apostila de filosofia - projeto ufrj

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PROJETO FILOSOFIA UFRJ 2008-2009

Textos e Questes

Prof. Gustavo Bertoche

E-mail do professor: gusbertoche @ gmail.com

Blog do professor: www.filosofia.notlong.com

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PLANEJAMENTO

Unidade 1 O que filosofia?

1.1

Unidade 2 Pensamento mtico e pensamento filosfico; filosofia antiga 1.2, 1.3, 1.4, 4.1 Unidade 3 Lgica da argumentao 2.1, 2.2 3.1, 3.2, 3.3

Unidade 4 Racionalismo, empirismo e ceticismo Unidade 5 Filosofia Poltica 5.5 5.1, 5.3

Unidade 6 Liberdade e determinismo Unidade 7 tica e moral 5.2, 5.4

Unidade 8 Esttica e filosofia da arte 4.2, 4.3

PROGRAMA UFRJ O objetivo da prova ser, basicamente, o de avaliar a capacidade do candidato em compreender textos que apresentem a complexidade de um fragmento filosfico e de expressar de modo argumentativo e claro. As questes sero voltadas para a interpretao de textos filosficos, de modo que os vestibulandos possam demonstrar capacidade de raciocnio lgico, bem como evidenciar alguma familiaridade com o vocabulrio filosfico.

1. Conceituao de Filosofia: 1.1 - A gnese e o conceito de Filosofia. 1.2 - Mito e Filosofia. 1.3 Discurso narrativo, discurso potico e discurso predicativo. 1.4 - A controvrsia entre filosofia e sofstica. 2. Noes de Lgica: 2.1 - Distino entre premissas e concluso. 2.2 - Distino entre raciocnio dedutivo e indutivo. 3. O problema do conhecimento na Filosofia: 3.1 - racionalismo, 3.2 - empirismo e 3.3 - ceticismo. 4. Esttica: 4.1 - A distino grega entre filosofia e arte (dialtica e retrica). 4.2 - O problema da criao contraposto ao do conhecimento. 4.3 - A questo da problemtica universalidade do belo. 5. Filosofia Prtica: 5.1 tica: Liberdade e determinismo. 5.2 - A questo do bem e do mal. 5.3 - Vontade e responsabilidade. 5.4 - O problema do dever e o princpio da felicidade. 5.5 - Poltica: Estado, sociedade e poder. Cidadania. Regimes e formas de governo. Pblico e Privado.

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Unidade 1 O que filosofia?Contedo: A palavra filosofia compe-se de dois termos gregos: philia, que significa amor, e sophia, que significa sabedoria. Portanto, etimologicamente filosofia significa amor sabedoria. Contudo, isso no explica muita coisa. O que, de fato, a filosofia? A filosofia uma atividade que tem um objetivo determinado. O objetivo da filosofia resolver problemas filosficos por meio da argumentao. Problemas filosficos so os problemas a priori (ou seja: independentes da experincia) e conceituais (ou seja: referemse aos conceitos que utilizamos em nosso dia a dia e nas cincias). Diferentemente dos problemas cientficos, que so resolvidos por meio da experincia, os problemas filosficos somente podem ser resolvidos pelo debate, pelo dilogo, pela controvrsia: o mtodo da filosofia argumentativo. A filosofia tem diversos campos de investigao. Entre eles esto: - tica: o estudo terico da moral e das relaes entre os indivduos. Note-se que moral refere-se ao e prtica da convivncia entre as pessoas; tica o estudo terico da moral. - Esttica: o estudo da beleza, principalmente na arte. Tambm chamada filosofia da arte . - Epistemologia: a teoria do conhecimento e da cincia. Quando trata do conhecimento cientfico, tambm chamada filosofia da cincia . - Lgica: o estudo das formas corretas do raciocnio. - Metafsica: o estudo dos fundamentos da realidade, dos pressupostos da linguagem e dos princpios utilizados nas cincias. Tambm chamada ontologia . - Filosofia da mente: o estudo filosfico sobre a mente humana e sobre a inteligncia artificial. Essa parte da filosofia bastante ligada s neurocincias e computao. - Filosofia da linguagem: o estudo filosfico sobre o modo como a comunicao ocorre. A filosofia da linguagem muitas vezes associada lgica e/ou filosofia da mente. - Filosofia poltica e filosofia do direito: o estudo terico das formas de organizao social, das leis e dos regimes polticos. importante lembrar que esses campos no so estanques: possvel mistur-los entre si e junt-los s mais diversas cincias ou tcnicas, como o Direito ou a medicina. Para que serve, ento, a filosofia? A resposta mais imediata que a filosofia serve para compreender melhor a realidade em que voc est inserido, fazendo com que voc fique mais atento a respeito de todas as idias que as pessoas tm e eventualmente tentam impor-lhe; a filosofia ajuda a identificar rapidamente essas idias, e permite escolher se voc quer realmente adot-las ou no. A filosofia aumenta a sua capacidade de controlar o contedo da sua mente. Alm disso, a filosofia desenvolve a sua capacidade argumentativa. Os filsofos so famosos por sua capacidade de

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convencimento; estudando filosofia, voc vai notar que o modo como voc usa seus argumentos deve mudar: sua linguagem deve ficar mais eficiente. Isso tambm tem reflexos nas suas outras disciplinas escolares. Naturalmente, voc vai melhorar seu desempenho nas redaes e nas avaliaes dissertativas. Em terceiro lugar, a filosofia um conhecimento importantssimo para quem deseja, no futuro, seguir qualquer carreira acadmica. praticamente impossvel fazer um bom mestrado ou doutorado sem conhecimentos bsicos, pelo menos, de filosofia.

TEXTO DE APOIO:

O QUE A FILOSOFIA?

Quando a filosofia apresentada no ensino mdio, a primeira dificuldade que os alunos tm relativa compreenso do que a filosofia. Afinal, muitos de vocs, estudantes secundaristas, nunca estudaram a disciplina anteriormente, e poucos j leram algum livro de iniciao filosofia. Um bom modo de introduzir a filosofia na sala de aula demarc-la frente a outras disciplinas. importante que se perceba, logo de incio, as particularidades da filosofia, e em que aspectos a filosofia diferente das outras matrias. A partir da, possvel compreender o que a filosofia. Como comear? Em primeiro lugar, definindo um ponto de partida em comum com as outras disciplinas. Todas as disciplinas tm um objeto e um mtodo. O objeto da biologia, por exemplo, o conjunto de fenmenos da vida. O objeto da fsica o conjunto de fenmenos da natureza, de fenmenos do universo. O objeto da histria o conjunto de registros do homem no tempo passado que se apresentam em nosso tempo. Todas as disciplinas tm, tambm, um mtodo. O mtodo da biologia e da fsica o mtodo experimental, ou o mtodo hipottico-dedutivo. O mtodo da histria a anlise documental, ou a anlise arqueolgica, ou o estudo dos registros de vrias espcies que podem ser encontrados no momento em que se faz a histria. A filosofia tambm tem um objeto e um mtodo. Quais sero eles? Procuremos um caso de uma cincia a partir do qual podemos demonstrar de que tipo o objeto filosfico. Peguemos, por exemplo, uma lei da fsica. A segunda lei de Newton diz que a fora aplicada por um corpo igual sua massa multiplicada pela sua acelerao , ou F = m a. A acelerao a razo entre uma medida de espao, que pode ser o metro, e uma medida de tempo, que pode ser o segundo; a acelerao pode ser medida, portanto, em m/s . A frmula da segunda lei de Newton, assim como o que significa a acelerao, so coisas que os alunos do ensino mdio esto cansados de saber. So assuntos da fsica. Voc, aluno, usa os metros e os segundos sem pestanejar. Os metros e os segundos no so problemticos na fsica. So pressupostos. O espao e o tempo so utilizados na fsica acriticamente. O professor de fsica jamais perguntar numa prova: O que espao? , O que tempo? . Esses problemas j no pertencem fsica. So problemas filosficos. Os problemas filosficos so relativos aos conceitos utilizados por ns, noes que geralmente passam desapercebidas, a respeito das quais no nos preocupamos, idias que no analisamos. Portanto, o objeto da filosofia o conceito, a noo, a idia. Quer sejam conceitos, noes e idias do nosso dia-adia, quer sejam parte de domnios especficos do conhecimento. O mtodo da filosofia tambm no semelhante ao mtodo das cincias fsicas ou das cincias humanas. O trabalho

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sobre os conceitos acontece por meio do dilogo, da polmica, da discusso seja com filsofos amigos, por meio de conversas pessoais ou de dilogos de artigos, seja com a obra textual de filsofos que no conhecemos pessoalmente. Ora, se o objeto da filosofia o conceito e se o mtodo da filosofia argumentativo, ento a filosofia pode alcanar a verdade? No parece que cada um ter sua verdade pessoal? Ou seja: na filosofia, tudo relativo? Numa conversa entre um botafoguense e um vascano sobre futebol, no se pode afirmar que um dos dois esteja certo. Cada um defender seu time. Cada um acreditar que seu time melhor, ou mais vibrante, ou mais bacana. A filosofia no pode fazer nada em relao a discusses como essa. Contudo, em relao a problemas verdadeiramente filosficos, a situao no a mesma. Vamos supor que estamos diante de dois filsofos: um, ateu; o outro, testa. O ateu procura argumentar que Deus no existe, o testa procura argumentar que Deus existe. A princpio, poderamos dizer: cada um com sua verdade. Se um acredita que Deus existe, ento para ele Deus existe; se o outro acredita que no, ento para ele Deus no existe, e temos a soluo para que eles no briguem. Olhando mais de perto, essa soluo no boa. Alis, pssima, porque intil. No conduz investigao, mas ao preconceito e ao obscurantismo testa ou cegueira atesta. Objetivamente: ou Deus existe, ou Deus no existe. Deus no pode existir e no existir ao mesmo tempo. Um dos filsofos est certo, o outro est errado. Para descobrir quem est certo e quem est errado, os filsofos comparam seus argumentos. A posio que apresentar os melhores argumentos considerada a melhor posio naquele momento. Para que isso funcione, evidentemente, necessrio que ambos os filsofos tenham uma atitude que se chama honestidade intelectual. A honestidade intelectual, entre outras coisas, exige que, quando uma discusso acontece, ambas as partes estejam dispostas tanto a convencer quanto a ser convencidas. O filsofo srio aceita a possibilidade de rejeitar sua posio original e aceitar uma posio diferente, se seus argumentos forem piores do que os do outro. Novamente surge outro problema: parece que ento a filosofia uma atividade sem objetivo. Se hoje o filsofo aceita um argumento que prova que Deus existe (e, que, portanto, deve levar a existncia de Deus a srio), mas amanh pode ser convencido, por um argumento melhor, de que estava enganado, e depois de amanh pode refutar o argumento contrrio existncia de Deus, ento parece que a filosofia no est buscando a verdade, mas apenas uma brincadeira literria ou um jogo lgico e que, portanto, melhor nem se preocupar com esses assuntos filosficos. A filosofia, no entanto, no uma atividade que visa apenas argumentar por argumentar, nem de argumentar para vencer o debate. A argumentao, na filosofia, tem um sentido muito claro: chegar verdade. Chegar verdade como, se o que considerado verdadeiro hoje pode ser considerado falso amanh? A filosofia tem o objetivo de alcanar a verdade acerca das noes, dos conceitos e das idias mais fundamentais. Mas a verdade no , necessariamente, absoluta. A verdade provisria. A verdade a melhor resposta que se tem atualmente. Isso no faz a verdade ser relativa; a verdade uma conseqncia necessria da melhor argumentao possvel hoje. Por isso, melhor estudar filosofia do que no estudar. Ter a certeza de chegar a uma verdade vlida, ainda que provisria, melhor do que no chegar verdade e viver cheio de opinies frgeis fundamentadas em preconceitos. Viver com uma verdade provisria, aberta discusso, melhor do que viver sem verdade alguma, achando que se tem todas as verdades do mundo. A filosofia no , portanto, mera opinio. No , tambm, qualquer argumentao. a busca pela melhor argumentao, o contrrio da opinio isso quer dizer que o filsofo no uma pessoa cheia de opinies sobre tudo, mas uma pessoa que investiga idias e noes, utilizando uma tcnica (lgica e argumentativa) para estud-las. Por esse motivo importante o estudo da lgica e da tcnica argumentativa. Voc, aluno, deve saber utilizar os argumentos com propriedade na construo de ensaios sobre temas filosficos. Afinal, a primeira funo do estudo da filosofia tornar os estudantes capazes de filosofar com alguma competncia. O ensaio filosfico um texto argumentativo crtico no qual o autor expe um problema filosfico, apresenta sua

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posio, mostra argumentos de posies diferentes e, finalmente, demonstra que a sua posio tem argumentos mais fortes do que as outras. Da se pode compreender a importncia que tem o estudo da histria da filosofia. Para conhecer o desenvolvimento mais atual de um problema filosfico, necessrio saber ao menos um pouco da histria desse problema. Seno, correse o risco da utilizao de um argumento que j foi refutado muitas vezes h muito tempo. Por exemplo: um aluno que esteja argumentando a favor da existncia de Deus, conhecendo um pouco da histria desse problema, no utilizar o argumento ontolgico de Descartes, pois saber que h srias dificuldades nele. Poder utilizar, por outro lado, alguma concepo de Deus apoiada por argumentos mais fortes, com a concepo de Spinoza, ou a concepo de Teilhard de Chardin, ou a de Alvin Plantinga ou alguma outra sabendo, tambm, se proteger dos contra-argumentos com que a sua argumentao pode ser enfraquecida. Por isso a necessidade de estudar a histria da filosofia. Finalmente, a filosofia uma atividade que todos praticam em vrios momentos de todos os dias. A nica diferena entre o leigo e filsofo profissional que este ltimo aprendeu a utilizar uma srie de tcnicas filosficas que tornam o filosofar mais eficiente. Aprender algumas dessas tcnicas a primeira tarefa que um aluno de filosofia quer no ensino mdio, quer na faculdade deve cumprir. Para estudar o objeto da filosofia necessrio um mtodo filosfico, mtodo que conduz ao objetivo de encontrar algumas verdades (ainda que provisrias). Em nossa matria, aprenderemos justamente as ferramentas mais bsicas para que possamos filosofar melhor: a lgica, a tcnica argumentativa crtica e a histria da filosofia. Ao final do ano, vocs no sabero a filosofia : pelo contrrio, descobriro que a filosofia comea pelo filosofar, e que o filosofar apenas um comeo. Gustavo Bertoche Disponvel online em: www.filosofia.notlong.com

EXERCCIOS:

Questo 1 (UFRJ 2008) Filosofia uma palavra de origem grega. Ela constituda pela reunio de duas outras palavras gregas: philia e sophia . O termo grego philia pode ser traduzido por amizade , afeio , amor . J o termo sophia costuma ser traduzido por sabedoria . A partir dessas consideraes: a) indique o significado da palavra filosofia ; b) comente o sentido da atividade que ela designa.

Questo 2 A filosofia diferente da cincia e da matemtica. Ao contrrio da cincia, no assenta em experimentaes nem na observao, mas apenas no pensamento. E ao contrrio da matemtica no tem mtodos formais de prova. A filosofia faz-se colocando questes, argumentando, ensaiando idias e pensando em argumentos possveis contra elas, e procurando saber como funcionam realmente os nossos conceitos. (NAGEL, Thomas. O que a filosofia?) a) A filosofia tem um mtodo que diferente do mtodo das outras disciplinas. Explique o que o mtodo filosfico. b) O objeto da filosofia diferente do objeto das outras disciplinas. Cite trs exemplos de objetos filosficos.

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Questo 3 Uma vez mais, o melhor dar exemplos e apontar algumas das caractersticas mais salientes dos problemas filosficos tpicos. Pensemos, por exemplo, em Deus. Os cristos tm uma dada concepo de Deus, os muulmanos outra e os hindus outra ainda. E h muitas mais, tantas quantas as religies. As religies partem de certas verdades reveladas pelos seus profetas e inscritas nos seus livros sagrados; procuram descobrir a verdadeira natureza de Deus e encontrar o caminho da salvao. Mas nada disso so problemas filosficos . Desidrio Murcho, O carter conceitual da filosofia O texto acima menciona uma abordagem no-filosfica ao problema de Deus. Quais as diferenas entre uma abordagem no-filosfica e uma abordagem filosfica a respeito de algum problema?

Questo 4 (UFMG 2005) ... a filosofia no a revelao feita ao ignorante por quem sabe tudo, mas o dilogo entre iguais que se fazem cmplices em sua mtua submisso fora da razo e no razo da fora. Fernando Savater, As perguntas da vida A partir da leitura desse trecho e de outros conhecimentos sobre o assunto, REDIJA um texto destacando duas caractersticas da atitude filosfica.

Questo 5 Leia o texto abaixo e responda s questes: A filosofia diferente de muitas outras disciplinas porque para estudar filosofia necessrio fazer filosofia. Para ser um historiador de arte, no necessrio pintar; para estudar poesia, no necessrio ser um poeta; e podemos estudar msica sem tocar um instrumento. Contudo, para estudar filosofia necessrio que nos entreguemos argumentao filosfica (argumentar apresentar razes ou indcios que conduzem a uma concluso). No se trata de operar ao nvel dos grandes filsofos do passado; mas quando se estuda filosofia faz-se o mesmo tipo de coisa que eles fizeram. Podemos jogar futebol sem chegar ao nvel do Pel, e podemos obter muita satisfao intelectual filosofando sem a originalidade ou o brilhantismo de Wittgenstein. Mas em ambos os casos ser necessrio desenvolver algumas das competncias usadas pelos grandes praticantes. Essa uma das razes pelas quais a filosofia pode ser uma rea de estudos imensamente compensadora. A palavra "filosofia" deriva do grego "amor da sabedoria". Mas isto no particularmente til para a compreenso do modo como a palavra agora usada. A filosofia um disciplina nuclear relativamente maior parte dos cursos de humanidades. Centra-se em questes abstratas como "Ser que Deus existe?", "Ser o mundo realmente como nos parece que ?", "Como devemos viver?", "O que a arte?", "Teremos uma liberdade de escolha genuna?", "O que a mente?", e assim por diante. Estas questes muito abstratas podem surgir na nossa experincia quotidiana. Algumas pessoas fazem uma caricatura da filosofia como se fosse uma disciplina sem relevncia para a vida, uma disciplina para estudar em casa unicamente por satisfao intelectual, o equivalente acadmico de fazer palavras cruzadas. Mas isto uma representao gravemente errada de grande parte da disciplina. Por exemplo, o caloroso debate sobre se o boxe deve ser proibido s pode responder-se enfrentando questes abstratas importantes. Quais so os limites aceitveis da liberdade individual num pas civilizado? Quais so as justificaes para o paternalismo, para forar as pessoas a comportar-se de uma certa forma para o seu prprio bem? Por outras palavras, este debate no apenas sobre reaes emocionais ao boxe; depende antes de pressupostos filosficos fundamentais (um pressuposto uma afirmao a favor da qual no se avana qualquer argumento; uma afirmao que se aceita para permitir a argumentao). (WARBURTON, Nigel. O que estudar filosofia?)

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a) A filosofia uma atividade realizada por meio da anlise dos conceitos. De que espcie so os conceitos abordados pela filosofia? b) Um conceito abstrato sempre ser objeto da filosofia? Por qu? c) Apresente cinco exemplos de objetos abordados pela filosofia. d) O mtodo da filosofia diferente do mtodo das artes. Explique o motivo. e) A filosofia tem o mesmo objetivo da cincia? Por qu? f) Como possvel decidir entre duas teses filosficas adversrias?

Questo 6 AS COBRAS Verssimo

O problema Deus existe? pode ser abordado por meio da religio ou por meio da filosofia. Qual a diferena entre a abordagem religiosa e a abordagem filosfica a algum problema?

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Unidade 2 Pensamento mtico e pensamento filosfico. Caractersticas da filosofia antiga. Os pr-socrticos.Contedo: Antes do sculo VII a.C., na Grcia, no havia filosofia, no havia uma tentativa de conhecer a realidade de modo racional e sistemtico. O pensamento grego era mtico: tudo era explicado por meio da ao dos deuses. Por volta do sculo VII e VI a.C., surgiram em colnias gregas na sia Menor alguns pensadores que colocaram em questo, pela primeira vez, esse pensamento mtico: eram os primeiros filsofos, chamados pr-socrticos , pois vieram antes de Scrates (que foi muito importante para a filosofia, como veremos nas prximas unidades). A filosofia, portanto, nasce contra a mitologia, num esforo de encontrar o conhecimento verdadeiro a respeito dos fenmenos naturais e humanos. Caractersticas da filosofia da Grcia Antiga: - Naturalismo: para os gregos, o ser humano era um ser natural, assim como todas as outras coisas. At mesmo os deuses eram seres naturais. Nada havia no Cosmos que no fizesse parte da natureza. Devido a isso, os gregos tinham a tendncia a crer no determinismo: j que tudo era natural, tudo era determinado pela natureza. - Racionalismo: sendo o homem um ser natural, tambm, conseqentemente, um animal. A diferena entre o homem e os outros animais que o homem um animal racional. O uso livre da razo extremamente valiosa para os gregos, a ponto de Aristteles considerar que nele consiste a felicidade ltima do homem. - Valorizao da vida pblica: a maioria dos pensadores gregos consideravam que o ser humano somente poderia se realizar em uma vida social completa, tendo amigos, atuando ativamente na poltica, decidindo em conjunto com outros homens os destinos da cidade. A vida poltica seria um aspecto natural da vida dos homens. Aristteles chegava a dizer que o ser humano que, por sua prpria vontade, deixa a plis e vai morar sozinho, como um eremita, ou menos que um homem (pois no consegue viver em comunidade) ou mais que um homem (pois no precisa dos outros e basta-se a si mesmo), mas no um homem.

Pr-Socrticos: Os primeiros filsofos. Os problemas abordados pelos pr-socrticos eram os referentes natureza, phisis, ao cosmo: como surgiu o universo, quais seus componentes, qual a essncia da realidade... Os pr-socrticos, contudo, no se preocupavam com questes conceituais nem com questes relacionadas vida humana em sociedade. Por este motivo, no so considerados filsofos no sentido estrito, mas pensadores que abriram caminho para os filsofos que investigavam os conceitos e o ser humano ou seja, para os filsofos como Scrates (da o nome pr-socrticos). Sofistas: Pensadores independentes gregos que, no sculo V a.C., viajavam de plis em plis ensinando cincias e retrica a jovens abastados. Tradicionalmente, os sofistas so considerados relativistas, pois consideram que a verdade relativa fora da argumentao usada. Scrates: Contemporneo dos sofistas, no sculo V a.C., era um personagem importante em Atenas. Foi, juntamente com os sofistas, o primeiro a investigar os conceitos e o ser humano por meio da razo. Contudo, diferentemente dos sofistas, Scrates no era relativista: acreditava que era possvel atingir a verdade por meio da argumentao ou seja, por meio

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do mtodo dialtico. Scrates era um racionalista: para ele, a razo (e no a emoo) deveria ser o guia de cada homem em sua vida. Scrates, ao morrer, nada deixou escrito; contudo, ao menos dois alunos (Plato e Xenofonte) deixaram registros escritos do pensamento socrtico. Plato: Aluno de Scrates, seguiu os passos do mestre no sentido em que tambm era um racionalista. Contudo, Plato foi alm e props uma nova teoria sobre a realidade: a Teoria das Idias. Segundo essa teoria, a realidade cindida em dois mundos: o mundo das aparncias (falso, o mundo que apreendemos pelos sentidos) e o mundo das Idias (verdadeiro, o mundo das essncias, que apreendemos pela razo). Para Plato, as Idias, que so perfeitas e imutveis, so as causas dos objetos que apreendemos pelos sentidos no mundo das aparncias. Vivemos na maior parte do tempo no mundo das aparncias, mas podemos, por meio da dialtica, ascender at o mundo das Idias, onde podemos contempllas. Aristteles: Aluno de Plato, discorda do seu professor em muitos sentidos. A respeito da Teoria das Idias, Aristteles afirma que desnecessria a proposio de que existem dois mundos, um sendo causa do outro. Para Aristteles, possvel explicar tudo em uma nica realidade, por meio da Teoria das Quatro Causas. Todas as coisas teriam uma causa material (a matria de que feita), uma causa formal (a forma da coisa), uma causa eficiente (o que levou a matria a tomar a forma, o que levou a coisa a existir como a coisa que ) e uma causa final (a finalidade da coisa). Aristteles o pensador mais importante da Histria e criou as bases de praticamente todas as regies de conhecimento ocidentais, da biologia lgica, da medicina fsica.

TEXTO DE APOIO:

DO MITO AOS SOFISTAS

Mito e filosofia Para compreender o processo intelectual que resulta na filosofia contempornea necessrio conhecer a origem da filosofia. O contexto histrico do surgimento da filosofia a Grcia do sculo VII a.C. Naquele tempo, as cidades gregas conheceram um perodo de expanso econmica, militar e geogrfica. Foram fundadas inmeras colnias gregas na Europa e na sia Menor. At o sculo VII a.C., o contexto cultural do homem grego era dado pelas grandes narrativas mticas e poticas de Homero, nas quais deuses e homens interagiam em confrontos e amores. Embora a idia da interao de homens com deuses seja estranha a ns, que vivemos na cultura crist, na poca chamada homrica isso era muito normal. A explicao que os gregos tinham ento uma concepo naturalista a respeito de todas as coisas do mundo; tanto os homens quanto os deuses eram seres naturais e, portanto, podiam relacionar-se. (S para lembrar, a concepo crist diferente: pressupe um Deus que cria a natureza, mas no faz parte dela). Talvez muitos de vocs pensem que a mitologia grega seja parte da filosofia. Essa uma idia bem difundida, mas que est errada. Para entender o porqu, preciso compreender como o mundo grego das narrativas homricas transformouse no mundo grego da filosofia. A partir da expanso grega, alguns fenmenos intelectuais comearam a acontecer. Nas cidades, instituiu-se a gora, que era a praa pblica onde os cidados encontravam-se para conversar, fazer poltica e fechar negcios. No campo poltico, surgem as primeiras legislaes. Na arte, aparece o teatro. Nas colnias gregas, os homens tinham contato com viajantes de vrias partes do mundo conhecido. Assim, muitos gregos puderam conhecer a matemtica, a astronomia, a geometria. E alguns desses gregos comearam a investigar a natureza. Natureza, aqui, no significa mato, bichinho, floresta: significa a totalidade das coisas fsicas. Alis, a palavra fsica vem do grego phisis, que significa exatamente natureza (no sentido bem amplo a que nos referimos). Mas o que estes primeiros fsicos buscavam? Inicialmente, duas coisas: em primeiro lugar, saber a constituio

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fundamental das coisas da natureza; em segundo lugar, saber como a natureza veio a ser o que palavras, como o universo, o cosmo, surgiu.

ou, em outras

O ponto de vista tradicional sobre o surgimento da natureza antes desses primeiros fsicos era mtico; por isso, eles fizeram uma verdadeira revoluo quando comearam a procurar as respostas para suas questes no nos mitos, mas naquilo que podiam conhecer a partir da sua prpria experincia. Essa foi a grande revoluo da filosofia no sculo VII a.C.: os primeiros fsicos (que eram simultaneamente os primeiros filsofos , ou, como comum cham-los, os filsofos pr-socrticos ) recusaram os mitos na busca pela explicao a respeito do surgimento e da constituio da natureza. Eles preferiram confiar em sua razo. Por isso, podemos afirmar que a filosofia e a cincia so a tentativa do ser humano de rejeitar o mito. O mito no uma parte da filosofia; pode-se dizer mesmo que a filosofia faz-se contra o mito, que a filosofia uma recusa do mito. Filsofos pr-socrticos Falei no pargrafo acima a respeito de filsofos pr-socrticos . Provavelmente muitos alunos j sabem que os filsofos pr-socrticos foram aqueles filsofos que nasceram antes de Scrates. Mas isso no basta. necessrio saber minimamente quem foi Scrates e o motivo pelo qual foi to importante que criou uma diviso na filosofia: antes de Scrates / depois de Scrates. Eu j disse que os primeiros filsofos (entre o sculo VII e V a.C.) investigavam dois problemas a respeito da natureza: em primeiro lugar, investigavam a constituio fundamental das coisas; em segundo lugar, investigavam como a natureza havia surgido. Scrates (que viveu no sculo V, que considerado o sculo de ouro da Grcia e, especialmente, de Atenas, sua cidade) um filsofo muito importante porque ele percebeu que, antes de investigar a natureza, era necessrio investigar o prprio ser humano afinal, a natureza s investigada porque h algum para investig-la, e parece sensato estudar este algum antes de partir para a investigao das coisas externas. A maior preocupao de Scrates era, de fato, mostrar que o auto-conhecimento o que h de mais importante na vida de uma pessoa. E o primeiro conhecimento deve ser a conscincia da prpria ignorncia. por isso que Scrates profere sua mais clebre frase: s sei que nada sei . Reconhecendo sua falta de sabedoria, Scrates podia dedicar-se a tentar obt-la; e o desejo de obter a sabedoria que reconhece no possuir faz dele, paradoxalmente, o homem mais sbio. A filosofia posterior a Scrates, incluindo a filosofia praticada em nosso tempo, socrtica porque, semelhana do filsofo de Atenas, no se contenta em investigar as coisas como elas so (como faziam os filsofos antes dele, os prsocrticos ), mas procura compreender como ns entendemos as coisas do modo que as entendemos. Alm disso, Scrates foi um dos primeiros a compreender a importncia da discusso quando se pretende chegar verdade e toda a filosofia subseqente aproveitar o mtodo dialtico na busca pelo conhecimento. A partir de Scrates, fica claro que o conhecimento filosfico no produto do acordo, mas da polmica dialogada entre iguais. Os sofistas Referi-me ao mtodo dialtico no pargrafo acima. Para poder explicar o que isso, necessrio antes apresentar um conjunto de sbios que participava da vida de Atenas e de vrias outras cidades na poca de Scrates: os sofistas. Eu disse conjunto de sbios , mas essa expresso pode ser duplamente enganadora. Em primeiro lugar, no era um verdadeiro conjunto, pois os sofistas eram homens bem diferentes entre si, e seus ensinamentos no eram semelhantes. Muitas vezes, alis, eles eram adversrios uns dos outros. Em segundo lugar, muitos no considerariam os sofistas como sbios, pois os filsofos da Antiguidade tinham a tendncia de considerar os sofistas como enganadores e manipuladores. Por que, ento, eu afirmei que eles eram um conjunto de sbios ? Vamos ver primeiro em que sentido os sofistas podem ser considerados sbios. Os sofistas eram homens oriundos de vrias cidades e colnias gregas que viviam viajando de plis em plis oferecendo o uso e o ensino de suas habilidades. As habilidades dos sofistas eram relacionadas capacidade de convencer. Os sofistas, portanto, ofereciam seus servios na defesa e na acusao em julgamentos, sendo os primeiros advogados profissionais; e, com a fama que eventualmente ganhavam, podiam cobrar (bem caro, alis) para ensinar a jovens a arte de vencer disputas argumentativas, transformando-se assim nos primeiros professores de retrica. Lembre-se de que nas democracias gregas a capacidade de discursar e de convencer era considerada o melhor meio de ascender social e

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politicamente. Era devido habilidade de defender igualmente bem duas teses diferentes e mesmo opostas, independentemente de qual fosse a tese verdadeira e de qual fosse a falsa, que os sofistas foram desprezados pelos filsofos que, ao contrrio dos sofistas, procuravam argumentos para encontrar a verdade e escapar ao erro. Por outro lado, justamente a facilidade de defender qualquer ponto de vista fazia com que os sofistas fossem muitas vezes considerados sbios, e por isso que eu afirmei acima que eles o eram. Finalmente, os sofistas podem ser estudados como um conjunto porque todos eles praticavam, embora cada um a seu modo, a argumentao como forma de vencer uma disputa, no importando onde estivesse a verdade. Alis, a prpria noo de verdade era relativa fora da argumentao: em ltima anlise, a posio mais fortemente defendida seria a posio verdadeira. Eis outro motivo que levava os filsofos, que amavam a verdade (compreendida como algo que independente da fora dos argumentos, mas que existe independente da vontade das pessoas), a detestarem os sofistas. A retrica e a dialtica Agora finalmente podemos compreender o que o mtodo dialtico, questo que levantamos mais acima. Dialtica um mtodo filosfico: a busca pela verdade por meio da anlise cuidadosa dos argumentos. A dialtica no era praticada pelos sofistas, pois a dialtica procura pela verdade, e os sofistas apenas defendem uma posio prdeterminada. Os sofistas no usavam a dialtica: usavam a retrica. A retrica o bom uso dos argumentos para defender uma posio. Esses argumentos, inclusive, podem ser maus argumentos, podem ser argumentos que no tm valor lgico mas que tm capacidade de convencimento; a esses argumentos enganadores, aparentemente slidos mas na verdade falhos, os filsofos passaram a chamar sofismas . Isso vem bem a calhar, pois os sofistas no tinham pudores de usar argumentos falhos, desde que isso os ajudasse a defender seu objetivo. Percebemos ento que dialtica e retrica so dois tipos de utilizao da argumentao. A dialtica o tipo de argumentao filosfica, e visa o conhecimento e a verdade. A retrica o tipo de argumentao dos sofistas (e, por conseqncia, dos advogados), e visa o convencimento e a vitria no debate. Alis, a retrica muitas vezes considerada uma arte: a arte de convencer. Podemos dizer ento que o que define a filosofia, desde seu incio no sculo VII a.C. com os filsofos pr-socrticos, a busca pelo conhecimento uma busca que no empreendida a partir de mitos nem realizada com o objetivo simplesmente de convencer. O conhecimento almejado pela filosofia o conhecimento que o ser humano pode alcanar por meio de seus prprios esforos racionais. O conhecimento verdadeiro atingido pela razo humana o objetivo da filosofia desde a Grcia antiga; contudo, os problemas filosficos sofreram inmeras e enormes modificaes desde ento, os mtodos disponveis hoje so muito mais poderosos do que eram no tempo de Scrates, e as respostas so bem mais complexas do que aquelas dadas na Antiguidade. Ainda assim, a filosofia segue, durante a histria, um fio condutor contnuo. No seria possvel compreender o que a filosofia hoje e o que os filsofos de hoje fazem sem entender o que os primeiros filsofos faziam na origem da filosofia. Gustavo Bertoche Texto disponvel online em www.filosofia.notlong.com

EXERCCIOS:

Questo 1 A partir do texto Do mito aos sofistas , responda: a) Qual a principal diferena entre o pensamento mtico e o pensamento filosfico?

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b) O que significa a palavra grega phisis? c) Por que motivo os primeiros filsofos foram chamados aristotlicos ? pr-socrticos e no pr-platnicos ou pr-

d) Por que razo Aristteles no considerava os pr-socrticos como filsofos no sentido estrito? e) Qual a diferena entre retrica e dialtica ?

Questo 2 (UEL 2003) Zeus ocupa o trono do universo. Agora o mundo est ordenado. Os deuses disputaram entre si, alguns triunfaram. Tudo o que havia de ruim no cu etreo foi expulso, ou para a priso do Trtaro ou para a Terra, entre os mortais. E os homens, o que acontece com eles? Quem so eles? (VERNANT, Jean-Pierre. O universo, os deuses, os homens. Trad. de Rosa Freire d Aguiar. So Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 56.) O texto acima parte de uma narrativa mtica. Considerando que o mito pode ser uma forma de conhecimento, assinale a alternativa correta. a) A verdade do mito obedece a critrios empricos e cientficos de comprovao. b) O conhecimento mtico segue um rigoroso procedimento lgico-analtico para estabelecer suas verdades. c) As explicaes mticas constroem-se de maneira argumentativa e autocrtica. d) O mito busca explicaes definitivas acerca do homem e do mundo, e sua verdade independe de provas. e) A verdade do mito obedece a regras universais do pensamento racional, tais como a lei de no-contradio.

Questo 3 (UEL 2005) Sobre a passagem do mito filosofia, na Grcia Antiga, considere as afirmativas a seguir. I. Os poemas homricos, em razo de muitos de seus componentes, j contm caractersticas essenciais da compreenso de mundo grega que, posteriormente, se revelaram importantes para o surgimento da filosofia. II. O naturalismo, que se manifesta nas origens da filosofia, j se evidencia na prpria religiosidade grega, na medida em que nem homens nem deuses so compreendidos como perfeitos. III. A humanizao dos deuses na religio grega, que os entende movidos por sentimentos similares aos dos homens, contribuiu para o processo de racionalizao da cultura grega, auxiliando o desenvolvimento do pensamento filosfico e cientfico. IV. O mito foi superado, cedendo lugar ao pensamento filosfico, devido assimilao que os gregos fizeram da sabedoria dos povos orientais, sabedoria esta desvinculada de qualquer base religiosa. Esto corretas apenas as afirmativas: a) I e II. b) II e IV. c) III e IV. d) I, II e III. e) I, III e IV.

Questo 4 (UEL 2004) Mais que saber identificar a natureza das contribuies substantivas dos primeiros filsofos fundamental perceber a

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guinada de atitude que representam. A proliferao de ticas que deixam de ser endossadas acriticamente, por fora da tradio ou da imposio religiosa , o que mais merece ser destacado entre as propriedades que definem a filosoficidade. (OLIVA, Alberto; GUERREIRO, Mario. Prsocrticos: a inveno da filosofia. Campinas: Papirus, 2000.p. 24.)

Assinale a alternativa que apresenta a guinada de atitude que o texto afirma ter sido promovida pelos primeiros filsofos. a) A aceitao acrtica das explicaes tradicionais relativas aos acontecimentos naturais. b) A discusso crtica das idias e posies, que podem ser modificadas ou reformuladas. c) A busca por uma verdade nica e inquestionvel, que pudesse substituir a verdade imposta pela religio. d) A confiana na tradio e na imposio religiosa como fundamentos para o conhecimento. oligarquia. e) A desconfiana na capacidade da razo em virtude da proliferao de ticas conflitantes entre si.

Questo 5 (UEL 2003) Tales foi o iniciador da filosofia da physis, pois foi o primeiro a afirmar a existncia de um princpio originrio nico, causa de todas as coisas que existem, sustentando que esse princpio a gua. Essa proposta importantssima... podendo com boa dose de razo ser qualificada como a primeira proposta filosfica daquilo que se costuma chamar civilizao ocidental. (REALE, Giovanni. Histria da filosofia: Antigidade e Idade Mdia. So Paulo: Paulus, 1990. p. 29.) A filosofia surgiu na Grcia, no sculo VI a.C. Seus primeiros filsofos foram os chamados pr-socrticos. De acordo com o texto, assinale a alternativa que expressa o principal problema por eles investigado. a) A tica, enquanto investigao racional do agir humano. b) A esttica, enquanto estudo sobre o belo na arte. c) A epistemologia, como avaliao dos procedimentos cientficos. d) A cosmologia, como investigao acerca da origem e da ordem do mundo. e) A filosofia poltica, enquanto anlise do Estado e sua legislao.

Questo 6 (UEL 2004) Entre os fsicos da Jnia, o carter positivo invadiu de chofre a totalidade do ser. Nada existe que no seja natureza, physis. Os homens, a divindade, o mundo formam um universo unificado, homogneo, todo ele no mesmo plano: so as partes ou os aspectos de uma s e mesma physis que pem em jogo, por toda parte, as mesmas foras, manifestam a mesma potncia de vida. As vias pelas quais essa physis nasceu, diversificou-se e organizou-se so perfeitamente acessveis inteligncia humana: a natureza no operou no comeo de maneira diferente de como o faz ainda, cada dia, quando o fogo seca uma vestimenta molhada ou quando, num crivo agitado pela mo, as partes mais grossas se isolam e se renem. (VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. Trad. de sis Borges B. da Fonseca. 12.ed. Rio de Janeiro: Difel, 2002. p.110.) Com base no texto, assinale a alternativa correta. a) Para explicar o que acontece no presente preciso compreender como a natureza agia no comeo , ou seja, no momento original. b) A explicao para os fenmenos naturais pressupe a aceitao de elementos sobrenaturais. c) O nascimento, a diversidade e a organizao dos seres naturais tm uma explicao natural e esta pode ser compreendida racionalmente. d) A razo capaz de compreender parte dos fenmenos naturais, mas a explicao da totalidade dos mesmos est alm da capacidade humana.

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e) A diversidade de fenmenos naturais pressupe uma multiplicidade de explicaes e nem todas estas explicaes podem ser racionalmente compreendidas.

Unidade 3 Lgica da ArgumentaoContedo: Lgica: proposies e argumentos; premissas e concluso A lgica o estudo do raciocnio correto e da argumentao. O objeto da lgica o argumento.

O QUE UM ARGUMENTO? Um argumento uma sequncia de proposies divididas em Premissas e Concluso.

O QUE UMA PROPOSIO? Uma proposio uma construo frasal com sentido completo e valor de verdade.

O QUE SO PREMISSAS E CONCLUSO? As premissas so as proposies que, num argumento, defendem, justificam, apiam, explicam a concluso. A concluso a proposio que, num argumento, defendida, justificada, apoiada, explicada pelas premissas. Todo argumento composto por uma ou mais premissa e uma, e apenas uma, concluso.

Argumentos dedutivos e argumentos indutivos Os argumentos podem ser de dois tipos: dedutivos ou indutivos. Argumentos dedutivos so aqueles que relacionam proposies num plano estritamente racional, sem recorrer necessariamente a proposies empricas. Popularmente, diz-se que argumentos dedutivos conduzem o pensamento do plano do geral ao plano do particular. Essa afirmao no est totalmente correta: o que define o argumento dedutivo que ele um argumento que permanece no plano da lgica, no tem necessidade da experincia. Argumentos indutivos so aqueles que relacionam a experincia com a razo. Relacionam proposies universais com proposies empricas particulares. Os argumentos indutivos podem ser construdos por generalizao ou por previso. No importa a ordem das proposies: um argumento que s use a lgica um argumento dedutivo, um argumento que relacione proposies particulares experimentais com uma proposio geral, por meio da generalizao ou da previso, um argumento indutivo. Proposies podem ser verdadeiras ou falsas, dependendo da adequao da proposio com a realidade. Proposies

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nunca so vlidas nem invalidas. Argumentos dedutivos podem ser vlidos ou invlidos, dependendo da correo de sua forma lgica. Argumentos nunca so verdadeiros ou falsos. Argumentos indutivos podem ser mais provveis ou menos provveis, dependendo do grau de possibilidade que se pode ter a partir da generalizao ou da previso que ocorre por meio da enumerao dos elementos que permitem a construo da induo. Argumentos indutivos nunca so verdadeiros ou falsos nem vlidos ou invlidos. O problema da induo David Hume, filsofo do sculo XVIII, introduziu na filosofia o chamado problema da induo . Hume percebeu que tanto nossa vida cotidiana quanto a cincia est baseada em indues. Contudo, por no ser um tipo de raciocnio exato, a induo no permite o grau de certeza que a deduo tem. Portanto, no se pode confiar nos argumentos indutivos, o que quer dizer que no se pode confiar na cincia ou nos nossos conhecimentos do dia-a-dia.

EXERCCIOS: Questo 1 decerto possvel, aos cidados, partilhar crianas, esposas e propriedades, como Plato sugere em A Repblica. Porque nesse trabalho Plato prope que as crianas, as esposas e a propriedade devam ser de todos em comum. Indagamos, portanto: melhor agir como agimos agora ou devemos adotar a prtica recomendada em A Repblica? A proposta de que as esposas devam ser possudas em comum apresenta muitas dificuldades, entre as quais as trs mais importantes so: a) Scrates no deixa claro nenhum motivo pelo qual esse costume deva ser parte do sistema social; b) quando vista como meio para alcanar um fim (para o qual, diz-se no dilogo, o Estado existe), a proposta invivel; c) em nenhum lugar explicada a maneira como a proposta pode ser posta em prtica. (ARISTTELES, Poltica) a) Explique o que um argumento. b) O trecho sublinhado um argumento. Identifique sua(s) premissa(s) e sua concluso.

Questo 2 Eu estudei muito para esta prova; conseqentemente, vou tirar uma boa nota, porque quem estuda bastante tem resultados bons. O trecho acima contm um argumento. Identifique sua(s) premissa(s) e sua concluso.

Questo 3 Uma vez mais, o melhor dar exemplos e apontar algumas das caractersticas mais salientes dos problemas filosficos tpicos. Pensemos, por exemplo, em Deus. Os cristos tm uma dada concepo de Deus, os muulmanos outra e os hindus outra ainda. E h muitas mais, tantas quantas as religies. As religies partem de certas verdades reveladas pelos seus profetas e inscritas nos seus livros sagrados; procuram descobrir a verdadeira natureza de Deus e encontrar o caminho da salvao. Mas nada disso so problemas filosficos . Desidrio Murcho, O carter conceitual da filosofia a) O texto acima menciona uma abordagem no-filosfica ao problema de Deus. Quais as diferenas entre uma abordagem no-filosfica e uma abordagem filosfica a respeito de algum problema? b) Sabendo que a argumentao o mtodo da filosofia, o papel da lgica no estudo filosfico dos problemas torna-se evidente. Um objetivo da lgica a determinao da validade dos argumentos. Na lgica, qual a diferena entre a

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verdade e a validade?

Questo 4 A partir da leitura do texto Lgica indutiva versus lgica dedutiva (na apostila de textos), responda s questes abaixo. Argumento 1: Todos os homens que viveram at hoje so mortais. Portanto, provvel que todos os homens sempre sejam mortais . Argumento 2: Todos os homens que viveram at hoje so mortais. Portanto, provvel que alguns homens sejam imortais no futuro . a) Indique se possvel afirmar que algum dos argumentos acima vlido. Justifique sua resposta. b) A fora indutiva no monotnica . Explique esta afirmao.

Questo 5 Apresente um motivo que justifique a proposio de que possvel afirmar que a lgica indutiva no pode aspirar ao tipo de sistematizao e generalidade atingido pela lgica indutiva.

Questo 6 A filosofia uma atividade a priori, pois a filosofia investiga a realidade sem recorrer experincia investigao da realidade sem o recurso da experincia uma atividade a priori. O trecho acima contm um argumento. Identifique sua(s) premissa(s) e sua concluso. e a

Questo 7 Como todos os outros estudos, a filosofia aspira essencialmente ao conhecimento. O conhecimento a que aspira o que unifica e sistematiza o corpo das cincias e o que resulta de um exame crtico dos fundamentos das nossas convices, dos nossos preconceitos e das nossas crenas. Mas no se pode dizer que a filosofia tenha tido grande sucesso ao tentar dar respostas exatas s suas questes. Se perguntarmos a um matemtico, a um mineralogista, a um historiador ou a qualquer outro homem de saber, que corpo exato de verdades a sua cincia descobriu, a sua resposta durar o tempo que estivermos dispostos a escut-lo. Contudo, se colocarmos a mesma questo a um filsofo, se for sincero ter de confessar que o seu estudo no chegou a resultados positivos como aqueles a que chegaram outras cincias. verdade que isto se explica em parte pelo fato de que assim que se torna possvel um conhecimento exato acerca de qualquer assunto, este assunto deixa de se chamar filosofia e passa a ser uma cincia separada. A totalidade do estudo dos cus, que pertence atualmente astronomia, esteve em tempos includo na filosofia; a grande obra de Newton chamava-se "os princpios matemticos da filosofia natural". Analogamente, o estudo da mente humana, que fazia parte da filosofia, foi agora separado da filosofia e deu origem cincia da psicologia. Assim, a incerteza da filosofia em larga medida mais aparente do que real: as questes s quais j possvel dar uma resposta exata so colocadas nas cincias, e apenas aquelas s quais no possvel, no presente, dar uma resposta exata, formam o resduo a que se chama filosofia. (RUSSEL, Bertrand. O valor da filosofia.) a) A orao em itlico um argumento. Identifique a(s) sua(s) premissa(s) e a sua concluso. b) O texto de Bertrand Russel trata da diferena entre a filosofia e a cincia. A filosofia tem um mtodo diferente do mtodo cientfico. Explique a diferena entre o mtodo filosfico e o cientfico.

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c) O objeto da filosofia diferente do objeto da cincia. Cite trs exemplos de objetos filosficos.

Questo 8 A observao nos mostra que cada Estado uma comunidade estabelecida com alguma boa finalidade, uma vez que todos sempre agem de modo a obter o que acham bom. Mas, se todas as comunidades almejam o bem, o Estado ou comunidade poltica, que a forma mais elevada de comunidade e engloba tudo o mais, objetiva o bem nas maiores propores e excelncia possveis. (ARISTTELES, Poltica)

a) Explique o que um argumento. b) A orao em itlico um argumento. Identifique sua(s) premissa(s) e sua concluso.

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Unidade 4 Racionalismo, Empirismo, CeticismoContedo:

A modernidade filosfica comea no sculo XVII ao colocar em questo o problema da fundamentao do conhecimento: como o conhecimento comum, cientfico, filosfico e teolgico podem ser justificados? Podemos dizer que conhecemos alguma coisa com certeza? Se podemos dizer isso, como podemos ter essa certeza? Se no podemos dizer isso, qual o limite da certeza que podemos ter? A essas perguntas foram dadas trs respostas bsicas: o racionalismo, o empirismo e o ceticismo. O RACIONALISMO: Filosofia que afirma que a razo (a includo o pensamento, a lgica, a matemtica) a maior garantia que temos em relao ao conhecimento, visto que no podemos confiar na nossa experincia, que muito falvel. O maior expoente do racionalismo foi Ren Descartes (1596-1650), que tentou provar, por meio da lgica, que o ser humano pode confiar nas cincias. Seu raciocnio, bastante complexo, foi o seguinte: Questo fundamental: Posso confiar no meu conhecimento? 1o passo: a dvida hiperblica Para obter o conhecimento mais fundamental, necessrio levar a dvida ao grau mximo, duvidando de tudo o que possvel e, assim, investigando se resta algo de que no se pode absolutamente duvidar. 1o grau da dvida hiperblica: o argumento do erro dos sentidos Se os meus sentidos podem me enganar, vou tomar como se me enganassem sempre. No posso confiar nos sentidos. (Ainda assim, posso confiar na idia que tenho de que estou aqui agora). 2o grau da dvida hiperblica: o argumento do sonho Se eu s vezes, em sonho, acredito estar acordado, possvel que eu esteja sonhando agora. Por isso, no posso mais confiar na idia de que estou aqui agora, pois posso estar dormindo. (Mas ainda restam as certezas matemticas). 3o grau da dvida hiperblica: o argumento do Gnio Maligno possvel que exista uma espcie de diabo com poderes como os de Deus que dedique-se a me enganar o tempo todo, inclusive a respeito da matemtica. Se isso possvel, e a prpria capacidade que tenho de imaginar algo assim mostra que possvel, ento vou assumir que isso verdadeiro, e que no posso assumir nada como certo. No posso nem mesmo confiar na minha existncia, pois posso no existir e achar que existo. 2o passo: a conquista da primeira certeza Se eu posso duvidar de tudo, inclusive da minha prpria existncia, eu devo poder duvidar do prprio fato de que estou duvidando. Contudo, isso logicamente impossvel. Se eu duvido do fato de que duvido, eu continuo duvidando. Ora, isso uma prova de que algo existe. A dvida um pensamento. Se h um pensamento, h necessariamente um ser que pensa. Se eu duvido, se eu penso, ento eu necessariamente existo. Da, se eu penso, eu tenho a garantia lgica de que, pelo menos no momento em que estou pensando, eu existo. Penso, logo existo , cogito ergo sum . A certeza da minha existncia a primeira e mais

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fundamental certeza, que Descartes utiliza para construir o resto do edifcio do conhecimento. 3o passo: a conquista das outras certezas Mesmo tendo a certeza de que eu existo enquanto penso, Descartes no venceu ainda a figura do Gnio Maligno. Para derrubar esse momento mximo da dvida, Descartes apelar para as provas da existncia de Deus. Afinal, se Deus existe, e Deus sumamente bom, ento Ele no quer que ns erremos e no pode deixar existir tal Gnio diablico. Assim, podemos confiar que o Gnio Maligno no existe de verdade. Mas como Descartes prova a existncia de Deus? A partir de dois argumentos: 1. O argumento da causa pelos efeitos As idias que tenho so de trs tipos: (a) as idias que vm da experincia, (b) as idias que vm da imaginao e (c) as idias que no vm da experincia nem da imaginao e que so, portanto, inatas. Dentre todas as idias, as idias de eternidade, infinitude, perfeio, etc. no podem ter origem na experincia, pois no possvel ter a experincia da eternidade, da infinitude, da perfeio, etc. Tambm no podem ter sido geradas pela imaginao, pois a imaginao s pode criar imagens juntando imagens que existam anteriormente. Portanto, as idias de eternidade, infinitude, perfeio, etc. devem ter origem inata. Contudo, como possvel ter idias como essas, se ningum eterno, ningum infinito, ningum perfeito? A nica explicao possvel que essas idias devem ter sido colocadas em ns por Deus, que tudo isso. Assim, se temos as idias de eternidade, infinitude, perfeio, etc. (ou seja, se temos os efeitos), necessariamente Deus existe (pois necessria uma causa para esses efeitos). 2. O argumento ontolgico A definio de Deus ser perfeito . A perfeio engloba uma srie de atributos: a eternidade, a infinitude, a oniscincia, a onipotncia, a bondade absoluta, a justia absoluta... e tambm a existncia. Por que a perfeio necessariamente engloba a existncia? Simples: porque se algo perfeito mas no existe, ento no perfeito pois no existe! Um ser cuja definio seja ser perfeito , portanto, deve ter todos os atributos da perfeio, inclusive a existncia. Ora, se Deus o ser perfeito, ento necessariamente Deus existe. Assim, provando a existncia de Deus, Descartes derruba o maior grau da dvida e pode garantir a veracidade do conhecimento da cincia e do senso comum. Note que o argumento de Descartes totalmente racionalista: baseia-se na razo, na lgica, e no tem nenhum componente emprico. possvel desenvolver todo esse argumento dentro de um quarto, sobre uma cama, por exemplo.

O EMPIRISMO: Filosofia que, ao contrrio do racionalismo, afirma que o melhor meio para se conhecer algo a experincia. Para o empirismo, no h idias inatas, e mesmo a nossa razo consequncia das nossas experincias. Trs figuras centrais para o empirismo foram Thomas Hobbes, John Locke e David Hume (que tambm foi o principal representante do ceticismo moderno). Hobbes, que mais conhecido por sua teoria do estado de natureza em que o homem est em guerra de todos contra todos, importante para a epistemologia pela nfase que depositou no papel dos costumes para a organizao da sociedade e do conhecimento. Locke, tambm muito conhecido pela sua contribuio filosofia poltica, tendo proposto uma teoria do contrato social e defendido a valorizao do governo representativo e das liberdades civis, importante aqui por sua teoria de que todas as idias tm origem na experincia sensvel. Para Locke, ao nascer a mente do homem como uma folha em branco, uma tabula rasa .

O EMPIRISMO / O CETICISMO:

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Hume o mais radical dos trs. Alm de afirmar que todo conhecimento tem origem na experincia sensvel, coloca em xeque o conhecimento cientfico, apresentando o problema da induo (veja o captulo 3). O problema da induo consiste na compreenso de que as cincias e o senso comum funcionam baseados na generalizao e na previso a partir de um conjunto limitado de observaes. Para Hume, esse tipo de raciocnio utilizado na cincia e no senso comum no vlido, pois pressupe um princpio de uniformidade da natureza (a idia de que o universo inteiro totalmente uniforme no espao e no tempo), e impossvel provar esse princpio. Logo, a induo baseada em um princpio que ningum pode verificar. Assim, a induo um raciocnio ruim. Por no confiar na cincia, devido ao fato dela se basear na induo, Hume considerado um ctico (ctico o homem que pe seu juzo em suspenso, no querendo se comprometer em afirmar que algo verdadeiro ou falso).

TEXTOS DE APOIO

O DISCURSO DO MTODO

(Primeira Parte, pargrafos 1 a 5) INEXISTE NO MUNDO coisa mais bem distribuda que o bom senso, visto que cada indivduo acredita ser to bem provido dele que mesmo os mais difceis de satisfazer em qualquer outro aspecto no costumam desejar possu-lo mais do que j possuem. E improvvel que todos se enganem a esse respeito; mas isso antes uma prova de que o poder de julgar de forma correta e discernir entre o verdadeiro e o falso, que justamente o que denominado bom senso ou razo, igual em todos os homens; e, assim sendo, de que a diversidade de nossas opinies no se origina do fato de serem alguns mais racionais que outros, mas apenas de dirigirmos nossos pensamentos por caminhos diferentes e no considerarmos as mesmas coisas. Pois insuficiente ter o esprito bom, o mais importante aplic-lo bem. As maiores almas so capazes dos maiores vcios, como tambm das maiores virtudes, e os que s andam muito devagar podem avanar bem mais, se continuarem sempre pelo caminho reto, do que aqueles que correm e dele se afastam. Quanto a mim, nunca supus que meu esprito fosse em nada mais perfeito do que os dos outros; com freqncia desejei ter o pensamento to rpido, ou a imaginao to clara e diferente, ou a memria to abrangente ou to pronta, quanto alguns outros. E desconheo quaisquer outras qualidades, afora as que servem para o aperfeioamento do esprito; pois, quanto razo ou ao senso, posto que a nica coisa que nos torna homens e nos diferencia dos animais, acredito que existe totalmente em cada um, acompanhando nisso a opinio geral dos filsofos, que afirmam no existir mais nem menos seno entre os acidentes, e no entre as formas ou naturezas dos indivduos de uma mesma espcie. Mas no recearei dizer que julgo ter tido muita felicidade de me haver encontrado, a partir da juventude, em determinados caminhos, que me levaram a consideraes e mximas, das quais formei um mtodo, pelo qual me parece que eu consiga aumentar de forma gradativa meu conhecimento, e de elev-lo, pouco a pouco, ao mais alto nvel, a que a mediocridade de meu esprito e a breve durao de minha vida lhe permitam alcanar. Pois j colhi dele tais frutos que, apesar de no juzo que fao de mim prprio eu procure inclinar-me mais para o lado da desconfiana do que para o da presuno, e que, observando com um olhar de filsofo as variadas aes e empreendimentos de todos os homens, no exista quase nenhum que no me parea ftil e intil, no deixo de lograr extraordinria satisfao do progresso que creio j ter feito na procura da verdade e de conceber tais esperanas para o futuro que, se entre as ocupaes dos homens puramente homens existe alguma que seja solidamente boa e importante, atrevo-me a acreditar que aquela que escolhi. Contudo, pode ocorrer que me engane, e talvez no seja mais do que um pouco de cobre e vidro o que eu tomo por ouro e diamantes. Sei como estamos sujeitos a nos enganar no que nos diz respeito, e como tambm nos devem ser suspeitos os juzos de nossos amigos, quando so a nosso favor. Mas apreciaria muito mostrar, neste discurso, quais os caminhos que segui, e representar nele a minha vida como num quadro, para que cada um possa julg-la e que, informado pelo comentrio geral das opinies emitidas a respeito dela, seja este uma nova forma de me instruir, que acrescentarei quelas de que tenho o hbito de me utilizar. Portanto, meu propsito no ensinar aqui o mtodo que cada qual deve seguir para bem conduzir sua razo, mas somente mostrar de que modo me esforcei por conduzir a minha. Os que se aventuram a fornecer normas devem considerar-se mais hbeis do que aqueles a quem as do; e, se falham na menor coisa, so por isso censurveis. Mas, no propondo este escrito seno como uma histria, ou, se o preferirdes, como uma fbula, na qual, entre alguns exemplos que se podem imitar, encontrar-se-o talvez tambm muitos outros que se ter razo de no seguir, espero que ele ser til a alguns, sem ser danoso a ningum, e que todos me sero gratos por minha franqueza. (...) (Segunda Parte, pargrafos 6 a 11) Quando era mais jovem, eu estudara um pouco de filosofia, de lgica, e, das matemticas, a analise dos gemetras e a lgebra, trs artes ou cincias que pareciam poder contribuir com algo para o meu propsito. No entanto, analisando-as, percebi que, quanto lgica, seus silogismos e a maior parte de seus outros preceitos servem mais para explicar aos outros as coisas j

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conhecidas, ou mesmo, como a arte de Llio, para falar, sem formar juzo, daquelas que so ignoradas, do que para aprend-las. E apesar de ela conter, realmente, uma poro de preceitos muito verdadeiros e muito bons, existem contudo tantos outros misturados no meio que so ou danosos, ou suprfluos, que quase to difcil separ-los quanto tirar uma Diana ou uma Minerva de um bloco de mrmore que nem ao menos est delineado. Depois, no que concerne anlise dos antigos e lgebra dos modernos, alm de se estenderem apenas a assuntos muito abstratos, e de no parecerem de utilidade alguma, a primeira permanece sempre to ligada considerao das figuras que no pode propiciar a compreenso sem cansar muito a imaginao; e, na segunda, esteve-se de tal maneira sujeito a determinadas regras e cifras que se fez dela uma arte confusa e obscura que atrapalha o esprito, em vez de uma cincia que o cultiva. Por este motivo, considerei ser necessrio buscar algum outro mtodo que, contendo as vantagens desses trs, estivesse desembaraado de seus defeitos. E, como a grande quantidade de leis fornece com freqncia justificativas aos vcios, de forma que um Estado mais bem dirigido quando, apesar de possuir muito poucas delas, so estritamente cumpridas; portanto, em lugar desse grande nmero de preceitos de que se compe a lgica, achei que me seriam suficientes os quatro seguintes, uma vez que tornasse a firme e inaltervel resoluo de no deixar uma s vez de observ-los. O primeiro era o de nunca aceitar algo como verdadeiro que eu no conhecesse claramente como tal; ou seja, de evitar cuidadosamente a pressa e a preveno, e de nada fazer constar de meus juzos que no se apresentasse to clara e distintamente a meu esprito que eu no tivesse motivo algum de duvidar dele. O segundo, o de repartir cada uma das dificuldades que eu analisasse em tantas parcelas quantas fossem possveis e necessrias a fim de melhor solucion-las. O terceiro, o de conduzir por ordem meus pensamentos, iniciando pelos objetos mais simples e mais fceis de conhecer, para elevar-me, pouco a pouco, como galgando degraus, at o conhecimento dos mais compostos, e presumindo at mesmo uma ordem entre os que no se precedem naturalmente uns aos outros. E o ltimo, o de efetuar em toda parte relaes metdicas to completas e revises to gerais nas quais eu tivesse a certeza de nada omitir. Essas longas sries de razes, todas simples e fceis, que os gemetras costumam utilizar para chegar s suas mais difceis demonstraes, tinham-me dado a oportunidade de imaginar que todas as coisas com a possibilidade de serem conhecidas pelos homens seguem-se umas s outras do mesmo modo e que, uma vez que nos abstenhamos apenas de aceitar por verdadeira qualquer uma que no o seja, e que observemos sempre a ordem necessria para deduzi-las umas das outras, no pode existir nenhuma delas to afastada a que no se chegue no final, nem to escondida que no se descubra. (...) (Quarta Parte, integral) NO ESTOU SEGURO se deva falar-vos a respeito das primeiras meditaes que a realizei; j que por serem to metafsicas e to incomuns, possvel que no sero apreciadas por todos. Contudo, para que seja possvel julgar se os fundamentos que escolhi so suficientemente firmes, vejo-me, de alguma forma, obrigado a falar-vos delas. Havia bastante tempo observara que, no que concerne aos costumes, s vezes preciso seguir opinies, que sabemos serem muito duvidosas, como se no admitissem dvidas, conforme j foi dito acima; porm, por desejar ento dedicar-me apenas a pesquisa da verdade, achei que deveria agir exatamente ao contrrio, e rejeitar como totalmente falso tudo aquilo em que pudesse supor a menor dvida, com o intuito de ver se, depois disso, no restaria algo em meu crdito que fosse completamente incontestvel. Ao considerar que os nossos sentidos s vezes nos enganam, quis presumir que no existia nada que fosse tal como eles nos fazem imaginar. E, por existirem homens que se enganam ao raciocinar, mesmo no que se refere s mais simples noes de geometria, e cometem paralogismos, rejeitei como falsas, achando que estava sujeito a me enganar como qualquer outro, todas as razes que eu tomara at ento por demonstraes. E, enfim, considerando que quaisquer pensamentos que nos ocorrem quando estamos acordados nos podem tambm ocorrer enquanto dormimos, sem que exista nenhum, nesse caso, que seja correto, decidi fazer de conta que todas as coisas que at ento haviam entrado no meu esprito no eram mais corretas do que as iluses de meus sonhos. Porm, logo em seguida, percebi que, ao mesmo tempo que eu queria pensar que tudo era falso, fazia-se necessrio que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, ao notar que esta verdade: eu penso, logo existo, era to slida e to correta que as mais extravagantes suposies dos cticos no seriam capazes de lhe causar abalo, julguei que podia consider-la, sem escrpulo algum, o primeiro princpio da filosofia que eu procurava. Mais tarde, ao analisar com ateno o que eu era, e vendo que podia presumir que no possua corpo algum e que no havia mundo algum, ou lugar onde eu existisse, mas que nem por isso podia supor que no existia; e que, ao contrrio, pelo fato mesmo de eu pensar em duvidar da verdade das outras coisas, resultava com bastante evidncia e certeza que eu existia; ao passo que, se somente tivesse parado de pensar, apesar de que tudo o mais que alguma vez imaginara fosse verdadeiro, j no teria razo alguma de acreditar que eu tivesse existido; compreendi, ento, que eu era uma substncia cuja essncia ou natureza consiste apenas no pensar, e que, para ser, no necessita de lugar algum, nem depende de qualquer coisa material. De maneira que esse eu, ou seja, a alma, por causa da qual sou o que sou, completamente distinta do corpo e, tambm, que mais fcil de conhecer do que ele, e, mesmo que este nada fosse, ela no deixaria de ser tudo o que . Depois disso, considerei o que necessrio a uma proposio para ser verdadeira e correta; pois, j que encontrara uma que eu sabia ser exatamente assim, pensei que devia saber tambm em que consiste essa certeza. E, ao perceber que nada h no eu penso, logo existo, que me d a certeza de que digo a verdade, salvo que vejo muito claramente que, para pensar, preciso existir, conclu que poderia tomar por regra geral que as coisas que concebemos muito clara e distintamente so todas verdadeiras, havendo somente alguma dificuldade em notar bem quais so as que concebemos distintamente. Depois, havendo refletido a respeito daquilo que eu duvidava, e que, por conseguinte, meu ser no era totalmente perfeito, pois via claramente que o conhecer perfeio maior do que o duvidar, decidi procurar de onde aprendera a pensar em algo mais perfeito do que eu era; e descobri, com evidncia, que devia ser de alguma natureza que fosse realmente mais perfeita. No que se refere aos pensamentos que eu formulava sobre muitas outras coisas fora de mim, como a respeito do cu, da Terra, da luz, do calor e de mil outras, no me era to difcil saber de onde vinham, porque, no notando neles nada que me parecesse torn-los superiores a mim, podia julgar que, se fossem verdadeiros, seriam dependncias de minha natureza, na medida em que esta possua alguma perfeio; e se no o eram, que eu os formulava a partir do nada, ou seja, que existiam em mim pelo que eu possua de falho.

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Mas no podia ocorrer o mesmo com a idia de um ser mais perfeito do que o meu; pois faz-la sair do nada era evidentemente impossvel; e, visto que no menos repulsiva a idia de que o mais perfeito seja uma conseqncia e uma dependncia do menos perfeito do que a de admitir que do nada se origina alguma coisa, eu no podia tir-la tampouco de mim prprio. De maneira que restava somente que tivesse sido colocada em mim por uma natureza que fosse de fato perfeita do que a minha, e que possusse todas as perfeies de que eu poderia ter alguma idia, ou seja, para diz-lo numa nica palavra, que fosse Deus. A isso acrescentei que, admitido que conhecia algumas perfeies que eu no tinha, no era o nico ser que existia (usarei aqui livremente, se vos aprouver, alguns termos da Escola); mas que devia necessariamente haver algum outro mais perfeito, do qual eu dependesse e de quem tivesse recebido tudo o que possua. Pois, se eu fosse sozinho e independente de qualquer outro, de maneira que tivesse recebido, de mim prprio, todo esse pouco mediante o qual participava do Ser perfeito, poderia receber de mim, pelo mesmo motivo, todo o restante que sabia faltar-me, e ser assim eu prprio infinito, eterno, imutvel, onisciente, todo-poderoso, e enfim ter todas as perfeies que podia perceber existirem em Deus. Pois, de acordo com os raciocnios que acabo de fazer, para conhecer a natureza de Deus, tanto quanto a minha o era capaz, era suficiente considerar, a respeito de todas as coisas de que encontrava em mim qualquer idia, se era ou no perfeio possu-las, e tinha certeza de que nenhuma das que eram marcadas por alguma imperfeio existia nele, mas que todas as outras existiam. Dessa forma, eu notava que a dvida, a inconstncia, a tristeza e coisas parecidas no podiam existir nele, porque eu mesmo apreciaria muito ser desprovido delas. Ademais, eu tinha idias acerca de muitas coisas sensveis e corporais; pois, apesar de presumir que estava sonhando e que tudo quanto via e imaginava era falso, no podia negar, no obstante, que as idias a respeito no existissem verdadeiramente em meu pensamento; porm, por j haver reconhecido em mim com bastante clareza que a natureza inteligente distinta da corporal, considerando que toda a composio testemunha dependncia, e que a dependncia evidentemente uma falha, julguei a partir disso que no podia ser uma perfeio em Deus o ser composto dessas duas naturezas, e que, em conseqncia, Ele no o era, mas que, se existiam alguns corpos no mundo, ou ento algumas inteligncias, ou outras naturezas, que no fossem totalmente perfeitos, seu ser deveria depender do poder de Deus, de tal maneira que no pudessem subsistir sem Ele por um nico instante. Em seguida a isso, eu quis procurar outras verdades, e tendo-me estabelecido o objeto dos gemetras, que eu concebia como um corpo contnuo, ou um espao infinitamente extenso em comprimento, largura e altura ou profundidade, divisvel em diversas partes que podiam ter diferentes figuras e grandezas, e ser movidas ou transpostas de todas as maneiras, pois os gemetras conjeturam tudo isto em seu objeto, examinava algumas de suas demonstraes mais simples. E, ao perceber que essa grande certeza, que todos lhes atribuem, se alicera somente no fato de serem concebidas com evidncia, segundo a regra que h pouco manifestei, notei tambm que nada existia nelas que me garantisse a existncia de seu objeto. Pois, por exemplo, eu percebia muito bem que, ao imaginar um tringulo, fazia-se necessrio que seus trs ngulos fossem iguais a dois retos; porm, malgrado isso, nada via que garantisse existir no mundo qualquer tringulo. Enquanto, ao voltar a examinar a idia que eu tinha de um Ser perfeito, verificava que a existncia estava a inclusa, da mesma maneira que na de um tringulo est incluso serem seus trs ngulos iguais a dois retos, ou na de uma esfera serem todas as suas partes igualmente distantes do seu centro, ou ainda mais evidentemente; e que, por conseguinte, pelo menos to certo que Deus, que esse Ser perfeito, ou existe quanto seria qualquer demonstrao de geometria. Mas o que leva muitas pessoas a se convencerem de que difcil conhec-lo, e tambm em conhecer o que sua alma, o fato de nunca alarem o esprito alm das coisas sensveis e de estarem de tal forma habituadas a nada considerar exceto na imaginao, que uma maneira de pensar particular s coisas materiais, que tudo quanto no imaginvel lhes parece no ser inteligvel. E isto bastante evidente pelo fato de os prprios filsofos terem por mxima, nas escolas, que nada existe no entendimento que no haja estado primeiramente nos sentidos, onde, contudo, certo que as idias de Deus e da alma nunca estiveram. E me parece que todos aqueles que querem usar a imaginao para compreend-las se comportam da mesma maneira que se, para ouvir os sons ou sentir os odores, quisessem utilizar-se dos olhos; salvo com esta diferena: que o sentido da viso no nos assegura menos a verdade de seus objetos do que os do olfato ou da audio; enquanto a nossa imaginao ou os nossos sentidos jamais poderiam garantir-nos coisa alguma, se o nosso juzo no interviesse. Afinal, se ainda h homens que no estejam totalmente convencidos da existncia de Deus e da alma, com as razes que apresentei, quero que saibam que todas as outras coisas, a respeito das quais se consideram talvez certificados, como a de possurem um corpo, existirem astros e a Terra, e coisas parecidas, so ainda menos certas. Pois, apesar de se ter dessas coisas uma certeza moral, que de tal ordem que, salvo sendo-se extravagante, parece impossvel coloc-la em dvida; contudo, ao que concerne certeza metafsica, no se pode negar, a no ser que no tenhamos bom senso, que motivo suficiente para no possuirmos total segurana a respeito, o fato de observarmos que podemos da mesma maneira imaginar, ao estarmos dormindo, que temos outro corpo, que vemos outros astros e outra Terra, sem que isso seja verdade. Pois, de onde sabemos que os pensamentos que nos surgem em sonhos so menos verdadeiros do que os outros, se muitos, com freqncia, no so menos vivos e ntidos? E, mesmo que os melhores espritos estudem o caso tanto quanto lhes agradar, no acredito que possam oferecer alguma razo que seja suficiente para dirimir essa dvida, se no presumirem a existncia de Deus. Pois, em princpio, aquilo mesmo que h pouco tomei como regra, ou seja, que as coisas que concebemos bastante evidente e distintamente so todas verdadeiras, no correto a no ser porque Deus ou existe, e um ser perfeito, e porque tudo o que existe em ns se origina dele. De onde se conclui que as nossas idias ou noes, por serem coisas reais e oriundas de Deus em tudo em que so evidentes e distintas, s podem por isso ser verdadeiras. De maneira que, se temos muitas vezes outras que contm falsidade, s podem ser as que possuem algo de confuso e obscuro, porque nisso participam do nada, ou seja, so assim confusas em ns porque ns no somos totalmente perfeitos. E evidente que no causa menos averso admitir que a falsidade ou a imperfeio se originam de Deus, como tal, do que admitir que a verdade ou a perfeio se originem do nada. Porm, se no soubssemos de maneira alguma que tudo quanto existe em ns de real e verdadeiro provm de um ser perfeito e infinito, por claras e distintas que fossem nossas idias, no teramos razo alguma que nos garantisse que elas possuem a perfeio de serem verdadeiras. Depois que o conhecimento de Deus e da alma nos tenha dado a certeza dessa regra, muito fcil compreender que os sonhos que imaginamos quando dormimos no devem, de forma alguma, levar-nos a duvidar da verdade dos pensamentos que nos ocorrem quando despertos. Pois, se sucedesse que, mesmo dormindo, tivssemos alguma idia muito distinta, como, por exemplo, que um gemetra criasse qualquer nova demonstrao, o sono deste no a impediria de ser verdadeira. E, quanto ao equvoco mais recorrente de nossos sonhos, que consiste em nos representarem vrios objetos tal como fazem nossos sentidos exteriores, no importa que ele nos d a oportunidade de desconfiar da verdade de tais idias, porque estas tambm podem nos enganar repetidas

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vezes, sem que estejamos dormindo, como ocorre quando os que tm ictercia vem tudo da cor amarela, ou quando os astros ou outros corpos extremamente distantes de ns se nos afiguram muito menores do que so. Pois, enfim, quer estejamos despertos, quer dormindo, jamais devemos nos deixar convencer exceto pela evidncia de nossa razo. E deve-se observar que eu digo de nossa razo, de maneira alguma de nossa imaginao ou de nossos sentidos. Porque, apesar de enxergarmos o sol bastante claramente, no devemos julgar por isso que ele seja do tamanho que o vemos; e bem podemos imaginar distintamente uma cabea de leo enxertada no corpo de uma cabra, sem que tenhamos de concluir, por isso, que no mundo existe uma quimera; pois a razo no nos sugere que tudo quanto vemos ou imaginamos seja verdadeiro, mas nos sugere realmente que todas as nossas idias ou noes devem conter algum fundamento de verdade; pois no seria possvel que Deus, que todo perfeito e verdico, as tivesse colocado em ns sem isso. E, pelo fato de nossos raciocnios nunca serem to evidentes nem to completos durante o sono como durante a viglia, apesar de que s vezes nossas imaginaes sejam tanto ou mais vivas e patentes, ela nos sugere tambm que, no podendo nossos pensamentos serem totalmente verdadeiros, porque no somos totalmente perfeitos, tudo o que eles contm de verdade deve encontrar-se inevitavelmente naquele que temos quando despertos, mais do que em nossos sonhos. (...) (Quinta Parte, pargrafo 1) SERIA DE MUITO meu agrado continuar e expor aqui toda a cadeia de outras verdades que deduzi dessas primeiras. Porm, suposto que, para tal realizao, seria agora necessrio que abordasse muitas questes controvertidas entre os eruditos, dos quais no desejo atrair a inimizade, acredito que ser melhor que eu me abstenha e apenas diga, em geral, quais elas so, para deixar que os mais sbios julguem se seria til que o pblico fosse mais especificamente informado a esse respeito. Continuava sempre firme na deciso que tomara de no presumir nenhum outro princpio, salvo aquele de que acabo de me servir para provar a existncia de Deus e da alma, e de no aceitar coisa alguma por verdadeira que no se me afigurasse mais clara e mais correta do que se me haviam afigurado anteriormente as demonstraes dos gemetras. Contudo, atrevo-me a afirmar que no apenas encontrei modo de me satisfazer em pouco tempo no tocante a todas as mais importantes dificuldades que costumam ser enfrentadas na filosofia, mas tambm que percebi certas leis que Deus estabeleceu de tal modo na natureza, e das quais imprimiu tais noes em nossas almas que, aps meditar bastante acerca delas, no poderamos pr em dvida que no fossem exatamente observadas em tudo o que existe ou se faz no mundo. Em seguida, atentando para a seqncia dessas leis, creio haver descoberto muitas verdades mais teis e mais importantes do que tudo quanto aprendera at ento, ou mesmo esperava aprender.

Ren Descartes Traduo: Enrico Corvisieri Texto disponvel online em: http://www.humanas.unisinos.br/info/filoweb/descartes/metodo.doc

ENSAIO ACERCA DO CONHECIMENTO HUMANO

SEO II DA ORIGEM DAS IDIASCada um admitir prontamente que h uma diferena considervel entre as percepes do esprito, quando uma pessoa sente a dor do calor excessivo ou o prazer do calor moderado, e quando depois recorda em sua memria esta sensao ou a antecipa por meio de sua imaginao. Estas faculdades podem imitar ou copiar as percepes dos sentidos, porm nunca podem alcanar integralmente a fora e a vivacidade da sensao original. O mximo que podemos dizer delas, mesmo quando atuam com seu maior vigor, que representam seu objeto de um modo to vivo que quase podemos dizer que o vemos ou que o sentimos. Mas, a menos que o esprito esteja perturbado por doena ou loucura, nunca chegam a tal grau de vivacidade que no seja possvel discernir as percepes dos objetos. Todas as cores da poesia, apesar de esplndidas, nunca podem pintar os objetos naturais de tal modo que se tome a descrio pela paisagem real. O pensamento mais vivo sempre inferior sensao mais embaada. Podemos observar uma distino semelhante em todas as outras percepes do esprito. Um homem merc dum ataque de clera estimulado de maneira muito diferente da de um outro que apenas pensa nessa emoo. Se vs me dizeis que certa pessoa est amando, compreendo facilmente o que quereis dizer-me e formo uma concepo precisa de sua situao, porm nunca posso confundir esta idia com as desordens e as agitaes reais da paixo. Quando refletimos sobre nossas sensaes e impresses passadas, nosso pensamento um reflexo fiel e copia seus objetos com veracidade, porm as cores que emprega so fracas e embaadas em comparao com aquelas que revestiam nossas percepes originais. No necessrio possuir discernimento sutil nem predisposio metafsica para assinalar a diferena que h entre elas. Podemos, por conseguinte, dividir todas as percepes do esprito em duas classes ou espcies, que se distinguem por seus diferentes graus de fora e de vivacidade. As menos fortes e menos vivas so geralmente denominadas pensamentos ou idias. A outra espcie no possui um nome em nosso idioma e na maioria dos outros, porque, suponho, somente com fins filosficos era necessrio compreend-las sob um termo ou nomenclatura geral. Deixenos, portanto, usar um pouco de liberdade e denomin-las impresses, empregando esta palavra num sentido de algum modo diferente do usual. Pelo termo impresso entendo, pois, todas as nossas percepes mais vivas, quando ouvimos, vemos, sentimos, amamos, odiamos, desejamos ou queremos. E as impresses diferenciam-se das idias, que so as percepes menos vivas, das quais

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temos conscincia, quando refletimos sobre quaisquer das sensaes ou dos movimentos acima mencionados. A primeira vista, nada pode parecer mais ilimitado do que o pensamento humano, que no apenas escapa a toda autoridade e a todo poder do homem, mas tambm nem sempre reprimido dentro dos limites da natureza e da realidade. Formar monstros e juntar formas e aparncias incongruentes no causam imaginao mais embarao do que conceber os objetos mais naturais e mais familiares. Apesar de o corpo confinar-se num s planeta, sobre o qual se arrasta com sofrimento e dificuldade, o pensamento pode transportar-nos num instante s regies mais distantes do Universo, ou mesmo, alm do Universo, para o caos indeterminado, onde se supe que a Natureza se encontra em total confuso. Pode-se conceber o que ainda no foi visto ou ouvido, porque no h nada que esteja fora do poder do pensamento, exceto o que implica absoluta contradio. Entretanto, embora nosso pensamento parea possuir esta liberdade ilimitada, verificaremos, atravs de um exame mais minucioso, que ele est realmente confinado dentro de limites muito reduzidos e que todo poder criador do esprito no ultrapassa a faculdade de combinar, de transpor, aumentar ou de diminuir os materiais que nos foram fornecidos pelos sentidos e pela experincia. Quando pensamos numa montanha de ouro, apenas unimos duas idias compatveis, ouro e montanha, que outrora conhecramos. Podemos conceber um cavalo virtuoso, pois o sentimento que temos de ns mesmos nos permite conceber a virtude e podemos uni-la figura e forma de um cavalo, que um animal bem conhecido. Em resumo, todos os materiais do pensamento derivam de nossas sensaes externas ou internas; mas a mistura e composio deles dependem do esprito e da vontade. Ou melhor, para expressar-me em linguagem filosfica: todas as nossas idias ou percepes mais fracas so cpias de nossas impresses ou percepes mais vivas. Para prov-lo, espero que sero suficientes os dois argumentos seguintes. Primeiro, se analisamos nossos pensamentos ou idias, por mais compostos ou sublimes que sejam, sempre verificamos que se reduzem a idias to simples como eram as cpias de sensaes precedentes. Mesmo as idias que, primeira vista, parecem mais distantes desta origem mostram-se, sob um escrutnio minucioso, derivadas dela. A idia de Deus, significando o Ser infinitamente inteligente, sbio e bom, nasce da reflexo sobre as operaes de nosso prprio esprito, quando aumentamos indefinidamente as qualidades de bondade e de sabedoria. Podemos continuar esta investigao at a extenso que quisermos, e acharemos sempre que cada idia que examinamos cpia de uma impresso semelhante. Aqueles que dizem que esta afirmao no universalmente verdadeira, nem sem exceo, tm apenas um mtodo, e em verdade fcil, para refut-la: mostrar uma idia que, em sua opinio, no deriva desta fonte. Incumbir-nos-ia ento, se quisssemos preservar nossa doutrina, de mostrar a impresso ou percepo mais viva que lhe corresponde. Segundo, se ocorre que o defeito de um rgo prive uma pessoa de uma classe de sensao, notamos que ela tem a mesma incapacidade para formar idias correspondentes. Assim, um cego no pode ter noo das cores nem um surdo dos sons. Restaurai a um deles um dos sentidos de que carecem: ao abrirdes as portas s sensaes, possibilitais tambm a entrada das idias, e a pessoa no ter mais dificuldade para conceber aqueles objetos. O mesmo fenmeno ocorre quando o objeto apropriado para estimular qualquer sensao nunca foi aplicado ao rgo do sentido. Um lapo ou um negro, por exemplo, no tm nenhuma noo do sabor do vinho. Apesar de haver poucos ou nenhum caso de semelhante deficincia no esprito, em que uma pessoa nunca sentiu ou que completamente incapaz de um sentimento ou paixo prprios de sua espcie, constatamos, todavia, que a mesma observao ocorre em menor grau. Um homem de modos brandos no pode formar uma idia de vingana ou de crueldade obstinada, nem um corao egosta pode conceber facilmente os pices da amizade e da generosidade. Em verdade, admitimos que outros seres podem possuir muitos sentidos dos quais no temos noo, porque as idias destes sentidos nunca nos foram apresentadas pela nica maneira por que uma idia pode ter acesso ao esprito, isto , mediante o sentimento e a sensao reais. H, no entanto, um fenmeno contraditrio que pode provar que no absolutamente impossvel que as idias nasam independentes de suas impresses correspondentes. Acredito que se concordaria facilmente que as vrias idias de cores diferentes que penetram pelos olhos, ou aquelas de sons conduzidas pelo ouvido, so realmente diferentes umas das outras, embora, ao mesmo tempo, parecidas. Ora, se isto verdadeiro a respeito das diferentes cores, deve s-lo igualmente para os diversos matizes da mesma cor; e cada matiz produz uma idia diversa, independente das outras. Pois, se se negasse isto, seria possvel, por contnua gradao dos matizes, passar insensivelmente de uma cor a outra completamente distante de srie; se vs no admitis a distino entre os intermedirios, no podeis, sem absurdo, negar a identidade dos extremos. Suponde, ento, uma pessoa que gozou do uso de sua viso durante trinta anos e se tornou perfeitamente familiarizada com cores de todos os gneros, exceto com um matiz particular do azul, por exemplo, que nunca teve a sorte de ver. Colocai todos os diferentes matizes daquela cor, exceto aquele nico, defronte daquela pessoa, decrescendo gradualmente do mais escuro ao mais claro. Certamente, ela perceber um vazio onde falta este matiz, ter o sentimento de que h uma grande distncia naquele lugar, entre as cores contguas, mais do que em qualquer outro. Ora, pergunto se lhe seria possvel, atravs de sua imaginao, preencher este vazio e dar nascimento idia deste matiz particular que, todavia, seus sentidos nunca lhe forneceram? Poucos leitores, creio eu, sero de opinio que ela no pode; e isto pode servir de prova que as idias simples nem sempre derivam das impresses correspondentes, mas esse caso to singular apenas digno de observao e no merece que, unicamente por ele, modifiquemos nossa mxima geral. Eis, portanto, uma proposio que no apenas parece simples e inteligvel em si mesma, mas que, se se fizer dela o uso apropriado, pode tornar toda discusso igualmente inteligvel e eliminar todo jargo, que h muito tempo se apossou dos raciocnios metafsicos e os desacreditou. Todas as idias, especialmente as abstratas, so naturalmente fracas e obscuras; o esprito tem sobre elas um escasso controle; elas so apropriadas para serem confundidas com outras idias semelhantes, e somos levados a imaginar que uma idia determinada est a anexada se, o que ocorre com freqncia, empregamos qualquer termo sem lhe dar significado exato. Pelo contrrio, todas as impresses, isto , todas as sensaes, externas ou internas, so fortes e vivas; seus limites so determinados com mais exatido e no to fcil confundi-las e equivocar-nos. Portanto, quando suspeitamos que um termo filosfico est sendo empregado sem nenhum significado ou idia o que muito freqente devemos apenas perguntar: de que impresso derivada aquela suposta idia? E, se for, impossvel designar urna, isto servir para confirmar nossa suspeita. E razovel, portanto, esperar que, ao trazer as idias a uma luz to clara, removeremos toda discusso que pode surgir sobre sua natureza e realidade.

David Hume Traduo de Anoar Aiex Texto disponvel online em:

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http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/ensaio.pdf

EXERCCIOS:

Questo 1 Mais tarde, ao analisar com ateno o que eu era, e vendo que podia presumir que no possua corpo algum e que no havia mundo algum, ou lugar onde eu existisse, mas que nem por isso podia supor que no existia; e que, ao contrrio, pelo fato mesmo de eu pensar em duvidar da verdade das outras coisas, resultava com bastante evidncia e certeza que eu existia; ao passo que, se somente tivesse parado de pensar, apesar de que tudo o mais que alguma vez imaginara fosse verdadeiro, j no teria razo alguma de acreditar que eu tivesse e