apostila - filosofia cristã antiga

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1 CONTEÚDO A PREPARAÇÃO PARA O CRISTIANISMO.........................2 Kairos.................................................. 2 Universalismo do império romano.........................2 Filosofia helênica...................................... 3 Ceticismo............................................... 4 A tradição platônica.................................... 5 Estoicismo.............................................. 6 Ecletismo............................................... 7 DESENVOLVIMENTO TEOLÓGICO NA IGREJA ANTIGA...............8 Pais apostólicos........................................ 8 Movimento apologético.................................. 13 Filosofia cristã....................................... 15 Deus e Logos........................................... 17 GNOSTICISMO.............................................19 NEOPLATONISMO...........................................22 CLEMENTE E ORÍGENES DE ALEXANDRIA.......................25 Cristianismo e filosofia...............................25 Doutrina de Deus....................................... 27 CURSO DE FILOSOFIA - INTRODUÇÃO.........................29 Que é filosofia?....................................... 29 Mito e filosofia....................................... 30 A religião grega e a filosofia.........................33 O contexto social, político e econômico da filosofia grega.................................................. 35 SÓCRATES E AS FORMAS PLATÔNICAS.........................37 A FILOSOFIA DA MATURIDADE DE PLATÃO.....................43 EPICURO E OS ESTÓICOS...................................47

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Page 1: Apostila - Filosofia Cristã Antiga

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CONTEÚDO

A PREPARAÇÃO PARA O CRISTIANISMO................................................................2

Kairos.............................................................................................................................2

Universalismo do império romano................................................................................2

Filosofia helênica...........................................................................................................3

Ceticismo.......................................................................................................................4

A tradição platônica.......................................................................................................5

Estoicismo......................................................................................................................6

Ecletismo.......................................................................................................................7

DESENVOLVIMENTO TEOLÓGICO NA IGREJA ANTIGA......................................8

Pais apostólicos..............................................................................................................8

Movimento apologético...............................................................................................13

Filosofia cristã..............................................................................................................15

Deus e Logos...............................................................................................................17

GNOSTICISMO..............................................................................................................19

NEOPLATONISMO.......................................................................................................22

CLEMENTE E ORÍGENES DE ALEXANDRIA..........................................................25

Cristianismo e filosofia................................................................................................25

Doutrina de Deus.........................................................................................................27

CURSO DE FILOSOFIA - INTRODUÇÃO..................................................................29

Que é filosofia?............................................................................................................29

Mito e filosofia.............................................................................................................30

A religião grega e a filosofia........................................................................................33

O contexto social, político e econômico da filosofia grega.........................................35

SÓCRATES E AS FORMAS PLATÔNICAS................................................................37

A FILOSOFIA DA MATURIDADE DE PLATÃO.......................................................43

EPICURO E OS ESTÓICOS..........................................................................................47

OS PLATÔNICOS INTERMEDIÁRIOS E FÍLON DE ALEXANDRIA.....................56

A FILOSOFIA DO FINAL DA ANTIGUIDADE..........................................................62

O DEBATE ACERCA DA FILOSOFIA CRISTA.........................................................70

FÉ E FILOSOFIA............................................................................................................80

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A PREPARAÇÃO PARA O CRISTIANISMO1

Kairos

Segundo o apóstolo Paulo nem sempre existe a possibilidade de acontecer o que, por exemplo, aconteceu no aparecimento de Jesus, o Cristo. A vinda de Jesus se deu num momento especial da história em que tudo estava preparado. Vamos discutir, agora, essa "preparação". Paulo fala de kairos, para descrever o sentimento de que o tempo estava pronto, maduro, ou preparado. Esta palavra grega exemplifica a riqueza da língua grega em comparação com a pobreza das línguas modernas. Só temos um vocábulo para "tempo". Os gregos têm dois, chronos e kairos. Chronos é o tempo do relógio, que se pode medir, como aparece em palavras como "cronologia" e "cronômetro". Kairos não tem nada a ver com esse tempo quantitativo do relógio, mas se refere ao tempo qualitativo da ocasião, o tempo certo. Algumas histórias do Evangelho falam desse tempo. Determinados fatos acontecem quando o tempo certo, o kairos, não chega. Quando se fala em kairos se quer indicar que alguma coisa aconteceu tornando possíveis ou impossíveis certas ações. Todos nós experimentamos momentos em nossas vidas quando sentimos que agora é o tempo certo para agirmos, que já estamos suficientemente maduros, que podemos tomar decisões. Trata-se do kairos. Foi nesse sentido que Paulo e a igreja primitiva falaram de kairos, o tempo certo para a vinda do Cristo. A igreja primitiva e Paulo até certo ponto tentaram mostrar por que esse tempo era o tempo certo, e de que maneira o seu aparecimento tinha sido possibilitado por uma constelação providencial de fatores.

Vamos examinar a seguir a preparação para a teologia cristã na situação do mundo no qual Jesus veio. Vamos partir de um ponto de vista teológico - há outros - buscando compreender as possibilidades da teologia cristã. Não é como se a revelação de Cristo caísse do céu como uma pedra, como alguns teólogos parecem acreditar. "Aqui está: aceitem-na ou rejeitem-na".

É o contrário de Paulo. Há de fato um poder revelador universal perpassando a história toda e preparando-a para o que o cristianismo considera a revelação final.

Universalismo do império romano

O evento do Novo Testamento surgiu na época do universalismo do império romano. Há elementos positivos e negativos nesse fato, ao mesmo tempo. Negativamente, significa o desmoronamento das religiões e das culturas nacionais. Positivamente, fortalecia a idéia de que a humanidade podia ser concebida como um todo. O império romano produziu clara consciência de história mundial, em contraste com histórias nacionais acidentais. A história mundial não era apenas um propósito a ser alcançado na história, no sentido dos profetas; tornara-se, em vez disso, numa realidade empírica.

1 O texto a seguir, até a página 29 foi extraído integralmente de TILLICH, Paul. História do pensamento cristão. Tradução de Jaci Maraschin. 2 ed. São Paulo: Aste, 2000, p. 24-78.

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É esse o sentido positivo de Roma. Essa cidade representava a monarquia universal na qual se unia todo o mundo conhecido. Essa idéia foi absorvida pela Igreja Romana e aplicada ao Papa. Ainda permanece nessa igreja. Com isso, Roma ainda reivindica o poder monárquico sobre o mundo inteiro, seguindo o ideal do império romano. Talvez seja importante observar que jamais deveríamos esquecer que a Igreja Romana é romana, e que o desenvolvimento dessa igreja não foi influenciado apenas pelo cristianismo, mas também pelo império romano, por sua grandiosidade e por sua idéia de lei. A Igreja Romana tornou-se a herdeira do império romano. Nunca devemos esquecer esse fato. Quando formos tentados a avaliar a Igreja Romana acima do que deveríamos, será hora de perguntarmos a nós mesmos: quantos elementos romanos ainda persistem nela, e até que ponto são válidos hoje em nossa cultura? O mesmo processo se aplica aos conceitos filosóficos gregos que criaram o dogma cristão. Até que ponto são válidos hoje em dia? Naturalmente, não é preciso rejeitar certos elementos simplesmente porque são romanos ou gregos, ou aceitá-los, por outro lado, porque se originaram em Roma ou na Grécia, mesmo quando sancionados por decisões dogmáticas.

Filosofia helênica

No contexto desse mundo único, dessa história mundial e dessa monarquia criada por Roma, encontramos o pensamento grego. É o que se conhece como período helênico da filosofia grega. Fazemos distinção entre o período clássico do pensamento grego, que termina com a morte de Aristóteles, e o helênico, em que se situam os estóicos, os epicuristas, os neopitagóricos, os céticos e os neoplatônicos.

Acha-se aí a fonte imediata de boa parte do pensamento cristão. O cristianismo primitivo não foi influenciado tanto pela filosofia clássica, mas pelo pensamento helênico.

Vou novamente distinguir entre elementos positivos e negativos no pensamento grego do período do kairos, quando o mundo antigo terminou. O lado negativo encontra-se no que chamamos de ceticismo. O ceticismo, não só na escola dos céticos, mas também em outras escolas de filosofia grega, é o fim da tremenda e admirável tentativa da construção de um mundo de sentido baseado na interpretação da realidade em termos objetivos e racionais. A filosofia grega havia minado as antigas tradições mitológicas e rituais. Na época de Sócrates e dos sofistas era óbvio que essas tradições não eram mais válidas. A sofística era a revolução da mentalidade subjetiva contra as antigas tradições. Mas a vida precisava continuar. Era, todavia, preciso investigar o sentido da vida em todas as suas dimensões, na política, no direito, na arte, nas relações sociais, no conhecimento, na religião etc. Os filósofos gregos procuraram realizar essa tarefa. Não ficaram sentados em suas escrivaninhas escrevendo livros de filosofia. Se tivessem apenas filosofado sobre filosofia já teríamos há tempo esquecido seus nomes. Em vez disso, tomaram sobre si a tarefa de criar um mundo espiritual observando objetivamente a realidade conforme lhes era dada, interpretando-a em termos de razão analítica e sintética.

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Ceticismo

Esse vasto projeto dos filósofos gregos de criar um mundo de significados começou a desmoronar no apagar das luzes do mundo antigo e produziu o que chamo de epílogo cético do desenvolvimento antigo. Originalmente, o termo skepsis queria dizer "observar as coisas". Mas assumiu um sentido negativo de examinar os dogmas, até mesmo as dogmata das escolas gregas de filosofia, para rejeitá-los. Os céticos, assim, duvidaram de todas as formulações das escolas de filosofia. Não que essas escolas não contivessem em seu ensino boa parte desses elementos céticos, como, por exemplo, a academia platônica. O ceticismo não conseguiu avançar além do probabilismo enquanto que as outras escolas tornaram-se pragmáticas. Assim, essa atmosfera cética invadiu todas as escolas e permeou a vida toda no mundo antigo de então. Tratava-se de assunto vital e muito sério. Não se tratava novamente de se sentar em mesas de estudo para descobrir que se podia duvidar de todas as coisas. Essa tarefa seria comparativamente fácil. Na verdade, esse movimento significava o desabamento de todas as convicções.

A conseqüência dessa atitude - bastante característica da mentalidade grega - foi uma espécie de paralisia da ação. Se não somos mais capazes de pronunciar juízos teóricos, não podemos agir na prática. Portanto, introduziram a doutrina da epoché, "suspensão de juízo, reserva, não julgar nem agir, não decidir nem teórica nem praticamente". A doutrina da epoché significava a resignação do juízo em todos os aspectos. Por isso os céticos retiraram-se para os desertos vestidos de uma simples túnica ou manto. Os monges cristãos, mais tarde, seguiram-nos nessa atitude, porque eles também se desesperaram sobre a possibilidade de se viver neste mundo. Alguns céticos da igreja primitiva eram sérios e agiam de acordo, ao contrário de certos céticos esnobes de nossos dias que não se animam a arcar com as conseqüências de seu ceticismo, que levam vidas alegres e confortáveis enquanto duvidam de todas as coisas. Os céticos gregos retiraram-se da vida e assim mostraram-se consistentes.

O ceticismo foi, pois, um dos importantes elementos para a preparação do cristianismo. As escolas gregas, como os epicuristas, os estóicos, os acadêmicos, os peripatéticos e os neopitagóricos, não eram escolas no sentido em que temos hoje escolas filosóficas, como a escola de Dewey ou a de Whitehead. As escolas filosóficas gregas eram também comunidades cúlticas; eram meio rituais e meio filosóficas. Seus membros queriam viver de acordo com as doutrinas de seus mestres. Quando surgiu o movimento cético, procuravam acima de tudo a certeza; queriam-na para poder viver. Acreditavam que os grandes mestres, Platão ou Aristóteles, o estóico Zenão ou Epicuro, e mais tarde Plotino, não eram apenas pensadores ou professores, mas homens inspirados. Muito antes do cristianismo existir, a idéia de inspiração já se desenvolvia nessas escolas gregas: seus fundadores eram inspirados. Quando membros dessas escolas entraram mais tarde em discussão com cristãos, diziam, por exemplo, que não era Moisés o inspirado, mas Heráclito. Essa doutrina da inspiração também ajudou o cristianismo a entrar no mundo. A razão pura não era capaz de construir a realidade na qual se pudesse viver.

O que se dizia sobre os fundadores dessas escolas filosóficas era semelhante ao que os cristãos diziam a respeito do fundador de sua igreja. É curioso notar que um homem como Epicuro - de tal maneira atacado pelos cristãos que só restam dele poucos fragmentos - era chamado soter pelos discípulos.

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Essa palavra era usada no Novo Testamento para significar "salvador". Assim, o filósofo Epicuro era conhecido como salvador. Por quê? Em geral, Epicuro é considerado um homem que sempre viveu bem nos seus agradáveis jardins e que ensinou uma filosofia hedonista rejeitada pelos cristãos.

Mas o mundo antigo não tinha essa idéia sobre Epicuro. Era chamado de soter porque fizera a coisa mais importante que alguém poderia fazer pelos seus seguidores: libertava-os da angústia. Epicuro, com seu sistema materialista de átomos, libertava as pessoas dos demônios presentes na totalidade da vida do mundo antigo. Vê-se bem que a filosofia era assunto muito sério nessa época.

Outra conseqüência desse espírito cético era o que os estóicos chamaram de apatheia (apatia), que significa ausência de sentimentos em relação às forças e impulsos da vida, como desejos, alegrias, dores, indo-se além de tudo isso ao estado da sabedoria. Sabiam que somente algumas pessoas conseguiram alcançar esse estado. Os céticos que se retiraram para os desertos demonstravam até certo ponto essa capacidade. Por trás de tudo isso, naturalmente, situava-se a crítica anterior aos deuses mitológicos e aos ritos tradicionais. A crítica da mitologia deu-se na Grécia cerca da mesma época em que o Segundo Isaías fazia o mesmo na Judéia. Essa atividade crítica minava a crença nos deuses do politeísmo.

A tradição platônica

Consideramos anteriormente o lado negativo do pensamento grego na época do kairos. Mas havia também elementos positivos. Vamos examinar primeiramente a tradição platônica. A idéia de transcendência, de que existe algo capaz de se sobrepor à realidade empírica, foi desenvolvida pela tradição platônica e serviu de preparação ao advento da teologia cristã. Platão falava a respeito de realidade essencial, de "idéias" (ousia) como verdadeiras essências das coisas. Ao mesmo tempo encontramos em Platão, e até mesmo mais incisivamente no platonismo posterior e no neoplatonismo, forte tendência para a desvalorização da existência. O mundo material não possuía valor real em comparação com o mundo essencial. Também para Platão o objetivo interior da existência humana era descrito - principalmente no Filebo, mas praticamente em todos os demais escritos - como se tornar semelhante a Deus tanto quanto possível. Deus é a esfera da realidade espiritual. O telos interior da existência humana realiza-se na participação nessa esfera espiritual e divina, na medida do possível. Essa mesma idéia da tradição platônica reaparece especialmente nos escritos dos padres capadócios da igreja para descrever o alvo supremo da existência humana.

Surge uma terceira doutrina, além da idéia de transcendência e do telos da existência humana. Trata-se da queda da alma da eterna participação no mundo essencial ou espiritual, sua degradação terrena num corpo físico, que procura se livrar da escravidão desse corpo, para finalmente se elevar acima do mundo material.

O processo seria vagaroso e por etapas. Essas idéias aparecem também na igreja, não apenas entre os místicos cristãos, mas também no ensino oficial dos pais da Igreja.

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A idéia da providência vem também da tradição platônica. Estamos acostumados a pensar que essa idéia é cristã, mas, na verdade, já havia sido formulada por Platão nos seus últimos escritos. Tinha o ambicioso propósito de acabar com a angústia do destino e da morre presente na época. O sentimento de angústia em face do acidental e do necessário, ou destino, que é a mesma coisa, representados pelas divindades gregas Tyché e Haimarmene, era muito forte no mundo antigo. Em Romanos 8, onde encontramos o maior hino de triunfo do Novo Testamento, lemos que Cristo tem a função de subjugar as forças demônicas do destino. Ao antecipar essa situação, por meio de sua doutrina da providência, Platão fez enorme contribuição à teologia. A providência, emanada do mais alto dos deuses, dá-nos a coragem para escapar das vicissitudes do destino.

O quinto elemento oriundo da tradição platônica veio de Aristóteles. O divino é forma sem matéria, perfeito em si mesmo. É a idéia mais profunda de Aristóteles. Deus, a forma mais perfeita, movimenta o mundo, não casualmente empurrando-o de fora, mas atraindo todas as coisas finitas para si mesmo, por meio do amor. Apesar de sua atitude aparentemente científica sobre a realidade, Aristóteles desenvolveu um dos mais importantes sistemas de amor. Entendia que Deus, a forma suprema, ou ato puro (actus purus), como o chamava, move todas as coisas ao ser amado por todas as coisas. A realidade toda deseja se unir à forma suprema, para se livrar das formas inferiores em que vive, na escravidão da matéria. Mais tarde, o Deus aristotélico, forma suprema, entrou na teologia cristã e exerceu tremenda influência sobre ela.

Estoicismo

Os estóicos foram mais importantes do que Platão e Aristóteles juntos para a vida e o destino do mudo antigo. As vidas das pessoas educadas nessa época eram moldadas principalmente pela tradição estóica. Em meu livro A Coragem de Ser, tratei da idéia estóica de coragem capaz de levar as pessoas a aceitar o destino e a morre. Demonstrei que o cristianismo e o estoicismo são os grandes competidores no mundo ocidental. Mas quero demonstrar, agora, algo diferente. O cristianismo tomou de seu rival muitas idéias fundamentais.

A primeira é a doutrina do Logos, doutrina que pode desesperar muita gente quando começa a estudar a história do pensamento trinitário e cristológico. Mas o desenvolvimento dogmático do cristianismo não pode ser entendido sem ela.

Logos significa "palavra". Mas também se refere ao sentido da palavra, à estrutura racional indicada por ela. Portanto, Logos também pode significar a lei universal da realidade. Heráclito pensava assim. E foi ele o primeiro a empregar esse termo filosoficamente. Para ele, Logos era a lei determinante dos movimentos da realidade.

Para os estóicos Logos era o poder divino presente na realidade toda. Observemos, a seguir, três aspectos desse pensamento, muito importantes nos desenvolvimentos doutrinários posteriores. O primeiro é a lei da natureza. Logos é o princípio determinante do movimento de todas as coisas. É a semente divina, o poder divino criador, que faz com que as coisas sejam o que são. E é o poder criativo do movimento de todas as coisas. Em segundo lugar, Logos significa lei moral.

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Podemos chama-la, com Kant, de "razão prática", a lei inata em todos os seres humanos que se aceitam como personalidade, com a dignidade e a grandeza do ser humano. Ao lermos a expressão "lei natural" em obras clássicas, não devemos confundi-la com lei físicas, mas entendê-la como lei moral. Por exemplo, quando se fala de "direitos humanos" na constituição americana, está se falando de lei natural. Em terceiro lugar, Logos também significa a capacidade humana de reconhecer a realidade. É o que se pode chamar de "razão teórica". Trata-se da capacidade humana da razão. Tendo o Logos em si, o homem pode descobri-lo também na natureza e na história. Para o estoicismo, decorre daí a idéia de que os seres humanos quando determinados pela lei natural, pelo Logos, tornam-se fogikos, sábios. Mas os estóicos não eram otimistas. Não acreditavam que todas as pessoas fossem sábias. Achavam, até mesmo, que poucas pessoas alcançavam tal excelência. A maioria não passava de néscios que, às vezes, ficavam na posição intermediária entre esses e os sábios. O estoicismo professava um pessimismo fundamental a respeito da maioria dos seres humanos.

Originalmente, os estóicos eram gregos. Mais tarde foram também romanos. Entre os mais famosos estóicos contam-se importantes imperadores romanos, como, por exemplo, Marco Aurélio. Aplicavam o conceito de Logos à situação política sob sua responsabilidade. A lei natural significava que todos os seres humanos participam na razão em virtude desse simples fato de serem humanos. A partir desse princípio criaram leis grandemente superiores às muitas que encontramos na Idade Média cristã.

Concederam cidadania universal a qualquer pessoa que o quisesse porque eram participantes em potência na razão. Naturalmente, não acreditavam que todo o mundo usasse adequadamente a razão, mas entendiam que por meio da educação todos poderiam usá-la um dia. A concessão de cidadania romana a todos os cidadãos das nações conquistadas representou tremendo avanço nivelador. As mulheres, os escravos e as crianças, considerados inferiores sob a antiga lei romana, tornavam-se iguais perante as leis dos imperadores romanos. Não foram os cristãos que inventaram essas coisas, mas os estóicos, por acreditarem na idéia de que todos participam do Logos universal. (Naturalmente, o cristianismo mantém a mesma idéia em base diferente: todos os seres humanos são filhos de Deus Pai). Dessa maneira, os estóicos conceberam a idéia de um estado todo abrangedor, envolvendo o mundo inteiro, baseado na racionalidade comum de todas as pessoas. O cristianismo poderia ter adotado essa idéia desenvolvendo-a. A diferença é que os estóicos não tinham o conceito de pecado. Falavam em insensatez, mas não em pecado. Assim, a salvação se alcançava por meio da sabedoria. No cristianismo, a salvação nos é concedida pela graça divina. São duas atitudes conflitantes até hoje.

Ecletismo

A igreja cristã absorveu também o ecletismo. O termo vem do grego e quer dizer escolher algumas possibilidades entre muitas. Os americanos não deveriam estranhar essa atitude porque se assemelham aos antigos romanos não só nessa postura como em muitas outras. Os ecléticos não eram filósofos criativos como os antigos filósofos gregos. Esses pensadores romanos combinavam, em geral, a política com preocupações sobre o Estado. Enquanto ecléticos não criaram novos sistemas.

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Em vez disso, escolheram (Cícero, por exemplo) os conceitos mais importantes dos sistemas clássicos gregos que lhes pareciam pragmaticamente úteis para os cidadãos romanos. Desse ponto de vista, escolheram o que poderia produzir o melhor modo de vida possível para os cidadãos romanos, enquanto cidadãos do mundo. Estas são as principais idéias selecionadas por eles, retomadas pelo iluminismo do século dezoito: providência, porque dava segurança à vida do povo; Deus, por ser inata em todos, induzindo ao temor de Deus e à disciplina; liberdade moral e responsabilidade, possibilitando a educação do povo e tornando o povo resistente diante das falhas morais; e, finalmente, imortalidade, capaz de ameaçar com a punição num outro mundo os que escapavam do castigo aqui na terra. Essas idéias todas também preparam de certa forma o mundo antigo para o cristianismo.

DESENVOLVIMENTO TEOLÓGICO NA IGREJA ANTIGA

Pais apostólicos

Vamos examinar agora os pais apostólicos, primeiros escritores pós-bíblicos conhecidos, alguns dos quais escreveram até mesmo antes dos últimos livros do Novo Testamento. Inácio de Antioquia, Clemente de Roma, "O pastor" de Hermas, e outros, mostraram-se muito mais na linha de certo conformismo cristão desenvolvido aos poucos do que da posição de vanguarda manifestada por Paulo em suas cartas. A influência de Paulo, nessa época, era sentida mais indiretamente por meio de João e de Inácio. A razão disto, pelo menos em parte, é que a controvérsia com os judeus já era coisa do passado; o conflito do apóstolo com os cristãos judeus não tinha mais sentido. Em lugar disso, os elementos positivos da fé capazes de oferecer conteúdos compreensíveis aos pagãos precisavam ser discutidos. Poder-se-ia dizer, em geral, que no período dos pais apostólicos já haviam desaparecido as grandes visões do primeiro movimento extático, ficando em seu lugar um conjunto de idéias produtoras de certo conformismo eclesiástico, possibilitando o trabalho missionário. Muita gente reclama disso. Deploram que tão cedo, já nessa segunda geração de cristãos, o poder do Espírito Santo se fora. É o que inevitavelmente acontece nos períodos mais criativos. Vejam o que aconteceu na época da Reforma: logo depois de sua explosão e da segunda geração que a recebeu, começou uma fase de fixação ou de concentração em algumas idéias particulares. São necessidades educacionais que entram em cena para preservar o que foi dado antes.

Contudo, essa época da história do pensamento cristão é extremamente importante, mesmo tendo perdido consideravelmente o poder espiritual tão vivo nos dias dos apóstolos. É importante porque preservou o que era necessário para a vida das congregações. A primeira pergunta formulada era esta: onde se encontra a expressão do espírito comum da congregação? Originalmente, os verdadeiros mediadores da mensagem eram os portadores do Espírito, os "pneumáticos", os que possuíam o pneuma. Sabemos, porém, segundo a primeira carta de Paulo ao Corínrios, capítulo 12 em especial, que ele já encontrara dificuldades com os portadores do Espírito porque produziam desordem. Assim, acentuou a necessidade da ordem ao lado do Espírito.

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Nas cartas pastorais, atribuídas a Paulo, a ênfase na ordem eclesiástica toma-se cada vez mais importante. Na época dos pais apostólicos, as experiências espirituais de êxtase tinham quase desaparecido. Eram consideradas perigosas. E por que, perguntavam, precisamos delas? Todas as coisas que o Espírito desejara dizer já haviam sido classicamente exprimidas por meio das Escrituras e da tradição. Portanto, em vez dos profetas que viajavam de lugar para lugar, com os apóstolos, nós agora temos normas e autoridades bem definidas, surgidas das congregações. Quais eram essas normas e autoridades?

A primeira e básica autoridade era o Antigo Testamento. Vinha em seguida a mais antiga coleção de escritos que mais tarde se incorporou no Novo Testamento. Os limites do Novo Testamento ainda não tinham sido estabelecidos. A igreja levou mais de duzentos anos para decidir sobre os livros que entrariam no cânon do Novo Testamento.

Ao lado desses escritos já havia um complexo de doutrinas éticas e dogmáticas consideradas tradicionais. Na primeira carta de Clemente elas se chamam "o cânon de nossa tradição". Essa tradição tinha diversos nomes, como verdade, evangelho, doutrina e mandamento. Não era possível esperar que os novos membros da igreja entendessem de tudo isso. Era preciso simplificar essa tradição para os que iam sendo batizados. Criou-se, então, um credo para ser confessado pelos novos membros da igreja. Assemelhava-se bastante com o que hoje conhecemos pelo nome de "Credo Apostólico", porque girava em torno da cristologia. A cristologia passava a ser central porque distinguia as comunidades cristãs tanto do judaísmo como do paganismo.

O batismo era o sacramento da iniciação na igreja. Os batizados, que na época, naturalmente, tinham sido adultos pagãos, confessavam a decisão de aceitar as implicações desse batismo. Eram, então, batizados em nome de Cristo. Mais tarde foram acrescentados os nomes de Deus Pai e do Espírito Santo. Como não havia ainda explicações paralelas, estava-se no domínio da fé e da liturgia e não da teologia.

Tudo isso estava acontecendo na igreja. Era a ekklesia, a assembléia de Deus ou de Cristo. O sentido original do termo ekklesia era "chamado de".

As pessoas eram chamadas de suas casas e nações para formar a igreja universal; do meio dos bárbaros, dentre os gregos e judeus, para ser o povo de Deus. É verdade que os judeus anteciparam a igreja e se constituíram eles mesmos numa espécie de ekklesia. Mas não constituíam o verdadeiro povo de Deus porque o verdadeiro povo de Deus tinha que ser universalmente chamado de todas as nações. Sendo esse o caso, era necessário distinguir os chamados que se conformavam com o credo eclesiástico, dos de fora e dos hereges de dentro. De que maneira? De que modo se poderiam determinar as verdadeiras doutrinas da igreja em contraste com ensinamentos oriundos dos bárbaros, dos gregos ou dos judeus? A resposta é que esse julgamento só poderia ser feito pelo bispo que era o "supervisor" da congregação. O bispo representava o Espírito supostamente presente no interior da vida da congregação. O bispo foi se tornando cada vez mais importante nas lutas dos cristãos contra os pagãos, os judeus, os bárbaros e os hereges. Inácio escreveu na carta aos esmirnianos: "Onde está o bispo aí deveria estar a congregação". Os profetas que aparecessem poderiam estar certos ou errados, mas o bispo sempre estaria certo. Ele representava a doutrina verdadeira. Originalmente, os bispos não se distinguiam dos presbíteros ou anciãos. Gradualmente, contudo, ele se tornou uma espécie de monarca entre os anciãos, fazendo nascer o episcopado monárquico. Tratava-se de um desenvolvimento natural.

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Pois se a autoridade que garante a verdade pode se concretizar em seres humanos, é quase inevitável a tendência para reduzi-la a um único indivíduo capaz de fazer decisões em última instância. Já encontramos em Clemente de Roma traços da idéia de sucessão apostólica, isto é, que os bispos representam os apóstolos. Vê-se claramente quão cedo o problema da autoridade se tornou decisivo na igreja, dando início à tendência que acabou plenamente desenvolvida na Igreja Romana.

Vamos examinar, a seguir, algumas das principais doutrinas discutidas nessa época. Em face do mundo pagão, no qual viviam os cristãos, importava ressaltar acima de tudo a idéia monoteísta de Deus.

Lê-se no Pastor de Hermas: “Em primeiro lugar, crê que Deus é uno, e que fez todas as coisas, a partir do nada”. Temos aí expressa a doutrina da criação ex nihilo. Embora não se encontre essa doutrina explicitamente no Antigo Testamento, pode-se dizer que está implícita, e que, por certo, já fora expressa antes do cristianismo pelos teólogos judaicos no período intertestamentário. Essa doutrina teve importância decisiva na separação da igreja primitiva do paganismo.

Estava nessa mesma linha a ênfase no Deus todo poderoso, o despotés, como era chamado, o Senhor poderoso que tudo governa. Clemente exclama: "O grande demiurgo!", falando dele como o grande construtor do universo e Senhor de todas as coisas.

Esses conceitos que nos parecem tão naturais hoje em dia eram importantes porque serviam de proteção contra o paganismo. A doutrina da criação a partir do nada significava que Deus não encontrara a matéria já pré-existente quando começou a criar. Não podia haver matéria que resistisse à forma, como no neoplatonismo pagão, que deva, portanto, ser transcendida. Em lugar disso, o mundo material é objeto da criação de Deus: é um mundo bom e não deve ser menosprezado para enaltecer a salvação. A palavra "demiurgo" era usada por Platão e pelos gnósticos para designar um ser inferior ao Deus altíssimo. O Deus altíssimo paira acima de coisas tão humildes como a criação do mundo, deixando essa tarefa para o demiurgo. Queria-se dizer que a realidade divina não estava presente no ato da criação. Contrariando essa noção, Clemente afirmava que o grande demiurgo era o próprio Deus. Não poderia haver dicotomia entre Deus altíssimo e o criador do mundo. A criação tinha que ser um ato absoluto a partir do nada. Proclamava-se, assim, o poder insuperável de Deus. Mas a afirmação de que Deus era todo-poderoso não queria dizer que ele se sentava num trono e podia fazer qualquer coisa que lhe viesse na cabeça como qualquer tirano arbitrário. Mas que Deus era a única base das coisas criadas, e que não existe matéria alguma capaz de lhe oferecer resistência. É o que quer dizer o primeiro artigo do Credo Apostólico: "Creio em Deus Pai Todo Poderoso, criador do céu e da terra". Deveríamos pronunciar essas palavras com grande reverência, porque, por meio dessa confissão, o cristianismo se separou da interpretação dualista da realidade presente no paganismo. Não há dois princípios eternos, o princípio mau da matéria tão eterno como o bom princípio da forma. O primeiro artigo do Credo é a grande muralha que o cristianismo ergueu contra o paganismo. Sem essa separação a cristologia teria inevitavelmente se deteriorado num tipo de gnosticismo no qual o Cristo não seria mais do que um dos poderes cósmicos entre outros, embora, talvez, o maior deles. Somente à luz do primeiro artigo do Credo é que o segundo tem sentido. Ele não reduz Deus à segunda pessoa da Trindade.

Governando todas as coisas, Deus tem um plano de salvação. Inácio em particular desenvolve essa idéia. Em sua carta aos efésios fala da "economia para o novo homem".

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Trata-se de um sumário maravilhoso da mensagem cristã. Economia significa, neste contexto, "construção de uma casa". A palavra é usada para a estrutura das relações entre Deus e o mundo. Há uma economia do pensamento trinitário: Pai, Filho e Espírito Santo. Somente os três juntos são Deus. Há uma economia da salvação, que é a edificação dos diferentes períodos que finalmente levam ao novo homem.

A idéia do homem novo, da nova criatura ou do novo ser, como alvo da história da salvação, é importante contribuição desses teólogos. Essa economia da salvação já estava presente na época do Antigo Testamento. Assim, diz Inácio: "O judaísmo creu na direção do cristianismo".

O Cristo, o novo homem, é a realização perfeita no qual a corrupção do homem velho é superada e a morte se dissolve. Vai-se daí para a cristologia.

Pode-se dizer, em geral, que Jesus, o Cristo, era considerado um ser espiritual pré-existente que transformara o Jesus histórico num agente de sua atividade salvadora. O Espírito era uma hypostasis em Deus, um poder independente em completa união com Deus. O Filho desceu aos domínios da carne. "Carne" sempre quer dizer realidade histórica. Ele aceitou a carne; pode-se igualmente dizer que a carne cooperou com o Espírito nele. O Espírito Santo habitou na carne que escolheu. E ele se tornou o Filho de Deus por meio de sua ação.

Ao lado desta, havia outra idéia. Poder-se-ia dizer também que o primeiro Espírito, o proton pneuma, se fizera carne. Inácio dizia, por exemplo: "Cristo é Deus e perfeito homem ao mesmo tempo. Procede do Espírito e da semente de Davi". Queria dizer que ele não era apenas um poder espiritual que aceitara a carne, mas que enquanto poder espiritual se fizera carne.

Iatros, médico, era um outro termo empregado. A salvação era aqui ainda entendida como cura. Esse médico curava tanto carnalmente como espiritualmente. Idéias bastante misturadas eram usadas para sublinhar o evento de certa forma paradoxal do Cristo. Esse poder espiritual divino aparecera, afinal, nas condições da humanidade e da existência. Assim, ele é descrito como tendo origem genética e, ao mesmo tempo, sem origem genética. Vem na carne. Enfrenta a morte. Mas é Deus que vem na carne e vence a morte. E tem vida eterna. Nasce de Maria e de Deus. É capaz de sofrer e de não sofrer, por causa de sua elevação a Deus.

Inácio podia dizer: "Pois há um único Deus que se manifestou por meio de Jesus Cristo seu Filho, que é seu Logos, procedente de seu silêncio". E na segunda carta de Clemente lemos: "Sendo o primeiro Espírito, o cabeça dos anjos, tornou-se carne. Sendo o que aparece em forma humana, Cristo é o verbo procedente do silêncio". Ele procede do silêncio, apo sigés. Ele quebra o silêncio eterno do fundamento divino. Como tal, é Deus e completamente homem. A mesma realidade histórica é um e outro, ambos numa só pessoa. Poder-se-ia falar de uma mensagem dupla (uma diplon kerygma), que esse mesmo ser era ao mesmo tempo Deus e homem.

Estamos em face do principal interesse religioso deste período, de falar, como dizia Clemente, teologicamente de Cristo como de Deus. "Irmãos, assim devemos pensar a respeito de Jesus Cristo como de Deus, pois se pensarmos insignificantemente dele, só poderemos esperar receber igualmente coisas insignificantes". O caráter absoluto da salvação exige um salvador divino também absoluto. Estamos diante de dois possíveis modos de pensar: teria o Cristo vindo na carne, aceitando-a?

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Ou viera como o Logos, tendo sido depois transformado em carne? Já se conheciam esses dois tipos de cristologia: tomar a carne ou ser transformado em carne.

É bastante profunda a idéia de que o Logos divino quebra o silêncio de Deus. Queria dizer que o abismo da divindade não tem palavras, nem forma, nem objeto, nem voz. É o silêncio infinito do eterno. Mas saindo desse silêncio, o Logos irrompe e desoculta o que se escondia nesse silêncio. Revela o fundamento divino.

Essa cristologia não se confunde com problemas teóricos, pelo contrário, o problema cristológico faz parte do problema soteriológico. Busca-se a certeza da salvação. Deseja-se a coragem capaz de superar a ansiedade de perdição.

A questão da salvação é a base da questão cristológica. Que é salvação? A obra de Cristo é dupla: gnósis (conhecimento), em primeiro lugar e zoé (vida), em seguida. Foi assim que a igreja primitiva grega concebia a salvação. Cristo traz conhecimento e vida. Às vezes, esses dois elementos se combinavam numa só frase, athanatos gnósis, conhecimento imortal, conhecimento do que é imortal e que faz com que a vida se torne imortal.

Cristo nos chamou das trevas para a luz; levou-nos a servir o Pai da verdade. A nós que não tínhamos ser, ele nos chamou para que tivéssemos ser, a partir de seu novo ser. O conhecimento, portanto, trazia o ser. Ser e conhecimento andavam juntos da mesma maneira como a mentira e o não-ser. Verdade é ser; nova verdade é novo ser. Os que possuem esse conhecimento do ser possuíam igualmente o conhecimento salvador. Devemos proclamar essa verdade com muita ênfase, pois essa idéia foi denegrida por ter sido mal entendida. Harnack e seus seguidores achavam que o cristianismo antigo havia sido infetado pelo intelectualismo grego. Mas há duas coisas erradas nessa crítica. Em primeiro lugar, "intelectualismo grego" é termo inadequado porque os gregos sempre estiveram profundamente interessados na verdade. Com poucas exceções, a verdade que buscavam era a verdade existencial, concernente à sua existência, capaz de salvá-los da existência deformada e elevá-los ao Uno permanente. As congregações cristãs da igreja primitiva entendiam a verdade do mesmo jeito.

A verdade não era mero conhecimento teórico sobre os objetos, mas participação cognitiva na nova realidade aparecida no Cristo. Sem essa participação, a verdade não era possível e o conhecimento seria apenas abstrato e sem sentido. Era o que queriam dizer quando combinavam conhecimento e ser. A participação no novo ser era participação na verdade, no verdadeiro conhecimento.

A identidade de verdade e ser mediava a vida. Cristo dava conhecimento imortal, conhecimento doador de imortalidade. Ele era o salvador e o líder da imortalidade. Em seu próprio ser, era a nossa vida imperecível. Ele dava ao mesmo tempo o conhecimento da imortalidade e o remédio para não se morrer, que era o sacramento. Inácio chamava a Ceia do Senhor de remédio contra a morte, o antidoton tó me apothanein. Essa idéia é bastante profunda. Em primeiro lugar, mostra que os pais apostólicos não acreditavam na imortalidade da alma. Não existe imortalidade natural. Se existisse eles não falariam da vida imortal que Cristo oferece. Acreditavam que os seres humanos são naturalmente mortais, como no Antigo Testamento, onde no paraíso as duas criaturas puderam comer do alimento dos deuses, da "árvore da vida", e continuar vivas ao participar nesse poder divino. Semelhantemente, os pais apostólicos ensinaram que com o advento de Cristo restabelecia-se a situação paradisíaca. Podemos novamente participar no alimento da eternidade, que é o corpo e o sangue de Cristo.

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Procedendo dessa maneira, edificamos em nós mesmos o equilíbrio em face da necessidade da morte. A morte é salário do pecado apenas na medida em que for separação de Deus. Por causa desse pecado, anula-se o poder de Deus contra a nossa morte. Mas com a vinda de Cristo esse poder é restaurado. E passa a agir de modo sacramental e realista por meio dos elementos materiais do sacramento da Ceia do Senhor. À luz dessa doutrina podemos concluir que nossa conversa tradicional a respeito da imortalidade da alma não é doutrina cristã clássica, mas deformação dessa doutrina, num sentido pseudo-platônico, nada genuíno.

Movimento apologético

O movimento apologético pode ser corretamente considerado o nascedouro de uma teologia cristã mais elaborada. O cristianismo precisava de apologética por diferentes razões. Apologia significa resposta ou pergunta ao juiz de um tribunal, da parte do acusado. A apologia de Sócrates, por exemplo, respondia aos que o acusavam. Da mesma maneira, o cristianismo teve que se expressar em forma de resposta a certas acusações particulares. Os apologistas foram os que se entregaram a essa tarefa sistematicamente.

Essas respostas eram necessárias por causa de duas acusações contra os cristãos: (1) o cristianismo ameaçava o império romano, tratava-se de uma acusação política, pensava-se que o cristianismo subvertia a estrutura do império; (2) o cristianismo era, do ponto de vista filosófico, pura tolice, não mais do que superstição misturada com fragmentos filosóficos. Esses ataques se apoiavam mutuamente. As autoridades políticas se utilizavam dos argumentos filosóficos contrários ao cristianismo em suas acusações. Dessa forma, os ataques filosóficos se tornavam perigosos por causa de suas conseqüências políticas. Celsus, médico e filósofo, foi o mais importante representante desses ataques. Convém conhecer o seu pensamento para se avaliar como um filósofo e cientista grego, muito bem educado, considerava o cristianismo na época. Celsus entendia o cristianismo como mistura de superstição fanática e pedaços de filosofia. Para ele os relatos bíblicos eram contraditórios e desprovidos de qualquer evidência. Encontramos aí, pela primeira vez, a crítica histórica do Antigo e do Novo Testamento, algo que seria inúmeras vezes repetido ao longo da história. Mas em Celsus essa crítica era motivada pelo ódio. Mais tarde, no século dezoito, testemunhamos uma outra crítica movida pelo amor, em face da realidade presente, por detrás desses relatos.

Examinando os ataques de Celsus contra o cristianismo vemos que ele se revolta principalmente contra a ressurreição de Jesus. Observava ele que o evento, supostamente tão importante, havia sido testemunhado apenas por aderentes da fé e, no início, apenas por algumas mulheres envolvidas em experiências de êxtase. A deificação de Jesus não difere de outros processos de deificação conhecidos na história. Por exemplo, Euhemerus, o cínico, já dera suficiente número de casos em que seres humanos, reis ou heróis, haviam sido deificados. O que parecia especialmente desconcertante para Celsus é que em face de histórias imensamente inacreditáveis, como em geral se vê no Antigo Testamento, as explicações acabam sendo alegóricas. Na verdade, fazia-se assim. Pode-se perceber certo sentimento anti-semita na crítica de Celsus às histórias do Antigo Testamento sobre milagres. Entende-se a atitude dele porque criticava tanto os judeus como os cristãos.

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Celsus denunciava a contradição interna visível nos escritores cristãos quando se referiam à descida de Deus e ao mesmo tempo acentuavam a sua imutabilidade. Além disso, se o ser divino tivesse descido na terra, por que haveria de ter escolhido um desprezado canto do mundo, e por que o teria feito só uma vez?

Particularmente desagradável aos pagãos educados - e temos aqui novamente manifestações de sentimento antijudeu - era a luta entre judeus e cristãos a respeito da vinda do Messias. Os argumentos utilizados pelos cristãos, apoiados na profecia, pareciam-lhe completamente destituídos de sentido.

Celsus tinha suficiente educação histórica para entender que os profetas não haviam antecipado a vinda de Cristo nos termos em que ocorrera. Essa tem sido uma questão sensível nos estudos de história eclesiástica. É que a idéia sadia de uma revelação preparatória universal acabara deformada no conceito mecânico da "antevisão" de eventos posteriormente acontecidos.

A crítica mais profunda de Celsus contra o cristianismo não era científica a respeito da história nem filosófica a respeito da idéia de encarnação; vinha de seu sentimento religioso. Afirmava que os poderes demônicos que, segundo Paulo, haviam sido conquistados por Cristo, estavam bem vivos governando o mundo. O mundo em nada mudara desde o advento de Cristo e do começo do cristianismo. Celsus acrescentava que nem se devia tentar derrotar esses poderes, posto que são eles os verdadeiros donos do mundo. Portanto, era bem melhor obedecer aos imperadores romanos na terra; eles, pelo menos, haviam reduzido o poder desses demônios até certo ponto - coisa que Paulo também sabia. Os imperadores haviam estabelecido certa ordem no mundo, limitando as forças demônicas. Não importando quão questionáveis pudessem ser os imperadores romanos enquanto pessoas, deveriam ser obedecidos e venerados, pois Roma se tornara grande por meio da obediência às ordens deste mundo, às necessidades da lei e da natureza. Os cristãos eram, pois, culpados de subverter a grandeza e a glória de Roma, atrapalhando o único poder capaz de impedir a queda do mundo no caos e a vitória completa dos demônios.

Seu ataque era sério e tem sido repetido muitas vezes ao longo da história do cristianismo. Cristãos educados como Celsus, na mesma tradição filosófica, procuraram responder-lhe em nome da igreja. Os apologistas não responderam tanto no nível da crítica histórica, mas no plano filosófico. Em suas respostas aparecem três características de qualquer trabalho apologético. Em primeiro lugar, para se falar significativamente com alguém deve haver uma base comum de idéias mutuamente compreensíveis. Assim, os apologistas precisavam demonstrar a existência de verdade comum tanto aos cristãos como aos pagãos. Se não houvesse nada em comum o diálogo não teria sido possível. Todo o trabalho missionário cristão posterior procurou seguir esta regra: que o outro deve entender o que estamos querendo dizer. Mas não há compreensão sem pelo menos algum tipo de participação parcial.

Se o missionário falar linguagens absolutamente diferentes não haverá compreensão possível. Assim, os apologistas tinham que procurar esse denominador comum.

Em segundo lugar, os apologistas acharam necessário mostrar a vulnerabilidade do paganismo. Havia defeitos em suas idéias. E podiam ser contrariadas. Era possível demonstrar que, por séculos, filósofos pagãos haviam criticado tais idéias. Esse era o segundo passo da apologética: demonstrar a negatividade do outro.

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Em terceiro lugar, tinham que demonstrar que a posição cristã não devia ser aceita de fora, mas que o cristianismo era o cumprimento das expectativas e desejos do paganismo. Essa mesma forma apologética aparece em minha própria teologia sistemática no método da correlação entre pergunta e resposta.

A apologética corre, naturalmente, o risco de acabar com as diferenças, dando demasiada ênfase à base comum. Aceita-se o outro como ele é sem lhe oferecer algo diferente. Deve-se buscar, pois, um caminho intermediário entre os extremos de se entulhar o adversário de material indigesto e incompreensível vindo de fora, ou de lhe dizer o que já sabe. No primeiro caso, situam-se o fundamentalismo e a ortodoxia, enquanto que no segundo, comumente, a teologia liberal.

Filosofia cristã

Justino Mártir foi talvez o mais importante dos apologistas. Ao falar do cristianismo, dizia: "Esta é a única filosofia certa e adequada que encontrei". Que queria dizer? Alguns inimigos da apologética entendiam que Justino dissolvia o cristianismo em filosofia. E mais, que toda a teologia apologética acaba assim. Mas quando Justino dizia que o cristianismo era uma filosofia, precisamos entender o que entendia por filosofia. Nessa época o termo "filosofia" se referia a movimentos de caráter espiritual opostos à magia e à superstição. Era, pois, natural que Justino se referisse ao cristianismo como a única filosofia certa e adequada, porque não era mágico nem supersticioso. Já vimos que a filosofia grega no período pós-socrático não era disciplina meramente teórica, mas principalmente prática. Devotava-se à interpretação existencial da vida, constituindo-se em assunto de vida ou morte para a existência das pessoas na época. O filósofo pertencia quase sempre a uma escola filosófica que era um tipo de comunidade ritual reunida ao redor de seu fundador que, segundo se cria, recebera certa percepção revelada da verdade. Para se ingressar nessas escolas não era preciso ostentar-se o grau de doutor em filosofia, mas se submeter a certos ritos de iniciação à atmosfera da escola.

Justino ensinava que essa filosofia cristã era universal; continha a verdade total sobre o significado da existência. Em conseqüência, onde quer que a verdade aparecesse ela pertenceria ao cristianismo. A verdade da existência será sempre verdade cristã, não importando o lugar onde venha a surgir. "Tudo o que já foi dito sobre a verdade pertence a nós, cristãos". E não se tratava de pura arrogância. Ele não queria dizer que os cristãos agora são os donos da verdade toda, ou que sozinhos chegaram a ela. Queria dizer, nos termos da doutrina do Logos, que não poderia haver manifestações da verdade que não incluíssemos, em princípio, a verdade cristã. Era a mesma coisa afirmada pelo quarto evangelho: o Logos apareceu cheio de verdade e graça. E vice-versa, Justino dizia: "Os que vivem segundo o Logos são cristãos". Incluía aí gente como Sócrates, Heráclito e Elias. Mas acrescentava que o Logos total aparecera no Cristo feito carne, mente e alma. Portanto, os filósofos não cristãos vivem em parte no erro e em parte sujeitos às inspirações demônicas oriundas dos deuses pagãos. Os deuses dos pagãos não são entidades vazias; são forças demônicas reais cheias de poder destrutivo.

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Que quer dizer tudo isso? Removia a impressão de que os cristãos fossem apenas membros de uma outra religião entre muitas existentes. Na verdade, negava-se ao cristianismo o conceito de religião mesmo se a melhor ou a mais verdadeira de todas. Os apologistas jamais diriam que sua religião era verdadeira e as outras erradas ou falsas, mas que o Logos aparecera nos fundamentos do cristianismo. Tratava-se do Logos pleno do próprio Deus, aparecendo com todo o seu ser. Era mais do que religião. Era o aparecimento da verdade no tempo e no espaço. Assim, a palavra "cristianismo" não podia ser entendida como religião, mas como a negação de todas as religiões. Por causa de sua universalidade o cristianismo pôde abrangê-las todas. Justino afirmou o que me parece absolutamente necessário afirmar. Se houvesse no mundo uma verdade existencial que não pudesse ser recebida pelo cristianismo como parte de seu próprio pensamento, Jesus não poderia ter sido o Cristo. Teria sido apenas um mestre entre outros mestres, limitados e parcialmente enganados. Mas não foi isso o que disseram os primeiros cristãos.

Eles afirmaram - como deveríamos também afirmar - que se chamamos Jesus, o Cristo, ou o Logos, como queriam os apologistas, estamos também dizendo por definição que não poder haver nenhuma verdade que em princípio não possa ser assumida pelo cristianismo. Se não for assim não se poderá aplicar a Jesus, o Cristo, o termo "Logos". Não estamos dizendo que Jesus, em quem o Logos apareceu, sabia toda a verdade; essa afirmação não tem sentido e destruiria a sua humanidade.

Estamos afirmando, isso sim, que a verdade Fundamental nele visível é essencialmente universal e, portanto, capaz de abranger qualquer outra manifestação da verdade. Por essa razão os teólogos primitivos não tiveram escrúpulos em utilizar todas as verdades filosóficas gregas à disposição e tudo o que foi possível do misticismo oriental.

Com o aparecimento do Logos em Cristo até as pessoas menos educadas podiam receber a verdade existencial plena. Em contraste, os filósofos sujeitavam-se a perdê-la no meio de suas discussões. Em outras palavras, os apologistas estavam dizendo que o cristianismo era imensamente superior a todas as filosofias. Posto que a filosofia pressupõe educação, somente alguns podiam ter acesso à verdade. Os outros eram excluídos dela em sua forma filosófica. Entretanto, ninguém era excluído da verdade que se manifestava por meio do Logos numa pessoa viva. A mensagem de Jesus, o Cristo, é universal ao abranger a humanidade toda, todas as classes, grupos e estratificações sociais da humanidade.

Argumentava-se, também, em defesa do cristianismo, aludindo-se ao poder moral e ao comportamento dos membros da igreja. Portanto, as congregações cristãs não poderiam ser perigosas ao império romano. Até mesmo preveniam a queda do mundo no caos. As instituições eclesiásticas mantinham a ordem do mundo até mesmo com mais eficiência do que o próprio império. Justino dizia: "O mundo vive das orações dos cristãos e da obediência dos cristãos à lei do Estado. Os cristãos preservam o mundo e, por outro lado, por causa dos cristãos Deus também preserva o mundo".

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Deus e Logos

A idéia filosófica de Deus é inata em todos os seres humanos. Todas as características atribuídas ao Ser são agora atribuídas a Deus - eterno, sem começo, nada necessitando, além das paixões, indestrutível, imutável e invisível. Mas há, no entanto, uma diferença fundamental entre a idéia de Ser na filosofia grega clássica e a doutrina de Deus de Justino. Vem do Antigo Testamento e muda as coisas. Trata-se da afirmação de que Deus é o criador todo poderoso. Quando se faz uma afirmação dessas, as descrições abstratas e míticas da identidade de Deus passam a incluir um elemento pessoal. Deus criador age e o Todo-poderoso é o poder presente em todas as coisas que ele movimenta.

Observemos que nesta declaração a respeito de Deus, o monoteísmo cristão oscila entre a concepção de um Ser transpessoal e a do Deus criador que, naturalmente, é também salvador.

A oscilação é necessária tão logo a idéia de Deus se torna objeto de pensamento. Não se podem evitar certos elementos como o eterno, o incondicional, o imutável etc. Por outro lado, porém, a piedade prática e a experiência da criatura pressupõem o relacionamento de pessoa para pessoa. O cristianismo oscila entre esses dois elementos porque ambos estão presentes no próprio Deus.

Entre Deus e os seres humanos há anjos e poderes, bons e maus. Mas seu poder mediador é insuficiente. O Logos é o verdadeiro mediador. É difícil explicar o que significa a palavra "Logos", especialmente aos nominalistas de berço. É difícil porque o conceito não descreve um ser individual, mas princípio universal. Esse conceito não pode ser entendido pelos que não estão acostumados a pensar em termos universais enquanto poderes de ser. O conceito de Logos pode ser explicado mais inteligivelmente em relação com o platonismo ou com o realismo medieval.

O Logos é o princípio da automanifestação de Deus. É Deus manifesto em si mesmo, a si mesmo. Portanto, onde quer que Deus apareça, a si mesmo ou a outros, é sempre o Logos que aparece. Este Logos está em Jesus, o Cristo, de maneira especial. É o que, segundo os apologistas, faz a grandeza do cristianismo e a base de sua reivindicação salvadora. Pois se o Logos divino não tivesse aparecido em sua plenitude em Jesus, o Cristo, nenhuma salvação seria possível. Trata-se de argumentação existencial, não especulativa. Os teólogos clássicos partiram, pois, da experiência da salvação para em seguida falar de Jesus, o Cristo, em termos do Logos.

O Logos é a primeira "obra" ou geração de Deus Pai. O Pai, inteligência eterna, possui o Logos em si; ele é "eternamente lógico", como dizia Atenágoras, um dos apologistas. O termo "lógico" neste contexto não significa argüir bem; ele deixa isso para nós. Ao ser "logikos" demonstra adequar-se aos princípios do sentido e da razão. Deus não é vontade irracional; quando o chamamos de nous (mente) eterna queremos dizer que ele possui em si mesmo o poder da automanifestação. A analogia vem de nossa experiência. Os processos mentais desenvolvem-se por meio de palavras silenciosas. Da mesma maneira, a vida espiritual de Deus inclui essas palavras silenciosas.

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Há um processo de relacionamento espiritual que vai do Pai para o mundo no qual ele se manifesta a si mesmo e ao mundo. Sem qualquer separação. Entretanto, o Logos não é a mesma coisa que o faz ser o Logos. Por outro lado, não poder ser concebido independentemente de sua origem. O Logos divino não é igual a Deus; é a automanifestação de Deus.

Mas, se o separarmos de Deus, esvazia-se e não poderá ter conteúdo. Esta tentativa de descrever o significado do termo "Logos" é análoga ao processo mental humano. O processo de geração do Logos em Deus - eternamente, por certo - não diminui o ser divino. Deus não se torna menor ao gerar o seu Logos. É por isso que Justino afirma: "O Logos é diferente de Deus segundo o número, mas não segundo o conceito". Ele é Deus; mas não o Deus, muito embora permaneça na essência de Deus. Justino também se valeu das doutrinas estóicas da imanência e da transcendência do Logos. O Logos divino é endiathetos, “que habita” em Deus. Esse mesmo Logos eterno, pelo qual Deus se expressa a si mesmo, torna-se na criação o Logos prophorikos, "procedente" de Deus, na direção do mundo. Assim, transforma-se na palavra proferida para fora, para a criatura, por meio dos profetas e dos sábios. Logos significa ao mesmo tempo palavra e razão. Em termos de Antigo Testamento, traduz-se "Logos" por “palavra”; em termos gregos, como o fizeram os apologistas em geral, prefere-se "razão". Essa "razão" não quer dizer "raciocínio", mas estrutura inteligível da realidade.

Enquanto auto-expressão do divino, o Logos (palavra, forma ou razão) é menor do que o abismo divino, posto que esse abismo há de ser sempre o começo, de cuja profundidade emana a sua manifestação para o mundo. O Logos é o princípio das gerações de Deus; possui, por assim dizer, certa transcendência ou divindade diminuídas. Mas, então, como pode revelar plenamente o ser divino? Esse problema foi discutido posteriormente. Tão logo os apologistas empregaram o termo "Logos" esse problema não pode mais ser evitado. Se o Logos é a auto-expressão de Deus em movimento, será menor do que Deus ou Deus na plenitude? Cristo continuaria a ser considerado divino, mas, como explicar aos pagãos que certo indivíduo histórico que vivera e morrera podia ser chamado "Deus"? A dificuldade não estava primeiramente na encarnação. A mitologia grega e todas as demais mitologias sempre contaram histórias de "encarnação". Os deuses descem à terra; tomam formas humanas, de animais ou de plantas; realizam certas obras e depois retornam à divindade. Essas descrições, no entanto, não eram aceitáveis ao cristianismo. A dificuldade era que este Filho de Deus, homem histórico e não figura mítica, teria sido a única e absoluta encarnação de Deus.

A encarnação é evento irrepetível; o que se encarna é Deus e não elementos particulares ou características específicas da divindade. Trata-se da encarnação do próprio cerne da divindade. Emprega-se o termo "Logos" para expressar essa idéia. Procurava-se combinar o monoteísmo, tão fortemente pregado contra o politeísmo, com a idéia da divindade de Cristo. A humanidade de Cristo não podia se separar de sua universalidade. Foi o que fizeram os apologistas. E nisso tiveram êxito.

Segundo os apologistas, a encarnação não é a união do Espírito divino com o homem Jesus; é o Logos que realmente se fez homem. Esta cristologia voltada para a transformação do Logos em homem vai-se tornando progressivamente importante por meio da doutrina do Logos. Por meio da vontade de Deus, o Logos pré-existente se faz homem. Faz-se carne. Esta cristologia impôs-se contra o adopcionismo. Se o Logos (ou Espírito) tivesse adotado o homem Jesus, teríamos tido uma cristologia completamente diferente.

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Os dons salvíficos do Logos são gnósis (conhecimento) divina, da lei e da ressurreição. Enquanto Logos, o Cristo é, em primeiro lugar, mestre; não no sentido de nos ensinar as coisas que ele saberia melhor do que nós, mas no sentido socrático de nos dar poder existencial de ser. O Logos nos concede a verdade de Deus e as leis morais que deveremos seguir livremente. Surgem, assim, na doutrina de Cristo, elementos intelectuais e educativos. Essa possível conseqüência da doutrina do Logos levantou, por outro lado, certos descontentamentos.

GNOSTICISMO

Os apologistas defenderam o cristianismo contra filósofos e imperadores. Entretanto, as ameaças contra o cristianismo não vinham apenas de fora. Um perigo bem maior surgiu no seu próprio interior: o perigo do gnosticismo. O termo "gnosticismo" vem da palavra grega "gnósis" que quer dizer "conhecimento". Não no sentido científico. Gnósis poderia ser: conhecimento em termos gerais; comunhão mística e relação sexual. Todos os três sentidos podem ser achados no Novo Testamento. Trata-se de conhecimento participatório. Tão íntimo como a relação entre marido e mulher.

Bem distante do conhecimento alcançado por meio de pesquisa analítica e sintética. Esse conhecimento busca a união e a salvação. É essencial em contraste com o conhecimento científico. Os gnósticos eram os intelectuais gregos, não obstante terem compreendido a função cognitiva em termos de participação no divino.

Não eram uma seita; talvez se pudesse dizer que eram muitas seitas. Na verdade, porém, o gnosticismo representava vasto movimento religioso espalhado pela época. Em geral, o gnosticismo é considerado um sincretismo. Misturava todas as tradições religiosas de então.

Ao se espalhar pelo mundo, penetrou tanto a filosofia grega como a religião judaica. Filo de Alexandria foi um típico precursor do movimento. O gnosticismo conseguiu até mesmo se imiscuir na lei romana e na teologia cristã.

Os elementos básicos dessa mistura religiosa são os seguintes:

1. Destruição das religiões nacionais por meio das conquistas de Alexandre e de Roma. Os grandes impérios mundiais acabavam com as religiões nacionais;

2. Interpretação filosófica da mitologia. Ao se ler os sistemas gnósticos tem-se a impressão de que racionalizam a mitologia. Essa impressão é correta;

3. Renovação das antigas tradições de mistério;

4. Reavivamento de elementos psíquicos e mágicos, presentes na propaganda religiosa do Oriente. Enquanto o movimento político ia do Ocidente para o Oriente, o religioso tomava direção contrária. O gnosticismo procurava, então, combinar rodas as tradições religiosas desenraizadas, reunindo-as num sistema meio filosófico e meio religioso.

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Havia muitas semelhanças e diferenças entre os grupos gnósticos e o cristianismo original. Contra a tradição pública das igrejas cristãs, os gnósticos diziam possuir tradições secretas apenas conhecidas dos iniciados. Rejeitavam o Antigo Testamento porque não se harmonizava com algumas de suas doutrinas fundamentais, especialmente com suas tendências dualistas e ascéticas. Aceitavam uma versão expurgada do Novo Testamento. Marcião tentou modificar o Novo Testamento, aceitando, no entanto, as dez principais cartas de Paulo e o evangelho de Lucas, que, certamente, mais claramente denota a influência paulina. Presumivelmente, essas porções do Novo Testamento não contradiziam as idéias básicas do gnosticismo como as demais epístolas e evangelhos

Marcião não era um filósofo especulativo, mas reformador religioso. Fundou congregações de seguidores que duraram muito tempo. Seu livro se chama, Antitheses. Distinguia o Deus do Antigo Testamento do Deus do Novo Testamento, o Deus da lei do Deus do evangelho. Rejeitava o primeiro para aceitar o outro. Não se tratava apenas da idéia fantástica de dois deuses. A questão deve ser vista nos termos desenvolvidos por Harnack no final de sua vida. Não seriam os dois Testamentos de tal maneira diferentes a ponto de não ser possível qualquer combinação dos dois? O Marcionismo é uma forma de paulinismo radical sempre presente ao longo da história da igreja. Encontramo-lo no período moderno na escola barthiana, quando o Deus da revelação se coloca contra o Deus da lei natural. Naturalmente, esta escola não menciona um segundo Deus; hoje em dia essa mitologia fantástica não seria possível.

Mas, fala da tensão radical entre o mundo natural da razão e da moralidade, e o domínio religioso da revelação. Era o mesmo problema de Marcião, resolvido por ele com a separação radical do dois mundos no dualismo gnóstico.

Para os gnósticos, o mundo criado é mau; foi criado por um deus mau reconhecido por eles no Deus do Antigo Testamento. Portanto, salvação é libertação deste mundo, a ser alcançada mediante exercícios ascéticos. Não há lugar para a escatologia nessa visão dualista do mundo, pois o fim do mundo não a ultrapassa. Não pode haver realização dualista: ela pressupõe a divisão do próprio Deus.

O salvador está entre os poderes celestiais, chamados de "aeons'' ou de "eternidades". Essa palavra, "eternidade", não tem aqui a conotação de tempo sem fim, mas de poder cósmico. O mais alto "aeon", salvador, desce à terra e toma a forma humana. É evidente, contudo, que tal poder divino não pode sofrer. É por isso que adquire um corpo estranho, semelhante ao corpo humano, mas não se torna carne. (Os cristãos primitivos rejeitaram os gnósticos neste ponto). O salvador desce aos diferentes domínios submetidos a diferentes poderes astrológicos. Esta idéia refere-se aos planetas, considerados poderes astrológicos até mesmo depois da Renascença, no protestantismo. O salvador revela as armas ocultas desses poderes demônicos, ao atravessar os seus domínios, vencendo-os nessa descida à terra. Traz consigo os selos de seu poder, seus nomes e características. Quem tiver o nome de um poder demônico já lhe é superior; quem o chamar pelo nome já o derrota. Diz um dos textos gnósticos: "De posse dos selos, eu descerei, atravessando todos os aeons. Reconhecerei todos os mistérios. Revelarei a forma dos deuses. E proclamarei as coisas ocultas do caminho santo, chamado gnósis". Ai está a reivindicação do bom Deus, pleno do poder do mistério, em sua vinda à terra.

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Os poderes demônicos representam o destino. A alma humana caída em suas mãos é libertada pelo salvador e pelo conhecimento que ele traz. Diríamos: no gnosticismo o salvador emprega a magia branca contra a magia negra dos poderes planetários, poderes mencionados por Paulo, em Romanos 8, submetidos, segundo ele, por Cristo. Portanto, reconhece-se o poder mágico dos sacramentos. Neles, o mais alto dos poderes desce à terra. Além dessas feições especulativas e sacramentais, o gnosticismo tinha valores éticos relacionados com a comunidade e com a ascese. Exigia a elevação da alma, a exemplo do salvador que subira.

O salvador liberta dos poderes demônicos para promover a união da alma com a plenitude, com o pleroma, o mundo espiritual. Em sua peregrinação ascendente, a alma humana encontra-se com esses poderes e lhes revela o que aprendeu a seu respeito. Sabe seus nomes, e conhece, portanto, seu poder misterioso, a estrutura do mal que representam. Ao pronunciar seus nomes, eles tremem e caem tornando-se incapazes de impedir a alma em sua jornada. Essas imagens poéticas demonstram que o gnosticismo era uma religião de salvação dos poderes demônicos. Esse era o problema principal do período, tanto no cristianismo como fora dele. De certa maneira, o homem era melhor que seu criador. Tinha que ser salvo dos poderes do demiurgo que criara o mundo. Mas nem todos os homens podiam se salvar. Havia três classes de homens: os pneumatikoi, isto é, os espirituais; os psychikoi, seguidores da alma; e os sarkikoi, dominados pela carne. Os sarkikoi estavam perdidos; os pneumatikoi, salvos. Os do meio, os psychikoi, poderiam tomar um ou outro rumo. Para ser elevado às alturas, o homem precisava participar nos mistérios.

Eram principalmente mistérios de purificação relacionados, em geral, com o batismo. No batismo, o Espírito entra na água sacramental e nela habita. Ele desce por meio de uma fórmula especial de iniciação.

Essas idéias representavam forte tentação para o cristianismo. Cristo permanecia no centro da história como o autor da salvação mas encaixava-se na moldura da visão dualista do mundo helênico. A atmosfera religiosa deste período expressa-se com muita beleza num dos escritos apócrifos conhecido pelo nome de Atos de André: "Bem-aventurada é nossa geração. Não fomos abatidos porque fomos reconhecidos pela luz. Não pertencemos ao tempo que nos dissolve. Não resultamos do movimento, que também nos teria destruído. Pertencemos à grandeza à qual nos dirigimos. Pertencemos àquele que tem misericórdia de nós, cuja luz expeliu as trevas, de quem nos desgarramos, o múltiplo, o supra-celeste, que nos levou a entender as coisas terrenas. Se o louvamos é porque somos reconhecidos por ele". Trata-se de verdadeira piedade religiosa, não de mera especulação, como diriam os críticos do gnosticismo.

Há muitas pessoas hoje em dia que gostariam de recuperar a religião gnóstica para praticá-la como expressão de sua experiência interior, não por causa da especulação fantástica, mas por causa da verdadeira piedade que ela expressa. O gnosticismo representava, pois, enorme perigo ao cristianismo. Se a teologia cristã tivesse sucumbido diante dessa tentação, o caráter particular do cristianismo teria se perdido. Sua fundamentação na pessoa de Jesus teria perdido o sentido.

O Antigo Testamento teria desaparecido, e com ele a imagem histórica do Cristo. Essas ameaças foram superadas graças ao trabalho de homens que são ainda hoje conhecidos como "pais antignósticos". Eles lutaram contra o gnosticismo e conseguiram expeli-lo da Igreja.

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NEOPLATONISMO

O fim da filosofia grega se dá quando a filosofia se transforma em religião, e a religião, por sua vez, também se transformara em filosofia mística. Quando, então, certos filósofos se tornam cristãos, estão acostumados a utilizar uma filosofia que já era meio religiosa. A filosofia ensinada nessa época não tinha nada a ver com a filosofia empirista, nem com o positivismo lógico, nem com os naturalistas. Na época do Novo Testamento, a filosofia estava cheia de atitudes religiosas. É por isso que o cristianismo precisava tratar de filosofia, pois era uma religião rival. O nome dessa filosofia religiosa era neoplatonismo. Idéias platônicas, estóicas e aristotélicas uniam-se aí num sistema filosófico e religioso ao mesmo tempo. O neoplatonismo expressava as aspirações do mundo antigo por nova religião. Expressava também a dissolução de todas as religiões particulares e, ao mesmo tempo, o colapso da razão autônoma, impossibilitada de criar por si mesma novos conteúdos de vida. Portanto, esses filósofos tornaram-se místicos e, como tais, procuraram criar uma nova religião sob a proteção imperial de Juliano, o apóstata. E, assim, se opuseram ao cristianismo. Os grandes teólogos alexandrinos, Clemente e Orígenes, enfrentaram o desafio do neoplatonismo e utilizaram seus conceitos para expressar o cristianismo.

O neoplatonismo é importante não só por causa de sua influência sobre o pensamento de Orígenes, responsável pelo primeiro sistema teológico, mas porque influenciou, por meio de Dionísio Areopagita, todas as formas de misticismo cristão e a maior parte das formas da teologia cristã clássica, especialmente a respeito das doutrinas de Deus, do mundo e da alma. Não se pode entender o desenvolvimento posterior da teologia cristã sem conhecer-se algo a respeito do neoplatonismo, a última grande tentativa do paganismo para se expressar em termos de teologia filosófica, significando ao mesmo tempo ciência e vida para a mentalidade antiga.

Plotino foi o mais importante filósofo desse sistema. Não entram aí elementos apenas científicos e religiosos, mas também políticos. O imperador Juliano, o apóstata, tentou introduzir o sistema neoplatônico contra o cristianismo, demonstrando que o considerava não só ciência, mas um sistema todo abrangente de elevação religiosa da alma.

Para Plotino, Deus é o Uno transcendental; transcende todos os números, mesmo o número "um" na medida em que inclui o 2, o 3, o 4, o 5 etc. Está além do número e por isso é chamado de "um". Assim, sempre que ouvirmos a palavra "um" ou "uno" na linguagem mística, não se quer falar de um número entre outros, mas daquele que transcende todos os números. O Uno indica em particular o que está além das divisões básicas da realidade, tais como a separação entre sujeito e objeto, e entre eu e mundo. Portanto, o divino é o abismo de todas as coisas específicas, onde desaparecem todas as coisas definidas. Embora não seja algo meramente negativo, pelo contrário, é plenamente positivo ao conter em si tudo o que é. Quando lemos na literatura mística a respeito do "nada transcendental", não devemos interpretar a expressão como se estivesse dizendo "nada". Ela se refere à "não-coisa", isto é, ao nada definido, ao nada finito, base de todas as coisas definidas e finitas. Uma vez que o Uno não abriga em si a diferença, é imutável, imóvel e eterno. A partir desse fundamento eterno de todas as coisas, onde também tudo desaparece, todas as coisas se originam ao mesmo tempo.

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Esse sistema pretende descrever a maneira como o mundo e todas as formas se originaram na base mais profunda do ser. A primeira coisa originada, como a luz irradiada pelo sol, é o que em grego se chama de nous ("mente", "espírito"). Trata-se do segundo princípio a partir do primeiro, que é a base do ser de onde emana. Este segundo princípio, o nous, é aquele no qual o primeiro princípio, o fundamento eterno, se contempla a si mesmo. É o princípio da auto-intuição do eterno. Deus se manifesta a si mesmo no princípio do nous. Esta auto-intuição do divino no nous é a fonte de todas as formas e estruturas, de todas as possibilidades e do que Platão chamou de "idéias". Essas "idéias" são as potencialidades essenciais do ser. O nous contém todas as coisas belas e verdadeiras. Tudo isso reside na mente divina e auto-intuição do fundamento. A mente de Deus não contém apenas as essências universais - humanidade, vermelhidão etc. - mas também as essências dos indivíduos. A forma de cada pessoa está em Deus, independente das mudanças ocorridas nos diferentes momentos de nossas vidas, como se um grande pintor a visse e expressasse ao nos fazer o retrato.

Há um terceiro princípio denominado por Plotino de “alma”. A alma é o princípio da vida em todo o pensamento grego. Não é, primeiramente, substância imortal, mas princípio do movimento. É o princípio que movimenta as estrelas, de tal maneira que se pode dizer que as estrelas têm "alma". É o princípio que movimenta os animais e as plantas, de tal modo que eles também têm alma. É o princípio que movimenta nossos corpos. Então, temos alma. Esse princípio movimenta igualmente o universo. Há, portanto, a alma do universo. Esse princípio está entre o nous e a realidade do corpo.

É o poder produtivo do mundo existente. Forma e controla a matéria assim como o princípio de nossa vida forma e controla todas as células de nosso corpo. A alma do mundo se realiza em muitas almas individuais. Todas as coisas têm sua alma individual. Essas almas individuais conferem movimento e vida a tudo o que existe, tendo todas o mesmo princípio comum na alma do universo.

O princípio da alma, universal e individualmente, é o princípio da ambigüidade. Plotino sabia que a vida era ambígua, e que a ambigüidade era uma característica definida da vida. A alma volta-se tanto para o espírito (nous) como para a matéria. Dir-se-ia que olha para dois lados; busca sempre conteúdos significativos. Nós chamamos a isso, em nossa linguagem, de vida espiritual dos seres humanos, expressa em conhecimento, ética, estética etc. Ao mesmo tempo se volta para a nossa existência física e para o mundo das coisas materiais.

Todas as coisas existentes têm seu lugar neste sistema de hierarquias que vão desde o fundamento do ser à mente, à alma e à matéria. Plotino conseguiu, assim, incluir em seu sistema todo o mundo mitológico depois de o purificar com a filosofia. Os deuses pagãos transformaram-se em poderes de ser bastante limitados, ocupando lugares específicos na totalidade do real. O mundo é harmonioso; dirige-se pelo princípio da providência. A junção de providência e harmonia - principal princípio do Iluminismo e da crença moderna no progresso - fundamenta a visão otimista do mundo. Esse otimismo é imediatamente sentido em outra afirmação de Plotino de que as forças planetárias, consideradas forças demônicas, não passam de ilusão. Não possuem poder independente; submetem-se à providência, bem como Paulo as descreve em Romanos 8. A diferença é que Plotino deriva seu ensino dessa filosofia da harmonia cósmica, enquanto Paulo, do triunfo vitorioso de Cristo sobre os demônios. Há muitas almas diferentes no cosmos; almas mortais, como as das plantas, dos animais e dos seres humanos; e imortais, como a dos seres divinos e meio divinos da mitologia antiga.

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Os deuses mitológicos, como já vimos, são restaurados neste sistema como poderes de ser. Não se contradizem entre si porque ocupam lugares próprios no sistema hierárquico.

O princípio ordenador do mundo, em termos de providência, é o Logos. O Logos é o lado racional do nous, ou mente. Não é uma outra hierarquia, mas apenas o lado dinâmico do nous; é o princípio da razão que organiza todas as coisas providencialmente, dando-lhes lugar próprio. Em termos modernos, diríamos que se trata da lei natural à qual tudo se submete, tanto na física como nos corpos vivos. O nous não é o Logos; é a fonte de todos os conteúdos, mas o Logos é que os ordena. O Logos é o princípio dinâmico, o poder que opera providencialmente e dirige as leis naturais e morais.

Por causa dessa ambigüidade, a alma é capaz de abandonar o nous, e com ele a fonte eterna do Uno abissal. Pode se separar da origem eterna e cair em regiões inferiores. A natureza é o domínio do inconsciente; situa-se entre a matéria e a alma consciente. Mas a natureza está cheia de almas inconscientes; é só no homem que a alma tem consciência plena. A fonte do mal é o abandono do nous pela alma na direção da matéria, do reino corpóreo. O mal não é poder positivo. É a negação do espiritual. É participação na matéria, não-ser, participação no que não tem poder de ser em si mesmo.

O mal aparece quando a alma se volta para o não-ser. Nem os gregos nem os cristãos admitiram que o mal pudesse ter realidade ontológica. A idéia da existência de um fundamento divino do mal, de um ser divino encarregado de produzir o mal, é heresia maniqueísta. O mal é não-ser. Quando se faz esta afirmação, venha ela de Plotino, de Agostinho, ou de mim mesmo, argumenta-se que nesse caso o pecado deixaria de ser levado a sério e que, afinal, não é coisa alguma. O som da palavra "não-ser" dá a impressão a algumas pessoas de que o pecado seja imaginário, não real. Entretanto, a distorção de algo que tem ser é tão real como o estado de perfeição desse mesmo ser. Apenas diríamos que não é ontologicamente real. Se o pecado fosse ontologicamente real, haveria então um princípio criador do mal, como no maniqueísmo; mas é isso, precisamente, que a doutrina cristã da criação nega. Agostinho dizia "Esse qua esse bonum est", o ser enquanto ser é bom. O mal é a deformação da boa criação.

Plotino descreve esse não-ser (me on) como a matéria que se pode transformar em ser. Este não-ser do qual ele fala é o que ainda não tem ser e que resiste ter ser. É o que não tem medida, limite e forma.

Está sempre em falta, não se define e tem fome; é a pobreza absoluta. Em outras palavras, o mal é a presença deste não-ser em nossa existência física. É a ausência do poder de ser, do poder do bem.

A alma volta-se para este não-ser porque acredita poder se manter por si mesma com o seu auxílio. Dessa forma, separa-se do fundamento e do nous com quem vivia originalmente. Mas logo se volta na procura do fundamento de onde saíra. Amorosa, a alma ascende ao que é digno de ser amado: o fundamento e origem do próprio ser. Quando a alma alcança esse alvo supremo de sua aspiração, torna-se como Deus. Ao possuir a intuição suprema do divino, une-se a Deus. Mas não é fácil. Esse caminho passa primeiramente pelas virtudes e depois pela purificação ascética. A união final com Deus não é alcançada pela moral ou pela ascese nesta vida.

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Só pode ser alcançada por meio da graça, ou seja, quando o poder divino do Uno transcendental apreende a mente em êxtase. Isto só acontece raramente, mediante grandes experiências jamais forçadas.

No mais alto êxtase acontece o que Plotino chama de vôo do um para o Uno, isto é, dos indivíduos para o supremo Uno, além de todo número. Qual é o tetos, o alvo interior, o propósito, do ser humano? Platão já dera a resposta: homoiosis tou theou kata do dynaton (tornar-se semelhante a Deus tanto quanto possível). Era esse o alvo das religiões de mistério, nas quais se pensava que a alma participaria no Uno eterno. É esse o esquema do pensamento alexandrino. Trata-se de um círculo que começa no Uno abissal, e vai descendo por meio de emanações pelas hierarquias até chegar às situações ambíguas em que se encontra a alma, quando ela cai no poder do mundo material, determinado pelo não-ser. O círculo continua, então, com a elevação da alma, de volta por todos esses caminhos até o grau mais alto, alcançando o seu alvo por meio de êxtase. Guardemos este sistema em nossa memória, pois não poderemos entender a relação do cristianismo com o misticismo e com a filosofia grega sem ele.

CLEMENTE E ORÍGENES DE ALEXANDRIA

Cristianismo e filosofia

O sistema neoplatônico desenvolveu-se em Alexandria. Ammônius Saccas ensinou tanto Plotino como Orígenes. Orígenes foi o principal teólogo e filósofo da escola de Alexandria.

Era uma escola catequética, uma espécie de seminário teológico. O primeiro grande mestre dessa escola foi Clemente de Alexandria. Utilizava a doutrina do Logos de modo radical. Nesse aspecto dependia muito mais do estoicismo do que da escola platônica. Deus é o Uno além dos números. Mas o Logos é o mediador de todas as coisas nas quais o divino se manifesta. O Logos é o órgão divino destinado a amar os seres humanos e, portanto, o educador da humanidade no passado e no presente. O Logos, auto-manifestação do divino, age constantemente nas mentes humanas. Preparou os judeus por meio da lei, e os gregos pela filosofia. Tem sempre preparado as nações. Jamais se ausenta de seu povo.

Quando Clemente fala de filosofia não tem em mente alguma filosofia específica, mas o que seria verdadeiro em todas as filosofias. Em seu pensamento, inúmeros elementos da filosofia grega se misturam com materiais bíblicos. Cita amplamente fontes estóicas. Introduziu o cristianismo não apenas ao pensamento filosófico, mas também à maneira filosófica de viver. Pholosophein significava para ele o esforço pela vida perfeita. Viver filosoficamente, segundo os pensadores gregos de então, significava procurar viver o mais perto de Deus possível. Clemente achava que se devia viver segundo o Logos, uma vida logikon; talvez pudéssemos traduzir essa expressão por “vida significativa”, vida em termos de sentido objetivo. Os cristãos começam com a fé, pistis. Embora pistis, do grego, e fé não sejam a mesma coisa. Pistis significa o estado de estar em fé.

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Neste sentido entenderíamos a fé como o estado de participação na realidade do novo ser. Inclui conversão, tendências ascéticas, paixões e esperança. É o pressuposto de tudo mais no cristianismo. Neste ponto, Clemente se desvia dos filósofos gregos. Viver segundo o Logos significa participar nos domínios da fé e do amor, isto é, nos domínios da igreja. Os teólogos alexandrinos não eram filósofos independentes, mas membros da igreja cristã. Portanto, participavam nesse estado da fé pressuposto por todo conhecimento. No entanto, o estado de fé era insuficiente, uma vez que era entendido apenas como assentimento e obediência. Qualquer verdadeira participação exige algo mais, certo impulso na direção do conhecimento ou gnósis. Os cristãos são os "gnósticos" perfeitos. Gnósis é fé cognosciva, cujos conteúdos passam pelo conhecimento. Trata-se da explanação científica das tradições da fé. O termo "científico" é empregado aqui em sentido metodológico e não segundo o uso das ciências naturais. Todas as pessoas caminham nessa direção, mas são poucas as que chegam ao alvo. Segundo Clemente, os perfeitos são os "gnósticos segundo o cânon eclesiástico". Assim, os filósofos submetem-se à tradição eclesiástica que aceitam ao entrar para a igreja. O bem supremo para esses gnósticos perfeitos é o conhecimento de Deus. Não se trata de conhecimento teórico, em termos de argumentos e análises, mas de participação em Deus.

Não é episteme, conhecimento científico; é gnósis, conhecimento místico alcançado mediante participação no conhecido. Não se trata, pois, de qualquer tipo de gnósis devotadas à especulação livre, mas de participação na congregação e em Deus. A tradição é o cânon, isto é, o critério, e a igreja é a mãe, sem a qual essa gnósis jamais seria alcançada.

O pensamento de Clemente sintetiza o pensamento cristão e a filosofia grega. O cristianismo não podia ignorar o neoplatonismo com seu sistema universal e extremamente impressionante. Reunia em si todos os valores do passado. O cristianismo tinha que usá-lo e, ao mesmo tempo, conquistá-lo. Foi o que fez a escola de Alexandria. O cristianismo foi elevado ao mais alto estado de educação.

Porfírio foi um dos mais importantes pensadores neoplatônicos. Reconhecia o alto padrão educacional da escola de Alexandria, principalmente de Orígenes. Apenas lamentava que Orígenes vivesse nessa tradição cristã, bárbara e irracional. Não podia entender, como neoplatônico, que alguém inteligente pudesse participar na congregação cristã. Porfírio reconhecia a criatividade filosófica de Orígenes; achava que Orígenes fazia uma interpretação "helenizada" dos estranhos mitos da Bíblia com o auxílio do pensamento grego. Na verdade, Clemente e Orígenes eram filósofos gregos, mas, ao mesmo tempo, fiéis e obedientes membros da igreja cristã. Não tinham dúvida de que essas duas tradições podiam ser combinadas.

Orígenes começa o seu sistema com a questão das fontes. Leva-as mais a sério do que Clemente. São os escritos bíblicos e seu resumo no ensino e na pregação da igreja. A antiga "regra de fé" dava-lhe a estrutura sistemática para seu pensamento, mas as Escrituras fundamentavam os conteúdos. O primeiro passo do verdadeiro teólogo é a aceitação da mensagem bíblica. Ninguém pode ser teólogo sem pertencer à igreja. Os filósofos livre-atiradores não são teólogos cristãos. Requer-se muito mais do que isso do teólogo. Ele precisa procurar entender a mensagem em termos filosóficos. Para Orígenes significava entender a mensagem em termos de filosofia neoplatônica.

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Doutrina de Deus

O sistema de Orígenes começa com a doutrina de Deus. Deus é o próprio ser e, portanto, está além de todas as coisas existentes. Situa-se além do conhecimento porque o conhecimento pressupõe divisão entre sujeito e objeto. Ultrapassa a mudança e a paixão. É a fonte de tudo. Possui seu Logos, palavra interior, auto manifestação. O Logos manifesta Deus para si mesmo e depois para o mundo. É o poder de ser sempre criativo. Nele reúnem-se todos os poderes de ser. Ele unifica o mundo espiritual. É o princípio universal de todas as coisas particulares, de tudo o que possui ser. Este Logos divino irradia-se eternamente das profundezas do fundamento do ser, do abismo divino, assim como o esplendor se irradia da fonte da luz. Portanto, não se deve dizer: "O Filho nem sempre existiu". Negar-se-ia assim a eternidade do Logos. Nunca houve um tempo em que o Filho, o Logos eterno, não existiu.

O Logos eterno é gerado eternamente da substância divina. Não é criado "do nada". Não é finito. É da mesma substância do Pai. A fórmula homoousios to patri (da mesma substância do Pai) aparece aqui pela primeira vez. Em que pese a eternidade do Logos, ele é menor do que o Pai. Somente o Pai não tem origem; nem mesmo foi gerado. É auto theos (Deus de Deus), enquanto que o Filho é Deus procedente do Pai. O Filho é a imagem da bondade ou da essência ou da natureza de Deus, mas não o próprio Deus. Temos, assim, dois princípios no pensamento de Orígenes: o Filho é co-eterno com o Pai, mas seu poder de ser é pouco inferior ao do Pai.

É a mais alta das realidades geradas, mas menor do que o Pai. O mesmo se diz do Espírito que age nas almas dos santos. Embora a tradição religiosa das congregações exija a trias (três) como objeto de adoração, o Espírito é considerado menor do que o Filho e o Filho, menor do que o Pai. Às vezes, até mesmo os seres espirituais mais elevados são também chamados de deuses. Há, pois, dois princípios conflitantes no pensamento de Orígenes. Um deles é a divindade do Salvador; se não for divino não poderá salvar. O outro é o esquema das emanações. Há graus de emanação a partir do absoluto, que é o Pai, até os níveis mais baixos. A linha divisória entre os três mais altos (Pai, Filho e Espírito Santo) e o resto dos seres espirituais é, de cerro modo, arbitrária.

As naturezas racionais, ou espíritos, que são eternas, eram originalmente iguais e livres, mas romperam a unidade que tinham com Deus, em diferentes graus de distância. Como resultado dessa revolta celeste contra Deus, caíram e receberam corpos materiais. Foi a sua punição e, ao mesmo tempo, a forma para se purificarem. A alma humana é mediadora entre esses espíritos caídos e o corpo humano. A alma humana é o espírito congelado, isto é, o fogo intenso, símbolo do Espírito divino, reduziu-se a um processo vital. A queda é transcendente. Precede nossa existência no tempo e no espaço. E é livre: decidida em liberdade. A liberdade não foi perdida na queda, permanecendo presente e real em todas as situações concretas. Em nossas diferentes maneiras de agir, a queda transcendental se torna realidade histórica. Poderíamos dizer que os atos individuais representam a natureza eterna da queda. Em outras palavras, nossa existência individual no tempo e no espaço já teve um prelúdio nos céus. O fator decisivo a nosso respeito já aconteceu antes de aparecermos na terra. Coisa que tem a ver com a noção de pecado. O pecado baseia-se na queda transcendental. Essa doutrina da queda transcendental é difícil de ser entendida pelos que estão habituados com o pensamento nominalista. Só se torna compreensível quando percebemos que os poderes transcendentais são realidades e não coisas individuais.

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Esta doutrina contém profundo significado que a torna necessária como símbolo cristão. Quer dizer que a existência humana e a existência da realidade, como um todo, não podem ser consideradas apenas como criação divina, mas também como culpa e julgamento. Quando contemplamos o mundo, vêmo-lo universalmente caído. Essa queda permeia todas as coisas, no ser humano e fora dele. Se perguntarmos: De onde procede a queda? Por que é universal? Por que não á exceções?

A resposta deve ser: Porque a queda precede a criação da mesma maneira como vem depois dela. Orígenes conta dois mitos da queda. O primeiro é de caráter transcendental. Mitologicamente falando, a queda não se deu no espaço. Trata-se da transição eterna da união com Deus para a separação de Deus. O outro é imanente. A queda se dá dentro da história. A queda transcendental se realiza por meio de atos especiais no plano histórico. O pecado é espiritual, mas a existência física e social o fortalece. É de caráter transcendental. É um destino que, como todo destino, une-se à liberdade.

Como em Plotino, o pecado para Orígenes é abandono de Deus. Não é jamais positivo. Ser mau significa estar sem bondade. O pecado, portanto, relaciona-se com a criação, duplamente.

Em relação à criação dos espíritos livres e iguais, a criação precede a queda; em relação ao mundo físico, a criação vem depois da queda e depois da liberdade dos espíritos. Levando-se em consideração a liberdade dos espíritos, é possível que a queda venha a acontecer novamente mesmo na eternidade. O fim do processo do mundo não é necessariamente o fim da história. A queda poderá ser repetida e, assim, todo o processo poderá começar de novo. Vemos nessas idéias a presença do pensamento cíclico da filosofia grega a respeito da história. Orígenes não conseguiu superar esse modo de pensar. Agostinho é que vai fazê-lo mais adiante.

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CURSO DE FILOSOFIA - INTRODUÇÃO2

Que é filosofia?

Filosofia é uma palavra de origem grega que significa literalmente "amigo da sabedoria" (philos sophias). Narra-se que o termo foi inventado por Pitágoras, que certa vez, ouvindo alguém chamá-lo sábio e considerando este nome muito elevado para si mesmo, pediu que o chamassem simplesmente filósofo, isto é, amigo da sabedoria.

A filosofia é um conhecimento, uma forma de saber que, como tal, tem uma esfera própria de competência, a respeito da qual procura adquirir informações válidas, precisas e ordenadas. Mas, enquanto é fácil dizer qual é a esfera de competência das várias ciências experimentais, o mesmo não se dá com a filosofia. Sabemos, por exemplo, que a botânica estuda as plantas, a geografia, os lugares, a história, os fatos, a medicina, as doenças etc. Quanto à filosofia, que coisa estuda ela? No dizer dos filósofos, ela estuda todas as coisas. Aristóteles, que foi o primeiro a fazer uma pesquisa rigorosa e sistemática em torno desta disciplina3, diz que a filosofia estuda "as causas últimas de todas as coisas"; Cícero define a filosofia como "o estudo das causas humanas e divinas das coisas"; Descartes afirma que a filosofia "ensina a raciocinar bem"; Hegel entende-a como "o saber absoluto"; para Whitehead, o papel da filosofia é o de "fornecer uma explicação orgânica do universo". Poderíamos citar muitos outros filósofos que definem a filosofia ora como o estudo do valor do conhecimento, ora como a indagação do fim último do homem, ora como o estudo da linguagem, do ser, da história, da arte, da cultura, da política etc. Realmente, coerentes com essas diferentes definições, os filósofos estudaram todas as coisas. Devemos então concluir que a filosofia estuda tudo? Sim, e por duas razões.

Em primeiro lugar, porque todas as coisas podem ser examinadas no nível científico e também no filosófico. Assim, os homens, os animais, as plantas, a matéria, estudados por muitas ciências e sob diversos pontos de vista, podem ser objeto também da indagação filosófica. De fato, os cientistas se perguntam de que é feita a matéria, que coisa é a vida, como são formados os animais e o homem, mas não consideram outros problemas que dizem respeito também ao homem, aos animais, às plantas, à matéria, como, por exemplo, o que é a existência.

Especialmente a respeito do homem, que as ciências estudam sob vários aspectos, muitos são os problemas que nenhuma delas estuda (supondo-os já resolvidos), como o do valor da vida e do conhecimento humanos, o da natureza do mal, da origem e do valor da lei moral. Destes problemas ocupa-se somente a filosofia.

Em segundo lugar, porque, enquanto as ciências estudam esta ou aquela dimensão da realidade, a filosofia estuda o todo, a totalidade, o universo tomado globalmente.

2 O texto a seguir, até a página 36, foi extraído integralmente de MONDIN, Batista. Curso de filosofia: os filósofos do Ocidente. Tradução de Bênoni Lemos. São Paulo: Paulus, 1981. Vol. 1. pp. 7-15.3 ARISTÓTELES, Metafísica, livro I.

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Eis, portanto, a primeira característica que distingue a filosofia de qualquer outra forma de saber: ela estuda toda a realidade ou, pelo menos, procura oferecer uma explicação completa e exaustiva de uma esfera particular da realidade.

Há, porém, duas outras qualidades que contribuem para dar um caráter próprio e específico ao saber filosófico: trata-se do método e do objetivo.

O método não é o da simples verificação, nem o da descrição mais ou menos fantasiosa, nem o da experimentação. O primeiro é próprio do conhecimento comum; o segundo, da poesia e da mitologia; o terceiro, da ciência. A filosofia tem um método diferente, o da justificação lógica, racional. Das coisas que estuda, a filosofia deseja oferecer uma explicação conclusiva e, para consegui-la, se serve somente da razão, isto é, daquilo que os gregos chamaram logos.

Quanto ao objetivo, a filosofia não busca fins práticos e não tem interesses externos como a ciência, a arte, a religião e a técnica, as quais, de um modo ou de outro, sempre têm em vista alguma satisfação ou alguma vantagem. A filosofia tem como único objetivo o conhecimento; ela procura a verdade pela verdade, prescindindo de eventuais utilizações práticas. A filosofia tem uma finalidade puramente teorética, ou seja, contemplativa; ela não procura a verdade por algum motivo que não seja a própria verdade. Por isso, como diz egregiamente Aristóteles na Metafísica (A, 2, 982b), ela é "livre" enquanto não se destina a nenhum uso de ordem prática, realizando-se na pura contemplação da verdade.

Dissemos há pouco que todas as coisas podem ser objeto de indagação filosófica. Como decorrência disso, pode haver uma filosofia do homem, dos animais, do mundo, da vida, da matéria, dos deuses, da sociedade, da política, da religião, da arte, da ciência, da linguagem, do esporte, do riso, do jogo etc. Na verdade, porém, aqueles que são chamados filósofos estudam de preferência somente alguns problemas, aqueles que são designados com os nomes de lógica, epistemologia, metafísica, cosmologia, ética, psicologia, teodicéia, política, estética, os quais constituem as partes mais importantes da filosofia.

A lógica se ocupa do problema da exatidão do raciocínio; a epistemologia, do valor do conhecimento; a metafísica, do fundamento último das coisas em geral; a cosmologia, da constituição essencial das coisas materiais, de sua origem e de seu vir-a-ser; a ética, da origem e da natureza da lei moral, da virtude e da felicidade; a psicologia, da natureza humana e das suas faculdades; a teodicéia, do problema religioso ou da existência e da natureza de Deus e das relações dos homens com ele; a política, da origem e da estrutura do Estado; a estética, do problema do belo e da natureza e função da arte.

Mito e filosofia

A mente humana é naturalmente inquiridora: quer conhecer as razões das coisas. Basta ver uma criança fazendo perguntas aos pais. Mas às mesmas perguntas podem ser dadas diversas respostas: respostas míticas, científicas, filosóficas. As respostas míticas são explicações que podem contentar a fantasia, embora não sejam verdadeiras.

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Como, por exemplo, quando, à pergunta da criança "por que o carro se move", responde-se "porque uma fada o empurra". Já as respostas científicas procuram satisfazer à razão, mas são sempre explicações incompletas, parciais, fragmentárias: dizem respeito apenas a alguns fenômenos, não abrangem toda a realidade. As respostas filosóficas propõem-se, ao contrário, como dissemos, oferecer uma explicação completa de todas as coisas, do conjunto, do todo.

A humanidade primitiva (pode-se verificar em todos os povos) contentava-se com explicações míticas para qualquer problema. Assim, à pergunta "por que troveja?", respondia: "porque Júpiter está encorelizado"; à pergunta "por que o vento sopra", respondia: "porque Éolo está enfurecido".

À nós modernos, estas respostas parecem simplistas e errôneas. Historicamente, contudo, elas têm uma importância muito grande porque representam o primeiro esforço da humanidade para explicar as coisas e suas causas. Sob o véu da fantasia, há nessas respostas uma autêntica procura das "causas primeiras" do mundo.

Julgamos oportuno, por isso, dizer aqui algumas palavras sobre o mito, sobre sua definição, sobre suas interpretações principais e sobre a passagem da mitologia grega para a filosofia.

Turchi, grande estudioso da história das religiões, dá a seguinte definição de mito: "Em sua acepção geral e em sua fonte psicológica, o mito é a animação dos fenômenos da natureza e da vida, animação devida a alguma forma primordial e intuitiva do conhecimento humano, em virtude da qual o homem projeta a si mesmo nas coisas, isto é, anima-as e personifica-as, dando-lhes figura e comportamentos sugeridos pela sua imaginação; o mito é, em suma, uma representação fantástica da realidade, delineada espontaneamente pelo mecanismo mental"4.

Desta longa definição retenhamos a última parte: o mito é uma representação fantasiosa, espontaneamente delineada pelo mecanismo mental do homem, a fim de dar uma interpretação e uma explicação aos fenômenos da natureza e da vida.

Como dissemos acima, desde o início o homem procurou indagar sobre a origem do universo, sobre a natureza das coisas e das forças às quais se sentia sujeito. A esta indagação ele deu, sob o impulso da fantasia criadora - tão ativa entre os povos primitivos -, cor e forma, criando um mundo de seres vivos (em forma humana ou animal) dotados de história. A função deles era fornecer uma explicação para os acontecimentos da natureza e da existência humana: para a guerra e a paz, para a bonança e a tempestade, para a abundância e a carestia, para a saúde e a doença, para o nascimento e a morte. Todos os povos antigos - assírios, babilônios, persas, egípcios, hindus, chineses, romanos, gauleses, gregos - têm seus mitos. Mas entre todas as mitologias, a grega é a que mais se destaca pela riqueza, ordem e humanidade. Não é de se admirar, por isso, que a filosofia se tenha desenvolvido justamente da mitologia grega.

Do mito foram dadas as mais diversas interpretações, das quais as principais são: mitoverdade e mito-fábula.

4 TURCHI, N., Le religioni dell'umanità, Assis, 1954, 61.

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Segundo a intepretação "mito-verdade", o mito é uma representação fantasiosa que pretende exprimir uma verdade; segundo a interpretação "mito-fábula", ele é uma narração imaginosa sem nenhuma pretensão teórica. Para a primeira interpretação, os mitos são as únicas explicações das coisas que a humanidade, nos seus primórdios, estava em condições de fornecer e nas quais ela acreditava firmemente. Para a segunda interpretação, eles são representações fantasiosas nas quais ninguém jamais acreditou, muito menos seus criadores. Os primeiros que consideraram os mitos como simples fábulas foram os filósofos gregos. A eles se juntaram mais tarde os Padres da Igreja, os escolásticos e a maior parte dos filósofos modernos.

Mas, a partir do começo do nosso século, vários estudiosos da história das religiões (Eliade) da psicologia (Freud), da filosofia (Heidegger), da antropologia (Lévi-Strauss), da teologia (Bultmann) começaram a apoiar a interpretação mito-verdade, argumentando que a humanidade primitiva, embora não podendo dar uma explicação racional e metódica do universo, deve ter procurado explicar para si mesma fenômenos como a vida, a morte, o bem, o mal etc., fenômenos estes que atraem a atenção de qualquer observador, mesmo que dotado de pouca instrução. Na opinião de estudiosos contemporâneos, os mitos escondem, portanto, sob a capa de imagens mais ou menos eloqüentes, a resposta dada pela humanidade primitiva a estes grandes problemas.

Esta resposta, pensam eles, merece ser tomada em consideração ainda hoje porque, em alguns casos, a humanidade primitiva, simples e atenta, pode ter percebido melhor o sentido das coisas do que a humanidade mais adiantada, muito maliciosa e desatenta. Das análises feitas pelos estudiosos de nosso tempo segue-se que o mito exerceu, entre os povos antigos, três funções principais: religiosa, social e filosófica.

Primeiramente, "o mito é o primeiro degrau no processo de compreensão dos sentimentos religiosos mais profundos do homem; é o protótipo da teologia"5. Mas, ao mesmo tempo, ele é também aquilo que assinala e garante o pertencer a um grupo social e não a outro; de fato, o pertencer a este ou àquele grupo depende dos mitos particulares que alguém segue e cultiva. Finalmente, o mito exerce uma função semelhante à da filosofia, enquanto representa o modo de autocompreender-se dos povos primitivos. Também o homem das civilizações antigas tem consciência de certos fatos e valores, e cristaliza a causa dos primeiros e a realidade dos segundos justamente nas representações fantásticas que são os mitos.

Em nossa opinião, o mito é denso de significado tanto religioso como filosófico, tanto social como pessoal. Mas não concordamos com uma valorização que o equipare à filosofia. Embora tendo fundamentalmente o mesmo objetivo que o mito, a saber, o de fornecer uma explicação exaustiva das coisas, a filosofia procura atingir este seu objetivo de modo completamente diferente. De fato, o mito procede mediante a representação fantástica, a imaginação poética, a intuição de analogias, sugeridas pela experiência sensível; permanece, pois, aquém do logos, ou seja, aquém da explicação racional. A filosofia, ao contrário, trabalha só com a razão, com rigor lógico, com espírito crítico, com motivações racionais, com argumentações rigorosas, baseadas em princípios cujo valor foi prévia e firmemente estabelecido de forma explícita6.

5 GILKEY, L., Il destino delta religione nell' èra tecnologica, Roma, 1972, 163.6 Aristóteles diz que a diferença específica entre ciência e experiência está no fato de que a experiência atesta que aconteceu alguma coisa e explica o seu como, ao passo que a ciência procura esclarecer o seu porquê. Em nossa opinião, é esta também a diferença entre mito e filosofia. a mito nos diz como se estrutura o universo, ou seja, mundo dos deuses, dos homens e das coisas, ao passo que a filosofia quer apresentar porquê do mundo, do homem, de Deus.

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A religião grega e a filosofia

É comum ouvir em nossa época que o conhecimento humano se desenvolveu em três fases diferentes, das quais a primeira seria religiosa, a segunda, filosófica e a terceira, científica. É também muito difundida a opinião segundo a qual a fase religiosa se identifica com a fase mítica da humanidade.

Observou-se, porém, de várias partes e com razão que a tendência a dar uma estruturação mítica ao pensamento não é exclusiva da religião, mas que acompanha todas as outras expressões e dimensões do agir humano, e que semelhante tendência para a mitificação não desapareceu na época moderna, uma vez que também em nossos dias a ciência, a tecnologia, a política, a religião, o esporte etc. forjam seus mitos.

Não obstante isso, não deixa de ser verdade que a interpretação mítica constitui um aspecto característico dos povos antigos e que mesmo na Grécia, berço da filosofia, a primeira explicação das coisas foi essencialmente mítica e ao mesmo tempo genuinamente religiosa. Isto nos oferece a oportunidade de dizer uma palavra sobre a religião grega e sobre as mitologias de Homero e Hesíodo.

Quando se fala da religião grega, é necessário distinguir claramente entre religião pública e religião dos mistérios.

A religião pública, que tem sua mais bela expressão em Homero, é essencialmente hierofânica, antropomórfica e naturalista. Hierofânica enquanto vê em qualquer evento cósmico uma manifestação do divino: tudo o que acontece é obra dos deuses; todos os fenômenos naturais são provocados pelos numes: os trovões e os raios são arremessados do alto por Zeus, as ondas do mar são levantadas pelo tridente de Poseidon, os ventos são impelidos por Éolo, e assim por diante. Antropomórfica enquanto os deuses "são forças naturais calcadas em formas humanas idealizadas, aspectos do homem sublimados, personalizados, forças do homem cristalizadas em belíssimas formas. Em outras palavras, os deuses da religião natural não são mais do que homens ampliados e idealizados; são, pois, quantitativamente superiores a nós, não, porém, qualitativamente diferentes"7. Por isso a religião pública grega é certamente uma forma de religião naturalista. E tão naturalista que, como observou justamente Walter Otto, "a santidade não pode encontrar-se nela"8 porque, pela sua própria essência, os deuses não queriam, nem poderiam, elevar o homem acima dele mesmo. O que a divindade exige do homem "não é a mudança íntima de seu modo de pensar, nem a luta contra suas tendências naturais e seus impulsos; ao contrário, tudo o que para o homem é natural vale diante da divindade como legítimo; o homem mais divino é aquele que cultiva com o máximo empenho suas forças humanas; e o cumprimento do dever religioso consiste essencialmente nisto: que o homem faça, em honra da divindade, o que é conforme à sua própria natureza"9.

7 REALE, G., I problemi deZ pensiero antico, Milão, 1971, 388 OTTO, W.F., GZi dei delta Grecia, Florença, 1941, 72.9 ZELLER, E.-MONDOLFO, R., La filosofia dei greci nel suo suiluppo storico, Florença, 1943, 2~ de., I, 105ss.

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Outra característica da religião pública grega é não ser revelada, mas natural. Os gregos, diversamente dos hebreus, dos povos do Oriente e dos egípcios, não tinham livros sagrados ou tidos como fruto de revelação divina. Por isso eles não tinham uma dogmática fixa e imutável. Pelo mesmo motivo não havia na Grécia uma casta sacerdotal encarregada da guarda do dogma. Nesta ausência de dogmas e de encarregados de sua guarda, ausência que permitia a mais ampla liberdade à especulação filosófica, os historiadores vêem com razão um dos fatores mais importantes do aparecimento e do desenvolvimento da filosofia entre os gregos.

Inegavelmente, a religião pública, com seu imenso quadro mitológico, exerceu grande influência sobre as reflexões filosóficas dos pensadores gregos. Mas eles não foram menos sensíveis às solicitações da religião dos mistérios, a qual atingiu seu maior brilho na Grécia justamente quando a filosofia começava a florescer.

Os pontos mais importantes da religião dos mistérios (conhecida também pelo nome de orfismo) são os seguintes: a) no homem reside um princípio divino, um demônio (daimônion), unido a um corpo por causa de uma culpa original; b) este demônio é imortal e, por isso, não morre com o corpo, mas deve passar por uma série de reencarnações até expiar completamente sua culpa; c) a vida órfica, com suas práticas de purificação, é a única que pode pôr fim ao ciclo de reencarnações; d) por isso, quem vive a vida órfica entrará, depois desta existência, no estado de felicidade perfeita, ao passo que quem vive outro tipo de vida será condenado a ulteriores reencarnações.

Como se vê, a diferença principal entre a religião pública e a dos mistérios diz respeito às relações entre a alma e o corpo. Enquanto a religião pública tem uma concepção unitária da alma e do corpo, a dos mistérios professa uma concepção dualista. De não pouca importância são as conseqüências éticas destas duas concepções antitéticas. Na religião pública, como observamos, não se impõe nenhuma ascese, mas se encoraja o pleno desenvolvimento e a plena satisfação de qualquer capacidade, força e paixão. Na religião dos mistérios, ao contrário, impõe-se uma ascese muito rigorosa.

Vários ensinamentos antropológicos e éticos, como a imortalidade da alma, a condenação do prazer, o culto da virtude etc., de Pitágoras, Sócrates, Platão, Zenão, Plotino, são tirados diretamente da religião dos mistérios. E isto basta para mostrar sua importância para o desenvolvimento da filosofia grega.

Homero e Hesíodo têm o mérito de terem fornecido uma codificação quase oficial da mitologia da religião pública grega. Hoje, porém, os historiadores concordam em atribuir também certa importância filosófica à obra épica de ambos. De fato, nota-se em Homero um esforço, típico do filósofo, voltado para as motivações e para as razões dos acontecimentos narrados. Homero não conhece, escreve Werner Jaeger, a "mera aceitação passiva de tradições nem a simples narração de fatos, mas somente o desenvolvimento interno e necessário da ação, de fase em fase, nexo indissolúvel entre causa e efeito. ( ... ) A ação não se estende como uma tênue sucessão temporal: em qualquer circunstância, vale para ela o princípio de razão suficiente, recebendo cada acontecimento rigorosa motivação psicológica"10. Este modo poético de ver as coisas é exatamente o antecedente da pesquisa filosófica da "causa", do "princípio", do "porquê" das coisas. Mas há outra característica do epos homérico que prefigura a filosofia dos gregos: "Em uma e outra, a realidade é apresentada em sua totalidade: o pensamento filosófico apresenta-a em forma racional, enquanto a épica a apresenta em forma mítica.

10 JAEGER, W., Paideia, Florença, 1953, 3~ ed., I, 11055.

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A "posição do homem no universo", tema clássico da filosofia grega, é um problema a que se volta sempre em Homero"11.

Em sua Teogonia, Hesíodo fixou com precisão o quadro cósmico dentro do qual se moverá a especulação cosmológica dos filósofos. Segundo sua explicação da gênese do universo, primeiro foi gerado o Caos, depois Gea (a Terra), em cujo amplo seio estão todas as coisas. Nas profundezas da Terra, foi gerado o Tártaro escuro e, por último, Eros (o Amor), que em seguida deu origem a todas as outras coisas.

Será útil, contudo, repetir aqui o que dissemos atrás, a propósito das relações entre mito e filosofia. Se é verdade que o espírito indagador é o mesmo em Homero e em Hesíodo, de um lado, e nos filósofos, de outro, o modo como o realizaram é essencialmente diferente. "Enquanto em Hesíodo ou nos autores de teogonias o papel determinante é exercido pelo elemento fantástico-poético-mitológico, em Tales ele é exercido pelo logos e pela razão: é este o motivo pelo qual a tradição considera Tales como o primeiro filósofo reconhecendo que no seu discurso havia algo totalmente diferente do discurso dos poetas e que esta diferença assinalava justamente a passagem do mito para o logos"12.

O contexto social, político e econômico da filosofia grega

Primum vivere, deinde pbilosophare (primeiro viver, depois filosofar), diz um célebre provérbio latino. O sentido é que, sem determinadas condições sociais, econômicas e políticas, torna-se impossível qualquer especulação filosófica (como, além disso, qualquer outra atividade cultural séria). Quando o homem é atormentado pela fome ou pela miséria, ou oprimido pela escravidão ou pela ignorância, não tem tranqüilidade, nem tempo, nem disposições mentais para formular hipóteses filosóficas rigorosas e sistemáticas sobre a finalidade de sua existência, sobre a origem das coisas, sobre os fundamentos da ordem social e moral. De fato, entre os povos primitivos ou subdesenvolvidos, observa-se a ausência total de especulação filosófica sistemática. É lógico, por isso, supor que, se a primeira produção filosófica aparecida na Grécia data do século VI a.C., isto se deu graças a condições sociais, econômicas e políticas particulares.

De fato, no decorrer do século VI, a Grécia encaminha-se para uma relativa estabilidade política. Encerrados finalmente os grandes movimentos migratórios, a vida da cidade (pólis) organiza-se sobre a base de disposições bem-definidas, sob o controle de grupos aristocráticos reduzidos; também a vida econômica intensifica-se e o intercâmbio entre as cidades torna-se mais freqüente. Este intenso ritmo de iniciativas e atividades atinge seu ponto mais alto nas colônias jônias da Ásia Menor (Mileto, Éfeso, Colofão, Clazômena, Focéia) e nas colônias gregas da Itália meridional (Eléia, Régio, Metaponto, Gela, Agrigento, Catânia): Tanto nas primeiras como nas segundas, os colonos provenientes da Grécia entregaram-se principalmente ao comércio, o que trouxe para as novas comunidades riqueza e prosperidade.

11 Id., ibid., 113, nota 34.12 REALE, G., O. C., 67.

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Riqueza e prosperidade, por sua vez, proporcionaram a estas populações elevados níveis culturais, atestados ainda hoje pelos numerosos restos de templos, túmulos e estátuas. E por causa de certa liberdade decorrente da distância, as colônias puderam reger-se por constituições livres antes da mãe pátria. Foram assim as condições sociais, políticas e econômicas mais favoráveis que propiciaram o nascimento e o florescimento da filosofia, que, passando depois para a mãe-pátria, atingiu os mais altos cumes justamente em Atenas, isto é, na cidade onde reinou a maior liberdade que os gregos jamais desfrutaram.

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SÓCRATES E AS FORMAS PLATÔNICAS13

Platão é provavelmente o maior dos filósofos gregos. Ele deu, inquestionavelmente, a maior contribuição para a teologia cristã. Não que ele próprio tenha pretendido expor um sistema ou doutrina; seu gênio está antes em propor questões profundas e de grande alcance, num estilo informal, com um mínimo de termos técnicos. Para algumas dessas questões ele deu respostas definidas; em muitos casos, ele se contentou com demonstrar a complexidade de um problema e as considerações que se deve ter em mente, em parte como exercício de discussão racional, mas principalmente a partir de uma concepção profundamente séria da dificuldade de atingir a verdade completa, e da aversão por soluções precipitadas. Os filósofos platônicos posteriores raramente imitaram essa abordagem aberta, não dogmática, mas fizeram seleções de seus escritos que pareciam relativamente consistentes e que poderiam ser defendidos contra as escolas adversárias. Entre os cristãos, uma abordagem aberta, desinibida, da filosofia foi revivida por algum tempo, especialmente sob a influência dos alexandrinos Clemente e Orígenes, nos séculos terceiro e quarto, quando ousadas especulações podiam ser justificadas como "exercícios", gymnasiai; e nesse período a influência de escritores platônicos se fez sentir na teologia cristã. Mas esta, por sua vez, desenvolveu um esboço dogmático fixo, corroborado pelas autorizadas decisões dos concílios da Igreja. Dessa época em diante, a maior parte dos cristãos citavam Platão apenas onde parecesse que ele confirmava doutrinas estabelecidas da Igreja. A realidade de Deus, sua criação e providência, as potestades celestes, a alma humana, seu aperfeiçoamento, sobrevivência e futuro julgamento, tudo isso podia ser sustentado por meio da escolha apropriada de textos platônicos.

Platão deixou-nos um "corpus" de escritos muito amplo, que inclui obras de grande beleza e força; mas ele próprio considerava a palavra escrita como secundária, e preferia a troca de idéias de viva voz, em conversação ou "dialética". Nisso ele seguia o exemplo de seu mestre Sócrates, que nada escreveu. Devemos começar dizendo algo sobre esse homem notável.

Sócrates nos é conhecido por meio dos diálogos de Platão, que dão uma impressão idealizada de seus objetivos e métodos; por meio da descrição de Xenofonte, favorável, porém mais convencional; por meio da bem humorada caricatura esboçada por Aristófanes, e por meio de outros relatos esparsos, inclusive os de Aristóteles. Aristófanes deixa claro que Sócrates era visto popularmente como "sofista"; Platão apresenta-o como crítico radical do movimento sofista; mas, de qualquer forma, esse movimento forma o pano-de-fundo de sua vida e de sua obra.

A palavra "sofista" significava originalmente "professor"; foi apenas mais tarde que veio a implicar raciocínio capcioso ou desonesto. Os sofistas eram uma classe de professores profissionais que ofereciam, tanto palestras públicas, para as quais se cobrava uma taxa, como ensino particular para os filhos dos cidadãos abastados. Até então, a educação grega tinha sido limitada na sua abrangência, compreendendo gramática, aritmética elementar, algum conhecimento dos poetas, música e atletismo; os sofistas, em parte adaptando e desenvolvendo o trabalho dos filósofos, eram aptos a oferecer um programa muito mais variado e ambicioso.

13 O texto a seguir, até a página 79, foi extraído integralmente de STEAD, Christopher. A filosofia na antiguidade cristã. Tradução de Odilon Soares Leme. São Paulo: Paulus, 1999. pp. 23-91.

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Embora os sofistas fossem figuras pitorescas e altamente singulares, e possivelmente cultivassem estilos de vida característicos para apregoar seus talentos, eles partilhavam duas características principais. Em primeiro lugar, comparados com os filósofos mais antigos, eles davam pouca atenção às grandes questões a respeito do cosmos, e focalizavam sua atenção no comportamento humano. Protágoras, um dos mais famosos, começava um livro notável com a retumbante sentença "O homem é a medida de todas as coisas, daquelas que existem, das que elas são, daquelas que não existem, das que elas não são". Em segundo lugar, eles estavam menos interessados em teoria pura; pretendiam comunicar uma competência geral, que garantiria o sucesso na vida civil e política; e já que as questões políticas precisavam ser debatidas, eles ensinavam a seus alunos as artes do falar em público, do estilo literário, e da argumentação persuasiva. Assim, eles eram vistos às vezes como continuadores e divulgadores da obra de pensadores anteriores, às vezes como pessoas que reagiam rispidamente contra eles. A verdade é, talvez, que eles tinham algo em comum com a escola de Mileto, mas pouco ou nada com a de Pitágoras.

Os horizontes mais vastos abertos igualmente por filósofos e sofistas tendiam a minar a moralidade tradicional, baseada nos costumes locais e nos cultos religiosos; além disso, a doutrina de que a moralidade dizia respeito ao âmbito das convenções humanas, e não ao da necessidade natural ou do mandamento divino, podia facilmente sugerir que ela fosse artificial e poderia ser ignorada à vontade.

Esse ponto de vista não foi assumido pelos ilustres sofistas da primeira geração; mas já nos tempos de Sócrates alguns dos discípulos deles tinham tirado a conclusão imoralista.

Sócrates participou do interesse dos sofistas pelos assuntos humanos; ele abandonou seus primeiros estudos sobre cosmologia para se concentrar nas questões morais. Não aspirava à projeção social ou política, nem encorajava seus alunos a fazê-lo. Sustentava que a alma do homem, e a sua bondade, deveriam ser sua principal preocupação; e uma de suas principais questões era se tal bondade, assim como outras virtudes e habilidades, poderia ser ensinada. Mas ele também desafiou e desconcertou os moralistas tradicionais. Por um lado, sua reputação por sua integridade moral era confirmada por seu modo de vida; ele se contentava com viver simplesmente, afeito aos rigores físicos, e enfrentava alegremente a impopularidade enquanto sustentava a lei; e embora ele prezasse suas afetuosas relações de amizade com simpáticos jovens aristocratas, exigia inteligência e disposição para aprender. Por outro lado, seu temperamento inquiridor e exposição que fazia da sabedoria comumente aceita deixavam-no exposto à acusação de ceticismo moral; ele foi condenado e executado sob acusação de impiedade e de influência nefasta sobre os jovens.

Xenofonte retrata Sócrates como "discutindo constantemente os negócios humanos; refletindo sobre o que é piedoso e ímpio; o que é nobre e ignóbil; o que é prudência e loucura; o que é coragem e covardia" etc. O próprio Sócrates considerava essas questões como questões práticas; de fato, sondava continuamente os profissionais e peritos a respeito de suas habilidades especiais; pensava que "saber o que é a medicina (por exemplo) era o mesmo que "saber como praticar a medicina". Exigia, assim, que o homem devesse prestar contas de seu ofício; e isso incluía dar uma definição. Ele é freqüentemente apresentado testando toda uma série de definições de alguma noção comumente aceita, fazendo algum progresso a cada tentativa, mas rejeitando uma após outra, não se chegando assim a nenhuma conclusão.

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De fato, de modo mais geral, ele chegou à conclusão de que nada sabia; sua única vantagem era que ele reconhecia sua própria ignorância.

Ao investigar o que seja virtude (ou alguma virtude particular), Sócrates visava à completude e à consistência. Rejeitava respostas que não conseguissem recobrir todos os casos possíveis. E procurava algum padrão que fosse independente, tanto das convenções mutáveis, como das circunstâncias variáveis, opondo-se, assim, quer às concepções de Protágoras, quer às de Heráclito.

Mas é difícil descobrir até que ponto ele explorou essa linha de pensamento, já que Platão o apresenta propondo um elaborado desenvolvimento dela, a assim chamada teoria das Formas, a qual Aristóteles nos garante ter-se originado do próprio Platão. Essa teoria desempenha proeminente papel no Fédon, um diálogo que pretende reconstituir a última conversa de Sócrates, no dia de sua execução, em que ele defende sua crença na sobrevivência e imortalidade da alma, e que mais tarde, naturalmente, foi de grande interesse para os cristãos. Mas Sócrates é representado como depreciando o corpo, com suas percepções e sentidos, de modo a parecer mais consonante com a teoria pitagórica do que com sua própria aguçada curiosidade prática. Ele pode, com efeito, ter acreditado, como fizeram os órficos e os pitagóricos, na sobrevivência de uma personalidade plenamente consciente e ativa; mas Platão o faz defender isso com argumentos de sua própria lavra, pelos quais, porém, não reivindicou nenhum mérito, considerando-os apenas como conseqüência natural do ensinamento de seu mestre.

Pode-se tratar de Platão com segurança maior do que aquela com que abordamos os pensadores até aqui considerados, uma vez que seus escritos chegaram até nós in extenso. Muitos desses escritos são clássicos do ponto de vista literário, e os pensamentos neles expressos influenciaram de tal modo a tradição da Europa, que o leitor se sentirá em terreno familiar. Além disso, atualmente é possível, não apenas resumir a doutrina de Platão, mas dar alguma informação sobre seu progresso e desenvolvimento, uma vez que os estudiosos detectaram variações, tanto no pensamento como no estilo, através das quais suas obras podem ser dispostas numa rígida ordem cronológica. Elas compreendem uns trinta e cinco diálogos, junto com a Apologia, que pretende ser o discurso feito por Sócrates em seu julgamento, e treze cartas. A essas obras têm sido acrescentados outros diálogos, que são imitações por autores desconhecidos; além disso, alguns diálogos, e pelo menos algumas das cartas, são de autenticidade duvidosa. Costuma-se dividir as obras autênticas aproximadamente desta forma:

Primeiras obras: Apologia, Críton, Laques, Lísis, Cármides, Eutífron, Hípias Menor (? e Maior), Protágoras, Górgias, Íon. Diálogos do período intermediário: Ménon, Fédon, República, Banquete, Fedro, Eutidemo, Menexeno, Crátilo. Diálogos posteriores: Parmênides, Teeteto, Sofista, Político, Timeu (talvez anterior), Crítias, Filebo, Leis.

Os cinco primeiros diálogos do período intermediário são obras de excepcional distinção e importância; Górgias também é inesquecível. Os primeiros diálogos parece que pretendem apresentar o retrato da atividade de Sócrates e de seu método de discussão.

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Nos grandes diálogos do período intermediário, Sócrates ainda tem a parte principal, mas os pensamentos expressos são do próprio Platão, e vão muito além das idéias fundamentais de seu mestre. Alguns dos diálogos posteriores já não têm Sócrates como figura central; a caracterização é freqüentemente menos vívida e o pensamento se torna mais técnico e mais sofisticado quando Platão desenvolve suas teorias confrontando-as com a crítica.

A doutrina mais característica de Platão foi sua teoria das Formas ou "Idéias", com as quais ele quer dizer, não "pensamentos", como nós hoje entendemos a palavra, mas realidades objetivas eternas, que constituem um sistema ou mundo inteligível. Devemos explicar como ele formou essa concepção com base no ensinamento de Sócrates.

Nos primeiros diálogos, encontramos Sócrates fazendo perguntas sob a forma "O que é x?", referindo-se mais comumente a qualidades morais; como podem ser identificadas e definidas a piedade, a coragem, a beleza ou a justiça? Isso reflete claramente a preocupação de Sócrates com basear sua conduta no conhecimento real, como oposto à mera opinião; deve haver alguma medida acordada e constante por meio da qual os casos problemáticos possam ser julgados. Platão sugere que o que Sócrates procurava não eram exatamente exemplos de coragem etc., e sim a realidade única designada pela expressão "coragem em si", que estaria presente em cada ocorrência legítima. Isso é correto, embora em alguns casos pareça que Sócrates estivesse preocupado em reconhecer distinções ocultas, de preferência a um fator comum; assim, ele inclinava-se a responder à pergunta "x é bom?", replicando ''bom para quê?"; de fato, parece que algumas vezes o melhor modo de saber o que x é, é descobrir o que x faz, ou é apropriado para fazer - isto é, sua função.

Essa idéia é explorada no Crátilo. Mas a ágil imaginação de Platão levou-o a ver novas possibilidades; e logo segue um desenvolvimento mais importante. Parece que a uma pergunta como "O que é a justiça?" só se poderá responder se pudermos apontar para alguma realidade imutável, independente tanto das convenções humanas como das circunstâncias variáveis: aquilo que verdadeiramente é, e sempre é, justiça. Platão podia bem pensar na qualidade eterna e objetiva das definições matemáticas; a igualdade, que ele discute, está, afinal de contas, intimamente relacionada com justiça. Mas a teoria acabou incorporando pelo menos duas linhas independentes de pensamento que o próprio Platão nunca distinguiu efetivamente.

Primeiro, há o problema do um e do muitos. Por que empregamos uma única palavra, por exemplo, “justo”, para uma grande quantidade de ações? Platão responde: porque todas essas ações "se assemelham à" ou "participam da" única Forma ou padrão que é o que a palavra “justiça” propriamente significa.

Essa teoria pode ser apresentada para recobrir uma vasta extensão de casos; Platão, naturalmente, pensa primeiro em noções morais, seguindo Sócrates, e em conceitos matemáticos, seguindo Pitágoras; mas já no Fédon a lista se amplia, e encontramos referências não apenas à justiça e à igualdade, mas à saúde e à doença, ao calor e ao frio; e na Sétima Carta Platão reconhece Formas "de formatos e superfícies, do bom, do belo e do justo, de todos os corpos naturais e artificiais, do fogo e da água e de coisas do gênero, de cada animal, de cada qualidade de caráter, de todas as ações e passividades". Platão antecipava aqui o que mais tarde seria chamada teoria dos universais; e tal esquema pode ser aplicado sem restrição para qualquer classe de entidades similares.

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Por outro lado, há questões de valor e não-valor. Platão pensa na Forma de justiça como sendo sempre e perfeitamente justa. Mas nenhuma ação humana pode atingir essa perfeição, exatamente como dois pares de roupas ou utensílios não podem ser matemática e perfeitamente iguais. Em relação a isso, as Formas são vistas como padrões ideais, com os quais os objetos materiais ou as ações humanas têm alguma semelhança, mas nunca perfeita conformidade. Platão assinala essa distinção dizendo que as Formas devem existir "separadas de" suas ocorrências, num nível diferente de ser; de fato, elas são imaginariamente representadas como ocupando uma região celeste, o "plano da verdade". Mas existem tais Formas para cada classe? Como vimos, Platão mencionou tanto a doença como a saúde como exemplos em que é necessária a Forma para explicar por que um único nome se aplica a uma multidão de casos. (Nada adiantaria explicar a doença simplesmente como ausência de saúde, já que precisamos distinguir e classificar doenças específicas.) Mas como poderia existir uma doença perfeita? Num dos diálogos posteriores, o Parmênides, o próprio Platão admite essa dificuldade; ele apresenta Sócrates confrontado com a questão se nós podemos imaginar Formas ideais de cabelo ou de lodo, ou de outras coisas vis e sem valor. O próprio Sócrates hesita; mas a resposta dada por Parmênides implica que a teoria deveria ser coerentemente aplicada em cada caso. Platão não leva adiante o problema nesse diálogo; a Sétima Carta, acima mencionada, conclui que as dificuldades podem ser resolvidas; os diálogos posteriores, porém, sugerem reservas; o Político (263b) afirma que não precisamos imaginar uma Forma correspondente para cada "parte", ou conceito de classe; estas podem ser definíveis à vontade, enquanto o sistema das Formas é objetivo; ele determina a estrutura imutável do universo.

Será que o conceito de função ajuda nessa pretensão? A função de uma coisa normalmente implica algum bem maior que ela propicia, como os sapatos são para caminhar, e o caminhar é para a saúde.

Mas, na prática, o ofício do sapateiro é governado por uma complexidade de fatores: o terreno a ser percorrido, a formação, ou talvez a malformação, dos pés daquele que calça os sapatos. Parece difícil afirmar que as coisas que preenchem sua função são belas e, portanto, se relacionam com um único ideal, o da beleza. E ainda que tal Forma de beleza seja uma e única em relação a suas ocorrências, precisamos considerar sua relação com muitas outras Formas.

Particularmente, se as Formas são vistas como sendo boas, deveria seguir-se que elas próprias participam da Forma de bondade. Esse conceito recebe seu mais notável desenvolvimento na República, no qual Platão o descreve como mistério para o qual nenhuma palavra pode ser suficiente (506c-e), embora se possa sugerir um remoto paralelo: assim como o sol faz possível que os seres vivos tanto existam como sejam vistos, assim a Forma de bondade confere tanto a existência como a inteligibilidade a todas as outras Formas; elas são o que é o melhor que elas poderiam ser. Outra impressionante alegoria pinta o contraste que há entre o mundo perceptível e o mundo das Formas; a experiência dos homens comuns é comparada com a de pessoas presas numa caverna, que só podem olhar um jogo de sombras; e até os objetos que lançam essas sombras não são realidades, afora o fato de projetarem figuras dentro da caverna, sem que os prisioneiros os vejam. Caso aconteça de um homem escapar para o mundo que está acima, seus olhos serão ofuscados pela luz, a que não estão acostumados; se tentar voltar para a caverna e explicar sua visão, suas palavras serão confundidas e seu relato sobre as realidades superiores não merecerá fé. Desse modo, o mais sábio dos homens será tido na conta de louco.

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Essa doutrina, contudo, não é apresentada meramente como uma apologia da filosofia; a República começa com uma investigação sobre a natureza da justiça, mas se faz que Sócrates responda delineando os esboços de um estado ideal, que será governado por uma casta de guardiães cuidadosamente escolhidos, que devem ser treinados naquelas ciências que encorajam o comportamento moderado e esclarecido. O programa de educação compreende aritmética, geometria, esterometria, astronomia e música; pelo estudo da proporção e da regularidade, a alma deve ser progressivamente levada ao entendimento de uma harmonia transcendente, que só pode ser descrita em termos místicos, na esperança de que essa visão inspire as decisões práticas da classe governante.

Esse desenvolvimento da teoria política é acompanhado por uma nova concepção da pessoa humana. No Fédon, que considera o destino humano do ponto de vista de um filósofo idealizado, Platão trabalha com contraste bastante simples entre corpo e alma, e defende que a alma é um ser unitário simples e, como tal, é indestrutível.

Na República, ele deve providenciar em relação à comunidade em que apenas uma seleta minoria terá habilidades filosóficas. Os outros serão guiados em suas ações por seus desejos naturais, ou, quando muito, por impulsos respeitáveis, mas irrefletidos; assim, por razões práticas, Platão distingue na alma três fontes de ação - desejo, impulso e razão - e, correspondentemente, divide seu estado ideal entre três classes de homens, de acordo com o tipo de motivo que preponderantemente governa suas ações. Qualquer que tenha sido sua intenção original, essa divisão logo foi considerada uma psicologia autorizada; na verdade, o próprio Platão sublinhou isso num diálogo mais ou menos contemporâneo, o Fedro, que representa a alma humana como uma carruagem dirigida por cocheiro (sua razão) e puxada por dois cavalos, um dos quais (representando o "desejo") é mal-humorado e difícil de controlar. Na tradição posterior, isso levou a alguma distorção do julgamento moral; os desejos humanos de alimento, bebida e satisfação sexual chegaram a ser vistos como inimigos da razão e da virtude por excelência, enquanto a raiva e a agressão, simbolizadas pelo cavalo relativamente tratável, não foram tão prontamente condenadas. Além disso, essa divisão platônica da alma levou, por caminho um tanto indireto, à posterior divisão cristã da pessoa humana em corpo, com seus desejos "carnais", alma (isto é a alma não reformada) e (dom de Deus) inteligência ou espírito; mais uma vez, isso estimulou muitos cristãos a olharem o corpo (ou carne) não como um instrumento da alma dado por Deus, mas como intrinsecamente mau e fonte de tentação.

O gênio de Platão em grande parte consiste na avaliação extraordinariamente viva da dimensão da beleza e da bondade, e na sua habilidade imaginativa no transmitir essa visão. Talvez se pudesse dizer que a beleza é seu valor fundamental; mas a beleza física nas pessoas é insignificante, a menos que esteja associada com a beleza de caráter. No Banquete e no Fedro ele mostra como alguém pode fazer a transição - ou peregrinação - do amor baseado na admiração da beleza física, para uma visão universal da beleza transcendente; e no Górgias, uma de suas obras mais poderosas, ele faz Sócrates sustentar que é melhor - não, exatamente, moralmente melhor, mas preferível - sofrer injustiça do que praticá-la, desde que o homem que comete uma injustiça prejudica o que ele tem de mais precioso, sua própria alma. Não deixa de ser natural que os platônicos posteriores, tanto pagãos como cristãos, tenham tendido a estimar Platão como mestre moral e religioso; suas idéias políticas foram recebidas com frieza, e seu trabalho pioneiro na lógica e na metafísica freqüentemente foi eclipsado pelos desenvolvimentos empreendidos por seus alunos e sucessores.

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A FILOSOFIA DA MATURIDADE DE PLATÃO

Como literatura, os diálogos de Platão do período intermediário estão entre as maiores realizações criativas do mundo; os diálogos posteriores ficam aquém deles em poder de imaginação e habilidade dramática. No entanto, eles adiantam considerações de grande importância para o futuro da lógica e da metafísica. Platão estava, então, muito interessado na teoria do conhecimento. Um diálogo bem anterior, o Ménon, indicara o caminho. Ménon, escravo inteligente mas sem instrução, é questionado por Sócrates e apresentado descobrindo uma verdade matemática simples, sem que lha digam. Certas verdades, então, podem ser conhecidas independentemente da experiência; e Platão conclui que a alma se familiarizou com as Formas numa existência prévia, da qual nos esquecemos; a descoberta de tais verdades é, na realidade, uma recordação (anamnesis). Isso assinala claramente uma distinção entre o conhecimento das Formas e o conhecimento dos fatos do cotidiano; mas a prova de nossa preexistência oferece pouco fundamento para a teoria da transmigração, que Platão apresenta em vários diálogos, com riqueza de pormenores imaginativos, uma vez que se diz que nós nos recordamos de uma existência ideal, enquanto a teoria da transmigração tornaria provável que outras encarnações imperfeitas tivessem precedido nossa vida presente.

No Teeteto, em que o problema do conhecimento é discutido de forma mais completa, há, surpreendentemente, pouca referência às Formas; mas o diálogo é importante, inter alia, pela sua demonstração de que o conhecimento perceptual envolve mais que simples percepção, e ainda pela sugestão de que o conhecimento é uma disposição; conhecer não é algo como ver ou dormir, que fazemos de tempos em tempos; conhecer algo é ser capaz de agir ou responder corretamente quando preciso.

O problema do conhecimento é ventilado de maneira muito mais surpreendente no Parmênides, que já mencionamos como expressando o receio de Platão em relação à teoria das Formas.

As objeções teóricas aí levantadas foram de grande interesse para os críticos filosóficos, mas aqui serão tratadas com brevidade, já que elas tiveram pouca influência direta na tradição cristã. Argumenta-se, primeiro, que, se as realidades de cada dia "participam" das Formas, elas devem participar, ou de cada forma como um todo, ou de uma parte delas; mas, seja como for, parece que a Forma perde sua unidade. (Sócrates devia ter escolhido a primeira alternativa, e insistido em que nada precisa ser dividido apenas porque tem relação com muitas coisas; o sol é um só, embora seja visto por muitos). A segunda objeção é aquela que Aristóteles chamou de "o terceiro homem". Sócrates pensa que coisas semelhantes são semelhantes porque participam da Forma de semelhança; mas elas também se assemelham a essa Forma; assim, a semelhança dessa Forma e seus participantes deve ser explicada admitindo-se nova Forma, e assim por diante ad infinitum. (Não se pode responder a isto de forma breve, já que Formas diferentes levantam problemas diferentes; mas alguém podia, por exemplo, sugerir que a Forma da bondade é boa e simplesmente constitui exceção da regra geral da bondade por participação). Uma terceira objeção parece depender do princípio de que o semelhante é conhecido pelo semelhante; as formas são transcendentes, e assim poderiam ser conhecidas somente por meio de conhecimento transcendental, que nós não possuímos.

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Na parte final desse diálogo, Platão apresenta uma série de hipóteses, das quais a primeira é expressa numa frase intraduzível, que tanto pode significar "Se há uma unidade" ou "Se isto [o cosmos?] é um". Platão raciocina que, se é assim, então não se pode dizer absolutamente nada a respeito disso; mas ele continua adotando a mesma hipótese e argumenta, inversamente, que se isto é assim, possui todos os predicados possíveis. Ao todo, quatro hipóteses são apresentadas, e de cada uma delas se extraem conclusões contraditórias, terminando com o que parece uma grandiosa reductio ad absurdum. Eruditos têm-se esforçado para decifrar as intenções de Platão, chegando alguns a sugerir, em desespero de causa, que a coisa toda é uma refinada brincadeira. Eu, por minha parte, penso que as duas metades do diálogo estão conectadas pelo pensamento de que o filósofo não deve ter medo da crítica; tendo ventilado as desvantagens de sua própria teoria, ele deita abaixo a lógica empregada por Parmênides, usando quase as mesmas armas que Zenão usara em sua defesa. A metafísica de Parmênides só pode resistir se sobreviver a esse ataque. A conclusão real sugerida é, sem dúvida, que precisamos de uma noção mais apurada, tanto da unidade quanto do ser, tarefa que Platão devia em breve empreender. Mas os platônicos do final da Anti-guidade desenvolveram uma interpretação totalmente diferente, como veremos.

As relações entre as Formas são ainda mais exploradas no Sofista, embora, de novo, só possamos dar aqui uma notícia muito breve. Aparentemente, a pergunta em discussão é: como definir um sofista? São apresentadas sete propostas, todas elas, naturalmente, pouco lisonjeiras. Mas a maior preocupação de Platão é com a lógica da classificação, que envolve as Formas sob o aspecto de conceitos de classe, organizados por gêneros e espécies. Ele mostra que eles devem estar inter-relacionados, e não cada um exibindo uma única propriedade, com exclusão de outras; nos termos imprecisos do próprio Platão, algumas Formas "misturam-se com" outras.

Um problema crucial é proposto muito cedo no diálogo (237a): podemos explicar falsas afirmações sem fazer a "arriscada suposição", condenada por Parmênides, de que "o não-ser existe”? Nos tempos de Platão parecia natural tratar o "ser" como uma noção única; sua complicada discussão é tentativa de trazer à tona diferentes sentidos, que podemos agora prontamente distinguir. Em alguns sentidos, claramente, uma falsa afirmação "existe"; como acontecimento, ela ocorre; como sentença, ela tem um significado. Mas, em grego, dizer ''X existe" pode ser entendido como ''X é assim", ou "é verdade", exatamente a sugestão que temos de afastar. Platão conclui que uma afirmação falsa "afirma coisas que são diferentes de realidades" (ou "verdades", ton onton); ela "fala de coisas que não existem como se elas existissem" (263b). A segunda dessas formulações parece mais promissora que a primeira, uma vez que dizer que uma falsidade é diferente de alguma afirmação verdadeira particular pode ser verdade, porém não prova que ela seja falsa; dizer que ela é diferente de todas as afirmações verdadeiras deve ser verdade, mas não esclarecedor; isso equivale a dizer que ela não é verdadeira.

Platão conduz seus argumentos separando o que ele chama de "os cinco maiores gêneros" (genera, gene) - ou seja, ser, movimento, repouso, igualdade e diversidade - e perguntando quais deles combinam com cada um dos outros, ou os exclui. Ele declara que "igualdade" é diferente de "ser". Isso vem a dar num reconhecimento bem claro de que o "é" que exprime identidade é caso especial; "Ilion é Tróia" não é como "Sócrates é sábio". Dever-se-ia dizer, também, que ele distingue este último, em que "é" é usado de modo predicativo, da afirmação existencial "Sócrates é", ou "existe"? Certamente algumas indicações são oferecidas; Sócrates "participa da" sabedoria; mas parece-me que não se chega com clareza à distinção; e, com toda a certeza, não ficam eliminadas expressões desorientadoras.

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Além disso, o tratamento que ele faz das afirmações falsas não distingue formalmente o sentido de "ser como verdade", como faz Aristóteles.

Um ponto igualmente importante e controvertido é levantado em 248e6. Uma discussão da filosofia idealista leva à sugestão de que aquilo que é conhecido não pode, sob todos os pontos de vista, ser imutável; ser conhecido é ser objeto de ação e, assim, sofrer algum tipo de mudança. Então surge Sócrates, protestando: "Mas, pelo amor de Deus, digam-me: devemos realmente deixar-nos convencer com tanta facilidade de que mudança, vida, alma, compreensão não têm lugar algum naquilo que é perfeitamente real - de que isso não tem nem vida nem pensamento, mas permanece imutável, em solene indiferença, destituído de inteligência?" Isso sugeriu a alguns críticos que Platão propunha uma revisão radical de sua doutrina das Formas. Ele sustentara regularmente que elas precisam ser imutáveis, embora possam ser causas de mudanças; a República tinha afirmado que a bondade, como o sol, faz que as coisas existam e sejam conhecidas. Seria um passo ousado defender agora que as Formas estão sujeitas a mudança e possuem vida, alma e entendimento; e diversos críticos sustentaram que Platão manteve sua crença na imobilidade das Formas, que ele afirma em alguns diálogos posteriores, e quer dizer apenas que mudança, vida etc., são realidades que requerem explicação. Mas o argumento a favor do "ousado passo" foi habilmente defendido; e tenha sido ou não essa a intenção de Platão, essa interpretação deixou sua marca em alguns platônicos posteriores, como veremos, os quais assimilaram estreitamente as Formas com as almas.

Mas não é fácil rastrear isso nas obras imediatamente seguintes. No Timeu, um de seus diálogos de maior influência, Platão apresenta um quadro imaginativo da origem do universo. Este foi feito, diz ele, por um Artista, ou Artífice, divino (demiourgos), seguindo o modelo de perfeição estabelecido no mundo das Formas. Os cristãos chegaram a dar especial importância a essa obra, vendo nela uma confirmação do livro do Gênesis. Contudo, pela maneira como Platão o apresenta, o próprio Artista não parece ser a perfeição mais alta; ele apenas imita, e não origina, a perfeição que vê. Por outro lado, ele representa um princípio ativo, que as próprias Formas aparentemente não têm; a noção de que elas mesmas poderiam ser causas do movimento e da mudança é apenas levemente sugerida (como em 50d, onde se diz que elas desempenham o papel de "pai"). Alguns eruditos modernos, com efeito, pretenderam que toda a noção de um Artífice divino seja produto da arte, pródiga em criar mitos, de Platão; para efeitos dramáticos, ele personifica o princípio ativo, que em momentos de maior reflexão supõe residir nas próprias Formas. Em todos os acontecimentos exige-se um princípio ativo; não podemos igualmente nem interpretar o Artífice como meramente figurativo, nem as Formas como meramente estáticas.

Mas, de qualquer forma, há evidência, em dois diálogos posteriores, o Filebo e as Leis, de que Platão encaminhava uma concepção mais definidamente teística de uma inteligência, ou alma, controladora do mundo; de fato, pode-se dizer que as Leis apresentam o primeiro esboço de uma prova racional de tal ser, uma primeira tentativa de teologia natural. Mesmo assim, a "melhor alma" não é uma causa suprema ilimitada, já que há desordem no mundo, a qual deve ser produzida, conforme se diz, por uma ou mais almas más.

As últimas reflexões de Platão sobre as Formas, se podemos confiar no relato feito por Aristóteles, parecem ter sido dominadas por interesses lógicos e matemáticos. Ele sempre tinha considerado os conceitos e figuras matemáticos como os principais exemplos do ser real, embora também tenha sugerido que a alma é "semelhante às

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Formas".

No que diz respeito aos números, começamos agora a tomar conhecimento de uma distinção. Dois pode ser somado a dois; assim, o número dois, ou qualquer outro número, pode ser repetido; ele deve, portanto, ser distinguido da Forma pura da dualidade em si; por outro lado, ele não é idêntico a nenhum par efetivo de objetos. A dualidade em si é um número "ideal" ou "não adicionável"; e Platão estava claramente interessado na teoria de que tais números não adicionáveis pudessem ser a realidade fundamental da qual todo o sistema das Formas é derivado. Mas é difícil delinear os detalhes de qualquer sistema como esse; pode-se sustentar que existe apenas uma Forma assim para se unir a cada uma de nossas noções gerais, quando essas próprias noções constituem uma hierarquia, com diversas espécies reunidas sob cada gênero? O próprio Platão supunha que isso fosse possível; mas se existe um homem ideal, um cavalo ideal etc., parece que deve haver diversos animais ideais, além do "animal em si" ideal, que a teoria exige; uma cidade ideal, ainda, pressupõe uma quantidade de cidadãos ideais. Além disso, a sugestão de que as Formas pudessem ser dotadas de vida e de poder operativo faria com que elas parecessem muito mais semelhantes a almas; Platão podia já ter deparado a definição de Xenócrates, segundo a qual a alma é um "número que se move por si mesmo", onde a estranha idéia de que um número possa mover-se e agir talvez derive da definição mais antiga da alma como uma harmonia, já que a harmonia pode ser definida em termos de número, e uma vibração harmônica pode constituir a fala, ou demolir uma ponte.

Tais reflexões podiam levar à suposição de que pudesse haver uma Forma correspondente para cada indivíduo, pelo menos entre os seres humanos: um eu (self) ideal, ou "demônio", ou, em linguagem cristã, um anjo da guarda; dificilmente se conseguiria distinguir da alma individual tal Forma.

Precisamos considerar esses desenvolvimentos no contexto do platonismo posterior; dificilmente podem eles combinar-se com o encanto poético e imaginativo das primeiras concepções de Platão, ainda admitidas no Timeu, de que as Formas constituem não simplesmente um sistema teórico, mas um todo estruturado, um "mundo inteligível", cuja beleza e perfeição se refletem tenuemente nas coisas que vemos; uma beleza de que nossa alma desfrutou nos tempos esquecidos, antes de termos nascido, e para a qual o que há de melhor em nós pode esperar voltar.

A obra de Platão foi discutida e desenvolvida por uma longa série de pensadores que prosseguiram a tradição de sua escola, a Academia. Muitos cristãos também leram pelo menos alguns dos diálogos mais conhecidos, ou resumos deles, em vez de lê-los diretamente. Podemos dar algum na indicação da avaliação que fizeram de sua realização.

Em geral, entre todos os filósofos, Platão foi, de longe, o que teve a mais calorosa e ampla aceitação. Havia, evidentemente, opiniões que provocavam discordância e indignação: a rejeição do casamento na República, com sua proposta de que as crianças fossem educadas pela cidade; a tolerância em relação ao amor homossexual; a rígida divisão da sociedade, baseada na capacidade intelectual. No entanto, era comparativamente rara uma condenação total, e alguns cristãos o viam como o único homem sábio entre os gregos. Não se encontrou nenhuma dificuldade em aceitar sua apresentação dualística do universo, com seu contraste entre o mundo perfeito das realidades imutáveis e o mundo imperfeito percebido pelos sentidos; isso podia prontamente ser assimilado à visão bíblica do mundo, que opunha a terra ao céu. A Bíblia, evidentemente, fala também dos poderes invisíveis do mal; mas o próprio Platão

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aceitava a possibilidade de bons e maus daimones, e, nas Leis, tinha discutido a possibilidade de uma alma perversa do mundo.

Por outro lado, ele tinha deixado sem solução muitos problemas em relação às suas realidades inteligíveis. Poucos cristãos se interessavam por discutir suas inter-relações, ou pela teoria dos números ideais; comumente, parece que eles interpretavam os inteligíveis de um modo muito geral, como símbolos da perfeição celeste, descontado o fato de seguirem Platão na aceitação de que essa perfeição celeste podia ser trazida ao alcance da visão por meio da contemplação intelectual. Consideradas em detalhe, as Formas assumiram três principais modos de serem apresentadas: 1. pensamentos na mente de Deus, coletivamente nutridos por sua Palavra ou Inteligência, seu Logos; 2. ideais morais e espirituais, até certo ponto personificados e, assim, identificados com os anjos da tradição hebraica, ou semelhantes a eles; e 3. propósitos construtivos de Deus, os protótipos do mundo criado. Todas essas equações são encontradas bem no início da era cristã em Fílon de Alexandria.

Quanto à natureza humana, a doutrina de Platão consegue oferecer tanto incentivos como problemas.

Em geral, os cristãos aceitavam sua oposição um tanto rígida entre corpo e alma, e sua insistência em que a alma é a principal responsável por nossa vida intelectual e moral. Ele tinha sugerido também que a alma conserva seus poderes de consciência e pensamento após a morte do corpo; isso, naturalmente, foi muito bem recebido, como confirmação da crença cristã na sobrevivência à morte, mas não se harmonizava facilmente com a doutrina alternativa, e bíblica, da ressurreição do corpo. Os judeus haviam aceitado que não poderia haver vida ou consciência sem um corpo, e assim postulavam um longo intervalo de inconsciência seguido por uma ressurreição geral e pela reconstituição do corpo numa forma mais gloriosa (assim 1Cor 15 etc.), embora na experiência do indivíduo esse intervalo pudesse ser "engavetado" e passar despercebido (cf. Lc 23,43). Platão, porém, parece ter sugerido que qualquer relação com coisas perceptíveis era uma influência corruptora; e a crença na preexistência da alma implicava que sua entrada no corpo devia ser atribuída a uma "queda", a um apego culpável aos prazeres sensuais e físicos (embora também tenham sido sugeridos motivos mais dignos). Desse modo, nenhum platônico podia receber bem um ressurgimento do corpo. Mas a linguagem dos mitos de Platão deu alguns fundamentos para acomodação, uma vez que as almas freqüentemente eram representadas como que em forma corporal; por exemplo, os cocheiros do mito do Fedro, que atravessam as regiões celestes. Em alguns outros mitos, nós o notamos, Platão sugeriu que as almas corrompidas podiam ser punidas, sendo destinadas a corpos animais numa vida posterior, e que poderia haver um longo ciclo de renascimentos e mortes para as almas individuais. Orígenes aceitou pelo menos a segunda dessas concepções, mas em geral os cristãos rejeitaram ambas; por outro lado, eles acolheram bem os vislumbres de Platão de um julgamento divino, atribuindo prêmios e castigos após a morte.

EPICURO E OS ESTÓICOS

A filosofia de Epicuro e a dos estóicos desenvolveram-se em Atenas, a partir de aproximadamente vinte anos após a morte de Aristóteles. Epicuro, nascido por volta de 341 a.C., chegou a Atenas em 307-6; Zenão de Cício, uns sete anos mais moço,

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começou a ensinar aí por volta de 301. Em pouco tempo eles adquiriram, e mantiveram por alguns séculos, uma influência que eclipsou a de todas as escolas rivais.

A tentativa de Xenócrates de criar um sistema coerente do Platonismo não conseguira ampla aceitação; tanto Espeusipo como Aristóteles tinham sido inovadores notáveis. Quem sucedeu a Aristóteles foi seu aluno Teofrasto, mais conhecido por seu trabalho pioneiro em botânica, e mais tarde Estratão, outro cientista, enquanto muitos membros posteriores de sua escola - os "peripatéticos" - se voltaram para a erudição crítica. Platônicos, como Pólemon, deram muita atenção aos intricados problemas levantados por lógicos como Estilpão em Mégara e Diodoro Cronos; e surgiam, sob Arcesilau, chefe da Academia a partir de, aproximadamente, 273, um movimento céptico. Tanto os epicureus como os estóicos ofereciam um programa prático para se ordenar a vida, que poderia ser atraente para o homem comum. Já se afirmou que isso era especialmente necessário diante da desorientação causada pelo declínio das cidades-estado gregas em confronto com o império de Alexandre.

O epicurismo foi, em escala extraordinariamente elevada, a obra solitária de seu fundador. Ele continuou sendo uma influência intelectual por cerca de cinco séculos, período em que sua doutrina teve notavelmente pouca alteração. Os cristãos aceitavam alguns pontos da doutrina epicurista, mas rejeitavam seus pressupostos básicos por variadas razões, tanto boas como más, que logo entenderemos. Epicuro ensinava que o prazer é o principal bem, e que uma vida feliz é aquela em que o prazer predomina. Mas ele acreditava também que deveríamos escolher somente aqueles prazeres que podemos gozar sem nos atormentarmos ou sem prejudicarmos nossos vizinhos. Os prazeres, uma vez mais, não podem estender-se além de certo limite; e os nossos desejos naturais de alimento e vestuário, sexo e amizade, podem ser agradavelmente satisfeitos sem sofisticados artifícios. Desse modo, Epicuro advoga, na prática, um estilo simples de vida, no qual a tranqüilidade da mente desempenha importante papel, e se valoriza especialmente a companhia de amigos da mesma opinião. Ele não se afastou completamente da vida cívica, mas não nutria simpatia pela ambição política.

A doutrina de Epicuro a respeito do universo envolve dois elementos que parecem fortemente contrastados. Em primeiro lugar, sustenta que todo conhecimento humano começa com a sensação. Nossos sentidos funcionam, acredita ele, detectando certas "efluências", ou imagens, emitidas da superfície dos corpos que se nos deparam, um processo mais ou menos análogo ao sentido do olfato, tal como hoje o entendemos. Se nossas impressões sensoriais são claras e não são desmentidas por outras impressões, podemos reuni-las para formar conceitos e julgamentos. Um surpreendente subproduto da teoria sensacionalista de Epicuro foi sua concepção de que o sol realmente é do mesmo tamanho com o qual se nos apresenta, ou seja, cerca de um pé de diâmetro. Argumentava ele que os objetos distantes situados na terra parecem tanto menores como menos distintos; mas os corpos celestes podem ser vistos de maneira perfeitamente distinta, não havendo, assim, razão para se pensar que eles pareçam menores do que realmente são.

Por outro lado, Epicuro aceitava uma teoria física que certamente não poderia ser estabelecida pela observação direta, ou seja, a teoria atômica de Leucipo e seu mais influente sucessor, Demócrito. Os atomistas representavam os corpos materiais como coleções de minúsculos corpos sólidos imutáveis a colidir e ricochetear no espaço vazio. Desse modo, eles poderiam explicar uma variedade de processos físicos, como os movimentos dos líquidos e vapores, e a passagem de corpos sólidos através deles, a mistura de uma substância com outra, como nas soluções e ligas, e a digestão do alimento; a consistência dos corpos sólidos foi também explicada, de modo um tanto

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grosseiro, pela teoria das saliências em forma de gancho sobre os átomos, as quais conectavam firmemente uns aos outros.

Epicuro não conseguiu, porém, arranjar uma explicação satisfatória para a emergência e persistência de estruturas ordenadas, como o sistema planetário, ou os corpos dos ani-mais. Ele sustentava que o universo se originara de um enxame de átomos caindo livremente através do espaço. A certo momento, sem que se possa saber a razão, alguns deles começaram a desviar-se do seu caminho para baixo e começaram uma série de colisões e interações que acabaram produzindo o mundo mais ou menos ordenado em que vivemos.

A maioria dos pensadores antigos condenava como ilógica a noção de um desvio não causado, e rejeitava a explicação dada por Epicuro para a ordem no universo como resultado de eventos puramente fortuitos. A objeção é convincente; dado um tempo infinito, podia-se conceber a emergência casual de um padrão ordenado; mas isso não explicaria a sua persistência.14 Não obstante, a doutrina é coerente com suas intenções filosóficas. Ele defendia que as crenças religiosas eram causa de desnecessária ansiedade, e uma ameaça para a tranqüilidade da mente, que ele prezava. Ele não era, na realidade, ateu, já que tanto aqui como em outra parte endossava as crenças comumente aceitas, sustentando que havia deuses em forma humana, como eles eram ordinariamente representados, que viviam em paz e alegria nos espaços entre os mun-dos. Porém tais deuses, pensava ele, não podiam preocupar-se com os assuntos humanos; por isso, rejeitava qualquer concepção do mundo como criado ou governado por uma providência divina. A bem-aventurança dos deuses e, igualmente, a sua imortalidade tinham um fundamento físico na excelência e regularidade dos átomos que constituíam seus corpos. Da mesma forma, o pensamento e o caráter humanos seriam sim- . plesmente um resultado produzido pelos movimentos harmoniosos dos átomos dentro de nossos corpos. Mas os corpos humanos morrem e se desintegram; assim, não poderia haver persistência da consciência ou sobrevivência à morte. E mais: não se devia temer a morte. Ela significa uma simples extinçâo da vida; não se poderia esperar nenhum prêmio ou satisfação celeste; inversamente, não haveria ameaça de nenhumjul-gamento ou punição.

É claro que tal filosofia só podia ter escassa atração para os cristãos.

Seu fisicalismo, seu politeísmo, sua negação da providência divina, de um julgamento e de uma vida futura eram diretamente opostos às afirmações fundamentais do cristianismo. Sob um aspecto, porém, seus ataques eram injustos; ou enganados pela propaganda dos adversários de Epicuro, ou querendo denegrir seus opositores por qualquer meio, os escritores cristãos tendiam a acusar Epicuro de busca indiscriminada do prazer, que então era advogada por Aristipo e sua escola, os cirenaicos. A despeito de todas as suas divergências, o ideal de tranqüilidade de Epicuro tinha mais em comum com os propósitos do ascetismo cristão do que seus detratores gostariam de admitir. De fato, escritores cristãos freqüentemente faziam eco à concepção de Epicuro de que a pesquisa científica é valiosa somente enquanto traz tranqüilidade; além daí, essa busca era denunciada como curiositas.

Tanto os epicureus como os estóicos têm sido representados como reagindo, cada um a seu modo, à conquista de Alexandre e ao declínio das cidades-estado gregas, tentando apresentar um modo de vida que pudesse ser seguido por todos os homens, em qualquer parte, independentemente de sua orientação política ou classe social. Mas aí acaba a semelhança. Os epicureus, como já notamos, continuavam a ensinar as idéias de seus

14 Cf. Ambrósio, Hex.1.2. 7

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mestres, sem mudança substancial.

O estoicismo, em contraste15, foi desenvolvido e modificado por uma sucessão de hábeis expositores; houve intercâmbio de idéias com escolas platônicas e aristotélicas posteriores; e um estoicismo modificado ofereceu contribuições importantes para o pensamento de Fílon de Alexandria e, tanto por sua influência, como de modo independente, para o pensamento dos Padres da Igreja. Mas é difícil esclarecer os pormenores de sua história antiga, já que a grande massa dos antigos escritos estóicos se perdeu, podendo apenas ser recuperados fragmentos a partir de citações e notícias de escritores antigos, com o acréscimo de alguns retalhos de documentos em papiro. A completa falta de evidência tentou muitos críticos a verem o estoicismo como um sistema complexo, mas estático, cujos pormenores devem ser descobertos e ajustados uns aos outros. A verdadeira situação é bem mais desafiadora; dentro de ampla estrutura geral, há muitas dissensões e mudanças de pontos de vista; os estóicos posteriores continuam a citar as idéias simples e incisivas de seus pais fundadores, especialmente de Zenão, juntamente com teorias mais sutis e mais refletidas, elaboradas em controvérsia posterior. Houve claramente uma evolução das idéias; mas muitos aspectos desse processo não podem agora ser discernidos.

O estoicismo foi fundado por Zenão de Cício (ca. 332-262), em Chipre, o qual foi para Atenas talvez por volta de 311 e começou a ensinar aí uns dez anos mais tarde na stoa, ou colunata que deu seu nome à escola. Na sua juventude, ele foi influenciado pelo filósofo cínico Crates, e essa influência aparece na sua rejeição das convenções sociais não sustentadas pela razão, incluindo-se nelas a religião. Cleanto, que sucedeu a Zenão, era homem de outro estofo; apesar da larga abrangência de seus interesses, deu ele à escola um impulso mais teológico; seu "Hino a Zeus" chegou a ser amplamente aclamado como expressão do monoteísmo. Crisipo, que lhe sucedeu em 232, era dialético versátil e imensamente ativo, que tanto reforçou as bases teóricas do estoicismo, como desenvolveu de modo notável sua lógica, sua ética e também sua física. "Sem Crisipo", já se disse, "não teria existido a Stoa".

Na época de Crisipo os estóicos estavam em controvérsia, não apenas com os epicureus, mas com um movimento cético dentro da escola platônica, chefiado por Arcesilau, e mais tarde continuado pelo temível Carnéades (203-129). Este levou a uma modificação na doutrina moral dos estóicos. No início, eles tinham assumido uma concepção "ou tudo, ou nada", que tolerava somente o homem sábio e sua virtude, e considerava indesculpável "loucura" qualquer desvio da perfeita sabedoria. Agora eles acabaram reconhecendo a importância de valores amorais, ou dos bens naturais, e de um gradual progresso moral em direção à sabedoria. Tal ensinamento foi continuado por estóicos em atividade longe de Atenas. Panécio de Rodes (ca. 185-109), expoente dessa ética do senso comum, passou muitos anos em Roma antes de suceder como chefe da escola, em 129; suas idéias foram mais tarde publicadas por Cícero em seu De Officiis. A figura mais importante e original do primeiro século antes de Cristo foi Posidônio (ca. 135-50), originário de Apaméia, na Síria, que sucedeu a Panécio em Rodes. Sua posição filosófica não é totalmente clara, e antigamente eram-lhe atribuídos interesses transcendentais e místicos que prenunciavam os do neoplatonismo. Isso não é completamente falso, mas é certamente unilateral; neglicencia a enorme variedade da obra de Posidônio, que incluía lógica, matemática, ética, astronomia, geografia e história. Ele escreveu cinco livros "sobre os deuses", e condenou a visão antropomórfica de Epicuro a respeito deles como concessão à convenção, ou ateísmo disfarçado; parece que ele pensava na divindade como um único poder controlador, ou inteligência, 15 o contraste é observado por Numênio, fr. 24 des P., citado por Eusébio, Praep. Eu. 14.4

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pervadindo os céus e estendendo-se a cada parte do universo.

Escreveu sobre o Timeu de Platão, e, diferentemente dos estóicos anteriores, parece ter adotado a teoria platônica da tripartição da alma.

O estoicismo posterior é representado por três escritores que, para nós, têm a vantagem de sua obra ter sobrevivido in extenso, mas a limitação de se terem deixado dominar cada vez mais pelos interesses morais, chegando a negligenciar a lógica e a filosofia natural. São eles o renomado literato e político romano Sêneca (ca. 2 a.C. a 65 d.C.), que, no entanto, publicou um livro de Naturales Quaestiones; o escravo liberto Epicteto (ca. 55-135 d.C.), que ensinou em Roma até 89 d.C. e depois em Nicópolis, e cujas palestras foram registradas por Arriano; e o imperador Marco Aurélio (nascido em 121, imperador em 161, e morto em 180). Todos esses três pensadores foram vistos com simpatia pelos cristãos, e se supôs até que Sêneca tenha se correspondido com São Paulo (as cartas espúrias, na verdade, datam do terceiro ou quarto século). Os três acreditavam numa providência dominante, e os dois primeiros adotaram uma concepção decididamente teísta, ensinando a semelhança da mente humana com Deus e sua sobrevivência à morte.

As Meditações de Marco Aurélio, que expõem uma doutrina menos otimista de resignação, eram também aceitáveis para os cristãos, embora ele próprio tenha tentado suprimir o Cristianismo como uma influência corruptora.

Os estóicos dividiam seu ensinamento sob os três títulos de lógica, ética e "física", ficando entendido que esta última devia recobrir o estudo completo daquilo que existe no mundo, inclusive seu princípio supremo, ou Deus. Dada a limitação de nossos objetivos, pequeno é o espaço que se deve conceder à sua lógica, embora ela, recentemente, tenha atraído muito interesse entre os especialistas; de sua ética nos ampararemos mais tarde; mas, talvez surpreendentemente, são suas doutrinas físicas que são mais importantes, por causa de sua relação com o pensamento cristão.

Eles viam o mundo como um processo de perpétua mudança. Nesse ponto, seguiam conscientemente Heráclito, em contraste com a maioria dos pensadores subseqüentes, já que Platão e Aristóteles, embora acreditassem em ciclos da história cósmica, ressaltavam um modelo estático de Formas, ou espécies, e Epicuro explicava somente a origem do mundo, não vendo nenhuma orientação consistente em sua história posterior. Para os estóicos, o universo todo tinha vida e desenvolvimento, e também um princípio diretor racional, análogo ao de uma criatura viva, especialmente o próprio homem; daí o homem poder ser chamado "microcosmo", um "pequeno mundo", em oposição ao "macrocosmo", o universo como um todo. Desde que os estóicos tinham apenas um mundo, um paralelo mais adequado podia ser a fênix mítica, criatura única, que se reproduz a si mesma, morrendo e renascendo no fogo.

Os estóicos têm sido às vezes chamados materialistas; mas esse termo pode ser enganoso. Para os atomistas, a matéria inanimada é a realidade última, irredutível; a vida e o pensamento surgem a partir de configurações peculiares de átomos. Os estóicos, no entanto, ensinavam que toda matéria é permeada e controlada por um princípio racional, mas também, inversamente, a racionalidade é sempre e necessariamente incorporada na matéria. Assim, distinguiam eles entre dois princípios, a matéria recipiente, passiva, e seu poder diretivo, ativo. Mas isso é convencional e relativamente sem importância; os dois, como vimos, são separáveis somente no pensamento. O que é mais significativo é a continuidade de todo processo natural, uma gradação suave a partir da matéria inerte até uma matéria flamejante e luminosa que efetivamente exerce razão diretiva, como os estóicos atribuíam ao sol e às estrelas.

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Este universo, portanto, teve sua origem no fogo; mas este não era uma simples chama amorfa; incorporava um princípio controlador; era pyr technikon, "fogo construtivo". A conexão do fogo com a racionalidade parecerá extravagante para nós, que acertadamente observamos o fato de o grande calor ser prejudicial à vida.

Mas, como a maioria dos que empregam a teoria dos quatro elementos, os estóicos podiam falar de elementos tanto num sentido estrito como num sentido largo. "Água" podia significar líquido puro, ou qualquer líquido; "fogo" podia simplesmente indicar calor, incluindo-se o calor moderado do qual dependem nossa vida e pensamento. Mas o fogo puro tinha especial importância no seu sistema; o primitivo fogo construtivo deu origem ao universo por meio de sua diferenciação, e assim produzindo os outros elementos - ar, água e terra - e, a partir deles, as variadas substâncias compostas e formas de vida. As mais baixas dessas não têm nenhum poder autodiretivo, mas apenas consistência (hekis); as plantas, no entanto, são controladas por seu princípio organizador, sua natureza ou "desenvolvimento" (physis) - uma palavra importante de que nos ocuparemos mais tarde; e os homens, por seu princípio racional intrínseco, ou alma (psyche; ou hegemonikon, a "parte diretiva"). Assim o universo todo é organizado tendo em vista um fim racional, ou seja, promover o bem dos seres racionais, inclusive os homens; e a sua racionalidade global é reproduzida em graus variáveis nos princípios organizadores que controlam o desenvolvimento de suas partes, os assim chamados "princípios seminais", spermatikoi logoi. No final, porém, essa ordem racional será reabsorvida pelo fogo, numa conflagração cósmica, na qual, no entanto, ela persiste numa forma latente como "fogo construtivo", pelo qual será produzido um novo cosmos.

Parece que nós descrevemos dois princípios cósmicos, o fogo e a razão (logos); porém, mais propriamente, existe um único princípio, que no seu apecto físico é descrito como fogo, e em seu aspecto funcional como logos. Outros aspectos são indicados por meio das designações espírito (pneuma), natureza (physis, num sentido largo), cosmos e Deus. A doutrina estóica do pneuma, embora importante, não é perfeitamente clara ou consistente. Ele foi concebido como uma espécie de vapor que podia exercer pressão e podia conseguir um padrão de vibrações (tonos, "tom"), que variava em freqüência e intensidade. O problema aí era que se supunha que esse tonos explicasse a consistência variável das substâncias materiais; mas os estóicos procuravam também explicar o próprio pneuma em termos dessas substâncias, vendo-o como uma mistura de ar e fogo, e assim produzindo um circulus in definiendo: pneuma = seu tonos = ar e fogo = pneuma. A conexão de pneuma com racionalidade não aparece de imediato; mas a voz humana, que pode transmitir orientações racionais, depende exatamente das variações rítmicas na pressão do ar; e os estóicos, não tendo conhecimento adequado dos nervos ou do cérebro, postulavam um mecanismo similar para transmitir informações recebidas de todos os sentidos para o organismo central diretor, o hegemonikon, do qual procedem impulsos similares para controlar o corpo todo.

Um aspecto arcaico de sua teoria é o de que o hegemonikon fica localizado no peito. Além disso, certas diferenças básicas de temperamento nos homens eram explicadas pelas diferenças do pneuma em suas localidades; como diríamos, por diferenças de clima.

A teoria do universo dos atomistas tinha-se baseado no princípio de que os corpos materiais não se podiam interpenetrar. Água e vinho, por exemplo, pode parecer que se misturem, mas apenas porque os minúsculos átomos de que são feitos estão misturados

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como ervilhas e feijões num saco.

Os estóicos sustentavam que não existe espaço vazio, e que a matéria é contínua; mas também, como essa concepção exige, que as substâncias materiais podem interpenetrar-se em qualquer nível; o ferro incandescente, por exemplo, é uma mistura de fogo e ferro, na qual ambas as substâncias estão inteiramente presentes. E mais, o princípio racional do universo, sua divindade ou Deus, é ele próprio um tipo especial de matéria que pode difundir-se através do universo "como o mel através dos seus favos". Os estóicos dispunham, assim, de uma explicação física bastante simples da imanência divina, a que fazem eco, de forma menos definida, muitos escritores religiosos. Mas, de um ponto de vista mais comum, os estóicos distinguiam vários tipos de mistura; a mera "justaposição, digamos, de ervilhas e feijões; a "mistura", digamos, de água com vinho, onde cada elemento, ainda que grandemente diluído, conserva suas propriedades de forma mais fraca (enquanto Aristóteles sustentava que estas acabariam desaparecendo); e a "fusão completa", em que é produzida uma nova substância, com suas próprias distintas propriedades. Esta última parece apontar para a combinação química como nós hoje a concebemos. A mistura produz um compromisso, como o leite misturado com tinta produz um líquido acinzentado. Mas sódio e cloro, dois venenos violentamente reativos, combinam-se para produzir o estável e inócuo sal comum.

Tivemos de ignorar a lógica dos estóicos, embora tenha ela incorporado algumas compreensões, que agora são consideradas importantes, a respeito dos significados das palavras e da interdependência das declarações. Mas podemos anotar alguns pontos que ficam na fronteira entre a lógica e a física. Os estóicos ensinavam que apenas as "substâncias" eram plenamente reais, entendendo com isso os seres individuais, como o sol ou Sócrates; termos gerais, como "homem" ou "animal", denotavam apenas ennoemata, constructos ou noções mentais. Essa teoria "conceptualista" era uma das que Platão tinha rejeitado expressamente, embora ela tenha atraído alguns de seus seguidores; sua óbvia dificuldade é que ela não explica os fatos que justificariam tais concepções e as distinguiriam de ficções.

Para Platão, um termo como ''homem'' indica uma realidade permanente e objetiva, a Forma ou Idéia de humanidade; foram os estóicos que empregaram o termo "idéia" para significar simplesmente uma concepção mental, ou noção, sentido que comumente ele tem hoje.

Aristóteles, já o observamos, reconhecia três ordens de generalidades - indivíduo, espécie e gênero - embora tanto ele como Platão tenham atribuído importância particular às espécies. Os estóicos adotaram o sistema mais simples de distinguir entre o (real) indivíduo e o irreal, ou concepção geral, meramente mental. Mas se poderia formar uma concepção também dos indivíduos; e tais indivíduos são freqüentemente indicados pela palavra eidos e seus derivados - exatamente a palavra que anteriormente tinha indicado as espécies! Isso também atingiu nosso costume moderno; quando falamos de um "caso especial" (specialis = eidikos) normalmente queremos dizer um caso individual; é muito menos comum usarmos tal expressão para separarmos uma espécie de outra. Dizer "o homem é um caso especial" é certamente legítimo, mas menos comum.

Atribui-se aos estóicos um sistema de quatro categorias; distinguiam eles: sujeitos, coisas qualificadas, coisas dispostas e coisas relativamente dispostas (hypokeimena, poia, pos echonta, pros ti pos echonta). O segundo item representa as espécies (que, de fato, Aristóteles ocasionalmente chama de poietes, "qualidade", embora normalmente com isso queira significar uma condição ou estado de algo, corrrespondendo

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aproximadamente ao pos echonta dos estóicos).

Em qualquer situação real, para os estóicos, os quatro itens apresentam-se juntos; a primeira categoria - possivelmente também chamada, às vezes, ousia, substância - implica "é material", e, portanto, "é real". De fato, os estóicos muitas vezes evitam falar de "qualidades" abstratamente, e preferem falar de "sujeitos qualificados"; mais ou menos do mesmo modo, "conhecimento" era definido, não como um estado do hegemonikon, mas como o hegemonikon assim disposto, isto é, bem instruído; exatamente como o punho não é um estado da mão, mas simplesmente a mão fechada. Tal referência às coisas concretas nem sempre era possível; mas os estóicos insistiam em que, separadas dos sujeitos ou substância, as qualidades e o resto não são plenamente reais. Mas evidentemente elas não são puramente fictícias; daí descreverem os estóicos os sentidos das palavras (lekta) e, naturalmente, o espaço e o tempo, como não onta, mas tina; fatos não reais, mas, mesmo assim, fatos distinguíveis.

Voltando para a teologia, podemos observar certa tensão e alguma inconsistência na escola estóica. Sustentavam eles que o cosmos como um todo exibe uma estrutura racional e um princípio diretor; mas obviamente algumas partes dele - os seres humanos, por exemplo - distinguem-se por terem uma racionalidade própria, e por isso são chamados "microcosmos". Em conjunto, domina uma tendência panteísta; de fato, os estóicos eram acusados de ensinar que "o mundo é Deus".

Mas Cleanto aparentemente sustentava que a racionalidade e a divindade do universo estão concentradas na sua parte mais pura e mais inteligente, o sol; ou, de acordo com outras opiniões, no elemento éter, que a tudo envolve; desse modo, não foi muito difícil para alguns estóicos posteriores adotar a noção de uma divindade transcendente. Os estóicos, além disso, eram freqüentemente tolerantes em relação aos mitos e cultos contemporâneos; eles podiam identificar sua razão cósmica com Zeus, e ver nos deuses menores representações míticas de "poderes" particulares da razão cósmica, ou partes de seu domínio; assim, sustentava-se que Hera representava Aer, o ar. Tais "poderes" do Deus supremo encontram um lugar importante em Fílon e na tradição cristã.

A doutrina estóica de uma providência que a tudo abarca cristalizou-se na teoria de que os acontecimentos são determinados; na sua forma extrema, essa concepção podia mesmo sugerir a existência de um padrão fixo de acontecimentos, que se aplicaria não apenas a este mundo, mas a todos os outros mundos que o tenham precedido, ou que a ele se sigam, de modo que cada acontecimento e cada ação se repitam ad infinitum. O determinismo propõe dificuldades muito bem conhecidas dos moralistas; se todas as nossas ações devem obrigatoriamente acontecer tal como acontecem, por que as recomendamos ou as desaprovamos, e temos apreço por algumas ações, mas condenamos outras? Os estóicos apresentam duas respostas alternativas. Uma, o assim chamado argumento do "cilindro", sugere na realidade que o nosso próprio caráter é uma parte interessada de nossas ações; mas isso não melhora muito se nosso caráter é representado como um dado que não podemos modificar. A outra resposta era dizer que temos a liberdade de aceitar ou recusar a ordem providencial das coisas, embora as coisas continuem acontecendo, tenha sido nossa escolha qual for. Isso é claramente verdadeiro em certa porção; devemos aceitar, já que não podemos evitá-las, a chegada da velhice e a morte. Mas como resposta completa, isso também é falho, já que, se a ordem providencial abrange literalmente todos os acontecimentos, deve abranger minhas escolhas de atitude, enquanto, se estas forem indeterminadas, levarão necessariamente a outros acontecimentos indeterminados. Assim, está predeterminado se eu aceitarei ou resistirei.

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Se o determinismo é, de fato, compatível com a liberdade que o moralista acertadamente exige é um ponto sobre o qual os filósofos ainda não chegaram a um acordo (embora, de minha parte, eu ache que não). Na Antiguidade, a doutrina estóica foi contestada por Carnéades, o qual rejeitava não somente o determinismo estrito, mas toda noção de uma ordem providencial.

Por outro lado, ele produziu notáveis argumentos para provar que os seres racionais podem praticar uma escolha genuinamente não determinada. Mas o debate ficou confuso pelo fato de os debatedores estarem muito inclinados a defender uma concepção global, negligenciando o fato óbvio de que alguns acontecimentos são muito mais predizíveis do que outros. Carnéades, porém, sustentava que não podia haver nenhum conhecimento absolutamente certo de nada, sem falar do futuro, mas apenas uma razoável crença suficiente; em contraste, porém, os estóicos ensinavam que a percepção sensorial, em circunstâncias favoráveis, podia darnos uma "impressão cognitiva" (kataleptike phantasia) que era uma prova contra o erro.

Os estóicos chegaram, assim, a ser acusados de negar a liberdade da vontade e de ensinar uma doutrina fatalista parecida com a dos astrólogos. Mas não era essa sua intenção. A noção de liberdade fora sempre importante para eles. Os cínicos tinham incitado os homens a atingi-la não fazendo caso das convenções sociais e abrindo mão dos confortos que tornam a pessoa dependente da sociedade. O desprezo pela convenção foi muito evidente em Zenão; como os cristãos observaram mais tarde com desgosto, ele ensinava que em certas circunstâncias tanto o homossexualismo como o canibalismo podiam ser aprovados com fundamentos racionais. E um estilo de vida ascéptico foi recomendado pelos estóicos através de toda a sua história, embora com o passar do tempo sua moralidade social tenha-se tornado mais conformista.

Segundo sua apresentação original, o sábio estóico era completamente destituído de pathe, ou impulsos irracionais; suas ações eram governadas tão-somente pela razão. Essa doutrina foi modificada quando pathe veio a ser distinguida de hormai, simples impulsos naturais, por causa de sua força imoderada ou de seus objetos impróprios; tornou-se possível, então, aprovar as emoções moderadas e bem dirigidas. Mas causou certa confusão o fato de os estóicos representarem pathe e os atos por ela inspirados como "opiniões" ou 'julgamentos" errôneos e dela resultantes. Isso envolve uma boa dose de super simplificação. Como regra geral, pode ser que os homens bons ajam de modo refletido, frio e coerente, e, além disso, que os homens maus ajam irracionalmente. Mas eles o fazem em sentidos muito diferentes. Alguns são fria e coerentemente egoístas; outros submetem-se habitualmente a seus impulsos imediatos; outros ainda, os akrateis de Aristóteles, têm algumas aspirações à bondade, mas são dominados por impulsos desordenados, que se chocam, não somente com aquelas aspirações, mas uns com os outros. Tais fatos, e outros como esses, podem ser mais bem explicados se nós distinguirmos entre impulsos conflitantes de um homem e os juízos e opiniões que, em certo sentido, ele pode manter ainda quando efetivamente se subordina ao impulso.

Não obstante, os estóicos retratavam o homem sábio como diferente, não só em grau, mas em qualidade, de todos os outros, os "loucos"; o homem que não consegue flutuar, ainda que por duas polegadas, afogar-se-á. E, em princípio, os estóicos sustentavam que a virtude moral é o único bem. Mas, na prática, essa posição exclusiva veio a ser modificada. Desde que o cosmos como um todo é racional, o ideal da ação racional podia ser apresentado como "agir de acordo com a natureza". Mas não se podia negar

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que certas emoções e instintos (por exemplo, a autopreservação) eram naturais ao homem, e que a saúde ou uma prosperidade razoável eram vantagens naturais.

Assim, ainda que mantendo o valor único da bondade moral, os estóicos vieram a reconhecer um conjunto de valores secundários - proegmena, "coisas aprovadas" - que alguém pode razoavelmente desejar garantir para os próprios amigos ou dependentes, senão para si mesmo, e um conjunto de obrigações morais secundárias para com as pes-soas ligadas a ele e para com a sociedade como um todo.

Os moralistas cristãos, diz-se freqüentemente, valeram-se amplamente da ética estóica popular. Foi esse código modificado que influenciou os escritores do Novo Testamento, embora o ideal de uma "vida sem paixão" tenha-se tornado cada vez mais importante do século segundo em diante. Mas os pensadores cristãos, de acordo com a principal tradição grega, tendiam a chamar de pathe a todas as emoções fortes, ao invés de reservar o termo para as "emoções contrárias à razão". Isso gerou confusão; o ideal de "metriopatia", propriamente "moderar as próprias paixões", podia sugerir "discreta indulgência para com elas"; e apatheia podia sugerir ausência de toda emoção, qualquer que fosse. Os cristãos afirmavam que Deus era apathes, "impassível". Com uma interpretação rigorosa de pathos, isso era apropriado. Mesmo assim, sua ênfase negativa podia soar como um estranho contraste com o ideal bíblico do amor comunicativo de Deus.

OS PLATÔNICOS INTERMEDIÁRIOS E FÍLON DE ALEXANDRIA

O século I a.C. testemunhou o surgimento de novo movimento em filosofia, o qual, embora não envolvesse pensadores criativos realmente destacados, estava fadado a exercer importante influência no pensamento cristão. A filosofia desse período é às vezes chamada "sincretista", o que implica a fusão de sistemas anteriormente distintos; mas essa sugestão é apenas parcialmente verdadeira. Certamente não houve uma fusão geral das escolas mais antigas. A maioria delas mantinha uma individualidade claramente assinalada. Doutrinas epicuristas eram expostas, por exemplo, pelo poeta latino Lucrécio; o ceticismo foi ensinado por Enesidemo, e o céptico tipo "acadêmico" de Platonismo era exposto por Cícero; prosseguia o trabalho sobre Aristóteles, e uma edição coligida de seus escritos foi produzida por Andrônico de Rodes, talvez ca. 65-40 a.C.16 Mas, como vimos, já tinha havido contactos entre estóicos, platônicos e aristotélicos. O novo movimento, iniciado com Antíoco de Ascalon por volta de 80 a.C., pretendia ser um ressurgimento do genuíno Platonismo, que rejeitava a tradição céptica, e, além disso, afirmava haver substancial acordo doutrinal entre Platão, Aristóteles e Zenão(!), o fundador do estoicismo. A disputa com o ceticismo era claramente de primeira importância. Pela mesma época, as teorias numéricas dos pitagóricos, que tinham atraído Platão e seus sucessores imediatos, desfrutavam de um despertar de interesse.

16 Para a data, veja N. Gottschalk, "Os mais antigos comentadores aristotélicos", in R. Sorabyi (ed.), Aristotle Transformed (veja Bibliografia 4), p. 63: "Andrônico começou sua obra nos anos 60 e publicou sua edição durante as décadas seguintes", contrariamente ao ponto de vista de L Düring (em Roma, e cerca de vinte anos mais tarde).

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O novo Platonismo da assim chamada "Quinta Academia", como mais comumente se ensina, logo mostrou ser de caráter marcadamente teísta. Percebe-se isso claramente no tratamento que dá às Idéias ou Formas (eide), no próprio Platão, protótipos transcendentes, imutáveis; em Aristóteles, princípios imanentes de desenvolvimento; para os estóicos, meras concepções em nossas mentes (embora eles admitissem que algumas concepções fossem comuns a todos os homens, e tivessem um equivalente aproximado do eide de Aristóteles em seus seminae rationales, veja p. 38 acima). O próprio Platão, na República e no Timeu especialmente, deixara sem resposta muitas questões. Será que o Artífice, no Timeu, tinha por finalidade representar a perfeição suprema no universo? Ou essa posição era ocupada pela Forma do Bem, de sorte que o Artífice simplesmente observa e imita essa perfeição? Ou poder-se-ia identificá-los, seja pela personificação da Forma do Bem, seja tratando o Artífice meramente como apresentação mítica da vida, pensamento e ação que de fato reside nas Formas e na Forma suprema? O novo platonismo, revivendo talvez uma concepção que remonta a Xenócrates, sustentava que a realidade suprema era a mente ou inteligência, e que as Formas eram "idéias" ou concepções que se originavam nessa mente e eram usadas como "exemplares" (paradeigmata) para criar as várias espécies de coisas que o mundo encerra. Tal prática pode ter sido sugerida por uma expressão da Fisica 2,3 de Aristóteles "a forma e o exemplar"; alguns pensadores extraíram uma distinção que ele não pretendia,17 e assim puderam interpretar o "exemplar" como o protótipo transcendente, e a "forma" como sua marca sobre o objeto familiar, reproduzindo, assim, aproximadamente as concepções de Platão e de Aristóteles. Às vezes, de fato, o "exemplar" é tratado como quinto tipo de causa, ao lado dos quatro originais de Artistóteles.

Suponhamos, então, que o mundo se origina da inteligência criativa aplicando as Formas à matéria informe. Essa doutrina tem sido intitulada "Dreiprinzipienlehre", doutrina dos três princípios geradores; e é bom que se lembre que essa expressão não se refere a nenhuma forma de teologia trinitária; dos três princípios que ela indica, apenas um é divino. Além disso, o termo "Dreiprinzipienlehre" deveria propriamente implicar três princípios independentes; mas para aqueles que concebem as Formas como produtos da mente divina, existem, falando-se com propriedade, apenas dois princípios últimos, Deus e a matéria. Tal doutrina foi ensinada, por exemplo, pelo Hermógenes combatido por Tertuliano. Outro concorrente foi o ponto de vista de que podia haver apenas um princípio último; assim, por exemplo, Fílon, Leg. All. 3.7, talvez tenha sido influenciado por Eudoro (veja abaixo, p. 103). Para os cristãos isso podia sugerir que o próprio Deus tenha criado a matéria, e assim tenha feito o mundo ex nihilo.

Mas esse argumento admitia a doutrina bíblica de um ato de criação, enquanto a maioria dos platônicos sustentava que o mundo era eternamente dependente de seu (s) princípio (s) criativo (s); apenas uma minoria tomava o Timeu ao pé da letra como implicando um ato criativo.

Muitos platônicos, no entanto, concordavam com os estóicos em tratar as formas como concepções numa mente, mas faziam-nas reais e objetivas como pertencentes a uma inteligência suprema, da qual deriva toda perfeição. A união das "noções comuns" dos estóicos com as Formas transcendentes dos platônicos não era tão absurda como pode parecer, uma vez que a doutrina estóica dos homens como "microcosmo" podia sugerir que as mentes humanas se harmonizam, em princípio, com a razão criadora divina.

17 Para o ponto de vista contrário, veja P. Merlan, LGP p. 54.

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A esse esquema foi acrescentada a concepção pitagórica de que a fonte última deve ser uma unidade perfeitamente simples, o Um (Uno), ou Mônada. Paradoxalmente, essa teoria, que enfatizava a total simplicidade e unicidade do ser supremo, em breve levaria a desdobramentos e complexidades na teologia. Isso porque a palavra "um (uno)" é ambígua por si mesma, como explicaremos; ela pode representar algo único, ou algo indiviso, ou o primeiro número (que pelo raciocínio pitagórico seria a origem de todas as coisas), ou ainda uma simples unidade que pode ser repetida, como quando dizemos "duas vezes um, dois". Havia, portanto, alguma razão para distinguir entre o Um supremo, a origem última, e um princípio de unidade inferior que, como fonte das Idéias, concebe e expressa a si mesmo na multiplicidade.

Não será possível considerar os expoentes dessa filosofia com todas as minúcias; para os nossos propósitos, bastará que exponhamos sua contribuição para o pensamento de um único escritor, que, no entanto, exerceu sua influência sobre muitos teólogos cristãos, a saber, Fílon de Alexandria. Fílon era judeu de fala grega, membro de família nobre que desempenhava importante papel nos negócios cívicos; recebera ampla educação e tinha vasto conhecimento da filosofia grega; viveu aproximadamente de 25 a.C. até 45 d.C. Sua vida religiosa era centrada nas escrituras judaicas, particularmente no Pentateuco, que ele lia em grego, na versão dos Setenta; considerava a Torá como correta e autorizada em todos os pormenores, embora não pareça mostrar muita familiaridade com o ritual do Templo, tal como realizado em Jerusalém na sua época. A maior parte de seus extensos escritos consiste em comentários alegóricos sobre o Gênesis e o Êxodo, com alguns outros tratados sobre tópicos particulares, como criação e providência, e biografias de alguns heróis bíblicos. Ele procurava demonstrar que as escrituras judaicas em si mesmas eram capazes de apresentar, não apenas a verdade divina, mas uma educação humanística; e, por meio do uso da alegoria, sustentava que o teor exato do texto bíblico, e até os nomes nele contidos, proporcionavam orientação moral e espiritual coerente com a filosofia das escolas gregas contemporâneas.

Entre essas, ele demonstrava sincera fidelidade ao Platonismo, fazendo uso até mesmo do Platonismo cético, onde ele fosse pertinente, embora em geral tenha-se oposto ao ceticismo; faz uso considerável de conceitos aristotélicos e estóicos, enquanto rejeita terminantemente Epicuro e todos os outros expoentes do materialismo. Mas seu ensinamento filosófico, embora abundante, muito freqüentemente é aduzido de forma incidental, para explicar algum ponto surgido do texto sagrado; ele não tem oportunidade, embora não lhe falte a competência, para produzir um esquema filosófico consistente.

Fílon, naturalmente, tem consciência do significado prático da filosofia, no sentido de apresentar um modo de vida; ele mostra os patriarcas, não apenas como homens devotos e virtuosos, mas como sábios e ponderados moralistas. Mais surpreendente, talvez, é sua determinação de apresentar Moisés em particular (para Fílon, o autor de todo o Pentateuco) não somente como mestre autorizado, mas como filósofo platônico. Podemos tentar uma ilustração desses traços com a obra em que ele discute Gênesis 9,20, ''Noé ... plantou a vinha", comumente chamada De Plantatione: "Isso está relatado no Levítico 'Ele chamou Moisés' [Lev 1,1]; mas Beseleel também, a quem é dado o segundo plano, terá sido chamado, já que Deus o chama para preparar e supervisionar os utensílios sagrados [Ex 31,2ss]. Mas ele terá um chamado secundário, enquanto Moisés, o sábio completo, ocupa o primeiro lugar; isso porque Beseleel trabalha com sombras, como os pintores, que nada de vivo podem criar, já que 'Beseleel' significa 'fazedor de sombra'; porém Moisés é encarrregado de produzir, não sombras, mas as naturezas criadoras das próprias coisas."

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Beseleel é, de fato, um artífice que modela objetos materiais usados no culto; chamá-las de "sombras" é uma reminiscência da República de Platão, especialmente 7.514-17 (a alegoria da caverna, veja p. 29 acima) e 10.595-8 (o pintor, que produz semelhanças, antes que objetos reais). Moisés, porém, tem acesso aos originais, ou seja, o sistema das Formas platônicas, que, segundo nos diz Fílon, são elas próprias as concepções do Deus supremo reunidas em sua razão, o Logos, e que agem como "selos" ou modelos de sua obra na criação.

A respeito do próprio Deus, diz-nos Fílon, de modo negativo, que ele não se reveste de forma humana, apesar das referências bíblicas à sua "face", "mãos" etc., e a suas emoções, como amor ou raiva; de modo positivo, que sua natureza é misteriosa; podemos saber que ele é, ou existe, mas não o que ele é. Fílon refere-se a ele como "Aquele que é" (Ex 3,14 LXX), onde o tempo presente sugere um ser imutável; Deus é eterno e imutável, fora do espaço e do tempo, embora capaz de agir dentro deles; ocasionalmente é ele chamado "mente" ou "alma" do mundo; mas sua transcendência é enfatizada ao se dar a ele o nome de "Mônada" ou mesmo de "acima da Mônada".

Seus atributos morais são descritos com bem maior segurança; Deus é a fonte de toda bondade, o criador e governador do mundo; embora se diga que ele é livre de paixão (pathos), alegra-se com a bondade e mostra benevolência (eleos) para com todos, mas rejeita, julga e pune o que é mau. Como o Artífice de Platão, é generoso na sua obra criadora; o próprio mundo é um presente seu; do mesmo modo, a mente humana e as virtudes humanas.

O sentimento que Fílon tem da santidade e da transcendência de Deus vai de par com certa relutância em falar de Deus agindo diretamente sobre o mundo; ele fala de Deus agindo por meio de seus "poderes", dynameis (como outros mestres judeus de seu tempo; cf. também De Mundo [Aristóteles]). Não fica claro, muitas vezes, se esses "poderes" representam a ação do próprio Deus, expressa em termos de condescendência, ou se eles são seres subsidiários, criados para servi-lo e agir como seus representantes. Entre eles, figura preeminente a razão de Deus, ou Logos; em outras passagens, Fílon fala de Deus agindo por meio de sua Sabedoria (Sophia), ou deliberando com ela, a qual é vista como um ser feminino, chegando a ser descrita como a "consorte" de Deus. Além disso, ele descreve Deus como empregando dois poderes principais, sua Bondade e sua Soberania, que são intituladas, respectivamente, "Deus" e "Senhor", mas são subordinadas a "Aquele que é". Isso claramente deriva de tentativas anteriores de explicar o emprego de dois nomes, "Deus" e "Senhor", para uma única divindade. Mas, quando faz uma exposição de Gênesis 18, 'Fílon afirma que Deus pode ser visto seja como um, seja como três. Naturalmente, essa teologia interessou os eruditos cristãos que investigavam a doutrina da Trindade; mas é preciso dizer que Fílon não mostrava nenhuma inclinação consistente para uma teologia trinitária; assim, embora ele fale tanto de Palavra de Deus, como de sua Sabedoria, comparando-as respectivamente com seu Filho e sua Consorte, trata-as como concepções alternativas; raramente são elas combinadas para formar uma Familientrias.

Quando minuciosamente examinada, a doutrina de Fílon relativa aos "poderes" também se mostra enganosa. Ele emprega todo um conjunto de termos, alguns dos quais representam atributos ou funções do próprio Deus, alguns claramente representam princípios auxiliares ou mediadores, alguns lembram as Formas platônicas; mas seus significados se sobrepõem e não se pode estabelecer distinções claras; assim, "poderes" de Deus se justapõem a "princípios", e "virtudes", a "anjos", "demônios" e "almas", e a "Idéias", "imagens", "selos" e "modelos" (em grego, dynameis, a logoi, aretai; angeloi, daimones, psychai; ideai, eikones, sphragides, paradeigmata).

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Isso reflete, em parte, a tentativa de Fílon para amalgamar a filosofia platônica com a tradição hebraica (assim daimones = anjos); mas isso aponta também para complexos desenvolvimentos na própria tradição platônica.

Já registramos, na pág. 35, o problema se as formas devem ser consideradas simplesmente como "modelos" ou "selos", precisando de algum poder a mais para reproduzi-los na matéria, ou se elas próprias devem ser vistas como produtoras. A criação do mundo poderia ser explicada por meio de um Criador ativo que fizesse uso de "padrões" puramente inertes; mas é preciso saber ainda qual o papel, se existir algum, que é desempenhado pelas Formas na contínua recorrência dos fenômenos naturais e na reprodução das criaturas vivas. Alguns platônicos empregaram o termo "inteligíveis secundários" para descrever a impressão das Formas sobre as coisas perceptíveis, ou assumiram o conceito estóico dos princípios seminais imanentes; mas isso não explicava como as formas simples, eternas e imutáveis podiam produzir seus múltiplos reflexos num mundo mutável. Textos de Fílon e de gnósticos influenciados pelo platonismo às vezes retratam Deus ou seu Logos como tendo sob sua direção uma escada, ou algum mecanismo do tipo, pela qual os princípios vivificadores são transferidos do céu para a terra e vice-versa (veja, por exemplo, De somniis, de Fílon, 1.133-59, e Ref., de Hipólito, 5.17); mas temos pouco conhecimento da maneira pela qual os filósofos profissionais lidaram com esse problema. Em alguns casos, pelo menos naqueles em que estão envolvidos seres humanos, a impressão da forma deve ter sido assimilada à encarnação de uma alma. De um modo ou de outro, as formas devem apresentar-se como ativas; podemos observar, contudo, que mesmo aqueles que as concebiam como números não necessariamente as consideravam puramente estáticas; Xenócrates já havia definido a alma com "número que se move por si mesmo", veja acima, p. 35.

Em Fílon, portanto, o Logos é considerado tanto o "lugar" ou a totalidade das Formas, como um poder ativo, que governa e organiza, descrito às vezes, em termos estóicos, como "ígneo", e subordinado, naturalmente, ao Deus supremo. Às vezes, com efeito, parece que se descobre um compromisso, já estabelecido no platonismo intermediário, pondo a divindade platônico-pitagórica, a Mônada pura, no primeiro lugar, tendo a deidade cósmica estóica como sua subordinada. Fílon, já o vimos, explica a visão que Jacó teve da escada como representação da subida e descida das almas, as mais puras das quais são os anjos auxiliares de Deus, com o Logos "postado" (Gn 28,12) para presidir a tudo. Teólogos cristãos posteriores chegaram a estabelecer uma rígida distinção entre seres incriados, o próprio Deus, com seus atributos divinos juntamente com sua Palavra e Espírito, e seres criados, incluindo-se anjos e homens.

Em Fílon, de modo algum essa distinção é clara; os contrastes rígidos são aqueles entre a mente e os sentidos (vistos respectivamente como macho e fêmea); entre o mundo inteligível e o mundo perceptível; e então, finalmente, entre a pura Divindade (Natureza divina) indistinta e todos os atributos, virtudes, auxiliares e criaturas que se possam nomear.

Fílon não foi, é claro, o único canal através do qual esse tipo de Platonismo veio a atingir a Igreja primitiva; mas sua influência foi duradoura, e ele pode servir de exemplo. O próprio Fílon deixou-se intrigar pelas propriedades dos números inteiros simples, e fornece explicações aritméticas eruditas destinadas a mostrar a importância especial do número sete, para justificar o sábado, ou dez, para os mandamentos; mas o seu, foi um platonismo em que os sérios interesses lógicos e matemáticos foram substituídos por preocupações morais e espirituais.

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Mas, para Fílon, a virtude era assunto intelectual; e a ordem inteligível, o cosmos noetos, tinha suplantado, na prática, a representação bíblica da morada celeste de Deus posta acima do firmamento, a sólida abóbada do céu, onde até mesmo os anjos infantes podiam ver a face de Deus. Isso era, além do mais, essencialmente conformista, já que o modelo de tudo que deveria existir estava estabelecido no mundo das Formas, elas próprias a produção de um Deus imutável. Embora, na prática, o platonismo pudesse reconhecer homens de excepcional sabedoria e santidade, sua teoria tendia a não levar tão em conta a individualidade, já que a bondade era vista simplesmente em termos de conformidade com um ideal predeterminado. O próprio Fílon, na verdade, estende-se a respeito das virtudes características de Abraão, Isaac e Jacó; mas ele ainda os vê como representantes ideais de tipos característicos da bondade humana; não se pode procurar nenhuma genuína criatividade moral. Nosso acesso ao "mundo inteligível" exigia atividade intelectual inspirada pela beleza da verdadeira bondade e escorada pela autodisciplina; mas a simples piedade espontânea deveria ocupar o segundo lugar. O mundo perceptível poderia, evidentemente, ser apreciado como prova da generosidade do seu Criador, ou como proporcionando símbolos instrutivos das realidades espirituais, mas se desencorajava seriamente o interesse ou amor pelas coisas perceptíveis. E o dualismo de corpo e alma sugeria, não simplesmente que os homens deveriam usar e governar sabiamente seus corpos para o benefício da alma, mas que a hostilidade para com o corpo - a menos, naturalmente, que instigada por motivos indignos de ostentação ou coisas parecidas - era meio confiável para o aproveitamento espiritual. Finalmente, com o surgimento do monasticismo cristão, a tensão intelectualista que acabamos de mencionar foi amplamente suprimida pela crescente tendência para o ascetismo, de modo que muitos cristãos devotos não levavam em conta, ou professavam não levar, não apenas o saber pagão, mas qualquer forma de educação liberal.

Algumas outras falhas da mentalidade cristã primitiva, atribuíveis à mesma tradição, deveriam ser contrabalançadas com os imensos benefícios que o platonismo trouxe para a imaginação e para o pensamento da Igreja; notavelmente, a quase universal incapacidade para ver o sexo como um agradável produto da sabedoria do Criador, uma vez que qualquer emoção violenta que, mesmo temporariamente, afastasse a ponderação racional era vista como "paixão" e, assim, condenada. Poucos textos do Novo Testamento foram tão coerentemente negligenciados como Hebreus 13,4, he koite amiantos, o "intercurso" é, ou deveria ser, "sem mancha". Os cristãos geralmente olhavam isso com sobressalto.18 Os estóicos tinham considerado lícito o sexo somente com vistas à procriação; os cristãos podiam acrescentar que ele tinha sido imposto apenas como resultado da queda (Gn 3,16), e alguns chegavam a sustentar, como Fílon, que o homem ideal era assexuado ("macho-fêmea", Gn 1, 27). A tentativa dos valentinianos de considerar o sexo como uma forma de sacramento não conseguiu obter muito apoio. Pode-se também assinalar a ênfase no predomínio masculino, já presente na tradição israelita, como também na sociedade pagã, em parte por não se conseguir reconhecer a racionalidade inconsciente, presente na intuição tipicamente feminina; e uma aceitação demasiadamente confiante da tradição cristã ortodoxa, levando a uma amarga intolerância para com os heréticos sempre que a persuasão tivesse falhado em conseguir a concordância. Isso foi o outro lado daquele amor e daquela abnegação recíproca dentro da comunidade cristã ortodoxa, que conquistaram a relutante admiração até mesmo de satíricos pagãos, como Luciano de Samósata.

18 Uma notável exceção é Agostinho, Gen. ad Litt. 9.2.5: Adão e Eva poderiam ter desfrutado de inocente intercurso sexual no Paraíso se eles não tivessem pecado.

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A FILOSOFIA DO FINAL DA ANTIGUIDADE

Durante os dois primeiros séculos cristãos, o platonismo gradualmente se tornou a filosofia predominante. Os epicureus tinham perdido seu atrativo no final desse período, que presenciou ressurgimento dos interesses religiosos, tanto bons quanto maus. O estoicismo do segundo século é representado para nós pelo escravo liberto Epicteto e pelo imperador Marco Aurélio, que eram amplamente respeitados como mestres de moral; mas o seu lado teórico é-nos desconhecido, embora Cornuto, companheiro de Sêneca, tenha redigido comentários sobre a lógica de Aristóteles em obras agora perdidas. Uma familiaridade geral com a doutrina tanto dos epicureus quanto dos estóicos persistiu, naturalmente, por muito mais tempo, como parte da educação filosófica geral. Entrementes, muitos pitagóricos tinham-se aliado estreitamente aos platônicos, e somente uma minoria deles se considerava escola distinta. O aristotélico Aspásio (ca. 100-150) escreveu uma série de comentários sobre Atistóteles, dos quais aquele sobre a Ética a Nicômaco em parte sobrevive. Mais importantes são as remanescentes vastas obras de Alexandre de Afrodísias, do início do terceiro século, o último membro realmente ilustre da escola. Especialmente o seu De Fato, que trata dos problemas do determinismo e do livre-arbítrio, continua interessante ainda hoje para o não-especialista.

A oposição aos platônicos vinha principalmente de um cepticismo revivido, que pretendia estar continuando a tradição de Pirro de Elida, ca. 365-275 a.C., o qual, por sua vez, pode ter dependido indiretamente de Sócrates e, mais de perto, de Demócrito. Já observamos que a Academia atravessou, sob Arcesilau e Carnéades (p. 50), uma fase céptica, que foi perpetuada por Cícero. Mas depois do renascimento do "dogmatismo" dos acadêmicos (veja p. 58), um movimento céptico independente, que apelava para a autoridade de Pirro, foi promovido por Enesidemo, que parece ter defendido tanto a não-confiabilidade da percepção sensorial quanto a relatividade das nossas noções morais, recomendando a suspensão do julgamento (epoche) como a única atitude racional. As informações que temos provêm em grande parte de Sexto Empírico, ca. 180 d.C., que deixou vastas obras ainda sobreviventes.

O próprio Sexto é escritor tedioso, sejam quais forem seus méritos como crítico, e é apreciado principalmente pelas informações que dá a respeito de pensadores mais significativos. Mas parece que o cepticismo continuava a apresentar desafio; Agostinho deparou-o em sua forma acadêmica, e o considerou importante o bastante para se lhe opor numa de suas primeiras obras, o Contra Academicos.

A tradição predominante, porém, no final da Antiguidade era um platonismo de tendência positiva e espiritualizante, que incorporava alguns elementos pitagóricos e estóicos; debatia-se, como veremos, a importância de Aristóteles. Podemos distinguir três períodos, dominados 1. pelos platônicos intermediários, de Eudoro a Ático, aproximadamente de 40 a.C. até 200 d.C., dos quais o mais conhecido, e certamente o mais hábil escritor, é o ensaísta e biógrafo Plutarco (45-125 d.C.); 2. pelos neoplatônicos, especialmente Plotino (205-69 d.C.), seus sucessores imediatos Porfírio e Jâmblico, e, bem mais tarde, Proclo (ca. 411-85); Plotino exerceu significativa influência sobre Agostinho; mas o termo "neoplatonismo" é criação moderna; eles se viam a si mesmos como continuadores de ininterrupta tradição platônica; 3. pelo escolasticismo aristotélico do final da Antiguidade, cujos representantes ainda tratavam Platão como sua principal autoridade, mas aceitavam e desenvolviam a defesa feita por Porfírio da lógica de Aristóteles; para os nossos propósitos, as figuras mais

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significativas são Mário Vitorino e Boécio, no Ocidente, e João Filopono, no Oriente. Estes três eram cristãos; mas os principais neoplatônicos pagãos continuaram em atividade até 529, ou um pouco depois, quando Justiniano fechou as escolas filosóficas em Atenas; entre eles figurava o erudito aristotélico Simplício.

De todos esses, é quase certo que os neoplatônicos são os pensadores mais originais e vigorosos; com efeito, muitos historiadores da filosofia passaram diretamente dos últimos moralistas estóicos para Plotino. Mas para nossos atuais objetivos, eles são menos importantes, já que tiveram menor influência sobre o pensamento cristão. Os quatro que mencionamos eram todos fortemente anticristãos; Porfírio, o mais fácil de ler do grupo, escreveu um tratado contra os cristãos, e teve seus escritos condenados ao fogo por Constantino, o Grande. Conseqüentemente, os teólogos cristãos do século quarto, também os do seu final, como S. Basílio (ca. 330- 79), fizeram uso principalmente dos escritores platônicos anteriores. O estudo inteligente de Plotino começa, cerca de cem anos depois de sua morte, com Mário Vitorino e Agostinho; e por esse tempo a teologia cristã tinha desenvolvido seguros esboços dogmáticos como resultado das controvérsias do século quarto, e estava bem habilitada para criticar seus opositores neoplatônicos.

"As doutrinas cruciais de uma divindade graduada, do mundo como existindo sem começo, da definitiva revelação primordial do Logos, da transmigração das almas e do regresso (somente) da alma iluminada... eram todas, sem exceção, rejeitadas pela Igreja", afirma corretamente H. Dörrie.19 Mas elas não foram todas rejeitadas de imediato; por exemplo, uma "divindade graduada", conforme Numênio ensinava, era aceitável para muitos cristãos antes do Concílio de Nicéia; isso aparece como "subordinacionismo" nas histórias da doutrina. Além disso, a Igreja nunca descartou certos princípios filosóficos que ela tinha assimilado dos platônicos intermediários num estágio anterior e mais sugestionável do seu desenvolvimento; notadamente, a concepção da natureza de Deus como simples unidade imutável, e o culto da inteligência, o qual, mesmo quando dotado de condescendência para com o simples crente, ainda gera desconfiança em relação à emoção, e a aceitação de que toda fraqueza humana sempre acabaria na sensualidade. Até Agostinho, conforme todas as evidências o pensador mais independente e criativo do final da Antiguidade, jamais se livrou completamente da tendência platonizante de seus anos juvenis.

Os platônicos intermediários posteriores a Antíoco podem ser classificados de modo geral, seguindo-se o recente sumário de John Dillon. Distinguimos, assim, 1. Plutarco, escritor copioso, imaginativo e com inclinações religiosas, o qual retomou em grande parte o espírito e o sabor literário dos diálogos do próprio Platão, e fez uso efetivo do mito platônico; 2. um grupo mais prosaico e escolástico, que se supõe tenha derivado de certo Gaio, que incorporava em seu sistema muito da doutrina de Aristóteles; para nós, são eles representados pelo escritor de manuais Albino, que foi estudado por Clemente de Alexandria, e pelo latinista de mais brilho, Apuleio; 3. um grupo adversário, sediado em Atenas, que buscava um platonismo puro, livre da influência de Aristóteles, sendo Ático o seu mais notável representante; e 4. platônicos que tinham respeito especial por Pitágoras, entre os quais figuram Eudoro, Moderato, Nicômaco e o extremamente influente Numênio, entre aproximadamente 50 a.C. e 200 d.C.

19 "Was ist spãtantike Platonismus?" (veja Bibliografia 20), p. 300 (= Platonica Minora p. 522).

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Numa perspectiva mais ampla, não deveríamos exagerar a importância desses escritores. Em particular, a idéia potencialmente fecunda de que o mundo podia ser explicado em termos de números - uma especialidade pitagórica - não trouxe resultados proveitosos, a não ser no campo da teoria musical, a harmonia.

Descobertas autênticas foram realizadas, antes por pensadores à margem das principais escolas filosóficas, nas matemáticas, em óptica e em astronomia. Por outro lado, é claro que Porfírio e Jâmblico, e naturalmente os neoplatônicos posteriores, merecem mais respeito do que o que muitas vezes têm recebido. Às vezes, no que parece serem laboriosos comentários, está oculto um pensamento perspicaz.

Assim, os platônicos intermediários exigem atenção fundamentalmente por causa de sua influência sobre os escritores cristãos do segundo ao quarto séculos, especialmente Justino, Clemente, Orígenes e Eusébio. Entre os problemas discutidos, podemos mencionar os seguintes, alguns dos quais serão revistos de forma mais aprofundada na Segunda Parte:

Nosso conhecimento da existência de Deus.

A questão se e como Deus pode ser descrito.

Unidade e pluralidade na natureza divina.

O mundo como eterno ou como criado.

A natureza humana, espiritual e corpórea.

É conveniente começar por um problema que surge com a narrativa da criação no Timeu. Platão não sugere que o divino Artífice tenha feito o mundo do nada, mas antes que ele fez um mundo ordenado a partir de uma confusão prévia: assim 30a, "Desejando que todas as coisas fossem boas, ele tomou nas mãos tudo o que era visível, que não estava em repouso mas num movimento discordante e desordenado, e o trouxe de sua desordem para a ordem". Isso parece concordar com o relato bíblico, já que Gên 1,1, na sua redação original, implica provavelmente que Deus tenha feito um mundo ordenado a partir do caos, o tohu-uia-bohii (veja o comentário feito sobre essa passagem por G. von Rad, Bibliografia 20); mas isso também propõe um problema. Parece que Platão descreve um ato definido, o primeiro numa série; a dificuldade é que ele, então, descreve a criação do tempo num capítulo posterior (38c): "O tempo realmente começou a existir junto com os céus". Mas como poderia qualquer ação ocorrer antes do começo do tempo?

Os sucessores imediatos de Platão, Aristóteles, Espeusipo e Xenócrates, todos ensinaram que o universo existe desde toda a eternidade. Aristóteles sustenta que Platão simplesmente estava errado; os outros dois desculpam-no, dizendo que ele usava linguagem figurada, destinada a mostrar que o mundo visível é eternamente dependente de sua origem divina. Esse ponto de vista continuou a ser sustentado pela maioria dos platônicos; mas a minoria, inclusive Plutarco e Ático, ensinava que o mundo tivera real começo, embora não exatamente começo no tempo como nós o conhecemos. Alguns outros assumiram posição menos claramente definida. Assim, Fílon condena o ponto de vista de que o cosmos tenha existido sempre (Opif 7) e argumenta que antes de seu começo não havia tempo (ibid. 26); mas ele parafraseia também a passagem do Timeu sobre a bondade do Artífice (2ge) e faz uso dele para explicar a organização do cosmos por Deus em conformidade com seus desígnios preexistentes (Opif 21-2).

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Sua leitura do Timeu admite um ato criador definido, que, na verdade, foi instantâneo (ibid. 13). Isso parece excluir uma explicação alegórica do tempo passado, embora Fílon lance mão de tal explicação para justificar os "seis dias" da criação. Outros pontos são simplesmente deixados obscuros, por exemplo, como começou o tempo "ou na, ou depois da" criação do mundo (ibid. 26).

Algum tempo antes, Cícero, aparentemente, tinha tomado o Timeu num sentido literal (Nat. Deor. 1.18-19); e o escritor da Sabedoria (11,17) diz simplesmente que a onipotente mão de Deus criou o mundo de matéria informe, opinião que o apologista cristão Justino reproduziu com prazer.

Em nenhuma passagem desses escritores encontramos o ponto de vista, mais tarde definido pelos cristãos ortodoxos, de que Deus criou o mundo ex nihilo; mas a situação não é clara, porque essa expressão era corrente antes de seu significado ter-se fixado. No pensamento grego, muitas vezes é difícil distinguir a noção de ser como mera existência de "ser isto ou aquilo"; conseqüentemente, "aquilo que não é" não indica necessariamente pura não-existência; pode significar simplesmente "aquilo que não tem nenhuma natureza definida". Também pensadores muito posteriores achavam difícil conceber uma não-existência absoluta; Atanásio descreve Deus dirigindo-se às "coisas que não são" (l) e chamando-as à existência (C. Ar. 2.22). Assim, o escritor do 2 livro dos Macabeus que se refere a Deus "fazendo o mundo a partir daquilo que não é" (ex ouk onton) pode não ter tido em mente a doutrina posterior. Algumas sugestões podem ter vindo de pensadores pagãos do século primeiro antes de Cristo; Eudoro parece ter ensinado que Deus criou não somente as Idéias, mas também a matéria20 e Cícero conhece, embora não o aceite, o ponto de vista de que a matéria foi criada pela providência divina; veja o fragmento conservado por Lactâncio, D.I. 2.8.10. Mas Eudoro, de qualquer forma, provavelmente quer dizer que a matéria, como as Idéias, era eternamente dependente de sua origem divina; isso era, afinal de contas, desenvolvimento bastante natural da teoria pitagórica segundo à qual todas as coisas procedem do Um. Não obstante, a noção de uma criação momentânea também era corrente, como acabamos de expor. A criação ex nihilo foi explicada com grande clareza por Basílides, já no início do séc. II; veja Hipólito Ref 7.22.2, que o trata como herético gnóstico; ela foi adotada pelo cristianismo ortodoxo por meio de Teófilo de Antioquia, ca. 180, e é tida como certa por Ireneu.

Um argumento geralmente usado era que é impossível imaginar a matéria existindo eternamente sem interferência ou aperfeiçoamento lado a lado com um Deus todo-poderoso.

O Timeu propõe mais um problema. Platão começa sua narrativa da criação com a frase muito citada "É difícil descobrir o Autor e Pai deste universo" (28c). Era natural perguntar até onde esse dito poderia ser levado; quer ele dizer que nós não temos nenhum conhecimento de nossa origem última? Mas, pondo isso de lado, os dois títulos por si mesmos exigem comentário. São eles equivalentes, ou se referem ao mesmo ser visto sob o aspecto de funções diversas, ou se referem a dois seres diferentes? Enxergar Deus como Autor (aquele que faz) põe toda a sua habilidade num plano inferior. Mas o título Pai poderia sugerir que Deus, ao criar o homem, tenha-lhe comunicado algo de sua própria natureza espiritual; como, de fato, podia ser sugerido por Gênesis 2,7, com sua menção ao "sopro de vida", ou ainda simplesmente como reflexo da palavra grega poietes, que tanto pode significar "poeta", como "aquele que faz (autor)", já que o poeta se expressa em suas obras.

20 H. Dörrie, Platonica Minora, p. 306.

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O homem era reconhecidamente criatura revestida de corpo; mas em relação à sua alma, pelo menos, ele podia ser visto como filho de Deus, no sentido de participar da sua natureza. Certos textos do Novo Testamento, escritos antes de a questão ter sido claramente excogitada, poderiam apontar nessa direção, por exemplo l Jo 2,29-3,2 e 4,7.

A doutrina segundo a qual o homem, no seu aspecto espiritual, é realmente semelhante à divindade recebe boa fundamentação da parte dos filósofos. Os pitagóricos, por exemplo, falavam de uma "centelha divina", de um ramo da natureza divina aprisionado e submerso em nossos grosseiros e recalcitrantes corpos. A noção de uma divina doação de si parece apropriada, e fora eloqüentemente expressa por Platão: "Deus, sendo generoso, desejou que todas as coisas se tornassem tão semelhantes quanto possível a ele próprio... que todas as coisas fossem boas" (Timeu 29c-30a); a Bíblia acrescenta "Deus viu que tudo o que ele tinha feito... era bom". Mas por que é necessário haver limite para a bondade que Deus poderia conferir às suas criaturas, uma vez que nós descartamos a noção - aceita por Platão - de que sua ação seja limitada pelas deficiências da matéria incriada? Verdadeiro, Deus não poderia negar sua própria natureza, fazendo outras coisas iguais a si mesmo; mas que outra restrição seria necessário haver?

Esses problemas abrem um vasto espectro de possibilidades, abrangendo desde aquilo que podemos chamar monismo graduado, até o dualismo extremo. Pode-se acreditar que a bondade de Deus é refletida em vários graus através de todo o reino celeste e de toda a ordem natural, da qual a alma humana é simplesmente a parte mais nobre.

Ou se pode postular uma descontinuidade abrupta, de modo que a alma humana seja vista, como ela própria corrompida, ou como uma centelha divina aprisionada num mundo alheio e hostil de matéria morta e de espíritos malignos. Até Numênio tinha pensado no "Autor" deste mundo como segundo Deus, distinto de seu "Pai" supremo e a ele subordinado. Mas houve muitos outros propensos a pintar o Deus-Criador com cores bem mais deprimentes.

Essas questões ganharam notoriedade com o debate envolvendo três posições: a dos gnósticos, a de Plotino, e a dos cristãos, que se opunham àquelas duas. Não trataremos minuciosamente dos gnósticos; poucos deles poderiam ser descritos como filósofos; havia uma desconcertante variedade de escolas conflitantes, e é difícil fazer um apanhado dessa evidência, tendo em vista os novos dados trazidos à luz pelas descobertas de Nag Hammadi. Mas fica claro que a maioria deles assumiu uma posição dualística; o mundo material era visto como o produto de um criador desencaminhado ou maligno; a centelha divina estava presente apenas em certas almas escolhidas, que podiam escapar da influência do criador por meio da gnosis, "conhecimento" ou "iluminação", revelada como mensagem pelo mestre gnóstico, e que se podia resumir como "quem fomos nós e o que nos tornamos; onde estávamos ou onde foi que nós caímos; para onde nos estamos apressando, do que estamos sendo redimidos; o que é nascimento, e o que é renascimento".21 E desde que o corpo, e o mundo material em geral, é depreciado, a prática gnóstica tendia para opostos extremos; podia-se, ou afligir o corpo, como necessariamente hostil ao espírito, ou ainda injuriá-lo e degradá-lo, como coisa irrelevante para o progresso espiritual que se tinha de afrontar.

Entretanto, alguns gnósticos introduziram uma tendência contrária, que é geralmente

21 Clemente, Excerpta ex Theodoto 78.2

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descrita como "emanacionismo". Esse termo, parece-me, gera certa confusão, veiculando três sugestões que, até onde posso ver, não têm conexão lógica, embora muitas vezes sejam encontradas juntas. São elas: 1. Deus comunica sua própria vida a outros seres, que assim, em certo sentido, são "consubstanciais" a ele. 2. Essa ação é uma conseqüência necessária da natureza de Deus. 3. Todavia, ela não é completa; a cada estágio, perde-se algo da divindade original, e a imperfeição vai se alastrando.

Assim Valentino, um dos mais talentosos entre os gnósticos, e também entre os mais próximos do cristianismo ortodoxo, concebia o ser de Deus como se desenvolvendo de uma misteriosa unidade primordial numa série de poderes ou "eões", coletivamente chamados "o pleroma", ou "plenitude" (da Divindade), sendo o ponto de partida o processo pelo qual a misteriosa Divindade chegava à concepção de si própria, a qual deve ser, em certo grau, incompleta.

O processo é então repetido e produz uma série de poderes, que não são meros aspectos de funções da Divindade, mas são, ou se tornam, dotados de personalidades e vontades próprias. Porém como eles se afastavam da unidade original e adquiriam uma forma individual distinta, a perfeição divina foi progressivamente limitada ou diluída até ao ponto em que pôde surgir o erro ou pecado efetivo; tudo isso em algum estado eterno ou pré-temporal, antes de este mundo inferior equivocadamente ter sido criado. Uma versão ponderada e sugestiva dessa teoria está agora disponível no Tractatus Tripartitus, procedente de Nag Hammadi. Deus tem todos os atributos que contribuem para a perfeição. Os atributos de Deus, no entanto, só podem espelhar a vida divina se eles próprios adquirem vida e consciência. Mas, então, eles caem em erro, esquecendo-se das próprias limitações e da necessidade que uns têm dos outros para representarem toda a plenitude divina.

Alguns elementos nesse mito são claramente tomados da filosofia. Os platônicos aceitariam naturalmente que a cópia deve ser inferior a seu original, à luz da teoria das Formas. Fílon, desse modo, emprega o símile da diminuição de poder numa cadeia de magnetos (Opif 141) para mostrar a inferioridade das obras de Deus em relação a ele mesmo. (Não se deve confundir esta teoria da "diluição" com o ponto de vista de que o próprio original é enfraquecido com a produção de sua réplica, que surge mais tarde como objeção à doutrina de que Deus produziu seu próprio Logos "de sua substância"; aqui, tanto cristãos como neoplatônicos poderiam replicar que o original divino não sofre nenhuma perda, exatamente como uma tocha acesa não se esfria ao acender outra.)

Ireneu, que por volta de 180 se tornou bispo da comunidade cristã de língua grega sediada em Lião, no vale do Ródano, respondeu aos gnósticos no seu tratado, em cinco volumes, Contra as Heresias. Ele se opôs a ambas as tendências que rastreamos na escola valentiniana. Por um lado, atacou sua teoria da emanação, alegando não poder existir continuidade entre o Deus perfeito e as criaturas falíveis e pecadoras. Se os eãos, em qualquer sentido, são divinos e parte do próprio ser de Deus, é blasfemo representar qualquer deles como envolvido em erro e pecado. Por outro lado, ele defendia que o mundo criado não é mau por si mesmo; a origem do mal está antes no dom do livre-arbítrio concedido aos homens, e no mau uso que dele fizeram. Não obstante, o livre-arbítrio é uma condição da vida moral e do progresso moral; no longo processo da história, os erros que se originam da imaturidade do homem e da fraqueza da vontade podem ser corrigidos, de modo que a humanidade é talhada a participar das maravilhas da era que virá.

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Algumas outras objeções que ele levanta contra os gnósticos baseiam-se antes na tradição cristã do que na filosofia; assim, ele argumenta que não há nenhum fundamento na Bíblia para que se postule outro Deus além do Criador (Contra as Heresias, 2.2.6,3.6.1, etc.). De maneira mais geral, ataca aquilo que, nos gnósticos, ele vê como fantasiosa interpretação da Escritura, e o uso que fazem do simbolismo numérico, um traço pitagórico que, evidentemente, fora proeminente em Fílon. Ireneu condenava também os excêntricos hábitos morais dos gnósticos, bem como sua confiança em mestres individuais, a quem faltava autoridade institucional dentro do corpo cristão, que ele, de modo um tanto otimista, via como unido numa fé comum e numa disciplina eclesiástica.

Plotino também escreveu em grego, embora tenha passado a maior parte de sua vida produtiva em Roma, tendo para aí migrado do Egito, após uma fracassada tentativa para visitar a Pérsia e consultar os sábios persas e indianos. Sua filosofia é desenvolvimento coerente do princípio subjacente à doutrina de Platão do Bem ideal, ou seja, de que o universal é mais real que o particular - mais inclusivo, mais simples, e melhor. Ele aceitava, assim, a teoria da emanação com todas as suas implicações. O princípio supremo no universo é a Unidade pura, que é também a Bondade pura, da qual depende toda outra realidade. A ordem do mundo é fixa e eterna; não existe ato - nem temporal, nem momentâneo - pelo qual a realidade mais alta dê origem ao resto; menos ainda, uma catástrofe cósmica, como o presunçoso ato da Sabedoria, com Valentino, ou a Queda, seja de Lúcifer, seja de Adão, na doutrina cristã. Antes, tudo procede num fluxo ordenado e eterno, sendo o primeiro passo aquele pelo qual o Uno faz que ele próprio seja conhecido por meio da geração da Mente ou Consciência (Naus).

Alguns dos contemporâneos de Plotino trataram a Mente como nome alternativo para a Bondade suprema. Plotino fazia distinção, por duas razões: 1. Nenhuma descrição, seja como Mente, seja como outra coisa qualquer, pode ser aplicada com propriedade ao Uno; descrevê-lo seria acrescentar-lhe algum predicado, e assim destruir sua unidade; e 2. Mente e seu pensamento implica dualidade: o sujeito que pensa e o pensamento que ele concebe. O Uno, portanto, não pensa; dá origem ao pensamento; mas este já é obra de segundo princípio ou hipóstase, que contempla ou considera o Uno.

Ao expor essas razões, é claro que não as estou defendendo. Na moderna teoria, "S é P" não é explicado como uma pretensa identificação, que em parte sugere "S é não-S". Isso, evidentemente, implica que S possui aspectos distinguíveis, ou epinoiai, P, Q, R, etc.; mas o próprio Plotino infere isso, designando seu princípio supremo, ora como Uno, ora como Bem, e, muito ocasionalmente, como Deus. O segundo ponto - que o auto conhecimento implica a dualidade de sujeito e objeto - talvez devesse ser estendido.

É difícil ver como possa ocorrer qualquer pensamento sem processo de discriminação. Se, pois, o Uno é visto como unidade perfeita, ele se evidencia como fonte indefinível de toda bondade, elevada acima do nível do pensamento consciente, que dá origem a Mente raciocinante, mas continua isenta de suas limitações. É essa mente divina que pode exprimir a Unidade original numa pluralidade de Idéias; mas não perfeitamente (como se o Uno pudesse ser exatamente duplicado), uma vez que cada Idéia representa apenas uma verdade parcial, e todo o complexo fica aquém da unidade perfeita.

Retomando: a progressão para fora continua devidamente, com a Mente dando origem à Alma, princípio gerador de movimento e vida, que resulta em almas distintas, tanto a alma do mundo, como as almas dos indivíduos.

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Estas, porém, permanecem unidas à própria Alma por um vínculo de ligação que Plotino considera uma espécie de identidade. É a alma do mundo que, refletindo as realidades mais altas, produz as Formas imanentes dos corpos materiais. Vemos aqui, mais uma vez, o desenvolvimento da doutrina de Platão: tais e tais coisas existem no mundo porque é bom que exatamente essas coisas devam existir; cf Rep. 6,508e. Todos esses níveis de realidade são bons no seu grau, já que todos eles refletem, em certa medida, a Unidade e Bondade última; e todos têm uma tendência inata a voltar para sua fonte. Até a própria matéria não é má; é simplesmente o nível mais baixo da realidade, o nível no qual a bondade e Unidade últimas são refletidas de modo mais obscuro; é o limite do movimento para fora, a borda do não-ser.

Não é muito fácil entender a relação de nossas almas individuais com a Alma universal. De modo um tanto incomum, Plotino sustenta que cada indivíduo humano existe no nível ideal ou transcendental; dito de modo mais técnico, que existem Idéias dos indivíduos. Mas no nível empírico nossas almas são autodirigidas; elas podem ou não permanecer fiéis à sua Forma ideal. O mal surge no mundo quando nossas almas se apegam às coisas materiais, atribuindo-lhes uma realidade que elas não têm, afastando-se desse modo do Uno e do Bem.

Plotino entrou em contacto com cristãos gnósticos, talvez valentinianos, e escreveu contra "aqueles que dizem que o autor do universo é mau, e que o universo é mau". Como Ireneu, ele atacou seus complicados sistemas de eãos, sua teoria elitista da salvação e seu imoralismo. É verdade que seu sistema tem alguma semelhança com o processo emanacionista de Valentino, de uma divindade que se expande, tendo início esse processo com o Pensamento do primeiro princípio a respeito de si mesmo; e seu sistema concorda com a ortodoxia cristã ao tratar o mal como resultado de uma escolha errada.

No entanto, tratando o movimento para fora e o movimento de retorno como fatos eternos, ele rejeita todas as concepções ''historicistas'', tanto gnósticas quanto cristãs, de pecado e salvação, conforme se explicou acima (p. 76).

A nobreza do pensamento de Plotino era amplamente secundada por seu caráter: perspicaz, gentil e prático nos negócios comuns da vida, bem como disciplinado, ascético e místico. Tudo isso fez que fosse natural para os cristãos reivindicá-lo como anima naturaliter christiana [alma naturalmente cristã]. Mas, na prática, o pensamento cristão foi pouco influenciado pelos aspectos característicos do seu sistema; o que ele comunicou a Agostinho foi principalmente uma vívida impressão dos traços comuns a todos os platônicos: a realidade de um mundo transcendente, fonte tanto da verdade como da beleza, e uma elevada estima do intelecto como porta de acesso a ele. Tudo somado, os cristãos deram mais atenção a seu sucessor e biógrafo Porfírio, e isto não tanto por suas próprias concepções filosóficas, como por seus escritos polêmicos contra os cristãos.

Não nos sobra espaço para tecer comentários com pormenores a respeito dos neoplatônicos posteriores, mas podem-se sublinhar brevemente dois pontos. Primeiro: enquanto Plotino é original, sugestivo e freqüentemente descuidado em relação à sua terminologia, seus sucessores, de Porfírio em diante, começaram a adotar um método mais rígido e escolástico, dando atenção muito maior à consistência verbal. Em parte como resultado de sua ânsia por encerrar a totalidade do legado de Platão num esquema abrangente, suas hierarquias divinas tendem a tornar-se mais complicadas, e assim a divergir mais completamente das concepções cristãs a respeito da Trindade divina.

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A correspondência nunca fora estreita, já que, embora as tríades platônicas muitas vezes contivessem razoáveis aproximações com Deus Pai e o Logos divino, seu terceiro membro - a alma, seja a alma cósmica, seja o cosmos animado - nunca parecera muito semelhante ao Espírito Santo. Mas, em segundo lugar, os próprios cristãos começaram a afastar-se de qualquer aparência de aliança, como resultado do movimento que levou aos concílios de Nicéia e de Constantinopla. Orígenes, Eusébio e o partido ariano, fossem quais fossem suas diferenças, tinham todos acreditado em Trindade serial ou subordinacionista, com três Pessoas dispostas numa ordem descendente de dignidade. Nicéia declarou coiguais o Pai e o Logos, e levou a uma concepção diversa, da Trindade como um Deus distinguível em três Pessoas, antes que um Deus transformado em Trindade pela adição de outras Pessoas. O mais notável é que a complexa hierarquia divina ensinada por Proclo no século V foi adaptada e cristianizada na obra muito influente do escritor que hoje conhecemos como Dionísio "o Areopagita", por volta de 500 da era cristã.

O DEBATE ACERCA DA FILOSOFIA CRISTA

Durante uns quatro séculos, no final da Antiguidade, do século II até os inícios do século V, dois sistemas de crença e de orientação moral existiram lado a lado. No início desse período, na Europa civilizada, os homens de boa formação procuravam orientação na filosofia; como vimos, a tradição platônica era já forte e logo se tornaria predominante. Era aceito que a filosofia abrangia a lógica, a ética e a física, incluindo esta última os inícios daquilo que hoje chamamos de ciência natural. A lógica antiga levava à teoria do conhecimento; a ética investigava que tipos de bem deveríamos ter em mente assegurar, e como alcançá-los na prática.

No começo desse período, o cristianismo não parecia um complemento para a filosofia; de fato, nem sempre foi ele reconhecido como movimento distinto, independente do judaísmo, do qual provinha. Mas ele se desenvolveu muito rapidamente, e pelo final do nosso período tinha conquistado a submissão intelectual de cidadãos cultos, tanto no Império do Oriente como no do Ocidente. Comparado com outras religiões de seu tempo e lugar, ele teve muito mais sucesso na organização de suas crenças em um sistema coerente. Nesse processo, fez largos empréstimos da filosofia, e de modo especial do platonismo. Mas conservou uma identidade rigidamente definida; seu compromisso com a Bíblia como livro sagrado era muito mais inflexível que o respeito dos filósofos por Platão; valorizava a experiência da comunidade e a tradição de um modo que chocava os estudiosos, acostumados a aceitar a orientação de experimentados eruditos. Não obstante, a filosofia ajudou a moldar suas crenças a respeito de Deus e do mundo, e ensinou-o a defendê-las no debate. O próprio cristianismo podia ser designado como filosofia; foi às vezes chamado "filosofia bárbara". É uma bela questão saber se nós o deveríamos chamar filosofia hoje.

Não há dúvida a respeito da contribuição que a filosofia deu ao pensamento cristão primitivo; o fato é certo, conquanto seu valor seja às vezes questionado; tentaremos descrever com pormenores essa contribuição.

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Não podemos, porém, falar com a mesma segurança a respeito da contribuição que os escritores cristãos deram à filosofia. Na verdade, foram escritos livros que se propõem descrever a "filosofia cristã", não somente como existindo na Idade Média, onde ela é geralmente reconhecida, mas no final da Antiguidade.22 Tais escritores, eu diria, interpretam "filosofia" num sentido muito amplo e muito livre. Sem dúvida, o próprio cristianismo pode ser chamado, como de fato foi, de filosofia, enquanto oferecia um programa de vida e apresentava razões para ser adotado. Mas se nós afrouxamos a esse ponto nossa definição de "filosofia", qualquer religião, não importa quão fantasiosa seja ela, será tida como filosofia. A questão verdadeira é se o uso que os mestres cristãos fizeram das doutrinas e métodos filosóficos, no sentido hoje em dia aceito, habilita-os a serem chamados filósofos. De minha parte, preferiria reservar o termo para aqueles que tratam essas doutrinas e métodos como uma disciplina autônoma, à qual eles se dedicam. Nesse sentido, apenas uns poucos dos antigos Padres cristãos podem com propriedade reivindicar a inclusão na categoria dos filósofos; para a maioria, o compromisso com o método filosófico era demasiado frágil, e sua produção, como filósofos, muito pobre.

Não precisamos criticá-los por fazerem da religião, e da religião cristã, o centro de seus interesses. O filósofo tem o direito de se concentrar na filosofia da religião, tanto quanto na lógica ou na teoria do conhecimento. E encontramos antigos escritores cristãos tratando de questões de reconhecida importância filosófica: o problema fundamental do teísmo, a origem do mundo, a natureza do mal e a interação do destino e do livre-arbí-trio. Nossa questão é, antes, que sua fidelidade à tradição bíblica e eclesiástica deixava, na maioria dos casos, um espaço muito pequeno para o estudo crítico desapaixonado que a filosofia requer. Muito poucos estavam interessados em questões fundamentais de lógica ou metodologia por elas mesmas; menor ainda o número dos que desenvolveram novos métodos ou instituíram novos resultados. Muitos deles receberam bem e adotaram doutrinas filosóficas correntes quando elas concordavam com suas convicções cristãs. E estavam prontos a rebater; quando essas convicções eram desafiadas pelos filósofos. Nos outros casos, falando de maneira geral, eles não estavam interessados. Assim, aquilo que tem sido chamado "filosofia cristã" se evidencia como teologia cristã, sistematicamente formulada com a ajuda de elementos tirados da filosofia.

Gregório de Nissa, por exemplo, influenciou grandemente a cultura européia por meio de seus escritos teológicos. Teólogo eminente, ele se valeu claramente da filosofia contemporânea; e pode-se facilmente inferir que ele deve ter sido filósofo notável. Mas uma breve reflexão porá em dúvida essa pretensão. Para Gregório, a Bíblia e a tradição cristã eram a fonte de toda verdade; ele teria considerado frivolidade dar igual atenção à erudição platônica ou à lógica aristotélica. E seria necessário certa coragem para afirmar que, sem tal esforço e treinamento, ele foi capaz de derrotar os filósofos no seu próprio jogo.

Mas, antes de prosseguirmos, precisamos livrar-nos de uma objeção. Estaremos estabelecendo padrões de excelência irreais, tentando talvez julgar os escritores cristãos pelos padrões de Aristóteles? Fica às vezes subentendido que no final da Antiguidade o nível do trabalho filosófico era tão baixo que os cristãos poderiam facilmente passar por filósofos pelos padrões do seu tempo. Isso, de novo, é enganoso.

22 Por exemplo, Henry Chadwick, ''The beginning of Christian philosophy", LGP capítulo 9; Eríc Osborn, The Beginnings of Christian Philosophy; cf. H. A. Wolfson, The Philosophy of the Church Fathers.

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Certamente houve certa falta de gênio original, sendo apenas Plotino e Agostinho as grandes exceções, mas ainda se poderia distinguir entre o mero diletante e o competente erudito profissional. Leitores que não são filósofos podem, não obstante, avaliar a grande diferença entre simples interesse, embora genuíno, e habilidade profissional.

Poderíamos tomar Justino como exemplo característico, já que, de modo bastante incomum para um cristão, ele foi professor de filosofia em Roma, no século II. Justino era homem sensível, que prestou bom serviço na formulação da primitiva tradição cristã. Não há a menor razão para pensar que ele fosse inferior a seus rivais profissionais entre os pagãos romanos; na realidade, sua adesão ao cristianismo foi, de muitos modos, uma vantagem, apresentando-lhe novos problemas fora da agenda tradicional das escolas platônicas. Não obstante, em argúcia, extensão de cultura e disciplina filosófica não se deve compará-lo com as melhores mentes do século II, com Plutarco, talvez, ou Galeno. Sua importância é a de professor cristão, um dos nossos Pais fundadores.

Nos primeiros quatro séculos cristãos, então, podemos encontrar trabalho profissional de boa qualidade proveniente de escolas pagãs, como o de Alexandre de Afrodísias, na tradição aristotélica, e dos neoplatônicos. O tratamento cristão de seus temas era comumente derivado, salvo onde ataques contra a Igreja e sua teologia exigiam refutação. Deixando de lado essas peças polêmicas de ambos os lados, houve, reconhecidamente, certa falta de escritos genuinamente criativos em idioma popular, como os realizados por Platão e Agostinho, e, mais tarde, por Anselmo ou David Hume. Muitos escritores pagãos contentavam-se com tratar questões filosóficas como temas para a oratória, na qual se visava mais à elegância que à investigação; aqui, devemos admitir, a seriedade dos escritores cristãos muitas vezes os punha em vantagem.

Poucos, como Porfírio, combinavam competência filosófica com estilo de exposição fácil; Plotino, e mais tarde Proclo, embora pensadores mais vigorosos, eram demasiadamente esotéricos e difíceis para terem influência muito imediata.

Depois da época de Agostinho, muda perceptivelmente a situação. A teologia cristã torna-se mais rígida, mais autoconfiante, mais introspectiva, e, em conformidade com isso, menos aberta às sugestões concretas dos filósofos. Por outro lado, os neoplatônicos, agora a principal das escolas filosóficas, mantêm a atitude anticristã adotada por Porfírio; seus sistemas especulativos tornam-se mais complexos e esotéricos, e grande porção de sua obra é expressa na forma árida e técnica de comentários sobre textos platônicos e aristotélicos. No final desse período, quando o cristianismo reforça sua posição como religião oficial do Império, começamos a encontrar eruditos neoplatônicos cristãos; entre eles, João Filoponos foi recentemente reconhecido como pensador de algum destaque; inversamente, já mencionamos o teólogo místico Dionísio, "o Areopagita", surpreendentemente comprometido com a filosofia de Proclo. Dão-se os inícios de uma escolástica cristã, na qual se empregam os métodos filosóficos para elaborar os pormenores daquilo que, basicamente, são as decisões dogmáticas aprovadas pelos concílios da Igreja. Mas, por via de regra, os filósofos exercem pequena influência sobre seus contemporâneos cristãos, e os eclesiásticos influentes não podem ser classificados como filósofos; Cirilo de Alexandria, digamos, ou Gregório Magno estudaram textos filosóficos, mas absorveram pouco em matéria de disciplina filosófica. Uma interessante exceção é Boécio, cujos interesses se distribuem de maneira bem equilibrada entre a filosofia e a teologia, mostrando-se habilidoso em ambas, além de escrever uma obra popular de enorme influência, a Consolação da Filosofia.

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Onde foi, então, que os escritores cristãos apresentaram contribuições originais? Essa questão pode ser abordada recordando-se que os antigos geralmente dividiam a filosofia em três departamentos: lógica, ética e física. O envolvimento cristão sério com a lógica tem início, no século IV, com Mário Vitorino e Agostinho, e prosseguiu com Boécio. Mas um pouco mais cedo já se realizara algum trabalho no campo correlato da teoria do conhecimento, ou epistemologia. Clemente de Alexandria, na tradição de Albino, compilou notas a respeito desse assunto, usando escritos lógicos de Aristóteles e também Crisipo; essas notas chegaram até nós como Livro 8 do seu Stromateis. Tratamento mais elementar do conhecimento racional é pressuposto também na discussão da virtude da fé e nas provas da existência de Deus, que examinaremos no devido tempo. Em ambos esses casos, os escritores cristãos tinham interesse em refutar o cepticismo.

Por outro lado, muitos deles de fato fazem uso de argumentos cépticos tradicionais para mostrar que a filosofia como tal não pode produzir verdade segura, a qual, então, deve ser encontrada na teologia cristã: uma conclusão que vai diretamente contra o cepticismo. Alguns escritores se permitem ataque indiscriminado contra os filósofos; encontram-se exemplos em Tertuliano, Lactâncio, Atanásio, Basílio e Gregório Nazianzeno; as dissensões entre os filósofos, afirma-se, provam que eles não conseguiram descobrir a verdade. Agostinho assume uma linha mais positiva, pelo menos em seus primeiros escritos; ele se declara contra o cepticismo e escreve tratados elementares sobre a teoria do conhecimento, o Principia Dialecticae e o De Magistro, bem como uma crítica dos cépticos muito mais importante, o Contra Academicos. Ele emprega também o conhecimento humano como dado para provar, a partir dele, a existência de Deus (veja pp. 113 abaixo). Mas suas reflexões mais penetrantes são emitidas de passagem, em obras escritas depois que seu interesse principal se havia vol-tado da filosofia para a teologia: as Confissões (por exemplo, Livro X) e o A Trindade.

É menos fácil fazer um sumário da contribuição cristã para a ética por causa da dificuldade de dicidir sobre o que deve ser incluído no termo "ética". Está a ética envolvida onde quer que se debatam questões morais? É claro que os escritores cristãos se ocupavam com a moralidade, tanto estabelecendo os padrões de caráter e conduta a que os cristãos deviam aspirar, como julgando quais práticas são inadmissíveis para os membros da Igreja; eles distinguem, então, entre virtudes e vícios, mas também, de modo um tanto diferente, entre conduta aceitável e transgressões reconhecidas. Muito do que escreveram é razoavelmente familiar, e devem-se encontrar apanhados gerais; sobre o aspecto social, temos a obra clássica de E. Troeltsch;23 um tocante livro de K.E. Kirk24 trata dos ideais pessoais e das disciplinas da Igreja; e apareceram recentes estudos de G.W. Forell e Eric Osborn.25

Mas o que claramente é mera coleção de diretivas morais, por mais sábias e elevadas sejam, não pode, como tal, ser chamado de filosofia. Não se pode traçar uma fronteira bem definida, mas sugerimos, provisoriamente, que o ensinamento moral pode ser tido como filosofia se ele discute as questões morais em relação com problemas filosóficos mais amplos, tais como a natureza do homem, de sua alma e inteligência, ou o problema do destino e do livre-arbítrio; ou, ainda, se ele reúne suas recomendações práticas num sistema coerente e inclusivo; ou ainda, naturalmente, se ele faz as duas coisas.

23 Die Soziallehren der christlichen Kirchen und Gruppen (Tubinga, 1912); Traduzido para o inglês The Social Teaching ofthe Christian Churches (Londres, 1931).24 The Vision of God (Londres, 1931).25 G. W. Forell, History of Christian Ethics. Eric Osborn, Ethical Patterns in Early Christian Thought (Cambridge, 1976).

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Alguns antigos escritores cristãos preenchem amplamente essas condições. Clemente de Alexandria tem um programa educacional bem concebido, coerente com sua metafísica e teologia, que pretende afastar a mente das coisas materiais e conduzi-la ao estudo das realidades transcendentes. Já Tertuliano, seu contemporâneo próximo, em surpreendente contraste, escreve como moralista severo e essencialmente não filosófico. Uma linguagem mais ponderada aparece com S. Basílio, que defende o recurso a autores não cristãos e reúne uma regra de vida para suas comunidades monásticas. Mas os pormenores de seu programa dificilmente se harmonizam com sua recomendação de uma "vida filosófica"; eles refletem a experiência da vida monástica sem contacto com a filosofia. Agostinho apresenta uma ética muito mais imaginativa e integrada, baseada numa síntese de cristianismo e platonismo.

Em terceiro lugar, deveríamos investigar em que os escritores cristãos contribuíram para a filosofia no capítulo referente à física. Para os antigos, "física" era um termo amplo e abrangente; denotava o estudo do mundo natural, incluindo seus primeiros princípios ou causas, sua origem e destino final, com uma importante subseçâo a respeito da natureza do homem, seu corpo, mente e alma e sua pretensão ao livre-arbítrio; alguns pensadores incluíam também os deuses e sua atitude em relação ao mundo e à humanidade. Assim, o segundo volume do Stoicorum Veterum Fragmenta, de von Arnim, trata da física debaixo de nove títulos: 1. princípios fundamentais, inclusive a definição de realidade, categorias, causas, elementos, espaço e tempo; 2. o universo em geral; 3. astronomia; 4. animais e plantas; 5. a alma humana; 6. o destino; 7. os deuses; 8. a providência e 9. a adivinhação. Mas esse catálogo está adaptado ao pressuposto estóico de que não existe realidade, mesmo do tipo mais racional e inteligente, que não tenha alguma espécie de incorporação material. Essa concepção era, naturalmente, contraditada pelos platônicos (descontados aqueles da céptica escola "acadêmica"), que ensinavam que as coisas materiais constituem apenas a metade, e de longe a metade menos importante, da totalidade das coisas. O primeiro lugar pertence ao mundo das realidades imateriais, as Formas ou "inteligíveis" (noeta), muitas vezes concebidas não apenas como inteligíveis, mas também inteligentes, e assim incluindo as almas humanas não corrompidas, junto com demônios ou anjos e um princípio criador supremo, ou deus. De modo geral, os escritores cristãos, assim como Fílon antes deles, aceitavam essa divisão da realidade em aistheta e noeta, a ordem perceptível e a inteligível. Mas essa divisão era cruzada por outra, originária do cristianismo, que alcançou destaque especial como resultado da controvérsia ariana, a saber, a distinção entre Deus Criador e todos os seres criados, quaisquer sejam, incluindo-se os espíritos imateriais, ou anjos.

Vendo o mundo material como criação de Deus, era natural que os cristãos incluíssem, sob o título de teologia, pelo menos uma breve consideração a respeito dele. Não obstante, os escritores cristãos geralmente aprovavam a teoria platônica do noeta por causa do apoio que ela dava às suas próprias doutrinas de uma divindade imaterial, tendo anjos ou espíritos como servidores, e a alma humana imortal, enquanto se mantinham algo cépticos em relação à doutrina das Formas, que era o ponto de partida de todo o esquema.26 Tertuliano está sozinho ao pretender que Deus, já que é real, deve ser um corpus.

Muitos escritores cristãos achavam desnecessário demonstrar em termos filosóficos que Deus existe, ou que ele é um; tinham a garantia da Escritura e da tradição cristã. Outros adotavam argumentos em voga contra o ateísmo e o politeísmo, mas eram tardos em divisar novos métodos (veja Capítulo 10, abaixo).

26 Veja; por exemplo, Orígenes, Prine. 2.3.6; Gregório Nazianzeno, Orat. 27.9 (= Orat. Theol. 1.9).

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Argumentos efetivos a favor da unidade e da transcendência de Deus, que afinal derivavam de Platão e Aristóteles e já haviam sido apresentados por Fílon, encontram-se em Justino e Ireneu, e são expostos de modo bem mais coerente por Clemente (especialmente Str. 5.81-2). Com Agostinho tem início tratado mais considerado do teísmo cristão.

O pensamento cristão a respeito da origem do mundo é dominado, naturalmente, pela aceitação geral dos capítulos 1 e 2 do Gênesis como relato literal do "Hexaemeron", os seis dias da criação. Escritores como Basílio Magno e Gregório de Nissa estudam filósofos, como Posidônio, para confirmar e desenvolver vários pormenores da narrativa bíblica, mas não lhes reconhecem nenhuma autoridade independente (Basílio, Hom. Hex. 1.2); Basílio, na verdade, considera o formato da terra como questão sem nenhuma importância (ibid. 9.1), enquanto Lactâncio havia insistido em que ela é chata (D.I. 3.24). Aqui, mais uma vez, Agostinho é mais sábio; embora desinteressado de investigação científica como esta, ele observa que conclusões bem firmadas em aparente conflito com a Bíblia podem constituir perigo para a fé cristã, a menos que se possam encontrar acomodações (Gen. ad Litt. 1.19.39 etc.). Orígenes, também, explorando seus métodos alegóricos, que lhe dão grande liberdade na interpretação da Escritura, apresenta uma visão ousada e abrangente, que faz uso tanto da doutrina platônica quanto da estóica. Se Deus é Criador, ele deve sê-lo eternamente; assim, este mundo é apenas um episódio numa sucessão infinita de mundos criados; discute também seu próximo fim, empregando as teorias estóicas de uma conflagração final.

A compreensão cristã da natureza do homem está geralmente baseada na amplamente aceita distinção grega entre corpo perecível e alma imortal, muitas vezes modificada para formar a tricotomia corpo, alma e espírito. Platão fornece algumas sugestões desta última concepção, embora seu esquema mais bem conhecido seja aquele que estabelece o contraste entre o corpo e a alma, a qual, por sua vez, é tripartida (veja pp. 29-30). Para Platão é o nous, inteligência, que é a parte mais elevada da alma (enquanto Deus é "ou inteligência ou algo melhor", Aristóteles fr. 46, p. 57 Ross). Os pitagóricos, entretanto, falavam de um elemento no homem, a "centelha divina", que é efetivamente semelhante a Deus. Os cristãos acabaram não gostando dessa sugestão de que homens pecadores pudessem pretender tal relação com seu Criador (cf. p. 73). Daí os pensadores cristãos distinguirem, no mais das vezes, entre a alma do homem, como a parte mais elevada da obra criadora de Deus, e o espírito, como um particular dom de inspiração concedido aos homens, não lhes cabendo, porém, controlá-lo.

A doutrina cristã a respeito da natureza humana é tão amplamente dominado pelo pensamento platônico, que dificilmente achamos algum traço da antropologia bíblica característica, tal qual hoje a interpretamos, que vê a vida e a personalidade como função do corpo humano quando este é animado pelo espírito divino. Mas um legado embaraçoso sobrevive; os hebreus só podiam conceber a sobrevivência como ressurreição do corpo, e essa crença bem cedo foi integrada nos Credos, com a poderosa influência exercida por Paulo. Isso representou como que um embaraço; a noção era ridicularizada por muitos platônicos, para os quais o corpo era necessariamente a fonte da sensualidade e da corrupção, e devia desaparecer para sempre. Por outro lado, os cristãos viram-se aceitando dois distintos conceitos de sobrevivência, que era difícil reunir num esquema coerente: a alma sobrevivendo sem um corpo depois da morte, mas esperando receber um corpo glorioso no último dia. (Enquanto isso, como era suprida a deficiência? Como poderia um corpo aumentar sua vida espiritual?)

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A única obra abrangente a respeito da antropologia cristã que chegou até nós é o De Natura Hominis, de Nemésio de Emessa, escritor versado, embora não original, do final do século IV, que tem pelo menos o mérito de apresentar uma síntese cuidadosamente elaborada das idéias platônicas e cristãs. Existe uma literatura mais considerável sobre a alma como tal, inclusive o notável e pouco convencional De Anima, escrito por Tertuliano, que se apropria em grande escala de seu material, incluindo-se uma apresentação - feita pelo escritor médico Sorano - das concepções já expressas pelos filósofos.

Por longo tempo se debateu sobre a origem da alma. No caso de Adão, podia-se encontrar resposta em Gênesis 1,27; mas para seus descendentes abriam-se várias possibilidades. Orígenes aceitava antigamente o ponto de vista platônico segundo o qual nossas almas viveram previamente em outros corpos, e assim o farão de novo, embora aparentemente nossas "outras vidas" ocorram em mundos passados ou futuros (cf Platão, Fedro 249b). Essa concepção, porém, era fortemente criticada, e a opinião cristã estava dividida entre as alternativas do "traducionismo", sendo a alma transmitida de pai para filho no ato da geração, e do "criacionismo", sendo cada alma criada individualmente por Deus, ou no momento da concepção, ou logo depois.

Uma questão de fundamental importância para a ética dizia respeito à liberdade da vontade humana. Era geralmente aceito que nossas atividades são circunscritas pela natureza e pelo acaso; não podemos impedir o envelhecimento, ou que incorramos em várias enfermidades ou acidentes. Mas continuava uma questão discutível se gozamos de uma liberdade limitada, ou se todas as nossas ações são determinadas e, em princípio, previsíveis. Os estóicos tendiam para o determinismo, embora apresentassem duas respostas um tanto inadequadas, a liberdade da autodeterminação e a liberdade de aceitar o inevitável, como se discutiu acima (pp. 55-60). O determinismo parecia também uma conclusão natural da astrologia, para os que a aceitavam, e da doutrina segundo a qual Deus conhece antecipadamente todos os acontecimentos. A posição contrária, segundo a qual as ações humanas são pelo menos parcialmente indeterminadas, foi defendida pelo platônico céptico Carnéades; e ele foi seguido por escritores cristãos os quais argumentavam que, se todas as nossas ações são determinadas, não se pode dar uma justificativa racional para o louvor ou para a censura, ou para recompensas e punições após a morte.

O trabalho cristão neste campo tende a parecer amador se comparado à argumentação rigorosa (até onde podemos reconstruí-la) de Diodoro Cronos e Carnéades e a obra remanescente de Alexandre de Afrodísias, em parte porque os escritores cristãos não se interessaram pelo problema fundamental proposto por Aristóteles (Interpre. 9) sobre a verdade e falsidade de proposições a respeitos de eventos futuros. O tratamento cristão antigo mais bem conhecido é o de Orígenes, no terceiro livro do seu De principiis; Orígenes defende, inter alia, que Deus antevê as ações humanas, mas não as determina. Metódio levanta o assunto no seu De autexusio, e Agostinho no seu De libero arbitrio.

Podemos, então, concluir que, deixando de lado Agostinho, poucos escritores cristãos seriam aceitos por uma crítica isenta como tendo dado uma contribuição original para a filosofia. Mas uma objeção deve ser agora considerada. Pode-se reivindicar que a estrutura principal da ortodoxia cristã foi afirmada numa tradição contínua com o auxílio de técnicas filosóficas, e que esse trabalho pode com propriedade ser incluído na filosofia da religião.

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Essa exigência podia ser feita em relação à doutrina básica de Deus, às da Trindade e da Encarnação, talvez à da Criação (em princípio, como creatio ex nihilo, embora não em seu pormenor bíblico) e às doutrinas que se ocupam da espécie humana e da vida moral. Sem dúvida, foi uma noção inclusiva de filosofia como essa que o Professor Wolfson adotou ao escrever A Filosofia dos Padres da Igreja.

Quanto a mim, por várias razões eu me oporia a essa ampliação. A mais óbvia é que ela entra em choque com o uso aceito. Qualquer livreiro competente sabe onde colocar livros sobre doutrina cristã. Além disso, se eles fossem levados para a seção de filosofia, a teologia ficaria desprovida de sua disciplina básica, reduzindo-se a um agrupamento de estudos periféricos, crítica bíblica, eclesiologia, liturgiologia, e assim por diante, sem nenhuma conexão inteligível.

Muito mais importante, a proposta que se acaba de apresentar ignora a dimensão da fé no pensamento cristão. É a fé que dá à imaginação cristã o poder de avançar novas perspectivas dentro de uma tradição contínua de devoção comum. Isso não significa que seja impossível apresentar a ortodoxia cristã dentro de um esquema racionalmente ordenado. Pode-se, por exemplo, argumentar a favor da existência de um Deus pessoal e amoroso, do que é razoável concluir que ele se revela aos homens; o próximo passo é afirmar que tal revelação pode ser encontrada nas Escrituras e no seu registro da vida e morte de Cristo. Tal esquema, fosse ou não convincente nos pormenores, traria a teologia dogmática para dentro do âmbito da filosofia da religião. Entretanto, na Igreja antiga é claro que os principais itens da fé cristã raramente foram debatidos, se é que alguma vez o foram, dessa maneira; eles são o produto da reflexão cristã sobre as Escrituras, aceitas pela fé como palavra de Deus, no contexto de uma vida comum de devoção a Cristo, aceito pela fé como Senhor, Iluminador e Redentor.

Se, então, rejeitamos a definição mais ampla de filosofia que acabamos de considerar, podemos definir o filósofo em termos do seu compromisso com uma disciplina e método racionais, e de sua habilidade em segui-lo. Não penso que esse tipo particular de compromisso e essa particular habilidade tenham sido fortemente representados entre os Padres cristãos. A questão poderia, é claro, ser debatida em termos de indivíduos; e eu exporei brevemente minhas concepções a respeito de algumas figuras mais importantes. Mas num assunto tão controverso como este, parece melhor expor as opiniões dos outros, tanto a favor como contra, anexadas como apêndice a este capítulo.

A respeito de Justino já falei. Ireneu é mais problemático. Ele tem, penso eu, mais talento filosófico do que é fácil detectar em sua obra remanescente.

Seu Aduersus Haereses é uma peça de ocasião, escrita para fazer frente a uma necessidade pastoral premente, sem dúvida em momentos roubados a seus deveres episcopais, de construção desajeitada e desigualmente bem informada; sua teologia é às vezes ingênua e arcaica, mas muitas vezes surpreendentemente madura. Mas quando se empregam métodos filosóficos, eles são manejados com habilidade, e se lamenta o desaparecimento de outras obras, conhecidas de Eusébio, especialmente o tratado que defende não ser Deus o autor do mal.

Eusébio de Cesaréia notabiliza-se, pelo menos, como esmerado estudioso da filosofia, e sua simpatia para com a tradição platônica deixou marca em sua teologia. Ele não é, em conjunto, um pensador original, apesar de eu achar que a tendência dos teólogos a depreciá-lo, quer devido à sua simpatia para com Ario, quer devido à sua admiração, desprovida de crítica, por Constantino, tenha sido levada muito longe. Ele merece moderada reabilitação.

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Dos Padres capadócios, Basílio e Gregório Nazianzeno são, evidentemente, pensadores muito mais influentes e efetivos, e certa filosofia básica tem parte importante em sua distinção entre "substância" e "pessoa" na Trindade (veja Capítulo 15). Basílio, ainda, pode argumentar, claramente contra Eunômio, servindo-se de teorias estabelecidas a respeito da natureza da linguagem. Mas, em conjunto, ele vê a filosofia como um auxiliar para a tradição cristã, antes que como fonte independente de verdade, ou mesmo um corretivo válido no pormenor; seria irrealístico tê-lo na conta de filósofo notável. O mesmo se aplica a fortiori a Gregório Nazianzeno, cujos talentos estão principalmente na efetiva expressão da doutrina cristã; mas seu fraseado tocante aborda muitas vezes questões de real substância teológica.

Gregório de Nissa já foi mencionado, e eu discuti seu caso em outro lugar. Ele chegou a ser descrito como "o maior filósofo cristão entre os Padres da Igreja",27 negligenciando-se, surpreendentemente, Agostinho; mas tal pretensão só pode repousar numa definição mais livre de filosofia, para cuja rejeição já apresentei razões. É ele teólogo de certa reputação, bem como estimado escritor devocional e místico; e, com veia filosófica, realizou alguns notáveis progressos, por exemplo, debatendo a favor da infinitude de Deus. Contra isso, podemos pôr seu propalado desprezo pelos filósofos não cristãos e por sua falta de consistência, tanto em sua terminologia como em suas conclusões (na realidade, estendendo-se o último aspecto à teologia, por exemplo nas suas opiniões conflitantes a respeito da vida futura).28

Eu criticaria mais seu desrespeito da técnica filosófica que seus erros bastante inesperados, que podem ser encontrados, por exemplo, no seu tratado Sobre não três deuses (veja pp. 169-170 abaixo), uma vez que os maiores filósofos não foram imunes a erros imprevistos. Restam um ou dois escritores que são mais difíceis de classificar.

Desses, Orígenes é talvez o mais intrigante. Ele próprio deixa claro que não vê a filosofia como autoridade primária; esse papel pertence à Escritura e à tradição cristã. Não obstante, é um cuidadoso e bem informado estudioso da filosofia. Viveu numa época e num lugar em que eram liberais os padrões da ortodoxia cristã; seus métodos alegóricos de exegese permitiam-lhe pretender sincera submissão à Escritura como palavra inspirada por Deus, ao mesmo tempo que mantinha considerável liberdade para especular. Adotou, assim, diversas crenças, algumas das quais de caráter platônico ou estóico, que mais tarde se mostraram inaceitáveis para os teólogos: a preexistência das almas, incluindo-se a alma de Cristo; a ressurreição de nossos corpos numa forma etérea, descarnada; a salvação final de toda alma, não se excluindo sequer o Demônio, que (sendo criatura de Deus) não pode ser essencialmente mau. Orígenes pode fazer um amplo exame; sua obra De principiis, em quatro volumes, apresenta uma abrangente avaliação de Deus, do mundo e da humanidade. E embora bastante afastado da principal tradição filosófica, pelo uso muitas vezes fantasioso que faz da Bíblia, freqüentemente escreve em estilo filosófico. Sua abordagem é desapaixonada, criativa e judiciosa; ele não pensa em termos de verdades inquestionáveis ou de heresias patentes, mas está disposto a considerar as sugestões quanto a seus méritos. Um leitor do seu Contra Celsum - sob alguns aspectos seu pior livro - facilmente pode repudiá-lo como polemista estreito; mas no seu Comentário sobre São João ele trata de maneira bem mais moderada com o gnóstico Heracleon, admitindo, quando é o caso, que Heracleon está certo, ou pelo menos não está distante da verdade (por exemplo, 6.26.126, 13.10.59, 13.10.62).

27 Basil Studer, Gott und unsere Erlõsung (Düsseldorf, 1985), p. 177.28 Veja T. J. Dennis, "Gregory on the resurrection of the body" (Bibliografia 20).

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Clemente, embora no geral pensador menos dotado, é escritor notavelmente original e pode também ser lembrado como filósofo. A apresentação do seu pensamento no Stromateis, ou "Miscelânea", é deliberada e torturantemente assistemática; mas ele tem uma concepção coerente de uma cultura cristã, na qual a filosofia tem parte essencial na educação do crente inteligente. Como vimos, ele pensava ser conveniente investigar a epistemologia como parte de seu programa; deixou-nos também um estudo sobre um problema específico na ética cristã, o Quis dives salvetur. Vale-se da tradição platônica para estabelecer uma teologia negativa, enfatizando a transcendência de Deus até grau que o torna virtualmente incognoscível ao homem.

Tertuliano está mais para o enigmático. Muito versado nos filósofos, seu temperamento agitado e sua propensão retórica levaram-no a afirmar, com força e eloqüência desenfreadas, pontos de vista contraditórios. Sua teoria a respeito da autoridade cristã mostra-o no seu mais obscurantista estado de espírito; seu ensinamento moral é severo e puritano, e é desenvolvido sem refinamentos filosóficos. Mas ele pode, quando é o caso, argumentar hábil e logicamente com o auxílio de sua erudição filosófica, como no seu De anima, ou (com efeito mais duradouro) ao exprimir a doutrina cristã a respeito da Trindade, apresentando Deus como uma única substância desdobrada em três Pessoas.

Levando em conta este registro desigual do empreendimento, eu não apresento este livro como uma história da filosofia cristã. Seria enganoso, certamente, sugerir que nesses primeiros séculos o uso que os cristãos fizeram da filosofia envolvesse um processo contínuo de desenvolvimento de algum modo comparável ao da teologia cristã; existem relativamente poucos pontos em que o trabalho filosófico foi incorporado na estrutura aceita da doutrina cristã. Mesmo esse grau de condescendência é, sob certos aspectos, notável, já que a filosofia veio de fora para dentro da Igreja, e sempre esteve sujeita a ser atacada como uma aberração pagã. Somente uns poucos escritores cristãos tiveram algum genuíno compromisso com o estudo filosófico; ainda em menor número foram os que se tornaram filósofos ilustres. Desconfiança, segurança excessiva e exibicionismo retórico - igualados, evidentemente, no paganismo contemporâneo - raramente foram completamente eliminados. Por essa razão, não tentarei descrever a interação entre filosofia e teologia na Igreja antiga como um processo em desenvolvimento. Parece mais apropriado adotar uma abordagem sistemática. Tendo apresentado este rápido esboço de todo o campo, tentarei investigar os conceitos principais que os pensadores cristãos, ou aprenderam dos filósofos, ou desenvolveram em direções que mostram sua influência. Pode faltar a este método de tratamento o calor humano que se poderia introduzir se tratássemos os pensadores cristãos um por um. Mas creio que ele pode fazer-se interessante e inteligível o bastante para qualquer leitor moderadamente competente, que mantenha o espírito de investigação.

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FÉ E FILOSOFIA29

Apresentamos e discutimos um certo número de tópicos com o objetivo de descobrir o que os pensadores cristãos aproveitaram da filosofia grega e como a trataram na sua obra. Assinalamos, por várias vezes, elementos da reflexão grega que não poderiam encontrar lugar no pensamento cristão; no entanto, de um modo geral, fixamos a nossa atenção naqueles aspectos da filosofia grega que, na verdade, se vieram a revelar importantes na estrutura do pensamento cristão, e verificamos como, com efeito, eles eram em grande número. Alguns deles tiveram de sofrer modificações mais ou menos drásticas no processo de adaptação, de modo que pudessem servir os propósitos cristãos; muitos deles tiveram simplesmente de ser colocados num novo contexto, o contexto da religião cristã. Temos, agora, de nos ocupar de algum dos problemas centrais relacionados com o facto de tão grande parte da especulação grega se ter mostrado capaz de ser assimilada pelos pensadores cristãos.

Em primeiro lugar, é importante apercebermo-nos de que existe aqui um problema. No tempo dos Padres da Igreja, dos escolásticos medievais, da Reforma - de facto todas as épocas de grande atividade ou renovação teológica - foi sempre ponto assente entre os pensadores cristãos que o conteúdo da fé cristã é objecto de uma revelação de Deus.

No Verbo de Deus encarnado, Deus comunicou a Sua verdade salvadora aos homens; a Bíblia contém o registro dessa revelação - tanto os seus estádios preparatórios na história do povo eleito, como a sua consumação na vida, obra e ensinamentos de Jesus Cristo. Por esta revelação foi dado a conhecer aos homens o caminho, a verdade e a vida: e os homens não tinham outro acesso além deste à verdade salvadora que pos-suíam pela fé. Que necessidade tinham estes homens possuidores da fé salvadora de se voltar para o pensamento pagão? E uma vez que se voltaram para ele, que tinha ele para lhes oferecer? A fé que possuíam era como muito bem sabiam, algo de radicalmente novo, que estava para além de qualquer possibilidade de ser alcançada pelo simples poder do espírito humano, pela sua simples actividade; era uma fé dada. Nenhuma especulação, por mais profunda que fosse a sua preocupação pela procura da verdade, por mais lógica ou por mais poeticamente inspirada que fosse, poderia acrescentar o que quer que fosse ao que Deus havia revelado.

A especulação, como caminho para a verdade última, verdade essa que constitui o objeto da preocupação última dos homens, não tinha nada mais para oferecer. A anulação da filosofia como porta para a verdade salvadora havia sido proclamada nos termos mais duros por S. Paulo no contraste que estabeleceu entre a sabedoria deste mundo, que é loucura aos olhos de Deus, e a loucura de Deus que é mais sábia do que os homens, através da qual quis Deus que se salvassem aqueles que crêem (I Cor. 1, 18-25).

29 O texto a seguir, até a página 92, foi extraído integralmente de ARMSTRONG, A. H.; MARKUS, R. A. Fé cristã e filosofia grega. Tradução José Barata Moura. Lisboa: União Gráfica, [?].

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A maneira de S. Paulo opor a sabedoria dos homens e a fé na revelação divina é a mais inflexível que se possa imaginar; e, no entanto, quando visitou Atenas, ao dirigir-se aos gregos na sua própria terra, também ele pôde apontar para o altar do deus desconhecido e apresentar a crença cristã ao seu auditório pagão como aquela que eles haviam procurado na escuridão, a resposta para as suas investigações e o objeto da sua adoração muda.30

Como conseguiram os pensadores cristãos conciliar esta dupla insistência de S. Paulo: a insistência, por um lado, na novidade radical e na profunda transcendência da fé em Cristo, na sua impossibilidade de ser alcançada por mera iniciativa humana, e a insistência, por outro lado, em que, de certa maneira, a especulação humana podia encontrar um lugar no campo da fé?

O processo de conciliação destas duas posições dentro do pensamento cristão foi gradual e, pelo menos ao princípio, hesitante, perplexo, e não sem que, por vezes, tivesse de retroceder. Mesmo depois de se ter encontrado uma solução, qualquer movimento intelectual de certa importância na cristandade tinha logo tendência para precipitar uma nova crise, na medida em que as soluções encontradas eram inevitavelmente postas em questão e tinham de ser restabelecidas num contexto alterado. Por agora vamos limitar a nossa atenção à primeira dessas crises, a que foi provocada pelo encontro original do cristianismo com o mundo intelectual grego. Tomando este primeiro encontro num sentido bastante lato, considera-lo-emos como estendendo-se aproximadamente desde os finais do séc. I até aos princípios do séc. V. A razão de escolhermos os finais do séc. I como ponto de partida assenta em que por esta altura os missionários cristãos viajavam pelos países do Mediterrâneo, anunciando uma mensagem bastante definida em relação ao seu conteúdo, que se ia tornando conhecida no mundo de língua predominantemente grega, onde, em muitos dos seus centros urbanos, se iam estabelecendo comunidades.

O simples facto de a nova fé ter de fazer ouvir a sua mensagem tanto em grego como na língua nativa do seu país de origem, significava que ela era levada a encontrar-se face a face com a civilização grega; e isto significava, inevitavelmente, que, mais tarde ou mais cedo, teria de enfrentar-se também com a filosofia grega. O princípio do séc. V é um ponto conveniente para localizar o final desta primeira crise de confrontação, uma vez que, de qualquer ponto de vista que se considere a história intelectual do cristianismo primitivo, a figura de S. Agostinho domina-a, marcando o fim de uma civilização e, em larga medida, ajudando a criar a nova que haveria de emergir das suas ruínas.

Existiram desde bastante cedo na história da Igreja pensadores que insistiram exclusivamente na novidade do cristianismo, no facto de que a fé em Cristo está muito para além do alcance do conhecimento humano. Em certo sentido são extremistas; é fácil satirizar a sua insistência na transcendência da fé afirmando que “posto que Deus nos falou”, já não nos é necessário pensar.

“A única coisa que importa para cada um de nós”, assim poderia continuar esta sátira,

30 Cf. Actos 17, 16-34, A autenticidade desta passagem foi posta em causa com base no seu carácter não paulino; cf. M. Dibelius, Studies In the Acts of the Apostles, London, 1956, pp. 63 ss. (na tradução Inglesa). Na ausência de outros fundamentos, esta rejeição a priori de semelhante complexidade na posição paulina parece injustificada.

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“é alcançar a sua própria salvação: ora bem, tudo quanto precisamos saber em ordem a alcançá-la está ali, escrito na Sagrada Escritura; entreguemo-nos, portanto, à leitura da lei divina, meditemo-la, vivamos de acordo com os seus preceitos, e de nada mais precisaremos, nem mesmo da filosofia. Deveria mesmo dizer: especialmente não da filosofia. Na verdade, as coisas passar-se-iam infinitamente melhor sem o conhecimento filosófico do que com ele.”31

Uma boa parte dos pensadores cristãos primitivos pensou nestes termos. Um exemplo notável é o de Taciano, um oriental convertido ao cristianismo em meados do séc. Il, que possuía uma certa preparação filosófica. Louva a «barbaridade» do cristianismo, pois é ela que estabelece um abismo entre a verdade salvadora e os erros de todos os filósofos. «Pois, quais foram as grandes e maravilhosas coisas que os vossos filósofos descobriram?» pergunta ele aos gregos (Or. 25): estão em desacordo entre si, deliciam-se em confundir o espírito com argumentações labirínticas, adaptam formas de vida ridículas e não conhecem a verdade. Para Taciano, esta atitude em relação à filosofia grega fazia parte e era uma parcela da sua opinião sobre a civilização grega, contra a qual a sua obra é um ataque cerrado.

Grande parte da linguagem de Taciano encontrou eco nas palavras de um pensador muito mais importante que escreveu cerca de meio século mais tarde, Tertuliano.

Apesar do brilho intelectual de Tertuliano, apesar de toda a sua importância ao contribuir para a formação da linguagem teológica da cristandade latina, e - podemos acrescentar - apesar de toda a sua dívida não reconhecida a várias linhagens do pensamento filosófico grego, encontramos nos seus escritos a mesma oposição infle-xível à filosofia pagã. «O que é que há de comum entre o filósofo e o cristão?", pergunta a ele, «o que é que há de comum entre um discípulo da Grécia e um discípulo do céu?... entre um amigo e um inimigo do erro?» (Apol. 46). Os filósofos, afirma ele, «são temerários intérpretes da natureza e dispensação divina», são a fonte primeira de todas as heresias; é por isso que S. Paulo adverte os Colossenses para que não sejam seduzidos pelas suas especulações vazias. Pois «o que é que Atenas tem a ver com Jerusalém? e a Academia com a Igreja? e a heresia com o cristianismo? .. Temos de procurar o Senhor com pureza de coração... Desde Jesus Cristo já não há lugar para mais curiosidades, desde o Evangelho não são necessárias mais investigações. Se acreditamos, não desejemos encontrar mais Crenças» (Praeser. 7).

Recorda-se, evidentemente, de que Cristo afirma no Evangelho “procura e encontrarás”, “bate e abrir-se-te-á” (Mat. 7, 7-8; Luc, 11, 9-10); mas as suas observações acerca destas afirmações são significativas: são dirigidas, diz ele, por Cristo aos judeus, no início do seu ministério, antes de terem tido provas suficientemente evidentes de que Ele é o Messias esperado.

Nós, que O aceitamos como o Salvador, não temos qualquer necessidade de continuar a procurar. E mesmo que quiséssemos considerar que as suas palavras eram dirigidas a todos os homens, elas teriam de ser interpretadas como significando «procura até encontrares, acredita quando encontrares, e mantém-te firme naquilo que encontraste, crendo, além disso, que só naquilo e em nada mais do que naquilo deves acreditar, não continues procurando depois de teres encontrado e acreditado naquilo que foi instituído por Aquele que te ordenou que buscasses o que Ele instituiu» (Praeser. 8-9).

Ao professar esta crença nas coisas que constituem o principal obstáculo para os seus

31 Citado de E. Gilson, Reason and Revelation in the Middle Ages, (New York, 1952), p. 6.

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leitores pagãos, Tertuliano sublinha a rotura entre os dois mundos intelectuais: «O Filho de Deus foi crucificado: não me envergonho disso, porque é vergonhoso; o Filho de Deus morreu: é crível porque é absurdo; o Filho de Deus foi sepultado e ressuscitou: é certo, porque é impossível» .

Tertuliano foi citado com uma certa profusão porque nele aparece a melhor expressão clássica deste ponto de vista. É fácil satirizar a intransigência deste tipo de concepção e repudia-Ia sem se deter a apreciar o seu profundo significado. Com efeito, no século II, como em muitas outras épocas, era fácil fracassar na apreciação da radical novidade do cristianismo, do abismo absoluto existente entre a verdade que ele proclamava e fora revelada por Deus em Cristo e as possibilidades últimas da reflexão humana. Um dos movimentos religiosos que no séc. II chegou a alcançar um desenvolvimento tal que constituiu uma real ameaça para a ortodoxia cristã, o movimento ou melhor, o conjunto de movimentos, que nós hoje em dia agrupamos sob o título de «gnosticismo», baseava-se nesse fracasso. A origem dessas seitas e as suas doutrinas não são ainda perfeitamente conhecidas, apesar de ter vindo recentemente a lume uma quantidade de material apreciável.32 Continham, certamente, um grande número de elementos tirados de fontes gregas, judaicas e de outros pensamentos do Próximo Oriente, da filosofia, da mitologia e, sustentando tudo isto, um impulso religioso básico.

No entanto, proclamavam que os seus ensinamentos expressavam a natureza autêntica do cristianismo. A fé bíblica dos membros ordinários e não instruídos da comunidade estava bem para a multidão; mas a elite, os cristãos «espirituais», como alguns gostavam de se intitular, sabiam mais. Possuíam uma visão mais penetrante, para além da simples fé: a gnose, o conhecimento. E, ainda que em alguns casos a inspiração fundamentalmente cristã do seu pensamento seja incontestável, o carácter único da sua fé encontra-se invariavelmente comprometido. As pessoas e os acontecimentos do Evangelho foram incorporados numa espécie de mito cósmico dramático, e perderam o seu carácter real e histórico. Os gnósticos construíram, a partir da fé cristã, juntamente com outros ingredientes, as suas várias versões da verdade salvadora. Devem, muitas vezes, algumas das suas características, algumas das infra-estruturas conceituais dos seus sistemas à última filosofia estóica e platônica.

Os polemistas cristãos afirmaram, evidentemente, que todas as suas heresias derivavam de seguir mais os filósofos do que as Escrituras e a tradição da Igreja. Parecem ter exagerado a dívida filosófica dos gnósticos em relação ao paganismo, mas tinham fundamentalmente razão ao verem tão claramente que um pensamento deste tipo com-prometia a unicidade e a gratuitidade do Evangelho. Se se lerem os protestos de Tertuliano projetados sobre este fundo, deve conceder-se-Ihes então a poderosa reafirmação desta unicidade e a gratuitidade da fé salvadora, ainda que se tenha de repudiar a sua rejeição violenta de todo o pensamento pagão.

As concepções expostas por Taciano e por Tertuliano não constituíam, evidentemente, a totalidade das concepções cristãs, mesmo no séc. II. Havia duas coisas cuja necessidade

32 Para uma discussão geral deste material recente, veja-se F. L. Cross, Ed., The Jung Codex (London, 1955); G. Quispel, Gnosis als Weltreligion (Zürich. 1951); e o meu artigo “New evidence on Gnosticism”, in Blackiriars 36 (1955), pp. 209-16. A obra de Quispel faz também referências a outros trabalhos, assim como o meu artigo na nota 1 da p. 147. Sobre as origens do gnosticismo a obra mais completa e recente é a de R. McL. Wilson, The gnostic problem (London, 1958).

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se fazia sentir, e ambas impuseram aos pensadores cristãos a necessidade de encararem a tarefa de procurar um modus vivendi com a filosofia pagã.

Em primeiro lugar havia a necessidade de tornar a nova fé compreensível à mentalidade contemporânea: e, como o mundo intelectual contemporâneo se encontrava impregnado de ideias estóicas e platónicas, essa tarefa significava procurar um certo entendimento com o estoicismo e o platonismo.

Era uma tarefa delicada, uma vez que se tratava de formular o significado dos ensinamentos, vida morte e ressurreição de Jesus em termos que deviam traduzir com estrita fidelidade o sentido da Escritura. Em segundo lugar havia o simples facto de que desde muito cedo se começaram a encontrar homens cultos dentro da comunidade dos cristãos convertidos. Foi inevitável que alguns desses homens perguntassem a si próprios como é que o equipamento intelectual que tinham trazido consigo da sua educação pagã poderia encontrar lugar, e mesmo desempenhar uma função útil, dentro da Igreja. Parece ter havido um certo número de linhas segundo as quais tentaram responder a estas perguntas. Não estão de facto muito claramente destrinçadas, e com frequência encontramos na obra de um pensador mais de uma abordagem do problema.

Uma maneira frequente de preencher o abismo entre a filosofia e a fé consiste em sugerir que tudo o que havia de verdadeiro e válido na obra dos filósofos tinha sido tirado das Escrituras hebraicas, num tempo que se perdia nas brumas do passado. PIatão tinha sido um discípulo de Moisés, ou dos profetas, e havia tirado dos seus escritos os vislumbres que tivera da verdade. Os filósofos não tinham acesso independente à verdade.

O que realmente lhes pertencia eram os erros interpolados, as distorções da verdade, as falsas interpretações da revelação divina. Estas eram tão variadas que produziram uma multiplicidade de escolas filosóficas, que, por seu turno, deram lugar à multiplicidade de seitas heréticas na Igreja. Como é óbvio, trata-se de uma solução de expediente, que não resistiria a uma análise séria. Apesar de ter sido sustentada durante algum tempo - há indícios dela em S. Agostinho - rapidamente deixou de ter qualquer importância como argumento para a aceitação do pensamento pagão pelos cristãos.

Existiu também uma outra corrente muito mais profunda segundo a qual alguns pensadores cristãos procuraram encontrar uma solução. A explicação tosca a que nos acabamos de referir sustentava que o elemento de verdade que se poderia encontrar no pensamento pagão provinha do resíduo de uma revelação: a filosofia só se podia pro-clamar verdadeira na medida em que, como em última análise acontecia, era de facto fé. A razão humana não podia contribuir senão com o erro e a distorção para diluir a verdade da fé. O ponto de vista proposto pela primeira vez por S. Justino Mártir, por meados do séc. II, constituía um radical afastamento desta teoria. Em vez de dizer que toda a verdade provinha da revelação, admitiu que a razão humana tinha acesso à verdade, apesar de, sendo humana, cair muitas vezes no erro.

Em relação a este ponto S. Justino recorreu à doutrina estóica do logos spermatikos, a «palavra semente». Na concepção estóica, o universo estava completamente impregnado pela razão cósmica, por um logos. S. Justino sustentou que todos aqueles que antes de Cristo viveram «segundo o Iogos», eram basicamente cristãos (I Apoc. 46). Este logos disseminado entre os homens em todas as épocas consiste numa espécie de antecipação fragmentária e de participação da verdade plena que foi revelada no logos feito carne, no Verbo de Deus encarnado.

A plenitude da verdade manifesta-se apenas em Cristo; mas aqueles que viveram e

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pensaram de acordo com o logos disseminado, mesmo sem saberem nada de Cristo, viveram e pensaram de acordo com a verdade (lI Apol. 8, 13). Foi esta a primeira tentativa séria na história do pensamento cristão para chegar a um acordo com a filosofia pagã, considerando o melhor do pensamento pagão como uma parte da “preparação para o Evangelho”.

Esta teoria estabelece, na verdade, uma ponte entre a fé cristã e o pensamento pagão. Mas podemos interrogar-nos sobre se, ao construir esta ponte, não elimina de facto o abismo sobre o qual havia de ser construída. Tertuliano, como já assinalamos, insistiu com absoluta intransigência na radical novidade da fé numa revelação concedida por Deus, na sua diferença total de qualquer revelação meramente humana.

Seria afectivamente assim se, seguindo Justino, afirmássemos que esta novidade, que este carácter diferente do cristianismo, consiste apenas em que ele é o todo, enquanto que o que aconteceu antes não foi senão algo, de parcial? Poderemos, na verdade, contentar-nos em ver a relação entre a fé e a filosofia como a que existe entre o todo e a parte?

Penso que não; e terei a oportunidade de sugerir, mais adiante, que a importância desta posição se encontra em relação com outro problema. Por agora temos de examinar o terceiro ponto de vista fundamental que os pensadores cristãos tiveram acerca da relação entre fé e razão. Foi esboçada pela primeira vez por S. Irineu que escreveu, mais ou menos, uma geração depois de S. Justino. Irineu não se interessava pela filosofia como Justino. Era sobretudo um bispo trabalhador, profundamente preocupado em proteger o seu rebanho contra a persuasão sedutora do gnosticismo nas suas diversas formas. A sua resposta era tão clara, tão simples e foi de tal maneira aceita por toda a tradição teológica cristã, que se nos pode tornar difícil apreciar o quanto era revolucionária.

Consistia muito simplesmente em duas atitudes firmes: primeira, o pensamento humano, por mais valioso e verdadeiro que seja, é impotente para conhecer Deus e a sua ordenação para a salvação dos homens.

Considerou o gnosticismo, fundamentalmente, como uma tentativa humana para alcançar o conhecimento salvador pelos seus próprios meios. Em segundo lugar, insistia em que a salvação devia apenas ser atingida através da fé naquilo que Deus tinha revelado, e sobretudo, naquilo que tinha feito. A razão humana e a revelação divina encontravam-se, por assim dizer, em dimensões distintas, do mesmo modo que vimos o eros como o amor do homem dirigido para Deus, e o agape como o de Deus pelo homem. A busca intelectual do homem, qualquer que seja o seu alcance, nunca pode chegar a ser a própria auto-comunicação de Deus na revelação, nem pode ser uma substituição desta. Os gnósticos, mesmo quando tenham aceitado, pelo menos exteriormente, muita da doutrina cristã, trataram-na sempre em igualdade de circunstâncias com muitos outros ingredientes, filosóficos e míticos, que incorporavam no seu sistema. Frente a este repto, conseguiu Irineu ver e exprimir a verdadeira relação que existe entre o pensamento humano e a fé, para uma mente cristã. Teria de ser uma aceitação completa, incondicional e sem reservas da revelação. Uma vez esta assegurada, concede-se ao pensamento cristão uma total liberdade; pode recorrer a qualquer concepção filosófica ou de outro tipo para aprofundar a sua compreensão daquilo em que crê pela fé.

Deus revelou-se na sua acção salvadora na história humana: o relato bíblico desta

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revelação define o conteúdo da fé do cristão. Toda a sua vida e pensamento têm de fundar-se nesta fé: a revelação é a estrutura incondicionalmente aceita dentro da qual desenvolve o seu pensamento humano, é o ponto de partida. A tarefa do teólogo, tal como Irineu a apresenta, consiste simplesmente em o induzir a professar o conteúdo da fé cristã, qualquer que seja o equipamento intelectual que possua. Esta tarefa pode ir desde algo de tão rudimentar como tentar compreender as palavras das Escrituras, até tipos de actividade intelectual muito mais sofisticados em que o esquema e a coerência da revelação são minuciosamente analisados ou em que a totalidade da visão do mundo que o homem tem é posta em relação com a fé. Ao ser deste modo incorporada como parte do equipamento intelectual com que o homem trata de aprender a revelação, ou penetrar mais profundamente na sua fé, a filosofia torna-se teologia. Apesar de Irineu não se interessar muito pela filosofia, isto está implícito na sua posição. Ele não veria qualquer razão para repudiar a adição da filosofia às outras disciplinas intelectuais que considerava como capazes de terem uma importância teológica.

Costumava dizer-se - sobretudo os teólogos da escola de Adolfo von Harnack - que a única diferença entre a heresia gnóstica e a ortodoxia cristã residia no facto de que o gnosticismo empreendia uma radical helenização do cristianismo, enquanto a ortodoxia empreendeu e aceitou um processo lento e gradual de helenização. Semelhante afirmação não considera um factor que parecia vital para um homem como Irineu: não era por uma questão de rapidez ou de extensão que as formas de pensamento gregas se haviam tornado admissíveis para o cristianismo; ninguém é mais liberal quanto ao campo de acção concedido ao pensamento humano no contexto da fé do que Irineu. A sua opinião é que em teologia todo este pensamento se exerce tendo como obiecto o conteúdo da fé; só a fé é fonte do conhecimento salvador, a reflexão humana sobre ela é apenas instrumento de clarificação, meio de a aprofundar. Em vez de tratar o pensa-mento humano sob esta perspectiva, o que os gnósticos fizeram, na sua concepção, foi permitir que o pensamento, especulação e imaginação humanos usurpassem o lugar da fé. Permitiram isto, segundo as suas palavras, «para alterar o seu objecto próprio» (AH l, 10/ 3).

Temos aqui a primeira e, na sua simplicidade, porventura, a afirmação clássica da tarefa do teólogo cristão, que haveria de permanecer, substancialmente, a concepção mais corrente na tradição cristã subsequente. A teologia era encarada como a ciência que punha ao serviço da fé tudo o que de válido e relevante havia no equipamento intelectual.33

Teremos de passar por alto todos os grandes teólogos que, segundo nos parece, permaneceram fundamentalmente fiéis à concepção do seu trabalho tal como foi defi-nida por S. Irineu - Clemente de Alexandria, Orígenes, Atanásio, os Padres Capadócios e as grandes figuras da cristandade latina. Passaremos a tratar directamente do maior teólogo de todos, S. Agostinho. A sua posição sobre este assunto é basicamente a mesma de S. Irineu. Se há alguma diferença entre elas, sobre esta questão da fé e da reflexão humana, é mais uma questão de ênfase e motivo do que de substância.

Agostinho não estava preocupado, como Irineu, em definir as funções respectivas da fé e da razão em face de um movimento herético fundado, justamente, numa confusão dos

33 Cf. o meu artigo “Pleroma and fulfilment: the significance of history ln SI. Irenaeus's opposition to gnosticism” In Vigiliae Christianae 8 (1954), pp. 193-224. Algumas das perspectivas ali apontadas deveriam ser corrigidas à luz do trabalho de R. McL. Wilson, “Gnostic origins” In Viqiliae Christianae 9 (1955), pp, 193-211.

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seus papéis. A peregrinação espiritual de Agostinho havia-o trazido à fé no Verbo encarnado.

O Platonismo, como assinalamos repetidamente ao longo destas páginas, foi um dos estádios dessa jornada: foi o meio por que se libertou do erro materialista. Havia sido, para ele, uma verdadeira “preparação para o Evangelho”, verdadeira, especialmente, porque era uma preparação e não uma substituição. O platonismo era, como ele próprio viu depois da sua conversão, impotente para descobrir a verdade salvadora da auto-revelação de Deus em Cristo. Mas, uma vez estabelecida firmemente a fé, ela só podia ser aprofundada colocando a mente em relação com ele. O seu equipamento filosófico permaneceu sempre para Agostinho um dos meios de incrementar em profundidade e amplitude a penetração do conteúdo da fé. A fé, como já assinalamos34, constituía o primeiro passo no caminho para a verdade que terminava apenas quando a plenitude da verdade fosse revelada ao homem na visão de Deus. A plenitude de compreensão é a recompensa e o objetivo da fé, mas toda a vida do homem, na medida em que é racional e espiritual, é um crescimento na compreensão. «Longe de nós», escreve S. Agostinho numa das suas epístolas, “supor que Deus aborrece em nós aquilo em virtude da qual na fez superiores aos animais.

Longe de nós, digo, a ideia de que deveríamos acreditar de forma a que por isso pudéssemos rejeitar a razão, ou cessar de a procurar: pois que nem sequer poderíamas querer se não possuíssemos almas racionais» (Ep. 120, 3). Para ele, não se trata tanto de encontrar um lugar para a razão, para a reflexão, como para Irineu; a fé exige a razão e a reflexão para chegar a alcançar a sua verdadeira plenitude humana, uma vez que uma fé viva tem de ser um crescimento contínuo na fé e na compreensão. Verifica-se aqui a mesma insistência, que já assinalávamos em Tertuliano, na fé como única via para o conhecimento salvífico de Deus, na novidade radical e na absoluta transcendência dela em relação à especulação humana. Mas pode ajuizar-se de como estamos longe do repúdio de Tertuliano da actividade intelectual humana pela comparação com os comentários de Tertuliano aos textos evangélicos «procurai e encontrareis, batei e abrir-se-vos-á».35 Para Tertuliano, como vimos, estas promessas eram válidas apenas em relação à procura do caminho para a fé: uma vez este encontrado não havia qualquer busca posterior. Para Agostinho é só então que a verdadeira jornada começa: a fé colocou o crente no bom caminho, mostrou-lhe a direcção correta: agora, e só agora, é possível crescer na compreensão.

E ele interpreta sempre estas promessas do Evangelho no sentido de que é à fé, e só à fé, que é concedido este crescimento. É este o modo como S. Agostinho chega a formular o tipo clássico de intelectualismo cristão. Não há nada, em todo o domínio das disciplinas intelectuais, de acordo com esta maneira de encarar as coisas, que não seja importante para esta procura de compreensão na fé. No seu tratado De doctrina christiana indica como todas estas esferas do conhecimento humano estão envolvidas na realização de uma melhor compreensão das Escrituras: ao longo do programa para uma cultura cristã que esboça nesta obra, as línguas, a história, a geografia, a matemática, as ciências naturais, todas elas, encontram o seu lugar.

Grande parte de tudo isto será, porventura, um pouco ingênuo no modo como estas disciplinas intelectuais são encaradas na sua relação com a compreensão da Escritura; e certamente, que o horizonte de Agostinho está limitado pelo ideal fundamentalmente

34 Veja-se pp. 113-115.

35 Vaja-se p. 225-226.

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retórico de cultura que partilhava com a sua época. Mas o que é vitalmente importante é o ideal de uma cultura humana completamente consagrada ao serviço da fé que se encontra implícito na sua teoria. Este humanismo teológico é um ideal nitidamente agostiniano.

Como veremos, a discussão muito mais rigorosa da lógica do pensamento teológico feita por S. Tomás, permanece, fundamentalmente, dentro da perspectiva agostiniana. Até aqui, ao falarmos de «filosofia» e de «teologia» empregamos estas palavras no seu sentido normal, correntemente aceite, para designar duas disciplinas intelectuais diferentes. Seria um erro afirmar que a philosophia e a theologia significavam o mesmo, pouco mais ou menos, para um filósofo grego ou para um Padre cristão do que significam para nós.

A philosophia, para nos ocuparmos desta em primeiro lugar, possuiu sempre aquilo a que poderíamos chamar um sentido «totalitário» ao longo da Antiguidade, tanto pagã como cristã. Significava o conjunto de todo o conhecimento humano, acerca do mundo, do homem e do seu lugar nele, pelo menos na medida em que esse conhecimento era significativo. A philosophia incluia o tratamento de todas as questões que eram objeto do maior interesse por parte do homem: problemas acerca do cosmos físico, dos deuses, do lugar do homem em relação a ambos: em resumo, tratava de tudo o que era considerado importante para determinar a conduta apropriada que o homem havia de adotar no mundo. Ter encontrado a resposta correta para todas estas questões constituía a sabedoria, Sophia, a actividade intelectual interessada em encontrar estas respostas era a procura ou amor da sabedoria, philosophia.

Por vezes, alguns grupos de discípulos de um filósofo, já desde os tempos da escola pitagórica, um dos exemplos mais típicos deste processo, tiveram tendência para formar entre si algo de muito semelhante a uma comunidade religiosa. Isto envolvia muitas vezes a adesão a um esquema de vida definido com regras deixadas ou atribuídas ao fundador da escola. Foi largamente defendido que a vida filosófica implicava uma rotura com as normas aceites pela sociedade, e que o ascetismo, a entrega de si próprio e a renúncia aos bens do mundo constituíam, frequentemente, parte importante da disciplina que seguiam. Através de todas as diversas formulações da vida ideal propostas pelas diferentes escolas filosóficas salienta-se a noção de libertação ou salvação como objetivo a atingir. Tudo isto facilitou que se considerasse a «conversão à filosofia» em termos muito semelhantes aos de uma «conversão ao cristianismo», ou a uma entrega religiosa por meio dos votos monásticos.36

Foi portanto fácil imaginar o cristianismo como o coroamento de tudo o que de melhor havia existido na Antiguidade. Não obstante o facto de algumas das crenças básicas dos cristãos chocarem violentamente com as normas geralmente aceites de respeitabilidade intelectual, a sua maneira de viver e algumas das suas crenças não eram tão radicalmente novas que não encontrassem paralelo no paganismo. Daqui a disposição dos escritores cristãos a seguirem o uso estabelecido referindo-se à religião cristã como «filosofia». Para os primeiros escritores cristãos, também a philosophia compreendia a atitude total do homem em relação ao mundo e ao seu próprio destino.

Desde muito cedo encontramos na literatura cristã referências à «filosofia cristã». Mesmo um escritor tão pouco filosófico como Taciano - pouco filosófico no sentido moderno do termo - se permite falar do cristianismo como uma «filosofia»: ao falar da «nossa filosofia bárbara», é seu propósito fundamental afirmar a superioridade do

36 Sobre todo este parágrafo veja-se A. D. Nock, Conversion; the old and the new in religion from Alexander the Great to Augustine of Hippo (Oxford, 1933), c. II.

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Cristianismo sobre o erro e a depravação do paganismo, mesmo nas suas melhores manifestações (ar. 35, 1). Escritores que se encontram no pólo oposto de Taciano em relação ao valor que atribuem ao pensamento e à cultura pagãs partilham com ele o mesmo uso da palavra.

Assim por exemplo, Minúcio Félix, o «Cícero cristão» do séc. III, depois de assinalar algumas das antecipações do Cristianismo no pensamento pagão, conclui com uma frase que recorda Platão (Rep. 473d): «ou os cristãos são agora filósofos, ou os filósofos já haviam sido cristãos» (Oct. 20, 1).

S. Agostinho reúne numa só estas duas atitudes, ainda que dentro de uma mesma estrutura linguística. «Pode o paganismo», pergunta ele, «produzir uma filosofia melhor do que a nossa filosofia cristã, a única verdadeira?» (c. juliaa. N, 14, 72). A «filosofia» cristã representava para ele, como já assinalamos, a sabedoria e o entendimento baseados na fé. A “filosofia cristã” é superior a qualquer outra justamente porque tem o seu ponto de partida na fé, a qual faz com que o homem inicie a busca intelectual pelo bom caminho. A fé, apesar de estar muito para além do alcance do esforço intelectual do homem, faz parte da philosophía entendida desta maneira: na verdade, constituí o seu início e o seu primeiro princípio essencial. Uma «filosofia» sem a fé está condenada ao erro e à distorção. A “filosofia” cristã é uma tentativa bem sucedida para alcançar aquilo que tanto uma filosofia cristã como pagã procura: «a única razão que o homem tem para filosofar é querer ser feliz» (De Civ. Dei, XIX, 1, 3).

A filosofia é, em última análise, a busca da felicidade pelo homem, e inclui, não apenas a sua fé e a sua expansão na plenitude do conhecimento, mas também o seu querer e o seu amor. Se é impossível identificar a philosophia dos Padres com a disciplina intelectual a que chamamos filosofia, seria igualmente insustentável afirmar que corresponde àquilo a que poderíamos chamar «teologia». Uma vez mais, o nosso conceito é muito mais limitado e definido. A história do conceito «teologia» mereceria amplamente um estudo, mas este ponto suscita problemas demasiado complicados para serem aqui abordados. No entanto, qualquer que tenha sido o modo como se constituiu, e quaisquer que tenham sido as suas consequências, a theología - discurso ou conhecimento acerca de Deus ou dos deuses - havia entrado, muito antes, dos tempos cristãos, no campo das disciplinas filosóficas. Foi sustentado por muitas escolas que o conhecimento filosófico do mundo poderia conduzir ou envolver um conhecimento do mundo divino. Este tipo de conhecimento era vivamente posto em contraste com a theologia interessada no ritual religioso, na mitologia e no culto oficial do Estado, e foi distinguido desta pelo epíteto de «natural» (ou «físico», na forma grega). Foi nesta “teologia natural" do paganismo, e particularmente da tradição platónica, que S. Agos-tinho encontrou algumas antecipações de verdades ensinadas pelo cristianismo.

Em seu entender, em relação a este ponto, a filosofia grega tinha alguma coisa a oferecer que devia ser tomada a sério, uma vez que se baseava numa penetração racional da natureza das coisas. No entanto, os outros tipos de "teologia” pagã, como produto da fantasia e convenção humanas, deviam ser rejeitados em virtude de se preocuparem com deuses feitos pelo homem. Ao salvar esta «teologia filosófica» do repúdio da religião pagã, S. Agostinho inseriu-se numa tradição estabelecida já em alguns círculos intelectuais pagãos, dos quais não era desconhecida a distinção entre deuses «naturais» e "convencionais”.

Foi esta distinção que permitiu a S. Agostinho considerar o neoplatonismo, mesmo naquilo que ele tinha a dizer acerca das coisas divinas, como uma preparação para o Evangelho. Foi só na Idade Média que a «teologia natural» passou a ser concebida

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como uma disciplina intelectual definida. A sua passagem a esta nova posição pertence à história da segunda crise do pensamento cristão, o impacto produzido sobre a sua estrutura por um outro confronto com a Antiguidade, como resultado de ter sido colocado frente a frente com a filosofia aristotélica no séc. XIII.

Através de várias fontes alguns elementos do pensamento aristotélico haviam-se ido aclimatando à tradição do pensamento, cristão. Mas na sua maior parte esta tradição havia-se formado com base na autoridade incontestável de S. Agostinho, e tinha permanecido, em geral fiel à sua influência formativa. Qualquer novidade que tivesse tido acesso ao ensino das escolas, poderia facilmente encontrar um lugar dentro do esquema agostiniano da fé como caminho para o entendimento e da filosofia como busca informada pela fé desse entendimento. Não existia qualquer dualidade entre fé e razão, tal como a reconhecemos hoje ao distinguir entre as disciplinas teológicas e filosóficas. Existia apenas a sabedoria única, que residia na compreensão racional da fé. O movimento tendente a contestar esta tradição começou no séc. XII, ganhou ímpeto e modificou completamente a situação nos finais do séc. XIII. Como resultado de vários factores, o mais importante dos quais foi, de longe, o aparecimento no Ocidente de traduções latinas das obras de Aristóteles, esta «sabedoria» unitária foi levada a con-frontar-se com uma pretendente rival ao título: a filosofia aristotélica .

O contacto directo com o «corpus» aristotélico foi suficiente para quebrantar a tradição estabelecida do saber. Na medida em que esta tradição era considerada como um todo, com o equipamento conceptual platónico tão intimamente ligado à procura de penetração racional da fé cristã, um novo esquema conceptual desafiava inevitavelmente a tradição estabelecida. Para tornar a situação ainda mais complicada e delicada, o equipamento conceptual recentemente descoberto encontrava-se muitas ve-zes ao serviço de preocupações intelectuais dificilmente compatíveis com a preservação da integridade da fé cristã. A resposta a este desafio que gradualmente se ia estabe-lecendo foi dada, em larga medida, na obra de S. Alberto Magno e de S. Tomás de Aquíno. Constitui numa efectiva e pertinente reafirmação de duas verdades simples: pri-meira, o pensamento filosófico, como qualquer outra das disciplinas humanas, possui os seus métodos próprios de procedimento e é autónomo no seu próprio campo. Por outras palavras, não devia ser julgado nos termos da tradição teológica estabelecida, por referência principal ao seu valor enquanto capaz de tornar inteligível o conteúdo daquela tradição. Deparamos aqui com uma concepção da «filosofia» como uma disciplina intelectual humana concebida muito à maneira de como hoje entendemos a actividade filosófica.

Juntamente com a afirmação da autonomia da filosofia como disciplina humana e racio-nal, figurava a afirmação da liberdade do pensamento teológico para procurar apoio em qualquer disciplina racional que parecesse ter algo de importante para oferecer que pudesse ser utilizado na tarefa de tornar inteligível a revelação divina em que se acreditava pela fé.

Garantir à filosofia a sua autonomia e afirmar a liberdade do teólogo de empregar quaisquer estruturas intelectuais que lhe parecessem recomendáveis, deu origem, ine-vitavelmente, a uma teologia de um novo cunho, fundida em moldes aristotélicos. S. Tomás emprega noções aristotélicas em muitas das suas análises teológicas.

Vimos algumas delas em acção na sua teoria do conhecimento e da mente, da vontade e do amor, da virtude, mas há ainda muitas outras, algumas das quais de muito maior importância, que ficaram fora do âmbito da presente exposição. Um dos mais

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importantes conceitos que S. Tomás emprega na construção da sua teologia sistemática, justamente porque arquitectónico, é o de scientia, a episteme aristotélica. Com a ajuda desta noção ele estava apto a fornecer uma explicação do pensamento teológico em termos de disciplina «científica», no sentido «aristotélico».37

A nova estrutura conceptual e os novos métodos não alteraram, contudo, a natureza da tarefa do teólogo. Tal como na descrição de Irineu, ou como para S. Agostinho, ou para os agostinianos medievais, o objetivo era também “compreender aquilo em que se acre-ditava”. A compreensão a que se aspirava havia de alcançar-se plenamente apenas no conhecimento de Deus concedido àqueles que o contemplam face a face: o seu conhecimento é uma participação no conhecimento que Deus tem de si mesmo e das criaturas. Este conhecimento é inacessível ao homem, está muito para além do alcance das suas naturais capacidades intelectuais. Só pode começar nele por meio de uma iniciativa divina, através da revelação de si mesmo feita por Deus e da resposta do homem ao Verbo de Deus na fé. A fé, o dom divino da adesão do homem ao Deus da Bíblia, é a fonte e o começo de todo o conhecimento de Deus. É uma subordinação total da mente do homem à de Deus, que envolve toda a sua pessoa e, portanto, todo o seu mundo intelectual. Deus dirigiu-se ao homem em linguagem humana; a resposta do homem pode dar-se apenas com as palavras que Deus pôs na sua boca. Todas as activi-dades intelectuais humanas nada podem acrescentar a isto, ou só o poderão à custa de erigirem um ídolo para substituir o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob.

Só o podem ajudar a traduzir a linguagem bíblica para a sua própria linguagem, a expor o seu significado, a incorporar a sua substância na sua própria linguagem, pensamento e acção. Esta expansão intelectual da fé na mente constitui a teologia: a tarefa do teólogo consiste em expor a fé da comunidade crente apelando para tudo quanto é útil e de interesse no campo das disciplinas humanas. O objectivo da obra teológica é a obediência intelectual à fé assim organizada numa subordinação total da mente do homem à de Deus: «para que possa ser, por assim dizer, uma impressão da própria ciência divina» (S. T., Ia, 1. 3 ad 2).

A teologia ou sacra doutrina, como S. Tomás prefere chamar à actividade de que acabamos de dar um resumo, deve ser claramente distinguida daquela actividade a que por vezes chamamos “teologia natural”.38 Como vimos, para S. Tomás a fé é a fonte e o fundamento de todo o pensamento teológico, e Deus, na sua revelação, tal como foi recolhida na Bíblia, o seu obiecto. Mas reconhece que certas aproximações do conhecimento puramente humano podem apontar de um modo incoatívo para Deus. As suas famosas «cinco vias» são tentativas para centrar a atenção no mundo de um modo tal que nos permita considerá-Io como algo que aponta mais para além de si próprio, como algo que mergulha os seus limites no mistério, num mistério que o próprio mundo nos compele a afirmar.

Neste mistério o crente reconhece o Deus da Bíblia numa das suas relações com a criação.

Semelhante conhecimento humano apontando para Deus é, segundo S. Tomás, genericamente diferente do conhecimento concedido na fé, baseado na própria

37 Cf. M.-D. Chenu, La théologie comme science au XIII.ème siècle (Paris. 1957); e também V. White, “The theologian's task” ln God the unknown and other essays (London, 1955), pp. 3-15; e o meu artigo: “Theological thinking - two accounts: Barth and Aquinas” in Scottish Journal of Theology, 10 (1957), pp. 253-61.38 Cf. A. R. Motte, “Théodicée et théologie chez St. Thomas d'Aquin”, in Revue des sciences philosophiques et théologiques, 26 (1937), pp. 5-26.

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manifestação de Deus. Consequentemente, a «teologia natural» não é teologia no sentido estrito que dá à expressão sacra doutrina. Diga-se o que se disser acerca das pretensões deste tipo de pensamento, S. Tomás pensou-o como um conhecimento mais propriamente acerca do mundo do que de Deus. Podia aspirar a conhecer aquilo a que ele chama praeambula fidei, a radicação daquilo em que acreditamos pela fé no nosso conhecimento acerca do mundo. Nunca poderia pretender chegar a um conhecimento de Deus, no mesmo sentido em que se diz que a fé dá um conhecimento «acerca» de Deus, ou a filosofia um conhecimento «acerca» do mundo.

Desde S. Justino - e até talvez se possa remontar a S. Paulo - que os cristãos conceberam o que de melhor havia no paganismo como uma antecipação da verdade plena do cristianismo. Por vezes, as suas formulações desta concepção permaneceram abertas ao perigo de surgirem, pelo menos, como comprometendo a singularidade e a superior transcendência da revelação do próprio Deus no seu Verbo. Teria sido este o perigo do ponto de vista de S. Justino. Mas a sua grande virtude residiu em fornecer uma fórmula muito necessária para justificar as tentativas do cristianismo para alcançar um modus vivendi com a cultura pagã. Nos tempos de S. Agostinho a tentativa havia-se já realizado, e em larga medida havia sido bem sucedida. Este mesmo êxito tornou ainda mais urgente a necessidade de reafirmar tudo quanto se encontrava por detrás do repúdio do pensamento pagão feito por homens como Taciano ou Tertuliano. Uma linguagem como a de S. Justino, que falava de um logos seminal operando previamente na mente do homem, embora não completa nem totalmente desenvolvido antes da vinda do Verbo para habitar entre os homens, podia pecar por injustiça em relação à novidade da revelação. Uma coisa é insistir com S. Justino, e certamente com o Novo Testamento, em que mesmo antes e fora da revelação Deus «não deixou de dar testemunho de si mesmo» (Act. 14, 17), e outra é passar desta insistência ao pensamento de uma dupla revelação de Deus, uma no seu Verbo e outra na natureza.

Mas, falar do Verbo fragmentariamente presente na natureza - embora em si esta linguagem seja irrecusável - faz com que seja fácil pensar a manifestação de Deus na revelação histórica e a sua consumação na Encarnação do Verbo, como não mais do que o ponto culminante e a reunião num todo dos fragmentos esparsos de uma alegada «revelação natural». Deste modo, a novidade radical da revelação de Deus em Jesus Cristo fica comprometida. A tradição cristã sentiu-se sempre tentada pela atração de semelhante concepção; mas encontrou sempre, ao mesmo tempo, as forças suficientes para protestar contra ela. Tais protestos chegaram, por vezes, a um extremo tal que menosprezaram o campo de acção e a importância das disciplinas intelectuais humanas. A distinção feita por S. Tomás entre as actividades genericamente distintas do exercício da razão dentro do âmbito da fé e do seu exercício fora desse âmbito, salvaguarda-as efectivamente a ambas de sucumbirem tanto à tentação de se livrarem do “absurdo” da fé como de exagerarem no protesto. Ainda que o seu método, bem como a estrutura conceptual que utilizou ao longo da obra, fossem novos, permaneceu aqui como em muitos outros aspectos, dentro da mais importante corrente da tradição cristã.

A sua análise do papel que a razão tem de desempenhar na mente do fiel exprime o pedido perene que se faz ao teólogo cristão: que ele se considere sempre a si mesmo como “devedor tanto aos sábios como aos simples" (Rom. 1, 14); e que se examine a si mesmo sem cessar acerca da qualidade da sua dívida para com a sabedoria dos homens, por um lado, e para com a loucura da cruz, por outro.