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AGRUPAMENTO DE ESTUDOS DE CARTOGRAFIA ANTIGA LXXXIII SECÇÃO DE COIMBRA O TRATADO DE TORDESILHAS E AS DIFICULDADES TÉCNICAS DA SUA APLICAÇÃO RIGOROSA POR LUÍS DE ALBUQUERQUE JUNTA DE INVESTIGAÇÕES DO ULTRAMAR COIMBRA —1973

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Page 1: Artigo - ALBUQUERQUE, Luís de [1917-1995] - O Tratado de Tordesilhas e as dificuldades técnicas da sua aplicação rigorosa

AGRUPAMENTO DE ESTUDOS DE CARTOGRAFIA ANTIGA

LXXXIIISECÇÃO DE COIMBRA

O TRATADO DE TORDESILHASE AS DIFICULDADES TÉCNICASDA SUA APLICAÇÃO RIGOROSA

POR

LUÍS DE ALBUQUERQUE

JUNTA DE INVESTIGAÇÕES DO ULTRAMAR

COIMBRA —1973

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Separata da

Revista da Universidade de Coimbra

vol. xxiii

COMPOSTO E IMPRESSO NAS OFICINAS DA «IMPRENSA DE COIMBRA»

LARGO DE S. SALVADOR, 1 A 5 — COIMBRA

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O TRATADO DE TORDESILHASE AS DIFICULDADES TÉCNICASDA SUA APLICAÇÃO RIGOROSA (•)

1. INTRODUÇÃO

O Tratado de Tordesilhas, assinado pelos representantes dos reis deCastela e de Portugal no dia 7 de Junho de 1494 (1), e logo em seguida rati-ficado por D. Fernando e D. Isabel (2 de Julho) e por D. João II (5 de Setem-bro), é o exemplo mais antigo que conhecemos de uma convenção entredois países para, através da divisão de toda a terra em duas zonas de influênciaque lhes são atribuídas, se evitar uma concorrência que poderia conduzira confrontações perigosas. O convénio laboriosamente preparado, tinhaantecedentes (tratado de Alcáçovas, intervenção do Papa, etc), mas os ReisCatólicos e o Príncipe Perfeito acabaram por chegar ao acordo por nego-ciações bilaterais e derrogando a arbitragem papal, acontecimento semprecedentes na política internacional da Cristandade daquela época (2).O texto alcançado deixava à Espanha a iniciativa livre no Novo Mundo queCristóvão Colombo acabara de descobrir, e permitia que Portugal conti-nuasse, já sem as apreensões a respeito de uma insistente concorrência, oseu plano atingir o Oriente contornando a África.

A assinatura do tratado foi, portanto, um êxito político, como aliásbem se depreende da rapidez com que os dois contratantes o ratificaram;mas as dificuldades de carácter técnico, surgidas logo que se pretendeu aplicaro estabelecido pelo seu texto com exactidão suficiente para não deixar margema reclamações, viriam a gerar porfiada controvérsia entre as cortes de Madride de Lisboa, durante largo período do século xvi, quanto ao direito à possede importantes territórios no Oriente (as Molucas).

(*) Comunicação apresentada nas II Jornadas Americanistas da Universidade deValladolid, Setembro de 1972.

(1) Na mesma data representantes dos dois monarcas assinaram outro convénio— o segundo Tratado de Tordesilhas — sobre as navegações e as pescarias na costa donordeste africano.

(2) Ver Perez Embid, Los Descubrimientos delAtlântico y Ia Rivalidad CastelanoPortuguesa Hasta el Tratado de Tordesillas, Sevilha, 1948.

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O objectivo desta comunicação é sumariar os motivos dessas dificuldades,e dar alguns exemplos típicos do modo como elas foram discutidas — sem,como é evidente, termos a pretensão de expor qualquer aspecto do problemaque não seja bem conhecido dos presentes.

2. A DEFINIÇÃO DA LINHA DIVISÓRIA

O tratado, firmado por D. Guterres de Cárdenas, D. Erinque Enríqueze o doutor Rodrigo Maldonado (por parte de D. Fernando e D. Isabel),e por D. João de Sousa, Rodrigo de Sousa e Aires de Almada (procuradoresde D. João II), teve como principal objectivo definir uma linha divisória,situada 370 léguas a poente das Ilhas de Cabo Verde, que passaria a demarcarna área do Atlântico duas zonas reservadas às explorações de espanhóis(a situada para oeste da linha) e de portugueses (3). Quanto à maneirapela qual se entendia que podiam e deviam ser contadas essas 370 léguas,que é o que mais importa considerar aqui, o texto do tratado é bemclaro, pois alude ao problema mais de uma vez, e com absoluta concor-dância das várias referências e em qualquer das suas versões, portuguesa ecastelhana.

Logo no início, quando o texto reconhece os enviados espanhóis comoprocuradores bastantes para tratar «em seu nome qualquer concerto asentolimitaçã e demarcaçã e concórdia», afirma-se que a linha divisória do tratadodeveria ser obtida

I) «pollos ventos e graoos do norte e do sol e per aquellas partes diujsõese lugares do çeeo e do mar e da terra que a vos bem uisto for» (4).

A afirmação correspondente relativa aos representantes de D. João IIé ainda mais clara; efectivamente, a procuração real autorizava-os a nego-ciar «qual quer concerto assento e limitaçã demarcaçã e concórdia sobre omar Oceano Ilhas e terra que nelle ouuerem», através de

II) «aquelles Rumos de uentos graaos do norte e do sol e por aquellaspartes diuisoees e lugares do çeeo e do mar e da terra que vos bem parecer» (5).

Transcritas as credenciais dos emissários, «logo os ditos procuradoresdos ditos Senhores Rey e Rainha de Castela», etc, afirmaram que, para se

(3) Uma cláusula, de efeito transitório, colocava em situação excepcional os des-cobrimentos que porventura viessem a ser feitos para D. Fernando e D. Isabel até o dia20 de Junho imediato.

(4) Silva Marques, Descobrimentos Portugueses, III, 433 (Lisboa 1971), segundoo texto do Archivo General de Ias índias. Conf. Martim Fernandez de Navarrete, Colleciónde los Viages y Descubrimientos..., II, 130 e segs., Madrid, 1825.

(5) Silva Marques, Idem, 435.

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determinar a qual dos contratantes viria a pertencer o «que atha oje dia dafectura desta Capitullação estaa por descobrir no maar oceano», eles outor-gariam e consentiriam que se fizesse

III) pollo dito mar oceano hua Raya ou linha direita de poolo a poolloa saber do pollo artico ao pollo antartico que he do norte ao sul. A quallRaya ou linha se aja de dar e de direita (6) como dito he a trezentas esetenta léguas das ilhas de cabo verde para a parte do ponente por graaosou por outra maneira como milhor e mais prestes se possa dar de maneiraque nõ seiam mais (7).

O tratado não se limita, porém, a definir a linha de demarcação; esti-pula também que, nos primeiros dez mezes a contar do dia da sua assinatura,se deviam juntar comissões técnicas dos dois países contratantes para, atravésde apropriada navegação, determinarem no mar ou marcarem em terra firmepontos por onde passasse o meridiano divisório. O trecho é importantepara o fim que nos propomos, e por isso o vamos transcrever na íntegra,apesar de ser um pouco extenso:

IV) «Pêra que a dita linha ou Raya da dita partiçã se aja de dar e deedereita e mais certa que seer poder polias dietas trezentas e setenta legoas das ditasilhas de cabo verde aa parte do ponente como dito he. he concordado e asentadopollos dictos procuradores (...) que (...) os ditos Senhores seus constituintesajam de emujar duas ou quatro carauelas, a saber hua ou duas de cada parte (...)As quaes pera o dito tempo [quer dizer: até dez mezes depois da assinaturado tratado] sejam iuntas na ilha da gram canarja. E enuíem em ellas cadahua das ditas partes assy pillotos como astrólogos e marinheiros e quaes quer

í pessoas que conuenham pêro que sejam tantos de hua parte como da outra (...)] pera que, juntamente posam milhor ueer e reconhecer o mar e os rumos e ventos\ e graaos do sol e norte e assinar as legoas sobre dietas (...) os quaees ditos nauios] todos juntamente continuem seu caminho as ditas ilhas do cabo verde e dali| tomaram nova rota direita ao ponente (8) athe as ditas trezentes e setenta\ léguas medidas como as ditas pesoas. que asy forem acordarem que se deuem

midir (...). E aly donde se acabarem se faça o ponto e segnal que conuenhapor graaos do sol e do norte ou por singraduras de legoas. ou como milhor sepoderem concordar. A qual dita raya asinem desde o dito poolo artico aodito poolo antartico que he de norte a sul como dito he» (9).

(6) O cuidado do texto em precisar que se trata de um meridiano, justifica-se pelofacto de em propostas anteriores ao tratado a linha divisória não ser um círculo máximoda terra.

(7) Silva Marques, Ibidem, 436.(8) Ou seja, rumos do entre noroeste e sudoeste: os emissários sabiam muito bem

que era impossível (a não ser por estima) marcar as 370 léguas navegando leste-oeste, comoJaime Ferrer escreveria ao ser consultado sobre o assunto, e adiante se verá.

(9) Silva Marques, Ibidem, 437. •

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Destes trechos, que esgotam as referências do tratado ao modo de sedar cumprimento ao que fora acordado entre os representantes de Portugale de Castela, ressalta:

1.°) a indicação de que a linha divisória seria um meridiano («linhadireita de pólo a pólo» — como se diz em (III)), ou antes, um semimeridiano,pois o texto apenas prevê a demarcação do Atlântico, ao referir em (IV) quea linha seria lançada no «mar oceano»;

2.°) que se reconhecia implicitamente a possibilidade da marcaçãoda linha divisória poder suscitar controvérsia, pois não tem outro significadoa previsão de se construir em futuro próximo uma comissão, mista e pari-tária, para dar realização prática ao estipulado no convénio;

3.°) que implicitamente se reconhecia a insuficiência dos meios astro-nómicos para se localizar directamente a fronteira das duas zonas de influência,pois de outro modo não se teria admitido a hipótese de serem agregados àcomissão de arbitragem simples marinheiros;

4.°) que os peritos nomeados para dar execução ao tratado, fixandoa linha nele prevista, deveriam com esse fim recorrer não só à determinaçãode latitudes (o texto .alude a «graos do norte e do sol» nos trechos (I), (II)e (IV)) mas também à contagem de léguas por singraduras, em (IV); o quesupomos ser uma alusão ao «regimento das léguas», que podia resolver oproblema com o conhecimento das latitudes, como mais abaixo indicaremos.

3. DIFICULDADES DA APLICAÇÃO DO TRATADO

Os passos transcritos no parágrafo antecedente logo mostram que alinha estipulada no tratado de Tordesilhas teria de ser definida de um modoindirecto e precário, pois directamente dependia da determinação de longi-tudes, a que o texto nem sequer alude e que só astronòmicamente podia entãoser feita. Mas, além disso, o tratado deixava desde logo outras sérias difi-culdades à comissão que tivesse de concretizar na prática as suas decisões.Com efeito:

a) ao indicar que a linha divisória seria marcada 370 léguas para poentedo arquipélago de Cabo Verde, sem nomear qual das ilhas devia ser tomadapara início da contagem, o texto deixava uma porta aberta a desentendi-mentos (10). Estes não apareceram imediatamente, e nem sequer aparecerama respeito do hemisfério ocidental, muito embora uma diferença de origemimplicasse mais ou menos 50 léguas no direito à penetração portuguesa nocontinente sul-americano; havia de surgir, porém, e de modo muito vivo,logo que no Extremo Oriente se atingiu o arquipélago das Molucas, produtor

(10) Que ainda se mantinham, por essa causa, no século xvn; vide Jorge Juan eAntónio de Ulloa, Disertacion historico y Geografica sobre el meridiano de demarcacion,(de 1759), reed. facsimilada do Instituto Histórico de Marina, 51 e sgs., Madrid 1972.

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de especiarias de elevado valor comercial, e houve incerteza a respeito dasua localização exacta, depois de se entender que o texto do tratado deviaser interpretado como referindo um meridiano terrestre, e não apenas osemi-meridiano Atlântico que é, de facto, exclusivamente visado noacordo.

b) Outra dificuldade em que a comissão de peritos viria a tropeçarrelaciona-se com a extensão atribuída a um grau do meridiano terrestre,pois esse valor interferia na localização do meridiano limite, como é evidente.Na época da assinatura do tratado concorriam, pelo menos, os módulos de16 2/3 léguas e de 17 1/2 léguas por grau (11), e é até possível que algunspilotos e cosmógrafos seguissem já o módulo de 18 léguas, de todos o maispróximo do valor exacto, que Duarte Pacheco Pereira refere no Esmeraldode situ orbis (escrito entre 1505 e 1507).

É certo que as diferenças entre as longitudes correspondentes às 370 léguaspara aqueles diversos módulos não é muito acentuada (12); em todo o casopodia acusar valores à volta de uma centena de quilómetros, o que era sufi-ciente para gerar um litígio â respeito do território situado nas vizinhançasda linha de demarcação. Mas por um lado, essas distâncias eram por vezesexageradamente avaliadas, e por outro lado é impossível que, além dos apon-tados, que eram os mais correntes, não estivessem na época em uso aindaoutros módulos (13).

c) A terceira e mais imediata das dificuldades que a comissão de arbi-tragem teria de defrontar, era a de chegar a acordo sobre um meio de semarcarem as 370 léguas em longitude. Só no século xvm este problemaveio a ser cabalmente resolvido, quando a invenção dos cronómetros permitiuque se fizesse a «conservação do tempo»; mas isso não quer dizer que a questãonão fosse teimosamente considerada por pilotos e cosmógrafos do século xvi;e que recorrendo à arte de navegar do seu tempo eles não conseguissem,como já vamos ver, solucionar o problema de um modo indirecto masaceitável.

(11) O módulo de 17 \% léguas por grau teria já sido aplicado por Bartoloméu Dias,como indica A: Teixeira da Mota em Bartolomeu Dias e o Valor do Grau Terrestre, Lis-boa 1960. ,V: v

(12) No paralelo de 15° (considerado por Jaime Ferrer, como adiante se verá, oda latitude de Cabo Verde), as 370 léguas corresponderiam a diferença de longitude acerca23° 20' e 22° 20' e 21« 10' consoante o módulo adoptado fosse de 16 2/3, 17 1/2 ou 18 léguasrespectivamente. :

(13) Não é impossível, por exemplo, que alguns usassem o módulo de 14 VÓ léguaspor grau de Cristóvão Colombo (Salvador Garcia Franco, La Legra Marítima en Ia EdadeMedia, 43-4, Madrid, 1957), e outros preferissem as 21 7/s léguas do módulo de JaimeFerrer, adiante citado.

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4. O REGIMENTO DAS LÉGUASE A SOLUÇÃO DE JAIME FERRER

| Dos passos do documento acima transcrito verifica-se que os negocia-

u :;í; dores admi t i am a possibilidade da l inha divisória ser estabelecida pela deter-W: minação de latitudes e pelo recurso ao «regimento das léguas» (ou seja, «por: ••! ventos ou rumos», e por «graus do norte e do sol»). De facto quando um

navio parte de A e navega pelo rumo R (fixado/ de quarta em quarta da rosa dos ventos no texto

do regimento das léguas), e por esse rumo atingeo ponto N cuja latitude difere em Io da de A (14),podia-se saber pelo regimento não só a distân-cia AN navegada (a que se chamava relevar),mas também a distância A'N (ou afastar), cujoconhecimento interessava à solução do problemaposto pelo tratado.

Suponha-se que um navio partia de CaboVerde e fazia uma derrota em condições de nãoexperimentar grande variação de latitudes, para

não ser muito diferente a extensão do paralelo de chegada da do paralelo departida. Por outras palavras: admita-se que o navio partia de Santo Antão(ilha do arquipélago de Cabo Verde à latitude de 17° N) e navegava poruma das quartas mais próximas ao rumo leste-oeste: ou seja, por oeste quartanoroeste, ou por oeste-noroeste. Recorrendo ao regimento das léguas parao módulo de 17 V2 léguas (15) publicado no Guia Náutico de Munique (16),que fixa o afastar em 85 e em 42 1/2 léguas, para 01/4 NO e ONO (17), edesprezando o coeficiente de redução do paralelo de partida relativamenteao equador (18), verifica-se que: no caso do navio navegar pelo rumo O V4 NO,teria de por esse rumo atingir a latitude de 21° 21' N para estar no meridianoda partilha; e seria forçado a navegar até a latitude dos 29° N para, adoptandoo rumo ONO, alcançar o mesmo meridiano.

O regimento das léguas dava, pois, um meio de solucionar o problemada fixação do meridiano de Tordesilhas, muito embora de modo apenas

(14) Na forma mais corrente do regimento; mas em outras versões o relevar, o afastar,distâncias a seguir indicadas, vêm fixadas para AA' igual a 100, 50 e 25 léguas.

(15) Conhece-se uma versão deste regimento para o módulo de 16 2/3 léguas porgrau, mas a que faltam as distâncias do afastar. Francisco Faleiro, Tratado dei Spheray dei Arte dei Marear, ed. facsimilada de Joaquim Bensaúde, 76, Munique, 1915.

(16) Luís de Albuquerque, Os Guias Náuticos de Munique e Évora, 193-4, Lisboa 1965.(17) O primeiro destes valores é uma «aproximação grosseira», como já notou

Fontoura da Costa {Marinharia dos Descobrimentos, 3.a ed., nota ao quadro anexo a 364-5),talvez consequência de uma avaliação gráfica; o valor correcto seria 88 léguas, como indicouPedro Nunes.

(18) Corresponde a cometer um erro por excesso um pouco superior a 10%.

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aproximado, pois além das pequenas incorrecções inevitavelmente intro-duzidas no cálculo e já assinaladas, seria praticamente irrealizável navegarcerca de 400 léguas num rumo constante (19). Apesar dessas deficiênciasnão seria impossível encontrar o meridiano de partilha com bastante aproxi-mação, pois os pilotos conseguiam dar às suas observações e às suas derrotasum rigor surpreendente (20) para os meios precários de que dispunham.

Esta era, sem dúvida, a melhor solução que para o problema podiamencontrar os peritos da comissão, e foi a que o cosmógrafo Jaime Ferrer,de Blanes, propôs aos Reis Católicos que se puzesse em prática, pouco tempodepois da assinatura do Tratado. O parecer de Ferrer sobre o assunto,que foi há anos estudado por Milás Vallicrosa (21), consta de dois documentospublicados na primeira metade do século passado por Fernandez de Navar-rete (22), e ambos recentemente reeditados por Silva Marques, que os trans-creveu da rica colecção do historiador espanhol (23). O primeiro dessesdocumentos é uma carta em que Ferrer anuncia aos soberanos a remessade um planisfério (24) por ele desenhado, onde marcara a amarelo a áreareservada às explorações portuguesas, depois de traçar a linha divisóriaaprovada em Tordesilhas.

Lê-se nesta carta que «Ia distancia de Ias dichas trecientas setenta léguascuanto se estiende Ia línea occidental, partiendo dei dicho Cabo Verde, (...)que en el equinócio distan veinte e três grados». Este trecho não passousem um comentário de Millás Vallicrosa, pois o historiador entendia que ainformação não vinha a propósito, visto a distância dever ser contada noparalelo de Cabo Verde e não no equador. Notamos, por um lado, queFerrer converteu com absoluta exactidão a distância em graus equatoriais(as 370 léguas de Tordesilhas correspondem de facto a 22° 45' para o módulode 16 2/3 léguas por grau, e Jaime Ferrer indica 23°); e, por outro lado, queo cosmógrafo tinha razão em marcar pelo equador a linha de demarcação,pois os graus de longitude deviam ser aí iguais aos de latitude, o que davacertamente maior confiança à medida.

Em todo o caso, no seu segundo escrito Ferrer já não respeita o móduloa que recorreu para converter aquela distância em graus. Esse parecer do

(19) Os pilotos usaram, talvez ainda no século xvi, processos gráficos para reduzira um determinado rumo (em geral de norte-sul) as derrotas cumpridas em diversas bordadasde direcções variáveis; mas é claro que os resultados obtidos também eram apenasaproximados.

(20) Nas viagens sem escala da carreira da índia, praticadas no final do século xve inícios do século xvn para evitar encontros com navios de guerra holandeses, conseguiam-sepor vezes erros inferiores a 1 %. Ver Joaquim Rebelo Vaz Monteiro, Estudo Cartográficode uma viagem à índia no século XVI, Porto, 1970.

(21) Estudios sobre Historia de la Ciencia Espanola, 545-78, Barcelona, 1959.(22) Navarrete, Coleccion de los Viages y Descubrimientos, II, 98-100, Madrid, 1825.(23) Op. cit., III, 458 e 436.(24) Num pequeno desenho que acompanha a carta, mas Silva Marques não repro-

duziu, vê-se que o planisfério de Ferrer tinha a forma de um losango, sendo a maior diagonala linha do equador.

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cosmógrafo está datado de 27 de Janeiro de 1495, e na sua parte mais impor-tante diz o seguinte:

«La nave que partirá de Ias islas de Cabo Verde por buscar el dichotérmino, es menester que deje el paralelo à línea Occidental a mano ezquierda,y que tome su caminho para Ia cuarta de poniente Ia vuelta dei maestral[oeste quarta de noroeste], y que navegue tanto por Ia dicha cuarta fastaque el Polus mundi se eleve diez y ocho grados y un tercio, y entonces Iadicha nave será junto de Ia linea suso dicha que pasa de Polo à Polo por elíin de Ias trecientas setenta léguas, y de aqui es menester que Ia dicha navemude y tome su camino por Ia dicha linea Ia vuelta del Polo Antártico fastaque el Artico se eleve quince grados, y entonces será junto de fin en fin enlínea ó paralelo que pasa por Ias islas de Cabo Verde, y en el fin y verda-dero término de Ias dichas trecientas setenta léguas, el cual término muyclaro se muestra por Ia levacion de Ia estrella dei Norte por Ia regia susodicha» (25).

O texto mostra claramente que Ferrer aconselhava um procedimentoidêntico ao que acima descrevemos com fundamento no regimento das léguas;como era de esperar, pois não repetimos a situação considerada por Ferrer,o resultado por ele obtido difere um pouco não só daquele a que atrás chegá-mos, mas também mesmo daquele a que se chegaria repetindo o cálculona suposição, como fez o cosmógrafo de Blanes, de se partir com um lugarcom latitude 15° N; neste caso concluía-se que se deveria navegar pelorumo O V4 NO até se atingir c. 19° 20' de latitude norte.

Podíamos ser levados a supor que tal diferença fosse consequência deFerrer ter conduzido grosseiramente os seus cálculos, ou ter mesmo chegadoàs suas conclusões por tentativas. Mas o cosmógrafo obriga-nos a rejeitaresta hipótese ao declarar que «cada um grado en este paralelo (dos 15° N)comprende veinte léguas y cinco partes de ocho» (26); e a frase quer dizerque já aqui não considerara o grau de meridiano de 16 2/3 léguas, como nodocumento anterior, mas sim um módulo de 21,6 léguas por grau, se corri-girmos as 20 7/s léguas citadas no texto para 20 5/s léguas, como justificada-mente propôs Garcia Franco (27); aliás o módulo obtido encontra-se con-firmado no mesmo texto de Ferrer, que mais adiante lhe atribuiu o valorde 21 5/g (ou seja: 21,625) léguas. Para este módulo o afastar por cadagrau valeria aproximadamente 111 léguas (número que obtivemos grafica-mente, tal como deve ter feito o cosmógrafo), de maneira que aos 3° 20' dediferença de latitudes correspondiam, efectivamente, 370 léguas entre omeridiano de partilha e o meridiano de Tordesilhas, contadas sobre o para-lelo de 15° de latitude norte. Jaime Ferrer confirma inteiramente tudo oque acabamos de dizer ao indicar num outro passo do texto que os 3° 21'

(25) Silva Marques, op. cit., 464.(26) Silva Marques, op. cit., 463.(27) Salvador Garcia Franco, op. cit., 83.

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de diferença de latitudes correspondiam a 74 léguas (o cálculo correcto indi-caria 75,3 léguas) (28).

Independentemente das conclusões a que conduza o estudo do valordeste módulo adoptado por Ferrer, e que de nosso conhecimento nenhumoutro autor referiu, o processo proposto pelo cosmógrafo catalão era oúnico nauticamente viável. Ferrer diz no texto que para «entender Ia regiay plática suso dicha es menester que sea Cosmografo, Aresmético y Marinero(...) y quien estas tres sciencias juntas no habrá, es imposible Ia pueda entender».E tinha razão, pois muitos dos cosmógrafos teóricos que depois dele se ocupa-ram do assunto, não possuindo a arte de marinheiros que se requeria, fizeramdepender a determinação do meridiano de Tordesilhas do problema do cálculodirecto de longitudes, a que não era possível dar então solução exacta (29).

4. A CONFERÊNCIA DE BADAJOZ-ELVASPARA A FIXAÇÃO DO MERIDIANO DE TORDESILHASE A PROPOSTA DOS DELEGADOS PORTUGUESES

A comissão prevista no tratado para dar execução às suas determinações,nunca chegou a ser sequer escolhida, muito embora alguns documentostrocados entre os reis de Portugal e de Castela afirmem o propósito de anomear a curto prazo. Nos anos imediatos à assinatura do convénio, esseadiamento não trouxe quaisquer complicações: se barcos portugueses seaventuraram no hemisfério espanhol, infiltrando-se em mares das Antilhas,tais acontecimentos violadores do convénio eram esporádicos; aliás D. Manuelatendia sempre as reclamações dos embaixadores ou emissários de Castela,declarando invariavelmente que o barco em causa fazia a viagem por contae risco do capitão e não por seu mandado, e prometendo inquirir da vera-cidade das acusações, para castigar os culpados, se os houvesse. Mas nãofoi só nas Antilhas que se debateram problema de limites: no AtlânticoOriental, sobretudo nas Canárias, também frequentemente se entrechocavamrivalidades antigas, a que um novo convénio assinado em Sintra, em 1509,tentou pôr definitivamente termo (30).

(28) Transcrevemos o passo da carta de Ferrer: «Y por mayor declaracion de Iaregia suso dicha es de saber que Ia cuarta dei viento que por su camino tomará Ia nave,partiendo de Ias islas delCabo Verde ai fin de Ias trecientas setenta léguas, será distante deiparalelo ó línea Occidental setenta y cuatro léguas (...) y Ias dichas setenta y cuatro léguascomprenden en latitudes três grados y un tercio fere». Silva Marques, id., 464.

(29) Entre outros, que adiante se referem, existe um projecto apresentado pelosportugueses em 1526 para se definir uma linha de demarcação no Oriente, no qual aindaé por este meio que se sugere a fixação de um meridiano divisório 297 léguas a leste dasIlhas Molucas. Vide As Gavetas da Torre do Tombo, VIII (Gaveta XVIII, Maços 1-6),p. 254, Lisboa, 1970.

(30) Estes factos, poucas vezes referidos na historiografia, encontram-se sumariadospor Perez Embid, op. cit., 311-4.

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A partir de 1510, no entanto, começaram a chegar à corte de Lisboanotícias alarmantes de pretensões de Castela ao domínio de territórios noOriente; e seria aí que a disputa se travaria intensa e demorada. Comoexemplo de tais boatos, que por vezes tinham fundamento, citaremos a cartade 20 de Agosto de 1512 em que João Mendes de Vasconcelos diz a D. Manuelque entrara em contacto com o piloto João de Solis, e mantendo com eleuma prática que «foy muito larga», pudera apurar que Solis partiria no anoimediato com três navios para Malaca. Na opinião do piloto esta cobiçadocidade situava-se no hemisfério reservado às explorações castelhanas, bemcomo a China, que encontrava «mais de iiijc léguas dentro da demarcaçãode Castela» (31).

A viagem da armada de Fernão de Magalhães, que escalou as Molucase aí deixou parte da sua já minguada tripulação, veio tornar o problemaainda mais agudo. Quando a nau Victoria chegou a Espanha completandoa primeira circunnavegação, D. João III reclamou imediatamente de Carlos Vo castigo da tripulação que em seu entender infrigira o disposto em Torde-silhas (32). Que saibamos, era a primeira vez que o rei claramente se pro-punha aceitar como extensível ao Oriente a linha divisória do tratado, como que Carlos V imediatamente concordou (33). Mas enquanto reclamava,D. João III despedia para o Oriente António de Brito, com gente e ordenspara desalojar os castelhanos das Molucas.

Não vamos deter-nos a fazer a história ou entrar desde já em aspectosparticulares desta polémica, que durou anos (adiante teremos, de resto, dedizer mais alguma coisa sobre as posições dos antagonistas); lembremosapenas, por agora, que na década de 1520-1530 a situação se tornoumais carregada depois de novas expedições espanholas às ilhas do cravo.Castelhanos e portugueses chegaram a travar luta no Oriente, enquantona Europa Carlos V e D. João III se dispunham a negociar um acordo:e é isto que mais interessa ao objectivo que esta comunicação se propõeatingir.

A 28 de Novembro de 1523 já o rei de Portugal obtivera do Imperadoruma capitulação em que se previa a reunião de peritos dos dois países («pilotos,astrólogos, marinheiros e pesoas») para se discutir a linha de demarcação (34);e logo no dia 1 de Dezembro D. João III concorda em que os comissáriosde Castela e de Portugal reunam na fronteira luso-espanhola para iniciarconjuntamente a análise do problema (35).

(31) As Gavetas da Torre do Tombo, IV, (Gaveta XV, Maços 1-15), pp. 319-20,Lisboa, 1964.

(32) Vejam-se as instruções do rei para Luís da Silveira em As Gavetas da Torredo Tombo, id., pp. 78-80. Silveira devia lembrar a Carlos V como fora prometido que afrota de Magalhães não entraria na área reservada a Portugal.

(33) Idem, VIII (Gaveta XVIII, Maços 1-6), p. 257.(34) Ibidem, p. 170.(35) Ibidem, p. 225.

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As conversações vieram a ter início em Abril de 1524: realizaram-sena ponte sobre o Caia, entre Badajoz e Eivas, e duraram várias semanas,sem qualquer resultado assinalável. Como delegados portugueses, alémde três letrados (António de Azevedo Coutinho, Doutor Francisco Car-doso e Doutor Sousa Vaz), contavam-se três astrólogos e três mari-nheiros ou pilotos: D. Francisco de Melo (mestre de Teologia), DiogoLopes de Sequeira, Pedro Afonso de Aguiar, Tomas de Torres (profes-sor de Astrologia na Universidade de Lisboa), Bernardo Pires e SimãoFernandes (36).

Desejamos considerar aqui em particular as ideias dos cosmógrafos arespeito do problema a debater, para verificarmos da sua muito discutívelutilidade prática. Elas exprimiram-se num breve texto, em geral atribuídoexclusivamente, mas supomos também que injustamente, a D. Franciscode Melo. Este teólogo e cosmógrafo fora bolseiro real na Universidade deParis, onde chegou em data desconhecida; em 1514, porém, já obtivera ograu de bacharel em «artes liberais», vindo depois a alcançar o de mestrede Teologia, como aquele documento refere. Muito protegido por D. Manuele depois por D. João III, foi reitor da Universidade de Lisboa, bispo de Goa(nunca chegou a ir ocupar este posto), conselheiro real, etc. (37). Deixouapostilas de Matemática que se conservam inéditas na Biblioteca Nacionalde Lisboa, sem nunca terem sido devidamente estudadas (38).

Talvez por D. Francisco de Melo ser de todos os técnicos portuguesesnas conversações do Caia o mais conhecido, Barbosa Machado, ao atri-buir-lhe a autoria de outros escritos que não se encontram no códice daBiblioteca Nacional, inclui neles uma obra que se relaciona com a sua acti-vidade de delegado do rei aquela conferência; seria um Tratado sobre asMolucas cairem na demarcação de Portugal, de que Machado afirma existirno seu tempo um exemplar na Biblioteca dos Jesuítas de Coimbra (39).

(36) Ibidem, IV, 243. Sobre os trabalhos da Junta de Badajoz-Elvas consulte-seA. Cortesão, Cartografia e Cartógrafos Portugueses dos Séculos XV e XVI, II, pp. 137 e segs.e passim, Lisboa, 1934.

(37) A partir de António Ribeiro dos Santos, autor da memória intitulada «Da vidae escritos de D. Francisco de Melo» (publicada em Memórias da Literatura Portuguesa,edição da Academia das Ciências de Lisboa, Vol. VII (1806), 237-49) muitos autores setem ocupado de D. Francisco de Melo. Vejam-se Sousa Viterbo, Trabalhos Náuticos, I, 210;Rodolfo Guimarães, Les Mathématiques ou Portugal, p. 373, 29 ed., Coimbra, 1909; Inocên-cio, Diccionario Bibliographico Portugues, Vol. III, pp. 8-10, Lisboa, 1859. A mais recentereferência a D. Francisco de Melo, de que temos conhecimento, encontra-se em José daSilva Terra, «Nouveaux Documents sur les Portugais à l'Université de Paris (xvie siécle)»,em Arquivos do Centro Cultural Português, Vol. V (1972), p. 205.

(38) Entre essas obras inéditas a de mais interesse deverá ser, porventura, a cópia(comentada?) ao tratado De insidentibus atribuído sem fundamento a Aristóteles. Segundonos disse em 1966 o nosso Amigo Professor R. Hooykaas, depois de ter tido oportuni-dade de analisar superficialmente uma parte do manuscrito, parece tratar-se de uma cópiado texto algo diferente das versões mais correntes.

(39) Biblioteca Lusitana, II, 198. ,

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Todavia, como ninguém voltou a encontrar tal manuscrito depois dareferência que lhe fez o Abade de Sever, é pelo menos lícita a suspeita deleter dado o nome de «tratado» a qualquer dos vários pareceres ou comentários(ou talvez a uma síntese de parte deles) que D. Francisco de Melo e seus colegasastrólogos remeteram de Eivas a D. João III; podia, em particular, tratar-sedo extenso texto oficial das sessões que tiveram lugar no final de Maio de 1524,em que se discutiu qual ilha de Cabo Verde devia ser tomada para inícioda contagem das 370 léguas, e qual o modo mais correcto de marcar estas (40).Seguiremos, pois, essa acta da reunião devidamente autenticada, quase coma certeza de que D. Francisco de Melo, se porventura redigiu a obra que aBiblioteca Lusitana lhe atribui, não deve ter deixado de nela seguir as opiniõesque ele e os outros deputados sustentaram no encontro luso-espanhol, eaquele documento testemunha.

Foi na reunião de 30 de Maio que os emissários portugueses, opondo-sea que qualquer decisão do pleito se fundamentasse em dados de pomas oucartas (o que era, evidentemente, razoável, pois cartas e globos terrestresraras vezes estariam de acordo), tomaram a iniciativa de propor que seprocedesse de uma «verdadeira» determinação de longitudes. Decertonenhum dos delegados de Portugal ou de Espanha ignorava que esseera o único meio seguro de decidir a contenda; todavia, com os pro-cessos habitualmente considerados para se obter a coordenada geográficanão mereciam confiança, a proposta dos delegados portugueses só seriainteressante se descrevesse algum novo processo exequível de fazer a suadeterminação. E, com efeito, o texto propõe os quatro modos seguintesde «medirem a lonjura das terás verdadeiramente e se fazer esta demarca-çam na verdade»:

«Item a primeira em terra por distancias de lua com algúa estrela fixaconhecida e a segunda per tornar (41) per distancias do Sol e da lua em seuscertos occasos e esta mesma em terra que tiver o orizonte sobre a augoa ea terceira pera hum grado sem alguu signal do çeo pera mar e terra / item aquarta por eclipses lunares».

A referência ao terceiro processo é tão obscura que não nos per-mite sequer fazer uma ideia do que os delegados portugueses tinham emvista. Mas as três outras visam processos que vieram a ser com muitafrequência apontados em obras de cosmógrafos do século xvi. Alonso

(40) A. Moreira de Sá transcreveu a parte desta carta que alude às determinaçõesde longitudes propostas pelos delegados portugueses no rico apêndice documental da suaedição da Oração de Sapiência de André de Resende, pp. 141-2, Lisboa, 1956. O textofoi depois reproduzido integralmente em Gavetas da Torre do Tombo, Vol. IX (Gavetas XVIII,Maços 7-13), pp. 212-21, Lisboa, 1971.

(41) Assim nas duas transcrições já citadas do documento. Não será antes «permar», em oposição à segunda parte da frase «e esta mesma em terra»? Cremos que acorrecção proposta se justifica por a aplicação do processos em terra exigir, segundo otexto, que no lugar de observação se tivesse «o horizonte sobre a água».

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de Santa Cruz, por exemplo, cita o quarto processo num capítulo do seuLivro de Ias Longitudes, e o primeiro processo em vários lugares da mesmaobra (42).

Todas estas práticas tinham, porém, um mesmo inconveniente, já aquiassinalado: desconhecia-se um modo de obter com suficiente rigor a «con-servação da hora» do meridiano de referência, dado de que todos esses pro-cessos dependiam, pois em todos a longitude era obtida pela diferença dashoras locais a que aqueles fenómenos astronómicos eram observados nosdois lugares em consideração. Mas embora fosse a mais importante, estanão era a única dificuldade com que deparava a aplicação de observaçõesdesse tipo: a propósito, por exemplo, do recurso aos eclipses, Alonso deSanta Cruz refere várias outras limitações do seu uso para o fim em vista,nomeadamente a raridade desse fenómeno astronómico, a impossibilidadedos pilotos e marinheiros, «por su poço saber», poderem fazer «Ias consi-deraciones que se requieren para la averiguacion dei dicho eclipse», etc.Por tudo isso, o cosmógrafo aconselhava que «fuesen en Ias nãos hombresdoctos» para se evitarem alguns desses inconvenientes, e na medida do possíveldiminuir o efeito de vários outros (43).

Em todo o caso, os «homens doutos» duvidavam em geral das longitudesassim obtidas. A este respeito é sintomático que D. João de Castro, nãohesitando em registar nos seus roteiros algumas longitudes estimadas, comapoio no regimento das léguas, nem uma só aponta das que deve ter obtidoatravés de observações das horas de eclipses lunares, embora aluda váriasvezes a este fenómeno e diga que fizera os preparativos para a sua observação.

5. A LOCALIZAÇÃO CARTOGRÁFICA DAS MOLUCASE D. JOÃO DE CASTRO

Uma das preocupações que transparece da documentação portuguesareferente à conferência de Badajoz-Elvas é a suspeita de que o prolongamentoda linha de Tordesilhas para o hemisfério oriental entregaria a posse dasMolucas ao domínio de Espanha, se a contagem das 370 léguas do tratadose fizesse a partir da Ilha de Santo Antão. Depois de iniciadas as conver-sações, os delegados D. Francisco de Melo, Pedro Afonso de Aguiar e DiogoLopes de Sequeira declaram-no abertamente em carta que a 18 de Maio de 1524dirigiram ao rei: «E o que se perde a começar a midir das ilhas de Sal e Boa-vista he que lançando dahi a midida das iij.c e lxx léguas nos dá Maluquopelas cartas da carreira e isto por xii ou treze leguoas. E midindo se da

(42) Ed. Delgado Aguilera, pp. 20-3, 46-9, etc, Sevilha, 1921. Esta edição estáporém, eivada de erros, como mostra Mata Carriazo no prólogo à sua edição da Crónicade los Reys Católicos (I, pp. CLI-CLXII, Sevilha, 1951), que não nos foi possível consultarmas a Professora Ursula Lamb amavelmente nos assinalou.

(43) Op. cit., 23.

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Ilha de Santo Antão lhe dão Maluco as ditas cartas por cincoenta léguas» (44).Em face deste passo, extraído de uma carta dirigida ao rei, parece-nos bemsimplista a ideia de classificarmos os cartógrafos e cosmógrafos da épocaem pró-castelhanos e pró-portugueses, de acordo com a localização que nosseus desenhos ou nos seus escritos davam ao disputado arquipélago.Os cosmógrafos, os cartógrafos e, com eles, os deputados portugueses àconferência, e ainda D. João III, deviam então estar todos convencidos queMolucas cairiam no hemisfério de Castela, se a raia fosse marcada a partirdo extremo ocidental das ilhas caboverdeanas; assim se explica a orientaçãoque deram às negociações, recusando-se a aceitar qualquer elemento de provabaseado em argumentos de carácter cartográfico, insistindo que se distin-guisse o direito à posse do arquipélago do direito de propriedade, e ainda,e sobretudo, procurando que as 370 léguas de Tordesilhas fossem contadasdas ilhas de Cabo Verde mais próximas do continente africano. De resto,através de depoimentos e requisitórios formais, que D. João III mandouefectuar em tempo devido (45), os delegados portugueses encontravam-sehabilitados a apresentar um grupo numeroso de testemunhas que afirmavamde conhecimento directo, terem os navegadores e os comerciantes lusitanoschegado às ilhas Molucas alguns anos antes dos castelhanos (46). Poroutro lado, só fortes dúvidas existentes acerca da longitude das Molucasexplicariam que D. João III, depois do malogro da conferência de 1524,se decidisse a comprar ao imperador Carlos V o direito à posse das ilhas,por uma soma avultada de que no momento nem podia dispor inteira-mente (47).

As negociações que, depois de ter terminado sem qualquer resultadoapreciável o encontro de Caia, se continuaram através dos embaixadoresnas cortes de Carlos V e de D. João III, estão largamente documentadas;além das instruções do monarca português para os seus representantes e dascartas em que estes dão periodicamente conta do modo como ia sendo enca-

(44) As Gavetas da Torre do Tombo, IV, 312.(45) O registo do inquérito foi publicado em Cartas de Afonso de Albuquerque, IV,

147 e seqs., Lisboa, 189, e de novo mais recentemente, em Gavetas da Torre do Tombo, III,17-39, Lisboa, 19. Depuseram, entre outros, Diogo Lopes de Sequeira (um dos deputadosà conferência), Fernão Pires de Andrade, Jorge Botelho e Garcia de Sá.

(46) Em Gavetas da Torre do Tombo, VIII, 225 transcreve-se um documento nãodatado, mas certamente de 1524, onde se indica a lista das testemunhas que D. João IIIdevia mandar à fronteira por causa da questão das Molucas. O rol é extenso, abrangendo:D. Aleixo de Menezes, Fernão Peres de Andrade, Rafael Catanho, Jorge Botelho, D. Garciade Sá, Bartolomeu Gonçalves, Rui de Brito, Diogo Brandão, Lourenço Moreno, SimãoAlvares, etc. Algumas destas testemunhas encontram-se referidas numa longa carta quesobre o comércio das Molucas, de Banda, de Timor e da China, fora enviada de Malaca aD. Manuel em 5 de Janeiro de 1517 por Pedro de Faria (Gavetas da Torre do Tombo, VI,337-59).

(47) D. João III fez uma colecta pelos homens ricos do reino: ao arcebispo primazpediu o monarca dez mil cruzados, mas o arcebispo escusou-se enviando apenas 374 marcosde prata para a compra. Gavetas da Torre do Tombo, IV, 108.

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! minhado o negócio, essa documentação inclui outros textos de várias índoles;muitos deles revelam desconfiança relativamente a qualquer argumentaçãodesenvolvida com fundamento na cartografia, embora sem se concretizara origem dos erros cometidos pelos cartógrafos. Citaremos como exemplo

| típico o caso da carta que Sebastião Simões escreveu de Beziguiche ao rei,

;i-d quando em 1527 ia por piloto de uma nau da armada da índia (48): Sebas-III tião Simões não aponta os erros das pomas e das cartas, mas sabia ou supunhaliai saber que as primeiras se apresentavam em geral menos favoráveis às pre-

| tensões reais, tendo por isso considerado de sua obrigação advertir o monarca,I o que faz nestes termos: «vos requero da parte de Deus que vos tires da poma: e que vos regraees pela carta e a demarquees a qual rezaam mais comprida-

mente direy quando embora vier»; e insiste: «ou me eu engano que pelacarta tirares vossas diferemçaas e pella poma nãao».

Consultando alguns dos planisférios desenhados por cartógrafos por-I tugueses na primeira metade do século xvi verificar-se-à que tais desenhos

também situavam frequentemente as Molucas no hemisfério de Castela,quando se contassem no equador graus iguais aos das latitudes, como injusti-ficadamente faziam os pilotos desse tempo, pois as cartas da época eramsimples ilustrações gráficas dos roteiros sem respeitarem qualquer sistemade projecção. Estão naquele caso o planisfério de Anónimo — JorgeReinei (de c. 1519) e os vários planisférios de Diogo Ribeiro (desenhadosentre 1525 e 1529) (49), todos desenhados em Sevilha e para navegadoresespanhóis, apesar da nacionalidade portuguesa dos cartógrafos; o segundodeles trabalhou durante anos para a Casa de Ia Contratacion, e o Reineiesteve aí temporariamente, existindo um documento que o declara autordo planisfério e de uma poma hoje perdida, que seu pai Pedro Reinei ajudoua terminar, quando foi a Sevilha por mandado de D. Manuel, a fim de imporao filho o regresso a Lisboa (50).

Com o decorrer do tempo, porém, a cartografia veio a alterar a situaçãodas ilhas nos seus desenhos, colocando-as em posição aproximadamentecorrecta, no limite do hemisfério reservado a Portugal no Tratado de Torde-silhas. Com o Comt. Teixeira da Mota nos vai apresentar aqui uma comuni-

i cação sobre a representação das Molucas na cartografia da época, limitar--nos-emos a referir três planisférios que se encontram nas condições acabadasdç referir: dois deles, que são anónimos e datando de c. 1545 e c. 1550(51),incluem o arquipélago nitidamente dentro da área portuguesa, e até sem

(48) Esta carta está publicada em Gavetas da Torre do Tombo, VIII, 174. Nãotemos outras notícias deste piloto, que já era idoso quando a escreveu, como se vê pelamaneira pitoresca como a inicia («Quamdo Vossa Alteza foy a Belém ver as vossas naaosdiseram me que disera. Aquele velho vay por piloto. Não ha em voso reino omem tammoço pera vos seruir como eu»).

(49) Port. Mon. Cartográfica, I, Ests. 9 e 37.(50) Sobre estes factos vide A. Cortesão, op. cit., 1, pp. 249 seqq.(51) P.M.C., Ests. 79 e 80.

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qualquer margem para dúvidas no primeiro deles, pois a linha de demarcaçãoestá aí representada tanto no Atlântico como no Extremo Oriente; o terceiroé o planisfério desenhado pelo cartógrafo Lopo Homem em Lisboa no anode 1554(52).

Uma pergunta se tem naturalmente de pôr neste momento: obedeceriaapenas a propósitos políticos, sem estar devidamente fundamentada, a situaçãoquase correcta, em relação ao meridiano de Tordesilhas, que estes últimosplanisférios dão às Molucas? Supomos que a resposta à pergunta tem deser negativa, e terminaremos esta comunicação indicando o motivo forteque temos para assim pensar.

Como o problema da posse das Molucas se arrastou durante dezenasde anos, seria bem natural que por ele se interessassem pilotos, navegadorese cosmógrafos (53); se e carta de Sebastião Simões a D. João III, a que acimaaludimos, é boa prova disso, deve-se reconhecer que os documentos dessaíndole são em menor número do que seria de esperar. Em todo o caso,uma observação que D. João de Castro deixou em um dos seus roteiros,e um relatóiio sobre a linha de demarcação que a índia remeteu ao rei (nãoestá datada, mas há motivos para afirmar que foi escrito durante a sua pri-meira estada na índia, entre 1538 e 1541 (54)), mostram que o problema erafrequentemente estudado.

Esse comentário do roteiro de Castro relaciona-se com a extensão exa-gerada do Atlântico Sul, em consequência de serem as distâncias navegadasobtidas a partir do regimento das léguas, mas segundo os rumos magnéticos,quando o regimento estava, na verdade, preparado para os rumos geográficos.Ocupámo-nos largamente do caso em trabalhos recentes (55), de modo quenos parece escusado voltar ao assunto com a minúcia com que o fizemosnesses trabalhos. Bastará dizer que D. João de Castro, sem relacionar logoo facto com a localização das Molucas (fá-lo-ia, porém, no relatório abaixo

(52) P.M.C., Est. 27.(53) Note-se, porém, que mesmo em Portugal circularam por vezes pareceres.favo-

ráveis ao ponto de vista de Carlos V; no Livro de Marinharia de André Pires (ed. Junta deInvestigações do Ultramar, 111-118, Coimbra, 1963), comentámos largamente um trechonessas condições copiado por este piloto de um livro de Pedro Margalho ou de Fernandezde Enciso.

(54) Efectivamente, numa carta que escreveu ao rei da ilha de Moçambique, em 5 deAgosto de 1538, D. João de Castro diz: «Eu, senhor, tenho trabalhando neste caminhoquanto pude por entender meudamente a variação das agulhas (...); e soubea perfeitamentee afyrmo a Vossa Alteza que até ora nom foi sabido nem maginado algum sagredo quenesta parte alcamsei o que faz muito ao caso pera as deferemças que ouve entre Vosa Altezae o emperador, e pode aver sobre a repartição do mundo». (Arquivo Nacional da Torredo Tombo, Col. S. Lourenço, IV, fl. 259; publicada por Elaine Sanceau, Cartas de D. Joãode Castro, 15, Lisboa, 1954). É natural, pois, que ao chegar à índia, e com mais tempodisponível, Castro não tardasse a redigir as suas reflexões sobre o caso, e as mandasse ao rei.

(55) D. João de Castro, Obras Completas, ed. A. Cortesão e L. Albuquerque, I,198-207 e 289-292; Luís de Albuquerque, Contribuição das Navegações do Século XVI parao Conhecimento do Magnetismo Terrestre, Coimbra, 1970.

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referido), afirma, com fundadas razões, que era excessiva a distância quenas cartas do seu tempo separava o Cabo da Boa Esperança da costa daAmérica do Sul; e é evidente que a correcção dessa distância não podiadeixar de indirectamente aproximar do Ocidente a representação cartográficado arquipélago das Molucas.

No outro documento D. João de Castro ataca de maneira directa oproblema da linha de demarcação. Infelizmente o relatório só é conhecidopor uma cópia que anda anexa ao único manuscrito existente do Tratadoda Esfera compilado por Castro, e essa cópia é de má qualidade (56); mas se

MERIDIANO DE REFERÊNCIA.'

Linha de Tordesilhas /Lisboa

Lisboa / Alexandria

Alexandria / Boca doMar Roxo

Boca do Mar Roxo /Cabo Comorim

Cabo Comorim /Molucas (57)

TOTAL

DIO

GO

R

IBE

IRO

15

25

38°

47,5

28

34

34

18.-.5

AN

ÓN

IMO

C

. 15

45

27°,5

42

26

30

42

177°,5

1V

AL

OR

ES

DA

C

AR

TO

-

GR

AF

IA

SE

GU

ND

O

CA

STR

O

38°

37

28

30

38

171°

VA

LO

RE

S

CO

RR

IDO

S

PO

R

CA

STR

O

38°

37

17

30

38

160°

VA

LO

RE

S

VE

RD

AD

EIR

OS

40°

40

11

34

34

159

algumas dúvidas podem subsistir quanto a número que o autor citava e oescriba estropiou na transcrição, num aspecto é o texto perentório: D. Joãode Castro baseava o seu parecer numa crítica à cartografia que alongavaexageradamente, no sentido das longitudes, quase todas as regiões situadasentre o Oceano Atlântico e as ilhas Molucas, e no seu relatório corrige comjustificações de vária ordem. No quadro anexo reunimos essas suas indi-cações, os dados correspondentes que atribui aos cartógrafos do seu tempo,

(56) Biblioteca Nacional de Madrid, Cód. 1140, fl. 122 e segs. Reproduzida emD. João de Castro, Tratado da Sphera, ed. Fontoura da Costa 113-121, Lisboa, 1940, mascom mais alguns erros de impressão: assim, por exemplo, no texto impresso tem «O CaboComorim apartasse do Meridiano de Alexandria 38 grãos» quando o original aponta correc-tamente 58 graus.

(57) A contagem é feita do meridiano do Cabo Comorim até o do extremo ocidentaldo arquipélago.

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e ainda as mesmas distâncias marcadas em um dos planisférios de DiogoRibeiro e no planisfério anónimo de c. 1545; a última coluna insere essaslongitudes medidas nas cartas actuais.

Do quadro verifica-se, em primeiro lugar, que a correcção introduzidano planisfério anónimo de c. 1545 não foi certamente resultante das obser-vações feitas no relatório de D. João de Castro; com efeito, este relatórioapontava a necessidade de corrigir substancialmente para menos a distânciahabitualmente considerada na cartografia do meridiano de Alexandria áoda entrada do Mar Vermelho, distância que no planisfério foi apenas dimi-nuída em cerca de 2.°. Por outro lado, o relatório aponta que o erro dafixação do meridiano de Tordesilhas a Oriente resultava sobretudo na máavaliação da longitude do Estreito de Babelmandêbe a Alexandria, que D. Joãode Castro declara deve ser modificada de 28° para 17°. Este erro cometidopela cartografia era consequência de duas causas: exagerada avaliação dadistância do eixo do Mar Vermelho entre Alexandria e as Portas do Estreito,pois a maioria dos cartógrafos aceitava — diz D. João de Castro — que taldistância era de «seis centenas (58) legoas e day para cima»; e a má orientaçãode tal segmento no desenho, pois ficando mais próximo do que devia dorumo leste oeste, a sua projecção sobre este rumo saía exagerada.

A respeito da primeira causa D. João de Castro afirma ter «achadoque o número das léguas que as cartas de marear põem de Alexandria áoestreito do mar ruiuo he falso por 200 legoas, pouco mais ou menos»; querdizer; as cartas colocavam os dois lugares a uma distância de 600 léguas,quando esta orçava pouco mais ou menos por 400 léguas. Ora nas cartasque referimos (59), tomando como distância base a de Lisboa aos Açores,calculada pelos pilotos da época em 250 léguas, verificamos que os planis-férios de Anónimo-Jorge Reinei (c. 1519), Anónimo (c. 1545) e de LopoHomem (1554) atribuem, na verdade, cerca de 600 léguas ao segmento deAlexandria até Babelmandêbe; no planisfério anónimo (c. 1550) essa dis-tância é um pouco menor, mas não ainda assim inferior a 500 léguas. Veri-fica-se, pois, que a avaliação de D. João de Castro, baseada nos autoresclássicos (Ptolomeu, Estrabão, etc.) e em um trecho de Enciso, é de todas amais aproximada.

A segunda causa do erro apontada por D. João de Castro tinha igual-mente fundamento. Com efeito, os planisférios consultados, orientam oeixo do Mar Vermelho aproximadamente segundo os rumos noroeste-quarta--oeste (Anónimo — Jorge Reinei), noroeste (Diogo Ribeiro), oeste-quarta--norte (anónimo de c. 1550) noroeste-quarta-oeste (Lopo Homem); apenaso planisfério anónimo de c. 1545 dispõe aquela linha no rumo noroeste-

(58) A palavra em itálico é interpolada no texto do Ms., pois doutro modo a frazenão fazia sentido.

(59) Não podemos referir o caso do planisfério de Diogo Ribeiro, por estar neleincompleta a representação do Mar Vermelho.

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-quarta-norte, que é sensivelmente o exacto e que foi também o consideradopor Castro.

Analisando detidamente o modo como os dois erros que acabamos deenumerar se reflectiam na cartografia, D. João de Castro conclui que corri-gindo as cartas se «uera claro encolherse esta terra 11 graos pera o Occidente»(assim, a longitude de Alexandria a Babelmandêbe seria de 17°, como escre-vemos no quadro). E o futuro vice-rei da índia remata: «tamanho enganocomo se faz a V. S. não sey se he de atribuir a pouca sciencia de seus pilotos,se a preguiça dos mestres das cartas de marear em não querer aprender maisque huma piquena parte da pintura com que espantão o pouo» (60).

Õ remoque tinha pelo menos justificação pelo que respeita aos pilotos:fora com fundamento em razões de boa marinharia que Castro procederaà revisão do problema, e com um resultado final excelente (160° de longitudedo extremo ocidental das Molucas em relação ao meridiano de Tordesilhas,apenas um erro de pouco mais de Io), em virtude de se terem compensadoos pequenos erros parcialmente cometidos.

(60) Tratado da Sphaera, ed. cit, 119

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