as figuras de argumentação como estratégias discursivas. um

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    As Figuras de Argumentao como estratgias discursivas. Um estudo em avaliaes no ensino superior.

    Mrcia Regina Curado Pereira Mariano

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Filologia e Lngua Portuguesa do Departamento de Letras Clssicas e Vernculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, tendo em vista a obteno do ttulo de Doutor em Letras.

    Orientadora: Profa. Dra. Lineide do Lago Salvador Mosca

    So Paulo 2007

  • 2

    UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    As Figuras de Argumentao como estratgias discursivas. Um estudo em avaliaes no ensino superior.

    Mrcia Regina Curado Pereira Mariano

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Filologia e Lngua Portuguesa do Departamento de Letras Clssicas e Vernculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, tendo em vista a obteno do ttulo de Doutor em Letras.

    Orientadora: Profa. Dra. Lineide do Lago Salvador Mosca

    So Paulo 2007

  • 3

    FOLHA DE APROVAO

    Mrcia Regina Curado Pereira Mariano

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em

    Filologia e Lngua Portuguesa do Departamento de

    Letras Clssicas e Vernculas da Faculdade de

    Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade

    de So Paulo, tendo em vista a obteno do ttulo de

    Doutor em Letras.

    Banca Examinadora

    Data da aprovao:

    Prof. Dr._______________________________________________________________

    Instituio:______________________________ Assinatura_____________________

    Prof. Dr._______________________________________________________________

    Instituio:______________________________ Assinatura_____________________

    Prof. Dr._______________________________________________________________

    Instituio:______________________________ Assinatura_____________________

    Prof. Dr._______________________________________________________________

    Instituio:______________________________ Assinatura_____________________

    Prof. Dr._______________________________________________________________

    Instituio:______________________________ Assinatura_____________________

  • 4

    DEDICATRIA

    A meus pais, Emlia e Manuel, pelo exemplo de fora e

    superao de limites.

  • 5

    AGRADECIMENTOS

    A meus filhos Anne Caroline e Guilherme e a meu esposo Wenilson, pelo apoio

    e compreenso durante todo este tempo.

    A meus familiares e amigos pela fora e companheirismo.

    Profa. Dra. Lineide do Lago Salvador Mosca pela orientao, compreenso e

    disponibilidade.

    Profa. Dra. Norma Discini, do Departamento de Lingstica, e ao Prof. Dr.

    Luiz Antnio da Silva, do Departamento de Letras Clssicas e Vernculas, ambos da

    Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas pelas orientaes oferecidas por

    ocasio do Exame de Qualificao.

    Aos professores e instituies que colaboraram com o material aqui analisado:

    Profa. Dra. Alessandra Del R da Universidade Estadual de Araraquara, Prof. Dr. Luiz

    Antnio da Silva da Universidade de So Paulo, Profa. Dra. Esmeralda Vailati Negro

    (coordenadora do Departamento de Lingstica na poca em que fiz parte de seu corpo

    docente como professora temporria, e que me autorizou a utilizar as provas aplicadas

    no perodo), Faculdade de Taboo da Serra e Faculdade Associada de Cotia.

  • 6

    No me importa a palavra, esta corriqueira. Quero o esplndido caos de onde emerge a sintaxe, os stios escuros onde nasce o "de", o "alis", o "o", o "porm" e o "que", esta incompreensvel muleta que me apia. Quem entender a linguagem entende Deus cujo Filho Verbo. Morre quem entender. A palavra disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda, foi inventada para ser calada. Em momentos de graa, infreqentssimos, se poder apanh-la: um peixe vivo com a mo. Puro susto e terror.

    Antes do nome Adlia Prado

  • 7

    RESUMO

    Este trabalho pretende levantar questes relativas ao uso e aos efeitos

    provocados pela utilizao de estratgias argumentativas no discurso. Para exemplificar

    a importncia de tais estratgias na construo da significao no uso da linguagem,

    elegemos como objeto de anlise um discurso em especial, o pedaggico, e, dentro dele,

    optamos pelo estudo das avaliaes no ensino superior, especificamente, das provas

    escritas, representantes do poder da linguagem no processo ensino/aprendizagem e do

    conflito existente na relao professor-aluno.

    A partir deste recorte metodolgico, repensaremos, em especial, as figuras de

    argumentao e retrica, estratgias discursivas inesperadas causam o efeito de

    surpresa no discurso e privilegiadas, na medida em que permitem analisar no apenas

    o fazer persuasivo do enunciador, bem como a construo do ethos dos sujeitos

    envolvidos na situao comunicativa.

    Acreditamos que em todos os tipos de discurso a linguagem pode ser utilizada

    no apenas para convencer um interlocutor, mas para persuadi-lo. Tal fato nos leva a

    buscar no discurso do aluno quais so as estratgias utilizadas para este fim, e a tentar

    identific-las dentro de um quadro terico e metodolgico discursivo.

    Para tanto, empreendemos um retorno s origens histrico-pedaggicas da

    avaliao, recorremos Retrica Aristotlica e s Neo-Retricas, Teoria Semitica de

    Greimas, Teoria dos Gneros do Discurso de Bakhtin, e a estudos sociossemiticos e

    discursivos que privilegiam questes como a construo da identidade individual e

    social dos sujeitos por meio do discurso e os aspectos interacionais envolvidos nas

    relaes sociais.

    PALAVRAS-CHAVE: argumentao; figuras; avaliao; retrica; anlise do discurso.

  • 8

    ABSTRACT

    The proposal of this work is to produce questions about the use of

    argumentatives strategies in the discourse, as well as questions about the effect of this

    use. To analyze the importance of these strategies during the construction of the

    meaning, we choose a special type of discourse, the pedagogical discourse, and inside

    of it, we have decided to analyze the proofs in the university, more specifically, the

    written proofs, because they are representative of the languages power in the education

    and learning process and of the existing conflict between professor and students.

    From this method, we will analyze, in special, the argument and rhetoric figures

    and the unexpected and privileged discoursive strategies because they cause surprise

    in the discourse and allow to analyze the construction of the ethos of the involved

    people in the communication situation.

    We believe that the language can be used to persuade an interlocutor and to

    convince him, not importing the type of discourse used. This fact makes us to search in

    the students discourse the used strategies and trying to identify them into inside of a

    theoretical, methodologic and discoursive frame.

    With this objective, we made a visit to the historical and pedagogical origins of

    the proofs, we appeal to the Aristotelian Rhetoric and the Neo-Rhetorical, to the

    Greimas Semiotics Theory and the Bakhtins work, and to the sociossemiotic and

    discoursive studies that privilege questions, as the construction, through the discourse,

    of the individual and social identity of the people, and aspects that are involved in the

    social relations.

    KEYWORDS: argument; figures; proofs; rhetoric; discourse analysis.

  • 9

    SUMRIO

    Consideraes preliminares............................................................................................. 12

    Captulo I Objeto de estudo e sujeitos da enunciao uma viso evolutiva da

    educao, da avaliao, do professor e do aluno............................................................ 22

    1- Voltando no tempo para situar a avaliao.......................................................... 23

    1.1 A origem da linguagem................................................................................. 23

    1.2 Linguagem e educao.................................................................................. 24

    1.2.1 Linguagem e poder na educao.................................................... 25

    1.3 A educao da Antigidade aos nossos dias em busca de indcios da origem

    das avaliaes...................................................................................................... 27

    1.3.1 A educao no Egito Antigo.......................................................... 27

    1.3.2 A Grcia Antiga e o desenvolvimento de sistemas

    educacionais............................................................................................ 28

    1.3.3 A antiga educao romana e o modelo de educao grego em

    Roma....................................................................................................... 31

    1.3.4 A educao da Idade Mdia aos dias atuais................................... 33

    2- Avaliao: definies e objetivos......................................................................... 42

    2.1 A avaliao sob o ponto de vista das diferentes abordagens de ensino........ 42

    2.2 A avaliao como prtica educativa e estruturante....................................... 46

    3-Aspectos da interao verbal e sua importncia na sala de aula........................... 52

    3.1 Dialogismo, interao verbal, dilogo, intertextualidade.............................. 52

    3.2 Dialogismo e polifonia.................................................................................. 57

    3.3 Enunciao, enunciado, texto e discurso em Bakhtin................................... 58

    3.4 Os estudos interacionistas e os estudos do texto e do discurso..................... 60

    3.5 Interao professor-aluno em sala de aula.................................................... 65

    3.6 Argumentao em sala de aula...................................................................... 74

    Cap. II A avaliao como manifestao discursiva..................................................... 78

    1- A avaliao na teoria dos gneros do discurso de Bakhtin.................................. 78

    1.1 Os gneros do discurso definio e reflexes............................................ 78

  • 10

    1.2 A prova escrita como um gnero do discurso............................................... 81

    1.3 Estilo, subjetividade, identidade e ethos....................................................... 85

    2- A avaliao sob o ponto de vista da semitica greimasiana................................ 98

    2.1 A semitica greimasiana noes gerais...................................................... 98

    2.2 O PN da avaliao....................................................................................... 106

    3- A avaliao no percurso da retrica e da argumentao.................................... 109

    3.1 Aspectos da retrica antiga.......................................................................... 109

    3.2 O sistema retrico........................................................................................ 113

    3.3 A retrica aristotlica.................................................................................. 116

    3.4 A retrica ps-aristotlica e o ensino retrico............................................. 119

    3.5 A revitalizao da retrica as neo-retricas............................................. 122

    3.6 Tipos de argumentos tcnicas argumentativas......................................... 128

    4- As figuras de argumentao e retrica............................................................... 131

    4.1 As figuras na retrica antiga........................................................................ 131

    4.2 As figuras de argumentao e retrica de Perelman................................... 135

    4.3 As figuras em outras abordagens................................................................. 139

    4.4 Repensando as figuras................................................................................. 141

    Cap. III O papel das figuras de argumentao e retrica nas avaliaes no ensino

    superior

    1- Tipologia de estratgias argumentativas............................................................ 145

    1.1 Estratgias argumentativas narrativas......................................................... 148

    1.2 Estratgias argumentativas discursivas....................................................... 149

    2- Conhecendo o corpus........................................................................................ 150

    3- Anlise das estratgias argumentativas utilizadas nas avaliaes..................... 153

    3.1 O discurso oficial: as respostas................................................................... 154

    3.1.1 A adequao................................................................................. 154

    3.1.2 A adaptao.................................................................................. 165

    3.1.3 A transgresso.............................................................................. 169

  • 11

    3.1.4 A subverso.................................................................................. 179

    3.2 O discurso oficioso: o paratexto................................................................. 194

    3.2.1 A transgresso.............................................................................. 194

    3.2.1 A subverso.................................................................................. 195

    Consideraes finais..................................................................................................... 214

    Bibliografia................................................................................................................... 217

    Anexos

  • 12

    CONSIDERAES PRELIMINARES

    delicioso observar que a arte da palavra est ligada originariamente reivindicao de propriedade, como se a linguagem, enquanto objeto de uma transformao, condio de uma prtica, estivesse determinada a no partir de uma mediao ideolgica sutil (como pde ter acontecido a tantas formas de arte) mas a partir da sociedade mais declarada.

    Barthes, 1975:152

    Minha dissertao de mestrado, defendida em 2002 no Departamento de

    Lingstica da FFLCH/USP na rea de Aquisio da linguagem e intitulada Produo

    de definies por crianas ou diferentes formas de explicar as coisas, ocupa-se, como o

    ttulo j indica, de um tipo particular de explicao: a definio. Entretanto, coube-me

    durante seu desenvolvimento conceituar no apenas a definio, mas a explicao de um

    modo geral, estabelecendo relaes entre o discurso explicativo e outras manifestaes

    discursivas.

    Observei, naquele momento, que no fcil definir a explicao, na medida em

    que o campo recoberto pelo termo explicar muito vasto, englobando, dentre outras

    manifestaes discursivas, o comunicar, o ensinar, o justificar, como aponta Borel,

    1980:22-23:

    1/. Le verbe expliquer a une composante interactionnelle 1. Communiquer exposer, formuler, exprimer, faire savoir... 2. Enseigner faire compendre, clairer, illustrer, montrer 3. Justifier excuser, disculper, motiver, dfendre, lgitimer

    Ao tomar a justificativa como forma de explicao, os estudos do discurso

    explicativo acabam por situar-se no mbito do conflito, da defesa de pontos de vista, ou

    seja, da argumentao (id.: 23):

    Vu sous cet aspect, le sens du verbe expliquer se situe sur un axe dont les extrmes sont, respectivement, une situation dchange verbal qui tend la transparence et lobjectivation, et une situation de violence ou de conflit ou lun des agents tend a dominer lautre (la limite en serait sortir pour sexpliquer (se battre)).

    Essa relao entre a explicao e a argumentao mostrou-se importante nos

    estudos do discurso em geral e assim, ainda na dissertao de mestrado, recorri a Ducrot

    (1987), Ducrot e Anscombre (1988) e Mosca (2001), que mostraram que a

    argumentatividade constitui um componente intrnseco linguagem. Desta forma, torna-

  • 13

    se impossvel analisar o discurso sem falar em argumentao, em vrios nveis, sob

    diferentes aspectos.

    Como a argumentao no constitua meu objeto de estudo central na poca, no

    houve a oportunidade de aprofundar esse assunto, mas iniciou-se a o interesse e a busca

    por respostas que originaram o projeto responsvel por minha admisso no doutorado.

    Esse projeto inicial foi se modificando de acordo com os colquios com a

    orientadora, com novas leituras e novas experincias como docente e pesquisadora. O

    encontro com a bibliografia especfica da Retrica e da Argumentao, o reencontro

    com os conceitos e com as metodologias da Lingstica Geral e da Semitica vistos,

    principalmente, na graduao -, e a descoberta de trabalhos na rea da Sociossemitica,

    despertaram um interesse pelo discurso de um modo geral e pelas estratgias

    argumentativas de um modo particular. Porm, como analisar a argumentao em todos

    os discursos? Qual discurso escolher? Quais estratgias argumentativas analisar?

    O incio de minhas atividades como docente no ensino superior, em 2002, levou-

    me ao contato com textos dos alunos, como provas, trabalhos e resumos, dentre outros.

    Nestas produes, dois aspectos em especial me chamaram a ateno e indicaram

    caminhos possveis para delimitar minha pesquisa de doutorado:

    a) a avaliao constitui um dos poucos momentos, em situaes de

    enunciao em sala de aula, em que o aluno torna-se o destinador e o

    professor o destinatrio;

    b) o aluno utiliza estratgias persuasivas diferenciadas, e algumas

    inesperadas, nas avaliaes, onde, teoricamente, se esperaria um discurso

    demonstrativo, e no argumentativo.

    O primeiro aspecto observado conduziu-me determinao do objeto de estudo

    do projeto de doutorado: as avaliaes no ensino superior, em particular, as provas

    escritas. Para delimitar esse objeto, parti da concepo de que avaliao todo tipo de

    atividade que permita ao professor observar o aproveitamento e o desenvolvimento do

    aluno: provas escritas, exerccios, seminrios, trabalhos em grupo, monografias em

    geral, resenhas crticas etc, e, num plano mais profundo, que lhe permita reestruturar sua

    prtica e planejamento a fim de corrigir possveis problemas na metodologia de ensino,

    alm de explicitar quais as dificuldades dos alunos que precisam ser trabalhadas. A

  • 14

    prova escrita um entre tantos possveis instrumentos avaliativos, e a partir do

    momento que sirva no apenas para provar, classificar, aprovar e reprovar, mas para

    promover mudanas e adequaes, mostra-se to vlida quanto qualquer outro tipo de

    avaliao.

    Por sua vez, a constatao de que as estratgias argumentativas esto presentes

    em todo tipo de texto, inclusive nas provas, provocou outros questionamentos dirigidos

    ao objeto de estudo: Quando a avaliao tomou as caractersticas discursivas que a

    definem hoje? Qual sua importncia social? Quais so as estratgias utilizadas nas

    avaliaes e como identific-las? O que essas estratgias dizem do professor, do

    aluno, e at mesmo da instituio de ensino, revelando o ethos desses sujeitos da

    enunciao?

    Logo percebi o quo vasto seria examinar todas as estratgias argumentativas e

    decidi, em conjunto com a orientadora, observar a utilizao das figuras de

    argumentao e retrica a partir, principalmente, da tipologia oferecida por Perelman e

    Olbrechts-Tyteca na obra Tratado da Argumentao, de 1958.

    Perelman e Tyteca so alguns dos responsveis pela retomada dos estudos

    retricos, ou seja, pelo surgimento das neo-retricas. No mesmo ano em que esses

    autores lanaram o Tratado da Argumentao, foi lanado tambm o trabalho de

    Toulmin - The uses of argument, que se caracteriza por uma viso substancial da lgica.

    Esses dois trabalhos surgem em uma poca - fim dos anos 50 e incio dos anos 60 que

    marca uma nova histria nos estudos da linguagem. A frase, que reinava como unidade

    mxima de anlise nos estudos lingsticos, cede lugar s preocupaes com o texto e o

    discurso. Surgem (ou desenvolvem-se) os estudos da enunciao, da pragmtica, da

    argumentao, da semitica, e outros. , pois, nesse cenrio, que as figuras de

    argumentao, muito estudadas na retrica antiga, voltam cena, colaborando para um

    conhecimento maior do uso da linguagem.

    A escolha pelo estudo das figuras deveu-se ao fato de as considerarmos

    estratgias argumentativas privilegiadas, capazes de evidenciar no s o fazer

    persuasivo do enunciador, bem como seu ethos (identidade) e a representao ou

    imagem que ele faz do enunciatrio (alteridade).

  • 15

    Ao longo do percurso, entretanto, percebemos que a tipologia oferecida pelos

    autores no dava conta dos procedimentos argumentativos e de seus efeitos de sentido, e

    que era necessrio repensar as figuras tendo em vista a flexibilidade do discurso, os

    diferentes nveis de significao no texto, bem como outras tipologias e abordagens

    sobre as figuras.

    Observando as produes dos alunos e diferentes textos que fazem parte do dia-

    a-dia do professor, nos demos conta de que gneros especficos pedem determinadas

    estratgias argumentativas, e que, portanto, o que figura em um texto, no

    necessariamente tambm o em outro. Assim, as estratgias inesperadas as figuras

    relacionam-se subverso e podem nos falar muito mais sobre o enunciador e o

    enunciatrio do que os argumentos tpicos/esperados de um dado discurso, j pr-

    determinados em funo das caractersticas discursivas do enunciado. Tal observao

    acabou por firmar-se nossa hiptese principal, a partir da qual aprofundaremos nossas

    buscas neste trabalho.

    Levamos, pois, em considerao, nessa opo por focalizar os argumentos

    inesperados ou figuras, os seguintes fatores: a) a importncia histrica das figuras nos

    estudos retricos; b) a importncia que tm recebido nos estudos neo-retricos, como

    expresso de recortes, de pontos de vista; c) a necessidade de renovao diante dos

    avanos alcanados nos estudos do uso da linguagem, principalmente a partir dos anos

    60; e d) a possibilidade de importar colaboraes de outros estudos do texto e do

    discurso.

    No artigo Retrica, Pragmtica e Semitica, de 1988, a pesquisadora Diana

    Pessoa de Barros j chamara a ateno para o valor dos estudos das figuras e para sua

    necessidade de renovao. Para a autora, a retomada dos estudos retricos e as novas

    abordagens sobre as figuras tm sua importncia, mas necessitam de uma atualizao e

    de uma complementao junto a outras teorias do texto e do discurso, em especial, junto

    teoria semitica greimasiana. Esse estabelecimento de relaes entre a Semitica de

    Greimas e as figuras retricas, principalmente a partir de Perelman, exige uma reflexo

    mais profunda, levando-se em conta os nveis do percurso gerativo de sentido. Segundo

    ela, essa relao que falta tipologia perelmaniana, na medida em que o autor belga

    no diferencia procedimentos narrativos em que se encaixariam, por exemplo, os

    argumentos de autoridade -, de procedimentos discursivos relacionados situao de

    enunciao. Desta forma, Barros situa a argumentao e as estratgias persuasivas no

  • 16

    apenas no nvel discursivo, mas nos planos sintxicos tanto do nvel narrativo (sintaxe

    narrativa), quanto do nvel discursivo (sintaxe discursiva). Tarefa que conta com a

    possibilidade de se ver o texto de um modo global por meio da teoria semitica e

    com a necessidade de se refletir sobre outras abordagens pragmticas e neo-retricas das

    figuras.

    Agradou-nos a possibilidade de desenvolver nossa tese a partir desse encontro

    terico e metodolgico em que os dois componentes intrnsecos linguagem podem ser

    examinados: a narratividade visto que todo texto mostra uma mudana de estado na

    relao entre sujeitos e na relao entre sujeitos e objetos de valor - e a

    argumentatividade na medida em que no h discurso neutro.

    Essa aproximao entre Retrica e Semitica, entretanto, no algo recente nos

    estudos da linguagem. A busca de relaes entre as duas reas intensificou-se nos anos

    90 com trabalhos de Paul Ricoeur, Claude Zilberberg, Jacques Fontanille, Denis

    Bertrand e outros, embora j se esboasse no artigo Rhtorique de limage de Roland

    Barthes, de 1964, como afirma Lineide Mosca (2001:24) em Velhas e novas retricas:

    convergncias e desdobramentos. Tal afinidade pode ser vista atualmente em pesquisas

    tanto na rea da Anlise do Discurso, quanto na Sociossemitica, em que o nvel

    discursivo do texto privilegiado.

    Acreditamos que a prpria definio de retrica dada por Aristteles em Arte

    Retrica e Arte Potica (s/d: 33), como a faculdade de ver teoricamente o que, em cada

    caso, pode ser capaz de gerar persuaso, permite essa relao entre as duas reas. Se

    por um lado, ao delegar Retrica a persuaso o filsofo a separa da Lgica Formal,

    por outro lado, ele se compromete tanto com a construo da argumentao em

    diferentes situaes, - ou seja, com a significao (que o objeto de estudo da Semitica

    o que o texto diz e como ele faz para dizer o que diz) -, como com a possibilidade de

    se obter ou no a persuaso, - ou seja, com a eficcia desse discurso.

    Podemos conjeturar, pois, que h nessa definio aristotlica de Retrica uma

    preocupao latente no s com o fazer persuasivo (presente na manipulao no nvel

    narrativo e concretizado nas estratgias argumentativas do nvel discursivo, de acordo

    com o percurso gerativo de sentido de Greimas), bem como com o fazer interpretativo

    (presente na ao e na sano no nvel narrativo, e nos efeitos de sentido produzidos no

    nvel discursivo).

  • 17

    Os estudos da argumentao de base retrica costumam observar esses dois

    lados da enunciao. Perelman e Tyteca j no Tratado da Argumentao (edio de

    2002:137) assinalam o seguinte: O estudo da argumentao nos obriga, de fato, a levar

    em conta no s a seleo dos dados, mas igualmente o modo como so interpretados, o

    significado que se escolheu atribuir-lhes.

    possvel apontar uma base comum entre a Retrica e a Semitica, como afirma

    Klinkenberg no prefcio s Retricas de ontem e de hoje, organizado por Mosca

    (2001:15):

    Recolocando a lngua no seio do conjunto das prticas de comunicao e significao, a retrica no faz nada mais, portanto, seno empreender a realizao do programa de semitica proposto por Saussure: o de estudo da vida dos signos no seio da vida social.

    Tomando a rea de Letras em toda a sua extenso, podemos afirmar que essa

    aproximao no se d apenas entre Retrica e Semitica, mas entre elas e os estudos

    lingsticos de um modo geral, marcados hoje no s pela preocupao com os fatos da

    lngua e dos signos verbais que a veiculam e representam pontos de vista sobre o mundo

    privilegiados por Saussure -, mas com os fatos da fala e do discurso (produo e uso,

    ou seja, aspectos psico-fsico-fisiolgicos, e sociais) e com todos os tipos de signos.

    Podemos, ainda, dizer que essa aproximao se d entre as duas disciplinas e as

    cincias humanas de um modo geral, como a Sociologia, a Antropologia, a Educao

    rea com a qual dialogaremos bastante ao longo do desenvolvimento desta tese -, a

    Psicologia e outras, na medida em que estas ltimas podem oferecer subsdios para a

    observao e a anlise da utilizao concreta dos signos na vida social dos sujeitos.

    Essa complexidade da linguagem, que permite e exige a relao entre tantos

    conhecimentos complementares, j havia sido apontada por Saussure quando indica a

    necessidade da criao da Semiologia e da Lingstica da Fala (captulos III e IV do

    Curso de Lingstica Geral). Ao chamar a ateno para a existncia de um lado

    individual a parole - e de um lado social na linguagem verbal a langue -, o autor

    destaca essa complexidade e instiga a busca por conhecimento lingstico, extrapolando

    o pensamento estruturalista a ele relacionado. No nos cabe entrar na discusso sobre

    quais os fatores que o levaram a privilegiar a lngua, mas nos cabe observar que a

    Lingstica moderna, por ele fundada no incio do sculo XX, tem hoje espao tanto

    para os estudos fonolgicos, morfolgicos, sintticos e semnticos, quanto para os

  • 18

    estudos fonticos e para os estudos do uso, do texto e do discurso, em geral, para os

    quais ele chamara ateno. Nestes ltimos, destaca-se ainda a observao das

    linguagens no-verbais, no estudadas por Saussure, mas cuja essncia discursiva foi

    tambm apontada por ele ao situar a Lingstica em um estudo geral da linguagem, a

    Semiologia.

    E este estudo geral que se transformou ainda nos anos 60 no que hoje

    conhecemos como Semitica. Dentro dos estudos da linguagem, v-se, hoje, uma

    crescente importncia e destaque da abordagem semitica do texto, em particular, da

    Semitica greimasiana. Esta tem se mostrado um mtodo de anlise eficiente na

    explorao da significao, ou seja, da construo do sentido, nos mais variados tipos de

    texto. Tal eficcia se explica por sua amplitude metodolgica, que permite observar no

    texto desde suas categorias semnticas bsicas (nvel fundamental) at a instaurao de

    sujeitos e valores que realizam mudanas (nvel narrativo), e a instncia de enunciao

    que envolve esses sujeitos (nvel discursivo).

    A anlise deste ltimo nvel apontado, o nvel discursivo, exige uma mincia que

    revele, a partir do prprio texto, a situao de enunciao, o contexto scio-histrico e

    cultural em que esto inseridos os sujeitos, suas ideologias, crenas e paixes. nesta

    direo que as pesquisas em Anlise do Discurso vo ao encontro da Semitica,

    oferecendo o detalhamento necessrio para a anlise do nvel discursivo, como, por

    exemplo, a observao das estratgias argumentativas, dentre elas das figuras de

    argumentao e retrica.

    Ao contrrio da abstrao e generalizao observadas nos dois primeiros nveis

    do percurso gerativo de sentido (fundamental e narrativo) que nos apresentam uma

    anlise interna do texto -, o nvel discursivo encontra-se muito mais prximo da

    concretude, do uso efetivo da linguagem nas relaes sociais, oferecendo a

    possibilidade de uma anlise externa do texto, porm, autorizada por ele.

    Assim, a relao entre a semitica greimasiana e a AD Anlise do Discurso -

    mostra-se, ao mesmo tempo, complementar e til, na medida em que possibilita uma

    anlise global do texto.

    Da mesma forma como ocorre com a semitica greimasiana, a retrica parte

    integrante da AD - tambm tem se destacado nos estudos da linguagem nos ltimos

    anos. Ouve-se falar muito em retrica, seja no meio acadmico, na mdia, no uso

    cotidiano da linguagem, embora muitas vezes o termo seja utilizado de forma

  • 19

    equivocada, com o nico significado de discurso vazio e florido, como discutiremos

    adiante.

    Porm, utilizada correta ou equivocadamente, a retrica parece, hoje, presente

    em inmeras situaes; isto porque a persuaso seu objeto de estudo - est presente

    em todos os discursos, e porque as pessoas se deram conta desse poder da linguagem,

    que extrapola a situao de enunciao e pode modificar as relaes sociais.

    Relacionada s situaes polmicas, aos conflitos e debates, a retrica d conta de

    diversas estratgias utilizadas nos discursos que circulam na sociedade, e que so

    responsveis pelas direes polticas, econmicas e ideolgicas que essa sociedade

    assume. Todos querem, pois, conhecer mais sobre as estratgias de argumentao e

    muito se fala sobre a retrica do Lula, do Papa, do presidente dos EUA, e da retrica de

    outras personalidades cujos pronunciamentos e opinies afetam direta ou indiretamente

    nossa vida.

    Mosca (2005:02) assim justifica tal notoriedade alcanada pela retrica nos dias

    de hoje:

    Cabe, pois, destacar a diversidade de seu campo de atuao, uma das razes de sua fecundidade hoje, alm do fato de situar-se em pleno terreno da controvrsia, da discusso e do debate, portanto de estar sintonizada com os conflitos de nosso tempo.

    A busca desta complementao entre retrica/neo-retricas e semitica na

    reflexo sobre as figuras nosso ponto de partida terico ao qual adicionamos a teoria

    dos gneros do discurso de Bakhtin. A prpria concepo de inesperado nos encaminha

    para essa teoria, o que esperado em uma reportagem de jornal, pode no ser no sermo

    do padre ou em uma prova escrita. Assim, conforme nossa linha de reflexo, o que em

    um texto apenas uma estratgia argumentativa autorizada, esperada, em outro pode

    transformar-se em uma figura de argumentao.

    No decorrer do presente trabalho, outros autores foram se juntando a essas trs

    teorias, auxiliando-nos em nossas reflexes. Autores que trabalham com a

    Sociossemitica, como Discini e Landowski, colaboram de modo direto para a anlise

    da identidade discursiva de professor, aluno e instituio. Outros estudiosos retomados

    nos permitem traar um perfil das avaliaes histrica e pedagogicamente, a fim de

    entendermos o verdadeiro papel social desse gnero discursivo.

    A insero dessa parte histrica e pedaggica das avaliaes no fazia parte de

    nosso projeto inicial, mas foi impossvel no dialogar com outros textos que cruzaram

  • 20

    nosso caminho e versavam sobre nosso objeto de estudo, como os textos das reas de

    Didtica, Histria da Lngua Portuguesa e Estilstica, disciplinas que lecionamos

    durante este perodo. Somando-se s teorias principais, j destacadas, esses estudos

    permitiram apresentar um panorama geral da avaliao, que comea com a origem da

    linguagem, passa pelo poder da linguagem verbal, pelo poder institucional e social da

    avaliao, para culminar com a anlise da subverso nas provas escritas por meio do uso

    de argumentos inesperados.

    Tendo em vista esse longo percurso at encontrarmos o ethos de nossa tese,

    definimos como objetivo principal de nosso trabalho:

    - repensar as figuras de argumentao e retrica de Perelman e Olbrechts-Tyteca

    levando em considerao os nveis do percurso gerativo de sentido de Greimas e o

    conceito de gnero discursivo de Bakhtin e apresentar, como resultado dessa reflexo,

    uma tipologia de argumentos que auxilie na anlise do corpus estabelecido.

    Como objetivos secundrios podemos citar:

    a) traar um panorama histrico, pedaggico e social da avaliao, a fim de

    compreender sua real importncia no processo ensino/aprendizagem e tambm na

    sociedade;

    a) demonstrar que o discurso elaborado pelos alunos em avaliaes e exerccios

    avaliativos de um modo geral no um discurso demonstrativo, mas situa-se no campo

    do conflito. Assim sendo, ele no tem como finalidade apenas convencer o professor,

    mas persuadi-lo, j que o aluno busca conseguir a adeso do professor no s pelo uso

    da razo, mas tambm por meio das paixes, do verossmil, dos fatores interacionais e

    emocionais, da comunho dos espritos (termo utilizado por Perelman na obra

    Retricas, de 1989 (edio de 1997));

    b) buscar os indcios que se apresentam na construo do ethos do profissional

    de Letras e das identidades sociais envolvidas na relao professor/aluno;

    c) observar os efeitos da prtica discursiva analisada as avaliaes sobre a

    prtica social que envolve os interlocutores professor e aluno.

    Tendo em vista tais colocaes iniciais, resumimos o teor de cada captulo desta

    tese. No primeiro captulo, Objeto de estudo e sujeitos da enunciao uma viso

    evolutiva da educao, da avaliao, do professor e do aluno, pretendemos encontrar as

  • 21

    razes do conflito inerente prtica da avaliao. Para tanto, voltamos nossa ateno

    para a educao na Antigidade principalmente a partir de Manacorda - e procuramos

    indcios de atividades avaliativas; situamos a avaliao na prtica educativa e traamos

    seu carter interacional, recorrendo a autores como Bakhtin e Orecchioni.

    No segundo captulo, A avaliao como manifestao discursiva, destacamos

    os conceitos bsicos das trs teorias que nos norteiam Retrica (e neo-retrica de

    Perelman), Teoria dos gneros do discurso de Bakhtin e Semitica discursiva de

    Greimas e tentamos situar a avaliao em cada uma das reas indicadas.

    O terceiro captulo, O papel das figuras de argumentao e retrica nas

    avaliaes no ensino superior, apresenta uma tipologia de estratgias argumentativas e

    sua aplicao nos dados coletados, permitindo observar o ethos dos sujeitos envolvidos

    nessa situao comunicativa, bem como descreve o material e a forma como o corpus

    foi definido.

    Seguem-se as Consideraes finais, Bibliografia e Anexos.

  • 22

    CAPTULO I Objeto de estudo e sujeitos da enunciao uma viso evolutiva da

    educao, da avaliao, do professor e do aluno

    Mas agora dize-me, estava dizendo Guilherme, por qu? Por que quiseste proteger este livro mais que muitos outros? Por que escondias, mas no a preo de um crime, tratados de nicromancia, pginas em que se blasfemava, talvez, o nome de Deus, mas por essas pginas danaste teus irmos e danaste a ti mesmo? H muitos outros livros que falam da comdia, muitos outros ainda que contm o elogio do riso. Por que este te incutia tanto medo?

    Porque era do Filsofo. Cada livro daquele homem destruiu uma parte da sabedoria que a cristandade acumulara no decorrer dos sculos. [...] Cada uma das palavras do Filsofo, sobre as quais j agora juram tambm os santos e os pontfices, viraram de cabea para baixo a imagem do mundo. Mas ele no chegou a virar de cabea para baixo a imagem de Deus. Se este livro se tornasse[...] tivesse se tornado matria de livre interpretao, teramos ultrapassado o ltimo limite.

    Umberto Eco, O nome da Rosa

    CHANCELER Natureza, esprito no assim que se fala a cristos! por isso que os ateus morrem na fogueira: semelhantes discursos so extremamente perigosos. Natureza pecado, esprito coisa do Diabo, e da conjuno dos dois nasce a Dvida, esse bastardo. Longe de ns tais idias! Dos antigos pases do Imperador s surgiram duas castas, que sustentam seu trono dignamente: os santos e os cavaleiros; eles enfrentam todas as tempestades e, como recompensa, dispem da Igreja e do Estado. Mas nos espritos plebeus e nas mentes perturbadas surge aos poucos uma resistncia: so os hereges! Os feiticeiros! Eles corrompem cidade e campo. Agora, queres introduzi-los neste nobre crculo com artimanhas e gracejos insolentes; no vos deixeis levar por um corao corrompido: o herege parente do bufo.

    MEFISTTELES bem assim que falam os eruditos! O que no tocais est a lguas de distncia, o que no concebeis no existe absolutamente, o que escapa a vossos clculos tomais por falso, no tem peso o que no pesais e de nada valem as moedas que vs mesmos no cunhastes!

    Goethe, Fausto, parte II, primeiro ato

    Os dois dilogos reproduzidos acima vm ilustrar o poder da linguagem que j

    se mostrou historicamente e que faz parte de nosso imaginrio. esse poder,

    representado na escola, dentre outros textos, pelas avaliaes, que nos faz iniciar este

    trabalho remontando aos primrdios da linguagem, do ensino e dessa fora que

    costumamos atribuir s palavras. Tal volta s origens tem por objetivo situar a avaliao

    dentro de um quadro maior da histria, do ensino e da interao/comunicao entre as

    pessoas.

  • 23

    1 - Voltando no tempo para situar a avaliao

    1.1 A origem da linguagem

    Embora no saibamos ao certo quando a linguagem verbal surgiu, todos

    podemos imaginar que, por viver em grupos, o homem sentiu a necessidade de se

    comunicar e, embora no haja no ser humano um aparelho fonador propriamente dito,

    adaptou partes do corpo que serviriam inicialmente para funes primrias de

    sobrevivncia alimentar-se e respirar para a produo de sons, assim como utilizou

    outras partes do corpo para desenvolver linguagens diversificadas, como os gestos e as

    danas, como se v em Chau (2000:172): Gestos e vozes, na busca da expresso e da

    comunicao, fizeram surgir a linguagem.

    Deste modo, a linguagem verbal deve ter aparecido como necessidade

    necessidade de sobrevivncia, necessidade de expressar os sentimentos -, da mesma

    forma que surgiram as ferramentas, indispensveis para caar e preparar alimentos.

    Alm da necessidade, a imitao dos sons da natureza e dos gestos dos prprios seres

    humanos surge como outra resposta origem da linguagem. Essas teorias que envolvem

    necessidade e imitao, no entanto, no so excludentes, e sua combinao aponta para

    a inseparabilidade entre linguagem verbal e linguagens no-verbais na expresso e na

    comunicao entre seres humanos.

    Como j assinalava Saussure no Curso de Lingstica Geral publicado em

    1916 (edio de 1991:15-25), linguagem algo mais geral que as lnguas naturais. A

    linguagem, heterclita e multifacetada, abrange tanto as linguagens verbais - como as

    lnguas naturais-, quanto as linguagens no-verbais; social e individual; envolve

    aspectos fsicos, fisiolgicos e psquicos do homem, e sua complexidade faz com que s

    a Lingstica no seja capaz de estud-la, mas que outras reas preocupem-se com ela,

    como a Psicologia e a Sociologia.

    A linguagem revela-se fundamental para o ser humano. Diramos at, que o

    desenvolvimento da linguagem verbal articulada, segmentvel, complexa e aberta a

    modificaes de acordo com as evolues da sociedade - foi o que diferenciou o homem

    dos animais irracionais e lhe permitiu ser o dono do mundo.

    No bastasse comunicar-se oralmente e por gestos, o homem tambm passou a

    simbolizar de outras formas suas vivncias e experincias, talvez at antes do uso da

    linguagem verbal. Um bom exemplo disso so os pictogramas encontrados em cavernas,

  • 24

    herana de nossos ancestrais pr-histricos que acabaram, mesmo sem saber,

    imortalizando rituais de caa e de sobrevivncia em geral. O aprimoramento dessas

    simbologias levou ao desenvolvimento de linguagens no verbais como esculturas,

    projetos arquitetnicos, pinturas e outras e ao desenvolvimento da escrita, por volta de

    3.500 a.C., representao da linguagem verbal cuja importncia tanta que separa a Pr-

    histria da Histria. Formava-se, ento, o conceito de cultura.

    Desde seus primrdios, a escrita revelou-se smbolo do poder e instrumento do

    ensino, mesmo quando o professor no se chamava professor, quando o aluno no se

    chamava aluno, quando a escola no se chamava escola e a avaliao no se chamava

    avaliao.

    1.2 Linguagem e educao

    O que significa educao? Em que momento histrico essa palavra toma

    dimenses semnticas e sociais prximas quelas que carrega hoje?

    Os povos mais primitivos j se preocupavam com educao; os mais velhos

    eram os responsveis por transmitir para os mais novos os ensinamentos necessrios

    para a sobrevivncia em suas sociedades: os conhecimentos de caa e pesca; as artes da

    guerra; os rituais religiosos; lendas e histrias do povo. Tais formas de educao, no

    entanto, no se encaixam no que compreendemos hoje por educao e muito menos no

    que entendemos por sistema educacional ou ensino, que envolve hierarquias, normas,

    leis de regncia e controle aplicadas s escolas, colgios, universidades de um

    determinado pas, estado ou cidade.

    Mas, o que se ensina? J que no mundo moderno no nos atemos simplesmente

    transmisso de informaes importantes para a sobrevivncia (ser que no?), qual o

    objeto do ensino? O que o ensino pretende, ou ainda, o que se pretende com o ensino?

    Sodr (1989:122-123), define o ensino como uma forma de educao, como

    o meio sistemtico mais usado e mais desenvolvido na transmisso da cultura 1.

    Segundo o autor, em graus diferentes de desenvolvimento, sempre houve na histria dos

    povos um aparelho de transmisso sistemtica dos conhecimentos. Esse grau de

    1 Cultura definida, neste contexto, como um conjunto de valores materiais e espirituais criados pela humanidade (Sodr, 1989:03), ou ainda, como um conjunto de prticas e habilidades desenvolvidas por um determinado povo ao longo da histria em diversas reas do saber cincia, arte, filosofia, poltica, religio, dentre outras.

  • 25

    desenvolvimento do ensino est relacionado intimamente ao grau de complexidade das

    sociedades, assim, sociedades complexas, como as do capitalismo, demandam

    complexos aparelhos de ensino, estruturas complexas de ensino. Como peas do

    Estado, tais estruturas transmitem a cultura oficial, aquela que obedece caracterstica

    social de que a cultura dominante a cultura dos dominantes.

    Remontando histria da educao na civilizao ocidental, em especial aos

    egpcios, gregos e romanos, podemos observar que tal definio passa intocvel pelos

    grandes imprios antigos e continua vlida no quadro educativo atual, e que a

    linguagem verbal o dominar a palavra - exerce um papel fundamental no ensino e na

    sociedade.

    Nas antigas civilizaes, mesmo sem uma estrutura educacional muito

    desenvolvida, no tardou para que se percebesse a fora da linguagem, capaz de manter

    no poder os dominadores, ou de destitu-los. Logo se percebeu que dominar a palavra

    seja ela verdadeira ou falsa, se que existe uma verdade nica - dominar o poder.

    Chau (2000:173-174) cita como maior exemplo do poder da palavra, neste caso, da

    palavra mtica, a criao do mundo no Gnese, livro da Bblia judaico-crist, em que, a

    partir de enunciados Deus cria o mundo do nada: E Deus disse: faa-se, e foi feito.

    1.2.1 Linguagem e poder na educao

    Sendo o domnio da palavra um dos grandes trunfos do poder advindo da

    educao, devemos neste trabalho, mesmo que rapidamente, tocar em questes

    polmicas que permeiam o ensino: a supremacia de uma lngua especfica ou de um

    dialeto ou registro dentro de uma lngua; o preconceito lingstico; a excluso

    lingstica, dentre outras.

    Gnerre (1988) mostra que a legitimao de uma determinada lngua ou variedade

    lingstica como sendo a lngua ou a variedade de prestgio resulta na excluso ou

    discriminao daqueles que no se encaixam em tais padres. O autor assinala que a

    linguagem no utilizada apenas para transmitir informaes, mas que por meio dela o

    falante comunica o lugar social que ocupa de fato, ou que acha que ocupa. Um dos

    grandes exemplos disso seria a aula, ao lado do discurso poltico e religioso.

    O mesmo estudioso fala no apenas do poder da linguagem, mas da fora de

    algumas palavras, como progresso, democracia e ditadura que carregam em si

  • 26

    contedos ideolgicos facilmente identificados pelo homem ocidental atualizado, leitor

    de jornais e revistas, estudado, como se diria. Para aqueles distantes dos meios que

    propagam tais informaes, essas palavras nada significam. O acesso de poucos

    tradio escrita e aos mais diversos meios de informao deficincia social j

    arraigada, como veremos ao retomar a histria da educao desde a Antigidade -

    garante a estes o domnio da variedade culta ou padro, considerada a variedade de

    prestgio. No domin-la implica estagnar na pirmide social.

    Podemos pensar: bem, diminuiu o nmero de analfabetos, mas h que se

    discutir, em outras ocasies, o que se entende por analfabeto. No universo da

    linguagem verbal, alm da linguagem oral e escrita (manuscrita, impressa, digitada etc.),

    agora h a linguagem virtual, que, embora seja mais uma forma da linguagem escrita,

    carrega marcas e caractersticas lingsticas peculiares, tanto fontico-fonolgicas,

    quanto morfolgicas, sintticas, semnticas e discursivas. Por conseqncia, surgiu o

    analfabeto virtual, aquele que no (re)conhece a linguagem da computao e da Internet,

    e no acompanha as novidades dirias lanadas por esse mundo tecnolgico: Orkut,

    MSN, Kazaa; Youtube e outras.

    Isso sem nos aprofundarmos na questo da valorizao de uma lngua segundo a

    influncia social e econmica do pas que a utiliza, como o caso do Ingls no cenrio

    atual, em consonncia com o poder econmico dos EUA. No falar Ingls hoje em dia

    , em algumas ocasies, ser analfabeto. O mesmo j aconteceu com o Francs nos

    sculos XVIII e XIX, principalmente -, e at mesmo com o Grego, na Antigidade,

    como veremos adiante. Especula-se, atualmente, qual ser a prxima lngua de status

    que garantir o surgimento de novos analfabetos.

    E assim a linguagem verbal e no verbal parece reciclar-se no tempo, pois

    acompanha e promove as mudanas; e quem a domina em suas vrias faces, acompanha

    essas mudanas, e sabe utiliz-la de modo adequado aos diferentes contextos, continua

    frente daquele que no a domina, ou que no compreende seus mecanismos de uso e

    persuaso. E amanh teremos outra forma de excluso permeada pela linguagem que,

    por fim, tornou-se aliada do poder. Ou ser ela o prprio poder?

    Como se sabe, a linguagem no tem poder em si, mas somos ns, homens, que

    lhe atribumos poder a partir do momento que lhe atribumos significaes, smbolos e

    valores que determinam o modo como interpretamos as foras divinas, naturais, sociais

    e polticas e suas relaes conosco, no dizer de Chau (2000:174-175). A autora

    relembra a fora de algumas expresses como, na missa crist: Este meu corpo, na

  • 27

    feitiaria: Abracadabra; e ainda retoma o fato de algumas palavras serem proibidas de

    se pronunciar em algumas sociedades, na crena de trazerem desgraas ou por terem

    conotao sexual.

    Nos estudos lingsticos, esse poder foi nitidamente revelado na Teoria dos

    Performativos, de Austin, quando se percebeu que no s os inicialmente chamados

    performativos, mas toda a linguagem acompanhada de uma ao, ou seja, quando

    falamos, no apenas proferimos palavras ou discursos, mas agimos por meio da

    linguagem.

    Vemos, pois, que a questo do poder da linguagem j ocupou diversos

    estudiosos, de diferentes reas, e constitui uma questo polmica, na medida em que se

    define como uma preocupao social. E como esse poder se mostrou ao longo da

    histria? Vejamos.

    1.3 A educao da Antigidade aos nossos dias em busca de indcios da origem das

    avaliaes

    1.3.1 A educao no Egito Antigo

    Comecemos pelo Egito, bero da cultura e grande responsvel por parte do

    conhecimento que permitiu Grcia e depois Roma alcanarem o desenvolvimento e

    o status que ainda as destacam na histria do mundo.

    Segundo Manacorda (2006:09), vm de l os testemunhos mais antigos sobre

    educao . Embora no haja indcios de uma escola organizada no Egito, sabe-se que

    foram desenvolvidos conhecimentos em muitas reas matemtica, medicina,

    astronomia, poltica e outras - alm de ofcios prticos como agricultura e agrimensura,

    e que a transmisso dessas cincias era reservada s classes dominantes.

    Documentos do Antigo Imprio egpcio (sc. XXVII a.C.), atestam a

    transmisso de sabedoria de gerao a gerao, de pais para filhos, de fara-pai para

    fara-filho o que no deixa de ser uma proto-pedagogia. Nada garante, no entanto, que

    tal transmisso inclua o ler e o escrever, embora inclussem o falar bem e o respeito

    palavra: como na vida poltica, tambm na formao para ela essencial o mais

    absoluto respeito palavra (id.: 15).

  • 28

    Testemunhos posteriores, datados da Idade Feudal (2190 a 2040 a.C.), do Mdio

    Imprio (2133-1786 a.C.) e do Novo Imprio (1552-1069 a.C.), j indicam uma

    organizao maior na educao. O acesso a ela permitia uma certa mobilidade social e

    crianas no-nobres podiam ser preparadas desde a infncia para assumir cargos

    polticos na idade adulta. Aos no-nobres e no destinados aos cargos polticos, como

    aponta Manacorda (2006:17-40), outros ensinamentos eram oferecidos nos palcios,

    mas no h detalhamentos sobre tais contedos nos documentos existentes dessa poca.

    O uso do texto escrito e a consolidao de modelos educativos so descritos j

    no final da Idade Feudal, e nas pocas posteriores, o uso do livro e do texto, como j

    podemos cham-lo, torna-se cada vez mais freqente e generalizado . (id.:20)

    O poder da linguagem j pode ser confirmado com o prestgio que gozavam os

    escribas nessa sociedade. Partem destes intelectuais, detentores da arte de escrever por

    meio dos hierglifos, os primrdios das avaliaes, que consistiam em disputas para

    evidenciar quem era o mais sbio.

    Nessa poca fala-se j em escola e cultura, embora haja uma distino entre

    aquilo que aprendem as castas dominantes, os nobres e os funcionrios, e aquilo que

    cabe ao resto do povo - no todo ele, mas queles cidados que exerciam algum tipo de

    atividade ou arte: transmitir aos filhos ofcios prticos, menos valorizados. Os que

    sobram no tm acesso educao, no sentido sobre o qual aqui refletimos.

    1.3.2 A Grcia Antiga e o desenvolvimento de sistemas educacionais

    Talvez na Grcia Antiga j se possa falar em sistemas educacionais. Os

    historiadores dividem a histria da Grcia Antiga em quatro pocas: a homrica que

    corresponde aos 400 anos narrados por Homero; a arcaica sc. VII ao V. a.C., quando

    surgem as grandes cidades como Atenas e Esparta; a clssica, nos sculos V e IV a.C.,

    que marca o apogeu intelectual de Atenas; e a helenstica, a partir do sc. IV a.C que

    marca a passagem do poder para Alexandre da Macednia (Alexandre, o Grande) e

    depois para o Imprio Romano.

    A educao na Grcia era caracterizada pelo ensino intelectualista, verbalista,

    dogmtico, e pela valorizao da memorizao e da repetio dos conhecimentos

    transmitidos, como aponta Libneo (1994:57-71). Na Grcia arcaica, citam-se as

    paidiai de Homero e de Hesodo, que separavam as sabedorias dos guerreiros e dos

    camponeses. Os testemunhos sobre as disputas entre os dois poetas constituem uma

  • 29

    fonte para nossa reflexo sobre a origem das avaliaes, como observamos na seguinte

    citao extrada de Manacorda:

    Procurando entre os testemunhos mais antigos sobre o contedo e os fins da educao -, poderamos citar, em primeiro lugar, o Torneio de Homero e Hesodo. Estamos na poca anterior escola dos grmmata; mas as provas daquele torneio quase se parecem aos exames escolares, com perguntas sobre moral, literatura e histria; por exemplo, o que era melhor para o homem, a recitao mnemnica de versos, o nmero dos gregos em Tria e, enfim, a declamao de versos prprios. Lembram um pouco as disputas entre os escribas egpcios.

    (2006: 55-56)

    No perodo clssico sculos V e IV a.C. - destacam-se as cidades de Creta,

    Esparta e Atenas esta ltima conhecida como a capital da educao na Idade Antiga -

    que ofereciam educao refinada e elitizada. O ensino, inicialmente privado, tornou-se

    ainda neste perodo responsabilidade do Estado, graas s contribuies financeiras de

    particulares, de cidades ou de soberanos (Manacorda, op.cit.:65).

    A escrita alfabtica promove uma democratizao do ensino e junto aos mestres

    de ginstica e de msica surgem os mestres gramticos e as escolas de letras

    grmmata. O uso da palavra passou a ser mais valorizado do que os exerccios fsicos,

    do que a espada e as artes de guerra em geral.

    Com a democratizao poltica, o homem grego comeou a ter voz nas

    assemblias e a educao antiga j no dava conta de suas novas necessidades: falar

    bem e persuadir. neste cenrio que os sofistas surgem para ensinar a arte da

    eloqncia, exibindo seu talento oratrio em lugares pblicos, como teatros e estdios,

    sustentando opinies e argumentando.

    Sofistas o nome pelo qual ficaram conhecidos os pensadores, filsofos e

    professores gregos que exploravam a arte de persuadir pela palavra, mostrando,

    geralmente em troca de altos pagamentos, como possvel, por meio do uso da

    verossimilhana ou de raciocnios aparentemente vlidos os sofismas -, chegar

    persuaso. a partir deles que se d popularizao da retrica como uma forma de

    ensino da persuaso.

    Apesar da democratizao da sociedade, da estatizao gradual do ensino, e da

    expanso do acesso s escolas havia at alguns escravos (os pedagogos) que eram

    alfabetizados para acompanhar a educao de seus donos - a elite ainda tinha assegurado

    um direito maior educao e cultura, devido sua influncia poltica, o que no

  • 30

    permitia muitas mudanas sociais. Chau (2000:172), observa uma afirmao de

    Aristteles sobre o poder da linguagem e sua relao com o poder poltico:

    Na abertura da sua obra Poltica, Aristteles afirma que somente o homem um animal poltico, isto , social e cvico, porque somente ele dotado de linguagem. Os outros animais, escreve Aristteles, possuem voz (phone) e com ela exprimem dor e prazer, mas o homem possui a palavra (logos) e, com ela exprime o bom e o mau, o justo e o injusto.2

    A escola formal era aberta apenas para os homens, que ingressavam por volta

    dos 6-7 anos de idade e eram acompanhados at os 18 ou at os 30 anos. Alm do

    ensino de lgica, gramtica e retrica, havia ainda as aulas de desportos e das artes da

    guerra. Para as mulheres existiam alguns poucos centros de iniciao (thasoi) que

    ofereciam ensinamentos diferenciados, como assinala Manacorda, 2006, p.47.

    O castigo fsico era comumente aplicado, tanto na educao familiar, quanto na

    escolar. Sobre esse assunto discorre Manacorda (op.cit.:58): Embora as leis de Slon

    prescrevessem O escravo no bata na criana livre, chicotes e varas, como entre os

    egpcios e os hebreus, eram o meio principal da instruo.

    O retor romano Quintiliano, j no sc. I d.c., se posicionava contra a aplicao

    de castigos fsicos aos alunos, evidenciando a prtica comum das punies corporais,

    conforme informao de Barthes (1975:159).

    Documentos que descrevem a estatizao das escolas a partir do sculo V tratam

    tambm de outras questes, como o calendrio escolar, as provas finais, as cerimnias,

    as frias, os deveres e os salrios dos mestres e a abertura gradual da educao s

    meninas e aos escravos. A partir dessa poca as escolas se expandiram e viraram centros

    de cultura fsica e intelectual denominados ginsios, que eram destinados aos homens

    livres. Paralelamente, algumas profisses consideradas de menor importncia eram

    ensinadas aos escravos com vistas melhor servido.

    O maior desenvolvimento da estrutura educacional grega levou difuso e

    extenso das atividades olmpicas, guerreiras e intelectuais. As competies fsicas, as

    Olimpadas, foram abertas aos adolescentes por volta dos anos 600 a.C., e as artes da

    guerra deixaram de ser restritas aos aristocratas. Concomitantemente, as atividades

    artsticas tambm progrediram e promoveram a mediao entre o fsico e o intelectual

    2 Grifos da autora.

  • 31

    por meio do canto, da dana, das competies poticas e teatrais. Em seguida,

    paulatinamente [...] as exercitaes intelectuais tero a prevalncia isso aps os

    sculos II ou III d.C., quando a Grcia j estava sob domnio do Imprio Romano e a

    antiga unidade entre fsico e intelectual estar definitivamente perdida (Manacorda,

    2006: 69).

    1.3.3 A antiga educao romana e o modelo de educao grego em Roma

    A educao romana pode ser dividida em duas etapas: a primeira, baseada no

    paterfamilias, vigorou at a adoo do modelo de educao grego, e a segunda, da em

    diante, baseada no mesmo verbalismo e dogmatismo que caracterizavam o ensino na

    Grcia.

    Marrou (1990) define a antiga educao de Roma situada entre o sculo VI

    a.C. at a adequao progressiva civilizao helenstica aps a morte de Alexandre, o

    Grande, em 323 a.C. como uma educao de camponeses. Todo o latim, segundo o

    autor, pode ser definido como uma lngua de camponeses, desenvolvida por um povo

    aristocrata que vivia da terra, de onde brotavam suas significaes.

    Para compreend-la a antiga educao romana -, basta observar o que , ainda hoje, na sua essncia, a formao dos pequenos camponeses. A educao para eles antes de tudo a iniciao progressiva em um modo de vida tradicional. (op.cit.: 360)

    Esse iniciar-se no modo de vida tradicional significava acompanhar a famlia

    em suas atividades desde a mais tenra idade; imitar os mais velhos atravs das

    brincadeiras; entrar aos poucos no mundo dos adultos ouvindo suas histrias e fazendo-

    se ouvir; aprender os ofcios dos pais e dar continuidade a esse trabalho; acompanhar o

    pai ao senado e aprender os segredos da vida poltica. Ou seja, a educao, pautada na

    famlia, tinha um conceito todo particular de sabedoria, de ensino, de cultura, que

    envolvia a vida do cidado de um modo geral.

    A soberana autoridade do paterfamlias exalta a importncia da figura dos pais

    e aqui se subentende pai e me, visto que em Roma, ao contrrio da Grcia, a mulher

    exercia um papel importante na educao familiar. s mes cabia ensinar aos filhos

    meninos e meninas as primeiras letras e incentivar seu desenvolvimento por meio de

    brincadeiras e jogos em casa (Como tudo isso diferente da Grcia! [...] em Roma no

  • 32

    um escravo, mas a prpria me quem educa o filho. - Marrou, 1990, p.360,

    lembrando uma observao feita por Ccero na poca).

    Aps os sete anos a responsabilidade do ensino passava para o pai, que devia

    oferecer ao filho a possibilidade de acompanh-lo em todas as suas atividades da vida

    pblica e profissional. Enquanto isso, as filhas permaneciam ao lado da me aprendendo

    outras atividades, mais ligadas aos cuidados da casa e da famlia. No paterfamilias

    romano os pais tinham total poder sobre os filhos, o que adiou o aparecimento da

    educao pblica.

    Foi sob a influncia da cultura grega que apareceram as primeiras escolas, e

    assim como na Grcia, os primeiros mestres eram escravos. O ensino da retrica e da

    gramtica encontrou em Roma alguma resistncia devido ao carter tradicionalista que

    acompanhava a antiga forma de educao e ao nacionalismo dos mais velhos, mas foi

    aceito por volta dos sculos I ou II d.C., o que garantiu a preservao da sabedoria grega

    atravs dos tempos. Manacorda discorre sobre a importncia desse triunfo do modelo

    grego de educao em Roma para a histria ocidental:

    Esta vitria da escola do tipo grego em Roma representa, afinal, um fato histrico de valor incalculvel, mediante o qual a cultura grega tornou-se patrimnio comum dos povos do imprio romano e depois foi transmitida durante milnios Europa medieval e moderna e, enfim, nossa civilizao como premissa e componente indispensvel sua histria. (2006:83)

    Embora a herana grega tenha sido bem-vinda no campo intelectual, - tendo em

    vista a extensa produo dos filsofos e dos homens das cincias - no campo

    pedaggico ela garantiu a continuidade de algumas prticas nem sempre produtivas. A

    didtica repetitiva e mecnica, os contedos distantes da vida dos aprendizes e o medo

    dos castigos fsicos afastavam os alunos, que no se interessavam pela escola. Apesar

    das crticas, o modelo grego era o mais difundido pelo valor dado eloqncia,

    importante para a vida em sociedade.

    As escolas destinavam-se principalmente aos homens das famlias mais ricas,

    que aprendiam poesia, geometria, msica, retrica e filosofia. s mulheres permitia-se,

    de certa forma, o estudo da msica, a ttulo de arte recreativa, como relembra Marrou

    (1990:383). J o gosto pelas atividades fsicas no fora herdado dos gregos e tal

    costume nunca entrar para a educao romana da mesma forma como fora na educao

  • 33

    grega. Todo o ensino baseava-se na leitura de textos da tradio literria e no em livros

    didticos. Assim como na Grcia, alguns escravos eram levados a cursos

    profissionalizantes ou alfabetizantes para que fossem mais valorizados na venda, mas

    em geral s a aristocracia tinha acesso s escolas.

    O primeiro livro de Quintiliano trata da educao inicial do aluno em Roma e da

    sua relao com o gramtico. O domnio da palavra ainda era muito valorizado, por isso

    o ensino da retrica devia ser iniciado cedo, por volta dos 14 anos de idade, depois de

    outros ensinamentos, e o adolescente romano tinha algumas atividades obrigatrias a

    partir das quais seu desenvolvimento e aproveitamento eram avaliados. Barthes

    descreve abaixo tais atividades (1975: 159-160):

    Os dois exerccios principais so: a) as narraes, resumos e anlises de argumentos narrativos, de acontecimentos histricos, panegricos, elementares, paralelos, ampliaes de lugares-comuns (tese), discursos conforme um plano estabelecido (preformata materia); b) as declamationes, ou discursos sobre casos hipotticos; o exerccio do racional fictcio (portanto, a declamatio j est mais prxima da obra). V-se como tal pedagogia fora a palavra. Esta, cercada por todos os lados, expulsa do corpo do aluno, como se houvesse uma inibio inata para falar e fosse necessria toda uma tcnica e educao para lev-lo a sair do silncio. Enfim, como se esta palavra assim aprendida, conquistada, representasse uma relao objetal com o mundo, um bom controle do mundo e dos outros.3

    Apesar da valorizao da cultura da Grcia, a lngua grega no obteve o mesmo

    status de uso ou a mesma funcionalidade comunicativa na educao em Roma e foi

    suplantada pelo latim, que invadiu a Idade Mdia como uma grande fora lingstica. Os

    latinos enxergavam uma maior complexidade lingstica no grego e o usaram como uma

    lngua auxiliar, uma lngua de cultura. O romano culto deveria dominar o grego e o

    latim. Na escola, as crianas faziam exerccios de traduo do grego para o latim, e do

    latim para o grego.

    O latim utilizado na escrita o latim clssico - era diferente da linguagem usada

    pelo povo - o latim vulgar -, fenmeno que ocorre ainda hoje com as lnguas modernas,

    onde a linguagem popular oral distancia-se consideravelmente da escrita culta.

    1.3.4 A educao da Idade Mdia aos dias atuais

    3 Grifos do autor.

  • 34

    A queda do Imprio Romano do Ocidente marca o incio da Idade Mdia,

    enquanto a queda do Imprio Romano do Oriente marca o incio da Idade Moderna. Tal

    fato o suficiente para comprovar a importncia de Roma na histria mundial.

    As primeiras escolas crists surgiram em Roma na metade do primeiro sculo

    d.C. seguindo o modelo hebraico de educao das sinagogas s igrejas, - e eram

    abertas a crianas das classes mais baixas. A educao em mosteiros era rgida,

    hierarquizada e controlada pelos interesses da Igreja.

    Uma das principais caractersticas da Idade Mdia a fuso entre a poltica e a

    Igreja, centralizada na figura do papa. Fuso esta que garantia o monoplio do poder em

    todas as reas da sociedade, inclusive no ensino. O poder poltico e o religioso

    misturavam-se de tal forma que os que maior acesso tinham educao e, em especial,

    escrita, eram os religiosos. Mesmo assim, nesta poca tambm entre os homens da

    igreja verifica-se um processo de empobrecimento cultural, como aponta Manacorda

    (2006:112), lembrando que alguns eclesisticos no dominavam a escrita, e que a

    riqueza intelectual j no possua tanta importncia como outrora.

    A sabedoria humana, cultivada e valorizada na Antigidade clssica,

    transformou-se em ameaa sabedoria divina, proclamada como a nica verdade e

    salvao. As mulheres eram vistas como seres imperfeitos e pecadores, e tinham um

    papel secundrio na sociedade, visto que poderiam comprometer o poder econmico da

    Igreja se os religiosos com elas se envolvessem.

    Interessava ao alto clero que os religiosos e, em maior grau, o povo, tivessem

    uma cultura empobrecida; por essa razo, eles eram proibidos de ler as obras clssicas.

    Assim, evitava-se qualquer pensamento que pudesse ameaar tal supremacia divina. Era

    importante que as pessoas continuassem desinformadas, alheias a novas idias e

    incapazes de estruturar pensamentos mais elaborados que pudessem modificar a

    sociedade. A obra O nome da Rosa, cujo original italiano Il nome della rosa foi

    publicado em 1980, de Umberto Eco, descreve de forma talentosa tal contexto medieval.

    Por volta do ano 1000, surgem as primeiras universidades na Europa e estas j

    abrigavam alunos com caractersticas muito diferenciadas. As disputationes colocavam

    prova a capacidade de mestres e alunos, como retoma Manacorda, a seguir:

  • 35

    E j que entramos dentro da universidade, convm seguir agora os estudantes at o trmino dos estudos, quando realizam provas finais; para isso, nos valeremos de um testemunho excepcional, o de Dante. Tendo presente o dilogo entre Jav e J, ele, no Paraso, imagina ser examinado por trs apstolos, Pedro, Tiago e Joo [...] Ele se apresenta como um bacharel (baccalaurers) que, encorajado por Beatriz, prepara-se tacitamente para responder s perguntas [...]: O bacharel apresta-se e no fala T que o Mestre a questo haja ofrecido, Por aprova-la, no por termina-la, Assim, de todas as razes munido, Dispus-me, enquanto Beatriz se explica, A tal assunto, por tal Mestre argido. - Teu pensar, bom cristo, me significa: O que f? Presto, ouvindo, o rosto alava Para a luz, que a questo desta arte indica; Voltei-me a Beatriz: j me acenava Para que sem detena gua fizesse Brotar da interna fonte, onde a guardava. (Par., XXIV, 46-57) (2006:154-155)

    Baseado neste e em outros textos, Manacorda (p.155) compara o exame

    universitrio da poca aos exames de hoje, um interrogatrio, em que se pede uma

    definio e se responde de acordo com o verbo do mestre. Neste texto, o bacharel nada

    fala at que o mestre exponha a questo que ele deve responder O que f?

    Apesar da rigidez na relao pedaggica, o autor admite que j naquela poca os

    alunos burlavam as regras nos exames e ludibriavam seus mestres agora homens

    livres, assalariados ou autnomos: E, como hoje, tambm naquela poca os estudantes

    s vezes recorriam aos mais extraordinrios truques ( id.).

    Neste perodo, passou-se a valorizar a educao prtica, profissional, ligada aos

    diferentes ofcios impulsionados pelo desenvolvimento comercial. Surgiram, assim,

    novos mestres e aprendizes, e, por conseguinte, novas formas de ensino e pedagogias

    direcionadas para tais profisses, como evidencia o mesmo pesquisador da educao:

    Interessantes so as provas de exame, no do ponto de vista didtico-pedaggico, mas do ponto de vista do costume. Eis, por exemplo, as dos padeiros: Quando o novo padeiro tiver cumprido dessa forma os quatro anos de sua aprendizagem, ele pegar uma tigela nova, de barro cozido, nela colocar cialdas e hstias, e ir casa do mestre dos padeiros, e ter a seu lado o caixeiro e todos os padeiros e os mestres valetes, isto , adjuntos (joindres). O novo padeiro entregar sua tigela e suas cialdas ao mestre e dir: Mestre, fiz e cumpri meus quatro anos. O mestre perguntar ao administrador se verdade; e se este disser que verdade, o mestre apresentar ao novo padeiro o vaso e as cialdas e lhe ordenar que os jogue contra a parede. Ento o

  • 36

    novo padeiro jogar sua tigela e suas cialdase hstias contra as paredes externas da casa do mestre. Em seguida, os mestres administradores, os novos padeiros e todos os demais padeiros e ajudantes entraro na casa do mestre e este oferecer a todos fogo e vinho, e cada padeiro, e o novo, como tambm o mestre adjunto, oferecero um dinheiro ao mestre dos padeiros pelo vinho e pelo fogo que lhes deu. (2006:165)

    Como assinala Manacorda, na mesma obra e pgina retomada acima, no se

    pode dizer que a cerimnia tenha muito de pedaggico, mas o mais interessante

    aquilo que ela mostra do costume e da cultura do povo, absolutamente influenciado

    pelos ensinamentos religiosos. Tal exame parece mais um ritual cristo, a contar pela

    utilizao de smbolos consagrados pela cultura crist: o po, o vinho e o fogo, do que

    uma avaliao.

    Principalmente por intermdio da Igreja, o latim tornara-se uma lngua poderosa.

    Segundo Paiva (1988:09): O latim, na poca, funcionava como lngua internacional,

    servindo de veculo de comunicao da filosofia, da cincia e das letras; por

    conseqncia, foi um dos elementos mais relevantes da educao e da cultura.

    A autora lembra que a expanso das universidades colaborou bastante tambm

    para a divulgao do latim, e que o acesso ao ensino da lngua estendeu-se,

    gradativamente, a leigos, principalmente nobres, e at a mulheres das classes

    privilegiadas.

    Por volta do sculo XIV, despontam na aristocracia os primeiros indcios do

    humanismo, e suas idias alimentam o acesso da educao s classes mais altas. A elite

    intelectual luta contra a educao vigente e prega a volta aos clssicos. Os problemas

    do homem tornam-se centrais na educao, caracterizando o antropocentrismo. As

    cincias exatas e biolgicas profissionalizam-se e so mais valorizadas, enquanto as

    letras perdem terreno, apesar de serem ainda valorizadas nas escolas. Embora sem

    causar mudanas significativas, pensa-se nas crianas como seres diferentes, que

    precisam de formas diferentes de ensino do que aquelas destinadas aos adultos.

    Os conceitos iluministas afetam as lnguas naturais. A Lngua Portuguesa, por

    exemplo passa pelo fenmeno da latinizao, como mostra Spina (1987:10):

    O deslumbramento da cultura clssica, suscitado pelo movimento humanstico da segunda metade do sculo XV, criou no s uma elite de eruditos[...]como propiciou o aparecimento das primeiras gramticas da

  • 37

    lngua portuguesa: debruados na leitura dos modelos clssicos, sobretudo latinos, os escritores portugueses foram naturalmente levados a introduzir na lngua inmeros latinismos, aportuguesando as formas importadas e refazendo as formas arcaicas.

    Essa latinizao ocorreu em diferentes nveis lingsticos na fontica (defensa

    por defesa), na morfologia (superlativos em -rrimo, -limo e -ssimo), na sintaxe (em

    casos de aposto), na semntica (parentes por pais) e na grafia (octavo por oitavo),

    dentre outros exemplos.

    Alm das influncias na educao, as idias humanistas que permearam o

    Renascimento (1300-1650, aproximadamente) modificaram todas as bases sociais da

    Europa, colocando em questo o Imprio Romano, a autoridade do Papa, a cavalaria, o

    feudalismo, o sistema de comrcio vigente etc. O Renascimento permeia o fim da Idade

    Mdia e o Incio da Idade Moderna, marcado por um turbilho de novidades advindas

    da expanso comercial e martima europia. Na rea da educao, tais expanses

    significavam novas necessidades de trabalho no mercado, e uma demanda por um

    ensino profissionalizante.

    Os movimentos da Reforma, por volta de 1400-1500, pregavam uma escola mais

    democrtica e pragmtica, oferecida aos ricos e aos pobres, e que formasse pessoas teis

    sociedade. Lutero, o maior expoente da Reforma, estabelece, pois, a relao instruo-

    trabalho, e tenta mostrar a importncia social do trabalho manual e do trabalho

    intelectual.

    A Contra-reforma catlica, por sua vez, veio defender o controle da educao de

    acordo com seus preceitos e intenes poltico-religiosas sua principal preocupao na

    poca: deter a Reforma e o humanismo-, como mostra Manacorda s pginas 200 e 201,

    transcrevendo, primeiramente, um trecho de um documento assinado pelo papa Leo X,

    em 1515, e, em seguida, a opinio do bispo de Ragusa, Beccatelli, um dos mais

    influentes no Conclio de Trento (1545-1564):

    [...] julgamos nosso dever cuidar da impresso dos livros para que, junto s boas sementes, no cresam tambm os espinhos, nem aos remdios se misturem os venenos. Ningum [...] presuma imprimir ou mandar imprimir algum livro ou qualquer outro escrito, que antes no tenha sido diligentemente examinado[...] e aprovado pelo nosso vigrio ou por um bispo ou por outro que tenha competncia sobre o assunto do livro [...] ou por um inquisidor da maldade hertica.

  • 38

    No h nenhuma necessidade de livros; o mundo, especialmente depois da inveno da imprensa, tem livros demais; melhor proibir mil livros sem razo, do que permitir um merecedor de punio.

    Destacaram-se, na reorganizao do ensino pela Igreja, as escolas jesutas, que

    eram dirigidas aos leigos. Essas escolas expandiram-se com as Cruzadas e com as

    descobertas martimas, levando a novos povos e terras a educao catequtica, baseada

    em perguntas e respostas. Para a formao do clero existiam os monastrios e

    seminrios, cujos ensinamentos eram direcionados para a vida religiosa.

    Sodr (1989:15) define o ensino levado para as novas colnias nessa poca de

    explorao martima como uma transplantao da cultura e como alienao desses

    novos povos contatados, especialmente nos pases colonizados para explorao, como

    o caso do Brasil:

    A expanso navegadora que decorreu do desenvolvimento mercantil, ao fim do medievalismo, contempornea da ciso religiosa definida com a Reforma. Como aquela expanso foi capitaneada pelas naes catlicas, colonizao e catequese religiosa confundiram-se. A catequese foi uma das manifestaes mais importantes da Contra-Reforma; e, nela distinguir-se-iam os jesutas, que se dedicam, desde logo, converso do gentio e, para isso, especializam-se na tarefa de conquistar as conscincias.

    No Brasil os jesutas ficaram responsveis pela educao por dois sculos e

    meio, perdendo esse poder com as reformas pombalinas no sc. XVIII, como informa

    Sodr (ibid.). A educao jesutica tinha como objetivo principal a converso e foi

    estruturada em dois planos: a escola era dirigida s crianas, inicialmente aos pequenos

    indgenas, e tinha como finalidade ensin-los a ler, escrever e contar. J os colgios

    eram dirigidos aos adolescentes, e se baseavam no aprofundamento do ensino jesutico.

    A verdade que tanto as escolas, quanto os colgios, acabaram por acolher os filhos dos

    senhores e neles inculcou uma cultura outra, que no a brasileira: a cultura dos

    colonizadores.

    J na Europa, nos anos de 1600, destaca-se o trabalho de Comenius, que se

    esforou para alcanar uma sistematizao definitiva do saber a ser transmitido com

    oportunos mtodos didticos s crianas atravs do velho instrumento da lngua latina,

    alm de iniciativas das escolas inglesas de preparar os alunos para novas profisses

    ligadas s mudanas que vinham acontecendo nos modos de produo (Manacorda,

  • 39

    2006: 227). As novas escolas, de ideais iluministas, reformadores e revolucionrios,

    tinham como objetivo levar a educao a todos os homens.

    Em meados de 1700, h a continuidade das escolas crists, tanto catlicas quanto

    reformadas, com novas experincias, como as escolas tcnico-profissionais. Segundo

    Libneo (1994:58), data deste sculo XVIII - o aparecimento da Didtica como teoria

    de ensino, surgida da necessidade de planejamento, estruturao e organizao. O

    ensino do latim era obrigatrio, e o Francs passa a constituir matria das escolas no

    mundo ocidental. O ler e o escrever demandam nas escolas mtodos prprios e

    separados de ensino, e a escrita extremamente valorizada, em seus pormenores, como

    descreve Manacorda (2006: 232):

    Esta caracterstica prpria da aprendizagem escrita evidenciada, para ns at o paradoxo, pelos cuidados relativos ao instrumento do ofcio: duas pginas inteiras dedicadas s quatorze regras a serem observadas no apontar uma pena de ganso.

    As mulheres j so aceitas nas escolas, mas no podem misturar-se aos meninos,

    e os castigos fsicos ainda so praticados como formas de correo da disciplina,

    valendo o chicote, a frula, os bastes.

    No sculo XVIII a influncia da Igreja nas questes pedaggicas j no era a

    mesma, assim como a influncia do humanismo. Como conseqncia, a importncia dos

    clssicos e do latim foi diminuindo no ensino, levando ao descrdito as instituies

    educativas tradicionais.

    Um documento de 1731 relata notcias sobre a universidade de Sorbonne e seus

    exames, Ele nos informa, por exemplo, que tambm as mulheres j eram admitidas a

    assistir os exames de lurea (exames de formatura), porm num lugar parte

    (Manacorda, 2006:237), que consistia em camarotes separados das salas de aula por

    grades de madeira.

    Ainda em meados de 1700, v-se o surgimento das enciclopdias e de novas

    idias polticas, culturais, pedaggicas, religiosas, morais, entre outras - que nascem

    na Europa, especialmente na Frana, onde culminam na Revoluo Francesa em 1789, e

    se disseminam para todo o mundo por meio dos universitrios que l buscavam a fonte

    dos novos conhecimentos. Nomes como Rousseau, Diderot e Pestalozzi mostram uma

  • 40

    preocupao poltica, didtica e pedaggica com a escola e sua relao com a Igreja e o

    Estado, e em 1773 a ordem dos jesutas suprimida.

    Sobrinho (2002) lembra que a Revoluo Francesa foi responsvel pela

    ampliao do acesso educao bsica e pela criao do sistema de classes. A escola

    tinha, agora, a funo de preparar os indivduos para os servios pblicos que se

    organizavam. A Revoluo Industrial, por sua vez, modificou as estruturas sociais,

    criando novas hierarquias de poder baseadas na produo de servios. A avaliao

    aparecia como forma de seleo para a demanda dos postos de trabalho.

    O desenvolvimento da cincia e da cultura, a diminuio do poder da nobreza e

    do clero e o aumento do poder da burguesia exigiam novas prticas escolares que

    atendessem ao desenvolvimento industrial e comercial do mundo e oferecesse a

    oportunidade de desenvolvimento das pessoas dentro dessas novas sociedades.

    A Revoluo Industrial conduziu ainda institucionalizao das escolas

    pblicas, das escolas infantis e escolas tcnicas e de ofcios e artes, mas,

    contraditoriamente, ao mesmo tempo, tirou crianas da escola para o trabalho capitalista

    que se processava nas fbricas, reiterando o acesso da cultura s classes privilegiadas.

    A avaliao precisou se adaptar e se desenvolver tecnicamente. s provas orais

    medievais e s disputas orais dos jesutas passou-se aos testes ou provas escritas e ao

    sistema de notao, prprios da escola moderna, que pediam objetividade e

    transparncia.

    Para o autor (op.cit.), a avaliao faz parte do cotidiano dos homens antes

    mesmo dessa institucionalizao das escolas. Ela est ligada s escolhas, seleo

    social, distribuio dos indivduos nos lugares sociais e nas hierarquias de poder e

    prestgio (p. 17-18). Entretanto, a avaliao, praticada de forma estruturada e constante,

    como a conhecemos hoje, surge mesmo nessa poca - sculo XVIII -, especialmente na

    Frana, com a institucionalizao das escolas modernas. Sobrinho destaca que em 1808

    na Frana, foi criado o prottipo dos exames nacionais, o bacalaurat, ainda existente

    hoje na passagem do ensino mdio para o superior.

    De um lado, os instrumentos de testes, provas e exames trouxeram mais preciso e fora operacional ao sistema de medidas e de seleo. Por outro, determinaram uma concepo e uma prtica pedaggica que consistem basicamente na formulao dos deveres ou exerccios escolares e controle atravs dos testes. Assim, a avaliao interfere incisivamente na organizao dos contedos e das metodologias e vai legitimando saberes, profisses e

  • 41

    indivduos, o que significa tambm produzir hierarquias de poder e privilgios. Como smbolo da legitimao de valores e privilgios sociais, os ttulos e diplomas so institudos formalmente, resultantes tambm eles da avaliao, e ganham grande importncia na determinao das hierarquias e na distribuio dos indivduos nos lugares que de direito e por mrito individual lhes corresponderiam na sociedade.

    (Sobrinho, 2002: 19)

    A metade do sculo XIX assiste ao nascimento das concepes socialistas de

    Marx que fala em pedagogia social e na possibilidade de aproveitar o sistema de ensino

    desenvolvido pela burguesia capitalista para o enriquecimento cultural e intelectual dos

    homens. A educao pblica e gratuita e a abolio do trabalho infantil nas fbricas

    constituem alguns itens do Manifesto Comunista que influenciam e modificam a histria

    da educao.

    Ainda no sculo XIX e tambm no sculo XX aumenta a participao das

    mulheres na vida intelectual e a aparente democratizao da escola parece abranger os

    pases desenvolvidos e em desenvolvimento.

    Quanto s formas avaliativas, Perrenoud (1999:09), informa:

    [...] a avaliao no uma tortura medieval. uma inveno tardia, nascida com os colgios por volta do sculo XVII e tornada indissocivel do ensino de massa que conhecemos desde o sculo XIX, com a escolaridade obrigatria.

    Com o desenvolvimento social e pedaggico, as diferentes abordagens do ensino

    tomam grande propulso nos sculos XX e XXI. Desenvolvem-se teorias didticas e

    pedaggicas que visam solucionar antigos problemas e as formas e objetivos das

    avaliaes seguem essas tendncias. Segundo Sobrinho (2002), at 1930 os testes

    objetivavam medir a inteligncia e o desempenho, depois disso, passaram a tentar medir

    o aproveitamento dos programas que eram transmitidos aos alunos. J nos anos 60, a

    preocupao passou a ser a questo qualitativa, variando as metodologias de avaliao.

    Ainda nesta poca anos 50 e 60 -, no Brasil, o ensino disseminava os ideais

    compatveis com o regime militar e adotava uma corrente denominada Tecnicismo

    educacional, cujo objetivo era a racionalizao do ensino, atravs do uso de meios e

    tcnicas mais eficazes, como aponta Libneo, 1994: 68.

    Com uma maior intensidade, pelo menos no Brasil, aps os anos 70, as novas

    tecnologias passam a fazer parte do cotidiano dos alunos, pensando-se, inclusive, na

    substituio parcial ou total do p