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Apresentação do dossiêPedro Hussak*1

*Pedro Hussak van Velthen Ramos é Doutor em Filosofia pela UFRJ, com Pós-doutorado na Université-Paris 1 Panthéon Sorbonne.

Professor de Estética do Programa de Pós Graduação em Filosofia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro também é profes-

sor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Estudos Contemporâneos da Arte da Universidade Federal Fluminense. Publicou

vários artigos com ênfase em Estética Contemporânea e em 2011 organizou o livro “Educação Estética: De Schiller a Marcuse”.

RESUMO: Trata-se da apresentação do dossier “Arte Contemporânea: anacro-

nismo, pós-conceitualismo” publicado na revista Poiésis. Em “primeiro lugar, argumenta-se que a narrativa sobre a passagem do “moderno” para o contem-porâneo” baseada na passagem da “especificidade do médium” para a “condição pós-médium” esbarra em uma teleologia da história. Em seguida, mostra-se como o texto de Nuno Crespo apresenta uma visão do contemporâneo ligada ao fim das promessas da modernidade ao pensá-lo como um tempo anacrônico, a partir de Didi-Huberman e Giorgio Agamben. Continuando, mostra-se em que medida a concepção do contemporâneo como uma “ficção operativa” produz uma visão crítica da inaturalidade da arte contemporânea uma vez que a possibilidade de re-lacionar espaços e tempos diferentes se adequa bem ao atual capitalismo global. Por fim, refletiremos como esta crítica à inatualidade do contemporâneo desliza para uma crítica da arte conceitual, mostrando que a tarefa da arte contemporânea consiste em problematizar o espaço no qual ela está instalada. Assim, mostrar-se--á como o texto Éric Alliez discute o pós-conceitualismo analisando as obras de Daniel Buren e Gordon Matta-Clark.

PALAVRAS-CHAVE: anacronismo; pós-conceitualismo; arte contemporânea.

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O que significa o termo ‘contemporâneo’ inscrito na expressão ‘arte contemporânea’? Gostaria de sugerir que o atual questionamento em torno dessa categoria tenta dar uma res-posta à metafísica temporal que subjaz a uma certa narrativa – que está ligada ao que Clement Greenberg chamou de “especificidade do médium para explicar a emergência da arte abstrata nos anos 1940/50 – que visa explicar a passagem da “arte moderna” para a “contemporânea”.

Em Rumo a um mais novo Laocoonte, o crítico americano sustenta que o aparecimento da Perspectiva Renascentista, que deu à pintura um lugar de destaque no sistema das artes, no fundo servia para propósitos outros que não a própria pintura, dado que era uma técnica que permitia melhor expressar a temática pretendida que, por sua vez, vinha de uma outra expres-são artística, nomeadamente a literatura. Para evitar o risco de uma subordinação entre as ar-tes, ele lança mão da ideia de que cada arte deveria aceitar a limitação do seu médium, o que o levou a sustentar que a pintura abstrata ao se preocupar com os problemas concernentes ao seu suporte, deveria ater-se à planaridade, negando a ilusão tridimensional da perspectiva. (COTRIM & FERREIRO, 1997, pp. 45-61).

Deste modo, se a narrativa constitutiva da arte moderna está vinculada com a concepção da “especificidade do médium”, não é difícil compreender que a caracterização da arte con-temporânea a partir do que Rosalind Krauss, em uma referência explícita ao livro de Lyotard sobre o pós-modernismo, qualificou de “condição pós-médium” está absolutamente atada às concepções de Greenberg ainda que no intuito de superá-lo (KRAUSS, 2000). No moderno, tratava-se de investigar os problemas do médium nas artes, cuja tentativa de classificação vem dos sistemas das artes no século XVIII: pintura, gravura, escultura, literatura, música, etc. Portanto, embora o modernismo tenha desenvolvido o plano formal das artes, mantém--se ainda preso aos suportes clássicos. Assim, a arte contemporânea caracterizar-se-ia pela “saída do quadro”, explodindo os suportes tradicionais para ampliar as possibilidades da arte de modo a fluidificar suas fronteiras e produzir formas culturalmente híbridas.

Embora operacional, esta distinção peca por trabalhar em uma linha cronológica muito demar-cada, ou seja, a retomada do discurso, típico das vanguardas históricas, da ruptura. Ruptura esta ocorrida com as modificações no modo de produção da arte a partir dos anos 1960.

No entanto, essa narrativa pode ser questionada do ponto de vista cronológico uma vez que a hibridização entre as linguagens artísticas e o questionamento do médium próprio podem ser encontrados em muitas expressões anteriores aos anos 1960. É possível citar, a este

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respeito, dois exemplos simples: por um lado, a consideração de Jacques Rancière de que, em seus primórdios – ou seja, antes que Hollywood começasse a “contar histórias” –, o cinema constituía-se basicamente de uma experiência sensorial de luz e movimento, reali-zando ele mesmo uma síntese entre as artes: a fotografia; a música; a dança e a cenografia (RANCIÈRE, 2011, p. 9); por outro, o fato de que muitas das operações da arte contemporâ-

nea está amplamente calcada naquelas operações de deslocamento e apropriação propostas

Duchamp que ao serem adoradas a propósito do ready made, realizaram uma explosão dos suportes tradicionais. Não é demais lembrar que, cronologicamente, ambos os exemplos

deveriam ser classificados como modernos.

O incômodo com a temporalidade inerente a essa narrativa é o fato de que ela pensa o con-temporâneo como uma espécie de “superação” do moderno, o que faz do primeiro quase que uma consequência do segundo, conduzindo a uma teleologia histórica. Ocorre que esta é uma compreensão típica do moderno, cuja temporalidade está relacionada à esperança de um estado de coisas melhor do que o atual no Futuro.

Portanto, para escapar a esta visão teleológica, uma primeira resposta para a pergunta sobre

a temporalidade do contemporâneo seria aquela que versa sobre o presentismo, ou seja, um presente que se alonga indefinidamente, sem a projeção para o futuro, o que leva a um desencantamento diante das promessas não realizadas pelo moderno. Tal concepção nasce do mundo pós-utópico que se sucedeu à queda do muro de Berlim, em 1989. De fato, teorias que proclamavam o “fim da história” proliferaram e sem dúvida influenciaram nossa época.

No texto aqui apresentado, no qual ele busca fazer uma abordagem do artista português Rui Chafes, Nuno Crespo refuta, em consonância com Claire Bishop – que procura levar esta discussão filosófica e conceitual para o plano da curadoria de arte –, essa imagem do con-temporâneo, evocando, para isso, os autores Giorgio Agamben e Georges Didi-Huberman, os quais, cada um a sua maneira, defendem uma visão de que o seu tempo próprio seria não o

presentismo, mas o anacronismo.

Em seu texto O que é o Contemporâneo, Giorgio Agamben ressalta a inatualidade de quem é contemporâneo, ou seja, a singular relação com o próprio tempo que é vivido ao mesmo tempo em que dele toma-se distância. O pensador italiano quer ressaltar o fato de que só con-segue ver o próprio tempo quem dele é capaz de olhar de longe para assim compreendê-lo, tal como propõe Nietzsche na sua segunda consideração intempestiva (AGAMBEN, 2009, p. 58).

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Ainda que com divergências em relação a Giorgio Agamben, expressa notadamente no livro

Sobrevivências dos vaga-lumes – no qual ele opõe uma resistência ainda que frágil da luz dos

vaga-lumes contra o pessimismo do italiano quanto a crescente poder dos holofotes midiáti-

cos (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 30) –, o francês Georges Didi-Huberman compartilha com ele

uma visão ligada ao anacronismo que lhe permite, agora sim no âmbito específico da história

da arte, estabelecer relações entre épocas e culturas diferentes, como por exemplo, no seu

livro Diante do Tempo, no qual ele mostra uma estranha semelhança entre os painéis de pin-

tura colocados na parte inferior de uma Santa Conversação de Fra Angelico com o expressio-

nismo abstrato de Jackson Pollock (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 9). Com isso, toda uma visão

do abstracionismo dos anos 1950 como a saturação da forma na história da pintura é colocada

em questão, juntamente com uma visão progressiva da história da arte.

Não é de se estranhar que ambos autores tenham entre suas referências teóricas principais

Aby Warburg e Walter Benjamin que trazem uma visão da história na qual o passado não é um

morto, algo que passou e ficou para trás, mas, antes muito mais, um espectro que não cessa

de rondar o nosso presente que nos obriga a considerá-lo a partir dos vestígios e pistas que

ele vai deixando.

É o que faz, por exemplo, Benjamin nas Passagens ao estabelecer um correlato entre os

corredores de um dos símbolos da modernidade parisiense, o metrô, com a mitologia grega

dos labirintos com seus Minotauros, Teseus e Ariadnes (BENJAMIN, 2007, p. 123); ou então

Aby Warburg cujos conceitos de Pathosformel e Nachleben buscam demonstrar a presença

do paganismo na arte renascentista, o que produz uma importante mudança no modo de

considerar a arte do período que passa a ser vista não apenas por seus elementos “apolíne-

os”, ligados ao ideal de beleza como o corpo proporcional, mas também nos seus elementos

“dionisíacos” revelados, por exemplo, nos cabelos ao vento da Vênus no célebre quadro de

Botticceli (WARBURG, 2013, pp. 3-26).

No texto traduzido para este dossier, Peter Osborne – que também tem Walter Benjamin

como uma de suas principais referências teóricas – também traz uma imagem do contempo-

râneo ligado ao anacronismo e à inatualidade. No entanto, o conceito aqui, ao ser aplicado à

arte contemporânea, reveste-se de um elemento crítico, pois aqui ele não decorre de uma re-

lação positiva de um passado que se imiscui no presente, mas, ao contrário, de uma disjunção

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entre as 3 dimensões temporais. Para o autor inglês, a ideia do contemporâneo como um

tempo único partilhado por todos da mesma maneira consiste em uma ficção operativa, a

ficção de que todos compartilham igalmente da mesma dimensão do presente.

O conceito de anacronismo (ou inatualidade) ganha aqui uma dimensão crítica já que a pos-

sibilidade de articular diferentes temporalidades e culturas é inserida no atual momento do

capitalismo globalizado que ao fluidificar as fronteiras dos estados nacionais permitiu a livre

circulação mundial dos produtos e do capital, mas, por outro lado, restringiu a circulação de

pessoas na medida em que produz mecanismos de controle que dizem quem pode e quem

não pode passar pelas fronteiras.

Por este motivo, a arte contemporânea – ou seja, o trasmissor cultural do contemporâneo

– adaptou-se bem à dinâmica do capitalismo globalizado na medida em que o anacronismo

que ela carrega revela não apenas um caráter trans-histórico, como também trans-geográfico.

A arte contemporânea é radicalmente inter-nacional, sendo legitimada pelas bienais, feiras,

galerias, etc., instituições que lidam com obras independente de seu país que, desta fei-

ta, atravessam fronteiras e são reconhecidas como tais independente do país de origem.

No capitalismo globalizado, o multiculturalismo das diferentes expressões contemporâneas

concernem menos a um “diálogo entre as culturas”, do que a realizar a ficção de que todas

as expressões temporais e espaciais totalmente diversas em um mesmo espaço expositivo

pertencessem a um mesmo mundo comum.

Assim, para que a arte contemporânea possa assumir uma tarefa crítica, ela deve necessaria-

mente estabelecer uma dialética socioespacial tanto com as instituições as abrigam quanto

com o território no qual ela se encontra.

A necessidade de a arte dialetizar o espaço em que se encontra desliza, por sua vez, da crítica

ao contemporâneo para uma crítica da arte conceitual, seja na versão do espaço clean cria-

do pelos minimalistas, seja na proposta de um Joseph Kosuth de levar a cabo a concepção

hegeliana da história de que a arte (ou seja, a manifestação sensível do Espírito) seria uma

experiência do passado que deveria abandonar sua dimensão sensível em nome do conceito.

A arte “pós-conceitual” seria aquela que denunciaria a falácia de uma arte completamente

antiestética, afirmando seu caráter ao mesmo tempo estético e conceitual.

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É neste contexto que se insere o texto, que desdobra questões trabalhadas no livro Défaire

l’image de l’art contemporain – publicado na França em 2014 –, de Éric Alliez que enfoca este

aspecto da reconfiguração do espaço feita pela arte. Sob este aspecto, arte aqui não se en-

contra isolada em si mesma, mas só ganha sentido naquele espaço específico onde ela está

instalada, o que faz com que sua força está na capacidade de estabelecer um diálogo com o

lugar em que ela acontece.

É neste sentido que Alliez analisa o trabalho de dois artistas paradigmáticos neste sentido:

Daniel Bueren e Gordon Matta-Clark. Importante notar que se trata de dois artistas que pro-

movem ao mesmo tempo uma arquiteturização da arte e uma negação da arquitetura como

disciplina. Tal negação, contudo revela-se de modo diferente em ambos: se o trabalho de

Buren visa a transformar o espaço trabalhando com e sobre a arquitetura, o gesto de Matta-

Clark de cortar casas e abrir buracos faz com que a radicalidade do seu trabalho estabeleça

um confronto claro contra ela.

Com este dossier, espera-se contribuir para o debate teórico no Brasil em torno dos destinos

da arte contemporânea. Neste sentido, cabe o agradecimento à editora da revista Poiesis,

Viviane Matesco, pela disposição em publicá-lo.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? Trad. Vinicius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009.

BISHOP, C. Radical Museology: or What’s ‘Contemporary’ in Museums of Contemporary Art? London: Koenig Books, 2013.

BENJAMIN, Walter. Passagens. Org. Willi Boile. Belo Horizonte: UFMG, 2007

CORTRIN, Cecilia; FERREIRA, Gloria. (Org.) Clement Greenberg e o debate crítico. Trad. Maria Luiza Borges. Rio de Janeiro: Jorge

Zahar, 1997.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes. Trad. Márcia Arbex. Belo Horizonte: UFMG, 2001.

_______________________. Devant le temps. Paris: Minuit, 2010

LYOTARD, Jean-François. A Condição pós-moderna. 12a. ed. Trad. Ricardo Barbosa. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010.

KRAUSS, Rosalind. Voyage on the north sea: art in the age of the post-medium condition. New York: Thomas & Hudson, 2000.

RANCIÈRE, Jacques. Le Partage du Sensible. Paris: La Fabrique, 2014.

_________________. Les écarts du cinema. Paris: Fabrique, 2011.

WARBURG, Aby. A renovação da antiguidade pagã. Trad. Mrkus Herdiger. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.