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Mesa temática: 11. Epistemologías disidentes, género y color Título : Gênero, Raça e Colonialidade na América Latina: um debate à luz de Maria Lugones e Silvia Rivera Cusicanqui. Autoría: Tchella Fernandes Maso, Letícia Dias Otero e Suzielen das Graças 1 . Pertenencia institucional : Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) Correo de contacto : [email protected] Resumo O trabalho busca situar o gênero como uma categoria articulada aos conceitos de raça e classe na fundação do colonialismo e da colonialidade na América Latina. Portanto, nosso interesse está em apresentar ao leitor as incidências entre as críticas latino- americanas à modernidade, aos Impérios, ao capitalismo e ao patriarcado. Para tal analisa as produções de Maria Lugones e Silvia Rivera Cusicanqui, tecendo pontos de comunhão e divergência entre as pesquisadoras. Trata-se de uma pesquisa exploratória, baseada na revisão bibliográfica das autoras, seguida de estudo sobre a trajetória de suas vidas e possíveis imbricações entre as categorias analítica e êmica. Palavras-chave: Feminismo Decolonial; Mulheres de cor; Patriarcado. 1. INTRODUÇÃO O trabalho aqui apresentado é fruto de aventuras no campo dos discursos feministas que emergem na América Latina marcados pela crítica à colonialidade global 2 . Diante de inquietações referentes à origem disciplinar das autoras, as Relações Internacionais, e o reduzido debate sobre gênero e América Latina, sentiu-se a necessidade de olhar mais de perto pesquisadoras do continente. Ao definir os discursos de Maria Lugones e Silvia RiveiraCusicanqui como objetos de estudo, nosso interesse estava em acessar falas que se aproximam na crítica articulada ao Império, ao 1 As autoras autorizam a publicação do trabalho no meio a ser definido pelo Comitê Científico do II Congreso de EstudiosPoscoloniales ylas III Jornadas de Feminismo Descolonial, ―Genealogíascríticas de laColonialidad‖. 2 Tais aventuras foram esboçadas no grupo de pesquisa ―A tradução do subalterno no projeto político - epistêmico de superação da colonialidade na América Latina‖, financiado pela Universidade Federal da Grande Dourados, composto pela coordenadora a professora TchellaMaso e por graduandas em iniciação científica, dentre elas Letícia Otero e Suzielen das Graças. O trabalho apresentado aqui é resultado de 12 meses de pesquisa.

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Page 1: aproximam - idaes.edu.ar et all. TRABALHO COMPLETO.pdf · analisa as produções de Maria Lugones e Silvia Rivera Cusicanqui, tecendo pontos de comunhão e divergência entre as pesquisadoras

Mesa temática: 11. Epistemologías disidentes, género y color

Título: Gênero, Raça e Colonialidade na América Latina: um debate à luz de Maria

Lugones e Silvia Rivera Cusicanqui.

Autoría:Tchella Fernandes Maso, Letícia Dias Otero e Suzielen das Graças1.

Pertenencia institucional: Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD)

Correo de contacto: [email protected]

Resumo

O trabalho busca situar o gênero como uma categoria articulada aos conceitos de raça e

classe na fundação do colonialismo e da colonialidade na América Latina. Portanto,

nosso interesse está em apresentar ao leitor as incidências entre as críticas latino-

americanas à modernidade, aos Impérios, ao capitalismo e ao patriarcado. Para tal

analisa as produções de Maria Lugones e Silvia Rivera Cusicanqui, tecendo pontos de

comunhão e divergência entre as pesquisadoras. Trata-se de uma pesquisa exploratória,

baseada na revisão bibliográfica das autoras, seguida de estudo sobre a trajetória de suas

vidas e possíveis imbricações entre as categorias analítica e êmica.

Palavras-chave: Feminismo Decolonial; Mulheres de cor; Patriarcado.

1. INTRODUÇÃO

O trabalho aqui apresentado é fruto de aventuras no campo dos discursos

feministas que emergem na América Latina marcados pela crítica à colonialidade

global2. Diante de inquietações referentes à origem disciplinar das autoras, as Relações

Internacionais, e o reduzido debate sobre gênero e América Latina, sentiu-se a

necessidade de olhar mais de perto pesquisadoras do continente. Ao definir os discursos

de Maria Lugones e Silvia RiveiraCusicanqui como objetos de estudo, nosso interesse

estava em acessar falas que se aproximam na crítica articulada ao Império, ao

1 As autoras autorizam a publicação do trabalho no meio a ser definido pelo Comitê Científico do II

Congreso de EstudiosPoscoloniales ylas III Jornadas de Feminismo Descolonial, ―Genealogíascríticas de

laColonialidad‖.

2Tais aventuras foram esboçadas no grupo de pesquisa ―A tradução do subalterno no projeto político-

epistêmico de superação da colonialidade na América Latina‖, financiado pela Universidade Federal da

Grande Dourados, composto pela coordenadora a professora TchellaMaso e por graduandas em iniciação

científica, dentre elas Letícia Otero e Suzielen das Graças. O trabalho apresentado aqui é resultado de 12

meses de pesquisa.

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Colonialismo, ao Patriarcado e à Modernidade Europeia; e se distanciam no que se

refere ao local de fala das enunciadoras, sobre quais sujeitas os discursos tratam e para

que projeto alternativo de sociedade apontam tais narrativas.

A escolha de tais objetos justifica-se na tentativa de diminuir as invisibilidades

que perpassam o campo das narrativas construídas no discurso científico colonial e, em

alguma medida, nos estudos pós-coloniais e decoloniais. No leque de estudos tidos

como pós-coloniais, a referência ao gênero como fundante de uma ordem reprodutiva,

ao lado da ordem econômica e política do Império, é pouco estudada. No âmbito da rede

Modernidade/Colonialidade formulado a partir das especificidades latino-americanas

em seu relacionamento com a fundação da ordem imperial, as discussões sobre a

interface de gênero na colonialidade do poder ainda são minoria entre os intelectuais do

grupo. Além disso, Silvia RiveiraCusicanqui, uma importante pesquisadora e lutadora

boliviana–aymara, é desconhecida na academia brasileira e em muitas áreas do

conhecimento. Sendo uma importante difusora da crítica à rede

Modernidade/Colonialidade e aos modismos acadêmicos. Portanto, o trabalho busca

lançar palavras sobre esses silêncios.

Maria Lugones e Silvia Rivera Cusicanqui falam da América Latina, mas a partir

de distintos vínculos com a realidade social. No contexto de aprofundamento dos

estudos sobre autoras latino-americanos que trabalham com a metáfora da colonialidade

associada à categoria gênero como eixo estruturante de suas pesquisas, percebeu-se que

há uma ausência de interpretações que associam a pesquisa científica e trajetória de

vida.Nesse horizonte, faz-se necessário compreender as especificidades de tais

pesquisadoras em suas aproximações com os espaços de ação e transformação política e

social (seu padrão êmico).

Partindo, então, da problemática da construção de narrativasalternativas à ordem

colonial questiona-se se a prática política e militante resplandece no discurso científico.

Apesar de intuitiva, a pesquisa, ainda preliminar, aponta para a radicalidade do discurso

da autora vinculada diretamente à militância, Silvia RiveiraCusicanqui, em comparação

com as proposições de Maria Lugones, centrada na academia estadounidenese. A fim de

apresentar ao eleitor tal hipótese, o texto está dividido em cinco partes: introdução; o

discurso de Maria Lugones; a narrativa de Silvia RiveiraCusicanqui; aproximações e

divergências entre as autoras e especulações finais.

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2. COLONIALIDADE DE GÊNERO E TRAJETÓRIA DE VIDA

ENUNCIADOS EM MARIA LUGONES.

A autora Maria Lugones traz em seus escritos a bagagem de sua trajetória de

vida. Tendo nascido em uma família pobre, arrendatária de fazenda, nos pampas da

Argentina, atualmente é pesquisadora de filosofia no centro de semiótica da

universidade de Binghantom em Nova Iorque, na área de estudos de mulheres,

envolvendo ética, filosofia política, filosofia de raça e gênero, filosofia latino-

americana, teorias de resistência, estudos subalternos, educação popular e política latina

nos EUA. Participa da Sociedade para Mulheres na Filosofia de MidwestDivision, da

Associação americana de filosofia. É membra fundadora da Asociación Argentina de

MujeresenFilosofía e fundadora da Escola Popular Norteña, dedicada à criação e

promoção do movimento de raça nos EUA. Foi diretora e atualmente é membra do

Programa da área de Estudos Latino-americanos e caribenhos (LACAS) na

Universidade de Binghamton. No LACAS, o trabalho da autora foi de movimentar o

programa para direcioná-los para os estudos à América Latina e o Caribe, e em estudos

sobre os latinos nos EUA. Os projetos buscam a compreensão das implicações do

movimento diaspórico, e incluem pesquisas sobre educação popular na América Latina

e grupos de estudos de pós-colonialidade.

Sobre a autora, Diego FalconíTrávez diz:

Para empezar a hablar de María Lugones se podría partir por lo evidente: una mujer que

se avoca en la ardua e histórica(mente masculinista) tarea de pensar y escribir en torno a

la filosofía. Luego sería posible ir agregando etiquetas identitarias tales como mujer del

Tercer Mundo, mujer latinoamericana, mujer políticamente comprometida que moldea

parte de su pensamiento feminista contracultural. Pero creo que enfocar la autoría de

esta filósofa argentina radicada en Estados Unidos debe, sin olvidarse de todas estas

cuestiones, partir del desplazamiento, de la migración como modus operandi de la

subjetividad contemporánea. Al hacer este enfoque es posible, además de pensar la

identidad desde un feminismo nómade (como expone RosiBraidotti), articular una

narración que vincule parte de la historia de los cuerpos diaspóricos femeninos

latinoamericanos y sus articulaciones en la estructura occidental con el pensamiento de

María Lugones.

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É interessante marcar que a autora vive nos Estados Unidos, e, nesse país, sua ―raça‖ é a

latinidade.

Sobre o texto da autora, Purity, Impurity, andSeparation, publicado no ano de 1994, na

revista Signs,Trávez diz que trata da inseparabilidade de identidades, que ―não podem

ser sujeitas a um receitário fixo‖ e que não se encaixam na lógica racionalista. O ideal

de pureza não se aplica, pois as diferentes identidades se mixam. A filosofia ocidental

faz uma separação de pureza e impureza, sempre com a tentativa de purificar essas

marcas. A Lugones traz a proposta de valorizar a mesticidade, criando um ensaio

mestiço em todas suas faces.

Sobre o livro da autora ele diz:

Esta propuesta fronteriza, nacida de la diáspora del Sur emplazada en el Norte (que es

parte de la propia realidad migratoria de la autora) permite la elucubración de un

pensamiento importante para el feminismo de la diferencia. Propuesta filosófica que,

arropada por el auge del activismo académico chicano, le da una plataforma, una

máscara a la autora argentina que analiza desde las estrategias de varias mujeres

desplazadas el complejo tema de la identidad.

Atrás queda la propuesta del mestizaje, de la autobiografía, de la plataforma brindada

por la impureza chicana que la autora como académica migrada latina en Estados

Unidos abordaba. El discurso poscolonial y decolonial ha reformulado ciertos teoremas,

pero también la propia Lugones ha cambiado de espacio de acción y realiza en Bolivia

(siguiendo la metodología del trabajo comunitario aimara de Silvia Rivera Cusicanqui)

labores con comunidades de base indígenas.

Desde as primeiras publicações, o pensamento central da autora é a conexão de políticas

de raça e gênero. Em 2006, a autora entrou para o grupo Modernidade/Colonialidade em

uma das reuniões realizada na Venezuela. A partir de então, sua obra passou a contribuir

com os estudos de gênero e colonialidade. Ela acrescentou o conceito de colonialidade

de gênero às formas de colonialidade, do ser, do poder e do saber. Um dos pensamentos

principais da autora é o conceito de sistema colonial/moderno de gênero, e também a

intersecção das categorias raça, gênero e colonialidade.

Seu pensamento critica a pouca atenção dada ao aspecto de gênero, seja em temas

econômicos ou históricos da colonialidade. Os trabalhos da Lugones são essencialmente

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e principalmente caracterizantes da situação de gênero existente e fundada pela

modernidade, e são uma construção epistemológica crítica a essa situação. A

colonialidade é estabelecida em três bases principais, a colonialidade do poder, do saber

e do ser, às quais a autora acrescenta a colonialidade de gênero.

Para ela, existe um sistema moderno e colonial eurocêntrico de gênero que ignora as

categorias de raça e classe em suas categorias. Nesse sistema, existem os humanos; o

homem branco, que é o detentor da razão e inteligência; a mulher branca, que é

reprodutora da dominação colonial e da mentalidade dominante; e os não-humanos, ou

segundo a Lugones, os bestializados, os negros e índios. Além disso, ela diz que as

indígenas e as negras não estão representadas nem na categoria universal de ―mulher‖,

nem nas categorias índio e negro, que essas categorias não conseguem ser aplicadas a

essas mulheres, e não é possível fazer uma interseccionalidade dessas categorias de

forma que não existe ―mulher negra‖, nem ―mulher índia‖, sendo necessária outra

classificação que seja especificamente representativa. Portanto, a crítica principal é

direcionada às teorias feministas generalizantes, que, segundo ela, são excludentes de

mulheres com especificidades relativas à raça e classe, sendo necessário construir um

feminismo decolonial para superar essa dominação. Lugones (2007: 193)

Para compreensão da dimensão de gênero atrelada às teorias de colonialidade, é preciso

relacionar as diversas formas de colonialidade, entre elas, a colonialidade do poder,

conceito apresentado por Aníbal Quijano, que visa expressar a dominação baseada na

exploração racial do trabalho, seus recursos e produtos. A raça foi uma categoria de

diferenciação inventada para legitimar a exploração colonial. Raça é uma invenção da

modernidade. No entanto, apesar de ser uma ficção, a dominação e as explorações

legitimadas pela ideia de raça são reais e carregam consigo consequências materiais e

subjetivas de subjugação de pessoas que foram racialmente inferiorizadas. A raça foi

construída na dicotomia branco-europeu-racional-civilizado / subalterno-irracional-

natural-não-civilizado-não-humano, sendo os subalternos os negros, índios, amarelos,

oliváceos. Quijano (2000: 3) A fundação da diferenciação de raça foi um dos pilares da

construção da modernidade e do pensamento eurocêntrico. Para a autora Maria

Lugones, a colonialidade se manifesta nas ideias de teorias feministas hegemônicas,

pois são ideias eurocentradas e universalizadas de emancipação da mulher, sem

considerar as diferenças essenciais que existem entre as mulheres brancas, as mulheres

negras, latinas, índias e suas opressões. Sendo assim, essas teorias não são

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representativas das necessidades das mulheres não-brancas, portanto, são fontes de

dominação e propagação da colonialidade.

Outras duas categorias complementadoras da colonialidade são a colonialidade do

saber, que é a colonialidade exercida sobre o conhecimento, e a colonialidade do ser,

que é a expressão da colonialidade vivenciada cotidianamente. A colonialidade do saber

é a dimensão da colonialidade do poder relacionada à filosofia e ao conhecimento.

A colonialidade do saber é a apropriação e ocultação da cultura e dos conhecimentos

que fogem ao que é dado como verdadeiro e universal, ou seja, apagamento do

pensamento tecnológico e filosófico não-europeu, pelo pensamento intrínseco de que o

conhecimento europeu e da ciência antropocêntrica e metódica é superior às outras

formas de conhecimento.

A apropriação ou o ocultamento se dão a partir da imposição de uma universalidade do

conhecimento ocidental, e isso se baseia na suposta superioridade epistêmica e se

fundamenta no distanciamento epistemológico do sujeito; a diferença colonial

epistêmica. Restrepo& Rojas (2010: 138) Nessa diferença colonial epistêmica, o sujeito

não tem sexualidade, gênero, etnia, raça, classe, espiritualidade, língua, nem localização

epistêmica em nenhuma relação de poder. Mignolo, apud. Ballestrin (2013: 105) Dessa

forma, o conhecimento supõe um distanciamento e uma neutralidade do sujeito, de

forma a construir ideias limpas de qualquer influência da pessoa que cria.

A colonialidade do ser é uma manifestação da colonialidade do poder e envolve as

experiências ontológicas vividas pelos sujeitos da modernidade/colonialidade; é a

experiência dos sujeitos subalternizados, a experiência física, material, cotidiana. O

primeiro a utilizar o conceito de colonialidade do ser foi Walter Mignolo. Durante toda

sua trajetória teórica, a autora Lugones esteve preocupada em retratar e teorizar a

colonização do ser, por meio de apagamento ou apropriação de identidades, e, busca em

seus textos e suas práticas, valorizar a vivência mestiça, de forma a resistir à

colonialidade do ser.

Gênero e Colonialidade.

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No texto ―Heterossexualismo e o Sistema Colonial/Moderno de Gênero‖, Maria

Lugones faz a intersecção entre raça, gênero e colonialidade, e cria o conceito de

sistema colonial/moderno de gênero inserido na colonialidade do poder. Para isso, ela

inicia o texto com uma crítica com relação à percepção sobre gênero do autor Aníbal

Quijano. Segundo ela, o Quijano, apesar de escrever sobre colonialidade, se baseia em

conceitos eurocêntricos e heteronormativos relativos a gênero, que não correspondem à

realidade colonial. Para Quijano, o sexo é apenas biológico. Nesse modelo em que o

sexo é essencialmente biológico e há uma fundação capitalista da diferença de gênero,

as mulheres de cor não são percebidas, pois as categorias raça e gênero se mantém

isoladas uma da outra. Assim, o gênero é percebido por Quijano não como um meio

subjetivo de exercer a colonialidade, mas sim de forma eurocêntrica, como um meio de

exploração dos recursos materiais e do sexo através da diferença de gênero. Para

MaríaLugones, Quijano exclui a intersecção da categoria de gênero com todas as outras

categorias, como a ecologia, a organização dos grupos, a organização do trabalho, a

economia. O sistema colonial/moderno de gênero também considera apenas os gêneros

homem e mulher, e essas categorias de homem e mulher são extremamente limitadas.

Ela propõe uma intersecção das categorias raça e gênero, para que, dessa forma, as

mulheres de cor tenham visibilidade e tenham as características de suas próprias lutas

reconhecidas.

No texto ―The ColonialityOfGender‖, MaríaLugones fala sobre os indivíduos que têm

dificuldade em definir o sexo biológico. O sistema colonial de gênero faz com que esses

indivíduos passem por exames e correções cirúrgicas para que o sexo feminino ou

masculino seja definido. Segundo ela, apesar de a definição do sexo supostamente se

dar a partir das características biológicas, nos casos de indivíduos interssexuados essa

afirmativa se desconstrói, pois os critérios de definição são subjetivos e variam

conforme o caso. Com issoelaconcluique ―The cosmetic and substantive corrections to

biology make very clear that ―gender‖ is antecedent to the ―biological‖ traits and gives

them meaning.‖Lugones (2008: 7)

A partir de estudos de outras autoras, ela mostra que as características biológicas que

são atribuídas ao homem e à mulher são socialmente construídas e que o gênero é

anterior a essa interpretação biológica, ou seja, primeiro se constrói o gênero e depois se

aplica o conceito aos corpos. Além disso, antes da colonização, muitas sociedades

tinham outras formas de organização social que não o gênero, e aceitavam mais de duas

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representações de gênero, como os transsexuais, os assexuados e o terceiro gênero. Para

contrapor as definições binárias de gênero e exemplificar como essas outras formas

eram aceitas, a autora cita o estudo de OyéronkéOyewùmí sobre a sociedade africana

Yoruba, que não tinha relações de gênero binárias nem hierárquicas antes da

colonização. O sistema patriarcal que foi inserido nessas comunidades ginecocráticas

transformou profundamente a organização social e política, que passou a excluir aquelas

que foram forçadamente categorizadas como mulheres e, portanto, submissas, frágeis e

incapazes de exercer as atividades de liderança e de autonomia individual que exerciam

quando não havia sistema de gênero hierárquico em suas vivências. Na sociedade

Yoruba, os corpos femininos e masculinos podiam ser obinrin ou okunrin, pois o gênero

não era biologicamente construído. A instauração da superioridade masculina sobre a

feminina na sociedade Yoruba transformou profundamente a vida das anafemales , que

antes eram obinrin ou okunrin, e não sofriam inferiorização de gênero, pois o gênero

não era uma categoria de poder determinante das relações sociais. O binarismo

homem/mulher também gerou inúmeros problemas em outras sociedades colonizadas,

pois essa concepção alterou a estrutura de tribos matriarcais, que tinham sistemas de

gênero igualitário e que mantinham suas bases econômicas e culturais na figura

feminina, além de dedicarem especial respeito pelo sagrado feminino.

Maria Lugones também traz em seu texto Heterossexualismandthe

Colonial/ModernGender System o trabalho de Paula Gunn Allen, que é importante por

apresentar as especificidades culturais dos Nativos Americanos ginecocráticos, que

tinham suas crenças em torno da espiritualidade, valorizavam o Feminino e a Mulher -

"For thegynecratictribes, womanisatthecenterand "no thingissacredwithoutherblessing,

herthinking.‖ Allen apud. Lugones (2007: 198) - e que mantinham equidade de gêneros

em contraposição à dominação colonial homem/mulher. O trabalho da Allen é relevante

para exemplificar as limitações do conceito de gênero como é apresentado no trabalho

do Quijano, por exemplo, com relação à economia, autoridade e produção de

conhecimento.

Ela traz uma referência ao trabalho de Allen que explica as conseqüências geradas pela

hierarquização e patriarcalização dessas sociedades. A primazia criadora feminina é

substituída pela masculina, as filosofias que constituíam a base das instituições dessas

tribos foram destruídas, as antigas instituições vigentes não são capazes de se manter,

pois a nova instituição de dominação constitui-se no patriarcado, e a estrutura das tribos

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é transformada, pois as mulheres governantes são substituídas por homens. Lugones

(2007: 198-199) Lugones acrescenta ainda a contribuição de Allen, dizendo que:

Assim, para Allen, a inferiorização das Indianfemales é completamente ligada à

dominação e à transformação da vida tribal. A destruição das ginecracias é crucial para

a ―dizimação das populações pela fome, doença, e pela quebra de todas as estruturas

sociais, espirituais e econômicas‖ (42). Lugones (2007: 199: tradução nossa).

Para MaríaLugones, os estudos de Allen e Oyewumi, aos quais ela faz referência em seu

texto,

[...] entendem o ―gênero‖ em um sentido mais amplo que o Quijano, então elas pensam

não só sobre o controle sobre o sexo, seus recursos e produtos, mas também sobre o

trabalho como racializado e embutido pela categoria gênero. Ou seja, elas vêem uma

articulação entre trabalho, sexo e a colonialidade do poder. Lugones (2008: 16: tradução

nossa)

A colonialidade do poder constituiu um espaço para a introdução do sistema

colonial/moderno de gênero. O conceito criado por Maria Lugones caracteriza gênero

como uma ficção, que sustenta a colonialidade do poder e a dominação racial e de

gênero.

Sobre as feministas brancas, Lugones diz que as lutas feministas foram construídas

considerando o conceito ―mulher‖ como universal, como se todas as mulheres fossem

brancas, tivessem as mesmas necessidades e sofressem as mesmas opressões. Assim, as

mulheres que não se encaixavam nas descrições do que se concebia como ―mulher‖ não

eram vistas ou eram vistas como era conveniente para o sistema eurocêntrico. As

mulheres colonizadas tinham status muito diferentes do status das mulheres brancas,

antes e depois da colonização. Para Lugones, as feministas brancas viam uma ligação de

todas as mulheres pelo gênero, que eliminava a necessidade de compreender também a

categoria raça. No entanto, as mulheres colonizadas e não-brancas tinham

representações sociais específicas que não cabiam no conceito de mulher das feministas

brancas.

Segundo Lugones, os feminismos do século XX eram centrados na caracterização da

mulher como fraca, frágil, sensível, sexualmente passiva, e inferior física e

mentalmente. Mas nessa caracterização se encaixava apenas a mulher branca e

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burguesa. Sobre as outrasmulheres, a autoradizque ―They were understood as animals in

the deep sense of ―without gender‖, sexually marked as female, but without the

characteristics of femininity.‖ Lugones (2008: 13) Assim, os feminismos do século XX

não atendem completamente as necessidades dessas mulheres não-brancas-burguesas e

por vezes seguem o sistema moderno/colonial de gênero. A crítica dos estudos coloniais

sobre os feminismos que seguem esse sistema é a de que, de certa forma, seguem a

hegemonia contra a qual estão tentando lutar, quando universalizam as necessidades e

caracterizações, invisibilizando as mulheres não-brancas e não burguesas, as mulheres

de cor. Lugones (2008: 13)

O pensamento da autora é importante para demonstrar como a construção do conceito

de gênero foi utilizada pelos colonizadores para legitimar a dominação e transformar as

estruturas sociais das tribos. Também, como o sistema colonial de gênero apagou e

destruiu identidades, e continua a ser perpetuado pelas sociedades como sendo a única

forma de interpretação e vivência. É importante também para fazer-se uma reflexão

sobre as sociedades atuais, para compreender o quanto de colonial ainda existe nessas

sociedades, o quanto esses conceitos são naturalizados e até que ponto as crenças e

sistemas atuais são realmente válidos e livremente construídos. Além disso, seus textos

chamam a atenção para a naturalização de estereótipos hegemônicos de gênero como

sendo universais. Por exemplo, quando mulheres com todo tipo de diferença são

consideradas universalmente na categoria ―mulher‖ (que é construída como a mulher

branca burguesa frágil, dominada, que precisa de proteção), sem considerar as

especificidades de cada sociedade e cada grupo de mulheres.

Considerando a colonialidade do poder e a colonialidade de gênero, a autora Maria

Lugones propõe em vários de seus textos a construção de um feminismo de resistência à

dominação, um feminismo epistemológico que seja construído por mulheres que vivem

no entre-lugar e que sofrem diversas opressões conectadas, que interseccione as

múltiplas opressões, de raça, classe e gênero, que represente essas mulheres e que seja

um contraponto de resistência múltipla a opressões múltiplas. A Lugones diz que a

despatriarcalização só é possível se houver a descolonização do saber e do ser, a partir

de um feminismo decolonial. Lugones (2012: 1)

Procurando as maneiras de se construir uma teoria feminista não-eurocentrada e não-

dominante, a autora formulou alguns conceitos que, após seu ingresso no grupo

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modernidade/colonialidade em 2006 passam a integrar direta ou indiretamente seus

escritos em direção a uma teoria feminista decolonial e a um feminismo decolonial

ativo.

Um desses conceitos é o ―world-travelling‖ que significa viajar-entre-mundos, ou seja,

sair do mundo ao qual estamos acostumados e no qual estamos incluídos na paisagem

para um mundo onde somos vistos como ‗outsiders‘ e somos considerados diferentes do

mainstream. É um conceito formulado pela autora Maria Lugones em 1987. Em seu

texto, ela foca nas mulheres de cor residentes nos Estados Unidos, que devido à sua

diferença, estão constantemente viajando-entre-mundos. Segundo ela, ―podemos

―viajar‖ entre mundos e podemos habitar mais de um mundo ao mesmo tempo‖.

Lugones (1987: 11: tradução nossa) O ―viajar-entre-mundos‖ é importante pois é só por

meio disso que é possível se identificar com o diferente, e porque ―viajando para o

―mundo‖ dos outros nós podemos entender o que é ser eles, e o que é ser nós mesmos

aos olhos deles.‖―Conhecer os ―mundos‖ das outras mulheres é parte de conhecê-las e

conhecê-las é parte de amá-las‖. Lugones(1987: 17: tradução nossa)

―Através da viagem para os mundos das outras pessoas, descobrimos que existem

mundos nos quais essas pessoas que são vítimas de percepção arrogantes são sujeitos,

seres viventes, resistentes, construtores de visões, mesmo que na construção dominante

eles sejam animados apenas pelo percebedor arrogante e sejam classificáveis.‖ Lugones

(1987: 17: tradução nossa)

O ―viajar-entre-mundos‖ é um fato constante na vida das pessoas que residem na

fronteira colonial, ou na diferença colonial; essas pessoas viajam constantemente entre o

lugar onde são inteiras e completas, e o lugar onde a dominação caracteriza-as como

sendo outras, entre o lado claro e o lado obscuro da colonialidade do poder.

Outro conceito formulado pela autora é o de ―impurity‖, que vem mais no sentido de

transculturalidade. Segundo ela, há uma noção de dualidade pura, em que quem vive na

fronteira da diferença colonial possui duas personalidades íntegras, imutáveis e que não

podem ser transformadas uma pela outra. Essa noção de dualidade esconde a dominação

cultural. A noção de uma cultura intrínseca no mexicano é um estereótipo, e essa cultura

é vista pelo americano como parada no tempo, e em processo de desintegração, de

morte.

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Lugones diz que é necessária uma solução que contemple o problema da intersecção de

opressões, é preciso ver as opressões de diversas categorias como inter-relacionadas.

Lugones(1994: 473) A intersecção das categorias de opressão é uma ideia que

permanece com a autora até no mais recente de seus textos e que é uma das chaves para

o feminismo decolonial.

No resumo do texto ―Toward a decolonial feminism‖, a autorainsereumafrasequediz:

―the colonial imposition of gender cuts across questions of ecology, economics,

government, relations with the spirit workd, and knowledge, as well as across everyday

practices that either habituate us to take care of the world or to destroy it.‖ Lugones

(2010: 1) Ou seja, a colonialidade de gênero passa pela diferença colonial de gênero,

mas também se liga a outras questões que devem ser abordadas pelo feminismo

decolonial.

The global, capitalist, colonial, modern system of power that AnibalQuijano

characterizes as beginning in the sixteenth century in the Americas and enduring until

today met not a world to be formed, a world of empty minds and evolving animals

(Quijano CAOI; 1995).Rather, it encountered complex cultural, political, economic, and

religious beings: selves in complex relations to the cosmos, to other selves, to

generation, to the earth, to living beings, to the inorganic, in production; selves whose

erotic, aesthetic, and linguistic expressivity, whose knowledges, senses of space,

longings, practices, institutions, and forms of government were not to be simply

replaced but met, understood, and entered into in tense, violent, risky crossings and

dialogues and negotiations that never happened.

Instead, the process of colonization invented the colonized and attempted a full

reduction of them to less than human primitives, satanically possessed, infantile,

aggressively sexual, and in need of transformation. The process I want to follow is the

oppressing <>resisting process at the fractured locus of the colonial difference. Lugones

(2010: 747-748)

So, indeed, the transcending can only be done from the perspective of subalternity, but

toward a newness of be-ing. [...] The colonial differences, around the planet, are the

house where border epistemology dwells. (37) Lugones (2010: 753)

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Assim, a autora propõe que, a partir do reconhecimento da diferença colonial e da

percepção de que há uma colonialidade de gênero é possível uma emancipação

feminista de mulheres de cor. É preciso pensar a partir da fronteira colonial para

construir o feminismo decolonial. Segundo ela, a resistência à colonialidade de gênero é

feita cotidianamente, a partir de um entendimento coletivo, compartilhado e comunal do

mundo e do viver no mundo. Para ela, ―a passagem das práticas vividas, valores,

crenças, ontologias, espaço-tempos e cosmologias de boca em boca e de mão em mão

constitui o ser. A produção do dia-a-dia em que o ser existe constrói o próprio ser ao

prover modos de vestir, de se alimentar, economias e ecologias, gestos, ritmos, habitats,

e sensações de espaço e tempo.‖ Essas relações devem representar uma comunidade e o

compartilhamento de sensações e vivências, seres relacionados ao invés de dicotomias

hierárquicas.

Finalmente, a colonialidade do poder é uma estrutura de dominação do sistema-mundo

moderno/colonial e é um dos principais conceitos trabalhados pelo grupo

Modernidade/Colonialidade. A partir da intersecção entre teoria de resistência feminista

de mulheres de cor e estudos de colonialidade, a autora Maria Lugones formulou o

conceito de colonialidade de gênero e agora busca construir uma epistemia feminista

decolonial. Pensar apenas na colonialidade do poder como central nas lutas e filosofias

de resistência é ocultar e ignorar necessidades específicas de mulheres que tem seus

próprios anseios e que necessitam de maior atenção devido à sua diferença de gênero.

Ainda que a autora Maria Lugones tenda a dar mais exemplos da colonialidade nos

Estados Unidos, seu pensamento vêm de uma mulher Latina para mulheres de cor que

sofrem opressões da colonialidade do poder e de gênero, e pode ser realocado para os

espaços latino-americanos. Além disso, refletir sobre o feminismo branco e a

colonialidade de gênero são exercícios importantes para esse tempo que tem a

subjetividade permeada pela colonialidade do poder. A colonialidade de gênero se

manifesta concretamente com frequência, principalmente nas vidas das mulheres de cor

que vivem nas fronteiras, nos entre-lugares, nos lugares da diferença colonial. Tendo em

vista também o argumento da autora Maria Lugones de que a despatriarcalização,

principal objetivo dos feminismos brancos, só é possível a partir do rompimento com a

universalidade Lugones (2012: 1), cria-se uma nova demanda e um novo horizonte

feminista, com características, necessidades e fontes de resistência que saem do eixo da

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modernidade branca, eurocêntrica, universalista e racista para um eixo comunal, não-

hierárquico e mestiço.

3. PATRIARCADO E COLONIALISMO: SOBRE O DISCURSO E A

PRÁTICA DE SILVIA RIVERA CUSICANQUI

Silvia Rivera Cusicanqui é uma importante teórica pós-colonial – ou dos estudos

subalternos – é uma historiadora e socióloga aymara/boliviana que busca desverticalizar

o conhecimento através da sociologia da imagem, concedendo espaço a todas as formas

de produção de conhecimento e não somente pela palavra escrita.A sociologia da

imagem se configura como um método pedagógico de percepção e aprendizado que

busca ligar novamente todos os sentidos humanos e fazer com que estes trabalhem

conjuntamente na formação e concepção do conhecimento. A proposta é que se dê

maior atenção a todas as formas de produzir conhecimento, seja através do teatro, da

música, das pinturas, dos desenhos, etc, deixando de lado o protagonismo isolado da

forma textual de produção intelectual.

Cusicanquifaz parte dos grupos de ativismo indigenista Katarista e dos

cultivadores de coca. Através de seu ativismo e articulações e da união com outros

intelectuais indígenas e mestiços criou a Oficina de História Oral Andina (1983). Tal

grupo lidava com questões de identidade, historicidade e movimentos sociais indígenas

por meio da oralidade. A mesma é autora de vários livros, como ―Ch‘ixinakaxutxiwa:

Una reflexión sobre prácticas y discursos descolonizadores‖, ―Oprimidos pero no

vencidos‖, ―Violencias [Re] encubiertas em Bolivia‖, entre outros. É professora da

Universidad Mayor de San Andrés de La Paz, tendo sido professora convida de

diferentes universidades em outros países.

Segundo a autora, o colonialismo teve como uma de suas ações fundamentais a

homogeneização de sociedades/povos tradicionais. Tais ações resultavam em diversas

medidas que visavam diminuir a força cultural dessas sociedades de forma que as

mesmas ficassem mais suscetíveis e receptivas ao projeto civilizatório das grandes

metrópoles europeias. Tal projeto logrou vários sucessos resultando em expansões –

diversas etnias foram agrupadas em uma só categoria, a de índio - e enraizamentos, o

sistema colonial afetou todos o(a)s componentes dessas sociedades. Do seu

enraizamento surgiu o colonialismo interno, a reprodução dos modos de colonização,

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seja através da subjugação, da dominação e da escravidão ou por meio do sistema

patriarcal imposto às mulheres dessas sociedades tradicionais.

O sistema de gênero dessas sociedades esta/foi vinculado ao sistema de gênero

colonial, ou seja, seu alicerce são as relações culturais de gênero advindas do processo

civilizatório, no qual há uma hierarquia entres homens e mulheres – não cabendo espaço

aqui para debates e discussões acerca do terceiro gênero e diversidade sexual. Essa

hierarquia se estendia/estende para as categorias raça, etnia e classe. A situação das

mulheres colonizadas se distingue pelo fato de terem sofrido e sofrerem com a

colonização das grandes metrópoles e também com o colonialismo interno. Ou seja, a

essas mulheres foram e são condicionadas a um padrão de comportamento e de vida

distante de sua cultura, sendo duplamente exploradas: como mulheres e como

colonizadas.

Existem indícios que nas sociedades andinas pré-hispânicas as relações de

gênero eram baseadas em estruturas organizacionais que resultavam em relações de de

gênero medianamente igualitárias – como uma coexistência complementar e não

antagônica (CUSICANQUI; 2010). Existiam assimetrias nas relações, porém, essas não

se constituíam de forma tão estanque como no sistema colonial de gênero que pontua

especificadamente na sociedade o lugar do homem – que vai se identificando como o

espaço público – e da mulher – realocada no âmbito doméstico/ privado.Como

menciona a autora, ―Los conflictos entre los géneros —lo mismo que los conflictos

interétnicos— fueron parte estructural de la dinámica organizativa y del poder político y

cultural indígena‖ (CUNSICANQUI, 2010: p. 189).

Portanto, além da dominação expressa na relação europeu/civilizado X

incivilizado do novo mundo, somam-se relações hierárquicas entre: branco X indío,

brancoXindiA; Indio x IndiA. Nos âmbitos da economia, política, tecnologia e

sociedade, na criação das categorias raça, gênero e classe, a mulher subalterna/índia é a

mais subjugada.

Com a chagada dos colonizadores houve uma mudança na forma de se

relacionar das sociedades ―tradicionais‖, das diferentes etnias e do gênero. As

diferenças do outro ficaram mais evidentes, resultando em um largo distanciamento das

etnias, isso gerou um mecanismo de exclusão, no qual se aponta o outro como um ser

não [sociável] social – um outro inferior. Nesse momento acontece o encontro do

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colonialismo com o patriarcalismo que juntos passam a ser um meio de dupla exclusão,

pois o gênero passa a ser tido como uma variável maniqueísta de diferenciação, no qual

o sexo feminino é visto como o [diferente] outro, em uma visão que o torna inferior.

As mulheres dessas sociedades tornam-se objetos perante o novo sistema de

gênero imposto pelo colonialismo, as mesmas foram cedidas aos colonizadores como

presentes em gesto de benevolência e de boas vindas aos chegados de terras distantes.

Esse novo papel social imposto às mulheres gerou danos reais e profundos para as

mesmas e para a sociedade como um todo, uma vez que houve uma reestruturação nos

modos de convivência, de relacionamento e de organização dessas sociedades, tanto em

seu círculo como para com as outras sociedades. Dessa prática de oferecimento das

mulheres aos colonizadores, surgiram os mestiços que sofriam duplamente com a

reformulação da organização societal, pois não eram nem indígenas nem europeus, se

constituíram em sua essência como diferentes –o meio termo entre duas realidades

completamente separadas.

Essa exclusão que se aplica[aplicava] a determinados seres humanos foi ainda

mais intensa no que se refere às mulheres e principalmente às mestiças. As mulheres

dessas sociedades que a partir do sistema colonial de gênero já haviam sido colocadas

como inferiores, passaram a ter mais um elemento que as diferenciassem – de forma

negativa - dos demais componentes da sociedade. As mulheres mestiças e os mestiços

passaram a ocupar os estratos mais baixos das sociedades, mediante rejeição da

sociedade étnica e da sociedade, gerando assim novas formas de sobreviver à realidade

que os cercam. Com a exclusão e separação de certo extrato da sociedade, o sistema

colonial de dominação vai se enraizando e se fortalecendo, criando com isso

ramificações da subjugação:

[...] hay otras caras del proceso: la violencia conyugal crece en espiral, al

intensificarse las presiones aculturadoras sobre las familias, donde la

autoridad y el modelo pasan a ser regidos por la imagen masculina

aculturada, que reniega de lo suyo a través del desprecio por su propia

compañera o madre.Se produce así un doble proceso de colonización, cultural

y de género, que ha de marcar a hierro a todas las generaciones del ―mestizaje

colonial andino‖ (CUSICANQUI; 2010: p 194).

O processo civilizatório empreendido pelas sociedades ―evoluídas‖ da Europa na

América Latina se desenvolveu no sentido de fragilizar e apagar os povos tradicionais.

Com isso os costumes e modo de organização societal europeu/ocidental foram sendo

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infiltrados nas sociedades tradicionais de modo a mostrar a essas como o ―outro‖ mundo

era melhor no viver, no vestir, no falar, na economia e assim por diante. Para essa

apresentação e ensinamento do mundo melhor foi necessária à imposição, uma vez que

– na visão eurocêntrica/norte - os não evoluídos não tinham ciência do que era bom e

correto.

O capitalismo – também patriarcal - foi outra ferramenta de dominação e

subjugação utilizada pelo ocidente/norte que afetou principalmente mulheres, indígenas,

afrodescendentes e a classes pobres desses países.

Toda esta problemática, que implica un dominio antropocéntrico de la

sociedad humana sobre el planeta, conecta las demandas democráticas

femeninas con las corrientes más renovadoras del pensamiento y la

praxis postcolonial contemporánea. (CUSICANQUI; 2010: p 1897)

A luta e o movimento feminista das mulheres colonizadas/subalternas vão além

da bandeira de reorganização da divisão social do trabalho, levantada pelas correntes

feministas tradicionais, a principal problemática das mulheres colonizadas se constitui

nas questões de distribuição do exercício de poder nos mais variados espaços da

sociedade/Estado (CUSICANQUI; 2010). A luta das feministas colonizadas/subalternas

combate o projeto homogeneizador ocidental/norte, as mesmas buscam acabar com a

dominação e subjugação cultural que impõem um sistema de organização social

patriarcal que parece cada vez mais inferiorizar as mulheres, bem como as diferenças

étnicase de classe. Essas mulheres lutam por suas identidades, sejam elas culturais,

étnicas ou corporais, as mesmas buscam o seu espaço na sociedade como um todo – não

apenas no espaço de trabalho – seja no âmbito privado e também no público. As

subalternas lutam pelo direito de construir, desenvolver e transformar a sociedade onde

vivem, ensejam por um sistema de gênero que fomente cada vez mais a igualdade.

O movimento feminista boliviano gerou várias contribuições para as novas

gerações de feministas, uma delas foi o:

[...] programa que intentó descolonizar y resignificar el lenguaje, la palabra,

para que ésta deje de ser el talismán del conquistador y se convierta en medio

de comunicación y en espacio de ejercicio de la libertad. (CUSICANQUI;

2010: p 199)

As mulheres colonizadas/subalternas buscam resgatar ou gerar uma

relaçãoharmoniosa – não condicionada - entre mulheres e homens, uma relação

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humanista/humanizada que seja baseada na coletividade e no respeito às diferenças.

Essa corrente feminista contempla as diferentes raças, etnias, culturas, maneiras de

coexistir como a essência da humanidade sem exceções, uma vez que são dessas

diferenças que a mesma se constitui, consolida e desenvolve. Os ensinamentos dessa

corrente com suas especificidades podem contribuir para fomentar o projeto que busca

desenvolver uma pluralidade de identidades femininas e ao mesmo tempo que amplia

espaços de convivência entre o(a)s diferentes sejam ele(a)s mulheres, homens, indígenas

ou classes subalternas (CUSICANQUI; 2010: p 200).

Sobre a resistência.

Feminismo latino-americano (raça)

A situação das mulheres latino-americanas se difere da história das anglo-saxãs,

por exemplo, pois a sua região é marcada pela subordinação e exploração ―da época

colonial‖ (CAROSIO, 2012). Ou seja, o povo latino-americano como um todo sofreu

com as mazelas coloniais – e ainda sofre com suas ―heranças‖, ou seja, as marcas

deixadas pela dominação, subjugação e opressão, ainda configuram sua realidade.

Contudo a América Latina vai se desenvolvendo na medida em que sua população

começa a lutar contra a opressão e exploração advindas de seus ―eternos protetores‖, os

países desenvolvidos, que acima de tudo busca[va]m propagar a evolução e o

desenvolvimento por meio do projeto civilizatório. Os avanços chegaram,

independências e revoluções aconteceram, mudanças e transformações giram em torno

dos países latino-americanos, entretanto a pobreza, a fome, o analfabetismo – a injustiça

e desigualdades sociais – ainda caracterizam essa parcela da humanidade.

No cenário de lutas, debates e projetos para [re]construir uma América Latina

auto-suficiente, democrática e para [igual] todos os latino-americanos as questões e

temas feministas que aqui se constituem possuem um caráter diferente, carregam

especificidades em lidar com as questões de gênero. Nesse contexto de lutas e levantes

contra os opressores, através de uma perspectiva crítica o feminismo denúncia as várias

forma de subjugação e opressão sofridas pelas mulheres latino-americanas. Os homens

latino-americanos – também foram/são subjugados, explorados e excluídos – também

carregam em sua essência a cultural patriarcal, na qual os tido(a)s como [diferentes]

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outro(a) são inferiorizado(a)s, com isso a mulher é colocada como o(a) outro(a) mais

destoante nem mesmo em questão de direitos pode ser equipada, uma vez que os

homens são os condutores da humanidade – e por isso ―devem‖ ter mais direitos e

―maior‖ liberdade – naturalizando assim as forma de opressão e exclusão das mulheres.

Deste modo evidencia-se a luta das latino-americanas contra barreiras e

subordinações advindas do colonialismo, bem como combatem a exclusão – seja

baseada no gênero ou em outras formas de discriminação de classes subalternas – e

formas de [re]colonização [re]produzidas por sua própria sociedade. As correntes

feministas destacam a importância e implementação de políticas para defesa e garantia

dos direitos das mulheres, assim como para as classes [invisíveis] subalternas da

sociedade. Tais políticas e ações em prol das mulheres devem ser desenvolvidas

pensando nas especificidades das mulheres – indígenas, negras/brancas, pobres, etc. –

para de busca e alcançar resultados completos e satisfatórios.

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