram calores e frutas / sorriem provas de afeto / / esta acácia anuncia / estende tece / tem a saúde mais arrojada que imaginas / a sandália o portão mais perto da infância”. Daí, a ideia de infância como origem da linguagem, como pudemos ver em Agamben, se faz presente em todos os poemas, como se ele estivesse aprendendo ainda a lin-guagem que utiliza, invertendo sentidos, de forma anticientífica. No livro anterior, em versos como “eu moro uma palavra em tua mão peregrina”; “os mínimos olhos tornados a pétala / o labor”; “chuva íntima / navegando meus olhos dentro”; em As medicinas, em versos como “em pleno acordar seco sólido acordar a manhã / limpa o coração tão estrondo”; “[...] cada vez mais naquela niterói ainda criança / pois na tua clave desabotoo eu a chuva feliz e o sol / e ressalvo a louça o leito a boca que tu plantaste na minha” (“recesso de pentecostes e frente fria no rio de janeiro”); “volto para casa di-ferente do relâmpago / [...] / a escrita é uma visitação abandonada” (“poema para partir”). As frutas, plantas, mudanças de tempo e flores acompanham essa visão, ligando-se tanto ao corpo humano

7. ribas, art. cit, p. 59.

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quanto a sensações que remetem a um passado longínquo, de uma cidade no interior, por vezes irrecuperável. Junto a esse olhar singular sobre a relação entre o sujeito e a natureza, o sentimento é sempre reflexivo. É exatamente pela reflexão – o brinquedo do olhar – que Sebastião procura uma forma de duração mais profícua para seus textos, mostrando uma sensibilidade contemporânea e a abertura ao diálogo com outras obras. De uma forma que a fala do Outro se insere, e se percebe que, ao fim de tudo, as medicinas “fazem uma espécie de mediação entre os haveres e os sentires, entre as percepções e os entendimentos, entre, enfim, os homens e os homens, ou os homens e as coisas”.

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Sebastião Edson Macedo nasceu em Floriano, interior do Piauí, em 1974. Publicou para apascentar o tamanho do mundo (Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2006) e cego puro sol (Rio de Janeiro: UFRJ/FL, 2004).

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OEste livro foi com-posto em papel pólenbold 90g, com a fonteAdobe Jenson Pro pela

Oficina Raquel, imressopela Gráfica Imprintaem junho de 2010.

“Que este livro dure atéantes do fimdo mundo”

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