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O PROBLEMA DO RACISMO: BREVES APROXIMAÇÕES ENTRE RAIMOND GAITA E JEAN-PAUL SARTRE Artur Ricardo de Aguiar Weidmann 1 Ei-los em pé, homens que nos olham e faço votos para que sintais como eu a comoção de ser visto. Jean-Paul Sartre, Orfeu negro INTRODUÇÃO Em sua obra intitulada A Common Humanity: Thinking About Love and Truth and Justice (2002), Raimond Gaita a partir do trecho de uma música citada por Simone Weil que diz: “Se você quer se tornar invisível, não há maneira mais segura do que se tornar pobre. O amor vê o que é invisível” reflete e discute qual seria a preocupação central de suas reflexões. O que significa, sobretudo, que alguns seres humanos são invisíveis para as faculdades morais dos outros e que se deveria pensar sobre os efeitos disso para uma compreensão da moralidade. Desse modo, o que está em jogo para Gaita é o que está ligado à concepção de justiça como igualdade de respeito e o reconhecimento da profundidade da vida interior de todos os seres humanos. Pois como afirma: “Somente quando a humanidade de alguém é totalmente visível será ele tratado como alguém 1 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM, sob orientação do Prof. Dr. Marcelo Fabri. Bolsista Capes/CNPq. E-mail: [email protected]

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O PROBLEMA DO RACISMO: BREVES APROXIMAES ENTRE RAIMOND GAITA E JEAN-PAUL SARTRE

Artur Ricardo de Aguiar Weidmann[footnoteRef:1] [1: Doutorando do Programa de Ps-Graduao em Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria UFSM, sob orientao do Prof. Dr. Marcelo Fabri. Bolsista Capes/CNPq. E-mail: [email protected]]

Ei-los em p, homens que nos olham e fao votos para que sintais como eu a comoo de ser visto.Jean-Paul Sartre, Orfeu negro

INTRODUOEm sua obra intitulada A Common Humanity: Thinking About Love and Truth and Justice (2002), Raimond Gaita a partir do trecho de uma msica citada por Simone Weil que diz: Se voc quer se tornar invisvel, no h maneira mais segura do que se tornar pobre. O amor v o que invisvel reflete e discute qual seria a preocupao central de suas reflexes. O que significa, sobretudo, que alguns seres humanos so invisveis para as faculdades morais dos outros e que se deveria pensar sobre os efeitos disso para uma compreenso da moralidade. Desse modo, o que est em jogo para Gaita o que est ligado concepo de justia como igualdade de respeito e o reconhecimento da profundidade da vida interior de todos os seres humanos. Pois como afirma: Somente quando a humanidade de algum totalmente visvel ser ele tratado como algum que de forma inteligvel reivindica acesso igualitrio a bens e oportunidades. (GAITA, 2002, p. XXI) O que quer dizer que a luta por justia social deve ser feita para completar a humanidade tornada invisvel ou diminuda das vtimas de preconceito racial, dio tnico ou injustias sociais. Nesse sentido, as diferentes formas de racismo tambm podem ser interpretadas como formas de diminuio ou desprezo da humanidade compartilhada entre os seres humanos. O racismo, como sugere, consiste na negao de que certas pessoas possuem o tipo de individualidade humana que iria faz-los de forma inteligvel capazes de ser injustiados como "ns" podemos ser injustiados, e, portanto, capazes de sofrer como ns sofremos. Trata-se, portanto de tentativas de negao do reconhecimento de uma humanidade compartilhada entre os homens e que por muitas vezes serve como justificativa para o dio tnico e o preconceito racial. Dessa forma, procurar-se- elucidar neste artigo a forma como Raimond Gaita procura repensar os resultados das anlises que enquadram diferentes tipos de racismo sob a forma de racionalizaes e generalizaes baseadas em meias verdades. Sobre o mesmo assunto, sero apresentadas tambm as posies polticas de Jean-Paul Sartre sobre o colonialismo europeu e suas anlises sobre o fenmeno do antissemitismo. Em sua postura de intelectual engajado trata da violncia do colonialismo europeu a partir do modo como o mesmo reduz os colonizados categoria de sub-humanos, e, alm disso, ressalta o modo como a poltica colonial resulta em atitudes de racismo. Entretanto, a proposta de soluo para o problema foi alvo de polmica, pois a via escolhida por Sartre pela violncia do colonizado na eliminao do colonizador. Tratando do antissemitismo, Sartre o aponta como uma forma de atitude que se d atravs de generalizaes feitas por parte dos antissemitas ao buscar subjetivamente qualificar os judeus em categorias que os encerrem enquanto tais. Alm disso, destaca o aspecto objetivo do antissemitismo que consiste em buscar em dados oferecidos por medies e estatsticas condicionadas economicamente a reificao do ser judeu. A proposta de Sartre para a soluo do problema aponta por um lado a assuno de uma atitude autntica por parte do judeu de assumir-se em sua condio e toma-la como ponto de partida para a no qualificao de seu ser por meio dos juzos alheios. Alm disso, Sartre aponta como soluo medidas polticas que visam o projeto socialista em que uma sociedade sem classes levaria o antissemita a produzir novas escolhas de si e dos outros, no mais pela via antissemita que divide a sociedade entre judeus e no-judeus. Solues estas que certamente foram influenciadas pelo seu contato com o marxismo europeu.Assim, na medida do possvel, tendo em vista o perodo histrico que separa os dois autores e as tradies filosficas em que esto inseridos, se tentar estabelecer um dilogo entre os mesmos de modo a descobrir e ressaltar teses que se aproximam no que diz respeito ao problema do racismo e do antissemitismo. Este, portanto, o objetivo que nortear este artigo. 1 GAITA O RECONHECIMENTO DE UMA HUMANIDADE COMUM

A obra de Gaita rica em exemplos de indivduos que de certa maneira, parecem ter esquecido ou ignorado a humanidade comum presente nos outros seres humanos. Um dos casos em que Gaita procura discutir o problema do esquecimento da humanidade comum o da freira que conheceu nos tempos em que trabalhava como voluntrio em um hospital psiquitrico. A atitude da freira em questo chamou a ateno de Gaita pelo fato de que esta havia dito que tratava os pacientes da mesma forma como todos os que trabalhavam na enfermaria[footnoteRef:2]. Um segundo exemplo, o de uma mulher chamada M, a qual havia perdido recentemente seu filho e que ao assistir um documentrio sobre mes vietnamitas que perderam seus filhos em bombardeios reage primeiramente afirmando que partilha com as mes vietnamitas um sentimento comum. No entanto, mais tarde, acaba afirmando que para as vietnamitas o caso diferente, bastando que as mesmas tenham outros filhos[footnoteRef:3]. Um terceiro exemplo o apresentado o relato de George Orwell em que retrata um episdio ocorrido durante a Guerra Civil Espanhola no qual o mesmo no consegue disparar em um soldado fascista que corria com as calas na mo[footnoteRef:4]. [2: Cf. Gaita (2002, p. 18)] [3: Cf. Gaita (2002, p. 57-58)] [4: Cf. Gaita (2002, p. 48)]

Os exemplos de Gaita fazem pensar sobre diferentes graus de identificao com a humanidade do outro. No primeiro caso, possvel pensar o reconhecimento da humanidade do outro como algo inerente aos seres humanos e, no segundo, o no reconhecimento tratado como uma expresso do racismo, o que segundo Gaita, consistiria na negao ou diminuio da humanidade dos outros seres humanos. No caso de Orwell, independente de a situao ser conflituosa, o que est em jogo a forma como o reconhecimento da humanidade do outro vem tona nas mais diferentes situaes a que se est submetido. Trata-se, sobretudo, de um voltar-se de imediato para a realidade vivida da outra pessoa. A freira em questo aparentava possuir um tipo especial de compaixo para com os outros, pois tratar os pacientes como iguais, parecia no exigir da mesma nenhum tipo de esforo ou condescendncia, o que no caso dos mdicos parece justamente o contrrio, um esforo por reconhecer a humanidade de seus pacientes. Isso pode ser explicado da seguinte forma: se tratar os outros como iguais uma espcie de imperativo tico, significa que os outros no so naturalmente tratados como iguais, e por isso, preciso um esforo para reiterar na ao esse imperativo de tratamento. Por essa razo, a freira ao demonstrar uma abertura de seus sentimentos para com os outros e sem esforar-se para trata-los de forma igualitria estaria, segundo Gaita, em uma atitude diferente dos demais membros da equipe da enfermaria do hospital.O que os exemplos em questo mostram o fato de que existem diferentes nveis ou maneiras de reconhecimento ou negao da humanidade do outro. Entretanto, no se trata de estabelecer critrios absolutos de reconhecimento. No caso dos mdicos do hospital psiquitrico se pode visualizar a forma como possvel um nico e mesmo modo de tratamento da humanidade do outro ser visto por um lado como digno e por outro como menosprezo, bastando ter em vista o quadro de comparao da ao. Assim, a possibilidade de menosprezar a humanidade do outro est presente em todos os momentos, pois nem sempre o homem est em condies de reconhecer reflexivamente essa possibilidade a todo instante. Parece haver, dessa forma, uma constante tentao para menosprezar ou diminuir a humanidade do outro a todo instante. Dessas observaes possvel constatar que Gaita permanece em uma esfera ambgua de indeterminao e variao sobre o modo como se d o reconhecimento da humanidade do outro. Como afirma: A perplexidade caracterstica do remorso - O que foi que eu fiz? Como que eu poderia ter feito isso? - D algum suporte ideia de que somos muitas vezes apenas parcialmente conscientes da natureza do bem e do mal e seu devido lugar em nossas vidas. (GAITA, 2002, p. 43) Em outros momentos da obra, Gaita afirma haver uma diferena clara entre aqueles que no reconhecem ou desprezam a humanidade do outros e aqueles que [...] fazem uso srio de uma concepo do indivduo como incondicionalmente precioso (GAITA, 1999, p. 53). Entretanto, no deixa claro qual das duas atitudes seria a mais comum.No entanto, o que importa para esta reflexo, a ideia de preciosidade inerente a cada ser humano, pois para Gaita, todos possuem obrigaes mesmo com aqueles que no se possui nenhum lao de amor, ao mesmo tempo em que no h obrigao de am-los. Atribuindo ao amor um papel fundamental na formao dos conceitos morais, pois o amor estaria ligado diretamente s condies de formao do sentido da preciosidade inerente a todos os seres humanos. Este ponto considerado, por Gaita, o argumento central de seu livro.Nosso sentido de preciosidade de outras pessoas ligado aos sues poderes de nos afetar de formas que ns no podemos compreender e em formas contra as quais podemos proteger a ns mesmos somente ao custo de nos tornarmos superficiais. No h nada razovel no fato de que a ausncia de outra pessoa possa fazer com que nossas vidas paream vazias. O poder do ser humano para afetar um ao outro de maneiras alm da razo e alm do mrito, tem ofendido racionalistas e moralistas desde o alvorecer do pensamento, mas isto em parte o que nos foi dado no sentido da individualidade humana que ns expressamos quando dizemos que seres humanos so nicos e insubstituveis. Tais ligaes, a alegria e tristeza, podem causar as condies de nosso sentido da preciosidade dos seres humanos. O amor o mais importante deles. (GAITA, 2002, p. XXII-XXII) Para o problema do racismo as noes evidenciadas at aqui so de suma importncia. Em primeiro lugar a noo de reconhecimento da humanidade do outro, visto que o racismo uma forma de comportamento em que se nega em primeiramente a humanidade comum de certos grupos de pessoas com base na ideia de que no so capazes de sentir e pensar da mesma forma como ns pensamos e sentimos. Por este motivo, seria justificvel o tratamento de desigualdade e condescendncia para com os mesmos. Assim, se os membros de um grupo tnico so tratados como incapazes de sentir e pensar como os homens brancos o tratamento reservado aos mesmos seria trat-los como menos do que humanos, ou, no trat-los como completamente humanos. O que ocorre, sobretudo, o no reconhecimento da profundidade dos seus sentimentos e de sua vida interior como compartilhada por todos os seres humanos. Desse modo, esto sujeitos a todos os tipos de injustias, uma vez que, no sendo reconhecidos como humanos plenos, esto tambm excludos de oportunidades sociais plenas e de igualdade de respeito.

2 O OLHAR DE RAIMOND GAITA SOBRE O RACISMOSem dvida uma das grandes contribuies de A Common Humanity a discusso sobre o problema do racismo sob o ponto de vista filosfico, e ao iniciar sua reflexo sobre o racismo Gaita recorre a dois exemplos. O primeiro deles o relato sobre as crianas mestias da Austrlia que foram retiradas de suas mes aborgenes presente no livro Bringing Them Home. A parte destacada recai sobre o relato que afirma que as mes em breve esqueceriam seus filhos. Aproveitando o assunto, Gaita faz ligao com o caso de uma mulher chamada por ele de M, a qual havia perdido seu filho recentemente e estava em estado de sofrimento. O caso de M chamou a ateno de Gaita quando a mesma estava assistindo um documentrio sobre o Vietn que retratava o sofrimento das mes vietnamitas que perderam seus filhos durante os bombardeiros. A primeira reao de M ao assistir o sofrimento das mes foi o de pensar que compartilhava com elas um problema semelhante. No entanto, passado algum tempo, a mesma reage afirmando que para as mes do Vietn o caso era diferente, bastando que as mesmas tivessem outros filhos. Seria esta uma simples reao de insensibilidade ou no reconhecimento da profundidade dos sentimentos daquelas mes? Para Gaita a reao de M era notadamente do tipo racista, pois afirmava que Ela quis dizer que elas poderiam substituir suas crianas mortas mais ou menos como ns substitumos animais de estimao (GAITA, 2002, p. 58) A reao de M como a expresso de um tipo de racismo, apresenta certas generalidades, as quais no se aplicam somente s mulheres vietnamitas, mas tambm aos homens sob diferentes aspectos de suas vidas. Gaita discute aqui a natureza dos juzos sobre as observaes ou comentrios do tipo racista, refutando em primeiro lugar o tratamento dado ao juzo de M como uma simples constatao emprica, pois se caso assim fosse, no seria possvel [...] nenhuma inferncia sobre o que isto significa (GAITA, 2002, p. 58). Do mesmo modo como uma explicao que apelasse para uma srie de variveis culturais ou relativas situao de guerra poderia explicar a observao racista de M. Mais do que isso, no se trata de discutir o modo como a sensibilidade deveria ser diante dos fatos, mas ver que esta observao racista diz respeito a todos os aspectos da vida interior do vietnamitas. Discutindo a observao de M sobre a situao das mes vietnamitas e as diferenas em relao a sua, Gaita afirma que isso resulta do modo como [...] ela concebe o que o sofrimento pode significar para os vietnamitas. (GAITA, 2002, p. 58) Assim, a falha de M consistiria em no conseguir enxergar que h algo de profundo nas vidas interiores dos vietnamitas, e, por conseguinte, no conseguiria enxergar que o mesmo ocorreria caso sua observao estivesse centrada em outros sentimentos. Sob o ponto de vista de M os vietnamitas seriam essencialmente incapazes de possuir aquilo que necessrio para uma vida interior profunda, estando eles fora do campo de possibilidades com o qual dada a possibilidade de julgar o sentido de profundidade ou superficialidade desta vida interior.Para dar continuidade a discusso, Gaita recorre ao filsofo ingls Peter Winch que observa que [...] tratar uma pessoa justamente envolve tratar com seriedade a sua prpria concepo de si mesmo, seus prprios comprometimentos e cuidados, sua prpria compreenso de sua situao e daquilo que a situao lhe exige. (GAITA, 2002, p. 59) O que significa que a concepo de pessoa reside na capacidade de encontrarmos algo profundamente inteligvel ao explorarmos tais comprometimentos e cuidados, e ao explorarmos esses espaos se poderia tornar inteligvel tanto a riqueza quanto a pobreza da vida interior. Trata-se, sobretudo, do espao de dilogo a partir do qual [...] somos convidados a responder aos apelos e demandas que tentamos investir nossos pensamentos e palavras a partir de uma individualidade adquirida lucidamente. (GAITA, 2002, p. 59) Tal lucidez o que Gaita se refere como a voz que cada pessoa deve encontrar, o ter algo a dizer. No entanto, no basta ter algo a dizer preciso tambm ser ouvido, e na condio de tratamento sub-humano, como ocorre com diferentes grupos tnicos e outras minorias, torna-se necessrio a reassuno do princpio de igualdade de respeito. Por no raras vezes, as vtimas de racismo relatam que so tratadas como sub-humanos. As observaes de M podem ser vistas como degradadoras da condio humana dos observados. A sua atitude degradante e desumanizante, pois nega s vtimas qualquer possibilidade de responder com profundidade e lucidez sobre aquilo que caracterizado como condio humana. Dessa forma, aqueles que so considerados incapazes de profundidade de uma vida interior, esto corretos quando afirmam que so tratados como menos do que um ser humano, ou, um sub-humano. Assim, o que Gaita procura enfatizar que atitudes de cunho racista so caracterizadas de uma forma geral como o no reconhecimento de que em todos os seres humanos h uma vida interior que se desenvolve em sua complexidade e profundidade; e que esta vida interior significa o compartilhamento de uma condio humana comum, que se negada ou desprezada, nos autoriza a tratar os outros seres humanos como no sendo inteiramente humanos. O que traz como consequncia a possibilidade de todo o tipo de justificativas de tratamento desigual e a possibilidade das mais variadas atitudes que o dio pode comportar. No entanto, se poderia perguntar: como possvel explicar ou justificar teoricamente as formas de racismo?Para Gaita, a maior parte das explicaes psicolgicas sobre o racismo parte do pressuposto de que os racistas reconhecem integralmente a humanidade daqueles que depreciam, mas racionalizam a complexidade e a profundidade das causas de sua depreciao a partir da construo de esteretipos dos quais acreditam no fazer parte ou no corresponder. Isso leva a concluir que os racistas no acreditam realmente naquilo que afirmam quando tentam justificar as suas atitudes para com outros grupos. Para Gaita, possvel sugerir duas consequncias do modo como os negros aparentam ser para os brancos racistas:

Ou essas aparncias induzem racistas a crenas sinceras, porm falsas de modo emprico [...] Ou essas aparncias reforam e aprofundam a incapacidade psicolgica de racistas para atentar, mesmo com uma aparncia de objetividade, evidncia. Colocado de uma forma mais geral, supe-se que a forma como os negros se parecem para os racistas brancos constitui apenas um contingente - embora muitas vezes esmagadoramente poderoso obstculo psicolgico para racistas objetivamente apreciarem como as coisas realmente so. (GAITA, 2002, p. 62)

As consideraes feitas acima poderiam ser aplicadas a outros tipos de atitude de desprezo ou dio relativa a outras categorias de relaes entre pessoas, como o sexismo, homofobia e mesmo o antagonismo de classes sociais. Lembrando que conflitos contemporneos como os ocorridos na Iugoslvia e na Irlanda no eram necessariamente motivados por dio racial. Desse modo, atitudes do tipo racista podem ser encontradas mesmo entre aqueles que reagem com desprezo ou dio a determinados grupos, sem incluir necessariamente o conceito de raa. No entanto, no pensamento de Gaita, o que parece mais explcito a nfase dada categoria do racismo mesmo discutindo o contedo das atitudes racistas - o que possvel de ser evidenciado quando demarca uma fronteira clara entre racistas e no-racistas ao expor esteretipos raciais em seu livro, como por exemplo se refere ao que dito dos negros: Negros tem baixo QI. Eles fedem. Eles so preguiosos. Eles possuem um apetite sexual incontrolvel e assim por diante (GAITA, 2002, p. 63). isto o que ele se chama de denegrir a vida interior das pessoas pertencentes ao grupo desprezado.

Ns sofremos, mas eles "sofrem", ns estamos alegres, eles esto "alegres", ns amamos e eles "amam", nos sentimos remorso e eles se sentem "remorso" e assim por diante. [...] Podemos distinguir o verdadeiro amor de paixo, sofrimento real de sentimentalismo autoindulgente, e que faz-lo fundamental para o nosso sentido dos tipos de estados que so - para sua prpria existncia. As vidas interiores de negros ou asiticos so colocadas entre aspas por racistas brancos, porque eles no podem acreditar que poderia haver qualquer profundidade nelas. (GAITA, 2002, p. 63) A afirmao de Gaita nos mostra como possvel para o racista deixar de ser movido por sentimentos em relao a negros ou asiticos. O colocar entre aspas as vidas interiores dos mesmos significa que em relao ao homem branco no h o compartilhamento da mesma profundidade de vida interior, o que justificaria a depreciao de indivduos que no pertencem ao grupo dos brancos. Sendo assim, o que parece estar em jogo aqui que a tendncia espontnea para denegrir a vida interior de negros e asiticos estaria relacionada aceitao de ideologias racistas. Desse modo, a afirmao de que os negros no sofrem ou amam to profundamente como os brancos no necessariamente refutada pelo fato de que muitos negros expressam sofrimento ou amor to intensamente como muitos brancos o fazem. Para Gaita, as explicaes psicolgicas dadas para os esteretipos racista so tratadas como racionalizaes tanto no sentido de uma representao racional como o uso da razo, mais para esconder do que para revelar aquilo que verdadeiro quanto matria em questo. Entretanto, em certas ocasies quando os esteretipos derivam de ideologias, os mesmos acabam por ser elaborados ou incorporados em teorias pseudocientficas.Para Gaita, atingir uma compreenso segura sobre o problema do racismo est ligado ambiguidade com que o mesmo usa os conceitos para caracterizar atitudes racistas. Tal dificuldade est ligada ao fato de que no texto h a afirmao de que os racistas esto enganados quanto as capacidades intelectuais e psicolgicas daqueles que denigrem e que esse seu engano poderia ser demonstrado a partir de disciplinas como a biologia e a psicologia. A dificuldade reside justamente no fato de que se est destacando apenas certo tipo de experincia que poderia fazer com que os esteretipos racistas cassem por terra. Nesse primeiro sentido, a experincia est referida a explicaes de cunho emprico, e que, portanto, poderiam ser declaradas como verdadeiras ou falsas atravs de estudo comparativos entre brancos e negros. Entretanto, racistas podem alegar que negros no possuem certo tipo de capacidade de compreenso para aquilo que em certos aspectos est associado a uma experincia esttica subjetiva, como por exemplo, a declarao de que [...] negros so incapazes de um certo tipo de compreenso necessria para compreender o que Othelo diz e sente (GAITA, 2002, p. 64) O que poderia ser transformado em argumento a partir da reunio de estudos sociolgicos e psicolgicos. Por outro lado, o que Gaita procura demonstrar que o sentido de experincia que utiliza para tentar convencer sobre o engano do racista, no se move no plano das cincias empricas, mas sim em um nvel de reconhecimento da humanidade do outro que no pode ser colocado como uma proposio com valor de verdade. Sobre isso afirma:

Ns no descobrimos a plena humanidade de pessoas que so denegridas racialmente em livros de cientistas sociais, ou de nenhum modo se esses livros contm meramente um tipo de conhecimento que pode ser includo em enciclopdias. Se descobrirmos isto atravs da leitura, ento em execues, romances e poesia, em outras palavras, no na cincia, mas na arte. Para tais livros serem publicados, no entanto, e para que eles atinjam um pblico razoavelmente amplo, os dias deste tipo de racismo devem ser enumerados. (GAITA, 2002, p. 67)

Com a distino dos sentidos de experincia Gaita procura demonstrar os modos como os racistas esto enganados quanto s pessoas que depreciam. Pois, com o sentido de uma experincia emprica ou objetiva seria possvel demonstrar que os racistas esto errados quanto ao modo como as coisas realmente so. Bastando recorrer mesma para demonstrar factualmente a falsidade de suas crenas. Por outro lado, a palavra experincia diz respeito ao que considerado por Gaita o aspecto mais importante a respeito do racismo e que no pode ser submetida a um tipo de conhecimento factivo, e que se caso no levarmos em considerao Ns iremos falhar em ver a diferena entre a afirmao racista de que negros possuem baixo poder cerebral e a afirmao de que ter filhos e cuidar deles no significa para eles o mesmo que significa para ns (GAITA, 2002, p. 67)Ao iniciar o tratamento sobre outros tipos de racismo Gaita se refere s caricaturas encontradas em revistas de propaganda nazista, e afirma que o antissemitismo um fenmeno mais complexo do que o tipo de racismo anteriormente descrito de brancos contra negros, reiterando que o resultado do antissemitismo muito mais do que um simples episdio vergonhoso na histria da humanidade. No caso do antissemitismo, os nazistas ao executar diferentes formas de atrocidades e humilhaes contra os judeus, aparentemente pressupem uma compreenso daquilo que profundamente inerente ao modo como sentem e pensam os judeus, algo que brancos racistas negam em relao aos negros. Gaita cita como exemplo deste tipo de comportamento um episdio de dio e humilhao contra um rabino presente no livro de Chaim Kaplan intitulado Warsaw Diary:Um rabino em Lodz foi forado a cuspir em uma Tor que estava na Arca Sagrada. Temendo a sua vida, ele cumpriu e profanou o que para ele e seu povo era sagrado. Aps um curto tempo ela no possua mais saliva, sua boca estava seca. Para a pergunta do nazista, por que ele havia parado de cuspir, o rabino respondeu que sua boca estava seca. O filho da raa superior comeou a cuspir na boca do rabino, e o rabino continuou a cuspir na Tor. (GAITA, 2002, p. 68)

A inteno de Gaita ao mostrar o exemplo relatado por Kaplan demonstrar justamente que o nazista, mesmo em uma atitude sdica e depreciativa, compreendia exatamente a profundidade do que o ato de cuspir na Tor significa para um rabino e seu povo. Na sua anlise, a atitude do nazista se deu justamente por pensar que o rabino no possua uma simples compreenso ou definio conceitual daquilo que seria sagrado para ele, mas uma compreenso profunda que dizia respeito sua prpria vida interior, sua maneira de sentir e pensar. Gaita, como se pode notar, procura distinguir racismo de dio tnico, pois os psiclogos procuram classificar todas as formas de racismo sob a mesma estrutura. Assim, o dio tnico que disseminou o genocdio da Iugoslvia e na Irlanda de um tipo diferente daquele que ocorre em relao caratersticas fsicas. No entanto, Gaita afirma que as explicaes sobre as razes que servem para indicar comportamentos e atitudes racistas no so as mesmas razes que servem de motivos para ao. Assim, quando antissemitas apresentam razes pelas quais odeiam judeus, estas podem ser compreendidas por qualquer um que as aceite. Significa que h uma impenetrabilidade radical dessas crenas para evidenciar que no sustentam atitudes e aes antissemitas como crenas que normalmente servem para explicar atitudes e aes que elas explicam. Isto ocorre [...] caso as crenas estejam combinadas com um dio to profundo que fazem com que a pessoa que se sinta invulnervel razo. (GAITA, 2002, p. 69) O mesmo tipo de dio, segundo Gaita, ocorre entre Servos, Croatas e Muulmanos mesmo quando suas crenas esto endurecidas pelos resultados devastadores da situao de guerra. Dessa forma, somente uma atitude passional suporta o modo como os combatentes enxergam as crenas que acreditam as quais, para Gaita, consistem em meias-verdades e mentiras, que diferentemente dos esteretipos descritos por racistas, realmente os motivam. Trata-se de uma estreita relao entre crenas e atitudes passionais. Seguindo em suas anlises do fenmeno do racismo, Gaita, procura compreender o que ocorre entre judeus e gentios, caracterizando como um tipo de dio similar ao tnico, porm diferente do antissemitismo. Para elucidar a questo, relata o que ocorreu durante o debate sobre o romance de Helen Demidenko, That Hand That Signed the Paper, o qual trata da participao ou contribuio ucraniana no holocausto. O romance em questo, para muitos judeus e australianos soou como antissemita. Alm disso, o livro foi vencedor de um dos maiores prmios literrios, o que soou como uma ofensa para os judeus. O resultado dessa premiao, tendo em vista o contedo do livro, resultou em uma das maiores controvrsias literrias da Austrlia, sendo reportada e inflamada por um perodo de trs meses ou mais. No entanto, a controvrsia assumiu um caminho bizarro quando a autora que havia chamado a si mesma de Helen Demidenko, afirmando ser uma descendente de ucranianos que haviam sido assassinados por judeus bolcheviques, passou a ser Helen Darville, nascida na Inglaterra e sem nenhum tipo de ligao com a Ucrnia. Desse modo, a irritao para com os judeus seria expressa por si mesma em verdades parciais e generalizaes baseadas em informaes no confiveis, cujo contedo era similar ao esteretipo antissemita. Assim, o contexto acima, permite a algum falar sobre a diferena que na maioria das vezes, mesmo no sendo de ordem antissemita, acaba sendo tomada como tal. Desse modo, Gaita, afirma que a irritao com os judeus possui a mesma estrutura psicolgica do dio tnico. A motivao se daria por crenas parcialmente racionais baseadas em verdades parciais e generalizaes apressadas que se encontram para alm do alcance da razo, tendo em vista que o cenrio do conflito havia gerado emoes exacerbadas. Assim, preciso compreender a diferena entre esse tipo de fenmeno e o antissemitismo para no assimil-lo a isto, e ao mesmo tempo, pensar que um antissemita algum que de maneira insistente sustenta suas crenas neste tipo de racionalidade sem suporte, [...] em parte porque ele no sabe mais do que isso e tambm porque suas paixes esto inflamadas (GAITA, 2002, p. 70)Gaita afirma que reduzir o antissemitismo a uma forma de dio racial, no caso dos ucranianos, seria a proposta didtica do livro de Darville, uma proposta reconhecida e temida pelos judeus. O que Darville demonstra que o dio dos ucranianos contra os judeus era incompreensvel e por vezes justificado como uma resposta s alegaes de envolvimento e participao dos judeus na opresso Bolchevique na Ucrnia. Principalmente, sobre o papel desempenhado pelos mesmos no perodo da grande fome em que milhares de pessoas pereceram. Darville atribui vigorosa participao de camponeses ucranianos no assassinato de milhares de judeus a uma generalizao sobre aquilo que acreditavam e tinham visto. Essas generalizaes de suas crenas teriam sido motivadas por aquilo que haviam sofrido no perodo de guerra e que foram intensamente exploradas pelos nazistas. Entretanto, ressalta Gaita: Ela no faz nenhum meno em seu romance sobre a longa e sanguinria histria do antissemitismo ucraniano (GAITA, 2002, p. 71) Demonstrando assim, que o contedo do romance de Darville falso no que diz respeito ao modo como teria se iniciado o dio contra judeus na Ucrnia. Falso, pois, sugere que o incio do antissemitismo na Ucrnia teria se originado a partir do momento em que os ucranianos passaram a acreditar na participao massiva dos judeus na opresso bolchevique, negando que o dio era expresso do antissemitismo. Dessa forma, para Gaita, Darville deixa claro que a tendncia ucraniana ao esteretipo do judeu bolchevique no a causa do dio contra judeus como o dio tnico que se deu na formao da Iugoslvia, mas sim, a expresso de seu antissemitismo.

O fato de que o dio antissemita no est relacionado a esteretipos que so oferecidos para justifica-lo, aquilo que o antissemitismo e outras formas de racismo tm fascinado os psiclogos. Tem sido afirmado que se os judeus no tivessem existido antissemitas o teriam que invent-los. A ideia que este antissemitismo e outras formas de racismo atendem a necessidades psicolgicas e sociais profundas com as quais algum nunca ir compreender se abord-los somente equipado com os recursos conceituais necessrios para compreender o dio tnico. (GAITA, 2002, p. 71)

O ltimo ponto que Gaita dirige sua ateno em sua anlise do racismo a contribuio sobre o que seria uma adequada psicologia do mesmo, principalmente quando este se apresenta em sua forma defensiva. Para ele no poderia ser elaborada uma explicao da mesma forma como foi feita a partir da resposta de M sobre os vietnamitas. Pois, nas explicaes formuladas para dar conta da natureza das racionalizaes racistas no se deve assumir, talvez, que os racistas realmente sabem no seu mago que as suas vtimas so seres que integralmente humanos. Essas formulaes tericas distorcem a natureza do racismo dirigido a pessoas com cores de pele diferente e a diferena entre este tipo de racismo e o racismo antissemita. Portanto, a pressuposio de que o racismo uma negao psicologicamente motivada das caractersticas daqueles que so suas vtimas, [...] torna cega esta diferena e fecha a porta para a compreenso proporcionada pela reflexo sobre o racismo de M. (GAITA, 2002, p. 72)Por fim, cita o antirracismo como um dos grandes movimentos sociais surgidos aps a Segunda Guerra Mundial, afirmando que sem dvida o mundo de hoje um lugar melhor para essa perspectiva mesmo sob acusaes injustas e tolas de que o antirracismo tem contribudo para a manuteno do racismo. Do mesmo modo como o feminismo, que tm sido comparado e colocado sob a mesma linha, tem expressado uma preocupao no que diz respeito a um tipo de igualdade que no pode simplesmente ser capturada em um discurso de igualdade de acesso a bens e oportunidades. Trata-se, sobretudo, de uma preocupao generalizada que demonstra mais do que tudo, uma ideia de justia social como igualdade de respeito e no mais como igualdade de oportunidades e acesso a bens sociais. Isso o que pode ser inferido do seguinte discurso igualitrio: Trata-me como uma pessoa, veja-me como um ser humano completo, como totalmente o seu igual, sem condescendncia [...] (GAITA, 2002, p. 72) O que para Gaita, no se trata de simples exigncias que devam ser cumpridas na forma de valores que sirvam de meios para atingir outros fins. So demandas que se traduzem como um chamado justia enquanto igualdade de respeito como um componente constitutivo com o qual a afirmao da igualdade de acesso a bens e oportunidades, pode ser de fato realizada caso se pressione a isso. Isso chamado por Gaita de justia social, pois ela somente pode se realizar na medida em que houver insistncia para que o Estado e as instituies civis se esforcem para tornar visveis ou revelar a plena humanidade daqueles que se tornaram invisveis para as faculdades morais dos outros.

3 SARTRE: O COLONIALISMO COMO FORMA DE RACISMO E O ANTISSEMITISMO

De forma semelhante a Gaita, Sartre ao dirigir suas anlises polticas sobre o colonialismo assume a posio de que a violncia deste negar a humanidade completa do colonizado, transformando-o em uma espcie de sub-humano:[...] a violncia colonial no tem somente a finalidade de impor respeito a homens escravizados, procura tambm desumaniz-los. Nada ser poupado para liquidar-lhes as tradies, substituir-lhes as lnguas pela nossa, para destruir-lhes a cultura sem dar-lhes a nossa. [...] Se ele resiste, os soldados atiram, um homem morto; se cede, se degrada, no mais um homem; a vergonha e o medo vo fissurando o seu carter, desintegrando sua pessoa. (SARTRE, 1968, p. 143)

Entretanto, a violncia do colonialismo ao tentar desumanizar o colonizado, nem sempre tem xito, uma vez que, para desumanizar algum preciso que primeiramente este seja um homem livre. E nesses termos, o colonizado no tido como um homem livre. esta, portanto, a tese fundamental que guiar Sartre em sua anlise dos resultados da violncia do colonialismo europeu, principalmente sobre a Guerra da Arglia.A tortura e o racismo tem como papel desumanizar o colonizado do mesmo modo como Gaita relata o episdio ocorrido na Austrlia sobre as crianas mestias que foram tomadas de suas mes aborgenes. Quando as crianas foram retiradas de suas mes, estando na condio de colonizados, eram vistas pelos colonizadores como no sendo seres humanos plenos, e dessa maneira o fato de ter os seus filhos roubados cairia em breve no esquecimento. Isso ocorreria, pois os aborgenes no so capazes de sentir da mesma forma como ns sentimos, e, portanto, o resultado da perda seria diferente. O colonizador insere o colonizado na categoria de sub-humano e pela mesma razo o racismo faz parte do colonialismo. Nesse sentido, o racismo para Sartre uma necessidade do sistema de colonizao e o mesmo se insere na prpria lgica de funcionamento do mesmo. Assim, a funo principal do racismo compensatria lgica econmica do liberalismo poltico.

[...] o colonialismo rejeita os direitos do homem para homens que ele submeteu pela violncia, que ele conserva pela fora, na misria e na ignorncia, logo como diria Marx, em estado de sub-humanidade. A verdadeira razo da segregao racial, portanto, a segregao econmica. (SARTRE, 1961, p. 46)

Sendo o racismo, ou, a segregao racial motivada pela segregao econmica, a nica soluo vivel para o problema seria, portanto, o fim do sistema econmico colonial que o constitui. O racismo um tipo de violncia que nega a plena humanidade do colonizado, e por essa razo, deve ser combatido com a mesma violncia que impera sobre suas vtimas. A violncia do colonizado que Sartre se refere [...] no uma tempestade absurda, nem a ressureio de instintos selvagens, nem muito menos efeito de ressentimento: o prprio homem se recompondo (SARTRE, 1960, p. 47) Trata-se, sobretudo, da reassuno de sua humanidade plena, de torna-la visvel diante daqueles que a fizeram obscurecer. Neste ponto, Sartre se aproxima da viso de Gaita de que uma das consequncias do racismo a diminuio da humanidade de suas vtimas e que a luta por reconhecimento enquanto seres humanos, plenos e dignos de igualdade e respeito, o que deve ser priorizado em relao ao discurso sobre igualdade de oportunidades e acesso a bens sociais. No entanto, Sartre se afasta de Gaita ao afirmar que a nica forma de reassuno da humanidade plena do colonizado pela violncia - seja por ideias polticas radicais ou pela luta armada - mais precisamente, pela morte do colonizador, uma vez que [...] filho da violncia, ele coloca nela em cada instante sua humanidade (SARTRE, 1968, p. 151). Desse modo, a eliminao do opressor e a eliminao do colonialismo, seriam as condies para que seja possvel a liberdade do colonizado. Sartre critica inclusive os crticos da no violncia, convocando todos ao engajamento poltico como forma de no cumplicidade com os opressores.

[...] os no-violentos: nem vtimas, nem algozes! Vamos! Se vocs no so vtimas, quando o Governo que vocs escolheram num plebiscito, quando o exrcito em que seus jovens irmos serviram, sem hesitao nem remorso, empreenderam um genocdio, vocs so indubitavelmente algozes. E se vocs escolherem ser vtimas, arriscar um ou dois dias de cadeia, vocs escolheram, simplesmente, safar-se do compromisso. [...] Compreendam, finalmente, isto: se a violncia tivesse comeado esta tarde, se a explorao ou a opresso jamais tivessem existido sobre a terra, talvez a no-violncia apregoada pudesse apaziguar a contenda. Mas se todo o regime e at mesmo os pensamentos no violentos de todos vocs so condies nascidas de uma opresso milenar, a passividade de vocs s serve para coloc-los ao lado dos opressores. Vocs sabem muito bem que somos exploradores. Vocs sabem que tiramos o ouro e os metais, depois o petrleo dos novos continentes e que o levamos para as velhas metrpoles. No sem excelentes resultados: palcios, catedrais, capitais industriais; e depois quando a crise ameaava, os mercados coloniais l estavam ara amortec-la ou desvi-la. A Europa, empanturrada de bens, deu direito de humanidade a todos os seus habitantes: um homem, entre ns, quer dizer um cmplice, visto que todos aproveitamos da explorao colonial. (SARTRE, 1968, p. 152)

Para Sartre, a opresso do sistema colonialista europeu e o governo so resultados de uma determinao dada pela opresso que ocorre neste tipo de regime de ao poltica. Desse modo, a opresso cria a condio fundamental para que haja a passividade dos colonizados e esta passividade cria as condies necessrias para que haja a cumplicidade a que se refere, como possibilidade de evadir-se do compromisso. Assim, na condio de ser explorador est implicada a cumplicidade, e esta significa o desfrute dos resultados obtidos a partir da explorao dos sub-humanizados; e ser explorador, por sua vez, fazer-se cumplice e saber fazer uso dos resultados econmicos que provm das colnias. Com essa crtica, fica evidente que para Sartre o real engajamento poltico se d na urgncia de um momento histrico e que pede por lucidez e vigilncia constante. Pois, a perda desta vigilncia e lucidez pode implicar em cumplicidade com o sistema colonialista. Sendo assim, a forma proposta para frear a violncia do colonialismo o engajamento e a tomada radical de posies polticas, pois, [...] na Europa de hoje, completamente aturdida pelos golpes que lhe do conta na Frana, na Blgica, na Inglaterra, a menor distrao do pensamento uma cumplicidade com o colonialismo (SARTRE, 1968, p. 151) Portanto, Sartre, afirma que o papel do intelectual engajado frente s formas de depreciao do humano e do colonialismo [...] ajud-lo a morrer. No somente na Arglia, mas em todo lugar onde ele existe. (SARTRE, 1968, p 39) A violncia do colonialismo atravs do racismo e da tortura desmente o ideal universalista burgus de igualdade entre os homens, ao mesmo tempo em que desfaz a iluso do liberalismo poltico que concebe os homens como nascidos livres e iguais. Para Sartre, esse tipo de humanismo europeu no possui validade nem mesmo entre os europeus, pois, antes de a Europa instituir o processo de expanso de suas colnias rebaixando os colonizados a condio de sub-humanos, o mesmo se fazia nos tempos da revoluo industrial. Para ele, o humanismo burgus no passa de [...] um humanismo racista, pois o europeu s se pode transformar em homem fabricando escravos e monstros (SARTRE, 1968, p. 153) O que o leva a concluir que a reconquista da liberdade do colonizado somente pode ser feita pela eliminao do colonizador. Comentando o final da Guerra da Arglia, Sartre mostra-se indignado com a degradao intelectual dos europeus e sua passividade em relao a revelao dos atos de tortura ocorridos e da absolvio de trs carrascos confessos. Dessa forma procura denunciar a falsidade dos valores supostamente universalistas e humanistas dos europeus colonizadores:

[...] eu diria que o nvel mental, intelectual dos Europeus est em degradao constante, s vezes por conta da despolitizao e da organizao. O apolitismo faz que se obrigue a aceitar coisas que uma sociedade humanista no poderia digerir. [...] O pas inteiro est bem informado das torturas, ele sabe que trs carrascos que confessaram suas torturas foram absolvidos. claro, muitos protestaram. Mas so sempre os mesmos. [...] h quatro anos se podia dizer: As pessoas no sabem. Agora, as pessoas sabem, mas isso no mudou nada. Outrora eles tinham o benefcio da dvida. Sabendo, eles passaram a um estado inferior: h a aceitao. O nvel atual o mnimo de cultura humanista: chegou-se ao ponto crtico. (SARTRE apud CONTAT; RIBALKA, 1970, p. 376-377)

Para Sartre, a gravidade do apolitismo europeu consiste na aceitao daquilo que o humanismo universalista no capaz de suportar: a tortura como forma de objetificao e negao total da humanidade do outro. Em relao tortura, Sartre, declara que a mesma sempre ser desprezvel e imoral, pois o torturador busca deliberadamente reduzir outros homens abjeo. Assim, esclarece que: O objetivo da tortura no somente obrigar a falar, a trair: preciso que a vtima ela prpria se designe, por seus gritos e por sua submisso, como uma besta humana (SARTRE, 1968, p. 68) Desse modo, a tortura alm de desumanizar o torturado reduzindo-o a uma condio abjeta, pode demonstrar-se um instrumento intil, uma vez que, como afirmado acima, preciso que a prpria vtima se designe nesta condio. Ao tomar como exemplo o caso de dois homens que foram torturados e no confessaram o que seus algozes esperavam, procura afirmar a responsabilidade da escolha em relao situao a qual se engaja, pois, [...] desde o incio eles tinham tomado responsabilidades que faziam com que se engajassem toda a sua vida, mesmo na possibilidade de serem torturados. (SARTRE, 1968, p. 68). O que significa aqui, que, os homens em questo escolheram livremente o seu projeto de no delao, e por isso, afirma que a tortura alm de ser um ato criminoso e imoral, essencialmente intil.J em relao ao antissemitismo, Sartre (1995), aponta que o mesmo consiste em uma escolha de si do preconceituoso que toma a dimenso de uma atitude que engloba a humanidade inteira, e que o mesmo consiste em uma viso de mundo e uma paixo. Do mesmo modo como Gaita, a paixo desempenha um papel fundamental na formulao de explicaes que servem para justificar diferentes formas de racismo e dio tnico. Para Sartre, o preconceito antissemita consiste em uma opinio que possui ao mesmo tempo um aspecto objetivo e outro subjetivo. O aspecto subjetivo consiste em uma formao de preferncias que buscam qualificar a vtima do preconceito atravs de um conjunto de caractersticas que o colocam como um ser acabado, petrificado. O aspecto objetivo consiste em coisificar a vtima do preconceito a partir de categorias sociais objetivas e dados estatsticos. Dessa maneira, o anti-semitismo parece ser tanto um gosto subjetivo, que se combina com outros gostos para formar a pessoa, quanto um fenmeno impessoal e social, que pode ser expresso com nmeros e medidas e condicionado por constantes econmicas, histricas e polticas.(SARTRE, 1995, p. 9)

Assim como Gaita, Sartre apontam o dio racial a partir da formao de esteretipos que servem para motivar tanto a depreciao como o extermnio das vtimas a partir do no reconhecimento da profundidade da vida interior daqueles que sofreram a opresso racial ou tnica. Sartre crtica a forma como o preconceito tratado como simples manifestao de uma opinio, pois se esta concepo fosse aceita seria apenas uma minimizao do que realmente consiste o preconceito e se correria o risco de torna-lo inofensivo. Pois, se as opinies so equivalentes a juzos de gosto, elas no poderiam ser discutidas, o que para Sartre seria absurdo caso se o antissemitismo da mesma forma. Assim, a categoria de opinio no deve ser aplicada a um tipo de doutrina que visa suprimir os direitos das vtimas e inclusive o seu extermnio. Dessa forma, o antissemitismo no pode ser legitimado pelo direito de liberdade de expresso, pois o mesmo no consiste em um tipo de perspectiva de pensamento, mas sim, um tipo de paixo inflamada que se mascara atravs de discursos falsamente racionais. Isso,

[] mostra-nos que o anti-semitismo, em suas formas mais moderadas, mais evoludas, continua a ser uma totalidade sincrtica que se exprime por discursos de aparncia racional, mas que pode implicar at alteraes corporais (SARTRE, 1995, p. 10)

Sartre, ao interrogar diferentes antissemitas sobre a razo de seu dio, as respostas obtidas foram baseadas em atitudes que dispensavam a experincia, como por exemplo, o ator que atribuiu seu insucesso a ao fato de que judeus sempre lhe deram papeis menores de atuao. O que Sartre procura mostrar com esse e outros exemplos que a preconcepo de judeu o que faz com que as experincias vividas por antissemitas tenham sentido sem, no entanto, originar-se dela. Desse modo, a experincia no cria a representao do judeu para o antissemita, mas sim, a noo que d sentido experincia. O antissemitismo para Sartre (1995) est associado uma paixo. E essa se expressa no dio. O antissemita, segundo Sartre, no responde ao objeto de seu dio, mas escolhe odi-lo escolhendo viver, preferencialmente, num estado passional e no racional.Desse modo, escolhe o raciocnio falso que justifica sua paixo, seu dio, sua ira. Como se ele odiasse, no o seu objeto, mas amasse o seu estado passional, o seu dio. Assim, a descrio do antissemita pode estender-se para o indivduo preconceituoso em alguns aspectos. Sartre descreve a situao a partir da descrio de trs categorias: a nostalgia da impermeabilidade, o desconhecimento de si e a mediocridade. O antissemita escolhe a si, pois possui a nostalgia da impermeabilidade. Sobre isso afirma:O homem racional busca angustiosamente a verdade, est ciente de que seus raciocniosso apenas provveis, de que outras consideraes vo coloc-los em dvida; nunca sabe muito bem para onde est indo; aberto, pode at ser tomado por hesitante. Mas h pessoas que so atradas pela constncia das pedras. Querem ser macias e impenetrveis, no querem mudar pois aonde a mudana as levaria? Trata-se de um medo primordial de si mesmos e um medo da verdade. E o que as assusta no o teor da verdade, do qual alis nem desconfiam mesmo, mas sim a forma do verdadeiro, esse objeto de contornos indefinidos. como se a prpria existncia dessas pessoas estivesse permanentemente em suspenso. Mas elas querem opinies adquiridas, querem opinies inatas; como tm medo de raciocinar, desejam um modo de vida no qual o raciocnio e a indagao tenham papel apenas subalterno, no qual s se busque o que j se descobriu, no qual o que j nunca se transforme. Para isso, resta apenas a paixo. S um forte preconceito (une forte prvention sentimentale) pode produzir uma certeza fulgurante, s ele pode subjugar o raciocnio, s ele pode permanecer impermevel experincia e durar toda uma vida. O anti-semita escolheu o dio porque o dio uma f; antes de mais nada, preferiu desvalorizar as palavras e as razes. Agora se sente vontade, e as discusses sobre direitos dos judeus lhe parecem fteis e levianas pois logo de incio ele j se colocou em outro terreno. Se, por cortesia, consente em defender por um instante o seu ponto de vista, ele se presta a faz-lo, mas na realidade no o faz e simplesmente tenta projetar no plano do discurso a sua certeza intuitiva. (SARTRE, 1995, p. 15)A impermeabilidade consiste na recusa da verdade e no temor da transitividade desta, e desse modo adota uma atitude conformista e por isso impermevel, o que torna qualquer possibilidade de dilogo impossvel. Assim, o preconceituoso transfere para a vtima de seu preconceito o dever de utilizar bem os termos do dilogo, enquanto o mesmo, no faz questo de faz-lo. Desse modo, a impermeabilidade consiste propriamente no convencimento atravs da coao ou intimidao e no atravs de argumentos. Alm da impermeabilidade, o antissemita procura se valer do temor que causa em sua vtima projetando o medo da transitoriedade da verdade e de qualquer tipo de determinismo sobre o outro.A terceira caracterstica, a mediocridade, est associada impossibilidade de ser antissemita sozinho, de modo que ao pronunciar o dio contra judeus, esta declarao feita geralmente em grupos, pois ao fazer esta declarao procuram ligar-se a comunidade dos medocres. Como Sartre afirma: A frase odeio os judeus dessas que as pessoas pronunciam em grupo, pronunciando-a, ligam-se a uma tradio e a uma comunidade: a dos medocres. (SARTRE, 1995, p. 17) Na mediocridade, o que foi descrito anteriormente sobre a relao com a verdade, ocorre tambm em relao aos valores. Pois os valores, da mesma forma como a verdade, so contingentes e questionveis, e, portanto, em constante possibilidade de serem modificados. Ao encarar os valores dessa forma, o antissemita procura escapar da responsabilidade que tem pela criao desses valores encarando-os como estveis, petrificados, eternos. Assim, o antissemita [...] escolhe o irremedivel por medo da liberdade, a mediocridade por medo da solido, e por orgulho faz desta irremedivel mediocridade uma aristocracia petrificada (SARTRE, 1995, p. 20)A descrio de Sartre do antissemita pode ser sintetizada a partir da seguinte passagem:Agora estamos em condies de entender o anti-semita. um homem que tem medo. Certamente no dos judeus; mas de si prprio, de sua conscincia, de sua liberdade, de seus instintos, de suas responsabilidades, da solido, da mudana, da sociedade e do mundo de tudo exceto dos judeus. um covarde que no quer confessar sua covardia; um assassino que reprime suas tendncias homicidas sem conseguir refre-las e que, no entanto, s se atreve a matar em efgie ou no anonimato da turba; um descontente que no ousa revoltar-se por medo das conseqncias da revolta. Aderindo ao anti-semitismo, no adota apenas uma opinio, mas escolhe tambm a pessoa que quer ser. Escolhe a constncia e a impermeabilidade da pedra, a irresponsabilidade total do guerreiro que obedece a seus chefes e ele no tem chefe. Escolhe no adquirir nada, no merecer nada, que tudo lhe seja dado de nascena e ele no nobre. Finalmente, escolhe que o Bem j esteja pronto, fora de questo, ao abrigo de qualquer perigo; no se atreve a encar-lo por medo de ser levado a contest-lo e a procurar outro. Nisso, o judeu no mais do que um pretexto: em outro lugar, o negro, o amarelo serviro. A existncia do judeu simplesmente permite ao anti-semita sufocar suas angstias no nascedouro, persuadindo-se de que seu lugar no mundo j estava determinado e o esperava e de que, pela tradio, ele tem o direito de ocup-lo. O anti-semitismo , em resumo, o medo em face da condio humana. O anti-semita o homem que quer ser rocha implacvel, torrente furiosa, raio destruidor tudo menos homem (SARTRE, 1995: 36).

Na perspectiva sartriana o homem um ser em situao e que estando situado no mundo escolhe-se a si mesmo, e ao escolher, escolhe o modelo de homem que todos deveriam ser. Desse modo, o antissemita responsvel por seu preconceito de modo que assim o faz elegendo a si mesmo como preconceituoso e tomando o preconceito como o modo de ser dos homens.Na poca que Sartre escreveu seu ensaio sobre o antissemitismo, o Estado de Israel no havia sido criado, e os judeus no formavam uma comunidade nacional. Alm disso, Sartre considera impossvel definir os judeus como raa ou possuidores de caractersticas psicolgicas capazes de distingui-los de demais etnias. Mesmo um compartilhamento histrico e cultural no seria capaz de dar conta do que seja o judeu, uma vez que a sua identidade dispersa devido a sua disperso pelo mundo. O que tido como identidade judaica, no passa para Sartre de generalizaes e caracterizaes simplificadoras elaboradas por no-judeus. Nesse aspecto, podemos aproximar Gaita, quando o mesmo prope uma reviso das explicaes de cunho psicolgico que definem o preconceito como criao de esteretipos por parte dos racistas, e que se traduzem em generalizaes apressadas a partir de meias verdades e teorias pseudocientficas. Para Sartre, a representao da identidade do judeu o resultado do modo como esta se configura a partir de juzos alheios e aes para com os judeus, portanto: No nem o passado, nem a religio, nem a terra o que une os filhos de Israel. Se tm um vnculo comum, se merecem todos o nome de judeu, porque compartilham uma situao de judeu, ou seja, porque vivem numa comunidade que os considera judeus (SARTRE, 1995, p. 45).O comentrio de Sartre sobre o ser judeu recai sobre o modo como a tradio histrica crist o concebe. Por um lado, h a ideia de atribuir aos judeus a culpa pela condenao e assassinato de Jesus Cristo e por outro lado a acusao de dedicao a atividades econmicas ilegtimas. Essas formas de conceber o judeu so contribuies histricas empreendidas pelos no-judeus. Logo, as construes histricas feitas sobre a identidade do judeu o colocam em uma situao em que a sua identidade depende muito mais dos juzos dos outros que exigem dele muito mais do que ousariam exigir de si mesmos e que depende das paixes e das formas como a sociedade lhe concede o reconhecimento de seus direitos. Alm disso, Sartre destaca que para o judeu a escolha tambm est ligada a eleio de si nos modos de responder a situao em que se encontra. Ser judeu ser lanado e abandonado na situao judaica e, ao mesmo tempo, ser responsvel em sua pessoa pelo destino e pela prpria natureza do povo judeu. (SARTRE, 1995, p. 58). Ou seja, recai tambm sobre o judeu a responsabilidade sobre aquilo que os outros fazem dele, e, assim, resta ao judeu responder de duas formas: ou pela autenticidade ou pela inautenticidade.A autenticidade consiste no reconhecimento da responsabilidade sobre a condio humana e por isso implica a escolha radical da situao, j a inautenticidade corresponde negao da situao, uma fuga da situao em que se est engajado. O judeu no escapa regra: a autenticidade, para ele, viver at o fim a sua condio de judeu; a inautenticidade, neg-la ou tentar elidi-la (SARTE, 1995, p.61) Entretanto, o antissemita toma as iniciativas para enfrentar ou responder a situao como reaes advindas do modo de ser judeu, seja buscando atribuir caractersticas inatas ou determinantes que caracterizariam uma natureza comum para todos os judeus. Assim, umas compreenses dos modos de ser autntico e inautntico permitiriam substituir a mitologia coletiva que enquadra os judeus em certos gostos e caractersticas estveis ou inatas por [...] algumas verdades mais fragmentrias e, no entanto, mais precisas (SARTRE, 1995, p. 51) O modo de ser inautntico descrito por Sartre significa deixar-se refm dos mitos antissemitas que qualificam os judeus em categorias prontas, estveis, acabadas respondendo por trs vias: a reflexibilidade prtica, a assimilao e o masoquismo. Na reflexibilidade prtica o judeu procura agir antecipando-se de modo a enxergar a si mesmo atravs do olhar dos no-judeus. A assimilao significa a negao do judasmo, procurando desta forma ser um homem como qualquer outro, sem qualificaes. Desse modo, procura colocar-se na forma do anonimato de uma humanidade sem raa. Por fim, o masoquismo atitude pela qual o judeu busca ser tomado como objeto, procurando evadir-se da responsabilidade pelo tipo de judeu que . Assim, a inautenticidade na forma do masoquismo : Essa tentao de evadir-se de si mesmo e acabar marcado para sempre por uma natureza e uma sina judaicas que o dispensam de toda responsabilidade e de toda luta. (SARTRE, 1995, p. 70) Portanto, as descries dos modos inautnticos so para Sartre maneiras com as quais o humanismo aspira comunho universal dos homens em igualdade, ao mesmo tempo em que serve como forma de evaso do fato de que so as relaes que se do no plano social que constituem o judeu enquanto tal, e que o plano social , ao mesmo tempo, a esfera da afirmao das diferenas entre os homens. por esta razo que Sartre coloca o plano social como o lugar de manifestao da inquietao do judeu enquanto desamparo. O judeu , portanto:O homem social por excelncia, j que seu tormento social. O que fez dele judeu foi a sociedade, e no a vontade divina; foi ela que deu origem ao problema judaico, e, como o judeu se v obrigado a definir-se totalmente nas perspectivas desse problema, no social que ele define sua prpria existncia. Seu projeto constitutivo de integrar-se na comunidade nacional social; social o esforo que faz para pensar-se a si mesmo, ou seja, para situar-se entre outros homens; sociais so suas alegrias e seus pesares porque social a maldio que pesa sobre ele. Por isso, se lhe reprovam sua inautenticidade metafsica e lhe dizem que sua eterna inquietude faz-se acompanhar de um positivismo radical, tambm necessrio lembrar que tais crticas voltam-se contra quem as formula: o judeu social porque o anti-semita o fez assim (SARTRE, 1995, p. 85).Logo, o dilema do judeu de escolher entre a autenticidade e a inautenticidade [...] produto artificial de uma sociedade capitalista (ou feudal) e cuja nica razo de ser est em servir de bode expiatrio para uma coletividade ainda pr-lgica (SARTRE, 1995, p. 86). Portanto, ao colocar-se no modo de ser autntico o judeu escolhe-se em sua condio de judeu, abandonando qualquer ideia de universalidade do homem podendo desse modo ser aquilo que escolhe fazer de si mesmo e no mais aquilo que os outros fazem ou esperam dele No entanto, preciso reconhecer que a autenticidade, como modo de ser responsivo questo judaica, fornece uma soluo que somente pode se desenrolar no plano tico, mas que no possui serventia no plano social e poltico.

4 CONCLUSES PARCIAIS: GAITA E SARTRE - DOIS INTELECTUAIS ENGAJADOS

Gaita no faz prescries ou diagnsticos sobre as causas do racismo e no realiza prescries concretas de soluo para o mesmo. A proposta de sua anlise consiste em rediscutir o problema do racismo levando em conta os diferentes tipos de racismo e dio tnico de modo a reconsiderar as solues tericas que o reduzem a um tipo de racionalizao por parte dos racistas. Alm disso, procura pensar o racismo como um problema que diz respeito vida interior dos indivduos, e que estaria ligado a formas de reconhecimento da profundidade da vida dos outros. Alm disso, procura discutir as motivaes internas das crenas que podem desencadear atitudes de dio tnico e racial discutindo a partir de diferentes exemplos. Os exemplos discutidos servem para se pensar a possibilidade de diferenciao entre os tipos de racismo e dio tnico e no reduzi-los a explicaes de cunho psicolgico que recorrem a racionalizaes para justificar crenas por parte dos racistas. Alm disso, procura rediscutir a forma como possvel atravs da ideia de experincia, no no sentido das cincias objetivas, reconhecer que as diferenas existentes entre os homens somente se reduz a caractersticas fsicas. Pois, a experincia que Gaita se refere est ligada a vida interior que todos os homens possuem e sua capacidade de reconhecer a profundidade dos modos de sentir do todos os seres humanos. Essa experincia de reconhecimento da humanidade de outrem o que pode tornar a aqueles que foram reduzidos condio de sub-humanos ou tornados invisveis moralmente, serem visveis moralmente. Princpio este, que poderia se traduzir em uma espcie de justia social baseada na igualdade de respeito como fator fundamental para que se possa efetivamente realizar o ideal de igualdade de acesso a bens e oportunidades. Pensa-se assim, que Gaita sugere que a experincia tica poderia dar uma espcie de suporte para a superao de certos tipos de preconceito. No entanto, se trata de uma experincia que diz respeito vida interior dos indivduos, sobre o modo como pessoas podem prejudicar umas as outras e que, portanto, no poderia ser elevada a um nvel objetivo. preciso ressaltar aqui, que Gaita rejeita a afirmao simplista de que o racismo simplesmente fruto da ignorncia, e que por esta razo, bastaria que fosse ensinada a importncia da igualdade racial para que o racismo e o dio tnico fossem extintos. Sartre, por sua vez, ao tratar da violncia do colonialismo atravs da segregao racial e da tortura, traz a sua teoria da liberdade para o plano da ao poltica. Sobretudo, assume posies polticas radicais, tanto na abordagem do problema do colonialismo como na forma de proposta de soluo, ou seja, pela ao violenta do colonizado, a revoluo e a ideia de uma sociedade sem classes. Desse modo, a liberdade do colonizado no mais discutido sob o paradigma ontolgico-existencial, ela se estende ao plano das relaes concretas que se desenrolam em uma historicidade determinada, pois para o mesmo, contribuir para a destruio do sistema colonial, a causa de todos os homens livres. Em relao ao antissemitismo, Sartre prope como modo de suprimir o antissemitismo, a posio que Gaita se refere como ingnua. A de que a propaganda, o ensino e leis que probam discursos e atos degradantes seriam armas para o combate ao antissemitismo. Entretanto, Sartre leva em conta que em um regime democrtico essas propostas no costumam ser respeitadas. Para o mesmo, o projeto de uma sociedade socialista que mudando a atuao concreta do antissemita, lhe permitiria fazer outras escolhas. Pois acredita que o antissemita reduz a diviso da sociedade diviso entre judeus e no-judeus. Por fim, considera efetiva a criao de uma liga contra o antissemitismo composta por no judeus cuja funo seria legitimar a ideia de que a questo judia no dos judeus, mas sim dos no judeus. Alm disso, esta liga seria uma organizao poltica que atuaria na propagando e no ensino, na organizao de uma coletividade dos inimigos do antissemitismo e no oferecimento de exemplos concretos de comunidade no baseadas nas ideias tradicionais de nacionalidade. No entanto, resta ainda responder: o que h de comum entre as posies de Gaita e Sartre? possvel afirmar que dadas s diferenas de contextos histricos e culturais em que os autores estavam inseridos, o principal aspecto compartilhado pelos mesmos a luta por justia social. Assim como Sartre, Gaita se empenha em A Common Humanity em repensar problemas que dizem respeito a realidade social concreta, como no caso o preconceito racial e o dio tnico. Ambos se utilizam de exemplos e de contextos histricos como ponto de partida para suas reflexes e posicionamentos, tanto de denncia como de posicionamento diante dos problemas apontados. Sartre, em uma postura de engajamento poltico que por vezes se mostra inclusive radical e Gaita na forma de reavaliaes e denncias de casos que precisam ainda de respostas satisfatrias, como o caso das crianas mestias que foram tomadas de suas mes na Austrlia. Em termos de pensamento, a aproximao mais evidente que pode ser feita entre Gaita e Sartre a luta pela reassuno da humanidade daqueles que foram rebaixados de sua condio de seres humanos plenos, ou vitimados pelo dio e depreciao do dio tnico e racista, bem como vtimas da violncia dos sistemas de explorao. Ressaltado por ambos pelas consequncias do colonialismo europeu, como na afirmao de Sartre de que, a violncia do colonialismo a negao humanidade colonizado, transformando-o em sub-humano. Essa mesma perspectiva apresentada por Gaita ao relatar o episdio ocorrido na Austrlia no qual crianas mestias foram tomadas de suas mes aborgenes. Quando as crianas foram retiradas de suas mes aborgenes, estando na condio de colonizados, estas eram vistas pelos colonizadores como no sendo seres humanos completos, e dessa maneira o fato de ter perdido a guarda de seus filhos, em breve cairia no esquecimento. Isso ocorreria, pois os aborgenes no seriam capazes de sentir da mesma forma como o colonizador sente. O colonizador insere o colonizado na categoria de sub-humano e pela mesma razo o racismo faz parte do colonialismo do modo como afirma Sartre, e pode ser inferido do texto de Gaita. Outro aspecto a ser destacado, que Gaita e Sartre apontam o dio racial a partir da formao de esteretipos que servem para motivar tanto a depreciao como o extermnio das vtimas a partir do no reconhecimento da profundidade da sua vida interior e de sua submisso aos juzos dos opressores. Alm disso, outra aproximao ocorre quando ambos propem uma reviso das explicaes o preconceito como criao de esteretipos por parte dos racistas, e que se traduzem em generalizaes apressadas a partir de meias verdades e teorias pseudocientficas.Sartre e Gaita esto prximos quando afirmam que uma das consequncias do racismo a diminuio da humanidade de suas vtimas, e que a luta por reconhecimento enquanto seres humanos plenos e dignos de igualdade de respeito o que deve ser priorizado ao invs de discursos humanistas igualitrios que professam uma igualdades universalista entre os homens que cria a falsa ideia de igualdade de oportunidades e acesso a bens sociais. Talvez, a aproximao mais profunda entre ambos no seja no plano terico, mas sim no plano prtico. Pois tanto Gaita como Sartre so intelectuais engajados na situao histrica que vivem, so filsofos que sentem sobre os ombros, como diria Husserl, o peso sobre o ser da humanidade. Dessa forma, o trabalho intelectual como comprometimento tico-moral de ambos o que realmente os aproxima.

REFERNCIASCONTAT, M. RYBALKA, M. Les crites de Sartre: Chronologie, bibliographie commente. Paris: Gallimard, 1970.

GAITA, Raimond. A Common Humanity: Thinking About Love and Truth and Justice. London/New York: Routledge, 2002.

SARTRE, Jean-Paul. Orfeu negro. In: _____. Reflexes sobre o racismo. trad. J. Guinsburg. So Paulo: Difuso Europeia do Livro, 1960, p. 105-149.

_____.A questo judaica. So Paulo: tica, 1995.

_____. Situations, V: colonialismo e neocolonialismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1968.

_____.Sartre visita a Cuba. Havana: Ediciones Revolucin, 1960.