estranha estirpe de_audazes

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Estranha Estirpe De Audazes de Sante Uberto Barbieri Do original argentino: “Uma Extraña Estirpe de Audaces” Tradução de LUIZ A. CARUSO IMPRENSA METODISTA Estrada do Vergueiro, 2500 São Bernardo - SP NOTAS DESTA EDIÇÃO ON LINE: 1 - Foram acrescentados ao texto do livro alguns sinônimos e notas para essa edição eletrônica, sempre entre parênteses e com a fonte na cor bordô. 2 - O livro publicado em português tem muitos erros de composição e grafia. Conseguimos acertar quase tudo no texto do livro, menos as notas de rodapé, que por falta de acesso a um livro na edição original em espanhol, não tivemos como proceder as correções. De modo que na presente edição, elas estão como estão no livro em português. 1

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Page 1: Estranha estirpe de_audazes

Estranha Estirpe De Audazes

de

Sante Uberto Barbieri

Do original argentino:

“Uma Extraña Estirpe de Audaces”

T r a d u ç ã o d e

LUIZ A. CARUSO

I M P R E N S A M E T O D I S T A Estrada do Vergueiro, 2500

São Bernardo - SP

NOTAS DESTA EDIÇÃO ON LINE:

1111 - Foram acrescentados ao texto do livro alguns sinônimos e notas para essa edição eletrônica, sempre entre parênteses e com a fonte na cor bordô.

2222 - O livro publicado em português tem muitos erros de composição e grafia. Conseguimos acertar quase tudo no texto do livro, menos as notas de rodapé, que por falta de acesso a um livro na edição original em espanhol, não tivemos como proceder as correções. De modo que na presente edição, elas estão como estão no livro em português.

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Page 2: Estranha estirpe de_audazes

DEDICATÓRIA

Em sinal de gratidão a meu mestre de História

Eclesiástica na “Southern Methodist U n i v e r s i t y ”

Dallas, Texas, U. S. A..,

DR. ROBERT W. GOODLOE

Que me revelou o mistério e encantamento

dessa “Estranha Estirpe de Audazes”

e

Flávia e Mary,

meus filhos, agora servindo ao Senhor na Bolívia,

para que recolham

as “Cintilações Inextinguíveis” dessa “Estirpe”

e sigam em pós de sua luz,

carinhosamente dedico estas páginas.

Page 3: Estranha estirpe de_audazes

INDICE INTRODUÇÃO

CAPÍTULO I - Os vanguardeiros - Parte I - Os antepassados de João e Carlos Wesley pela linha paterna.

- Bartolomeu Wesley - João Wesley, o avô - Samuel Wesley, o pai

CAPÍTULO II - Os vanguardeiros - Parte II - Os antepassados de João e Carlos Wesley pela linha materna

- João White - Samuel Annesley, o avô - Suzana Wesley, a mãe.

CAPÍTULO III - Um tição tirado ao fogo - João Wesley CAPÍTULO IV - O arauto melodioso - Carlos Wesley CAPÍTULO V - O filho de um taverneiro - Jorge Whitefield CAPÍTULO VI - Uma estrela da Graça - Selina Shirle, a Lady e Condessa de Huntingdon CAPÍTULO VII - O paladino da divina Misericórdia - João Guilherme de La Flechère CAPÍTULO VIII - Tinhas Asas de Águia - Tomás Coke CAPÍTULO IX - O profeta do Caminho Solitário - Francisco Asbury CAPÍTULO X - O bando dos “irregulares” - Parte 1

- Tomas Maxfield - João Nelson - Maria Bosanquet

CAPÍTULO XI - O bando dos “irregulares” - Parte 2

- Os primos Filipe Embury e Bparbara Heck - Robert Strawbrigde - Capitão Webb - Robert Williams - John King

CAPÍTULO XII - Cintilações inextinguíveis

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Page 4: Estranha estirpe de_audazes

INTRODUÇÃO

A história é o único elemento em nossa vida social que nos liga ao passado.

Cortaríamos de nós mesmos uma importante parte se omitíssemos a história. Podemos existir

sem história, mas não viver; porque viver é, de certo modo, reviver a história de nosso povo,

encarnando em nós as inquietudes que povoaram corações e vontades que não existem mais.

Na história se refugia a vida que já foi, para não morrer, para ressuscitar, para continuar

vivendo, para obrigar-nos a viver. Por isto mesmo dizia Miguel de Unamuno: "É visão do

passado o que nos empuxa à conquista do porvir; com madeira de recordações armamos as

esperanças". Quando o presente nos parece trivial e comum, falto de estímulo e inspiração,

faz falta mirar ao passado, que é a história, para que nos sintamos "empuxados à conquista do

porvir".

E sublinhamos "a conquista do porvir", porque a visão do passado não nos deve

envolver no próprio passado, e sim nos levar as mais altas empresas e as mais arriscadas

aventuras; para que o acervo do passado se enriqueça com os fatos do presente. O

conhecimento do passado não se constituirá em cadeia, e sim no elemento que nos

fecunde mente e coração, espírito e vontade, e nos conceda poder para criar obras

formosas, verdejantes e eternas.

Por isso, nas páginas seguintes nos submergiremos no mar da história, não para nos

afogarmos nele, como que atraídos ao fundo pela voz de sereia encantadora, mas para

revitalizar e refrescar nossas energias dormidas e sair pelas praias do mundo, tendo nos lábios

o canto que entusiasma e no coração a fé que tudo arrisca.

Desejamos que os leitores destes breves estudos históricos, que giram ao redor de

alguns cabos de guerra do metodismo, se sintam com vigor suficiente para seguir no caminho

que eles deixaram marcados com os sulcos profundos de sua devoção e fé.

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CAPÍTULO PRIMEIRO

OS VANGUARDEIROS - 1

Os antepassados de João e Carlos Wesley pela linha paterna

"O testemunho interno, filho, o testemunho

interno; esta é a prova, a prova mais verdadeira do cristianismo".

Samuel Wesley

Ao ler o subtítulo dos dois primeiros capítulos, o leitor se perguntará que relação

tem os antepassados de João e Carlos Wesley com os adaís (mentores) do

metodismo que estudaremos no restante do livro. À primeira vista parece não existir

conexão alguma, pois eles viveram antes do movimento metodista, e certamente não

teriam podido vislumbrar o que sucederia a ponto de sugerir orientações. Mas, quando

passamos em revista a vida desses antepassados, descobrimos que muitas das

características que distinguiram os iniciadores do movimento metodista já se revelavam no

caráter e na ação daqueles.

Podemos dizer que o movimento metodista no começo do século XVIII,

embora historicamente nele tenha seu princípio, suas raízes vão, contudo, até ao século

XVII ou antes, à semelhança da Reforma Protestante que não teve sua origem no século XVI

com Lutero, mas também muito tempo antes. Em Lutero a Reforma teve seu apogeu e

culminância. Forças e homens, desde muitas gerações anteriores, vinham preparando o

terreno, abandonando-o com o sangue de seu sacrifício. Do mesmo modo, o que

chamamos metodismo alcança seu triunfo em João e Carlos Wesley e outros. Não que

o metodismo já existisse como força, e sim que tinha vida embrionária no seio de certos

acontecimentos históricos. Os homens não são fenômenos que aparecem repentinamente e

se manifestam sem causa e motivos. Às vezes, ou quase sempre, são o resultado de forças

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Page 6: Estranha estirpe de_audazes

que se foram armazenando por muito tempo e que num instante irrompem, abrindo as

comportas para impor-se de maneira decisiva e renovadora.

A história do metodismo começa, pois, com os antepassados dos Wesley. De

fato, um historiador dessa família assevera que há traços dela já no século X, antes que a

Inglaterra estivesse unida sob um soberano. Pelo estudo que faz dos membros dessa

família, chega à seguinte conclusão:

"Pelo que até aqui podemos saber desta distinta família, verificamos que

seus membros se sobressaíam por seus conhecimentos, piedade, estro (talento)

poético e musical. Devemos, além disso, acrescentar outras características

igualmente peculiares: lealdade e fidalguia. Volvendo atrás, apenas um passo, ao

traçar sua genealogia, encontramos em ambos, o pai e a mãe de Bartolomeu

Wesley (deste falaremos mais adiante), pessoas às quais se permitiu mesclar com

as mentes notáveis de sua idade, que tiveram a distinção de tomar parte ativa na

formação daquela época em seus aspectos moral, religioso e social." (1) 1)

Não nos será possível deter-nos com todos eles, mas nos remontaremos pela

linha paterna de João e Carlos Wesley a representante de três gerações anteriores: a

Bartolomeu Wesley (1595 ou 96-1680); a João Wesley, o avô (1636-1678); e a Samuel

Wesley, o pai (1662-1735). E pela linha materna: a João White (1590-1644), avô materno de

Susana; Samuel Annesley (1620-1696), pai de Susana; e Susana Wesley, a mãe

(1669-1742).

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Page 7: Estranha estirpe de_audazes

Bartolomeu Wesley

Bartolomeu Wesley, bisavô de João e Carlos Wesley, era filho de Sir Herbert

Westley ou Wesley, do condado de Devon, e de Elizabet Wellesley, de Dongan, Irlanda.

Na família houve três filhos: de dois deles nada se sabe; somente Bartolomeu chegou a

entrar na história. No seio de sua família recebeu esmerada educação religiosa. Julgando

pelas influências religiosas manifestas por Bartolomeu, pode-se dizer que o espírito do

puritanismo já se ia desenvolvendo dentro da Igreja Nacional e que havia feito marca na

mente de seus pais.

Recebeu sua educação na Universidade de Oxford, onde estudou medicina e

teologia. Dele pouco se sabe até o ano 1640, quando a história nos diz que se encontrava à

frente da igreja da pequena aldeia de Gatherston e, pouco mais tarde, da de

Charmouth. O salário anual que essas duas igrejas lhe pagavam consistia de 35 libras

esterlinas e 10 shillings. Pastoreou-as até 1662, antes do "Ato de Uniformidade", quando o

expulsaram como "intruso". Durante seu ministério, e especialmente depois, fez grande uso

de seus conhecimentos médicos com muito êxito. Nada sabemos acerca do lugar de sua

morte, mas estamos certos de que teve de abandonar Charmouth em 1665 devido ao "Ato

das Cinco Milhas". Este "ato" exigia que todo pároco destituído de seu cargo devia viver,

pelo menos, cinco milhas, distante do lugar onde havia exercido seu ministério. Por essa

época já havia caído o governo puritano de Cromwell, que dominara na Inglaterra por cerca

de três lustros (qüinqüênios). Ao restabelecer-se a monarquia, todos os párocos adeptos do

puritanismo, que era a expressão religiosa adotada pelo governo de Cromwell, tiveram de

abandonar suas paróquias que seriam ocupadas por pessoas dispostas a sujeitar-se à

realeza e à forma tradicional do anglicanismo.

Foi em conseqüência desse mesmo "Ato", como veremos mais adiante, que seu

filho João Wesley (o avô de Carlos e João Wesley) morreu, prematuramente, aos 42 anos de

idade, em 1678. Este fato se agravou na mente do velho pai, de tal maneira, que seus

últimos anos foram bem amargos, levando-o mais depressa ao sepulcro. Desde que foi

afastado do cargo em 1662 e se viu obrigado a abandonar sua antiga habitação, esteve

sujeito a vexames, perseguições e limitações promovidas pela Igreja Oficial, que se

estabelecera com a monarquia. Devemos recordar que pelo "Ato de Uniformidade", os

ministros deviam renunciar a suas idéias puritanas e aceitar o novo estado de coisas, ou

então abandonar seus postos eclesiásticos. Mais de dois mil ministros tiveram de deixar suas

igrejas. Começou, para eles, uma série de duras experiências que teceram um

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Page 8: Estranha estirpe de_audazes

romance de aventuras extraordinárias, mas de tremendas vivências em que se pôs à

prova sua fé, visto como, por questão de consciência, não quiseram adaptar-se à nova

situação. Esses ministros, e os fiéis que com eles partilhavam as mesmas idéias religiosas

tiveram de reunir-se onde podiam: quer em casas isoladas, ou em sótãos, ou em palheiros

(lugar onde se guarda palha, paiol), ou onde quer que lhes fosse dado. Muitas vezes, para

chegar a tais lugares, tinham de valer-se de caminhos secretos e também postar vigias.

Apesar de toda essa vigilância e cautela, mui freqüentemente aprisionavam grupos e

líderes. Bartolomeu, depois de destituído, pode ficar em Charmouth até 1665, exercendo a

medicina, pela estima que lhe tinham seus paroquianos. Isto testifica acerca da

limpeza de seu caráter, o que lhe permitiu permanecer ali sem temer acusações de

parte da gente a que servira durante 21 anos. Sem dúvida, o que mais caracterizou esse

homem foi a firmeza de suas convicções.

Fizemos referência ao "Ato das Cinco Milhas", e nessa época ele já era um homem

velho, sentia-se esgotado depois de uma longa vida consumida em trabalhos, guerras

civis e lutas religiosas. Se, ao restabelecer-se a monarquia, houvesse renunciado a

suas convicções religiosas e se submetesse com passiva obediência às exigências da igreja

oficializada, poderia viver até o dia de sua morte, no seio de seus amigos paroquianos, aos

quais tanto estimava. Entretanto, preferiu ir-se e sofrer o desprezo do mundo. Suas

convicções lhe eram mais sagradas que a própria vida e a tranqüilidade. Isto nos ensina

que as almas honestas nunca podem trocar sua liberdade de consciência pela liberdade

de seus corpos. Preferem tomar sobre si a cruz e morrer por seus ideais. São os que

caminham adiante e se detêm somente quando chegam ao final do caminho, sem haver

cessado em sua luta por manter bem alto o estandarte de suas mais íntimas convicções. Se

Bartolomeu Wesley não houvesse deixado outra coisa atrás de si, além desta estrela

luminosa, já se justificaria plenamente sua trajetória no mundo. Certamente foi digno de

haver sido o bisavô de João e Carlos Wesley.

Page 9: Estranha estirpe de_audazes

João Wesley, o avô

Aquele que leva o mesmo nome do que mais tarde fora, com seu irmão Carlos, o

fundador do metodismo, era filho do precedente, e como vimos, chegou a viver somente

42 anos. Foi o pai de Samuel Wesley que, por sua vez, viria a ser o progenitor dos

fundadores do metodismo. Como Bartolomeu, foi educado na Universidade de Oxford,

sob a direção de homens escolhidos dentre os mais proeminentes guias religiosos dos

grupos independentes que alimentavam tendências puritanas. Terminou seus estudos

obtendo o grau de Mestre em Artes lá pelos fins do ano 1657 ou princípios de 1658.

Seu lar lhe foi sua primeira escola de religião, e ali herdou o espírito piedoso que lhe

assinalou toda a vida. Na escola mantinha a mesma linha de conduta que fosse norma no

lar. Desde a infância seus pais o dedicaram ao serviço divino. Quando voltou de Oxford,

uniu-se à congregação a que seu pai servia, mas não pode ajudá-lo no ministério porque não

fora ordenado. No povoado de Weymouth fez-se membro de um grupo chamado "A Igreja

Reunida", perante o qual teve primeiramente ocasião de expor suas próprias

convicções religiosas. Tinha paixão pelas almas. Deu testemunho do Evangelho não

apenas diante da "Igreja Reunida" de Weymouth, mas também falou das "Boas Novas"

aos marinheiros com que costumava encontrar-se ao longo da costa. E, na pequena

aldeia de Radipole, juntou muita gente ao seu redor, ensinando-a a adorar e servir a

Deus. Nessa época contava somente 22 anos de idade, mas já ardia nele aquela paixão

evangelizadora que se manifestaria tão surpreendentemente no coração de seus netos

João e Carlos. Como eles, foi grande pregador itinerante, sem ter jamais cargo pastoral

próprio e regular. E, além disso, foi o protótipo do pregador a que João Wesley teve de

apelar para fazer sua obra: o pregador leigo.

Foi em 1658 que chegou a ser pastor de Winterborn-Whitchurch, no condado de

Dorset, embora de maneira irregular. Essa paróquia podia recompensá-lo apenas com 30l

libras esterlinas anuais. De passagem, notaremos quão minguados era sempre o sustento

que os Wesley obtinham de seus trabalhos pastorais! Talvez nisso encontremos a razão

por que João Wesley adquiriu o hábito tão frugal de viver (que se contenta com pouco para

a sua alimentação), que lhe permitiu separar tanto de seus haveres para dedicá-los ao bem

do próximo. Foi como que necessidade inerente a todos os membros dessa família ter de

ajustar-se a receitas mui exíguas. Apesar disso, nunca pensaram estar destituídos da graça

de Deus Altíssimo.

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Em 1661, João foi chamado à presença do Bispo Ironside para explicar por que

ministrava ao povo sem haver sido ordenado ministro. As respostas que deu durante o

interrogatório evidenciaram seu espírito equilibrado, iluminado e fiel. Tão concludentes

foram, que o bom Bispo lhe disse, ao despedi-lo: “Adeus, meu bom senhor Wesley". Ele

convencera seu superior de que seu direito de pregar lhe era dado por autoridade que

emanava das próprias Sagradas Escrituras.

Seus inimigos (os que a ele se opunham) sempre fizeram o possível para que caísse

em desgraça, e, um dia, pouco depois de sua conversação com o Bispo, assaltaram-no

ao sair da igreja e o levaram ao cárcere, acusando-o de não querer submeter-se ao uso da

liturgia da Igreja Oficial. Quando o soltaram, voltou a seus labores em

Winterborn-Whitchurch. Ali continuou ministrando ao povo até agosto de 1662, quando foi

decretado o já mencionado "Ato de Uniformidade". Como seu pai, determinou-se não se

submeter às novas ordenanças eclesiásticas e preferiu renunciar a renegar suas convicções

pessoais. Com pesar deixou a igreja e se foi a um lugar denominado Melcombe; durante

esse período de transição nasceu Samuel, que seria o pai de João e Carlos Wesley.

João v iu-se na cont ingência de suje i tar-se à a juda car idosa de um

amigo desconhecido, que na época possuía uma casa vaga num lugar chamado Preston,

perto de Weymouth. Ali continuou, dia após dia, pregando o Evangelho. Mais de uma vez,

por esse motivo, teve de ocultar-se ou ser preso. Não obstante, jamais renunciou a seu

grande empenho de salvar almas. Essas reiteradas t r ibulações levaram-no,

prematuramente, à morte. Nada, porém, foi suficientemente forte para fazê-lo renunciar à

sua alta vocação. Não se preocupava por faltar-lhe ordenação eclesiástica, e sim ia de um

lado para outro, ministrando sempre às almas necessitadas. Concluiu sua carreira num

lugar chamado Poole, continuando sempre como pregador local e servindo a um grupo

de pessoas às quais pregava dia após dia. Morreu como já mencionamos, antes de seu pai

Bartolomeu. Sua carreira foi curta, porém gloriosa. Jamais recebeu ordenação eclesiástica,

e, apesar disto, sempre se sentiu apoiado em seu trabalho pela aprovação divina. Isto era

suficiente para ele.

Tinha por costume levar um diário em que ia anotando suas ações. Gostava de

cultivar as línguas orientais. Era franco, leal, sincero e consagrado. Fez os maiores

sacrifícios no desempenho de sua missão. Dele se diz o seguinte:

"Em verdade, a história pessoal deste bom homem contém um epítome

(resumo) do metodismo que surgiria através da instrumentalidade de seus netos

Page 11: Estranha estirpe de_audazes

João e Carlos. Seu estilo de pregação, conteúdo, maneira e êxito, tudo revela

uma semelhança surpreendente a deles e de seus colaboradores." (2)

Outro autor escreveu acerca do mesmo ponto, o seguinte:

"Embora o neto (João) tivesse mais êxito e se tornasse mais célebre, sem

dúvida, na história de João Wesley, o avô, podemos descobrir traços do ponto

de partida do espírito, ainda que não da forma, do metodismo." (3)

Page 12: Estranha estirpe de_audazes

Samuel Wesley

Chegamos agora ao ponto onde nos cabe falar do neto de Bartolomeu Wesley.

Nasceu, como já vimos, em dezembro de 1662, durante um período turbulento. Não se

sabe exatamente onde nasceu. Morreu em Epworth, em abril de 1735, depois de longa

carreira dedicada ao trabalho da Igreja Anglicana. Filho e neto de não-conformistas

abandonou a tradição de seus antepassados e decidiu lançar sua sorte com a Igreja Oficial.

Quando chegou a esta decisão, estava estudando numa academia de Dissidentes. Contava

21 anos de idade nessa época. Deixou a academia e foi para Oxford a fim de matricular-se

no colégio "Exeter" na categoria de "estudante pobre". Isso aconteceu em agosto de 1683.

Ao abandonar os Dissidentes teve de custear seus próprios gastos. Iniciou a carreira

na Universidade com 45 shillings. Ali trabalhou como servente e ao mesmo tempo

ajudava seus condiscípulos no preparo das lições. Graduou-se Bacharel em Artes em

1688. Durante o tempo que ali esteve, e apesar do curso que deu à sua vida, não pode

deixar de revelar que nele ainda perdurava muito do que caracterizara seus

antepassados. Quando, anos mais tarde, seus filhos João e Carlos estavam tão

empenhados com o "Clube Santo", por eles organizado em Oxford, e tão metodicamente

assistiam os prisioneiros no "Castelo", ele lhes escreveu o seguinte:

"Segui adiante, em nome de Deus, pelo caminho reto em que vosso

Salvador vos tem dirigido e nas pisadas deixadas por vosso pai que vos

precedeu, pois quando era estudante em Oxford, também visitava o "Castelo", do

que me recordo com grande satisfação até ao dia de hoje." (4)

Verificamos, portanto, que o interesse pelos pobres e pessoas caídas em

desgraça era peculiaridade inerente ao temperamento dos Wesley.

Depois de formado, tomou conta de uma igreja, à qual serviu até que foi nomeado

capelão de bordo de um bote de guerra, mas não ficou muito tempo nesse posto. Passou a

servir por dois anos em um curato na cidade de Londres. Durante esse período casou-se

com Susana Annesley. Desse matrimônio nasceram dezenove filhos. Em 1691 foi

enviado à pequena paróquia de South Ormsby, onde ficou até princípios de 1697, quando foi

para o povoado de Epworth, no condado de Lincoln. Ali permaneceu até ao dia de sua morte,

em abril de 1735.

Sua vida incluiu o período da restauração do rei Carlos II que morreu em 1685, e do

governo de Jaime II que o sucedeu no reinado até 1688. Ambos se inclinaram para a Igreja

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Page 13: Estranha estirpe de_audazes

Católica, especialmente o último, que, ao favorecer esse culto, provocou grande discórdia

nacional. Esta atitude foi a causa por que a maior parte da nação se opôs a ele. Em 1688

estourou a revolução que obrigou Jaime II a refugiar-se na França. Guilherme III de Orange

e Maria, sua mulher, da casa real inglesa, foram declarados juntamente soberanos da

Inglaterra. Assumiram o posto em 1689 e governaram o país até 1714.

Coube a Samuel Wesley viver, portanto, durante uma época de grandes

convulsões políticas. Isto não foi tudo. Houve, também, notável mudança social na vida

da nação. Processava-se grande êxodo do campo para as cidades e vilas. O antigo

sistema feudal ia, pouco a pouco, perdendo seu poder, para dar lugar a uma crescente

vida comercial e industrial. Os filósofos Hobbes e Locke introduziram a filosofia

empírica na vida intelectual. O cientista Newton reduziu o mundo a uma máquina

harmônica e completamente sujeita as leis imutáveis. Despertou-se sede intensa por uma

vida pletórica (superabundante, exuberante) de riquezas e prazeres. Após o tratado de

paz de Utrecht, notou-se grande incremento no comércio e especulação.

Organizaram-se várias e notáveis companhias comerciais. Entre elas a Companhia dos

Mares do Sul (South Sea Co.), que se propunha explorar as riquezas da América espanhola,

considerada mina inesgotável.

Os reis Jorge I e Jorge II reinaram no período compreendido entre 1714-1760.

Além disso, desde 1689 se estabeleceu uma pendência com a França, que durou, com

ligeiras interrupções, cerca de cem anos. Guilherme III de Orange teve de lutar, ao

mesmo tempo, contra Irlanda e Escócia, para estabelecer-se no poder. Seu governo

trouxe consigo a corrupção política e religiosa da casa de Hanover, a cuja dinastia pertencia

Guilherme. Isto nos ajuda, por certo, a formar idéia geral da situação. Particularmente no

terreno religioso, as condições eram alarmantes, como o revela a citação que segue:

"Com a ascensão ao trono da casa de Hanover, a Igreja entrou num

período de vida anêmica e inativa: muitos estabelecimentos eclesiásticos

foram descuidados. Os serviços religiosos diários foram descontinuados, os

dias santificados já não eram levados em consideração; a Santa Comunhão

era observada ocasionalmente; pouco se cuidava dos pobres, e embora a Igreja

conservasse sua popularidade, o clero era preguiçoso e olhado com

desprezo. Ao submeter-se ao estabelecimento da coroa real, o clero

geralmente sacrificava suas convicções pelas conveniências, e por isso seu

caráter se envilecia (tornava-se vil, aviltado, desonrado). As promoções

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Page 14: Estranha estirpe de_audazes

dependiam exclusivamente da profissão que se fazia dos princípios

conservadores. A Igreja se considerava subordinada ao Estado. Sua

posição histórica e suas prerrogativas eram ignoradas. E era tratada pelos

políticos como se sua função principal fosse apoiar o governo." (5)

Sucintamente, este foi o mundo em que viveu Samuel Wesley. Nós nos

maravilhamos de que em tal ambiente pudesse desenvolver-se um homem de seu porte.

Isso explica porque o meio ambiente pode não ser o único fator na formação de uma

personalidade. Porque, acima de tudo, o que se aninha no coração é o que faz, em última

análise, que uma vida floresça em virtude e utilidade. E o que Samuel armazenou nele foi

uma profunda fé nos valores permanentes da religião cristã.

Uma olhadela a Epworth nos ajudará a admirar ainda mais a pessoa de Samuel

Wesley. Epworth não era lugar muito grande. Era tão-só uma vila que contava com um

mercado e dois mil habitantes. Não obstante, distinguia-se por ser o lugar mais importante do

Distrito, conhecido com o nome de Ilha Axholme, cujas dimensões eram de 16 quilômetros

de comprimento por 6 quilômetros de largura. Epworth era a mais importante das sete

paróquias estabelecidas naquela região, e foi dedicada a Santo André. A paisagem não

era muito poética. Os terrenos pantanosos que circundavam a região davam-lhe aspecto

desolador. O solo era baixo e sujeito às inundações prolongadas. E ainda mais, os

habitantes não eram mui corteses com as pessoas que não fossem do mesmo estofo

(nível, categoria) social que eles.

O Rev. W. H. Fitchett nos pinta vividamente o caráter hostil dessa gente:

“Cinqüenta anos antes (que Samuel Wesley fosse estabelecer-se ali)

essa rude casta havia mantido uma guerra civil mal dissimulada com o

engenheiro holandês Comélio Vermuyden, a quem Guilherme de Orange havia

contratado para dessecar (tornar seco) esse velho pantanal: rompiam-lhe os

diques, espancavam seus operários, queimavam-Ihe as colheitas. Igual atitude

conservaram com o próprio Samuel Wesley: acutilavam (golpeavam com

cutelo, agrediam com arma branca) suas vaquinhas e mutilavam as ovelhas;

rompiam os diques à noite para inundar-lhe o pequeno campo; perseguiam-no

amiúde por suas dívidas e trataram, não sem êxito, de queimar abertamente

a casa pastoral, para depois acusá-Io de que ele mesmo havia posto o fogo." (6)

Page 15: Estranha estirpe de_audazes

Tal foi a comunidade a que serviu, durante trinta e nove anos, com paciência de

Jó. Perseguições, ódios, prisões não removeram de seu posto o pároco de Epworth.

Manteve sempre um temperamento decidido e valente. Uma vez e outra seus amigos

instaram com ele para que abandonasse esse lugar, mas ele não o fez. Em 1705

escreveu ao arcebispo de York, de sua prisão na fortaleza de Lincoln, o seguinte:

"A maioria de meus amigos me aconselha a abandonar Epworth, se é

que realmente me proponho sair daqui com vida. Confesso que não

compartilho essa idéia, porque imagino que posso ainda fazer algum bem ali;

sentir-me-ia covarde se desertasse do meu posto só porque o inimigo

concentra seus dardos inflamados contra mim. No momento chegaram a ferir- me,

mas creio que não poderão matar-me."(7)

Essas palavras "posso ainda fazer algum bem ali" expressam a confiança

maravilhosa de um homem sadio e de uma alma generosa. Oxalá muitos de nós tivesse o

mesmo espírito de resistência e esperança! Essa atitude merece respeito e admiração.

Evidentemente possuía a paciência de um santo. Mui poucas vezes se põem em

evidência os valores morais desse homem. Mas com freqüência se recordam com ironia sua

tediosa poesia e suas dívidas. Seria bom verificar se aqueles que acentuam sua inabilidade

financeira teriam podido fazer render melhor que ele seus minguados recebimentos,

diminuídos ainda mais pela hostilidade perversa de seus paroquianos! Talvez muitos

deles se entregassem ao desespero. Samuel fez o que esteve a seu alcance para

manter-se em dia, mas não lhe foi possível. Seu escasso salário e família numerosa não lho

permitiam. Extraordinário, sem dúvida, foi o fato que em meio a tantos tumultos e

necessidades, chegasse a escrever tanta poesia! Isso, certamente, o ajudou a viver.

Apesar de sua pobreza, empenhou-se em dar a seus filhos varões a melhor

educação que era possível obter na Inglaterra. Ele e sua esposa sacrificaram tudo a fim de

dotá-Ios convenientemente para a vida. Não se pode ler a carta que escreveu a seu filho

João, antes que este fosse ordenado, sem deixar de sentir grande admiração por esse

homem. Dizia-lhe, entre outras coisas:

"Lutarei durante por obter o dinheiro necessário para tua ordenação e o que for

necessário." (8)

Não somente providenciou dinheiro para os filhos que estavam na escola, mas

também, dia após dia, escrevia-Ihes cartas que eram de inapreciável mérito. As que

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escreveram a seu filho Samuel (o mais velho dos varões), durante os anos 1706 a 1708 em

que este esteve na universidade, são de tal magnitude, que o lê-Ias ainda hoje nos comove.

Qualquer filho poderia sentir-se moral e espiritualmente elevado se seu pai lhas escrevesse.

Impregna-as um sensível espírito de piedade, amizade e sabedoria cristã. Não nos

admiremos, pois que seus filhos crescessem para ser tão sábios!

Um espírito heróico domina a fé de Samuel Wesley. Ante os desacertos mais

trágicos e provas mais terríveis de sua vida, sempre se manteve fiel a Deus. Jamais o

deixou de lado. Para ele, Deus era sempre o mesmo. Numa oração que nos deixou, dizia em

certo ponto:

"Estou cansado de minhas aflições, meu coração me falha, a luz de

meus olhos vai-se apagando,estou afundando-me em águas profundas e não

há quem possa ajudar-me. Mas ainda assim, espero em ti, meu Deus. Embora

todos me abandonem, o Senhor me susterá e nele encontrarei sempre a mais

verdadeira, a mais carinhosa, a mais compreensiva, infindável e poderosa

amizade. Deixem-me que nele eu alegre minha alma atribulada e descanse de

todas as minhas tristezas." (9)

Escrevendo ao Duque de Buckingham acerca do incêndio de sua casa pastoral

em 1709, depois de terminar de contar-lhe daquela noite trágica de incêndio, conclui:

“...tudo está perdido. Louvado seja Deus!" (10)

Esta última frase nos recorda a exclamação de Jó quando perdeu tudo o que de mais

querido possuíra na vida. Um pai, com tal fé e esse sereno espírito de submissão ao Senhor,

não podia senão influir de modo positivo na vida e pensamento de seus filhos. Esteve

sempre mui chegado a sua esposa. Não lhe deu toda a comodidade de que ela precisava,

mas lhe deu tudo o que esteve a seu alcance. Escrevendo a respeito dele, depois de

trinta anos de vida conjugal, Susana diz:

"Desde que tomei a meu esposo para o melhor ou para o pior, tenho

decidido permanecer sempre a seu lado. Onde ele viva, viverei eu; onde ele

morra, morrerei eu e ali serei sepultada. Queira Deus acabar comigo e fazer

mais ainda, se alguma outra coisa que não seja a própria morte nos chegue a

separar." (11)

Por sua vez, ele a tinha em grande estima. No semblante que deixou de sua

15

Page 17: Estranha estirpe de_audazes

esposa, em seu poema ”A Vida de Cristo", encontramos estas duas linhas mui belas e

expressivas:

"Ela encheu de graça meu humilde teto e abençoou minha vida; em

sua bênção me foi muito mais que esposa." (12)

Samuel era homem erudito. Escreveu em latim seu último grande poema sobre

Jó. Amou muito a poesia. Foi uma das grandes paixões de sua vida. Ajudou-o em diversas

ocasiões a enfrentar as aperturas econômicas. Dominou bem o grego e o hebraico.

Gostava de estudar a Bíblia nas línguas originais. Conhecia também algo do idioma caldeu.

A João escreveu:

"Estou pensando, já faz algum tempo, em produzir uma edição em

formato oitavo da Bíblia Sagrada, em grego, hebraico, caldaico, no grego dos

Setenta e na Vulgata Latina, e já fiz alguns progressos nela." (13)

Nessa mesma carta pede a colaboração de João. Como vimos, Samuel foi fiel à

sua vocação pastoral. Por 39 anos batalhou com um povo quase selvagem. Mas

finalmente saiu vencedor. Em 1732 escreveu a seu filho Samuel esforçando-se por

induzi-lo a tomar seu posto. Uma das razões que lhe dava para que aceitasse sua

proposta, a que realmente põe em primeiro lugar, é esta:

"Minha primeira e maior razão para isso é que estou persuadido de que

servirás a Deus e a seu povo aqui melhor do que eu o fiz; embora, graças

sejam dadas a Deus!, depois de quase 40 anos de trabalho entre essa gente,

ela estará melhorando muito, havendo mais de cem presentes na última

celebração da Santa Ceia, quando geralmente não tenho tido mais de vinte." (14)

Uma vez e outra seus paroquianos tentaram destruir sua obra, mas nem por isso,

jamais se descoroçoou (desanimou). Prosseguiu seu caminho. Essa perseverança vamos

encontrá-Ia mais tarde aos adaís (líderes) metodistas, especialmente em seus filhos João e

Carlos. Estes, tampouco, recuaram quando se viram frente a frente com a oposição

mantida pelos clérigos da Igreja da Inglaterra. Coube-Ihes sofrer e esperar longo tempo,

mas finalmente os desprezados metodistas se impuseram à consciência pública,

contribuindo poderosamente para a própria vida nacional e melhorando sensivelmente

àqueles que os haviam perseguido e desprezado.

16

Page 18: Estranha estirpe de_audazes

A religião de Samuel Wesley não era meramente formal. Ele acreditava que a pessoa

devia chegar a ter segurança interna da salvação. Sustentava que a alma devia manter

relação direta com seu Criador. Antes de morrer, ao ter certeza de seu fim próximo, disse a

João Wesley: “O testemunho interno, filho, o testemunho interno; esta é a prova, a prova

mais verdadeira do cristianismo.” (15)

E pouco antes de deixar este mundo exclamou:

"Pensai no céu, falai do céu; todo o tempo em que não estamos falando

do céu, está perdido." (16)

A religião era para Samuel a maior das realidades. Sempre foi seu mais alto refúgio

e seu mais acariciado interesse. Sem dúvida ele teve suas fraquezas. Nenhum homem é

perfeito. Tendo em conta, pois, a debilidade humana, seria melhor que avaliássemos o

homem pelo que haja produzido de bom e permanente. Está fora de dúvida que a

humanidade seria muito melhor se todos os pais fossem fiéis a seu Senhor e

dedicados a sua família como Samuel Wesley o foi, e se pudessem oferecer a Deus e à

sociedade o tipo de filhos que ele legou à Inglaterra e ao mundo.

NOTAS:

(1) Stevenson, G. J.: "Memorials of the 'Wesley Family", pág 4.

(2) Stevenson, G. J.: Op. Cit (3) Pelo autor de "Wesley e seus Amigos”

4) Citado por Stevenson, G. J., Op. Cit. págs. 130-131, de uma carta que Samuel Wesley escreveu a seu filho João

com data de 21 de setembro de 1730.

(5) “Wesley and His Century", pág. 33. Stevenson, G. J., Op: Cit. pág. 92.

(6) “Wesley and His Century", pág. 33.

(7) Stevenson, G. J., Op: Cit. 92

(8) Stevenson, G. J., Op. Cit. pág 121

(9) Citado de Stevenson, G. J., Op. Cit. Pág 95.

(10) Ver carta em Stevenson, G. J., Op. Cit. 107-109.

(11) Citado de Stevenson, G. J., Op. Cit, pág 61. (12)

Idem (She graces my humble roof, and blest my life, Blest me by a far greater name than wife). (13)

Idem, pág. 120.

(14) Stevenson, G.J., Op. Cit. pág. 136.

(15) Idem, pág. 136.

(16) Idem, pág. 149.

17

Page 19: Estranha estirpe de_audazes

CAPÍTULO SEGUNDO

OS VANGUARDEIROS - 2

Os antepassados de João e Carlos Wesley pela linha paterna

“...minha preocupação mais entranhável é por tua

alma imortal e por tua felicidade espiritual..."

Susana Wesley

Não muitas mulheres cristãs da têmpera e caráter de Susana Wesley, mãe de João e

Carlos Wesley, enumeram a história da Igreja. Susana possuía muitas características

que lhe deram lugar de destaque entre suas congêneres, principalmente pelo renome e.

obra de seus filhos. Não possuímos muitas notícias a respeito de seus antepassados, salvo

algumas memórias acerca do seu pai Samuel Annesley e de seu av materno, João

White, com os quais nos deteremos brevemente.

18

Page 20: Estranha estirpe de_audazes

João White

João White era gaulês. Estudou também em Oxford, no Colégio de Jesus. Mais

tarde formou-se em leis e estabeleceu escritório de advocacia, de onde se empenhou na

defesa de muitos puritanos. Em 1636 foi eleito membro da Câmara dos Representantes,

opondo-se à política do rei Carlos I. Era presidente do "Comitê de Religião" e nessa

qualidade teve de haver-se com os casos de quase cem clérigos, cujas vidas não

harmonizavam com a posição que ocupavam. Como resultado dessa tarefa, que lhe

proporcionou ocasião para estudar a vida íntima do clero de sua época, publicou um

volume intitulado: "Primeiro Século de um Sacerdócio Malicioso e Escandaloso". Também foi

membro da "Assembléia de Teólogos" de Westminster. Consumiu-o cedo o zelo excessivo

com que se dedicava a suas múltiplas tarefas, a tal ponto que morreu ao contar tão-somente

54 anos de idade. Morreu em janeiro de 1644.

Uma coisa, entre outras, se impõe à recordação: num discurso que pronunciou no

parlamento, em 1641, tratou de provar que os ofícios de bispo e presbítero são a mesma

coisa. Asseverou, ainda, que as distinções que se fazem entre vigários, diáconos e outros

clérigos são produto de inovações humanas, sem razão de ser. (1) Não nos espantará,

pois, que João Wesley, seu bisneto, quase um século mais tarde, advogasse pela

igualdade de ordens entre o ofício de bispo, e de presbítero, e que o levasse, ante a

negativa de seu bispo, a ordenar alguns de seus pregadores itinerantes, ainda quando as leis

canônicas da Igreja da Inglaterra não lhe permitissem fazê-lo, a fim de prestar melhor serviço

eclesiástico por meio da Igreja Metodista que se havia formado na América do Norte, sob

alegação da independência política desse país.

19

Page 21: Estranha estirpe de_audazes

Samuel Annesley

Da família do pai de Susana não temos outras notícias senão as do próprio Samuel

Annesley. Sabemos que era de linhagem aristocrática, primo-irmão do conde de

Anglesley, e que nascera no ano de 1620 na localidade de Haseley, Warwickshire. Seu pai

faleceu quando ele tinha apenas quatro anos de idade. Sua mãe, mulher mui piedosa,

ensinou-lhe a ter em muita estima a pureza de vida religiosa. Diz um seu biógrafo:

"Desde a infância seu coração sentiu o chamado para pregar, e, a fim de

estar em condições de fazer tal coisa, começou a ler a Bíblia seriamente

quando tinha somente 5 ou 6 anos de idade. E tal era seu ardor que se propôs ler

vinte capítulos por dia, costume que manteve até ao fim da vida." (2)

Quando completou quinze anos foi para a Universidade de Oxford, matriculando-se

no "Colégio da Rainha" (Queen's College), onde se graduou Mestre em Artes. Aos 24

anos decidiu dedicar-se ao trabalho da Igreja. Foi num período difícil para a Inglaterra, na

época em que seu rei estava contra o parlamento. Depois de receber diploma de Doutor em

Leis (LL.D.), foi nomeado capelão de um barco de guerra, posto que não o agradou,

abandonando-o logo para assumir a responsabilidade da paróquia de Cliffe, no condado de

Kent, em cujo pastorado permaneceu por muitos anos. A princípio os paroquianos não o

queriam, mas lamentaram quando os deixou. Sua fidelidade lhe havia ganho o amor do

povo. Teve de deixar o lugar por causa de algumas coisas duras que ele disse contra a

execução de Carlos I e contra Cromwell e outros oficiais da "Commonwealth". Em 1652

assumiu o cargo da pequena paróquia de São João Evangelista, em Londres. Em 1657 foi

nomeado leitor para a tarde de domingo na catedral de São Paulo. Mais tarde Ricardo

Cromwell (filho de Oliver Cromwell) nomeou-o vigário de São Gil onde serviu até 1662,

quando foi sancionado o "Ato de Uniformidade".

Era puritano convicto e, como Bartolomeu e João Wesley (o avô), manteve sua

liberdade de consciência renunciando aos privilégios de uma paróquia da Igreja Oficial.

Durante dez anos pregou em particular e sob circunstâncias difíceis. E pelo que se

chamou mais tarde o "Ato de Indulgência", obteve permissão para pregar no salão de

cultos de "Little Saint Helen's". Serviu ali com fidelidade até que foi chamado à vida

superior.

Casou-se duas vezes. Sua primeira esposa foi sepultada em 1649 e o único filho de

Page 22: Estranha estirpe de_audazes

ambos faleceu também, em 1653. A segunda vez, desposou a filha de João White, em

1652, provavelmente depois de sua ida para Londres. De sua segunda esposa teve vinte e

quatro filhos, entre os quais Susana, mãe de João e Carlos Wesley, foi a última a

chegar. Era ela mulher de dotes piedosos e muita prudência, desvelando-se muito pela

instrução religiosa de seus filhos.

A casa de Samuel se constituiu em refúgio de muitos dissidentes e local de

encontro dos párocos não-conformistas. Aos jovens estudantes da "Academia dos

Dissidentes" era agradável estar em sua casa. Entre eles encontramos Samuel Wesley (pai

de João e Carlos), e sem dúvida, foi naquela época que travou conhecimento com aquela

com quem se casaria alguns anos mais tarde. Consta que o Dr. Annesley era mui frugal

em sua maneira de viver. Diz o historiador da família:

"Bebia tão-somente água. Estudava num cômodo no desvão de sua

casa, com as janelas abertas e sem aquecimento no verão ou no inverno.

Tinha uma renda considerável das propriedades que herdara, além de seu

salário, todavia separava para fins benevolentes a décima parte de tudo quanto

recebia, prática que punha em exercício antes de usar o restante em outras

coisas." (3)

Como veremos mais adiante, encontraremos traços de algumas destas

características em seu neto João Wesley.

Page 23: Estranha estirpe de_audazes

Susana Wesley

Susana Wesley ocupou o vigésimo quarto lugar entre os filhos que o Dr. Samuel

Annesley teve de seu segundo matrimônio. Nasceu ela em Londres, a 20 de janeiro de 1669.

Recebeu educação fora do comum para uma mulher de sua época. Além da língua materna,

estudou grego, latim e francês. De uma carta que seu esposo escrevera a seu filho Samuel

em 1707, infere-se que ela não tinha conhecimento mui esmerado de latim. O pai, ao

insinuar a seu filho que lhe escreva acerca de seus pensamentos mais íntimos, diz-lhe:

"...eu te prometo segredo, que mesmo tua mãe de nada saberá, a

menos que tu queiras que ela saiba, por isso seria conveniente que me

escrevesses em latim." (4)

Provavelmente ela o havia esquecido por não usá-lo, pois o Dr. Fitchett diz que o

conhecia em sua adolescência.(5)

Adornava-a uma inteligência brilhante e mente vivaz. Desde a infância manifestou

interesse incomum pela teologia. Depois de ponderar os motivos que haviam suscitado as

controvérsias entre os Dissidentes e a Igreja da Inglaterra, decidiu lançar sua sorte com esta.

Contava, então, 13 anos de idade. Casou-se com Samuel Wesley na primavera de 1689 e

trouxe ao mundo dezenove filhos no espaço de 21 anos. Sobreviveu sete anos além de seu

esposo. No entanto, quando faleceu, alcançou a mesma idade que ele tinha ao morrer,

isto é, 72 anos.

Nessa ocasião estava em Londres vivendo com seu filho João Wesley na

chamada Fundição (local de cultos que João Wesley adaptara de uma velha fundição de

canhões).

Certamente Susana foi uma das mais instruídas e inteligentes mulheres de sua

época. O Dr. Fitchett assevera que "ela era, provavelmente, a mulher mais capaz de toda a

Inglaterra em sua época".(6) Contudo, a grande glória de Susana não a encontramos em seus

conhecimentos intelectuais, e sim em seu poder de penetração e em sua

sensibilidade espiritual. Temos de admirá-la, também, por sua consagração aos

interesses e misteres do lar, pelo cuidado extremo que dedicou aos filhos, pela

intensidade de sua fé e a paciente integridade com que soube enfrentar as diversas e

contínuas provas de sua vida. Diz o Dr. Fitchett que lhe faltava veia humorística.

Possivelmente isso fosse verdade, mas devemos recordar,.nos de que era responsável

por uma família numerosa, e que muitas vezes tinha de engenhar para alimentá-la, de

Page 24: Estranha estirpe de_audazes

modo particular quando o esposo estava no cárcere por causa das dívidas contraídas.

Estava sujeita a sofrer os desmandos do povo hostil, que, geralmente

demonstrava pouca ou nenhuma simpatia com sua família, e serenamente assistiu à

reiterada prova e humilhação de ver o esposo ir para o cárcere. Demais, sua saúde era

pobre, o que fez seu marido informar seu arcebispo: "Minha esposa está enferma a metade

do tempo". (7) Nestas circunstâncias era realmente difícil conservar veia humorística!

Foi esposa exemplar e mãe modelo. Como esposa sempre esteve pronta para

seguir o marido e secundá-lo em todas as ocasiões e provas. Por ele esteve disposta a

submeter-se aos maiores sacrifícios e a defendê-lo de qualquer ataque que alguém

ousasse fazer-lhe. Em todo sentido foi grande ajudadora, tanto em sua vida como em sua

obra. Como mãe, extremou-se em dispensar aos filhos o melhor e mais nobre do que é capaz

de oferecer a religião cristã. Talvez tenha sido mui severa e rígida em seus métodos

educativos. Todavia, o importante é que adotou um método e, acima de tudo, um método

digno dirigido para um fim elevado. Acostumava os filhos a ter horas marcadas para cada

dever, e ela foi a única professora que cada um deles teve na aldeia de Epworth. Seu

filho Samuel foi o único a quem providenciaram professor particular durante a infância.

Para Susana, o supremo no lar era a religião. Preocupava-se com extremo zelo

pela educação religiosa dos filhos. Esta foi a razão por que os filhos varões chegaram a ser

personagens tão distintos e úteis para o mundo todo. Separava, além das devoções

familiares, uma hora semanal para cada um deles. No ano 1712 escreveu a seu esposo:

"Resolvi começar com meus próprios filhos e, portanto, me propus

observar o seguinte método: Tomo, da porção de tempo que posso

economizar cada noite, o necessário para discorrer com cada um deles,

separadamente, acerca do que seja sua principal necessidade. Segunda-feira

conversava com Molly, terça-feira com Hetty, quarta-feira com Mary, quinta-feira

com Jacky, sexta-feira com Patty, sábado com Carlos e domingo com Elimia e

Sukey juntas." (8)

Como vimos, a noite dedicada a João era a quinta-feira. Podemos imaginar a

influência que isso teria sobre sua jovem vida. Foi nesse mesmo ano quando escreveu

essa carta, que começou a ter reuniões em sua casa enquanto o esposo estava ausente

durante vários meses. Surpreendentemente a freqüência foi crescendo cada vez mais em

22

Page 25: Estranha estirpe de_audazes

número. Às vezes mais de duzentas pessoas vieram ouvir suas exortações e a leitura de

sermões. Duas vezes, por instigação do ajudante de seu esposo, ela recebeu do marido

sugestão para que desistisse de dirigir tais reuniões, por achar que era conduta

inconveniente para uma mulher. Não obstante, ela continuou adiante com esse costume. E

respondendo à segunda carta, que sobre o assunto lhe escrevera o esposo, disse-lhe:

"Se tu, sem dúvida, pensas que é conveniente dissolver esta assembléia,

não me digas que desejas que eu o faça, porque isso não seria suficiente para

satisfazer a minha consciência. Se assim for, envia-me tua ordem positiva, em

termos tão completos e terminantes que me absolvam de toda culpa e castigo por

haver descuidado esta oportunidade de fazer o bem, no dia em que tu e eu

apareçamos diante do grande e terrível tribunal de Nosso Senhor Jesus

Cristo." (9)

Diante dessa ordem inequívoca, Samuel Wesley nada mais disse, nem mencionou o

assunto em cartas posteriores. Ela, portanto, continuou com as reuniões, o que

conquistou para a Igreja a simpatia e o interesse do povo que por tantos anos antes se

havia conservado alheio aos interesses religiosos. Desta maneira, trouxe ela grandes

benefícios à obra do esposo, maiores do que este conseguira durante muitos anos de seu

ministério ali. João e Carlos estavam em casa nesse período. Certamente que tais

reuniões deviam ter deixado funda impressão em suas mentes infantis. Sua mãe estava

iniciando-os numa prática que eles adotariam mais tarde em todo seu ministério: a de

dirigir reuniões de caráter devocional e evangelizador fora da Igreja.

A educação religiosa que ela principiara em casa com cada um dos filhos não se

interrompia quando eles saíam do lar por seus estudos ou outras razões. Continuava seu

ministério maternal através de cartas. A leitura das cartas que ela escrevia a seus filhos e a

seu esposo nos seria de grande benefício, pelo profundo espírito de piedade que exala de

todas elas. Através das palavras que traduziam seus pensamentos, vislumbramos a alma

de uma mãe zelosa ajoelhada diante do Senhor, rogando por bênçãos

permanentes a favor dos filhos. Exemplo do espírito que a incitava a escrever essas cartas

encontramo-lo no seguinte fragmento de uma que escrevera a sua filha Susana:

"Tu sabes mui bem como te amo. Amo teu corpo e rogo ferventemente a

Deus Todo-poderoso que to mantenha com saúde, que te conceda todas as

23

Page 26: Estranha estirpe de_audazes

coisas necessárias a teu bem-estar e sustento neste mundo. Entretanto, minha

preocupação mais entranhável é por tua alma imortal e por tua felicidade

espiritual. Não posso expressar melhor meu interesse nesse sentido, senão

esforçando-me por insti lar-te, a todo instante, aqueles princípios de

conhecimento e verdade que são absolutamente necessários para que te

empenhes em levar aqui uma vida virtuosa, que é o único que pode

infalivelmente assegurar tua felicidade eterna." (10)

Ainda que muitas vezes estivesse impossibil itada de mover-se por suas

freqüentes enfermidades, não se escusava de cumprir com sua obrigação de mãe cristã, e

empenhava-se, então, em escrever longas cartas a seu Samuel, ou a João, ou a

Susana, ou a Carlos. Mesmo depois que eles se casaram e eram portadores de graus

acadêmicos, continuou seu ministério paciente e epistolar, exortando-os a viver sempre

junto ao Senhor, e a servi-lo. De sua parte, freqüentem ente os filhos a consultavam

quando se lhes apresentava algum assunto importante para resolver. Mais de uma vez

ajudou a João no desenvolver de seu movimento religioso. Especialmente útil foi seu

conselho quando, nas Sociedades Metodistas, se iniciou a pregação leiga. Sua palavra,

discreta e serena, mui amiúde evitou que seu filho João, levado pelo impulso do

momento, tomasse resoluções precipitadas.

Vale a pena notar que atrás de cada grande homem da História, quase

invariavelmente se descobre o grande, piedoso e amoroso coração de uma mãe

consagrada.

Sua fé em Deus e em Cristo era maravilhosa. Nada, nem ninguém podia separar seu

coração da companhia de Deus. Foi mulher que sofreu muito, mas tanto ela quanto seu

esposo jamais olvidaram que Deus era sua fortaleza e salvação. Cria firmemente na eficácia

da oração intercessória. Orava com seus filhos quando viviam a seu lado, e por eles

quando se achavam ausentes, dedicando sempre muito tempo a suas devoções. Era muito

organizada, meticulosa e severa em muitos de seus métodos. A esse respeito escreveu

certa ocasião:

"Quando era jovem e dedicava demasiado tempo a diversões infantis,

resolvi não gastar em passatempos nem um só dia, mais do que eu pudesse

dedicar a minhas devoções pessoais."

Page 27: Estranha estirpe de_audazes

Alguém que a conheceu muito intimamente escreveu :

"A graça manifestava-se em todos os seus passos, o zelo se refletia em

seus filhos e cada gesto seu expressava divindade e amor."

Em seus empreendimentos era pertinaz e perseverante. Basta um incidente para

ilustrar essa característica. Um dia o esposo havia estado observando-a enquanto ela instruía

a um de seus filhos. Num dado momento interrompeu-a para dizer-lhe:

"Admira-me a tua paciência. Disseste aquele menino vinte vezes a

mesma coisa." A isso ela respondeu: "Se eu me houvesse contentado em

dizê-la somente dezenove vezes teria perdido tudo. Pudeste verificar que foi

somente a vigésima que coroou meu trabalho." (11)

É muito possível que sua religião pudesse parecer, às vezes, demasiado

mecânica e formal. Entretanto, impregnava-a uma fé e esperança portadoras de muitas

bênçãos morais e espirituais. Sem dúvida que é melhor ter um método, a não ter nenhum e

esquecer-se dos ditames de uma vida religiosa. Por certo que o mundo é mais rico no que

se refere aos valores morais e espirituais, pela vida que levou essa mulher piedosa e heróica,

cujas virtudes se manifestara;m e desenvolveram tão meritoriamente no seio de sua casa e

família. Um dos estudiosos da história do metodismo fez sobre seu caráter este elogioso

comentário:

"Tenho-me familiarizado com muitas mulheres piedosas e tenho lido

sobre a vida de outras, mas de uma mulher como essa, completa e perfeita,

nunca tenho ouvido falar, tampouco tenho lido que existisse e jamais tenho

entrado em contacto com uma de .tal magnitude. Apenas Salomão descreveu no

final de seus Provérbios a uma tal como esta, e adotando suas palavras, posso

dizer: "Muitas mulheres procedem virtuosamente, mm Susana Wesley a todas

sobrepuja'." (12)

Ela, em verdade, foi uma dessas almas que mui raras vezes passam entre nós, e

cujas vidas exalam a íntima graça divina: amando, servindo e sofrendo em nobre silêncio.

Bem-aventurada seja sua memória!

25

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NOTAS:

(1) Stevenson, Q. J., Op. Cit., pág. 158.

(2) Mc Tyeire, H. N.: "History of Methodism”, pág. 20

(3) Pelo autor de "Wesley and his Friends", pág. 20.

(4) Stevenson, G. J., Op. Cit. Pág. 104. (5) Idem, pág 15.

(6) Stevenson, G. J., Op. Cit., pág. 16.

(7) Fitchett, W. H., Op. Cit., pág. 18.

8) Citado de uma carta que ela escreveu a 6 de fevereiro de 1712, Stevenson, G. J., Op. Cit. pág. 195

(9) Stevenson, G. J., Op. Cit., pág. 197, citado de uma carta que ela escrevera em 25 de fevereiro de 1712.

(10) De uma carta escrita de Epworth, a 13 de janeiro de 1709 ou 1710, citada por Stevenson, G. J., Op. Cit. 281.

(11) Wiseman, F. Luke, "Charles Wesley", pág. 19.

(12) Clarke, Adam Dr., citado por Stevenson, G. J., Op. Cit., pág. 230.

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CAPÍTULO TERCEIRO

UM TIÇÃO

TIRADO AO FOGO

“O Mundo é minha paróquia”

João Wesley

Entre os grandes evangelistas e reformadores da Igreja Cristã está João Wesley,

filho de Susana e Samuel Wesley, dos quais já falamos em páginas anteriores, e

certamente figura entre os mais destacados. Sua figura singular atrai, todavia, a lealdade de

muitos milhões ao redor da Terra, como alguém que soube interpretar a Cristo e

apresentá-lo às multidões com a graça perdoadora e redentora que aparece no

Evangelho.

Como a maioria dos grandes reformadores e evangelistas da História, ele não estava

interessado no estabelecimento de um novo corpo eclesiástico que levasse seu nome, e

sim numa renovação da vida da Igreja e na formação de uma consciência aberta aos influxos

da graça divina. Que seu movimento se concretizasse mais tarde em uma nova denominação

foi conseqüência de fatores que ele não pôde controlar. É importante recordar, em conexão,

que João Wesley, como seu irmão Carlos, jamais abandonou as fileiras da Igreja Anglicana

a cujo ministério se consagrara. Demonstra isto que diverso era seu propósito ao iniciar o

movimento que outros, e não ele, batizaram-no com o nome de Metodista.

Nasceu João Wesley no já descrito povoado de Epworth, a 17 de junho de 1703. Sob

26

Page 30: Estranha estirpe de_audazes

a vigilância e tutela de sua mãe iniciou-se primeiramente nas lides do intelecto. No dia em

que completou cinco anos, como soia (costumava) acontecer com todo filho de Susana, teve

de aprender de cor todo o alfabeto. E o primeiro livro de leitura que teve na vida foi a Bíblia.

Cresceu numa atmosfera impregnada de piedade e disciplina. Sua mãe, como nos

lembramos, era muito rigorosa em seu método educativo, e bem depressa João teve de

aprender a chorar em silêncio quando era castigado sob o conceito bíblico, segundo o qual,

quando a mão paterna ou materna castiga, fá-Io para saúde de quem recebe a correção. O

amor de seus pais era, portanto, temperado com essa rigidez disciplinar, que fazia parte da

herança deixada a sua família por seus antepassados. A vida, mais do que gozo, era

disciplina que devia conduzir o indivíduo aos caminhos celestiais e salvá-lo das

tentações "do mundo, da carne e do diabo". Diz o seguinte um comentarista da vida familiar

dos Wesley:

"Não se julgava, então, que merecesse o nome de educação o que não

estivesse baseado no cristianismo e santificado pela Palavra de Deus e pela

oração. A religião familiar, no lar dos Wesley, formava parte essencial de sua

disciplina. E era caso de consciência instruir as crianças e dependentes sobre a

natureza de seus deveres sociais, morais e espirituais. Também tinham por prática

separar dias especiais para a oração, para a humilhação em épocas de

calamidades, e para a ação de graças ao ser recipientes de benefícios

especiais. " (1)

Já vimos como Susana escreveu a seu esposo em 1712 que ela tomara a

resolução de separar uma hora por semana para estar a sós com cada um dos filhos.

João tinha essa entrevista com sua mãe à noite de quinta-feira. Contava nessa época

apenas 9 anos. Entretanto essa foi uma das vivências que mais impressionaram o

menino, e sua recordação duraria toda a vida. Mais tarde, quando ele se encontrava longe do

lar e em meio de lutas de seu apostolado evangelizante, escreveu a sua mãe rogando-lhe

que ainda separasse para ele aquela hora, de maneira que ela pudesse acompanháIo com

seus rogos e orações, ou escrever-lhe sobre coisas de ordem espiritual.

Acostumou-se, desde cedo, a separar cada hora do dia para algo em particular. Buscava,

desse modo, aproveitar ao máximo seu tempo, para não desperdiçá-lo por falta de

disciplina ou em frivolidades.

Por duas vezes a casa pastoral foi incendiada pelo populacho da paróquia durante a

27

Page 31: Estranha estirpe de_audazes

infância de João Wesley. Uma vez queimou-se apenas em parte, e outra (em 1709)

totalmente, ficando destruídos os móveis, livros e manuscritos do pai. Na segunda

ocasião a mãe estava enferma, e com dificuldade pode escapar, não sem chamuscar as

mãos e o rosto. João achava-se dormindo no segundo piso. Quando perceberam isto, o pai

tentou resgatá-lo, mas era impossível: o fogo já havia tomado conta da escada que levava ao

andar superior. Então convidou os que haviam acudido ao local a ajoelhar-se e pedir a Deus

que recebesse em seu seio a alma do filho. Nesse momento se ouviu o choro do menino

que assomava (apareceu) desesperado pela janela de seu quarto. Ato contínuo um homem

subiu sobre os ombros de outro com tempo suficiente para alcançá-lo e descê-lo, livrando-o

do perigo. Feito isto, o teto caiu em chamas para dentro da casa. E à luz das chamas que

devoravam os restos da mansão, ajoelharam-se o grupo da casa pastoral e os vizinhos, a

convite do pai: "Vinde, vizinhos, ajoelhemo-nos e agradeçamos a Deus que me deu meus

oito filhos. Que se vá a casa! Sou suficientemente rico!" (2) E Wesley recordaria mais

de uma vez, ao longo da vida, este terrível incidente. Num de seus retratos mandou

gravar como emblema uma casa em chamas e a legenda: "Um tição tirado ao fogo!"

Aos 11 anos, isto é, em 1714, teve de deixar o lar e ir para Londres, onde

freqüentou como aluno interno até 1719 a escola Charterhouse. Naqueles dias a vida de um

interno era mui severa, e os meninos eram tratados com disciplina rígida, quase como se

estivessem num mosteiro. A situação se agravava ainda mais quando o aluno procedia de lar

pobre. Muitas vezes devia sofrer vexames da parte daqueles que se sentiam

superiores por sua posição social ou haveres de seus pais. João era por índole um tanto

tímido, e durante esses anos freqüentemente teve de suportar a fome, porque seus

colegas - coisa que era permitida nos internatos daquela época - tiravam-lhe a comida do

prato. Como era de constituição franzina, e por conselho paterno, cedo de manhã corria certo

número de vezes ao redor do edifício principal da escola, para fortalecer as pernas e os

pulmões. Hoje em dia consideraríamos tal disciplina inadequada, e trataríamos de ver que

um menino, em tais condições, tomasse mais alimento e vitaminas! Porém essas eram

outras épocas e os meninos não eram tratados como tais, e sim como adultos em miniaturas.

Tinham de aprender na rudeza da vida a fazer-se fortes e homens.

Por certo que foram anos de prova esses passados na Charterhouse. Ainda mais,

durante os mesmos fortaleceu-se-Ihe o ânimo e ele se preparou para aquela disciplina

que lhe seria necessária mais tarde, quando teve de fazer frente a tanta oposição e

perseguição. E periodicamente, como que para alentá-lo, chegavam as cartas de seus

pais, exortando-o a permanecer fiel a sua tradição religiosa no meio de tantos meninos que

Page 32: Estranha estirpe de_audazes

não haviam tido, nem remotamente, a mesma influência cristã. O certo é que João Wesley

não guardou em sua memória recordações mui gratas daqueles anos. Olhava para eles

sem nostalgia, com sentimento de alívio; que sorte que haviam ficado para trás na história de

sua vida!

Em 1720 entrou para a Universidade de Oxford, assim como o haviam feito seus

antepassados, permanecendo ali, com pequenos intervalos, até 1735. Nos átrios

universitários não encontrou muito incentivo para aprofundar a vida religiosa. Nunca chegou a

perverter-se pelos costumes livres, quando não licenciosos e profanos, de seus colegas.

A religião era para ele, mais do que gozo interior, a observância de regras estritas.

Durante os anos que esteve ali se inclinou, primeiro para o formalismo e, depois, para uma

disciplina férrea. Essa religião deixava nele, com freqüentes assomos (indícios,

suspeitas) de crise, um sabor de descontentamento. Buscava cumprir os requisitos

legais, entretanto sua alma parecia ter fome de algo que não conseguia obter, e que ele não

sabia exatamente o que era. Como conseqüência se excedia em atos de caridade e

misericórdia, especialmente entre os pobres, os encarcerados e os enfermos. O motivo era

sempre mais do que, por um sentimento de solidariedade, buscar aplacar a "ira de Deus"

através desses atos e aparecer justificado ante os olhos divinos. Essa luta entre uma religião

formal e uma vivência pessoal interna da presença de Deus, perduraria muitos anos depois

de concluir seu curso de Bacharel em Artes. Durante aqueles anos sua peregrinação

espiritual sofreu muitos altibaixos (altos e baixos), apesar de haver-se ordenado

diácono em 1725 e presbítero em 1728.

Entre as influências que o ajudaram em sua formação religiosa destacam-se três

autores: Thomas Kempis, Jeremias Taylor e William Law, além de seu contacto com os

morávios (cristãos de origem na Morávia, Alemanha, cujo grande líder foi o Conde de

Zinzendorf) e de uma experiência missionária na colônia da Geórgia, região que hoje em dia

faz parte da América do Norte. Esses escritores, de caráter profundamente religioso e às

vezes especulativo, habituaram-no a pensar agudamente nos problemas da vida e da

morte, relacionados com a revelação cristã. Os morávios o levaram a busca de uma

religião que fosse expressão da fé pessoal em Cristo. E sua experiência missionária lhe

ensinou que, antes de poder evangelizar outros, o evangelista deve ter uma convicção

pessoal, profunda e íntima. Mui significativa é a confissão que escreve em seu Diário, em

fevereiro de 1738, ao voltar de sua aventura missionária na América, vendo novamente as

costas da Inglaterra: "Fui à América para converter os índios, mas, oh! quem me

converterá a mim?"

29

Page 33: Estranha estirpe de_audazes

Somente depois de muito buscar nos escaninhos de sua consciência, de praticar

longamente com seus amigos morávios, de participar em reuniões de oração e exortação

com eles, chega à plenitude de sua experiência religiosa. Foi nessa inolvidável

(inesquecível) noite de 24 de maio de 1738, enquanto se realizava uma humilde reunião num

salãozinho de uma ruela de Londres, chamada AIdersgate, dirigida, presumivelmente, por

um leigo, cujo nome se desconhece, quando mediava (lia) a leitura do prefácio de Lutero à

epístola de São Paulo aos Romanos, que sentiu o amor de Deus "derramar-se em seu

coração".

É bem conhecida a descrição que ele mesmo faz dessa experiência. Narra-a em seu

Diário:

“Cerca das nove menos um quarto (20:45h), enquanto ouvia a

descrição que Lutero fazia sobre a mudança que Deus opera no coração

através da fé em Cristo, senti que meu coração ardia de maneira estranha.

Senti que em verdade eu confiava em Cristo, em Cristo somente para a salvação

e que uma certeza me foi dada de que ele havia tirado meus pecados, em

verdade os meus, e que me havia salvo da lei do pecado e da morte. Comecei a

orar com todo meu poder por aqueles que de alguma maneira especial me

haviam perseguido e insultado. Então testifiquei diante de todos os presentes

do que pela primeira vez sentia em meu coração." (3)

Desde esse momento sentiu-se novo homem e saiu dali "jubiloso" para ir em busca de

seu irmão Carlos, que na época estava enfermo, para informá-lo acerca de seu achado em

Cristo. Sentia-se com novos brios e indescritível entusiasmo. Mais tarde, interpretando

sua própria vivência religiosa através dos anos, diria que antes de Aldersgate sua relação

para com Deus havia sido a de um escravo para com seu senhor, e depois dessa época, a

de um filho para com seu pai. Foi a transferência de uma religião do temor para uma

religião de amor, de uma relação legal para uma relação de fé.

Não temos espaço suficiente para seguir toda sua trajetória espiritual desde 1724,

quando terminou o curso de Bacharel em Artes, até 1738, quando teve sua gloriosa

experiência. Já fizemos referência as suas ordenações. Mencionaremos ainda que em

1726, apenas um ano depois de sua primeira ordenação, foi nomeado tutor ("Fellow") na

Universidade de Oxford, no Colégio de "Lincoln", função que interrompeu entre 1727-

Page 34: Estranha estirpe de_audazes

1729 para ser ajudante de seu pai na paróquia de Epworth. Samuel alimentava

esperanças de que o filho o sucedesse após sua morte. Mas João voltou a Oxford em 1729,

insistindo com seu pai em que não se ajeitava mais viver longe dos átrios universitários.

Tinha ali muito mais tempo e oportunidade para satisfazer a sede de saber que

sempre o incitava a novos conhecimentos e estudos. Uma simples olhadela em seu

programa (atividades, agenda) intelectual daqueles dias nos claramente porque a vida em

Epworth não teve atração suficiente para retê-lo.

"Dava lições de grego e era monitor das classes; primeiro foi instrutor de

lógica e mais tarde de filosofia. Demais, em seu plano semanal de estudos

pessoais incluiu o hebraico, árabe, grego, latim, lógica, ética, metafísica, filosofia

natural, oratória, poesia e teologia." (4)

João Wesley permanece em seu posto de tutor e instrutor até o mês de outubro de

1735, quando se retira com seu irmão Carlos e outros dois companheiros

universitários para ir à Geórgia. Já fizemos referência a essa sua aventura missionária e

sua volta à Inglaterra que culminou com a experiência religiosa em Aldersgate.

Desde 1738 até 9 de março de 1791, dia de seu falecimento, não recuaria em sua

imortal obra evangelizadora, tarefa que levou a cabo em todo o Reino Unido da

Grã-Bretanha. Contar essa dramática história, cheia de emotivas e estranhas peripécias e

extraordinárias realizações no campo religioso, tomar-nos-ia muito espaço. Os que

desejam penetrar mais fundo na vida deste homem têm à sua disposição grande

variedade de livros e outros materiais. Temos espaço apenas para notar algumas das

muitas características desse longo ministério. Antes, porém, daremos outra nota

biográfica que pode ser de interesse para completar o quadro de confronto.

João Wesley, sempre tão sagaz e clarividente em seus contactos e conhecimentos da

natureza humana, foi muito infeliz na busca de uma companheira que o secundasse

(ajudasse, auxiliasse) em sua obra e lhe desse um lar onde refazer suas forças ao calor do

afeto familiar. Não teve êxito algum em várias tentativas que fizera, tanto na Inglaterra

como na América, e que terminaram por uma razão ou outra em desgostos e desilusões.

Finalmente, casou-se em 1752 com uma viúva, mãe de dois filhos, que havia sido esposa de

um comerciante de nome Vizelle ou Vazeille, mulher de certa inteligência, que

aparentava ter dotes suficientes para dar-lhe o lar de que necessitava. Mas logo

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Page 35: Estranha estirpe de_audazes

percebeu que essa não era mulher para seu temperamento e tarefas. Ele não era homem

que pudesse estar inerte em casa. Dois meses após o enlace (casamento) estava

novamente entregue de cheio (totalmente) à vida itinerante.

Ela o acompanhou por algum tempo, mas acostumada como estava a outro teor (ritmo)

de vida, não pode, naturalmente, dar-se a esse constante peregrinar. O Dr. Stevens a

descreve assim:

"Infensa (contrária, adversa) a viajar, desgostou-se igualmente com as

ausências habituais do esposo. Por fim seu desgosto tomou a forma de ciúmes

monomaníacos (seus ciúmes e desconfianças eram idéia fixa, obsessivos).

Durante quase vinte anos o perseguiu com suas suspeitas infundadas e

suas importunações intoleráveis. Ante essas provações destacou-se

admiravelmente a grandeza genuína do caráter de Wesley, posto que sua carreira

pública jamais cambaleou nem perdeu um jota (nada) de sua energia ou

êxito durante sua prolongada desgraça doméstica. Uma vez e outra ela o

abandonava, mas voltava em face das reiteradas insistências dele. Ela

abria, interpolava e expunha, então, perante seus inimigos (os que se

opunham a Wesley) a correspondência dele, e, algumas vezes, viajava até

cem milhas para ver, de uma janela, quem o acompanhava em sua carruagem.

Finalmente, tomando consigo porções de seu Diário e outros papéis, que

nunca devolveu, deixou-o em 1771 com a promessa de que jamais vol tar ia. A

alusão que a es te fato e le faz em seu Diár io é caracteristicamente

lacônica. Não sabia, diz a causa imediata de sua determinação, e

acrescenta: "Non eam reliqui, non dimissi, non revocabo" ("Não a abandonei, não

a despedi, não a reclamarei de volta"). Viveu cerca de dez anos depois de

deixá-lo. Sua lápide sepulcral rememora suas virtudes como mãe e amiga, mas

não como esposa." ( 5)

Sabemos que tão logo depois de Aldersgate, João Wesley teve de fazer frente ao

antagonismo das autoridades eclesiásticas de sua própria Igreja, as quais achavam que

sua pregação, apesar de ser nitidamente bíblica e sincera, era de tipo revolucionário e

contrária aos cânones e ordenanças do eclesiasticismo oficial dominante. Viveu uma vida

peregrina de itinerante. Até onde lhe permitiram suas energias, viajou "a tempo e fora de

tempo", primeiro a cavalo e depois em carruagens. Calculou-se que andou cerca de

250.000 milhas, coisa assim de uns 400.000 quilômetros, e que pregou 42.400 sermões.

32

Page 36: Estranha estirpe de_audazes

Naturalmente que estes não seriam todos diferentes; talvez seria melhor dizer que pregou

42.400 vezes, visto como confessou que só pregava bem um sermão depois de havê-lo

pregado umas trinta vezes. Possuía gênio organizador extraordinário que brotava de sua

maneira de ser metódico, pois jamais deixou de observar o hábito de dividir todas as

horas do dia entre suas diversas atividades, de tal maneira que sempre sobrasse algum

tempo para meditação, oração e estudo. Aos 82 anos ainda escrevia em seu Diário:

"Nunca me canso de escrever, de pregar e de viajar". Como ministro da Igreja Anglicana

jamais teve uma paróquia regular (uma igreja local onde exercesse seu pastorado) e,

apesar disso, não lhe cassaram as ordens. Mas quando lhe fecharam as portas da

Igreja, declarou: "O mundo é minha paróquia". Proclamava assim não apenas sua

independência das autoridades eclesiásticas mas também a amplitude de suas vistas.

Apesar de seu corpo estar sujeito a graves enfermidades, e mais de uma vez estar às

portas da morte, era de uma resistência admirável. Quase até ao fim de sua longa vida

esteve ativo, movendo-se de um lado para outro a fim de atender às múltiplas

necessidades de seu ministério. Nunca pensava em si mesmo, nem na possibilidade de

poupar energias. As necessidades humanas, fossem elas físicas, morais ou espirituais, não

lhe permitiam pensar em si mesmo. Toda a vida era uma oferenda a Deus, que se consumia

apaixonadamente no serviço a seus semelhantes. Comovedora é a anotação que registra em

seu Diário, quando já contava 81 anos:

"Terça-feira, 4 de janeiro de 1785. Durante esta estação usualmente

distribuímos carvão e pão entre os pobres da "sociedade" (grupo metodista). Mas

considerei que nas atuais circunstâncias necessitavam tanto de roupa como de

alimento. De modo que neste, assim como nos quatro dias seguintes, caminhei

pela cidade e solicitei duzentas libras esterlinas para vestir aos mais

necessitados. Sem dúvida foi trabalho duro, visto como a maioria das ruas

estavam cheias de neve em gelo, na qual mui amiúde me afundava até o

tornozelo, de maneira que meus pés andavam metidos na neve quase desde a

manhã até ao anoitecer. Passei muito bem até ao entardecer de sábado, mas

então tive de por-me na cama com violenta gripe, que agravava de hora em

hora, até que tive necessidade de que o Dr. Whitehead viesse ver-me às seis

horas da manhã. Sua primeira dose de medicamento me aliviou bastante e três ou

quatro mais completaram a cura. Se ele chegar a viver alguns anos, não duvido

que venha a ser um dos médicos mais eminentes da Europa."

33

Page 37: Estranha estirpe de_audazes

Geralmente se levantava às 4h da manhã, e apesar de dizer que ele "nunca tinha

tempo para estar apressado", estava sempre em movimento e ocupado. Como o fizeram um

de seus avós, sua mãe, seu irmão Carlos e muitos outros de sua época, manteve um

diário, que hoje está reunido em muitos volumes, e cuja leitura ainda causa admiração de

quantos o lêem. Era, também, grande escritor de cartas, que foram recolhidas e formam

uma coleção considerável, estando também impressas. Além disso, era escritor incansável, e

tratou de muitos assuntos. Suas obras principais, porém, foram diversos comentários sobre

os textos bíblicos, especialmente do Novo Testamento, e as coleções de sermões para

pregadores itinerantes. Talvez nenhuma outra pessoa, por si mesma e por sua própria conta,

haja publicado tantos folhetos e livros como ele. Não só os distribuía pessoalmente, mas

também exortava a seus pregadores a que levassem sempre em suas maletas material

impresso para propagar a mensagem cristã. Entre os manuais que publicou tratou de uma

variedade de assuntos como teologia, poesia, música, história, moral, metafísica,

filosofia, política, etc. Procurava por em linguagem popular as obras mais clássicas. Seu

interesse na literatura não era pela literatura em si mesma, e sim para ilustrar (ensinar, dar

cultura) o povo de suas “sociedades”.

Certamente, se ele se houvesse dedicado à carreira militar teria chegado a ser um

grande estrategista, visto como na organização do movimento metodista demonstrou

possuir acabado caráter de organizador. Por isso que sua obra perdurou, não porque

somente era capaz de atrair para si as multidões a fim de ouvir suas mensagens, mas

também porque sabia agrupá-las em sociedades, classes e bands (pequenos grupos), de tal

maneira que mantinha constante supervisão sobre os aderentes e promovia desta maneira, o

aprofundamento de seu caráter cristão e a divulgação das doutrinas bíblicas.

Quando descobriu que os ministros da Igreja Anglicana não estavam dispostos a

acompanhá-lo em sua empresa (empreendimento) renovadora do espírito humano e dos

costumes sociais, lançou mão de pregadores leigos, não ordenados, aos quais mantinha em

constante movimento e dos quais exigia disciplina tão férrea quanto a sua, procurando

suplementar-Ihes a falta de conhecimentos teológicos pelas leituras abundantes e estudos de

caráter pessoal.

Não compreendia que houvesse pregadores capazes de cumprir com suas

obrigações de proclamar a mensagem cristã, sem estudo constante e diário de seis horas,

pelo menos. Isto se devia, em parte, porque ele mesmo se dedicava constantemente à

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Page 38: Estranha estirpe de_audazes

leitura, não só em horas de sossego ou tranqüilidade, mas também quando viajava a

cavalo.

Por certo não podemos dizer que João Wesley fosse um grande teólogo, como

Calvino ou Lutero. Foi, antes de tudo, um evangelista, um homem que deu lugar

proeminente à Bíblia, e de modo particular ao Novo Testamento. As "Notas" que escreveu

sobre o Novo Testamento vieram a ser uma espécie de compêndio normativo obrigatório para

qualquer pregador metodista. Em sua exposição bíblica não seguia nenhuma escola em

particular. Era Cristo que, em realidade, dominava seu pensamento e interpretação, e seu

espírito era a medida para julgar o valor de determinadas personagens ou idéias. Sua ênfase

estava centralizada em Cristo e na salvação que cada ser humano pode receber somente

pela fé nele. Apesar de o homem não se salvar pelas obras, estas são

imprescindíveis para revelar o caráter dessa fé. A salvação não é oferecida apenas a uns

quantos eleitos: a salvação está ao alcance de todo ser humano que atenda ao convite divino.

Deus em Cristo chama a todos os homens, e são estes os que decidem acerca de seu

destino, quer ao aceitar ou recusar a graça divina.

Assim, crendo que a salvação é universal (franca e possível para todos),

empenhou-se em proclamar e em que se proclamasse, com caráter de urgência, o

Evangelho "a tempo e fora de tempo ", em qualquer lugar e a toda gente, visto como "Deus

não faz acepção de pessoas", mas recebe a todo aquele que confessa seu pecado e aceita

seu perdão e sua graça. O Espírito Santo está ao alcance de qualquer pessoa que se

exponha a sua influência, e deve ser o poder dominante na vida do cristão, de tal maneira que

chegue a exclamar, por sua presença em sua vida: "Aba, Pai ", isto é, que sinta intimamente

que Deus é o Pai celestial que o ama, perdoa e salva, e que está sempre perto de quem o

busca. Ademais, o Espírito Santo conduz pelo caminho da santificação e perfeição a toda

pessoa que busque sua direção. Não obstante, João Wesley nunca afirmou que ele

mesmo houvesse alcançado tal grau de perfeição, capaz de eximi-lo de toda vigilância e

disciplina pessoal, embora cresse firmemente que a vontade de Deus é poderosa para

converter um pecador em um santo completo (uma pessoa com a vida santificada). Como

vemos, nada há de realmente novo na "teologia" de João Wesley, senão um destaque de

elementos que deveriam estar sempre à flor da consciência cristã. Um dos bispos da Igreja

Metodista ao considerar a natureza do Metodismo, escreveu:

"Não foi uma nova doutrina, mas uma nova vida que os primeiros

metodistas buscaram para si e para os outros. Conseguir que fosse real, no

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Page 39: Estranha estirpe de_audazes

coração e na conduta dos homens, o verdadeiro ideal do cristianismo, e manter a

experiência pessoal do mesmo e estendê-la a outros - esse era seu

propósito. A controvérsia deles não era com a Igreja ou as autoridades estatais,

mas com o pecado e Satanás. Seu único objetivo era o de salvar almas." (6)

Em conexão com isto, cabe consignar aqui a própria opinião de Wesley: "Creio que o

Deus misericordioso leva mais em consideração a vida e a maneira de ser dos homens que

suas idéias. Creio que aceita mais a bondade do coração que a glória do mundo".

Esta declaração de Wesley revela, ainda, que ele era mui tolerante, quanto a idéias

teológicas. Embora seja importante o que alguém pensa, é mais importante ainda o que esse

alguém é. Dizia também: "Dez mil opiniões podem separar-nos, mas se o teu coração

é como o meu, aperta-me a mão, porque somos irmãos".

Talvez não seja próprio que nesta época façamos as coisas da mesma maneira

como esse grande homem as levava a cabo, nem seja recomendável usar as mesmas figuras

de pensamento ao apresentar o Evangelho. Não obstante, o movimento metodista nos legou

características que são de valor permanente, e que jamais poderemos ignorar ou desprezar,

porque, em realidade, não emanam da mente ou vontade de João Wesley, mas da mente

e vontade de Cristo, que nos ordenou que fôssemos por todo o mundo pregando o Evangelho

a toda criatura.

Anualmente nossos irmãos metodistas da Inglaterra elegem um presidente de

sua Conferência Anual. Ao assumir o cargo, o novo presidente recebe das mãos do

anterior um pequeno livro surrado, como símbolo de autoridade: é o Novo Testamento que

João Wesley usava em suas pregações ao ar livre, quando as multidões que não cabiam nos

templos vinham a ele para ouvir a Palavra de Deus. Simbolicamente também recebemos de

suas mãos esse Livro Santo para que passemos, com a mesma paixão e urgência, seu

conteúdo às almas afligidas e aos corações extraviados.

Não podemos viver de uma tradição por muito heróica que seja. Em nós mesmos

temos de ouvir a urgência inquietante do "Ai de mim se não pregar o Evangelho!”

NOTAS: (1) Beal, William Rev., citado por Stevenson, G. J., Op. Cit., pág. 16.

(2) Etevens, A., "History of Methodism", VoI. I, págs. 59 e 60.

(3) “A New History of Methodism", editado por Townsend, W. J. e outros, VoI. I, pág. 200.

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(4) “A New History of Methodism", VoI. I, pág. 178.

(5) Op. Cit., VoI. I, págs. 370-371.

(6) Mc Tyeire, H. N., “History of Methodism”, pág. 13.

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CAPÍTULO QUARTO

O ARAUTO MELODIOSO

" Tudo em ti encontro, ó Cristo, e de nada mais preciso ".

Carlos Wesley

O décimo oitavo filho, o último varão de Samuel e Susana Wesley, foi Carlos, que

nasceu, segundo se presume, no dia 18 de dezembro de 1707 (alguns historiadores dão o

ano de 1708). Seu prematuro nascimento ocorreu algumas semanas antes do tempo, e ao

nascer parecia mais morto que vivo, já que não chorava nem abria os olhos.

Conservaram-no em algodões até a época em que devia nascer, e completado o tempo

normal, dizem que abriu os olhos e chorou. Como seu irmão João, do qual era mais novo

cinco anos, nasceu na casa pastoral de Epworth e foi submetido à mesma disciplina

familiar. Era de disposição mais jovial que seu irmão e dotado de estro (talento) poético.

João Gambold, seu companheiro do "Clube Santo", que chegou a ser bispo

morávio, dentre outras considerações que fizera a respeito de Carlos, deixou do seu

temperamento este retrato:

"Para pontilhar o caráter de Carlos, basta dizer que era homem feito

para a amizade. Por sua jovialidade e viveza (vivacidade) era capaz de suavizar

o coração de seus amigos, e, por seu hábito franco e independente, não deixava

lugar a incompreensões.“ (1)

37

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Em 1716 foi para a escola de Westminster. Seu irmão mais velho, Samuel, que vivia

em Londres e já tinha vida independente, pagava-lhe os estudos e o pai provia-lhe a roupa.

Mas evidenciou tal inteligência que lhe foi outorgado o prêmio "Aluno do Rei" (King's

Scholar). Segundo o historiador da escola de Westminster, essa distinção "conferia

para sempre, ao que a recebia, tal sentimento de orgulho que nenhum rapaz de outra escola

jamais experimentava. Haver sido Aluno do Rei não é mui pequena honra". (2) De aí em diante

suas despesas foram pagas pela fundação escolar (1721).

Nesse período apresentou-se a Carlos a oportunidade de ser herdeiro de um rico

parente de nome Garrett Wesley. Este possuía muitas propriedades na Irlanda e queria

adotar um rapaz de sua parentela que levasse o nome de Carlos. Escreveu, pois, à

família pastoral de Epworth perguntando se não contava em seu seio com alguém de tal

nome. Informado de que havia e se encontrava em Londres, enviou dinheiro para

mantê-Io estudando por alguns anos. Mais tarde foi vê-Io na escola e fez-Ihe pessoalmente o

oferecimento. Os pais não quiseram tomar a decisão, deixando que o rapaz mesmo

resolvesse, e ele declinou da oferta! O Sr. Garrett adotou, então, a um outro jovem de nome

Ricardo Colley, que mudou seu nome pelo de seu benfeitor. Viria a ser o avô do Duque

de Wellington, o vencedor de Napoleão, em Waterloo. Carlos abriu mão de uma fortuna e de

um título.

Em 1726 terminou os estudos secundários e entrou para a Universidade de Oxford,

onde foi eleito para freqüentar o colégio Christ Church, com uma bolsa de estudos de cem

libras esterlinas anuais. Assim como se distinguira anteriormente em seus estudos,

continuou sobressaindo-se na Universidade, a tal ponto que, como seu irmão, pouco

depois de graduar-se também foi nomeado tutor de seu colégio. Seguindo o exemplo de

seu irmão João, esforçou-se por levar vida metódica e séria. Foi ele que, em 1729, com

alguns outros companheiros da mesma tendência, fundou o que se chamou "Clube Santo".

Os que lhe aderiram eram poucos. Reuniam-se duas vezes por semana ao

entardecer, para dedicar o período das 6h às 9h à oração, ao estudo do Novo Testamento e

aos autores clássicos. Passavam em revista seu trabalho e faziam planos para os dias

seguintes. Também jejuavam duas vezes por semana, tratando ao mesmo tempo de fazer

um exame introspectivo, e participavam da Santa Ceia semanalmente. E com muita

diligência empregavam-se em atos de caridade e de visitas aos presos.

38

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43

Porque esse grupo se regia por um horário estrito e viviam uma vida ordenada,

suportava a zombaria dos colegas que pouco se consagravam aos estudos e à piedade.

Seus componentes eram apodados (apelidados pejorativamente) de “metodistas”,

nome que mais tarde se daria igualmente aos que vieram a formar parte das "Sociedades

Unidas" fundadas por João Wesley. Este, nessa época, como já vimos, encontrava-se em

Epworth ajudando o pai nas lides ministeriais. Quando voltou encontrou o "Clube Santo" em

pleno funcionamento, e como coisa, natural aderiu a ele. Por ser o mais velho e o mais

responsável, foi-lhe confiada a direção do grupo.

Nesse mesmo ano (1729) Carlos adotou o costume de manter um diário, hábito que

teve por quase cinqüenta anos.

Apesar de haver concluído os estudos e de haver sido ordenado clérigo da Igreja

Anglicana, permaneceu na Universidade em sua função de tutor até 14 de outubro de 1735

quando, com seu irmão João, foi para a Geórgia, na América do Norte. Sua atribuição era

servir de secretário do General Oglethorpe, governador da então Colônia. Sua estada,

porém, durou menos de um ano, porque em agosto de 1736 embarcou de retorno à terra

natal onde chegou em dezembro. Suas experiências em terras americanas não foram

muito mais felizes do que as de seu irmão. Passou muito tempo enfermo, e as intrigas

que se armaram ali contra ele chegaram a tal ponto que quiseram assassiná-lo. Depois de

um período tumultuoso, durante o qual se indispôs com o general, decidiu deixar a Geórgia e

reassumir o ministério em sua terra natal.

Voltou à Universidade de Oxford onde continuou com os labores de instrutor e com a

visitação aos presos na prisão comumente conhecida pelo nome de "Castelo". Devido a seu

estado físico não começou a pregar até metade do ano 1737, e, quando o fez, sua pregação

revelava-se como algo mui formal e lhe faltava aquele fogo que pudesse proporcionar-lhe a

satisfação íntima que anelava. Nesse mesmo ano entrou em contato com os morávios

(cristãos originários da Moravia, Alemanha) e teve conversações freqüentes com o Conde de

Zinzendorf, líder do movimento, e que nessa ocasião se encontrava em Londres fazendo

provisões a favor dos imigrantes morávios estabelecidos, ou por estabelecer-se, na

colônia de Geórgia. Entre os que se aprestavam (dispuseram) para ir à Geórgia estava o

pastor Pedro Böhler, que procurou Carlos na Universidade para que este lhe ensinasse

inglês. Foi durante essas aulas que Carlos Wesley adquiriu mais cabal conhecimento da

vida religiosa dos morávios e se instruiu mais a fundo sobre a natureza da oração e da fé.

39

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44

Em fevereiro de 1738 Carlos caiu muito enfermo. Uma noite, sendo já bem tarde e

estando ele muito mal, visitou-o Pedro Böhler. Carlos pediu-lhe que orasse a seu favor.

Depois da oração, disse-lhe: "Tu não morrerás". Três dias depois disto melhorou e

parecia voltar novamente à plenitude da vida. Os médicos lhe recomendaram que

mantivesse sua posição em Oxford e não tratasse, como pensava, de voltar à Geórgia.

No mês de maio o encontramos vivendo em casa de João Bray, a quem descreve como

"um pobre mecânico ignorante, que não conhece outra coisa senão a Cristo, e que por

conhecê-lo sabe discernir todas as coisas". Foi viver com ele para aproveitar sua simples

companhia espiritual e descobrir o segredo de uma vida religiosa tão cheia de íntimo gozo

e isenta de apreensões. Ainda estava muito fraco quando foi viver na casa de João Bray. Tão

debilitado estava que tiveram de levá-lo numa cadeira. Freqüentemente convidava Bray

para orar com ele e por ele. Foi nesse período que um de seus amigos, o Holland,

o familiarizou com o comentário que Lutero fez sobre a carta de São Paulo aos Gálatas.

Sua leitura lhe fez muito bem e Carlos chegou a compreender claramente o que era viver pela

fé. E o que mais o impressionou foi a referência à passagem: "... que me amou e a si mesmo

se entregou por mim". Na noite desse mesmo mês, que era Pentecoste, chegou

finalmente à convicção íntima de que possuía a verdadeira fé em Cristo, antecipando-se três

dias à experiência que seu irmão teria na rua Aldersgate e da qual já fizemos

referência. Sentiu-se renovado não só no espírito mas também no corpo. Para comemorar

tão transcendental acontecimento, na terça-feira seguinte escreveu o que é considerado o

primeiro hino metodista. Sua primeira linha diz assim:

"Where shall my wondering soul begin?"

(Onde minha alma errante encontrará refúgio?)

Nesse hino expressa sua inaptidão para celebrar em seus justos termos o

extraordinário acontecimento de sua recuperação física e espiritual, e compara-se a um

"tição tirado ao fogo eterno". Confia, porém, em que lhe será dado como proclamar a

bondade de Deus que o arrancara das garras do inferno para convertê-lo num de seus

filhos, ou por haver recebido a certeza de que seus pecados haviam sido perdoados,

fazendo-o gozar, assim, o céu por antecipação. Pergunta se seria justo e apropriado

ocultar esse sinal do favor divino em seu coração, sem partilhar com outros o privilégio da

salvação. Responde que não; ainda que o diabo e suas hostes arremetessem contra ele,

teria de proclamar igualmente que Jesus sempre é o mesmo amigo dos pecadores. E

40

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45

termina fazendo um apelo comovente, chamando os pecadores de qualquer natureza a

que venham receber o abraço daquele que está com seus braços estendidos

esperando-os.

Ao que parece, este foi o hino que cantaram na noite de 24 para celebrar a notável

experiência religiosa de seu irmão João, quando este voltou jubiloso depois da reunião de

Aldersgate em companhia de outros que com ele haviam estado juntos, para comemorar o

acontecido. Um ano mais tarde, ao comemorar o primeiro aniversário de sua

experiência, Carlos escreveria aquele outro hino tão querido dos cristãos evangélicos do

mundo inteiro, e que começa assim:

"Oh for a thousand tongues to sing"

(Quem me dera ter mil vozes para celebrar).

Ele que desejava, como diz o original, possuir "mil línguas" para cantar a glória de

seu Senhor. E através de sua longa carreira chegou a escrever algo em torno de seis mil e

seiscentos hinos, numa média de três por semana. Talvez esses hinos, mais que a própria

pregação, penetraram na consciência e vida daqueles que foram alcançados pelo

movimento metodista. O maravilhoso está em que induziram um povo triste e

desanimado a cantar, e muitas vezes a emoção era tão profunda que chegava a arrancar

lágrimas dos que cantavam! Lutero disse em certa ocasião sobre o emprego religioso da boa

música: "O diabo pode agüentar qualquer coisa, exceto a boa música, e esta o faz rugir".

Por certo o diabo teve de rugir freqüentes vezes ante o efeito benéfico das canções de Carlos!

Com freqüência a urgência da inspiração era tal que, ao chegar a algum local, descia do

cavalo correndo e gritando: "Dai-me papel, papel e tinta". Outras vezes, sobre a própria cela

de sua cavalgadura, escrevia no papel o sentir tumultuário (agitado) de seu coração

inflamado.

Em 1739 publicou seu primeiro hinário com o título "Hymns and Sacred Poems"

(Hinos e Poemas Sacros). No mesmo ano se fizeram três edições desse hinário.

Escreveu sobre uma variedade ilimitada de temas que incluem toda a escala da vida

religiosa. Diz um comentarista:

"A variedade dos assuntos que ocupavam sua mente é tão extensa que pode incluir

quase todo acontecimento ou circunstância concebível na vida." (3)

41

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João de La Flechère (ver capítulo sétimo) escrevendo sobre a coleção de hinos que

Carlos e João Wesley publicaram e seu valor para a vida religiosa dessa época, disse as

seguintes palavras: "Uma das maiores bênçãos com que Deus agraciou os metodistas,

depois da Bíblia, são suas coleções de hinos".

La Flechère tinha razão. Apesar de a maioria dos hinos de Carlos caírem no olvido

(esquecimento), pois só serviram ao momento e à época que os inspiraram, já que não

tinham valor literário ou devocional permanente, uns tantos ficaram formando parte da

hinologia cristã universal. O que estas páginas escreve (ou seja, o autor desse livro), certa

vez se encontrava em Londres num entardecer de domingo. Perto do hotel havia uma

igreja Batista, e ali resolveu assistir ao culto, por não aventurar-se a ir mais longe.

Quando entrou no templo, faltando uns minutos para começar o serviço religioso, tomou

de um hinário e leu a introdução. Dizia o compilador (o organizador do hinário) que aqueles

hinos haviam sido escolhidos com o propósito de que estivessem enquadrados dentro da

tradição Batista. Quando o pastor se levantou e anunciou o primeiro hino congregacional,

este era da pena (de autoria) de Carlos Wesley!

Tão logo Carlos melhorou de saúde, voltou com renovadas forças para a vida pública

pregando sem cessar, onde quer que a ocasião se lhe apresentasse, embora não o tenha

feito ao ar livre até junho de 1739, época em que começou a pregar aos mineiros da região de

Moorfields. Um de seus temas favoritos baseava-se nas palavras de Cristo: "Vinde a mim

todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei". Desde 1739 até 1771 o

centro principal de suas atividades foi a cidade de Bristol e mais tarde seria Londres.

Como seu irmão João, esteve sempre ocupado em viagens, indo de povoado em povoado.

Especialmente durante os primeiros anos do movimento, sua vida esteve sujeita a

constantes ameaças e tumultos promovidos pelo populacho instigado pelos clérigos

regulares. Entre os anos 1741-1743 de maneira especial esteve em sério perigo muitas

vezes. É pena que não possamos acompanhá-lo nessas aventuras, que reeditam em muitas

instâncias cenas comovedoras dos primeiros tempos do cristianismo. No entanto, para

dar uma idéia de sua têmpera (temperamento, inteireza de caráter), serenidade e valentia,

citaremos o que ele mesmo escreveu em seu Diário acerca dos ataques que o populacho

dirigiu contra uma capela no interior da Inglaterra, onde ele se encontrava dirigindo um culto.

Diz o Diário:

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"...eles resolveram demolir a casa de oração e começaram a obra

enquanto estávamos orando e louvando a Deus. Foi uma ocasião gloriosa para

nós. Cada palavra de exortação penetrou fundo. Cada oração encontrou eco e

muitos acharam o espírito de glória descansando sobre eles."

A turbamulta (grande multidão, turbilhão) continuou durante grande parte da noite

em seu intento de derrubar as paredes e penetrar a casa. Ele e a congregação se

conservaram onde estavam, pois não teria sido prudente retirar-se do local. Não

conseguiram os atacantes seu intento; apesar disso, pela manhã se verificou que

parte do edifício estava destruído. O evangelista comenta em seu Diário:

"E seus gritos, de quando em quando, me despertaram durante a

noite, mas creio que eu dormi mais que os outros".

Dominado por seu espírito de aventura e irresistível senso de responsabilidade pela

salvação do próximo, às 5h da manhã animou-se a sair da casa para pregar ao ar livre

nessa mesma cidade. Fê-lo durante todo o dia sob constantes ameaças. À noite, ao

regressar a seu quarto, encontrou-o desmantelado (destruído). Não obstante, passou

ali a noite exposto ao frio e ao perigo.

Dessa fibra indômita eram não somente ele e seu irmão João, mas todos aqueles

que nesses dias os acompanhavam na gloriosa aventura de pregar o Evangelho a toda

criatura. Apesar de não ser pregador itinerante do tipo de seu irmão João, sem dúvida não lhe

ficou na traseira, pelo menos até 8 de abril de 1749, época de seu casamento, quando limitou

suas saídas. Então se dedicou mais à obra literária, especialmente a poética. Seu irmão

João, muito a contragosto, consentiu no casamento de Carlos, pois temia que isso viria, como

de fato veio, diminuir a atividade de seu ministério itinerante.

Carlos Wesley casou-se com a senhorita Sara Gwynne. Em virtude disso, João lhe

dava uma anuidade de cem libras esterlinas, provenientes da venda de livros que publicava.

Carlos e Sara formaram um lar modelo, pois eram admiravelmente congeniais (tinham

gênios que combinavam, feitos um para o outro). Quando se casaram tinha ela a reputação

de ser mulher mui formosa, mas alguns anos depois foi acometida de varíola, que a

desfigurou completamente.

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No dia de seu casamento Carlos se levantou às quatro horas da manhã e com seu

irmão João e outros familiares, passou quatro horas em oração, cantando salmos e hinos

antes da cerimônia. João abençoou as bodas. Em conexão com isto desejamos sublinhar

que, apesar das diferenças de temperamento e de nem sempre coincidir nos pormenores das

resoluções e nas atitudes que tomavam, especialmente com relação à Igreja Oficial (Carlos

neste ponto era mais conservador que João), raramente encontramos dois irmãos

estimando-se e querendo-se tão estreitamente como eles, colaborando com tanta eficácia e

por tantos anos na mesma obra. Carlos morreu no dia 29 de março de 1788, quando tinha

pouco mais de 80 anos e foi sepultado no dia 5 de abril no cemitério da Igreja de Marylebone.

Sua esposa sobreviveu a ele longo tempo. Terminou ela sua carreira terrenal aos 92

anos, falecendo em 1822. De seus filhos (tiveram oito e apenas três cresceram)

somente dois, Carlos e Samuel, herdariam seu temperamento artístico. Costumavam dar

concertos no "living" de sua casa e a esses concertos compareciam muitos dos mais

notáveis músicos de Londres. João Wesley assistia ocasionalmente a essas tertúlias

(reuniões familiares) musicais, embora não harmonizassem com seu temperamento.

Uma das características mais salientes da longa carreira ministerial de Carlos Wesley

foi a de exercer incessantemente seu ministério entre os prisioneiros, aos quais dedicava

terna consideração. Recordemo-nos de que, naquela época, especialmente os

desprotegidos da sorte (pobres e miseráveis), e às vezes por motivos que hoje possam

nos parecer triviais, eram condenados a muitos anos de prisão e em cárceres que mais

pareciam círculos infernais. Número impressionante deles eram condenados a morrer na

forca. Era muito comum justiçar ao mesmo tempo alguns deles a fim de fazer disso um

espetáculo público para escarmento (lição, exemplo) dos demais. A referência que o

historiador Stevens faz de seu ministério particular aos prisioneiros é a que segue:

"Até o último ano de vida manteve seu hábito metodista de ministrar aos

condenados das prisões, tal como o fizera primeiramente em Oxford, visitando-os

em suas celas e apresentando seus casos às congregações para que se orasse

publicamente. A última de suas publicações poéticas, publicada somente três

anos antes de sua morte, tinha por título: "Orações para Malfeitores

Condenados". (4)

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E em nota que antepôs ao manuscrito, escreveu:

"Estas orações foram respondidas na terça-feira, 28 de abril de 1785, na

pessoa de dezenove malfeitores, e todos eles morreram penitentes. Não a

mim, ó Senhor, não a mim (a glória)!" (5)

A enfermidade que o levou à morte foi longa e penosa, mas conservou sempre sua

il imitada confiança em Cristo. Manteve a mente em estado de completa paz e

tranqüilidade. A sua esposa, a quem sempre quis entranhadamente, ditou de seu leito a

última expressão poética, que diz em tradução livre:

"Quem redimirá um desprezível pecador já velho e presa de fraqueza externa?

Jesus, tu és minha única esperança, fortaleza de minha frágil carne e coração. Oh!

Pudesse eu mirar teu rosto sorridente e, assim, sumir-me na eternidade!" (6)

Até aos últ imos momentos de vida e diante da f ragil idade humana, sua

preocupação foi a de anunciar a Cristo e de apontá-lo qual única e eterna esperança de

salvação. Nem em seu ministério, nem em sua produção poética teve outra paixão mais

profunda que essa. Como Paulo, o apóstolo, Carlos Wesley podia dizer: "Para mim o viver é

Cristo, e o morrer é lucro".

NOTAS:

(1) Citado por McTyeire, H. N., Op. Cit., pág. 57.

(2) Mr. Forshall, citado por Wiseman, F.L., Op. Cit, pág. 24.

(3) Citado por Stevenson, G.J., Op. Cit, pág. 395.

(4) Stevens, A., Vol II, Op. Cit, pág. 275.

(5) Idem.

(6) Idem, pág. 276.

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CAPÍTULO QUINTO

O FILHO DE UM

TABERNEIRO

"Oh! Quem me dera um poder igual à minha

vontade! Desejar ia voar de um pólo a out ro

anunciando o Evangelho sempiterno do Filho de

Deus!".

Jorge Whitefield

É difícil medir as projeções de bem moral e espiritual resultantes das reuniões que os

Wesley e alguns poucos de seus colegas tiveram no chamado "Clube Santo", cuja existência

se prolongou por cerca de oito anos (1728-1735). Certamente, porém, o resultado mais

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positivo e permanente, além do que esse círculo piedoso trouxe à vida dos fundadores do

Metodismo, foi a incomparável influência que exerceu na vida e obra de um estudante

pobre, que em 1732 penetrou com temor e tremor os umbrais da Universidade de

Oxford, matriculando-se no colégio de Pembroke. Seu nome era Jorge Whitefield. Nasceu a

16 de dezembro de 1714, na localidade de Gloucester, Inglaterra, na taberna "Bell".

Por certo que esse não foi ambiente mui propício para a formação de seu caráter

juvenil, visto como uma taberna, naqueles dias, era ainda muito pior do que as

encontradas nos bairros baixos das grandes cidades modernas. Se, como diziam João e

Carlos Wesley, eles eram "tições tirados ao fogo", certamente Jorge, mais que esses dois

irmãos, foi tição tirado ao inferno. Sem dúvida, mesmo cercado por uma atmosfera

completamente insalubre, manifestava-se em sua alma estranha inquietude pelas coisas

superiores do espírito, e em seu Diário que mais tarde escrevera, conta-nos que amiúde se

exorbitava em exercícios espirituais, embora caísse, dia após dia, sob a influência de seu

meio ambiente. De seu Diário podemos recolher alguns vislumbres de sua vida, antes de

iniciar-se como estudante universitário. Entre seus dados autobiográficos encontramos os

seguintes:

"Meu pai e minha mãe mantinham a taberna chamada "Bel". Meu pai

morreu quando eu tinha dois anos de idade. Minha mãe ainda vive e por muitas

vezes me contou o quanto sofreu durante catorze meses de enfermidade, depois

que me trouxe ao mundo. Costumava dizer, desde quando eu era pequenino, que

ela esperava alguma consolação de minha parte, mais do que de qualquer outro

de seus filhos. Isto, sob as circunstâncias de haver eu nascido numa taberna,

tem-me sido útil muitas vezes para esforçar-me por vir ao encontro das

esperanças de minha mãe, seguindo assim o exemplo de meu Salvador, que

nasceu numa estrebaria junto a uma estalagem." (1)

Evidentemente transpira algo de exagero este depois de haver alcançado grau de

vida muito superior à que estava acostumado, ao ver-se de posse de um título

universitário e ao ser agora recipiente privilegiado de ordens eclesiásticas. Dos dias de

sua infância e juventude não conservava mui grata memória:

"Seria muito longo mencionar os pecados e ofensas de meus dias mais

juvenis. São mais numerosos que os cabelos de minha cabeça." (2)

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Evidentemente transpira algo de exagero este juízo de si mesmo. Sem dúvida está

afinado com o conceito do homem que apresenta dentro do quadro total formado por seu

pensamento teológico. Ao lado dessa descrição pessimista de seus dias juvenis,

encontramos esta obra que se refere a ele quando tinha 16 anos de idade, citada pelo Dr.

Stevens:

"Começou ele jejuando duas vezes por semana durante trinta e seis horas

seguidas. Orava muitas vezes por dia, recebia a Comunhão (Ceia do Senhor) a

cada dez dias e jejuava quase até à inanição durante os quarenta dias da

Quaresma. Enquanto durava esse período se havia proposto, como questão de

consciência, nunca ir menos de três vezes ao dia ao serviço público de adoração,

além de obrigar-se diariamente a ter sete vezes devoções particulares." (3)

E assim, entre altibaixos (altos e baixos) em sua conduta e em suas lutas agônicas

por sobreviver ao ambiente adverso, chegou quase aos 18 anos. Finalmente, ajudado por

pessoas que descobriram nele grandes possibilidades, entrou para a Universidade.

Já havia tido, antes disso, alguns estudos tanto com um professor particular como na

escola de Santa Maria de Crypt. Esses estudos foram muito irregulares, pois os

interrompeu várias vezes por uma causa ou outra, principalmente porque se via obrigado a

ajudar a mãe nos misteres (necessidades) da estalagem. Esta experiência lhe serviu na

Universidade, pois ali, para poder manter-se e obter sua educação, teve de trabalhar

como criado. Durante o tempo que pisou os átrios universitários viveu mui modestamente,

castigando o corpo à moda monástica (como um monge no convento), deixando de comer

frutas e outras coisas, escolhendo a pior qualidade de alimento, embora, se houvesse

esejado, pudera obter, segundo disse, uma variedade separada de manjares. Vestia-se

pobremente, mais do que necessário, interpretando literalmente a expressão bíblica que

diz: "O Reino de Deus não é comida nem bebida". Segundo ele, essas renúncias

conduziam a uma vida espiritual mais profunda e intensa. Sem dúvida, esse tratamento

ascético de seu físico (para cuidar da alma entendia que precisava desprezar e até

maltratar o corpo) fê-Io sofrer ao longo da vida. E morreu prematuramente, consumido pelos

trabalhos que seu corpo mal podia agüentar.

Antes de ir para a Universidade já tinha conhecimento da existência do "Clube

Santo", visto como sua fama ultrapassava os âmbitos dos claustros (recintos

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fechados, limites) universitários. Geralmente se considerava a maneira de viver dos que

compunham esse círculo, como se fossem uns extravagantes e fanáticos. Whitefield passou

mais de um ano antes de ter contacto com o grupo, por sentir-se indigno, devido à sua

condição de servente (criado, empregado doméstico) de aproximar-se de pessoas que

julgava tão distintas (importantes). Devemos recordar-nos de que por aquela época

(1734) Carlos e João já eram bastante adultos e possuidores de seus graus e ordens,

enquanto que Jorge era apenas um estudante no princípio de sua carreira. Ademais, pesava

sobre ele o fato de haver nascido num ambiente detestável e viciado. Seus parentes não

ostentavam nenhuma posição social respeitável. Com certa "inveja santa" Whitefield os

contemplava de longe, quando os via passar para ir participar dos serviços divinos (orações e

culto) na igreja de Santa Maria.

O primeiro contacto com o grupo foi através de Carlos Wesley, que sentiu por ele

especial atração. Decerto se devia ao fato de serem ambos congeniais (terem gênios

semelhantes), sendo um ardente poeta e outro orador fogoso (ardoroso). Os dois eram mui

fervorosos de espírito e exaltados em sua maneira de ser, sentir e expressar. Através da

amizade que travou com Carlos, que o tomou fraternalmente sob sua custódia espiritual,

transpôs os umbrais do "Clube Santo", fez-se membro dele, vindo, portanto, a participar de

seus métodos de estudo e de comportamento.

Dizia que esses companheiros, que eram os que "sua alma anelava", iam

robustecendo-o (fortalecendo-o) diariamente no conhecimento e no temor de Deus e lhe

ensinavam a suportar toda privação como bom soldado de Jesus Cristo". (4)

Embora lhe fosse difícil, a princípio, submeter-se a essa disciplina, logo se afez a ela.

E com os demais, viu-se a empregar uma hora por dia, pelo menos, visitando os enfermos

e encarcerados, bem como lendo páginas devocionais e das Escrituras às famílias

pobres da vizinhança. Apesar dessa associação e disciplina rígidas, das boas obras que

praticava diariamente, ainda perdurava em sua alma um sentido de frustração, uma

atormentadora incerteza de que estaria realmente salvo da "ira divina", pois que, apesar de

tudo a que se submetia com tão exímia diligência, parecia-lhe existir um abismo

intransponível entre sua fragilidade humana e a glória divina.

Finalmente, aos 20 anos de idade, teve uma experiência religiosa que foi decisiva

para o restante de seus dias. Essa maneira de viver lhe daria a segurança que buscara tão

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afanosamente (laboriosamente, dedicadamente), e seria o ponto de partida de todo o

seu ministério. Ele mesmo conta essa experiência em suas memórias:

"Certo dia, atormentando-me uma sede fora do comum e sentindo uma

viscosidade desagradável em minha boca, fiz todo o possível para alcançar alívio,

mas foi tudo em vão. Veio-me, pois, a sugestão de que quando Jesus Cristo

exclamou "tenho sede", seus sofrimentos estavam próximos do fim. Sem poder

impedi-lo, caí de joelhos junto à cama, gritando; "Tenho sede! Tenho Sede!”

Pouco depois disso achei e senti em mim mesmo que havia sido libertado do

peso que tão grandemente me oprimia. O espírito de pesar me foi tirado e soube o

que era verdadeiramente regozijar-me em Deus, meu Salvador, e por algum

tempo não pude deixar de cantar salmos onde quer que estivesse. Assim

terminaram, pois, os dias de meu pesar. Nesse ínterim, o Espírito de Deus tomou

posse de minha alma."

Isto aconteceu sete semanas depois da Páscoa de 1735. Como aconteceria três

anos mais tarde com os Wesley, Whitefield não pode conter a alegria de seu achado,

e teve de proclamar a graça divina a todos os que estavam sob a maldição do pecado e por

presa do desespero. No princípio da primavera desse mesmo ano de sua conversão,

Whitefield voltou ao lugar de seu nascimento, Gloucester, aonde o médico o enviara na

esperança de que afrouxasse sua "exagerada disciplina religiosa". Foi nesse período de

descanso forçado que encontrou sua paz com Deus.

Logo a fama de suas pregações alcançou as multidões e estas vieram

atropeladamente para ouvi-lo. Essa popularidade, apesar da humildade que o caracterizara

até então, convencera-o de que realmente devia ser um escolhido de Deus, instrumento de

que o Senhor lançara mão para fazer coisas maravilhosas. Essa foi a tremenda tentação de

sua vida, e traços de exaltada opinião de si mesmo aparecem nos escritos que enfeixam

suas memórias. Essa exagerada auto-estima carreou-lhe tremendas críticas

especialmente de parte dos que não podiam suscitar a mesma popularidade. Parecia

a alguns que ele agia abusivamente com a impressionável imaginação do povo

comum. Mas inegavelmente ele o fazia movido por um irresistível sentido de vocação e

por seu entranhável amor a Cristo, a quem dava o crédito de havê-lo trasladado dos

tormentos terreais e eternos, a uma vida de santidade na terra e de glória no Céu. As palavras

fluíam em torrentes de sua boca, a gente chorava extasiada e comovida, ficando às vezes

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como fulminada sob o empuxo de sua eloqüência. Seus contemporâneos afirmam que

jamais houve outro que impressionasse mais com sua mágica palavra do que Jorge

Whitefield. O povo vinha de consideráveis distâncias para ouvi-lo e nunca se saciava com o

que ouvia, apesar de ele pregar sermões longos.

Não era costume da Igreja Anglicana ordenar ministro muito jovem; geralmente

não o fazia antes dos 23 anos de idade. Não obstante, o bispo de Gloucester, Martin

Benson, um dia mandou chamar Whitefield, que estava apenas com 21 anos, e lhe disse que

se estivesse disposto a receber ordenação, ele não teria objeções em fazê-lo. Parece que

nesse assunto interveio Lady Selwyn, mulher da nobreza, que o escutara e ficara

profundamente impressionada com sua prédica. Esta foi a declaração do bom bispo:

"Embora eu tivesse afirmado que jamais ordenaria alguém menor de 23 anos

de idade creio, sem dúvida, que é meu dever ordenar-te quando quiseres vir para

receber as sacras ordens." (6)

E para selar sua boa vontade, deu-lhe de presente cinco guinéus. O jovem ficou

atrapalhado, mas finalmente aceitou a oferta.

No dia 20 de junho de 1736 foi ordenado por aquele bispo. Na semana seguinte

recebeu seu título de Bacharel em Artes da Universidade de Oxford, e no domingo

seguinte à sua ordenação, aquele que cinco anos havia sido o pobre servente de uma

taberna, pregou na Igreja de Santa Maria de Crypt, precisamente localizada mui próxima

daquela (da taverna de Gloucester). Enorme multidão foi ouvi-lo. Foi ordenado presbítero

no dia 14 de janeiro de 1739 pelo mesmo bispo Benson.

A gente que o via passar pelas ruas chamava-Ihe "o rapaz pregador", e muitos, não só

ao ouvir dizer que ele passava, saíam à porta para vê-Io. Jamais se havia visto na Inglaterra

um jovem ministro crescer na estima do povo comum como conseguiu Whitefield. O

segredo estava em que falava ao coração dos humildes, conhecedor que era da natureza

de sua miséria espiritual e da magnitude da graça divina.

Não podemos acompanhá-lo nos três primeiros anos de seu ministério na

Inglaterra, por causa do limitado espaço destes estudos. Estranho como pudesse parecer,

repentinamente o jovem Whitefield sentiu forte inclinação por abandonar a terra natal e ir

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também como missionário para a Geórgia, a colônia inglesa na América do Norte. Seus

amigos não puderam compreender a razão desse abandono e fizeram todo o possível

para detê-lo, mas ele se fez surdo a todas as ofertas e rogos que lhe faziam. Com

dificuldade despediu-se de seus grandes auditórios e admiradores, especialmente daqueles

que haviam assistido a seus primeiros triunfos oratórios em Gloucester e Bristol. Ele

mesmo refere ao que se passou com ele depois de haver pregado em Bristol o sermão de

despedida:

"As multidões me seguiram até a casa chorando e no dia seguinte tive de

entreter-me com elas desde as sete horas da manhã até à meia-noite, falando e

dando conselhos espirituais às almas que haviam sido esquecidas." (7)

Pouco antes de partir para a América, Whitefield chegou a pregar até nove

vezes por semana, e aos domingos de manhã. Mesmo antes de clarear o dia, podia-se ver a

gente enchendo as ruas em direção à igreja. Sua popularidade havia crescido tanto que já

não podia ir à igreja a pé; tinha de fazê-lo às ocultas, dentro de uma carruagem, para evitar os

"hosanas da multidão".

A pesar de haver embarcado para a América no dia 30 de dezembro de 1737, não

conseguiu sair das costas da Inglaterra antes do dia 2 de fevereiro de 1738. No dia

anterior havia-se encontrado com João Wesley que voltara da Geórgia. Este tentou

dissuadi-lo e quis convencê-lo de que não fosse às novas terras, já que sua experiência havia

sido negativa, mas Whitefield, decidido a tudo, já havia cortado as amarras e não se deixou

impressionar pelas palavras do amigo. Atingiu primeiramente Gibraltar e só em princípios de

maio de 1738 chegou a terras americanas.

Não ficou muito tempo na América. Em princípios de dezembro de 1738 está

novamente de volta a Londres. Apesar de ter acolhida favorável por parte do Arcebispo de

Canterbury e de regressar do Novo Mundo com maior prestígio do que granjeara antes de

partir da Inglaterra, verifica, ao voltar, que sua popularidade em Bristol havia declinado e que,

pelo menos, cinco igrejas, nas quais costumava pregar antes, lhe fecharam as portas.

Essa oposição se foi acentuando tanto que a 17 de fevereiro de 1739 já o

encontramos em Kingswood pregando pela primeira vez ao ar livre. Esse lugar ficava

perto de Bristol. Ali, noutros tempos, havia bosques onde o rei se entretinha em caçadas, mas

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agora era quase descampado, pois se exploravam minas de carvão e era habitado por

gente "desregrada e brutal", muito diferente do restante da população. Esse gesto de

pregar ao ar livre levaria, pouco mais tarde, João e Carlos Wesley a seguir o mesmo curso.

Desta maneira, Jorge Whitefield foi quem levou de novo o Evangelho à rua, à praça

pública, fora dos recintos tidos como sagrados e próprios para a proclamação da Palavra.

De pé, sobre uma elevação de terra, proclamou nesse dia o Evangelho a cerca

de duzentos mineiros, gente que vivia em completo abandono e num meio ambiente

degradado e soez (ignorante, vulgar). Dessa ocasião registra em seu Diário:

"Bendito seja Deus, porque o gelo foi quebrado e agora tenho o campo

aberto. Alguns podem censurar-me, mas acaso há motivo? Os púlpitos me são

negados e os pobres mineiros estão a ponto de perecer por falta de

conhecimento." (8)

Esse proceder chamou imediatamente a atenção do povo comum. Diz-se

que quando pregou pela segunda vez, mais de duas mil pessoas estiveram presentes, e na

terceira houve de quatro a cinco mil, crescendo a assistência, segundo dados

estatísticos daqueles dias, até a dez, quatorze e vinte mil assistentes.

A gente (multidão) não se importava com os fortes raios solares, e guardava

tão profundo silêncio que chegava a enchê-lo de "admiração santa". Para ouvi-lo, subiam

até em árvores e cercas. Tão logo começava a falar, reinava silêncio que perdurava ao

longo de toda a exposição, que comumente se estendia mais de uma hora. Logo se fez

notar a influência de sua prédica na vida daqueles pobres miseráveis, que jaziam tão

abandonados a sua desditosa condição, parecendo que até Deus os havia desprezado e

olvidado. Ante a enormidade do trabalho e a impossibilidade de fazer frente a todas as

demandas, mandou pedir a João Wesley que viesse em seu socorro. Wesley, a

princípio, julgou estranho esse proceder, e seu espírito repelia a idéia de pregar dessa

maneira, e em terreno não consagrado.

Até 2 de maio de 1739 não se aventurou a seguir nas pisadas de

Whitefield, dizendo em seu Diário: "Submeti-me ao mais vil". Contudo, mais, tarde o fez, e

mais de três mil pessoas escutaram seu primeiro sermão ao ar livre, baseado no texto: "O

Espírito do Senhor está sobre mim, pelo que me ungiu para evangelizar aos pobres."

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58

A sorte estava lançada, e desde aí o movimento metodista não respeitaria

nenhuma trava, crítica, oposição ou prova. Estavam abertas as comportas, e qual rio

caudaloso, o movimento se estenderia por toda a Inglaterra e além dos mares. A Jorge

Whitefield devemos, pois, a inovação desta "irregularidade" que o levou a imitar nosso

Mestre, que jamais escolheu "lugares sagrados" para pregar; antes falava do Reino onde a

gente o buscasse com seus problemas e necessidades.

Esse ministério "irregular" de Jorge Whitefield transplantaria ao Novo Mundo.

E ele converteu-se no evangelista por excelência, sem pousada certa, sem jamais ter

congregação própria, não se envolvendo em questões denominacionais, desejando

tão-somente aproximar os pecadores do trono de Deus.

Um dos testemunhos mais dignos de fé que nos ficam sobre a natureza e

resultados da obra de evangelização de Whitefield acha-se na autobiografia de Benjamim

Franklin, um dos próceres (homens importantes) da independência dos Estados Unidos, que

diz:

"Em 1739 chegou da Irlanda entre nós o Rev. Sr. Whitefield, que se havia

distinguido como pregador itinerante. A princípio lhe foi permitido pregar em

algumas de nossas igrejas, mas o clero, desgostado com ele, recusou

imediatamente ceder-lhe o púlpito, pelo que se viu obrigado a pregar ao ar livre. As

multidões de todas as seitas (grupos religiosos, doutrinas) e denominações que

iam ouvir seus sermões eram enormes, e era matéria de especulação para mim,

que era um do grupo, observar a influência extraordinária de sua oratória sobre os

ouvintes e o muito que o admiravam e respeitavam, a despeito do abuso que mui

amiúde fazia deles ao assegurar-lhes que, por natureza, eram meio bestas e

meio diabos. Era maravilhoso ver a mudança que se produzia tão prontamente

nos hábitos de nossos habitantes. De um estado religiosamente indiferente e

despreocupado, parecia agora como se todo o mundo se estivesse tornando

religioso, de tal maneira que ninguém, ao entardecer, podia caminhar pela cidade

sem ouvir cânticos de salmos em muitos lares e em cada rua." (9)

Nesse seu entusiasmo evangelizador, foi além de sua própria teologia.

Contrariamente a João e Carlos Wesley, Whitefield acreditava na eleição divina: eleição que

permite que alguns se salvem e outros se percam para "a glória de Deus". De forma que

Page 59: Estranha estirpe de_audazes

59

somente aqueles que Deus elegeu "desde a fundação do mundo" podiam salvar-se.

Isto, naturalmente, partia de sua própria experiência religiosa. Como podia ele, um réprobo

(condenado, mau) de tão perversa estirpe (raiz, origem), ter chegado a ser pregador tão

poderoso da Palavra senão que Deus em sua maravilhosa providência o houvesse eleito

para isso? Certamente, por sua própria vontade, jamais teria chegado a ser o que foi. Só a

graça imerecida de Deus o salvou e arrebatou, literalmente falando, de um dos círculos mais

infernais da terra. Teoricamente, pregava àqueles que haviam sido eleitos que

despertassem para a realidade de sua eleição e não menosprezassem, em sua

ignorância, a graça divina que os distinguira com seu favor. Sem embargo, não era mui

conseqüente com sua teologia e pregava como se todos houvessem sido eleitos para a

salvação.

Essa diferença teológica o distanciou por algum tempo dos Wesley, distância que se

produziu principalmente pela publicação de um sermão de João Wesley sobre a "Livre

Graça" e a réplica que a ele havia feito Whitefield numa carta, publicada sem seu

conhecimento, mas que foi causa para que em 1741 se acirrassem os ânimos e se

suscitasse acre (áspera) controvérsia entre os amigos e camaradas. Apesar de tudo

isso, a separação não duraria permanentemente, embora fosse causa principal de

primeira divisão no movimento. Quando, em 1770, a Inglaterra soube da morte de

Whitefield, pois morreu nas colônias inglesas da América, João Wesley pregou um

sermão em sua memória, fazendo comovedora e encomiástica (elogiosa, louvável) apologia

(defesa) de seu antigo camarada.

Apesar de seu grande talento ser o de pregador evangelista, um dos principais

interesses do ministério de Whitefield se concretizou no estabelecimento dum orfanato que

fundou ao começar sua obra na América, em Savannah, na Geórgia, e ao qual pos o

nome de "Bethesda". Essa empresa (empreendimento) lhe custou muito trabalho,

afã (cuidado, diligência), viagens, desgostos e controvérsias. Nunca se soube

precisamente quantos meninos e jovenzinhos se beneficiaram com essa instituição, por

cuja existência lutou nobremente até quase ao fim da vida, e cujo estabelecimento e sustento

foi em grande parte devido a sua oratória.

Benjamim Franklin, que era amigo de Whitefield, sem por isso participar de seus

sentimentos religiosos, pois se intitulava "livre pensador", publicou muitos de seus escritos e

o ajudou em outras empresas (empreendimentos). Entretanto não estava de acordo com

Page 60: Estranha estirpe de_audazes

60

Whitefield em que se abrisse aquele orfanato na Geórgia, por ali faltarem materiais e obreiros

para levar a cabo um plano de tão alto vôo, como o que o evangelista projetava. Whitefield

teimou em abri-lo na Geórgia, e por isso Franklin lhe negou apoio. Mas quando Whitefield

realizou na Filadélfia, cidade onde vivia Franklin, uma assembléia a fim de levantar dinheiro

para aquela instituição, este resolveu ir ouvi-lo, mas com a determinação de não contribuir

nem com um centavo para a empresa. O que aconteceu nessa reunião, Franklin o descreve

assim:

"Eu tinha no bolso um punhado de moedas de cobre, três ou quatro

dólares de prata e cinco dobrões de ouro. Enquanto ele prosseguia, comecei a

abrandar-me e resolvi dar as moedas de cobre. Outro golpe de sua

oratória me envergonhou dessa resolução e determinei, então, dar-lhe as de

prata. E terminou tão admiravelmente que esvaziei inteiramente meu bolso na

salva de ofertas com ouro e tudo. Ouvindo esse sermão estava também um

senhor de nosso Clube, que tendo o mesmo parecer que eu quanto ao edifício de

Geórgia, e suspeitando que se levantaria oferta, tomou a precaução de esvaziar

os bolsos antes de sair de casa. Lá pela conclusão do discurso, sem dúvida,

sentiu forte desejo de dar, e solicitou a um vizinho, que estava perto, que lhe

emprestasse algum dinheiro para a oferta. Infelizmente o pedido foi 'feito talvez à

única pessoa no grupo que teve a firmeza de não se deixar afetar pelo pregador.

Sua resposta foi: "Em qualquer outra ocasião, amigo, eu te emprestaria

liberalmente, mas não agora, pois me parece que estás fora de juízo." (10)

Por muitos anos Whitefield, fiel às suas idéias ascéticas, pensou em não se casar,

mas finalmente resolveu fazê-lo. Mais por um senso prático da vida que por

sentimentalismo. Nesse sentido orou para que Deus lhe concedesse uma esposa que lhe

permitisse viver como se não a tivesse. Diz um biógrafo seu que certamente essa oração foi

ouvida, pois a que veio a ser sua esposa pouco interferiu em seu trabalho, mas quando ela

faleceu, confessou que sua morte lhe havia deixado a "mente em muita liberdade".

Sua vida matrimonial não se distinguiu, portanto, por alguma demonstração de

profundo afeto, mas viveu em boa harmonia com a esposa. Casou-se no dia 14 de janeiro de

1741 com Elizabeth James, viúva que devia contar então seus 34 anos de idade. Dela teve

um filho que morreu aos quatro meses depois de nascer, e não lhe nasceram outros.

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Esteve casado vinte e sete anos, falecendo a senhora Whitefield no dia 9 de agosto

de 1768, dois anos antes dele. João Wesley escreveu em suas memórias que era mulher

cheia de "candura e humanitária". Vários testemunhos afiançam que ela foi esposa

consagrada e cônscia de seus deveres, embora o marido, por sua itinerância, tivesse de

deixá-la longo tempo sozinha em casa, tanto na Inglaterra como na América, pois ela não

era muito dada a viajar.

Apesar de seus grandes esforços evangelizantes, quase sem precedentes, e de

sua devoção em favor dos órfãos, além de outras empresas menores, sua obra não

alcançou a transcendência que teve pessoalmente, e nem a obra que levaram a termo João e

Carlos Wesley. Faltava-lhe gênio organizador, equilibrada calma e paciência para

receber conselhos, visto como tinha a convicção de que para, todas as coisas receberia a

direção de Deus, portanto, tudo devia ter uma solução feliz.

Sem embargo, sempre será lembrado na história da Igreja Cristã como um dos

raros prodígios de oratória fulminante e quase demagógica. Pregava a tempo e fora de

tempo, sem medida e sem preocupar-se com o esforço que isto exigia de seu físico,

sempre enfermiço e sujeito a periódicos achaques. Calcula-se que num período de trinta e

quatro anos, pregou dezoito mil sermões. Sua média semanal era de uns 10.

Na América assumiu o compromisso de viajar a cavalo num circuito de mil e

quinhentas milhas (2.700 Km), para pregar incessantemente enquanto viajava. É incrível o

que se conta acerca das multidões que se ajuntavam de todas as partes, quando corria a

notícia de que ele se aproximava de alguma localidade. Vinham a pé, a cavalo, em carros,

cruzando campos, vales e bosques, como que atraídos por uma força irresistível. E rara era a

pessoa que o ouvia e não sentisse em si o desejo de arrepender-se de sua vida passada

e aceitar a cruz salvadora de Cristo. Em certa ocasião, quando o médico o aconselhou a

limitar suas pregações, escreveu em seu Diário: "Estou reduzido à curta ração de pregar

somente uma vez por semana e duas vezes nos domingos".

Seu ministério foi repartido entre América e Grã-Bretanha. Cruzou o Atlântico treze

vezes; seu itinerário na América compreendia desde o que é hoje o Estado de Geórgia até o

Maine. Viajava para a Inglaterra, principalmente, a fim de levantar dinheiro para seu orfanato

de Savannah e conservar vivas as relações na mãe-pátria. A América foi-lhe o campo

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62

predileto. De fato escreveu: "Agrada-me andar errante pelos bosques da América e muitas

vezes penso que não devo mais voltar à Inglaterra".

E realmente não voltar ia mais. Morreu no dia 30 de setembro de 1770,

encontrando-se na época e apesar de seu precário estado de saúde, num giro

evangelizante. É realmente impressionante o relato que temos de suas últimas horas de vida:

“Ele havia partido nesse mesmo dia para Newburyport, onde se esperava

que ele pregasse no dia seguinte. Durante a hora da ceia, o pátio em frente à

casa e mesmo a entrada encheram-se de gente que se empenhava em ouvir

umas poucas palavras de seus lábios eloqüentes. Mas estava exausto e,

levantando-se da mesa, disse a um dos clérigos que estavam com ele: “Irmão,

diga a essa gente que eu não posso dizer-Ihes uma só palavra”. E tomando de

uma vela apressou-se em ir a seu dormitório, mas antes de chegar lá parou; uma

sugestão de seu coração generoso lhe dizia que não devia abandonar assim uma

multidão ansiosa e faminta pelo pão da vida que anelava receber de suas mãos.

Parou sobre os degraus para dirigir-lhes a palavra. Ele já havia pregado seu

último sermão. Esta seria sua última exortação. Pareceria que algum estranho

pensamento, algum vago pressentimento se houvesse apossado de sua alma

com a apreensão triste de que esses momentos eram demasiados preciosos para

que os usasse em seu descanso. Demorou-se na escada, enquanto a multidão o

contemplava com olhos chorosos, como Eliseu ao contemplar o profeta

Elias que ascendia ao céu. Sua voz, que talvez jamais vibrasse mais musical e

emotiva, fluía incessantemente até que a vela que levantara em sua mão,

consumiu-se totalmente. Na manhã seguinte ele já não era: Deus o havia tomado

para si". (11)

Morreu de um ataque de asma. Cumpriu-se, assim, o desejo que expressara em

certa ocasião, quando um companheiro lhe recomendou não se excedesse em suas

atividades e não pregasse tão amiúde como o fazia: "Quero consumir-me antes de

enferrujar-me".

Assim terminou a vida daquele que fora o verbo mágico e eletrizante do metodismo

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calvinista. Em sua época, nenhum outro pregador teve a distinção de viajar tanto quanto

ele o fizera, e de pregar com tanta veemência e constância num circuito tão vasto e cheio de

inumeráveis tropeços e imprevistos.

NOTAS:

1) Gorge Whitefield, "A Shart Aceaunt of God's Dealing with the Rev. Mr. George WhitefieId" (London 1740).

(2) Idem

(3) Stevens, A., Op. Cit. Vol I,

(4)

(5)

( 6) Citado por Stuart, C.H., “Geoge Whitefield”.

(7) Diário, Vol. I.

(8) Citado por Stevens, A., Op. Cit., Vol I

(9) Harvard Classics, Vol I

(10) Harvard Classics, Vol I

(11) Stevens, A., Vol I, Op. Cit.

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CAPÍTULO SEXTO

UMA ESTRELA DA GRAÇA

" Meu labor está concluído.

Nada mais tenho a fazer senão ir para a casa de meu Pai".

Selina Shirle, a Lady e Condessa de Huntingdon

Foi na primavera de 1741 que Jorge Whitefield voltou pela segunda vez de suas

peregrinações evangelizantes na América (foi durante a sua segunda estada na

América que estabeleceu o orfanato Bethesda, pelo qual havia estado pedindo ajuda

na Inglaterra depois de seu primeiro retorno.

Pouco tempo depois de chegar à Inglaterra, foi publicada a carta em que atacava a

teologia de João Wesley, especialmente suas idéias arminianas, isto é, da

universalidade da salvação (que defendia a salvação divina pela graça, ou seja, para

todos e qualquer um que a aceitasse em Jesus Cristo, o que se opunha à doutrina

calvinistas da eleição ou predestinação que o próprio Deus fazia de uns para a salvação

e de outros para a perdição). João Wesley publicou um sermão sob o título de "Livre

Graça", em que confirmava suas convicções arminianas. Desta controvérsia, que por

momentos tomou aspecto virulento, como já dissemos, surgiram os dois ramos do

metodismo: O arminiano e o calvinista.

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Parece que Whitefield, além de suas convicções pessoais, havia recebido na

América essa influência calvinista, especialmente ao associar-se com alguns grupos batistas

e presbiterianos. Na Grã-Bretanha, os que apoiavam as mesmas tendências e que haviam

sido despertados em seu interesse religioso pelo movimento wesleyano, agruparam-se ao

redor de Whitefield a quem reconheceram como seu guia. Entre eles encontrava-se uma

mulher que faria o papel importante no destino desse movimento calvinista. Era Selina

Shirle, conhecida pelo título de Lady Huntingdon e posteriormente como Condessa

Huntingdon.

Nasceu essa senhora no dia 24 de agosto de 1707, na localidade de Chartley, e ao

que parece tinha conexão distante com a família real. Era a segunda filha de

Washington, conde de Ferrars. Apesar de estar acostumada a uma vida fácil e luxuosa, pois

tanto o pai como o esposo possuíam numerosas propriedades em diferentes lugares

do reino, sempre teve profundo interesse pelas coisas religiosas e por socorrer em suas

necessidades a seus dependentes e aos pobres da vizinhança.

Ela casou-se aos 21 anos de idade com Teófilo Hastings, nono conde de

Huntingdon. Este morreu em abril de 1746, aos 50 anos de idade, deixando-a viúva quando

ela beirava os 39 anos. Ela não voltou a casar-se, antes empregou sua viuvez e seus

haveres para incrementar e estender a obra religiosa.

Foi aos 32 anos, depois de uma séria enfermidade, que a Condessa de

Huntingdon teve ocasião de avistar-se com os Wesley (ano 1739). Ao que parece, o

primeiro contacto foi com Carlos. Sem embargo, segundo alguns historiadores, ela

freqüentou também as reuniões dos morávios, em Fetter Lane (a mesma comunidade onde

João Wesley teve sua experiência do Coração Aquecido), com os quais também os primeiros

metodistas soíam (costumavam) reunir-se durante algum tempo, antes de formarem grupo à

parte. Ademais, mostrou simpatia pela obra de Whitefield e teve certa influência para que o

grande evangelista fosse ordenado presbítero em janeiro de 1739, depois de seu primeiro

regresso da América, conforme se infere (conclui) de uma carta que o bispo Benson

escreveu ao conde de Huntingdon. Nela expressava o desejo de que essa ordenação

desse a Condessa Huntingdon alguma satisfação e esperava, ao mesmo tempo, que ela

não tivesse outro motivo para queixar-se de alguma falta do bispo. A condessa parece

haver-se irritado com a oposição hostil que os clérigos da Igreja Oficial fizeram para que

Whitefield fosse ordenado presbítero. Como regra seguida, ela comenta:

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"Embora equivocado em alguns pontos, creio que ele (Whitefield) é

um jovem piedoso, com boas intenções, grandes habilidades e muito zelo.

Garanto que o bispo de Canterbury tem dele elevada opinião." (1)

Uma das mais decisivas influências que teve em sua vida religiosa, e que em verdade

a levou a decidir lançar sua sorte com os metodistas, foi a de sua cunhada Lady Margarida

Hastings. Apesar de ser ela da alta linhagem na sociedade inglesa, Margarida casou-se em

1741 com James Ingham, que foi um dos membros do "Clube Santo", dos tempos de

Oxford. Assim, tanto Lady Margarida Hastings quanto a Condessa de Huntingdon, fizeram

pública profissão de fé com os metodistas. Vale a pena consignar aqui, que Betty, a irmã

de Margarida, uma década antes já patrocinava o tradicional grupo do "Clube Santo" em

Oxford. De aí a relação de Ingham com Margarida e dos metodistas com a família do conde

de Ferrars.

Depois de entrar em contacto com o movimento metodista a Condessa de

Huntingdon extremou-se no zelo religioso e em obras de caridade, o que alarmou um

pouco o esposo. Este se dirigiu ao bispo Benson, que era seu tutor, para que tratasse de

atenuar o fervor da esposa. Combinou-se uma entrevista em que o bispo a aconselhou

não ser tão estrita em sua conduta e sentimentos. Ela, porém, o emaranhou

(enredou, envolveu) em citações das Escrituras, mostrando-lhe que outro devia

ser seu comportamento (do Bispo) e não o buscar que a gente tivesse menos religião.

Ele ficou algo ressentido com esta recriminação, dizendo-lhe que lamentava haver

ordenado a Jorge Whitefield, a quem atribuía todo esse fervor religioso que ela e outros

estavam experimentando, por ser Whitefield um dos guias do movimento, e

confessou-lhe que se sentia diretamente implicado por haver-lhe imposto as ordens

eclesiásticas, ao que ela replicou:

"Meu senhor, grave bem minhas palavras: quando estiver no leito de morte,

esta será uma das poucas ordenações que recordará com agrado". (2)

Essas palavras foram proféticas. Quando o bispo estava às portas da morte,

determinou que se enviassem ao grande evangelista Whitefield dez guinéus como prova de

sua consideração e admiração, com o pedido de que orasse a seu favor. Este incidente

nos dá uma mostra do caráter firme, decidido e ousado dessa mulher que não temia

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67

enfrentar-se com os grandes de seus dias.

A Condessa Huntingdon convidou os Wesley, durante o desenrolar da 1ª

Conferência Anual Metodista, que se realizou em Londres nos fins de julho de 1744, para

realizarem uma sessão em sua residência. Isso porque ela, embora se houvesse decidido

pelo ramo calvinista do metodismo, considerava ambos os grupos como empenhados

numa causa comum. João Wesley pregou nessa reunião, havendo usado como texto o

seguinte: "Que cousas tem feito Deus!" Foi o primeiro sermão desse tipo que se pregou nessa

mansão senhorial. Mais tarde ela convidaria a Whitefield para pregar regularmente nessa

casa e em outras de sua propriedade, a muitos dos nobres da Inglaterra.

Quando Whitefield retornou de sua terceira viagem da América, em julho de 1748, a

Condessa Huntingdon enviou Howel Harris, um dos pregadores, para encontrá-lo e

convidá-lo a ir à sua casa em Chelsea, perto de Londres, para pregar a um grande círculo de

suas relações da alta sociedade inglesa. Mais tarde, esse ministério aos nobres ingleses se

estenderia às suas propriedades em Bath e Brighton. Nesses lugares ela construiu capelas e

nomeou Whitefield como um de seus capelães, sendo esta, realmente, a única

nomeação que o grande evangelista teria na Inglaterra.

Depois da morte do esposo e sem descuidar os deveres materiais — pois tinha cinco

filhos — tratou de empregar grande parte da fortuna em comprar propriedades para que os

pregadores de sua conexão tivessem onde exercer propriamente seu ministério. Adquiriu

teatros, salas públicas e capelas abandonadas, quer em Londres, Bristol ou Dublin, e as

reformou para que nelas se anunciasse a Palavra. Ademais, levantou capelas tanto na

Inglaterra como no País de Gales e na Irlanda. Ela significou dentro do movimento calvinista

o que João Wesley dentro do movimento arminiano, com a diferença que ela possuía a seu

alcance maiores recursos econômicos.

Dividiu os territórios em distritos e enviou evangelistas itinerantes a pregar, e ela

fazia frente (custeava) a todos os gastos que isso implicava. Calcula-se que despendeu

em todas essas obras de evangelização cerca de meio milhão de libras esterlinas. Essa

soma, sem dúvida alguma, representa muito mais do que hoje valeria. Chegou até a

vender suas jóias com o fito (intento) de comprar capelas. Despediu a muitos de seus

criados, reduziu grandemente suas despesas domésticas para que lhe sobrasse o suficiente

a fim de enfrentar os crescentes gastos da obra missionária.

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Certa ocasião um alto dignitário queixou-se ao rei Jorge II de que essa senhora e

seus pregadores estavam se extremando em suas lides religiosas. O próprio rei, que a

tinha em alta estima, relatou-lhe o incidente. Achou por bem o monarca dizer a esse

dignitário que tratasse de imitar o zelo desses pregadores, e que quanto a Condessa

Huntingdon, desejava que houvesse uma igual a ela em cada diocese do reino. Ela mesma,

muitas vezes, acompanhava os capelães e pregadores por toda a Inglaterra, animando o

movimento com sua presença e inspecionando as obras para ver quais eram as

necessidades e oportunidades. O mais importante desses lugares de culto (que ainda existe)

foi o que se denominou "Tottenham Court Road Chapel", que substituiu o tabernáculo que em

1741 se erguera pela primeira vez em Moorfields para abrigar as multidões que, antes de

reunir-se ali, reuniam-se ao ar livre, e que Whitefield inaugurara no regresso de sua segunda

visita à América.

O movimento calvinista, como o arminiano, foi crescendo sensivelmente, o que

exigia maior número de pastores e capelães. Tornou-se evidente que a estes se devia

proporcionar preparo mais adequado às tarefas ministeriais. Portanto a Condessa

Huntingdon resolveu estabelecer um colégio para pregadores. Estabeleceu-o em

Gales do Sul, utilizando-se de antigo castelo, ao qual se deu o nome de "Casa Trevecca".

Foi dedicado (inaugurado) a 24 de agosto de 1768. Jorge Whitefield pregou o sermão

dedicatório e tomou por texto: "Em todo lugar onde eu fizer celebrar a memória do meu nome,

virei a ti, e te abençoarei". No domingo seguinte voltou a pregar no pátio do colégio ante

milhares de pessoas, e desta vez seu texto foi: "Porque ninguém pode lançar outro

fundamento, além do que foi posto, o qual é Jesus Cristo".

Não obstante ser um colégio que tinha como principal objetivo o preparo dos

pregadores do ramo calvinista, alguns pregadores de tradição arminiana também

colaboraram, nessa obra educativa. Relações ricas e nobres da condessa carrearam

(ocasionaram, propiciaram, levantaram) fundos para fazer frente aos gastos de

compra e reforma da propriedade.

João Wesley aprovou a iniciativa e João Guilherme de La Flechère foi o primeiro

diretor da escola. Um dos mineiros convertidos por sua pregação nos "Montes de

Madeley", perto de onde estava sua paróquia, foi o primeiro estudante que se

matriculou nessa escola.

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Os estudantes podiam permanecer na "Casa Trevecca" durante três anos com

direito a pensão, estudo e um traje por ano. Para cursar os estudos não havia

compromisso algum de servir a determinada igreja ou grupo em particular. Podiam

solicitar ordens eclesiásticas na Igreja Anglicana ou em qualquer outra denominação

cristã à qual se sentissem chamados a servir. McTyeire escreve o seguinte sobre

Trevecca:

"Trevecca, durante anos foi como quartel general do metodismo

calvinista. Supriu seus púlpitos e ao mesmo tempo fez contribuições

ministeriais importantes à Igreja Oficial (Igreja Anglicana) e aos outros grupos

Dissidentes (outras denominações). A condessa vivia ali grande parte de seu

tempo. Convinha-lhe, por causa da extensa obra que sustentava. E desse modo

podia despachar com urgência emissários e ajuda a muitos púlpitos. Sempre

havia cavalos à mão para que os estudantes fossem levados aos sábados a

pontos distantes, enquanto que os mais próximos eram visitados a pé.

Freqüentemente saíam para circuitos remotos pregando em campos, celeiros,

mercados, lares. Os retiros anuais eram como reuniões de acampamentos

metodistas. Em certa ocasião mil e trezentos cavalos de visitantes e

convidados viram-se soltos num grande campo, sem contar os que haviam

sido deixados nas aldeias circunvizinhas, além de grande número de

carruagens. Num extremo do pátio do colégio foi erigido um palco sobre o qual

se colocou um atril (estante em plano inclinado onde se põe o papel ou

livro aberto para se ler comodamente), de onde seis ou sete pregadores

discursavam sucessivamente a congregações atentas e ansiosas. Informa um

visitante que trezentas pessoas almoçaram juntas no local e conta que eram

abundantes os sermões, exortações, sacramentos, ágapes espirituais, tanto

em Inglês como em gaulês, e que mui ferventes eram os améns e o clamor (as

expressões) de 'Glória a Deus'." (3)

Naturalmente, a educação que se dispensava era mais prática que teológica, e

seus estudantes eram treinados no sentido de conduzir pessoas a Cristo, e se lhes

mostrava a urgência de sair a pregar por vales, encruzilhadas e onde que houvesse almas

necessitadas da mensagem da salvação eterna.

Quando a Condessa de Huntingdon faleceu contava 84 anos. Deixou todas as

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70

propriedades que lhe restavam para o sustento das setenta e quatro capelas que havia

ajudado a construir em diferentes partes da Grã-Bretanha e considerável soma para

obras de beneficência. Dentro do grupo calvinista ocupou lugar que se pode comparar ao de

João Wesley no grupo arminiano. Certamente, se não fosse mulher (naquela época as ações

das mulheres, por mais capazes e bem preparadas que fossem, eram bastante limitadas),

teria tido influência tão grande quanto ele, ou talvez maior. Na história da Igreja Cristã é

provável que não tenha havido outra mulher que exercesse tanto poder "eclesiástico"

sem tê-lo realmente, como a Condessa Huntingdon. Horácio Walpole, ilustre homem de

letras e membro do parlamento, que foi seu contemporâneo, chamou-lhe "a Rainha do

Metodismo", e outro sábio, também do mesmo século, a qualificou como "Estrela de

Primeira Grandeza no Firmamento da Igreja".

Ao morrer exclamou: "Meu labor está concluído. Nada mais tenho a fazer

senão ir para a casa de meu Pai". Sua enfermidade foi longa e dolorosa, mas nesse

período conservou forte o ânimo, exceto uma vez ou outra quando entrou em êxtase,

parecendo-lhe por momentos encontrar-se já nos umbrais da glória celeste.

NOTAS:

(1)

(2)

(3) Op. Cit., pág. 246.

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71

CAPÍTULO SÉTIMO

O PALADINO DA DIVINA

MISERICÓRDIA

“Não permita Deus que eu exclua de meu afeto

fraternal e de minha assistência ocasional, a

qualquer dos verdadeiros ministros de Cristo, porque

e l e l a n c e a s r e de s d o E v a n g e l h o c o m os

presbiter ianos, ou os independentes, ou os

quaqueres ou os batistas!".

João Guilherme de La Flechère

No estudo que fizemos de João Wesley dissemos que não havia sido

primeiramente teólogo e sim evangelista, e que sua principal fonte de pregação era o

Novo Testamento. Quando recrudesceu a controvérsia sobre o principal ponto teológico

que os dividia em calvinistas e arminianos, como duas correntes metodistas paralelas,

João Wesley teve de lançar mão de João Guilherme de La Flechère, ou João Fletcher

como era conhecido, que aparecera no cenário metodista quando o movimento já havia

tomado grande impulso na Inglaterra.

A razão pela qual o movimento metodista nunca se distinguiu como sistema

Page 72: Estranha estirpe de_audazes

72

teológico é que seu principal interesse havia sido o de despertar a consciência evangélica

daqueles que nominalmente se diziam cristãos e de levar a mensagem do Evangelho aos

que não tinham conhecimento. Para cumprir com tal propósito, o mais importante era a

exposição que se pudesse fazer das Escrituras. Para João Wesley um sistema particular de

doutrina era coisa secundária, segundo o que ele mesmo escrevera sobre a natureza do

crente metodista:

"São estes os princípios e práticas de nossa seita (doutrina), os

traços do verdadeiro metodista... Se alguém diz: 'Mas esses são apenas os

princípios fundamentais comuns da fé cristã!!!” É precisamente isso o que quero

dizer.. . Rogo a Deus que tu e todos os homens saibam que eu e todos os que

pensam como eu, recusamos veementemente ser diferençados dos demais

homens por algo que não sejam os princípios comuns do cristianismo... Por estes

sinais, por estes frutos de uma fé viva, tratamos de distinguir-nos do mundo

crente... Mas dos verdadeiros cristãos, de qualquer denominação,

desejamos ansiosamente não distinguir-nos em absoluto... É teu coração sincero

como o meu o é para ti? Não te pergunto outra coisa. Se assim é, dá-me a mão...

Amas e serves a Deus? Isto basta. Aperto tua destra (mão) em sinal de

comunhão." ((((1111))))

Em sua "Pequena História do Povo Chamado Metodista", Wesley diz o

seguinte sobre seu achado de La Flechère:

"Dia 13 de 1757. Achando-me em estado de fraqueza, em Snowfields, orei

a Deus para que, se lhe parecesse bem, me enviasse ajuda para minhas capelas.

Assim o fiz. E tão logo terminei de pregar, veio o Sr. Fletcher, que havia sido

recentemente ordenado presbítero (da Igreja Anglicana) e se apressou em

chegar à capela com a intenção de ajudar-me, supondo que eu estivesse só. Quão

maravilhosos são os caminhos do Senhor! Quando minha força física declinava e

nenhum clérigo na Inglaterra estava em condições ou pronto para ajudar-me,

enviou-me ajuda das montanhas da Suíça e verdadeiro companheiro em todo

sentido! Onde poderia eu ter encontrado outro igual?" (2)

O fundador do metodismo tinha esperança de que esse homem, que Deus lhe

havia deparado (trazido inesperadamente) de maneira tão providencial, viria a ser seu

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73

sucessor na direção do movimento. Por aquela época Wesley se encontrava um tanto

quanto desalentado quanto a seu estado físico e julgou que não viveria muito tempo mais.

Estava buscando alguém que pudesse ocupar seu posto se ele chegasse a faltar. Não

obstante ele sobreviveria a João de La Flechère, que era de constituição física muito mais

precária que Wesley.

Embora a João de La Flechère não o sucedesse na direção, foi-lhe muito útil

na luta que precisou sustentar para defender o ponto de vista arminiano perante seus

opositores calvinistas. Dessa maneira, o metodismo produziu um grande teólogo sem que

este realmente escrevesse um tratado de teologia como a "Suma Teológica" de Tomás de

Aquino ou "As Instituições Cristãs" de Calvino. Limitou-se a defender uma doutrina que lhe

pareceu mais afinada com o ensino que o cristianismo primitivo ministrava segundo o

testemunho do Novo Testamento.

João Guilherme de La Flechère não nasceu na Inglaterra. Viu a luz em Nyon,

pequeno povoado não muito longe de Genebra, Suíça, quase às margens do lago Leman,

no dia 12 de setembro de 1729. Descendia de uma família da Sabóia francesa. Estudou na

Universidade de Genebra e se distinguiu como aluno estudioso. Havia pensado fazer-se

pastor da Igreja Reformada da Suíça, mas por questões de consciência recusou

finalmente entrar. O que obstou a que ele desse tal passo foi o credo calvinista. Repugnava a

sua consciência crer que Deus, para sua glória, houvesse desde a fundação do mundo

decretado a perdição de muitos seres humanos. Renunciou a sua vocação ministerial por

esse motivo e foi a outro extremo, abraçando a carreira militar. Não durou muito essa

determinação, e logo viu que ali nunca prosperaria, visto como tinha ânimo demasiado

gentil para acomodar-se às idéias brutais da guerra. Foi quando resolveu emigrar para a

Inglaterra.

Como meio de vida nesse novo ambiente, João de La Flechère aceitou lugar de

tutor junto a uma rica família que vivia no campo e que costumava passar os invernos em

Londres. Suas ocupações docentes não fizeram diminuir-lhe o interesse pelas coisas do

espírito. Uma inquietude profunda por conhecer mais intimamente as coisas de Deus não o

deixava completamente em paz. Ouvindo falar dos metodistas, inquiriu a respeito

deles. Disseram-lhe: "São gente que ora dia e noite". A isto replicou: "Então eu os

encontrarei, se eles estão a meu alcance". Durante uma de suas permanências em

Londres pode entrar em contacto com os metodistas e renasceu-lhe o zelo religioso,

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74

desejando servir ao Senhor assim como o anelara em seus anos mais juvenis. João Wesley

aconselhou-o a buscar ordens eclesiásticas no seio da Igreja Anglicana, que ele fez e

obteve.

Depois de ser ordenado ministro, o rico senhor em cuja casa servira de tutor

ofereceu-lhe a capelania de sua capela particular, em Dunham, onde lhe disseram que

havia "pouco trabalho e bom salário". Pouco antes de ser-lhe feito esse oferecimento

havia visitado o povo de Madeley, lugar não muito grande, mas onde prosperavam

algumas indústrias e minas. Notou no povo muita miséria e perdição. A Igreja Anglicana do

local vivia deserta e a gente (a população) não manifestava nenhum interesse pelas

coisas do espírito. Observou, também, a abundância do comércio de bebidas. Quando

seu antigo amo (patrão) lhe ofereceu aquela capelania, teve uma idéia: aceitá-la para

permutá-la com o pároco de Madeley. Mui gostosamente este aceitou a troca e pouco

depois La Flechère estava em seu novo posto de trabalho. Foi mirrada a colheita que

obteve ali no princípio de seu ministério. A gente (a população) se levantava tarde nos dias

de culto e por isso não assistia aos serviços religiosos. Davam, porém, como desculpa, que

o lavar e aprontar as crianças lhes tomava muito tempo para que estivessem prontos na

hora em que começavam os exercícios divinos (cultos). Então ele resolveu o problema

lançando mão do expediente de ir cedo pelas ruas tocando campainha para que se

levantassem a tempo. Além disso, se propôs visitar assiduamente, de casa em casa, indo o

melhor que pode ao encontro das muitas necessidades dessa gente, que por longo tempo

havia vivido ao abandono.

Nessa época ele já falava bem a língua inglesa e a usava maravilhosamente. Não era

homem de alta eloqüência, mas imprimia tal espírito de piedade e tal sentimento de candura

no que dizia, que suas palavras chegavam fundo no coração dos ouvintes. Um de seus

contemporâneos deu este testemunho: "Sua palavra viva remontava-se como vôo de águia".

A grande custo os ouvintes podiam reter as lágrimas, e suas mensagens eram recordadas

por muito tempo, pois deixavam impressão indelével (indestrutível) nas almas. Extremava-se

no cuidado dos pobres, que encontravam nele não só a mão caritativa, mas também o

coração compreensivo. Uma vez e outra chegou a vender os móveis de sua casa para

fazer face a alguma necessidade premente dos paroquianos pobres. Atendia com carinho as

crianças, às quais instruía no catecismo e as cercava com conselhos paternais. Consta que

chegava a reunir até trezentas delas.

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75

Sua saúde nunca foi muito boa. Estava sujeito a achaques e, ao que parece, sofria de

tuberculose. Mas, apesar disso, entre enfermidade e enfermidade, levava adiante seu

ministério com dedicação e carinho. Não passariam muitas semanas em sua paróquia

antes que viesse o prêmio de seus esforços. A igreja se encheu de gente e muitos

encontraram o caminho da salvação e o sabor de uma nova vida em Cristo. Não somente

melhorou as condições de muitas famílias, mas também o povo sentiu a influência de sua

piedade e consagração. Tornou-se conhecido em toda a Inglaterra como "o Vigário de

Madeley". Aqueles que o conheciam diziam que só o seu aspecto já infundia ânimo e que

toda sua maneira de ser convidava a uma vida mais santa.

João Guilherme de La Flechère, apesar de pertencer como eclesiástico à Igreja da

Inglaterra, nunca perdeu o fervor metodista, e como já o notamos, foi um dos

companheiros mais achegados e fiéis de João Wesley. Pela citação de Wesley que

transcrevemos antes, vemos que ele apareceu quase providencialmente numa época de

premente necessidade. Wesley, em sua anotação, esqueceu-se de dizer que nesse

mesmo dia La Flechère recebeu sua ordenação de presbítero. O historiador Stevens nos faz

uma clara avaliação a respeito de sua contribuição ao movimento metodista:

"De ali em diante, dentre o clero da Igreja Anglicana, foi o coadjutor

mais ardente de Wesley, seu conselheiro e companheiro de viagem na

itinerância evangelizadora, assistente em suas Conferências (concílios), campeão

de seus pontos teológicos e, sobretudo, exemplo santo de vida e do poder do

cristianismo, assim como o ensinava o metodismo. Era lido e conhecido,

admirado e amado pelos metodistas em todo o mundo, tanto assim que Madeley,

sua paróquia, lhes é tão familiar e tanto a estimam como a própria Epworth." (3)

Wesley sentiu muito que ele resistisse em aceitar o convite para substituí-lo no

caso de vir a faltar. E por dois motivos não aceitou: por sua má saúde e por sua modéstia.

Apesar de exercer o ministério entre a gente humilde, pobre e viciada, nunca

perdeu contacto com os mais ilustres de sua época, e gozava da mesma admiração e

prestígio tanto entre ignorantes como entre sábios.

Quase até ao fim da vida se manteve solteiro. Em 1770 fez sua primeira visita de

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regresso à Suíça. Nessa viagem passou pela Itália e empenhou-se em visitar a via Ápia, e ali

estando se descobriu e se ajoelhou em homenagem aos cristãos primitivos que por ela

haviam passado e dado a vida em testemunho do Evangelho. Voltou à sua paróquia mais

animado no espírito e mais forte no corpo, mas no verão de 1777 a saúde piora

novamente, perdendo ele a esperança de curar-se. Ao fim desse verão voltou de novo à

Suíça e ali permaneceu até 1781. Novamente os ares da terra natal lhe devolveram parte da

saúde, já que nunca chegou a curar-se por completo. Nesse mesmo ano voltou à

Inglaterra e no mês de novembro contraiu matrimônio com Maria Bosanquet, que havia

sido excelente cooperadora de João Wesley e uma das poucas mulheres a quem

concedera permissão para dirigir a palavra nas reuniões metodistas.

Maria nasceu de pais opulentos, em 1739, e desde tenra idade mostrou

pronunciado pendor pela religião. Quando tinha apenas oito anos de idade já meditava

acerca de sua salvação eterna, perguntando-se: "Que história é essa de se perdoar os

pecados de alguém e que devemos ter fé em Jesus?" Sua família estava relacionada com

círculos da alta sociedade, e assim teve ocasião de conhecer a vida prazerosa e os

centros aristocráticos das cidades de Bath e de Londres, bem como os salões de baile e casa

de ópera, todavia seu espírito religioso não desfaleceu. Em sua casa trabalhava uma

jovem criada que foi alcançada pelo movimento metodista. Essa criada exerceu grande

influência sobre Maria e sua irmã, e merece grande crédito pela resolução que Maria

tomara de aderir ao metodismo.

Depois, em Londres, no inicio de sua juventude, entrou em contacto com alguns

elementos femininos metodistas que influíram em sua maneira de viver. Os pais se

alarmaram com a religiosidade da filha e quiseram levá-la a um lugar de veraneio,

tratando de alijar de sua mente o que, na opinião deles, eram "idéias exóticas e

extravagantes". Todavia ela lhes suplicou que não a levassem, e ficou com alguns amigos em

Londres, que alimentavam sentimentos mais afins com os seus. No seio dessa família,

firmou-se mais e mais a determinação de dedicar-se a uma vida religiosa. Um dia seu pai

impacientou-se com ela e lhe disse: "Tenho de exigir-te que prometas

expressamente que nunca, em qualquer oportunidade, seja agora ou mais tarde, tentes fazer

de tuas irmãs o que chamas um cristão". A isso respondeu (ela mesma o relata): "De

acordo com o que considero ser a vontade do Senhor, não ouso consentir em tal coisa".

Então o pai lhe replicou: "Em tal caso me obrigas a que te ponha fora de minha casa". A

isso ela respondeu: "Está bem, senhor, e de acordo com sua maneira de ver as coisas,

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77

entendo sua atitude. De minha parte me guardarei de provocar ambiente

desagradável". E quando alcançou a maioridade, estando de posse de uma pequena

fortuna, por direito de herança, abandonou o lar. Com o consentimento dos pais

estabeleceu-se em companhia de sua criada, num local um tanto afastado de sua morada

anterior. Dedicou-se ali à vida religiosa que tanto almejava e, exceto o que reservava para

seu modesto sustento, distribuía todas as rendas entre algumas viúvas pobres.

Dessa época em diante passou a vida em simplicidade, aprofundando-se na

piedade e extremando-se em atividade benevolente. Pôs-se à disposição das

"Sociedades Metodistas" de Londres e foi alto expoente da maneira de viver, pensar e crer

dos Wesley. Muitas haviam sido, já, as atividades que exercera, quando se casou com

João de La Flechère. Os historiadores dizem que nunca antes duas almas tão gêmeas

viveram sob um mesmo teto. O poeta Roberto Southey dá o seguinte parecer: "É

mulher profundamente apropriada para ele em idade, temperamento e talentos". (4) Foi

constante companheira do esposo em todos os misteres pastorais, secundando-o

(auxiliando-o )em todos os giros evangelizantes e sustentando-o em sua débil saúde.

Escrevendo a Carlos Wesley sobre seu casamento, depois de pouco mais de um ano de

casados, diz João de La Flechère:

"Eu tinha medo, a princípio, de dizer muito sobre este particular, porque os

recém-casados não se conhecem devidamente um ao outro, mas havendo vivido

em meu novo estado por esses quatorze meses, posso dizer-lhe que a

Providência me reservou um prêmio, e que minha esposa é muito melhor para

mim que a Igreja para Cristo, de tal maneira que se o paralelismo falha, será por

minha causa." (5)

Com a publicação das Atas da Conferência Anual reunida em Londres, em 1770, surge

uma nova controvérsia com os elementos calvinistas. Estes haviam interpretado algumas

asserções ali contidas como se advogassem "a salvação por meio das obras", e não pela fé

somente, bradando aos céus e dizendo que se haviam apartado por completo da sã doutrina.

Na realidade, o que a Conferência quis salientar era a necessidade de a fé ser confirmada

por uma vida pura, dedicada ao bem. Deste incidente, que a princípio parecia ser coisa sem

importância, desencadeou-se uma controvérsia que durou longo tempo, e João Guilherme de

La Flechère se converteu no defensor da tese doutrinária do metodismo arminiano. Fê-lo com

altura e profundidade em cartas e folhetos que depois foram reunidos em volumes chamados

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78

"Cheeks to Antinomianism", nos quais se esforçou por expor o que considerava ser a

essência do Evangelho, sem ferir suscetibilidades. A respeito dessas publicações, João

Wesley faz o seguinte comentário:

"Não se sabe o que admirar mais: se a pureza de linguagem, ou a força e

clareza do argumento, ou a gentileza e doçura de espírito que se desprende de

tudo isto." (6)

Como resultado desta controvérsia, a Condessa Huntingdong despediu o

metodista arminiano José Benson da direção do colégio Trevecca, em virtude de sua

negativa em aceitar a doutrina da predestinação absoluta. Ante essa atitude da Condessa,

que havia sido também responsável por chamar a atenção ao conteúdo das Atas de

1770, La Flechère, eleito na época presidente da Instituição, enviou-lhe a renúncia de seu

cargo, dizendo-lhe entre outras coisas que:

"O Sr. Benson fez uma defesa muito justa quando disse que comigo

sustentava a possibilidade de salvação para todos os homens e que a misericórdia ou

é oferecida a todos, embora possa ser recebida ou rejeitada. Se isto é o que sua

senhoria identifica como opinião do Sr. Wesley, livre arbítrio ou arminianismo, e se

qualquer arminiano tem de deixar o colégio, de fato estou igualmente despedido.

Diante de meu atual ponto de vista nesta questão, vejo-me obrigado a manter este

sentimento, se em verdade a Bíblia é verdadeira e Deus é Amor. " ( 7)

Antes de sua renúncia, ele se manteve no cargo de diretor do colégio Trevecca por

dois anos, e depois da renúncia, de quando em quando visitava a escola para ali ficar alguns

dias e estar em contacto com os alunos. Dessas visitas temos este testemunho de Benson:

"O leitor me perdoará se pensa que estou exagerando, mas meu coração se

ilumina enquanto escrevo. Isto é o que eu via: que direi? Um anjo em carne

humana? Não me excederia muito da verdade se assim o dissesse. Em verdade eu via

diante de mim um descendente do caído Adão tão completamente restaurado das

conseqüências da queda, que embora o corpo estivesse atado à terra, sem dúvida

sua conservação era dos céus e sua vida estava dia após dia escondida com Cristo

em Deus. Oração, louvor, amor e consagração, tudo isso ardente e elevado muito

acima do que comumente julgamos ser possível alcançar neste nosso estado de

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fraqueza, eram os elementos pelos quais vivia constantemente. As línguas, as artes, a

ciência, a gramática, a lógica e mesmo as próprias matérias teológicas eram postas de

lado quando ele aparecia em aula entre os estudantes. Estes raramente o ouviam por

muito tempo sem que brotassem lágrimas de seus olhos e sem que cada coração se

incendiasse com a chama que ardia em sua alma." (8)

Talvez seja conveniente dizer que depois de seis anos de controvérsia, os dois

grupos se reconciliaram, reconhecendo que, apesar de seus diferentes pontos de vistas

teológicos, estavam trabalhando para a mesma causa e que decerto se haviam excedido em

zelo e expressões. Em conexão com este fato é reconfortante recordar ainda que

Fletcher possuía um estranho espírito ecumênico, para quem o mais importante não era

pertencer a esta ou àquela denominação, e sim ter o espírito de Cristo na vida e na alma.

Uma declaração sua, a respeito da atitude que tinha para com os colegas de outras

denominações, revela-nos esse espírito:

"Não permita Deus que eu exclua de meu afeto fraternal e de minha

assistência ocasional, a qualquer dos verdadeiros ministros de Cristo, porque

ele lance as redes do Evangelho com os presbiterianos, ou os independentes, ou

os quaqueres ou os batistas! Se eles não me desejam boa sorte no Senhor, eu a

desejarei a eles. Podem eles excomungar-se se seus preconceitos os compelem a

isso, podem levantar, se quiserem, muros de separação entre mim e eles, mas

pelo poder de meu Senhor, cujo amor é tão ilimitado como sua imensidade,

saltarei por cima de seus muros. " (9)

A morte o surpreendeu no dia 14 de agosto de 1785, apenas quatro anos após seu

enlace matrimonial. Sua saída deste mundo foi tão gloriosa e luminosa como sua própria vida.

A esposa o acompanhou carinhosamente em seu leito de morte, vigiando-o minuto após

minuto e bebendo de seus lábios as últimas palavras, até que já não pôde falar mais.

Durante os últimos dias, em meio à dor, ouviam-se, de quando em quando, estas

exclamações: "Deus é amor! Proclamai-o, proclamai-o com força! Oh! que uma onda de

louvor se estenda até aos confins da terra!" Seu espírito arminiano, segundo o qual o

amor de Deus está sempre permanente e ativo, acompanhou-o até aos últimos momentos de

vida. No último dia, quando estava agonizando, os pobres que ele havia socorrido

vieram de toda parte desejando vê-lo pela última vez, e deixaram que passassem diante da

porta do quarto onde jazia para que dessem uma última olhadela em seu rosto. Não podendo

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falar mais, a esposa se inclinou sobre ele e lhe disse: "Conheço tua alma, mas por amor

aos demais, se Jesus está mui perto de t i, levanta tua mão direita".

Imediatamente a levantou. Outra vez ela lhe disse: "Se as perspectivas de glória se

abrem amplamente sobre ti, repete o sinal". Instantaneamente a levantou outra vez e

passado meio minuto, uma vez mais. Ato contínuo levantou-a tão alto como se quisesse

alcançar a cabeceira da cama. Depois disso as mãos não se moveram mais, e como se

estivesse dormindo, morreu. João Wesley deixou este comentário a respeito de sua vida:

"Muitos homens exemplares, santos na vida e no coração, tenho

conhecido durante oitenta anos de vida, mas igual a ele não conheci nenhum tão

consagrado a Deus, tanto interior como exteriormente, caráter tão sem jaça

(mancha) em todo sentido. Não tenho encontrado nem na Europa, nem na

América, nem espero encontrar outro igual neste lado da eternidade." (10)

NOTAS:

(1) Citado por Schofield, C.E., "La Iglesia Metodista", pág. 131.

(2) Stevens, A., Op. Cit., Vol. I, pág. 365.

(3) Stevens, A., Op. Cit., Vol I, pág. 367.

(4) Soutley, R., citado por Stevens, A., Op. Cit. Vol II.

(5) Wesley, C., citado por Stevens, A., Vol II, págs 270-271.

(6) Wesley, citado em “A New History of Methodism”, Vol I, págs 319-320.

(7) Citado por Stevens, A., Op. Cit., Vol II, pág. 37.

(8) Citado por Stevens, A., Op. Cit., Vol I, pág. 425.

(9) Citado por Stevens, A., Op. Cit., Vol II, pág. 272.

(10) Citado por Stevens, A., Vol. II, pág. 274.

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CAPÍTULO OITAVO

TINHA ASAS DE ÁGUIA

"Anseio ter as asas da águia e a voz de trombeta para

poder proclamar o Evangelho pelos quatro pontos

cardiais da terra."

Tomás Coke

Durante a Conferência Anual que João Wesley presidiu em Leeds, Inglaterra, em agosto

de 1778, achava-se presente pela primeira vez, numa reunião como aquela um homem que viria

a figurar nos anais (história ou narração organizada ano por ano) do movimento metodista como

um de seus principais atores. Seu nome era Tomás Coke, doutor em leis. Essa não era,

entretanto, a primeira vez que ele entrava em contacto com os metodistas. Antes disso,

havia estado relacionado com Tomás Maxfield (de quem falaremos mais adiante), que foi

o primeiro pregador leigo metodista e que lhe falou da natureza da religião que abraçara muitos

anos antes. Depois entrou em contacto com outros que haviam sido alcançados pelo

metodismo wesleyano. Esses contactos levaram-no a modificar sua própria religião e

sendo, além de doutor em leis, ministro da Igreja Anglicana, começou a pregar à maneira

metodista. O interessante, no caso de Coke, é que foi levado a uma vida mais espiritual da

religião cristã através da instrumentalidade de leigos, que em sua simples, porém profunda fé,

tiveram o poder de mostrar-lhe algo que não encontrara através da teologia formal de sua

Igreja.

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A decisão de voltar seu interesse religioso com os metodistas, embora não

houvesse tido ainda ocasião de encontrar-se com João Wesley, obrigou-o mui cedo a

haver-se com as autoridades eclesiásticas. As obras de João de La Flechère e os

sermões de Wesley fizeram-lhe tão grande impressão que o compeliram a modificar

completamente o conteúdo e a forma de sua pregação, com tal ousadia, que chegou a exercer o

ministério fora das paredes da igreja. Ainda mais, introduziu o cântico de hinos na

congregação e começou a pregar "ex-tempore". Foi admoestado pelo bispo da cidade de Bath,

e Wells, seu superior na paróquia, o despediu. Os paroquianos ameaçaram apedrejá-lo.

Por fim o expulsaram da igreja. Durante o debate pregou na rua, perto da igreja. Voltou a

pregar ao ar livre no domingo seguinte, e com grande dificuldade pode sair ileso da multidão

que quis apedrejá-lo. Um jovem e sua irmã serviram-lhe de escudo para defendê-lo. Afinal se viu

obrigado a sair do lugar chamado Petherson, onde iniciara seu ministério. Nesse dia os

sinos do povoado foram aos ares para celebrar sua expulsão, e o metodismo ganhou

para sempre aquele que, depois de Wesley, seria a figura mais notável. João Wesley

escreveu o seguinte em seu Diário, com data de 13 de agosto de 1776:

"Aqui (em Kingston) encontrei o Dr. Coke, que a propósito viajou vinte milhas

(32 km) para encontrar-se comigo. Tive uma longa conversa com ele, e desde esse

instante se iniciou uma verdadeira comunhão que espero jamais termine. " (1)

E o desejo se cumpriu. João Wesley já estava ficando muito idoso e anelava

(desejava) encontrar quem pudesse coadjuvar (ajudar) na administração de uma obra que

havia ido muito além de suas possibilidades. Como anteriormente vimos, ele pôs as

vistas em La Flechère, mas não pôde concretizar a idéia. Não recuou em seu empenho de

buscar algum outro, mas seus esforços resultaram infrutíferos. Agora era Deus que lhe punha

ao alcance o homem que tanto desejara e de que necessitara.

Antes de prosseguir, diremos algo mais sobre seus antecedentes. Nasceu no

povoado de Brecon, no ano de 1747, no País de Gales. Era filho único de pais abastados.

Estudou na Universidade de Oxford, havendo-se matriculado no colégio de "Jesus" a 10 de

junho de 1770. Foi ordenado diácono e três dias depois recebeu o título de Mestre em Artes. No

dia 23 de agosto de 1772 foi ordenado presbítero. Em junho de 1775 recebeu diploma de

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doutor em leis civis. Dedicando-se ao ministério, foi nomeado vigário da paróquia de South

Petherson, ficando ali até ser expulso pelos motivos já mencionados. Nesse posto

extremou-se em zelo, de tal maneira que chamou a atenção dos paroquianos. Logo a

igreja se tornou pequena para comportar a assistência. Apelou reiteradamente ao diretório da

congregação ("vestry") para que pusesse uma galeria suplementar a fim de aumentar a

capacidade do templo ante a crescente assistência aos serviços religiosos, mas o pedido foi

rejeitado. Então mandou colocá-la por sua própria conta. Essa determinação já revela o

caráter desse homem para quem pareceria não existir a palavra "impossível".

Naturalmente, possuía ao alcance da mão recursos materiais próprios, que com freqüência

o ajudaram a solucionar problemas que de outro modo lhe houvera sido difícil resolver, senão

impossível. Trouxe a serviço do metodismo sua mente erudita, força de vontade

inquebrantável e assombrosa amplidão de vistas, além de potencial econômico muito

providencial.

Sua primeira nomeação no movimento metodista foi feita pela Conferência de

1778, como um dos ajudantes de João Wesley. Sua trajetória ascendente no seio do

metodismo foi rápida. Em 1780 já o encontramos viajando extensamente e pregando sem

cessar. Sob a direção de Wesley visitava as Sociedades Metodistas tratando de informar-se

quanto a seu crescimento e problemas, com o fito (objetivo) de melhorar sua eficácia. Essa

itinerância duraria quase sem interrupção, até ao dia em que as águas do oceano Índico o

receberam em seu seio para guardar-lhe zelosamente os restos. Já em 1782 o

encontramos em Dublin, na Irlanda, presidindo, por ordem de Wesley, a Conferência de

pregadores metodistas irlandeses. A primeira Conferência que nessa ilha se realizou foi em

1752 e João Wesley a presidira por trinta anos com intervalos de dois ou três anos. Mas, a

partir de 1782, a Conferência começou a reunir-se anualmente. Por muitos anos o Dr. Coke

visitou anualmente a Irlanda para presidir a suas Conferências. Ao mesmo tempo exerceu o

ministério por todo o restante da Grã-Bretanha, isto é, Inglaterra, Escócia e Pais de Gales.

Em 1784 cruzou pela primeira vez o Atlântico para pisar terras americanas. Dali em diante

sulcaria (navegaria) essas mesmas águas do Atlântico dezessete vezes. No total realizou nove

viagens de ida e volta à América, todas por sua própria conta.

Fizemos referência a sua primeira viagem à América em 1784. Essa data marca

na história do metodismo um fato transcendente, pois nesse ano foi organizada formalmente,

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como denominação, a primeira igreja metodista do mundo. Na chamada "Conferência de Natal"

(Christmas Conference), que abriu suas sessões na véspera da data em que se comemora o

nascimento de Cristo, reconheceu-se de fato a separação do metodismo americano de sua

congênere nas Ilhas Britânicas. Como se recordará, em 1776 as treze colônias originais do

país que compreendiam o que hoje são os Estados Unidos, proclamaram sua independência. E

ao separar-se politicamente, romperam-se também os laços com a Igreja da Inglaterra (o

movimento metodista, ainda que marginalizado e desprezado, acontecia dentro da Igreja

Anglicana, a igreja oficial do estado inglês, e da qual João Wesley era pastor), que estava

intimamente ligada ao Estado inglês. Agora que o governo inglês nada mais tinha que

ver com a nova nação, tampouco a Igreja Oficial. Desse modo, João Wesley julgou que a

única forma capaz de dar estabilidade à obra metodista do novo mundo (obra que se vinha

levando a cabo desde 1766), seria a de constituí-la em grupo independente e dar-lhe governo,

ministério, leis eclesiásticas e ritual tais que lhe garantissem vida própria. Para levar a cabo

essa missão escolheu o Dr. Tomás Coke, a quem chamava seu "braço direito".

Embora a obra dos Estados Unidos começasse na data já indicada, devido às

guerras da Independência, não ficou nas antigas colônias inglesas nenhum ministro

metodista ordenado de procedência inglesa. Mas ficou Francis Asbury, que jamais havia

sido ordenado, apesar de agir como pregador itinerante desde muitos anos. Os clérigos da

Igreja Anglicana na América, ao avizinhar-se o movimento da independência, também

deixaram em quase sua totalidade o país, de maneira que as condições espirituais de

ambos os grupos estiveram à mercê das contingências por longos anos. Asbury conseguiu

manter seus companheiros sujeitos à supervisão de Wesley, embora por muito tempo não

houvesse comunicação com ele. Homem acostumado à disciplina, não concebia que um

pastor sem ordenação pudesse celebrar a Santa Ceia e por isto vigiava os companheiros

metodistas para que não o fizessem, e insistia, principalmente com os que se opunham a seu

critério, a que buscassem a ajuda dos poucos ministros ordenados que ficaram nas ex-colônias.

Pelo que se vê, esse estado de coisas não era satisfatório sob nenhum ponto de vista.

Enquanto continuavam interrompidas as comunicações, enviaram a Wesley insistentes

pedidos para que enviasse pregadores ordenados à América, onde, no ano de 1784, os

metodistas eram já quinze mil e seus pregadores itinerantes não ordenados somavam oitenta e

três.

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João Wesley tentou, sem êxito, por duas vezes, convencer o bispo Lowth a ordenar,

pelo menos, dois pregadores a fim de enviá-los à América. Então se viu obrigado a recorrer a

uma medida extrema, justificando sua atitude na tese que, segundo o Novo Testamento, não há

diferença entre o presbítero e o bispo, senão no exercício de suas funções.

Recordar-nos-emos de que um seu antepassado (o bisavô João White, em 1641) já havia

sustentado essa mesma tese. Portanto decidiu, ele mesmo, ordenar alguns de seus

pregadores itinerantes, com a assistência de outros presbíteros. Isto aconteceu na cidade de

Bristol, em 1784. Um dos que foram ordenados, o Rev. R. Whatcoat, recorda em seu Diário:

"1º de setembro de 1784. O Rev. João Wesley, Tomás Coke e James

Creighton, presbíteros da Igreja da Inglaterra (Anglicana) formaram um presbitério e

ordenaram a Ricardo Whatcoat e Tomás Vasey diáconos e no dia 2 de setembro,

pelas mesmas mãos, Ricardo Whatcoat e Tomás Vasey foram ordenados presbíteros

e Tomás Coke, doutor em leis, superintendente para a Igreja de Deus sob nosso

cuidado na América do Norte. " (2)

João Wesley ratificou este proceder escrevendo mais tarde uma carta circular que

começa assim:

"Visto que nossos irmãos americanos estão agora completamente

desembaraçados, tanto do estado como da hierarquia eclesiástica inglesa, não

ousamos enredar-nos novamente tanto em um como em outra. Agora estão com

plena liberdade de cingir-se (prender-se, ligar-se, no sentido de submeter-se) tão só

às Escrituras e à Igreja Primitiva. E nós julgamos que o melhor é que eles

permaneçam firmes naquela liberdade com que Deus os fez dessa maneira

providencialmente tão livres."

O título de superintendente usado para o Dr. Coke foi mudado na América pelo de

bispo, porque os irmãos ali disseram que segundo as Escrituras, o uso do termo bispo era mais

apropriado que o outro. Nas atas do ano de 1785 da Conferência de ministros na América,

acha-se a seguinte nota:

"Como os tradutores de nossas versões da Bíblia têm usado a

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86

palavra inglesa 'bispo' em vez de 'superintendente', pensamos que seria mais

conveniente, conforme as Escrituras, adotar o termo bispo." (3)

Desta maneira Tomás Coke veio a ser o primeiro bispo da Igreja Metodista no mundo

inteiro. E por certo que foi digno dessa distinção, e sua obra o justificaria. É de notar que

Wesley não houvera chegado a tal extremo se não fosse porque a necessidade o obrigou, e, ao

curvar-se ante a necessidade, sentiu o dever de justificar sua atitude como que para dar-lhe

caráter e força de legalidade. A missão do Dr. Coke nos Estados Unidos consistia em organizar

os metodistas em corpo separado, que em princípio se adequaria, com ligeiras modificações,

às leis canônicas e à liturgia da Igreja Anglicana, pois parecia a João Wesley que eram as

melhores que ele podia oferecer-lhes dentre, todas as demais liturgias e formas de governo

eclesiástico. Além disso, ia com poderes para ordenar tantos ministros itinerantes quantos

estivessem em condições de sê-lo, e consagrar superintendente em pé de igualdade com ele

a Francis Asbury, que foi o líder natural do grupo (metodista) americano.

Quando o Dr. Coke tratou do assunto com Francis Asbury, este recusou aceitar como

terminantes e finais as ordens de João Wesley para que ele fosse consagrado

superintendente (bispo). Propôs que se convocasse uma Conferência de todos os

pregadores para que eles mesmos, depois de haver-se inteirado da resolução de João Wesley,

tomassem as determinações que melhor lhes parecessem. Somente aceitaria tão alta

responsabilidade se os colegas americanos estivessem de acordo em elegê-lo

superintendente. Então enviaram Freeborn Garrettson, um dos pregadores itinerantes de

maior influência entre seus companheiros, que saiu a galope para convocar os pregadores da

América que pudesse encontrar para uma Conferência Geral na cidade de Baltimore, Maryland.

Nela se resolveria o futuro destino do metodismo americano e se realizaria a eleição dos que

haveriam de assumir a direção da flamante igreja. (4) Essa foi a tão lembrada Conferência de

Natal.

Dos oitenta e três pregadores estiveram presentes cerca de setenta, e elegeram por

unanimidade Coke e Asbury como superintendentes associados do metodismo

americano. No segundo dia da Conferência, dia de Natal, Asbury foi ordenado diácono por

Coke, assistido por Whatcoat e Vasey. No dia seguinte foi ordenado presbítero e no outro,

consagrado superintendente (bispo). No serviço de consagração participou também o Rev.

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Filipe Otterbein, ministro alemão, grande admirador e amigo pessoal de Asbury.

Nessa mesma Conferência foram ordenados quinze diáconos, dos quais treze foram

ordenados presbíteros. Dois destes foram enviados à Nova Escócia, atendendo a um

chamado dali, e outro a Antígua, nas Ilhas Ocidentais. O nome adotado pela nova

organização foi "Methodist Episcopal Church" (Igreja Metodista Episcopal). A Conferência

adotou o primeiro livro de disciplina eclesiástica, que, em substância, era o mesmo já

existente para todo o metodismo, chamado "Enlarged Minutes" (Atos Ampliados),

com adaptações para as necessidades da América do Norte. Definiram-se os deveres dos

pregadores, fixou-se o salário dos mesmos e se estabeleceram dois fundos: um para o sustento

ministerial e outro para os gastos gerais da obra.

É interessante conhecer algo do caráter do Dr. Coke e acompanhá-lo em sua

primeira viagem à América, que duraria diversas semanas. Apesar da dureza de cruzar o

Atlântico em barcos tão frágeis, ocupou o tempo em estudos e se regozijou por contar tão longo

tempo à sua disposição para isso. Com as incessantes viagens e excursões que tinha na

Grã-Bretanha, jamais se lhe ofereceu oportunidade tão propícia para leituras prolongadas, de

modo que pôde dedicar-se à leitura a vontade, "tragando" uma série de livros e dentre eles

Virgílio. Anotou em seu Diário:

“Deus fez estas horas de ócio para nós. Desde agora ele será meu Deus para

sempre. Posso dizer em sentido muito melhor que ele (Virgílio)”.

Realmente não foram horas de ócio, mas de estudo e meditação em preparo para

a tarefa que o esperava na outra margem do mar. Essa disposição revela-se principalmente em

outras notas desse mesmo Diário, com data de 24 de setembro de 1784:

"Entretive-me lendo a vida de Francisco Xavier. Oh! quem me dera ter uma

alma como a sua, mas glória a Deus porque nada lhe é impossível! Anseio ter as

asas da águia e a voz de trombeta para poder proclamar o Evangelho pelos

quatro pontos cardiais da Terra!.. .

Na terça-feira, dia 28 de setembro, escreveu:

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“Durante estes últimos dias tenho estado lendo a vida de Davi Braynerd.

Oh! que eu possa segui-lo como ele seguiu a Cristo! Sua humildade, sua renúncia,

sua perseverança e seu zelo ardente por Deus são, em verdade, exemplares...

Registrou na segunda-feira, 4 de outubro:

“Terminei de ler a vida de Davi Braynerd."

Desde que começou a viajar para fora das Ilhas Britânicas, não recuou em suas

peregrinações pelo mundo. Em 1786, na segunda viagem à América, foi parar na ilha de

Antígua, deixado pelo capitão do navio, que quase o lança de bordo por ocasião de uma furiosa

tempestade que pôs em perigo de naufrágio o barco. O capitão do navio tomou o Dr. Coke

como novo Jonas, supondo ser ele o causador da tempestade! E embora não chegasse a

arrojá-lo ao mar, atirou todos os seus livros e manuscritos. Em Antigua o Dr. Coke se encontrou

com um tal João Baxter, carpinteiro naval, que tomava conta de uma sociedade metodista de

mais de mil e quinhentos membros, todos de raça negra, com exceção de dez. Essa sociedade

tivera seus princípios em 1760, por iniciativa de um advogado chamado Natanael Gilbert,

agricultor dessa ilha, que começou as reuniões em sua própria casa. Ele e duas de suas

escravas ouviram Wesley na Inglaterra, em janeiro de 1758. Essas escravas, de origem

africana, foram as primeiras pessoas negras que João Wesley batizara, e o princípio de uma

obra entre os africanos e seus descendentes que se estenderia por diversas partes do globo. O

Dr. Coke, nessa viagem, ia com destino a Nova Escócia, juntamente com três missionários, mas

em virtude de não poder chegar por causa da tempestade, e de ter encontrado tão numeroso

grupo de crentes em Antigua, resolveu deixar aqueles missionários ali. Baxter havia

chegado em 1778, enviado pelo governo inglês para trabalhar em obras navais, encontrando

assim os remanescentes da sociedade metodista estabelecida por Gilbert, que haviam

conservado a fé, principalmente por causa do zelo de duas mulheres africanas.

O Dr. Coke, ao encontrar-se com Baxter, convenceu-o a deixar seu trabalho com

o governo e entregar-se completamente à tarefa de evangelização. O doutor e seus

missionários foram de ilha em ilha pregando e estabelecendo sociedades. Não podemos

acompanhar o Dr. Coke em todas as suas viagens dentro dos limites que nos temos

imposto nestes estudos, mas o que relatamos nos dá uma idéia de seu espírito zeloso e

evangelizador.

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Já mencionamos que João Wesley considerava o Dr. Coke como seu braço

direito. Com o desenvolvimento que logrou o movimento metodista, João Wesley se viu na

obrigação de ir adquirindo propriedades para abrigar as sociedades que iam surgindo, de

maneira que em muitos lugares se levantaram capelas ou se reconstruíram

propriedades para locais de culto. Mas não se tinha nenhuma garantia de que, com a morte

de João Wesley (a princípio as propriedades f icaram em nome do João Wesley),

essas propriedades pudessem continuar em mãos dos metodistas, o que poderia pôr em

perigo a estabilidade do movimento, pois elas poderiam passar às mãos do Estado. Fazia falta,

portanto, que essa entidade não oficializada, a que João Wesley chamava de "Conferência",

e que consistia de uma assembléia anual que reunia para consulta os pregadores, se

constituísse com personalidade jurídica, a fim de assegurar continuidade legal e permitir a

posse de propriedades. Foi o Dr. Coke que sugeriu a conveniência de conseguir personalidade

jurídica para essa Conferência, e que preparou o instrumento legal que se adotaria. Foi

chamado "Deed of Declaration" (Ato de Declaração) pelo qual se concedia o direito de

depositários das propriedades, por morte de João Wesley, a cem pregadores da

Conferência Anual. Esse corpo legal subsistiu através dos anos, preenchendo-se em cada

caso os claros que se verificavam. Desta maneira se garantiu na Inglaterra a continuidade do

movimento que em 1797 se constituiu em Igreja autônoma, havendo sido, anteriormente,

apenas Sociedades Unidas sob a direção de João Wesley.

Além das características já assinaladas, mencionaremos mais duas que também nos

parecem de muita importância para revelar-nos o caráter ecumênico e liberal do Dr.

Tomás Coke. Quando foi à América do Norte pela primeira vez, ficou chocado por ver o estado

em que jaziam os escravos africanos trazidos por navios negreiros da África. Seu ânimo

se rebelou ao ver esse estado deplorável e pregou com veemência dos púlpitos contra a infame

instituição da escravatura. Isto lhe acarretou inimizade de parte daqueles que se beneficiavam

com o tráfico e exploração de escravos, ainda mesmo dentro da comunidade metodista. Até ao

fim da vida, tanto na Inglaterra como em outras partes, não deixou de levantar sua voz de

protesto contra esse abuso abominável.

Fizemos referência a sua atividade na ilha Antigua e noutras das de Sotavento.

Durante essa excursão simpatizou sobremaneira com a raça africana e surgiu nele um desejo

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poderoso de estender seu ministério até a África. Em seu Diário escreve:

"Desde minha visita às ilhas (índias Ocidentais), descobri que tenho um dom

especial para falar aos negros. Parece-me uma coisa irresistível. Quem sabe se o

Senhor não me está preparando para uma visita, nalgum tempo futuro, às costas

da África?" (5)

Desse desejo seu nasceria a obra missionária que a Igreja Metodista da

Inglaterra começaria no continente Africano.

A outra característica marcante de Dr. Tomás Coke é seu amor pela liberdade.

Em 1779 foi, com Francis Asbury, felicitar o primeiro presidente dos Estados Unidos,

George Washington, em nome da Igreja Metodista Episcopal desse país. A nota que levaram

começava assim:

"Nós, bispos da Igreja Metodista Episcopal, conjunta e

humildemente solicitamos em nome de nossa Sociedade vossa atenção, a fim de

poder expressar os calorosos sentimentos de nosso coração, e de apresentar, a V.

Excia., nossas sinceras congratulações pela vossa eleição à presidência destes

Estados..." (6)

Este passo significou um grande desgosto a seus irmãos metodistas da Inglaterra,

que o admoestaram por achar que em sua posição de súdito britânico (era inglês) não lhe

correspondia tal manifestação, e aprovaram por unanimidade um voto de censura contra

seu caráter. Apesar disso, o Dr. Coke deu informações sobre a obra missionária que levara a

cabo, e não puderam fazer outra coisa senão ouvi-lo com interesse.

Contudo, a maior obra do Dr. Coke consistiu em sua paixão missionária, tanto assim

que o apelidaram de "Ministro das Relações Exteriores do Metodismo". Já fizemos referência a

umas poucas de suas viagens. É realmente uma história extraordinária a que passa ante nossos

olhos quando revisamos as memórias que este homem deixou em seu Diário. Como dissemos,

era filho único de uma família abastada; além disso, casou-se duas vezes e ambas com

mulheres de muitas posses, que tinham seu mesmo espírito, tanto em fervor religioso como em

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generosidade.

Em realidade o Dr. Tomás Coke foi o "Conselho de Missões" do metodismo primitivo:

o que formulava os planos, o que os executava e o que assumia a responsabilidade maior pelos

gastos. Comprometia seus recursos para cobrir tudo o que se fizesse necessário para a obra

que se ia levando a cabo em diferentes partes do mundo. Por exemplo, em 1794, se publicou

informação sobre as entradas e saídas que se registraram durante o ano precedente para a obra

missionária, e ali ele aparecia como credor de uma importância equivalente a mil e cem dólares,

por adiantamentos que fizera para enfrentar as despesas. Terminou doando toda essa

importância à Causa.

Não contente com suas incessantes viagens pela Inglaterra, Escócia, Irlanda, País

de Gales, América e ilhas inglesas do Caribe, chamadas de Índias Ocidentais, lá pelo fim de

sua carreira viveu obcecado por abrir uma obra missionária na Índia. Em 1813 compareceu

perante a Conferência Anual na Inglaterra, suplicando a seus irmãos que o enviassem, junto

com outros missionários, a esse ponto distante, com o qual havia estado em contacto pela

correspondência que mantivera ao longo de muitos anos. A Conferência Anual achava seu

plano missionário para a Índia coisa descabida e impossível de levar a cabo, especialmente pela

erosão financeira que isso implicava. Além disso, agia contra o plano a oposição dos que, na

Inglaterra, mantinham interesses comerciais na índia e que não desejavam que a influência do

Evangelho viesse a prejudicá-los economicamente. Por sua vez, alguns amigos trataram

de dissuadi-lo, achando que sua idade era empecilho para alcançar o propósito. Contava,

então, 66 anos e sua saúde era precária. A um amigo que lhe escrevera querendo

convencê-lo a abandonar seus desígnios, respondeu:

"Estou morto para a Europa e vivo para a índia. O próprio Deus me disse: "Vai

a Ceilão". Preferiria ser arrojado nu a suas costas, e sem um amigo, a deixar de

ir. Estou estudando a língua portuguesa continuamente." (7)

Quando, finalmente, a Conferência Anual rejeitou seu projeto, ele voltou a seu

aposento chorando de desespero pelas ruas. Passou quase toda a noite em lágrimas e orando.

Um missionário amigo, que o havia acompanhado na noite anterior, encontrou, na manhã

seguinte, a cama estendida como estava na véspera. Realmente o Dr. Coke não havia deitado,

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e quando voltou no dia seguinte à sala de sessões fez um apelo comovedor e patético, para

que a Conferência revogasse a anterior decisão. Novamente se ofereceu para ir, e além disso

pôs à disposição da Conferência a importância de trinta mil dólares para fazer face às despesas.

Ante esse dramático oferecimento, escudado no apoio de alguns amigos, a Conferência já não

podia resistir. Se o tivesse feito, teria parecido oposição à própria vontade de Deus! Finalmente

se votou autorizando-o a ir e levar consigo sete companheiros, um para a África do Sul e os

outros para a Índia. Regressou a seu quarto chorando, agora, de alegria, e dizendo ao mesmo

missionário que o acompanhara no dia anterior: "Não te havia dito que Deus responderia a

nossas orações?"

No dia 30 de dezembro de 1813 o Dr. Coke e os outros missionários partiram para a

Índia. A viagem foi demasiado longa para o velho e enfermo visionário. Muitas tempestades

haviam açoitado o comboio em que iam, e na manhã de 3 de março de 1814, quando

estavam próximos da meta, o criado que o chamou à sua porta às cinco e meia, hora em que

sempre se levantava, não obteve resposta. O Dr. Çoke jazia estendido no solo do

camarote do seu navio. Sobre seu rosto se esboçava, porém, um sorriso. Parece que se

levantou para pedir socorro e caiu sem vida após um ataque apopléctico.

Seu corpo foi sepultado no mar. O seio das ondas recebeu o corpo do grande

missionário. Os soldados que estavam no barco foram alinhados para prestar-lhe a

homenagem póstuma, enquanto o sino do barco tocava tristemente o adeus. Todos os

passageiros e tripulantes assistiram, em respeitoso silêncio, à cerimônia do sepultamento, na

hora em que o sol tramontava (se escondia) nas águas. Disse alguém que o corpo de uma

alma tão grande somente podia ter por sepultura um lugar tão imenso como o oceano. Sua obra

não se escondeu com o desaparecimento daquele dia.

Apesar de seus companheiros ficarem consternados com sua morte,

prosseguiram na empresa (empreendimento). E plantaram em terras longínquas a semente

da fé, que com os anos produziria frutos permanentes e abundantes. Quando na América se

recebeu a notícia de sua morte, a Conferência Anual pediu a Francis Asbury que pregasse o

sermão em memória do falecido. Seu antigo colega recordou a ocasião em seu Diário:

"Domingo, 21 de junho de 1815. Ontem por decisão da Conferência

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preguei o sermão em memória do Dr. Coke — benévolo de alma e mente, do terceiro

ramo do metodismo de Oxford — um gentil homem, erudito, e para nós, Bispo. Como

ministro de Cristo foi, em abnegação, labores e obras, o maior homem do último

século."

Maior tributo do que o que lhe rendera o Bispo Asbury não poderíamos fazê-lo.

Tomás Coke não apenas foi o homem mais proeminente de sua época, entre os que Deus

levantou no seio do movimento metodista, mas a sua figura ainda nos desafia a que não

deixemos de ir “até aos confins da terra" em obediência ao mandado de Cristo de "Ide e

pregai o Evangelho a toda criatura".

NOTAS:

(1) Stevens, A., Op Cit, Vol I, pág. 131.

(2) Citado por “A New History of Methodism”, Vol I, pág. 231.

(3) Das Atas da Conferência Annual dos Estados Unidos de 1785, pág. 50.

(4) Para maiores informações, ver o Diário de Asbury, datado de 14 de janeiro de 1784.

(5) Barclay, Wade Crawford, Op. Cit., Vol I, págs 108-109.

(6) Idem, pág. 110.

(7) Citado por Stevens, A., Op. Cit, Vol III, pág. 330.

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CAPÍTULO NONO

O PROFETA

DO CAMINHO SOLITÁRIO

"Quero fé, valor, paciência, mansidão e amor.

Quando outros sofrem tanto por seus interesses materiais,

certamente posso sofrer um pouco para a glória de Deus e

o bem-estar das almas."

Francis Asbury

Corria o ano de 1771. A Conferência Anual das Sociedades Metodistas da

Grã-Bretanha realizou-se na cidade de Bristol, que depois de Londres era o centro mais

importante e tradicional do metodismo na Inglaterra. Durante as sessões, João Wesley

dirigiu a seguinte pergunta aos assistentes: "Nossos irmãos na América estão clamando por

ajuda; quem está disposto a ir para ajudá-los?" A este desafio para servir como missionários na

América, cinco responderam, mas apenas dois foram enviados: Francis Asbury e Ricardo

Wright. No dia 4 de setembro de 1771 os dois embarcaram para o novo destino e chegaram a

Filadélfia no dia 27 de outubro.

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Desde a Conferência Anual de 1767, que se reunira em Londres, e na qual foi

admitido à experiência, até 1771, Asbury esteve exercendo a itinerância na Inglaterra. Esse

período seria o único dedicado a sua terra natal. Porque da América não voltaria mais. Já em

1769 a Conferência enviara Ricardo Boardman e José Pilmoor como os dois primeiros

obreiros da Inglaterra na América. Em 1773 foram enviados Jorge Shadford e Tomás Rankin

(que será a partir de então, por nomeação de João Wesley, o Superintendente Geral da

Sociedades Metodistas da América) e em 1774 mais dois: Martin Rodda e Jaime Dempster.

Quando o movimento de Independência chegou ao f im em 1776, os

missionários da Grã-Bretanha que ainda estavam na América voltaram à terra natal, com a

exceção de Francis Asbury que se recusou abandonar os irmãos metodistas. Como os

americanos suspeitassem de suas intenções de permanecer no país, teve de ocultar-se por

quase um ano, vivendo e pregando como podia, fiel a sua tarefa e instando com os

irmãos pregadores americanos a que seguissem adiante na sua vocação, sem exorbitar de

suas funções, pois, como já dissemos, se opunha a que uma pessoa sem ordenação

celebrasse o sacramento da Santa Ceia. Desta maneira se constituiu em figura notável e

principal do movimento metodista no novo país. Nenhuma outra figura aparece como ele, nos

Estados Unidos, com sinais mais evidentes de apostolicidade. Parece quase figura legendária,

dessas que deixam a impressão de estar em toda parte ao mesmo tempo e que deixam atrás

de si marcas luminosas que o tempo não pode apagar nem a memória dos homens olvidar.

Suas origens humildes não poderiam antecipar-lhe a trajetória e o papel

preponderante que teria não só no seio do movimento religioso a que pertencia, mas também na

própria vida de uma jovem nação. Nasceu de pais de poucos haveres, sem ser realmente

pobres, no dia 20 de agosto de 1745, na localidade de Staffordshire, distante quatro milhas de

Birmingham, na Inglaterra. Seus pais também tiveram uma filha que morreu na infância,

restando-lhes Francis como filho único. Devido a isso quiseram dar-lhe educação esmerada.

Puseram-no sob cuidados de um professor, mas suas maneiras de ensinar eram tão brutais e

antipedagógicas, que o menino em vez de sentir amor aos estudos, teve aversão por eles, e

sua educação formal não foi além do terceiro grau.

Tinha treze anos quando tratou de exercitar-se nalgum mister de ordem

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comercial. Desde mui criança esteve submetido a uma disciplina rígida no lar, e ao

mesmo tempo a uma atmosfera verdadeiramente religiosa. Sua mãe ficou muito afetada com a

morte da filha e se entregava a longos espaços de isolamento, dedicando-se a leituras

devocionais e à oração. Asbury registra o seguinte em seu Diário a respeito do lar:

"Aprendi de meus pais umas certas palavras formais como oração, e

recordo-me muito bem de que minha mãe insistia muito com meu pai para que

tivesse leituras devocionais familiares. A prática de cantar salmos era costume mui

comum entre eles. Muitas vezes me ridicularizavam e me chamavam o cura

(vigário de aldeia ou povoação) metodista porque minha mãe convidava para nossa

casa qualquer pessoa que tivesse aparência de ser muito religiosa." (1)

Naturalmente que uma atmosfera como essa não podia senão desenvolver uma

tendência favorável à religião. Quando tinha quatorze anos, apareceu em sua casa um homem

piedoso, a quem sua mãe convidara e que se interessou pelo jovem. Conversou com ele acerca

de assuntos religiosos e exercitou-o na oração. Isto fez que se aplicasse mais seriamente à

religião e começou a ler livros que despertassem nele a procura de uma vida piedosa mais

profunda. Diz em suas memórias:

"Tornei-me muito sério — lendo muito os sermões de Whitefield e Cennick

(este também metodista) — e todo bom livro que eu pudesse encontrar. E

não passou muito tempo antes que eu começasse a investigar junto a minha mãe

quem eram os metodistas, onde estavam e que faziam. Ela me deu informação

favorável e levou-me a uma pessoa que podia conduzir-me a Wednesbury para

ouvi-los. Imediatamente achei que essa não era como a Igreja — era melhor. A

gente era tão devota que homens e mulheres se ajoelhavam e diziam "Amém". E

eis que eles estavam cantando hinos — que doces eram! — e, coisa estranha, o

pregador não tinha nenhum livro de oração e, sem embargo, orava

maravilhosamente! O mais extraordinário, todavia, foi que o homem tomou seu

texto e não usou nenhum livro de notas, isto é em verdade extraodinário! — pensei

eu. É certamente, uma maneira estranha, mas a melhor maneira. Falou a respeito da

confiança, certeza, etc... " (2)

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Antes de passar adiante, registraremos aqui a influência que teve em seu sentir

religioso o pensamento de Whitefield. No ano de 1798 encontramos este testemunho:

"Dia 14 de Agosto. Comi e me apressei indo pela região de Ipswich e dali

a Newburyport: aqui passei da tumba do antigo profeta, o querido Whitefield,

sepultado sob o lugar onde se realizam cultos presbiterianos. Seus sermões me

estabeleceram na doutrina do Evangelho mais que qualquer outra coisa que eu

tivesse escutado e lido naquele tempo, de tal maneira que me encontrava

excepcionalmente preparado para fazer frente à exprobração (acusação) e à

perseguição." (3)

Entregou-se de cheio a uma nova expressão religiosa somente depois de

assistir a outras reuniões, de falar com seus integrantes, de exercitar-se em suas leituras, de

sofrer a perseguição e de ver que se fechavam as casas onde se realizavam as reuniões

por medo às conseqüências. Então decidiu promover reuniões na casa de seus pais, onde

exortava a gente a ser mais piedosa. Desde logo verificou que sua pregação produzia bons

efeitos na vida espiritual dos ouvintes. Finalmente, entrando mais intimamente em

contato com os metodistas na casa de reunião destes, seus trabalhos se intensificaram e

muitos ficaram admirados com os resultados que alcançava. E assim, de modo quase natural,

viu que se havia convertido num pregador local, sempre pronto a servir e acudir ao chamado que

se lhe fizesse a qualquer hora do dia ou da noite, indo a todos os povoados adjacentes em busca

de almas para salvar.

Em geral pregava três, quatro ou cinco vezes por semana, e ao mesmo tempo

continuava em seu trabalho regular. Esse ritmo e prática ele os manteve até passados os 20

anos de idade. Diz em suas memórias:

"Penso que eu estava entre os 21 e 22 anos de idade quando me entreguei

completamente a Deus e a seu trabalho, depois de servir como pregador local por

espaço de cinco anos." (4)

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Em sua viagem para a América pôs à dura prova sua fé e determinação. Em

primeiro lugar, não tinha qualquer dinheiro para a viagem. Confessa em seu Diário:

"Quando vim a Bristol não tinha um centavo, mas o Senhor logo abriu

o coração de amigos que me proporcionaram roupa e dez libras esterlinas. Assim

verifiquei, por experiência, que o Senhor provê para aqueles que confiam nele." (5)

De sua viagem sobre o mar escreveu:

"Dia 13 de outubro de 1771: Muitas têm sido minhas provas no curso

desta viagem por falta de cama adequada e provisões apropriadas, por causa de

enfermidade e por estar cercado de homens e mulheres ignorantes de Deus e muito

maus." (6)

Quando iniciou a viagem, examinou-se a si mesmo sobre a natureza dos

motivos que o estavam levando à América, mesmo quando esses desejos já os tinha

mesmo antes de ir apresentar-se à Conferência Anual, pois escreveu em seu Diário:

"Antes de aceitar senti, por cerca de seis meses, fortes insinuações em minha

mente que eu devia ir à América, o que coloquei diante do Senhor, não querendo fazer

minha própria vontade e adiantar-me antes de ser enviado." (7)

Presa, pois, desse sentir escrupuloso, é que sobre o oceano volta a consultar sua

consciência:

"Para onde vou? Ao Novo Mundo. Para fazer o quê? Ganhar honra?

Não! Eu conheço meu coração! Ganhar dinheiro? Não! Vou viver para Deus e induzir

outros a que façam o mesmo! Parece-me que são os metodistas o povo que Deus

tem na Inglaterra. As doutrinas que pregam e a disciplina que impõem, segundo

creio, são as mais puras no presente entre qualquer outro grupo no mundo. O Senhor

tem abençoado grandemente suas doutrinas e disciplina nos três Reinos

(Inglaterra, Escócia e Irlanda): devem, portanto, agradá-lo. Se Deus não me

confirmar na América, voltarei imediatamente à Inglaterra. Sei que por ora meus

objetivos são justos: que nunca venham a ser outra coisa!" (8)

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Dois testemunhos que consigna a respeito de seus pais valem a pena que sejam

registrados aqui, porque revelam não apenas o caráter deles, mas também a estima em que o

filho os tinha. Quando resolveu ir para a América, voltou à casa paterna para despedir-se

deles e de suas relações. Descrevendo essa visita, comenta:

"Embora fosse penoso para a carne e o sangue, consentiram em

deixar-me ir. Minha mãe é uma das mais ternas no mundo; creio, pois que ela foi

abençoada na presente circunstância com a assistência divina para poder separar-se

de mim." (9)

Por ocasião da morte de seu pai, em 1798, escreveu em seu Diário: "Cerca de 39

anos, meu pai teve pregação do Evangelho em casa".

Como vimos, Asbury chegou à América no dia 27 de outubro de 1771. No dia 20 de

novembro já escrevia o seguinte acerca de como a obra se realizava pelos obreiros ali

destacados:

"Fiquei em Nova York, embora não esteja contente porque estamos

parados na cidade (o outro missionário era Ricardo Boardman). Não tenho, todavia, o

que busco — um rodízio dos pregadores, para evitar parcialidade e

popularidade. Em verdade me aferro ao plano metodista, e o que faço, faço-o

fielmente para Deus. Tenho o presságio de dificuldades imediatas. Estas eu já

esperava quando deixei a Inglaterra; estou disposto a sofrer, em verdade morrer,

antes de atraiçoar uma causa tão excelente por qualquer bagatela. Será coisa

dura enfrentar a oposição e permanecer firme contra ela, forte como coluna de ferro

e firme como muro de bronze. Não obstante, poderei todas as coisas por Cristo que

me fortalece." (10)

Em concordância com essa determinação, apesar de ser nomeado para

trabalhar em Nova York, vemo-lo viajando de lugar em lugar, em busca de novos lugares e

pessoas para evangelizar. Foi principalmente devido a seu exemplo que a Igreja

Metodista se estendeu por todo o território da nova nação, e que a itinerância entrou a formar

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100

parte, como coisa imprescindível, do sistema eclesiástico metodista.

Na história da Igreja Metodista dos Estados Unidos ele é conhecido como "O

Peregrino dos Caminhos Solitários". Quem viaja hoje por aquele país não faz idéia do que era há

coisa de duzentos anos. Naquela época não havia caminhos, às vezes nem para andar a pé.

Tinha de ir através de emaranhadas florestas e por vales sombrios, cruzar rios sem pontes,

e pântanos, sempre sob o constante perigo de ataques de índios selvagens ou

revoltados. Asbury e seus companheiros de itinerância viam-se, mui a amiúde, em

necessidade inevitável de abrir picadas em muitos lugares, a fim de poder alcançar os colonos

dispersos pelas regiões mais avançadas da fronteira móvel, muito além de povoados e

cidades. O relato das peripécias ocorridas nessas viagens é algo tão dramático que sobrepuja a

própria ficção.

Nada detinha esse homem admirável! Nem as inclemências do tempo, nem cansaço,

nem perigos, nem ameaças, nem longas solidões, nem enfermidades, exceto quando estas o

prostravam imóvel no leito. O peregrino solitário, muitas vezes tremendo de febre e com a

garganta em chagas, seguia seu caminho levado pelo imperativo do dever, por não querer

faltar ao compromisso assumido de estar presente em lugar certo, dia certo, hora certa.

Convém recordar que as distâncias eram enormes e que comumente não lhe era

possível visitar um mesmo ponto senão depois de algumas semanas ou meses. Perder

uma oportunidade era postergar a visita por um período indeterminado. De seu Diário

extraímos algumas anotações acerca dessas viagens a cavalo. Diz em um lugar:

"Viajei quase 300 milhas (perto de 500 quilômetros) para Kentucky, em seis

dias, e no meu retorno perto de 500 milhas (800 quilômetros) em nove dias. Oh! que

excursões para um pobre homem e seu cavalo!"

Noutra parte registra:

"Fiz os cálculos que viajei 4.900 milhas (8.000 quilômetros) desde 30 de

julho de 1801 a 12 de setembro de 1802. Como poderia queixar-se um homem

responsável e cristão?"

Era para ele coisa intolerável ver-se obrigado a guardar o leito (ficar acamado), pois

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101

isso o enfermava ainda mais. Quem atenderia a seus compromissos? Durante os últimos anos

de sua itinerância viajava em carruagem, coisa que fez até quase ao último dia de vida. Morreu

na casa de Jorge Arnoldo, amigo seu, a 20 milhas (32 quilômetros) distantes de

Frederickburgo, Virgínia. Seu companheiro de viagem, João Wesley Bond, que lhe havia sido

assistente nos dois últimos anos, escreveu sobre sua morte:

"Nosso querido pai deixou-nos, unindo-se à Igreja Triunfante. Morreu da

mesma maneira que viveu — cheio de confiança e de amor — às quatro horas de

tarde do domingo 31 de março de 1816."

No domingo anterior havia pregado pela última vez na cidade de Richmond, Virgínia.

Tiveram de carregá-lo desde a carruagem ao púlpito e colocá-lo num assento especial

preparado para ele, pois já não podia caminhar nem permanecer de pé. Ainda assim, obrigado a

fazer de quando em quando uma pausa para recobrar alento, pregou cerca de uma hora sobre

Romanos 9:28: "Porque o Senhor cumprirá a sua palavra sobre a terra, cabalmente e em

breve". Este seria seu último sermão.

Como vimos no capítulo anterior, em 1784 foi eleito superintendente geral (Bispo)

para a América do Norte, juntamente com o Dr. Coke. Contava nessa época 39 anos de idade.

Seu ministério episcopal durou 32 anos. Até à morte foi indiscutivelmente o guia quase absoluto

da obra metodista nos Estados Unidos, apesar de haver tido o Dr. Coke como companheiro nas

lides episcopais e, mais tarde, outros mais jovens que ele. Foi ele mesmo que conservou

unida uma obra tão extensa e dispersa, e que deu à Igreja Metodista nesse país seu

sentido de coesão. Tanto ele quanto seus colegas não tinham território definido para o exercício

do ministério episcopal. Eram superintendentes gerais da Igreja Metodista, e desta maneira

serviam a todas as congregações como se fossem um só corpo.

Durante os 32 anos de sua superintendência, calcula-se que Francis Asbury

viajou algo assim como 270.000 milhas (432.000 quilômetros) pregando umas 16.000

vezes. Ordenou 4.000 ministros e presidiu a 224 Conferências Anuais. Temos de levar em

consideração que tudo isso foi cumprido em luta constante contra toda sorte de enfermidades e

sob o peso constante causado pelos excessos das tarefas, vendo-se sujeito a toda sorte de

desconforto e a dormir no chão, uma e outra vez com as roupas úmidas, mal nutrido, sem

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102

cuidados médicos, tomando remédios para nós inconcebíveis. Foi surpreendente que seu

organismo agüentasse tanta fadiga e as infusões que era obrigado a ingerir!

Em seu Diário, quase sem exceção, encontramos referências a suas constantes

enfermidades e ainda quando não se queixava, notamos que geme sob o jugo de tormentos

indizíveis. Viveu uma vida de contínuos reveses e provas, sem ter jamais, por amor a Cristo e a

seu Evangelho, morada certa e o calor de um lar. Em geral tinha de pousar nas aglomeradas

cabanas dos colonos, que nesses tempos possuíam escassa comodidade. Às vezes,

quando se achava imobilizado pelas intempéries ou enfermidades, via-se obrigado a

passar horas do dia na única dependência disponível para todos os da família e onde se

executavam todos os misteres do lar, entre os brinquedos e a algazarra das crianças. Para

um homem habituado à solidão dos caminhos e com achaques físicos (doença ou mal-estar sem

gravidade, mas em geral recorrente), tudo isso era um tormento indizível, mas inevitável.

Nunca desejou casar, não por ter idéias ascéticas, mas porque acreditava

contribuir para a limitação de sua obra se o fizesse. Sempre lhe causava amargura o enlace

de algum de seus pregadores itinerantes; figurava-se-lhe como quase a perda segura de um

colaborador, dado que, com muita freqüência, depois de casar, os itinerantes se

localizavam (deixavam o ministério itinerante, tornando-se fixos numa localidade). Isto se

devia, em grande parte, ao sustento tão limitado e incerto que recebiam e que não dava para

manter família. Aqueles que, casando-se, não se fixavam num lugar, sempre o faziam

sujeitando-se a tremendas renúncias e sacrifícios, e terminavam a vida prematuramente.

Quando um de seus pregadores se casava, geralmente dizia que esse "havia sido tentado pelo

diabo" mudar de estado, para enfraquecer a obra. Naturalmente eram poucos aqueles que

podiam aceitar seu sistema de vida itinerante e suas idéias sobre o celibato.

Admira também que ele chegasse, com tão escassa educação formal, a ocupar posto

de tanta responsabilidade, alcance e transcendência. Isso foi porque, apesar de sua aversão

aos estudos quando esteve sujeito a um professor inconsciente, desenvolveu depois o

hábito de educar-se a si próprio, tratando de adquirir por esforço pessoal algo do que não pôde

quando estudante. Portanto o encontramos, à maneira de João Wesley, estudando enquanto

viajava a cavalo e nessas condições chegou a obter, não sabemos como, conhecimento

regular do hebraico e do grego, tanto que fazia muitos de seus estudos bíblicos baseados

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nas línguas originais. Mais pôde a força de vontade que as oportunidades que teve na

juventude. Os períodos de enfermidade eram ocasião para que se dedicasse à leitura e ao

estudo. De outra maneira era-lhe impossível!

Ainda mais, como já devemos ter notado pelas reiteradas referências, no decorrer da

existência conservou um diário. Até hoje sua leitura inspira, a quem o leia com intenção

e paciência, a ambicionar uma vida consagrada e consciente para usá-la em holocausto

(sacrifício de abstrair a vontade própria para satisfazer a vontade de Deus) à obra eterna de

Deus. Seu ministério ainda era suplementado pela distribuição que constantemente fazia de

porções bíblicas, folhetos e livros, ligando dessa maneira as famílias isoladas com o restante da

Igreja e do mundo.

Poucos homens existiram na história da Igreja Cristã que houvessem tido como Francis

Asbury espírito tão apostólico e zelo tão aventuroso e, ao mesmo tempo, tão isento de

glória pessoal. O fragmento de uma carta que escreveu em agosto de 1775 a Tomás Rankin, o

então "Superintendente Geral das Sociedades Metodistas da América", em resposta a um

convite que aquele lhe fizera para abandonar o país, em vista do movimento de Independência,

demonstra claramente esse temperamento:

"Não posso, de maneira alguma, concordar em abandonar um

campo que se apresenta tão pródigo de colheitas de almas para Cristo, como o que

temos na América. Seria uma desonra eterna para os metodistas se

abandonássemos três mil almas que desejam entregar-se a nossos cuidados, e tão

pouco é papel dum pastor deixar seu rebanho em época de perigo. Portanto,

resolvi, pela graça de Deus, não abandoná-lo, quaisquer que sejam as

conseqüências." (11)

Não teve na alma outra paixão senão Cristo. Seu lar foi o caminho aberto e interminável,

e sua suprema ambição era ver muitas almas aos pés de Cristo. Talvez se possa criticar muitas

de suas características peculiares, especialmente a de que foi quase despótico no uso da

autoridade episcopal. Sem dúvida isso emanava da disciplina a que ele mesmo se submetia.

Tinha a íntima convicção de que essa disciplina produzia benefícios inestimáveis para o

Reino e, portanto, achava que seria excelente para todo bom soldado de Jesus Cristo.

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104

Esquecia-se de que são mui poucos os que têm uma fé tão profunda, capaz de fazê-los aceitar

as privações e renúncias. Ao mesmo tempo este fato nos dá uma idéia da surpreendente

humildade deste estupendo homem, que não se considerava superior a ninguém, antes julgava

que todos podiam ser fortes, nobres e consagrados como ele.

NOTAS:

(1)

(2) Citado por McTyeire, H. M., Op. Cit, págs 293-294.

(3) Diário, Vol II, pág. 388.

(4) Diário, Vol. I.

(5) Diário, Vol I, pág. 12.

(6) Diário, Vol I.

(7) Idem, Vol. I.

(8) Diário, Vol. I, pág. 12.

(9)

(10)

(11) Citado por Barclay, W. C., em Early American Methodism”, Vol I, pág. 43.

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CAPÍTULO DÉCIMO

O BANDO DOS

“IRREGULARES”

PARTE 1

"Não, não posso temer; não, não posso temer ao homem

ou ao diabo, enquanto sinta em minha alma o amor de

Deus, como agora o sinto."

João Nelson

O renomado historiador e pensador metodista contemporâneo H. B. Workman faz a

seguinte declaração:

"Contrariamente ao que sucederia com a Igreja Anglicana, o

metodismo, mesmo privado de seu ministério, poderia assim sobreviver, mas privado

de seus obreiros leigos, certamente morreria. Não apenas seu bem-estar, mas

sua própria existência depende do serviço deles."

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Esta opinião não é apenas um tributo que se faz ao elemento leigo dentro do

movimento metodista; corresponde, também, a um fato histórico: é que privado do

ministério leigo, não teria podido sobreviver, e isto porque, desde o princípio, sua obra e sua

vida estão intimamente tecidas dentro da textura geral. Em verdade não podemos entender o

movimento metodista sem levar em consideração a obra efetiva de tantos que trabalharam em

posições secundárias e sem ordenação eclesiástica de qualquer espécie, mas que receberam,

sem dar margem à dúvida, a ordenação invisível do Espírito Santo. Porque levar a cabo a obra

de Cristo não depende de ordenação humana, e sim de uma paixão profunda por Cristo e seu

Evangelho.

João Wesley já dizia em sua época:

"Dai-me cem pregadores que nada temam senão o pecado, e nada

desejam senão a Deus, e não me importaria se fossem clérigos ou leigos; com eles

somente sacudiria as portas do inferno e estabeleceria o Reino de Deus na terra."

Por certo tinha razão em expressar-se assim, visto como em mais de uma

ocasião foi levado a tomar decisões que não teria tomado, se atrás dele não houvesse

estado a importunação e, às vezes, quase a imposição dos elementos leigos. Como

chegou a organizar-se a primeira Sociedade Metodista? Por que um dia ocorreu a João Wesley

organizá-la a fim de ter com ela um grupo ao qual expor suas convicções religiosas? Ele

mesmo nos conta, na introdução das "Regras Gerais das Sociedades", como surgiu a

primeira delas. Com efeito, diz:

"Na última parte do ano de 1739, oito ou dez pessoas vieram a mim, em

Londres, e desejaram que eu empregasse algum tempo com elas em oração e que

as aconselhasse sobre como fugir da 'ira vindoura'. Esta foi a origem da Sociedade

Unida."

E acrescenta que isto aconteceu imediatamente após a consagração do local de

cultos chamado a "Fundição". E é importante lembrar também que a Fundição fora aberta a

11 de novembro de 1739 para a Adoração pública por instâncias (pedidos insistentes)

de pessoas alheias a ele. O número dos assistentes (participantes) cresceu rapidamente,

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107

e se na primeira noite houve doze, na seguinte houve quarenta e logo eram cerca de cem.

Desta maneira João Wesley foi compelido a organizar a primeira Sociedade Metodista pelo

expresso desejo de alguns leigos que desejaram estar sob seu ministério, visto como ele não

tinha púlpito de onde pregar.

Antes disso, já se havia iniciado a construção da primeira capela metodista em Bristol

(a pedra angular foi abençoada a 12 de maio de 1739), e ali também, por essa época, haviam

sido formados as primeiras “bands”, pequenos grupos ou células de quatro ou seis pessoas que

se reuniam informalmente para exame introspectivo e oração.

Quando estava concluída a construção da primeira capela erguida na cidade de

Bristol, ficou pendente uma grande dúvida que os membros da sociedade ali trataram de saldar.

Encarando como resolver esse problema, surgiram acidentalmente as chamadas "classes"

metodistas. Isso ocorreu a 15 de fevereiro de 1742. Wesley descreve assim o início:

"Estava falando com vários membros da Sociedade de Bristol acerca dos

meios para pagar a dívida ali, quando alguém se pôs de pé e disse: 'que cada

membro dê um xelim por semana, até que tudo esteja pago'. Outro respondeu:

'Mas muitos deles são pobres e não podem dar tanto'. Então o primeiro

contestou: 'Ponham-se onze dos mais pobres comigo; se eles não podem dar

nada, eu darei por eles tanto quanto por mim mesmo, e cada um de vocês visitará

semanalmente outros onze de seus vizinhos, receberá o que eles lhe dêem e porá de

sua parte quanto falte'. Assim se fez. Passado pouco tempo, alguns destes me

informaram que haviam achado tal ou qual pessoa que não vivia como deveria. Isso

me chamou imediatamente a atenção e disse: 'Esta é a coisa, exatamente a que

desejei por muito tempo'. Reuni todos os guias de classe (assim nos

acostumamos a chamar-lhes) e desejei que cada um deles fizesse uma

investigação particular do comportamento individual daqueles a quem veriam

semanalmente. Assim o fizeram. Muitos que agiam desordenadamente foram

descobertos. Desse modo, alguns foram desviados de seus maus caminhos.

Outros foram esclarecidos. Houve os que foram eliminados e ainda outros que

se humilharam e se regozijaram perante Deus com reverência." (2)

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Como vemos, também esta foi uma iniciativa que João Wesley tomou por sugestão e

ajuda dos leigos.

Encontrava-se Wesley noutra ocasião igualmente em Bristol visitando a

sociedade ali, quando alguém que viera de Londres lhe disse que um de seus leigos, que ele

deixara ali para exortar em sua ausência, se exorbitava pregando sobre texto das Escrituras.

Um exortador só podia aconselhar os demais membros da sociedade, ler algum trecho

devocional e orar com eles, mas não pregar tomando como base um texto. Isso era prerrogativa

tão só dos ministros ordenados.

João Wesley resolveu voltar imediatamente a Londres para pôr fim a esse

"abuso". Sua mãe aconselhou-o a que, antes de fazê-lo, ouvisse o que aquele que exorbitara

em suas funções de exortador. João Wesley aceitou a sugestão materna e foi ouvir o pregador

improvisado. Depois de ouvi-lo, não pôde senão convencer-se de que o homem falava

inspirado pelo Espírito Divino. Opor-se a ele teria sido temeridade. Desta maneira, pela porta do

fundo, teve entrada no sistema metodista o pregador leigo. Isto foi nos fins de 1739, na

"Fundição". Em 1744 já eram quarenta os pregadores locais que João Wesley usava. Enquanto

ele e seu irmão iam viajando de um lado a outro do Reino Unido, esses pregadores locais

cuidavam das sociedades ou pregavam nos lugares onde residiam.

Embora, evidentemente, não possamos passar em revista todos os que, sem ordens

eclesiásticas, mereceriam ser lembrados, teremos que, pelo menos, mencionar alguns para que

tenhamos idéia da natureza de seu caráter e obra.

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Tomás Maxfield Nas páginas do metodismo sempre será lembrado com carinho o nome de

Tomás Maxfield, o primeiro que teve a ousadia de ir além das ordens dadas por João

Wesley. Era um humilde pedreiro. Converteu-se espetacularmente a 21 de maio de 1739. No

princípio do movimento metodista, mui freqüentemente a pregação inflamada dos Wesley e de

Whitefield provocava uma comoção tal nos ouvintes, que muitos desmaiavam ou eram

presos de convulsões e soltavam, ao mesmo tempo, exclamações de desespero ou gritos de

angústia, ou clamores pelo perdão divino. Essas estranhas manifestações eram criticadas

acerbamente pelos de fora, pois as interpretavam como exagero mórbido ou gestos teatrais

para impressionar.

Numa reunião como essa, Tomás Maxfield se converteu e também foi tomado

de manifestação violenta. João Wesley comenta em seu Diário essas manifestações e por

sua vez descreve a conversão de Maxfield nestes termos:

"Um, outro e mais outro foram caindo ao solo, agitando-se

tremendamente na presença do poder de Deus; outros gritavam, com voz forte e

irada: 'Que devemos fazer para ser salvos?' E em menos de uma hora sete pessoas

completamente desconhecidas para mim até então, regozijavam-se e cantavam com

toda a força e davam graças a Deus por sua salvação. Isto ocorreu à tarde, ao ar

livre. À noite narrei o que Deus havia feito como prova dessa importante verdade, que

Ele não deseja que ninguém pereça, mas que todos cheguem ao arrependimento.

Outra pessoa caiu ao solo junto a um indivíduo que era muito contrário a essas

manifestações. Enquanto este ficou pasmado com a cena, um jovem que

também se achava perto dele foi acometido da mesma maneira. Um jovem que

estava parado atrás dele cravou os olhos nele e caiu como se estivesse morto, mas

imediatamente começou a rugir e a golpear-se contra o solo de tal maneira que dois

homens dificilmente podiam sujeitá-lo. Seu nome era Tomás Maxfield. . . Nunca vi

ninguém tão castigado pelo maligno." (3)

Foi tal a transformação que se operou nesse homem, que pouco depois

Wesley o nomeou exortador da sociedade que se reunia na "Fundição". Já fizemos referência

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anterior ao fato de que Wesley, numa viagem que fizera a Bristol, deixou um exortador

para aquela sociedade. Esse exortador, como o leitor já deve ter concluído, era Tomás Maxfield.

Mencionamos também a interferência que sua mãe teve no assunto. O conselho que ela lhe deu

nessa oportunidade foi:

"João, tu conheces os meus sentimentos. Não suspeitarás que eu favoreça

ligeiramente qualquer coisa desta espécie. Mas toma cuidado no que fazes com

respeito a este jovem, porque em verdade ele foi igualmente chamado a

pregar como tu o foste. Examina quais foram os frutos de sua pregação, e

também, ouve-o tu mesmo." (4)

Assim o fez, e depois de ouvi-lo, exclamou: "É o Senhor, é o Senhor! Faça Ele como

lhe agrade". A Condessa Huntingdon também o ouviu pregar e ficou tão impressionada com

a palavra candente do jovem, que escreveu a Wesley:

"Ele é

uma das maiores manifestações que conheço do favor peculiar de

Deus. Levantou de entre as pedras uma pedra para que assentasse entre os

príncipes de seu povo. Ele me é um assombro; quão poderosamente se manifesta o

poder de Deus na fraqueza!" (5)

Dali em diante Maxfield cresceria na estima de João Wesley, que o ajudou em todo

sentido, relacionando-o com uma posição social superior à que convivera

anteriormente, proporcionando-lhe este fato um casamento vantajoso. Mais tarde Wesley

conseguiu para seu colaborador a ordenação das mãos do bispo de Londonderry, na Irlanda, um

dos poucos eclesiásticos dessa hierarquia que favoreciam (apoiavam Wesley) sua obra.

O bispo disse ao ordená-lo: "Senhor, ordeno-o (Maxfield) para que ajude a este

bom homem (Wesley), a fim de que não se mate trabalhando."(6)

Maxfield trabalhou com Wesley até pouco depois de 1760, quando teve uma

divergência com ele, irritado especialmente pelo que julgava ser excesso de autoridade. Wesley

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o repreendera por haver-se associado a um grupo de fanáticos, encabeçados por um tal Bell,

que estava sujeito a fantasias e alucinações e dizia possuir o poder milagroso de curar e

prever o futuro. Por causa dessa desavença, uma considerável quantidade de membros

da sociedade metodista de Londres seguiu a Bell e a Maxfield, apesar de as predições do

primeiro, de que o mundo ia acabar numa data próxima, não se cumprirem. Diziam,

porém, que as orações que foram elevadas, invocando a misericórdia de Deus, poderiam

ter evitado o desastre.

Com essas pessoas Maxfield organizou uma capela independente no bairro de

Moofields, que fora cenário de muitas pregações ao ar livre de parte dos Wesley, e onde,

provavelmente, o próprio Maxfield havia se convertido. Continuou trabalhando com esse

grupo por espaço de uns vinte anos.

Também abraçou o ponto de vista calvinista e chegou a publicar um escrito seu

contra Wesley. Não obstante, Wesley nunca deixou de acompanhar com interesse o antigo

discípulo e de colaborar com ele.

Quando já ancião e enfermo não podia atender a seus paroquianos, Wesley foi

pregar por ele na sua capela e também esteve a seu lado rogando a Deus que o acompanhasse

em seus últimos dias de vida. Apesar de tudo, ele havia sido o instrumento que o compelira a

adotar a pregação leiga nos primeiros tempos do metodismo!

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João Nelson

Entre os muitos que trabalharam com Wesley desde o princípio, talvez nenhum se

distinguisse tanto como o que se chamou João Nelson. Exercia, também, a profissão de

pedreiro. Converteu-se durante a primeira pregação que João Wesley fez ao ar livre em

Moorfields. Veio para a região de Yorkshire trabalhar em seu ofício em Londres. Pelo visto, seu

trabalho lhe provia sustento para viver decentemente e, segundo ele, "em paz e fartura". Apesar

de não lhe faltar o necessário para a vida, acabrunhava-o um grande descontentamento, pois

sentia interiormente um tremendo vazio, de tal maneira que chegou a dizer que se tivesse

de viver outros trinta anos, como os que já havia vivido, quase seria preferível enforcar-se.

Andava mui preocupado com seu futuro eterno e se desesperava ao pensar que teria

de defrontar-se com Deus no juízo final. Buscou, sem resultado, entre diversos grupos

religiosos, alívio para suas inquietudes espirituais, e quando já desesperava de encontrar o

que sua alma anelava, foi ouvir Whitefield, mas também este não o convenceu.

Sobre este evangelista disse:

"Eu o apreciava de tal maneira que se alguém se atrevesse a

molestá-lo, eu estaria pronto a pelejar por ele. Eu não o entendia, contudo

obtive alguma esperança de misericórdia divina, de tal modo que recebi

estímulo para continuar orando e ocupar minhas horas livres em ler as Escrituras." (7)

Tal era sua preocupação pela salvação eterna, que amiúde se despertava

durante a noite tomado de horríveis pesadelos que o faziam tremer e suar. Finalmente se viu

presente nessa primeira prédica de Wesley em Moorfields, de cuja experiência dá este

testemunho:

"Oh! essa foi manhã bendita para minha alma! Tão logo ele se pôs de pé

na tarimba, atirou os cabelos para trás num movimento de cabeça e dirigiu o rosto

para o lugar onde eu estava de pé; pensei que ele tinha os olhos fixos em mim. Sua

aparência provocou tão terrível temor sobre mim, que antes de ouvi-lo falar, fez

oscilar meu coração como se fosse o pêndulo de um relógio, e quando em

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realidade falou, pensei que toda sua prédica era dirigida a mim." (8)

Em realidade, essa era a forma peculiar de João Wesley pregar — dava a impressão

de que suas palavras eram dirigidas a cada ouvinte em particular. Nessa ocasião as palavras

que mais feriram a sensibilidade de Nelson foram:

"Quem és tu que agora vês e sentes tua impiedade interna e

externa? Tu és o homem! Quero-te para meu Senhor, desafio-te a que te

prepares para ser filho de Deus pela fé. O Senhor tem necessidade de ti. Tu que

sentes que és tão só digno do inferno, és digno de promover sua glória — a glória de

sua graça gratuita, a que justifica o ímpio e aquele a quem tudo é indiferente. Oh!

vem ligeiro! Crê no Senhor Jesus e tu, tu mesmo, serás reconciliado com Deus." (9)

Ao terminar o sermão, ainda sob impressão deste convite solene, disse Nelson

dentro de si mesmo:

"Este homem pôde revelar os segredos de meu coração, mas não me

deixou ali (não ficou só nisso) e mostrou-me o remédio, a saber, o sangue de Cristo." (10)

Imediatamente ao chegar à casa onde morava, começou a contar as

experiências e a viver uma vida religiosa intensa. Os senhorios se alarmaram com essa atitude

porque lhes parecia ser a de um fanático, e lamentavam que houvesse assistido a essa reunião

do grande pregador. Pensaram até em ver-se livres dele, temendo que cometesse algum

desmando, pois julgavam que se transtornara com as idéias recebidas em vista do muito

tempo que passava em orações e expressões jaculatórias (orações curtas e fervorosas).

Diante disso, Nelson resolveu deixar a casa, mas os senhorios, por sua vez, se

alarmaram, dizendo: "Que faremos se João está certo?" Então lhe disseram: "Se Deus fez por ti

mais do que por nós, mostra-nos o caminho que nos possa levar à misericórdia". (11) Isto,

naturalmente, agradou sobremodo a Nelson que os conduziu às reuniões de João

Wesley. Em seu entusiasmo por contagiar a outros com a mesma experiência do

Evangelho que ele tivera, chegou a pagar um companheiro de profissão as horas que ele

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perdesse de seu trabalho, contanto que fosse ouvir João Wesley. Aquele, depois de ter assistido

à reunião e haver sido influenciado por ela, disse que esse fora o melhor presente que ele e sua

esposa já haviam recebido. Nelson, ademais, jejuava uma vez por semana para economizar

dinheiro e dá-lo para o serviço aos pobres.

Pouco tempo depois de sua conversão voltou a Bristol, seu povoado de origem, onde

tinha a família, com o propósito principal de recomendar-lhe a vida religiosa que ele agora

levava, e para que essa influência se estendesse à vizinhança e entre antigas amizades.

No povoado continuou trabalhando em seu ofício, e depois das horas de trabalho soía

(costumava) sentar-se à porta de sua casa para ler e explicar as Escrituras a todos

quantos tivessem interesse em ouvi-lo. Logo ele formou uma congregação, e sem querer,

converteu-se em pregador e assim foi instrumento para que o movimento metodista se

implantasse naquela região.

Tempos depois, quando Wesley chegou àquele lugar, encontrou ali esperando-o

uma sociedade já formada e um pregador. Teve de pregar-lhes a Palavra do alto de um morro.

Fez de Nelson um de seus ajudantes e incorporou o grupo que formara às "Sociedades Unidas"

(1742).

De Bristol, o metodismo se expandiu aos povoados de toda a região de

Yorkshire. Entre 1743 e 1744 Wesley visitou de novo Bristol, onde ainda se encontrava Nelson

cuidando da Sociedade, e com ele fez algumas visitas ao centro do mesmo condado onde

fundou sociedades sobre o trabalho previamente feito por seu acompanhante (Nelson). Em

1744 Nelson acompanhou Wesley na região de Cornwall, num dos extremos a sudoeste da

Inglaterra. Em St. Yves encontraram uma sociedade com cento e vinte membros. Tomaram

esse lugar como uma espécie de quartel general, de onde iriam evangelizar a ponta dessa

península em que se encontrava o condado de Cornwall. Nelson trabalhava durante o dia

em seu ofício e de noite ajudava tanto a Wesley como a outro ajudante leigo deste, de nome

Sheperd, na pregação pelos povoados da península. Na maioria desses lugares o metodismo

ainda não se estabelecera, e muitas vezes os pregadores passavam por necessidades. Nelson,

em suas memórias, dá-nos um exemplo das penúrias e provas que tinham de enfrentar:

"Durante todo esse tempo o senhor Wesley e eu nos deitávamos no chão:

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115

ele tinha meu sobretudo por travesseiro e eu um livro de notas sobre o Novo

Testamento. Depois de estar ali por espaço de três semanas, uma noite, às três

horas da madrugada o senhor Wesley virou-se e vendo que eu estava acordado, me

deu uma palmadinha dizendo: 'Irmão Nelson, tenhamos bom ânimo; ainda tenho

um lado bom, já que do outro estou desolado e me sinto em carne viva'.

Comumente pregávamos ao povo mais humilde, indo de um casebre a outro, e

mui poucas vezes éramos convidados a comer ou beber. Um dia estivemos num

lugar chamado Santo Hilário de Baixo, onde o senhor Wesley pregou sobre a

visão dos ossos secos de Ezequiel, e enquanto pregava os ouvintes se

comoveram. Quando voltávamos, o senhor Wesley deteve seu cavalo para colher

algumas amoras e me disse: 'Irmão Nelson, deveríamos estar agradecidos que

aqui haja tanta amora, porque esta é a melhor região em que tenho estado para ter

um bom estômago, mas a pior que já vi para enchê-lo. Será que a gente pensa que

podemos viver apenas da pregação?' Respondi-lhe: 'Não sei o que eles pensam,

mas alguém me pediu que tomasse algo quando vim de São Justo, e em verdade

comi a valer pão de centeio e mel'. Ele disse: 'Tu estás bem, então; eu pensei em

pedir uma fatia de pão à mulher que me hospedou quando estive com a gente

do local chamado Morvah, mas só me lembrei quando já eslava a alguma distância

da casa'." (12)

Isto nos dá outra mostra do quilate desses homens diante das privações a que se

submetiam e da fidelidade que mostravam na tarefa da evangelização.

Noutra ocasião, ao encontrar-se num lugar chamado Pudsey, João Nelson

buscou alojamento, mas não conseguiu porque se soube que os soldados o estavam

procurando, e teve de ir para Leeds, onde, em companhia de Wesley, fundara uma sociedade.

Ali esteve trabalhando como pedreiro de dia e pregando de noite, até regressar novamente a

sua casa em Bristol, onde o esperava uma ingrata surpresa. Foi-lhe dito que o estavam

buscando a fim de obrigá-lo a servir ao exército, pois os taberneiros e o pároco (o pastor da

Igreja Anglicana) o haviam denunciado: os primeiros porque ele alijava os fregueses da

taberna, e o outro porque lhe fazia demasiada concorrência na pregação. Aconselhado

a que fugisse para não ser alcançado, respondeu: "Nada posso temer porque Deus está a meu

lado e sua palavra me fortaleceu a alma neste dia." (13)

Page 116: Estranha estirpe de_audazes

116

No dia seguinte, quando estava pregando num lugar chamado Adwalton,

prenderam-no e embora um concidadão seu oferecesse dinheiro para que o deixassem em

liberdade, não o soltaram e o levaram à cidade de Halifax perante um júri do qual formava parte

o pároco de Bristol. Os vizinhos de Nelson quiseram depor a seu favor, mas o júri não quis

ouvi-los e somente deu ouvidos ao pároco, que afirmou ser Nelson um vagabundo que

não tinha qualquer meio de vida visível. A essa mentira Nelson contestou: "Posso trabalhar com

estas mãos em meu ofício bem como qualquer outro na Inglaterra, e o senhor o sabe". (14)

Contudo, foi enviado a outro lugar chamado Bradford. Ao deixar Halifax, muitos do povo

humilde choravam e oravam por ele enquanto passava pelas ruas. Disse-lhes ele: "Não

temais; Deus tem seus caminhos até no torvelinho e Ele defenderá minha causa. Apenas

orai por mim para que minha fé não vacile". (15)

Em Bradford, antes de ser incorporado ao exército, foi posto por uma noite numa

imunda prisão. Recorda ele: "Cheirava mal como se fosse um chiqueiro, mas minha alma

estava tão cheia do amor de Deus que era como um paraíso para mim". (16) Não tinha

onde sentar-se e a cama era um montão de palha. Até seus adversários intercederam

por ele e suplicaram às autoridades que lhes deixassem vê-lo para dar-lhe de comer em suas

casas. Como as autoridades não acederam ao pedido, levaram-lhe comida, vela e água e

fizeram chegar-lhe essas coisas através de um buraco que havia na porta de sua cela. A gente

permanecia do lado de fora e o acompanhava quase toda a noite entoando cânticos. Ele dividiu

o que lhe haviam trazido com um pobre prisioneiro que compartilhava essa pocilga.

Sua esposa veio na manhã seguinte animá-lo em sua desgraça. Ela tinha dois filhos

a quem sustentar e estava esperando outro em breve. Não obstante, dirigiu-lhe a

palavra através do postigo (pequena janela), nestes termos:

"Não temas, a causa é de Deus, é por ela que estás aqui e ele te

defenderá. Portanto não te preocupes por mim e nossos filhos, porque aquele que

alimenta as aves cuidará de nós. Ele te dará força naquele dia. E depois de

sofrermos um pouco, ele aperfeiçoará o que estiver incompleto em nossas almas e

nos levará para onde os maus cessarão de importunar-nos e os cansados

acharão repouso. " (17)

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117

A isso ele respondeu:

"Não, não posso temer; não, não posso temer ao homem ou ao diabo,

enquanto sinta em minha alma o amor de Deus, como agora o sinto." (18)

Tempos depois recuperou a liberdade e continuou, então, com suas

peregrinações evangelizantes, pregando ainda com maior poder, enfrentando toda

oposição que lhe faziam; estabeleceu-se novamente em Bristol, de que fez seu centro de

atividades, visto ser ali muito estimado pelo povo. Seu ministério durou trinta e três anos.

Morreu repentinamente em uma de suas excursões evangelizantes. Seu corpo foi

conduzido em procissão de Leeds até Bristol. Conta-se que o cortejo fúnebre que

ocupava cerca de meia milha na estrada, entoava hinos de Carlos Wesley. Nunca se viu um

homem que fosse tão estimado em seu próprio povo como ele.

Infelizmente não podemos estender-nos mais; entretanto esperamos que os incidentes

narrados deixem na mente e no coração do leitor uma impressão profunda, quanto à qualidade de

homens que o metodismo primitivo soube cunhar para a glória de Deus e extensão de seu reino.

Certamente Nelson merece o elogio que nos deixou um de seus biógrafos:

"De tal fibra era João Nelson, homem das filas mais humildes da

Inglaterra, mas cujo coração valente e integridade imutável o habilitaram a tomar

lugar entre os mártires mais nobres, se para isso ele houvesse sido chamado.

Sua fervente piedade, sua constante abnegação e energia saxônia fizeram dele um

dos apóstolos do metodismo primitivo. Sua magnanimidade natural, senso comum,

clara apreensão das Escrituras, estilo fácil e maneiras simples, fizeram-no um dos

pregadores mais favoritos e idôneos entre um grupo a que poucos clérigos

instruídos houvessem podido alcançar. " (19)

Ao mesmo tempo admira-nos, por certo, o espírito heróico de sua esposa ante a

prisão, quando instava com ele a ser fiel à vocação cristã. Sem embargo ela é apenas uma

demonstração do espírito heróico da mulher metodista dessa época longínqua. Diz-se que

em geral as mulheres aceitavam com alvoroço a mensagem pregada pelos mensageiros

metodistas. Encontramo-las como guias de classes, guias de grupos de oração, visitadoras

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118

sociais, professoras, e, às vezes, até como pregadoras. As boas obras por elas realizadas são

inumeráveis.

Wesley resistiu, como havia resistido a outras inovações, a dar à mulher lugar nas lides da

pregação. Mas seu bom senso, em mais de uma ocasião, levou-o a ceder, dizendo: "Se Deus usa

mulheres na conversão de pecadores, quem sou eu para interpor-me entre elas e ele?"

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119

Maria Bosanquet

Já fizemos referência a Maria Bosanquet, esposa de La Flechère. Ela foi talvez, o tipo

mais característico das mulheres que ousaram pregar, apesar da resistência de Wesley. Foi

uma das poucas que obtiveram permissão de pregar, embora não o fizesse do púlpito. Como

nos lembraremos, ela havia pertencido a uma família de mui boa posição social e rica. O

que lhe coube por herança gastou tudo na manutenção de um orfanato e de um posto de

caridade. Instalou o orfanato em uma casa de sua propriedade em Laytonstone, em 1763. Ao

mesmo tempo converteu esse lugar num ponto de pregação e no dia 15 de dezembro

formou uma sociedade com vinte e cinco membros. E assim a casa em Laytonstone não

serviu apenas para órfãos pobres, mas também se converteu em santuário.

Outra mulher, Sara Ryan, secundava-a (auxiliava-a) em suas tarefas. João Wesley

visitou esse local em 1765 e escreveu: "Viajei até Laytonstone e ali encontrei uma verdadeira

família cristã", e em 1767 escrevia novamente:

"Oh! que casa de Deus está aqui! Não somente pela decência e

ordem, mas ainda pela vida e poder da religião. Lamento que se encontrem mui

poucas casas como esta nos domínios do Rei. " (20)

Mais tarde, depois que morreu Sara Ryan, a instituição foi transferida para uma

estância num local chamado Cross-Hill, em Yorkshire. Ali também se instalou um centro com

muitas atividades religiosas e a gente vinha adorar de muitos lugares, de tal maneira que às

vezes faltava espaço. Não só ali, mas também em outros lugares, matinha serviços religiosos

semelhantes. Era exímia oradora, capaz de manter acesa a atenção em muitas assembléias,

especialmente entre gente rude. Por algum tempo fez da cidade de Leeds o centro do distrito

que ela atendia. Calcula-se que durante um ano viajou mais de 1.500 quilômetros, e dirigiu 120

serviços religiosos públicos, atendeu a 600 classes e reuniões particulares, escrevendo

também 116 cartas.

Enquanto seu esposo vivia, nas capelas que se foram originando ao redor de

Madeley, havia um assento elevado de um ou dois degraus sobre o nível do piso, de onde ela

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120

costumava dar instruções religiosas ao povo ansioso por ouvir-lhe a palavra. Suas dissertações

eram sensatas, claras, verdadeiramente eloqüentes e enriquecidas com os ensinos do

Evangelho. Sobre a sua elocução Wesley dá o seguinte testemunho: "É fluente, fácil e

natural, mesmo quando o sentido é profundo e vigoroso". E acrescenta: "Suas palavras eram

como fogo, que ao mesmo tempo comunicavam luz e calor aos corações dos que a ouviam". (21)

Após o falecimento do esposo continuou vivendo em Madeley. Por 30 anos ali esteve,

até sua morte, e seu lar continuou como santuário para os pobres, as mulheres devotas e os

evangelistas itinerantes. Não recuou em seu ministério apesar de sua saúde abalada, e

continuou pregando nas vilas vizinhas como também na sua própria casa. Conservou espírito

jubilosamente religioso até ao fim da vida. No seu 28º aniversário de casamento, escrevia em

seu Diário:

"Há vinte e oito anos, nesta mesma hora, dei minha mão e coração a

João Guilherme de La Flechère. Período proveitoso e abençoado de minha

vida! Sinto no presente um afeto mais terno para com ele do que sentia então, e

agora, pela fé, uno minha mão novamente à sua." (22)

Acreditava que seu espírito continuava inalteravelmente em comunhão com o do

esposo e sentia-se disposta a partir a qualquer momento para reunir-se com ele. Faleceu

a 9 de dezembro de 1815, com a idade de 76 anos.

Sua morte foi tão lamentada como o foi a do esposo, por toda a comunidade de

Madeley e povoados circunvizinhos. Sempre foi mui sóbria em suas necessidades

pessoais e mui generosa para com os outros. Diz um seu biógrafo que seus gastos

pessoais durante todo um ano nunca excederam cinco libras esterlinas. No entanto, em sua

caderneta de contas do último ano de vida figuram nada menos de cento e trinta e oito libras

para os pobres.

Se nos empenhássemos em escrever algumas outras biografias de mulheres

metodistas, não terminaríamos tão logo a tarefa. Basta que recordemos, todavia, nomes de

outras como a senhorita Mallet, depois como senhora Boyce, que também recebera na

Conferência de 1787 autoridade como pregadora "por todo o tempo em que ela pregar a

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121

doutrina metodista e conformar-se com sua disciplina"; de Ana Kitler, que viajava pelo

distrito de Bradford e se distinguiu pelo poder que tinha na oração; de Esther A. Bogers (esposa

de Jaime Rogers, um dos pregadores itinerantes), que, apesar de morrer aos 38 anos de idade,

deixou cartas e um diário que, publicados, alentaram por muito tempo os fiéis metodistas;

de Hannah Ball, que em 1769, antes que Roberto Raikes começasse a sua, estabeleceu uma

escola dominical em Wycombe, que dirigiu até sua morte em 1792 (esta escola ainda

funciona); de Sofia Coole (que mais tarde se casou com Samuel Bradburn) lembrada

especialmente porque inspirou a Roberto Raikes a iniciativa de começar formalmente a

obra das escolas dominicais foi a que marchou com Raikes pelas ruas de Gloucester com o

primeiro grupo de meninos estropiados e com as roupas em frangalhos para uma igreja, a fim de

receberem instrução e noções de religião (1780).

Todas essas mulheres e muitas outras estiveram na sucessão apostólica de Susana

Wesley e falam eloqüentemente do poder do Evangelho, em que não há acepção de pessoas,

senão que salva, exalta e usa todo aquele que sentindo o chamado do Senhor se entrega

de corpo e alma.

NOTAS:

(1)

(2) “Works”, Vol V, pág. 179

(3) Diário, 21 de maio de 1739.

(4) “A new History of Methodism”, Vol I, pág. 293.

(5) Stevens, A., Op. Cit., Vol I, págs 174-175.

(6) Stevens, A., Op. Cit., Vol I, págs 407-408

(7) McTyeire, H. N., Op. Cit., pág. 163.

(8) McTyeire, H. N., Op. Cit., pág. 163

(9) Idem

(10) My Cyeire, H. N., Op. Cit., pág. 163

(11) Ibid, pág. 164

(12) Do Diário de Nelson, citado por Stevens, A. Op. Cit., Vol I, págs 193-194.

(13) Citado por Stevens, A. Op. Cit., Vol I, pág 207.

(14) Citado por Stevens, A. Op. Cit., Vol I, pág 207.

(15) Idem, pág. 208.

(16) Idem.

(17) Stevens, A. Op. Cit., Vol I, pág 208.

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122

(18) Idem.

(19) Stevens, A. Op. Cit., Vol I, págs 179-180.

(20) Stevens, A. Op. Cit., Vol II, pág 267.

(21) Stevens, A. Op. Cit., Vol II, pág 270.

(22) Stevens, A. Op. Cit., Vol III, pág 226.

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123

CAPÍTULO UNDECIMO

O BANDO DOS

“IRREGULARES”

Parte 2

"Filipe: tens de pregar-nos ou todos iremos para o inferno

e Deus exigirá nosso sangue de tuas mãos."

Bárbara Heck

Lá pelos fins do século XVII, o rei Luís XIV de França devastou, por intermédio do

Marechal Turenne, a região alemã do Palatinado sobre o Reno. A população da região era

quase toda formada de protestantes que se viram em necessidade de abandonar suas

terras e refugiar-se noutros países. A rainha Ana, da Inglaterra, enviou vários navios para levar

uns tantos deles de Roterdã, na Holanda, para a Inglaterra. Mais de seis mil chegaram a

Londres, abatidos e reduzidos a uma pobreza lamentável. Muitos deles foram viver na

Irlanda, até que se lhes abrisse oportunidade de estabelecer-se noutra parte. Em 1710 o

governo britânico enviou quase três mil deles à América, onde se estabeleceram em

regiões que hoje em dia compreendem os estados de Nova Iorque, Pensilvânia e Carolina do

Norte. Muitos, porém, permaneceram na Irlanda e se foram mudando dali,

paulatinamente, no decorrer dos anos.

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O primeiro metodista que da Inglaterra cruzou o canal para ir à Irlanda foi um tal de

Tomás Williams, que estabeleceu uma sociedade em Dublin. João Wesley visitou, nesse

mesmo ano, essa obra e daí para a frente fez visitas freqüentes àquela Ilha. Em poucos anos o

metodismo estava disseminado em muitos pontos.

Em 1752 um jovem carpinteiro foi alcançado pelo avivamento metodista. Seu nome

era Filipe Embury. Em 1758 ele recebeu carta de pregador local. Em 1760 formou parte de um

grupo de emigrantes que de Limerik, Irlanda, saíram para a América. Entre eles estava lambem

sua prima Bárbara Heck que, como ele, era membro de uma das sociedades metodistas. Os

dois primos e suas famílias se estabeleceram em Nova Iorque. Foram descendentes

daqueles protestantes que tiveram de abandonar o Palatinado no século anterior, muitos dos

quais, como esses dois primos, foram também alcançados pelo avivamento wesleyano.

Mais ou menos pela mesma época outro pregador local metodista se trasladou da

Irlanda para a América, e se estabeleceu na região de Maryland. Era Robert

Strawbridge. Alguns historiadores pensam que ele não podia haver-se mudado para a América

antes de 1764 ou 65, chegando alguns a dar a tardia data de 1766.

Embury e Strawbridge são tidos como os dois primeiros caudilhos (chefes)

do metodismo na América do Norte. Passaremos, então a considerar estes dois homens,

para depois mencionar uns poucos mais da mesma estirpe e que juntos serviram para

ilustrar também o poder que o avivamento metodista teve no coração e na vida dos que

militaram nas fileiras leigas.

Page 125: Estranha estirpe de_audazes

125

Os primos Filipe Embury e Bárbara Heck

Quando Filipe Embury e sua prima Bárbara Heck chegaram a Nova York,

ficaram desvinculados da influência metodista, pois ali ainda não havia nenhuma sociedade

formada, não obstante as viagens e as pregações evangelizadoras de Jorge Whitefield. A

princípio uniram-se a outro grupo evangélico, mas não lhes agradou o ambiente e, por fim,

perderam quase todo o fervor religioso. Narra a história que numa tarde de domingo de 1766

se encontrava um grupo de homens jogando cartas, passatempo predileto de muita gente

depois das horas de trabalho, quando entrou Bárbara Heck e irritou-se diante da cena a tal

ponto que lhes tomou as cartas das mãos e as lançou ao fogo. Exortou os presentes a mudar de

vida e instou com alguns a lembrar-se de que eles também eram metodistas antes de vir para a

América. Dali foi à casa de seu primo Embury, informando-o do acontecido e dizendo-lhe com

grande veemência: "Filipe: tens de pregar-nos ou todos iremos para o inferno e Deus exigirá

nosso sangue de tuas mãos."

Filipe, um tanto surpreendido por essa visita inesperada da prima e pelo repto

(provocação, desafio), respondeu como que desculpando-se: "Como posso pregar, se não

tenho local nem congregação?" A isto Bárbara respondeu: "Prega em tua própria casa e aos de

tuas relações". Antes de deixá-lo conseguiu do primo a promessa de que faria uma prova, e

poucos dias depois Filipe dirigia a primeira reunião em sua própria casa. Nessa ocasião

somente cinco pessoas ouviram o sermão, e esse foi o primeiro pregado por um

metodista na América, exceto se Strawbridge houvesse pregado anteriormente no sul.

Assistiram àquele serviço religioso, Bárbara Heck e seu esposo (Paulo), a esposa de

Embury, mais João Lawrence e Betty, esta última uma menina serva de origem africana.

A partir desse momento Embury exerceu o ministério leigo. Mas desde logo sua casa se

tornou pequena para conter os que se interessavam por assistir e então alugaram um

"Cenáculo". Este, tão pouco, pode conter os concorrentes (os participantes) por muito tempo, e

já em 1767 foi preciso alugar outro local, conhecido pelo nome de "Rigging Loft", que media vinte

metros de comprimento por seis de largura. Ali Embury pregava aos domingos, às seis da

manhã, e mais tarde também às quintas-feiras à noite.

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126

Em 1768, na St. John Street, foi alugada uma propriedade e que foi comprada em

1770. Ali foi erigida a primeira capela metodista do Novo Mundo. Fez-se subscrição e

duzentas e cinqüenta pessoas se comprometeram a ajudar. Entre os que assinaram o

compromisso encontrava-se um tal Capitão Webb (sobre ele falaremos mais adiante) que deu a

maior quantia, algo assim como cento e cinqüenta dólares, importância considerável para

aquela época. Construiu-se uma capela de pedra que media vinte metros por quatorze.

Embury, fiel a seu ofício de carpinteiro, fez o púlpito. Bárbara Heck facilitou os planos

para a construção da capela de uma maneira original. Depois que o grupo resolveu construir a

capela, Bárbara, em sonho, "teve revelação" de como se devia edificar, e levando em conta que

ela despertou o zelo religioso do grupo e era muito estimada, aceitaram suas indicações.

Entretanto, havia uma dificuldade: também na América, colônia da Inglaterra, os

metodistas eram tidos como dissidentes da Igreja Anglicana, a Igreja Oficial do Reino,

e segundo os regulamentos em vigor, não podiam edificar capelas ou 'templos. Para

resolver a dificuldade e não se verem privados de construir, colocaram uma chaminé na capela,

a fim de dar-lhe aparência de um edifício comum.

O sermão inaugural dedicatório da nova capela para o culto divino foi

proferido a 30 de novembro de 1768 por Embury. Tomou como texto: "Semeai para vós

outros em justiça, ceifai segundo a misericórdia; arai o campo virgem; porque é tempo de

buscar ao Senhor, até que ele venha e chova a justiça sobre vós." (1)

Deu-se o nome de "Wesley" à capela. O carpinteiro-pastor esteve à frente da

Sociedade Metodista que se formava em Nova Iorque até 1769, quando vieram da

Inglaterra os primeiros missionários enviados por João Wesley e assumiram a

responsabilidade do movimento metodista na América.

Embury e todos os membros do grupo alemão-irlandês dessa primeira Sociedade

metodista foram viver na localidade de Camden, entre 1767-1770, mais tarde parte de Salém,

condado de Washington, hoje no estado de Nova Iorque. E perto de onde passaram a viver,

num lugar chamado Ashgrove, Embury organizou uma nova sociedade.

Em 1775, trabalhando no campo, pois havia mudado sua ocupação de carpinteiro para a

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127

de agricultor, feriu-se com um dos instrumentos de trabalho e, em conseqüência do ferimento,

morreu.

Bárbara Heck e o esposo Paulo, João Lawrence e a esposa (a viúva de Embury) e

Samuel Embury, filho de Filipe, mudaram-se em 1783 para o Canadá e se fixaram

permanentemente no povoado de Augusta em 1785.

No Canadá vieram a formar o núcleo de uma classe metodista, da qual Samuel Embury foi

escolhido guia. Bárbara morreu em 1804 e até hoje é lembrada com veneração, considerada

como a mãe do metodismo canadense.

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128

Robert Strawbridge

Alguns historiadores opinam que Robert Strawbridge pregou antes de Embury, no sul

dos Estados Unidos, mas nunca se pode firmar com certeza tal fato, e assim compartilham a

glória de haver sido ambos os primeiros a disseminar o avivamento metodista em terras

americanas.

O certo é que Strawbridge se converteu mais tarde do que Embury,

igualmente pela pregação de João Wesley, em 1758. Não há dados certos quanto à data de seu

nascimento. Fixou-se nas colônias americanas num lugar chamado "Sam's Creek", em

Maryland, e fez de sua casa um santuário (lugar de culto e pregação) para todos os

vizinhos, continuando assim a vocação de pregador já exercida na Irlanda.

Logo a casa se tornou pequena para receber os que vinham ouvir suas

exposições, e então construiu uma capela de troncos de árvores ("Log House") na qual se

deixaram aberturas para uma porta e três janelas, mas estas nunca foram colocadas. Não

obstante se instalou o púlpito, pois se sabe que sob ele foram sepultados dois filhos de

Strawbridge.

O interesse religioso se propagou tanto por aquela região que para atender a todos

os pedidos de pregação, faltou a Strawbridge o tempo para atender aos interesses particulares e

começou a descuidar de seus campos; como conseqüência, as colheitas já não bastavam para

o sustento da família. Diante disso, reuniu os vizinhos e disse-lhes: "Se desejam que eu lhes

pregue o Evangelho, terão de cultivar também minhas terras, pois não poso fazer as duas

coisas ao mesmo tempo". Os vizinhos se comprometeram a fazê-lo e .assim pode ampliar seu

campo de ação.

É reconhecido como quem primeiro estabeleceu a obra metodista nas cidades de

Baltimore e Hartford. Evidentemente aproveitou muito dos frutos deixados pela pregação

de Whitefield. Alguém disse com muita expressão: "Ele recolheu os frutos que Whitefield

sacudira dos ramos". Teve o mérito de ser o instrumento para a conversão de Ricardo

Owen, o primeiro pregador metodista nascido na América.

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Strawbridge era de espírito independente. Muito contra a vontade submeteu-se, mais

tarde, à direção de Asbury, e foi um dos poucos que não obedeceram a suas ordens de não

administrar os sacramentos (visto que era um leigo). Achava que na falta de pastores

ordenados, qualquer cristão que estivesse à frente do rebanho, pela graça de Deus estava em

condições de fazê-lo. Por causa disso, mais de uma vez entrou em controvérsia com Asbury e

deste andou separado e distanciado por muito tempo.

Seu ministério teve uma duração de 21 anos. Faleceu em 1781 perto de Baltimore.

Ricardo Owen pregou o sermão em memória daquele que o levara a Cristo. Comentando a

respeito do caráter de seu ministério, W. C. Barclay assevera:

"Se um homem pode ser julgado pelo fruto de seus labores, Robert

Strawbridge serviu à causa de Deus com tanta eficácia até à morte, como

qualquer dos pregadores primitivos do metodismo. Sua influência pessoal

abrangeu campo mais vasto e afetou vitalmente mais gente que a de qualquer outro.

Ao tempo de sua morte, aproximadamente quatro quintos (80%) de todos os

membros das sociedades metodistas na América estavam em Maryland e para o sul,

onde sua influência se estendera mais." (2)

Outro historiador contemporâneo, William W. Sweet, diz em seu livro "A

Religião da Fronteira Americana":

"Strawbridge adiantou-se a seu tempo e bem pode ele ser chamado 'o

primeiro verdadeiro paladino (chefe, líder) do metodismo americano." (3)

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130

Capitão Webb

Já fizemos menção ao fato de que um tal Capitão Webb figurava no topo da lista

de contribuintes que se comprometeram com a construção da primeira capela metodista

em Nova York.

Certamente poucas figuras históricas mais interessantes existem no seio do

metodismo que a deste velho militar. Pertencia às milícias inglesas, perdendo o olho direito

numa refrega (batalha) e saindo com o braço direito ferido em outra. Em 1765 ouviu Wesley

em Bristol e se uniu ali à sociedade metodista. Pouco tempo depois recebeu licença de

pregador local. Dele disse Wesley: "É um homem de fogo e o poder de Deus continuamente

acompanha sua palavra". Não era apenas Wesley que tinha em alta conta esse

militar-pregador; outra autoridade em assuntos metodistas escreveu do Capitão o seguinte:

"A gente via em seu rosto o guerreiro e ouvia em sua voz o

missionário. Sob a influência de sua eloqüência santa a gente tremia e chorava,

rendendo-se sob o poder extraordinário de sua palavra." (4)

Era homem de talento natural, embora tivesse considerável inteligência. Lia muito

e conhecia bem os homens pelo contacto que com eles havia tido em sua carreira militar.

Chegou a ler o Novo Testamento em grego e o exemplar que nessa língua usava é ainda uma

das relíquias mais preciosas que se conservam na América.

Foi para a América do Norte a fim de servir na cidade de Albany, Nova Iorque, uns

três anos depois de sua conversão. Ao chegar, continuou seu costume de realizar o culto

doméstico, que chamou a atenção a seus vizinhos, mais ainda por ser militar. Esse costume

despertou neles interesse de conhecer a natureza da religião que aquela família professava, e

assim muitos pediram admissão a essas reuniões familiares. Logo se formou um grupo em

sua casa, que se reunia periodicamente para oração e meditação. Nesse ínterim o Capitão teve

notícias das reuniões que Embury dirigia em Nova Iorque, e resolveu ir até lá para ver de que se

tratava.

Foi memorável essa primeira visita à congregação metodista daquela cidade.

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131

Chegou quando o culto já estava iniciado e sentou-se entre a congregação, com a sua espada

ao lado. Os irmãos, ao ver esse militar, tomaram-se de um pequeno susto, pois pensaram que

viria interferir em suas reuniões e fechar-lhes o local. O próprio Embury não se sentiu muito

cômodo no púlpito com esse estranho militar ali na frente e que o acompanhava com muito

interesse, olhando-o fixamente com o único olho que tinha. Quando concluiu o sermão, como

era costume na época, Embury perguntou se alguém se sentia movido pelo Espírito a dizer

alguma palavra de exortação. A esse convite o Capitão se levantou, ocupou o púlpito, pôs sobre

este a espada, e disse: "Irmãos, eu também sou metodista".

Podemos imaginar o suspiro de alívio e de alegria que brotou de todos os corações

ao saber que tinham nele outro irmão e com quem podiam contar para o afiançamento da

causa. Realmente veio a ser uma coluna forte desta congregação e contribuiu mais do que

qualquer outro para que se erigisse a primeira capela em Nova Iorque, reunindo muito do

dinheiro necessário.

Pouco tempo depois desse encontro se aposentou e se fixou com a família numa

ilha de Nova Iorque, chamada Long Island, onde logo formou uma sociedade. Agora que já não

tinha compromissos com o exército, entregou-se inteiramente à pregação e estendeu seus

labores por toda a ilha, indo além, até Nova Jersey, Delaware, Maryland e Pensilvânia.

Logo cresceu e se firmou a fama de suas pregações. Na cidade de Filadélfia

organizou uma sociedade com sete membros, que constituíram o núcleo inicial do que ainda é a

congregação de São Jorge. Como em Nova Iorque, interessou-se em que a sociedade tivesse

seu próprio local de cultos e, como conseqüência, empenhou-se para que em 1769 se

adquirisse e concluísse um edifício que pertencia a uma congregação reformada alemã

parcialmente constituída. Esse templo, modificado e reconstruído em parte, ainda está em uso,

sendo considerado o templo Metodista em uso constante e o mais antigo da América do Norte.

Nessa cidade de Filadélfia, nos fins de 1769, deu as boas-vindas a dois dos

missionários vindos da Inglaterra, enviados por João Wesley e pela Conferência Anual:

Boardman e Pilmoor, embora não fossem esses que ele pedira.

Pouco depois de chegar, Pilmoor escreveu a Wesley dando seu testemunho

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132

sobre a obra feita por Webb, e seus resultados:

"Grande foi a surpresa ao encontrar o Capitão Webb na cidade e uma

sociedade com cem membros aproximadamente, que desejam estar em estreita

relação com o irmão. Isto procede do Senhor e é maravilhoso aos nossos olhos.

Preguei diversas vezes e a gente acode em multidões para ouvir. Domingo à

noite saí a campo. Tive por púlpito a plataforma que se usa nas corridas de cavalos

e creio que entre quatro e cinco mil ouvintes estiveram em profundo silêncio. Bendito

seja Deus pela pregação ao ar livre! A princípio, quando falei em pregar às cinco

horas da manhã, acharam que isso não daria resultado na América, entretanto

resolvi experimentar e tive boa congregação." (5)

Em 1772 o Capitão Webb foi à Inglaterra e compareceu perante a Conferência

reunida em Leeds, que, em face de seu apelo comovedor, enviou outros dois missionários

à América (os já mencionados Rankin e Shadford). E voltou ao Novo Mundo com eles. Um dos

documentos que nos revelam o espírito aventureiro da obra missionária daqueles tempos

consiste numa cartinha que João Wesley escreveu a Shadford, quando o avisou de que havia

chegado o momento de partir. Aqui a transcrevemos:

"Querido Jorge, a ocasião de embarcares para a América chegou. Deverás

partir de Bristol, onde te encontrarás com Tomás Rankin e o Capitão Webb e sua

esposa. Deixo-te livre, Jorge, no grande continente americano. Publica tua

mensagem sob a luz do sol e faze todo o bem que possas. Caro Jorge, aqui

permaneço afetuosamente teu. " (6)

O Capitão Webb passou algum tempo mais ajudando na obra de evangelização na

América e depois voltou à Inglaterra onde continuou a evangelizar, sempre como leigo. Morreu

no mesmo lugar onde conhecera a Cristo, na cidade de Bristol, a 20 de dezembro de 1796,

com a idade de 72 anos. Um contemporâneo seu disse que até ao fim da vida, Webb conservou

grande vitalidade, e que aos 70 anos parecia ter 55. Um pregador que o acompanhara em seus

últimos dias assim relata seu ocaso:

"Quarta-feira, dezembro 21. Ontem à noite, cerca de 23 horas, o Capitão Webb

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133

entrou repentinamente no gozo do Senhor. Participou da ceia e retirou-se para

descansar, lá pelas dez, sentindo-se bem. Em menos de uma hora seu espírito

deixou o corpo terreno para entrar nos reinos da eterna felicidade. Tinha o

pressentimento de que mudaria de mundo no decorrer deste ano e que a partida seria

repentina." (7)

Em Bristol ajudou a erguer a capela da rua Portland sob cujo altar foram

sepultados seus restos mortais. Provavelmente o maior tributo que fora feito a esse

soldado-pregador veio do Sr. John Adams, que chegou a ser presidente dos Estados

Unidos. Ouvindo-o em Filadélfia, depois o descreveu assim: "O velho soldado é um dos homens

mais eloqüentes que já ouvi. Ele sabe despertar a imaginação e emocionar muito,

expressando-se com propriedade". (8)

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134

Robert Williams

Uma das vidas mais novelescas que se registram na história do metodismo

americano, entre os pregadores leigos, foi, sem dúvida alguma, a de Robert Williams.

Foi o primeiro pregador itinerante que chegou à América do Norte antes que viessem

os que, em 1769, a Conferência Anual resolveu mandar. Chegou a Nova Iorque em agosto de

1769, procedente da Irlanda. Na primavera desse ano, havendo chegado notícias da obra de

Embury e da necessidade que tinha este de que alguém o ajudasse, ofereceu-se a Wesley.

Parece que este não demonstrou muito interesse, e parece que a razão principal era o fato de

Williams haver criticado asperamente em público clérigos da Igreja Anglicana. E isto

desgostou a Wesley, que se opunha a que se fizessem comentários contra o clero oficial,

mesmo quando merecidos. Por fim, ante sua insistência quase impertinente, consentiu em que

fosse, desde que ele mesmo custeasse as despesas de viagem e se colocasse às ordens dos

missionários que a Conferência enviaria mais tarde.

Era homem de muita iniciativa e já havia pregado por três anos na Irlanda, o que

lhe granjeou (conquistou) muitos amigos, entre os quais um tal senhor Ashton, leigo metodista

de Dublin. Este não só ofereceu pagar-lhe a passagem, mas também prometeu acompanha-lo

até Nova Iorque. Ante essa estupenda promessa do amigo, vendeu o cavalo para pagar as

dívidas e empreendeu a viagem a pé até Dublin, carregando o alforje nos ombros, levando

um pão e uma garrafa de leite.

Dois meses antes que os missionários regulares chegassem à América, Williams

chegou com seu amigo. Ao desembarcar não perdeu tempo, pois foi imediatamente em

busca de Embury oferecer-lhe seus serviços que, aceitos, continuaram até à chegada de

Boardman, um dos dois missionários regulares.

Não ficou parado em Nova York. Começou a viajar em seguida, tomado da

mesma inquietude que Asbury. Em verdade este o menciona muitas vezes em seu

Diário, observando que o encontrava aqui, ali e acolá, empenhado em fazer trabalho

de itinerante. Obteve os melhores resultados em Maryland e Virgínia. É tido como o que

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introduziu e estabeleceu o metodismo neste último Estado. Foi constante em sua

itinerância ministerial, até que se casou.

Uma das coisas que distinguiram esse obreiro foi o fato de ser ele o primeiro

metodista que publicou e distribuiu livros na América. Por essa época não era permitido a

qualquer pregador publicar livros, exceto com licença expressa de João Wesley. Mas

Will iams não se ateve a essa restrição e publicou folhetos, sermões e livros,

evidentemente enfrentando ele mesmo os riscos da empresa (empreendimento). Todo

esse material ele distribuía profusamente em suas viagens, levando-o em seus alforjes. Jesse

Lee, um dos mais renomados e eminentes pregadores metodistas dos fins desse século, e que

se convertera sob seu ministério, escreveu:

"Robert Williams reimprimiu muitos livros do senhor Wesley e os espalhou

por todo o país, para grande vantagem da religião. Os sermões que ele imprimiu em

formato pequeno e fez circular entre o público tiveram grande efeito e deram ao povo

luz e compreensão a respeito da natureza do novo nascimento e do plano de

salvação. E assim, houve oportunidade em muitos lugares para que nossos

pregadores fossem convidados a pregar onde nunca estiveram antes." (9)

Essa atividade desgostou a Wesley quando soube das publicações na

América, e escreveu a Asbury para que tomasse providências, indicando-lhe que não

permitisse publicar qualquer outro livro sem seu consentimento. Ao mesmo tempo

escreveu a Williams no mesmo sentido. Mas até 1773, pelo menos, ele continuou

desconhecendo a ordem de Wesley, pois na Conferência de pregadores realizada na América,

naquele ano, e provavelmente obedecendo a ordens de Wesley, inseriu-se nas atas da

Conferência o seguinte: "Nenhum pregador poderá reimprimir qualquer dos livros do senhor

Wesley sem sua licença (quando esta pode ser obtida) e sem o consentimento de seus irmãos".

Também esclareceram que Robert Williams podia vender os livros já impressos, mas não lhe

era permitido imprimir outros sem observância do que estabelecera a Conferência.

Faleceu a 26 de setembro de 1775, não muito depois de haver se casado e localizado

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residência num lugar situado entre as cidades de Suffolk e Norfolk, na Virgínia. Ele viajou

durante todo seu ministério como simples pregador leigo, pois nunca chegou a ser ordenado.

Teve, pois, o mérito de ser o primeiro metodista itinerante na América, o primeiro a publicar

literatura e o primeiro a casar-se e, também, o primeiro a morrer!

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137

John King

Terminaremos esta breve série recordando mais um exemplo desses homens

intrépidos e sem ordenação humana (eclesiástica).

Nasceu na Inglaterra em 1746. Também, como Robert Williams, foi para a América

de maneira irregular, isto é, sem ser enviado pela Conferência Anual. Converteu-se, como

tantos outros, pela pregação de João Wesley. Estudou em Oxford e numa escola de medicina

de Londres, por onde se diplomou médico. Seu pai irou-se muito quando ele se converteu e

aderiu ao movimento metodista, ameaçando deserdá-lo se insistisse em permanecer unido a

esse grupo de "fanáticos". John King desistiu e o pai cumpriu a palavra deserdando-o. Mas

ele não se deixou vencer pelo desalento e foi adiante saindo fortalecido da prova. Agora

estava convencido, mais do que nunca, de que Deus o chamava a pregar.

O nome de John King aparece na lista nos quatro pregadores nomeados para a

América no ano de 1770, pela Conferência Anual da Inglaterra, embora apenas dois o fossem

oficialmente em 1769. King, como Williams, veio por sua própria conta, provavelmente

com o consentimento pessoal de Wesley. Chegou à América em 1769, pouco depois de

Boardman e Pilmoor, e se apresentou imediatamente depois de chegar. Mas como não trazia

nenhuma credencial oficial, Pilmoor o rejeitou com desdém. O jovem, sem embargo, não

perdeu seus brios e pregou mesmo sem permissão, pois nele clamava o grito do Apóstolo: "Ai

de mim se não pregar o Evangelho!"

Foi ao cemitério, e dos sepulcros pregou aos pobres seu primeiro sermão na América.

Os que o ouviram suplicaram a Pilmoor que lhe concedesse permissão para pregar perante a

sociedade metodista. Por fim lhe concederam licença de pregador e foi para Wilmington e Delaware

anunciar a Palavra, passando daí a Maryland onde Strawbridge. o recebeu jubilosamente.

Parece que ele foi o primeiro pregador itinerante que chegou à cidade de Baltimore

(era apenas um pregador local, embora viajasse muito) e pregou seu primeiro sermão na esquina

de uma rua, em pé sobre a bigorna de um ferreiro, e o segundo noutra esquina sobre uma mesa.

O reitor da Igreja Anglicana de São Paulo convidou-o a pregar, mas não voltaria a fazê-lo, pois,

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138

segundo o testemunho de alguém que o ouviu, "fez voar o pó das velhas almofadas de veludo".

Até 1777 seu nome aparece na lista de pregadores itinerantes juntamente com os

demais, e depois desaparece. Enquanto esteve na lista, foi nomeado para circuitos nas regiões

de Nova Jersey, Virgínia, Nova Iorque e Carolina do Norte. Sua itinerância cessou nesse ano

porque se casou. Comprou casa em Louísburgo, na Carolina do Norte, onde exerceu a

medicina, continuando, sem embargo, na categoria de pregador local, até à morte, em 1795.

Embora nunca chegasse a receber ordens eclesiásticas e sempre fosse, na

verdade, pregador leigo itinerante, dois de seus filhos, chamados João Wesley e

Guilherme Fletcher, chegaram a ser pregadores metodistas ordenados. Os outros quatro filhos

que teve foram todos membros da Igreja.

O nome de John King será sempre lembrado como um dos pioneiros metodista da

América do Norte e conservado merecidamente em seu rol de honra. Como Asbury,

Williams e Pempster, John King foi um dos quatro pregadores metodistas chegados da

Inglaterra, que durante a revolução da independência resolveram ficar para trabalhar e

morrer ali. Morreu em New Berne, Virgínia, durante uma visita que fizera ali, mas foi

sepultado no distrito de Wake, em Carolina do Norte, onde vivia desde 1789.

Ser-nos-ia agradável falar de outros leigos da mesma categoria, que foram

"ponta de lança" no estabelecimento da obra metodista em muitos outros lugares da terra como

em Antigua, Nova Escócia, Canadá e África. Mas estas páginas já ultrapassam o limite que

nos propusemos e teremos de concluir aqui nossa lista, que nos dá uma idéia muita pálida da

legião imensa de homens e mulheres desse quilate, e cujo número sobrepujou em muito

a dos que saíram a pregar com ordens eclesiásticas. A maioria deles trabalhou heróica e

nobremente no anonimato; a história registra mui poucos de seus nomes. Somente Deus

sabe quantos foram e quanto trabalho realizaram impelidos pelo seu Espírito. Por certo ser

lembrado pelos homens tem valor muito relativo. O importante será que seus nomes e os

nossos estejam na memória de Deus e registrados para sempre no Livro da Vida.

NOTAS:

(1)

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139

C A P Í T U L O D U O D É C I M O

CINTILAÇÕES

INEXTINGUÍVEIS

"Não anelamos morar em túmulos,

Nem nas escuras celas monásticas,

Relegados por votos e barrotes;

A todos, livremente, nos oferecemos,

Constrangidos pelo amor de Jesus,

A viver quais servos da humanidade."

Carlos Wesley

Provavelmente haja aqueles que, depois de haver lido as páginas que antecedem,

exclamem: "Mas naqueles tempos havia gigantes na terra!" De que eles foram gigantes na

ordem moral e espiritual, não há dúvida; duvidamos, isso sim, é de que aquela estirpe de

gente só pudesse existir "naqueles tempos".

Se analisássemos intimamente a vida, o ser, as possibilidades e o meio ambiente

em que atuaram, além de outros pormenores, descobriríamos que eram homens e

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mulheres de carne e osso como nós, que viveram, sem dúvida alguma, em épocas e

circunstâncias muito menos favoráveis que as nossas. O Deus que eles adoraram e por quem

viveram e morreram é o mesmo Deus. E o Salvador, de quem receberam redenção e graça, é

todavia o mesmo, no dizer do escritor da carta aos Hebreus, "ontem, hoje e para sempre".

O principal instrumento de inspiração e trabalho é ainda o mesmo: as Sagradas

Escrituras. O povo, no meio do qual vivemos e atuamos, afastada a aparência exterior e retirado

o verniz de uma civilização agraciada com os avanços técnicos da ciência, é o mesmo povo

que enfrenta, cada dia, vida e morte, tristezas e alegrias, paixões e esperanças,

desilusões e sonhos, sede de integração e eternidade, e inquietude por segurança e

estabilidade.

Esses personagens que passamos em revista não eram todos eles sábios, não

eram todos eles ignorantes. Alguns, e por certo a maioria dos líderes, receberam a melhor

instrução possível da época: pisaram os átrios universitários; quase todos eles receberam

honrarias; foram oradores de grande talento; ombrearam-se com os grandes e seus nomes

ficaram registrados na história entre os que alcançaram mérito diante dos homens e graça

diante de Deus.

Outros foram humildes, no que se refere a letras humanas, e às vezes completamente

indoutos (de pouco saber, ou melhor, de baixa escolaridade), da mesma linhagem de que faziam

parte os pescadores do Mar da Galiléia, que acompanharam a Jesus nos prístinos (antigos)

dias do Evangelho. Não poucos deles vieram das camadas mais humildes da sociedade,

onde as luzes do intelecto eram escassas, por causa das dificuldades em ganhar o pão

de cada dia e a preocupação constante pela falta das coisas necessárias a uma vida

normal e decente. Passamos por toda a gama das possibilidades intelectuais, desde o que

está no pináculo (auge) da sabedoria humana, até aquele que está imerso na mais deprimente

ignorância. Sem embargo, vemos que todos eles receberam num dado momento através de

alguma contingência inesperada, ou por uma busca porfiada e agonizante, a luz que ilumina a

alma e que a faz ascender (subir) aos píncaros (cume) das melhores alturas e arranca do

lodo os que caminham por vales de sombra e miséria.

Tampouco foram o que foram por pertencerem, pelo que vimos, a uma só classe,

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141

a classe dos privilegiados ou dos desprotegidos. Em nossa "Estranha Estirpe de Audazes"

encontramos teólogos, nobres, fazendeiros, médicos, advogados, artesãos, soldados,

agricultores, carpinteiros, pedreiros, professores, donas de casa e criados, todos eles passando

ante nossos olhos possuídos por uma mesma e profunda paixão, indo em busca de um mesmo

alvo e lutando no mesmo afã (entusiasmo) de superação e abnegação para encontrar dentro de

sua vocação comum que o que vale — porque as diferenças humanas nada são — é o que

levamos dentro de nós, essa decisão de sintonizar nosso eu, pequeno e insignificante, com o

grande Eu do universo.

Também não foram o que foram por pertencerem a uma determinada escola

teológica. Alguns que eram teólogos deixaram sua teologia formal e tradicional. Outros

nunca souberam dela, nem se preocuparam por adquiri-la de maneira sistemática, nem

vieram a constituir uma nova escola teológica. Suas doutrinas e suas crenças são comuns a

um grupo e outro de cristãos. Nada descobriremos de novo ou de original ou superior ao que

já se sabia no terreno dos conhecimentos das coisas de Deus. Somente encareceram (tornaram

caro, deram grande destaque e valor) certos conceitos teológicos e bíblicos desusados,

esquecidos ou desprezados por conveniências do momento, ou para "cobrir uma multidão de

pecados", ou por inércia para não sair do status quo (o estado em que se achava

anteriormente certa questão), ou por temor ao que se pudesse dizer, ou por não

ofender os que viviam em libertinagem. O movimento metodista nunca se distinguiu por sua

teologia. Como já dissemos no início, não tem sido uma nova doutrina, mas uma nova vida, um

esforço por encarar o espírito de Cristo, que no dizer do apóstolo Paulo, é "ter o mesmo

sentimento que houve também em Cristo Jesus".

Tampouco o foram por querer formar uma denominação com governo eclesiástico

mais moderno ou um ministério diferente. A forma denominacional que o movimento tomaria

mais tarde, por diversos fatores (alguns dos quais foram mencionados) foi tão só acidental e de

valor secundário. O movimento encontrou, desde o início, a hostilidade e animosidade dos

eclesiásticos responsáveis (líderes da Igreja Anglicana) e, assim, em lugar de operar no seio da

Igreja, teve de, com raras exceções, impor-se à margem dela, como acontecera com os outros

movimentos de reforma no curso da História.

Foi um movimento do Espírito pelo espírito, da graça divina operando nos

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recipientes sensíveis a seu chamado, da paixão de Cristo manifestando-se em seres

conscientes da grandeza e permanência das coisas espirituais.

Na verdade João Wesley organizou sociedades, mas essas sociedades não eram

igrejas, e deviam ter suas reuniões em períodos diferentes das horas em que as igrejas

celebravam os cultos. Os ministros que pertenciam a outras igrejas e os chamados

"pregadores irregulares", itinerantes ou locais, eram, na mente de João Wesley, tão só

coadjutores de um ministério regular.

Whitefield, por sua vez, nunca se preocupou com reunir de alguma forma aqueles

que alcançou com sua palavra. Foram outros, juntamente com a Condessa de Huntingdon,

que trataram de dar forma de permanência a seus labores dentro da idiossincrasia (maneira de

ver e crer) predestinacionista (que Deus, desde o ventre da mãe, já predestinava quem seria

salvo e quem iria para a perdição eterna), e só ante a negativa dos clérigos da Igreja Oficial

(Anglicana) de incorporar o movimento dentro dela. Infelizmente o movimento desembocou em

denominacionismo (uma nova denominação) e por isto, talvez, haja perdido o empuxo (força

que a lançava pra frente), o entusiasmo, o frescor e a independência que tinha em seus

primitivos tempos.

Que foi, então, que contribuiu para que as cintilações dessas personalidades

permanecessem com reverberações inextinguíveis? Trataremos de analisar, tão brevemente

quanto nos seja possível, esses elementos que transcendem estados, classes, posições,

conhecimentos e tradições.

1. Em primeiro lugar estava a convicção firme de que a pessoa tinha de

experimentar por si mesma o perdão e o amor de Deus em Cristo. Não era suficiente que a

Bíblia e a Igreja o dissessem. Isso não dava segurança a ninguém. Cada pessoa, presa de

angústia e incerteza, devia satisfazer por si mesma a sede de estar em comunhão com o

Deus de graça e misericórdia, devia senti-lo sem temê-lo e adorá-lo sem tremer ante sua

presença, sabendo que o eu, "meu eu", tal qual alguém o sente ser, foi perdoado e refeito por

Deus, arrancado do abismo da morte para viver ante a esperança de um amanhã de

inextinguível ventura junto de Deus. Ainda no caso da eleição (o chamado de Deus para uma

nova vida em Jesus, a vocação para a tarefa missionária de testemunhar Cristo aos demais), o

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143

seu recipiente (a pessoa chamada e vocacionada por Deus) deve ter, de alguma maneira,

consciência de que Deus o elegeu e de que por essa eleição se converte em vaso digno da

graça. Não que deva fazer algo capaz de pagar a graça de Deus, posto que não tem preço,

senão corresponder à graça com uma vida que seja para "sua glória".

2. Seguia-se a isso a convicção de que, para permanecer no estado de salvação e

graça, era necessário que a direção constante do Espírito Santo se manifestasse na vida do

indivíduo e da Igreja. Sua direção é muito mais necessária do que a tradição e o

costume, porque se pode seguir uma e outra insensivelmente, sem que o coração e a

consciência nada tenham a dizer e a sentir. O Espírito Santo é a ação contínua de Deus na vida

redimida do indivíduo e da Igreja. É a de Cristo, quando tem de estar unido à videira, para

que produza fruto e diz: "Sem mim nada podeis fazer". É' a do ramo que fruto

permanente e abundante. O testemunho e a presença do Espírito Santo não são apenas

necessários, senão imprescindíveis, o "sine qua nom" (a condição “sem a qual” não há vida

cristã) na vida do crente.

3. Existia a convicção, pelo menos entre a maioria desse movimento, de que

cada pessoa está natural e inevitavelmente exposta à ação salvadora de Deus; isto é, que

ninguém está excluído da possibilidade de converter-se de filho das trevas em filho da luz. De

pecador a filho de Deus. Esta foi a "redemocratização" do Evangelho, o apelo soberano nessa

extraordinária cruzada que buscava resgatar os mais destituídos, ignorantes e

abandonados à margem dos que se consideravam os "eleitos e privilegiados". A misericórdia

divina não tem limites ou favoritismos de qualquer espécie, ou regiões onde se manifeste

mais ou menos. Se João Wesley podia dizer "O mundo é a minha paróquia!", foi porque

descobriu que o mundo inteiro era paróquia de Deus, assim como já o dissera Cristo aos

fariseus de seus dias, quando lhes contou as parábolas da ovelha perdida, da moeda perdia

e do filho pródigo. Que diremos, então, daqueles que dentro do movimento criam (acreditavam)

na eleição divina? Já dissemos como Whitefield, em teologia, pensava como

predestinacionista, mas em sua obra de evangelização atuava como arminiano. Também

era crença sua e daqueles que pensavam como ele, ser mister (tarefa) despertar a

consciência dos eleitos, para que pudessem aproveitar a largura e a profundidade da graça de

Deus ainda na Terra. Daí também, a urgência da pregação daqueles que criam na eleição

divina.

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4. As Sagradas Escrituras eram, primeiramente, a única base e instrumento para a

salvação, e em seguida seu uso se relaciona com o cultivo da piedade cristã. Em toda parte este

despertar religioso era sempre seguido de um interesse imediato por um conhecimento mais

cabal das Sagradas Escrituras quanto a seu caráter devocional e instrutivo. Daí que se fizesse

finca-pé (empenho) na urgência de sua leitura, exposição e divulgação. As pregações, os

cultos familiares, as reuniões de oração e de aprofundamento espiritual sempre se escudavam

(amparavam) no testemunho das Escrituras e em sua autoridade final na determinação da

conduta. Essa busca e exata compreensão das Escrituras dependiam da iluminação do Espírito

Santo, que, segundo seu entender, era o único instrumento capaz de abrir o segredo da

sabedoria do texto sagrado. Os pregadores itinerantes saíam com seus alforjes (sacolas,

bolsas, mochilas) repletos de Bíblias, porções da mesma e de livros que pudessem ilustrar e

aplicar seu conteúdo.

Havia em todos eles a necessidade de uma relação mais íntima com Deus e a

convicção de que tinham de arrepender-se cabalmente de seu passado. Essa convicção

levava a alguns deles a um estado de profunda tristeza e agonia por sentir-se em uma

condição de absoluta insuficiência e rebeldia. Mas quando esse estado dava lugar à

convicção de que o perdão e o amor de Deus os haviam alcançado, de acordo com a

mensagem das Sagradas Escrituras, então a angústia e o desespero se transformavam em

alegria e jubiloso entusiasmo, que transcendiam, segundo os de fora (do movimento

metodista), os limites da "razão e da decência". Isto, porém, não deve estranhar a ninguém,

posto que também no dia de Pentecoste os discípulos foram tomados por gente "cheia de

mosto " (embriagada) os que receberam a bênção do Espírito Santo e se espalharam

jubilosos pelas ruas de Jerusalém, dando assim expansão a sua alegria espiritual. Esse

estado de júbilo e entusiasmo era para eles revelador da verdadeira natureza da religião

cristã, a que segundo o apóstolo Paulo deve manifestar-se em "amor, gozo, paz, tolerância,

benignidade, bondade, fé, mansidão, temperança". O Apóstolo também coloca o gozo

como uma das primeiras manifestações da presença do Espírito na vida do crente.

6. Além disso, tinham o sentido da urgente responsabilidade por alcançar a outros,

num esforço às vezes heróico e sempre pertinaz. Tinham a missão de colocar as pessoas

sob a ação da graça divina e de despertar o apetite pelas "coisas que não perecem". Não

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que eles agora se sentissem capazes, por si mesmos, de operar a salvação de alguém, —

mas por gratidão e reconhecimento se colocavam às ordens de Deus, para que os usasse

como instrumentos dóceis e ef icientes na salvação dos outros, para que estes

experimentassem o mesmo sentir de júbilo espiritual que eles haviam experimentado e

gozavam depois de seu encontro pessoal com Cristo e seu Evangelho!" , o segredo do poder

que os empuxava ainda quando iletrados e destituídos de bens materiais, que brotava

irresistível, envolvente, impetuoso, inevitável e jubiloso de cada alma redimida.

7. Nesse afã de apelo e propagação do Evangelho não tinham limites o sacrifício e a

ousadia. Agora a vida que possuíam, redimida no amor sacrificial de Deus em Cristo, já não

lhes pertencia, porque era propriedade de Deus. Teria sido pecado imperdoável alguém

conservá-la para si mesmo e gozá-la em segredo, a sós na presença de Deus. Agora tinham de

enfrentar, assim como Cristo o fizera, todas as dificuldades e, se necessário, até

mesmo a cruz, a fim de que o Evangelho não fosse detido e pudesse gozar de livre curso

para o coração de cada ser humano. A salvação não era, portanto, algo que alguém

tivesse o direito de conservar avaramente (de modo egoísta, gananciosamente) para si.

Quando alguém está de posse da salvação não pode fazer outra coisa senão comparti-la com

outros para que aumente o número dos herdeiros do reino de Deus. Dessa maneira, as

dificuldades, as barreiras e as perseguições se transformavam em urgente estímulo para

prosseguir na luta e alcançar em Cristo a vitória. Se alguém chegava a perder a vida na luta, em

verdade não a perdia inutilmente, pois mais valia perdê-la no combate que conservá-la na

covardia.

8. Havia neles um agudo sentido de mordomia. João Wesley escrevia, relatando seu

último recebimento registrado em seu livro pessoal de contas, e pouco antes de terminar sua

carreira, o seguinte:

"1790. Por mais de 86 anos registrei estritamente minhas contas. Não o

tentarei fazer mais daqui para o diante, sentindo-me satisfeito com a firme

convicção de que economizei tudo o que pude e dei tudo o que pude — e isto é tudo

o que tive." (1)

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Este senso de responsabilidade na mordomia dos bens esteve mui presente no ânimo de

todos, como, sem dúvida, já teremos percebido, tanto no daquele que possuía muito como

no daquele que possuía pouco, e alguns deles tiveram muito pouco! Sentiam que a

responsabilidade de manter a obra e expandi-la não era obrigação da "Igreja" no sentido

abstrato, senão de cada um deles, de tal maneira que poderíamos interpretar sua atitude da

seguinte maneira: "O que sou, o que tenho: tempo, dinheiro, talento, tudo é do Senhor e para

ser usado para sua glór ia e a salvação de meu próximo" . Quando existe este

desprendimento das coisas materiais com o fim de promover a Causa de Deus, esta tem

necessariamente de seguir adiante e prosperar.

9. Havia, também a convicção de que a obra de Deus tinha de ser feita

indistintamente por todos aqueles que haviam sido redimidos e batizados em Cristo: pelos

que haviam sido ordenados e pelos que não o haviam sido (os que nesse livro chamados de

“Os irregulares”, justamente por fazerem sem ordenação eclesiástica um trabalho que

naquele tempo exigia-se a tal ordenação). E nisto, os que denominamos "O Bando dos

Irregulares" tiveram muito que ver. Havemos de recordar-nos de que em mais de uma vez eles

forçaram o ministério regular a admiti-los a seu lado como coadjutores na proclamação das

verdades divinas, derrubando o muro de separação que se levantava entre clérigos e leigos.

Restabeleceram a prática comum dos primeiros dias da era cristã, quando a proclamação do

Evangelho não era privilégio de poucos, mas obrigação de todos. E esse testemunho havia de

ser dado ali onde alguém se encontrasse, com muitas ou poucas capacidades e talentos que

tivesse, com ou sem instrução, entre as próprias amizades e com os meios à disposição,

tratando de melhorar sempre o que sabia e aperfeiçoar-se incessantemente no estado espiritual,

afanando-se (buscando com insistência) por superar-se dia após dia, na ação " a tempo e fora

de tempo", como se na fidelidade de cada um, de seu progresso, de sua fé e de suas orações

dependesse a vinda do Reino de Deus.

Provavelmente com a nova consciência ecumênica e missionária que se vai

despertando na Igreja, não existe nada mais urgente — ante um mundo hostil, profundamente

pagão e sacudido por convulsões tremendas — que a restauração, em grande escala, do

"sacerdócio universal dos crentes". Não devemos nos esquecer de que o elemento leigo dentro

da Igreja constitui mais de noventa e nove por cento do total e que é impossível que o reduzido

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número de homens e mulheres ordenados tome sobre si a responsabilidade da salvação do

mundo. Urge que o "Bando dos Irregulares" tome forma de exército e invada o mundo,

levantando bem alto o estandarte glorioso da salvação em Cristo.

10. Finalmente, embora isto já esteja implícito no que dissemos, essa "Estranha

Estirpe" era heróica e audaz porque sabia enfrentar resolutamente o vitupério (insulto, injúria)

dos homens. Num mundo como o nosso, cheio de sofismas (argumento falso usado para

enganar, para induzir o outro ao erro) e de orgulho humanista, avalentados (encorajados,

animados) pelas descobertas surpreendentes da ciência e pelas realizações de técnica, são

muitos os que acham que a religião e Deus já não têm lugar, que o Evangelho é uma doutrina

anacrônica (atrasada, superada, própria dos tempos antigos)e superstição ridícula. Sair à arena

(às ruas) para pregar o Evangelho de um que morreu nos braços da cruz, é ainda hoje loucura

e escândalo.

Os homens e mulheres em cuja companhia andamos através das páginas desse

livro tiveram de suportar o escárnio, o escândalo, a indiferença e a oposição brutal de

seu tempo e de seus contemporâneos. Não obstante (contudo) não se

amedrontaram, antes fizeram frente a tudo quanto se lhes opunha de uma forma ou de outra,

transformando o vitupério (injúria, insulto e até perseguição) dos homens em meio

(instrumento) para alcançar a glória, de Deus, seguindo nas pisadas do grande missionário

Paulo de Tarso, o primeiro e maior de todos, que do fundo de um cárcere dava o mais

formidável testemunho de sua fortaleza de espírito e confiança na vitória final, ao dizer:

"Tudo posso naquele que me fortalece".

Somente com homens e mulheres da têmpera (índole, inteireza de caráter) dessa

"Estranha Estirpe de Audazes" as portas do Inferno não prevalecerão contra a Igreja.

NOTAS:

(1) Último recebimento do livro pessoal de contas de João Wesley, citado em “A New

History of Methodism”, Vol. 1, Pág. 232.