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Perspectivas feministas descoloniais: sobre um processo de auto- conhecimento e re-existência na universidade Elen Cristina Ramos dos Santos 1 Universidade de Brasília- UnB Email: [email protected] Resumo: Este escrito tem como finalidade dialogar com e a partir de algumas pensadoras feministas “terceiro-mundistas” - que em suas obras e projetos políticos se centram na crítica e resistência ao cânone acadêmico hétero-patriarcal e racista. Através de perspectivas feministas, de gênero, raça e classe nos pensamentos das autoras, buscarei refletir sobre os efeitos da colonialidade no meio acadêmico e na minha própria subjetividade, atentando para a forma como fui e estou sendo transformada quando insurgentes encontros com práticas e discursos descoloniais tematizados por mulheres negras e indígenas irradiam em diversos lugares de minha (re)existência - na academia, na vida íntima, na relação com minha mãe e minhas mais velhas. Palavras-chave: De-colonialidade; Feminismos terceiro-mundistas, resistências A nossa escrevivência não pode ser lida como histórias para ninar os da casa grande e sim para incomodá-los nos seus sonos injustos” Conceição Evaristo “Para crear um texto tu tienes que empoderar tu própria voz. Tu tienes que tener claro que hay algo que tu conoces mejor que nadie, que es tu própria vida. Y que tu própria vida es um condensado de experiências que se há transmitido a través de una genealogia profunda” Silvia Rivera Cusicanqui Introdução 1 Licencianda em Ciências Sociais na Universidade de Brasília. Estudante de mobilidade acadêmica na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA).

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Perspectivas feministas descoloniais: sobre um processo de auto-

conhecimento e re-existência na universidade

Elen Cristina Ramos dos Santos1

Universidade de Brasília- UnB

Email: [email protected]

Resumo: Este escrito tem como finalidade dialogar com e a partir de algumas pensadoras

feministas “terceiro-mundistas” - que em suas obras e projetos políticos se centram na

crítica e resistência ao cânone acadêmico hétero-patriarcal e racista. Através de

perspectivas feministas, de gênero, raça e classe nos pensamentos das autoras, buscarei

refletir sobre os efeitos da colonialidade no meio acadêmico e na minha própria

subjetividade, atentando para a forma como fui e estou sendo transformada quando

insurgentes encontros com práticas e discursos descoloniais tematizados por mulheres

negras e indígenas irradiam em diversos lugares de minha (re)existência - na academia,

na vida íntima, na relação com minha mãe e minhas mais velhas.

Palavras-chave: De-colonialidade; Feminismos terceiro-mundistas, resistências

“A nossa escrevivência não pode ser lida como histórias para ninar os

da casa grande e sim para incomodá-los nos seus sonos injustos” Conceição Evaristo

“Para crear um texto tu tienes que empoderar tu própria voz. Tu tienes

que tener claro que hay algo que tu conoces mejor que nadie, que es tu própria vida. Y que tu própria vida es um condensado de

experiências que se há transmitido a través de una genealogia profunda”

Silvia Rivera Cusicanqui

Introdução

1 Licencianda em Ciências Sociais na Universidade de Brasília. Estudante de mobilidade acadêmica na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA).

A proposta que se segue neste escrito é de diálogo com perspectivas, teorias e

movimentações propostas por mulheres - feministas negras, lésbicas, indígenas, indianas

- que centralizam em suas expressões intelectuais e políticas a subversão das fronteiras

colonialistas, misóginas, sexistas e racistas sob as quais subsiste o pensamento cientifico

da academia.

Para emitir um argumento próprio sobre empenhos que vêm de ancestralidades de

mulheres fortes e frágeis no enfrentamento das violências tantas, creio ser válido que eu

me coloque na construção deste texto como um corpo-mulher inserido e atuante no

universo acadêmico. Um corpo e mente herdeiro das vozes e discursos de mulheres

inscritas nos meandros de uma história que lhes impuseram negações e invizibilizações.

Acredito na escrita acadêmica como um marco de resistência para mulheres negras e

indígenas principalmente. Me localizo como um ser crítico às bases da estrutura

positivista e patriarcal que regem os espaços universitários e intelectuais no Brasil e no

mundo, através de minha escrevivência2 é uma possibilidade íntima e ao mesmo tempo

coletiva de resistência às estruturas “invisíveis”, que nunca foram invisíveis para nós

mulheres.

Das vozes e expressões intelectuais de escritoras negras (minha escola) e indígenas

“terceiro-mundistas” das diversas áreas de conhecimento, ecoa a certeza de que nossas

vidas interiores se coadunam ao nosso trabalho enquanto, teóricas, poetas, mães,

lésbicas, negras, indígenas... Às nossas mais diversificadas e complexificadas formas de

ser e estar. E é com base nesse fluxo de movimentos e ideias que almejo e busco praticar,

resistentemente, uma produção acadêmica emanada de nossas experiências mais

agudas, mais concentradas em nossas vivências no âmago de nossa cultura, na nossa

localização no mundo.

Como comprovado pela escritora feminista bell hooks3 o posicionamento de mulheres

negras intelectuais, no que tange a produção de teoria e afirmação enquanto intelectuais,

tem sido historicamente negada e vilipendiada, uma vez que sobrevive no imaginário

social a crença de que mulheres negras são “só corpo sem mente” (hooks, 1995).

Sexualizadas, objetificadas e animalizadas dentro e fora da academia, a resistência de

mulheres negras e indígenas, transcorre no tempo e espaço em suas práticas insurgentes

à dominação/colonização de corpos, mentes e corações.

Mais que sobrevivências garantidas por alheamentos e auto imposições de discursos

eurocentrados que costumeiramente presenciamos na universidade, nós, presenças

“estranhas” em espaços dominados pela hegemonia branca, demandamos vidas

plenificadas, pensamentos autônomos, germinados de nossas intimidades e vivências em

2 Palavra cunhada por Conceição Evaristo (2007), escritora brasileira, para designar a escrita como ação que se expressa através de suas vivências diaspóricas enquanto mulher negra. 3 A autora bell hooks (assina todo o seu nome em letras minúsculas, tendo optado por essa grafia porque, segundo ela, o foco das pesquisas deve-se concentrar na escrita e não no nome de quem as produz.

comunidade. É neste sentido que o pensamento feminista negro, “terceiro-mundista”

“marginal” “subalterno”, entre outras tantas classificações, contempla e faz florescer

outras visões, representações e reivindicações sobre a realidade e as relações sociais de

(nós) mulheres. Quando proponho “outras” no lugar de “novas” penso em Jurema

Werneck (2009) quando nos convida a desconfiar das classificações que historicamente

tem nos colocado em posição de não existência. Nossas práticas, realizações e produções

que não são contempladas, por exemplo, por um feminismo branco-ocidental restrito

muitas vezes a experiência unitária medidora das “novas” experiências (Talpady, 2008).

“Outras” aqui no sentido amplo e plural do termo contrárias a noção de outredade

iniciada pelo colonizador, quando se posiciona hierarquicamente como padrão de

universalidade . Me convido então reflexão conjunta com a autora:

“O que apresentarei aqui não são ideias minhas. Falo do que vi,

aprendi, li, ouvi, a partir de minha inserção em comunidades

heterogêneas, de diferentes gerações, sexualidades, racialidades,

escolaridades, possibilidades econômicas, culturais, políticas e

muito mais. Penso que a originalidade que possa me ser conferida

refere-se à tentativa de juntar aqui muitas fontes, diferentes

vozes. Não vou nomear cada uma delas, não porque queira

ocultá-las, mas para destacar a riqueza e a amplitude da

circulação de ideias que não sabemos onde começam, que se

entrelaçam, que se propagam especialmente entre mulheres,

criando comunidades de saber cujas fronteiras são imprecisas”. (

Werneck, 2009, p. 151)

Imprecisar e romper as fronteiras da colonialidade têm sido o rastro da presença-agência

das mulheres feministas do/no terceiro mundo, do sul global, ou qualquer classificação

que valha dado contexto do qual emerge.

Nessa perspectiva, a análise realizada ao longo do texto tem a finalidade de dialogar

pensadoras negras, indígenas, do “terceiro mundo” - que em suas obras se direcionam

na crítica ao cânone acadêmico masculino e ocidentalizado, incluindo críticas também ao

próprio pensamento feminista (ocidental) e sua pretensão de universalidade.

Considero necessária uma reflexão ampliada que abarque as movimentações e

pensamentos concebidos por mulheres dentro de uma perspectiva decolonial e também

para que o sentido da abertura e ao diálogo seja uma constante para nós que intentamos

nos descolonizar. No entanto, é necessário também me perceber limitada dentro destes

universos. Uma vez que avalio lugar de vivencia e de interesse importantes, minha fala-

escrita se conduzirá pelos ventos que sopraram sussurros contundentes aos ouvidos de

minha ancestralidade feminina negra, resgatando-me a partir de um processo de

construção racial entremeado por interrogações constantes por ser “negra de pele clara”.

Este escrito trata de minha imersão na minha autoafirmação como mulher negra. Para

me exercer no tema, apuro o sentidos aos sopros de Neusa Santos, diante das tentativas

de essencialização da diversidade da população negra em um país de passado

escravagista e colonial como o Brasil: “Uma das formas de exercer autonomia é possuir

um discurso de si mesmo. Discurso que se faz muito mais significativo quanto mais

fundamentado no conhecimento concreto da realidade” (Santos, 1990). De onde quer

que venham tentativas de restringir e negar minha existência, resistirei.

“Minhas amigas, sempre haverá alguém tentando usar uma parte

de vocês, e ao mesmo tempo exigindo que você esqueça ou

destrua todos os outros eus. E eu digo, isso é morte. Morte a você

enquanto mulher, morte a você enquanto poeta, morte a você

enquanto ser humano. Quando o desejo por definição, própria ou

outra, vem de um desejo por limitação e não de um desejo por

expansão, nenhuma face verdadeira pode emergir” (Lorde, ano)

Situo também meu processo de (re)conexão com essas produções intelectuais e

movimentos, que durante toda a vida e formação acadêmica- escolar e universitária-

foram invisibilizadas. Quanto mais adentro nas historias de nossas resistências e descubro

seus apagamentos, sinto-os como se sempre tivessem me acompanhado de alguma

forma sutil e encoberta que agora enquanto meu processo de tomada da consciência

caminha, vai ganhando, finalmente, formas e pulsões. A produção deste ensaio é uma

parte do caminho.

Aqui me ressoa Du Bois ( 2012) , quando elabora sua teoria da “dupla consciência”:

“reconheceu em si mesmo uma tênue revelação de seu poder, da sua missão. Começou

a ter um vago sentimento de que, para obter o seu lugar no mundo teria de ser ele mesmo

e não um outro”. Me re-conheço cada vez que leio essas mulheres e entro em contato

com espaços comunitários de saber-es.

Dito isso, dialogarei em grande parte com autoras de pensamentos feministas. Na

Dialogarei em grande parte com autoras de pensamentos feministas. Na primeira parte

tentarei construir um entendimento com alguns autores do grupo da opção da decolonial

que contribuem em suas teorias para a noção de um fazer-sentir-ser como uma

perspectiva que se apresenta como opção outra e aberta em face da pretensão de único

e universal das formulações impregnadas historicamente pela ciência ocidental. Adjunto

a esse diálogo me dedicadei em mobilizar perspectivas e práticas de pensadoras negras,

indígenas e “terceiro-mundistas” com a finalidade de entender junto com elas os

feminismos e movimentos de mulheres dentro e fora da academia como formas de ser,

estar e fazer descolonizadoras no mundo.

Por fim, realizarei o resgate de minha trajetória acadêmica confluída de minha relação

com minha mãe, quando encontrei e fui encontrada pelas coletividades e teorias negras-

diaspóricas indígenas com Sueli Carneiro Jurema Werneck, Ochy Curiel, Rigoberta

Menchu, bell hooks, e a indiana Chandra Talpadhy.

Perspectivas decoloniais

Para mim é válido iniciar pela tentativa de entender o crescente movimento de estudos

da de-colonialidade/modernidade na academia, principalmente nas ciências sociais, uma

vez que a reflexão se faz desde dentro de uma experiência universitária. Tais estudos, bem

como suas críticas, são importantes aqui uma vez abordam as estruturas de poder

(Quijano), de saber (Lander) e de ser (Mgnolo) encerrados no imperialismo moderno

europeu.

Segundo as contribuições de Lander (2005) é principalmente por meio das ciências sociais

organizadas desde a perspectiva eurocentrada de neutralidade e universalidade que a

colonialidade do saber se expressa no mundo. A “naturalização da sociedade liberal como

a forma mais avançada e normal de existência humana não é uma construção recente

que possa ser atribuída ao pensamento neoliberal, (...) trata-se de uma idéia com uma

longa história no pensamento social ocidental dos últimos séculos” (Lander, 2005, p. 8).

Para Mignolo (2017) uma forma de contradizer essa pretensão de universalidade e

neutralidade do pensamento ocidental é a desobediência epistemológica. Explica que

experiência da colonialidade é elemento chave para entender o sentir-pensar-fazer

fronteiriço, base fundante da opção decolonial. Nesse sentido a epistemologia fronteiriça

se caracteriza pela “percepção bio-gráfica” do corpo-mente-alma de diaspóricos. São

vivências e histórias de pessoas e comunidades que tiveram na experiência da

colonialidade a supressão de suas formas de ser, sentir e estar no mundo. (Mgnolo, 2017).

Provas vivenciais de tais supressões nos meandros do pensamento científico-acadêmico

são as movimentações e teorias formuladas por mulheres racializadas. Historicamente os

“feminismos de cor”, como inculcado por Ochy Curiel (2007) são deslegitimados e

invisibilizados ante o discurso cientificista - de caráter andocêntrico, sexista e racista.

Em crítica ao cânone acadêmico da de-colonialidade, Cusicanqui (2006) tenciona sobre a

face andocêntrica de tal corrente, uma vez que protagonizada por homens brancos,

professores universitários majoritariamente.

Curiel localiza as lutas por direitos civis em África e Estados Unidos no contexto do

apartheid e o que ela chama de “feminismos feitos por mulheres racializadas”

afrodescendentes e indígenas atuantes já desde a década de 1970 que rompem com a

lógica colonizada e racista do pensamento acadêmico e que são marginalizadas até

mesmo nos estudos da decolonialidade.

“Sin utilizar el concepto de “colonialidad” las feministas racializadas, afrodescendentes y indígenas han profundizado desde los años 70 em el entramado de poder patriarcal y capitalista, considerando la imbricación de diversos sistemas de

dominación (racismo, sexismo, heteronormatividad, clasismo) desde donde han defendido sua proyectos políticos, todo hecho a partir de uma crítica pós-colonial” (Curiel, 2007, p. 94)

A autora critica que os discursos vigentes sobre “subalternidade” na contemporaneidade

tem sido feitas desde posições elitistas e andocêntricas. Curiel traça então os movimentos

empenhados por movimentos e mulheres feministas de cor nos Estados Unidos, America

Latina e Carybe para propor uma desorganização do cunho andocêntrico e racista

predominante na academia, como superação da pretenção de universalidade das ciencias

ocidentalizadas:

"Debido al caracter universalista y al sesgo racista que le ha transpasado. Son ellas (nosotras) las que han respondido al paradigma de modernidad universal: hombre-blanco-hetero; pero son tambien las que desde su subalternidad, desde su experiencia situada han impulsionado un nuevo discurso y una practica política crítica y transfomadora". (Curiel, 2007, p. 94)

Fecho esse tópico com as considerações e críticas de Ochy Curiel pela poderosa

contribuição que esta autora faz aos estudos e movimentos descoloniais. Ochy Curriel

abre os caminhos para a imergência nas autoras que me contemplam e seguem no

próximo tópico.

Perspectivas feministas terceiro-mundistas 4

Aqui contarei sobre a relação íntima que estabeleci com as autoras da bibliografia, a forma

como as descobri e me descubro através delas, de seus questionamentos e

posicionamentos às estruturas de poder patriarcais, sexistas, racistas da universidade e

intelectualidade acadêmica. São muitas, não uma minoria. Queria conseguir contemplá-

las sensivelmente neste texto, mas pelo espaço e tempo que estou me empenhando

neste ensaio se torna irresponsável que as cite sem a necessária imersão. No entanto,

tudo que escrevo aqui, em cada frase, que acredito que eu não teria tecido

4 Utilizo aqui o termo “terceiro-mundistas” ou “terceiro-mundo” no mesmo sentido apresentado por Mohanthy (2008), assumindo o teor problemático do termo uma vez que “términos como tercer y primer mundo son muy problemáticos, tanto al sugerir uma similitude sobresimplificada entre las nociones así denominadas, como al reforzar implicitamente las jerarquias económicas, culturales e ideológicas”. Utilizarei como terminologia de afirmação para melhor abranger a reflexão que aqui se faz. O argentino Mignolo (2014) concebe o terceiro mundo, como espaço do pensamento de fronteira, como forma de sobverter a posição projetada de universalidade do pensamento do primeiro mundo.

solitariamente, há uma contribuição diferente vindas desses corpos-mulheres. É um

trajeto íntimo, trilhado sob acolhimentos e curas coletivas.

A teoria maquinada desde a experiência da modernidade-colonialidade, que impregna a

estrutura de qualquer espaço de aprendizagem-ensino e pesquisa, nos incutiram a

sensação assoladora de inferioridade, de incapacidade, de feiura, de existência anormal

que nos acompanha desde a infância. É comum evocarmos das lembranças de nossas

experiências escolares o doloroso sentimento que a hierarquia do pensamento e dos

corpos nos provocou. No jogo de autoridade do conhecimento hegemônico enrocentrado

encenados pelas instituições e seus representantes, nossas vozes e desejos de crítica são

sufocados, nossas epistemologias relegadas aos “epistemicídio” 5de que Sueli Carneiro e

Boaventura de Souza Santos nos falaram (Carneiro, 2005).

Diante disso, sob outras percepções bell hooks (2003) me ensinou recentemente a

encontrar prazer na teoria. Encontrar transgressão no pensar, ler e produzir no espaço

universitário. Me recordo, e ainda sinto, a empolgante sensação de ler os textos de

pensadoras que contemplavam as mais profundas interrogações, receios, medos,

angústias. Foi/É um inicio de cura e potencialidades em um lugar que se acreditava

inferior e incapaz dentro de mim. Começa/va a ser possível uma produção emanada do

que realmente sou e que me constitui:

“Encontrei um lugar onde eu podia imaginar futuros possíveis, um

lugar onde a vida podia ser diferente. Essa experiência “vivida” de

pensamento crítico, de reflexão e análise se tornou um lugar onde

eu trabalhava para explicar a mágoa e fazê-la ir embora.

Fundamentalmente, essa experiência me ensinou que a teoria

pode ser um lugar de cura. (...) Quando nossa experiência vivida

da teorização está fundamentalmente ligada a processos de

autorrecuperação, de libertação coletiva, não existe brecha entre

a teoria e a prática. (hooks, 2003, pp. 85-86)

Anzaldúa (2000) convida também:

Joguem fora a abstração e o aprendizado acadêmico, as regras, o

mapa e o compasso. Sintam seu caminho sem anteparos. Para

alcançar mais pessoas, deve-se evocar as realidades pessoais e

sociais — não através da retórica, mas com sangue, pus e suor

(Anzaldúa, 2000, p. 235)

5 “O epistemicídio para além da anulação e desqualificação do conhecimento dos povos subjugados, um processo persistente da produção da indigência cultural: pela negação do acesso a educação, sobretudo de qualidade, pela produção de inferiorização intelectual; pelos diferentes mecanismos de deslegitimação do[a] negro[a] como portador e produtor de conhecimento, de rebaixamento da capacidade cognitiva pela carência material e/ou comprometimento da auto-estima pelos processos de discriminação correntes no processo educativo” (Carneiro, 2005, p. 97)

Não creio ser possível que descolonizemos o mundo se não começarmos por tratar de

nossas próprias dores. A dor ante relação às imposições racistas e colonizadoras que senti

durante a vida passaram a ser a essência que necessitava de transformação para construir

um novo discurso sobre mim mesma, sobre meus lugares e como eles me guiariam por

caminhos de justiça e cura. “Sempre que aquelas/es de nós que são membros de grupos

oprimidos se atrevem a interrogar criticamente nossas posições, as identidades e

lealdades que informam como vivemos nossas vidas iniciamos o processo de

descolonização” (hooks, 2017)

Negra, periférica, agora na graduação em ciências sociais em universidade federal... Ao

ingressar na universidade rapidamente me vi sedenta por espaços e leituras que

alimentassem a crítica e promovessem mudanças. E em uma busca inicial, primeiramente

tive contato com coletivos de um pensamento feminista de esquerda progressista, que

apesar de importantes contribuições reflexivas sobre a realidade, foi gerando rachaduras

e distanciamentos no relacionamento com a representação essencial do que hoje tenho

de feminismo: dona Cleuza, minha mãe. Mulher negra, migrante de terras da catinga

baiana para o território da “terra prometida” Brasília, trabalhadora doméstica e tudo o

que não posso expressar em classificações sobre sua presença no mundo.

Reconheço hoje que foi um distanciamento brusco, porque na maioria das vezes não era

a minha realidade que ali se buscava mudar. O feminismo universitário ainda carrega/va

as marcas de um paternalismo e a pretensão de universalidade de uma experiência muito

centradas na mulher branca ideal, cujas vivências de opressão são diferenciadas das de

mulheres negras. Mas evidentemente fui acolhida por professoras e coletividade

negras/os nesse espaço me abriram as portas para dialogar, debater, ler autorias

femininas negras. Posteriormente cursas disciplinas com propostas de ementas mais

abrangentes.

Cito aqui a indiana Chandra Talpade Mohanthy (2008) tencionando sobre o que ela chama

de “colonização discursiva” recorrente nas formulações teóricas do feminismo

hegemônico do ocidente (que senti nesse início de trajetória acadêmica) em relação as

mulheres do terceiro mundo. Aqui a autora aponta que há uma apropriação e codificação

da produção acadêmica e do conhecimento acerca das mulheres do terceiro mundo que

as tornam um “sujeito monolítico singular”, limitadas na relação com arquétipos de

“outras não–ocidentais” em face de uma categoria de “Mulher” de pretensa

universalidade. A crítica central do texto faz referência a hegemonia implícita no discurso

feminista do ocidente, no entanto a crítica “también se aplica a acadêmicas del tercer

mundo que escriben a cerca de sus próprias culturas utilizando las mismas estratégias

analíticas” (Mohanthy, 2008, p.113)

Nas críticas das brasileiras Sueli Carneiro (2003) Jurema Werneck (2009), Luiza Bairros

(1995) e Lelia Gonzalez (1984), descobri apontamentos sobre a forma como a ciência e

o pensamento social estereotipa e retira de sua complexidade a experiência de mulheres

negras e suas agências e resistências na relação com a sociedade heterossexista,

patriarcal e racista. “Enegrecer o feminismo” como propõe Sueli Carneiro:

“Em geral, a unidade na luta das mulheres em nossas sociedades

não depende apenas da nossa capacidade de superar as

desigualdades geradas pela histórica hegemonia masculina, mas

exige, também, a superação de ideologias complementares desse

sistema de opressão, como é o caso do racismo” O racismo

estabelece a inferioridade social dos segmentos negros da

população em geral e das mulheres negras em particular,

operando ademais como fator de divisão na luta das mulheres

pelos privilégios que se instituem para as mulheres brancas.

Nessa perspectiva, a luta das mulheres negras contra a opressão

de gênero e de raça vem desenhando novos contornos para a

ação política feminista e antirracista, enriquecendo tanto a

discussão da questão racial, como a questão de gênero na

sociedade brasileira” (Carneiro, 2003)

O feminismo negro e sua particularidade é a ponte que me reconectou com as formas de

ser e de estar no mundo de minha mãe com mais zelo e cuidado por suas vivências. Esse

retorno a casa quase que literalmente representativo dessa re-conexão, com afirmar um

lugar, as mulheres que me circundam, de entende-las como formadoras do mundo que

existo. Começo entender minha mãe, como elo íntimo e primeiro com nossa

ancestralidade feminina negra. Retorno desse lugar de despertencimento formulado pela

hegemonia branca para a minha matrifocalidade familiar para mirar junto a mãe, tias,

primas, irmãs da luta... potencialidades que mudaram e construiriam outras narrativas e

poesias.

“A partir daí, é possível viabilizar, no interior destas articulações

as diferentes possibilidades a que as mulheres negras recorreram

[e recorrem], os diferentes repertórios ou pressupostos de

(auto)identificação ou de identidade e organização política. Tais

possibilidades partem deste reconhecimento: estamos diante de

diferentes agentes históricas e políticas- as mulheres negras –

intensas como toda diversidade” (Werneck, 2009, p. 153)

Me lembro dos variados sentimentos e reconhecimentos que tive quando li a primeira

vez Rigoberta Menchú (ano) em “La madre tierra”. Com o respeito a sua história e

vivências como mulher indígena que são únicas e interiores dela, de seus lugares e seu

povo, peço licença para fazer aproximações com esse momento que tive de retorno a

casa, quando ela se refere às descobertas sobre sua mãe :

“Después yo empecé a descobrir que mi madre era mucho más

grande do que yo La conocí. Era no solo partera, comadrona,

curandera, sino al mismo tiempo era uma madre que poseía

muchos de lós valores de nuestros antepasados (...) Tenía razon

cuando ella decía que sus manos eran grandes e invisibles”

(Menchú, 1998, p. 114)

Me proponho aqui a revisitar constantemente os nossos- meus- processos e quem são

nossas antecessoras. A leveza e tranquilidade para assumir minha propria voz no

caminhar deste texto só é verdadeira porque fui acolhida por mulheres negras na teoria,

nos colos, nos círculos de debate e entre as minhas mais velhas e irmãs. Acredito no que

bell hooks nos ensina sobre a experiência da memória, de utilizar a dor e partir dela não

para alimentá-la, mas para a re-construção de nós mesmas, almejando outras formas de

viver.

“Esse ponto de vista não pode ser adquirido por meio de livros,

tampouco pela observação distanciada e pelo estudo de uma

determinada realidade. Para mim, esse ponto de vista privilegiado

não nasce da “autoridade da experiência” mas sim da paixão da

experiência, da paixão da lembrança (...) Quando uso a expressão

“paixão da experiência”, ela engloba muitos sentimentos, mas

particularmente o sofrimento, pois existe um conhecimento

particular que vem do sofrimento. (hooks, 2013, p. 122)

É ir reconhecendo limitações, jogos de poder, disputas pra ver florescer formas

autônomas, íntimas e coletivas de me fazer ouvir e existir, mais perto de ser plena. Eu

trago a beleza de ter começado a me encontrar, consciente de que o processo se faz

andando, e que por isso não está acabado. Sigo com a alma e o coração abertos, o corpo

fechado pra imposições, mesmo que não seja imune a elas.

Esse ensaio é um pedido de empatia, de acolhimento, uma vontade de partilhar os

prazeres e as dores do suado caminho, que não fiz sozinha, até chegar a universidade

federal. É sobre a forma que achei de resistir pelas epistemologias de mulheres negras,

indígenas, subalternizadas, do “terceiro-mundo”. É sobre eu não visualizar outra forma

possível de transformação e produção neste espaço que não seja pelas potencias de ser

mulher negra, periférica, filha de Cleuza e Manel, neta de Anita, Gezilda, Waldemar e

Nelson...

Sem consideração final

Optei por abrir caminhos e não fechá-los. Sigo buscadora...

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Referência Audiovisual

Entrevista a Silvia Rivera Cusicanqui. Direção: Centro experimental oído salvage.

Guayaquil, Ecuador, 2016. 45 min.